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Trilogia Empirium
Furyborn
Kingsbane
Lightbringer
Disponíveis no canal do Chaoticslates no telegram.
Traduzido, revisado e diagramado por Chaoticslates.
Capa
Folha de Rosto
Créditos
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Um Começo e um Final
Sobre a autora
Contracapa
Para minha mãe,
que me ama.
Uma Besta e Um Mentiroso
“Vocês que lutam por seus amores caídos, seus países devastados,
ouçam com atenção: pode chegar um momento em que o Imperador
apareça diante de vocês. Talvez sua beleza chame a atenção dele, ou seu
talento ou sua força. Ele vai sorrir e seduzir. Vai adular e fazer
promessas. Não confie nele. Lute contra ele até seu último suspiro. Lute
por aqueles que você perdeu. Lute pelo que o mundo poderia ter sido, e
ainda pode ser.”
— A Palavra do Profeta
•••
Eliana torceu os pulsos contra as amarras, mas não para se libertar, pois havia
decidido que seria uma tarefa inútil. Mesmo se ela escapasse de suas
correntes, mesmo se ela de alguma forma conseguisse passar pelos guardas
que estavam de sentinela do lado de fora de sua porta, o que aconteceria? O
que ela faria? Mergulhar no meio do mar e nadar em segurança, arrastando
Remy atrás dela através das ondas?
Uma vez, não muito tempo atrás, poderia ter se concentrado nas armações
de metal gêmeas de seus receptáculos e usado sua solidez, as âncoras lisas
dos discos em suas palmas, para atrair o fogo das lâmpadas de gás que
revestem os corredores e incitar grandes explosões, queimando qualquer um
que tentasse ficar contra ela.
Mas agora, não conseguia encontrar nem mesmo um fragmento de vontade
para tentar convocar seu poder. Sem seus receptáculos, ela era uma concha,
separada de sua carne e jogada nas ondas. Procurar pelo empirium resultaria
apenas em amarga decepção. Ela sentiu isso com tanta certeza quanto sentiu
o cheiro de seu próprio sangue no ar, vazando das feridas em seus pulsos.
Havia uma ausência nela agora – um grande vazio intransponível entre o
poder à espreita dentro dela e a capacidade de sua mente de fazer qualquer
coisa além de olhar fixamente para a parede enquanto o navio do almirante
Ravikant a levava sempre para a frente através do Grande Oceano, em
direção ao continente oriental.
Em direção à Celdaria.
Em direção ao Imperador.
O atrito da carne tenra de seus pulsos contra as correntes de metal
inflexíveis proporcionou a ela um conforto perverso ali na escuridão sem fim.
Uma dor ardente constante que a lembrou de onde estava, de que era uma
prisioneira, de que seus receptáculos haviam sido arrancados dela. Que um de
seus pais estava morto, seu corpo há muito tempo transformado em cinzas
pela vontade de sua própria amante; o outro também estava morto, seu
cadáver tomado por um anjo para mau uso.
Que uma de suas mães também estava morta, por suas próprias mãos.
E a outra...
Os momentos em que pensava em Rielle eram os momentos em que Eliana
se esforçava contra as correntes com uma espécie de fome febril.
Poderia tê-la matado.
Quando Simon a mandou de volta ao Velho Mundo, ao sopé das
desconhecidas montanhas Celdarianas, ela encontrou sua mãe – travou os
olhos com Rielle, respirou o mesmo ar – e ela perdeu o foco, permitindo que
o medo a dominasse. Naquele momento mais crucial, se atrapalhou, perdendo
a oportunidade que teria resolvido tudo e evitado tudo isso – isso: ser uma
prisioneira a bordo deste navio impecável, cujo cheiro era nocivo e pesado
em sua língua; isso: o som do desespero horrorizado de Remy quando ele
gritou, chorando, ao ver o rosto alterado pelos olhos negros de Ioseph.
Isso: o momento em que ela se virou no píer na praia de Festival e viu com
seus próprios olhos a visão terrível de Simon atirando em seus aliados um por
um, latindo ordens angelicais que os soldados imperiais se apressaram em
obedecer.
Eliana poderia ter impedido que tudo acontecesse. Ela poderia, mas em vez
disso alimentou o pensamento tolo da paz, de conversa e compreensão entre
ela e o maior mal que o mundo já conheceu: Rielle Courverie, nascida Rielle
Dardenne. A Rainha de Sangue, a Assassina de Reis, a Senhora da Morte.
Eliana poderia tê-la matado, mas tentou falar com ela em vez disso. Falar
com ela. Como se uma criatura tão vil pudesse algum dia ter a presença de
espírito ou o desejo de falar sobre o fim da guerra desastrosa que ela mesma
criou, ainda incontrolavelmente violenta mil anos depois de seu horizonte.
E quem planejou esse encontro? Quem se sentou com ela e Remy e ajudou
Eliana a elaborar as frases certas para dizer no Antigo Celdariano?
Simon. Ela se forçou a dizer seu nome, primeiro em sua mente e depois em
voz alta, esperando que logo o som, o ritmo das sílabas, alimentasse nela não
um desespero vazio e entorpecido, mas uma raiva, fria e limpa.
— Simon, — sussurrou. Olhou para a escuridão implacável. — Simon.
Simon.
Ela puxou com força contra suas amarras, esfregando, torcendo.
Talvez acertasse os ossos, se ela trabalhasse duro o suficiente para isso.
Talvez sangrasse até ficar seca.
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Por dias, ficou em agonia silenciosa entre as pilhas de seda azul que se
tornaram seu mundo.
E em seus sonhos, ele a visitava.
Primeiro ele era Remy, sendo arrastado por aquele corredor vermelho sem
fim com o qual ela havia sonhado pela primeira vez em Astavar. Ela o
perseguiu, correndo por quilômetros ao longo do tapete encharcado de
sangue, mas quem ou o que o estava puxando era muito rápido para ela,
muito forte, e o final do corredor estava se desfazendo rapidamente, os
pedaços explodindo para fora como cacos de vidro vermelho estilhaçado.
Então ele era Ioseph, o pai que a criara, deitado em uma mesa branca e
limpa em um quarto branco limpo, sendo aberto por anjos em mantos brancos
limpos. Cada um usava uma das máscaras que ela tinha visto no Jubileu em
Festival: um corvo negro metálico, uma raposa de latão sorridente, um pavão
de marfim cravejado de joias turquesa. Ioseph gritava quando as facas dos
anjos o perfuravam, e então um funil preto veio girando de cima, forçando-se
em sua boca, seu nariz, seu peito aberto.
Em seguida, ele era Simon, vindo até ela no quartinho em Willow com o
teto inclinado e o minúsculo fogão quente, a cama dobrada em um canto.
Seus músculos tremiam enquanto ele se movia dentro dela, e seus braços ao
redor dela eram quentes e fortes. Eles a firmaram e a imobilizaram e a
exultaram. Ele colocou a palma da mão contra sua testa, e o calor daquele
toque gentil a acalmou. Ela seguiu a trilha silenciosa de seu toque para baixo,
para baixo, para baixo em um túnel negro e quente enterrado no fundo de sua
mente. Seu próprio batimento cardíaco tamborilou cada vez mais rápido em
seus ouvidos, tão alto que sacudiu seu peito, e de repente queria deixar
Simon, queria correr dele e nunca olhar para trás. Mas não conseguia se livrar
de seus braços. Estava presa lá na pequena cama, no túnel em espiral, com o
estouro de seus batimentos cardíacos afogando-a, sufocando-a, e sua boca
estava sobre ela, seus dedos pressionando entre seus lábios, contra a curva
tenra de seu pescoço, e ela ansiava pela pressão de seu toque, embora o
desprezasse.
— Seus olhos, — ele sussurrou em seu cabelo, — são como fogo.
Um terrível calor abrasador floresceu dentro dela. Começou em sua barriga
e cresceu e aumentou até que estava pressionando as palmas das mãos nas
bochechas, queimando os dedos nas duas fogueiras onde seus olhos
costumavam estar, e a risada de Simon estava por toda parte, um
acompanhamento áspero para seu coração acelerado.
A voz de Harkan aumentou através do inferno crepitante: El, se você pode
fazer algo, faça agora!
Ela se viu ajoelhada na lama fora da cidade de Karlaine, pressionando suas
mãos brilhantes na terrível ferida no estômago de Remy…
Um som de sucção, depois silêncio. Trevas.
— Ah. — Um pequeno suspiro. Palavras suaves esticadas em torno de um
sorriso. — Aí está você.
Ela se virou em sua cama em Willow, naquele quartinho com teto
inclinado, a chuva batendo seus dedos frios contra as janelas. Sentado no
canto, em uma cadeira coberta com as roupas de Simon, estava um homem de
preto, dedos brancos unidos em seus lábios.
Seu sorriso se alargou quando os olhos dela pousaram sobre ele, e a visão
dele sentado ali, contente em sua diversão, era um retrato tão perfeito, tão
surpreendentemente belo, que Eliana se viu chorando de novo.
— Bem-vinda ao lar, Vossa Alteza, — disse a ela, e então se levantou, as
sombras da sala convergindo para ele, moldando as linhas pretas e limpas de
sua capa, seu casaco, seu cabelo…
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O aposento que as rainhas haviam preparado para ele era arejado e simples,
mas luxuosamente decorado – paredes de pedra caiada, samambaias lilases e
verde-floresta penduradas no teto em potes de latão, sinos de vento cantando
alegremente nas varandas.
Ele recusou o convite das rainhas para jantar o mais educadamente possível
e ficou feliz quando Ludivine se retirou sem dizer uma palavra para seus
aposentos no corredor.
O sol estava se pondo. Além de suas janelas, que haviam sido abertas para
permitir o ar fresco da noite, o céu estava escuro com luz tangerina, suas
nuvens tingidas de lilás e rosa.
Ele estava sozinho.
Observou o céu pelo máximo que pôde permanecer em pé e então começou
a tremer dos ombros tensos até as panturrilhas doloridas. A exaustão e o
entorpecimento daqueles longos dias viajando a bordo de Atheria estavam
chegando para reivindicá-lo, finalmente, mas a visão de sua cama era
insuportável. Limpa, arrumada e branca, a cabeceira da cama uma obra-prima
de entalhes de teca manchados e pedra azul polida, era adorável e
convidativa, mas não era dele.
Era a cama de um estranho, dormida por incontáveis dignitários ao longo
dos anos. Sua própria cama ficava em casa, em Baingarde, e o envolvia
enquanto ele se movia com Rielle nas altas horas da noite, quando tudo o
mais estava quieto.
Lá fora, em um dos amplos terraços, Atheria pousou com um pequeno
gorjeio alegre, a boca cheia de penas. Ela havia pegado um falcão para jantar.
Foi a visão dela que o desfez.
Sua dor o atingiu como a onda que vira Rielle dominar. Ele não conseguia
tirar a imagem dela de sua mente – uma salvadora brilhante, uma rainha com
membros de fogo montando seu corcel imortal para salvar o mundo.
— Oh, Deus. — engasgou, caindo de joelhos, e então, de repente, sua fúria,
tristeza e arrependimento explodiram em seu corpo, da barriga ao peito e
garganta, e ele jogou a cabeça para trás e gritou, seu braços rígidos ao lado do
corpo.
Rapidamente, seus soluços aumentaram para reivindicar sua voz, e ele
chorou ali no macio tapete branco, com as mãos enterradas em seus cachos
escuros. Seu peito era uma agonia de dor, como se uma lâmina o tivesse
partido em dois.
Ele não teria se importado se isso acontecesse. Não conseguia se imaginar
acordando no dia seguinte, e no seguinte, e no seguinte, neste lugar que não
era sua casa, seu trono tirado dele e ele mesmo, seu amor, sua Rielle longe
dele, expulsa por sua própria raiva, seu ciúme estúpido e cruel, seu orgulho
ferido.
Não ouviu a porta se abrir, nem ouviu Ludivine andar descalça no chão.
Não percebeu que horas haviam passado, que o céu estava escuro, ou que
estava com fome, tremendo no chão. Que estava tão cansado que seus ossos
doíam, ou que Atheria estava andando em um frenesi de preocupação no
terraço, cantando como um pássaro agitado.
Mas quando Ludivine se sentou ao seu lado e abriu os braços, ele se voltou
para ela, buscando conforto tão cegamente quanto uma criança. Ela não lhe
enviou nenhuma garantia com sua mente, e por isso estava grato.
Ele se agarrou a ela, seus soluços ásperos e fortes. Sentiu os lábios de
Ludivine em seu cabelo.
— Eu sinto muito, Audric. — ela sussurrou contra sua têmpora, suas
palavras cheias de lágrimas. Ela acariciou seus cachos úmidos, disse seu
nome novamente e novamente.
O som da voz dela o lembrou de respirar.
4
Tal
“Meu querido Tal. Vou mandar para aquela pousada que amamos, em
Beaulaval, na esperança de que chegue até você. Nenhuma palavra de
Audric ainda. As coisas estão mudando rapidamente aqui. Os soldados
de Merovec param os cidadãos nas ruas. Eles invadem as casas sem
avisar, patrulham os bairros constantemente. Procurando por algo, mas
o quê? Quando qualquer um de nós que tenta oferecer uma defesa ou
perguntar o que Merovec está tentando fazer, é dispensado. Mais
informações depois, mas por agora devo dizer que Odo Laroche e eu
começamos o que você pode chamar de esforço de resistência. Aqueles
que são leais a Audric. Você vai achar precipitado, mas não está vendo
o que eu estou vendo. Nós nos nomeamos Coroa Vermelha. Não ria.
Nada disso é engraçado e temos que fazer algo. Eu sinto sua falta. Seja
cuidadoso. Não confie em ninguém. Traga-a para casa.”
— Carta não entregue codificada de Miren Ballastier, Grã-Magister
do Forge em Âme de La Terre, capital de Celdaria, para Taliesin
Belounnon, Grão-Magister do Pyre, datada de 15 de novembro, ano
999 da Segunda Era
Escondido com segurança sob sua pesada capa de lã, seu capuz puxado para
proteger seu encharcado cabelo loiro, Taliesin Belounnon, Grão-Magister do
Pyre, entrou no barulhento salão da taverna de Glittering Mare e foi direto
para o maldito taverneiro.
Era uma noite fria, e a feroz tempestade de inverno que havia caído do
norte naquele dia não dava sinais de diminuir. Mas dentro da lotada Glittering
Mare, assim chamada em homenagem à lendária besta divina de São Katell, o
ar estava úmido e denso.
A bartender ergueu os olhos quando Tal se aproximou. Sua boca se
estreitou, tão parecido com a de Miren quando ela estava zangada – sua touca
vermelha de cachos era, da mesma forma, estranhamente reminiscente – que
Tal teve que desviar os olhos.
— Se você vai pingar água em todo lugar — disse ela, — então é o dobro
do preço de tudo o que temos.
Por baixo do capuz, Tal encontrou os olhos da mulher e deu-lhe um
pequeno sorriso, o tipo de sorriso charmoso e torto que na maior parte do
tempo deixava de lado desde que fora ordenado Grão-Magister.
Geralmente.
— Você tem certeza disso? — perguntou. — Fico feliz em torcer minha
capa algumas vezes e esfregar bem o lugar.
A carranca da barman se aprofundou. — Você acha que uma piada e um
belo sorriso são suficientes para me fazer mudar de ideia?
Tal sufocou um suspiro. Estava cansado e com frio, e suas botas e meias
estavam completamente encharcadas, e o escudo receptáculo, amarrado às
costas por baixo da capa, era injustamente pesado, e tudo o que queria no
mundo era uma bebida, só para ele, sem ninguém incomodando-o ou
reclamando do estado de suas roupas.
Assim que sua mente formou o pensamento, ele percebeu que era uma
mentira.
Tudo o que queria no mundo – tudo o que realmente queria — era olhar
para trás para as dezenas de pessoas que bebiam, fofocavam e gritavam na
taverna e ver uma jovem pálida com cabelos escuros desgrenhados e olhos
verdes brilhantes. Ela estaria ali, a multidão girando distraidamente em torno
dela, e quando seus olhos se fixassem nos dele, seu rosto se enrugaria de
alívio, de exaustão. Ela correria em sua direção com os braços estendidos, e
ele a abraçaria, alisaria os emaranhados de seus cabelos, beijaria suas
bochechas manchadas de lágrimas. Ele a tranquilizaria de que ela estava
finalmente segura, de que ele a levaria rapidamente para casa.
Seu nome enrolado na curva de sua língua. Era uma palavra familiar o
suficiente para ter um sabor ácido e explosivo, como se ele tivesse mordido
uma fruta madura de verão. Rielle.
Ele teve que olhar. Quase podia senti-la parada ali, assustada e cansada,
desolada e com saudade de casa.
Mas quando se virou para olhar por cima do ombro, viu apenas a taverna e
seus clientes, apenas o teto de vigas altas e as venezianas bem fechadas
contra a tempestade.
Ele fechou os olhos brevemente, uma dor aguda torcendo em sua garganta.
Esta não foi a primeira vez que jurou que ela estava lá – logo atrás dele, logo
depois daquela curva na estrada, logo depois daquele bosque de árvores. Seu
eco o acompanhou por dias enquanto procurava na vastidão Celdariana, e era
aquele remanescente, aquela atração, que o convenceu de que ela sempre
estava por perto, que estava cada vez mais perto de encontrá-la.
Ou isso ou ela estava morta, e era apenas sua memória que o perseguia.
Mas não conseguia imaginar que o mundo sobreviveria à sua morte. E se
pudesse, de alguma forma – se tudo pudesse ficar como estava mesmo que
ela não respirasse mais o ar que os mantinha vivos – então o mundo deles era
um que não desejava mais habitar.
Ele abaixou o capuz de sua capa, sacudindo os emaranhados de seu cabelo
encharcado pela chuva – e afastando pensamentos vagos de Rielle. Talvez,
pelo menos por alguns minutos, poderia limpar a cabeça e encontrar um
pouco de paz. Olhou para cima, oferecendo a bartender uma bela visão de seu
lindo rosto, um sorriso triste que conseguiu fazê-la corar.
— Perdoe-me — disse, rindo. — Foi um dia longo e horrível, estive
viajando por muitos dias longos e horríveis e meu temperamento está em
frangalhos. Você tem um trapo? Vou limpar essa minha bagunça e deixar
você em paz.
— Oh, pare de tentar me encantar — a bartender repreendeu quando se
afastou, mas ele viu sua boca se contorcer, e quando voltou alguns momentos
depois, foi com uma caneca fumegante de cidra e dois trapos brancos.
— Limpe-se, e então você pode pagar pelo próximo — ela disse com uma
piscadela que o lembrou, mais uma vez, tão completamente de Miren que ele
perdeu a capacidade de falar.
Em vez disso, sorriu para a mulher, encontrou um banquinho desocupado e
sentou-se curvado sobre sua bebida. Quente e apimentada, afrouxou alguns
dos nós em seu peito, mas não fez nada para aliviar a dor de cabeça que vinha
latejando constantemente em suas têmporas desde que deixou Âme de la
Terre. Ele havia trabalhado diligentemente nos últimos dias para manter seus
pensamentos de casa fugazes, folheando-os como faria com as lombadas de
livros que não tinha interesse em ler.
Mas a cidra não era excelente apenas para soltar nós, e logo ele estava
cuidando da borra enquanto os pensamentos de casa giravam e corriam por
sua mente.
Isso o estava deixando louco, não saber o que estava acontecendo em Âme
de la Terre. A notícia da deposição de Audric e a ascensão do trono por
Merovec haviam se espalhado por todo o país. A julgar pelas várias
conversas abafadas ocorrendo ao redor da sala e pelos olhares furtivos e
curiosos lançados na porta cada vez que ela se abria, os cidadãos aqui na
pequena aldeia de Tavistère tinham ouvido a notícia também.
Tal agarrou sua caneca e fechou os olhos, tentando não pensar em Miren
sozinha na cidade, lidando com Merovec Sauvillier.
Merovec Sauvillier, rei de Celdaria. Rei Audric, escondendo-se.
Rainha Rielle, desaparecendo noite a dentro.
As palavras sussurradas flutuavam pela sala, e cada vez que encontravam
os ouvidos de Tal, os sons coagulavam dentro dele como um bloqueio
horrível que não conseguia desalojar. Seu único consolo era saber que, se
Audric fosse encontrado e morto, Merovec garantiria que aquela notícia em
particular viajasse rapidamente. Até então, havia algum consolo na
especulação confusa sobre seu paradeiro.
— Aqui. — Uma caneca nova deslizou à vista. A bartender o observava
com curiosidade. — Parece que você precisa de pelo menos mais alguns
desses.
Tal conseguiu dar um sorriso fraco. — Vou pagar pelo terceiro, então?
— Mantenha-me envolvida em uma conversa fascinante, e você não terá
que pagar por nenhuma. Parece que você tem algumas conversas fascinantes
fermentando nessa sua bela cabeça loira.
— Fascinantes — Tal concordou. — Surpreendentes. Perturbadoras.
As sobrancelhas da bartender ergueram-se. — Você sabe como intrigar
uma garota, Capa Molhada.
— Aiden — mentiu, com outro sorriso.
— Rosette. — Ela apoiou o queixo nas mãos e sorriu de volta para ele. —
Então? Um acordo é um acordo.
E de repente, Tal não queria nada mais do que confessar tudo. — Saí de
casa para fazer algo muito importante — disse ele, com a garganta apertada.
— E deixei para trás alguém que amo.
— Por que essa pessoa não pôde vir com você?
O rosto de Miren apareceu diante dele – queixo pontudo e travesso. Um
campo denso de sardas nas bochechas pálidas. Cachos ruivos macios que
brilhavam como cobre derretido à luz de velas de seu quarto.
E então, na última noite em que ele a viu, nos jardins atrás de Baingarde –
seu rosto duro e solene, seus olhos brilhantes, mas cheios de determinação.
Ela tinha ficado na capital para ser os olhos de Audric. Uma espiã leal do rei
deposto.
Seja corajoso, ela sussurrou contra sua boca sob os pinheiros do jardim, e
então correu de volta para o castelo antes que ele pudesse começar a fazer o
adeus que ela merecia.
— Porque — disse por fim, esfregando a testa, — ela tem uma coisa
importante a fazer também. Muito importante para abandonar seu posto, por
assim dizer.
— Vocês dois devem ser pessoas bem importantes — Rosette meditou, um
único dedo batendo contra seus lábios. — Suponho que você não vai me
dizer quais são essas tarefas graves?
— Receio que não.
— Você jurou segredo, não é?
Ele colocou a mão no peito e abaixou a cabeça. — Jurei segredo e estou
preso a correntes douradas de honra.
O sorriso de Rosette se alargou. — Eu adoro quando homens taciturnos
carregados de segredos nobres entram em meu estabelecimento.
A mente cansada de Tal lutou por uma resposta. Tinha bebido muita cidra;
seus pensamentos estavam turvos e desleixados. O rosto de Miren e o rosto
de Rielle colidiram e se combinaram – cachos vermelhos curtos e longas
ondas escuras. O eco de Rielle tocou mais uma vez seu ombro, agudo e
repentino como uma rajada de vento, e ele apertou todos os músculos contra
isso.
— Eu sei que você não está realmente aí — murmurou, pressionando as
pontas dos dedos com força contra as têmporas.
— Aiden? Você está doente? — Rosette tocou seu braço. — Você ficou tão
pálido. Eu gosto de você, mas é melhor você não passar mal no meu balcão.
A porta do corredor da taverna se abriu.
Um grito desesperado soou. — A marca pálida! Eles estão aqui! A marca
pálida! Minha filha! Alguém, por favor, eles estão aqui! Alguém está aqui!
Rosette recuou com um grito sufocado.
Tal se virou, a visão pulsando com o ritmo da dor de cabeça, e viu um
homem parado na porta aberta, a tempestade feroz em suas costas. Em seus
braços estava o corpo de uma jovem, seus membros rígidos, seu rosto
contorcido em uma máscara grotesca de horror.
O pânico se apoderou do Glittering Mare como chamas cuspindo. Os que
estavam mais próximos do homem cambalearam como se a garota em seus
braços carregasse uma doença horrível. Outros gritaram e correram para as
portas, as janelas, as escadas que levavam às salas de embarque.
Tal se levantou, um pavor quente e frio inundando seus braços.
Ele tinha ouvido falar dessa "marca pálida". O Rei Ilmaire de Borsvall
escrevera a Audric sobre isso, e relatos de seus próprios soldados chegaram à
capital semana após semana nos últimos meses. Nas fronteiras de Celdaria e
Borsvall, aldeias e postos militares igualmente haviam sido afetados por essas
mortes inexplicáveis – pessoas mortas rapidamente durante a noite. Por
sombras, era o boato. Havia sussurros de feras, embora nenhum dos relatórios
na mesa de Tal tivesse conseguido descrever algo compreensível.
Alguns dos mortos foram massacrados, seus ossos espalhados e sua carne
em pedaços; outros ficaram sem vida, sem feridas em seus corpos. A única
pista sobre o que havia acontecido com aqueles cadáveres misteriosos, relato
após relato notado, eram seus rostos anormalmente pálidos, cada um deles
distorcido de horror como se, em seus últimos momentos, tivessem sido
desfeitos de dentro para fora.
Uma mão fria tocou o braço de Tal. Ele se virou para ver Rosette o
olhando, seus olhos vidrados com uma película cinza e um sorriso
presunçoso dividindo seu rosto. Tal perdeu o fôlego.
Ela inclinou a cabeça bruscamente para o lado. — Tarde demais, Tal.
Seu pescoço quebrou com um estalo horrível; seus olhos clarearam. Ela
desabou, batendo a cabeça contra a bancada.
Tal cambaleou para trás. Os mais próximos dele gritaram e fugiram. Ele
sabia muito pouco sobre o comportamento angelical, mas Rielle lhe contara
tudo o que acontecera ao falecido Rei Hallvard de Borsvall pouco antes de
sua morte, e enquanto olhava para os olhos congelados de Rosette, seu rosto
branco como osso se contorceu em agonia, um arrepio horrível varreu sua
pele.
Anjos.
Corien.
Rielle.
— Tarde demais, Tal! — Uma nova voz masculina cantou as palavras e,
quando Tal encontrou a fonte, o homem – barbudo, de olhos cinzentos,
sorrindo loucamente – já estava caindo, o pescoço quebrado, o rosto
descorado e contorcido.
— Tarde demais, Tal! — Um criado, pouco mais de quinze anos.
— Tarde demais, Tal! — Uma mulher tentando acalmar seus filhos
chorando.
A trilha de seus corpos quebrados o provocava, monstruosos rostos brancos
o conduzindo em direção à porta. Tal empurrou a multidão em pânico e o
pobre homem soluçando caindo de joelhos na soleira. O corpo de sua filha
caiu no chão.
Lá fora, a tempestade sugou o ar da garganta de Tal. A chuva negra o
atingiu como agulhas. Ele desamarrou as tiras do peito e retirou o escudo, em
seguida, usou-o para recolher uma grande placa de fogo das tochas
encharcadas de óleo que crepitavam na porta da taverna. Várias pessoas
gritaram e pularam para trás, mas ele as ignorou, correndo pelo pátio cheio de
lama. Os gritos aterrorizados dos cavalos alojados no celeiro da pousada
perfuraram o ar. Seus cascos batiam contra as baias. Não havia fogo, além do
seu escudo; eles estavam com medo de outra coisa.
Só quando chegou às árvores na beira do quintal ele parou para ouvir. Não
os gritos daqueles que estavam na pousada. Não a tempestade.
Em vez disso, ele ouviu Rielle.
Com o corpo trêmulo de raiva, ele fechou os olhos, agarrou o escudo com
força e invocou o empirium com mais desespero do que antes.
O empirium está em todos os seres vivos, e todos os seres vivos são do
empirium, rezou.
Queime firme e queime de verdade. As chamas que revestem seu escudo
cresceram, estalando e famintas.
Queime limpo e brilhante.
Rielle havia pronunciado essas mesmas palavras no dia do julgamento do
fogo. Eles as recitaram juntos, repetidamente, enquanto a réplica em chamas
da casa de seus pais cuspia cinzas e faíscas a seus pés.
Mas então... penas caíram em vez de chamas. Brilhante e cor de fogo, tudo
feito por Rielle.
Rielle, cadê você?
Seu eco passou por ele, quase brincalhão. Uma onda de frio em seu
abdômen.
Ele correu atrás dele pela floresta escura, galhos encharcados chicoteando-
o, a única luz era de seu escudo em chamas, e quando ele emergiu na clareira
onde ela estava – ele sabia, sabia que ela estava lá antes mesmo de vê-la,
podia sentir isso, podia senti-la; implorou ao empirium que a encontrasse, e
ele, pela primeira vez, o obedeceu limpa e completamente – a dor pulsante
em sua cabeça explodiu.
Ele caiu de joelhos; seu escudo voou para longe, as chamas apagadas. Caiu
para a frente sobre as mãos e, quando olhou para cima, o mundo se inclinou e
ele a viu apenas por um momento.
Ela usava uma capa longa e escura tão grande que a engoliu. Seu cabelo
molhado grudou em suas bochechas.
Seus olhos se encontraram, e mesmo quando sua visão escureceu, seu
crânio gritando como se estivesse se rasgando em dois, reconheceu aquele
olhar nos olhos dela. Ele a ensinou por anos; ele praticamente a criou.
Ela estava assustada.
Ele estendeu a mão para ela, seu braço tremendo. — Rielle, querida, está
tudo bem, estou aqui…
Mas então não conseguiu mais se manter de pé e, enquanto observava da
lama, imóvel e atordoado, uma garota de cabelos brancos e pele marrom clara
esculpiu um anel de luz no ar aos pés de Rielle. Ele não entendia o que estava
vendo. A garota era um marque?
Houve uma varredura de escuridão, um movimento rápido, um estalo no ar.
Um homem alto, o vento açoitando seu casaco.
Então a luz se foi. E Rielle também.
Tudo o que restou foi uma voz que não pertencia a ela. Era suave, refinada
e muito divertida.
Dizia, Tarde demais, Tal.
E então isso o chutou com força para o esquecimento.
5
Rielle
“Por milênios, os anjos viveram apenas nos céus. Depois que o primeiro
anjo ascendeu do pó da antiguidade, o restante de sua espécie nasceu –
das nuvens e cometas, dos altos ventos astrais. Luminosos e sem idade,
eles estudaram as estrelas e o empirium além. Foi só quando os anjos
finalmente notaram os humanos vivendo no mundo abaixo que eles
desceram, fascinados demais para resistir ao que eram para eles
criaturas notáveis e repulsivas com vidas fugazes e poderes invejáveis.
Para os humanos, a Grande Descida foi uma chuva de fogo sobre o
mundo, além do trabalho de qualquer elemental. O caos governou.
Países foram desfeitos e fronteiras apagadas. Os humanos se
espalharam por toda parte, deixando as nações que agora conhecemos
como Patria e Vindica livres para os anjos reivindicarem como suas.”
— E Fogo Caiu do Céu: A Grande Descida Angélica e Como Mudou
O Mundo, uma coleção de escritos acadêmicos compilados por Lyzet
Taval, da Primeira Guilda de Estudiosos
Rielle ainda não havia dominado a arte de viajar pelos fios de Obritsa com
qualquer tipo de graça.
A terceira vez que passou pelo anel de luz que veio a desprezar, conseguiu
manter o equilíbrio por apenas um momento antes que seus joelhos se
dobrassem.
O chão veio até ela rápido, um trecho plano e duro de terra vermelha
espalhada com seixos afiados que perfuraram suas palmas macias.
Ela olhou para cima, engolindo em seco contra a leve necessidade de
vomitar que sempre parecia acompanhar a viagem de fio, e descobriu que
estava no fundo de um estreito desfiladeiro de imponentes pedras vermelhas.
Havia um rio barulhento nas proximidades, abrindo caminho através da rocha
com espuma branca e uma corrente negra. O céu estava claro com o pôr do
sol, lançando uma luz carmesim sinistra nas paredes planas do cânion, nas
quais desenhos intrincados haviam sido esculpidos. Rielle encontrou formas
familiares: anjos alados voando por cidades coroadas por altas torres.
Grandes navios de guerra elegantes avançando em direção a uma costa
distante. Estrelas e luas pontilhando a tela de rocha vermelha em várias
configurações, como um mapa extenso deixado para trás por algum viajante
gigantesco.
— É lindo — disse suavemente.
— Claro que é. Anjos fizeram isso. — Corien se aproximou dela com a
mão esquerda estendida. — Esta é Samandira, a entrada de Eridel. Uma das
maiores cidades de Vindica, há muito tempo. Um local de estudo e
pensamento iluminado. Universidades onde estudiosos angelicais trabalharam
para desvendar os mistérios da criação. Bibliotecas contendo milhares de
trabalhos examinando a natureza do empirium. Antes que os humanos a
destruíssem — ele acrescentou levemente. — A guerra causou muitos danos.
E então, depois de nossa prisão, milhares de humanos viajaram até aqui para
demolir o que restou. Durante anos, eles fizeram isso – desfazendo tudo o que
conquistamos. Saqueando as ruínas.
Rielle sabia que a leveza em sua voz era falsa. Depois que ele a ajudou a se
levantar, ela entrelaçou os dedos nos dele. Sua capa e calça pretas, uma vez
imaculadas, estavam sujas de suas viagens inacabáveis. Olhando para o rosto
dele, tão fino e suave na luz vermelha, ela sentiu uma onda de carinho – e de
pena.
Ela tocou sua bochecha. Seus dedos sujos mancharam sua pele pálida.
Nenhuma palavra que pudesse dizer seria de algum conforto, e ela ainda
estava incerta se conforto era algo que ela desejava dar.
Mas ela não conseguia parar de tocá-lo.
Sua vida havia se tornado uma série de episódios frenéticos – correndo para
o leste, de uma cidade para a outra, a pé ou a cavalo ou em qualquer
carruagem que Corien roubasse de pessoas na estrada, nenhuma das quais
conseguia resistir à sua voz persuasiva, ao olhos brilhantes e claros, suas
promessas de uma rotina selvagem nas árvores, se ao menos eles permitissem
o uso de seu cavalo e carroça.
Ele gostava de brincar com eles, esses humanos infelizes que a princípio
estavam contentes em deixá-lo deslizar para dentro de suas mentes enquanto
olhavam para seu rosto requintado – até que percebiam tarde demais o que
estava acontecendo e começavam a gritar de medo.
No começo, Rielle desviou o olhar sempre que isso acontecia. A visão deles
era horrível – seus rostos convulsionantes e contorcidos – e então, quando
caíam no chão, o baque pesado e duro. Toda a cor saia de seus rostos, suas
expressões de terror absoluto. Ela sabia que Corien era capaz de violência,
mas estes pareciam casos tão desnecessários e cruéis que ela se recusou a
assistir.
No começo.
Agora, ela se via espiando cada vez mais frequentemente. Não era que ela
gostasse exatamente da dor deles. Gostava da exibição de seu poder, e ele
sabia que ela gostava, podia sentir seu prazer cansado pressionando contra
seus pensamentos logo antes de matá-los, e sabendo que ele estava satisfeito
lhe trouxe algum conforto. Estava desesperada por conforto. Sua cabeça não
parava de doer, e ela odiava seu vestido roubado.
Ela odiava, também, o quão estranho seu corpo se sentia alguns dias, quão
inexplicável o enjoo vinha sobre ela sem aviso prévio até ser forçada,
mortificada, a forçar vômito enquanto Corien segurava o cabelo com uma
ternura que quase compensava a indignidade de estar doente na sujeira.
Então, ela o observava matar, desejando seu prazer e aprovação com
desespero vagamente preocupante. Mas toda vez que um choque de alarme a
chocalhava, ele desaparecia tão rápido quanto havia chegado.
Você é como eu, ela lhe disse cinco dias atrás. Ele tinha acabado de se
afastar de um homem de cabelos grisalhos, enrugado, mas forte, e o deixou
cair no chão. O homem tinha sido um pastor, um fato que fez Corien rir por
razões pelas quais ele escondeu de Rielle quando ela tentou tocar sua mente.
Há meses venho dizendo como somos parecidos, respondeu, divertido, ao
passar por cima do cadáver para se aproximar dela. Por que dizer isso hoje?
Você não gosta de machucá-los. Não é isso que faz você fazer isso. Seu
coração bateu em sua proximidade. Cada pulso faminto fazia seu peito boiar
cada vez mais alto até se sentir pronta para flutuar do chão. Ela estava tão
cansada – estava sempre cansada de uma maneira lamacenta, como se
estivesse perpetuamente balançando através de um pântano gomoso – e a
exaustão só se desaparecia quando ele estava perto.
Você gosta do seu poder, disse a ele. Você gosta do que pode fazer e do
sentimento de retidão que o enche quando usa sua mente como ela foi feita
para ser usada.
Corien a considerou por um momento, e então, com seu hálito quente
contra sua boca, disse: Você está apenas parcialmente correta, minha
querida. Eu amo meu poder, sim, mas na verdade gosto muito de machucá-
los. Todos eles. Cada um.
Então ele a beijou, longa e fortemente, até que seu ligeiro desânimo doentio
com suas palavras desapareceu, até que ela se esqueceu do homem morto a
seus pés e de todos os outros corpos que eles deixaram em seu rastro.
Ela nem tinha certeza de para onde estavam viajando.
Quando perguntou a Corien, apenas uma vez, ele respondeu enviando seus
pensamentos, mas eram tão embaralhados e confusos que pensar sobre eles
machucava seus olhos, como se estivesse olhando diretamente para o sol. Ela
foi forçada a desviar o olhar deles, e logo tinha esquecido tudo sobre suas
perguntas, apenas ocasionalmente percebendo-as no horizonte de sua mente
antes de desaparecerem mais uma vez.
Devemos continuar, Corien disse a ela. Isso é tudo que importa.
Ele estava certo, é claro. Tinham que continuar viajando para o sudeste.
Não havia necessidade de saber mais do que isso.
Descansavam apenas quando Obritsa precisava, o que era muito frequente
para o gosto de Rielle. Ela não entendia? Eles tinham que continuar se
movendo. Era importante, e Corien não ligava para atrasos.
Mas a garota horrível só conseguia carregá-los cem milhas de cada vez
antes de desmaiar de exaustão, o que os forçava a parar com muita frequência
e descansar por uma ou duas noites em alguma pousada horrível e imunda, ou
em uma cabana miserável depois de se desfazerem de seus ocupantes, ou
mesmo ao ar livre, na sujeira, como feras.
E neste borrão de movimento interminável para o leste, durante o qual a
cada dia trazia uma nova paisagem, um dialeto ou estilo de roupa
desconhecido, cada um dos quais fazia Rielle se sentir mais inquieta, mais
assustadoramente longe de casa, Corien era sua única âncora. A única coisa
constante que a conhecia e a amava.
Então, na margem seca e plana do rio canyon, ela o tocou. O tocava tão
frequentemente quanto podia, mesmo quando a náusea de viajar pelos fios de
Obritsa a deixava trêmula e úmida de suor.
— Você quer ficar aqui um pouco? — perguntou, ignorando os gritos
abafados de dor de Obritsa quando a garota prendeu a respiração nas
proximidades. — Poderíamos explorar as ruínas. Talvez restem artefatos que
possamos resgatar.
O olhar de Corien suavizou, o que acontecia apenas quando ele olhava para
o rosto dela. O alívio dessa constância trouxe lágrimas aos olhos de Rielle.
Ele era uma lua brilhante, brilhando sobre o mar cinza coberto de névoa em
que ela agora vivia.
Ele beijou a testa dela. — Por uma noite. Encontraremos uma casa antiga,
uma casa angelical, que costumava ser tão grandiosa e gloriosa quanto você,
e dormiremos lá até o amanhecer.
Então, sem se virar, se dirigiu à garota e seu guarda.
— Avante, Sua Majestade. — Ele adorava zombar de Obritsa, o que fazia
Rielle ficar contente. — Você e seu nobre companheiro podem mostrar o
caminho.
Ele apontou para uma trilha larga que seguia o rio, esperou que Artem
marchasse adiante e Obritsa mancasse atrás dele, seu pequeno corpo
tremendo de exaustão. Artem pairava sobre ela, alto e robusto, com pele
castanho-claro e cabelo castanho desgrenhado, os olhos turvos e
preocupados. Amarrada ao redor de seu torso com seis tiras de couro, apoiada
em suas costas e ombros, estava uma enorme mochila de lona. Cada vez que
Rielle o olhava, sua cabeça girava e sua garganta se apertava até que ela era
forçada a desviar o olhar, então prontamente esquecia que existia. Isso
aconteceu de novo agora, e quando ela oscilou, as mãos de Corien em sua
cintura a estabilizaram.
Então ele levou a palma de sua mão à boca e puxou o outro braço dela.
Juntos, seguiram em frente.
•••
Não foi até mais tarde naquela noite, enrolada em uma pilha imunda de peles
e cobertores que eles encontraram – provavelmente, Corien disse com
desprezo, deixado para trás por um dos bandos errantes de caçadores de
tesouros que vagavam pelas cidades em ruínas de Vindica, buscando o
relíquias angelicais – que Rielle se lembrou de ter visto Tal.
A memória voltou enquanto ela dormia, atingindo-a com a força de um
golpe físico. Seus olhos se abriram, e mal conseguiu conter um grito agudo.
Várias coisas a ocorreram simultaneamente:
Corien estava sentado a alguns passos dela, olhando pela janela aberta da
mansão que ocuparam para a noite. Os tetos eram altos e os corredores
largos, projetados para acomodar as asas flamejantes de anjos que tinham
pelo menos 2,5 metros de altura. As proporções deixaram Rielle tonta. Seus
olhos estavam abertos, mas vidrados. Quando ela dormia, ele costumava usar
sua mente para “trabalhar”, ele havia dito a ela, recusando-se a oferecer mais
informações. Ele estava fazendo isso agora, o queixo apoiado na mão como
se estivesse inspecionando preguiçosamente o horizonte em busca de nuvens.
Tão ocupado, ele ainda não tinha percebido que ela estava acordada, nem
que se lembrava da memória que tinha escondido dela. Tal, deitado na lama,
estendendo a mão para ela, chamando por ela. Estou aqui, Rielle! E com
aquela única memória comovente vieram todas as outras, bem em seus
calcanhares. A névoa em que ela vivia desapareceu e finalmente viu tudo
com clareza, como se tivesse sido empurrada violentamente da escuridão para
a luz absoluta.
Ela tinha que partir. Agora.
Levantando-se trêmula, os olhos de Rielle se inundaram de lágrimas de
raiva. Agora entendia com clareza devastadora como tinha vivido nas últimas
duas semanas. Parecia óbvio agora, e ela se enfureceu ao pensar em quão
estúpida deve ter parecido, quão flexível e sem sentido.
Com seu poder, Corien confundiu sua mente e a arrastou pelo mundo
através dos fios de Obritsa. Alheia, Rielle o deixou conduzi-la, e nos
momentos em que suas memórias ameaçaram ressurgir, seu poder queimando
em protesto, ele aumentou seu controle sobre ela e a puxou de volta para uma
jaula acolchoada e entorpecida. Ele a persuadiu a dormir e a recompensou
com sonhos febris.
Engolindo um soluço, tremendo com o esforço de ficar quieta, Rielle se
levantou silenciosamente e se afastou dele. O chão de pedra era sórdido; seus
pés abriram um caminho irregular por longos séculos de poeira e
decomposição.
Por ele ter escondido tanto dela, por enganá-la tão completamente, por ela
ter visto Tal não muito tempo atrás, ele estava a meros metros dela – e ainda
assim Corien os impediu de conversar, tomou a escolha dela, nem mesmo
permitiu que se lembrasse do momento, ou de qualquer momento que não
quisesse que ela…
De pé, recuou para fora da sala, sem ousar piscar, empurrando com força
contra sua fúria e decepção e a dor de suas memórias recuperadas até que se
sentiu tonta. Ela viu tudo se desenrolar sem obstáculos diante dela: seu
casamento, e a visão que revelou que ela havia matado o Rei Bastien; Audric
gritando com ela nos jardins; ela fugindo da cidade; seguindo a voz de Corien
para a floresta fora de Âme de la Terre até que, finalmente, desabou em seus
braços. E depois…
E então, nada. Um oceano cinzento. Flashes ocasionais de cor. Uma
paisagem de sonho criada por Corien. Uma carruagem roubada. Arrancando
o vestido de noiva de seu corpo enquanto chorava, em seguida, cambaleando
através de um escuro bosque celdariano em sua camisola e botas até que
Corien a encontrou, forçou-a a vestir um vestido ainda quente de sua dona
anterior, beijou-a até que seu choro cessou e ela se encontrou à deriva em um
mar calmo e cinzento mais uma vez.
E Tal – oh, ele a chamou. Naquelas árvores, naquela noite tempestuosa
perto de uma pousada acesa, ele caiu no chão e estendeu a mão para ela. Ele a
estava seguindo, deve ter procurado por ela, na esperança de trazê-la para
casa.
Rielle chegou à porta, com a respiração apertada e fraca, os olhos ardendo
enquanto olhava para Corien e desejava que ele ficasse parado. Era incomum
que ficasse tão distraído com seu trabalho que nem notasse o despertar dela.
Mas seja qual for a razão para isso, ela teve que aproveitar a chance para
fugir. Vejo uma criatura divina ansiosa para ser libertada, dissera ele,
enquanto apertava as correntes que a prendiam a ele.
Liberdade. Uma grande piada. Ela tinha sido um cachorro na coleira; via
isso agora com uma urgência tão escaldante que parecia que ela havia
engolido um raio.
Com os pensamentos rugindo de pânico, olhou para os pedaços
inconscientes no canto mais distante da sala que eram Artem e Obritsa,
mantidos congelados em um sono profundo criado, é claro, por Corien. Ele
estava planejando tudo isso, e ela não podia confiar em nada, e agora onde
ela estava? Lugar nenhum. Longe de casa, em uma terra em ruínas que
outrora pertenceu aos anjos.
Assim que Rielle recuou sobre a soleira e entrou no vasto corredor externo
– o teto antigo e desmoronado, aberto para os andares superiores da casa e
depois para o céu salpicado de estrelas acima – ela correu.
•••
•••
Audric acordou apenas duas horas depois, quando uma onda de água gelada
caiu em seu rosto.
Levantando-se com um suspiro, ele piscou acordando e tentou entender o
que estava acontecendo. Mal havia enxugado os olhos quando aconteceu de
novo – um painel de água fria caindo sobre ele.
Encharcado, tentou pular para fora da cama, procurando por Illumenor.
Mas os lençóis estavam encharcados e emaranhados em suas pernas, e ele se
debateu enquanto tropeçava em seus pés, segurando-se contra a coluna da
cama com uma maldição sibilada.
Ele girou abruptamente furioso. Era o auge da manhã; a luz do sol entrava
pelas janelas e seu corpo faiscava com ela. A raiva atraiu calor e luz para suas
palmas, que coçavam para segurar sua espada.
— Cubra-se — disse uma voz familiar. — A princesa está aqui e ela está
vendo tudo.
Audric enxugou o cabelo molhado do rosto, piscou e viu duas pessoas
paradas a alguns passos de distância. Uma delas era Sloane Belounnon, Grã
Magister da Casa da Noite – irmã de Tal, uma shadowcaster prodigiosamente
talentosa e obviamente irritada. Ainda usava o terno preto e azul fino que
usara no casamento muitos dias atrás, embora o tecido agora estivesse
manchado com a sujeira da viagem, assim como seu rosto pálido. Seu cabelo
preto e lustroso na altura dos ombros estava bagunçado na nuca.
Ao lado dela, sorrindo, os receptáculos ao redor de seus pulsos zumbindo
com o uso recente, estava a princesa Kamayin Asdalla – sua pele um rico
marrom profundo, seus cabelos mantidos curtos em caracóis apertados e
pretos. Debaixo de sua jaqueta branca, uma delicada corrente dourada
cintilava prendendo seu vestido iridescente na cintura.
Ela lhe acenou atrevidamente. — Bom dia.
Audric agarrou os lençóis de linho encharcados em seus quadris. Ele só
pensou brevemente em tentar algum tipo de saudação digna. — Para que foi
isso?
— Porque você sabia que tínhamos chegado, mas não desceu para nos
cumprimentar — disse Sloane energicamente. — Toda a Guarda do Sol
esteve fora de si durante toda a jornada, querendo que nós fossemos mais
rápido, porque na ausência da Rainha do Sol, eles querem proteger você, o
Portador da Luz. E se você pudesse ter visto a expressão no rosto de Evyline
quando ela foi informada de que o Rei Audric não iria descer para
cumprimentá-la porque ele ainda estava na cama e não queria ser
incomodado… Eu poderia te dar um tapa. Aquela mulher passou a amar você
e Rielle profundamente, é como se vocês fossem seus próprios filhos, e ela
deixou sua família e seus amigos e sua vida para trás em Âme de la Terre
para vir ajudá-lo – todos deixaram – e é assim que você os agradece por seus
sacrifícios?
Por um momento, Audric não conseguiu falar. Ela estava certa, é claro, e
isso o envergonhou tão completamente que ele se encolheu. Seu
entorpecimento o reassumiu depois de ser temporariamente abalado pelo rude
despertar, e ele descobriu que não se importava se a princesa Kamayin o
visse nu. Ele largou os lençóis e recuperou as calças, a túnica amarrotada.
— Bem? — A voz de Sloane tremia de impaciência. Ela sempre fora a mais
afiada, e Tal, o mais suave. — O que você tem a dizer para você mesmo?
Ele encolheu os ombros, cansado, mas decidido. — Não posso vê-las.
— Você não pode vê-las — repetiu categoricamente. — E o que isso quer
dizer? Como você se atreve a vomitar essa merda em mim.
As sobrancelhas de Kamayin se ergueram. — Se alguém falasse assim com
minhas mães, passaria o resto da vida em uma masmorra.
— Sloane me conhece desde que nasci — Audric murmurou, puxando sua
túnica. — Ela fala assim comigo o tempo todo.
— Só quando você merece. — Sloane cruzou os braços sobre o peito. — O
que você quer dizer com você não pode vê-las?
— Quero dizer… — Ele parou. Como poderia explicar que se visse Evyline
e Fara, Ivaine, Maylis – as guardas dedicadas de Rielle – seria como perdê-la
de novo? Como poderia descrever a maré negra subindo cada vez mais alto
dentro dele, apagando todos os pensamentos e sentimentos, deixando-o
entorpecido, apagado, irrelevante? Ou a raiva de Ludivine por suas
manipulações, sua raiva de Rielle por deixá-lo, sua raiva de si mesmo por
afastá-la?
E mais do que tudo, sua raiva de Corien, o que permanecia uma coisa
distante, tão titânica e fervente que sua mente não conseguia compreendê-la
totalmente e, em vez disso, se concentrou nas coisas mais imediatas, as fúrias
menores, os medos mais pálidos.
Ele olhou para Sloane, indefeso. — Não posso vê-las — disse novamente
em um sussurro, e algo mudou no rosto de Sloane. Um amolecimento.
Ligeiro, mas real.
Ela acenou com a cabeça lentamente, deu-lhe um sorriso tenso. — Você
deveria voltar a dormir. — Se aproximou dele, ajeitou a gola de sua túnica,
ergueu os olhos para seus cabelos ensopados e declarou, com um sorriso mais
gentil: — E você está horrível, deve ser dito. Voltarei esta tarde para ajudá-lo
a se preparar para amanhã.
— Amanhã?
— Estaremos nos encontrando com as rainhas – você, eu, Ludivine, a
Guarda do Sol, os conselheiros reais e os altos magísteres Mazabatianos. Um
conselho de guerra.
— E eu — disse Kamayin, girando os pulsos enquanto seus receptáculos
zumbiam. A água derramada evaporou; logo a cama estava seca. — Eu
estarei lá também.
— Eu não vou me encontrar com ninguém — Audric disse
automaticamente. A própria ideia de enfrentar todos aqueles olhos que o
observavam o fez querer dormir para sempre.
— Tudo bem então. Suponho que Merovec permanecerá em seu trono,
Corien irá destruir todos nós e, enquanto isso, você estará aqui, se
escondendo em sua cama, deixando os relatórios de Miren não serem lidos
enquanto ela e todos os outros em casa vivem todos os dias em confusão e
medo.
Com isso, Sloane marchou para fora da sala, e quando Kamayin
silenciosamente a seguiu, um estranho desejo de estar perto de outra pessoa
queimou dentro do peito de Audric. Ele pensou em chamar Ludivine e
imediatamente desistiu.
— Espere, por favor — disse.
Kamayin se virou, observando-o com curiosidade.
— Eu estou… — Ele fez uma pausa, lutando para falar. Não aguentava
mais ficar de pé e então se sentou no tapete, encostado na cama. — Você
poderia sentar comigo um pouco? Se você tiver tarefas que precisam ser
atendidas, eu entendo.
— Eu sou uma princesa — disse, sem ser rude, — não uma médica ou uma
de suas servas. Além disso, quase não nos conhecemos.
— Eu sei.
— Você não prefere que Lady Ludivine se sente com você?
Não conseguia esconder a escuridão de sua voz. — Não. Eu não quero vê-
la agora.
Kamayin acenou com a cabeça. — Eu sempre me preocupo que ela esteja
remexendo na minha cabeça.
— Um medo razoável.
— Mas você ainda a ama.
— Claro.
Kamayin soltou um suspiro. Então ela se sentou ao lado dele e abraçou os
joelhos contra o peito. — É realmente terrível o que está acontecendo. O que
pode acontecer. Para todos nós, quero dizer.
Audric encostou a cabeça na coluna da cama. — Sim.
— Tenho lido tudo sobre as Guerras Angélicais com meu amigo Zuka. Para
me preparar, você sabe. Eu não pulo as partes terríveis. Eu leio tudo. Eu sou
um pouco obsessiva com isso. Eu nunca vi uma guerra.
— Lamento que você precise fazer isso.
Kamayin ficou quieta por um momento. Então, mais suavemente, ela disse:
— Também é terrível, o que aconteceu com você. Se eu fosse você, se meu
amor se fosse e minha casa fosse tirada de mim, eu não sairia da cama por um
ano inteiro. Pelo menos. Os conselheiros de minhas mães teriam que me
arrastar para fora, chutando e gritando.
— E se eles jogassem água em você enquanto você dorme?
— Eles não ousariam — disse com naturalidade. — Teriam muito medo de
jogar qualquer coisa em mim, e com razão.
Audric sorriu um pouco e não disse nada. Não sentia que as palavras eram
exigidas dele. Foi um alívio sentar-se em silêncio ao lado de alguém que
parecia contente em apenas falar. Alguém que entendia o motivo de sua dor
mas não a sentia, e nem pedia que ele explicasse.
Ele dormiu e quando acordou, rígido no chão, estava escuro e Kamayin
havia sumido, mas ela havia lhe deixado uma pilha bem organizada de livros
na mesinha de cabeceira e um bilhete: Da minha biblioteca pessoal.
Romances com finais felizes. Se você dobrar ou rasgar uma única página,
não seremos mais amigos.
Ele pegou o livro de cima – The Hawk and the Dove. Então se arrastou para
a cama e segurou o livro contra o peito por um longo tempo, respirando o
cheiro de papel e tinta, e pensando em casa.
•••
Ele não foi à reunião na manhã seguinte, apesar das ameaças de Sloane.
Sua fúria justificada o deixou ainda mais enojado consigo mesmo. Quanto
mais furioso ficava com sua própria incapacidade de enfrentar o que viria a
seguir, mais se afundava em um turbilhão tóxico de desespero. Ele
reconhecia sua autopiedade e ainda assim não conseguia se livrar dela. Sabia
que uma caminhada ao ar livre o beneficiaria, mas se recusou a deixar o
casulo sujo de seus cobertores. Começou a se perguntar se algum dia Sloane
poderia realmente arrastá-lo da cama chutando e gritando, mas imaginou que
teria um tempo antes que ela tentasse isso.
Era muito mais fácil se desviar do olhar de decepção em seu rosto e fingir
que ela não estava lá, então foi exatamente o que fez.
•••
•••
Audric também não compareceu à segunda reunião do conselho de guerra.
Ele sabia quando aconteceria; Sloane o visitava todos os dias para lembrá-lo
da data. Ela o advertiu e o adulou alternadamente. Apenas uma vez ela
recorreu à mendicância.
— Merovec não saberá o que fazer quando ele vier atrás dele — disse
baixinho, e os dois sabiam quem ele era. — Merovec acha que pode derrotar
os anjos, mas ele não os conhece como você. Ele é duro, intransigente. E não
conhece Rielle. — Ela se agachou ao seu lado, os olhos brilhando com
lágrimas. — Audric. Pode chegar o dia em que ela se vire contra Celdaria.
Você sabe disso. E você a conhece. Quando esse dia chegar, você pode ser o
único que pode impedi-la.
— Eu não vou machucá-la — disse, sua voz tão crua e cruel que o assustou
tanto quanto obviamente a assustou. — Não me peça para fazer isso. Peça-me
qualquer coisa, menos isso. Diga isso de novo e eu nunca vou te perdoar. E
maldita seja, Sloane, por ser tão persistentemente sem coração.
Ela o encarou por um momento, e então algo dentro dela desinflou, como
se o estivesse vendo claramente pela primeira vez e finalmente percebendo a
profundidade de sua decepção. Sua vergonha era devastadora; ele se revoltou.
Sloane não o visitou depois disso, não por dias, e então algo aconteceu sem
explicação uma manhã quando Audric acordou de algumas horas de sono
agitado. Fazia dezoito dias desde a chegada da comitiva celdariana. Quase
um mês desde a última vez que viu Rielle.
Ele se levantou da cama com uma sensação de tranquilidade que o
perturbou, como um mar ameaçadoramente parado antes de um vendaval.
Ficou em silêncio no centro de seu quarto, descalço e com o peito nu, e
reconheceu que existia no fio de uma faca. De um lado estava a terceira
reunião do conselho de guerra, que começaria lá embaixo em uma hora.
Poderia se vestir e se lavar, aparar a barba que havia crescido um pouco
selvagem. Poderia comparecer à reunião e, ao fazê-lo, enfrentar o impossível
e inevitável desgosto no horizonte.
Do outro lado, havia um final. Ele poderia tirar sua própria vida e deixar o
resto deles resolver tudo por conta própria.
Ele considerou a ideia, examinando-a como um curandeiro poderia
inspecionar uma ferida que precisava de pontos. Por vários longos minutos,
vacilou. Atheria o observou atentamente do terraço, no meio do café da
manhã, sua presa mutilada a seus pés.
Então, Audric respirou longa e lentamente e caminhou para o banheiro.
Jogou água no rosto e inspecionou o cabelo, esfregando as bochechas
eriçadas.
Adoro a facilidade com que sua barba pode crescer, Rielle lhe dissera em
muitas ocasiões, olhando-o sonhadora. Ela gostava de acariciar sua bochecha
lisa contra a áspera dele. Meu brilhante, lindo, nobre e desalinhado urso-rei,
ela disse em uma ocasião particular, bêbada de vinho e dele, e ele caiu na
gargalhada, então a beijou até que ambos estivessem tremendo e prontos.
No espelho, seu reflexo sorriu levemente.
Quarenta e cinco minutos depois, vestido com roupas emprestadas que
estavam mais soltas em seu corpo do que há um mês, sentindo-se como um
cervo com novas pernas, Audric abriu a porta para as câmaras do conselho da
Rainha Bazati, encontrou Evyline – queixo quadrado, cabelos grisalhos, seu
rosto se abrindo com esperança repentina – e acenou para ela. Sua dor e
tristeza ainda viviam dentro dele e sempre viveriam, e ele imaginava que
ainda haveria dias em que sair da cama seria um tormento indescritível.
Mas hoje, estava de pé..
— Sinto muito — disse a Evyline e a todos eles, ignorando obstinadamente
o perfil pálido de Ludivine à sua esquerda. — Eu precisava de tempo. Estou
pronto agora.
8
Eliana
•••
•••
Quando Eliana acordou, estava em uma casa que lembrava a sua em Orline.
Uma casa alta e estreita, todas as janelas abertas para a manhã. Pisos de
cerâmica polida, tapetes grossos na sala de estar, nos quartos, no escritório de
seu pai.
Ela encontrou Ioseph Ferracora na cozinha, picando vegetais, cantarolando
uma música. Eliana sorriu ao vê-lo. Já fazia muito tempo que não o via assim,
relaxado e preparando o café da manhã. Por anos, ele esteve na guerra, mas
agora estava em casa, e ela não conseguia parar de olhá-lo. Ele tinha pele
clara com bochechas rosadas, cabelo escuro desgrenhado como o de Remy, e
tinha um queixo quadrado teimoso e ombros quadrados. Um estranho não
esperaria que ele possuísse qualquer tipo de graça ou gentileza. Mas Eliana
sabia melhor.
Ele era capaz de talhar as mais belas estatuetas – criaturas da floresta com
pernas finas como gravetos, santos com túnicas coroadas de estrelas. Quando
ela acordou dos pesadelos da guerra que quase o reivindicou, ele a abraçou
com ternura, como se ela fosse uma recém-nascida.
Ioseph largou a faca e Eliana veio por trás dele e o abraçou, passou os
braços ao redor de seu grande peito e pressionou o rosto em suas costas.
Quando ele ria, ela sentia nas costelas.
— Por quê isso? — ele perguntou, puxando-a para encará-lo.
Ela olhou para suas feições ásperas, suas bochechas enrugadas pela barba.
Sua própria parecia que se abriria com seu sorriso.
— É por nada — respondeu. — É por tudo. Senti sua falta, Papa.
— Eu sei, minha doce menina — disse a ela, e beijou sua bochecha. — Mas
isso tudo já passou. Estamos juntos. Somos uma família e estamos seguros.
Um grito alegre voou até eles da sala ao lado, o que fez a boca de seu pai se
torcer. Ele recuperou sua faca e gesticulou em direção à porta.
— É melhor você controlar aquele seu homem — Ioseph avisou, com riso
em sua voz. — Ele e Remy vão acordar os vizinhos.
Eliana se virou para ver Remy correndo para a cozinha e Simon
caminhando logo atrás dele. Simon o pegou em seus braços, e Remy uivou de
tanto rir, bateu com os punhos nos ombros de Simon.
— Ele trapaceou, El! — Remy gritou. — Ele trapaceou nas cartas do rei, e
eu o confrontei!
— Ah, mas eu nunca mentiria para você — Simon proclamou solenemente,
e então, sobre a cabeça de Remy, deu a Eliana uma piscadela maliciosa que a
deixou vacilante ao lado de seu pai.
Mas algo estava errado, pensou, observando-os brincar e rir. Ioseph se
aproximou deles com severidade fingida, com as mãos na cintura, e
proclamou algo que Eliana não conseguiu entender, pois de repente se
distraiu. Ela olhou para a parte de trás da cabeça de seu pai, assistiu Simon
colocar Remy em seus pés e bagunçar seu cabelo, e foi isso, ela percebeu —
isso estava errado.
Remy era muito pequeno. Ele era uma criança pequena de novo, não o
garoto desengonçado que ela conhecia. E o rosto de Simon estava liso e cheio
de luz, as sombras tinham desaparecido sob seus olhos e Ioseph…
— Pai? — perguntou baixinho.
Ele não respondeu, de costas para ela, mas algo estava errado, ou pelo
menos pensou que estava, e ela precisava olhar para Ioseph Ferracora de
frente. Precisava ver o olhar quente e escuro de seu pai, as linhas amáveis ao
redor de seus olhos, e sentir a segurança de que essa estranheza se
transformando dentro dela era simplesmente uma fantasia, o eco de um
sonho.
Ela tocou seu ombro, mas antes que ele pudesse se virar, viu seu reflexo no
espelho pendurado do outro lado da sala.
Boca congelada em um sorriso, olhos negros como cavidades gêmeas.
— Você deveria ter se permitido sonhar — disse Ioseph, mas a voz não era
a sua e veio de cima do ombro dela.
Ela girou, mas quando abriu os olhos, foi para se encontrar retorcida no
chão de seu quarto. Sua camisola se agarrava a ela, encharcada de suor.
Corien estava acima dela, claramente divertido.
— Você insiste em transformar cada coisa doce que eu te dou em um horror
— lhe disse, e então a colocou de pé e a abraçou enquanto chorava. Ela
enrolou os dedos em seu casaco preto, desejando ter força para agarrá-lo.
Mas o sonho que ele mandou a deixou tremendo. Seus braços estavam
líquidos, inúteis.
— Pode ser assim — Corien sussurrou contra seu cabelo úmido. Ele
balançou com ela como se em breve fossem dançar. — A vida poderia ser
feliz de novo, Eliana, se você me deixar torná-la assim para você.
Ela sabia que ele estava certo e fechou os olhos com uma dor no peito,
lembrando-se do calor do sorriso de seu pai. Sua casa tranquila em Orline. O
jardim de Rozen Ferracora, a mesa da cozinha repleta de remendos de Rozen.
Remy seguro em sua cama, lendo em voz alta um de seus livros, e Harkan
dormindo do outro lado do caminho.
•••
•••
•••
Estavam viajando pelo Pântano Kavaliano há seis dias e duas horas, e Navi
estava convencida de que nunca encontrariam o caminho de saída.
Olhando à frente através da estranha névoa tingida de amarelo que sufocava
o ar, Navi agarrou o remo com força e remou.
Ruusa, chefe de sua guarda pessoal, não gostou que Navi estivesse
remando. Ela era uma de apenas quatro da guarda pessoal de Navi que
conseguiu escapar da invasão do Império de Astavar e fugir para a segurança
com Navi, seu irmão Malik e seu amigo Hob.
Semanas se passaram desde que deixaram Astavar, semanas desde que os
curandeiros de Navi administraram o antídoto rastreador que Eliana e Harkan
roubaram de Annerkilak. Ruusa, porém, ainda não estava acostumada com a
ideia de Navi estar bem. Ela repreendeu Navi por trabalhar tanto nos remos.
Navi se esgotaria. Navi deve se proteger contra a exaustão, caso algum
pedaço dormente do soro rastreador permaneça em seu sangue.
Mas remar era a única coisa que mantinha Navi sã. Remando e recriando
em sua memória um mapa de Vesper.
Eles estavam em uma das ilhas mais ao norte de Vesper, Hariaca. Assim
que cruzassem este pântano terrível e sem fim, seguiriam o rio Hezta até a
costa sul da ilha. De lá, atravessariam o Amatis Shallows a pé até a ilha de
Laranti.
E lá, finalmente, Navi se encontraria com o líder da Coroa Vermelha em
Vesper. Uma mulher, Hob disse, chamada Ysabet. Ela seria capaz de ajudar
Navi a mobilizar os soldados da Coroa Vermelha espalhados por Vesper –
uma enorme nação composta por milhares de ilhas que variam em tamanho,
desde enormes e congestionadas por cidades até ao minúsculo e remoto – e
prepará-los para viajar através do Grande Oceano até a cidade do imperador,
Elysium. Eles iriam reunir um exército de rebeldes e perdidos, em seguida,
navegariam em auxílio de Eliana, prontos para ajudá-la a destruir o coração
do Império.
Isto é, se Eliana ainda estivesse viva. Se já não tivesse sido torturada até a
loucura ou coagida a se aliar com o Imperador.
Ou, Deus os livre, concordasse de boa vontade em se aliar com o
imperador.
Foi em um pequeno esconderijo da Coroa Vermelha em Meridian que eles
aprenderam a verdade devastadora: o ataque brutal das forças imperiais na
cidade de Festival e a captura de Eliana pelo almirante Ravikant, que
comandava a marinha do imperador.
Navi fechou os olhos. Ainda não tinha conseguido pensar em Eliana sem
que as lágrimas subissem.
— Eliana não vai ajudá-lo — murmurou Navi em Astavari. — Ela é muito
forte para ele. Ela não vai quebrar.
Era um refrão familiar, algo que pronunciava em voz alta sempre que
precisava de confirmação.
— Claro, minha senhora — respondeu Ruusa suavemente, também em sua
língua nativa.
— A mãe dela pode ter se juntado aos anjos, mas Eliana não é a mãe dela.
— Isso é verdade, minha senhora.
— Ela é mais forte do que a Rainha Rielle.
Com isso, Ruusa soltou um suspiro impaciente. — Minha senhora, você
não conhecia a rainha Rielle, então não pode saber se Eliana é mais forte do
que ela!
Navi sorriu ironicamente. — Por dias você tem me ouvido recitar minhas
pequenas orações. Eu estava me perguntando quando você iria parar de dizer,
‘Sim, minha senhora’ e ‘Claro, você está certa, minha senhora’, e gritaria
comigo em vez disso.
A boca de Ruusa era uma linha fina. Ela olhou para as árvores entre as
quais deslizavam, cada uma manchada com limo e coberta com videiras
grossas. Os quatro barcos que transportavam os outros membros de seu grupo
estavam próximos, suas lanternas pálidas brilhando fracamente na escuridão.
Um fedor quente e maduro subia da água estagnada, como o das flores que
ficaram marrons em seus vasos.
— Eu não gritei, minha senhora — murmurou Ruusa. — Tive muito
cuidado para não gritar.
— Isso depende da definição de gritar de alguém, suponho.
Ruusa ficou quieta por um momento. — Eu sinto muito, minha senhora.
Por favor me perdoe.
— Não há nada a perdoar. Eu encorajo a impertinência em meus guardas,
Ruusa. Você sabe disso.
— Claro, minha senhora. — Ruusa fez uma pausa. — É só que não quero
que fique desapontada.
— Desapontada com o quê? — Navi perguntou, já sabendo a resposta. O
medo congelou em seu coração. Ela se recusou a reconhecer.
— Com quem.
— Ah.
— Lady Eliana só lhe trouxe problemas desde que você deixou Orline. Se
não fosse por Lady Eliana, você não teria sido capturada por Fidelia no
Santuário. Você não teria que suportar tortura, nem teria experimentado e
administrado o soro rastreador.
— Agora, você não pode saber disso — disse Navi levemente. — Eu
poderia ter sido capturada em qualquer lugar por Fidelia. E se eu estivesse
sem Eliana lá para me salvar, eu seria um rastreador agora.
— E então — Ruusa continuou, sem se impressionar, — foi o desejo do
Império de encontrar Lady Eliana que os trouxe para Vintervok. Era ela que
eles queriam. É por ela que invadiram nossa cidade, minha senhora, nossa
casa. Sei que não nasci em Astavar, mas se tornou meu país, como sempre
foi seu, minha senhora, e quando sangra, eu também.
A dor na voz de Ruusa era muito crua para Navi ignorar. Ela chamou a
atenção do menino bronzeado e ruivo sentado à sua frente, que estava
ouvindo com atenção, mas fingindo não ouvir. Ele era um de seus
desgarrados, quinze anos, sua família assassinada durante um ataque ao
Império. Ele atacou o acampamento deles uma noite em algum lugar nas
florestas de poeira ao sul de Meridian. Ruusa queria matá-lo por isso, mas
Navi não tinha permitido, e agora ele era leal a ela, pronto para lutar contra o
Império. Seu nome era Miro. Desde que Navi salvou sua vida naquela noite
na floresta de poeira, ele nunca a olhou com nada além de reverência
fervorosa.
Claro, ele não sabia nada sobre sua verdadeira identidade. Nenhum de seus
perdidos conhecia. Eles a conheciam apenas como Jatana, assim como
conheciam Malik apenas como Rovan.
Que eram os últimos sobreviventes da família real Astavari permaneceria
um segredo. Ela e seu irmão eram Coroa Vermelha; odiavam o Império. Isso
era tudo que Miro e os outros precisavam saber.
Navi sorriu para o menino. — Miro, você se importaria de remar um
pouco? — perguntou na língua comum.
Ele rapidamente tomou seu lugar e, assim que Navi se acomodou em frente
a Ruusa, ela voltou a falar em Astavari. — Minha querida Ruusa, saiba que
eu ouço você. Eu sei que você deixou sua casa, um lugar que se tornou um
paraíso para você, e que todos que você ama estavam lá.
— Todos que eu amo, menos você — Ruusa corrigiu prontamente.
Com essas palavras, Navi sentiu algo ceder e seus olhos se encheram de
lágrimas. Ao empurrar seu povo para o sul, ela se recusou a pensar muito no
que eles haviam deixado para trás. Mas, oh, como ela gostaria de poder
rastejar para o colo de Ruusa, como tinha feito muitas vezes durante sua
infância, e ignorar todas as coisas impossíveis que estavam por vir.
Ruusa lançou um olhar penetrante para Navi. Ela conhecia bem as
expressões de Navi, particularmente aquela que precedia os abraços
impetuosos. — Agora não, Alteza. Não na frente de todos.
Navi sorriu e piscou os olhos secos. — Muito bem. De alguma forma, vou
me conter.
— Excelente, minha senhora.
— Mas vou lhe dizer uma coisa: eu sei que você sofre pelo que perdeu. Eu
também. Acho que vamos sofrer pelo resto de nossas vidas. A cada passo que
damos para longe de nossa casa, a dor se enreda com mais força no tecido do
nosso eu mais profundo. E assim como não posso arrancar minha tristeza de
mim, descartá-la e seguir em frente sem ela, também não posso abandonar
minha esperança.
Navi colocou as mãos sobre as de Ruusa. Os dois outros remadores em seu
barco diminuíram a velocidade dos remos para ouvir. Um era Taya, um dos
guardas de Navi, e o outro era Edran, outro extraviado que se juntou às suas
humildes fileiras na costa do Mar Estreito. Como seus outros novos recrutas,
ele não conseguia entender Astavari, mas observava Navi com olhos
arregalados de adoração.
— Devo acreditar que Eliana é a Rainha do Sol por quem oramos durante
toda a vida — disse Navi, desejando que Ruusa visse em seus olhos apenas
sua convicção e nada de seu medo. — Devo acreditar que ela tem força para
resistir a toda astúcia e crueldade que o imperador usará contra ela. Por favor,
entenda que, quando falo dela dessa maneira, não é para descartar sua raiva
ou sua tristeza, mas sim para expressar minha crença – por mim e por todos
que confiam em nós com suas vidas. Minha crença é minha esperança, e
esperança é a luz que brilha mesmo na noite mais escura.
Ruusa ficou em silêncio, seu olhar era de aço. Miro observou a troca com
uma atenção ofegante, seu remo esquecido.
Por fim, a expressão de Ruusa suavizou-se tão sutilmente que Navi sabia
que os outros não notariam.
— Eu entendo, minha senhora — disse Ruusa, — e eu te perdôo.
Navi apertou as mãos dela em agradecimento.
Então, quando ela alcançou Miro e seu remo, o pântano estremeceu.
Foi mais do que um simples tremor, que poderia ser explicado nesta parte
volátil do mundo. O som retumbou sem fim e, quando Navi tentou gritar,
descobriu que algo havia roubado sua voz.
Ela agarrou as laterais do barco, lutando para respirar, sua mente correndo.
Vulcões e terremotos eram ocorrências comuns. Novas ilhas se formaram e
as antigas se dividiram em pedaços. O povo Vesperiano – milhares de
famílias extensas, centenas de culturas, unidas pelo amor de sua falecida
rainha, que foi assassinada durante a invasão do Império – dependia de
relatórios dos Saterketa, estudiosos especializados em ler e prever mudanças
na Terra.
O guia deles, Bazko, lhes disse isso no primeiro dia no pântano, quando o
ânimo ainda estava alto e o próprio Bazko começou a conversar. Ele era leal
à Coroa Vermelha e os ajudaria a navegar com segurança pelo Pântano
Kavaliano, famoso pelo grande número de viajantes que encontraram fins
horríveis em suas águas.
Nos últimos seis dias, Navi – ansiosa por confiar, desesperada por ajuda –
havia se tornado cética. A primeira vez que Bazko lhes disse que logo
estariam deixando o pântano em busca de águas mais limpas foi há dois dias.
E agora o pântano estava tremendo, sem fim à vista, e havia um gemido
estridente soando nos ouvidos de Navi que ela não conseguia abalar. Mais e
mais alto ele subiu. Um olhar para Ruusa disse a ela que não era a única a
ouvir.
Bazko sentou-se estupefato na proa do barco da frente, agarrando-se ao
assento e olhando ao redor com ar selvagem. Ele pressionou a orelha
esquerda no ombro esquerdo e ergueu o punho direito no ar: uma ordem para
parar.
Os remadores dos outros quatro barcos do grupo puxaram os remos. Navi
procurou pelas sombras cinza-amareladas por Malik, seu irmão, que estava
tenso no barco à sua esquerda. A luz misteriosa do pântano pintou sua pele
marrom-dourada com sombras. Então ela olhou para a direita; naquele barco
estava Hob, de ombros largos, sua pele um marrom escuro e rico. Navi
costumava recorrer a esses homens em busca de conforto. Um que ela amou
durante toda a vida; outro que ela aprendera a amar nos últimos meses.
Mas agora, eles pareciam tão assustados quanto ela, e um terror frio tomou
conta de seu coração enquanto ela se perguntava se morreriam aqui, se o
pântano se abrisse e os engolisse.
O estremecimento continuou e Navi começou a contá-lo. A água pútrida
ondulou, balançando seus barcos. Insetos e cobras caíram de seus galhos na
água. Pássaros de patas compridas voaram em massa.
Então, silêncio. Absoluto e repentino. Os ouvidos de Navi tocaram, mas o
barulho horrível de choramingo havia sumido.
— O que é que foi isso? — Miro sussurrou depois de um momento. Ele
começou a se levantar, segurando o remo como uma arma. — O que está
acontecendo?
Ruusa puxou-o de volta ao seu assento. — Quieto, garoto.
Navi esperou que o guia gritasse um sinal, algum sinal de que ele sabia o
que havia sido aquele terremoto, mas Bazko não disse nada. Ele baixou
lentamente o punho, olhando para os outros como uma criança desesperada
por orientação, e ocorreu a Navi como eles eram pequenos e insignificantes
no grande e desconhecido esquema do mundo.
Quantos perdidos eles recrutaram? Enxugando o suor que escorria de sua
testa, ela contou rapidamente para se certificar de que todos ainda estavam
em segurança em seus barcos. Trinta e um. Ela, Malik, Hob, Ruusa, seus três
outros guardas vivos e trinta e uma pessoas que estavam tão desesperadas
para escapar de sua solidão ou tão obsessivamente famintas por vingança
contra o Império que concordaram em enfrentar a selva Vesperiana com uma
jovem que falava de lendas como se fossem reais, que nada podia prometer,
exceto a esperança de uma luta distante. Uma viagem à cidade do Imperador.
Um ataque ao lugar que ele chamava de lar.
O resgate de uma princesa que salvaria todos eles, se pudessem alcançá-la a
tempo.
Navi engoliu em seco contra o gosto azedo em sua boca. O que estava
pensando? Como ela e esse pequeno exército que havia formado poderiam
montar qualquer tipo de ofensiva contra as inesgotáveis tropas imperiais?
Estava errada em ter esperança, tola em até tentar. Sua casa estava perdida.
Seu mundo estava perdido. E lutar pela sobrevivência assim, agarrar-se a
fantasias selvagens de vitória, não era apenas uma forma indigna de passar o
que sem dúvida seriam seus dias finais, mas também uma grande crueldade
para com aqueles que a seguiram. Essas pessoas sem raízes, tão desesperadas
pelo menor sinal de salvação.
Ela fechou os olhos, as palmas das mãos úmidas de pavor. O que ela fez?
Para onde os estava conduzindo, e em que mentiras ela se enganou para
acreditar?
— Está tudo bem — gritou Bazko. Sua risada não foi convincente. — Um
tremor e tanto, não foi? Não se preocupe. Eles não chamam Vesper de
Terras-Inconstantes por nada.
Ruusa tocou o cotovelo de Navi. — Jatana, aqui, beba um pouco de água.
Segure para mim.
Mas quando Navi abriu os olhos para aceitar o cantil de Ruusa, algo a
distraiu – uma escuridão estranha, denteada e bruxuleante, como se uma
costura tivesse sido rasgada no ar. Não, não piscando. Mudando. Como uma
luz vista através de águas calmas, só que pairava sobre a água, a cerca de
quarenta metros de distância. Riscado com tons de ouro, violeta e o azul-
ameixa de uma contusão, ele pairou, esperando.
E algo sobre isso – o brilho fraco do ouro, a qualidade particular de seu
movimento ondulante, sua própria existência, como algo saído de um conto
do Velho Mundo – lembrou Navi, por razões que ela não conseguia articular,
de sua amiga perdida.
Eliana.
Um calafrio beijou seu pescoço. Ela se levantou lentamente, ignorando
Ruusa. Lascas de escuridão se ramificavam no ar como rachaduras em vidro.
Ela às observou crescer, prendendo a respiração, ouvindo os outros gritarem
maravilhados.
Então, as farpas pararam. Uma centena de pernas de aranha da escuridão
pairou suspensa no ar e não cresceu mais.
Um sentimento puxou o esterno de Navi, incitando-a a algo, ou talvez a ir
embora. Ela não entendeu o que isso significava, mas quanto mais olhava
para esta forma pairando, mais enjoada se sentia.
Mas teve que olhar para isto. Teve que se aproximar. Algo havia
acontecido, algo a ver com o empirium, e isso era prova. O terremoto e agora
isso. Navi precisava saber o que era. Eliana estava ferida? Ela tinha sido
morta e agora o mundo estava quebrando?
— Lá. — Ela apontou. — Você vê isso?
— Eu vejo! — Miro se agachou ao lado dela, balançando o barco e fazendo
Ruusa praguejar. — É um incêndio?
Navi recuperou o remo de Miro. — Devemos ir para lá, rapidamente.
Ruusa não se mexeu. — Seja o que for, devemos ficar longe disso.
A paciência de Navi havia desaparecido, substituída por uma necessidade
frenética de ver essa coisa, de tocá-la. Um pensamento selvagem veio a ela
que Eliana poderia estar do outro lado dele.
— Você vai pegar o seu remo — disse a Ruusa, sua voz calma, mas afiada,
— e me ajudará a chegar a essa coisa antes que desapareça, ou você se
condenará a ser uma decepção para sempre aos meus olhos.
Era uma coisa dura de se dizer, e Navi detestava dizê-la, mas logo eles
estavam se movendo, Ruusa remando em um silêncio envergonhado. Malik a
chamou, e Hob também, e Navi ouviu seus remos espirrando, mas ela não
olhou para trás, porque quando Ruusa e Taya e Edran e Miro a trouxeram
para mais perto deste olho estilhaçado flutuante, algo mudou.
Dentro do olho, no meio daquelas cores escuras rodopiantes, formas
cresceram, como tinta caindo se espalhando na água.
Navi não conseguia desviar o olhar. Essa coisa impossível prendeu ganchos
em seu coração. Se tentasse escapar, seu peito se abriria como uma fenda na
terra. O que era isso?
— Você não está indo rápido o suficiente — murmurou, e então, vendo que
a água tinha ficado rasa, saltou pela lateral do barco e mergulhou no pântano.
Logo depois, o remo de Ruusa atingiu o solo. Navi ouviu o fundo do barco
afundar na lama, ouviu Miro exclamar de medo, mas não conseguia parar de
seguir em frente.
— Navi! — veio a voz de Hob. — Pare!
— Tem algo lá dentro! — gritou de volta para ele.
Uma criatura na água passou roçando sua perna. Ela mal percebeu, subiu
uma ligeira elevação na lama sugadora. Passando pela borda manchada do
hematoma, giravam formas lentas, como espirais de fumaça.
Navi arrancou o pé da lama e encontrou terreno sólido. De lado, a mancha
era rala, quase desaparecendo quando ela olhava.
Mas, movendo-se ao redor, ela viu que, de um ângulo diferente, era mais
amplo, como um espelho escuro suspenso. Fagulhas azuis brilhantes
crepitavam em torno de suas bordas, como pequenos dedos de relâmpago. Se
ela pudesse apenas tocar essa mancha estranha no ar, afastar algumas de suas
sombras emaranhadas, seria capaz de ver o que havia dentro. Ela seria capaz
de entender.
Os pés dela estavam se movendo muito rápido. Tentou diminuir a
velocidade, se afastar, mas o próprio ar a puxava para frente. Ela tropeçou
nos próprios pés, estendeu a mão para se apoiar, mas não caiu. Seus braços
ficaram rígidos, os dedos puxados em direção ao olho escuro que não
piscava. Em um lampejo de terror, ela entendeu que aquela coisa, fosse o que
fosse, tinha uma vontade.
Queria que ela chegasse perto.
Queria que ela tocasse.
Seus dedos roçaram o ar ao seu redor, e uma pressão horrível caiu sobre
eles, então em sua mão e pulso, braço, cotovelo.
Ela olhou para baixo com horror, um grito alojado em sua garganta, e
então, a escuridão a poucos centímetros de seu rosto, um estalo como um
relâmpago brilhou diante de seus olhos.
Mil imagens se tornaram claras para ela naquele único instante chocante,
como se incontáveis vidas tivessem sido forçadas em sua mente ao mesmo
tempo. Tiras de pele saindo do osso como longas línguas negras. Mãos
procurando por ajuda que não veio. Um milhão de vozes uivantes, uma
cacofonia de fúria.
Uma cidade brilhante que não tinha fim. Bestas com asas como foices.
Uma boca imensa o suficiente para engolir o mundo, preto e insondável.
Navi voou para trás, tropeçando. Algo havia quebrado seu olhar. Mãos
agarraram seus braços e pernas, puxando-a de volta para o pântano. Ela caiu,
inalou água turva e voltou a explodir com um suspiro.
Ela bateu em algo sólido, e lá estava Malik, afundado até os joelhos na
lama, Hob e Ruusa logo atrás dele. Os homens ajudaram ela e Ruusa a subir
em seu barco e então o empurraram com força, para longe da elevação da
terra e da costura negra coroando o ar acima dela.
Então Malik e Hob subiram de volta em seu próprio barco, que havia
parado ao lado do dela, ambos gotejando e respirando com dificuldade. Miro
tirou o casaco surrado e colocou-o com ternura nos ombros de Navi.
Ela o agarrou com força na garganta e só então percebeu que as pontas dos
dedos estavam cobertas por uma fina camada de sangue.
Vendo a escuridão se afastar deles enquanto seus amigos remavam na
direção oposta, Navi começou a chorar.
Malik a observou gravemente de seu barco. — O que foi isso? O que você
viu?
Navi não conseguia começar a descrever. Sua cabeça doía enquanto as
imagens se enterravam em sua mente. Ela as sentiu aglomerando-se nas
paredes de seu crânio, grandes demais para ela, antigo demais.
Um pensamento fugaz lhe ocorreu: se isso era mesmo um pálido eco do que
Eliana sentia, vivendo com tanto poder, então era surpreendente que ela ainda
não tivesse se despedaçado.
— Era o Abismo — sussurrou Navi. — Eu sei que era, embora eu não
possa explicar como. As coisas que eu vi, como elas me puxaram… — Ela
balançou a cabeça. — Essa forma, essa coisa, é um rasgo entre aqui e ali.
Algo se abriu, e não sei por que, mas além disso, além dessa costura, está
tudo o que sempre tememos.
Ruusa olhou fixamente, seu rosto sardento ficou terrivelmente pálido.
Enquanto remava, a boca de Hob estava definida em uma linha sombria.
— Eliana sempre me falava do Portão — continuou Navi, encarando Malik.
— Você sabe disso também. Papai e Papa – eles lhe contaram, assim como
me contaram. A maioria das pessoas em nosso mundo pensa que é apenas um
boato. Eles olham para seus agressores de olhos negros e se convencem de
que não há anjos ainda vivos. Mas nós sabemos melhor.
Malik parecia sombrio. — E você acha que… essa coisa é outro portão?
— Eu acho que pode ser algum dia. Acho que o terremoto que sentimos foi
algo muito maior do que simplesmente uma mudança na Terra. Acho que foi
uma mudança no empirium, que Eliana ainda está viva e lutando. — Navi
olhou para o olho roxo distante, pairando meio escondido nas árvores. O
medo fez cócegas em sua garganta.
— E eu acho — disse baixinho, — que se queremos ajudá-la antes que seja
tarde demais, devemos nos apressar.
10
Rielle
“Querida irmã, você pode ter ouvido dizer que estou morto, e embora
seja verdade que Merovec Sauvillier quase me matou de repente, ele não
terminou o trabalho, embora eu desejasse que tivesse. Dois amigos me
resgataram. Não, não posso dizer os nomes deles, embora você queira.
Não sou mais prisioneiro de Merovec. Eu queria te dizer isso, pelo
menos. Mas não posso voltar para casa. Eu ouvi o que aconteceu em
Âme de la Terre. Eu sei que Audric e Rielle se foram. Não pude avisá-los
a tempo. Eu falhei com eles, assim como falhei em salvar meu pai. Eu
nunca quis sua coroa. Esse sempre foi o seu desejo secreto. Você será
melhor para o nosso povo do que eu jamais poderia esperar ser.
Encontre Audric. Ajude-o como puder. Eles vão me chamar de Rei
Covarde, por abandonar você. Eles vão me chamar de Abdicador. Bem,
deixe-os. Quase morrendo, percebi que o lar nunca foi um lar para mim.
Agora eu escolho viver e encontrar um lugar onde eu realmente me
encaixe, por quanto tempo todos nós tivermos neste mundo cada vez
mais escuro. Sentirei sua falta, mas não lamento ter partido.”
— Carta codificada do Rei Ilmaire Lysleva para sua irmã, Ingrid,
datada de novembro, ano 999 da Segunda Era
•••
•••
“Você acha que eu quero escrever este decreto? Você acha que eu
anseio por mais morte? Não, meu amigo. Mas você ouve como nos
chamam? Santa Katell, a Magnífica. São Grimvald, o Poderoso. E ainda
assim estamos segurando o que resta deste mundo apenas com nossas
próprias mãos cansadas. Não sei se o Portão permanecerá. Mas sei o
que vi e conheço o verdadeiro perigo dos marques tão bem quanto você.
Não podemos permitir que tudo isso aconteça novamente. O mundo não
vai sobreviver a isso.”
— Carta codificada e padronizada de Santa Katell, a Magnífica para
São Grimvald, o Poderoso, roubada dos arquivos da Primeira Grande
Biblioteca de Quelbani
“Escrevo isto pois, se eu morrer e alguém vier sobre meu corpo, saiba
onde estive e o que vi. Vaguei para o norte do lugar que já foi e não foi
minha casa, e agora entrei na cordilheira do norte chamada Villmark.
Sempre quis explorar esses picos em busca de dragões de gelo, as
antigas bestas divinas que São Grimvald montou para a batalha contra
os anjos, mas príncipes e reis não têm permissão para vagar pela selva
em busca de feras que ninguém viu em um era. Felizmente, não sou mais
um príncipe ou um rei, ou qualquer coisa, além de um homem sozinho.”
— Diário de Ilmaire Lysleva, datado de dezembro, ano 999 da
Segunda Era
•••
Por dias, Rielle existiu em um oceano de ouro negro. Lá, nas profundezas
mais requintadas e insondáveis de seu corpo, o empirium se remexia e rugia.
Momentos fugazes de consciência iluminaram a verdade: estavam viajando
para o norte. Ela e Corien. A garota, Obritsa; seu guarda, Artem. Estavam
viajando rapidamente. Anéis de luz se abriram e depois fecharam, um leve
cheiro de fumaça a cada iluminação.
Os receptáculos que Artem carregava, agora quatro em número, emitiam
um poder novo e mais forte que zumbia contra a pele de Rielle como o ar
antes de uma tempestade, pronto para se abrir.
E Corien estava perto. Rielle sentiu a boca dele contra sua bochecha, o
ninho de seus braços ao redor dela. Às vezes ela reconhecia sua proximidade
e encontrava seus lábios com os dela. Às vezes ela se perdia no mar e
clamava por ele, mas nem mesmo ele conseguia encontrá-la nas profundezas
escuras e cintilantes.
Lá, ela estava totalmente sozinha com o empirium. Sua voz incansável era
um coro interminável de palavras muito estranhas e terríveis para ela decifrar,
e ela não conseguia tampar os ouvidos, nem queria. Envolvida em suas
ondas, ela flutuou, mergulhou e afundou e se afogou, e deu boas-vindas a
cada momento de dor que esmagava os pulmões. Ela abriu a boca e engoliu
água preta. Abriu os olhos e viu o céu repleto de estrelas douradas. Estendeu
a mão, os dedos segurando, e foi puxada para a escuridão, e ela deu boas-
vindas à queda, porque em algum lugar na escuridão estava a resposta.
Em algum lugar deste mundo infinito do empirium havia mais – mais
poder, mais compreensão.
Por que você me escolheu? Ela perguntou isso muitas vezes. O que você
quer comigo?
O empirium respondeu com palavras incompreensíveis que sacudiram seus
ossos e estalaram sua coluna, mas onde deveria ter sentido dor, sentiu apenas
ondas quentes de prazer. Ela se virou na direção da maré, deixando-a arrastá-
la pela água negra extática. Aquilo se quebrou ao seu redor, uma cortina fria
de agulhas.
Você é, rugiu uma voz que não era singular, mas sim todas as vozes, um
coro eterno.
Sim? Ela prendeu a respiração, ouvindo.
Nada além da batida constante de seu coração, a pulsação agitada das ondas
negras a respondeu.
Então o empirium falou novamente – uma explosão de ruído silencioso que
explodiu entre os ouvidos de Rielle:
Vou acordar.
Seus olhos se abriram.
•••
Ela estava cercada de branco e nos braços de Corien. Ele a segurava contra o
peito, seu cabelo preto salpicado de neve.
— Aí está você — sussurrou, o alívio claro em seu rosto. — Você voltou
para mim.
O ar explodiu em seus pulmões. Ela tossiu, expelindo água que não estava
lá e empurrou o peito de Corien. — Ponha-me no chão!
Ele obedeceu, parecendo confuso, e então Rielle estava no chão perto de
um amplo lance de degraus negros. O ar a repeliu, assim como a rocha se
estendendo por quilômetros abaixo dela e os incontáveis grãos infinitesimais
de umidade que ela podia sentir flutuando ao seu redor. Ela se voltou para
dentro, para longe dos elementos que a chamavam, para longe do empirium
que vivia dentro de todos eles. Em sua cabeça, ouviu o barulho de ondas
negras, e quando lutou contra elas, trovejaram cada vez mais alto.
— Eu sou apenas uma garota — sussurrou, rezando. Uma mentira, mas
mesmo assim a confortava.
Assim que se lembrou de como respirar, olhou ao redor e viu que estava
encolhida entre duas portas maciças, cada uma totalmente aberta. À sua
esquerda, uma vasta paisagem de montanhas e gelo. À sua direita, um hall de
entrada escuro iluminado por tochas em suportes de ferro.
Ela pressionou a testa no chão frio – ladrilhos polidos de mármore preto
com veios brancos. Bateu os punhos contra ele uma vez.
Corien se ajoelhou silenciosamente ao lado dela. — O que é isso? O que
aconteceu?
— Eu estava quase lá — disse, mal conseguindo falar. — Quase entendi.
Eu podia ver. Eu podia sentir. Eu estava nadando em direção a ele e, de
repente, estava aqui, com você. — Ela olhou para ele através das lágrimas. —
Você me acordou?
— Não — Corien disse calmamente. — Você acordou sozinha. Eu estava
preocupado… — Ele hesitou, sua mandíbula se movendo. — Estava
preocupado que você nunca mais acordasse.
Rielle fechou os olhos e pressionou a testa com força contra o ladrilho.
Estava frio como gelo e acalmou sua mente frenética. — Havia um oceano.
Um grande oceano negro iluminado com ouro. Eu estava dentro dele. Estava
me levando…
— Para onde estava levando você?
— Não, você não entende. Isso estava me levando. Queria respirar. Queria
andar, ver através dos meus olhos. — Ela lutou para se sentar, feliz por ele
não ter tentado ajudar. Se sentia desajeitada após dias de inatividade, seu
corpo estranho e pesado. Distraída, colocou a mão na barriga. A garota na
montanha passou por sua mente, uma memória que ela se recusava a seguir.
— O empirium estava me reivindicando para si — murmurou Rielle — e
eu queria que ele me tivesse.
Corien a observou com curiosidade. — Se o empirium tivesse te levado, o
que seria de você?
— Eu não sei. Isso teria me matado. Isso teria me tornado melhor ou mais
forte. Ou talvez não tivesse gostado do meu gosto e me cuspido. Mas eu teria
sabido, pelo menos, mesmo se isso tivesse me matado. Eu teria entendido.
— O que teria entendido?
A impaciência a atingiu. — Isso. Tudo isso. — Ela gesticulou para si
mesma. — Por que eu sou assim. Porque sou eu. Você não consegue sentir o
que quero dizer?
Mas quando alcançou os pensamentos de Corien, sentiu a verdade
surpreendente: apenas uma pequena parte dele permanecia dentro dela. O
resto de sua presença se foi, a alguma distância na paisagem de sua mente.
Gentil, parecia, até casto. Cuidadoso. Discreto.
Ela olhou para ele, presa entre a gratidão e a ofensa. — Você estava com
medo? É por isso que você ficou fora dos meus pensamentos? — Ela ergueu
o queixo. — Você pensou que o empirium poderia funcionar através de mim
para machucá-lo. Você estava com nojo de mim.
— Nunca. Eu pensei… — Ele fez uma pausa, em uma rara perda de
palavras. — Achei que você gostaria de privacidade. Você estava tão quente
em meus braços que me assustou. Eu pensei que estar lá, onde quer que você
tivesse ido, só iria interferir com o que quer que estivesse acontecendo. Eu
queria… — Ele abriu as mãos, rindo um pouco. — Rielle, você está além de
mim. Espero que um dia você possa me levar com você a esse lugar, e
possamos aprender todas as respostas que buscamos juntos.
Ele olhou para o chão, com a testa franzida. Seus cílios eram grossos e
escuros; Rielle sentiu um desejo repentino de beijá-los. Ela enviou-lhe o
pensamento, e seu olhar aquecido estalou para encontrar o dela.
— Não vou fingir que entendo tudo o que está acontecendo com você —
sussurrou. — Mas farei tudo o que puder para me tornar digno de você.
Por muito tempo, Rielle não conseguiu falar. Em vez disso, se levantou
cambaleante e se afastou dele, olhando para o mundo.
Estava no topo de um enorme lance de escadas de pedra, passando por uma
vasta rede de gelo, pedra, fogo e equipamentos. Os soldados executavam
exercícios. Outros trabalhadores puxavam caixotes e giravam os raios de
rodas de metal gigantescas para abrir grandes portas cravadas na terra.
Usavam roupas indefinidas e obedeciam aos soldados gritando ordens no que
Rielle pensava ser uma linguagem angelical. Atrás dela estava uma enorme
fortaleza de pedra negra. Dentro de seu saguão de entrada, guardas
mascarados silenciosos estavam em escadas sinuosas.
— The Northern Reach — Rielle sussurrou. Sua respiração se transformou
em nuvens.
Corien veio ficar ao lado dela. — Casa.
Ela o olhou – seu colarinho gasto pela viagem, sua mandíbula rígida, o
brilho orgulhoso em seus olhos pálidos enquanto examinava este reino de
gelo que construiu do nada.
Uma ternura a dominou. Ela virou o queixo dele e aproximou seus lábios
dos dela. Espontaneamente, uma memória de Audric passou por sua visão;
ela sentiu Corien estremecer, mas não se desculpou.
— Eu ainda o amo — o lembrou, pensando em sua dor persistente para que
Corien pudesse facilmente ver em sua mente. — Mas eu estou aqui com
você. Ele tem medo de mim. Você não tem. Ele me rejeitou. Você não o fez.
Isso terá que ser o suficiente por agora.
A expressão de Corien endureceu. — Você é uma criatura de contradições
enlouquecedoras — ele murmurou, passando a mão pelo cabelo.
— E você me ama por isso — respondeu. Um choque distante de ondas
escuras ecoou em seu crânio. Ela sentiu o frio do ouro infinito contra os
dedos dos pés. Tocou a cabeça, procurando por rachaduras.
— Eu mandei arrumar um conjunto de quartos para você — disse com
firmeza, afastando-se dela. — Imagino que você queira descansar.
— Não. — Audric permanecia em sua mente, sua memória quente e
estável, mesmo enquanto o resto dela fervilhava. Se olhasse muito de perto, a
dor espetava seu peito e olhos como espinhos.
Mas Audric estava longe; Audric a considerava um monstro.
Sua mente estremeceu, exausta por suas próprias hesitações. Ela ansiava
desesperadamente pelo esquecimento. Pegou a mão de Corien, enviando-lhe
um pensamento claro e duro como um diamante: Descansar não é o que eu
quero.
A força de sua sugestão o surpreendeu; ela sentiu seu deleite se desdobrar,
suavizando todas as suas frustrações.
Então Corien pressionou os dedos na palma de sua mão, chamou os guardas
para fechar as portas contra o frio e a guiou escada acima.
•••
•••
Ele havia esculpido uma cidade inteira sob as montanhas. Laboratórios mais
imaculados, administrados por eruditos angelicais em vestes brancas e
revestidos com mesas de metal, prateleiras de ferramentas de aparência
perversa, fileiras de frascos tampados. Minas e forjas que queimavam dia e
noite. Quartéis para legiões de soldados mudos de olhos cinzentos que Corien
chamou de adatrox.
— Eles são humanos — disse Rielle baixinho enquanto Corien a escoltava
por um enorme salão de pedra. Em ambos os lados, linhas de adatrox
percorriam o comprimento da sala. Eram negros e pálidos, gordos e magros.
Homens borsválicos, mulheres Kirvayanas. Mazabatianas. Celdarianos.
Pareciam bonecos arrumados por uma criança – rígidos, ligeiramente
desajeitados, ligeiramente tortos.
Quando Rielle passou, seus olhos turvos não a seguiram.
— Eles serão nossa primeira onda de terror — disse Corien. —
Brutamontes estúpidos. Não muito criativo, mas certamente eficaz.
— Quantos são?
— Sete mil. Em dois meses, terei dez.
Um arrepio de medo percorreu Rielle quando ela começou a compreender o
escopo de seu trabalho. Ela se lembrou dos soldados Sauvillier no teste de
incêndio – seus olhos cinzentos, sua mudez, como se voltaram contra os
próprios vizinhos sem avisar.
Então, havia dezenas de soldados. Aqui, havia milhares. Milhares de
pessoas arrancadas de suas casas, possuídas por anjos.
— E você habita todas as suas mentes? — Rielle sussurrou.
— A maioria. Cada um dos meus comandantes controlam alguns
esquadrões. — Ele olhou para ela. A diversão iluminou seus pensamentos. —
Isso assusta você.
— Isso me impressiona. E sim, isso me assusta.
Ele levou a mão dela aos lábios. — Eu gosto de impressionar você. E
confesso, também gosto de te assustar. Agrada-me imaginá-la tremendo de
admiração por mim, como tantas vezes fiz por você. Ah. Aqui.
Ele não deu a ela uma chance de responder. Ela o sentiu registrando seu
desconforto, como a enervou completamente, e ainda assim ele incitou
alegremente. Era um jogo entre eles, um empurrão e um puxão. Ela o havia
superado no laboratório e agora ele estava ganhando terreno.
Um jogo em que o objetivo não é vencer, pensou ele, mas emergir como
vencedores iguais.
Rielle manteve o olhar treinado no caminho diante deles. E se eu decidir
que não quero mais jogar?
Corien não respondeu, em vez disso conduziu-a por uma série de
corredores mal iluminados. O ar ficava cada vez mais quente à medida que
caminhavam e, quando emergiram em uma sala cavernosa iluminada de cima
por uma grade de ferro de tochas, o fedor quase derrubou Rielle – mas ela
ficou feliz com isso. A distração era bem-vinda, evaporando a tensão entre
eles.
— Olha — Corien sussurrou, gesticulando grandiosamente. — Pequenas
obras de arte, não são? Os dragões têm sido particularmente úteis para nós.
Sua genética é robusta e versátil.
Rielle não sabia o que ele queria dizer com isso, mas mesmo assim se
aproximou da beira de um poço escavado no chão, cordas quentes de medo
apertando sua garganta. O poço em si era enorme, talvez trezentos metros
quadrados, com uma grade de ferro grossa aparafusada no topo. Ao redor da
borda havia crianças, e nenhuma delas poderia ter mais de dez anos. Elas
também tinham olhos cinzentos velados, mas havia um poder neles, como
não havia com os adatrox. Algumas ficaram de pé, outras agachados. Todas
olhavam para o poço.
E todas usavam receptáculos.
Eles eram todos idênticos – faixas gêmeas de ouro ao redor dos pulsos e um
colar de ouro no pescoço. Flutuando no ar, perfurando o fedor, estavam
cheiros familiares. Terra úmida. Pedra queimada pelo sol. Água da chuva,
fumaça, vento alpino. A picada acre das sombras e o cheiro amargo do metal.
Rielle ficou olhando, sua repulsa uma cascata rápida.
Essas crianças eram elementais, muito jovens para usar receptáculos. Sua
própria experiência com magia, e a de Audric também, eram excepcionais;
normalmente, uma criança podia começar a estudar o poder elemental quando
bem jovem, mas não forjaria seu receptáculo até pelo menos o início da
adolescência.
— Elas forjaram seus receptáculos aqui? — Rielle perguntou fracamente.
— Sim. — O prazer silencioso de Corien beijou seus pensamentos. —
Algumas aceitaram melhor do que outras.
— E se recusassem?
— Eu as convenci.
Sem falar, Rielle optou por se aproximar do poço e se ajoelhar para espiar
dentro.
Abaixo da grade, agarrando-se e arranhando-se mutuamente, havia criaturas
– uma reminiscência do cadáver cruciata, mas mais medonho. Rielle olhou
sem fôlego para a bestialidade: ombros desajeitados, musculosos; asas
atarracadas de carne e penas; peles escuras desgrenhadas e peles escamosas;
bicos e garras. Cabeças rombas e enormes como bigornas. Chifres que
estalavam contra a grade e faiscavam como pederneira. Eles rangeram os
dentes e balançaram a cabeça, gemendo como se estivessem em uma agonia
furiosa.
E embora fossem malformados e distorcidos, cada um uma colcha de
retalhos de horrores, todos compartilhavam certas características distintas. As
caudas, por exemplo, e as asas, e as peles ásperas e peludas.
— Eles são dragões — ela sussurrou. — Você os mudou.
— Melhoria por meio do grotesco. — Ajoelhado ao seu lado, Corien olhou
pensativamente para suas criações. — Um dos meus generais começou a
chamá-los de rastreadores, já que você realmente não pode mais dizer que são
dragões, pode? O nome pegou bastante. Embora até agora eu tenha achado
impossível controlar completamente a mente de uma besta divina, nossos
tratamentos os mantêm dóceis e, além disso, os fundidos das crianças os
prendem como um arreio faz a um cavalo. E, claro, eu controlo as crianças.
Veja isto.
Ele estalou os dedos – só para mostrar, Rielle sabia. Suas habilidades não
precisavam de gatilho externo.
Em torno do fosso, as crianças elementares ficaram atentas. Ecos de seus
gritos roucos ecoaram no silêncio. Corien alcançou um mecanismo preso à
grade e pressionou uma trava. Uma porta na grade se abriu.
— Mostrem para ela — Corien comandou, sua voz cheia de excitação.
Assim que a palavra saiu de sua boca, uma das crianças – um menino jovem,
de pele e cabelos claros, olhos acinzentados e bochechas redondas – ergueu
os pulsos com faixas.
Um rastreador saltou da cova para se agarrar com garras quebradas.
Pendurado ali, ele abriu sua boca larga e uivou.
Cada tocha suspensa na grade acima explodiu para a vida. Pendentes
ruidosos de chamas jorraram de seus suportes, enchendo a caverna com luz e
calor abrasadores. Placas de metal moldadas em torno do peito, barriga e
ombros da fera brilhavam como um líquido de fogo, combinando com o
brilho dos receptáculos do menino.
Rielle deu um passo para trás do inferno, o coração batendo forte quando a
verdade ficou clara para ela.
A armadura do rastreador fazia parte do receptáculo da criança, unindo-os.
Um par de assassinos, maleáveis e impiedosos. E qualquer que fosse o poder
vivido em uma besta divina, sem dúvida aumentava a magia elemental que a
criança já possuía.
E Corien…
Corien poderia controlá-los – as crianças e seus animais.
Ele podia controlar todos eles.
14
Jessamyn
Acontecia duas vezes por mês, anunciado por cinco toques agudos das
enormes buzinas de latão da prisão – alguns mantidos no subsolo, outros
presos em telhados próximos na cidade acima.
Jessamyn se agachou em seu poleiro na prisão de Vaera Bashta e observou
o caos se desenrolar. Na língua comum, era chamado de abate. Em Lissar, era
cinvayat, e em Qaharis, era praeori kyta. Uma época em que todas as
fechaduras das quinze alas da prisão eram desfeitas, todas as portas abertas.
Por três horas, milhares de prisioneiros ficariam livres para fazer o que
quisessem, para matar quem quisessem, para se encolher nas sombras e
esperar que ninguém os encontrasse – até que os guardas angelicais os
forçassem a voltar para suas celas.
Jessamyn esperou até que o som das buzinas diminuísse, então saltou
silenciosamente da saliência de pedra com vista para a seção E3. A passagem
gradeada abaixo estava vazia, intocada pelo caos do abate. Isso levava às
solitárias, e os prisioneiros ali mantidos não tinham permissão para ter a
mesma diversão que os outros. Os solitários eram especiais. Muitos haviam
afrontado pessoalmente o Imperador. Conspiradores. Dissidentes.
Irmãos de princesas teimosas que se recusaram a usar seu poder como
deveriam.
Os guardas haviam se retirado para seus escritórios, comida e bebida em
mãos – nenhuma das quais saciaria sua sede ou satisfaria sua fome, mas o ato
de consumi-la, Varos havia explicado há muito tempo para Jessamyn, era
uma satisfação suficiente. Pelo menos por um tempo. Pelo menos até que não
fosse.
Enquanto Jessamyn descia a passarela vazia, os sons de violência ecoaram
em seus ouvidos. Gritos selvagens enquanto os caçadores atacavam suas
presas. Gritos sufocados e úmidos enquanto a morte tomava conta dos fracos.
Ela captou apenas vislumbres dos prisioneiros enxameando as cavernas mal
iluminadas abaixo. Um menino magrelo, com as omoplatas projetando-se das
costas nuas como um par de facas submersas, rastejou pelas sombras e
sussurrava orações frenéticas para que ninguém o encontrasse. Alguém o fez;
Jessamyn ouviu seu grito abafado, o som de osso batendo em pedra. À sua
direita, marchando em direção às enfermarias inferiores, uma gangue de
homens cantava em borsvallic, brandindo tochas que haviam arrancado das
paredes. À sua esquerda, uma gangue de crianças seminuas em trapos
imundos se lançou sobre um homem velho e o arrastou para o chão.
Eles estavam com fome. Para alguns, aquele era um momento de matar não
por prazer, mas simplesmente para encher a barriga.
Quando Jessamyn finalmente alcançou as solitárias, o abate se transformou
em um eco. O corredor era esculpido em pedra negra, imaculado e silencioso.
Dois guardas adatrox flanqueavam a porta 14. Jessamyn se preparou para
mandá-los embora, mas eles abriram a porta e se afastaram antes que ela
pudesse.
Ela apertou a mandíbula enquanto passava por eles. Esperava que, quando
o Império tivesse sido elevado à sua própria glória anterior, o uso de soldados
adatrox não fosse mais necessário. Eles podiam ser ferramentas úteis, ela
supôs, mas ela odiava seus olhos cinzentos cegos, a maneira estúpida e
trêmula com que se moviam. Controlados por anjos, suas próprias mentes
humanas achatadas e devastadas – os adatrox a lembravam de sua própria
humanidade, e quão fraca ela era. Quão facilmente poderia ser invadida e
manipulada, reduzida a alguma criatura fantoche, se falhasse em provar seu
valor para o Imperador.
Algum dia, quando ganhasse seu nome angelical, e junto um lugar como
uma conselheira do Imperador, o diria isso. E ele iria ouvir.
Um pequeno calafrio de prazer desceu por seus braços enquanto ela
imaginava. Desde seu encontro com o Imperador no dia anterior, ela não
conseguia parar de pensar nele. Salpicado de sangue, olhos selvagens e
lindos, sussurrando para ela sobre o plano que executariam juntos.
Transformar o menino Remy em uma arma. Usá-lo para desgastar o resto da
força de vontade de Eliana.
Mostrar à merda de uma princesa que a única pessoa que lhe restou no
mundo se tornou um animal de estimação ansioso do inimigo – tudo graças a
Jessamyn.
O orgulho aqueceu seu peito. Se ao menos Varos pudesse ter visto este dia.
Ele nunca teria duvidado dela novamente.
Jessamyn ficou parada na porta da cela de Remy. Ele estava encolhido no
canto. O ar estava fétido e frio.
— Acorde — ela comandou.
Um momento se passou. Remy não se moveu.
Ela correu em direção a ele, agarrou a gola de sua túnica de prisão e o
colocou de pé.
— Acorde — repetiu, empurrando-o com um grunhido.
Ele tropeçou, de olhos arregalados, e conseguiu se endireitar. Seus pés
descalços bateram em uma poça escura e rasa perto do ralo no centro do
chão.
Em silêncio, Jessamyn o avaliou. Ele era um menino magro como um
pássaro. A cabeça dele mal alcançava seus ombros. Seu cabelo emaranhado
tinha crescido selvagem; seu lábio inferior estava inchado e ensanguentado.
Arranhões marcavam seus braços e pés. Ele estava com os ombros curvados,
seu corpo curvado para frente como se para proteger sua cintura.
Jessamyn suprimiu uma onda de irritação. Apresentar uma criança sarnenta
e meio morta ao Conselho dos Cinco como seu novo aluno a tornaria motivo
de chacota, independentemente das ordens do Imperador.
Ela precisaria de um tempo sozinha com Remy antes que alguém no Liceu
pudesse dar uma boa olhada nele. Não era apenas sua reputação em jogo, mas
também a de Varos.
— Meu nome é Jessamyn — disse a ele. — Você virá comigo.
Ela se virou e foi para a porta, mas ele não a seguiu. No limiar, ela olhou
por cima do ombro.
— Ou você prefere ficar aqui? — ela perguntou calmamente. — Sozinho e
apodrecendo no escuro? Restos podres para comer e guardas vindo todas as
manhãs para bater em você?
Por fim, ele falou. — Para onde você está me levando é pior?
Isso a surpreendeu. Uma criatura de aparência tão miserável; ele não
parecia ter nenhuma inteligência sobrando nele.
— Melhor em alguns aspectos, pior em outros — respondeu, pois não
adiantava mentir. Ela se forçou a suavizar a voz. Deixe-o pensar que ela
poderia ser uma amiga. — Mas você verá sua irmã. Na verdade, se você fizer
o que eu digo, logo chegará um momento em que você poderá vê-la todos os
dias.
Seu rosto se iluminou. Em seus olhos brilhou uma pequena luz de
esperança.
Jessamyn franziu a testa enquanto ele mancava para segui-la. Portanto,
ainda havia suavidade nele.
Não por muito tempo.
•••
As palavras passaram pela mente de Eliana em uma leve brisa: Você vai me
machucar para recuperá-la?
Ela acordou de um sono profundo e abriu os olhos para uma névoa branca e
espessa. Sua língua estava seca e inchada, seus membros pesados. Queria
andar, mas não conseguia ficar de pé.
Então ela rastejou.
•••
Ela alcançou um pátio, então um corredor limpo forrado com um tapete azul
grosso. A luz do sol fluía através das janelas em arco com bordas de vidro
colorido, e Eliana encontrou forças para se levantar. No final do corredor
havia uma porta e, através dela, o escritório de Simon.
Suas palmas formigaram ao vê-lo.
Lá dentro, o encontrou ao lado das janelas abertas, cochilando em uma
espreguiçadeira com um livro aberto no peito. Uma brisa agitou as páginas.
Eliana afastou o livro com um sorriso largo, subiu em cima dele, alcançou
seu rosto – e então ficou muito quieta, as mãos pairando sobre sua pele.
Ele abriu os olhos e agora a fitava com um sorriso sonolento. — Que visão
para a qual despertar — disse suavemente.
Ela se afastou e fugiu da sala, o coração batendo forte. Cerrou os punhos e
ordenou que suas palmas vibrantes se aquietassem. Em torno de suas mãos,
as correntes de seus receptáculos estremeceram e faiscaram.
Aqui não. Ela formou o pensamento e empurrou-o para baixo de seus
braços. Nunca mais.
•••
•••
•••
•••
Simon os esperava em uma sala de estar na ala norte do palácio. Ele usava
um uniforme escuro, o casaco na altura do joelho abotoado no alto do
pescoço e abraçando confortavelmente seu torso elegante. Ele ficou na janela,
olhando para a noite, e em sua entrada, ele se virou e inclinou a cabeça.
— Vossa Excelência — disse suavemente, seu olhar no Imperador. Ele
evitou olhar para Eliana inteiramente.
Mas, desde o momento em que entrou na sala, Eliana não tirou os olhos
dele.
— Desculpas por atrasar o concerto, Simon — disse Corien, transbordando
de uma energia tranquila e alegre. — Eu sei o quanto você gosta desse
compositor. Mas nossa rainha exigiu vê-lo, e parecia muito sério. Eu não
podia negá-la.
Então Corien encontrou uma garrafa em uma mesa de serviço, serviu-se de
uma taça de vinho tinto, levantou sua bebida para eles e se acomodou
confortavelmente em uma espreguiçadeira no canto. Um servo acendeu uma
pequena fogueira; a luz de bronze da sala mudou com sombras.
Eliana ficou em silêncio por um momento, tensa com a incerteza. Talvez
tenha sido um erro estar aqui. Ela não podia se permitir liberar nem mesmo
um fragmento de raiva.
Mas havia algo que ela precisava saber.
— Eu sou eu mesma — murmurou, os punhos cerrando e abrindo ao lado
do corpo. Não aqui, ela comandou seus receptáculos. Nunca mais.
Simon observou em silêncio. Em sua espreguiçadeira, Corien sorriu por
cima da borda de seu copo.
— Eu estava realmente ansioso por este concerto — Simon disse
finalmente, sua voz afiada com impaciência. — Então, se você não pretende
falar, afinal…
— Eu vou falar — Eliana disse baixinho, com os braços rígidos. — Aquela
noite em Karlaine. Fomos atacados. Havia adatrox. Rastreadores. Cruciata.
— Sim.
— Você e Remy estavam me seguindo, eu suponho, desde Harkan… — O
nome de Harkan ficou preso no fundo de sua garganta.— Desde que Harkan
me drogou e me tirou de Dyrefal. O dia em que o Império invadiu Astavar.
— Sim.
Essa voz oca, sem vida e fria. As unhas de Eliana picaram suas palmas.
Simon não era estúpido. Ele devia saber o que ela estava prestes a dizer, e
isso a enfureceu por ele permanecer tão calmo, e a enfureceu ainda mais por
ela não poder se permitir ficar furiosa.
Ela tornou a voz firme. — Remy foi baleado naquele dia. Um tiro no
estômago. Ele morreu e eu o curei.
— Sim.
— ‘Salve-o ou veja-o morrer’. Foi isso que você me disse. — A boca de
Eliana azedou com a memória. Era mortificante pensar em seu velho e tolo
eu. — Você me segurou. Você disse que não me soltaria.
Silêncio. Nem mesmo uma mudança de peso. Ele era uma pintura sem vida,
observando-a se desfazer.
Eliana forçou as palavras para fora. — Eu deixei você me foder.
Um pequeno sorriso apareceu no canto da boca de Simon. — E obrigado
por isso. Eu precisava.
Suas palavras a esmurraram e seu estômago embrulhou ao ouvi-las, mas ela
permaneceu de pé. O calor flamejou em suas palmas; ela mal percebeu.
— Eu continuo ouvindo algo na minha cabeça — disse entre os dentes. —
No início, não reconheci a voz. Estava distorcida, distante e minha mente
estava confusa. Mas agora eu sei que pertence a Remy. Eu tenho ouvido isso
há… — Ela hesitou. Em sua mente, os dias se transformaram em semanas em
horas. Ela não sabia há quanto tempo estava ouvindo.
— Eu não sei por que isso está acontecendo — disse finalmente, — mas eu
ouvi Remy dizer a mesma frase dezenas de vezes agora. ‘Você vai me
machucar para recuperá-la?’
Ela procurou cada cicatriz no rosto de Simon, a curva de seu lábio inferior,
a linha afiada de sua mandíbula. Uma gota de suor escorreu por seu pescoço.
Ela se imaginou golpeando-o com punhos de fogo, o que seu rosto trairia
enquanto queimava.
— ‘Recuperá-la’ — sussurrou. — Me recuperar. Porque Harkan havia me
levado. Fazia sentido para mim que você tenha levado Remy com você
quando veio atrás de mim. Você me amava, eu achava. Você queria que eu
ficasse com meu irmão porque isso me faria feliz.
Eliana se aproximou dele devagar. A cauda pesada de seu vestido arrastou-
se pelo chão. — Mas agora eu entendo. Agora vejo que você nunca me amou.
Cada vez que você me tocava era mentira. Então, por que você arrastaria meu
irmão mais novo quando poderia ter se movido mais rapidamente sem ele?
Simon observou sua abordagem, sua expressão ainda como uma pintura.
— Porque você estava desesperado para que meu poder viesse à tona —
respondeu Eliana. — Você queria ver mais do que incêndios invocados por
manchas e navios afundados por tempestades. Você queria ver meu
verdadeiro poder para que despertasse o seu, e você sabia a melhor maneira
de assustá-lo.
A três passos dele, Eliana parou. Um rugido distante de raiva agitou seus
ouvidos. Seu corpo doía de tensão. — Você atirou nele.
O sorriso de Simon voltou. Seus olhos brilharam, lupino. — Sim. Eu atirei
nele bem no estômago.
Com um grito terrível e agudo, Eliana se lançou sobre ele, com o punho
erguido para atacar. Ele se lançou para frente para encontrá-la, bloqueou seu
soco com o próprio. Seu punho agarrou-a pelo braço, e então o outro golpeou
forte em seu estômago. Antes, ela teria se recuperado rapidamente disso, mas
semanas no mar seguidas por semanas na prisão da mente de Corien a
deixaram magra e macia.
Ela cambaleou com o golpe, engolindo em seco, mas as lâminas de fúria
incandescente subindo por sua espinha não a deixaram descansar. Voou em
Simon, avançando sobre ele com chutes e socos selvagens, sua garganta crua
com seus gritos. Ele a prendeu em seus braços; ela o acertou nas costelas com
o cotovelo, depois se virou e acertou sua mandíbula com um soco feroz. Ele
vacilou; ela deu uma joelhada na virilha dele.
Quando ele tropeçou, ela se virou, pegou um vaso de uma mesa e o
derrubou na cabeça dele. Ele cambaleou e, quando o chutou, ele voou pela
sala e colidiu com a parede oposta. Várias pinturas emolduradas caíram no
chão; ele caiu junto, seu rosto manchado de sangue. À sua esquerda, a lareira
fervia.
Eliana afundou rapidamente no tapete. A raiva a segurou tremendo em suas
garras, tornando sua visão vermelha e preta. As janelas estalaram nas
vidraças. No manto, as velas transformaram-se em lanças de chamas
brilhantes. Além do terraço, na cidade, uma esguia torre branca balançou e
desabou. Gritos distantes de alarme flutuaram pelo palácio.
Aqui não. Eliana se aninhou em uma bola apertada no chão, as mãos
entrelaçadas escondidas contra o peito.
Não aqui, não aqui. Ela era ela mesma. Ela era uma menina, uma criança,
um bebê.
Nem aqui, nem nunca mais. Estava limpa e envolta em branco. Suave e
encasulada, seu poder um mero sussurro. Não estava com raiva. Não estava
com medo. Não se desesperaria.
Enquanto ouvia o tremor do palácio, lágrimas quentes de vergonha rolaram
por seu rosto. Por muito tempo, resistiu ao desejo de dar a Corien qualquer
parte de si mesma, manteve seu poder fechado e silencioso – até esta noite.
Teria sido Corien quem plantou a voz de Remy em sua mente, esperando que
isso a provocasse? Ou a memória veio de outra pessoa?
Ela olhou para cima, viu Simon se levantar e erguer os braços, procurando
por seus fios. Luzes fracas brilharam nas pontas de seus dedos por apenas um
instante antes que a sala escurecesse mais uma vez.
Os olhos de Eliana tremularam fechados, suas peças escuras dentro de seus
punhos. Quando sorriu, ela sentiu o gosto de sal.
Em seguida, um rugido familiar de raiva perfurou o ar, seguido pelo
barulho de vidro. Alguém a agarrou pelos cabelos e a colocou de pé. O rosto
de Remy floresceu em sua mente, magro e ensanguentado. Um olho azul, o
outro avermelhado por um soco cruel e cercado de hematomas. Queria
alcançá-lo, mas não o fez. Ela fechou os olhos, lutou contra a força de sua
querida voz sussurrando seu nome.
Não era real. Ela vivia dentro de um pesadelo, só isso.
— Vou machucá-lo novamente — Corien sibilou contra seu ouvido, seu
hálito azedo de vinho. — E de novo, e de novo. Eu te mostro beleza, prometo
a você paz por semanas, e é isso que eu recebo em troca? Sua maldita garota
idiota. Você está lutando uma guerra que não pode vencer e sabe disso. Eu
vou machucá-lo bem na sua frente, assim como eu fiz antes. Sim, isso foi real
e será novamente. Vou fazer chover agonia sobre ele até você quebrar. É isso
que você quer?
Ele a estava arrastando pela sala, o braço preso ao dela. Ela lutou contra ele,
mas sua mente a segurou com força, forçando-a a andar. Ela se sentiu mal de
medo enquanto suas pernas se moviam contra sua vontade.
— Eu quero ver o concerto — engasgou.
— Oh, não, minha linda — disse Corien, rindo. — É tarde demais para
sutilezas. Considere a vida pacífica que eu dei a você finalizada.
O progresso deles pelo palácio foi um borrão de movimento e cor, seus pés
desajeitados sob a direção de Corien. Quando voltou a si, piscando
rapidamente, estava em um terraço resplandecente com a luz de tochas. O
vento uivou, e uma rápida olhada ao redor mostrou que estavam em um dos
níveis mais altos do palácio, o espaço iluminado por uma dúzia de tochas.
Duas torres de vigia brancas flanqueavam o terraço, e Eliana gelou de horror
quando viu Remy pendurado em uma delas. Um guarda angelical o segurava
pelo colarinho. Seu rosto, ensanguentado e com as faces encovadas, estava
emoldurado por cabelos escuros bem aparados.
E da outra torre…
Eliana olhou para o homem pendurado no ar, suspenso assim como Remy.
Ela conhecia o rosto, mas sua mente se recusou a aceitar o que poderia
significar.
— Pai? — sussurrou. Seus braços estavam gelados.
Ioseph Ferracora olhava para ela, o rosto molhado de lágrimas e os olhos
não mais negros. Eles eram azuis, como os de Remy. Seu queixo quadrado se
projetava teimosamente, como o de Remy.
— Oh, sim, eu queria te dizer isso — disse Corien alegremente. — Seu pai
– sinto muito, o homem que te criou; sabemos quem é o seu verdadeiro pai,
não sabemos? – ele não morreu na Batalha da Baía de Arxara, como você
pode ter sido levada a acreditar. Ele estava vivo quando o almirante Ravikant
o encontrou. E como Ravikant é um dos nossos mais talentosos, um dos mais
fortes, ele foi capaz de habitar o corpo de seu pai enquanto preservava sua
vida humana, mantendo sua mente intacta e saudável. O almirante, é claro,
graciosamente se ausentou para o propósito de nossa pequena reunião esta
noite. — Corien tocou suavemente a bochecha de Eliana. — Não é uma boa
notícia? Afinal, Ioseph Ferracora ainda está vivo!
Eliana não conseguia encontrar a voz. Seus olhos se fixaram no rosto de seu
pai e não a deixaram ir. Não conseguia parar de pensar na visão que Corien
lhe enviara – Remy, Simon, Ioseph e ela mesma, feliz e rindo em uma casa
iluminada pelo sol. E havia todas as lembranças de sua infância: Ioseph indo
para a guerra; dançando com Rozen em sua cozinha; segurando a pequena
Eliana em seu colo após o desfile anual da Rainha do Sol, ambas brilhando
com pó dourado, vendo o sol nascer enquanto a estátua do Portador da Luz se
elevava acima deles.
O mundo girou lentamente; algo terrível estava para acontecer e Eliana não
tinha como impedir. Ela cerrou os punhos. Se seu receptáculo despertasse
novamente, ela não tinha certeza se seria capaz de conter o fluxo de seu poder
desta vez.
Ioseph abanou a cabeça. — Não dê ouvidos a ele, doce menina. Está tudo
bem. — Sua voz tremeu. As lágrimas rolaram por suas bochechas e pela
barba que o almirante Ravikant havia mantido tão bem aparada. — Está tudo
bem.
— Não é uma boa notícia? — Corien rugiu. Ele sacudiu Eliana com força.
— Diga-me!
Um soluço explodiu dela. — Sim. Sim!
— Estou cansado de esperar que caia em si, Eliana — disse com veemência
contra o rosto dela, — de lhe oferecer prazeres, prometendo-lhe paz. Chega.
Se eu não conseguir persuadi-la a raciocinar, serei forçado a quebrá-la.
Corien sacudiu a cabeça para a torre de Ioseph. — Salve o homem que te
encontrou nas ruas e te alimentou e protegeu até que ele saiu de casa para
lutar uma guerra que eu comecei, apenas para ter seu corpo roubado e usado
como uma marionete.
Ele a virou bruscamente, a fez olhar para a torre de Remy em seguida. —
Ou salve seu irmãozinho inocente, que até agora não te culpa por toda a
miséria que sofreu em seu nome. Tente salvar os dois, e vou rasgar seus
crânios em pedaços de dentro para fora antes mesmo de atingirem o chão.
Então, antes que Eliana pudesse respirar para implorar, os guardas
segurando Ioseph e Remy os deixaram ir, e seus corpos mergulharam na
noite.
16
Tal
•••
•••
•••
Quando Rielle passou pelo último anel de luz que a levaria ao receptáculo de
Santa Tameryn, ela estava tensa e pronta, seu poder zumbindo ansiosamente
na ponta dos dedos.
Estava em uma caverna imensa à beira de um lago vasto e claro. Uma
vegetação abundante cobria as paredes da caverna – emaranhados de vinhas
rastejantes enfeitadas com folhas de jade brilhantes, cachos de minúsculas
flores brancas que pendiam como nuvens. A margem do lago era uma vasta
extensão de pedra negra brilhando com manchas de ametista. Uma brisa
suave agitou a água e, embora não houvesse nenhuma janela para o mundo
exterior, a luz do sol inundou suavemente tudo que Rielle podia ver.
Obritsa aproximou-se silenciosamente dela, baixando o capuz peludo.
Pedaços de neve caíram no chão. — Caverna de Santa Tameryn — ela
sussurrou.
Rielle fechou os olhos, respirando o ar suave. Aqui, o receptáculo estava
insistente e claro. Seu poder mostrou-lhe uma visão: Santa Tameryn em um
abraço sonolento com Santa Nerida. Uma com pele marrom-dourada e uma
cabeça com ondas escuras brilhantes, a outra com cabelo de ébano com pele
pálida dourada beijada pelo sol. Enlaçadas em uma cama branca sob um
dossel de folhas, elas brilhavam de felicidade.
Um eco de seu amor floresceu no coração de Rielle, a memória carregada
na corrente do poder do receptáculo, e foi tão opressor, tão vívido em sua
pureza, que Rielle se sentiu sufocada por isso. Limpando as lágrimas de seus
olhos, resolveu deixar este lugar no primeiro momento que pudesse, pois
trazia muitas lembranças de Audric.
Ela varreu com olhar através da caverna e encontrou um mirante circular
feito de pedra, sentado em um pedestal na água. Um muro baixo o conectava
à costa.
De pé entre as colunas do mirante estavam três homens em túnicas
cinzentas, cada um com um símbolo familiar bordado no peito – uma torre
alta e quadrada, e acima dela um olho. Um dos homens já estava puxando
freneticamente os fios do ar, o que fez Obritsa respirar fundo.
O Obex Astavari, e um dos marques que os serviam.
Rielle atacou imediatamente na direção delas, Obritsa correndo atrás deles.
— Abra mão disso — gritou Rielle, — ou eu irei destruí-los.
Um dos Obex agarrou a adaga de Tameryn nas costas. — Lady Rielle, por
favor, você deve ouvir a razão…
— Eu avisei — disse Rielle. Não havia tempo para discutir com eles, nem
para poupá-los. Ainda a cerca de cinquenta metros deles, lançou punhos de
poder voando, agarrou seus corações em sua mão ardente e os deteve, como
fizera com seu pai, com o Rei Bastien, com Lorde Dervin. Mas ela era
melhor nisso agora – mais rápida, mais eficiente. Suas mortes foram
indolores; ela se certificou disso. A adaga de Tameryn caiu no chão. Os fios
do marque se desfizeram e desapareceram.
Rielle cruzou a parede para recuperar a adaga e depois se juntou a Obritsa
na margem. A garota não parecia nem um pouco surpresa com o que Rielle
havia feito. Em vez disso, um leve sorriso iluminou seu rosto cansado.
— Conseguimos — disse Obritsa sem fôlego. — Eu fiz isso.
— Você fez bem — concordou Rielle, e então ergueu a adaga, inclinando a
lâmina para capturar a luz. Ela tentou não pensar em como Audric ficaria
exultante por estar no amado retiro de Santa Tameryn, mas sua mente era
uma traidora cruel.
— Leve-nos para a superfície — instruiu Rielle. — Em algum lugar
remoto. Aquela cachoeira pela qual passamos nas montanhas. Leve-nos até
lá.
Obritsa franziu a testa. — Você não vai destruí-la aqui?
Rielle apertou ainda mais a adaga. Ela esperou até que seus olhos
estivessem secos e sua mente livre do Audric imaginado, de pé na praia,
pasmo.
Então ela disse baixinho: — Não. Aqui não.
•••
Malik estava fora havia cinco dias, dois a mais do que deveria ter levado para
viajar para a ilha de Laranti e retornar com Ysabet, líder da Coroa Vermelha,
Hob tinha organizado para eles se encontrarem. Uma mulher, disseram os
contatos de Hob no underground, cuja influência em Vesper era
incomparável.
Mas Malik ainda não havia retornado. Navi não conseguia dormir de tanto
se preocupar com ele.
Em vez disso, se sentou até tarde em sua tenda de lona surrada, olhando
para as folhas de papel úmidas e onduladas sobre a mesa que ela e Hob
tinham feito com um velho toco de árvore. Além da aba da tenda, nuvens de
mosquitos furiosas enxameavam, mantidas sob controle pelo óleo fedorento
que seu guia, Bazko, havia vendido a eles pelo que Navi suspeitava ser um
preço exorbitante. Mas ela o gastou com prazer, embora as moedas que
conseguiram contrabandear para fora de Astavar – e trocar pelas moedas
Vesperianas antes que a notícia da invasão se espalhasse – estavam
desaparecendo rapidamente. os mosquitos do pântano eram vorazes, cada
uma do tamanho de uma impressão digital.
— Quarenta e sete — sussurrou Navi, examinando a lista codificada de
nomes à sua frente a última contagem de todos que haviam recrutado para seu
pequeno exército de perdidos. Legalistas da Coroa Vermelha, refugiados,
órfãos. — Não é suficiente.
— Não — Hob disse simplesmente. — Não é.
— Temos que nos mover mais rápido, de alguma forma. Eu odeio ficar
presa neste lugar horrível.
— Foi a decisão certa ficar e vigiar a fissura.
Navi respirou longa e lentamente, esperando que isso lhe trouxesse alguma
aparência de calma.
Não funcionou.
A lona da tenda e algumas centenas de metros de pântano ficavam entre ela
e a fissura para o Abismo, mas Navi ainda podia sentir isso puxando-a. A
forma de seu olho escuro e recortado estampou-se em sua visão, como se ela
tivesse encarado por muito tempo uma luz brilhante. Nada emergiu da fissura
e o rasgo não aumentou.
Mas o pântano tinha ficado assustadoramente quieto desde o aparecimento
da fissura. Navi teve a sensação de que ela não estava sozinha prendendo a
respiração, esperando o próximo terremoto e o que ele poderia trazer.
A aba da barraca se abriu e Miro entrou, parecendo miserável. Ele arrastou
a manga em rosto sujo. — Minha senhora, posso dormir aqui até a minha
próxima vigília? Os mosquitos estão me comendo vivo.
— Sim, claro. — Navi gesticulou para uma lona de couro surrada que
servia de cama para qualquer um que precisasse, e uma vez que a respiração
do menino se estabilizou, ela se voltou para Hob, enxugou a testa com um
pano do bolso e, em seguida, escondeu o rosto contra a umidade pano.
Os únicos sons eram os roncos leves de Miro, os mosquitos zumbindo, o
arrastar de pés suaves e barulhos retinidos enquanto os outros se moviam ao
redor do acampamento, as vozes de todos abafadas como se tivessem medo
de perturbar o silêncio anormal do pântano. Em algum lugar próximo, os
vigias patrulhavam lentamente a água.
— O que eu estava pensando, Hob? — Navi sussurrou. — Isso é loucura.
— Acho que eu chamaria de coragem precipitada, talvez — disse Hob
uniformemente, — mas não loucura.
Ela o olhou, a exaustão fazendo seus olhos arderem de lágrimas. — Um
exército para esmagar o Império. Isso é o que eu disse que construiria. Isso é
o que eu disse a Malik enquanto fugíamos de Astavar. E agora eu tenho
quarenta e sete pessoas em um pântano infestado de insetos, esperando que
eu faça algo extraordinário enquanto uma porta para o Abismo nos encara dia
e noite, e Malik, que foi ao encontro de nosso suposto aliado, se foi por
tempo demais. Eu o enviei para a morte também?
— Não faça suposições. Ysabet vai nos ajudar.
Navi soltou uma risada cansada e esfregou os olhos, desejando que as
lágrimas secassem.
— Você confia em mim, não é? — Hob disse suavemente.
— Que você me disse o que acha que é verdade? Sim, eu confio nisso. Mas
uma mulher que eu nunca conheci? — Navi olhou tristemente para sua lista
de nomes. — Eu falhei com Eliana.
— Não fizemos nada ainda. Você não teve a oportunidade de falhar com
ela.
Navi fez um som baixo e frustrado. — E essa inatividade pode ser o que a
mata, a coisa que mata a todos nós. Ou talvez… — Ela suspirou, enxugou o
rosto mais uma vez. Ela nunca tinha suado tanto em sua vida. — Talvez seja
arrogante, até idiota, pensar que tudo o que eu pudesse fazer seria de alguma
ajuda para ela.
— Você vai enlouquecer pensando em poderia e talvez.
Navi sabia que ele estava certo. E, no entanto, o mundo encolheu ao seu
redor, mesmo enquanto se expandia. Ela sentiu a verdade de sua própria
pequenez, a enormidade do mundo, quanta dor e tristeza ele continha.
Ela se levantou, girando os ombros. Uma caminhada podia limpar sua
mente, mesmo que signifique enfrentar mosquitos.
Então, as lâmpadas do lado de fora da tenda, pontilhando o acampamento
como vagalumes fracos, apagaram-se uma a uma. Gritos abafados e
assustados surgiram da noite.
Hob se levantou rapidamente, apagou sua própria lâmpada, desembainhou
sua espada e despertou Miro. Navi se abaixou para pegar seu revólver, uma
coisa tosca que eles compraram no mercado subterrâneo de Morsia. Ela
estava grata a Hob por apagar sua luz; já, seus olhos começaram a se ajustar.
Uma voz gritou do centro do acampamento. — Você que reivindica este
acampamento. Você que se chama Jatana. Se você deseja que o homem
Rovan viva, livre-se de todas as armas que carrega e avance imediatamente.
Navi estava na porta da tenda, o coração batendo forte. Jatana e Rovan: seu
nome falso e o de Malik.
Quem quer que fossem essas pessoas, tinham seu irmão.
Navi largou o revólver na lama, ignorou o aviso sussurrado de Hob e saiu.
Imediatamente, alguém a agarrou e rudemente empurrou um saco sobre sua
cabeça. Ela deu um chute e acertou uma canela, enfiou o cotovelo em algo
carnudo, mas então, mãos agarraram seus braços e Navi não conseguiu mais
ficar de pé. O saco, ela percebeu, balançando, tinha sido encharcado com uma
substância forte e fedorenta que pretendia nocauteá-la.
Ela rosnou em frustração, ouviu Hob correr atrás dela. Através do tecido do
saco, ela viu uma alfinetada distante de luz azul machucada – o olho da
fissura, sem tampa e olhando fixamente, observando sua luta sem remorso.
Então ela não viu mais nada.
•••
Navi acordou com uma brisa fresca. A luz do sol beijou seus braços e
pescoço.
Ela não usava mais um saco na cabeça. Em vez disso, um pano foi
amarrado com força em volta dos olhos, deixando o nariz e a boca livres para
respirar o ar salgado. Ela se mexeu em seu assento duro; suas mãos estavam
amarradas com um pano. Ocorreu a ela que o mundo estava balançando.
Uma voz rouca soou acima. — Ela está acordada.
Outra voz, afiada e autoritária, disse: — Deixe-me vê-la.
Com a venda removida, Navi semicerrou os olhos sob a luz forte e, depois
de um momento, viu que estava sentada em um barco pequeno e estreito. Em
frente, em um banco baixo, estava sentado alguém envolto em xales cor de
terra – alguns com franjas de contas, outros com bainha de seda rosa, todos
os quais obscureciam a verdadeira forma e tamanho da pessoa. Um lenço
escuro cobria sua cabeça, escondendo couro cabeludo e cabelo, e sobre o
rosto eles usavam uma máscara oval formada de pequenas placas de metal
unidas por elos de corrente. Fendas marcavam o nariz e a boca.
Olhares rápidos para a esquerda e para a direita mostraram a Navi que
outros barcos flutuavam nas proximidades, três figuras em cada. Uma pessoa
sentou-se para trabalhar os remos. Os outros dois estavam de pé, lanças nas
mãos, todos apontados para Navi.
A pessoa mascarada falou em voz baixa e rica. — Você é Jatana de
Meridian.
Navi olhou fixamente para a máscara. — Eu sou.
— Por quê você está aqui?
— Você me tirou do meu acampamento e me trouxe aqui.
A máscara ficou em silêncio por um longo momento. — Você vem para
Vesper na esperança de conhecer Ysabet da Coroa Vermelha. Você quer
soldados. Você quer armas. Você quer ferir o Império.
Navi não disse nada.
— Quatorze anos atrás, o Império reivindicou Vesper em nome de Sua
Santa Majestade o Imperador dos Imortais — continuou a máscara. —
Aqueles que considerarem trabalhar contra ele são considerados traidores do
Império. Nós, seus humildes servos, temos a tarefa de trazer traidores à
capital para julgamento. Mas somos perfeitamente capazes de executá-los nós
mesmos.
O suor escorria pelas costas de Navi. A brisa fez pouco para temperar o sol
escaldante. Ela percebeu que não tinha visto Malik em nenhum dos outros
barcos, nem as duas pessoas que foram com ele para se encontrar com
Ysabet. Ela se perguntou se estavam mortos no fundo do mar e se logo se
juntaria a eles. Ela segurou a língua, resistindo ao desejo de se inclinar para o
lado do barco e procurar seu irmão na água.
— O que você diria — a máscara continuou — se eu pedisse a você para
declarar sua lealdade ao Império ou então perder sua vida nas mãos de meus
guardas?
Os soldados ergueram as lanças, os corpos tensos como se estivessem
prontos para atirar.
Enquanto o barco balançava com as ondas, Navi imaginou o mundo frio e
azul do fundo do oceano. Não seria um lugar tão terrível para descansar.
E se ela ia morrer, o faria com amor por Eliana nos lábios.
— Eu diria que a luz da Rainha me guia — respondeu, olhando fixamente
para o rosto revestido ilegível da máscara, — e que seu fogo queimará o
Império.
E então, surpreendentemente, a pessoa mascarada disse: — Excelente.
Elu sacou uma adaga de dentro das roupas e pulou em Navi. Saltou sobre
ela, prendeu-a em seu assento e segurou a lâmina da adaga com força contra
sua garganta.
Navi congelou, lutando contra a vontade de revidar. Através das lacunas na
máscara revestida, olhos castanhos encontraram os dela.
Por um longo momento, aquele olhar brilhante procurou seu rosto. Então a
pessoa mascarada relaxou, levantou-se e colocou a adaga de volta na bainha.
Navi teve um vislumbre da lâmina de cobre iridescente – o mesmo metal da
caixa dentro da qual Zahra estava presa.
Navi sentiu uma pontada amarga de saudade. O que ela não teria dado para
ouvir a voz do fantasma de repente descer do céu.
A pessoa mascarada gritou um comando em um dialeto vesperiano que
Navi não conhecia. Os soldados nos barcos próximos relaxaram, baixando as
lanças. Os remadores retomaram o trabalho, empurrando os barcos em
direção a uma pequena ilha negra no horizonte.
O atacante de Navi desamarrou a máscara e desembrulhou o lenço de sua
cabeça, revelando uma jovem esguia, de rosto avermelhado, sua pele marcada
com sardas e uma cicatriz branca bastante grande. Ela sacudiu os cabelos
desgrenhados na altura do queixo, desbotados pelo sol, e tirou as camadas de
xales. Por baixo, ela usava calças marrons justas sobre pernas finas e
torneadas e botas surradas até os joelhos. A gola de sua túnica branca se abriu
para revelar duas cordas de couro com nós amarradas em seu pescoço.
— Desculpas pelo drama — ela disse, gesticulando evasivamente com um
movimento preguiçoso de sua mão. — E pela a faca. Mas não confio em
ninguém até olhá-los nos olhos e segurar uma lâmina-praga contra sua
garganta. Você entende.
Navi, em choque ao falar, disse: — Sim, na verdade. — Então ela fez uma
pausa, imaginando. Era uma mulher muito mais jovem do que ela esperava,
talvez apenas um ou dois anos mais velha do que a própria Navi. — Você é
Ysabet?
Ysabet ergueu uma sobrancelha. — E você é Navana, princesa de Astavar.
— Meu nome é Jatana. — Navi franziu a testa, fingindo confusão, mas seu
coração disparou de medo repentino. — Você sabe disso.
— O que eu sei — disse Ysabet, olhando para o mar à medida que a ilha
crescia e se aproximava, — são as histórias que ouvi do norte. Uma princesa
que trabalha na manjedoura de Lorde Arkelion como espiã para a Coroa
Vermelha. Uma fuga que desafia a morte. Uma aliança com o notório Lobo.
Rumores também de uma garota com poderes milagrosos. Alguns dizem que
ela é a Rainha do Sol. Uma frota de navios de guerra imperiais naufragados
por uma tempestade na baía de Karajak. Um exército de monstros. Astavar
finalmente invadida e caída. Os reis morreram, mas nenhuma criança real foi
encontrada. E agora, uma garota chamada Jatana e seu irmão chegam às
minhas ilhas, querendo me conhecer. Querendo montar um exército.
Ysabet fez uma pausa, depois se virou para olhar por cima do ombro.
O peito de Navi doeu de pesor, mas ela sustentou o olhar curioso de Ysabet
e não se encolheu.
— Podemos estar espalhados aqui nas ilhas Vésper — continuou Ysabet,
— e nosso número muito menor do que eu gostaria. A Coroa Vermelha é
fraca nessas ilhas, mas ainda vive, e meus corvos voam longe. — Ysabet
hesitou. Sua voz era dura, mas havia algo suave em sua boca. — Eu sei o que
é perder sua família, Navana. A injustiça disso. A agonia da dor. É por isso
que luto. Você está entre amigos aqui. Eu simplesmente precisava ver você
antes de ter certeza.
— E meu irmão? — Navi perguntou, erguendo o queixo. Ela esconderia
seu espanto e seu coração partido. Esta rainha da Coroa Vermelha não a
abalaria. — Seus companheiros?
— Eles provavelmente estão descansando, como as pessoas razoáveis que
são. Ele está sem dúvida andando de um lado para o outro em meu angar
enquanto aguarda sua chegada. Não tenho certeza se algum dia seremos
amigos verdadeiros, ele e eu. Não acho que ele vai querer me perdoar por
assustar você como eu fiz. Ah bem. — Ela deu um sorrisinho para Navi. —
Você e eu podemos ser amigas em vez disso.
Navi não tinha certeza de como responder, então ela optou por não
responder. Ficaram sentadas em silêncio enquanto sua pequena frota de
barcos se aproximava da ilha que não estava mais tão distante. Quando as
ondas os trouxeram para mais perto, ela percebeu como Ysabet estava
sentada confortavelmente na proa, observando pacientemente a ilha próxima.
Então houve um estrondo profundo na água. Até o ar parecia tremer. Navi
percebeu que um dos picos negros da ilha soltava vapor.
Ysabet a pegou olhando. Seus lábios se curvaram. — Não se preocupe,
princesa. Raratari só deve entrar em erupção por mais três meses. Tenho dois
estudiosos de Saterketa a meu serviço, e eles nunca erraram em suas leituras
da Terra.
— Espero que este não seja o primeiro erro — disse Navi, irritada por seu
alarme ser tão óbvio.
Ysabet riu, depois ficou na proa e gritou ordens para os outros barcos.
Passaram por uma larga boca de rocha e em uma enseada negra, e o queixo
de Navi caiu, pois os penhascos à frente deles começaram a se abrir – duas
portas maciças arrancadas por algum mecanismo oculto que a mente de Navi
desejou inspecionar. As portas se moviam lentamente, mas silenciosamente
para seu tamanho. Engenhosamente elaborados para se parecer com rocha,
disfarçados por sujeira e vegetação, eles se abriram para revelar uma enseada
escondida interna. E na água estava um enorme navio escuro, meio
construído. Canhões cintilavam em seus conveses inferiores.
Navi juntou-se a Ysabet na proa, olhando maravilhado enquanto eles
passavam. Era gigantesco, combinando facilmente com o tamanho de um
navio de guerra imperial.
— É lindo — ela sussurrou.
Ysabet olhou por cima. — Minha mãe o desenhou. Os últimos planos que
ela desenhou antes de sua morte, e uma de suas únicas posses que meu tio
conseguiu salvar. Eu mesma aprimorei as ideias dela. O tio disse que tenho os
mesmos dons que minha mãe tinha. Olho para o design. Uma mente para
construir.
Aquilo mexeu com algo na mente de Navi, alguma memória distante que a
incomodou para olhar mais de perto. Tinha ouvido falar há muito tempo
sobre alguém de Vesper, uma figura famosa pela construção naval. Mas ela
descartou o pensamento, não se permitindo a distração. Embora soubesse
muito pouco sobre embarcações, ela apreciava as linhas arrojadas e elegantes
do navio. Irradiava eficiência e confiança e, mesmo enquanto estava lá,
atracado, parecia zumbir com vontade de se mover.
— Ela parece rápida — observou Navi.
Ysabet deu um sorriso torto para ela. — Você conhece navios, não é?
Navi engoliu a leve pontada de constrangimento. Talvez a diversão de
Ysabet fosse uma coisa boa. — Não — admitiu, — mas gosto da aparência
dela.
Isso fez Ysabet sorrir. — Há tão pouco tempo que nos conhecemos e você
já sabe como me bajular.
Totalmente desarmada pela visão do largo sorriso de Ysabet, Navi se
atrapalhou com uma resposta espirituosa – e então ouviu um grito.
Ela olhou para cima e gritou de alívio, pois Malik estava em uma das
pontes de corda amarradas ao longo das paredes da enseada. Ela acenou de
volta para ele, em seguida, juntou as mãos no peito e sussurrou uma oração
suave.
Ysabet a observou com atenção. Ela se sentou e cruzou os braços,
recostando-se na proa. — Comecei a construí-la sem saber o que fazer com
ela — disse calmamente. — Durante anos, estive lutando pequenas batalhas,
voando de ilha em ilha e apunhalando o Império aqui e ali como um
mosquito. Roubando armas, invadindo seus armazéns. Me odiando por não
ser capaz de fazer mais. Odiando o povo de Vesper por não lutar mais, o que
foi injusto da minha parte, mas é isso.
— E então — disse Ysabet, inclinando-se para a frente, os cotovelos sobre
os joelhos, — ouvi falar dessa garota surpreendente. A Rainha do Sol, dizem
aqueles que ainda rezam para o empirium, esperando que ele volte. E então
eu ouvi sobre Astavar caindo, e percebi que estamos nos aproximando de
algo. Um precipício, talvez. E eu poderia sentar e esperar que o mundo caísse
debaixo de mim, ou eu poderia fazer algo, mesmo que fosse estúpido e
selvagem. Então, peguei os planos de minha mãe depois de mantê-los
trancados por anos e comecei a construir. Com que propósito, eu não sabia.
Mas se algum dia eu precisasse de um navio, teria um. Então ouvi falar de
você e, pela primeira vez em muito tempo, senti algo de que gostei. Eu me
senti esperançosa novamente.
Os olhos castanhos de Ysabet exibiam uma luz fervente. — O que você
quer, princesa? — disse calmamente. — Por que você luta? Se você tivesse
um exército, o que faria com ele?
Chegaram a um pequeno cais. Os dois soldados em seu barco saltaram e
amarraram-no com grossas cordas com nós. Navi permaneceu lá dentro,
olhando para Ysabet com o coração na garganta. Há semanas não sentia essa
onda de energia, essa vontade de ter esperança. Ela mal ousava confiar nisso.
— A Rainha do Sol vive — respondeu Navi em voz baixa. — Ela é querida
para mim, uma amiga que amo de todo o coração. E ela precisa da minha
ajuda. Se eu tivesse um exército, navegaria até Elysium e lutaria por ela. Eu
iria mostrar a ela que ela não está sozinha.
— E você morreria por essa amiga?
— Por ela — disse Navi, — e por todos.
Um dos soldados de Ysabet se abaixou para ajudá-la a subir no cais. Ela
acenou para ele, o olhar fixo em Navi.
— Este navio, assim que for construído — disse ela, — será capaz de fazer
a travessia do oceano em três semanas. Ele tem armas, e tem arsenais de
armas que fariam um general imperial salivar.
Navi riu baixinho de espanto. — Três semanas? Isso é tão rápido quanto
um navio de guerra imperial.
Ysabet sorriu. — Minha mãe era boa no que fazia. Eu sou ainda melhor.
Mas um navio rápido não é nada sem uma missão para guiá-lo.
Navi olhou para trás, para os canhões parados orgulhosamente em suas
docas. Ela reconheceu o design. — Esses são canhões imperiais.
— Gosto de manter meu pessoal ocupado.
Navi ouviu a leve queda de escuridão em sua voz, o brilho de um escudo
interno. Ela sustentou o olhar de Ysabet e colocou a mão gentilmente em seu
braço.
— Eu também perdi muitos — ela disse calmamente. — Eu sei o que é
saber que você vive porque outros morreram, como a dor se instala em você
como uma pedra que você não pode remover. Tenho que acreditar que se
pudessem nos ver agora, ficariam orgulhosos de nossa luta e não se
arrependeriam de sua parte nela.
Com os olhos brilhantes de lágrimas, Ysabet deu um sorriso irônico. —
Uma princesa, de fato. Você tem jeito com as palavras, Alteza.
— E você tem um navio, enquanto eu tenho uma missão.
— E você tem um exército.
— Um pequeno.
— Como o meu. — Ysabet apertou as mãos de Navi e apertou. — Mas
juntas, nossas tropas não são tão poucas. Juntas, são mais fortes.
Navi sorriu, sem fôlego de alegria crescente. Que alívio não estar mais tão
sozinha. — Você vai nos ajudar, então?
— Sim, princesa. Nós vamos ajudar uns aos outros. Vou pressionar meu
povo até que eles desejem me amar menos, para que possam se permitir me
odiar. Um mês, eu acho, é tudo de que precisamos.
Ysabet se curvou para roçar os lábios nos nós dos dedos de Navi. Então
saltou do barco para o cais, gritando comandos para os soldados que
esperavam nas proximidades.
E Navi ficou sentada por um momento, recuperando o fôlego. O calor dos
lábios de Ysabet permaneceu em sua pele. Ela cruzou as mãos contra o peito
e as manteve ali até que seus pensamentos se estabilizassem. Malik estava
descendo rapidamente pelo cais, seu sorriso brilhante e amplo. Seu irmão,
ainda vivo, e ela também.
Eliana, ela orou, agarre-se ao seu coração de ferro. Mantenha-se forte.
Nós estamos indo.
20
Audric
•••
•••
•••
Gotas de chuva caíram nas bochechas de Rielle, e ela virou o rosto para
recebê-las.
Ela abriu os braços, porque um calor terrível a rodeava, e em seu sangue se
alastrava um inferno. Ela estava desesperada pelo respingo de chuva.
Mas a chuva estava quente, e quando atingiu seus lábios, havia uma
espessura pungente nela, um travo vermelho. Algo se enrolou em seu peito e,
quando ela abriu os olhos, viu que as gotas que molhavam seu rosto não eram
água, mas sangue.
Ela estava parada em uma piscina rasa na encosta de um penhasco com
vista para uma linha rochosa de enseadas. Sua memória retornando
lentamente, ela lembrou que Obritsa a havia levado para a costa leste de
Meridian em busca do Obex Meridian e do tridente de Santa Nerida. O vento
do oceano abaixo soprou em seu cabelo emaranhado de sangue. As ondas
quebraram e rugiram como bestas lutando por carne, e o horizonte brilhou
com relâmpagos.
Muitas tempestades, Rielle aprendeu, lançando seu poder sobre a superfície
plana da água e lendo as palavras que o empirium havia gravado nele. Mil
tempestades surgiram do portão e do céu acarpetado em todo o mundo.
Rielle riu, lambendo os lábios e apoiando as palmas das mãos no chão
escorregadio. A terra ondulou com seu toque, pois suas mãos ainda estavam
em chamas. O zumbido do tridente destruído de Santa Nerida permanecia em
sua pele. Uma flecha despedaçada estava a seus pés. O Obex realmente
tentou atirar nela, como se ela fosse um atacante comum. Como gritaram
pouco antes de ela os desfazer.
Rielle olhou por cima do ombro e fixou os olhos em Obritsa. A pequena
viajante, a rainha de Kirvayan, com seu cabelo branco emaranhado e sua pele
marrom-clara que ficara pálida com a tempestade. A menina brilhou, ouro
pintando suas mãos onde o empirium estava esperando por ela para criar os
fios. Ouro pintando sua mente, com todo seu controle meticuloso e foco.
Havia ouro no oceano e ouro no céu, e um ouro pulsante sob as rochas negras
e o oceano inquieto, subindo, subindo.
— Bem? — Rielle murmurou, zombando. — Você tem algo a dizer?
As peles de Obritsa também estavam manchadas de sangue. Flocos de
carne carbonizada pairavam no ar, mas ela não se esquivou deles.
Em vez disso, sustentou o olhar de Rielle e disse: — Você já pensou em
matá-lo?
Rielle riu. Os cabelos da nuca se arrepiaram. — Matá-lo?
— Você poderia, eu acho. — Uma lasca de cinza grudou nos cílios de
Obritsa. Ela não prestou atenção, seu rosto branco como pedra lavada. —
Obviamente você pode destruir corpos. Acho que você também pode destruí-
lo, se quiser. Desfazer seu verdadeiro eu de dentro para fora. Uma mente, um
corpo – são iguais, não são? Em seu nível mais profundo, são do empirium,
assim como tudo é.
— Eu poderia matá-lo? — Rielle experimentou as palavras, mas o
pensamento passou por sua mente como uma enguia de dentes afiados, cruel
e evasiva. Aquilo se contorceu dentro dela, e seus olhos eram tão pálidos
quanto os de Corien em seu quarto iluminado pela lua, sua carne carnuda era
a obsidiana lustrosa de seu cabelo. Ela havia destruído aquele anjo Malikel
em Patria, embora tivesse sido desajeitada, não intencional. Ela poderia fazer
o mesmo com Corien, que era muito mais forte? Ele ao menos permitiria a
ela a chance?
A raiva explodiu rapidamente dentro dela. Ela caminhou em direção a
Obritsa e a derrubou. A cabeça da garota bateu em um ponto fraco entre as
rochas, um pedaço plano de lama preta. Rielle viu a explosão raivosa de dor
em seu crânio e as estrelas piscando rapidamente em seus olhos.
— Você nunca mais vai falar sobre isso ou sobre ele — sibilou Rielle.
Apenas uma hora atrás, ela estava cansada até os ossos. Agora, com sangue
ao seu redor e suas veias fervendo com a violência da destruição, ela
renasceu.
Obritsa olhou para ela, sem fôlego. — Eu deveria ter impedido você de
matar os Obex. Você não é você mesma. Seus olhos estão mudando tão
rapidamente. O dourado está devorando o verde.
— Me parado? — Rielle sorriu largamente. — Você nunca poderia.
E então ela sentiu uma mudança no ar, esse ar que a obedecia e estava nela
e era dela, esse ar que se formaria em uma clava e esmagaria Obritsa na terra
se Rielle assim desejasse. Ele se moveu e se dobrou, permitindo espaço para
mais três corpos neste penhasco negro que se projetava para o mar, e quando
Rielle ergueu os olhos, viu dois anéis de luz se fechando. Suas narinas ardiam
com o cheiro familiar de fios de fumaça, mas estes não pertenciam a Obritsa.
Eles pertenciam a dois marques – um homem que Rielle conhecia e uma
mulher que não conhecia. O homem era alto e tinha olhos azuis, rosto e
cabelos desalinhados. A mulher era alta, magra e pálida. O homem baixou as
mãos brilhantes, o corpo rígido de tensão – e o rosto, Rielle pensou,
suavizando-se de pena, embora estivesse obviamente com medo.
— Garver? — Rielle sussurrou. A visão dele era incongruente e
profundamente perturbadora. Ela imaginou livrar o mundo dele com um
golpe de seu braço no ar. Ela não queria pensar em casa, em Audric com
aquela pergunta ciumenta torcendo seu rosto, e ainda assim havia Garver,
lembrando-a de tudo simplesmente por existir.
Outro homem passou por Garver, e isso foi pior, foi um golpe que deixou
Rielle insegura e tremendo de raiva por ele ter vindo atrás dela, por poder tê-
la encontrado aqui. Ele estava mais rude do que nunca e mais magro, seu
cabelo loiro emaranhado preso em um nó bagunçado.
Tal. Seu coração apertou com a palavra
Ele estava correndo em direção a ela, o rosto iluminado de alívio alegre, e
de repente Rielle percebeu o que ele iria ver – ela, respingada de sangue, as
mãos prendendo Obritsa no chão. Uma ruína de cinzas e morte os cercando.
A última vez que ele a vira foi na noite de núpcias. Ela era uma criatura
dourada, amarrada em renda e veludo, estúpida e feliz, e ainda era esguia
então, sua barriga e rosto não tão gordos como eram agora.
— Rielle! Oh, queridos santos, graças a Deus você está bem — disse, as
palavras explodindo dele. Quando a alcançou, um raio de terror a atravessou
como um raio.
— Afaste-se de mim — ela rosnou, sem soltar Obritsa. A garota iria correr;
a estranha pequena aliança entre elas sem dúvida foi destruída no momento
em que Rielle a atacou. Sem ela, se Rielle não pudesse agarrar Garver ou sua
amiga antes que se enfiassem em um lugar seguro, ela ficaria presa aqui nesta
costa terrível e devastada pela tempestade, e Corien levaria meses para
recuperá-la.
Tal parou assustado, a alegria caindo de seu rosto. Seu olhar percorreu a
encosta do penhasco, as rochas salpicadas de sangue.
Seus olhos se encontraram. — Rielle, está tudo bem — disse, como se
estivesse acalmando uma criança. — Eu entendo o que aconteceu aqui.
Ela riu. Como se, com sua mente simples e talentos nada excepcionais, ele
pudesse entender qualquer coisa do que ela sentia ou era.
Ele se aproximou dela com as mãos levantadas. — Você não precisa ter
vergonha. Você está destruindo os receptáculos dos santos, não é? Você
optou por não abrir o Portão. — Havia um pequeno sorriso em seus lábios. —
Eu sabia que você não iria ajudá-lo. Eu sabia que você recuperaria os
sentidos. Você estava com raiva e com medo. Eu entendi aquilo.
— Recuperar os meus sentidos? — Ela olhou para ele através de seus
cílios. O mundo pulsava em tons de âmbar e bronze. — Você não sabe nada
da minha mente e nunca poderia.
— Mas eu quero, Rielle. — Ele se ajoelhou lentamente, para que seus olhos
ficassem no mesmo nível. — Eu quero saber o que você vê. Quero entender
tudo que te machuca.
Entre eles, Obritsa lutou nas garras de Rielle, sua respiração rápida e fraca.
— Você não pode. — Uma grande frustração cresceu em Rielle. A
ignorância de Tal a enojava. — Meu poder está além do alcance de qualquer
homem que viva.
— Talvez, se você vier para casa comigo…
— Casa? — Uma pequena risada escapou dela. Ela respirou fundo,
estremecendo, o que tirou lágrimas de seus olhos. Sua voz era um mero
tremor. — Eu não tenho casa.
— Sim, você tem. — A voz de Tal era de uma imensa gentileza, e ela não
conseguia suportar que ele ousasse ser gentil quando ela se sentia tão frágil,
tão pegajosa de sangue.
— Afaste-se de mim, Tal. Você disse que me ama. Mostre-me isso e
obedeça aos meus desejos.
— Sua casa é em Âme de la Terre — disse ele, sem se deixar abater, —
comigo, com Audric e com Ludivine. Rainha Genoveve, Sloane, Miren. —
Tal olhou por cima do ombro, onde Garver estava severamente parado. —
Seu amigo Garver Randell e seu filho pequeno.
Rielle sentiu o momento em que Corien tomou conta da mente de Obritsa.
O corpo da garota relaxou sob suas mãos e, com alívio, Rielle se afastou dela,
deixando-a esparramada. Garver partiu em direção a Obritsa imediatamente,
mas Rielle esticou o braço e o empurrou de volta para o mato emaranhado,
longe da beira do penhasco. A mulher pálida, sua companheira, correu atrás
dele com um grito agudo.
Tal ficou tenso. — Rielle, por favor. Venha para casa comigo. Você não
precisa mais fugir.
— E o que devo fazer, quando for para casa com você? — Ela se agachou
no chão, seu sorriso se tornando perverso. — Devo desfilar pelas ruas,
cumprimentando meus muitos admiradores? Devo compor uma música para
acompanhar as maldições que eles vão lançar contra mim? Diga-me, Tal, o
que rima com Assassina de Reis?
— Rielle. Não vai ser assim.
— Você está mentindo para mim. — Ela balançou a cabeça, o riso áspero
crescendo, e tocou a têmpora dolorida. — Todo mundo está sempre mentindo
para mim. Audric disse que não se importa, que isso não importa, mas
importa. Ele não pode esconder isso de mim
— Se você voltar para casa, se contar a todos o que aconteceu, eles vão
entender. Eles vão aceitar você.
— Eles me odeiam — sussurrou, — e sempre vão odiar, e você sabe disso.
Tal abriu os braços para ela, e seu rosto estava tão suave, tão aberto de
amor, que Rielle, cansada como estava, com a cabeça latejando de dor e a
boca amarga de morte, o deixou se aproximar. Ele a segurou contra seu peito,
sua mão cuidadosamente em forma de concha em sua cabeça. Ele pressionou
a boca contra o cabelo dela, sem se importar com o sangue.
E por um momento, Rielle fechou os olhos e permitiu.
Mas então Tal começou a falar.
— Você estava confusa — disse suavemente. — Ele deslizou em sua
cabeça e te enganou. Compreendo.
Rielle o empurrou e se levantou com dificuldade. Seus olhos turvaram com
lágrimas, e ela odiou que ele as visse e pensasse que ela precisava de
conforto. Ela puxou as lágrimas para as palmas das mãos, transformou-as em
fogo e jogou-as no chão, onde grudaram e cresceram.
Tal observou as chamas maravilhado. O escudo amarrado às costas parecia
patético ao lado deles, um brinquedo digno de uma criança.
— Eu não fui enganada. — Rielle cuspiu, com os olhos claros. — Eu
queria ir embora. Eu o queria. Ele não tem medo de mim. Ele adora o que
posso fazer e quer que eu faça mais.
Ele olhou para ela das rochas, chocado. — Claro que quer! Ele quer usar
você!
— Ele quer que trabalhemos juntos, como um só.
— E o que há no final dessa obra? Tudo que você ama será destruído. Tudo
que você sabe se foi.
— Se eu decidir poupar alguém, ele vai permitir.
— Escute a si mesma!
— Ele me ama, Tal.
— Nós também. — Ele se levantou, seu escudo faiscando enquanto sua
raiva aumentava. — Nós amamos você, Rielle, e não pediremos a você
nenhum derramamento de sangue.
— E se eu quiser derramamento de sangue? Você ainda vai me amar,
então?
Ele hesitou, e isso foi o suficiente.
Rielle se afastou dele. — Eu vejo isso em seu rosto. O que sou te apavora.
Isso te revolta.
— Não, amor…
— Uma vida sombria, escondida em quartos confortáveis, rezando por
calma, aparecendo apenas para regar plantações morrendo ou para resfriar um
vento quente de verão, não é uma vida que eu quero. Eu morreria naquela
vida, não importa quanto amor você diga que me cercaria.
Algo estava acontecendo com o rosto de Tal, um encolhimento. Seus
músculos se contraíram e se estreitaram, e seus olhos brilharam de tristeza.
— Rielle, não é assim que sua vida seria — disse ele. — Você viveria sob a
proteção de todos. Devagar iríamos reintroduzi-la ao povo, trazer
peticionários ao tribunal para fazer perguntas, expressar suas preocupações.
— E até que fosse seguro para mim andar livremente novamente, eu me
sentaria dócil ao lado de Audric, nosso filho em meus braços? Uma esposa e
rainha devotada, calada de vergonha? Implorando por perdão? Tentando
persuadir a todos que olharam para mim com nojo de que não é o filho de um
anjo em meus braços? Eu teria que apresentá-lo aos magísteres todos os
meses para provar que nenhuma marca de asas negras se formou em suas
costas?
— Não – meu Deus, não, não é isso que aconteceria. Eu juro para você,
Rielle. Isso levaria tempo, mas…
— Pare de mentir para mim!
Os joelhos de Tal dobraram. Rielle o observou cair, seu corpo tenso de
raiva. Ela viu os lugares onde ele sentia dor – seu crânio, seu peito, seu
estômago. Feridas escuras do controle de seu poder. Sua luz era tão pálida,
tão comum. O empírium dentro dele era um mero brilho pálido. Ela ficou
maravilhada por nunca ter notado isso antes.
— Você sabe que não há mais nada para mim lá — ela sussurrou. —
Talvez nunca tenha existido.
— Sua família está lá — engasgou Tal, estendendo a mão para ela. — Seus
amigos, seus professores. Seja lá o que Corien a fez acreditar, você não é um
monstro cujo único poder é a destruição. Você é amada, Rielle.
— Você mente! — Ela lançou os braços para ele, as palmas das mãos
rígidas de raiva. Ele tentou se levantar, e ela o empurrou de volta. Ele
empurrou inutilmente o ar e arranhou sua garganta. Seus olhos estavam
esbugalhados; suas veias saltaram como rachaduras.
— Eu morreria por você — ele engasgou, se contorcendo no chão. Um
terrível som negro saiu dele, cru em sua dor, e Rielle viu o brilho de poder
em seus olhos pouco antes de soltar um rugido tenso. Ele torceu o braço para
trás, lutando contra o aperto dela com tanta força que quebrou o osso, e então,
seu rosto branco de dor, ele agarrou seu escudo.
Floresceu, uma coroa de chamas. Rielle viu Garver encolhido no mato a
alguns metros de distância, a mulher pálida ajudando-o a se sentar. Uma
pequena chama tremeluziu nas mãos de Garver – uma tocha construída de
maneira tosca. A seus pés estava uma sacola de suprimentos esfarrapada.
Rielle enfrentou o fogo que Tal atirou nela e, por um único momento
cristalino, seus olhos foram infinitos e impiedosos. Milhares de pequenas
ligações estremeceram diante dela, milhões de estrelas giratórias do
empirium, todas esperando por seu comando. Dentro de si, centenas de portas
se abriram nas dobradiças.
Foi fácil devolver o fogo ao escudo. Tal deixou escapar um grito sufocado,
silenciado rapidamente.
Ela garantiu que fosse uma queimada rápida.
Mesmo os monstros não eram sempre desprovidos de misericórdia.
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A primeira vez, Eliana rastejou de um lado para o outro de seu quarto, então
se banhou sozinha pela primeira vez desde que chegou em Elysium. Ela abriu
as portas de seus quartos, com o coração batendo forte, e olhou para o amplo
corredor sombreado que ia da esquerda para a direita. Vigas brancas
arqueadas subiam sobre pisos de mármore reluzentes revestidos de tapetes
claros.
Durante tudo isso, o adatrox permaneceu imóvel e quieto. Até Jessamyn
parecia alheia. Eliana saiu de seus quartos, descalça, e acenou com a mão na
frente do rosto de Jessamyn. Nada.
O Profeta a guiou até uma sala de estar não utilizada não muito longe da
sala dela, decorada com enfeites e com pinturas em molduras douradas da
glória angelical.
Dentro dela, protegida pela presença calma do Profeta, seu coração um
pássaro frenético em seu peito, Eliana alcançou seu poder com intenção
deliberada – não o deixando explodir pela raiva, não permitindo que seu
medo superasse sua razão e forçasse seu poder sem sua permissão. Era a
primeira vez que ela fazia isso desde que chegara a Elysium, e sua mente
parecia desajeitada ao se esticar e se atrapalhar. Ela se concentrou nas linhas
familiares de seus receptáculos, finos e frios em torno de suas mãos e pulsos.
Ela empurrou seus pensamentos ao longo do chão de pedra e no ar.
Um objetivo simples: mover o ar, comandá-lo para derrubar o castiçal de
ouro que estava orgulhoso em sua mesa.
Simples, mas ela não conseguia. O ar permaneceu parado. Seu poder foi
usado para se esconder e sentiu-se relutante em emergir daquele lugar
profundo em que ela o havia empurrado. Um zumbido fraco no fundo de sua
mente, um formigamento lento ao longo das linhas de suas palmas – nada
mais. Ela olhou por cima do ombro, a boca seca de medo, esperando que
Corien viesse batendo a porta, mas o quarto permanecia só deles.
Ótimo, disse o Profeta. Agora tente novamente. Nunca saia desse pequeno
rio. Mantenha os pés frios e aterrados, mesmo quando suas mãos começarem
a queimar. Ele não pode encontrar você aqui, pequenina, não nestas águas.
Eliana obedeceu, mas foi igual. Desajeitado e distante, seu poder. Suas
mãos coçavam e não havia como coçá-las.
Rápido, agora. Volte para seu quarto. A voz do Profeta era urgente, mas
nunca assustada. Como se pudesse ver um futuro promissor que Eliana não
podia.
Ela obedeceu, deslizando de volta pelo corredor e para a cama. Seu sangue
pulsava em suas veias enquanto ela se concentrava fortemente no fluxo calmo
de seu rio. Foi um exercício mais desafiador do que qualquer coisa que ela já
havia feito como o Terror – equilibrar a Eliana, que era uma prisioneira
mergulhada em dor e desespero, e a nova Eliana, que estava começando a
mergulhar os dedos na poça de seu poder mais uma vez. Sua textura e ritmo –
como ela sentia falta disso.
Como estava com medo de acordá-lo novamente.
Uma camada de suor pintou sua pele quando se recostou na cama. O que
meus guardas viram enquanto estive fora?
Seus quartos como deveriam ser, respondeu o Profeta. Você, dormindo
agitada em sua cama, como eles esperavam. Agora, porém, devo ir. Durma,
Eliana. Você vai precisar.
Espera. Para o que estamos trabalhando? O que vamos fazer? Conte-me.
Ainda não, o Profeta respondeu após um momento. Ainda não é seguro.
Você não é forte o suficiente. Mas você será.
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Então, uma noite, quando a saudação familiar do Profeta veio, tirando Eliana
de um sonho tão vívido que a seguiu até que ela acordasse.
Como tentar lembrar uma palavra fora de seu alcance, um aperto em seu
peito, puxando-a para frente. Seus dedos formigaram. Se ela fechasse os
olhos, poderia ouvir um estrondo fino e preto, como de uma tempestade que
se aproxima. Se abrisse os olhos e os desfocasse, ondulações de ouro
dançavam nas bordas de sua visão.
Eu sei para onde iremos esta noite, ela disse, saindo da cama.
A curiosidade do Profeta aumentou. Onde?
Eu vi isso no meu sonho.
Você vai me contar?
Procure você mesmo.
Você sabe que eu não gosto de fazer isso, disse o Profeta gentilmente. Não
se eu não precisar.
Eu vou te mostrar, então.
Diga-me primeiro. Por favor. Devo saber para onde estamos indo. Houve
uma pausa. Não quero invadir sua mente, Eliana. Eu não sou como ele.
Eu direi se você me disser no que estamos trabalhando. Que planos você
tem para mim. Onde você está, e se eu posso ir até você.
O Profeta ficou em silêncio.
Eliana sorriu severamente enquanto se arrastava para o corredor, passando
pela figura carrancuda de Jessamyn. Por semanas, trabalhamos juntos.
Minha mente está mais forte do que nunca. Podemos conversar sem que ele
perceba. Você pode me esconder por, o quê, cinco horas agora, enquanto eu
me movo pelo palácio?
Isso é verdade, o Profeta disse, os pensamentos cuidadosamente em branco.
Eliana dobrou uma esquina e passou sem ser vista por um par de guardas
em patrulha. Você me fez largar aquela faca por um motivo, semanas atrás.
Acho que mereço saber. Qual é o objetivo desse trabalho que estamos
fazendo? É apenas uma diversão para passar o tempo?
Não é uma diversão.
Então o que?
O silêncio continuou.
Eliana disparou como uma sombra pelo segundo andar do palácio, a
estranha memória de seu sonho guiando-a por um labirinto de quartos
ladrilhados e corredores com cortinas até que ela finalmente emergiu em um
mundo suave de verde.
Era um vasto pátio, tão grande quanto um dos maiores salões de baile de
Corien. Paredes cheias de flores, videiras derramando-se em treliças de ferro,
arbustos pintados com bagas brilhantes. Fileiras de flores vermelhas, mesas
de madeira oleadas com mudas crescendo raízes em frascos de vidro.
Enormes samambaias trêmulas, árvores de folhas brilhantes carregadas de
frutas. Eliana ergueu os olhos para um teto de vidro colorido. Painéis
carmesim e ouro. Aberturas de ventilação abertas para deixar entrar o ar
noturno.
Ela embalou a flor vermelha mais próxima em suas mãos, sentiu o doce
aroma familiar de seus aposentos. Então é aqui que ele cultiva essas flores.
O Profeta se sentiu tenso e um pouco confuso. Seu sonho te mostrou isso?
Sim, exatamente isso. Cada último detalhe. E… aqui. Ele também me
mostrou isso.
Ela rastejou por baixo das mesas de mudas e desapareceu na escuridão
verde espessa do pátio. Era um absurdo o que ela estava fazendo, como se
estivesse brincando de um jogo de criança. Mas uma estranha tensão
floresceu em seu peito, puxando-a, e ela teve que segui-la ou ela explodiria.
Uma vibração estranha sacudiu seus dentes, e ela se lembrou de forjar seus
receptáculos, mergulhando as mãos na ferida de Remy. Isso parecia o mesmo
– a mesma vitalidade, o mesmo fio urgente de poder crescendo tenso e
dourado dentro de seus ossos.
Acho que é o empirium, ela pensou. Acho que está tentando me mostrar
algo.
Uma leve onda de alarme do Profeta. Por que você diz isso?
Eliana passou por um emaranhado de vinhas. Ela estava no fundo do pátio
agora, um silêncio espesso ao seu redor. Musgo macio sob suas mãos e o ar
verde em seus pulmões.
Então ela viu, o lugar de seu sonho – um pequeno matagal escuro formado
de samambaias e vinhas unidas, cercado pelas raízes de uma árvore florida
com galhos úmidos e casca preta áspera. Quase grande o suficiente para ela
se enrolar, e ainda assim ela abriu caminho através da vegetação selvagem até
que se sentou curvada no meio dela, tremendo.
— O ar parece rarefeito aqui — ela sussurrou, movendo lentamente os
dedos por ele. — Como se eu pudesse empurrá-lo de lado e encontrar outra
coisa por trás.
O Profeta ficou muito quieto. Você gostaria de tentar?
Sim, respondeu Eliana, tremendo. Seus receptáculos aqueceram contra sua
pele. Mas eu não acho que posso.
Talvez algo pequeno, primeiro. Algo natural. Não um castiçal, mas uma
árvore. Você pode arrancar suas raízes da terra?
Eliana tentou, sua pele logo ficou escorregadia de suor. As raízes
permaneceram cravadas no solo negro, mas o ar mudou, vitalizado por uma
carga quente que zumbia. Eliana estendeu a mão com seu poder, guiando-o
para segurar o sentimento. O mundo zumbia com o calor, assim como sua
pele, e ela se sentiu levantando do chão para seguir a nova corrente de ar.
Então ela perdeu o controle e afundou de volta na terra, exausta e com frio.
Receptáculos escuros, dor de cabeça.
Você está indo muito bem, pequenina, disse o Profeta, e Eliana se agarrou
ao calor dessas palavras.
Eles voltaram ao jardim uma e outra vez, e cada vez que Eliana se arrastava
de joelhos e mãos em seu bosque silencioso e escuro, ela sentia um pequeno
pedaço de sua velha força retornar a ela. Foi um progresso lento, pois as
punições de Corien continuaram, ainda mais cruéis do que antes. Ele podia
sentir a mudança nela, mas não conseguia descobrir sua origem, e lançou sua
fúria contra ela com os punhos e a mente. Depois desses tormentos, corpo e
mente golpeados, Eliana movia-se lentamente, e seus pensamentos às vezes
ficavam muito dispersos para se concentrar corretamente.
Algumas noites, ela não conseguia se mover da cama, e o Profeta
simplesmente a confortava, sussurrando palavras que a mente preguiçosa de
Eliana não conseguia entender, enviando a ilusão de mãos suaves em suas
costas.
Certa vez, Corien passou vinte horas direto em sua mente, procurando em
cada fenda a resposta para o que estava acontecendo, de alguma forma, bem
debaixo de seu nariz. E Eliana perdeu todo o senso de orgulho e de si mesma
quando aquelas pontadas afiadas de dor abriram seu crânio. Ela soluçou no
chão, torcendo-se e sacudindo-se no aperto de Corien, e atolada naquela
agonia negra, a única palavra que ela poderia invocar era Simon.
Ela gritou sem parar, alcançando a porta como se ele estivesse logo atrás
dela. Se gritasse alto o suficiente, ele viria atrás dela. Se implorasse, ele a
salvaria.
E então a porta se abriu e Simon caminhou em sua direção, levantou-a do
chão, roçou os lábios em sua testa. Ela sabia que ele não estava lá. A alegria
perversa de Corien esculpiu em suas costas como a lâmina de um machado. E
ainda assim Simon parecia tão real, tão familiar, que ela pressionou o rosto
contra o peito dele e se agarrou a ele.
Ele a levou para a pequena cama em Willow, sob o teto inclinado. O
braseiro brilhante no canto, a chuva batendo nas janelas. A salvo em seus
braços, quente em sua cama, ela se permitiu um momento para desfrutar da
mentira.
Em seguida, ela se desvencilhou, chutou-o quando ele a alcançou, pegou
carvões quentes do braseiro e jogou-os em seu rosto.
Escuridão, então, e a voz de Corien zombando dela enquanto ela caía.
Por dias, ela se agitou nas garras de sonhos cacarejantes, e quando acordou
novamente, seus quartos estavam silenciosos.
Ela se sentou, vestiu uma de suas camisolas e caminhou cambaleante em
direção à porta.
Eu sinto muito, pequenina, o Profeta disse, sua voz embargada de angústia.
Se eu pudesse tirar tudo isso de você, eu o faria.
Não preciso de suas desculpas, disse Eliana bruscamente. Eu preciso que
você me esconda.
E no jardim, envolta no manto feroz do Profeta, Eliana abriu a terra e
arrancou raízes apenas com seu poder. Ela agarrou o ar, usou-o para abrir
caminho através das samambaias, mais fundo no jardim. Mergulhando no
solo, ela persuadiu a água até que se acumulou em volta dela em poças
gorgolejantes e frescas.
Seus receptáculos brilhavam fracamente, lavando o matagal em ouro claro.
Ele tentou tanto quebrá-la, disse o Profeta, com uma voz calorosa e
orgulhosa, e falhou totalmente. Bem feito.
O eco de Simon sussurrou em seu cabelo. Eliana sacudiu a mão e apertou o
queixo.
Eu gostaria de tentar algo novo, ela pensou. Fitas de luz pálida fluíram
ininterruptamente por suas veias. Seu poder refletia a nova força de sua
mente. Eles estavam conectados, sua mente e seu corpo, e eles por sua vez
estavam conectados à água em seus dedos dos pés, e as raízes que ela enfiou
de volta na terra para que a árvore pudesse beber.
Ela ouviu as raízes engolirem, ondulações do empirium traindo seu apetite
primitivo e impensado, e ela entendeu o sentimento.
Seu poder estava pronto e revestido de aço. Ele estava com fome. E ela
ansiava por alimentá-lo.
O Profeta estava cauteloso. O que você vai fazer? Conte-me.
É como eu disse antes, Eliana respondeu. O mundo é tão estreito aqui. O ar
parece frágil.
Com os dedos zumbindo e quentes, seus receptáculos como pequenas
estrelas reaprendendo sua luz, ela empurrou as mãos para a frente, depois as
separou com as palmas para fora. Uma onda de energia detonou, mas ela a
impediu, absorvendo-a com sua própria carne e sangue para que não abalasse
o palácio.
O Profeta ficou maravilhado. Oh, Eliana. Ver você trabalhar é uma alegria
que não sentia há muito tempo.
Eliana ouviu apenas pela metade, as mãos ainda enterradas no ar. Veias
douradas do empirium estalaram em torno de seus dedos. Cada grão de luz
pintando o matagal dourado sussurrou para ela, e ela ouviu com atenção,
olhando para o impossível diante dela.
Uma forma flutuou no ar, escura e fina, como a pupila do olho de um gato.
Seu interior se turvou com uma cor tempestuosa – índigo e violeta, um azul
tão brilhante que era quase branco. Imediatamente Eliana se sentiu puxada
para ela, como se fosse uma boca ávida por engoli-la.
Ela cravou os dedos dos pés e apoiou as mãos na terra. Em sua mente, a
surpresa do Profeta zumbiu como um sino tocado.
O que é isso? Eliana perguntou.
Uma fenda, o Profeta disse cuidadosamente. Você abriu muitas em todo o
mundo sem saber, naqueles momentos em que invocou seu poder com medo e
raiva. Mas isto – veja como é uniforme, como é preciso. Foi a sua vontade
focada, Eliana, que abriu esta porta.
Eliana ficou olhando para ela. Algo puxou seus ombros, chamando-a para
frente. Ela procurou na escuridão, a luz raivosa mudando dentro dela, e viu
uma visão tênue de colinas baixas, bosques de pinheiros espalhados, um céu
roxo com o crepúsculo.
Uma porta para onde? Ela se perguntou, seu coração batendo forte, e antes
que o Profeta pudesse responder, as mãos de Eliana voaram para a fenda. Ela
agarrou as bordas e as abriu mais amplamente até que foi possível deslizar
para dentro.
O Profeta entrou em pânico. Eliana, espere!
Mas o empirium a puxou para este lugar, e agora sussurros dourados a
puxavam para frente.
aqui
AQUI
venha ver
estão por todas as partes
rápido
Antes que o Profeta pudesse impedi-la, Eliana prendeu a respiração, fechou
os olhos e passou pela fissura para o que havia além.
Seus pés atingiram solo sólido. Ela abriu os olhos e viu nuvens cinzentas
movendo-se rapidamente em um céu violeta. As colinas eram rasas e
onduladas, cobertas de grama verde felpuda, e não havia outro ser vivo à
vista. Sem animais, sem pessoas. Não havia nem vento. Apenas um silêncio
que parecia não natural. Uma luz estranha e pálida inundou tudo, como um
crepúsculo tingido de tempestades. Nuvens negras marcavam cada horizonte,
e abaixo de seus pés, além do verde da grama, mudava uma vasta escuridão,
como se o prado e as colinas fossem apenas um véu fino cobrindo algo
terrível e sem luz.
Então um pássaro gritou e, quando Eliana ergueu os olhos para encontrá-lo,
viu muito acima dela a forma tênue e mutante de uma enorme fera alada. Ela
passou voando, enviando escuridão pelo céu, e desapareceu, mas outra seguiu
em seu rastro, e depois outra, e mais três, deslizando e serpenteando, cada
uma delas um gigante.
Eliana recuou, olhando com horror. O que ela pensava serem nuvens
cinzentas eram na verdade as sombras dessas criaturas, enxameando de
horizonte a horizonte.
Um calor nauseante floresceu em seu esterno e inundou seus dedos. Ela se
abaixou, procurando em vão por algo para se esconder embaixo. Mas o
silêncio anormal permaneceu, e quando Eliana olhou de volta para o céu, viu
que parecia igual a antes. As formas monstruosas não estavam mais perto
dela. Era como se ela e este estranho mundo verde existissem dentro de uma
bolha além da qual bestas gigantescas se contorciam – mas se estavam longe
ou muito perto, ela não podia adivinhar. Pelo menos, parecia, não podiam
alcançá-la.
Ela se endireitou lentamente, forçando sua respiração a se acalmar. O suor
frio formigou sua nuca.
Então, um grito glótico cortou o ar, perfurando o silêncio assustador. No
horizonte, algo longo, escuro e tortuoso saiu das nuvens e começou a voar.
Esta não era uma forma cinza distante. Esta era clara e nítida, de cauda longa
com largas asas negras e se aproximando rapidamente.
Eliana se virou e correu para a fina fatia vertical de verde exuberante
marcando seu caminho de volta ao palácio de Corien. Longos minutos se
passaram antes que ela conseguisse se impulsionar, pois uma grande força
estava empurrando contra ela.
Mas com uma última explosão controlada de poder, conseguiu, caindo no
pátio do jardim. Ela se virou para agarrar as bordas da fenda. Seus dedos
formigaram como se ela os tivesse mergulhado em água quente o suficiente
para queimar. A fenda a sugou; aquele lugar, fosse o que fosse, a queria de
volta. Mas ela lutou contra sua força, juntou as pontas escaldantes e usou seu
poder para selar a fissura. Apenas um brilho fraco permaneceu no ar e então
desapareceu.
Sem fôlego na terra, pegajosa de suor, Eliana estendeu a mão para o
Profeta. Que lugar foi esse? O que eu vi?
A voz do Profeta estava sem fôlego de alívio e admiração.
Você viu as cruciata, respondeu. E você estava no Abismo.
24
Rielle
•••
Quando o Profeta voltou para Eliana, sete dias haviam se passado desde sua
viagem ao Abismo.
Você se saiu bem, disse, enviando a ela ondas cautelosas de conforto. Ele
não vê nada do Abismo em você, e não vai ocorrer a ele suspeitar disso.
Enrolada no chão onde Corien a havia deixado, Eliana abriu os olhos. Ela
engoliu em seco e provou o cobre; tinha mordido o interior da boca ao ponto
de sair sangue. No chão, cacos de vidro estavam espalhados como neve caída.
Corien gostava de quebrar coisas quando estava com raiva. As vidraças
estavam abertas para a noite, as bordas irregulares. Metade de seus guardas
estava obedientemente varrendo os restos em pás. A outra metade, com suas
expressões brandamente vigilantes, certificou-se de que ela não tentasse
pegar um pedaço para cortar a garganta.
— Debaixo do tapete — Jessamyn ordenou, pisando no chão com a bota.
Ela olhou para Eliana, uma expressão preocupada escurecendo seu rosto. —
Pegue todos os carpetes.
Eliana os observou limpar, depois subiu na cama e fingiu dormir, o rosto
escondido sob os cabelos, mas na verdade ela estava vigiando as portas de
seus quartos, esperando que Corien voltasse por ela. As lágrimas molharam
suas bochechas, mas ela mal as sentiu. Cada som de seus guardas a fez
estremecer. Uma hora se passou, depois duas. Uma mudança de turno.
Jessamyn partiu para o Liceu, a casa do Invictus, onde ela dormiria.
Por fim, Eliana sentiu que era seguro.
Eu quero voltar, ela pensou para o Profeta, a formação de cada palavra um
triunfo. Eu tenho uma ideia. Você acha que isso pode ser feito?
Então ela lhe enviou seu plano, o que ela imaginou para o fim.
O orgulho do Profeta era inconfundível. Oh, pequenina, gosto da sua
maneira de pensar. Sim, acredito que é possível e vale a pena explorar.
Começaremos hoje à noite.
•••
No pátio, aninhada no matagal por onde havia entrado pela primeira vez no
Abismo, Eliana sentou-se na terra com as pernas cruzadas, considerando a
fenda escura pairando no ar à sua frente. Isso a puxou como uma boca ávida
por provar. Ela teve que segurar as raízes da árvore em seu joelho para se
manter longe disso até que ela estivesse pronta. Tudo perto da fenda – musgo
e folhas, a sujeira, seus seixos – tinha ficado preto e murcho. Os restos
desidratados estremeceram, puxados em direção à fissura como se resistissem
a ser engolidos.
Lembre-se, o Profeta disse a ela, no momento em que você não puder mais
me ouvir, deverá retornar a Avitas, assim como fez antes.
Eliana teria se irritado, se não estivesse com tanto medo. Você já disse isso.
E vou dizer de novo. Seu plano é fascinante, mas não é isento de riscos.
Risco. Uma palavra tão pequena para o que ela estava prestes a fazer. Os
sete santos precisaram de todo o seu poder para criar o Portão. Mais tarde,
sua mãe o abriu apenas com as mãos.
E agora, ali estava Eliana Ferracora, as mãos úmidas de suor e enroladas em
correntes de ouro.
Diga-me de novo o que é, ela disse. O Abismo.
O Profeta hesitou. Preocupo-me que a repetição só aumentará o seu medo.
Por favor. Falar sobre isso vai me acalmar.
Muito bem. O Abismo é, essencialmente, um abismo. Um vazio entre
mundos, como Zahra lhe disse, meses atrás. Sem imagem ou som. Sem
fisicalidade. Nada além de empírium bruto e irrestrito. Pelo menos, para os
anjos, isso tem sido verdade. Ocasionalmente, um deles pode sentir um
lampejo de cor, um sussurro de som. Visões que passam como meros
pensamentos antes que a escuridão vazia retorne. Mas parece que seu poder
permite uma experiência diferente. Para você, o Abismo é um lugar de
contínua ilusão corporal.
Também está cheio de inúmeros monstros enormes, não vamos esquecer,
disse Eliana secamente.
O Profeta emitiu uma vibração de divertimento. Sim. As cruciata que
entraram no Abismo de seu mundo – que os anjos chamaram de Hosterah –
podem realmente sobreviver lá. São feras estranhas e antigas que nem
mesmo os anjos entendem inteiramente. Mas pouca coisa pode sobreviver às
Profundezas. Os anjos não puderam e perderam seus corpos.
Eliana colocou as mãos no chão. A terra embaixo dela era uma âncora
familiar. O pânico bateu forte em seu coração. Imagens de seu corpo se
despedaçando passaram por sua mente.
Você não perderá seu corpo como os anjos perderam, o Profeta a lembrou,
embora sua voz vibrasse baixinho com a tensão. Eles não puderam passar
pelo Abismo ilesos, mas parece que você pode. Sua mãe também poderia, eu
acho, se ela tivesse tido a chance de tentar.
Como se isso fosse um conforto. Eliana apertou o queixo, girou os ombros.
Verei coisas em que não posso confiar, mas tenho que confiar nelas.
Acho que você verá, como no primeiro dia, imagens fracas do que acredito
serem mundos além do nosso, como se você estivesse caminhando pela
memória. Mas acho que não é memória – está acontecendo agora, ou
aconteceu, ou vai acontecer. Muitos mundos, todos conectados pelo Abismo,
nos quais o tempo não tem significado.
Eliana se concentrou em sua respiração estável. Você acha.
É uma teoria, o Profeta admitiu. Muitos estudiosos ao longo da história –
humanos e anjos – propuseram o próprio conceito que descrevo. Pense nisso.
Você foi capaz de ficar naquelas colinas, embora fossem meras ilusões, ecos
através do Abismo. Portanto, tudo o que você vê hoje, sejam estradas,
montanhas ou florestas, confie. Use. Acredite na ilusão. Deixe seu poder lhe
fornecer realidade.
Ou então cair no Abismo Sem Fim? Eliana perguntou ironicamente. Ser
consumida pelo Abismo?
Estou confiante de que você conseguirá evitar isso.
E Eliana sentia aquela confiança, enviada pelo Profeta em uma corrente
constante.
Ela desejou compartilhar do sentimento.
Em vez disso, um medo doentio corroeu seu estômago. Ela não conseguia
tirar de sua mente o céu violeta tingido de cinza com as sombras das feras.
Embora ela tivesse sobrevivido à sua primeira viagem ao Abismo, não havia
certeza de que sobreviveria à segunda. Mas se ela esperasse mais, se
assustaria com a visão desta coisa que ela havia feito.
Eliana prendeu a respiração, largou as raízes das árvores e passou
rapidamente pela fenda, esperando a mesma vista de colinas suaves e campos
vazios para saudá-la.
No lugar disso, viu uma cidade repleta de estreitas torres pretas que se
estendiam em direção a um céu escuro repleto de estrelas.
Ela congelou onde estava, no meio de uma ampla via pública abarrotada de
pessoas – mercadores carregando suas mercadorias, malabaristas lançando
orbes brilhantes, crianças conduzindo animais por cordas com nós. Alguns
dos animais ela reconheceu; outros, carnudos e manchados, não reconheceu.
Se olhasse muito diretamente para qualquer coisa, ela escapava de seu olhar,
tornava-se cinza e turva, então voava para fora de vista. Havia um desmaio
em tudo, uma leve descoloração, como se ela não estivesse olhando para algo
real, mas sim para as relíquias de um sonho.
Eles não me veem, disse ela, caminhando lentamente pela rua
movimentada. Formas escuras estremeceram nos cantos de seus olhos,
dando-lhe a sensação perturbadora de que algo vasto estava se fechando
sobre ela. Ela aprendeu rapidamente a manter os olhos focados à frente, ou o
mundo começaria a girar. Ela não conseguia pensar no que realmente a
rodeava: nada, infinito e escuro. A queda de seus pés na estrada ilusória
abaixo – isso, ela mentiu para si mesma, era real e verdadeiro.
Você entende, agora, como fizeram isso. A voz do Profeta estava grave. O
Abismo toca todas as coisas. As juntas entre os mundos aqui são finas e
flexíveis, o empirium capaz de ser moldado por quem tem o poder de fazê-lo.
Como seus santos de antigamente, que usaram seus talentos elementais para
condenar uma raça inteira.
Zahra me disse que era um tratado de paz, Eliana pensou calmamente,
combinando suas palavras com seu passo medido à frente. Os anjos iriam
entrar em outro mundo, um que era desabitado, e torná-lo seu. Os humanos
permaneceriam em Avitas, e as Guerras Angélicais terminariam.
Zahra disse a verdade, o Profeta respondeu. Foi uma mentira terrível.
Os santos não entraram no Abismo, porém, ou então teriam morrido. Não
está certo?
Eles trabalharam sua magia em Avitas, sim. Uma pausa. Mais ou menos.
Como isso foi feito?
Silêncio do Profeta.
Eliana lutou contra uma onda de impaciência. Como você sabe de tudo
isso?
Tenho guardadas comigo muitas histórias, foi a resposta enigmática.
Com suas muitas perguntas na língua, Eliana viu um menino passar
correndo. Tranças brancas caíam até a cintura e sardas pontilhavam sua pele
pálida. Ela olhou para ele por muito tempo; sua forma ficou turva e
desbotada, depois achatada, como uma sombra que caía no chão, e
desapareceu. Os paralelepípedos estavam escorregadios de chuva, e Eliana
pensou ter visto gotas caindo, mas quando olhou com mais atenção para
confirmar, a dor apareceu em seus olhos.
Ela se virou, com a cabeça doendo. Não saber o que era real e o que não
era, deixou seu estômago em nós nauseados.
Nada disso é real, respondeu o Profeta, e ainda assim tudo é real. Eu
acredito que o que você está vendo é um outro mundo, muito distante deste e
ainda tão próximo que se você estender a mão aqui no Elysium, você o
estaria tocando e não saberia. Muitos mundos repetiu o Profeta, sua voz
suave com fascínio, todos conectados pelo Abismo.
Um movimento acima dela, fraco no limite de sua visão, incitou Eliana a
olhar para cima, mas ela se recusou, com medo do que veria. Ela se lembrou
de Remy convulsionando a seus pés, Corien observando friamente de cima.
Machucou? ela pensou, sabendo a resposta. Quando você perdeu seu
corpo?
Outra batida de silêncio. Raramente conversavam sobre a identidade do
Profeta. Eliana muitas vezes temia que mergulhar muito fundo nessas
questões arruinasse tudo entre ambos.
Mas Eliana sabia a verdade desde a primeira vez que se falaram: o Profeta
era um anjo, quer decidissem falar sobre isso ou não.
Mais uma vez, o movimento acima cintilou. Eliana ergueu os olhos. Acima,
havia um céu noturno com estrelas mais numerosas do que as que ela
conhecia em Avitas. As ondas passavam pelas estrelas como se fossem
espuma na água negra, e nessa água nadavam criaturas invisíveis. Eliana
semicerrou os olhos e viu formas escuras fracas.
Seu sangue gelou. Cruciata?
Sim, o Profeta respondeu.
Elas podem me ver?
É possível.
Impelida por um instinto selvagem de apertar a garganta, Eliana alcançou
um portão de ferro e correu por um pequeno parque, onde as árvores estavam
pesadas pela chuva. Ela se escondeu atrás de uma e se agarrou ao tronco,
escondida sob as folhas ensopadas.
Mas então, por meio do medo, ela se lembrou: nada disso era real. Ela
poderia se esconder embaixo de uma árvore, dentro de uma casa, nas
profundezas de uma caverna, e nada disso importaria, pois na realidade ainda
seria apenas ela, Eliana, encolhida atrás de nada, vista por qualquer coisa que
espreitasse no Abismo. Ela não conseguia se esconder – ela estava sozinha e
vulnerável em um abismo sem fim, e esta árvore não era uma árvore, e o solo
em que ela estava não era solo de forma alguma. Ela existia no nada, e o nada
a cercava.
De repente, seus dedos passaram pela árvore, ela tropeçou e caiu. Uma
parte teimosa de seu cérebro esperava atingir o chão, mas em vez disso ela
continuou caindo, passando pelo chão que não estava realmente lá e em um
redemoinho giratório de escuridão.
Luzes piscaram, como se ela tivesse passado por uma tempestade. Ela
tentou fechar os olhos contra elas – eram muito brilhantes, estavam
machucando-a – mas não conseguiu. Estavam por toda parte, incrivelmente
brilhantes, como se todas as estrelas que vira estivessem agora explodindo
em borrifos de cor. O branco quente de um relâmpago e uma ameixa turva, o
preto-azulado perfurado de uma contusão recente. Ela tentou gritar, mas o ar
roubou sua voz. Não, não o ar. Nada. O empirium, o Profeta havia dito, cru e
irrestrito.
Gritos distantes e rugidos uivantes se chocaram uns contra os outros,
formando uma cacofonia terrível e discordante que bateu repetidamente em
seus ouvidos, como se ela estivesse caindo de um alto penhasco pelos ventos
caóticos da montanha.
Ela tossiu e engasgou, lutando para respirar. O calor varreu sua pele em
ondas dolorosas, e com uma explosão de terror, ela se perguntou se este era o
começo do fim. Ela perderia seu corpo assim como os anjos, sua pele
arrancada pelo Abismo.
Eliana, ouça minha voz.
Ela se atrapalhou com as palavras fracas e distorcidas do Profeta como se
fossem apoios para as mãos que ela pudesse usar para escalar para se livrar
da escuridão. O que está acontecendo? Eu não entendo!
Ouça-me e concentre-se no que estou dizendo. Lembra da cidade que você
viu, a estrada que você percorreu? Você deve recriar a ilusão, usá-la para se
firmar e encontrar o seu equilíbrio mais uma vez. Seu pequeno rio, Eliana –
lembre-se dele. Como isso a ancora ao seu próprio poder. Como ele a
protege de qualquer coisa que possa machucá-la.
Eliana se esforçou para pensar na cidade e em suas torres negras, no garoto
de tranças brancas, nos orbes brilhantes do malabarista. As imagens correram
para ela, despencando e frenéticas, e ela tentou agarrá-las, imaginando seus
lançamentos e o poder que carregavam como âncoras que poderiam prender o
mundo de volta ao lugar. E com cada imagem que captava e segurava vinha
um alívio do barulho estrondoso que batia em seus ouvidos. As luzes
brilhantes diminuíram; a escuridão giratória diminuiu e se estabilizou. Ela
começou a sentir as bordas de si mesma voltando – a bainha de sua camisola
beijando suas pernas, seu cabelo roçando seus ombros, o abraço frio de seus
receptáculos.
Aí está você. A voz do Profeta estava firme, não mais tão distante. Dê um
passo.
Eliana obedeceu e colocou o pé nos paralelepípedos molhados da estrada
escorregadia pela chuva da cidade-torre. Por um momento, não fez nada além
de se levantar sobre suas próprias pernas trêmulas e respirar. Agarrou-se ao
sentimento de sua própria fisicalidade, esperando que isso a colocasse na
base.
Confie na ilusão, disse a si mesma. Ela se agarrou à canção de seu poder,
vibrando em todas as veias, e em sua mente desenhou uma imagem do
mundo que tinha visto. Reconstrua a ilusão.
O garoto de tranças brancas passou correndo por ela. Tonta, se virou para
observá-lo quando ele mergulhou na rua movimentada e caiu nos braços de
um homem que se ajoelhou em frente a uma loja, esperando para abraçá-lo. O
cabelo branco do homem estava preso em muitos nós. Ele era, Eliana pensou,
o pai do menino.
Seus olhos se encheram de lágrimas enquanto os observava. Há quanto
tempo ela não era abraçada por alguém que a amava.
Volte para casa agora, o Profeta ordenou. Eu nunca devia ter permitido
isso.
Eliana se afastou da estreita luz verde ao longe que marcava seu caminho
para casa. Eu não posso. Ainda não. Eu não fiz o que vim fazer.
Eliana, você quase se perdeu no Abismo naquele momento. Isso também é
novo para mim. Se isso acontecer novamente, ou algo pior, posso não ser
capaz de ajudá-la.
Eliana flexionou os dedos. As correntes de seus receptáculos se moveram
suavemente em torno de suas mãos. Mas se eu voltar agora, posso morrer lá
da mesma forma, então posso ficar aqui e terminar.
O Profeta ficou quieto, sua raiva silenciosa uma nuvem no horizonte da
mente de Eliana, mas ela ignorou isso e fechou os olhos. Se concentrou no
leve peso dos discos de ouro descansando em suas palmas, lentamente
incitando seu poder a subir até que uma força gentil puxou seu peito. Esse
mesmo instinto a levou ao jardim do pátio, onde o ar era rarefeito.
Agora, esse puxão em seu peito, nos ombros e nos dedos, a impelia a seguir
em frente. Lentamente, abriu os olhos e encontrou a cidade negra pintada em
tons incandescentes de ouro empírico. Mais brilhante onde ela focou seu
olhar, escurecida em sua visão periférica.
O empirium é luminoso aqui, pensou para o profeta. Mais brilhante do que
qualquer coisa que eu vi em Avitas.
Como deveria ser. O Abismo é o empirium aliviado pela fisicalidade. A voz
do Profeta se suavizou. Acho que é por isso que você, filha de Rielle, pode
andar por aí sem dor. O empirium é a pegada de Deus. É o que criou os
mundos. E você carrega mais dentro de você do que qualquer ser que já
viveu.
Exceto minha mãe..
Uma pulsação trêmula, como se o Profeta sentisse uma leve dor. Sim,
pequenina. Exceto sua mãe.
Conforme Eliana caminhava pelas ruas sinuosas da cidade, seguindo o
apelo do empirium, os edifícios ficavam mais altos e próximos ao seu redor.
Ela manteve sua mente afiada, usando-a para criar um caminho que fosse
real, mesmo que a estrada sob os pés não fosse. Mesmo que isso fosse uma
ilusão, um mero eco de um mundo que vivia muito além de seu alcance, ela
acreditaria nisso. O caminho a conduziu por uma escada estreita de pedra, até
uma casa com as portas abertas para a noite.
Depressa, Eliana, disse o Profeta por fim. Horas passaram em um piscar de
olhos. Ele virá em breve. Podemos tentar outro dia, se for necessário. Não
permita que a teimosia ou o orgulho…
Aqui, Eliana pensou. Dentro da casa, no canto de uma sala que existia em
um mundo distante que não era o seu, ela havia encontrado o que procurava.
Oh, o Profeta disse, seus pensamentos suaves de espanto, pois eles puderam
ver pelos olhos de Eliana o lugar que havia encontrado: uma fenda no tecido
do Abismo, uma flexibilidade do próprio empírium, assim como descobrira
em Avitas. Só que aqui, no Abismo, isso se manifestou como um leve brilho
aquoso no ar. Era feito de mil cores, como se fosse um prisma captando a luz
do sol.
Eliana esperou mais um momento, deixando os olhos desfocarem e
voltando os pensamentos para dentro, para que o empirium pudesse guiar sua
visão dourada através do brilho para o que havia além. Ela sorriu ao ver isso,
então convocou seu poder, trouxe suas mãos ao fogo e empurrou de lado o ar
tremeluzente diante dela até que uma pequena fenda se abriu, cuspindo uma
luz azul incandescente contra seus dedos.
Além da fenda e abaixo dela, como se ela olhasse para baixo de uma nuvem
baixa, estava uma cidade, espalhada e branca. Torres em espiral cobertas por
asas estendiam-se para um céu claro do amanhecer. Havia o amplo abismo
que circundava a cidade, as pontes que a mediam.
E havia o palácio de Corien, suas cúpulas polidas e parapeitos elaborados
resplandecentes à luz cremosa do nascer do sol.
Eliana caiu no chão e sentou-se com força nos calcanhares. Ela apoiou as
mãos nas coxas, com medo de respirar muito forte, embora sua cabeça
girasse com o esforço. O mundo ao redor dela brilhou precariamente. Ela
piscou com força e, através de uma névoa cintilante, olhou para o buraco que
havia feito. Como parecia fraco, pequeno e pálido. Dedos de luz saíram de
seu perímetro, mas tão lenta e fracamente que Eliana temeu que pudesse se
curar em breve.
Isso é o suficiente por hoje, disse o Profeta. Apresse-se para casa,
pequenina, eu imploro.
Eliana se levantou, cambaleando ligeiramente. Devo torná-lo mais amplo.
Abrir ainda mais. É muito pequeno agora. As cruciata nunca vão passar.
Assim que eu for embora, pode se fechar.
Não há tempo para isso agora. Voltaremos e tentaremos novamente até que
seja feito. Ou criaremos outro plano inteiro.
Olhando para as formas tênues de Elysium, Eliana sentiu-se frenética. Não
posso esperar mais!
Se você tentar forçar demais seu poder de uma vez, pode se perder no
Abismo, ou pode atrair as cruciata para você antes de estar pronta – antes
de eu estar pronto – ou pode alertar Corien sobre nosso trabalho, e ele virá
pra você e para mim, e tudo estará perdido. A voz do Profeta era severa.
Você deve medir impiedosamente o uso de seu poder ou ficará vulnerável
quando mais precisar de força. Devemos trabalhar devagar e, ao mesmo
tempo, continuar nossos exercícios e reconstruir sua resistência. Decidimos
isso quando você me apresentou seu plano pela primeira vez.
Eliana sabia que isso era certo, mas mesmo assim ela se afastou da fenda
com lágrimas de frustração nos olhos. Ele está vindo?
Em breve, eu acho. E você deve ser inteiramente você mesma antes que ele
te veja.
Com o coração pesado no peito, Eliana saiu da casa e voltou correndo por
onde tinha vindo – passando pelo centro da cidade até suas ruas externas. Ela
viu a porta estreita que levava de volta a Avitas, uma vegetação distante
emoldurada por uma luz violenta e irritada.
É real, ela disse a si mesma, movendo-se tão rapidamente quanto ousou em
direção à sua saída. É real, é sólido. Ela diminuiu o passo, forçando-se a
sentir cada passo contra a estrada. Então ela estava na fenda e deslizando, sua
luz zumbindo contra sua pele. No solo além, segura em seu matagal
carbonizado, ela se virou e fechou a fenda com dedos trêmulos. Logo, apenas
uma tênue marca permaneceu, um truque de luz que alguém poderia
facilmente descartar. Ela o viu desaparecer, a imagem daquele buraco
insignificante no Abismo persistente em sua mente. Ficava enjoada ao pensar
em quanto trabalho restava para fazer e o que ela suportaria enquanto isso.
Aí está você, o Profeta disse, sua voz um leve tremor de alívio. Graças a
Deus. Eliana, acho que foi demais, ousado demais. Você não deve voltar
novamente. Existem outras maneiras de lutar contra ele. O buraco que você
esculpiu pode se alargar sozinho com o tempo. As cruciata vão cheirar.
— Mas quanto tempo isso vai demorar? — Eliana sussurrou. Ela estava
cansada demais para retornar a linguagem mental; ela se deleitou calmamente
com o som áspero de sua própria voz. — Não posso esperar que isso
aconteça. Devo fazer isso sozinha antes que lutar contra ele tire o que resta de
mim.
O Profeta não respondeu a isso, mas Eliana sentiu o manto firme de seus
pensamentos enquanto fugia de volta pelo palácio para seus aposentos. Um
gosto ruim inundou sua boca quando avistou suas portas, flanqueadas por
dois guardas de olhos cinzentos.
Não será para sempre, Eliana, veio a voz do Profeta, cheia de tristeza.
Estou trabalhando incansavelmente para ajudá-la de maneiras que você nem
conhece ainda, mas o momento deve ser preciso, ou perderemos nossa
oportunidade. Voltarei para você assim que for seguro. Voltaremos juntos.
Eliana não respondeu. Em vez disso, ela abriu as portas de seus quartos e
fechou-as atrás de si em silêncio.
26
Simon
Corien encheu sua cidade de beleza abduzida – rostos com notável simetria,
mentes estalando de talento. Poetas e músicos, artistas e carpinteiros. Cada
edifício era perfeito, projetado por mentes angelicais e feito por artesãos
roubados de suas camas em todo o mundo – prometia segurança para eles e
suas famílias se ao menos vivessem em Elysium e fizessem o que Sua
Majestade o Imperador dos Imortais ordenasse.
Enquanto Simon caminhava pela cidade até o Liceu, encontrou todos os
cidadãos que Corien havia reunido olhando para o céu – alguns
maravilhados, outros com medo.
Simon, passando por eles, manteve os olhos na estrada à frente, recusando-
se a ficar boquiaberto como o resto deles, mas a luz daquela coisa que
apareceu no ar não podia ser ignorada. Lavou tudo, iluminando a cidade com
cores estranhas. Branco e azul, índigo e ameixa. Era noite, mas a cidade
fervilhava de luz brilhante como o dia.
Apenas uma vez, nas portas do Liceu, Simon olhou para cima.
Acima da cidade, diretamente sobre seu coração, brilhava uma luz cegante
que não piscava, presa atrás das nuvens. Tinha aparecido há algumas semanas
e, a cada poucos dias, ficava maior e mais brilhante, como a cabeça de uma
violenta tempestade se formando. Alguns a descreveram como um rasgo nas
nuvens ou um hematoma. Era um ótimo olho, insistiram outros. Simon os
ouviu sussurrando durante suas patrulhas; a cidade inteira fervilhava com o
mistério disso.
Os anjos deram ao fenômeno um nome: Ostia.
Do outro lado das pontes e das planícies rochosas além, refugiados
clamando por entrada na cidade começaram a realizar sacrifícios elaborados
para obter o favor dos guardas angelicais postados no perímetro da cidade. A
luz no ar, eles acreditavam, significava que o tempo estava próximo para
algum grande ato de misericórdia ou derramamento de sangue do imperador.
Se o impressionassem, suas vidas seriam poupadas.
Se soubessem que os guardas angelicais que os observavam faziam aquilo
com nada além de diversão cruel, e que seus atos violentos não seriam
recompensados.
Simon lançou um último olhar frio para o céu. Ele sabia exatamente o que
Ostia era, assim como os anjos e muitos que viviam no Liceu. Era uma
lágrima no empirium, desajeitada, mas crescente, e além dela ficava o
Abismo. Logo não haveria apenas um portão contra o qual eles teriam que se
proteger, mas dois. A questão era: quem fez este aqui?
A resposta parecia óbvia para Simon, mas Corien passou semanas
atormentando Eliana e não encontrou nenhuma evidência que a ligasse a isso.
Seus gritos ecoaram por aquela ala do palácio dia e noite, com pouco silêncio
entre eles.
Simon entrou no Liceu e não olhou para trás.
•••
•••
“Eu sei que você sofre. Eu sei que você olha para a vida que vivemos e o
que o mundo se tornou e sente a raiva queimar em seu coração. Mas
pense em como eu te amo, e como Nerida ama Tameryn, e como as
famílias que vimos amam umas às outras como as famílias sempre
fizeram. O amor é a única força constante que nenhuma violência ou
desespero pode diminuir. Devemos nos apegar à luz desta verdade,
Gato, mesmo quando o mundo escurece. Especialmente então.”
— Carta aprovada de São Ghovan, o Destemido, para sua irmã
Catarina, arquivada na Abóbada das Idades, em Orline, capital de
Ventera
•••
Navi não lamentou deixar o Pântano Kavaliano para trás, embora isso
significasse viver em um navio que aparentemente estava determinado a
matá-la.
Com a boca azeda pelo gole que Ysabet lhe dera, Navi tentou finalmente se
mover. Nos primeiros dois dias após o desembarque, ela não conseguiu sair
da cama e do balde ao lado.
Mas a corrente de ar parecia ter acalmado seu estômago, e ela deixou sua
cabine para o convés. Seus ventos tiveram sorte até agora, levando-os para
longe de Vesper a uma velocidade que deixou Ysabet em êxtase. Navi estava
na porta do porão principal, de olhos fechados. O ar fresco a invadiu,
trazendo consigo os cheiros de sal e da resina espessa e oleosa que a
tripulação de Ysabet usava para polir o convés.
Navi abriu os olhos e observou seu pessoal trabalhar. Seu povo. A
tripulação de Ysabet de sessenta, e seu próprio exército de quarenta e sete.
Cento e sete humanos e um único espectro contra o oceano, a frota imperial e
todos os horrores que os aguardavam em Elysium.
Ela passou pelas imagens escuras que suas preocupações evocavam e
caminhou pelo convés, aprendendo seus passos e curvas, admirando o brilho
suave de suas grades. A tagarelice diligente da tripulação acompanhou sua
patrulha. Ela ficou feliz em ouvir alguma animação em suas vozes, agora que
as ilhas Vesper não eram mais visíveis no horizonte. Nenhum navio imperial
os estava caçando; nenhum perigo beliscava seus calcanhares.
Ainda não.
Em seguida, Navi olhou para a proa do navio e para a elaborada figura de
proa esculpida que os apressados carpinteiros de Ysabet haviam recebido
ordens de fabricar com muito pouco aviso: uma mulher, rosto erguido, braços
estendidos, tentando alcançar o céu. Seu cabelo caía em ondas e cachos até a
cintura, e em torno de sua cabeça havia uma coroa de raios largos.
Ao lado da figura de proa, o ar mudou estranhamente.
Navi parou por um momento. O espectro tinha contado a ela tudo o que
tinha acontecido nos meses desde que eles se viram pela última vez, e Navi
ainda estava tentando absorver tudo. Zahra, presa por um tempo em uma
lâmina maligna até que Eliana trouxe Remy de volta da morte e libertou
Zahra no processo. Uma reunião com Patrik e os espiões da Coroa Vermelha
na cidade de Festival. A noite do Jubileu do Almirante, quando Festival tinha
caído para uma força angelical com a intenção de encontrar Eliana por fim e
trazê-la para o Imperador.
E agora, longas semanas depois, Zahra e Patrik, os únicos sobreviventes
daquele dia terrível, finalmente chegaram para se reunir aos amigos.
Navi só gostaria de ter sido poupada de tudo o que acontecera nesse
ínterim.
Ela se juntou a Zahra, permanecendo em silêncio ao lado dela enquanto se
orientava na proa balançando do navio. Ela ansiava por ver algo mais do
espectro do que essa onda de ar.
A voz de Zahra veio melancólica. — Eu também desejo isso, Alteza.
Os respingos do mar subiram das ondas abaixo, beijando o rosto de Navi
com uma névoa fria. Ela agarrou o corrimão, seu corpo apertando com força.
— Você não precisa ficar aqui comigo — disse Zahra. — Deite-se, se
desejar.
— Ysabet me deu um caldo para me acalmar até encontrar minhas pernas
do mar — disse Navi, cansada. — Eu nunca tinha ouvido falar de pernas do
mar antes. O termo evoca imagens divertidas. Não tenho certeza do que eu
teria. Nadadeiras, talvez, ou barbatanas como uma donzela do mar. — Ela
torceu o nariz. — Espero que não sejam tentáculos.
Zahra deu uma risada indiferente e depois ficou em silêncio mais uma vez.
Tantos sentimentos sombrios fermentaram ao seu redor que até Navi,
inexperiente como era quando se tratava de decifrar os sentimentos dos anjos,
podia sentir a força deles.
Ela olhou para o fantasma, hesitou, então estendeu a mão, palma para o
céu. — Posso, Zahra?
Uma pausa, e então Zahra disse com voz rouca: — Por favor.
Navi moveu os dedos pelo ar onde o eco de Zahra flutuou. Em sua mente
cansada, ela colocou a imagem de como conhecia Zahra, como Eliana
descreveu em suas visões. Ela imaginou um anjo alto com pele negra rica e
cabelos brancos esvoaçantes, asas brilhantes e chamejantes, e então imaginou
puxando aquele anjo para um abraço caloroso. Ela beijaria a bochecha de
Zahra, se pudesse. Acariciaria seus braços até dormir.
Navi estremeceu, sua pele formigando com o frio de Zahra. Tocá-la era
como passar os dedos por água gelada, aveludada e flexível.
A voz de Zahra estava rouca de emoção. — Obrigada, Navi. Foi uma
grande gentileza. E eu vi isso vividamente. Você pode não estar acostumada
a falar comigo dessa maneira, mas sua mente é afiada e clara. Com prática,
você se destacaria, eu acho.
— Você tem minha permissão para falar diretamente à minha mente, Zahra
— ofereceu Navi. — Deve ser mais cansativo para você falar assim.
— Cansativo, sim, mas eu gosto de ser capaz de projetar pelo menos um
pouco de mim de volta ao mundo físico. Além disso, é mais respeitoso, eu
acho, preservar essa distância. Especialmente porque muitos da minha
espécie não o fazem.
— Muito bem. — Navi observou a água, escolhendo cuidadosamente as
palavras. — Você pode ir embora, se quiser. Você pode viajar mais rápido do
que nós. Você anseia por vê-la, eu sei.
A risada de Zahra foi amarga. — Anseio? Uma pequena palavra para o que
sinto. Uma garota que eu amo como a minha própria filha que foi arrancada
de mim diante dos meus olhos. Eu os vi levá-la naquela praia em Festival.
Observei o navio do almirante se afastar de mim e não pude fazer nada. O
Imperador me manteve longe dela. Eu gritei contra ele. Eu uivei por ela. Não
serviu para nada. Eu falhei com ela.
— Oh, Zahra, você não…
— Não. Não me console com isso.
Navi esperou um momento. — Eu falo sério. Vá até ela, se isso te ajudar.
— Eu não posso. O Profeta proíbe.
Isso surpreendeu Navi. Ela franziu a testa para o lugar onde ela imaginou
que o rosto de Zahra estaria. — Por quê?
— Devo ficar com vocês — Zahra disse categoricamente, — e manter seu
navio escondido, depois ajudá-los a navegar no Mar de Silarra, que ficará
lotado de navios imperiais. Será necessário muito esforço para conseguir isso,
mas devo fazê-lo mesmo assim. Eliana não tem amigos em Elysium. Não há
coroa vermelha, ninguém que a ame. Ela não pode fazer o que deve ser feito
sozinha. Você e Ysabet, sua tripulação, seu exército de perdidos, Patrik e
Hob… Ela precisará de todos vocês, quando chegar a hora. Não podemos dar
a ela o exército que ela merece, mas podemos dar a ela nós mesmos. E assim
ficarei aqui e esconderei você de procurar olhos negros.
Um momento se passou enquanto Navi digeria isso. — Você pode fazer
isso? Esconder um navio inteiro?
— É para isso que nasci. Não para me vingar dos humanos ou servir a um
imperador louco. Eu nasci para servi-la, para amá-la. Isso é o que eu
acredito. Eu os levarei até a Rainha do Sol para que vocês possam lutar ao
lado dela e ajudá-la a finalmente vencer esta guerra. Esse é o grande culminar
de todos os meus longos anos, a recompensa por aquela era sem fim nas
profundezas. Para servir a grande esperança do mundo e proteger seus
amigos com toda a força concedida pelo poder que me resta.
Navi olhou para as mãos através de um brilho de lágrimas. Humilde, ela
encontrou sua voz lentamente. — Você é muito corajosa, Zahra. E se você
discutir comigo, vou ficar com raiva.
Zahra riu. Uma frieza tenra roçou o braço de Navi.
Em silêncio, observaram as ondas escurecerem enquanto atrás delas o sol se
juntava ao horizonte. Enquanto a luz diminuía, Navi fixou uma imagem em
sua mente e a enviou desajeitadamente na direção de Zahra: ela mesma, e
Zahra como antes, parada ao lado dela. A cabeça de Navi descansando em
seu braço, seus dedos amarrados em amizade, seus corações gêmeos
devotados ansiando pelo leste.
•••
A noite estava escura quando Navi finalmente se sentiu bem o suficiente para
visitar os aposentos da capitã. A noite estava tranquila. Os membros da
tripulação estavam em seus postos designados, as ondas firmes enquanto
batiam e enrolavam.
Navi desejou que seu próprio coração estivesse firme. Como vibrava, como
apertava seu peito e garganta. Ela tocou a trava da porta de Ysabet. Vagando
pelo convés depois de deixar Zahra, ela deixou sua mente fazer perguntas,
imaginando todas as prováveis desgraças e possíveis triunfos. Havia pensado
em tudo o que acontecera e em tudo o que aconteceria. Zahra contara a ela
sobre Harkan, como ele morrera sob seus cuidados. Como Simon ficou de
olhos frios no cais e matou seus amigos e aliados. Um animal de estimação
do Imperador, declarando devoção mesmo enquanto tramava uma traição.
Navi não conseguia pensar muito nisso. Ela sabia dos sentimentos de Eliana
por Simon. A morte na praia teria sido horrível de testemunhar, a
compreensão de seu fracasso um soco no estômago – mas assistir Simon
matar seus amigos, entender quem realmente tinha sua lealdade, teria sido a
devastação mais cruel. Era uma coisa rara, encontrar alguém em quem
confiar, alguém para receber seu amor e protegê-lo. Navi conhecia essa
verdade muito bem. E então ter essa confiança quebrada, aquele amor
provado uma mentira…
Navi rejeitaria totalmente a violência, se pudesse. Mas se ela encontrasse
Simon novamente, ela o mataria.
Ela bateu na porta de Ysabet e entrou.
Ysabet estava sentada à sua mesa, sua superfície repleta de estoques de
alimentos, registros de armas, mapas do mar e estrelas.
Ela deu as costas ao trabalho com um largo sorriso. — Aí está você. Como
você está se sentindo? Você gostaria de mais do meu chá maravilhoso?
Navi continuou antes que ela perdesse a coragem. Uma coisa rara, de fato,
encontrar alguém em quem pudesse confiar. Alguém que talvez recebesse seu
amor e o protegesse.
— O que eu gostaria — disse, com a voz trêmula apenas um pouco, — é
fazer algo que temo que possa parecer presunçoso.
Imediatamente, a sala mudou, o ar entre elas ficando mais forte. Uma corda
dourada, esticada e cantante.
Ysabet se recostou na cadeira, seus olhos castanhos brilhando à luz de
velas. — Vá em frente, princesa.
Navi parou por um momento para respirar, para firmar as mãos, e então
desfez o fecho da capa. Caiu a seus pés. — Navegamos para a guerra e,
possivelmente, para a morte.
— Sim — concordou Ysabet, extasiada.
— Eu disse a você em minha tenda que já faz muito tempo que não sou
amada. — Navi tirou as botas, desabotoou as calças e as tirou. Com as pernas
nuas em sua túnica, ela observou a boca de Ysabet se abrir, a curva de seus
lábios.
O peito de Ysabet subiu mais rápido. — Sim.
Navi desabotoou a gola da túnica e a puxou pela cabeça. Nua, ela fez uma
pergunta silenciosa a Ysabet.
— Sim — sussurrou Ysabet, e então observou maravilhada como Navi se
acomodou suavemente em volta.
As mãos de Ysabet vieram até ela de uma vez – uma em seu quadril, a
outra acariciando as pontas de seu cabelo. — Meu Deus, Navi — disse com
voz rouca. — Você vai me matar esta noite. Olhe para você.
— Sim, olhe para mim. Me olhe enquanto eu te falo isso. — Navi acariciou
os arcos de seda das sobrancelhas claras de Ysabet. — Eu também disse em
minha tenda que não se tratava apenas de mentir para você, e você disse o
mesmo.
Ela nunca tinha visto o rosto de Ysabet tão suave, como se todas as suas
farpas, toda a sua bravata, tivessem derretido com o toque de Navi.
— Sim — ela sussurrou.
Navi baixou a boca para a têmpora de Ysabet. — É possível amar alguém
que você conhece há apenas algumas semanas?
— Sim. Sim. — Ysabet procurou o rosto de Navi, desajeitada em seu ardor.
Ela beijou o queixo de Navi, seu queixo, seu pescoço.
— Se vou morrer logo — disse Navi, fechando os olhos, — gostaria de
enfrentar a morte com a lembrança de você em minha mente.
A voz de Ysabet flutuou até ela, cheia de emoção. — Sim. — Ela deslizou
a mão pelas costas nuas de Navi, traçando a linha cicatrizada de sua coluna.
— Sim. — Ela puxou Navi para um beijo e Navi choramingou contra sua
boca, pois se sentia sedosa e corada nos braços de Ysabet, segura como
raramente se sentia. Mesmo na guerra, pode haver isso – amor, esperança e a
simplicidade do prazer.
Ela riu, a alegria borbulhando até os dedos dos pés. — Você não pode dizer
mais nada? — ela brincou.
Ysabet tocou o rosto de Navi, olhando para ela como se contemplasse todas
as maravilhas do mundo. — Beije-me — disse ela, um pequeno apelo em sua
voz, uma pequena curvatura incrédula, como se ela não pudesse acreditar no
que segurava.
Navi sorriu, passou os dedos mais uma vez pelos cabelos brancos e macios
de Ysabet e se curvou para obedecer.
28
Eliana
“Não posso contar ao meu pai ou aos meus irmãos, ainda não, pois não
quero criar esperanças prematuramente. Mas fui visitada em segredo
por um dos tenentes do imperador, e ele diz que sou bonita o suficiente
para ganhar um lugar no palácio do imperador como uma convidada
favorita! Ele pode me chamar hoje, na verdade, e eu sei exatamente que
vestido usar, vermelho como…”
— A última entrada no diário de Demetra Vassos, cidadã humana de
Elysium, datada de 3 de abril, ano de 1018 da Terceira Era
Rielle sabia depois de sua primeira ressurreição que era impossível continuar
trabalhando no subsolo. Todo aquele peso acima dela, o vulto negro e frio da
montanha. Ela precisava ver o céu.
Corien não pediu mais explicações. Ele ordenou que uma dúzia de seus
soldados e uma equipe de cem adatrox construíssem um altar na montanha ao
lado de sua fortaleza. Uma passagem de pedra saía de uma das janelas do
andar mais alto da fortaleza, perto dos quartos de Corien, atravessando a neve
até este edifício negro e alto, escuro contra o branco infinito da montanha.
A estrutura do altar lembrou Rielle do Portão, o que a encantou. Três
degraus levaram a um pedestal plano de rocha negra. Havia uma mesa de
pedra para os corpos se deitarem e pilares de pedra flanqueavam o local onde
ela ficaria. O próprio pedestal tinha asas recém-gravadas, uma tempestade
delas, penas tão finas que Rielle se ajoelhou em suas peles para passar os
dedos por suas delicadas ranhuras.
— Isso foi feito tão rapidamente — disse ela, olhando para Corien. —
Quatro dias. Como?
Começou a nevar. Muita neve, pequenos flocos rápidos, dançaram através
do altar. Um vento frio agitou a bainha da capa preta de Corien. Sua gola de
pele escura estava salpicada de branco.
Ele encolheu os ombros com a pergunta dela e estendeu a mão. — Eles não
tinham escolha.
Ela pegou a mão dele e se levantou. A luz estava diminuindo. Perto do
horizonte, além das nuvens que cuspiam neve, manchas de céu índigo
mantinham o último raio dourado de sol.
— Traga-me o próximo — ela murmurou, e o beijou distraidamente. Seus
dedos formigaram, famintos e ansiosos. — Eu quero fazer isso de novo.
•••
Corien veio até ela ao amanhecer. Ele ficou ao seu lado na luz cinza enquanto
a neve caía silenciosamente do céu.
Em silêncio, ele a observou tecer asas para o anjo renascido em sua mesa.
O corpo estava deitado de bruços, nu e totalmente branco de frio.
Uma vez, Corien tinha mostrado a ela onde as asas se juntariam às costas –
não com juntas de carne e osso, como com pássaros ou morcegos, mas com
um simples crescimento de luz florescendo. Ele havia desenhado para ela
com sua mente, mostrado a ela a aparência das asas em vôo. Não apenas
quaisquer asas, mas as suas, há muito perdidas. Pela primeira vez, ele havia
se mostrado como antes: Kalmaroth, guerreiro e rebelde. Seu nome
significava “luz imortal” em Qaharis, e ele havia entendido que significava
que ele estava destinado à grandeza. Pele pálida e cabelo escuro, alto e
esguio, olhos azuis brilhantes e asas saltando de suas costas – luz na raiz,
com pontas de sombra. Além das asas e da altura de seu corpo, Kalmaroth era
muito parecido com Corien agora.
Rielle pensava nisso enquanto trabalhava. Um sorriso brincou em seus
lábios. Ela gostava de pensar nele anos atrás, escapando do Abismo e
encontrando um humano que refletia sua própria beleza perdida.
Como uma tecelã paciente sentada em seu tear, Rielle puxou fios do
empirium do ar. Seus olhos viram ouro e nele havia muitas coisas. Lá estava
a corda longa e enrugada da coluna vertebral do cadáver. Havia lugares
escuros e tempestuosos dentro da massa de músculos e tendões onde as asas
deveriam começar. Seu corpo se agitou com dores, carretéis quentes de
tensão cavando em seus ombros, seus pulsos, a parte inferior de suas costas.
Apesar do frio intenso da montanha, gotas de suor correram umas pelas
outras por sua testa.
Mas sua mente estava clara. Seus pensamentos dispararam como pássaros
de rapina com asas em faca, rápidos e de olhos âmbar. Ela guiou o empirium
com a agulha de seu poder, e com cada punhalada de prata rápida, seu sangue
saltou mais alto, procurando mais.
Quando terminou, o anjo levantou-se da mesa e tropeçou em seus pés. Um
dos atendentes do palácio, com os dentes batendo até dentro das peles, correu
para oferecer ao anjo um manto para se cobrir.
Mas o anjo o ignorou e, em vez disso, se ergueu no ar com um grito de
júbilo. Suas asas eram incandescentes, estrelas gêmeas de luz branca fixadas
em suas costas. Elas não se moviam como asas de pássaros canoros, aquele
bater indigno. Em vez disso, se inclinavam sutilmente quando necessário para
mudar o curso do vôo. Se estreitavam ao mergulhar; se expandiam ao subir.
Logo, a forma do anjo havia desaparecido. Apenas a luz de suas asas
permaneceu, deslizando rápido de pico a pico.
Rielle lambeu os lábios rachados. — Traga-me outro.
— Vamos comer primeiro. — Corien recuperou seu manto de pele do chão.
— Você não come desde ontem.
— Eu não preciso comer.
— Você precisa. E precisa usar isso. — Ele colocou a capa sobre os ombros
dela, sobre o vestido vermelho fino que ela usava há dias. O tecido, antes
fino, agora cheirava a suor. — Você vai ficar doente de outra forma.
Ela o golpeou para longe. — Prefiro continuar a trabalhar. Traga-me outro.
Seus olhos claros estavam imóveis. — Você está trabalhando há sete dias,
Rielle, com muito pouco descanso.
— Eu estou ciente. Traga-me outro.
— Você ainda é humana. Você precisa dormir, comer e se aquecer.
Ela riu. — Que coragem você tem. Você sussurrou em meus sonhos por
meses a fio, roubando meu sono até que eu voltasse para você. E agora você
diz que preciso descansar.
Afastando-se dele, Rielle encontrou um de seus tenentes, um anjo feminino
de olhos gelados com pele marrom mel e tranças pretas. Ela não conseguia
lembrar seu nome e nem se importou em tentar.
— Você — ela disse. — Traga-me outro de uma vez.
Durante horas, a tenente esteve observando Rielle com olhos brilhantes. Ela
nem mesmo olhou para Corien antes de voltar correndo para a fortaleza, dois
anjos de posição inferior em seus calcanhares.
Rielle olhou para o céu. Em torno de seu altar ondulava um anel mutante de
sombras como se ela estivesse nas profundezas da água, olhando para a luz
através das ondas trêmulas. Centenas de anjos incorpóreos se aglomeraram
perto para assistir seu trabalho. Como ela se deliciava com o sentimento de
admiração deles. Seus pensamentos ansiosos batiam em sua mente como
mariposas batendo em uma janela, desajeitados enquanto perseguiam a luz
além do vidro.
— Não, Rielle — disse Corien com firmeza, aproximando-se dela. —
Vamos entrar agora.
— Não vamos. E se você não escolher outro anjo para mim, eu mesmo o
farei.
Ela deixou seus olhos desfocarem, e seu poder fluiu para iluminar a encosta
da montanha. No reino dourado de sua visão, seu poder atingiu as mentes dos
anjos como uma corrente em chamas se chocando contra as rochas. Os
padrões de suas ondas eram hipnotizantes. Com cada ondulação, as sensações
voaram de volta para ela, relatando. Sabores, sons, texturas.
Ah. Havia um que ela gostava.
Ela dirigiu seu poder para a esquerda. Um dos anjos se livrou do resto e
veio voando para seus braços abertos.
Rainha de luz e sangue. A voz do anjo tremeu quando ela o puxou para a
mesa escura de seu altar. Obrigada por me escolher. Você tem meu coração,
minha rainha; você tem meu amor e minha lealdade.
Rielle segurou o anjo com firmeza contra a pedra, o tecido de sua mente
esticado entre as mãos como uma tela desenrolada. A impaciência formigou
sua pele. Ela olhou para a passagem que levava à fortaleza. A neve estava
caindo mais rápido, velando as paredes pretas.
— Seus tenentes são lentos — ela observou. — Eu preciso de um corpo.
Os ombros de Corien estavam rígidos de raiva. — Solte-o e entre comigo,
agora.
— Eu quero fazer isso de novo.
— E você vai, meu amor, mas não até amanhã.
Ela apertou a mandíbula, lutando para conter a boca trêmula. Ela sabia que
ele estava certo; ela podia sentir como suas mãos tremiam, o balanço de seu
equilíbrio. Seu estômago e garganta pareciam à beira de um colapso, secos e
comprimidos, desesperados por comida.
Se ao menos ele não a tivesse impedido. Enquanto ela trabalhava, ela não
perceberia nada disso.
— Eu ressuscitei apenas trezentos anjos — ela murmurou.
Ele riu baixinho. — Em sete dias. Uma conquista notável.
— Precisamos de mais do que isso para fazer tudo o que sonhamos.
Ela lhe enviou um pensamento simples: Preciso de mais.
— Celdaria não vai a lugar nenhum — disse em voz alta, ignorando seu
apelo silencioso. — O mundo não vai a lugar nenhum e nada pode nos
impedir.
— Minha mente arde por mais disso. — Ela queria chorar de frustração; ela
queria socar a mesa de pedra em duas. — E ainda assim meu corpo está fraco
demais para isso.
— Você é apenas humana — disse suavemente.
— Eu sou mais do que humana! — ela rugiu para ele. Debaixo de sua voz
soou um mais profundo, uma distorção furiosa. O estrondo de alguma
criatura se mexendo no fundo do oceano. Rielle o encarou com um sorriso
frágil. — E não é isso que você sempre quis?
Corien estava muito quieto. Acima deles, a nuvem de anjos circulando se
encolheu.
Então Corien se aproximou, a boca pairando ao lado de sua bochecha. —
Você sabe que não desejo fazer você entrar comigo, mas farei isso se você
não me deixar escolha.
— Faça isso e eu vou te matar — ela rosnou.
Uma risada suave. — Você não vai.
Ele tinha ficado fora de sua mente desde que ela abriu o Portão e voltou
para o alcance dele, mas agora ela o sentia peneirando cuidadosamente as
bordas externas de seus pensamentos. Ele não estava errado. Ela não o
mataria. Matá-lo a destruiria. Não sobraria ninguém no mundo que pudesse
vê-la sem medo.
O anjo em suas mãos vibrou de excitação. Você pode criar minhas asas
para lançar luz iridescente? Antes, minhas asas brilhavam como cerúleo e
violeta à luz das estrelas, âmbar e lavanda ao sol.
A tenente de olhos gelados de Corien emergiu da fortaleza, flanqueada por
seus inferiores. Em seus braços estava o corpo de um homem nu de pele
escura. Rielle ficou encantada com a presunção da mulher. Normalmente,
Corien insistia em ser o único a tirar a vida do humano.
— Rielle, eu juro que vou fazer isso — disse Corien. — Vou mantê-la
muda por dias enquanto coloco comida em sua boca.
— Deixe-me — ela sibilou, observando ansiosamente enquanto o corpo se
aproximava do altar. Houve uma agitação em seu peito, derretida e
borbulhante. — Eu devo trabalhar.
Quando o tenente subiu no pedestal, Corien agarrou o braço de Rielle,
puxando-a contra seu corpo.
Uma raiva branca e brilhante explodiu atrás de seus olhos. Ela o empurrou
para longe dela com um grito agudo. O pedestal se partiu em dois. Corien
cambaleou, quase caiu.
E Rielle não pensou antes de fazer isso. Um furioso instinto a comandou, e
ela obedeceu ansiosamente. O poder abrasador fervendo dentro dela
transbordou, queimando seus braços e pernas. Ela torceu o anjo entre as mãos
como se ele fosse uma mera corda trançada. As cordas de sua mente se
esticaram, se desgastaram e se romperam. Ele era argila em suas palmas,
pedaços arrancados e esmagados.
Ignorando seu uivo de dor, Rielle bateu palmas e o esmagou no
esquecimento.
O mundo caiu sob seus pés. A paisagem à sua frente desapareceu. Em seu
lugar, um mar negro sem fim, um céu estrelado.
Assustada com a imensidão deste lugar, como ele a sugava como um
redemoinho, ela lutou contra sua atração, alcançou Corien com sua mente e
suas mãos, mas não conseguiu encontrá-lo.
Ela abriu os olhos.
Ela estava no mar negro que a levou depois que ela matou os Obex na
Patria. Ondas rasas com bordas douradas batiam suavemente em suas
canelas. O fundo do mar era macio e em constante mudança, um cobertor
móvel de pedrinhas minúsculas. Acima, uma profusão de estrelas – azul
vívido, ametista e rosa, dourado e marfim e cores que ela não conseguia
nomear. Muitos deles pintaram o céu negro que pareciam uma massa sólida,
uma folha de joias trançadas com apenas algumas pedras faltando.
— Você finalmente veio — veio uma voz atrás dela.
Ela virou. Uma criança com um vestido branco simples não estava longe
dela. Ela era pequena e tinha bochechas redondas, pele pálida e cabelos
escuros rebeldes que iam até a cintura. Seus lábios se curvaram em um
sorriso malicioso e familiar.
Rielle deu um passo para trás, com a pele arrepiada de frio. — Quem é
você?
A garota riu. — Você sabe quem eu sou.
Ela sabia. Os tons de sua própria voz soaram nessas palavras. A criança era
ela mesma como era aos cinco anos de idade, exceto que seus próprios olhos
eram verdes, e os olhos desta criança eram de um ouro brilhante. Uma aura
de luz brilhou ao seu redor, como se ela eclipsasse o sol.
— Eu não entendo. — Rielle olhou para trás por cima do ombro, como se
fosse encontrar Corien ali. Mas ela viu apenas o mar, infinito e brilhante. —
Eu morri?
— Ainda não — a garota respondeu alegremente. — A casca do seu corpo
está lá, mas o seu coração, o seu verdadeiro eu, está aqui comigo. Não é a
morte, embora pareça. É o próximo.
— Eu gostaria de me ver — disse Rielle, doente de medo.
A garota torceu o nariz. — Se você insiste.
Diante dos olhos de Rielle apareceu uma visão de si mesma, imóvel e com
os olhos vidrados, de volta à montanha. Sua pele e lábios estavam
mortalmente pálidos. Corien sentava-se nos degraus de seu altar, segurando-a
nos braços, implorando para que ela despertasse. Ele gritou para que seus
oficiais trouxessem os curandeiros de seus laboratórios.
Rielle estremeceu, observando essa versão imóvel de si mesma. Ela
certamente parecia morta.
— Não se preocupe. — A voz da garota estava alta e clara. — Você não me
ouviu? Você ainda não está morta. Agora vem. Eu tenho esperado tanto
tempo para você chegar. Caminhe comigo. Eu gostaria de mostrar o que está
aqui.
Rielle hesitou, então pegou a mão da garota. Eles caminharam pelo mar
raso de ouro negro. A bainha do vestido branco da criança flutuou na
superfície da água.
— Não tenha medo — disse a garota alegremente, levando-a adiante. —
Sou só eu aqui, e não desejo machucar você. Acho que você vai gostar muito
daqui. Acho que você vai preferir.
Rielle estremeceu. Ela desejava soltar a mão e também envolver a criança
em seus braços. — Onde estamos?
— Nós estamos em todo lugar. Não solte minha mão, por favor. Isso
tornará tudo mais fácil para você. Sua mente ainda é bastante crua em sua
humanidade.
Então a garota puxou Rielle para a frente e o céu começou a se mover. As
estrelas passavam por elas em riachos de cores brilhantes, mas a água
permanecia calma, como se de alguma forma cada passo que davam cobrisse
uma extensão de muitos quilômetros acima e apenas alguns centímetros
abaixo.
Rielle gritou e tropeçou, sua mente incapaz de compreender a
incongruência, mas o aperto da garota era forte. Sua risada soou acima do
rugido do céu.
— Para onde você está me levando? — Rielle engasgou.
— Eu quero que você me veja — a garota respondeu. — Eu não sou
bonita?
— Eu não posso olhar. — Lágrimas escorreram pelo rosto de Rielle. Seu
peito se apertou. A força das estrelas passando rapidamente, como corriam
como rios furiosos. O som iria esmagá-la.
— Compreendo. Seus olhos são simples, mas nem sempre serão. Já
começou.
Horas se passaram. Por fim, Rielle abriu os olhos o suficiente para ver seus
pés se movendo trêmulos na água negra. A superfície do mar não refletia a
luz das estrelas. As ondas mantinham sua própria luz, como se iluminadas
por fogos que ardiam profundamente debaixo d'água.
Ela encontrou sua voz, rouca pelo desuso. — Você é o empirium, não é?
— Você deve abrir os olhos totalmente e olhar ao redor. — O sussurro da
garota a fez pular.
Elas haviam parado de se mover e agora estavam sentadas no mar raso.
Algo fez cócegas na nuca de Rielle, levando seu rosto para o céu. Ela lutou
contra isso, embora doesse de vontade de olhar para cima. Se ela visse
qualquer coisa pendurada no céu acima dela, ela nunca iria querer desviar o
olhar. Em vez disso, ela observou a água quente bater em sua barriga
inchada.
Brincalhona, a garota passou as mãos pelas ondas e sorriu para Rielle. — É
aqui que você pertence. Olhe para cima e diga que você concorda. Eu
gostaria que você concordasse.
Rielle hesitou. Os seixos do fundo do mar eram sedosos entre seus dedos,
cada um pulsando com o ritmo acelerado de seu batimento cardíaco.
— Não vai olhar para cima? — a garota disse mais uma vez. — Você não
vai se arrepender.
Rielle não conseguiu mais resistir. Ela ergueu o olhar para o céu.
Entre as estrelas, globos de luz e rocha giravam lentamente – alguns
grandes e próximos, outros pequenos e distantes. Listras de cores em fitas;
outros eram planos ou turvos de nuvens. Rielle ansiava por alcançá-los e
tocá-los. Ela se sentou sobre as mãos.
— O que são? — ela sussurrou.
— Eles são mundos. Você gostaria de um?
Rielle ignorou a pergunta. — Eu não entendo. Meu mundo não é assim.
— Seria se você vivesse nas estrelas e olhasse para baixo. É uma coisa
bonita, Avitas. Verde, azul e branco. Uma pedra preciosa riscada de nuvens.
O coração de Rielle bateu com força para fora dela. Ela lutou para formar
pensamentos. — Diga-me: você é o empirium?
A garota parecia desapontada. — Tudo é o empirium.
— Mas deve haver um único lugar ou ser mais poderoso que os outros. Um
lugar onde tudo começou. Um ser que começou.
— Deve haver? — A garota inclinou a cabeça. — Talvez você seja o ser
que o iniciou, pois você é do empirium, e o empirium é todas as coisas.
Talvez nada tenha começado e sempre foi. — Seus brilhantes olhos dourados
não piscaram. — Talvez eu seja o empirium, um dos muitos que existiram, e
chegou a hora de eu renascer como outro.
A respiração de Rielle ficou fraca. — Você fala bobagem. Você é o
empirium ou não? Você é a única coisa que nos fez?
— Você tentaria me matar se eu fosse? Usurpar minha casa? — A voz da
garota tinha ficado fria. — Seu amante angelical poderia desejar que você
fizesse. As perguntas dele são pálidas. Sua visão é estreita. Sem você para
ajudá-lo, ele é insignificante.
A garota se levantou e encontrou a mão de Rielle mais uma vez. — Há
mais para ver. Você é a primeira em uma época que foi forte o suficiente para
me ver. Eu gostaria de compartilhar tudo de mim com você.
Rielle ergueu os olhos enquanto caminhavam, as ondas batendo em suas
pernas. O céu era um tumulto de cores estrias, planos sobre planos, como se o
rio de estrelas tivesse se partido em facetas que agora fluíam em uma direção
diferente.
— Se você é do empirium — Rielle começou, — e eu também, então não
estou vendo apenas você. Eu estou me vendo. Em tudo isso – essas estrelas,
esses mundos. Eu estou refletido neles.
A voz da garota borbulhava de alegria. — Agora você está começando a
entender. Venha! Rápido!
Rielle a seguiu, uma nova graça hábil em seus passos. Quão lindo era o céu,
quão glorioso em sua estranheza. Ela mergulhou a mão nele, puxou para
baixo um dos mundos giratórios. Uma pequena joia violeta, nuvens amarelas
raivosas girando em metade de sua superfície.
— Faça o que quiser — sussurrou a garota. Elas se sentaram na beira do
mar, os pés balançando. Abaixo, uma cachoeira mergulhou silenciosamente
na escuridão. — Você ama esse mundo?
Rielle examinou o mundo, girando-o lentamente para a frente e para trás
entre as palmas das mãos. — Não sinto nada por ele.
— E se seres vivessem sobre ele?
— Eles vivem? Quantos?
— Milhões.
Alarmada, Rielle lançou o mundo de volta ao céu. Ela se levantou e
observou as estrelas absorvendo-o. — Eu gostaria de sair agora.
A garota franziu a testa. — Mas há muito mais para ver.
— Estou cansada.
— Você não estará para sempre.
Os olhos de Rielle se encheram de lágrimas. Ela não conseguia desviar o
olhar do céu. Ela nunca quis parar de olhar para ele; ela queria arrancar todos
os mundos das estrelas e correr os dedos por elas até memorizar suas
texturas. E ainda assim seu corpo ansiava por quietude, pelo conforto quente
da cama de Corien. O conflito azedou sua língua, como se ela tivesse
mordido metal.
A garota se levantou. Seu aperto na mão de Rielle era de ferro, seu sorriso
cintilante. Rielle reconheceu aquele sorriso; ela mesma o havia usado.
E ela percebeu, com uma vertiginosa onda de clareza, que falava para o
empirium, sim, mas falava também para a parte de si mesma que queria ver
mais, fazer e desfazer e nunca parar.
— Venha comigo — a garota implorou. — Você verá. Estamos nos
levantando, você e eu. Há muito mais para fazermos.
Elas mergulharam de volta no mar, cruzando-o sob as estrelas turbulentas.
O ritmo da garota estava mais rápido agora. As estrelas e seus mundos se
borraram em folhas de cores ilegíveis.
O movimento chamou a atenção de Rielle. Ela olhou para a esquerda, viu
reflexos de si mesma e da garota de olhos brilhantes segurando sua mão, o
mar negro a seus pés, o caos acima. Incontáveis reflexos, infinitos no
horizonte. À sua direita, a mesma coisa, e antes dela, e atrás dela. Um prisma
infinito de si mesma. Ela girou, procurando, e quando chamou por Corien,
sua voz aterrorizada ecoou contra si mesma. Corien? A única palavra
melancólica se expandiu, ondas de som colidindo até que seus ouvidos
tocaram.
— Eu tenho muito mais coisas para te mostrar — disse a garota, franzindo
a testa. Ela puxou Rielle mais rápido. — Venha. Deste jeito. Estou sozinha e
estou cansada. É tão bom ter uma amiga. Por favor?
A pequenez da garota era uma ilusão. A força com que ela arrastou Rielle
pela água foi a de dez mil tempestades contínuas. Rielle tentou parar, cravou
os calcanhares no macio fundo do mar, mas a visão de seus reflexos, todos
fazendo a mesma coisa, a desorientou. Ela perdeu o equilíbrio e caiu, mas a
garota a segurou.
— Veja! — A garota passou o braço pelo céu. As estrelas pararam em suas
correntes estrondosas, depois se fundiram e encolheram. Pérolas brilhantes de
luz pontilhavam o céu vazio, cada uma cercada por um brilho fraco.
Com os joelhos fracos de medo, Rielle ficou maravilhada com eles. Seu
sangue rugia em seus ouvidos, assim como quando rios de estrelas brilharam
no céu. Seu poder saiu de seu peito – dezenas de dedos procurando, todos
procurando por mais. Mais luz para ser deslumbrada, mais mundos para
tocar, mais velocidade. VEla desejava cruzar um oceano ainda maior do que
aquele a seus pés. Para pular de pérola em pérola, aqueles olhos opalescentes
olhando para ela do céu, e seguir o caminho que tomaram.
— O que são? — ela respirou.
A bochecha da garota pressionada contra seu braço. — Algum dia você vai
descobrir — ela murmurou, sonhadora.
Rielle, por favor! Volte para mim!
Seu coração saltou ao som distante da voz de Corien. A dor de seu corpo
voltou para ela, como se carregada por trás de suas palavras: as dores de seu
estômago faminto, sua boca ressecada. Ela deu um passo para trás, desviou o
olhar do céu.
A garota abriu a boca e uivou de desespero furioso, e o mundo mergulhou
na escuridão.
Rielle saiu correndo pela água, embora ficasse com o coração partido por
deixar essa parte de si mesma, tão pura e inabalável em seus desejos. Ela
tinha tantas perguntas, tantos mundos para tocar. A cada passo, ela se
perguntava se encontraria outro penhasco e cairia do limite de todas as coisas.
— Você não pode me deixar! — a garota lamentou. — Eu não vou
permitir!
Algo quente e afiado puxou os braços de Rielle, seu peito, seus joelhos
trêmulos. Ela olhou para trás e não viu nada. Um abismo negro, seus pés
afundando no fundo do mar e um silêncio terrível que ameaçava sufocá-la.
Ela enviou um pensamento para Corien. Quanto mais ela corria da garota,
mais claramente ela conseguia pensar. Segure-se em mim. Não me deixe ir.
Eu estou com você. Sua voz era firme e estável. Ele enviou imagem após
imagem, cada uma menos turva em sua mente. A fortaleza erguendo-se
escura e quadrada, as montanhas em suas camadas de neve. Corien,
embalando seu corpo em seus braços. Ela viu seu próprio corpo inerte
tremeluzir, a chama de uma vela oscilando ao vento. Ondas de ouro passaram
sobre a pele de seu corpo, e ela sabia que eram muito quentes, pois ela podia
sentir aquele calor abrasador em seu próprio sangue, como ele pulsava como
água fervendo, mas Corien não se esquivou. Ele a abraçou e segurou,
sussurrando o nome dela contra seu cabelo, e com sua mente ele a chamou
para a frente através do mar. Os lamentos penetrantes da garota aumentaram
em espiral, tão ensurdecedores que Rielle pensou que seu crânio iria se
estilhaçar antes que ela escapasse.
Então, uma parede de frio bateu contra ela, empurrando o ar de volta para
seus pulmões.
Ela explodiu em si mesma, sentiu a queda delicada e úmida de neve em
suas bochechas e o calor de Corien ao lado dela, e começou a rir. Lágrimas
encharcaram seu rosto; seu peito doeu com soluços selvagens.
— Onde você foi? — Corien perguntou baixinho, uma vez que sua risada
suavizou.
Ela pressionou o rosto contra o casaco dele. — Eu fui para o que vem a
seguir — ela sussurrou. — Entrei dentro de mim e vi o que sou e o que vou
me tornar. Eu olhei para as estrelas e as puxei para baixo e as segurei.
Corien estava quieto. Ela podia sentir sua mente examinando cada palavra
sua.
— Você gostaria de voltar? — ele perguntou finalmente.
Rielle esquadrinhou o Nothern Reach, curiosa para o que aconteceu em sua
ausência. Seu poder percorreu o empirium, então trouxe imagens de volta
para ela: A avalanche que ela causou quando o empirium a levou, como ele
desceu a montanha e achatou dezenas de adatrox. Pedregulhos de gelo se
chocaram contra um dos recintos que abrigavam os condenados dragões de
gelo. Vários deles agora estavam livres, fugindo para as montanhas. Ao lado
mancavam seus companheiros Kammerat, aqueles pequenos reclusos
borsválicos estranhos e obsessivos que preferiam a companhia de dragões à
de humanos.
E, Rielle percebeu com um lampejo de interesse, eles não estavam
sozinhos.
Havia Obritsa e seu guarda, Artem. E Ilmaire Lysleva também, e outro
jovem ao lado dele. Outro Kammerat.
Imediatamente, Rielle sentiu a raiva crescente de Corien. Agora que ela
estava segura, ele os mataria.
— Não os machuque — ela ordenou. — Quem é aquele homem? Eu não o
reconheço.
— O nome dele é Leevi — Corien disse a ela, sua voz fina com raiva. —
Um dos Kammerat, um ex-prisioneiro aqui. Ele escapou meses atrás, e agora
ele retorna com o rei de Borsvall, e mais Kammerat também, todos vieram
para salvar seus parentes. — A voz de Corien enrolou. — Que heróico.
— Deixe-os ir — disse Rielle, já perdendo o interesse no pequeno grupo
frenético.
Cada pensamento de Corien se cerrou em punhos. — Eles vão pensar que
me venceram.
— E se eles o fizerem? — Rielle tocou sua bochecha e o virou para encará-
la. — Não importa no final. Nós vamos matá-los. Eles viverão e nos verão
subir. Eles morrerão por suas próprias mãos, incapazes de suportar a agonia
de seu fracasso. Qualquer uma dessas coisas que aconteça, sua alegria terá
vida curta.
Ela sentiu Corien se acalmar, observou as linhas de tensão derreter de seus
ombros. Ele pressionou o polegar em seu lábio inferior rachado.
Ela sorriu para ele. — Entende? Eles não são nada para nós. Deixe-os fugir
para suas montanhas como coelhos correndo assustados. Eu gostaria de vê-
los perceber a futilidade da fuga. Eu gostaria de assistir aquele amanhecer em
seus rostos. Não é?
Corien pressionou a sobrancelha na dela e fechou os olhos. Sua mente se
levantou para encontrar a dela suavemente, e quando ele olhou para ela em
seguida, ele estava calmo.
Então, um pensamento ocorreu a Rielle. — Eu o matei? — ela perguntou,
pensando no anjo que ela esmagou entre as mãos.
Uma pausa. Os dedos de Corien acariciaram seu braço. — Matou.
— Eu mal me lembro disso — ela disse, e ainda assim a garota dentro dela,
olhos brilhando em seu mar infinito, podia se lembrar de cada partícula do
anjo, como foi abri-lo com seu poder. Mera poeira em suas mãos, facilmente
varrida.
— Sinto muito — acrescentou, porque sentiu que era a coisa a dizer.
— Ele significava muito pouco para mim. Uma criança de uma família
comum, nem forte nem inteligente. — Corien fez uma pausa. — E de
qualquer maneira, você não quis fazer isso.
Ele estava certo. A morte daquele anjo a havia enviado para aquele lugar
sob as estrelas impetuosas, e ela já desejava voltar para lá.
Mas antes que ela pudesse fazer isso, ela precisaria ser mais forte ainda, em
mente e corpo, para que pudesse entender o que viu e ser digna disso.
Mais do que isso, ela precisava olhar mais uma vez nos olhos daqueles que
a temiam. Ela pensou em todos eles, seus nomes facilmente arrancados de
suas memórias distantes: Audric, Ludivine, o Arconte, Miren Ballastier,
Rainha Genoveve. Tal, morto em suas mãos.
Ela desenhou cada um de seus rostos e sentiu uma onda de raiva branca e
fria. Eles estariam xingando ela mesmo agora. Eles ainda pensariam nela
como humana, olhariam para ela como se ela fosse um deles. Eles talvez
ainda se imaginassem capazes de acalmá-la.
Os lábios de Corien roçaram sua testa. Ela podia sentir como o confundia,
com que cuidado ele se movia em sua mente, como se estivesse pisando
descalço em volta de um vidro quebrado.
— O que você quer, Rielle?
— Quero que todos vejam a maravilha de nosso grande trabalho e caiam de
joelhos — disse ela. — Eu quero caminhar no mar negro e escalar as luzes
para ver o que está além delas.
Ela olhou para cima, sua visão pintando Corien em tons de ouro. Ele
respirou fundo e, alegremente, ela se perguntou o que parecia para ele agora
que tinha um mundo em suas mãos. Quando eles voltassem para a fortaleza,
ela iria para o espelho antes de comer um único pedaço de comida.
— Quero olhar mais uma vez nos olhos daqueles que me temem e mostrá-
los o que me tornei — disse ela, com a voz trêmula ao pensar nisso. — Vou
mostrar a eles que estavam certos em me temer e que nunca mais vou me
esconder do verdadeiro alcance do meu poder.
Então Rielle olhou além de Corien para o céu cinza opaco e se consolou
imaginando-o refeito – vasto, rugindo e incandescente com estrelas.
30
Ludivine
•••
A cada curva nos estreitos túneis escuros abaixo do Monte Cibelline, uma
parte de Audric prendia a respiração, esperando que o próximo trecho de
escuridão revelasse Ludivine.
Ela ficaria sem fôlego de excitação. As notícias vieram do norte. Ela não
tinha fugido; ela simplesmente se escondera para fazer contato seguro com
Rielle. E agora, Rielle estava voltando para casa, acelerando para o sul em
alguma outra besta divina gloriosa que descera das nuvens para salvá-la – o
que, é claro, deixaria Atheria com ciúmes, Ludivine apontaria. Ele riria e a
abraçaria, e então ela protegeria a todos – Audric, Sloane, Evyline e a Guarda
Solar, Kamayin e seus soldados – enquanto se esgueiravam para Baingarde
na calada da noite. E quando Rielle chegasse em casa, o castelo seria seu
novamente.
Mas os túneis permaneceram escuros, os únicos sons eram de sua
respiração, os passos de seus amigos e aliados, e a outra parte de Audric, a
parte menos esperançosa, sabia a verdade:
Ludivine não voltaria.
Eles escalaram um estreito lance de escadas de pedra no fundo da terra.
Evyline insistiu em liderar o caminho; ela, Sloane e a Guarda Solar haviam
feito essa rota meses antes e sabiam disso muito bem. Audric ficou
maravilhado com a passagem do tempo. Embora apenas um pouco mais de
quatro meses tenham se passado desde seu casamento condenado, as longas
semanas desde então pareceram uma era inteira, e que havia se casado com
Rielle na mesma noite do golpe de Merovec – a mesma noite em que ele
fugiu de casa – parecia bizarro, até impossível.
Eles escalaram um estreito lance de escadas de pedra no fundo da terra.
Evyline insistiu em liderar o caminho; ela, Sloane e a Guarda Solar haviam
feito essa rota meses antes e sabiam disso muito bem. Audric ficou
maravilhado com a passagem do tempo. Embora apenas um pouco mais de
quatro meses tenham se passado desde seu casamento condenado, as longas
semanas desde então pareceram uma era inteira, e que havia se casado com
Rielle na mesma noite do golpe de Merovec – a mesma noite em que ele
fugiu de casa – parecia bizarro, até impossível.
Este era um momento em que Ludivine teria estendido a mão para ele. Não
foi corvadia, ela teria dito naquela voz baixa e firme dela. Foi sabedoria.
Você não poderia saber quais aliados permaneceram para você. A visão que
Corien enviou já havia lançado a noite ao caos. Você é o herdeiro do trono.
Se você tivesse ficado naquela noite e morrido, o reinado de Santa Katell e
seus descendentes teriam realmente se perdido.
Mas a mente de Audric permaneceu sua, vazia exceto por seus pensamentos
giratórios. A cada passo, mesmo ao escalar a montanha, se sentia afundar de
volta no lugar pesado e escuro de onde mal começara a emergir nas últimas
semanas. Ele desejava dormir, enfiar-se em um canto frio desses túneis que
seus ancestrais haviam construído e fechar os olhos para sempre.
Mas então Evyline, no início da procissão, abriu a porta oculta esculpida na
montanha e eles emergiram nos jardins crescidos atrás de Baingarde.
Audric ficou de lado na entrada do túnel, permitindo a passagem dos
outros, e olhou para o mundo verde familiar ao seu redor. Tão longe do
castelo, os jardins se estendiam indômitos. Uma profusão de samambaias e
trepadeiras emaranhadas de flor da lua cresceram em torno da porta oculta.
Um tapete de agulhas de pinheiro suavizou o solo, e acima as árvores ficaram
altas e próximas.
O cheiro era tão familiar que Audric se sentiu tonto – o espesso tempero
verde das árvores trêmulas, a doçura das folhas velhas apodrecendo na terra.
Além da vegetação selvagem perto da porta, bem longe na escuridão de jade,
uma única árvore se erguia, seus galhos finos pesados com botões verdes
brilhantes e pequenas flores rosa. As primeiras flores da primavera.
Audric não conseguia desviar os olhos deles. Ele beijara Rielle pela
primeira vez sob uma daquelas árvores. Ele sabia que não deveria pensar
nisso, mas não podia deixar de fazer isso. O calor de Rielle em seus braços, a
suavidade de sua boca. Os ruídos ansiosos que ela havia respirado contra seu
ouvido, as mãos trêmulas em seus cabelos. A doce dor de felicidade por
finalmente se permitirem beijar.
Sloane tocou seu ombro. Ele esperou até que seus olhos estivessem secos,
então se afastou da árvore. Kamayin estava murmurando instruções para seus
elementais, os receptáculos levemente acesos. Evyline e a Guarda do Sol
formaram um círculo, todos recitando os sete rituais elementais.
Audric mal suportava olhá-los, aquelas pessoas que haviam decidido que
lutariam ao seu lado. Eram tão suaves na luz fraca do jardim, tão quebráveis.
Se ele nunca tivesse amado Rielle, estariam ali? Um usurpador se sentaria em
seu trono? Seu pai estaria morto e sua mãe uma casca de seu antigo eu?
Teria sido mais fácil, ele sabia, se nunca a tivesse amado.
E ainda assim, se tivesse escolha, ele faria de novo, mesmo sabendo o que
estava por vir. Ele a perderia mil vezes se isso significasse que primeiro teria
a chance de amá-la.
Eles cruzaram os jardins até as catacumbas, onde outra rede de túneis
levava à própria Baingarde. Elas se conectaram aos túneis da montanha em
várias junções subterrâneas; não havia necessidade de vir à superfície. Mas
Audric queria ver os jardins, embora soubesse que isso o machucaria.
Perto das catacumbas, as piscinas de observação brilhavam planas e pretas,
como pedras polidas cravadas no solo. Memórias de si mesmo, Rielle e
Ludivine, jovens e indiferentes, esvoaçavam pelas poças como sombras.
Sloane ficou perto dele enquanto eles corriam por entre as árvores. Seu
cabelo preto curto brilhava azul ao luar pálido. O orbe de obsidiana polida de
seu cetro zumbiu com força imediata, e as sombras se agarraram a ela com
amor, como crianças às pernas de seus pais.
— É estranho, não é? — ela murmurou. — Lembrar da última vez que
estivemos aqui? Foi uma noite tão selvagem, há muito tempo, e tão cheia de
terror. Quase não me lembro da aparência de Baingarde.
— Eu me lembro — Audric disse imediatamente. — Eu o vejo em meus
sonhos. Sinto o gosto dos bolos de canela que costumava roubar da cozinha
para Rielle. Posso sentir o cheiro do couro velho dos meus livros. Eu posso
sentir o casco frio da égua de pedra de Santa Katell no Salão dos Santos. Eu
costumava sentar e orar quando era criança, quando não conseguia dormir.
Eu poderia te contar cada escada que range na ala dos criados. Há uma
tapeçaria no segundo andar, perto do antigo escritório de meu pai. Ela retrata
Santa Nerida em pé no meio de um mar revolto, as ondas se quebrando em
cada lado dela. Há um fio dourado em seu tridente que se soltou. Bem no
eixo, abaixo do pino do meio.
Eles haviam alcançado as catacumbas. Sloane o observava com firmeza,
sem dizer nada. Os outros esperavam nas sombras, armas em punho,
esquadrinhando as árvores em busca de inimigos.
— Lembro-me de tudo — sussurrou Audric.
Uma chamada quebrou o silêncio da noite: três longos toques estrondosos
da velha torre de vigia no perímetro da cidade. Audric só tinha ouvido o som
quando Miren e seus acólitos do Forge visitaram as buzinas para fazer
reparos e refrescar a magia tecida em seu metal.
O som daquela buzina significava que inimigos haviam sido avistados.
Outra buzina respondeu, esta mais alta e mais forte. Kamayin, sorrindo,
ergueu o queixo; seus soldados ficaram mais altos. Era a Buzina da Rainha
do exército Mazabatian, anunciando sua chegada. A rainha Bazati estaria com
eles, e o general Rakallo. Mil soldados mazabatianos. Mais viriam, uma vez
que eles tivessem retomado a cidade. A verdadeira batalha ainda estava por
vir.
Audric se virou para enfrentar seu próprio pequeno exército. O menor raio
de luz escapou do topo da bainha de Illumenor, iluminando os rostos reunidos
ao seu redor com um brilho assustador.
— Que a luz da Rainha nos guie — disse ele sem vergonha, pois Rielle
pode tê-los deixado, mas as orações pronunciadas em seu nome não perderam
nenhum de seus poderes.
E ainda havia outra rainha a ser encontrada, se a profecia fosse verdade. Ela
carrega uma menina, Ludivine lhe dissera semanas antes, e sempre que
pensava nisso, seu coração doía de amor. Era a luz de sua filha que agora
seguiam? Ou era simplesmente a luz que surgiu ao acreditar que havia razão
para continuar?
Audric chamou a atenção de Kamayin. Ela acenou com a cabeça uma vez,
seus receptáculos zumbindo ouro em seus pulsos. Então ele encontrou
Evyline, elevando-se acima de todos eles. As rugas ao redor de sua boca
pareciam mais profundas do que Audric jamais vira, o cinza de seu cabelo
muito mais parecido com o branco.
Como os últimos meses envelheceram todos eles. Quão esgotados pela dor
eles se tornaram.
— Que a luz da Rainha nos guie — respondeu Evyline, e a Guarda Solar
ecoou sua oração.
Não havia mais nada a dizer. Audric correu para a escuridão fria das
catacumbas, o ar pesado com o peso de vidas vividas e perdidas, e liderou seu
pequeno exército feroz para os túneis que o levariam finalmente para casa.
•••
“Querida irmã. Você não vai acreditar na história que tenho para lhe
contar, então vou esperar até que nos encontremos pessoalmente e você
possa ver por si mesmo as circunstâncias extraordinárias de minha nova
vida. Basta dizer que há dragões e há um garoto e eu amo todos eles.
Estamos a caminho de casa para encontrar você – embora não
diretamente – junto com uma marque e seu guarda, e vários outros que
libertamos de uma prisão angelical secreta no extremo norte. Devo
parecer louco para você, mas pela primeira vez na minha vida me sinto
eu mesmo. Verei você em breve e sei que preciso fazer muito para
reconquistar sua confiança, mas saiba de uma coisa: estou finalmente
pronto para a guerra. Estou pronto para lutar por nossa casa. E não vou
deixar você de novo.”
— Carta codificada de Ilmaire Lysleva para sua irmã, Ingrid, datada
de 30 de março do ano 1000 da Segunda Era
Audric estava sentado nos jardins atrás de Baingarde quando sua mãe o
encontrou.
— Achei que poderia encontrá-lo sob esta árvore — disse ela, sem
insinuação ou desprezo, e se acomodou ao lado dele na grama macia da
primavera. A terra estava preta e úmida, as árvores estavam pesadas por
causa da chuva daquela manhã. O crepúsculo pintou a escuridão com um
violeta suave, e as flores rosadas da árvore da tristeza acima estavam
finalmente começando a se abrir.
Audric forçou um pequeno sorriso. — Se alguém mais me pegar deprimido
debaixo da árvore onde beijei a Assassina de Reis pela primeira vez, eles
podem tentar tomar minha coroa novamente.
Ludivine, tentou mais uma vez, você está aí?
Ele tinha tentado durante toda a tarde, tinha perdido quatro horas sob esta
árvore enquanto o sol se transformava de mel em lavanda.
Onde quer que ela estivesse, ainda se recusava a responder.
— Todos os soldados mazabatianos receberam alojamento — começou
Genoveve. As dobras cinzas de seu vestido de linho agruparam-se sobre a
grama molhada como pétalas caídas.
— Você vai estragar seu vestido — Audric assinalou.
— Eu tenho muitos vestidos — Genoveve disse suavemente. — Os
comandantes e o máximo da infantaria que pudemos acomodar estão no
quartel. O resto deles estão alojados por toda a cidade. Muitas pessoas
abriram suas casas. Odo montou barracas improvisadas bem luxuosas em
seus jardins no telhado.
— Eu imagino que os comandantes em nosso quartel tenham ciúmes de
quem teve a sorte de conseguir aquelas camas.
— Sem dúvida.
Audric soltou uma risada suave. Falar sobre o procedimento deveria ter
ajudado a limpar sua mente perturbada, mas seus pensamentos ainda
pareciam nublados. Ele os mudou para os montes de notas empilhadas
ordenadamente em sua mesa.
— Mandei cartas para Ingrid Lysleva e a regente Kirvayan — disse ele. —
A Rainha Fozeyah virá com mais tropas quando estiverem prontas. Dez mil
até primeiro de maio.
Genoveve acenou com a cabeça, as mãos brancas e ainda no colo. Suas
bochechas estavam encovadas, todos os seus ossos pronunciados, mas a
torção trançada de seu cabelo ruivo estava imaculado, e seus olhos cinzas
eram de sílex.
— Na ausência do Arconte — disse ela, — o Grão Magister Guillory
assumiu a liderança da Igreja. Os outros magísteres concordaram. Foi
unânime.
Audric pensou na cadeira vazia de Tal na câmara do Conselho Magisterial,
como Miren – costas retas e ombros quadrados – se recusava a olhar para ela.
— Um sunspinner no comando da Igreja — disse Audric, sorrindo
fracamente
— E um sunspineer no trono de Katell.
Genoveve estava olhando para ele agora. Ele manteve os olhos fixos nas
piscinas negras de visão, sentado em silêncio no mar de grama a cerca de seis
metros de distância.
— E as torres de vigia? — perguntou.
— Já começaram as obras das oito que rodeiam a cidade.
— E os construtores que designei para os dezesseis restantes?
— Eles e seus suprimentos estão a caminho das estradas do norte. No final
do mês, teremos uma linha de torres daqui até a fronteira nordeste, cada uma
delas protegida por earthshakers e metalmasters.
Audric assentiu. — E eu tenho cavaleiros prontos para partir de manhã para
os territórios de todas as principais casas. Gourmeny e Montcastel. As
propriedades de Valdorais em Far Fallows.
Após uma pausa, Genoveve pigarreou. — E o que você vai fazer com os
soldados da Casa Sauvillier? Nossas prisões estão transbordando.
— Vou me encontrar com eles individualmente e, em seguida, reintegrá-
los, se eu puder. Não podemos dispensar uma única espada.
— E se houver alguém que não queira lutar por você?
— Eu não desejo lutar por mim.
Genoveve pegou sua mão. — Audric
— Eles podem ir se quiserem. Não terei um exército rebelde lutando nas
minhas costas. Mas estarão mais seguros aqui do que em outros lugares, e
vou lembrá-los disso. Cada elemental daqui até Borsvall estará se reunindo
em Âme de la Terre. Se forem embora, terão que enfrentar os anjos por conta
própria. Acho que a maioria deles vai ficar e lutar e manter sua antipatia para
si.
— Eles não desgostam de você, Audric — disse Genoveve delicadamente.
— Eles não gostam dela.
— Na verdade, não gostam de mim, e alguns até me odeiam, e talvez
desejassem que Merovec tivesse me cortado ao meio, porque fui tolo o
suficiente para amá-la. E prefiro não falar sobre Rielle, mãe.
Um longo momento de silêncio. — Sloane me contou sobre as semanas
após sua chegada em Mazabat. Ela me contou sobre o peso que você tem
carregado. A mudança em você.
Algo queimou no peito de Audric, uma faísca quente de raiva. Ele estava
grato por isso. Quando estava com raiva, não conseguia pensar em tudo o
mais.
— Ainda sou a mesma pessoa de sempre — disse ele com firmeza. — Eu
ainda posso liderar lutadores. Eu ainda posso disciplinar soldados traidores.
— Illumenor, deslizando rapidamente pelo corpo de Merovec. A memória
gostava dele, mostrava-se uma dúzia de vezes por dia. — Eu ainda posso
matar.
— Vejo a tristeza em seus olhos, Audric.
Por fim, ele a olhou. — E eu vejo a tristeza no seu. Que bem pode resultar
desta conversa?
Genoveve o observou com firmeza. — Por anos, você insistiu com seu pai
para estudar a profecia. Você implorou que ele lesse os livros que você trazia
para ele, para se educar nos escritos dos grandes estudiosos elementais. E ele
nunca o fez. Você sabe por quê?
Foi uma mudança na conversa que Audric não esperava. Ele piscou. —
Não.
— Porque estava com medo. — Genoveve olhou para as piscinas, as
catacumbas um fantasma cinza distante além delas. — A linhagem de Katell
não tinha verdadeiros sunspinners há gerações. E então você nasceu e
começou a brincar com a luz do sol ainda no berço, antes mesmo de forjar
seu receptáculo. Seu pai sabia o que isso significava, e eu também. Sempre
que ele olhava para você, via o presságio de uma guerra que há muito se
convenceu de que nunca aconteceria em vida. O mundo estava em paz. O
Portão permanecia forte. E então você nasceu. O Portador da Luz. Mais
poderoso do que ele jamais fora, e mais corajoso também. Você sempre
esteve disposto a considerar o pior e enfrentá-lo de frente. O fato de seu
poder, a ideia de uma guerra – essas coisas nunca te assustaram, nem as
palavras de condenação de Aryava.
Audric negou com a cabeça. Ela o tinha perdido com aquilo. — Estou
sempre com medo.
— E ainda assim as pessoas que lutam por você não sabem disso. Aos
olhos deles, você é Katell renascido. E agora você atrai para você as coroas
de Mazabat e Borsvall. Nossos aliados, descendentes dos santos, assim como
você. Borsvall quase se tornou nosso inimigo, mas você forjou uma nova
amizade com eles. — Ela fez uma pausa. — Foi um anjo que assassinou a
pobre Princesa Runa há dois anos?
— Esse é o meu palpite — Audric disse severamente. — Na esperança de
acender o fogo da guerra entre Celdaria e Borsvall.
— E ainda assim você não permitiu que isso acontecesse. Você ousou fazer
amizade, e agora Borsvall pode vir lutar ao nosso lado. Você constrói torres
de vigia e ordena que nossos metalmasters forjem milhares de novas espadas.
Você anda pelas ruas de sua cidade e fala com seu povo não como se você
fosse um rei e eles seus súditos, mas como se você fosse um celdariano e eles
também. Eles estão assustados, mas você não. Isso é o que eles veem.
— E, Audric — Genoveve acrescentou baixinho, seus dedos pressionando
suavemente os dele, — eu me preocupo que se você não falar sobre ela – pelo
menos para mim, ou Sloane, ou Miren, ou Princesa Kamayin – então tudo
que você está sentindo vai crescer e partir você. Nosso povo não pode ver
isso. Se vão enfrentar a morte nas pontas de espadas angelicais, eles nunca
devem olhar para você e ver o quão profundamente você foi ferido. Devem
olhar para você e ver um ícone. Não um homem, mas um símbolo. Não
Audric, mas o Portador da Luz. Não é justo, mas a coroa também não é, e
somente se você usá-la, temos alguma esperança de sobreviver ao que está
por vir. Disso estou certa.
Ela suspirou e o silêncio seguiu. Eles assistiram Atheria brincar entre os
pinheiros distantes, vibrando alegremente enquanto ela perseguia gaios
brilhantes de seus ninhos.
— Talvez se eu tivesse sido uma mãe para ela — disse Genoveve, — se eu
a tivesse acolhido em nossa família com gentileza e calor, não estaríamos
onde estamos agora.
Audric parou um momento para respirar. Ele não estava mentindo – ele não
queria falar sobre Rielle. Mas sua mãe estava ao seu lado, e nem sempre
estaria
— Não é tão simples assim — disse ele categoricamente. — Talvez se o
Arconte não a tivesse forçado a suportar as provações. Talvez se Lorde
Dervin não tivesse nos pegado nos beijando no jardim. Talvez se eu não a
tivesse afastado em nossa noite de núpcias.
Ele piscou para conter as lágrimas. — Ou talvez nada disso importasse e,
independentemente do que fizéssemos, teríamos acabado exatamente onde
estamos. Talvez a profecia de Aryava signifique exatamente o que diz: há
uma rainha da luz e uma rainha das trevas. E talvez Rielle tenha sido sempre
a última, e nada do que disséssemos a ela poderia ter mudado isso.
Genoveve fez um som suave, considerando. — Você já se perguntou onde
está a outra rainha? Se Rielle é realmente a Rainha de Sangue, então…
— Ela está grávida. — Foi a primeira vez que Audric disse isso em voz
alta. As palavras arrancaram algo dele; na ausência delas, um lugar vazio se
abriu dentro dele.
— Minha criança — acrescentou ele calmamente. — Nossa criança.
Ludivine me contou antes de partir.
Genoveve levou os dedos à boca. Um pequeno som sufocado sacudiu seus
ombros. Uma pomba deu seu grito triste alto nas flores da árvore solitária.
— Ludivine me disse que a criança é uma menina — ele continuou. —
Então, talvez ela seja nossa Rainha do Sol, nossa salvação ainda não nascida.
Genoveve pressionou os nós dos dedos contra os lábios e fechou os olhos.
Um longo momento se passou antes que ela o soltasse e enxugasse o rosto.
— Eu gostaria que Ludivine estivesse aqui para ajudá-lo — ela sussurrou.
— Lamento não ter contado a verdade sobre ela — disse Audric, embora
não sentisse pena. Ele apenas se sentia cansado. Ele imaginou sua cama, quão
enorme e solitária era, quão pequeno ele se sentia dentro dela.
— Eu entendo por que você não fez isso. Você precisava dela – vocês dois
precisavam – e se eu soubesse a verdade, eu a teria exilado, ou pelo menos
tentado. Eu teria tentado muitas maneiras diferentes de me livrar dela e
falhado, e então estaria com ainda mais pena e nojo do que já estou.
Sua mãe falava sem nenhum sinal de aversão a si mesma, sem amargura.
Agora Audric era o único a observá-la cuidadosamente – a linha reta e fina de
seu nariz, a aspereza dolorosa de sua mandíbula, como ela se segurava com
tanta imobilidade. Era porque estava com medo de quebrar? Ou porque havia
sido quebrada tantas vezes que a ideia não a assustava mais?
— Mãe — ele começou. — Não é assim.
Genoveve sorriu para ele. — Eu não preciso de conforto. Eu só quero que
você sente-se comigo. Quero que você venha até mim quando o peso disso
ficar muito pesado até mesmo para seus ombros. Eu não posso tirar isso de
você, mas Deus me ajude, eu gostaria de poder.
Ela embalou seu rosto em suas mãos, tocou suas bochechas, afastou os
cachos de seus olhos
— Meu corajoso garoto — ela sussurrou, e então trouxe a cabeça dele para
baixo para beijar sua testa.
Eles ficaram sentados em silêncio, de mãos dadas, e esperaram pelo
anoitecer. Audric observou Atheria girar sombras lentas por entre as árvores.
Não temo escuridão, ele orou. Não temo a noite.
Peço às sombras que ajudem na minha luta.
35
Eliana
Os pesadelos eram sem forma e vastos, mas Eliana deixou que eles a
arrastassem em sua corrente selvagem. Ela se segurou cuidadosamente dentro
de uma rede esfiapada. Se lutasse muito contra as amarras, se tentasse se virar
contra os pesadelos e nadar através deles até a costa, a rede se quebraria e ela
cairia.
Eliana.
Ela se afastou da voz. Era ele novamente. Ele voltou para bater em sua
cabeça, e desta vez ela o deixaria.
Eliana, por favor, acorde!
A voz que chamava seu nome não era de Corien. Era familiar, suave,
urgente. Além dela, elevava-se a música carregada nas cordas, pontuada
pelos toques de metais de trompas.
Lentamente, Eliana abriu os olhos – e viu, agachado atrás de sua cadeira no
camarote do teatro privado de Corien, um menino magro com cabelos
escuros e despenteados, o rosto brilhando de suor.
Remy.
Ela olhou para ele, inspirou e expirou lentamente. Era uma ilusão. Era
mentira. Ela se manteve imóvel, esperando para acordar.
Mas a orquestra tocava e Remy estava acenando para ela, e sua mente
estava clara. Corien não disse nada – nenhuma provocação, nenhuma risada
cruel. Eliana olhou para Remy, seu sangue rugindo. Ela se lembrou da voz
que chamou seu nome apenas alguns momentos atrás e a reconheceu.
Era o Profeta, incitando-a a acordar.
Apenas suas longas semanas de trabalho com o Profeta poderiam ter
preparado Eliana para esse momento. Embora sua mente estivesse golpeada,
cada músculo pulsando de dor, ela procurou a calma e a encontrou. Ela
pensou em seu pequeno rio fresco e entrou silenciosamente nele.
Então ela segurou o olhar de Remy por um momento, dizendo-lhe para não
se mover, dizendo-lhe para segurar cada parte de si mesmo, e se virou
cuidadosamente em seu assento para olhar para Corien. Ela permaneceu
caída, seus olhos semicerrados. Sua visão oscilou mesmo com aquele leve
movimento. A dor apunhalou suas têmporas.
Lá estava ele, de pé perto da grade polida com sua bebida na mão. A
música no palco era ensurdecedora e ele ainda gritava por mais.
— Não consigo ouvir vocês! — Corien gritou, então engoliu o resto de sua
bebida e jogou o copo vazio no palco.
Nas filas de assentos abaixo, os cidadãos de Elysium ecoaram seu desdém,
lançando zombarias aos músicos que suavam no palco, jogando sapatos e
comida pela metade, o que quer que pudessem encontrar.
Mas os músicos não ousaram parar, os braços do maestro eram incansáveis
e a doçura da música continuava – triunfante e alegre, perversamente
incongruente com seu público.
Eliana observou Corien encostar-se ao parapeito, com os ombros curvados
e os nós dos dedos brancos. Ele balançou a cabeça em fúria; ele parecia
prestes a explodir. A qualquer momento, pegaria outro copo para jogar.
Ele iria alcançá-la.
Eliana não conseguia se mexer, paralisada de indecisão. O que ela deveria
fazer? Fingir dormir? Oferecer-se para Corien mais uma vez para que Remy
pudesse fugir?
Então o coro no grande loft curvo acima do palco se levantou como um só.
Quatro solistas vestidos com longos casacos brilhantes começaram a cantar
em uma língua angelical que sem dúvida haviam aprendido sob ameaça.
À esquerda de Eliana, além de onde Corien estava, dois adatrox arrastaram
escada acima um homem que Eliana não reconheceu. Sua cabeça pendeu; sua
expressão de olhos negros estavam apáticos e confusos. Um anjo, mas quem?
Corien ergueu as mãos, muito feliz. — Ravikant! Que alegria que você
pôde se juntar a nós esta noite. E bem a tempo do final também. Que sorte!
Ravikant. Eliana olhou fixamente para o almirante. Ela não o via desde que
ele vivia no corpo de Ioseph Ferracora. Ele havia encontrado um novo corpo,
ao que parecia – um homem baixo e magro com pele morena lisa e cabeça
raspada. O adatrox soltou Ravikant e ele caiu de joelhos. Ele havia se vestido
para a ocasião com um terno imaculado de creme macio.
Corien se ajoelhou ao lado dele e colocou a mão na bochecha suada de
Ravikant. O almirante começou a soluçar.
A orquestra se aquietou. A música tornou-se uma marcha lúdica, alegre e
astuta, acompanhada por minúsculos sinos rítmicos.
— Você achou que sairia impune? — Corien perguntou suavemente,
inclinando a cabeça. — Você achou que eu não descobriria que você
pretendia me arruinar? E aqui estava eu, pensando que éramos amigos.
Ravikant engasgou, estremecendo no chão, e o corpo de Eliana estremeceu
o que a lembrou da dor. Ela inspirou e expirou pelo nariz e manteve as mãos
relaxadas nos braços da cadeira.
Só então ela notou o chão de seu camarote ricamente decorado.
Estava cheio de cadáveres.
Corien se levantou e o corpo de Ravikant ficou imóvel. Em vez disso, outro
corpo mais perto da porta começou a ter convulsões. Uma jovem pálida em
um vestido de seda, talvez escolhida na plateia abaixo.
Eliana viu o corpo dela estremecer quando os gritos de Ravikant, seus
apelos em Lissar, escaparam de sua garganta.
— Eu posso te jogar de corpo em corpo tão facilmente — Corien meditou,
de pé sobre a garota. — Você poderia fazer isso? Eu não acho que você
poderia. Acho que todos vocês são ratos perto de mim. Acho que você
deveria ter vergonha de sua própria estupidez.
— A cidade… meu senhor… — Ravikant tentou a seguir na língua comum.
— Está sendo invadida…
Corien rosnou com fúria. O corpo da garota se acalmou, e o de um homem
de cabelos brancos e pele escura sentado apoiado em uma cadeira começou a
se contorcer em agonia. Sua voz era profunda; suas palavras eram de
Ravikant. A orquestra abaixo tocava, cordas frenéticas empurrando a melodia
cada vez mais alto.
Eliana ficou tensa na cadeira, lutando para manter a calma. Corien não
estava olhando para ela. Estava distraído, bêbado de vinho e violência. Ela
poderia correr. Remy ainda esperava atrás dela; ela podia sentir sua tensão,
como ele ansiava por alcançá-la. Se ele tivesse de alguma forma entrado,
havia uma maneira de escapar. Se ele fosse real, isto é – se ela pudesse
acreditar em qualquer coisa que visse.
As costas de Corien estavam voltadas para ela, mas não inteiramente. Sua
mente poderia ter outro foco, mas seus olhos roubados veriam se ela se
movesse.
A orquestra silenciou mais uma vez – apenas pulsações hesitantes das
trompas, ecos cautelosos dos ventos cortantes.
Eliana prendeu a respiração.
Em seguida, toda a orquestra voltou, e o coro completo, em uma passagem
triunfante e pulsante que sacudiu o teatro do chão ao teto.
Corra, Eliana. O Profeta, fraco como um sonho distante.
Corien se inclinou para mais perto de Ravikant, inclinando a cabeça para
que sua orelha ficasse perto da boca soluçante do anjo – e colocando seu
rosto completamente fora de vista. Ele uivava como Ravikant, zombando
dele. Sua voz se partiu em risadas.
Eliana não perdeu um minuto. Ela se livrou de sua cadeira e seguiu Remy
para as sombras da caixa. A música martelou em seu peito; as ofensas
furiosas de Corien, atiradas contra o almirante em línguas que Eliana não
conhecia, ecoaram em seus ouvidos.
Remy agarrou a mão dela, ajudou-a a descer um pequeno lance de escadas
na escuridão e saiu por uma porta destrancada. Uma vez lá fora, eles
correram. O estreito corredor que circundava o teatro estava
assustadoramente vazio. O mal-estar enrolou-se no peito de Eliana. O que
quer que Remy estivesse fazendo, ele não estava sozinho.
— Como você entrou no teatro? — ela perguntou baixinho enquanto
corriam pelas sombras. — Ele trancou todas as portas.
Remy a olhou rapidamente. — Nem todas elas. Uma foi deixada aberta.
Um arrepio beliscou seu pescoço. — E você confiou nisso?
— Eu não tive tempo para pensar sobre isso. Eu só sabia que você estava lá
dentro.
Sua voz estava tão estranha – era dele, mas não era. Havia um novo aço
nela. Seu rosto não traiu nada. Seu irmão e um estranho também. Eliana
gostaria que houvesse tempo para segurá-lo pelos ombros e fazê-lo olhar para
ela de maneira direta até que ela o conhecesse novamente
Eles desceram correndo um lance de escadas. No fundo, escondido contra a
parede oposta, esperava Jessamyn. Sua perna estava enfaixada e sua cor
pálida, mas seu rosto respingado de sangue estava duro e ansioso por uma
luta. Três adatrox mortos jaziam a seus pés.
— Isso demorou muito — ela sibilou, então deu a Eliana um olhar
avaliador. Se ela sentiu vergonha por ter sido uma testemunha naquela sala
branca de dor, ela não demonstrou nada disso. — Ninguém viu você sair?
— Se tivessem, não estaríamos mais de pé — disse Remy sombriamente,
movendo-se para a janela mais próxima para olhar para fora.
Eliana olhou de Jessamyn para Remy. O cabelo aparado de Remy, sua
túnica e calças que certamente não eram roupas de prisão. — Vocês já se
conhecem?
— Eu sou o virashta dela — disse Remy, como se isso explicasse tudo.
Além do vidro, a luz carmesim de Ostia inundou o mundo, mas era de
Remy que Eliana não conseguia desviar os olhos. Como ele parecia
confortável com uma adaga na mão. A expressão sombria de seu rosto, as
cicatrizes nos nós dos dedos.
— Você pode fechar essa coisa no céu? — Jessamyn perguntou, apontando
para a janela.
— Sim — Eliana disse, sem dizer o resto – que ela não faria tal coisa até
que ela ganhasse e Corien ficasse em ruínas.
— De alguma forma, precisamos levá-la com segurança — Jessamyn
murmurou, olhando pela janela. — E a cidade inteira enlouqueceu.
Remy lançou um olhar para Eliana. Ela podia ver em seu rosto que ele
sabia o que ela não havia dito, e sua boca se contraiu com um pequeno
sorriso.
Eu vou te guiar até mim A voz do Profeta veio baixinho. Diga a eles que
você sabe para onde ir. Eles irão te seguir.
— Eu sei como chegar lá — disse Eliana com firmeza. — Eu conheço o
caminho mais seguro.
Os olhos de Jessamyn se estreitaram. — Como?
Eliana forçou um sorriso irônico. — Eu sou a Rainha do Sol. Eu sei tudo.
Ele está distraído, mas não vai ficar por muito tempo, o Profeta avisou.
Saia do palácio pelo lado sul. Você encontrará vários adatrox na saída.
Prisioneiros também. As feras estão fervilhando em direção ao palácio.
Algumas já se agarram a ele, tentando abrir caminho para dentro. Vá para a
praça onde Corien a levou antes de abrir Vaera Bashta.
Eliana respirou fundo, moveu as mãos para sentir o deslizamento das
correntes de seus receptáculos. Posso usar meu poder?
Tente não usar. Ele só permanecerá ignorante sobre sua fuga por algum
tempo. Quanto mais você se afastar dele, mais facilmente poderei escondê-la.
Eliana engoliu em seco contra um nó frio de medo. Ela sentiu a presença do
Profeta, uma camada flexível de água cobrindo sua mente, mas era muito fina
para seu conforto.
— Eu preciso de uma faca — ela disse, e Jessamyn puxou uma longa adaga
de sua bota. Eliana a reconheceu como uma arma adatrox padrão. Ela testou
seu peso, seu controle. Ela acenou com a cabeça uma vez para Jessamyn em
agradecimento.
— Siga-me — disse, e correu, Remy e Jessamyn logo atrás.
O palácio era uma tumba cavernosa, suas paredes de pedra abafando o caos
além. O estrondo baixo de tiros de canhão vaecordia, o grito de cruciata
enxameando. Eliana correu por um amplo corredor forrado de janelas, as
sombras cortadas por raios de luz vermelha. Adatrox agrupou-se na
extremidade oposta como animais amontoados contra o frio. Abandonados
por seus mestres angélicos, suas mentes em ruínas, eles se viraram ao som da
abordagem de Eliana, gritando sem palavras. Eliana correu para eles, estripou
um, e quando ela se virou para encontrar os outros, eles já estavam mortos.
Jessamyn enxugou a adaga na manga. Remy arrancou sua própria faca da
barriga de sua matança.
Eliana se afastou dele, a culpa se instalando com força em sua garganta.
Deveria haver apenas um Terror de Orline, e agora a cidade de Elysium dera
luz a outro.
Eles desceram correndo dois lances de escada, para um grande salão na ala
sul do palácio. Formas escuras se chocaram contra as janelas, depois às
subiram, escalando as paredes.
Adatrox correram pelo corredor, direto para eles. Eliana atirou a faca na
garganta de um deles. Jessamyn segurou outro enquanto Remy enfiava sua
adaga em seu peito. Outro tropeçou para fora das sombras. Jessamyn sibilou
algo para Remy, e Remy retirou sua faca do primeiro adatrox, girou e cortou
o pescoço do recém-chegado.
Derrubaram outros cinco no caminho para fora do palácio, depois mais seis
enquanto corriam pelo anel de pátios que o rodeava. Um prisioneiro em
trapos saltou sobre Eliana, seus olhos enlouquecidos de medo, e com um
grito feroz, Jessamyn se jogou em seu caminho e abriu seu estômago. Outro
prisioneiro irrompeu através das sebes e balançou uma grande clava nela,
pontas de metal projetando-se da madeira. Remy saltou em suas costas e
abriu sua garganta. Os pátios estavam cheios de prisioneiros gritando por
sangue, adatrox tropeçando e agitando suas espadas.
Eliana deixou Jessamyn e Remy lutarem por ela, mas sua cabeça girava e o
mundo era uma névoa agitada de vermelho e dourado. Seu poder estava
desesperado, lamuriando por liberação. Em vez disso, usou sua faca e pegou
outras dos soldados que matou. Ainda usava seu vestido de jóias sujo e
desejava amargamente um cinto, bolsos escondidos, coldres, qualquer coisa
útil.
Na fronteira da cidade propriamente dita, eles se esconderam contra a
parede externa do pátio para recuperar o fôlego. Jessamyn, com a pele
encharcada de suor, agarrou a perna direita. Nos punhos apertados de Eliana,
seus receptáculos zumbiam de necessidade. O céu estava escuro com
raptores, as ruas fervilhantes. Perto dali, duas víboras atacaram um nó de
corpos entre elas.
Eliana olhou para trás por um dos portões do pátio e viu um mar de cruciata
correndo pelo labirinto de cercas vivas em direção ao palácio. Riachos de
escuridão subiam rapidamente pelas paredes e torres, deslizavam para dentro
das janelas e batiam nas portas. Acima do palácio, envolto em nuvens
vermelhas, brilhava uma lua crescente sorridente.
— Isso deve segurá-lo por um tempo — Remy disse severamente. — Se ele
tocar qualquer sangue cruciata…
— Ele não vai — disse Eliana de uma vez. — Ele é muito inteligente para
ser derrotado tão facilmente.
Mas um palácio repleto de monstros iria pelo menos distraí-lo por mais
alguns minutos. Ela esperava.
Depressa, Eliana, veio a voz do Profeta. Mais forte agora, mas tensa pelo
esforço.
Acima, na extremidade do pátio, um funil de latão erguido em um poste
enrolado com fios retumbava um crescendo de buzinas de latão. Eliana soltou
um forte suspiro e se lançou em uma corrida implacável. Ela ouviu as
respirações medidas de Jessamyn atrás dela, ásperas, mas constantes, e os
passos rápidos de Remy. Corpos e festejos de cruciata obstruíam as estradas
maiores da cidade. O fedor era quente e podre, a mordida de sangue azeda na
língua de Eliana.
Ela entrou em um beco. As pessoas se amontoavam nas sombras, cobrindo
os ouvidos, lamentando pelos mortos. Eles gritaram quando ela passou, cada
cabeça encharcada de sangue. O beco estreitou no final, e Eliana teve que
virar de lado para escapar. Emergindo de lá, ela olhou para baixo em uma
encosta lavada de vermelho com a luz irritada de Ostia. Paredes baixas e uma
rede de degraus brancos e atarracados separavam os jardins bem cuidados e
as piscinas rasas cobertas por fontes. Ela correu na direção deles, saltou por
cima de uma parede para o caminho abaixo, aterrissou com força, se levantou
e continuou correndo. Remy e Jessamyn estavam atrás dela alguns segundos
depois
Acima, uma fita esvoaçante de cor escura. Eliana ergueu os olhos. Um
raptor de asas vermelhas os havia encontrado, descendo do céu com o bico
preto aberto.
Eliana olhou para baixo, seus receptáculos faiscando em seus punhos, seu
poder rugindo por liberação – e finalmente ela o deixou emergir. Ela
alcançou o empirium, agarrou a besta com dedos de ouro, e a jogou
furiosamente no chão. Mais raptores mergulharam, e ela derrubou cada um
deles, seus punhos voando. Logo, o céu estava vazio e Eliana estava ofegante
em uma pilha de corpos destruídos e fumegantes.
— Merda — Jessamyn murmurou baixinho logo atrás dela.
A praça, agora, e depressa, disse o Profeta, tenso de desespero. Eles estão
vindo atrás de você. Você acabou de mostrar o caminho.
Ela olhou em volta freneticamente. Quem está vindo?
Anjos.
Mas não ele?
Ele está bastante ocupado no momento. As cruciata inundaram o palácio e
ele não pode controlá-los. Suas mentes são muito estranhas, muito fortes.
Mas seus soldados aqui na cidade estão ansiosos para impressioná-lo.
— Por aqui — Eliana disse por cima do ombro, então correu pela estrada
com Jessamyn e Remy logo atrás dela. Desceu um lance de escadas, então
acelerou através de uma ponte de pedra arqueada sobre uma estrada que
zumbia com cruciata. As criaturas irromperam por portas e janelas, jogando
pessoas gritando para as ruas.
Eliana olhou para frente e viu as cinco estátuas angelicais em torno de seu
destino. Ela se lembrou da praça pentagonal e das arcadas de pilares brancos
que a circundavam. As portas gêmeas pretas, e o que havia explodido delas
sob o comando de Corien.
A lâmina de Jessamyn passou zunindo por sua orelha. Um raptor magro
com asas pretas escorregadias caiu do céu. Eliana se esquivou, desceu
correndo uma escada em espiral de pedra branca e caiu na praça. Ela parou,
engolindo ar. Remy parou ao lado dela, Jessamyn logo atrás dele.
— Isso é loucura — Jessamyn sibilou. Ela encontrou uma espada
abandonada presa sob um corpo destroçado além do reconhecimento, puxou-
o para fora. Ela ergueu a cabeça para o céu vermelho. — Você vai fechar essa
maldita coisa ou não vai?
Eliana olhou ao redor da praça, mas não viu nenhum sinal do Profeta,
nenhuma rota de fuga, nenhum reforço. Em vez disso, ela viu anjos – dez
deles, vinte, cinquenta – descendo das estradas superiores e correndo em
direção à praça, resplandecentes em sua armadura dourada manchada.
Cruciata os seguiram, batendo em seus calcanhares. Um dos anjos jogou uma
lança. Ela girou prata pelo ar, então perfurou o peito escamoso de um raptor e
espalhou sangue azul. O anjo mais próximo caiu, depois outro. Não era
suficiente; logo, alcançariam a praça.
Mas Eliana não se atreveu a usar seu poder novamente com aqueles olhos
tão próximos. Corien sentiria, entraria em uma de suas mentes e a agarraria.
Estou aqui, ela pensou, enxugando o suor dos olhos. O que agora?
Algo se agitou em sua mente. Uma presença familiar que a deixou fria
como gelo.
A dor explodiu em seu crânio, abrasadora e brilhante. O mundo ficou
branco e ela caiu de joelhos. Os gritos de batalha giraram em torno dela, mas
ela viu apenas isso – um anjo de armadura elevando-se sobre ela, sua mão
estendida, girando lentamente como se estivesse trabalhando na maçaneta de
uma porta.
Não era um anjo que ela conhecia, mas através da fenda de seu capacete, no
fundo de seus olhos negros, Eliana viu o sorriso de Corien.
Aí está você, ele pensou, deslizando para os sulcos destruídos de sua mente.
Minha pequena fugitiva. Eu pensei que tinha perdido você.
Eliana respirou fundo, arqueando as costas violentamente. Suas mãos
procuraram apoio no solo coberto de sangue. Cada músculo de seu corpo se
esticou contra sua pele.
Presa e indefesa, ela olhou através de uma película de lágrimas para a coisa
que finalmente a mataria. Este anjo que ela nunca tinha visto, controlado por
outro louco por séculos de tristeza.
Então, da garganta do anjo mergulhou uma lâmina estranha – um cobre
iridescente, sombras movendo-se através dele. Lâmina de Ferrugem, Eliana
pensou, trêmula e cambaleando. Fontes de sangue jorraram do pescoço do
anjo. A lâmina se soltou, o corpo estremeceu e caiu com força. Vazio agora,
nada mais do que um cadáver.
E sobre ela estava Simon em preto imperial, seu rosto cheio de cicatrizes
manchado de sangue e fuligem. Sua expressão estava furiosa. Uma capa
escura forrada de carmesim caiu de joelhos, e em seu torso cortou uma faixa
vermelha como um sorriso sangrento.
Seu olhar azul brilhante encontrou o de Eliana, travado por um instante
ardente. Algo metálico caiu atrás dela. Ela se virou, ainda instável no chão,
ainda tonta, mas Simon foi mais rápido. Ele disparou na frente dela, Lâmina
de Ferrugem em uma mão, revólver na outra, e atirou em três anjos enquanto
eles saltavam para ela. Todas as três balas de cobre atingiram seus queixos,
onde seus capacetes os deixaram vulneráveis.
Há uma porta na parede oposta, o Profeta instruiu. Estreita e simples.
Pedra Branca. Corra para ela agora. Remy a seguirá. Devo protegê-lo. Eles
estão confusos, mas isso vai acabar logo.
Foi como se alguém tivesse virado o mundo do avesso. Eliana piscou,
procurando na praça, enquanto acima dela Simon disparava tiro após tiro.
Sem balas, ele jogou a arma de lado e tirou outra do cinto em sua cintura.
Devo protegê-lo, o Profeta havia dito. Porque agora, Simon era o único
atraindo sua ira. Simon, o favorito do Imperador.
Quando Eliana encontrou a porta do Profeta, um calor doentio percorreu
seu corpo. Um momento atrás, a porta não estava lá—ela tinha certeza disso.
Faixas grossas de sangue, tanto vermelho quanto azul, cortaram sua
superfície.
Agora, Eliana!
Eliana ficou de pé, procurando por Remy. Mais cruciata deslizavam pelas
paredes. Eles atacaram os anjos, os chicotearam com suas caudas.
No meio disso, Jessamyn lutava contra um único soldado angelical. Ela
balançou sua espada contra ele; suas lâminas se chocaram e travaram. O anjo
praguejou contra ela, as ondas de sua fúria ricocheteando pela praça. Eliana
conhecia aquele olhar. Ele estava tentando chegar à mente de Jessamyn, mas
não conseguiu.
Sua pele formigou. Uma porta escondida. Um anjo frustrado.
O Profeta estava em toda parte.
O anjo lutando contra Jessamyn cuspiu uma maldição em Lissar. Eliana
conhecia bem a palavra. Corien gritou para seus servos, muitas vezes jogou
como uma faca na mente de Eliana. O Profeta havia traduzido para ela.
Significava puta
Jessamyn mostrou os dentes para seu agressor. Fios suados de cabelo
vermelho se soltaram de sua trança e grudaram em seu pescoço. — Meu
nome — ela gritou, sua voz falhando, — é Jessamyn.
O anjo a jogou no chão e ergueu sua espada. Eliana desviou o olhar antes
que ela pudesse cair.
Simon estava correndo em direção à porta do Profeta, um Remy
inconsciente pendurado em seu ombro. Ele travou os olhos com os de Eliana.
— Vá agora!
Eliana correu para ela, mas percebeu imediatamente que não havia trinco.
Seu poder aumentou como o calor de uma explosão. Ela socou os punhos em
direção à porta, os receptáculos em chamas dentro de seus dedos cerrados.
A porta estilhaçou. Cacos de pedra voaram. Além dela, estreitas escadas de
pedra desciam para a escuridão.
Eliana correu na direção delas, sufocando-se com as nuvens de poeira
branca. Assim que Simon passou pela soleira com Remy, ela girou de volta e
jogou as palmas das mãos na porta. Rocha e poeira se recompuseram em
segundos, voando de volta em uma parede sólida de rocha, selada firmemente
contra a cidade além.
Na escuridão, Eliana ouvia apenas sua respiração irregular, sua própria
cabeça latejante. O túnel engoliu todos os sons da batalha.
Ela encontrou Remy pendurado no ombro de Simon, embalou sua bochecha
em uma mão e segurou a outra diante de sua boca. Uma leve lufada de ar
quente, depois outra. Ele estava respirando. Fraca de alívio, ela deu um passo
para trás, longe do calor do corpo de Simon. Eles pararam por um momento,
o silêncio espesso e abrasador entre eles. Os receptáculos de Eliana lançavam
uma luz dourada tênue nas linhas marcadas do rosto de Simon e a lâmina
iridescente ainda agarrada em sua mão, pingando sangue.
Eliana olhou para ele. — Ele está aí? — ela disse firmemente.
— Não. — Ele não olhou para ela. — Eu tentei há muito tempo. Ele é
muito forte para lâminas de ferro. Elas não podem segurá-lo. — Simon
sacudiu a lâmina um pouco, como se a desprezasse. — É outro anjo aqui,
aquele cujo corpo ele momentaneamente tomou posse para encontrar você. A
lâmina o terá enfraquecido, no entanto. Isso vai nos dar tempo.
Eliana olhou para Simon, mal o enxergando. Era muito estranho ficar
parado no escuro ao lado dele. Como se os últimos meses não tivessem
acontecido e eles estivessem de volta ao ponto de partida.
Venha até mim, pequenina. O Profeta enviou a ela um sentimento muito
confuso para decifrar. Simon conhece o caminho. Vou explicar tudo quando
você estiver aqui.
Simon mudou Remy em seu ombro e se afastou da queimadura de ouro
constante das mãos de Eliana.
— Siga-me — disse ele, sua voz rasa, ilegível.
Ela queria agarrá-lo, queimar seu rosto com seus receptáculos até que ele se
contorcesse como ela, até que gritasse o nome dela como ela gritou o dele.
Apenas a voz suave do Profeta segurou suas mãos. Lamento que precisasse
ser assim. Eu não gostei disso.
Eliana não disse mais nada a nenhum dos dois. À luz de seus receptáculos,
ela seguiu Simon descendo as escadas. Ela não conseguia desviar o olhar da
coroa loira escura de sua cabeça, despenteada e ensanguentada da batalha. Se
imaginou agarrando-o e, em seguida, esmagando o rosto dele contra a escada.
Sua cabeça doía com o último ataque de Corien, pronta para se abrir, e quase
desejou que acontecesse, pois então não teria que enfrentar o que viria a
seguir. Ela se sentia entorpecida, como se tivesse entrado em outro mundo,
um no qual não entendia nada. Suas pernas se moveram por vontade própria,
levando-a mais fundo na escuridão sem fim. Sua garganta doía a cada
inalação gelada. O ar esfriou.
Por fim, a escada acabou. Além dela, espiralava uma teia de túneis e
câmaras. Três pessoas com a eficiência alucinante de soldados passavam
correndo com armas, pacotes de suprimentos e lençóis limpos dobrados. Seus
olhos, quando encontraram os de Eliana, estavam claros.
Eles pararam para observá-la, e então mais quatro saíram correndo das
sombras, sem fôlego, os olhos brilhando. Quando ela passou por eles, caíram
de joelhos e abaixaram a cabeça. Eles beijaram os dedos e tocaram os olhos
fechados, murmurando orações em seu rastro.
Ao lado da entrada de uma câmara bruxuleante à luz de velas, Simon parou.
Mesmo assim, ele não olhou para ela. Ele colocou Remy em um banco fora
da câmara, tão terno e cuidadoso, mesmo em seu uniforme austero adornado
com asas, que Eliana quase foi para sua garganta com a faca que Jessamyn
tinha dado a ela. A sua imaginação ficou cristalina de raiva, mostrando a ela
como a lâmina afundaria em seu peito e rasparia o osso. Ela pensou em
Jessamyn, como no momento de sua morte, ela ainda acreditava que Eliana
pretendia fechar Ostia e salvar a cidade, e sentiu o aumento das lágrimas.
— Você ousa fingir bondade — sussurrou Eliana.
Um momento de silêncio. Então Simon se virou para ela, seus olhos baixos.
O pulso dela batendo contra sua garganta. Desde aquela noite nas margens de
Festival, seu rosto tinha sido de aço da testa ao queixo. Agora, cada linha
dura havia se suavizado, desfigurada pelo cansaço.
Ela queria desesperadamente desviar o olhar, mas não conseguiu. Ele
parecia se encolher diante dela, como se ela fosse brilhante demais para ser
vista.
— Era o único jeito, Eliana — disse, a primeira vez que pronunciava seu
nome em meses. Sua voz falhou sob a palavra, e seus dedos flexionaram em
seus lados, como se ele desejasse alcançá-la. — Foi isso que ela me disse. Era
a única maneira. — Ele respirou fundo, então finalmente ergueu o olhar para
encontrar o dela.
Ela se afastou dele. Aquele azul penetrante, a atingiu com toda a força
como um golpe em seu peito. Antigamente, ele continha o calor do desejo, a
pedra da raiva.
Nem uma vez até agora ela tinha visto seus olhos feridos de tristeza.
Uma voz falou de dentro da câmara. Gentil e familiar, embora diferente do
que parecia em sua cabeça. Havia clareza nela agora, como se um véu tivesse
sido levantado.
Eliana virou as costas para Simon agradecidamente, com os joelhos úmidos
e a garganta amarga, e entrou na câmara à sua direita.
Em seu coração, posicionada entre três velas bruxuleantes, uma jovem
estava sentada em uma cadeira polida. Pálida e de cabelos dourados, ela
usava um vestido rosa e lilás que abotoava até a garganta e imitava a
aparência de uma couraça blindada. Ela segurava uma espada embainhada em
seu colo, e seus olhos eram duas gotas de tinta. Incolor e antigo.
Mas Eliana não teve medo.
— Você é o Profeta? — ela sussurrou.
A mulher sorriu suavemente. — Você pode me chamar de Ludivine. Eu
conhecia seus pais.
Ela ergueu a espada de seu colo. A força da arma pulsou contra a pele de
Eliana. Seu poder aumentou em saudação, fazendo seus dentes doerem e seus
receptáculos brilharem com o calor, e ela sabia, embora nunca tivesse visto
isso antes, exatamente o que era aquela espada. Seu sangue conhecia seu
sabor, conhecia cada linha gravada de seu punho.
Ludivine ergueu a espada, a lâmina embainhada apoiada nas palmas das
mãos. Acima, seus olhos negros brilhavam. Uma visão estranha: Eliana
nunca tinha visto um anjo olhar para nada com amor.
— O último receptáculo restante dos sete santos — disse Ludivine. —
Pertenceu à sua família desde que Santa Katell a usou para atacar os anjos do
céu. Sobreviveu à morte de sua mãe. E agora, pequenina, ele pertence a você.
36
Rielle
Rielle sabia que estava viva. Sabia que estava de pé. Além disso, sabia muito
pouco sobre seu corpo.
Seus pensamentos vagaram pelas estrelas. Cada um trazia de volta uma
nova informação sobre as montanhas do continente ocidental, o espaço negro
sem fim além das nuvens, os outros mundos que residiam dentro dela. Sua
pele estava em chamas, seu sangue borbulhava quente. O empirium insistiu
em derramar um milhão de pedaços do mundo em sua mente. Era muito e
rápido demais, mas Rielle não conseguia parar de beber. Seus ouvidos doíam,
suas têmporas retumbavam como tambores e ela ainda consumia.
Corien chegou ao lado dela. Sua presença puxou seus pensamentos de volta
para seu corpo humano, o que a irritou. Ela olhou para o horizonte até que
sua irritação diminuiu. Ela podia ver coisas agora – coisas próximas – nas
quais ela não estava interessada antes.
Havia as montanhas ao redor de Âme de la Terre. Doze montanhas,
atapetadas de pinheiros, e a mais alta delas – assustadoramente enorme,
coberta de neve – elevava-se sobre o castelo a seus pés.
Lá estavam os exércitos que ela e Corien haviam feito nas últimas semanas
e meses. Dez mil adatrox de olhos cinzentos, marionetes dos anjos.
Incontáveis anjos permaneceram sem corpo, seu único armamento era o
astuto poder de suas mentes. E mais cinco mil caminhavam pela zona rural de
Celdaria, primorosamente trabalhada por suas próprias mãos e firmemente
amarrados aos corpos humanos que os abrigavam. Alguns voavam; outros
caminhavam. Cintilantes e tontos, finalmente famintos por vingança, sua
glória angelical seria óbvia para as pessoas que observavam sua aproximação
– os soldados tremendo nervosamente em suas torres de vigia, as crianças
parecendo com os olhos arregalados sobre os ombros de seus pais enquanto
fugiam da cidade para o mar.
Havia a luz suave do crepúsculo, âmbar e tangerina a oeste, violeta a leste.
Lá estavam as fazendas estendendo-se em linhas bem definidas em direção à
capital. Mudas de primavera girando silenciosamente no solo.
E havia a redondeza de sua barriga e a pequena vida crescendo dentro dela.
Rielle olhou de soslaio, aquele minúsculo conjunto de fibras iluminadas
batendo forte contra suas palmas. Talvez permitir que a criança vivesse,
afinal, não fosse sensato. Duas rainhas se erguerão, disse Aryava. Uma de
sangue e outra de luz.
Ela coçou a barriga, as unhas agarrando-se aos delicados fios de seu
vestido. Era uma vestimenta dramática. Seda pura cor de sangue sem
adornos, do colarinho à bainha. Longas fendas em suas coxas deixavam suas
pernas livres para se mover. A saia começava no alto de sua cintura, caindo
solta em torno de sua barriga. Ela não usava sapatos; não precisava deles. O
ar noturno da primavera era fresco, mas em seu sangue parecia o auge do
verão. Ela enrolou os dedos dos pés na terra. As solas dos pés estavam pretas
de tanto viajar.
Ela mesma havia desenhado o vestido na manhã anterior à partida de
Northern Reach. Os primeiros cinco esboços terminaram em frenesi. Cada
vez que ela recriou as linhas de sua barriga protuberante, uma selvageria a
dominou. Aquela garota na montanha. Os olhos de Audric em um rosto
assustado. A pele mais clara que a de Audric, mas mais escura que a de
Rielle, um marrom claro como a extensão de areia clara. Cabelo castanho
escuro em uma trança espessa e bagunçada, o poder incerto tremendo nas
pontas dos dedos, as mãos adornadas com finas correntes de ouro. Meu nome
é Eliana.
Rielle havia apagado cada desenho rabiscado até que a garota desapareceu
de sua mente e a tinta manchou seus dedos. A ponta da caneta marcava sulcos
duros na polida mesa de Corien. Assim que conseguiu terminar um desenho,
observou os alfaiates trabalharem freneticamente durante a noite para
terminar o vestido, satisfeita ao ver o suor pintando suas sobrancelhas.
Sua própria filha seria a rainha que se levantaria contra ela? Suas palmas
formigaram contra sua barriga.
Corien colocou sua mão fria sobre a dela, dispersando seus pensamentos.
— Olhe para eles — ele sussurrou, passando o braço no ar para cercar o
oceano impressionante de suas tropas. Lá estavam as linhas ordenadas de
soldados angelicais. Os generais usavam capas de veludo preto com bainhas
douradas. Lá estavam as feras que Corien e seus médicos haviam projetado
sob as montanhas do norte – rastreadores, imitações de cruciata, deformadas
e protuberantes. Suas asas carnudas batendo, armadura embutida em suas
peles, peles escamosas. Controlados por mentes angelicais, as crianças
elementais de olhos vazios montavam as feras, seus pulsos e pescoços
amarrados com receptáculos.
Rielle examinou o funcionamento interno das feras, ouro ardente e
complexo. Havia o poder musculoso dos dragões de gelo Borsvallicos; havia
as cicatrizes deixadas pelas facas dos loucos cirurgiões subterrâneos de
Corien. O poder das crianças elementais cercou os rastreadores e suas
armaduras forjadas como redes, prontos para puxar e chicotear, convocar e
explodir.
— Você se saiu muito bem — disse Rielle serenamente. — Mas posso ver
onde melhorias podem ser feitas.
Corien levou sua mão aos lábios. — No devido tempo, meu amor. Mundos,
lembra? Depois disso, temos mundos inteiros para se tornarem nosso.
— Para desfazer e refazer como acharmos adequado — sussurrou. Um
apetite insaciável agitou-se na medula de seus ossos.
— Rielle a Assassina de Reis. — Corien voltou o rosto para ela. — Rielle,
a Desfeitora.
— Eu tinha um mundo em minhas mãos — ela sussurrou, fechando os
olhos enquanto a boca dele roçava sua mandíbula. Seus pensamentos
cantavam enquanto eles voltavam para aquele mar infinito e cintilante, a
garota de vestido branco puxando-a para as estrelas. — Eu quero fazer isso
de novo. Diga-me que vamos. Diga-me que não vai demorar.
— Em breve, você terá tudo o que deseja — ele disse, seu hálito quente em
sua boca, — e eu também terei. Você arrancará mundos das estrelas e os fará
girar para agradá-la. Você encontrará Deus e exigirá algo melhor do que o
que nos foi dado.
Então ele se curvou para beijá-la. O calor suave de seus lábios, sua língua
abrindo a boca dela. O sangue de Rielle saltou selvagemente ao seu toque.
Ela apertou os braços em volta do pescoço dele, o calor descendo por suas
coxas. Seu exército se separou em torno deles e passou como um trovão. Seus
generais gritaram uma chamada em Azradil; a infantaria respondeu na mesma
moeda, um coro de gritos de guerra na mais cadenciada e dolorosamente
adorável das línguas angelicais.
Rielle enviou a Corien uma imagem brilhante. Havia um bosque de
carvalhos em uma colina próxima. Ele se deitaria na grama embaixo dela,
seguraria seus quadris enquanto ela se movia. Ela o teria ali nas sombras, e
quando se levantasse para enfrentar Âme de la Terre, seria com a memória de
seus gritos apaixonados ecoando em seus ouvidos.
Ele sufocou o nome dela contra a garganta de Rielle, tropeçou atrás dela
através das tropas em marcha e para as árvores, e quando eles terminaram, ele
estava tremendo na terra. Com olhos brilhantes, ele a observou se levantar.
Ela mal o notou, chutando-o levemente quando ele estendeu a mão para ela.
Ela já estava esquecendo como era ter as mãos dele sobre ela. Ela ficou sob
as árvores que protegiam sua vida amorosa, sua pele em chamas com o calor.
Sua visão pulsava com batidas de ouro. Atualmente, ela conhecia poucas
outras cores. Ouro dourou seus pesadelos, nadou cintilando em sua língua.
Através de um brilho âmbar, ela observou a enxurrada de seu exército correr
rapidamente em direção à cidade que ela pensou ser seu lar.
Pequenas fogueiras floresciam à noite – um caminho de chamas
serpenteando pelas montanhas. Um fino uivo de trompas soou, rapidamente
abafado pelo exército que cantava.
Rielle sorriu, de olhos fechados, e ergueu o rosto para o céu. Como se fosse
útil ter um aviso. Como se as torres de vigia e as trompas pudessem ser tudo
menos um constrangimento.
Corien se juntou a ela, silencioso e sombrio em seu cotovelo. Ela podia
sentir o cheiro dele em sua pele.
— Você está pronta? — ele murmurou.
Ela abriu os olhos e ele inspirou profundamente. Ela podia entender isso. O
empirium era um grande espelho dourado diante dela, e nele ela podia ver seu
reflexo. Seu cabelo escuro, rebelde até a cintura; seu vestido de seda
abraçando seu corpo; seus pés descalços e pretos. Cada veia pintada com uma
caneta dourada, duas moedas resplandecentes de luz para os olhos.
— Eu sou infinita — respondeu ela, retomando as palavras que ele tanto
gostava de dizer. Ela tentou não pensar nisso muito de perto. Que ele pudesse
se considerar infinito de alguma forma o fazia parecer bobo.
Ela se afastou dele para se juntar a seu exército enquanto este marchava
implacavelmente para frente. Podia ver além deles, além das montanhas,
além dos exércitos Celdarianos e Mazabatianos reunidos e esperando. Ela
podia ver além de tudo isso, um castelo escuro e tenso, seus corredores
farfalhando com sussurros urgentes, e um pátio perto dos arsenais, onde um
rei montava uma besta divina alada e se preparava para cavalgar para a
batalha.
37
Eliana
“Você não acha que eu desejo que ela venha tão desesperadamente
quanto você? Amigos, não passa um dia, nem um momento, sem que eu
imagine a Rainha do Sol aparecendo finalmente para nós, machucada e
ensanguentada e resplandecente de luz, pronta para se entregar ao
nosso inimigo para que possamos viver novamente. Ela está comigo em
sonhos e ao acordar. Ela ruge em meu sangue como uma paixão
incomparável. E ela também deve viver no seu, para que você esteja
pronto para lutar ao lado dela no dia do julgamento que sabemos que
espera por todos nós.”
— A Palavra do Profeta
•••
Era noite quando ele encontrou seus soldados. Dez mil soldados, montados e
a pé. Blindados e encapuzados, espadas em seus quadris e receptáculos
brilhando com o poder em espera. Faixas de metal e punhais, tridentes e
lanças, escudos e martelos, tudo espalhando luz pela cidade.
Ao longo de Âme de la Terre, aqueles que não haviam fugido da cidade,
muito jovens ou velhos ou fracos para pegar em armas, se reuniram nos
telhados e aglomeraram-se nas janelas para ter a chance de vê-lo e Atheria
enquanto passavam pela cidade a caminho das Campinas.
O solo tremeu com os passos do inimigo, uma tempestade diferente de
todas as que já escureceram o céu. Logo, os exércitos angelicais iriam invadir
as montanhas. Os Earthshakers trabalharam durante semanas para reforçar as
próprias montanhas como defesa, bloqueando passagens com avalanches,
cortando rochas sólidas para criar desfiladeiros, penhascos íngremes,
labirintos de rocha. Os anjos alados seriam capazes de voar sobre esses
obstáculos, as crianças elementais roubadas talvez conseguissem achatá-los,
mas seus earthshakers estavam estacionados na passagem, prontos para
reforçar as barreiras conforme necessário. Ele esperava que esta guerra de
pedra retardasse o progresso dos anjos. Até mesmo a passagem larga e
inclinada entre o Monte Taléa e o Monte Sorenne, uma enorme lacuna nas
montanhas circundantes, havia sido fortificada. Audric olhou para a
passagem enquanto Atheria voava. Quase dois anos atrás, Audric quase
morreu lá durante a Boon Chase. Era estranho lembrar uma época em que
Borsvall era o inimigo, e não um aliado desesperado. Mais estranho ainda
para se lembrar do caos daquele dia – a terra voando ao seu redor, lambidas
rápidas de fogo cruzando as Campinas em direção à cidade.
Rielle, selvagem de medo e gloriosa em sua raiva, despedaçando o mundo
para salvá-lo.
Ele respirou fundo e incitou Atheria a sair para as Campinas, onde seus
exércitos esperavam em fileiras ordenadas. Arqueiros, soldados de infantaria
com piques e lanças, elementais segurando fogo e vento nas palmas das
mãos. Eles haviam erguido um muro de pedra imponente ao redor da cidade
propriamente dita, com seis metros de espessura e sessenta metros de altura.
Arqueiros e elementais estavam posicionados em cima deles, flechas prontas
e punhos estalando com poder. Depois que o exército marchou para as
planícies, os tremores de terra demoliram as pontes da cidade sobre o lago
que delimitava a maior parte da cidade. Agora, a água brilhava sem adornos,
uma extensão profunda e ampla curvando-se de um lado do sopé do Monte
Cibelline para o outro. Se os anjos conseguissem atravessar o lago e romper a
parede, eles encontrariam o segundo exército – outros mil soldados e
elementais, prontos para defender as ruas de sua cidade.
A mente traidora de Audric fixou-se no pensamento de que não era uma
questão de se os anjos abrissem uma brecha na parede. Era uma questão de
quando. Não havia esperança de derrotar o exército que marchava sobre eles.
Nem todos os anjos tinham asas, mas seus batedores sobreviventes lhe
contaram sobre as bestas entre as fileiras angelicais – criações perversas,
mutiladas e malformadas, assim como o espião de Kamayin relatou. Crianças
elementais cavalgavam sobre essas criaturas, de olhos cinzentos e mortais,
seus receptáculos amarrados à armadura forjada das feras. Monstros
profanos, como um dos batedores os chamou antes que ele explodisse em
lágrimas histéricas de joelhos diante da mesa de Audric. Bestas em armaduras
flamejantes. Crianças que estilhaçaram a terra sem vacilar.
Audric guiou Atheria até o topo de uma alta plataforma de pedra que o
Grão Magister Florimond havia construído na margem externa do lago. Ele
desmontou de Atheria e olhou para os Flats. Vinte mil soldados se viraram
para observá-lo – suas próprias tropas e as de Mazabat. Ele tocou o
amplificador forjado em seu cinto, um presente de Miren. Seu pai o havia
usado no dia da Boon Chase. Para comemorar mais um ano de paz em nosso
reino.
Ele levantou Illumenor até que os soldados se aquietaram. Os cidadãos
dentro das muralhas também estariam ouvindo, assistindo aos Flats com
medo em seus corações. Muitos deles sabiam que essa luta era inútil. Poucos
entendiam que a verdadeira luta não seria no campo de batalha entre humanos
e anjos.
Seria entre ele e Rielle, onde quer que a encontrasse. Se ele pudesse
convencê-la a usar seu poder contra o exército que havia criado, talvez a maré
mudasse.
Caso contrário, a cidade, o país, o mundo cairia. Disso ele estava certo. O
mundo cairá, Aryava dissera séculos antes. Duas rainhas ascenderão.
Apenas uma vez nos últimos meses Audric se permitiu olhar para aquelas
palavras com esperança. Sozinho em sua cama em Mazabat, as notícias de
Ludivine sentadas em suas entranhas como uma pedra, ele recitou as palavras
familiares. Duas rainhas ascenderão. Rielle, depois que reconquistasse sua
lealdade. E então, no rescaldo da guerra, sua filha. Uma princesa da paz e, um
dia, uma rainha.
No topo da torre de pedra, Audric abaixou sua espada. Em torno dele, o ar
ficou tenso com o silêncio tenso.
Que a luz da Rainha me guie, pensou, e manteve em sua mente uma
imaginação confusa. O formato do rosto de sua filha, o peso de sua cabeça
macia em seus braços. Como ela seria?
— Vocês estão com medo — disse ele, sua voz crescendo no amplificador.
Mesmo com sua ajuda, ele precisava gritar para ser ouvido. A noite estava
densa, fechada, como se o mundo soubesse o que estava por vir. — Vocês
vêem a escuridão vindo para nós. Vocês ouvem seu rugido. Eu também vejo.
Eu ouço em meus ossos. E eu também estou com medo. Mas, mais do que
isso, sinto amor. Sinto amor por vocês, por esta cidade em que vivemos, por
este país e pelas pessoas que vivem nele, por cada fazenda e cada floresta,
cada rio e cada montanha
Ele começou a andar pela plataforma. Sua capa chicoteava suas pernas. O
ar estremeceu, agitado pela presença de tantos elementais reunidos
— Podemos sentir medo. Isso é permitido. Está certo e é humano. Nosso
sangue correrá, nossos joelhos tremerão. Mas nossos corações… — Ele
balançou a cabeça, olhou ferozmente para eles. Milhares deles, elementais ou
não, de olhos arregalados e extasiados, seus capacetes polidos até brilhar.
Pulsos em chamas, espadas brilhando como prata, medo pulsando em cada
garganta.
— Nossos corações não falharão hoje — disse ele. — Este não é um dia de
medo. É um dia de amor. Centenas de anos atrás, nossos santos lutaram
contra esses mesmos inimigos e venceram. Eles iluminaram o céu com fogo,
lançaram montanhas no mar e levaram os anjos ao Abismo. Agora eles estão
de volta, e os santos estão mortos há muito tempo. Mas não estamos mortos,
meus amigos. Vivemos! E neste dia, serão nossas espadas que colocarão os
inimigos de joelhos! Será o nosso poder que os transformará em cinzas onde
estão!
Ele fez uma pausa, deixando os gritos e aplausos dos soldados subirem e
passarem por ele. O som o deixou doente de amor. Ele queria reunir cada um
deles contra o peito e mantê-los ali com segurança até o amanhecer. Ele
piscou até que seus olhos se clareassem.
— Nossa oração por tanto tempo tem sido esta: Que a luz da Rainha nos
guie. — Ele permitiu que as palavras permanecessem no ar. Ele sabia o que
eles iriam pensar, em quem eles iriam pensar, e permitiu que eles pensassem.
— Mas eu digo que nós somos a luz! Nós somos a salvação pela qual
oramos! Estamos esta terra que é a nossa casa, e seremos nós que
expulsaremos dela toda criatura que ousar tentar tirá-la de nós!
Ele se virou para o horizonte do norte. Um crescente negro fervilhava na
passagem da montanha. Por um momento, considerou enviar seus
pensamentos, como Ludivine havia lhe ensinado. Talvez ela respondesse.
Talvez ela tivesse encontrado Rielle e o guiasse até ela.
Mas em vez disso, ele levantou Illumenor. O sol se fora do céu, mas os ecos
de sua luz permaneceram, e ainda mais queimados no horizonte além. Ele
puxou cada pedaço que seu poder pôde encontrar em direção à superfície
prateada de sua espada, então a enviou ao solo em raios brilhantes.
—Nós somos a luz! — ele gritou.
Eles atenderam ao chamado – seu exército nas Campinas, seu povo na
cidade. Eles ecoaram ele uma e outra vez.
Sloane, à frente de seu regimento de shadowcasters, sua armadura negra
como obsidiana, ergueu seu cetro no ar. A esfera no topo brilhava em azul
como o centro incandescente de uma chama. Sua luz atraiu sombras da terra –
lobos e falcões, gatos montanheses rondando com os pelos eriçados.
O machado de Miren brilhou na luz de Illumenor, e os duzentos acólitos
mestres do metal que ela comandava socaram seus receptáculos no ar.
A princesa Kamayin ergueu os punhos como se estivesse se preparando
para enfrentar um agressor, seus receptáculos brilhando em seus pulsos.
A rainha Bazati desembainhou seu sabre longo e curvo, transformando o ar
em um ciclone.
A Guarda Solar, parada abaixo da parede, dirigiu seus cavalos para as
montanhas. Os gritos de Evyline trovejaram como os golpes de uma bigorna.
Magister Duval e seu regimento de windsingers, a guarda da cidade, os
soldados Sauvillier que haviam declarado sua lealdade ao trono. O exército
particular de Odo, formado por guerreiros e arqueiros pagos, todos agora
ostentando orgulhosamente o uniforme da Casa Courverie.
Todos os soldados reunidos ergueram a voz em um coro furioso.
— Nós somos a luz!
Seus gritos rugiam como ondas.
— Nós somos a luz!
Audric subiu rapidamente nas costas de Atheria. Ela se lançou no ar e os
arqueiros na parede se ajoelharam quando ele saiu. Eles tocaram seus lábios,
então suas pálpebras. A oração da Casa da Luz.
— Nós somos a luz!
A Guarda Solar um V cintilante abaixo dele, Audric voou baixo e rápido
sobre os gritos ensurdecedores de seu exército. Ele ergueu Illumenor alto,
lançou sua luz em feixes brilhantes através da noite. Sob a batida constante
de seu batimento cardíaco veio um estrondo de trovão quando seu exército
começou a atacar, seguindo a luz de Illumenor. Os relinchos agudos dos
cavalos de guerra ansiosos, suas respirações ofegantes. O clangor da
armadura, o zip e crepitar da magia elemental se reunindo para atacar.
O poder correu por cada veia de Audric, aquecendo as placas de sua
armadura. Uma luz branca saiu de seus dedos como faíscas de um incêndio.
— Nós somos a luz!
Suas palavras se transformaram em gritos de fúria. Abaixo e atrás dele, o
oceano de seu exército se erguia, seus gritos de guerra rasgando o ar. Eles
haviam alcançado o amplo trecho aberto das Campinas. Um amplo campo,
com quilômetros de comprimento e quilômetros de largura, ligeiramente
úmido das chuvas recentes. Os cavalos rasgaram a lama com seus cascos.
Waterworkers puxou a água da chuva do solo e girou espirais de espuma no
ar.
Audric observou o horizonte. As linhas da frente angelical haviam
finalmente rompido as montanhas e estavam avançando em direção a elas. Os
animais mergulharam nas planícies com antebraços grotescamente grandes,
patas rombas, cascos estilhaçados. Um – parecido com um urso, enorme, com
uma pele manchada que parecia dura como pedras – chicoteou sua cauda
blindada e disparou tiros de fogo. Uma luz sinistra brilhou – brilhante e
líquida, como rios iluminados pela lua desbotados de cor. Asas angelicais se
aproximando rapidamente.
Mas Audric não vacilou. Em sua mão, Illumenor era um inferno. Isso os
deslumbraria. Ele ouviu os gritos dos monstros abaixo e viu os anjos se
afastarem rapidamente, como se tivessem sido esmurrados.
Ele olhou para eles. Além das montanhas, a noite reinava. Mas Illumenor
transformou o campo de batalha em um amanhecer escaldante e impiedoso.
Ele ouviu os sons terríveis de dois exércitos se chocando. O toque das
espadas, os gritos selvagens dos soldados caídos.
— Nós somos a luz!
E ainda assim eles gritavam suas palavras.
A respiração de Audric combinou com a batida urgente das asas de Atheria
enquanto ela mergulhava em direção às montanhas. Illumenor abriu uma
ampla linha de fogo branco através do exército angelical. Ele ouviu o assovio
de flechas, as maldições sibiladas de anjos chicoteando o ar, mas nada nem
ninguém poderia se aproximar do brilho ofuscante de seu lançamento.
Ele não seria capaz de manter esse poder estável por muito tempo.
Ele voltou seus pensamentos para a batalha que se desenrolava abaixo e
procurou Rielle no caos.
39
Eliana
No quarto que Ludivine reservara para ela, Eliana estava deitada ao lado de
Navi, os braços apertados ao redor dela, o rosto pressionado contra seu braço.
Ela ouviu Navi respirar e esperou que ela respondesse. Com uma pontada de
nervosismo, ela lembrou que não seria capaz de esperar muito tempo.
Corien não ficaria enfraquecido pela lâmina de ferrugem de Simon para
sempre. Ludivine se trancara em seu quarto para vigiá-lo. Cada momento que
passava os aproximava do momento em que ele recuperaria suas forças e
viria caça-la. Horas, Ludivine imaginara, e apenas algumas delas.
Eliana se aninhou ao lado de Navi, ávida por seu calor. Ela pensou em
como Navi beijou a mulher de olhos afiados e boca mais afiada, Ysabet, antes
de se retirar para o quarto de Eliana. Como seus dedos se entrelaçaram, um
toque prolongado, antes de se separarem. Não deveria ter trazido nada além
de alegria saber que sua amiga havia encontrado uma amante. Mas isso
apenas a fez pensar em quão pouco tempo ela tinha passado com Navi, Zahra
e todos que ela amava tanto, e como todo aquele tempo tinha sido enquanto
estavam na guerra.
Por fim, Navi soltou um suspiro agudo. Sua mão esquerda acariciou o
cabelo de Eliana.
— Bom — ela disse, e então não disse mais nada. Eliana ergueu os olhos
para ela, estudou seu rosto. O corte fino de sua mandíbula, seus cílios grossos
e pretos. Ela mexeu na bainha da manga de Navi, feliz por não estar dizendo
mais nada. Ela não precisava; Eliana podia ver tudo o que ela sentia em seu
rosto.
Ela perguntou baixinho: — Você tem vergonha de mim?
— Por que você tem pena dele? — A voz de Navi era gentil. — Claro que
não. Eu admito que tenho pena dele. Mas tenho muito mais pena de você e
estou feliz por nem eu nem ninguém do meu povo tê-lo visto hoje. Ele é
sábio em se manter escondido. Não tenho certeza se poderia ter contido
Ysabet, e ela nunca conheceu o homem.
Eliana sorriu um pouco. O silêncio caiu entre elas, uma longa e lenta
puxada de paz.
— Estou com raiva de ter que fazer isso — sussurrou no silêncio.
Os dedos de Navi estavam tenros em seu cabelo. — Assim como eu, minha
querida.
— Estou com raiva por querer fazer. — Eliana pressionou antes que Navi
pudesse responder: — Eu não deveria querer deixá-lo entrar de novo, aceitá-
lo, permitir-lhe seu poder. Por meses, eu me protegi das memórias dele. Eu
queria machucá-lo. Eu tentei muitas vezes. Mas agora, quando penso no que
foi feito com ele, eu o odeio menos. Quando penso em vê-lo novamente,
sabendo o que sei agora, sinto um alívio terrível. Ele sofreu, e eu também.
Todas aquelas semanas de dor no palácio de Corien… Ele viveu anos assim.
Ele entende. — Respirou fundo. — E então eu me odeio por pensar nisso
quando há muito mais em que pensar, tanto mais para…
Ela engoliu em seco contra a forte dor em sua garganta. As palavras
dançaram em sua língua. Se eu fizer isso, Navi, se eu conseguir, nunca
teremos nos conhecido. Talvez você nunca terá nascido.
Ou talvez Navi nasceria em sua adorável família em Astavar. Ela cresceria
em Vintervok sem um futuro sombrio no horizonte. Sem guerra, sem trabalho
de espionagem, sem sofrimento no redil de donzelas de Orline.
— Já existe ódio demais no mundo — respondeu Navi após um momento.
— Por que direcionar mais para si mesma?
Então Navi se mexeu até que as duas estivessem de lado, uma de frente
para a outra. Ela pressionou as sobrancelhas contra as de Eliana.
— Não temos muito tempo — sussurrou Eliana. Poderia ter sido dito sobre
qualquer uma delas, sobre qualquer parte disso, mas ela sabia que Navi
entenderia o que ela quis dizer. — Eu não tenho que perdoá-lo, ela disse. Eu
só tenho que abrir meu coração para ele novamente. — Ela riu um pouco,
com lágrimas nos cílios. — O pouco que resta.
— Então vá até ele — disse Navi em voz baixa. — E seja gentil com minha
amiga. Seu coração é mais forte do que ela pensa, não importa que mal tente
quebrá-lo.
Eliana beijou a bochecha de Navi. Ela fechou os olhos e permaneceu ali
contra a pele macia de Navi. Então se levantou da cama e não olhou para trás.
•••
Ela o encontrou em uma pequena câmara situada longe dos outros. Seus
passos a levaram até lá como asas agitadas de nervosismo, e quando bateu na
porta e ouviu sua convocação, todos os músculos de seu corpo ficaram
tensos. O pânico estilhaçou rapidamente dentro dela, uma rachadura
crescente no gelo fino. Ela considerou se virar, deixá-lo, exigindo de
Ludivine outra solução. Como poderia aceitar ou mesmo enfrentar este
homem que a machucou?
Este homem que sofreu exatamente como ela. Este homem que, como ela,
conhecia muito bem a verdadeira amplitude da crueldade de Corien.
Ela não se virou.
Entrou no quarto, encontrou Simon sentado na beira de uma cama
minúscula que parecia pequena demais para seu corpo alto. Foi aqui que ele
passou aqueles meses sob a tutela de Ludivine? Ela o tinha visitado enquanto
ele dormia, enviado pesadelos dentro dessas mesmas paredes?
Ele olhou para cima, percebendo tarde demais quem estava diante dele. Ele
não conseguia esconder a confusão aberta de seu rosto, seus olhos injetados
de sangue e bochechas avermelhadas, a selvageria de seu cabelo. Ele
encontrou os olhos dela e desviou o olhar imediatamente.
— Não — ela disse, indo para ele de uma vez. — Se eu não tenho o alívio
de não ter que olhar para você, então você também tem que me ver. — Ela
ergueu o seu queixo para que seus olhares se fixassem. Seus cílios estavam
molhados. Ele tentou desviar o olhar novamente; ela não permitiu, mantendo
seu rosto imóvel. Ele havia se mantido barbeado enquanto estava no palácio
de Corien, mas esses últimos dias selvagens não lhe deram tempo. As
bochechas dele estavam ficando ásperas de novo, e ela queria esfregar os
dedos contra elas até não se lembrar de nenhuma outra sensação. Ansiava por
machucá-lo de qualquer maneira cruel que pudesse imaginar. Ansiava por
fugir dele e de tudo que os esperava.
— Eu sei o que foi feito com você — disse a ele com firmeza. Era difícil
falar. Ela colocou uma peso metalizado em cada palavra. — Eu sei o que
você suportou. Você tem minha pena. Você não tem minha confiança.
Ele acenou com a cabeça, sua boca apertada. Ele esperava que dissesse isso.
Contra as palmas das mãos, ela podia sentir os músculos de sua mandíbula
trabalhando.
Muitas palavras aglomeraram sua garganta, muitas delas brutais. Ela
poderia ter gritado de frustração. Isso estava indo rápido demais para os dois.
Havia muita dor entre os dois, muitas mentiras e muitos dias separados.
— Mas você tem meu amor — disse furiosamente, como se fosse uma
maldição.
Simon a observou, mal respirando. Ele não piscou.
— Gostaria que você não tivesse nada meu — disse Eliana entre os dentes.
Suas bochechas queimaram de raiva e seu coração doeu em muitos lugares.
— Nem meu amor, nem minha raiva, nem minhas memórias. Eu gostaria que
você não tivesse visto o que ele fez comigo. Eu gostaria…
Não conseguia mais falar. Simon estendeu a mão para cobrir as mãos dela
com as suas. Ele mal a tocou; ela era uma casca de ovo em suas mãos.
— Eu gostaria de poder machucar você como você me machucou — ela
sussurrou. — Eu gostaria de não querer você ainda ou não me importar com
você. Eu gostaria que tudo que eu quisesse fosse ajudá-lo a encontrar seu
poder novamente. — Ela balançou a cabeça. Sua voz oscilou à beira de algo
afiado. — Mas eu quero mais do que isso. Mesmo agora, mesmo depois de
tudo.
Quando Simon fechou os olhos, as lágrimas escorreram. Ele virou o rosto
para a palma da mão dela, sussurrou seu nome contra seus dedos.
Ela observou sua boca, lutando ferozmente contra a própria miséria. Isso
dividiu sua visão em diamantes. — Ele me machucou — ela disse
suavemente. — Eu chamei por você. Gritei para você me ajudar.
Simon deixou escapar um único soluço. Atrapalhado, estendeu a mão para
ela. Seu rosto contra as costelas de Eliana, suas mãos agarrando a camisa
dela. O tenro peso de suas palmas enviou uma feroz mordida de alegria por
seus braços. Seus instintos estavam em guerra. Por deixá-lo dolorido, por se
apoiar em seu calor. Dois caminhos e nenhuma resposta.
— Deus, eu sei — disse ele, a voz abafada. — Eu te ouvi. Eu ouvi cada
palavra, Eliana. Eu ouvi todas as vezes em que ele te machucou e não pude
fazer nada. Houve momentos em que ele me fez assistir, e você estava tão
delirante de dor que nem percebeu que eu estava lá.
Suas palavras se espalharam como cacos de vidro contra a barriga dela.
Cada uma a apunhalou, e ainda assim ela agarrou seus ombros, segurou-o
rápido, desejou que pudesse pressioná-lo dentro dela até que ele não existisse
mais em nenhum outro lugar.
Segurou seus ombros e observou a parede enquanto ele chorava. Suas
lágrimas eram tão silenciosas quanto as dela, seu corpo rígido. Ambos
estavam acostumados com isso, ela supôs. Estavam acostumados a esconder
os sinais de sua dor.
E de repente, não aguentou mais permanecer de pé. Não se importou que
quisesse machucá-lo, que por meses ela o viu espreitar pelo palácio e
imaginou o assassinato em suas mãos.
Ela curvou a cabeça para beijar o topo da cabeça dele. — Vou sentir sua
falta — ela disse, sem querer dizer isso, e então um soluço explodiu dela,
inesperado e selvagem. Mal conseguia respirar; as lágrimas a agarraram
como punhos.
Havia mais a dizer, mais do que jamais poderia ser dito, mas Ludivine
estava trancada em seu misterioso quarto à luz de velas, lutando por cada
momento. Não havia tempo para dizer mais nada, não havia tempo para
consertar ou curar. Não é perdão, Ludivine havia dito. Apenas aceitação. E
Eliana tinha vindo para o quarto de Simon determinada a não fazer nada além
de falar, para trabalhar para abrir seu poder para ele e ajudá-lo a procurar
mais uma vez pelo dele.
Mas quando ele virou o rosto para ela, com as mãos trêmulas em suas
mangas, Eliana perdeu todo o sentido da ira que desejava que ele merecesse e
sabia que não merecia, e ela encontrou sua boca com alegria.
Ele esperou até que ela se acomodasse em seu colo antes de envolvê-la nos
braços. A sensação quase partiu seu peito em dois. Um casulo tão sólido de
calor. Ela gritou contra seus lábios, abriu a boca para receber seus beijos. Eles
derramaram dentro dela como facas aquecidas pelo fogo. Aço quente
cintilando vermelho, lâminas que escorregaram e cortaram. Ele cheirava a sal
e fumaça, murmurou o nome dela até que ela usasse as sílabas na pele.
Isso não traria alívio, Eliana sabia, mesmo enquanto se agarrava a ele. Seus
dedos a encontraram, e ela apertou as coxas ao redor de seu braço. Iria
terminar e doeria no corpo e no coração, tudo o que eles haviam trancado
agora, mais uma vez desencadeado. Seu poder voltaria se eles tivessem sorte,
ou talvez azar, e então ele a mandaria de volta para fazer a coisa impossível
que ela deveria fazer, e ela nunca veria essa versão dele novamente, nunca
veria nenhum deles novamente. Se ela tivesse sucesso, se o seu eu não
nascido sobrevivesse, cresceria na Velha Celdaria, ignorando tudo o que
tinha ou não sido.
Ela entrelaçou os dedos no cabelo de Simon, puxando com força para que
ele olhasse para ela. Seus olhos pousaram em seu rosto, tão abrasadoramente
quente quanto ela se lembrava, e sua mão se moveu exatamente como da
primeira vez, até que o fogo subindo dentro dela se espalhou, rugindo. O
desespero veio rápido em seus calcanhares, e ela sabia que não poderia parar,
ainda não, nunca.
Frenética, se moveu para se deitar de costas e o puxou para cima dela.
Guiou-o até o lugar e prendeu as pernas dela nas dele. Ele deve ter percebido
seu desespero, a dor selvagem crescendo em seu peito como uma tempestade
girando com um trovão impiedoso. Ele se moveu afiado e forte, como se
pudesse imbuir nela a memória de todas as noites que nunca teriam. Um
pedido de desculpas por cada vez que ele a machucou. Um pedido de perdão
que nunca viria.
Ela se arqueou contra ele, firmando o aperto de suas coxas. Puxou seu
cabelo, cravou as unhas na carne cicatrizada de suas costas. Quando ele
agarrou sua garganta, chupando suavemente em sua pele, ela sussurrou por
mais, implorou a ele, ordenou. Sua mente era uma cascata de luz. Ela não
sabia nada além dele – o mapa de suas cicatrizes sob suas palmas, o plano
áspero de sua mandíbula raspando sua bochecha, sua boca em cada
inclinação trêmula de seu corpo. Sua voz rouca, quente contra seu ouvido, e
quão lindamente se abriu sob o peso de seu nome.
Depois, se resfriando nos lençóis úmidos, macios e pegajosos no ninho de
seus braços, Eliana pressionou o rosto contra seu peito. Com a mandíbula
doendo de tensão, as pernas e os braços pesados e cansados, ouviu o ritmo
constante do coração dele.
— Eu não te amo — sussurrou ferozmente contra a pele dele.
Um momento se passou. Então ela sentiu a mão de Simon em sua nuca,
embalando-a contra ele. Seus lábios tocaram sua testa.
— Eu sei — respondeu ele, com a voz embargada de tristeza. — Eu
também não te amo.
40
Simon
A princípio, quando acordou, Simon não pôde fazer nada além de olhar para
ela.
Ele manteve os olhos abertos o máximo que pôde, saboreando o som da
respiração dela. Mas a exaustão finalmente o puxou para um sono leve que o
deixou, como sempre fazia, lutando por uma selva de sonhos sombrios.
E então acordou com Eliana enrolada fortemente contra ele, seu rosto
enrugado de raiva mesmo durante o sono. Ele mal respirou enquanto a
observava. O emaranhado de cabelo escuro caindo sobre sua bochecha, seus
lábios rachados, sua pele machucada e macia – não por suas próprias mãos,
embora pudesse muito bem ter sido.
Ele nunca esqueceria seu rosto naquela noite. Enquanto dançavam no
cintilante salão de baile de Festival, ela se agarrou a ele. Com medo, mas
relutante em demonstrar. Apenas o aperto forte e suado de sua mão ao redor
da dele enquanto valsava traiu seu verdadeiro terror. E então, no navio do
almirante, ele deu um passo à frente em seu uniforme imperial e observou
sem sentir como toda a luz deixou seus olhos.
Sem sentimento. Sim, tal como Ludivine lhe ensinara, e desde o início, fora
um excelente aluno.
E, no entanto, houve momentos em que ele quase jogou tudo em ruínas.
Ele cuidadosamente se afastou de Eliana para balançar as pernas nuas para
fora da cama. Ele passou as mãos pelos cabelos, depois segurou a cabeça e
olhou para o chão.
Ele não podia banir de sua mente a imagem dela se contorcendo enquanto
Corien se agachava sobre ela, zombando dos gritos dela com os seus. A
galeria de vidro estilhaçado ao redor deles, e Eliana estendendo a mão para
ele.
Ela gritou por ele, chorou seu nome, e ele apenas ficou parado olhando,
uma coluna de pedra perfeita, aguardando suas ordens. Em sua mente,
Ludivine não disse nada, mas ele a ouviu mesmo assim.
Quebre e condene todos nós.
O coração de Simon disparou, sua respiração acelerou. Ele ergueu os
braços trêmulos no ar e quase riu alto, porque mesmo com essas memórias
batendo em sua mente cansada, seu poder ganhou vida de uma vez. Os fios
giravam facilmente no ar e grudavam em seus dedos como rebarbas atraídas
pela fricção do linho. A energia picou nele; o ar zumbia com uma música
distante.
Ele imaginou o corredor de pedra lisa do lado de fora de seu quarto. Teto
baixo, suportes de ferro para tochas. Ele tentaria isso primeiro, apenas um
pequeno salto da sala para o corredor.
O empirium está dentro de todos os seres vivos, e todos os seres vivos são
do empirium, ele recitou, o calor subindo rapidamente em sua garganta.
Seu poder conecta não apenas carne com osso, raiz com terra, estrelas com
céu, mas também estrada com estrada, cidade com cidade.
Momento a momento.
Mas enquanto Simon tentava focar sua mente, ela estremeceu e escapuliu
dele. Os fios em seus dedos tremeluziram.
Ele apertou sua mandíbula, seu corpo rígido com a tensão, suas mãos
acesas com o poder que se tornou desconfortavelmente quente. Ele não
estava acostumado a trabalhar com magia e não conseguia fixar seus
pensamentos no corredor fora desta sala. Seu quarto. Muitas noites ele tinha
ficado acordado como um menino, frio de pavor, se perguntando se Ludivine
viria até ele para a lição da manhã seguinte silenciosamente, em sua mente,
ou em vez disso viria silenciosamente pelo corredor fora de seu quarto. Uma
bandeja de café da manhã em suas mãos, e seus olhos negros firmes contendo
dentro deles um novo terror com a intenção de desvendá-lo.
Ele piscou o suor de seus olhos. Ele nem mesmo culpava Ludivine por tudo
que ela havia feito. Ele não culpava nenhum deles – exceto pelo anjo
lambendo suas feridas lá em cima e a rainha monstruosa que ele tanto amou.
Simon quase riu ao pensar nela. A Assassina de Reis, como a chamavam.
Como ele uma vez a adorou. Mesmo perto do fim, quando rumores
desagradáveis corriam para cima e para baixo nas ruas de Âme de la Terre e
os music halls tocavam com o som de canções sujas escritas para insultá-la,
mesmo assim Simon tinha acreditado que sua Rainha do Sol voltaria para
eles.
Mas agora sua mente não se fixava na memória da Assassina de Reis. Ele
mal conseguia se lembrar do nome verdadeiro dela. Ele tentou forçá-lo e seu
corpo estremeceu de dor.
Ludivine o ensinara muito bem a não pensar nela. E Corien… Corien
gostava que ninguém pensasse nela, exceto ele.
Simon franziu a testa para suas mãos rígidas. Elas balançaram no ar como
se estivessem lutando contra uma porta invisível. Os fios brilharam uma vez,
depois desbotaram.
Ele enfiou os dedos no cabelo e se curvou sobre os joelhos, um grito de
frustração alojado em sua garganta. Ele fechou os olhos com força contra o
tumulto de sua mente. Muitas imagens, muitas vozes. Muitos cortes, muitas
cicatrizes.
Então algo se mexeu atrás dele – um pequeno som, uma pergunta – e ele se
manteve imóvel, tenso de desejo e quente de medo. Quando Eliana o tocou,
com as mãos suaves tenras em seu braço, ele deixou escapar um soluço
áspero. Ele pegou a mão dela e a levou aos lábios. Mas não conseguia olhar
para ela. Mesmo que tivessem uma vida inteira de anos para dividir entre
eles, ele não tinha certeza se algum dia seria capaz de se convencer de que
merecia olhar para ela.
— Eu estava tentando lembrar alguma coisa — Eliana disse baixinho
depois de um tempo, — mas estou tendo problemas. Imagino se você poderia
me ajudar.
Simon fechou os olhos. Ele poderia ouvi-la falar pelo resto da vida que lhe
restava. Sua voz continha sombras, mas ainda era dela. Como ele havia
sentido falta disso. Como ele agonizou em seu quarto silencioso no palácio,
tentando ignorar o eco distante de seus gritos.
— Claro que vou te ajudar — ele murmurou.
— Bem, é um pouco engraçado. Quando nos conhecemos, você e eu, em
minha casa em Orline. Lutamos. Você usava sua máscara.
Simon procurou a memória. Estava irregular, assim como todo o resto.
Flashes de cores caóticas presos atrás da escuridão agitada. Ludivine
trancava-se em seu quarto, Corien trancava-se em seu palácio, cada um deles
lutando contra o outro – as ondas de sua guerra o golpeavam até agora,
protegido no coração profundo da casa de Ludivine como ele estava.
— Eu me lembro — ele disse finalmente. — Lutamos. Você foi muito bem.
— Eu fui — concordou Eliana, — mas aqui está uma coisa que não consigo
me lembrar. — Ela fez uma pausa. — Quantas vezes eu soquei a sua cara?
Três? Cinco?
Uma risada áspera explodiu dele. Ele não estava acostumado a rir. Se
alojou estranhamente em sua garganta, deixando-o tonto.
— Eu apontei uma arma para você — ele lembrou. — Você me chamou de
trapaceiro.
— Sim — ela disse levemente. — Eu teria vencido você de outra forma.
— Improvável.
Houve uma pausa. Então Eliana se aproximou dele, sua perna tocando a
dele. — Eu tentei me lembrar de outras coisas.
Ele sabia o que ela estava fazendo. Ele sentiu o calor constante do poder
dela alcançando-o, como se ela fosse de fato o sol se pondo para aquecê-lo.
Ele já podia sentir seu poder crescendo para encontrar o dela. O ar ao seu
redor começou a clarear, e seus pensamentos junto.
Ele soltou um longo suspiro e ergueu os braços mais uma vez.
— Que outras coisas? — ele perguntou. A luz floresceu suavemente nas
pontas dos dedos. Uma boa queimação.
— Qual era o nome do seu pai. Você me disse uma vez.
— Garver — respondeu. O nome saiu estranhamente de sua língua. O rosto
de seu pai era apenas uma leve mancha de memória. — Garver Randell.
— Ele era um curandeiro.
— Sim.
— E um marque, como você.
Simon concordou.
— Diga-me, Simon — Eliana disse gentilmente.
— Sim — respondeu. — Um marque, como eu. — Ele lambeu os lábios
secos. — O que mais você quer se lembrar?
— Os nomes dos nossos amigos que você atirou no Festival — disse sem
fazer julgamentos.
Mesmo assim, ele lutou para falar. — Darby. Oraia. Éster. Dani e seu filho,
Evon.
— E muitos outros.
— Sim.
— Tudo a meu serviço.
— Sempre, Eliana. — Sua voz ficou presa em espinhos. Sempre. Uma
palavra cruel, uma palavra mentirosa.
Ele prendeu a respiração, esperando que ela falasse novamente. Além de
suas mãos girou um círculo de luz deslumbrante. Tópicos, esperando para
serem percorridos.
— Também estou tentando me lembrar de como foi aquela primeira noite
em que estivemos juntos — ela sussurrou por fim.
— Foi tudo — Simon respondeu. Ele ouviu o som frágil de sua voz como
se não pertencesse mais a seu próprio corpo e ele estivesse ouvindo de algum
lugar distante, um lugar dourado e quente à luz de seu poder crescente. —
Você foi tudo naquela noite. Você era o mundo inteiro e eu estava seguro
dentro de você. Pela primeira vez, me senti seguro.
Eliana lentamente envolveu seus braços ao redor do torso dele, em seguida,
pressionou a bochecha entre suas omoplatas e o segurou.
— Eu também — ela sussurrou.
Simon deixou-se viver ali por um momento, então se levantou e vestiu as
calças. Ele levou a sensação de seu abraço silencioso com ele através dos fios
e emergiu no canto mais distante da sala com o nome dela nos lábios. A luz
dos fios se fechou em seus calcanhares, lançando um leve toque amargo de
fumaça.
Ele se virou para encontrar Eliana olhando para ele. A visão dela quase o
derrubou. Nua nos cobertores amarrotados, ecos de violência marcando sua
pele, ela ergueu a cabeça e olhou para ele com firmeza. O ar ao redor dela
brilhou com poder. Uma rainha em sua cama, iluminando o mundo desperto.
Ele precisou de tudo para se afastar dela e tentar de novo, cada vez mais
longe e com mais facilidade, até que viajou até o final do complexo de
Ludivine e voltou para seu quarto em um piscar de olhos.
Ele caiu no chão frio, tremendo com coisas que não conseguia nomear.
Ouviu Eliana se levantar da cama, puxar sua túnica descartada e vir até ele.
Ela se ajoelhou e tocou seu rosto. Tão cuidadoso, a queda de seus dedos em
sua pele, como se tivesse medo de que ele fosse voar para longe dela. Que ela
acordaria, e seria mais um sonho enviado pelo inimigo.
Simon olhou duramente para o chão. O que estava por vir o aterrorizou.
Apenas duas vezes em sua vida ele tentou viajar no tempo, e ambos os casos
terminaram em desastre.
— Quando eu era mais jovem — disse ele com voz rouca, — não precisava
desse tipo de ajuda para fazer magia.
— Não há nada de errado em precisar de ajuda.
— Não, não há. Eu tinha simplesmente esquecido como era recebê-la.
Ele sentiu uma mudança, então, uma mudança na batalha que fervilhava no
perímetro de sua mente. Ele sabia o que significava e se enfureceu contra
isso. Ele puxou Eliana para si com força, e ela o agarrou com a mesma força
e o segurou perto. A respiração dela estava quente em seu cabelo, seu corpo
fino sob suas mãos.
— Somos mais do que nossa raiva — disse ela, em voz baixa. Essas foram
as palavras que ela havia dito em Willow, os jardins macios com a chuva ao
redor deles, as mãos quentes em seu peito cheio de cicatrizes. A memória
vagou docemente, a última folha caindo antes do inverno.
— Somos mais do que aquilo que nos foi feito — disse ele em resposta, e
sentiu o sorriso dela contra seu pescoço.
A porta se abriu. Um dos acólitos sem nome de Ludivine, impassível,
nitidamente eficiente. Eliana se virou para encarar o homem por cima do
ombro.
— Sim? — ela retrucou, e o som agudo de sua raiva fez Simon doer de
amor..
— Ela diz que está na hora — disse o acólito, olhando nos olhos de cada
um. — Ele nos encontrou.
41
Eliana
Eliana correu para a sala preferida de Ludivine, Simon logo atrás dela.
Ambos usavam roupas limpas fornecidas pelos acólitos. O casaco de Eliana
abotoava em seu ombro e caia sobre os joelhos, flexível o suficiente para ela
se mover, mas grosso o suficiente para oferecer alguma proteção. Ela usava
um cinto de armas pesado, carregado com adagas, e sentiu falta de suas
próprias facas perdidas.
Ela olhou para Simon apenas uma vez. Momentos atrás, ele a segurava, o
rosto aberto e suave. Agora, ele estava armado para a batalha. Um casaco
longo como o de Eliana e, por baixo, uma cota de malha. Revólver na cintura,
facas nas botas e nas bainhas presas aos antebraços.
Dentro da sala, Ludivine sentava-se com Remy como ela tinha feito com
Eliana – em duas cadeiras frente a frente dentro de um amplo triângulo de
três velas tremeluzentes.
Ludivine ergueu os olhos, a pele pálida como osso. Eliana se assustou ao
ver o quanto ela havia mudado em apenas algumas horas. Sombras
escureceram as cavidades de seu rosto e o suor pontilhava seu lábio superior.
Mas sua voz ainda era fria como água. — Está tudo funcionando como
deveria?
Eliana poderia alegremente ter batido nela novamente por isso. Tanta frieza
em sua voz, como se não soubesse exatamente o que tinha acontecido, como
se não pudesse sentir o estado de seus corações.
— Tudo está como deveria ser — Simon respondeu, seu olhar brilhante
como aço aceso.
Ludivine não vacilou, mas Eliana ouviu sua voz, suave e triste em sua
mente. Sinto muito, pequenina. Nem sempre fui como sou agora. Eu gostaria
que você pudesse ter me conhecido quando meu coração ainda estava
inteiro.
Eliana não respondeu nada. Sem piedade, sem gentileza. Não tinha espaço
para isso. Seu corpo estava tenso e trêmulo; ela empurrou com força contra si
mesma como se estivesse lutando contra uma enchente crescente. Ela ouviu
passos suaves na entrada da sala e olhou para trás para ver Navi e Ysabet,
Patrik e Hob, Malik e vários outros logo atrás deles.
Navi estendeu a mão para ela. Eliana agradecida pegou sua mão, então
enfrentou Ludivine mais uma vez. Ela não olhou diretamente para a nuca
escura de Remy, com muito medo de pensar sobre o que ele e Ludivine
poderiam estar discutindo.
— Seu acólito disse que Corien nos encontrou. — Ela mordeu cada palavra,
dentes duros e língua afiada. — Agora o que você quer que façamos? Onde
ele está?
Ludivine se levantou. Serena, ela inspirou e expirou, então inclinou a
cabeça ligeiramente, como se estivesse ouvindo um som distante.
Eliana ficou tensa. Um momento denso passou, e então ela ouviu: uma
vibração retumbante, um grito alto e distante. Fraco, mas imperdível. O ar
ficou mais pesado, ficou parado. Era o momento antes de uma tempestade
estourar.
Atrás de Eliana, os outros se mexeram nervosamente.
Ysabet marchou para a frente, com as mãos nos quadris e os olhos
semicerrados. — Ela fez algo. Você pode sentir que? A pedra está vibrando
sob nossos pés. — Ela sacudiu a cabeça. — O que você fez, anjo?
Ao lado de Eliana, Simon se mexeu. Ela olhou para ele. Ele não olhava
para ela, mas ela sentia que agora era por um motivo diferente.
Ludivine gesticulou para os dois acólitos que flanqueavam a porta.
Imediatamente, eles começaram a esvaziar a sala – as cadeiras, o tapete, os
pedestais em que as velas queimavam. Apenas as velas em si permaneceram,
e a espada embainhada de Katell.
Remy silenciosamente veio para o lado de Eliana, encontrou sua mão livre.
A dor que agora vivia em sua garganta floresceu cruelmente. Se fizessem
isso, nada disso importaria. Nem Vaera Bashta, nem o Invictus, nem o novo
brilho duro nos olhos de Remy. Ele nasceria filho de Ioseph e Rozen
Ferracora e viveria uma vida feliz na cidade de Orline, escrevendo histórias e
assando bolos. Ela se recusou a reconhecer qualquer outra possibilidade.
— Esta câmara fica no coração de um labirinto — disse Ludivine, muito
quieta enquanto seus acólitos se movimentavam ao seu redor. — Existem
dezenas de câmaras, centenas de passagens. Alguns levam a quartos. Outros
não levam a lugar nenhum. Isso nos dará algum tempo. Cruciata são
inteligentes, mas sua sede de sangue embota seu juízo.
Navi respirou fundo.
Logo atrás de Eliana, Simon ficou em silêncio, as mãos em punhos ao lado
do corpo.
Timidamente, Eliana alcançou a mente de Ludivine. Imediatamente
Ludivine mostrou-lhe a verdade, seus olhos negros sem piscar e sem
vergonha.
— Você trouxe as cruciata para o subsolo — sussurrou Eliana. Gritos
estridentes e ásperos, ainda distantes, seguiram suas palavras, como se as
feras tivessem ouvido seu nome.
Alguém atrás dela – Hob, ela pensou – murmurou uma maldição afiada.
— Por quê? — Navi sussurrou asperamente. — Como?
A câmara zumbia com vibrações crescentes. Algo estava se aproximando
deles, algum peso implacável marchando. As feras? Ou pior?
O estômago de Eliana caiu. A clareza a invadiu, o calor perseguido pelo
frio.
— Porque os anjos estão vindo atrás de nós — disse ela, — e as cruciata
nos protegerão.
— Nos proteger? — Patrik zombou, olhando para Ludivine. — Elas não
têm amor por nós, e agora dois inimigos logo estarão sobre nós, graças a
você.
Fazia tanto tempo desde que Eliana tinha visto Patrik que a visão de seu
rosto pálido e furioso repousou estranhamente na superfície de sua mente,
como óleo cobrindo a água. Ele era familiar e ainda não, carne e sangue e
ainda uma memória. Ele olhou para Ludivine, seu olho arruinado escondido
atrás de uma mancha preta desgastada. E lá estava Hob, alto e carrancudo ao
seu lado, cicatrizes recentes em sua pele marrom escura. Navi, os olhos
brilhando de lágrimas, a boca fina de raiva. Ysabet atrás dela, parecendo
pronta para arrancar a garganta de Ludivine com os dentes. Malik na porta,
seu rosto tão parecido com o de Navi – lindo nariz reto, quentes olhos
escuros. E aglomerados no corredor, todos que Navi trouxera com ela para o
outro lado do oceano. Dezenas de refugiados, marinheiros e lutadores
experientes, todos agora presos no subsolo.
Olhando para eles, um lento formigamento de horror se espalhando por sua
pele, Eliana entendeu por que Ludivine esperou para guiá-la até ali. Ela
estava esperando a chegada do pequeno exército de Navi – uma infantaria
descartável. A ajuda está chegando, o Profeta havia dito a ela. A ajuda está
perto.
Ludivine sorriu fracamente para todos os presentes. — Está na hora.
Rápido. Ela precisa de vocês.
Um por um, seus rostos mudaram. Uma onda de sentimento passou por eles
como uma onda cintilante de calor. O medo se transformou em raiva. As
lágrimas secaram e as bocas se firmaram. Patrik foi o primeiro a se virar e
desembainhar a espada, passando pelos outros para correr pelo corredor. Hob
o seguiu logo atrás dele, então Malik, então Ysabet, com um rosnado feroz.
Navi sufocou um soluço e puxou Eliana com força para seus braços. Um
momento depois, ela se foi, a última deles a deixar a câmara. Eliana ficou
congelada, os sons de seus gritos de guerra abafados pelo sangue latejando
em seus ouvidos. Outra respiração e seu medo se dissipou. O som veio de
volta para ela. Ela chamou o nome de Navi, tentou correr atrás deles. Mãos
puxaram suas costas contra um peito forte. Enfurecida demais para gritar, ela
empurrou Simon para longe com uma explosão de poder de seus
receptáculos. Ela não percebeu que tinha derrubado Ludivine no chão e
começou a socá-la até Remy e Simon a puxarem para longe.
— Cada momento que você me ajudou, todos os dias você trabalhou
comigo para fortalecer meu poder — ela cuspiu, — você sabia o que faria.
Você viu Navi e os outros chegando à Elysium e os guiou até aqui. Você
sabia que os enviaria para lutar contra as cruciata, os sacrificaria sem pensar
se isso nos desse algum tempo. Você sabia e nunca me disse nada.
Ludivine se sentou, enxugando a boca. Enquanto Eliana observava, seu
lábio parou de sangrar. — Claro que não.
— Porque você temia que eu lutasse com você.
— Eu não temia nada. Eu sabia que você reagiria como está reagindo
agora.
Um soluço explodiu de Eliana quando ela imaginou o rosto de Navi. — Eu
os amo..
— E eles te amam. Mesmo aqueles que nunca te conheceram. Eles adoram
o que ouviram sobre você. Eles acreditam na sua capacidade de salvá-los. E
se eles tiverem que morrer para permitir essa chance, então eles devem
morrer. — Um sorriso tocou os lábios de Ludivine. — Navi desenha imagens
irresistíveis de você para quem quiser ouvir. Claro que eles amam você. Uma
noite ao lado de Navi, ouvindo histórias sobre você, e qualquer um
acreditaria no que ela diz. Que você é uma rainha para sempre.
Eliana desvencilhou os braços de Simon e Remy. Seus pés eram pedras no
chão. — Você entrou na cabeça deles agora mesmo, mandou-os embora para
lutar. Você poderia ter feito isso com qualquer pessoa, recrutado dezenas de
pessoas do Elysium. Duzentos, quinhentos. Por que eles?
Ludivine soltou uma risada leve. Não moveu seu rosto. Sua boca estava
pálida, seus olhos grotescamente escuros na tela descolorida de sua pele.
— Não tenho certeza se você entende o quão bravo ele está — disse, sua
voz suave como uma lâmina polida. — Requer muito da minha força mantê-
lo fora desta sala. Tenho muito pouco para gastar, apenas o suficiente para
encorajar as pessoas já inclinadas a morrer para você ir e fazer exatamente
isso. Eu não poderia ter conduzido as pessoas da cidade até nós. Eu não
poderia entrar em suas mentes e transformá-los em soldados fantoches. Isso
teria me deixado muito vulnerável. Isso teria deixado Simon muito
vulnerável, ou você. E agora, cada parte de mim que ainda vive está lutando
contra ele.
Eliana pressionou os punhos nas coxas. Uma centena de pessoas caíram em
significância contra a totalidade da humanidade. Ela sabia disso.
E ainda assim se agarrou à sua raiva. — Você não deu escolha a eles — ela
sussurrou.
— Eles escolheram navegar até você — disse Ludivine. — Escolheram
seguir Zahra por uma cidade que se despedaçava quando a qualquer momento
ela poderia ter morrido e eles teriam sido descobertos. Uma fenda na
armadura mental de Zahra, e um navio de guerra poderia tê-los encontrado,
explodido em pedaços em alto mar. Eu apenas fiz uma sugestão agora. Uma
leve brisa nas costas dos guerreiros já preparados para morrer e ansiosos para
lutar.
Eliana estava entorpecida de tristeza para protestar quando Ludivine
segurou suas mãos. Ela desejou que Zahra estivesse diante dela, em vez deste
anjo de olhos negros com um espaço vazio onde seu coração roubado deveria
estar. Ela formou o pensamento violentamente, acertando-o na cara de
Ludivine.
Permaneceu sereno, liso como a porcelana.
— Cinco dos meus acólitos morreram vinte minutos atrás enquanto eu
puxava cruciata para minha casa — Ludivine disse calmamente. — Passei
muitos anos com todos eles. Eu lamento a morte deles. Mas eu não vacilei em
mandá-los para lá, nem eles vacilaram em ir. Quando Navi, Ysabet e sua
tripulação deixaram Vesper, sabiam que navegavam para a destruição. Eles o
fizeram com prazer. Eles fizeram isso por você. Foi escolha deles lutar então
e lutar hoje. Devemos agora honrar essa escolha, fazendo o que deve ser
feito.
Eliana sustentou o olhar negro de Ludivine, então se virou para encarar a
porta vazia. Navi estava lá, e Patrik e Hob, apenas um momento antes. Atrás
dela, Simon e Ludivine estavam falando. Ela os ignorou, ouvindo em vez
disso os sons distantes da batalha. Gritos monstruosos, rugidos guturais
úmidos.
Espadas quebrando.
— Eu ouço espadas — ela disse, as palavras sujas em sua língua.
— Meus acólitos, antes de morrer, tentaram deixar cem cruciata entrarem
no subsolo — respondeu Ludivine. — E Corien enviou quinhentos anjos na
frente dele. Eles se moverão lentamente, evitando o sangue cruciata que
nossos amigos derramaram. Isso nos dará algum tempo. Mas o número total
acabará dominando as feras. Eles serão o mar que abre caminho para ele.
Antes que uma hora se passe, ele estará nesta sala. Mas então, você já terá ido
embora.
Eliana se virou. Simon estava no centro da sala, de costas para ela. Ele
puxou fios do ar, um tecelão de luz.
Ludivine colocou a mão no ombro de Remy. — Remy e eu temos praticado
Antigo Celdarian. Caso algo aconteça com Simon, Remy saberá como falar
com quem você encontrar. A língua comum era diferente naquela época, e os
celdarianos provavelmente confiarão em você se você falar a língua deles.
Felizmente, o vocabulário de Remy já era bastante robusto. Ele aprendeu
muito em seu tempo com Jessamyn. — Ela sorriu com ternura, colocou uma
mecha do cabelo escuro de Remy atrás da orelha. — Se ao menos tivéssemos
mais tempo para ficar juntos, Remy Ferracora. Sua mente é fascinante. Ela
contém tantos sonhos, mesmo depois de meses vivendo na escuridão.
Observando-os, Eliana se sentiu mal. Ela arrebatou Remy de Ludivine,
então caminhou com ele para o outro lado da sala.
Nas sombras, ela se fortaleceu. Pressionou suas sobrancelhas contra as dele,
segurou suas bochechas. Seus olhos eram todo o seu mundo. Injeção e azul,
orlada com cílios escuros.
— Eu diria que você não pode ir comigo — disse ela, — mas, de alguma
forma, não acho que você vá aceitar isso.
Um pequeno sorriso ergueu os cantos de sua boca. — Se eu ficar aqui, com
certeza morrerei. Se eu for com você, posso viver.
Ela mordeu a língua. Não era o momento de falar sobre o tempo, o que
poderia ou não acontecer, o que seria ou não mudado.
— É isso — ela disse fracamente.
Remy colocou suas mãos sobre as dela, gentilmente pressionou seus dedos.
— Você pode fazer isso, El.
Parecia errado ouvir o apelido em sua nova voz rachada. Este menino
diante dela, este assassino magro com olhos vigilantes. Ela deu um beijo
feroz em sua testa. Se ela não olhasse diretamente para ele, ela poderia fingir
estar longe dos últimos meses e imaginar seu quarto em Orline. As cortinas
de renda, a colcha de sua mãe, a voz de Remy embalando-a para dormir
enquanto lia sobre santos e anjos, bestas divinas e reis.
Do corredor vieram sons horríveis, o estrondo e o rasgo de dentes e espadas
como um relâmpago abrindo a terra. Um grito agudo irrompeu do caos.
Eliana achou que parecia Navi. Seu pescoço ficou frio de suor.
Ludivine passou por eles em direção à porta. A luz dos fios crescentes de
Simon iluminou as paredes estranhamente, um pálido ouro branco que
carregava consigo um cheiro forte e acre como a carga de prata de nuvens de
tempestade cuspindo.
— Quando você passar pelos fios, se verá nos jardins reais atrás de
Baingarde — disse Ludivine. Seu cabelo era ouro líquido na luz crescente.—
Foi uma noite tranquila. Audric, Rielle e eu estávamos descansando sob uma
árvore da tristeza no final de um longo dia. Longo, mas bom. Os testes
acabaram. Ainda não havíamos saído para a excursão que a apresentaria ao
reino. Seu pai havia morrido recentemente, e o de Audric também, e havia
tristeza em nós e medo, mas quando éramos apenas nós três, também havia
paz.
Ela olhou para trás por cima do ombro. A luz da linha deu aos seus olhos
um brilho dourado. — Simon?
— Quase lá — disse, sua voz fortemente enrolada.
Eliana foi até ele e ficou ao seu lado. Ela sentiu Remy se juntar a ela, teve
um vislumbre de quão suave com admiração seu rosto se tornou enquanto ele
observava Simon trabalhar. A expressão o tornara mais familiar.
— Há algo que eu possa fazer? — Eliana perguntou.
Simon balançou a cabeça com força. — Não.
— Você está indo maravilhosamente bem.
Sua boca se curvou. Suas têmporas brilharam de suor. — Como você
saberia?
A verdade era que ela não sabia. Mas era lindo, como antes, ver seus dedos
longos e hábeis retirando a luz do ar. O sulco sério em sua testa, as linhas
definidas de sua mandíbula.
Ela colocou a mão em seu braço. Seu corpo relaxou, e os fios giratórios de
luz reunidos nas pontas de seus dedos se solidificaram, brilhando.
Apesar do medo virando frio em seu peito, Eliana sorriu.
— Obrigado — Simon sussurrou, sua voz fina sob o zumbido crescente de
seus fios, e embora ele não pudesse remover as mãos do ar, ela o sentiu se
mover em direção a ela. Suas pernas se tocaram. Remy enganchou seu braço
no dela, pressionou sua bochecha em seu ombro. Ele murmurou uma frase
em Celdarian Antigo repetidamente. No canto do olho de Eliana, uma das
velas tremeluziu.
Então, uma explosão de som vindo do corredor, uma cascata titânica de
metal contra pedra. Passando pela porta voou uma cruciata morta,
arremessada por algo fora de vista. As elegantes penas preto-esverdeadas do
raptor pintadas com listras azuis brilhantes no chão.
— Ele está vindo e mais rápido do que eu pensava — anunciou Ludivine.
Sua voz não traiu nada, mas Eliana sentiu o menor dos tremores em sua
mente.
— Você vai nos enviar e depois vir logo atrás de nós — disse Eliana com
firmeza para Simon. — Feche o fio atrás de você. Não olhe para trás.
Simon concordou. Um leve estremecimento percorreu seu corpo. Seus fios
– dezenas deles, talvez centenas – estavam se reunindo em um anel sólido de
luz giratória. E enquanto Eliana observava, fios mais escuros se juntavam aos
mais claros, consumindo-os. Eles estalavam como chicotes, chicoteando uma
escuridão cuspida no ar. O anel de luz tremeluziu, diminuiu e então se
iluminou. Fios escuros entrelaçados com fios de luz. Formas se manifestaram
além do anel – altas sombras verdes como enormes soldados marchando em
linhas limpas. Árvores?
A pele de Eliana arrepiou. Os jardins reais atrás de Baingarde.
Ela recuperou a espada embainhada de Katell e prendeu-a no cinto de suas
armas, em seguida, puxou a espada para inspeção. Era mais elegante do que
ela imaginava que seria, o punho dourado esculpido para se assemelhar aos
raios de sol, a lâmina polida para um alto brilho. Embora parecesse enorme,
parecia leve e ágil em suas mãos. Ela se levantou, maravilhada com a
facilidade com que a espada se movia no ar. Seus receptáculos cantavam
contra o punho, sua luz brilhante beijando o metal.
Gritos horripilantes ricochetearam nos corredores do lado de fora. Alguém
cuja voz ela não conhecia implorou por misericórdia.
Uma pressão negra ondulou contra sua mente e trouxe consigo um leve
sussurro:
Eliana.
Com o coração batendo forte, ela devolveu a espada de Katell à sua bainha.
Dores se apoderaram dela, saudades terríveis de seu quarto em casa, da
querida brava Zahra, do abraço caloroso dos braços de Navi. Observando os
fios, ela segurou o nó em sua garganta para que não pudesse subir mais. Ela
revirou os ombros, mudou de um pé para o outro, balançou as mãos e os
dedos. Seus receptáculos lançaram luz no teto.
Ao lado dela, os braços de Simon tremiam no ar como se sustentasse um
peso impensável. Ela estendeu a mão para ele, então pensou melhor. Se ela
pudesse envolvê-lo em seus braços, enterrar o rosto mais uma vez no espaço
quente entre seus ombros.
Em vez disso, ela encarou o anel giratório de luz, suas faíscas cuspindo pela
sala, e se preparou para correr. Seus músculos ficaram tensos, a espada de
Katell um peso leve e desconhecido contra sua perna. Ao lado dela, Remy
segurava uma adaga em sua mão direita. Em seu quadril brilhava outra. Seu
rosto, que ficou abatido por sua época em Elysium, poderia ter sido esculpido
em pedra, empoleirado no topo de um dos templos de Orline como um tributo
aos ferozes santos da antiguidade.
No momento em que Corien chegou, Eliana sentiu como se fosse o cair da
noite em sua pele. O ar pulsou, de repente tão espesso e próximo que Eliana
ofegou para respirar. Um rugido de fúria atingiu as paredes. Metal bateu
metal. Corien também tinha uma espada? O que parecia, dois anjos travados
em um combate de lâmina e mente?
Ela manteve os olhos nos fios, sentiu Remy começar a se virar e o agarrou,
girando-o de volta.
— Não olhe para ele — ela murmurou. — Olhe para Simon. Olhe para a
luz.
Ela podia sentir os dedos de Corien arranhando as bordas de seus
pensamentos, cavando por ela. Sua calma estilhaçou como madeira.
Eliana. Seus sussurros tombaram como pedras caindo. Uma onda de som
furioso. Eliana.
— Vá.
A voz rouca de Simon soou como um tiro. Eliana olhou os fios girando
como se eles cercassem um abismo, frio e sem fundo. Uma onda de medo
varreu sua pele, afiada como agulhas.
Ela resistiu ao impulso de tocar Simon e, em vez disso, aproximou-se dele
o máximo que ousou.
— Agora? — ela sussurrou.
Lágrimas brilhavam nos olhos dele. Sua boca se torceu. — Agora. Vá,
Eliana.
Atrás deles veio um grito agudo. Algum instinto ardente obrigou Eliana a
se virar. A camisa branca de Corien, meio rasgada, brilhava molhada com
sangue vermelho e azul. Veias negras desenhavam um mapa escuro no
inverno de sua pele. Ele respirava com dificuldade, e cada passo era instável,
mas o que quer que o sangue cruciata tivesse feito a ele, qualquer dor
persistente que a lâmina de ferrugem tinha deixado nele, ele estava lutando.
Um anjo menor, tão encharcado, poderia ter morrido de uma vez.
Mas Corien mostrou os dentes e ergueu a espada bem alto. Ludivine
tropeçou. Uma de suas mãos voou para a têmpora. Com um grito de fúria,
Corien se lançou contra ela. A lâmina cortou o pescoço de Ludivine. O
sangue jorrou como chuva vermelha. Sua cabeça caiu no chão e rolou. Seu
corpo se dobrou e sua espada caiu no chão.
Um gemido de pânico explodiu no crânio de Eliana. Ela girou de volta para
os fios e se lançou sobre eles. Ela agarrou a mão de Remy, o puxou com ela
através do anel de luz.
Um tiro atingiu o ar.
Atrás dela, Simon gritou.
Eliana se virou para alcançá-lo, mas algo o puxou para longe, fora de seu
alcance. Ela viu um flash de seu rosto, brilhando de dor, e então ele se foi.
Seus fios se moveram bruscamente, desviaram e se endireitaram, como se
uma nuvem os tivesse passado e o sol tivesse voltado. Os fios mais escuros,
aquelas gavinhas sibilantes do tempo, se dividiram e se reformaram. Eles
agarraram Eliana e Remy, lançando-os para frente. Sua mente gritou de
medo. Algo agarrou sua garganta, roubou sua voz.
Então ela colocou os pés em terreno sólido. Os fios se fecharam atrás dela,
chamuscando seus calcanhares.
Ela respirou fundo, desesperada por um mundo verde tranquilo e fresco. Os
jardins reais atrás do castelo Baingarde. Era uma noite tranquila.
Mas então um raio de fogo passou por cima de sua cabeça. Ofegante, se
abaixou, puxando Remy com ela. Eles atingiram o chão com força. A lama
sugava seus pés e mãos. Os cheiros sombrios de sangue e fumaça misturados
fizeram sua cabeça girar. Algo passou disparado por eles, algum grande
animal com a cabeça peluda e mosqueada e uma longa cauda de serpente.
Com cada um de seus passos estrondosos, a terra estremeceu. Algo brilhou
em torno de seus tornozelos enquanto Eliana os observava passar. Tiras
planas de metal incrustadas na pele inchada, cada peça brilhando com uma
luz familiar.
O horror a invadiu. Esta criatura não era exatamente uma cruciata, pelo
menos não como qualquer outra que ela tinha visto, mas estava perto o
suficiente e usava receptáculos. Em suas costas estava sentado uma criança
de olhos cinzentos com pulsos que estalavam em fogo. O sangue de Eliana
gelou. Uma criança elementar, controlada como os adatrox eram.
Ela se levantou. Remy ficou de pé ao lado dela. O mundo era um tumulto
de luz do sol e fogo, escuridão que se movia e uivava. Algo estava
queimando nas proximidades. Eles correram engasgando com a fumaça e
encontraram uma crista rochosa para se esconder atrás. Se enfiaram em uma
fenda escorregadia de lama e sangue. Ao lado deles estava um homem de
armadura, seus olhos vítreos bem abertos e uma de suas pernas arrancada.
Eliana escondeu a luz de seus receptáculos contra o peito e olhou por cima
da rocha para o caos.
Era um campo de batalha, tão vasto que poderia ser o mundo inteiro.
Soldados em armaduras balançaram suas espadas, arremessando suas lanças.
Um cavalo sem cavaleiro passou correndo, suas rédeas arrastando-se. Eliana
se encolheu quando um falcão das sombras voou gritando por eles.
Mergulhou em um soldado blindado, primeiro as garras e se expandiu. Um
casulo de escuridão o envolveu rapidamente, sufocando-o e jogando-o no
chão.
A noite havia caído e, no entanto, rajadas e raios de luz iluminavam a luta
em flashes erráticos. Eliana viu uma mulher pálida com cabelo preto curto
balançar um bastão preto com uma esfera azul brilhante no topo. O orbe
desenhou sombras do chão, e logo uma matilha de lobos escuros saltou para
longe dela e para a batalha, suas mandíbulas bem abertas. Um homem atingiu
o chão com um escudo brilhante, quebrando a terra. Cinco soldados
tropeçaram desajeitadamente nele, e Eliana viu um de seus olhos quando eles
caíram – cinza e turvo, sem expressão.
Seu sangue gelou. Adatrox.
— Veja. — Remy, agachado ao seu lado, apontou para a esquerda, onde a
silhueta de uma enorme montanha assomava à distância. Mil luzes pequenas
se espalharam por seu sopé. Incêndios marcavam uma enorme parede de
pedra. Era uma cidade construída nas colinas que se erguiam em direção à
montanha, e em seu ápice ficava um castelo cinza tênue com torres
alcançando o céu.
— Baingarde — Remy sussurrou. Em sua voz, ela ouviu o mesmo temor
reverente que o manteve lendo sobre o Velho Mundo noite após noite, ano
após ano.
Algo explodiu nas proximidades. O fogo floresceu e cresceu. Um soldado
voou – voou – para longe do inferno, carregado rapidamente por lanças de luz
branca envoltas nas sombras.
Por um momento, Eliana só conseguiu ficar olhando. Ela passou uma vida
sombria no palácio de um anjo, mas nunca antes ela tinha visto um com asas.
Remy puxou seu braço, puxando-a para baixo. Se achataram atrás da rocha.
Os receptáculos de Eliana tremeram contra suas palmas. Sem fôlego, o rosto
pressionado na terra, ela sentiu o gosto de magia em sua língua. Sufocou o
vento, explodindo frio e metálico em sua boca, como se ela tivesse beijado
um raio. Sua visão era nítida como vidro. Seu sangue rugiu, jubiloso.
Palavras flutuavam em sua mente em correntes de ouro.
Rielle estava viva. O empirium ainda não havia sido quebrado. Eliana
cravou os dedos na lama, resistindo ao puxão ascendente do ar mágico
maduro. Era possível voar sem asas?
— Esta não é a noite da qual Ludivine falou — disse ela.
— Não — Remy concordou. Na luz inconstante e explosiva, seus olhos
eram joias brilhantes. — Esta é a primavera, o último ano da Segunda Era. É
a Batalha de Âme de la Terre. A batalha que acabou com o mundo.
42
Audric
“Vamos cavalgar até você o mais rápido que pudermos, mas Audric –
são muitos quilômetros entre Styrdalleen e Âme de la Terre, e meu povo
foi devastado por um inverno rigoroso de nevascas, terremotos e
avalanches constantes e ataques contínuos em nosso aldeias. Milhares
estão mortos. A capital está transbordando de civis que perderam suas
casas, seus filhos, seus pais. E estamos ficando sem comida. Meu irmão
me escreveu dizendo que vem com ajuda, mas ainda não chegou e temo
que nunca chegue. Você é a melhor esperança que temos para
sobreviver a isso, Audric. Fique firme contra o inimigo e fique de olho
no horizonte nordeste.”
— Carta codificada de Ingrid Lysleva, Lorde Comandante do
exército Borsválico, para o Rei Audric Courverie de Celdaria, datada
de 19 de abril, Ano 1000 da Segunda Era
“Há manhãs em que acordo e acho que vou conseguir estender a mão e
senti-la ao meu lado. Eu me convenço de que não terei que lutar com
ela. Que ela vai me ver e querer voltar para casa. Então me viro para
encontrar minha cama vazia e me lembro da verdade sobre o que devo
fazer. ‘Não sei como amar você e ser a pessoa que a envia para a
guerra,’ uma vez disse a ela. Se eu soubesse então o que viria para nós.
Se ao menos tivéssemos mais tempo.”
— Diário de Audric Courverie, Rei de Celdaria, datado de 30 de
abril do ano 1000 da segunda era
“Eu ouço a voz de Aryava em meus sonhos – não a voz que eu conhecia
e amava, mas a voz de seus últimos momentos, quando ele parecia
diferente de si mesmo, suas palavras roucas e distorcidas. "O mundo vai
cair," ele proclamou. “Duas Rainhas ascenderão.” E algo frio e antigo
olhou para mim com seu olhar desbotado – algo que não pertencia a ele.
Naquele momento, fui vista pelo que havia feito, pelo que todos nós
fizemos. O que tínhamos que fazer e faríamos de novo.”
— Dos diários de Santa Katell, escritos nos anos após as Guerras
Angélicais, roubados da Primeira Grande Biblioteca de Quelbani
Os olhos de Rielle voaram imediatamente para Corien. Ele era uma forma
ainda negra em sua floresta crepitante de luz, e antes que ela pudesse pensar
no que fazer com ele, o que dizer a ele, ele estava sobre ela.
A dor explodiu atrás de seus olhos. Os dedos dele eram flechas negras,
mergulhando em seus pensamentos mais profundos. Eles acertaram em cheio,
e deles espalharam ondas horríveis de dor. Ele não iria matá-la, mas iria
lembrá-la de que poderia.
De mãos e joelhos no chão do terraço, ela engoliu o ar. Sua visão estava
cheia de estrelas. Ela era um tijolo de argila mole, e Corien estava cortando-a
em duas, quatro, oito, uma faca inflexível. Poderia cortar para sempre e nunca
se cansar.
Rielle desabou no chão e bateu com as mãos no crânio. Ela iria voar em
pedaços. Ele a mandaria para longe girando.
A luz pintando o terraço, flutuante e dourada, tremeluziu e depois diminuiu.
Foi apenas por um momento, um balbuciar como um batimento cardíaco que
falhou, mas Kamayin, Miren, Sloane e Evyline se desvencilharam de suas
amarras, lutando para se livrar. O menino, companheiro de Eliana, correu
para se juntar a elas.
Então, todas as luzes que Rielle havia criado, incluindo as asas brilhando no
alto, explodiram em chamas.
— Saia da minha cabeça! — ela gritou. Fogo fresco rugiu alto.
Corien a observou friamente. Havia uma nova raiva em seu rosto que ela
nunca tinha visto antes. — Não. Eu tentei isso. Eu permiti isso. Nunca mais.
Louca de dor, Rielle se levantou e buscou cegamente por seu poder. Ela
empurrou as palmas das mãos para o ar. Raios de ouro estalando voaram pelo
terraço e dispararam noite adentro. Sua pontaria era terrível, seus
pensamentos dispersos. Ela não podia ver, cega pelas lágrimas e pelas ondas
brancas pulsantes da fúria de Corien. Tudo o que ela podia sentir era o fogo
frio de sua raiva.
E ainda, sem piscar, ele a observou.
Ela tentou novamente, lançou seu poder em direção a ele em desespero. A
energia pulsava no terraço, quente e ondulante, como se algo enorme tivesse
caído do céu. Corien assobiou. Sua cabeça girou para a direita. Quando
voltou a olhar para Rielle, pequenas pontadas vermelhas de sangue
mancharam seu rosto. Um momento depois, eles se foram.
— Rielle, estou bem aqui! — Audric se arrastou até ela. Suas feridas não
desapareceram e seu rosto estava vermelho de terror, mas mesmo assim ele
lutou para alcançá-la. — Eu estou bem aqui. Fale comigo. Olhe para mim por
favor!
O mundo estava líquido. Rielle estava debaixo d'água, remando
freneticamente para a superfície. Ela não conseguia respirar, ela não
conseguia encontrar o chão.
Com as lágrimas escorrendo pelo rosto, ela procurou por Eliana.
A garota não se moveu. Ela estava rígida, sua expressão dura de raiva. A
luz brilhou em suas palmas, pronta para ser lançada. Consumada pelo calor, o
ar tremia ao seu redor. Mas se ela golpeasse Corien, isso machucaria Rielle?
Ele iria se voltar contra ela e prender as duas?
As portas de vidro se abriram. Seus sóis pintados se estilhaçaram. Uma
dúzia de soldados angelicais espalhou-se no amplo terraço, seguidos por três
bestas, cinco, oito. Uma caiu do telhado, deslizando para a frente nos ganchos
pretos e brilhantes de suas asas. Outra, reptiliana e de olhos rápidos, uma
criança elemental nas costas, lançava chicotadas de vento de seus
receptáculos enegrecidos pelas cinzas.
— Proteja o rei! — Evyline rugiu, puxando sua espada. Seus braços e
pescoço exibiam tiras de carne queimada. Os outros correram para se juntar a
ela – Miren, seu exército de facas disparando como raios pelo ar; Sloane,
puxando sombras de cada abertura e fenda. Espirais prateadas de água agitada
voaram dos pulsos brilhantes de Kamayin, e Evyline atacou, com os olhos
selvagens, cada golpe de sua espada como a queda de um trovão.
Mas então Eliana se virou e se lançou para a luta. Ao lado dela, os outros
não eram nada, desajeitados e normais. Mesmo tonta de dor, Rielle não
conseguia desviar os olhos da filha. Ela era adorável na batalha, seus braços e
pernas eram rápidos como os de uma dançarina. Seu casaco chicoteou em
torno de suas pernas. Ela estava suja de sangue e poeira, mas o zumbido de
seu poder a pintava resplandecente, como se ela tivesse nascido dos traços do
pincel brilhante de um artista. Suas mãos brilhavam mais intensamente de
todas, envoltas em seus receptáculos – dois pingentes presos
confortavelmente em suas palmas por correntes finas.
Mais bestas caíram do telhado, gritando estupidamente por sangue. Com
um grito agudo e furioso, Eliana girou para enfrentar o mais próximo e o fez
voar. Ele bateu no corrimão de pedra e caiu na escuridão.
Rielle poderia ter observado Eliana por horas. Arcos de luz dispararam pelo
ar, esmagando a armadura dos anjos, mandando-os ruidosamente ao chão.
Mas é claro que eles se levantaram repetidamente e o fariam para sempre, até
que reivindicassem a vitória.
Então Rielle sentiu o ar apertar com malícia, a respiração antes de um grito.
Seu estômago caiu por quilômetros.
Os anjos finalmente implantaram suas mentes, suas armas mais ferozes. A
força bruta de seus pensamentos estalou no ar, procurando alvos. Eles
agarrariam essas mulheres lutadoras uma por uma e as jogariam para a morte,
ou as fariam pular da beira do terraço elas mesmas, ordenariam que elas se
virassem até que nada restasse além da ruína. Eles deixariam Eliana para o
fim e a desmontariam pedaço por pedaço. Rielle respirou fundo, tonta de
medo.
Mas então algo mergulhou do céu. Quase sombras, quase corpos, mas
nenhuma dessas coisas e as duas ao mesmo tempo. Foi como quando Rielle
abriu o Portão – lampejos de beleza, pele macia que brilhava como se tivesse
emergido do mar, breves lampejos de armadura e mantos, vestidos e casacos
cheios de cores. Cabelo claro ondulado, longos cachos escuros esvoaçando
com fitas. Eles eram anjos, cada uma de suas mentes carregando ecos do que
eles já foram. E sem corpos para contê-los, suas memórias se espalharam
livremente.
Observando-os descer, Rielle lutou para se levantar e gritar um aviso. Mas
esses anjos, sem corpo e rugindo, mergulharam para lutar ao lado de Eliana,
protegendo Sloane e Kamayin. Eles teceram através dos anjos atacantes,
empunhando ecos de espadas que eles não seguravam em uma era. Um deles
tinha olhos negros como pedras de rio, cabelos brancos como fios de espuma
do mar, armadura de platina brilhante. Ela mergulhou na frente de Eliana,
desviando de ataques de mente e garras. Seu grito de guerra atingiu os ossos
de Rielle.
Os anjos com armaduras, sólidos nos corpos que Rielle fizera para eles,
amaldiçoaram os recém-chegados. Rielle sentiu a forma específica de sua
fúria: esses traidores lutariam não apenas pelos humanos, mas por essa garota
que viera do futuro para destruir o maior entre eles – Kalmaroth, renascido,
sua salvação e seu campeão.
Um pedaço de Corien pairava na mente de cada um dos anjos, pronto para
o caso de ele precisar comandá-los, e quanto mais fundo ele se afundava nos
pensamentos de Rielle, mais claramente ela podia sentir sua fúria
incandescente. Ela engasgou com isso, sua garganta fechando. Palavrões
saíram de suas bocas em Lissar, em Qaharis. Traidores! Sujos!
Meros segundos se passaram desde o momento em que Rielle se levantou
com Eliana ao seu lado. Ela ergueu a cabeça contra um grande peso – a
pressão de Corien, insistente e cheia de raiva, cada um de seus pensamentos
em torno.
Ele ficou de pé sobre ela, com as mãos cruzadas atrás das costas. Sua voz
estava baixa, e ainda assim seus ouvidos sangraram com isso.
— Depois de tudo que compartilhamos — disse ele, — depois de tudo que
conquistamos, você se afastaria de mim? — Ele olhou para além dela. Seu
rosto se transformou em linhas duras de raiva. — Você deixaria essa garota,
mentirosa, ficar entre nós?
Rielle tentou se levantar, mas a mente de Corien empurrou mais fundo,
prendendo-a. Ela ouviu um grito e girou na pedra, com os olhos turvos, para
ver Eliana cair de joelhos. Seus receptáculos lançaram um poder acelerado
que abriu um caminho carbonizado através do terraço. Ela agarrou a cabeça e
gritou, e quando ela tentou se levantar, algo invisível a atingiu. Sua cabeça
girou e ela caiu com força no chão.
A fúria cresceu dentro de Rielle em uma onda de luz branca. A dor em sua
cabeça ameaçou abrir seu crânio, mas ela o empurrou e se levantou,
encontrou Corien, cortou o ar com o braço e o atirou para longe do terraço.
Ela girou com o coração na garganta. Eliana estava de pé e lutando
novamente, e do outro lado do campo de fogo entre eles, seus olhos se
encontraram, e Rielle nunca havia sentido tanto amor em sua vida.
Corien levantou em instantes. Ela o ouviu se levantar e olhou para ele
enquanto ele voltava mancando para buscá-la. Sangue escorria por sua
têmpora; seu cabelo estava molhado. Ela sentiu uma pontada de remorso, mas
iria derrubá-lo de novo se fosse preciso.
— Você não vai tocá-la — disse a ele uniformemente.
— Ela é uma mentirosa, — ele cuspiu. — Você a deixaria ficar entre nós?
Essa garota que saiu da noite contando histórias destinadas a me machucar?
A escuridão tomou conta de Rielle, arrastando garras de dor em seu rastro
e, quando clareou de seus olhos, ela encontrou o céu envolto em chamas. Ela
estava no chão do terraço, gritando, e cada vez que se virava para se levantar,
para alcançar seu poder, o chão rachava embaixo dela. Espirais de luz voaram
de seus dedos e grandes nós de fogo choveram do céu.
— Rielle, ouça o som da minha voz! Não tenha medo! Eu estou bem aqui!
Mas ela não podia permitir que Audric se aproximasse dela. Ela iria matá-
lo, ou Corien o faria. Ela empurrou com força na direção de sua voz e
esperava que o tivesse mandado para longe o suficiente.
Corien se agachou diante dela, observando enquanto ela lutava para
respirar. Fracamente, ela ouviu Audric, ainda chamando por ela. Fique
comigo, Rielle! Lute com ele!
Ela segurou a cabeça, lutou para olhar turvamente para Corien. A visão dele
era horrível. Seu rosto era monstruoso, pálido como osso, seus olhos de um
branco brilhante que apunhalou os olhos dela como agulhas. De alguma
forma, ele tinha asas. Enormes e negras, eram feitas de mil pássaros que
cuspiam gritos estridentes e ásperos.
Rielle lutou para olhar para Eliana. Lá estava ela, sendo cercada por
dezenas de feras furiosas. Com bicos e garras, eles a rasgaram em pedaços.
As chamas subiram pelo corpo de Miren. Em segundos, ela era cinzas. O
companheiro de Eliana, o menino, se abriu de repente, e do lugar onde sua
cabeça estava havia caído ondas brilhantes de besouros negros.
Rielle fechou os olhos, mas ainda assim os viu morrer, e ainda viu os
besouros se fundirem para se tornarem um reflexo de si mesma. E ela era o
fogo também, e ela era cada uma das bestas rasgando o corpo de sua filha, e
ela era cada pássaro pulando nas costas de Corien.
— Isso é o que você é — disse Corien calmamente, sem piscar. — Esta é a
escuridão que vive dentro de você. Veja, Rielle. Lembre-se. Ame isso, como
eu amo.
Por fim, Rielle encontrou sua voz. Ela não conseguia olhar para ele. Ele não
permitiria. Ele pressionou seu crânio contra o chão.
— Eu me lembro de tudo — ela murmurou, suas lágrimas quentes contra a
pedra áspera. — Eu me lembro de como você drogou meus pensamentos, me
manteve estúpida por semanas. Lembro-me de longos meses em que você
veio até mim em sonhos. Eu disse que queria dormir, e você me manteve
acordada mesmo assim, sussurrando para mim sobre ressurreição.
— Você adora nosso excelente trabalho — disse ele. — Isso traz um prazer
que você nunca sentiu antes, uma alegria que você nunca poderia ter
encontrado com eles. Você sabe disso, Rielle.
Ela piscou com força contra as explosões de dor batendo em seu crânio. Ela
tentou alcançar seu poder, mas seus pensamentos estavam muito dispersos.
Era como agarrar a água apenas com as mãos.
— Deixe-me levantar — ela engasgou.
— Não. Não, até que eu saiba que você caiu em si.
Um soluço de raiva escapou de sua garganta. — Me liberte!
— Você tem medo de ser um monstro — disse ele, seu sussurro crescendo
em seu ouvido. — Isso devora você. Você matou seu pai. Você matou Tal.
Você matou e matou, e matará novamente. A Desfeitora. — Sua voz deslizou
contra ela como uma boca no escuro. — E se for verdade? Somos todos
monstros cheios de perversidades e violência. Pelo menos você e eu
aceitamos isso e temos o poder e a inteligência para fazer algo com isso.
Rielle balançou a cabeça, lutando sob a pressão plana e dura de sua mente.
Uma imagem veio à tona, agarrada rapidamente em meio ao caos que ele
estava fazendo com seus pensamentos: Eliana, caindo de joelhos em agonia.
Eliana, radiante na batalha. Eliana, beijando sua bochecha.
— Eu posso ser um monstro — disse Rielle, com as palavras cheias de dor,
— mas eu não sou mais sua.
O choque de Corien foi tão claro e rápido como se ela o tivesse golpeado.
— Eu te amei — disse ele com voz rouca, — como nunca amei ninguém.
Você sabe disso. Você sente isso toda vez que eu olho para você.
A pedra do terraço estava derretendo sob os dedos de Rielle. Ela rezou para
que isso a sugasse e a fizesse cair. Sujeira e pedrinhas, lançadas pelo vento,
picaram suas bochechas. Uma tempestade estava aumentando. Dez
tempestades. A montanha tremeu sob o castelo, e o castelo tremeu sob seus
pés.
— Olhe para mim.
Ela não olhou. Ela assistiu o mundo ondular de ouro na ponta dos dedos.
Corien agarrou seu queixo, forçando-a a olhar para ele. — Olhe para mim!
— ele rugiu, e então a puxou do chão e capturou sua boca em um beijo
violento.
Seus pensamentos deslizaram rápido e travados dentro dela. Ele encontrou
as cavidades mais profundas de sua mente e se estabeleceu lá. Seus dentes
pegaram seu lábio, mordendo com força. Ele enviou suas visões, memórias.
Sua cama em Northern Reach, as peles tortas, seus corpos nus e corados.
Aquela caverna em Kirvaya onde ela o beijou pela primeira vez. A segurança
quente de seus braços depois que ela fugiu de de Âme la Terre, com o
coração partido e furiosa. Como ele cantou seu nome, pressionou seus lábios
em seu cabelo.
Ela choramingou, agarrando suas mangas. O som o encorajou. Ele
aprofundou o beijo, as mãos apertadas ao redor de seu crânio, e ela podia
senti-lo brincando com seus desejos, alimentando-os. Se ela não respondesse,
ele a forçaria. Se ela não visse a verdade em suas palavras, ele iria refazer
seus olhos para que ela nunca visse nada além do que ele permitia.
E seria fácil, Rielle pensou, permitir isso a Corien. Em troca, ela não teria
que tocar em nada que a machucasse, ou enfrentar as coisas que havia feito,
ou descobrir como viver neste mundo no qual ela não se encaixava bem. Ela
poderia explorar seu poder sem restrições e não se importar com o que deixou
para trás.
Ela tentou puxar de volta para respirar, cambaleando com seus beijos, mas
ele apertou seu domínio sobre ela, puxando-a contra ele. Sua raiva era uma
película de alcatrão no fundo de sua boca. Ela não conseguia respirar; sua
cabeça pulsava com ondas brancas de dor. Seu aperto tornou-se um castigo,
suas unhas cravando-se na carne dela.
— Minha — ele soluçou contra sua boca. — Você é minha, Rielle, e eu sou
seu. Nós nos entendemos. Eu não posso fazer isso sem você. E sem mim,
você estará realmente sozinha. Eles nunca vão aceitar você. Ele nunca vai
aceitar você. Eles vão tecer novas mentiras todos os dias. Eles vão sorrir na
sua cara e, então, quando a porta se fechar, eles vão sussurrar com medo de
você e conspirar contra você, e as crianças vão estremecer ao ouvir o seu
nome. Você sabe disso. Até ele. — Ele a sacudiu com força. — Você sabe
disso.
— Pare — ela engasgou, sua voz presa em sua garganta. Sua mente
arrastou seus pensamentos. — Me solte, por favor!
— Nunca mais, Rielle. Olhe o que você me fez fazer. Eu não queria isso.
— Sua boca se moveu para baixo em seu pescoço, seus dentes arranhando
sua pele. Sua presença era uma névoa em sua mente, espalhando-se
rapidamente. Em breve, isso cobriria tudo. Ela estava indefesa contra ele.
Quando ela alcançou o empirium, seus dedos encontraram lama.
— Minha — Corien murmurou. Sua mão apertou ao redor de sua garganta.
Quando ele voltou para a boca dela, os pássaros gritando em suas costas,
ela captou seu pequeno sorriso de triunfo, o brilho de seus dentes.
Ela encontrou um fraco fio de força e bateu as mãos contra o peito dele.
Imediatamente, seu casaco pegou fogo. Ele se afastou dela, gritando, e o
arrancou. A camisa branca por baixo era um campo vermelho molhado. Finos
cachos de fumaça subiram de sua carne carbonizada.
Seus olhos voaram para ela, brancos de raiva. Ela olhou para trás,
procurando freneticamente por Eliana. As visões de Corien haviam
desaparecido. Sem besouros, sem feras dilacerantes. Lá estava ela, ainda
lutando. Suas mãos em chamas, seus calcanhares lançando faíscas. Feita de
luz, sua filha, e nunca vacilante. Que mulher destemida ela havia criado.
Rielle riu, sufocando-se com as lágrimas de exaustão.
Atrás dela, Corien cuspiu: — Você é uma criatura abominável. — Ele
agarrou uma mecha de seu cabelo e a colocou de pé. Ele cheirava a carne
queimada e ainda assim era bonito, as maçãs do rosto pintadas de fuligem, os
lábios corados de calor e desejo.
— Eu sei disso — disse ele, — e conheço cada canto de seu coração
selvagem, sua capacidade para a crueldade, seu capricho, mas ainda assim
amo você. Eu tomaria você bem aqui se você me deixasse. Medo de você? Eu
te exalto. Lembra do que eu te disse? — Ele riu, apertando seu cabelo. —
Você poderia me queimar mil vezes, e eu ainda iria querer você para mim.
Rielle se esforçou para ouvir os sons da luta de Eliana. Como eram lindos,
como todas as canções que ela já havia conhecido.
— Eu te amei, Corien — disse, sem fôlego de dor, com uma compreensão
nova e confusa. Cada um dos golpes ardentes de Eliana atingiu como um sino
dentro dela, lutando para limpar sua mente cansada. — Eu confiei em você.
Parte de mim sempre pertencerá a você. Mas nem tudo de mim. — Ela
tropeçou no peso de sua língua. — Você viu que eu estava com medo e
trabalhou para me manter assim. Você viu que eu estava sozinha e me
lembrava disso toda vez que pensava em deixá-lo.
Ele riu, acariciando sua bochecha. — Ouça você. Rainha do meu coração.
A dor está fazendo você delirar? Rejeite-os, como você pretendia, e eu vou
tirar tudo que machuca você. Rielle. — Lágrimas em sua voz. — Por favor,
faça isso por mim.
A visão de Rielle pulsou negra. As mãos de Corien eram gentis em sua
garganta, mas ela procurou seu poder e não conseguiu encontrá-lo. Aquele
empurrão, aquela explosão de fogo em suas roupas – ela não conseguiu
encontrar mais nada. Sua mente estava cheia dele, e se restava algo de si
mesma, ela não conseguia ver. Em algum lugar, Audric gritava por ela, mas
não adiantou. Corien estava dentro dela e ele nunca iria embora, não agora.
O mundo girou, jogando-a. Ela cedeu contra o peito sangrando de Corien,
seus olhos se fechando. Que felicidade, deixá-lo abraçá-la. Ele havia
prometido que tiraria a dor, que ela nunca estaria sozinha. Talvez fosse
normal acreditar nele. Estranho, que ela pudesse ter pensado de outra forma.
Corien beijou seu cabelo, suas bochechas. — Meu amor — sussurrou, um
sorriso em sua voz. — Aí está você. Você voltou para mim. Muito bom,
Rielle.
Então, abruptamente, alívio.
Algo frio e cortante caiu entre eles, rompendo as cordas que os prendiam.
Rielle caiu no chão e Corien cambaleou para trás.
Seu olhar furioso disparou para as portas do terraço.
Encolhida no chão, a cabeça latejando como se tivesse sido espancada por
horas, Rielle estremeceu na pedra quente e observou uma forma pálida
invadir o terraço.
Ela respirou fundo.
Era Ludivine, severa e rápida, seu cabelo dourado em um coque apertado,
seu vestido de brocado lilás e ameixa brilhando à luz do poder de Rielle. Ela
marchou em direção a Corien com a espada de Santa Katell em suas mãos.
A garganta de Rielle se apertou de medo repentino. Ela se virou,
procurando desesperadamente por Eliana, mas Eliana estava viva e bem,
girando para lançar luz na espada de Katell. Lâmina se chocou contra a
lâmina e se manteve lá, rugindo, e embora Ludivine não fosse um elemental,
o receptáculo de Katell agora brilhava como se ela fosse. Ela ergueu a espada
bem alto, lançando fortes raios de luz branca.
Corien, com o ódio vívido em seu rosto, encontrou Illumenor onde Audric a
havia deixado cair. Uma dupla crueldade: lutar com a espada do homem cuja
morte ele almejava e usar um receptáculo que não era seu.
Audric gritou de dor. Rielle procurou por entre as chamas, viu apenas
lampejos dele entre as rajadas de luz, e então ela não pôde mais procurar, pois
Corien avançou para Ludivine com um rugido, e eles se encontraram em uma
batalha furiosa. Dervixes denteados de sombra e luz acenderam entre o
receptáculo de Santa Katell e a espada do Portador da Luz, as lâminas
confusas por serem seguradas por anjos.
O rosto de Ludivine estava duro, tenso e pálido. Ela não era uma guerreira,
nunca tinha treinado para isso, e ainda assim ela voou em Corien, seus golpes
brutais.
Mas não era só com espadas que eles lutavam. Rielle percebeu isso
lentamente enquanto os observava girar e colidir. Sua visão ainda latejava, e
sua inteligência lutava para se recompor, mas isso ela sabia: pela primeira vez
desde que ele tinha vindo para ela há muito tempo, Corien não estava em
nenhum lugar em sua mente.
O estranho vazio a fez entrar em pânico. Apoiando-se nos cotovelos, ela
procurou por ele e, em seguida, por Ludivine, enviou-lhes uma pergunta
cautelosa.
Você está aí?
Mas nenhuma resposta veio. Os pensamentos de Rielle eram inteiramente
seus. Isso a assustou, a vastidão disso. Ela havia esquecido como era a
sensação, e a solidão dentro dela cresceu tão ferozmente que ela teve
dificuldade para respirar.
Uma mão tocou suavemente a sua, ancorando-a. Ela o reconheceu
imediatamente, embora já tivesse passado meses desde que sentira o toque de
sua pele.
Mas ela não conseguia olhar para Audric. Ver as queimaduras em seu rosto
a desfaria. Ela o alcançou em silêncio, encontrou seus dedos escorregadios de
sangue. Ele a ajudou a sentar e ela se apoiou com força em seu peito. Ele
estava estável mesmo então, um calor sólido, mesmo com seu pulso batendo
descontroladamente sob seus dedos e sua respiração irregular. Atrás deles,
seus amigos sangraram para protegê-los. A filha deles – sua filha
surpreendente e impossível – lutava contra feras com mãos feitas de fogo.
E diante deles, dois anjos travavam um combate furioso. Espadas roubadas
caindo, o ar ao redor de seus corpos brilhando como prata com poder. Formas
pálidas se formaram em suas costas. A cada golpe, a cada grito de raiva, as
formas se elevavam mais alto, florescendo no ar repleto de magia, até ficarem
duas vezes mais altas que suas contrapartes. Uma forma era Kalmaroth, o
anjo que Corien havia sido. Alto e fumegante, as asas brilhando em suas
costas. Até mesmo a memória dele era magnífica. Sua espada estalou como
um raio.
E lá estava Ludivine, e Rielle sentiu um aperto na garganta ao olhar para
ela. Ela nunca tinha descoberto o nome angelical de Ludivine, tinha sido
gentilmente afastada do assunto sempre que ousava perguntar, e agora ela
desejava ter pressionado por isso, porque essa memória, esse eco de seu
verdadeiro eu, era requintada. Ela parecia ter talvez a idade de Rielle, ou
talvez um pouco mais velha, como Audric, e havia uma qualidade luminosa e
insuportavelmente bela em seu rosto que trouxe lágrimas aos olhos de Rielle,
pois ela sabia que olhava para uma criatura antiga que até agora, depois tudo
o que ela tinha visto e feito, não conseguia entender verdadeiramente. Essa
Ludivine, pálida e de cabelos louros, tranças brilhantes enroladas nas costas
em elaboradas espirais, não era tão alta quanto Corien, mas seus olhos
brilhantes eram ferozes e suas asas enormes eram tão radiantes quanto o sol.
Os olhos ardentes de Rielle se moveram para Ludivine, sua Ludivine. Fios
de cabelo dourado se soltaram do nó. O medo havia despido seu rosto de
todas as cores. Ela olhou rapidamente para Rielle, um brilho intenso em seus
olhos.
E quando seus olhares se encontraram, o mundo sumiu de Rielle, deixando-
a sem peso. Uma onda fria de pavor desceu por seus braços. Audric deve ter
percebido a mudança nela. Ele murmurou uma pergunta urgente. Era Corien?
Ele a estava machucando de novo?
Mas Rielle não suportou responder, pois ela entendia a verdade do que
Ludivine havia feito. Com um olhar, Ludivine contou tudo a ela. Elas
compartilharam anos de olhares conhecedores nas mesas de jantar, anos de
olhares suaves e sonolentos enquanto acordavam nos braços uma da outra, ou
nos de Audric, ou todos juntos. E agora, isso.
O sangue de Rielle rugiu, seu coração uivou em protesto e uma centena de
arrependimentos, mil palavras de pesar, alojados em sua garganta como nós
de fogo. Mas ela não diria nenhuma delas, não poderia poderia dizer
nenhuma delas.
Pois Ludivine havia enfrentado Corien não apenas com a espada, mas com
toda a força que sua mente possuía. Quantas vezes Ludivine confessou que
sua força empalidecia em comparação com a de Corien? E, no entanto, aqui
estava ela, atirando-se nele sem esperança de sobrevivência, atraindo-o para
uma batalha tão feroz que ele abandonou a mente de Rielle para lutar.
Deixando-a livre, por quanto tempo Ludivine pudesse distraí-lo, para fazer
o que devia ser feito. Como se Ludivine estivesse segurando uma porta
fechada pela qual Corien estava arranhando do outro lado, dando a Rielle
tempo para correr. O caminho estava livre e desmoronaria se Rielle não
agisse rapidamente. Corien perceberia o que estava acontecendo e se desfaria
de Ludivine, e o momento estaria perdido.
Instável, Rielle se levantou.
— Fique para trás — ela ordenou, afastando-se de Audric. A culpa era um
veneno em suas veias. Sua boca estava amarga com isso. A cada batida do
coração, ela pensava no altar negro naquela montanha congelada, o anjo que
ela esmagou entre as mãos como argila macia. Um minuto ali, no próximo,
aniquilado.
Eu não posso, ela pensou descontroladamente. Em meio às lágrimas, ela os
observou lutar. Corien e Ludivine, Ludivine e Corien. Não importa como eles
a machucaram, como ela os machucou. Suas mentiras, suas crueldades, como
eles a puxaram entre eles. Perder qualquer um deles iria destruí-la. Perder os
dois era algo que ela não conseguia imaginar. E, no entanto, Ludivine estava
segurando Corien, dando a Rielle uma mente pacífica, finalmente. Uma
mente livre de sussurros.
Uma escolha está diante de você. A voz de sua filha, beijando sua
memória. Só você pode fazer isso.
E você deve. Ludivine conseguiu pronunciar algumas palavras frágeis.
Dentro delas havia um amor forte e arrebatador. Está tudo bem. Não tenha
medo. Ludivine olhou para ela mais uma vez. Havia um peso naquele olhar.
Uma finalidade.
E então, como um golpe rápido na garganta, Ludivine ficou subitamente
frenética, sua voz finalmente falhando. Ela tinha feito tudo o que podia. Sua
força vacilou, desaparecendo. A raiva de Corien floresceu como ondas
negras.
Agora, Rielle, por favor!
Rielle sabia que ouviria essas palavras pelo resto de sua vida – a voz
desgastada de Ludivine, tremendo de medo, implorando a Rielle para matá-
la.
Ela se lembraria de tudo o que aconteceu naqueles segundos antes do fim.
Como ela alcançou Corien e Ludivine, segurou-os nas mãos como se ela
fosse o deus que os criou. Como Corien percebeu tarde demais o que ela
pretendia e gritou para ela parar, sua voz quebrando. Ela se lembraria de
reunir o empirium – cada partícula dele, cada fio cintilante ao seu alcance.
Quão avidamente seu poder respondeu e quão devastadoramente rápido voou
sobre eles.
O mundo flamejou quente e brilhante – a montanha escura, o castelo em
chamas no topo dela. A mente de Rielle, as palmas das mãos, o ar gemendo
como se estivesse pronto para estourar. Tudo ficou branco e depois não havia
mais nada. Uma escuridão silenciosa e crescente. O fogo se foi. As luzes que
fluíam pelo castelo desapareceram, como se nunca tivessem sido feitas.
Rielle caiu de joelhos com força.
Respirou uma vez, duas vezes. Três vezes e uma quarta.
Tremendo, ela olhou para cima.
Manchas coloridas floresceram diante de seus olhos. Ela piscou, o mundo
voltando para ela. As montanhas, a cidade, as estrelas além. O campo de
batalha em algum lugar abaixo. Uma colcha de luz e fogo, formas escuras
perplexas disparando pelo ar.
Rielle ficou olhando, e olhando, e enquanto olhava para os pontos
carbonizados onde Ludivine esteve e onde Corien lutou contra ela, sentiu
algo crescendo dentro dela. Algo selvagem e solitário, como a floresta à
noite, como um mar tomado por tempestades. Não havia nem mesmo cinzas
deixadas para trás, alguma ruína delas que ela pudesse tocar. Seu poder ainda
fervilhava em suas palmas e na cavidade de sua garganta, nas dobras de seus
cotovelos e nos ossos de seus pés. Ele zumbia baixinho, satisfeito.
Alguém atrás dela gritou de surpresa – talvez Miren, talvez Evyline – e
Rielle se virou para ver que todos os anjos e animais no terraço haviam
desaparecido. Um brilho fraco permaneceu no ar onde eles estiveram uma
vez. Ondulações no empirium, ecos de vida súbita e totalmente apagados.
Rielle sabia o que isso significava, olhou estupidamente para sua nova
realidade como se estivesse lendo instruções roteirizadas. Corien se gabou
inúmeras vezes:eu sou infinito. A qualquer momento, sua mente estava
conectada a milhares de outras pessoas – adatrox, crianças elementais
montadas em seus monstros. Capitães angelicais, soldados ansiosos. Anjos
em Avitas; anjos nas profundezas. E então Ludivine, lutando contra ele,
confundiu sua mente com a dele, seus poderes se uniram como lâminas
guerreiras, e agora eles se foram, eles se foram – Rielle matou os dois ao
mesmo tempo, eficiente, como uma flecha em dois corações – e então todas
as mentes em que estavam no momento de suas mortes também foram
destruídas. Não apenas mortos – esmagados em nada, reduzidos a cinzas tão
pequenas que não podiam ser vistas, tocadas ou saboreadas. Milhares deles,
destruídos no momento em que Corien fora, deixando os exércitos angelicais
em ruínas.
A coisa que crescia dentro de Rielle explodiu. Um uivo animal escapou de
sua garganta. Ela estava além do choro. Era um sentimento para o qual não
havia palavras. Sua dor a deixou trêmula e suas mãos eram garras na pedra,
unhas ásperas contra ela. O ar estava azedo com as coisas que ela havia feito.
Braços a levantaram. Audric a ajudou a se sentar contra ele, gentilmente
pegou suas mãos e as segurou contra sua garganta. Ela sentiu a batida de seu
coração contra seus dedos, as curvas suaves e vulneráveis de seu pescoço.
— Estou aqui — disse ele, sua bochecha molhada tocando a dela. — Estou
aqui, estou com você, estou aqui. — As lágrimas tremeram em sua voz, pois
ele amara Ludivine também. Ele tinha estado nos jardins, à mesa do jantar, na
cama quente ao amanhecer.
Rielle se agarrou a ele, lutando contra sua gola, e então um pensamento
terrível lhe ocorreu. Ela olhou freneticamente além de Audric para o terraço
além. Os anjos incorpóreos que lutaram por Eliana flutuaram acima em uma
conferência misteriosa e sussurrada. Viva, mas incerta. O que viria a seguir?
E agora?
Mas Rielle não se importava com eles, nem se importava com Miren, que
tropeçava em seus pés, ou Sloane, se virava com a mão na boca, ou Evyline,
mancando em direção a eles.
— Minha rainha? — Evyline conseguiu, hesitante, ajoelhar-se. Pulo e anos
apagados de seu rosto. — Você está conosco? É você?
Rielle não respondeu. Ela estava olhando além de Evyline para Kamayin,
que estava afundando lentamente no chão. Com os olhos arregalados, ela
olhou para duas formas fracas se movendo em direção uma à outra – um
menino e uma menina, tremeluzindo como sombras lançadas por velas.
Uma palavra se alojou na garganta de Rielle. Eliana?
Ela estendeu a mão para ela, perguntando-se para onde ela iria ou se não
iria a lugar nenhum. Se a mulher chamada Eliana deixaria de existir, agora
que ela havia feito aquilo que viajara tanto para fazer.
Rielle prendeu a respiração trêmula.
Apagaram.
Eles se foram.
47
Audric
•••
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•••
•••
Rielle esperou o suficiente para que Audric suspeitasse que ela havia mudado
de ideia. Todas as manhãs, ele acordava para encontrá-la ainda ao lado dele, e
a esperança se abriu em seu rosto, iluminando seus olhos quentes e suaves.
Ele começou a dormir mais profundamente, não acordando mais toda vez que
ela se mexia.
Então veio uma noite fria. Um vento forte bateu com os dedos nas janelas.
Nuvens negras contra as estrelas, a lua nova e escura.
Rielle acordou de um sono que mal merecia uma palavra. Ondas de luz
escaldante pulsaram atrás de seus olhos. Cada explosão surda arrancava outro
pedaço de seu crânio.
Ela prendeu a respiração, ouvindo. Eliana dormia em seu berço, punhos
cerrados na boca, respirações suaves. Quando Rielle saiu da cama, Audric
não acordou. As sombras escureceram a pele macia sob seus olhos. Ele
negaria, mas agora ela era apenas uma fonte de dor e preocupação sem fim
para ele.
Ela correu silenciosamente pela sala em seus pés descalços. Na porta, teve
que parar por um momento, colocar a mão sobre a boca até que o soluço
crescendo em sua garganta cessasse. Ela queria desesperadamente beijá-lo
mais uma vez, inclinar a cabeça sobre o corpo minúsculo e quente de Eliana e
pressionar o rosto nas bochechas redondas de sua filha.
Mas não podia arriscar acordá-los. Ela saiu para o corredor e fechou a porta
atrás dela. Nunca um som teve tanto terror e alívio de estilhaçar os ossos.
Com os joelhos tremendo, ela se apoiou com força na porta e ergueu a mão
para silenciar Evyline antes que a mulher pudesse falar.
— Mande os outros embora — murmurou Rielle, olhando para o chão. Ela
achou difícil olhar para Evyline, que pedira muitas vezes a Rielle permissão
para substituir Maylis e Fara. Mas Rielle não permitiria. Ela queria olhar para
os dois lugares vazios em sua velha guarda. Ela queria sentir o remorso que
isso trazia, deixá-lo ficar espinhoso em seu estômago.
Evyline obedeceu imediatamente. Logo estavam sozinhas.
— O que é, minha rainha? — Evyline colocou a mão larga nas costas de
Rielle. — É um anjo?
Era impensável, que Evyline pudesse perdoá-la, mas quando Rielle
finalmente encontrou coragem para olhar para ela, viu apenas amor nos olhos
cansados da mulher mais velha.
— Estou indo embora — Rielle sussurrou. — Eu preciso que você me
ajude a alcançar as montanhas. Não posso estar na cidade quando isso
acontecer.
Os olhos de Evyline se arregalaram. Rielle a observou engolir seus
protestos, escurecendo seu rosto ao aceitar essa ordem.
— Muito bem, minha rainha. — Evyline ofereceu o braço e Rielle o pegou
com gratidão. — Onde devemos ir?
— Monte Taléa. No sopé, perto da passagem. — Rielle fechou os olhos
com força. O poder ondulou na ponta de seus dedos, empurrando com força
as camadas de suas unhas. As pontas de seu cabelo brilharam brancas.
O rosto de Evyline estava tenso de preocupação enquanto eles corriam pelo
corredor. — Teremos tempo de chegar lá? Minha rainha, me perdoe, mas seu
rosto… está cheio de luz. Estrelas abaixo das maçãs do rosto.
— Eu sei. — Na escada, elas pararam. Rielle se encostou na parede. Sua
mente primeiro foi para Ludivine, um erro horrível que a deixou sem fôlego
de tristeza. Ela empurrou a memória de Ludivine, e de Corien logo atrás dela,
e em vez disso formou a imagem de um anjo diferente em sua mente.
Zahra? Por favor, rápido.
Um momento depois, o espectro emergiu da parede próxima, seu cabelo
caindo atrás dela em correntes brancas. Evyline se encolheu de surpresa e
cuspiu uma maldição.
Zahra ajoelhou-se imediatamente. — O que eu posso fazer, minha rainha?
— Duas coisas — disse Rielle com firmeza. — Eu preciso que você nos
proteja enquanto caminhamos pela cidade. Ninguém pode nos ver. Mantenha-
os longe de mim.
— Sim, minha rainha.
— E eu preciso que você garanta que Audric não acorde, não até que eu
esteja longe o suficiente de Baingarde para que mesmo se ele corresse a todo
vapor, mesmo se ele corresse para mim em Atheria, ele não poderia me
impedir. — Ela cerrou os dentes, piscou os pontos brilhantes de seus olhos.
— Você entende por que estou fazendo isso.
O rosto de Zahra exibia uma grande tristeza. — Claro, minha rainha.
— E você pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo? Não confio em mais
ninguém, Zahra. Eu preciso de você e apenas você.
— Eu posso, e vou. — Uma onda de poder passou pelo rosto de Zahra,
como se a corrente de sua mente tivesse mudado de curso. Sua voz baixou.
— O rei não vai acordar até que você alcance as Planícies, minha rainha.
— Bom. — Respirando fundo, Rielle olhou para o túnel escuro da escada.
Cada passo parecia uma montanha. Agulhas de luz penetraram em seus
músculos. Quando ela se moveu, a dor arranhou seu interior, como se cada
osso tivesse crescido cerdas pretas e afiadas.
— Tenho muito a lhe contar enquanto caminhamos — disse ela, e
cambaleou em direção à escada antes que Evyline pudesse alcançá-la. —
Ouça com atenção, pois o que eu fizer esta noite afetará todos os que vivem.
Ela teve que parar de falar, então, até que elas tivessem descido as escadas
sem fim e deixado o castelo para trás. Evyline a levou até uma porta perto da
cozinha e saíram para os jardins. Rielle olhou apenas uma vez para as
piscinas de observação e, quando examinou a escuridão, o empirium
mostrou-lhe uma vaga lembrança, gravada em ouro – ela mesma correndo
rápido pelas pedras escorregadias, Ludivine seguindo firmemente atrás,
Audric olhando nervosamente da grama.
Ela chorou então, enquanto seu sangue rugia para ela andar mais rápido.
Ela estava quase lá; estava chegando ao fim. Em breve, não sentiria dor e não
haveria razão para se agarrar ao que restava de seu corpo desgastado. Sua
mandíbula doeu tão brutalmente que era difícil falar. Algumas noites,
pensava que iria acordar e descobrir que tinha trincado os dentes durante o
sono.
Apenas quando estavam na cidade ela recuperou a voz.
— Vou morrer esta noite — disse ela, — e quando isso acontecer, vou fazer
com que o empirium em Avitas caia no sono. Ele ficará adormecido por anos.
As pessoas ficarão assustadas quando acordarem e descobrirem que seu
poder foi silenciado. Sinto muito por isso, mas deve ser feito.
— Por quê? — Evyline sussurrou, a palavra fina com horror.
— Para fechar o Portão — Zahra disse baixinho. — E para impedir mais
guerra antes que ela comece.
Evyline ficou olhando. — Mais guerra? Mas nós lutamos uma guerra e a
vencemos.
— Mas a revolução está em chamas em Kirvaya entre aqueles com magia
elemental e aqueles sem, e se não for controlada, ela se espalhará. — As
palavras de Zahra vieram rápidas e suaves. — Os marques vão ouvir falar da
Eliana que veio do futuro até nós e vão experimentar cantos de magia que
não devem tocar. A princesa estará em perigo. Muitos anjos ainda vivem, e
sua dor por Kalmaroth é terrível. Eles virão atrás de você novamente e
novamente. Eles encontrarão uma maneira de chamar outros do Abismo, a
menos que o Portão esteja selado.
Evyline empalideceu. — Eu entendo.
Rielle forçou os olhos a abrirem enquanto o mundo ofuscante os instava a
fechar. Cada prédio que eles passaram queimando com mil fogos brancos.
Cada passo enviou ondas de poder ondulando pelo solo.
— Nenhum novo anjo será capaz de possuir corpos humanos — ela
administrou, lutando para formar palavras – dentes contra língua, língua
contra garganta. — Aqueles sem corpos continuarão assim, e quaisquer
sobreviventes que eu ressuscitei verão o poder de suas mentes diminuído.
Receptáculos elementares ficarão escuros. Marques…— Ela hesitou,
pensando no pequeno Simon. Como ele estava sóbrio e quieto, de prontidão
enquanto seu pai trazia Eliana ao mundo. — Os marques não vão mais
conseguir criar fios. Deixarei apenas três coisas intactas: as bestas divinas, os
espectro leais à coroa e Eliana.
Foi doloroso dizer o nome de Eliana, como se cada sílaba fosse um golpe
em suas costelas. Seu coração deu uma guinada de volta em direção a
Baingarde, em direção às salas silenciosas que continham os dois pedaços
sobreviventes de seu coração.
— A princesa manterá todo o seu poder? — Evyline perguntou.
Rielle assentiu. — Algum dia, o empirium voltará. Algo acontecerá para
despertá-lo. Outro conflito, talvez um novo inimigo. Posso ver alguns
vislumbres disso, mas o empirium não me mostrou mais nada. O Portão é
uma porta para o Abismo, e o Abismo é uma porta para todos os mundos que
existem. Algo virá. E quando isso acontecer e o empirium voltar, o mundo
vai buscar a orientação de Eliana.
Suas lágrimas cresciam selvagemente. — Eu gostaria de não ter que pedir
isso a ela. Eu gostaria de não estar deixando Audric para enfrentar um mundo
sofrendo pela perda de sua magia. Mas não conheço outra maneira de
protegê-los nos anos difíceis que virão, e em breve não estarei mais aqui para
fazer isso sozinha.
— E os templos, minha rainha? — Evyline perguntou densamente. — O
que iremos adorar, se a magia se for?
— Nada o impedirá de orar ao sol e às sombras. E se as orações antigas se
tornarem inadequadas, vocês escreverão novas.
Uma nova agonia a fez cair no chão. Rachaduras correram pela estrada de
paralelepípedos, estilhaçando centenas de pedras cortadas com precisão. Ela
tremia, ofegante, e quando olhou para cima, não viu uma estrada, não uma
cidade, mas um vasto mar raso. Em seu horizonte, uma garota de branco.
Evyline tentou ajudá-la a se levantar, mas só conseguiu colocá-la de
joelhos. A terra puxou o pescoço de Rielle, suas gavinhas teimosas e
famintas. Lutar era como lutar contra a forte pressão do oceano. Se ela
quisesse chegar às montanhas a tempo, precisaria de ajuda. Outro corpo para
ajudá-la a se levantar e andar, alguém em quem ela pudesse confiar.
A voz de Zahra veio até ela, distante e fraca. — Minha rainha, estamos
perto da casa de Garver Randell.
— Traga-o para mim — ela resmungou, e cada palavra tinha gosto de
relâmpago. — Diga a ele para se apressar.
Ele veio imediatamente, ficou quieto por um momento, depois se ajoelhou
ao lado dela. Rielle semicerrou os olhos para ele através de uma parede
branca de dor. Seu rosto enrugado, seus olhos brilhantes e penetrantes.
— Você parece insistir no teatral — observou ele ironicamente, e com a
ajuda de Evyline, ambos se esforçando, ele conseguiu colocar Rielle de pé.
Ela sentiu a pressão suave de uma mão gasta contra sua testa.
— Aonde quer que você vá, criança — ele disse suavemente, — espero que
você encontre paz lá.
Paz. Ela riu, perplexa com o pensamento. Ela teria permissão para tal coisa,
mesmo na morte?
não morte
O empirium a repreendeu, uma correção perplexa. Por que ela pensaria que
qualquer coisa era tão simples quanto uma única morte humana?
Então o que? ela perguntou, ofegando por ar.
Respondeu com um sentimento, os ossos finos de uma única palavra: mais.
Eles alcançaram a grande muralha destruída e carbonizada ao redor da
cidade. Zahra os escondeu dos guardas enquanto passavam apressados pelo
portão recém-construído. Uma vez, Âme de la Terre não precisava de tal
parede. Antes, nenhum deles pensava que nada disso pudesse acontecer,
independentemente das orações que murmurassem ao lado de suas camas.
E então estavam do outro lado da ponte do lago e nas Campinas,
tropeçando no chão em ruínas. Sulcos de garras bestiais, crateras ainda
fumegantes por causa da magia elemental. Os acólitos do templo ainda não
haviam feito os reparos necessários no campo de batalha, concentrando-se em
recuperar corpos, limpar a cidade, aconselhar os enlutados. E agora, sempre
que o povo de Âme de la Terre olhasse pelas janelas, eles veriam os
resquícios da guerra. Eles pensariam na Rainha de Sangue e como ela roubou
sua magia deles. Alguns deles ficariam gratos por isso, encontrariam conforto
no novo silêncio do ar. Alguns ficariam selvagens de tristeza, mas sem magia
para ajudar sua fúria, e com o castelo guardado por um exército de espectros,
Audric e Eliana estariam seguros, pelo menos por alguns anos.
O trovão percorreu as planícies, atraído pela queda trôpega dos pés de
Rielle. À medida que se aproximavam da passagem, o ar crepitava dourado.
Evyline ergueu os olhos, sua expressão dividida entre espanto e medo.
— Zahra, você pode permitir que Audric acorde agora — Rielle engasgou,
seus pés descalços batendo na lama fria. — Vá até ele. Diga a ele tudo o que
eu disse, quando ele estiver pronto para ouvir.
Zahra não disse nada, mas uma corrente de ar frio beijou a nuca de Rielle, e
então o espectro se foi.
— Diga-me o que você vê, Evyline — Rielle respirou.
— Eu vejo luz dourada cruzando o céu — respondeu Evyline. — Em vez
de raios denteados, como relâmpagos, são pétalas, vastas e pulsantes. Eles se
encontram, eles se separam, eles se encontram novamente.
— E eu vejo Audric — disse Rielle, sua voz captando cada palavra. O
empirium era uma tela vasta e interminável, formas girando do solo ao céu.
Ela leu tudo que estava escrito nele. — Ele acordou. Ele está correndo por
nossos quartos, procurando por mim. Ele está chamando meu nome sem
parar. Eliana… — Ela começou a chorar. Em sua vida, ela amou ferozmente,
mas nunca tão perfeitamente assim. — Eliana está acordada e chorando.
Audric está… Ele está chamando os guardas. Ele está segurando Eliana
contra o peito, gritando meu nome novamente. Ela está gritando em seu
ouvido e ele está indo para o terraço. Ele vê minha luz. Ele sabe o que eu fiz.
— Por favor, não, criança — disse Garver. — Não olhe. Só vai doer você
observá-los.
Rielle caiu de joelhos em uma suave elevação de lama. Acima de suas
árvores altas douradas com o último resplendor do outono, e acima delas, o
sopé escuro de pinheiros do Monte Taléa.
— Afastem-se — ela gritou, empurrando o peito de Garver. Ela agarrou a
mão de Evyline, apertou uma vez e a empurrou para longe também. Ela
esperou até que tivessem encolhido de volta para as árvores, ambos parados
em uma crista com uma pilha alta de pedras. Abaixo deles na lama, ela
balançou as mãos e os joelhos. Engolindo sem ar, engolindo em seco contra a
tempestade que se erguia dentro dela. Estava na hora, mas ela não sabia por
onde começar.
respire
solte
Rielle olhou para as mãos na lama. Pálido e pequeno, rodeado por sombras.
nós levantamos
A menina agachou-se diante dela – ela criança, olhos brilhantes e sorrindo.
Descalça, vestido branco esvoaçando em seus tornozelos, pulsos magros e
cabelos escuros desgrenhados.
— Venha comigo agora — a garota disse, totalmente gentil, sua voz terna.
— Há muito mais para fazermos.
O mundo brilhava com diamantes. Uma dor lancinante atingiu as têmporas
de Rielle, mas quando ela alcançou a mão da garota, alguns dos nós
aterrorizados em seus ombros se desfizeram e, nas bordas de sua visão, rosas
de luz dourada brilhante floresceram aos milhões. A luz irrompeu dela em
mil riachos brilhantes, e nos últimos momentos antes de consumi-la, ela viu
muitas coisas para nomear. Mas algumas coisas ela viu, e soube, e manteve
perto.
Ela viu a cidade destruída que fora seu lar, seus sete templos acesos com
velas de luto, o lago brilhando como um sorriso em torno de sua parede.
Em Sunderlands, a luz do Portão gemeu e girou, espiralando em si mesma,
um ciclone de violeta e ouro, até que não houvesse mais nada da porta que
havia existido. Apenas duas grandes pedras cinzentas, o ar entre elas
inteiramente comum e tremendo com os ventos do mar.
Nas montanhas altas e frias de Borsvall, o rei Ilmaire dormia ao lado de seu
novo marido, Leevi do Kammerat, que fala a língua dos dragões. A capital de
Styrdalleen era mais uma vez a cidade alada que fora na Primeira Era, com
dragões grandes e pequenos empoleirados em cada torre, grandes asas
dobradas, incansavelmente vigiando a noite em busca de inimigos. Em uma
parede de pedra branca com vista para a costa estava Ingrid Lysleva,
comandante do exército e amada irmã do rei. Ela olhou com os olhos
estreitos para o mar do Norte em direção à ilha distante do Portão, onde
nuvens estranhamente iluminadas giravam lentamente, como nenhuma
tempestade que ela já vira.
Na cidade polida de Genzhar, em um palácio de escarlate e ouro, a jovem
rainha, Obritsa, olhou friamente para os magos traidores que venderam os
filhos de sua cidade a Corien em troca de lugares de honra no novo mundo
angelical. O carrasco ergueu a espada, mas no último momento Obritsa o
deteve, poupando a vida dos magísteres. Ela se ajoelhou diante deles
enquanto eles choravam em suas mãos, e então, com um sorriso forçado,
disse-lhes algo que Rielle não pôde ouvir.
Na cidade de Quelbani, a pérola de seu país, suas ruas destruídas pintadas
de pálido pela lua, a princesa Kamayin Asdalla lia à luz de velas no quarto de
suas mães. Atrás dela, elas dormiam em sua ampla cama branca, seus rostos
suaves, suas mãos entrelaçadas. Kamayin ergueu os olhos de seu romance,
com os pés descalços no parapeito da janela, e distraidamente bateu com os
dedos dos pés. Ela deixou o livro no colo e se virou para a mesa ao lado dela,
acrescentou várias notas ao papel em seu cotovelo. No topo da página havia
uma pergunta, circulada duas vezes: Como avançamos a partir daqui?
E em um pequeno terraço fora da suíte mais requintada de Baingarde, o rei
de Celdaria embalava sua filha contra o peito, observando o horizonte
florescer brilhante com o adeus.
Um começo e um fim
Eliana sentou em seu banquinho favorito em seu canto favorito de seu lugar
favorito em todo o mundo – exceto por seu quarto, e o quarto de seu pai, e a
sala de estar de sua avó com as bestas divinas pintadas no teto, e as
catacumbas tranquilas e frescas, onde a bela estátua de sua mãe marcava um
túmulo vazio.
Além de todos esses lugares, a loja de Garver era sua favorita. Ela gostava
do jeito que cheirava a plantas e tônicos, um tipo de cheiro azedo, mas limpo
que despertou seu nariz, e ela gostava das ervas em seus pequenos potes de
vidro, os tônicos e unguentos rotulados com as letras precisas de Garver. Ela
gostava das mesas de trabalho arrumadas e de como Garver as havia lixado,
como o ar ficava úmido quando eles preparavam novas misturas para
engarrafar e guardar.
Havia o alegre jardim de flores e ervas do lado de fora das janelas e agora,
no início do verão, estava cheio de cores. Às vezes, a sombra de Atheria
passava pela janela enquanto ela voava, procurando o almoço nos céus. Havia
o sino de prata brilhante pendurado na porta, e havia a vassoura que Garver
mantinha no canto, e a chaleira de chá esquentando no fogo.
Mas de tudo na loja, por mais maravilhoso que fosse, Eliana gostava mais
de Simon.
Ela deu uma olhada nele enquanto ele trabalhava. Ele tinha um rosto muito
solene para um menino de treze anos, todos diziam. Bastante severo, Eliana
tinha ouvido. Mas ela gostava de seu rosto e sua seriedade. Sua testa pálida
franzia quando ele lia listas de ingredientes, e seu cabelo era de uma cor
dourada escura, caindo desordenadamente sobre sua testa. Ele tinha dedos
hábeis que cortavam raízes e ervas tão rápida e cuidadosamente que uma
sensação de calor tomava conta de Eliana enquanto o observava. O
sentimento dizia a ela que estava segura. Quando ela estava com ele e suas
pequenas facas afiadas, nada poderia machucá-la.
— Posso tentar? — ela perguntou, deslizando para frente em seu
banquinho.
Ele olhou para ela. — Não.
— Por quê?
— Porque as facas são afiadas. Você quer cortar seus dedos?
— Não.
— Bem então.
— Mas algum dia poderei usar as facas boas?
Ele sorriu um pouco, terminou de cortar sua pilha de mil-folhas, colocou-as
na palma da mão e jogou-as na tigela de esmagamento.
— Talvez — respondeu. — Por enquanto, você vai usar as facas ruins.
Ele ergueu as sobrancelhas, olhando para as facas ao lado dela. Elas eram
mantidas sem brilho para seu uso e, portanto, não eram boas para cortar, o
que significava que, quando as usava, ficava lenta e parecia estúpida, e
odiava parecer estúpida na frente de Simon.
— Elas não são facas ruins — disse Garver de sua própria mesa. — São
facas para aprender.
Eliana fez uma careta para as facas, e então Simon riu baixinho e bateu nela
com o cotovelo. Essa sequência de eventos a animou consideravelmente,
tanto que ela cortou sua própria pilha de folhas mais rápido do que antes,
então lançou a Simon um olhar de triunfo altivo.
E isso o fez rir alto, sua grande risada que ele quase nunca usava. Ela sorriu
para ele, observando-o sorrir. Era raro vê-lo tão feliz. Muitas vezes, enquanto
esperavam que as raízes fervessem ou penduravam as folhas para secar,
Eliana surpreendia Simon olhando pela janela com uma tristeza terrível no
rosto.
Acontecia com mais frequência quando os ventos estavam fortes, trazendo
o cheiro de pinheiro das montanhas. Simon ficava quieto naqueles dias,
estranho e sério, e não sério do jeito que ela gostava. Naqueles dias, ele quase
não falava. Havia sombras em seu rosto e seus olhos eram penetrantes e
furiosos, ou então vazios e cheios de tristeza. Quando isso acontecia, ele mal
olhava para ela.
Uma vez, ele até gritou com ela. — É possível que você pare de falar
comigo pelo menos uma vez na vida, mesmo por alguns minutos? — ele
gritou, e então seu rosto se enrugou de horror, pois ela imediatamente desatou
a chorar. Garver o mandou escada acima para seu quarto, nem mesmo o
deixando tentar se desculpar, e então ficou sentado em silêncio com ela até
que Zahra veio para levá-la para casa.
Mais tarde, chorosa e fungando no colo do pai, Eliana perguntou a ele por
que Simon havia feito isso. Por que ele ficava tão triste alguns dias, tão cruel
e afiado.
E seu pai – seu querido e gentil pai, que sempre tinha as respostas para suas
perguntas – segurou-a por um longo tempo, aconchegando-a em seu colo sob
seu cobertor favorito. Ela pensou que talvez ele tivesse adormecido.
Então disse suavemente contra o cabelo dela: — Minha querida, você pode
não entender tudo isso agora, mas vou te contar de qualquer maneira, porque
é isso que fazemos, não é? Nós conversamos um com o outro. Dizemos a
verdade.
— Sim, papa — disse, olhando para ele. Ela tinha ouvido seu pai parecer
triste e sério muitas vezes, especialmente quando visitavam o túmulo de sua
mãe, mas agora era diferente. Esta voz guardava segredos.
— Simon, eu acho, lamenta a perda de seu poder. Você se lembra do que eu
disse sobre o que sua mãe fez quando morreu?
Eliana tinha visto pinturas dela e tinha ouvido seu pai descrevê-la muitas
vezes. Quando ela imaginava sua mãe – seus olhos verdes, o poder pintando
seus cabelos e braços com ouro – Eliana às vezes tinha que prender a
respiração, porque parecia que poderia se virar e ver sua mãe parada ali.
Como se a mente de Eliana pudesse trazê-la de volta do empirium, onde quer
que a tivesse levado.
— Ela ajudou o empirium a dormir — disse ao pai, com a voz baixando
para um sussurro, como sempre acontecia quando falava de sua mãe. Ela
pensou cuidadosamente em cada palavra, porque seu pai a ensinou como isso
era importante. A magia em seu mundo se fora, disse ele, mas alguma ainda
permanecia nas palavras que falavam, e esse poder deve ser respeitado. Ela
segurava o colar que seu pai lhe dera – um disco de ouro em uma corrente
fina, gravado com a imagem de sua mãe montando Atheria. Segurá-lo sempre
a fazia se sentir um pouco mais forte.
— Algum dia o empirium vai acordar de novo — disse Eliana ao pai, —
mas agora está dormindo, e só eu…
Ela parou de falar, suas bochechas aquecendo enquanto ela olhava para o
chão. Quando não estava orando nos templos com Miren e Sloane, ou lendo
livros sobre o empirium com seu pai, Eliana muitas vezes se esquecia do
poder dentro de seu corpo. Seu poder era o motivo pelo qual ela podia ver
Zahra e os outros fantasmas, enquanto todos os outros não podiam. Seu poder
era o motivo pelo qual seu pai a mandava para a loja de Garver para aulas, e
por que seu pai, Miren, Sloane e Zahra lhe ensinavam tantas coisas que às
vezes ela sentia como se sua cabeça tivesse crescido três vezes maior do que
deveria. Queriam que ela aprendesse tudo o que havia para saber sobre essa
magia que vivia em seu sangue, e não ter medo dela, e saber muitas outras
coisas também, como cura, música e matemática, para que seu poder não
fosse a única coisa que ela amava.
Às vezes, quando Eliana lembrava que não era como ninguém no mundo,
isso a fazia se sentir solitária, como um pássaro empoleirado no alto de uma
árvore, alto demais para os outros pássaros alcançarem.
Seu pai beijou sua cabeça. — Só você ainda pode tocar o empirium. Isso
mesmo, Eliana. E não é uma coisa ruim. Você não deve ter vergonha disso.
Sua mãe deixou seu poder intacto por um motivo. Talvez ela tenha pensado
que algo assustador iria acontecer algum dia. Talvez ela te amasse tanto que
queria que você mantivesse este pedaço dela dentro de você.
Eliana estremeceu. Que coisa assustadora pode acontecer algum dia, e o
que ela poderia fazer para impedir?
— É por isso que Simon às vezes se sente triste, eu acho — disse seu pai.
— Por isso que às vezes ele até parece zangado com você. Você ainda tem
poder, e ele não. Seu dom foi tirado dele, assim como o meu, como o de
todos – por um bom motivo, tenho que acreditar que foi por um bom motivo
– mas eles se foram, mesmo assim. Acho que ver você às vezes lembra
Simon do que ele perdeu.
Ao ouvir isso, os olhos de Eliana se encheram de lágrimas. — Eu não
deveria ser mais amiga dele? Eu não quero deixá-lo triste, Papa.
— Não, querida, não foi isso que eu quis dizer. Na verdade, acho que ele
ficaria mais triste se você parasse de ser amiga dele. Pode simplesmente
haver dias em que ele não seja ele mesmo, e você precisará ser paciente com
ele. Talvez você até ache que não deveria falar com ele nessas horas, e está
tudo bem. Vocês podem trabalhar juntos em silêncio ou ler um dos livros de
Garver e deixar Simon sozinho em sua mesa. Você acha que pode fazer isso?
Mas hoje não foi um daqueles dias. Foi um dia de luz e alegria na loja de
Garver, e Eliana olhou e olhou fixamente para Simon enquanto ele ria – ria
por causa de uma coisa que ela tinha feito! Seu peito doeu um pouco,
olhando para ele. Foi uma dor doce e silenciosa, e ela não se importou. A
sensação a lembrou de estar em casa, em seu quarto seguro e quente,
observando o rosto de seu pai enquanto ele contava uma história sobre sua
mãe.
A campainha de prata tocou na porta e Eliana girou ao ver que Zahra viera
buscá-la para casa – mas ela não estava sozinha. Seu pai tinha vindo também,
durante todo o caminho desde o castelo! Mesmo ele tendo dito a Eliana que
provavelmente teria que se sentar em reuniões chatas durante toda a tarde, lá
estava ele com seu sorriso largo e olhos escuros como os dela, estendendo os
braços para segurá-la.
Eliana quase caiu do banco na pressa de correr para ele. Ela gritou o nome
dele em saudação enquanto pulava em seu peito, e ele a segurou e a ergueu e
beijou seu cabelo. E lá estava sua voz, tão querida e calorosa, perguntando se
ela gostaria de almoçar com ele e Odo hoje, e talvez se sentar no terraço de
Odo com as samambaias e as flores, e o próprio Odo iria se juntar a eles, o
que significava histórias. Histórias estranhas e selvagens trazidas a ele por
todas as pessoas que trabalhavam para ele, os espectros que espionavam para
ele, os mercadores que vendiam para ele.
Eliana ficou tonta. Uma tarde inteira sentada aos pés de seu pai enquanto
Odo contava histórias para eles!
Ela beijou sua bochecha, que estava áspera por causa das queimaduras
antigas e porque ele realmente precisava se barbear. Ela torceu o nariz e disse
isso a ele, e ele riu, e a alta e maravilhosa Zahra se abaixou para tocar sua
testa – uma rajada de ar frio como o início do inverno, quando o ar cheirava a
neve.
Eliana se virou nos braços do pai. — Terminamos, Garver? Posso ir?
A boca de Garver se contraiu. — Não, criança, eu proíbo você de ir com
seu pai, o Rei. Em vez disso, você deve ficar aqui o resto do dia e varrer a
poeira do meu chão.
Ela ficou boquiaberta com ele, uma sensação de horror absoluto subindo
por seus braços, e então Garver, rindo, voltou ao trabalho.
— Bom dia para você, meu rei, e obrigado — disse com uma pequena
reverência e um aceno. — Como sempre, sua filha foi muito útil hoje.
Eliana soltou um suspiro forte. Ela olhou para o pai, indignada. — Você
quer dizer que ele estava brincando? — Ela olhou para Garver, ainda mais
indignada. — Você estava brincando?
Eles deixaram a loja, a risada de Garver em seus ouvidos e Simon em seus
calcanhares. Ele ficou quieto ao lado do pai dela e abriu o portão do jardim
para eles.
— Você vai trazê-la de volta na próxima semana, não é? — Simon disse
esperançoso quando eles começaram a subir a estrada. — É menos chato
cortar folhas e coisas quando ela está aqui. — Ele fez uma pausa, seu rosto
cuidadosamente em branco. — Você sabe. Porque eu tenho que vigiá-la
constantemente. Certificar de que ela não corta os dedos. Ensinar a usar suas
facas de aprendizagem.
Eliana mostrou a língua para ele, mas sabia que ele não estava realmente
zangado, porque ele já estava sorrindo, e seu pai estava rindo daquela jeito
lindo e caloroso que ela tanto amava. Atheria estava voando em grandes
círculos preguiçosos pelo céu brilhante de primavera. Zahra vagava ao lado
deles, contando a Eliana sobre os gatos selvagens que vira nas montanhas
naquela manhã e, acima, bem longe na estrada, Baingarde estava nas colinas
e pinheiros, esperando seu retorno. Sua casa.
Enquanto caminhavam pela estrada, Eliana se aconchegou no ombro de seu
pai, observando Simon ficar cada vez menor. Ele sempre esperava no portão
do jardim até que eles alcançassem o topo da estrada. Era apenas educado,
disse ele, uma demonstração de respeito pelo rei. E a princesa, Eliana sempre
o lembrava, à qual ele geralmente respondia com um encolher de ombros
alegre.
À medida que se aproximavam do fim da estrada, Eliana prendeu a
respiração, ouvindo seu coração batendo forte. E se ele não esperasse? E se
ele voltasse para a loja antes do que deveria? Seus olhos lacrimejaram
enquanto ela olhava fixamente e se recusou a respirar, embora estivesse
começando a se sentir um pouco tonta.
Zahra enviou-lhe um pensamento afetuoso e ligeiramente exasperado:
pequenina, se você não respirar logo, vou forçá-la.
E então – ali. Simon finalmente ergueu a mão, como sempre fazia,
exatamente como havia prometido. O coração de Eliana se encheu de luz ao
ver isso, e ela riu contra o ouvido do pai, tão feliz que não conseguiu
responder quando ele perguntou o que era engraçado. Em vez disso, ela
sorriu e acenou de volta para Simon até que dobraram a esquina e a lojinha
que ela tanto amava, e seu jardim, e o menino parado pacientemente no
portão, sumiram silenciosamente de vista.
Elementos da Trilogia Empirium