Você está na página 1de 657

Também por Claire Legrand

Trilogia Empirium
Furyborn
Kingsbane
Lightbringer
Disponíveis no canal do Chaoticslates no telegram.
Traduzido, revisado e diagramado por Chaoticslates.

Nosso grupo traduz voluntariamente livros sem previsão de


lançamento no Brasil com o intuito de levar
reconhecimento à obra para que futuramente seja
publicado. O CS não aceita doações de nenhum tipo e
proíbe que suas traduções sejam vendidas.
Também deixamos claro que, caso o livro seja comprado
por editora no Brasil, retiraremos de todos os nossos canais
e proibiremos a circulação através de gds e grupos,
descumprindo, bloquearemos o responsável. Nosso intuito
é que os livros sejam reconhecidos no Brasil e fazer com
que leitores que nunca comprariam a obra em inglês
passem a conhecer.
Nunca diga que leu o livro em português, alguns autores (e
eles estão certos) não entendem o motivo de fazermos isso
e o grupo pode ser prejudicado. Não distribua os livros em
grupos abertos ou blogs.
Além disso, nós do grupo sempre procuramos adquirir as
obras dos autores que traduzimos e também reforçamos a
importância de apoiá-los, se você tem condições, por favor
adquira a obra também.

Leia o aviso no fim do livro.


Contents

Capa

Folha de Rosto

Créditos

Uma Besta e um Mentiroso

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10
Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21

Capítulo 22

Capítulo 23

Capítulo 24

Capítulo 25

Capítulo 26

Capítulo 27

Capítulo 28

Capítulo 29

Capítulo 30
Capítulo 31

Capítulo 32

Capítulo 33

Capítulo 34

Capítulo 35

Capítulo 36

Capítulo 37

Capítulo 38

Capítulo 39

Capítulo 40

Capítulo 41

Capítulo 42

Capítulo 43

Capítulo 44

Capítulo 45

Capítulo 46

Capítulo 47

Capítulo 48

Um Começo e um Final

Elementos na Trilogia Empirium


Agradecimentos

Sobre a autora

Contracapa
Para minha mãe,
que me ama.
Uma Besta e Um Mentiroso

“Vocês que lutam por seus amores caídos, seus países devastados,
ouçam com atenção: pode chegar um momento em que o Imperador
apareça diante de vocês. Talvez sua beleza chame a atenção dele, ou seu
talento ou sua força. Ele vai sorrir e seduzir. Vai adular e fazer
promessas. Não confie nele. Lute contra ele até seu último suspiro. Lute
por aqueles que você perdeu. Lute pelo que o mundo poderia ter sido, e
ainda pode ser.”
— A Palavra do Profeta

Simon se agachou perto da rocha congelada, faca na mão, lábios rachados de


frio, pés com crostas e calosidades em suas botas gastas, e observou com
olhos famintos enquanto a lebre se aproximava.
Era uma coisinha branca desengonçada, ainda não totalmente crescida, e
Simon sabia que teria mais pelo do que carne decente, mas também sabia que
estava com fome e devoraria qualquer coisa que pudesse matar.
Ele sabia de pouco mais além disso.
A lebre fez uma pausa, perto o suficiente para que Simon pudesse ver seus
bigodes se contraírem. Ela olhava com medo para o mundo, esperando a
morte chegar. Ao redor deles, o amplo planalto marrom se estendia por
quilômetros frios e solitários, brilhando branco com a neve matinal. Flocos
flutuavam silenciosamente de um céu cinza espesso. Em breve, neve de
verdade viria. Simon sabia disso. A lebre sabia disso.
Só um deles sobreviveria para ver isso acontecer.
A lebre se aproximou. Sentiu o cheiro de um caçador, seu nariz pálido
tremendo, mas não conseguiu encontrá-lo.
Simon sempre foi bom em se esconder, e desde o desembarque nesta selva
terrível e desconhecida quase um ano atrás, havia se tornado ainda melhor
nisso.
A lebre se aproximou. Simon podia cheirar seu almíscar, sentir o calor de
seu corpo assustado. Ele saltou, caiu com força sobre ela, cortou sua garganta
antes que pudesse correr.
Com muita fome para fazer fogo, esfolou sua presa com alguns golpes
rápidos da faca e então rasgou as ancas com os dentes. Comeu. E não largou
a faca.
Ele tinha aprendido, ao longo do ano passado, a nunca largar a faca.
Então, com fios de carne sangrenta pendurados em seus dentes, a lebre pela
metade, Simon ouviu um som. Largou o jantar e girou, pronto para matar ou
correr.
Em vez disso, olhou para a neve.
Uma figura não estava muito longe, observando-o. Simon apertou os olhos.
Era um homem. Ele usava um longo casaco preto coberto com pele. O casaco
tinha ombros quadrados e uma gola alta e caía no chão em dobras extensas
que combinavam com o jato de seus cabelos ondulados. Ele representava
uma bela figura ali, nítida e limpa contra a vastidão marrom invernal das
planícies que Simon agora conhecia como seu lar.
Atrás dele, o mundo ficou em silêncio. Não conseguia mais ouvir o estalo
distante do gelo em movimento ou o vento forte da montanha. Não conseguia
ouvir nada além da batida selvagem de seu próprio coração e os passos do
homem vindo em sua direção.
Simon conhecia este homem. Ele uma vez o temeu, até o odiou. Mas tanto
tempo havia se passado desde aqueles últimos momentos terríveis em Âme
de la Terre que até mesmo a visão de um inimigo era bem-vinda.
O homem colocou a mão enluvada na cabeça curvada de Simon. Um grito
suave de desejo explodiu dos lábios de Simon. Tateando cegamente para
cima, ele encontrou a mão do homem e agarrou-a desesperadamente com
uma das suas.
— É você, — sussurrou. Não estava mais sozinho. Um êxtase animal o
dominou. Ele soltou uma risada rouca e áspera.
— Sou eu, — disse o anjo chamado Corien. Ele se ajoelhou e olhou
atentamente para Simon.
Simon enrijeceu, sua outra mão apertando sua faca. Olhos negros, sem luz e
sem fim. Nunca tinha visto tal coisa. Ele mostrou os dentes, apoiado na
planta dos pés.
Mas Corien apenas sorriu. — Qual é o seu nome?
A mente de Simon estava um turbilhão de confusão. Aqui estava o homem
que invadiu sua casa, que matou centenas de seus vizinhos e milhares de
Celdarianos.
Aqui estava o anjo que deslizou para dentro da mente de seu próprio pai e o
incentivou a pular de uma torre para morrer.
Por um momento selvagem, Simon considerou pular em Corien como tinha
feito com a lebre, abrindo aquela garganta branca e lisa da mesma maneira.
Mas Simon tinha visto a rapidez com que os anjos podiam atacar. Corien o
pararia antes que ele pudesse levantar a faca.
Poderia correr, mas isso era impensável. Por um ano, ele viveu sozinho no
deserto, seu corpo reduzido a meros ossos e pele mutilada. Por um ano, havia
falado apenas consigo mesmo e com os animais.
Suas lágrimas furiosas transbordaram. — Você sabe meu nome, não é? —
sussurrou ferozmente. — Você não consegue ver?
Corien ficou quieto por tanto tempo que Simon sentiu uma gota fria de
medo pelas costas e se preparou para correr. Sempre estava se preparando
para correr.
— Eu conheço você, — Corien disse suavemente, mas parecia confuso. —
Eu te conheço, mas não conheço.
Uma presença rápida e buscadora entrou nos pensamentos de Simon, como
se dedos astutos estivessem puxando de lado as dobras de sua mente para ver
o que havia por baixo. Ele sabia o que estava acontecendo, embora nunca
tivesse sentido antes. Histórias sombrias se espalharam por Celdaria nos
meses antes e depois da morte do Rei Audric. Histórias terríveis sobre
humanos enlouquecidos, humanos pálidos e destroçados nas ruínas de vilas
saqueadas.
Era assim que era ser invadido por um anjo.
Simon ficou parado, mal respirando, tremendo na neve, enquanto Corien se
movia em sua mente. Uma voz deslizou contra os ouvidos de Simon, beijou
seu pescoço, traçou as linhas de suas cicatrizes. A voz sibilou palavras que
Simon não entendeu, e elas giraram mais alto e mais rápido até que sua mente
se tornou um barulho insuportável. Ele se sentiu como se estivesse sendo
sacudido, mantido acima de um abismo e arremessado de um lado para outro
enquanto qualquer coisa faminta que vivia no abismo uivava.
Simon gritou e tentou correr, mas Corien agarrou seu braço e seu queixo e
o empurrou contra o chão com as mãos enluvadas. Uma pressão encheu
Simon, do crânio aos dedos dos pés, até que ele temeu que seu corpo fosse
explodir. Palavras cresceram dentro dele, puxadas por uma grande força.
Logo elas se derramariam e se espalhariam como insetos, assobiando Simon,
Simon, Simon, e devorariam o mundo.
Então, finalmente, silêncio.
Simon engasgou com a sujeira. Acima dele, o rosto de Corien estava tenso
e duro com uma emoção que Simon não conseguia ler. Já fazia muito tempo
que ele não via um rosto.
— Eu conheço você, — Corien disse calmamente. Suas palavras caíram
como chuva contra o metal; Simon sentiu cada um na parte de trás de seus
dentes. — De alguma forma, eu conheço você. Vejo que seu nome é Simon
Randell. Você tem nove anos. Você é um marque. Ou melhor, você era um
marque, o que eu sabia. É por isso que vim até você. Senti uma presença
incomum nessas montanhas e segui a longa trilha até aqui para te encontrar.
Marques não existem agora. Você sabia disso, Simon? Muito pouco do que é
notável ainda vive, exceto para mim.
Seu olhar negro vagou pelo corpo de Simon, a espessa tapeçaria de
cicatrizes em seu rosto e mãos. Simon sentiu sua mente mudar, acomodando-
se à intrusão de Corien. A mandíbula de Simon apertou. Ele ficou rígido. Não
teria medo. Prendeu a respiração.
— Eu começo a ver mais, — Corien sussurrou, sem piscar. — Sua jornada
adiante no tempo deixou você foi horrivelmente marcado e isso quase o
matou. Você nem sempre foi tão feio. — Ele sorriu, mas o resto de seu rosto,
lindo e pálido, não se mexeu. — Mas você não é feio, não é, Simon? Por
baixo desse mapa de cicatrizes, você é uma criatura muito boa.
Simon lutou para se sentar, e quando Corien o ajudou, sua mão enluvada
nas costas de Simon, Simon corou. Endireitou a postura e ergueu o queixo,
tentando se lembrar de como ser um menino. Sua mente se inclinou e girou.
Então, estava longe no futuro agora. Ele suspeitou disso por algum instinto
terrível adormecido em seu sangue. Ele tinha sussurrado para si mesmo
muitas noites. Mas agora sabia que era verdade.
Perguntas frenéticas o cercaram. Quando, exatamente, era esse futuro?
Quanto tempo se passou entre o então e o agora? O que era este mundo? Os
olhos de Corien estavam negros e Simon não podia viajar, e ele se perguntou:
Será que essas coisas estranhas podem estar conectadas?
O que aconteceu com o empirium?
E por que Corien estava olhando para ele de forma tão estranha, como se
visse algo no rosto de Simon que o próprio Simon ignorava?
O olhar de Corien era frio e impenetrável. — Ela morreu ao meu lado.
Sangrei por décadas e, mesmo quando estava inteiro de novo, minha mente
não estava. É por isso que, quando olho dentro de você, vejo apenas sombras
indescritíveis e ouço pouco mais além do seu medo interminável e surdo? É
que minha mente foi golpeada pelos anos, Simon? Simon Randell. Eu
conheço seu rosto, mas não sei por quê. Quem é você? Por quem você luta?
— Lutar por? — Simon balançou a cabeça. — Eu não luto por ninguém.
Corien o considerou por mais um momento, então disse: — Ah, bem, — e
se levantou, limpando a neve de seu casaco. — Vim aqui em busca de algo
que pudesse me ajudar. Suponho que tenha encontrado apenas um menino
perdido.
— Espera! — Simon gritou, pois Corien havia se virado para ir embora, e
simplesmente não suportava ficar sozinho de novo. Ele rastejou atrás de
Corien e agarrou a bainha de seu casaco. Se enrolou contra suas botas,
miserável como um cachorro espancado, e houve uma pequena explosão de
medo em seu peito enquanto considerava o que estava prestes a fazer, mas há
muito tempo havia parado de sentir vergonha.
Foi a morte de Rielle que o arrancou de sua casa e o trouxe aqui. Foi seu
egoísmo, sua incapacidade de controlar seu poder, que arruinou o mundo e o
deixou abandonado, sozinho, sem sua magia.
Ele superou seu medo e agarrou o braço de Corien. Pressionou a testa com
força contra a manga de Corien, reuniu seu ódio pela rainha morta e o lançou
contra o anjo que estava diante dele para que pudesse ver, para que pudesse
entender.
— Eu sou de Celdaria, — Simon disse, tremendo. — Eu vi a filha de
Rielle. E, meu senhor, eu lutarei por você.
Ele esperou. Houve um silêncio acima dele, terrível e pesado. Embora
Corien não o estivesse tocando, Simon sentiu o peso de uma mão dura em seu
pescoço.
— Eu a segurei na noite em que ela nasceu, — Simon disse, as palavras
saindo rápido. — Eu era filho do curandeiro da Rainha Rielle. Ele me
escondeu de você. E naquela noite, eu estava com medo. Eu assisti meu pai
pular… — Sua garganta fechou. Ele rosnou para limpá-la. Não chorava há
meses e não choraria agora.
— Eu o vi cair, — disse. — E a rainha Rielle estava morrendo, e a bebê,
estava sozinha. Eu ouvi você gritando pela rainha, meu senhor – eu vi você
batendo contra a luz dela. E eu não sabia o que fazer, meu senhor, então
peguei o bebê e tentei viajar com ela para algum lugar seguro. Pensei em
levá-la para o norte, para Borsvall, onde o Rei Ilmaire poderia protegê-la.
Achei que, se a Rainha Rielle morresse, também mataria a mim e a sua filha.
Simon olhou para cima, tremendo. Não podia ver o rosto de Corien através
do borrão de lágrimas e neve.
— Mas algo deu errado. O tempo me pegou, meu senhor, e me trouxe aqui.
Eu vivo sozinho há meses. Não consigo encontrar ninguém. Eu tenho andado
e andado.
Estava chorando agora, selvagem e irrefletido em seu desespero. Odiava o
som daquilo, como o fazia parecer pequeno, mas agora que falara com
alguém que conhecia, alguém do Velho Mundo que era sua casa, sabia que
não suportaria a solidão de novo. Se Corien o deixasse, Simon morreria. Ele
se jogaria das rochas. Seguiria as trilhas dos gatos da neve e deixaria as
criaturas se alimentarem dele.
— Você está em Vindica, pequeno Simon, — disse, gentilmente, — nos
confins do que uma vez foi um país angelical. Você está nas planícies altas
das montanhas Maktari. Claro que está sozinho; claro que está com frio.
Simon se deixou ser puxado contra o peito de Corien e soluçou em seu
casaco. Ele se manteve quieto e lutou muito contra as piores lágrimas. Podia
provar que era realmente uma criatura que valia a pena manter.
— Não me deixe, por favor, não me deixe, — sussurrou. — Me leve com
você, por favor, meu senhor.
Corien acariciou os cabelos longos e emaranhados de Simon. — Você
amava muito seu pai. Você deveria me odiar por matá-lo. Eu o matei – eu
também vejo isso. Você deveria querer me matar por isso, mas está com tanto
medo de ficar sozinho de novo que ficará feliz em ir comigo se eu disser.
Você vai fazer tudo o que eu disser para ter a chance de estar com alguém
que sabe o que você perdeu. — Ele riu, um som desgastado.
— Sim, — Simon sussurrou, tremendo nos braços de Corien. Ele sentiu o
anjo em sua mente, sondando suavemente. — Eu farei o que você disser, meu
senhor.
— Uma mente tão fraca, tão desprotegida e dilacerada, — Corien se
maravilhou, seus dedos suaves nas bochechas de Simon. — Você está se
lembrando de coisas que tentou esquecer, e posso ver cada memória tão
claramente como se fossem minhas.
Simon estava se lembrando, sim, no meio dessas lágrimas e desse medo
crescente horrível, desse desespero para manter Corien perto dele. Ele não
conseguia parar de lembrar.
Se lembrou da Rainha Rielle jogando sua filha pequena em seus braços na
noite de sua morte. Se lembrou de seus olhos sombreados faiscando ouro, e
da carga azeda no ar enquanto a sala brilhava forte atrás dele. Se lembrou de
Corien gritando nos aposentos da rainha, o som selvagem de tristeza. Se
lembrou de ter olhado para a noite e convocado os fios que o levariam com
segurança para Borsvall.
E lá estava seu pai, segurando sua cabeça e tropeçando no terraço fora dos
aposentos da rainha. Tombando sobre o corrimão, caindo rapidamente no
chão.
E havia os fios escuros do tempo, agarrando Simon, rasgando-o. A dor
disso, e de como nas primeiras semanas depois de chegar aqui, ele mal se
conhecia, tinha sido mais fera do que menino. Tinha se esquecido de como
falar. Ele havia corrido de quatro, sangrando e queimando, gritando por nada.
— E a criança? — Corien sussurrou, ainda acariciando-o. — O que
aconteceu com ela?
— Quando eu acordei aqui, ela havia sumido. — Simon procurou no bolso
o pedaço de cobertor que carregava lá. Cada vez que dormia, enterrava o
rosto nele. Às vezes ele gritava. Ele o mordia com força e o puxava,
balançando no escuro.
Corien considerou isso por um longo momento. — Ela poderia estar aqui.
Poderia estar em qualquer lugar. Poderia estar em lugar nenhum.
Simon engoliu em seco. Seu coração batia forte como cascos contra a
rocha. Ele era uma debandada. Ficou tão quieto que seu corpo magro
queimou de tensão.
— Sim, meu senhor, — sussurrou.
— Então um marque será útil. Mesmo aquele cuja magia está morta e
perdida.
Então, Corien congelou. Simon sentiu uma mudança em sua mente e, em
seguida, uma súbita e dura quietude, como se algo tivesse se alojado bem
dentro dele e nunca mais se mexesse.
Corien se afastou para olhá-lo, e a expressão que usava agora era tão
diferente do que estava lá antes que Simon se encolheu e tentou se mover.
Mas Corien o segurou rápido..
— Eu vejo agora, em seu rosto, — sussurrou. Seu olhar negro percorreu
cada cicatriz de Simon. — Você é o homem que vi quando a filha de Rielle
veio até ela naquele dia, na montanha… — Uma única risada suave. Algo
clareou em seu rosto, e Simon não entendeu o que significava, nem
compreendeu nada do que Corien estava dizendo.
— Você é Simon Randell, — disse Corien. Ele tocou sua têmpora, seus
dedos delgados tremendo. — Claro que você é. E agora você está aqui. —
Ele beijou a testa de Simon, e ao toque de seus lábios frios, um calor
floresceu no corpo de Simon, firmando-o.
— E agora, — Corien sussurrou, — você é meu.
— Talvez eu possa despertar minha magia, meu senhor, — Simon deixou
escapar ansiosamente. Algo havia acontecido entre eles, embora Simon não
soubesse o quê. Tudo o que sabia com certeza era que nunca mais ficaria
sozinho. — Eu tentei, mas sozinho eu não consegui. Talvez com você…
Ele parou, corando sob o olhar negro penetrante de Corien. O que Corien
via quando o olhava? Pela primeira vez, Simon sentiu a humilhação por sua
pele arruinada.
Mas Corien apenas estendeu a mão e, com a outra, gentilmente ergueu o
queixo de Simon. Simon se contorceu em seu aperto.
— Sim, Simon. — Corien sorriu. Seus dedos se fecharam em torno dos de
Simon. — Talvez comigo.
Então a mente de Corien o reivindicou.
A dor veio sem aviso. Simon estava olhando para Corien, e então Simon
estava gritando, mas nenhum som escapou de seus lábios, pois Corien não
permitiria. Algo – uma presença terrível e insistente – estava dividindo o
crânio de Simon, rasgando cada pensamento que já conheceu, cada memória
vivendo dentro dele. Procurando pela verdade. Procurando mentiras. Era
diferente de tudo que já havia sentido. Antes, Corien mal havia varrido sua
mente.
Agora, ele estava a desfazendo.
— Eu sinto muito, Simon. — Corien sorriu para ele, observando-o se
contorcer em seus braços. — O mundo é um lugar estranho, e não há parte
mais estranha do que as voltas e reviravoltas do tempo. Devo saber com
certeza que você é meu e apenas meu. Devo saber que posso confiar em você.
Então pressionou sua bochecha na testa de Simon e sussurrou: — Temos
muito trabalho a fazer, você e eu.
Foi o último som que Simon ouviu antes de sua mente estilhaçar.
1
Rielle

“‘Mas como isso aconteceu?’ Muitos perguntaram. ‘Como um zelote foi


capaz de convencer todos da espécie angelical a se voltar contra seus
irmãos e irmãs humanos? Todos nós compartilhamos o mundo. Por que
ele não foi considerado lunático e punido por sua sede de sangue?’ 'A
resposta é simples: Kalmaroth era uma força irresistível nunca antes
vista em nosso mundo – e rezo para que ele nunca mais seja visto.”
— Os escritos de Zedna Tanakret, Grã-Magister do Bath em Morsia,
capital de Meridian, Ano 287 da Segunda Era

Rielle manteve o rosto escondido na capa de Corien.


Ela pressionou o nariz no fino pano escuro e inalou o cheiro dele,
prendendo a respiração o máximo que pôde. Seu cheiro a acalmou; ela o
devorou.
Espiou por debaixo do capuz da capa enquanto Corien matava cada pessoa
na festa do mercador. Foi um trabalho rápido e eficiente, e ela o observou
através de um brilho de calma que, de longe, a perturbou.
Mas quando pensou muito sobre isso, doeu sua cabeça, então ela decidiu
parar de pensar e, em vez disso, observou Corien matar.
Haviam quatro homens, todos usando casacos pesados e botas para se
proteger do frio de novembro, e nem mesmo levantaram uma arma contra ele.
Por que fariam isso? Ele era uma visão, se aproximando deles com seu
sorriso largo e suas maçãs do rosto que pareciam cortadas de vidro claro, seu
cabelo preto agarrado à testa e seu corpo esguio e branco tremendo na neve.
Uma figura comovente e adorável também. Não era de admirar que os
mercadores tivessem parado a carruagem quando o avistaram na beira da
estrada, agitando sua tochas como mendigos. Ele poderia tê-los forçado a
parar, mas se deliciava em ser capaz de manipulá-los, mesmo sem usar seu
poder angelical.
Ela esperou até que todos os homens estivessem mortos, suas armações
dobradas na terra e seus rostos congelados contorcidos de horror, antes de
baixar o capuz. Um homem estava deitado perto da carruagem, os braços
estendidos como se nos últimos momentos tivesse tentado entrar.
Rielle passou por cima de seus olhos arregalados e fixos, cinzentos e
vítreos, e subiu na carruagem com um sorrisinho satisfeito. Parecia um tipo
estranho de sorriso, afixado em seu rosto ao invés de invocado por sua
própria vontade. Mas estava quente dentro da carruagem surrada e ela odiava
sentir frio.
Teve pena do homem, no entanto. Tinha pena de todos eles. Pelo menos
achava que sim. Ela não conseguia pensar muito sobre nada sem que seus
pensamentos se desviassem para um mar calmo e cinza envolto em névoa.
Não entendia de onde vinha a névoa, mas gostou quando a envolveu. Estava
quente e parada, como uma colcha velha.
Tocando a têmpora, piscando com força, se lembrou, com esforço
monumental, da dor que martelava em seu crânio enquanto Corien e Ludivine
guerreavam em seus pensamentos nas últimas semanas. Se qualquer um deles
tivesse virado toda a força de seu poder angelical sobre ela com o objetivo de
matá-la de dentro para fora, poderiam ter feito isso facilmente. A dor de
morrer assim seria extraordinária.
Não, Rielle não invejava esses homens.
Mas estava segura agora, longe de Ludivine, e já não ouvia sua voz
repulsiva há alguns dias, e é claro que Corien nunca a machucaria. Até
mesmo pensar nele a acalmava, como o abraço do sono depois de um longo
dia.
Rielle olhou pela janela congelada para a floresta, uma escuridão
impenetrável em uma noite tempestuosa sem lua.
Era tolice se preocupar que mais alguém os tivesse visto. Corien disse isso
a ela, e ela repetiu suas palavras para si mesma. Este trecho da fronteira
oriental de Celdaria era remoto, ele a lembrou, o terreno cruel denso com
florestas, montanhas e penhascos. As estradas eram poucas e mal
conservadas. E a tempestade que se aproximava estava se aproximando,
cuspindo neve e raios. Qualquer viajante com a mente sã ficaria em casa,
seguro e aquecido.
E ainda assim, Rielle percebeu, seus pensamentos movendo-se lentamente
enquanto tentava ordená-los, os mercadores mortos haviam enfrentado a
noite, ávidos por moedas. Se alguém mais passasse por eles, se vissem seu
rosto e soubessem quem ela era, interfeririam. Mandariam uma mensagem de
volta para a capital. Tentariam capturá-la na esperança de uma recompensa da
coroa, e ela teria que se livrar deles, arruinando sua trilha de sussurros e
mensagens, e isso poderia se tornar… desordenado.
Eu não deixaria ninguém escapar de nós. Os pensamentos de Corien
deslizaram dentro de sua mente como o deslizar de uma palma em sua pele.
Se alguém visse você, eu o mataria, ou você, e me gloriaria em vê-la.
Ela piscou para ele. Eu poderia?
Você poderia, e eu beijaria você depois,, disse, e então veio a ideia dele
beijando sua testa e bochechas, e se seu coração ainda estava em balbúrdia,
ela não sentiria isso e nem se importava.
Estava contente, envolta na capa de Corien. Desejava viver para sempre
dentro dela.
Em frente a Rielle, a pequena rainha Kirvayan Obritsa subiu em seu próprio
assento, com o rosto contraído, tiras de sua pele marrom-clara acima do
colarinho visivelmente esfarrapadas, sob sua queda de cabelo branco. Corien
insistiu em economizar as forças de Obritsa por pelo menos mais uma
semana e, em vez disso, viajar a pé. A garota estava exausta, depois de cruzar
com ela, Artem e Corien o continente até Celdaria a tempo do casamento
real.
Uma marque, secretamente fingindo verdadeira humanidade como parte de
uma revolução que se formava em Kirvaya.
Rielle mal percebeu a garota. Sorriu um pouco para ser educada, o que era
mais do que a pequena pirralha merecia. Em seguida, ela se mexeu sonolenta
dentro das dobras volumosas da capa de Corien e estendeu a mão para ele.
Ele estava fora da carruagem dando ordens a Artem, o guarda devotado de
Obritsa, que conduziria a equipe inquieta de cavalos polvilhados de neve para
a frente e para o leste.
Apresse-se e volte para mim, ela implorou. Por favor, Corien.
Sua voz provocou. Sua solidão pode tão facilmente superar você.
Paciência, minha querida.
E de repente, sua calma desapareceu.
De repente, a névoa reconfortante se dissipou e Rielle ficou sozinha, presa
com seus próprios pensamentos em algum lugar no fundo de sua mente
sombria. Ela firmou seu aperto na capa de Corien, o pânico subindo por seus
braços. Seu corpo estava inchado e pesado, e ela não entendia por quê. Ela
olhou para Obritsa, que a observava com a testa franzida, e então Rielle
desviou o olhar e fechou os olhos, pois não conseguia se lembrar direito onde
estava, e isso a assustou. Se perguntou se estava trancada, enjaulada em uma
torre alta, ou se estava em uma carruagem no leste de Celdaria, ou talvez em
um mar cinzento e suave sem ninguém e nada por milhares de quilômetros.
Neste espaço vazio, um rugido repentino de memórias cresceu, e os olhos
de Rielle se encheram de lágrimas.
Não fazia muito tempo – apenas seis dias atrás – ela estava nos jardins atrás
de Baingarde. Se lembrava disso agora. Ela via claramente. Em meio à
crescente névoa desse medo que não conseguia explicar, figuras se
manifestaram. Audric. Seu rei. Seu marido, agora. Seu amor mais querido.
Apenas seis dias atrás, ele se afastou dela, seu rosto contorcido de ódio. Ele
ordenou que ela não o tocasse.
Você é o monstro que Aryava predisse, ele havia dito.Traidora e mentirosa.
E que lar havia no mundo para uma traidora? Que coração pouparia amor
por um mentirosa?
Ela tocou as têmporas. Sua mente girava com imagens desconcertantes,
cada uma lutando para subir mais rápido que a anterior, e não conseguia
encontrar seu fôlego. Corien? Onde você está?
Rielle, sinto muito, fiquei longe por muito tempo, veio sua voz, e então ele
subiu na carruagem para confortá-la.
Ela lhe estendeu a mão, sentindo-se patética e pequena, mas não conseguiu
se conter. A memória do desprezo de Audric, seu desdém e ódio, estava
muito perto, muito recente. Havia tirado o vestido de casamento alguns
quilômetros atrás na floresta e agora usava um vestido de lã mal ajustado que
Corien roubou da filha de um fazendeiro que encontrou voltando do mercado
para casa sozinha. A lã estava áspera e quente demais. Ela passou os dedos
pela pele. Se lembrou do caos da capital enquanto fugia de lá, milhares de
pessoas cambaleando com as revelações na visão que Corien lhes mostrara.
Não, não uma visão – uma verdade.
Sua nova rainha matou o pai de Ludivine e Merovec. Havia matado seu
próprio pai e sua mãe também. Havia matado seu amado rei, o pai de Audric.
E mentiu sobre isso. Mentiu e, no entanto, foi coroada pelas próprias mãos
sagradas do Arconte.
Rielle fechou os olhos, os lábios apertados em uma linha tensa. A
transpiração gotejava em seu couro cabeludo. Um estrondo de vozes gritando
circulou de volta para ela – aquelas pertencentes ao povo que ela jurou
proteger, primeiro como Rainha do Sol e depois como a Rainha recém-
coroada de Celdaria. Havia jurado isso e então abandonado seu povo. Suas
vozes chamando seu nome eram cruéis pássaros negros de memória voando
em espirais apertadas nos ventos de sua mente:
Assassina de Reis!
Assassina de Reis!
Assassina de Reis!
Ela torceu a capa de Corien com força. Não tinha vergonha de quem era, do
que era, e ainda assim o medo e a culpa a inundaram como rios gêmeos
incendiados, e ela não entendia onde estava agora, ou quem era essa garota
que a olhava tão de perto, ou para onde sua própria névoa cinza doce tinha
ido, tão calma e quieta.
— Me escute. — Mãos frias seguraram seu rosto, e quando abriu os olhos,
Corien estava lá, abaixando a cabeça para beijá-la. Ele a puxou para seu colo
e a abraçou até que seu tremor cessasse.
— Eu os odeio, — ela sussurrou contra seu pescoço. — E, no entanto, dói
só de pensar em deixar todos, em fugir no meio da noite como uma vilã.
A risada de Corien foi suave. — Você é uma vilã. Pelo menos aos seus
olhos simples, você é. Deixe que pensem assim. Deixe que te odeiem. Eles
não são nada, e você sabe disso.
— Sim, mas…
Parou antes que as palavras pudessem se formar, mas é claro que Corien já
as tinha ouvido.
— Você sente falta dele? — ele perguntou baixinho.
Rielle sentiu os olhos penetrantes da garota sobre eles. Obritsa era seu
nome, ela se lembrou, sua mente rugindo de volta para si mesma com Corien
ali ao seu lado. Rielle pressionou as palmas das mãos contra o amplo e sólido
peito de Corien e resistiu ao desejo de lançar as mãos, queimar o rosto
impertinente e perspicaz de Obritsa e lhe ensinar uma lição. O pensamento a
animou; tinha esquecido, com medo, que ela podia queimar. Ela poderia
mutilar e pulverizar. Ela poderia desfazer.
Calma, agora. A voz de Corien acariciou seu silêncio. As ondas quentes de
raiva subindo sob sua pele se achataram e se acalmaram Precisamos dela, a
lembrou. Gentileza, Rielle. Não se sobrecarregue. Me ouça. Calma, meu
amor.
Os pensamentos de Rielle se suavizaram. Satisfeita, com as pálpebras
pesadas, ouviu o barulho distante de ondas cinzentas e se sentiu tonta de
alívio. A névoa cobriu seus olhos e ela deu as boas-vindas à suavidade. Era
desnecessário, até mesmo bobo, ficar com raiva agora e invocar seu poder, ou
ter medo, pois é claro que ela sempre estaria segura com Corien. Entendia
isso agora. Ela se lembrava disso.
Ela murmurou mentalmente que Obritsa teria que aprender a não olhar
fixamente e também teria que aprender a transformar sua constante expressão
altiva em algo menos imperioso, algo mais adequado para um servo. No
momento em que chegassem ao norte, Rielle mandaria Obritsa para outro
lugar, fora de sua vista, até que ela fosse necessária novamente.
Claro, Corien disse suavemente. Mas agora não é a hora. Eu te fiz uma
pergunta, meu amor. Você não se lembra?
Você fez? Ela encostou a cabeça pesada em seu ombro.
Você sente falta dele? Responda-me, ele disse levemente. Me responda
agora.
Rielle teve dificuldade em organizar seus pensamentos, mas isso a
perturbou apenas brevemente, pois a névoa estava se infiltrando rapidamente
em sua mente, varrendo todas as preocupações. Eu o conheço a minha vida
toda, disse por fim.
E você ainda o ama, e esse fogo não pode simplesmente ser apagado
durante a noite. Corien acariciou seus cabelos, que caíam desgrenhados e
despenteados pelas costas. Ele suspirou, parecendo cansado. Eu entendo isso.
Mas você vê agora, não é? Você vê a verdade sobre ele.
Por um longo momento, ela não falou. Era tão difícil pensar.
— Ele me odeia, — sussurrou finalmente contra a curva da orelha de
Corien. — Ele não me entende.
Corien beijou a ponta de seu nariz. — Ele é muito pequeno para te
entender. Todos são. Eles veem um monstro. Eu vejo um deus na forma de
uma garota. — A mão dele deslizou por seu braço para descansar em seu
quadril. — Eles veem uma besta a ser domesticada. Vejo uma criatura divina
ansiando por ser libertada.
Os olhos de Rielle se fecharam quando ele beijou sua testa. Através da
névoa de sua mente vieram imagens – visões secretas do ardor de Corien, e
como ele ansiava por demonstrá-lo, e como desejava apaixonadamente que
estivessem sozinhos.
Mas não podia cair com ele no refúgio de seus pensamentos
compartilhados. Ainda não. Tinha uma pergunta e lutou contra a névoa que a
puxava para baixo por tempo suficiente para perguntar.
— Diga-me isto: ele está seguro? — As palavras de Rielle saíram
desajeitadamente. — Ele está bem?
Uma pequena ondulação passou de Corien para ela, ao longo da doce corda
de suas mentes unidas, como se uma pequena pedra tivesse sido jogada na
água parada.
— Ele está seguro. — Corien não disse mais nada em voz alta, mas Rielle o
ouviu claramente em sua mente.
Algum dia, ele disse à ela, e logo, espero que você entenda o que deve ser
feito.
— Eu gostaria de não tê-lo amado, — respondeu, sua voz era o mais fino
dos fios. Um sono estranho que ela não queria estava particularmente
puxando-a para baixo. — Não quero mais me preocupar com ele. Alguém
que me odeia como ele não merece nenhum pedaço do meu coração.
Eu posso te ajudar com isso. Se você permitir.
Seu corpo exausto gritou em protesto quando se afastou de Corien para
estudar seu rosto. Sua mente era uma confusão de dor e cansaço. Ela
queimava de ansiedade para não estar mais andando ou em uma carruagem
barulhenta. Uma carruagem – que estranho. Por que uma carruagem? Ela
tentou perguntar e descobriu que não conseguia falar. Queria descansar.
Queria beijá-lo.
Um pequeno cordão puxava insistentemente ela de um canto distante de sua
mente – o canto mais escuro e menor que existia atrás de uma porta trancada
para a qual ela não tinha mais a chave. O que era preocupante. Não era? Ela
não deveria possuir as chaves de sua própria mente?
Mas quando seu olhar encontrou o de Corien, seu desconforto desapareceu,
e houve um spray de espuma do mar cinza limpa contra seu rosto, e a névoa
de nuvens flutuando acima beijou seus joelhos, sua barriga, sua nuca. Seus
ombros caíram. Sua carranca escorregou. O empirium, fervendo para sempre
logo abaixo de sua pele, lambia continuamente suas bordas, e ocorreu-lhe o
pensamento, em um desabrochar de felicidade, que nunca mais teria que
impedir que aquela maré poderosa subisse. Aqui não. Não com Corien.
Posso ajudá-la com isso, disse a ela. Se você permitir.
Ele a ajudaria a esquecer sua antiga vida. A ajudaria a aprender a não amar
Audric.
Vejo uma criatura divina ansiando por ser libertada.
— Eu vou permitir, — disse por fim, e então caiu no sono tão rapidamente
que seu último pensamento antes que a escuridão a tomasse foi de alarme,
rapidamente esquecido.
2
Eliana

“Tameryn, Tameryn, Tameryn. Digo o nome dela todas as noites antes


de dormir, na esperança de que a palavra, como uma prece, traga
alguma bondade do empirium, alguma força amável que amortecerá o
golpe de meus pesadelos sem fim. Savrasara, Tameryn, onde quer que
você esteja. Volte para mim. Nós precisamos de você. Eu preciso de
você. Você carrega meu coração, e sem você estou perdida. O que
fizemos, Tam? Meu Deus, o que fizemos?”
— Dos diários de Santa Nerida, a Radiante, escritos durante as
Guerras Angélicais, roubados da Primeira Grande Biblioteca de
Quelbani

A bordo do navio de guerra premiado do almirante Ravikant, em uma


pequena cela de contenção nas entranhas da embarcação, Eliana esfregou os
pulsos em carne viva.
Uma vez – apenas semanas antes – aqueles pulsos usavam correntes de
ouro finas e receptáculos planos e redondos que ela mesma havia feito no
Forge de Vintervok.
Agora, eles usavam correntes de um tipo diferente. Durante os primeiros
dias a bordo do navio, que ela passou a maior parte do tempo vomitando as
tripas no chão de madeira de sua cela, Eliana ignorou o novo peso em seus
braços, os elos de metal a deixando indefesa e inerte. Ela tinha ficado doente,
recusando-se a comer a comida que os soldados do almirante trouxeram, até
que finalmente foi içada e levada à um porão de carga, onde a colocaram em
cima de uma grade e despejaram balde após balde de água do mar fria sobre
ela até que ela ficou limpa e tremendo, seus dentes batendo. Eles haviam
soltado as correntes então – três adatrox silenciosos, enquanto dois soldados
angelicais de olhos negros pararam presunçosamente na porta – e eles a
despiram de suas roupas encharcadas e a vestiram com outras limpas. Uma
grande camisa de linho, calças de lã.
Em seguida, recolocaram as correntes e, quando a viraram em direção à
porta para escoltá-la de volta à cela, o almirante Ravikant parou na soleira, as
mãos cruzadas na cintura. Um anjo em posse do corpo de Ioseph Ferracora.
O coração de Eliana caiu ao ver o rosto de seu pai adotivo – o cabelo escuro
e o queixo pontudo que eram cópias perfeitas de Remy. O corpo curto e
musculoso que ela antes considerava reconfortantemente sólido e agora via
como grotesco, uma fachada de alta.
Os olhos negros que não continham nada dentro deles, mais vazios ainda do
que sua cela sem janelas.
O almirante Ravikant olhou para ela em silêncio, e ela só conseguia encará-
lo, a boca seca e o coração batendo forte.
Quando falou, foi na voz de Ioseph Ferracora, todo o seu calor se fora, e
Eliana queria vomitar mais uma vez, embora não tivesse mais comida no
estômago.
— Suje-se assim de novo, — ele disse, — e voltarei com seu irmão e
demonstrarei quão criativo em modos de provocar dor posso ser. Recuse-se a
comer outra refeição, e eu realmente ficarei com raiva.
Ele saiu sem dizer mais nada, e embora ela se odiasse por isso, quando o
adatrox a trouxe de volta para sua cela, Eliana procurou nos corredores
escuros do navio o familiar cabelo louro-acinzentado, um perfil elegante, um
brilho de olhos azul-gelo.
Seus olhos são como fogo.
Ela não conseguia parar de ouvir o som de sua própria voz em sua
memória, nem conseguia parar de sentir o fantasma de suas mãos sobre ela, o
eco de seus lábios.
Mas as sombras tremendo no porão labiríntico do navio eram apenas anjos
em peles roubadas e adatrox de olhos mortos marchando sem pensar atrás de
seus mestres.
Simon não estava em lugar nenhum.

•••

Eliana torceu os pulsos contra as amarras, mas não para se libertar, pois havia
decidido que seria uma tarefa inútil. Mesmo se ela escapasse de suas
correntes, mesmo se ela de alguma forma conseguisse passar pelos guardas
que estavam de sentinela do lado de fora de sua porta, o que aconteceria? O
que ela faria? Mergulhar no meio do mar e nadar em segurança, arrastando
Remy atrás dela através das ondas?
Uma vez, não muito tempo atrás, poderia ter se concentrado nas armações
de metal gêmeas de seus receptáculos e usado sua solidez, as âncoras lisas
dos discos em suas palmas, para atrair o fogo das lâmpadas de gás que
revestem os corredores e incitar grandes explosões, queimando qualquer um
que tentasse ficar contra ela.
Mas agora, não conseguia encontrar nem mesmo um fragmento de vontade
para tentar convocar seu poder. Sem seus receptáculos, ela era uma concha,
separada de sua carne e jogada nas ondas. Procurar pelo empirium resultaria
apenas em amarga decepção. Ela sentiu isso com tanta certeza quanto sentiu
o cheiro de seu próprio sangue no ar, vazando das feridas em seus pulsos.
Havia uma ausência nela agora – um grande vazio intransponível entre o
poder à espreita dentro dela e a capacidade de sua mente de fazer qualquer
coisa além de olhar fixamente para a parede enquanto o navio do almirante
Ravikant a levava sempre para a frente através do Grande Oceano, em
direção ao continente oriental.
Em direção à Celdaria.
Em direção ao Imperador.
O atrito da carne tenra de seus pulsos contra as correntes de metal
inflexíveis proporcionou a ela um conforto perverso ali na escuridão sem fim.
Uma dor ardente constante que a lembrou de onde estava, de que era uma
prisioneira, de que seus receptáculos haviam sido arrancados dela. Que um de
seus pais estava morto, seu corpo há muito tempo transformado em cinzas
pela vontade de sua própria amante; o outro também estava morto, seu
cadáver tomado por um anjo para mau uso.
Que uma de suas mães também estava morta, por suas próprias mãos.
E a outra...
Os momentos em que pensava em Rielle eram os momentos em que Eliana
se esforçava contra as correntes com uma espécie de fome febril.
Poderia tê-la matado.
Quando Simon a mandou de volta ao Velho Mundo, ao sopé das
desconhecidas montanhas Celdarianas, ela encontrou sua mãe – travou os
olhos com Rielle, respirou o mesmo ar – e ela perdeu o foco, permitindo que
o medo a dominasse. Naquele momento mais crucial, se atrapalhou, perdendo
a oportunidade que teria resolvido tudo e evitado tudo isso – isso: ser uma
prisioneira a bordo deste navio impecável, cujo cheiro era nocivo e pesado
em sua língua; isso: o som do desespero horrorizado de Remy quando ele
gritou, chorando, ao ver o rosto alterado pelos olhos negros de Ioseph.
Isso: o momento em que ela se virou no píer na praia de Festival e viu com
seus próprios olhos a visão terrível de Simon atirando em seus aliados um por
um, latindo ordens angelicais que os soldados imperiais se apressaram em
obedecer.
Eliana poderia ter impedido que tudo acontecesse. Ela poderia, mas em vez
disso alimentou o pensamento tolo da paz, de conversa e compreensão entre
ela e o maior mal que o mundo já conheceu: Rielle Courverie, nascida Rielle
Dardenne. A Rainha de Sangue, a Assassina de Reis, a Senhora da Morte.
Eliana poderia tê-la matado, mas tentou falar com ela em vez disso. Falar
com ela. Como se uma criatura tão vil pudesse algum dia ter a presença de
espírito ou o desejo de falar sobre o fim da guerra desastrosa que ela mesma
criou, ainda incontrolavelmente violenta mil anos depois de seu horizonte.
E quem planejou esse encontro? Quem se sentou com ela e Remy e ajudou
Eliana a elaborar as frases certas para dizer no Antigo Celdariano?
Simon. Ela se forçou a dizer seu nome, primeiro em sua mente e depois em
voz alta, esperando que logo o som, o ritmo das sílabas, alimentasse nela não
um desespero vazio e entorpecido, mas uma raiva, fria e limpa.
— Simon, — sussurrou. Olhou para a escuridão implacável. — Simon.
Simon.
Ela puxou com força contra suas amarras, esfregando, torcendo.
Talvez acertasse os ossos, se ela trabalhasse duro o suficiente para isso.
Talvez sangrasse até ficar seca.

•••

Um deles deve ter lhe contado o que ela estava fazendo.


Chaves tilintaram na fechadura. A porta de sua cela se abriu e passos
cortados se aproximaram dela. Ela reconheceu aqueles passos. A tiraram de
um sono agitado, e ela observou com horror enquanto ele se agachava diante
dela, os braços descansando preguiçosamente sobre os joelhos. Só a sua
silhueta estava aparente, sua forma negra contra o corredor iluminado fora de
sua cela, mas ela percebeu o brilho fraco de seus olhos.
Ela se obrigou a encará-lo, sem piscar e sem medo, embora fosse uma
mentira que tinha certeza de que ele poderia entender. Seu corpo estava fraco,
desnutrido, e a visão dele despertou nela uma fúria violenta demais para
suportar. Estremeceu com a proximidade. Seus dedos se contraíram. Ela se
imaginou rasgando-o com os próprios dedos.
— Simon, — disse, e sua voz, pelo menos, saiu firme e monótona, como
pretendia.
— Você está se machucando, — observou ele. — Não posso permitir isso.
O som de sua voz era familiar e totalmente, horrivelmente estranho. Nunca
a tinha ouvido tão fria, tão desprovida de paixão, humor, raiva. Continha
apenas uma rápida eficiência, cada palavra sua, cortada e insensível.
— Eu não me importo, — ela respondeu – a resposta de uma criança mal-
humorada, mas ela não conseguia fazer nada melhor.
— O Imperador solicitou que você chegasse sem cicatrizes e com saúde.
— O Imperador pode ir se foder e você pode se juntar a ele.
Procurou o homem que conhecia naquele rosto sombrio e não viu nada,
nem mesmo uma onda de zombaria divertida. Ele se levantou e deu um passo
para o lado enquanto os dois guardas imperiais que esperavam na porta
entraram em silêncio.
— Leve-a para o deck B, — ordenou. — A Sala Azul.
Então Simon girou nos calcanhares e se afastou, seu corpo longo e magro
movendo-se com a mesma graça sinuosa de sempre. Sua partida a deixou
selvagem. Se tivesse a liberdade para fazer isso, se tivesse certeza de que não
resultaria em um destino terrível para Remy, ela teria se lançado contra ele,
cravado as unhas nos sulcos marcados em seu rosto, faria rasgadas de carne
de seu pescoço e rasgaria sua garganta.
Deixando-a apenas alguns segundos depois de se mostrar pela primeira vez
em dias? Isso ela não podia suportar.
— Não vá, — deixou escapar, desesperada. Por mais horrível que fosse, ele
era a única coisa que ela conhecia neste lugar terrível. Ela sentiu que havia
começado a se perder, encolhida no escuro como um animal chutado, mas vê-
lo ajoelhar-se diante dela, desejando ferozmente por sua morte – e ser a sua
cura – a despertou.
Ele a ignorou, avançando.
Frenética, se lançou contra as garras dos guardas segurando seus cotovelos.
— Presumo que o Imperador tem planos para mim. Isso não acontecerá mais
rapidamente se eu for até ele informada da minha situação, em vez de
ignorante?
Ele parou a alguns passos da porta e olhou para trás por cima do ombro. —
Os planos do Imperador irão prosseguir rapidamente, independentemente da
sua ignorância. — Então, para os guardas, disse: — Vocês têm suas ordens.
Ele foi embora logo em seguida, e enquanto Eliana era escoltada para fora
de sua cela e através de um labirinto interminável de corredores acarpetados,
ela começou a duvidar de que ele tivesse estado ali.

•••

Depois disso, nunca mais ficou sozinha.


A levaram para um aposento espaçoso em um dos andares superiores. Um
tapete felpudo de azul meia-noite se estendia sob um teto violeta claro, a
madeira pintada embelezada com representações de constelações
desconhecidas. Um lustre pendurado nas vigas, elos de cristal estremecendo
enquanto o barco balançava e zumbia, e a cama era enorme, uma
monstruosidade de pervinca e cetim índigo que parecia olhá-la
maliciosamente quando um trio de atendentes angelicais soltaram as
correntes de Eliana e puxaram suas roupas.
Dois guardas vigiavam as portas e mais quatro estavam posicionados nas
janelas, passando por elas uma escuridão cintilante – as ondas incessantes,
um toque de luar. A visão do mundo além do navio estilhaçou algo frágil e
sensível na garganta de Eliana, e enquanto os atendentes limpavam e
enfaixavam seus pulsos, ela engoliu em seco para não chorar.
No banheiro adjacente, a esfregaram da cabeça aos pés com água
fumegante que escorria de uma torneira de latão reluzente. Seus movimentos
eram rápidos, mas não violentos, e Eliana se perguntou quais foram
exatamente as ordens do Imperador. Se fizesse o possível para incitá-los a
machucá-la, eles a tolerariam?
Se tentasse se matar, acabasse com tudo isso antes que o Imperador
pudesse, ele deslizaria dentro dela e a manteria como refém dentro de sua
própria mente, impedindo-a de fazer qualquer coisa, exceto deitar naquela
cama azul gigante em silêncio até o navio aportar em Celdaria?
Riu um pouco da imagem e, assim que começou, não conseguiu mais parar.
Enquanto as atendentes trabalhavam com o sabão em seus cachos até os
ombros, uma risada histérica escapou dela. Eliana se olhou no espelho
enquanto penteavam seus cabelos castanho-escuros, suas ondas e cachos
soltos, seus nós furiosamente atados. A visão a lembrou entorpecida de Dani
Keshavarzian, que havia cortado seu cabelo emaranhado até a mandíbula, em
Willow. Pensar em Dani, no Jubileu do Almirante, em todos os mortos
naquela praia em Festival, ela esperava lágrimas, mas nenhuma veio.
Os atendentes alisaram cremes em sua pele, sua cor marrom-claro de tom
oliva quente, empalidecida, ficou sombreada pela luz fraca das velas. Eles a
amaciaram e encheram como fariam com um pedaço de carne. Em seguida,
eles a vestiram com uma camisola sem forma de seda violeta e se retiraram,
deixando-a sozinha com seus seis guardas.
Um deles apontou para a cama. — Durma.
Ela obedeceu, porque se ficasse por mais um momento de pé sobre as
pernas trêmulas, ela desabaria, e não suportaria a indignidade de soldados
angelicais arrastando-a inconsciente para a cama.
Escalou em cima dela, vacilante como um potro recém-nascido. O cheiro
perfumado dos sabonetes que os atendentes usaram a fez engasgar. Ela
afundou em seus travesseiros, afastou-se daqueles doze olhos negros fixos e,
pela primeira vez desde que acordou a bordo do navio do almirante, chorou.

•••

Por dias, ficou em agonia silenciosa entre as pilhas de seda azul que se
tornaram seu mundo.
E em seus sonhos, ele a visitava.
Primeiro ele era Remy, sendo arrastado por aquele corredor vermelho sem
fim com o qual ela havia sonhado pela primeira vez em Astavar. Ela o
perseguiu, correndo por quilômetros ao longo do tapete encharcado de
sangue, mas quem ou o que o estava puxando era muito rápido para ela,
muito forte, e o final do corredor estava se desfazendo rapidamente, os
pedaços explodindo para fora como cacos de vidro vermelho estilhaçado.
Então ele era Ioseph, o pai que a criara, deitado em uma mesa branca e
limpa em um quarto branco limpo, sendo aberto por anjos em mantos brancos
limpos. Cada um usava uma das máscaras que ela tinha visto no Jubileu em
Festival: um corvo negro metálico, uma raposa de latão sorridente, um pavão
de marfim cravejado de joias turquesa. Ioseph gritava quando as facas dos
anjos o perfuravam, e então um funil preto veio girando de cima, forçando-se
em sua boca, seu nariz, seu peito aberto.
Em seguida, ele era Simon, vindo até ela no quartinho em Willow com o
teto inclinado e o minúsculo fogão quente, a cama dobrada em um canto.
Seus músculos tremiam enquanto ele se movia dentro dela, e seus braços ao
redor dela eram quentes e fortes. Eles a firmaram e a imobilizaram e a
exultaram. Ele colocou a palma da mão contra sua testa, e o calor daquele
toque gentil a acalmou. Ela seguiu a trilha silenciosa de seu toque para baixo,
para baixo, para baixo em um túnel negro e quente enterrado no fundo de sua
mente. Seu próprio batimento cardíaco tamborilou cada vez mais rápido em
seus ouvidos, tão alto que sacudiu seu peito, e de repente queria deixar
Simon, queria correr dele e nunca olhar para trás. Mas não conseguia se livrar
de seus braços. Estava presa lá na pequena cama, no túnel em espiral, com o
estouro de seus batimentos cardíacos afogando-a, sufocando-a, e sua boca
estava sobre ela, seus dedos pressionando entre seus lábios, contra a curva
tenra de seu pescoço, e ela ansiava pela pressão de seu toque, embora o
desprezasse.
— Seus olhos, — ele sussurrou em seu cabelo, — são como fogo.
Um terrível calor abrasador floresceu dentro dela. Começou em sua barriga
e cresceu e aumentou até que estava pressionando as palmas das mãos nas
bochechas, queimando os dedos nas duas fogueiras onde seus olhos
costumavam estar, e a risada de Simon estava por toda parte, um
acompanhamento áspero para seu coração acelerado.
A voz de Harkan aumentou através do inferno crepitante: El, se você pode
fazer algo, faça agora!
Ela se viu ajoelhada na lama fora da cidade de Karlaine, pressionando suas
mãos brilhantes na terrível ferida no estômago de Remy…
Um som de sucção, depois silêncio. Trevas.
— Ah. — Um pequeno suspiro. Palavras suaves esticadas em torno de um
sorriso. — Aí está você.
Ela se virou em sua cama em Willow, naquele quartinho com teto
inclinado, a chuva batendo seus dedos frios contra as janelas. Sentado no
canto, em uma cadeira coberta com as roupas de Simon, estava um homem de
preto, dedos brancos unidos em seus lábios.
Seu sorriso se alargou quando os olhos dela pousaram sobre ele, e a visão
dele sentado ali, contente em sua diversão, era um retrato tão perfeito, tão
surpreendentemente belo, que Eliana se viu chorando de novo.
— Bem-vinda ao lar, Vossa Alteza, — disse a ela, e então se levantou, as
sombras da sala convergindo para ele, moldando as linhas pretas e limpas de
sua capa, seu casaco, seu cabelo…

•••

Eliana acordou quando o navio estremeceu e depois parou.


O balanço infinito não existia mais, e fora das janelas de seu quarto azul
havia luz do sol, um amplo céu rosa, um par de gaivotas brancas planando.
Ela se sentou, seus membros trêmulos escorregadios de suor. Lençóis
arruinados, olhos ardendo, bochechas em carne viva e úmidas.
Quando a porta se abriu, o almirante Ravikant entrou na sala. As três
atendentes de Eliana o flanqueavam, tecidos opulentos pendurados sobre os
braços.
— Chegamos. — ela resmungou. Não usava a voz há dias, talvez semanas.
— Não é?
O sorriso do almirante era jubiloso, o fantasma do rosto de seu pai se
iluminou com uma expressão de alegria frenética que ela nunca o tinha visto
usar.
— Vista-se, — comandou. — Ele está esperando por você.
3
Audric

“Não tema, Celdaria: o traidor Audric Courverie não se senta mais no


trono sagrado de Katell. A assassina Assassina de Reis fugiu de medo.
Por fim, os ataques misteriosos que assolam as fronteiras orientais,
deixando nossos cidadãos pálidos e desfigurados em suas casas, terão
fim. Por fim, encontraremos justiça para o que perdemos. Por fim, a
Casa de Sauvillier colocará os inimigos de Celdaria de joelhos. Olhe
para a capital e regozije-se, pois embora a coroa fosse fraca, agora é
forte novamente. Todos saudam Sua Majestade Merovec Sauvillier, o
Verdadeiro Rei de Celdaria!”
— Um decreto real emitido quando Merovec Sauvillier assumiu o
trono celdariano, 8 de novembro, ano 999 da Segunda Era

Audric teria voado por dias, se Ludivine tivesse deixado.


No céu, apenas com as nuvens baixas e Ludivine e Atheria de companhia,
ele quase foi capaz de esquecer tudo o que havia acontecido. Ele existia em
um mundo cinza suave, mesmo quando a luz do sol o atingiu em cheio, tão
brilhante e quente que gotas de suor rolaram por sua testa e costas e colaram
suas roupas em sua pele.
Suas roupas – calças da melhor lã, botas polidas com um brilho impecável,
uma túnica de seda esmeralda, um casaco bordado de branco e ouro que
abraçava seu torso elegantemente.
As roupas que havia usado no casamento poucos dias antes.
— Shhh, — Ludivine lhe disse a primeira vez que as memórias daquela
noite conseguiram penetrar a névoa entorpecida que caiu sobre ele. Ela
montou atrás dele em Atheria, os braços em volta de sua cintura, a bochecha
pressionada contra suas costas. — Não faz sentido pensar nisso agora. Não
até que estejamos seguros.
Seguros. Ele riu, mas só um pouco. Não tinha energia para mais do que
isso, e certamente não o suficiente para falar com ela, mesmo se quisesse.
E não queria.
Falou com Ludivine apenas uma vez, depois que ela o convenceu a parar
em um pequeno bosque perto da costa sul de Celdaria. Tinham que voar com
cuidado, e apenas a noite. Audric permitira que Ludivine ditasse os termos da
viagem, muito cansado e com o coração partido para protestar. Era
reconfortante ser guiado e carregado. Guiado por um anjo, carregado por uma
besta divina.
Novamente, riu. Cada vez que o fazia, a preocupação de Ludivine colava
suavemente contra ele como a de uma mãe agitada. Várias vezes, considerou
se virar, empurrá-la para longe de Atheria e observá-la mergulhar através das
nuvens no chão. A única coisa que o deteve foi a esperança de que ela
pudesse ser útil para encontrar Rielle e convencê-la a voltar para casa.
Um pensamento insensível e egoísta, talvez. Esperava que Ludivine
pudesse sentir isso. Ele esperava que isso pesasse tanto em seu coração
quanto suas últimas memórias de Rielle pesavam no dele. Esperava que isso a
sufocasse.
Atheria pousou silenciosamente em um bosque de carvalhos e sacudiu suas
asas. Audric sentiu seus grandes olhos negros observando-o enquanto ele se
postava entre dois troncos retorcidos e olhava para o norte, para casa.
Ludivine tocou seu braço. — Você não os abandonou.
— Abandonei. — disse categoricamente. — Não vamos fingir o contrário.
— Se você tivesse ficado, Merovec teria te matado.
Seu aperto no punho de Illumenor aumentou. — Eu posso me proteger.
— Claro, mas isso é algo que não poderíamos ter arriscado.
Ele se virou para ela. — Por quê? Porque comigo morto, você teria que se
esforçar mais para trazer Rielle para casa?
O olhar pálido de Ludivine estava firme. — Teria partido meu coração
perder você.
— Isso não responde a minha pergunta.
— No entanto, é verdade.
— Certamente você não espera que eu acredite que tudo o que você diz é
verdade.
Ela o observou em silêncio por um momento, talvez esperando que seu
silêncio constante o desgastasse, que se desculpasse por sua indelicadeza, que
a puxasse para seus braços e beijasse sua testa como sempre fazia.
Mas em vez disso, ele a observou com a paciência de uma montanha até
que ela desviou o olhar e afundou pesadamente na grama.
— Cometi um grave erro em algum lugar — murmurou ela — mas não
consigo ver.
— Seu erro foi pensar que poderia nos controlar como peças em um jogo de
estratégia. — disse Audric. — Você pensou que poderia tramar com Rielle,
mantê-la só para você e ainda protegê-la dele de alguma forma. Você a
convenceu a esconder a verdade de mim, a conduziu através das provações, e
a encorajou a praticar a arte da ressurreição, que é exatamente o que ele quer
dela, e você fez tudo isso sem consultar ninguém.
Enquanto falava, ficava mais irritado. Sua fúria não explodiu, mas
transbordou continuamente. O mundo era um turbilhão de luz fraca e som
estrondoso, mas ele ficou onde estava e respirou através do calor de sua raiva.
Sua briga com Rielle era muito recente para ele cometer o mesmo erro duas
vezes e afastar sua aliada mais forte na guerra pela fidelidade de Rielle.
Se ainda pudesse ser ganha.
E o fato de que tinha que pensar nessas coisas – a lealdade de Rielle, como
se ela o devesse isso ou a qualquer pessoa – o enojou tanto que ele percebeu
com uma rápida e silenciosa compreensão que se odiava totalmente.
Olhou para Ludivine, endurecendo o coração contra a visão dela sentada ali
com os ombros caídos, olhando desoladamente para o nada, uma mecha de
cabelo dourado despenteado se soltando de sua coroa de tranças.
— Todos aqueles meses atrás, quando os soldados de Borsvall me
emboscaram durante a Boon Chase — Audric disse — e Rielle perdeu o
controle de seu poder enquanto me salvava – você poderia tê-la impedido,
não é mesmo? Você poderia ter entrado em sua mente e subjugado, mantido
seu poder em segredo. Ela não teria sido descoberta. Sem julgamentos, sem
Rainha do Sol.
— Eu não podia permitir que você morresse. — disse Ludivine com a voz
vazia.
Ele esperou um pouco e então se agachou diante dela. — Porque você me
ama?
— Porque Rielle te ama.
As palavras o destruíram. Ela ainda ama? Ele poderia nunca saber. —
Porque você queria que ela me amasse. Você queria que nos amássemos e
nos casássemos, e que tivéssemos filhos, talvez, pois cada uma dessas coisas
a teria ligado mais firmemente a mim, à coroa. A você.
Ludivine se encolheu. — Porque se você tivesse morrido, isso teria partido
o coração dela.
— E em seu estado de coração partido, ela poderia ter feito algo
precipitado. Cair nos braços de alguém pronto para acalmar sua dor. Como
fez agora, apesar de todos os seus esforços.
— Eu não…
— Talvez você pudesse até mesmo ter impedido os próprios assassinos a
caminho. — Percebeu pela primeira vez, perplexo por nunca tê-lo ocorrido
antes. Ela o impediu de deduzir a verdade? — Mas você não os impediu,
porque queria que o poder de Rielle explodisse. Você queria que ela
começasse a explorá-lo. Por quê?
Impotente, Ludivine abriu a boca e fechou-a novamente, as mãos pálidas e
delgadas cerradas nas coxas. — Não é tão simples assim, Audric…
— E se você tivesse me contado a verdade sobre a morte do meu pai —
interrompeu — eu poderia tê-la ajudado. Eu poderia ter te ajudado.
Poderíamos ter sido uma frente unida, você e eu. Todos os medos dela, toda a
culpa que carregava depois do que aconteceu no julgamento do incêndio.
Aqueles últimos minutos com seu pai. Os pesadelos que sem dúvida a
atormentavam – os dela e de Corien também. Eu poderia tê-la ajudado a
carregar cada um desses fardos. Mas você me negou essa escolha. E você
negou a ela o conforto que eu teria dado a ela, a paz que eu poderia tê-la
ajudado a encontrar.
Os olhos de Ludivine brilharam com lágrimas. — Fiz o que achei melhor.
— Você é um tola. — disse asperamente. — Egoísta e orgulhosa. Se não
fosse por você, ela ainda poderia estar conosco.
Atheria ajoelhou-se ante sua abordagem. Ele a montou sem dizer outra
palavra e esperou que Ludivine subisse atrás dele. Ela se acomodou entre as
enormes asas com pontas pretas da besta divina e respirou fundo,
estremecendo.
— Eu não vou me desculpar — sussurrou Ludivine assim que estavam no
ar. O vento quase engoliu suas palavras.
— Tampouco deveria tentar me convencer de que fez tudo por amor. —
disse Audric. — Se eu ouvir isso mais uma vez, acabarei com você. Já estou
quase lá.
Atheria os levou rapidamente pelo céu. Cada pulsação emplumada de suas
asas era uma batida baixa e suave que sacudia o peito de Audric.
Ele não voltou a falar com Ludivine.

•••

A costa de Mazabat apareceu primeiro como uma fenda branca no horizonte,


um sorriso instável cobrindo o mar cintilante de inverno.
À medida que se aproximavam, Audric viu a dura verdade do que Mazabat
havia sofrido desde a visita de Rielle meses antes: uma enxurrada
interminável de tempestades, todas vindo do portão enfraquecido. Praias
erodidas repletas de destroços se estendiam de horizonte a horizonte. Além
da costa, quilômetros de floresta haviam sido nivelados pelo vento, e a cidade
de Quelbani parecia meio feita com muitas de suas torres derrubadas e até
mesmo os maiores templos despojados de seus telhados e janelas.
Examinando a paisagem em ruínas, seu coração afundando, Audric não
percebeu as pessoas alinhando a crista mais externa da praia até que o céu
explodisse em chamas.
Atheria desviou, suas asas batendo forte no ar para redirecionar seu curso, e
soltou um grito feroz de raiva.
Audric colocou as mãos em sua crina e apertou os olhos por causa do
brilho. Um campo de explosões de estrelas flamejantes pairava ao longo da
costa, tanto quanto ele podia ver em qualquer direção. Haviam tantos, e
estavam tão próximos, movendo-se inquietos como vaga-lumes presos, que
formaram uma rede, bloqueando efetivamente a abordagem de Atheria.
Apenas um único corredor estreito de ar vazio foi deixado intocado – um
corredor que os guiava para a costa.
— Eles estão controlando nossa descida. — observou Ludivine.
— Eu não os culpo. — respondeu, e acariciou o arco do pescoço de
Atheria. — Continue.
Ela bufou, suas orelhas compridas se achatando contra o crânio. Ele podia
sentir os músculos dela tremendo com o esforço de pairar ali, como se
estivesse pisando na água.
Fechando os olhos, Audric se concentrou na luz do sol acariciando seu
couro cabeludo, a nuca, seus dedos agarrando a crina de Atheria. Ele se
inclinou e pressionou sua bochecha contra o pescoço de veludo do pégaso.
— Eu confio em você, Atheria, — disse a ela calmamente. Ele segurou as
palmas das mãos contra a pele dela, imaginando que ele poderia enviar todos
os canais de poder tecendo através de seu corpo – mesmo aqueles que não
conseguia sentir – para o próprio corpo de Atheria. Ele não era um anjo, nem
Rielle, que parecia conversar com Atheria tão facilmente quanto ela faria com
qualquer pessoa.
Mas então, Atheria não era um cavalo. Ela era uma besta divina, superior a
todos eles, mais próxima do empirium do que qualquer pessoa ou qualquer
coisa, exceto, talvez, Rielle. Esperava que ela pudesse entendê-lo de alguma
forma, sentir-se reconfortada por sua confiança nela.
— Se o perigo nos espera na costa — ele continuou — então você
certamente pode dar as costas imediatamente e nos levar para um lugar
seguro. — Sentindo-se tolo, acrescentou: — Você entendeu?
As orelhas de Atheria giraram para a frente e para trás, como se ouvindo
um mundo de sons que seus próprios ouvidos não pudessem detectar, e então,
após outro momento de hesitação, ela mergulhou em direção ao mar,
seguindo o caminho que o fogo dos mazabatianos havia feito para eles.
Pela primeira vez desde sua noite de núpcias, Audric sentiu algo diferente
de desespero – uma pequena centelha de alegria, fraca e bruxuleante,
rapidamente extinguida.

•••

Esperaram na praia – um arranjo organizado de soldados reais com cerca de


duzentos homens. Cinquenta eram firebrands, seus braços tremiam com o
esforço enquanto, juntos, seguravam firmemente a rede de fogo que se
estendia ao longo da costa.
Assim que os cascos de Atheria tocaram a areia, os firebrands baixaram
seus receptáculos e cambalearam. Alguns desabaram. Audric não ficou
surpreso; tal demonstração de poder inabalável não era facilmente
administrada nem mesmo pelos elementais mais habilidosos – não mais,
nesta era tranquila. Curandeiros em vestes brancas correram para cuidar dos
firebrands, e enquanto Audric os observava, pensou em Rielle, na brilhante
teia de poder que ela havia criado para impedir que o maremoto destruísse a
capital borsválica de Styrdalleen.
O dela tinha sido um escudo ainda mais maciço e deslumbrante do que esta
exibição criada por cinquenta firebrands combinados – e depois, ela não
desabou. Estava cansada, sim, mas se mantinha forte e alta, seus olhos
brilhavam e ela se movia em direção a ele com uma graça suave e lânguida
enquanto o povo de Styrdalleen gritava de adoração.
Audric tentou afastar esses pensamentos de Rielle e falhou. Ela seria para
sempre um refrão circulando sob a superfície de cada pensamento, de cada
palavra sua. Ele podia vê-la tão claramente – cheirá-la, senti-la – que por um
momento não conseguiu se mover, o peso colossal de sua angústia puxando-o
como uma maré negra.
Atheria se mexeu, relinchando baixinho.
Audric se forçou a desmontar e ergueu as mãos. Centenas de olhos o
seguiram; arcos levantados e flechas encaixadas e receptáculos a postos
rastreavam cada movimento seu. O ar tremeluzia com o poder elementar
contido, como se a praia fosse uma miragem de calor.
— Seus firebrands ficarão bem? — Audric gritou.
Um soldado próximo, sua lapela decorada com um conjunto de medalhas
coloridas de jóias, seu cabelo escuro encaracolado cortado curto e bem
cuidado, saiu das fileiras. Audric adivinhou que ela era uma comandante.
— Largue o seu receptáculo, Portador da Luz. — ela ordenou. — E, por
favor, lembre-se de que você está em grande desvantagem numérica aqui e
que as regras de extradição não se aplicam a reis depostos. É somente devido
à generosidade da Rainha Bazati e da Rainha Fozeyah que você teve
permissão para entrar em nosso país.
Ele obedeceu, colocando Illumenor no chão. — Compreendo. E devo
expressar minha mais profunda tristeza sobre os danos que esses últimos
meses trouxeram à sua bela cidade.
A comandante não disse nada. Seus olhos orgulhosos cortaram para
Ludivine. — Lady Sauvillier. É seu irmão que agora está sentado no trono
celdariano.
— Tão certo quanto nenhum poder elemental corre em minhas veias —
Ludivine respondeu, dando um passo à frente com as palmas das mãos
levantadas — minha lealdade reside apenas com meu verdadeiro rei, Audric
Courverie.
— Isso vai servir. — disse uma voz profunda e rica, e então a parede de
soldados se abriu para revelar uma mulher de pele negra em um vestido de
azul vivo. Seus longos cabelos escuros caíam em cascata pelas costas em
cachos grossos. Traços de âmbar e cerúleo destacavam seus graves olhos
castanhos, e ao redor do pescoço ela usava um pesado pingente triangular em
uma corrente dourada.
— Rainha Bazati. — Audric se ajoelhou na areia. — Agradeço a você por
permitir que Lady Ludivine e eu pousássemos em suas praias e gostaria de
fazer um pedido formal de asilo. Embora eu saiba que as notícias de Celdaria
são alarmantes, espero que você se lembre dos séculos de amizade que nossas
duas nações desfrutaram…
— Oh, levante-se. — A rainha Bazati, da casa real de Asdalla, ajudou-o a
se levantar e então o puxou para um abraço feroz. — Você comeu na mesa da
minha família quando estava pouco acima do meu joelho. Uma vez, se você
se lembra, você vomitou em meu vestido de templo bem no meio das orações
depois de roubar um saco inteiro de doces da minha cozinha.
Ele deu um pequeno sorriso quando ela se afastou dele. — Então suponho
que meu pedido de asilo foi concedido? Eu prometo não vomitar em nenhum
de seus vestidos.
A rainha não retribuiu o sorriso. Em vez disso, ela encarou seu rosto por um
longo momento, então balançou a cabeça. — O que aconteceu, Audric?
A compaixão na voz dela abriu um abismo entre suas costelas, e pela
primeira vez desde que ele se viu sozinho nos jardins – Rielle se fora, e o
capitão de sua guarda caindo sobre ele com nojo e ódio brilhando em seus
olhos – Audric sentiu a pressão quente das lágrimas.
— Eu não sei. — respondeu honestamente. — Nada de bom, Majestade.
Ela acenou com a cabeça e enganchou o braço no dele. Seu olhar cintilou
uma vez para Ludivine, e Audric pensou ter lido desagrado em sua expressão,
como se ela desejasse que ele tivesse chegado sozinho a Mazabat.
Um sentimento com o qual ele certamente poderia se relacionar.
— Vou arranjar quartos na ala real para você. — disse a ele enquanto
caminhavam pela praia em direção à linha de árvores destruídas e as estradas
de pedra branca de Quelbani além. Os cidadãos separaram as pilhas de
escombros e as equipes de construtores trabalharam em andaimes altos para
consertar as fachadas de pedra, mas ainda assim a cidade brilhava como se
nenhum vento pudesse diminuir sua luz. Quando menino, Audric gostava das
viagens de sua família à capital Mazabatiana, sua reputação como um lugar
de estudiosos, pesquisas e artes medicinais era incomparável, suas bibliotecas
eram as maiores do mundo desde as bibliotecas angelicais no continente sul
de Patria fora destruída durante as Guerras Angélicais.
Mas agora, quando os sons da agitada cidade encontraram seus ouvidos, ele
se viu desejando, com um desejo tão simples e intenso que lhe roubou o
fôlego, que pudesse dar meia-volta e voltar para casa.
Nunca imaginou não ter uma casa para onde voltar.

•••

O aposento que as rainhas haviam preparado para ele era arejado e simples,
mas luxuosamente decorado – paredes de pedra caiada, samambaias lilases e
verde-floresta penduradas no teto em potes de latão, sinos de vento cantando
alegremente nas varandas.
Ele recusou o convite das rainhas para jantar o mais educadamente possível
e ficou feliz quando Ludivine se retirou sem dizer uma palavra para seus
aposentos no corredor.
O sol estava se pondo. Além de suas janelas, que haviam sido abertas para
permitir o ar fresco da noite, o céu estava escuro com luz tangerina, suas
nuvens tingidas de lilás e rosa.
Ele estava sozinho.
Observou o céu pelo máximo que pôde permanecer em pé e então começou
a tremer dos ombros tensos até as panturrilhas doloridas. A exaustão e o
entorpecimento daqueles longos dias viajando a bordo de Atheria estavam
chegando para reivindicá-lo, finalmente, mas a visão de sua cama era
insuportável. Limpa, arrumada e branca, a cabeceira da cama uma obra-prima
de entalhes de teca manchados e pedra azul polida, era adorável e
convidativa, mas não era dele.
Era a cama de um estranho, dormida por incontáveis dignitários ao longo
dos anos. Sua própria cama ficava em casa, em Baingarde, e o envolvia
enquanto ele se movia com Rielle nas altas horas da noite, quando tudo o
mais estava quieto.
Lá fora, em um dos amplos terraços, Atheria pousou com um pequeno
gorjeio alegre, a boca cheia de penas. Ela havia pegado um falcão para jantar.
Foi a visão dela que o desfez.
Sua dor o atingiu como a onda que vira Rielle dominar. Ele não conseguia
tirar a imagem dela de sua mente – uma salvadora brilhante, uma rainha com
membros de fogo montando seu corcel imortal para salvar o mundo.
— Oh, Deus. — engasgou, caindo de joelhos, e então, de repente, sua fúria,
tristeza e arrependimento explodiram em seu corpo, da barriga ao peito e
garganta, e ele jogou a cabeça para trás e gritou, seu braços rígidos ao lado do
corpo.
Rapidamente, seus soluços aumentaram para reivindicar sua voz, e ele
chorou ali no macio tapete branco, com as mãos enterradas em seus cachos
escuros. Seu peito era uma agonia de dor, como se uma lâmina o tivesse
partido em dois.
Ele não teria se importado se isso acontecesse. Não conseguia se imaginar
acordando no dia seguinte, e no seguinte, e no seguinte, neste lugar que não
era sua casa, seu trono tirado dele e ele mesmo, seu amor, sua Rielle longe
dele, expulsa por sua própria raiva, seu ciúme estúpido e cruel, seu orgulho
ferido.
Não ouviu a porta se abrir, nem ouviu Ludivine andar descalça no chão.
Não percebeu que horas haviam passado, que o céu estava escuro, ou que
estava com fome, tremendo no chão. Que estava tão cansado que seus ossos
doíam, ou que Atheria estava andando em um frenesi de preocupação no
terraço, cantando como um pássaro agitado.
Mas quando Ludivine se sentou ao seu lado e abriu os braços, ele se voltou
para ela, buscando conforto tão cegamente quanto uma criança. Ela não lhe
enviou nenhuma garantia com sua mente, e por isso estava grato.
Ele se agarrou a ela, seus soluços ásperos e fortes. Sentiu os lábios de
Ludivine em seu cabelo.
— Eu sinto muito, Audric. — ela sussurrou contra sua têmpora, suas
palavras cheias de lágrimas. Ela acariciou seus cachos úmidos, disse seu
nome novamente e novamente.
O som da voz dela o lembrou de respirar.
4
Tal

“Meu querido Tal. Vou mandar para aquela pousada que amamos, em
Beaulaval, na esperança de que chegue até você. Nenhuma palavra de
Audric ainda. As coisas estão mudando rapidamente aqui. Os soldados
de Merovec param os cidadãos nas ruas. Eles invadem as casas sem
avisar, patrulham os bairros constantemente. Procurando por algo, mas
o quê? Quando qualquer um de nós que tenta oferecer uma defesa ou
perguntar o que Merovec está tentando fazer, é dispensado. Mais
informações depois, mas por agora devo dizer que Odo Laroche e eu
começamos o que você pode chamar de esforço de resistência. Aqueles
que são leais a Audric. Você vai achar precipitado, mas não está vendo
o que eu estou vendo. Nós nos nomeamos Coroa Vermelha. Não ria.
Nada disso é engraçado e temos que fazer algo. Eu sinto sua falta. Seja
cuidadoso. Não confie em ninguém. Traga-a para casa.”
— Carta não entregue codificada de Miren Ballastier, Grã-Magister
do Forge em Âme de La Terre, capital de Celdaria, para Taliesin
Belounnon, Grão-Magister do Pyre, datada de 15 de novembro, ano
999 da Segunda Era

Escondido com segurança sob sua pesada capa de lã, seu capuz puxado para
proteger seu encharcado cabelo loiro, Taliesin Belounnon, Grão-Magister do
Pyre, entrou no barulhento salão da taverna de Glittering Mare e foi direto
para o maldito taverneiro.
Era uma noite fria, e a feroz tempestade de inverno que havia caído do
norte naquele dia não dava sinais de diminuir. Mas dentro da lotada Glittering
Mare, assim chamada em homenagem à lendária besta divina de São Katell, o
ar estava úmido e denso.
A bartender ergueu os olhos quando Tal se aproximou. Sua boca se
estreitou, tão parecido com a de Miren quando ela estava zangada – sua touca
vermelha de cachos era, da mesma forma, estranhamente reminiscente – que
Tal teve que desviar os olhos.
— Se você vai pingar água em todo lugar — disse ela, — então é o dobro
do preço de tudo o que temos.
Por baixo do capuz, Tal encontrou os olhos da mulher e deu-lhe um
pequeno sorriso, o tipo de sorriso charmoso e torto que na maior parte do
tempo deixava de lado desde que fora ordenado Grão-Magister.
Geralmente.
— Você tem certeza disso? — perguntou. — Fico feliz em torcer minha
capa algumas vezes e esfregar bem o lugar.
A carranca da barman se aprofundou. — Você acha que uma piada e um
belo sorriso são suficientes para me fazer mudar de ideia?
Tal sufocou um suspiro. Estava cansado e com frio, e suas botas e meias
estavam completamente encharcadas, e o escudo receptáculo, amarrado às
costas por baixo da capa, era injustamente pesado, e tudo o que queria no
mundo era uma bebida, só para ele, sem ninguém incomodando-o ou
reclamando do estado de suas roupas.
Assim que sua mente formou o pensamento, ele percebeu que era uma
mentira.
Tudo o que queria no mundo – tudo o que realmente queria — era olhar
para trás para as dezenas de pessoas que bebiam, fofocavam e gritavam na
taverna e ver uma jovem pálida com cabelos escuros desgrenhados e olhos
verdes brilhantes. Ela estaria ali, a multidão girando distraidamente em torno
dela, e quando seus olhos se fixassem nos dele, seu rosto se enrugaria de
alívio, de exaustão. Ela correria em sua direção com os braços estendidos, e
ele a abraçaria, alisaria os emaranhados de seus cabelos, beijaria suas
bochechas manchadas de lágrimas. Ele a tranquilizaria de que ela estava
finalmente segura, de que ele a levaria rapidamente para casa.
Seu nome enrolado na curva de sua língua. Era uma palavra familiar o
suficiente para ter um sabor ácido e explosivo, como se ele tivesse mordido
uma fruta madura de verão. Rielle.
Ele teve que olhar. Quase podia senti-la parada ali, assustada e cansada,
desolada e com saudade de casa.
Mas quando se virou para olhar por cima do ombro, viu apenas a taverna e
seus clientes, apenas o teto de vigas altas e as venezianas bem fechadas
contra a tempestade.
Ele fechou os olhos brevemente, uma dor aguda torcendo em sua garganta.
Esta não foi a primeira vez que jurou que ela estava lá – logo atrás dele, logo
depois daquela curva na estrada, logo depois daquele bosque de árvores. Seu
eco o acompanhou por dias enquanto procurava na vastidão Celdariana, e era
aquele remanescente, aquela atração, que o convenceu de que ela sempre
estava por perto, que estava cada vez mais perto de encontrá-la.
Ou isso ou ela estava morta, e era apenas sua memória que o perseguia.
Mas não conseguia imaginar que o mundo sobreviveria à sua morte. E se
pudesse, de alguma forma – se tudo pudesse ficar como estava mesmo que
ela não respirasse mais o ar que os mantinha vivos – então o mundo deles era
um que não desejava mais habitar.
Ele abaixou o capuz de sua capa, sacudindo os emaranhados de seu cabelo
encharcado pela chuva – e afastando pensamentos vagos de Rielle. Talvez,
pelo menos por alguns minutos, poderia limpar a cabeça e encontrar um
pouco de paz. Olhou para cima, oferecendo a bartender uma bela visão de seu
lindo rosto, um sorriso triste que conseguiu fazê-la corar.
— Perdoe-me — disse, rindo. — Foi um dia longo e horrível, estive
viajando por muitos dias longos e horríveis e meu temperamento está em
frangalhos. Você tem um trapo? Vou limpar essa minha bagunça e deixar
você em paz.
— Oh, pare de tentar me encantar — a bartender repreendeu quando se
afastou, mas ele viu sua boca se contorcer, e quando voltou alguns momentos
depois, foi com uma caneca fumegante de cidra e dois trapos brancos.
— Limpe-se, e então você pode pagar pelo próximo — ela disse com uma
piscadela que o lembrou, mais uma vez, tão completamente de Miren que ele
perdeu a capacidade de falar.
Em vez disso, sorriu para a mulher, encontrou um banquinho desocupado e
sentou-se curvado sobre sua bebida. Quente e apimentada, afrouxou alguns
dos nós em seu peito, mas não fez nada para aliviar a dor de cabeça que vinha
latejando constantemente em suas têmporas desde que deixou Âme de la
Terre. Ele havia trabalhado diligentemente nos últimos dias para manter seus
pensamentos de casa fugazes, folheando-os como faria com as lombadas de
livros que não tinha interesse em ler.
Mas a cidra não era excelente apenas para soltar nós, e logo ele estava
cuidando da borra enquanto os pensamentos de casa giravam e corriam por
sua mente.
Isso o estava deixando louco, não saber o que estava acontecendo em Âme
de la Terre. A notícia da deposição de Audric e a ascensão do trono por
Merovec haviam se espalhado por todo o país. A julgar pelas várias
conversas abafadas ocorrendo ao redor da sala e pelos olhares furtivos e
curiosos lançados na porta cada vez que ela se abria, os cidadãos aqui na
pequena aldeia de Tavistère tinham ouvido a notícia também.
Tal agarrou sua caneca e fechou os olhos, tentando não pensar em Miren
sozinha na cidade, lidando com Merovec Sauvillier.
Merovec Sauvillier, rei de Celdaria. Rei Audric, escondendo-se.
Rainha Rielle, desaparecendo noite a dentro.
As palavras sussurradas flutuavam pela sala, e cada vez que encontravam
os ouvidos de Tal, os sons coagulavam dentro dele como um bloqueio
horrível que não conseguia desalojar. Seu único consolo era saber que, se
Audric fosse encontrado e morto, Merovec garantiria que aquela notícia em
particular viajasse rapidamente. Até então, havia algum consolo na
especulação confusa sobre seu paradeiro.
— Aqui. — Uma caneca nova deslizou à vista. A bartender o observava
com curiosidade. — Parece que você precisa de pelo menos mais alguns
desses.
Tal conseguiu dar um sorriso fraco. — Vou pagar pelo terceiro, então?
— Mantenha-me envolvida em uma conversa fascinante, e você não terá
que pagar por nenhuma. Parece que você tem algumas conversas fascinantes
fermentando nessa sua bela cabeça loira.
— Fascinantes — Tal concordou. — Surpreendentes. Perturbadoras.
As sobrancelhas da bartender ergueram-se. — Você sabe como intrigar
uma garota, Capa Molhada.
— Aiden — mentiu, com outro sorriso.
— Rosette. — Ela apoiou o queixo nas mãos e sorriu de volta para ele. —
Então? Um acordo é um acordo.
E de repente, Tal não queria nada mais do que confessar tudo. — Saí de
casa para fazer algo muito importante — disse ele, com a garganta apertada.
— E deixei para trás alguém que amo.
— Por que essa pessoa não pôde vir com você?
O rosto de Miren apareceu diante dele – queixo pontudo e travesso. Um
campo denso de sardas nas bochechas pálidas. Cachos ruivos macios que
brilhavam como cobre derretido à luz de velas de seu quarto.
E então, na última noite em que ele a viu, nos jardins atrás de Baingarde –
seu rosto duro e solene, seus olhos brilhantes, mas cheios de determinação.
Ela tinha ficado na capital para ser os olhos de Audric. Uma espiã leal do rei
deposto.
Seja corajoso, ela sussurrou contra sua boca sob os pinheiros do jardim, e
então correu de volta para o castelo antes que ele pudesse começar a fazer o
adeus que ela merecia.
— Porque — disse por fim, esfregando a testa, — ela tem uma coisa
importante a fazer também. Muito importante para abandonar seu posto, por
assim dizer.
— Vocês dois devem ser pessoas bem importantes — Rosette meditou, um
único dedo batendo contra seus lábios. — Suponho que você não vai me
dizer quais são essas tarefas graves?
— Receio que não.
— Você jurou segredo, não é?
Ele colocou a mão no peito e abaixou a cabeça. — Jurei segredo e estou
preso a correntes douradas de honra.
O sorriso de Rosette se alargou. — Eu adoro quando homens taciturnos
carregados de segredos nobres entram em meu estabelecimento.
A mente cansada de Tal lutou por uma resposta. Tinha bebido muita cidra;
seus pensamentos estavam turvos e desleixados. O rosto de Miren e o rosto
de Rielle colidiram e se combinaram – cachos vermelhos curtos e longas
ondas escuras. O eco de Rielle tocou mais uma vez seu ombro, agudo e
repentino como uma rajada de vento, e ele apertou todos os músculos contra
isso.
— Eu sei que você não está realmente aí — murmurou, pressionando as
pontas dos dedos com força contra as têmporas.
— Aiden? Você está doente? — Rosette tocou seu braço. — Você ficou tão
pálido. Eu gosto de você, mas é melhor você não passar mal no meu balcão.
A porta do corredor da taverna se abriu.
Um grito desesperado soou. — A marca pálida! Eles estão aqui! A marca
pálida! Minha filha! Alguém, por favor, eles estão aqui! Alguém está aqui!
Rosette recuou com um grito sufocado.
Tal se virou, a visão pulsando com o ritmo da dor de cabeça, e viu um
homem parado na porta aberta, a tempestade feroz em suas costas. Em seus
braços estava o corpo de uma jovem, seus membros rígidos, seu rosto
contorcido em uma máscara grotesca de horror.
O pânico se apoderou do Glittering Mare como chamas cuspindo. Os que
estavam mais próximos do homem cambalearam como se a garota em seus
braços carregasse uma doença horrível. Outros gritaram e correram para as
portas, as janelas, as escadas que levavam às salas de embarque.
Tal se levantou, um pavor quente e frio inundando seus braços.
Ele tinha ouvido falar dessa "marca pálida". O Rei Ilmaire de Borsvall
escrevera a Audric sobre isso, e relatos de seus próprios soldados chegaram à
capital semana após semana nos últimos meses. Nas fronteiras de Celdaria e
Borsvall, aldeias e postos militares igualmente haviam sido afetados por essas
mortes inexplicáveis – pessoas mortas rapidamente durante a noite. Por
sombras, era o boato. Havia sussurros de feras, embora nenhum dos relatórios
na mesa de Tal tivesse conseguido descrever algo compreensível.
Alguns dos mortos foram massacrados, seus ossos espalhados e sua carne
em pedaços; outros ficaram sem vida, sem feridas em seus corpos. A única
pista sobre o que havia acontecido com aqueles cadáveres misteriosos, relato
após relato notado, eram seus rostos anormalmente pálidos, cada um deles
distorcido de horror como se, em seus últimos momentos, tivessem sido
desfeitos de dentro para fora.
Uma mão fria tocou o braço de Tal. Ele se virou para ver Rosette o
olhando, seus olhos vidrados com uma película cinza e um sorriso
presunçoso dividindo seu rosto. Tal perdeu o fôlego.
Ela inclinou a cabeça bruscamente para o lado. — Tarde demais, Tal.
Seu pescoço quebrou com um estalo horrível; seus olhos clarearam. Ela
desabou, batendo a cabeça contra a bancada.
Tal cambaleou para trás. Os mais próximos dele gritaram e fugiram. Ele
sabia muito pouco sobre o comportamento angelical, mas Rielle lhe contara
tudo o que acontecera ao falecido Rei Hallvard de Borsvall pouco antes de
sua morte, e enquanto olhava para os olhos congelados de Rosette, seu rosto
branco como osso se contorceu em agonia, um arrepio horrível varreu sua
pele.
Anjos.
Corien.
Rielle.
— Tarde demais, Tal! — Uma nova voz masculina cantou as palavras e,
quando Tal encontrou a fonte, o homem – barbudo, de olhos cinzentos,
sorrindo loucamente – já estava caindo, o pescoço quebrado, o rosto
descorado e contorcido.
— Tarde demais, Tal! — Um criado, pouco mais de quinze anos.
— Tarde demais, Tal! — Uma mulher tentando acalmar seus filhos
chorando.
A trilha de seus corpos quebrados o provocava, monstruosos rostos brancos
o conduzindo em direção à porta. Tal empurrou a multidão em pânico e o
pobre homem soluçando caindo de joelhos na soleira. O corpo de sua filha
caiu no chão.
Lá fora, a tempestade sugou o ar da garganta de Tal. A chuva negra o
atingiu como agulhas. Ele desamarrou as tiras do peito e retirou o escudo, em
seguida, usou-o para recolher uma grande placa de fogo das tochas
encharcadas de óleo que crepitavam na porta da taverna. Várias pessoas
gritaram e pularam para trás, mas ele as ignorou, correndo pelo pátio cheio de
lama. Os gritos aterrorizados dos cavalos alojados no celeiro da pousada
perfuraram o ar. Seus cascos batiam contra as baias. Não havia fogo, além do
seu escudo; eles estavam com medo de outra coisa.
Só quando chegou às árvores na beira do quintal ele parou para ouvir. Não
os gritos daqueles que estavam na pousada. Não a tempestade.
Em vez disso, ele ouviu Rielle.
Com o corpo trêmulo de raiva, ele fechou os olhos, agarrou o escudo com
força e invocou o empirium com mais desespero do que antes.
O empirium está em todos os seres vivos, e todos os seres vivos são do
empirium, rezou.
Queime firme e queime de verdade. As chamas que revestem seu escudo
cresceram, estalando e famintas.
Queime limpo e brilhante.
Rielle havia pronunciado essas mesmas palavras no dia do julgamento do
fogo. Eles as recitaram juntos, repetidamente, enquanto a réplica em chamas
da casa de seus pais cuspia cinzas e faíscas a seus pés.
Mas então... penas caíram em vez de chamas. Brilhante e cor de fogo, tudo
feito por Rielle.
Rielle, cadê você?
Seu eco passou por ele, quase brincalhão. Uma onda de frio em seu
abdômen.
Ele correu atrás dele pela floresta escura, galhos encharcados chicoteando-
o, a única luz era de seu escudo em chamas, e quando ele emergiu na clareira
onde ela estava – ele sabia, sabia que ela estava lá antes mesmo de vê-la,
podia sentir isso, podia senti-la; implorou ao empirium que a encontrasse, e
ele, pela primeira vez, o obedeceu limpa e completamente – a dor pulsante
em sua cabeça explodiu.
Ele caiu de joelhos; seu escudo voou para longe, as chamas apagadas. Caiu
para a frente sobre as mãos e, quando olhou para cima, o mundo se inclinou e
ele a viu apenas por um momento.
Ela usava uma capa longa e escura tão grande que a engoliu. Seu cabelo
molhado grudou em suas bochechas.
Seus olhos se encontraram, e mesmo quando sua visão escureceu, seu
crânio gritando como se estivesse se rasgando em dois, reconheceu aquele
olhar nos olhos dela. Ele a ensinou por anos; ele praticamente a criou.
Ela estava assustada.
Ele estendeu a mão para ela, seu braço tremendo. — Rielle, querida, está
tudo bem, estou aqui…
Mas então não conseguiu mais se manter de pé e, enquanto observava da
lama, imóvel e atordoado, uma garota de cabelos brancos e pele marrom clara
esculpiu um anel de luz no ar aos pés de Rielle. Ele não entendia o que estava
vendo. A garota era um marque?
Houve uma varredura de escuridão, um movimento rápido, um estalo no ar.
Um homem alto, o vento açoitando seu casaco.
Então a luz se foi. E Rielle também.
Tudo o que restou foi uma voz que não pertencia a ela. Era suave, refinada
e muito divertida.
Dizia, Tarde demais, Tal.
E então isso o chutou com força para o esquecimento.
5
Rielle

“Por milênios, os anjos viveram apenas nos céus. Depois que o primeiro
anjo ascendeu do pó da antiguidade, o restante de sua espécie nasceu –
das nuvens e cometas, dos altos ventos astrais. Luminosos e sem idade,
eles estudaram as estrelas e o empirium além. Foi só quando os anjos
finalmente notaram os humanos vivendo no mundo abaixo que eles
desceram, fascinados demais para resistir ao que eram para eles
criaturas notáveis e repulsivas com vidas fugazes e poderes invejáveis.
Para os humanos, a Grande Descida foi uma chuva de fogo sobre o
mundo, além do trabalho de qualquer elemental. O caos governou.
Países foram desfeitos e fronteiras apagadas. Os humanos se
espalharam por toda parte, deixando as nações que agora conhecemos
como Patria e Vindica livres para os anjos reivindicarem como suas.”
— E Fogo Caiu do Céu: A Grande Descida Angélica e Como Mudou
O Mundo, uma coleção de escritos acadêmicos compilados por Lyzet
Taval, da Primeira Guilda de Estudiosos

Rielle ainda não havia dominado a arte de viajar pelos fios de Obritsa com
qualquer tipo de graça.
A terceira vez que passou pelo anel de luz que veio a desprezar, conseguiu
manter o equilíbrio por apenas um momento antes que seus joelhos se
dobrassem.
O chão veio até ela rápido, um trecho plano e duro de terra vermelha
espalhada com seixos afiados que perfuraram suas palmas macias.
Ela olhou para cima, engolindo em seco contra a leve necessidade de
vomitar que sempre parecia acompanhar a viagem de fio, e descobriu que
estava no fundo de um estreito desfiladeiro de imponentes pedras vermelhas.
Havia um rio barulhento nas proximidades, abrindo caminho através da rocha
com espuma branca e uma corrente negra. O céu estava claro com o pôr do
sol, lançando uma luz carmesim sinistra nas paredes planas do cânion, nas
quais desenhos intrincados haviam sido esculpidos. Rielle encontrou formas
familiares: anjos alados voando por cidades coroadas por altas torres.
Grandes navios de guerra elegantes avançando em direção a uma costa
distante. Estrelas e luas pontilhando a tela de rocha vermelha em várias
configurações, como um mapa extenso deixado para trás por algum viajante
gigantesco.
— É lindo — disse suavemente.
— Claro que é. Anjos fizeram isso. — Corien se aproximou dela com a
mão esquerda estendida. — Esta é Samandira, a entrada de Eridel. Uma das
maiores cidades de Vindica, há muito tempo. Um local de estudo e
pensamento iluminado. Universidades onde estudiosos angelicais trabalharam
para desvendar os mistérios da criação. Bibliotecas contendo milhares de
trabalhos examinando a natureza do empirium. Antes que os humanos a
destruíssem — ele acrescentou levemente. — A guerra causou muitos danos.
E então, depois de nossa prisão, milhares de humanos viajaram até aqui para
demolir o que restou. Durante anos, eles fizeram isso – desfazendo tudo o que
conquistamos. Saqueando as ruínas.
Rielle sabia que a leveza em sua voz era falsa. Depois que ele a ajudou a se
levantar, ela entrelaçou os dedos nos dele. Sua capa e calça pretas, uma vez
imaculadas, estavam sujas de suas viagens inacabáveis. Olhando para o rosto
dele, tão fino e suave na luz vermelha, ela sentiu uma onda de carinho – e de
pena.
Ela tocou sua bochecha. Seus dedos sujos mancharam sua pele pálida.
Nenhuma palavra que pudesse dizer seria de algum conforto, e ela ainda
estava incerta se conforto era algo que ela desejava dar.
Mas ela não conseguia parar de tocá-lo.
Sua vida havia se tornado uma série de episódios frenéticos – correndo para
o leste, de uma cidade para a outra, a pé ou a cavalo ou em qualquer
carruagem que Corien roubasse de pessoas na estrada, nenhuma das quais
conseguia resistir à sua voz persuasiva, ao olhos brilhantes e claros, suas
promessas de uma rotina selvagem nas árvores, se ao menos eles permitissem
o uso de seu cavalo e carroça.
Ele gostava de brincar com eles, esses humanos infelizes que a princípio
estavam contentes em deixá-lo deslizar para dentro de suas mentes enquanto
olhavam para seu rosto requintado – até que percebiam tarde demais o que
estava acontecendo e começavam a gritar de medo.
No começo, Rielle desviou o olhar sempre que isso acontecia. A visão deles
era horrível – seus rostos convulsionantes e contorcidos – e então, quando
caíam no chão, o baque pesado e duro. Toda a cor saia de seus rostos, suas
expressões de terror absoluto. Ela sabia que Corien era capaz de violência,
mas estes pareciam casos tão desnecessários e cruéis que ela se recusou a
assistir.
No começo.
Agora, ela se via espiando cada vez mais frequentemente. Não era que ela
gostasse exatamente da dor deles. Gostava da exibição de seu poder, e ele
sabia que ela gostava, podia sentir seu prazer cansado pressionando contra
seus pensamentos logo antes de matá-los, e sabendo que ele estava satisfeito
lhe trouxe algum conforto. Estava desesperada por conforto. Sua cabeça não
parava de doer, e ela odiava seu vestido roubado.
Ela odiava, também, o quão estranho seu corpo se sentia alguns dias, quão
inexplicável o enjoo vinha sobre ela sem aviso prévio até ser forçada,
mortificada, a forçar vômito enquanto Corien segurava o cabelo com uma
ternura que quase compensava a indignidade de estar doente na sujeira.
Então, ela o observava matar, desejando seu prazer e aprovação com
desespero vagamente preocupante. Mas toda vez que um choque de alarme a
chocalhava, ele desaparecia tão rápido quanto havia chegado.
Você é como eu, ela lhe disse cinco dias atrás. Ele tinha acabado de se
afastar de um homem de cabelos grisalhos, enrugado, mas forte, e o deixou
cair no chão. O homem tinha sido um pastor, um fato que fez Corien rir por
razões pelas quais ele escondeu de Rielle quando ela tentou tocar sua mente.
Há meses venho dizendo como somos parecidos, respondeu, divertido, ao
passar por cima do cadáver para se aproximar dela. Por que dizer isso hoje?
Você não gosta de machucá-los. Não é isso que faz você fazer isso. Seu
coração bateu em sua proximidade. Cada pulso faminto fazia seu peito boiar
cada vez mais alto até se sentir pronta para flutuar do chão. Ela estava tão
cansada – estava sempre cansada de uma maneira lamacenta, como se
estivesse perpetuamente balançando através de um pântano gomoso – e a
exaustão só se desaparecia quando ele estava perto.
Você gosta do seu poder, disse a ele. Você gosta do que pode fazer e do
sentimento de retidão que o enche quando usa sua mente como ela foi feita
para ser usada.
Corien a considerou por um momento, e então, com seu hálito quente
contra sua boca, disse: Você está apenas parcialmente correta, minha
querida. Eu amo meu poder, sim, mas na verdade gosto muito de machucá-
los. Todos eles. Cada um.
Então ele a beijou, longa e fortemente, até que seu ligeiro desânimo doentio
com suas palavras desapareceu, até que ela se esqueceu do homem morto a
seus pés e de todos os outros corpos que eles deixaram em seu rastro.
Ela nem tinha certeza de para onde estavam viajando.
Quando perguntou a Corien, apenas uma vez, ele respondeu enviando seus
pensamentos, mas eram tão embaralhados e confusos que pensar sobre eles
machucava seus olhos, como se estivesse olhando diretamente para o sol. Ela
foi forçada a desviar o olhar deles, e logo tinha esquecido tudo sobre suas
perguntas, apenas ocasionalmente percebendo-as no horizonte de sua mente
antes de desaparecerem mais uma vez.
Devemos continuar, Corien disse a ela. Isso é tudo que importa.
Ele estava certo, é claro. Tinham que continuar viajando para o sudeste.
Não havia necessidade de saber mais do que isso.
Descansavam apenas quando Obritsa precisava, o que era muito frequente
para o gosto de Rielle. Ela não entendia? Eles tinham que continuar se
movendo. Era importante, e Corien não ligava para atrasos.
Mas a garota horrível só conseguia carregá-los cem milhas de cada vez
antes de desmaiar de exaustão, o que os forçava a parar com muita frequência
e descansar por uma ou duas noites em alguma pousada horrível e imunda, ou
em uma cabana miserável depois de se desfazerem de seus ocupantes, ou
mesmo ao ar livre, na sujeira, como feras.
E neste borrão de movimento interminável para o leste, durante o qual a
cada dia trazia uma nova paisagem, um dialeto ou estilo de roupa
desconhecido, cada um dos quais fazia Rielle se sentir mais inquieta, mais
assustadoramente longe de casa, Corien era sua única âncora. A única coisa
constante que a conhecia e a amava.
Então, na margem seca e plana do rio canyon, ela o tocou. O tocava tão
frequentemente quanto podia, mesmo quando a náusea de viajar pelos fios de
Obritsa a deixava trêmula e úmida de suor.
— Você quer ficar aqui um pouco? — perguntou, ignorando os gritos
abafados de dor de Obritsa quando a garota prendeu a respiração nas
proximidades. — Poderíamos explorar as ruínas. Talvez restem artefatos que
possamos resgatar.
O olhar de Corien suavizou, o que acontecia apenas quando ele olhava para
o rosto dela. O alívio dessa constância trouxe lágrimas aos olhos de Rielle.
Ele era uma lua brilhante, brilhando sobre o mar cinza coberto de névoa em
que ela agora vivia.
Ele beijou a testa dela. — Por uma noite. Encontraremos uma casa antiga,
uma casa angelical, que costumava ser tão grandiosa e gloriosa quanto você,
e dormiremos lá até o amanhecer.
Então, sem se virar, se dirigiu à garota e seu guarda.
— Avante, Sua Majestade. — Ele adorava zombar de Obritsa, o que fazia
Rielle ficar contente. — Você e seu nobre companheiro podem mostrar o
caminho.
Ele apontou para uma trilha larga que seguia o rio, esperou que Artem
marchasse adiante e Obritsa mancasse atrás dele, seu pequeno corpo
tremendo de exaustão. Artem pairava sobre ela, alto e robusto, com pele
castanho-claro e cabelo castanho desgrenhado, os olhos turvos e
preocupados. Amarrada ao redor de seu torso com seis tiras de couro, apoiada
em suas costas e ombros, estava uma enorme mochila de lona. Cada vez que
Rielle o olhava, sua cabeça girava e sua garganta se apertava até que ela era
forçada a desviar o olhar, então prontamente esquecia que existia. Isso
aconteceu de novo agora, e quando ela oscilou, as mãos de Corien em sua
cintura a estabilizaram.
Então ele levou a palma de sua mão à boca e puxou o outro braço dela.
Juntos, seguiram em frente.

•••

Não foi até mais tarde naquela noite, enrolada em uma pilha imunda de peles
e cobertores que eles encontraram – provavelmente, Corien disse com
desprezo, deixado para trás por um dos bandos errantes de caçadores de
tesouros que vagavam pelas cidades em ruínas de Vindica, buscando o
relíquias angelicais – que Rielle se lembrou de ter visto Tal.
A memória voltou enquanto ela dormia, atingindo-a com a força de um
golpe físico. Seus olhos se abriram, e mal conseguiu conter um grito agudo.
Várias coisas a ocorreram simultaneamente:
Corien estava sentado a alguns passos dela, olhando pela janela aberta da
mansão que ocuparam para a noite. Os tetos eram altos e os corredores
largos, projetados para acomodar as asas flamejantes de anjos que tinham
pelo menos 2,5 metros de altura. As proporções deixaram Rielle tonta. Seus
olhos estavam abertos, mas vidrados. Quando ela dormia, ele costumava usar
sua mente para “trabalhar”, ele havia dito a ela, recusando-se a oferecer mais
informações. Ele estava fazendo isso agora, o queixo apoiado na mão como
se estivesse inspecionando preguiçosamente o horizonte em busca de nuvens.
Tão ocupado, ele ainda não tinha percebido que ela estava acordada, nem
que se lembrava da memória que tinha escondido dela. Tal, deitado na lama,
estendendo a mão para ela, chamando por ela. Estou aqui, Rielle! E com
aquela única memória comovente vieram todas as outras, bem em seus
calcanhares. A névoa em que ela vivia desapareceu e finalmente viu tudo
com clareza, como se tivesse sido empurrada violentamente da escuridão para
a luz absoluta.
Ela tinha que partir. Agora.
Levantando-se trêmula, os olhos de Rielle se inundaram de lágrimas de
raiva. Agora entendia com clareza devastadora como tinha vivido nas últimas
duas semanas. Parecia óbvio agora, e ela se enfureceu ao pensar em quão
estúpida deve ter parecido, quão flexível e sem sentido.
Com seu poder, Corien confundiu sua mente e a arrastou pelo mundo
através dos fios de Obritsa. Alheia, Rielle o deixou conduzi-la, e nos
momentos em que suas memórias ameaçaram ressurgir, seu poder queimando
em protesto, ele aumentou seu controle sobre ela e a puxou de volta para uma
jaula acolchoada e entorpecida. Ele a persuadiu a dormir e a recompensou
com sonhos febris.
Engolindo um soluço, tremendo com o esforço de ficar quieta, Rielle se
levantou silenciosamente e se afastou dele. O chão de pedra era sórdido; seus
pés abriram um caminho irregular por longos séculos de poeira e
decomposição.
Por ele ter escondido tanto dela, por enganá-la tão completamente, por ela
ter visto Tal não muito tempo atrás, ele estava a meros metros dela – e ainda
assim Corien os impediu de conversar, tomou a escolha dela, nem mesmo
permitiu que se lembrasse do momento, ou de qualquer momento que não
quisesse que ela…
De pé, recuou para fora da sala, sem ousar piscar, empurrando com força
contra sua fúria e decepção e a dor de suas memórias recuperadas até que se
sentiu tonta. Ela viu tudo se desenrolar sem obstáculos diante dela: seu
casamento, e a visão que revelou que ela havia matado o Rei Bastien; Audric
gritando com ela nos jardins; ela fugindo da cidade; seguindo a voz de Corien
para a floresta fora de Âme de la Terre até que, finalmente, desabou em seus
braços. E depois…
E então, nada. Um oceano cinzento. Flashes ocasionais de cor. Uma
paisagem de sonho criada por Corien. Uma carruagem roubada. Arrancando
o vestido de noiva de seu corpo enquanto chorava, em seguida, cambaleando
através de um escuro bosque celdariano em sua camisola e botas até que
Corien a encontrou, forçou-a a vestir um vestido ainda quente de sua dona
anterior, beijou-a até que seu choro cessou e ela se encontrou à deriva em um
mar calmo e cinzento mais uma vez.
E Tal – oh, ele a chamou. Naquelas árvores, naquela noite tempestuosa
perto de uma pousada acesa, ele caiu no chão e estendeu a mão para ela. Ele a
estava seguindo, deve ter procurado por ela, na esperança de trazê-la para
casa.
Rielle chegou à porta, com a respiração apertada e fraca, os olhos ardendo
enquanto olhava para Corien e desejava que ele ficasse parado. Era incomum
que ficasse tão distraído com seu trabalho que nem notasse o despertar dela.
Mas seja qual for a razão para isso, ela teve que aproveitar a chance para
fugir. Vejo uma criatura divina ansiosa para ser libertada, dissera ele,
enquanto apertava as correntes que a prendiam a ele.
Liberdade. Uma grande piada. Ela tinha sido um cachorro na coleira; via
isso agora com uma urgência tão escaldante que parecia que ela havia
engolido um raio.
Com os pensamentos rugindo de pânico, olhou para os pedaços
inconscientes no canto mais distante da sala que eram Artem e Obritsa,
mantidos congelados em um sono profundo criado, é claro, por Corien. Ele
estava planejando tudo isso, e ela não podia confiar em nada, e agora onde
ela estava? Lugar nenhum. Longe de casa, em uma terra em ruínas que
outrora pertenceu aos anjos.
Assim que Rielle recuou sobre a soleira e entrou no vasto corredor externo
– o teto antigo e desmoronado, aberto para os andares superiores da casa e
depois para o céu salpicado de estrelas acima – ela correu.

•••

Ela não foi longe.


Ela correu por uma série de pátios enfileirados entre as grandes casas com
pilares na vizinhança próxima, cada jardim abandonado coberto de árvores
raquíticas e espinheiros secos retorcidos. Abaixando-se debaixo de um arco
de pedra desmoronado flanqueado por duas figuras – uma sem cabeça, a
outra com protuberâncias deformadas nas costas que um dia devem ter sido
asas – Rielle olhou para trás por cima do ombro.
A lua estava na fase crescente e o ar frio; sua respiração veio em baforadas
rápidas. Ruínas negras tocadas pelo prata se assomavam sobre ela,
chamuscadas com cinzas que não desbotavam. Cada um estava marcada por
um golpe de um antigo punho elemental, cicatrizes que nem o tempo nem o
clima puderiam remover. Ela podia sentir o cheiro da magia mesmo agora,
séculos depois. Fumaça no vento. Lama cheia de chuva. O cheiro forte de
metal manchado de sangue.
Se virou novamente – e correu direto para Corien.
Ele agarrou seus braços, mas antes que pudesse falar, antes que pudesse
envolvê-la mais uma vez em seus pensamentos e entorpecê-la a seu gosto, ela
explodiu.
Sua fúria convocou o empirium, e este obedeceu com alegria.
Acorrentado por muito tempo, seu poder surgiu através de seu corpo e
irrompeu de suas palmas. Ela o chicoteou com isso. Ele voou pelo jardim,
bateu em um pilar; sua cabeça bateu na pedra. Ele deslizou para o chão, mas
não ficou caído por muito tempo.
Balançando a cabeça, se levantou cambaleando.
Ela estendeu os braços para ele como se fechasse uma grande porta. Seu
poder o arremessou no ar, prendendo-o contra uma treliça quebrada de
ferragem corroída curvando-se para cima a partir das paredes do pátio.
Aquilo já fora um aviário? A ideia de anjos alados mantendo os pássaros
engaiolados e presos para sua diversão era perversa. A fúria de Rielle
aumentou ainda mais.
Ela empurrou as mãos para o ar. O corpo de Corien estremeceu contra o
ferro.
— Rielle — engasgou — por favor, ouça…
— Você deveria ter me prendido novamente no momento em que percebeu
que eu tinha ido — rosnou, caminhando em direção a ele. — Me envolvido
nessa sua mente que você tanto ama. Me deixado dormindo como Obritsa e
Artem. Talvez você tenha pensado que não precisava. Talvez você tenha
pensado que eu iria vê-lo novamente e esquecer de ficar com raiva.
— Já aconteceu antes — ressaltou, e mesmo pendurado na treliça, ele era
perturbadoramente bonito, seus olhos brilhantes, sua boca petulante
praticamente implorando para que ela beijasse. — Você ama minha
companhia. Você não pode negar, Rielle.
Não podia, mas sua voz suave era uma tentativa tão óbvia de acalmá-la que,
se tivesse raiva, teriam chegado aos seus ouvidos. — Eu negarei o que eu
desejar. — Ela flexionou os dedos, torcendo as cordas do empirium ao redor
de seu corpo. — Usarei meu poder como quiser.
Os olhos claros de Corien brilharam. Ela sentiu sua mente alcançando a
dela e atirou nele uma torrente de seixos que convocou do chão. Ele uivou de
dor quando bateram em seu rosto.
— Não tente fazer isso de novo — ela ordenou. — Não minta para mim de
novo ou disfarce meus pensamentos com os seus, ou eu vou te matar. Vou
queimar você como fiz meses atrás, e desta vez não vou parar. Você ficará
torrado no chão e eu observarei suas cinzas se espalharem.
— Você não vai — ele engasgou, sangue agora pontilhando seu rosto. —
Você me ama.
— Eu gostaria que não — disse amargamente.
— Eu te fascino, querida.
— Assim como sua morte.
Ele riu. Como ele podia rir enquanto pendia impotente no laço de seu poder
a encantava, apesar de sua recusa em ser encantada.
— Você me enganou — disse calmamente.
Ele não respondeu por um longo momento. — Sim — ele finalmente
concordou.
Ela o segurou no lugar implacavelmente, seu poder inflexível. Mas seu
peito doeu. Ela desprezava seus olhos ardentes, seu nariz formigando e o fato
de que ele seria capaz de sentir o nascimento de cada lágrima.
— Você não precisava — disse. — Eu estava lá. Estava com você. Vim
para você. Eu tinha… — Ela hesitou. Tudo estava muito fresco; suas
memórias recuperadas a tinham arranhado em carne viva. — Eu tinha
deixado Audric, saído de minha casa, para vir para você.
— Eu sei.
— Você sabia que não precisava mentir para mim, mas mesmo assim fez
isso.
— Eu precisava.
A impaciência açoitou seu corpo; seu poder aumentou o aperto escaldante
sobre ele, fazendo-o gritar. Ela viu o brilho negro de sangue em seu pescoço,
suas mãos. Se pressionasse um pouco mais forte, queimaria sua pele.
— Eu não entendo — ela disse, com a voz embargada. — Você me
prometeu liberdade e me deu o oposto. Vim procurá-lo porque não tinha mais
ninguém. Eu não podia confiar em ninguém, mas confiei em você.
— Eu sei.
— Você me conhecia e não tinha medo.
— Eu ainda conheço, e ainda não tenho medo. — Seu olhar a segurou
suavemente, e ela se arrepiou nervosamente com a ternura ali, mesmo quando
ansiava por isso.
— Você me ama — ela declarou.
— Mais do que jamais amei alguém em minha longa vida — ele respondeu
imediatamente.
Seu coração saltou em sua gaiola. — Então por que?
— Porque eu sei que você ainda o ama — ele murmurou. Ela observou com
fascinação enquanto o desespero varria seu rosto limpo de malícia. — Eu sei
que você ainda os, ama, mesmo que os odeie, e que tudo isso é novo para
você. Você está cansada, mas seu sangue ruge incessantemente com um
poder que a faz tremer de desejo e terror. Sei que você tem medo de ficar
longe de casa. Sei que você sente falta do familiar. E eu não queria que
aquele medo tirasse você de mim.
— Não teria sido o medo que me afastaria de você, se eu tivesse decidido ir
embora. Teria sido eu mesma, minha própria vontade. E você me negou essa
escolha.
— Eu não podia permitir isso.
— Você não podia permitir isso?
Ele bufou uma respiração impaciente. — Rielle, este é um momento crítico.
Você chegou tão longe com suas habilidades e estou mais orgulhoso de você
por isso do que posso expressar, mas agora as coisas estão mudando. É hora
de seguir em frente e não posso arriscar perdê-la.
Ela zombou, sua visão turva enquanto as lágrimas subiam. — Você não
pode arriscar perder a mim ou meu poder?
— Ambos são um e o mesmo.
— Ou você tem medo de perder o que meu poder pode fazer por você, ou
tem medo de me perder, Rielle. A mulher. Porque você me ama.
— E não pode ser os dois? — ele disse com um toque de irritação. — Até a
sua mente permite que você experimente muitas emoções ao mesmo tempo.
Você não pode imaginar quantas a minha pode conter.
Com um grunhido, ela o jogou com força no chão. Ele caiu de costas e
ficou lá ofegando silenciosamente.
Ela se agachou ao seu lado, com as mãos doendo pelo desejo de tocá-lo e
acalmar a dor de seu corpo roubado antes que pudesse se restaurar. Sabia que
poderia fazer isso; com um simples pensamento, ela deslizou para o reino do
empirium e viu o mapa brilhante do corpo dele disposto diante de si. Ela
contou as pulsantes flores vermelhas e pretas de luz onde o corpo dele havia
sido golpeado por sua raiva – dezesseis no total.
Mas primeiro ele a ouviria.
— Eu sei o que você quer de mim — ela soltou. — Você gentilmente me
afastou disso sempre que eu tinha inteligência suficiente para fazer perguntas.
Vejo isso agora. E eu vejo claramente o que você quer. Você me provocou
com a ideia por meses. Você quis me ajudar a encontrar os quatro
receptáculos restantes. — Agora que sua memória havia voltado, ela se
lembrou do que estava guardado na enorme mochila amarrada às costas de
Artem. Entendeu por que olhar para aquilo sempre a deixava enjoada, o ar
apertado e quente ao seu redor. Esse pacote continha receptáculos. O escudo
de Marzana. O martelo de Grimvald. O bastão de Tokazi. Corien os roubou
de Âme de la Terre na noite de seu casamento, e seu poder preso a puxou.
— E então — Rielle continuou, — quando tivermos todos os sete, você
quer que eu os use para abrir o Portão e libertar seus muitos parentes
vingativos. Você quer me fornecer corpos – milhões de corpos humanos,
esvaziados de suas mentes, graças a você – e você quer que eu ressuscite
todos os anjos invasores. Que eu dê a cada um deles um cadáver, um corpo
ao qual eles possam realmente se segurar. Uma âncora permanente, já que a
maioria deles não é forte o suficiente para segurar um corpo por muito tempo.
Não está certo? Você quer que eu os vincule a novos corpos, fundi-los
usando o empirium, conceder-lhes mais poder do que jamais tiveram. Você
quer me usar para vencer sua segunda e última guerra.
Ela não aguentava mais; ela acariciou a bochecha sangrando de Corien, e
onde seus dedos roçaram sua pele queimada, ela se tornou inteira e branca
mais uma vez. Ele tremeu com o toque, seus olhos tremulando de alívio. E
desejo, mesmo agora. Mesmo depois que ela o machucou, mesmo enquanto
estava sangrando, ele a queria. As sombras de seus sonhos escuros
compartilhados vibraram nas bordas de sua mente.
— Mas o que eu quero? — sussurrou. — Consertar o Portão e prender os
anjos nas Profundezas por mais mil anos? Ou quero abri-lo, como você
gostaria que eu fizesse? Eu quero libertar as milhões de almas sanguinárias
que fervilham do outro lado?
— Sanguinária. — Ele tossiu, ainda recuperando o fôlego. — Nós
dificilmente somos isso. É justiça que buscamos.
— Do tipo mais cruel possível.
— O que nos fizeram foi cruel. Devolveremos o gesto na mesma moeda.
— E quando você liderar este exército de anjos ressuscitados, onde você
me vê? Onde eu me encaixo nessa sua grande imagem, Kalmaroth?
Ele sibilou de raiva com o uso de seu nome angelical. Ela sorriu um pouco,
apreciando a dor de sua ira. Seus pensamentos o traíam sempre que ela
pronunciava a palavra; ele odiava aquele anjo, aquele que falhou, que caiu
gritando no Abismo.
— Você vai liderar o ataque ao meu lado — Corien respondeu, sua voz
tensa de dor. Seus dedos tocaram os dela. — Você vai mostrar às pessoas que
a teriam enjaulada para sempre como estavam enganadas ao pensar que
poderiam.
Ela mal conseguia respirar. Mesmo se segurando para ficar longe dele,
mesmo com a parede de seu poder inabalável entre eles, ela sentiu seu calor,
sua antiga vontade, tão intensamente como se estivessem se movendo juntos
no passado, como haviam feito em mente, mas nunca em carne.
— E se eu escolhesse ajudá-lo — sussurrou, — o que eu me tornaria?
Estremecendo, ele se ergueu sobre os cotovelos. — Seu eu mais verdadeiro.
Você ascenderia a alturas maiores do que qualquer ser que já viveu.
Havia febre em seus olhos, uma implacável planície branca de convicção.
Ela teria achado uma coisa absurda de se dizer — maior do que qualquer ser
que já viveu — se não tivesse sentido aquela mesma certeza deliciosa girando
no fundo de sua mente desde que era pequena, mesmo antes de ter idade
suficiente para entender o que significava.
Ela tentou um sorriso desdenhoso. — Você me lisonjeia.
— Você sabe que não. Não agora. Não com isso. — Ele tocou sua mão. —
Rielle, isso é o que eu ofereço a você: se você me ajudar nesta guerra, neste
grande trabalho que planejei por uma era de trevas sem fim enquanto meu
povo sofria no Abismo, vou ajudá-la a alcançar tudo que sempre desejou
conhecer. O êxtase de se juntar ao poder que a criou.
Muito contra sua vontade, seu sangue saltou à vida com essas palavras. O
mundo chiava ao seu redor, como se ela fosse uma bola de fogo lançada com
força em um mar congelado. Ela o encarou, vendo as palavras que ele não
disse, e estremeceu até os ossos.
— E você gostaria que eu encontrasse Deus para você, Corien? A fonte do
empirium? É isso? Uma guerra não é suficiente? — Seus polegares brincaram
com os lábios dele, que se abriram imediatamente. Seus dentes arranharam
sua pele. — Você me usaria para destruir e suplantar a força que nos criou.
— Não, Rielle. É você quem seria Deus, não eu. Um tipo de Deus mais
bondoso e glorioso do que qualquer coisa que permitisse à humanidade
condenar minha espécie ao sofrimento eterno. E eu iria atendê-la com prazer.
Por um longo momento, nenhum dos dois falou. Então Rielle desviou o
olhar, incapaz de suportar a intensidade de seu olhar, e passou as mãos pelas
linhas delgadas de seu corpo, tricotando e fechando todas as feridas que havia
feito nele.
— Eu teria me curado em meu próprio tempo — ele apontou, sua voz um
fio trêmulo. Seu toque era leve; ela se recusou a conceder-lhe mais prazer do
que isso.
— Eu prefiro curar você eu mesma — disse, fingindo calma mesmo
sabendo que ele sentiria a mentira.
Quando terminou, Corien era ele mesmo de novo, ileso e sereno, sorrindo
para ela. Ela o ajudou a se levantar, suas bochechas aquecendo.
— Venha, minha gloriosa causadora de tormento. — Beijou a mão dela. —
Minha rainha milagrosa. Juntos, consertaremos os muitos erros que foram
cometidos e, então, com a vitória da nossa guerra, encontraremos a fonte do
empirium no coração da criação. Vamos arrancá-lo das estrelas e refazer seu
trono sem coração em um que você merece.
— Você presumiu que eu concordei em ajudá-lo, ou que irei algum dia. —
ela administrou suas palavras com dignidade.
— Não, minha bela. É que, a cada respiração que você inspira, sinto o quão
profundamente você anseia por mais do que este mundo pequeno e pálido
jamais será capaz de lhe dar.
Rielle não poderia dizer nada sobre isso. Ela tinha pensado a mesma coisa,
e ele sabia disso. Recusando o braço dele, voltou para liderar o caminho de
volta para a mansão abandonada, sentindo-se fria no ar parado da montanha e
inquieta, sua mente pesada e lamacenta – e então percebeu, logo depois que
Corien fez, o que sua discussão nas ruínas tinha feito.
Uma batida de silêncio, e então ele agarrou um vaso velho e rachado do
chão e o jogou contra a parede mais próxima com um rugido de fúria.
A casa estava vazia. Obritsa e Artem – e os três receptáculos – tinham
sumido.
6
Eliana

“Dizem que as torres do Elysium perfuram as nuvens, que são brancas


como as neves das montanhas mais altas. Dizem que brilha dia e noite
com as jóias roubadas de cidades mortas. Dizem que há milhares de
pessoas desesperadas nas pontes, gritando para serem deixadas entrar,
e mais pessoas chegam a cada dia. Covardes e traidores, todos eles.
Desgraçados patéticos. Mas se as portas se abrissem para mim, eu
estaria lá com eles. Eu mataria meu próprio irmão para entrar na
cidade do imperador, se fosse necessário.”
— Coleção de histórias escritas por refugiados na ocupada Ventera,
sob curadoria de Hob Cavaserra

A cidade do imperador era uma extensão gigantesca de pináculos e torres em


uma planície alta, cercada por um abismo circular medido por uma dúzia de
pontes brancas esguias.
Ela brilhava como um derramamento descuidado de jóias, milhares e
milhares delas, cada faceta finamente trabalhada, cada torre piscando na luz
fria do sol. O ar estava mais rarefeito do que Eliana estava acostumada.
Desde que haviam aportado na cidade costeira de Luxitaine, sua caravana de
belas carruagens havia subido e escalado até agora, na região mais
montanhosa de Celdaria, eles finalmente alcançaram Elysium. As montanhas
terminaram abruptamente e depois surgiram planícies rochosas e um grande
abismo cercando a cidade. Outrora fora Âme de la Terre, a capital de
Celdaria, uma cidade que Santa Katell havia construído depois da guerra.
Casa do Portador da Luz. Casa da Rainha de Sangue. E a própria casa de
Eliana também, ela supôs, mesmo agora com seu nome alterado e um antigo
anjo no trono.
Elysium. Graças a Remy, Eliana conhecia as raízes angelicais da palavra.
Paraíso. Um estado de êxtase ou deleite.
Uma risadinha brotou em sua garganta e ela a deixou subir. Não havia
sentido em esconder seu medo crescente. O Imperador desmontaria qualquer
máscara que ela usasse.
Ela estava sentada no banco forrado de veludo na quarta carruagem de oito
– a quarta e melhor – e riu, sem perturbar nem os guardas angelicais sentados
de cada lado dela nem Simon, que estava sentado silenciosamente no banco
em sua frente. Era o tipo de risada que trazia lágrimas junto. Nem se
preocupou em limpar o rosto. Riu, chorou e olhou pela janela.
Uma vez, teria inspecionado a paisagem, anotado o número de torres de
vigia ao longo do trecho mais próximo da muralha da cidade, estimado a
altura e a circunferência da muralha, feito uma anotação rápida e cuidadosa
de quantas pessoas miseráveis estavam agrupadas em cada lado da ponte que
estavam atravessando. Centenas de milhares de pessoas viviam nas
montanhas ao redor de Elysium, e milhares mais chegavam todos os dias,
implorando para entrar e lotando as pontes do abismo, ansiosas para suplicar
aos pés dos anjos.
Mas Eliana não achava que importava agora, contar as torres e os
refugiados e se perguntar sobre o abismo que circunda a cidade. O que
poderia fazer com essa informação, cercada por anjos que podiam sentir
qualquer plano de fuga no momento em que ele começasse a se formar em
sua mente?
Nada. Não podia fazer nada com isso. Ela não tinha nada, era nada e não
tinha ninguém.
Flexionou as mãos nuas; sua nudez a repelia e aterrorizava. Ela não
conseguia sentir o empirium; sua mente era uma extensão infinita de lã negra
sufocante. Remy estava em outra carruagem, e ela não teve permissão de vê-
lo, mesmo depois de uma exibição embaraçosa nos píeres de Luxitaine que
começou com súplicas, progrediu para gritos e terminou em um silêncio
exausto.
— Para onde estão me levando? — perguntou. Era uma pergunta estúpida,
dada a vista de sua janela, mas ela não podia mais suportar o silêncio.
O olhar frio de Simon desviou-se do fino caderno com capa de couro em
que estava escrevendo de forma intermitente desde que deixaram Luxitaine
três dias antes. — Elysium.
Ela pensou que tinha se acostumado com a nova e terrível planura em seus
olhos. Estava errada. Ela cravou as unhas na coxa. — Onde em Elysium?
Simon virou uma página e voltou a escrever. — O palácio do Imperador.
— Onde no palácio?
— A sala de recepção.
— Qual sala de recepção? Eu imagino que deve haver várias, sendo isto um
palácio.
Um dos guardas, seu peito largo estampado com a crista imperial alada, se
mexeu com o que Eliana esperava que fosse irritação.
Mas Simon permaneceu indiferente. As páginas de seu caderno foram
alinhadas com uma escrita meticulosa. — A favorita dele.
Eliana tentou parecer animada, esperando que isso enervasse outra pessoa
além dela. — E o que faremos lá?
A carruagem parou. Simon fechou seu bloco de notas. Ele não sorriu, nem
mesmo cruelmente. Eliana gostaria que ele o tivesse feito.
— Logo você verá por si mesma — respondeu, em seguida, saiu da
carruagem com o tipo de graça fácil e eficiente que ela uma vez admirou e
agora desprezava.
Os guardas ajudaram-na a sair e a entrar em um amplo pátio de pedra onde
tudo era branco – o chão de paralelepípedos, as paredes de pedra, o céu fino
de novembro acima, a falta de som. Onde quer que Remy estivesse, eles o
mantinham fora de sua vista. Em algum momento enquanto ela dormia,
haviam passado por um dos portões da cidade, e agora Eliana não podia mais
ouvir os miseráveis chorando aglomerando-se nas pontes fora da cidade. Ela
se perguntou quantos deles haviam caído no abismo, atacando
desesperadamente atrás das carruagens na esperança de romper as paredes de
Elisyum.
Ao pensar no abismo, uma memória voltou para ela.
Remy tinha lido para ela de um de seus livros roubados em sua casa em
Orline, em uma vida que parecia distante e absurda para ela agora: E na noite
final daquela era dourada, a Rainha de Sangue puxou os oceanos de suas
camas, invocou o fogo do sol, desenraizou as montanhas, e tudo o que
Celdaria uma vez foi, tudo o que o mundo um dia foi, desabou sob o peso de
sua raiva.
Com a querida voz de Remy ecoando em sua mente, Eliana percebeu que o
abismo era onde as montanhas um dia haviam ficado. As montanhas que sua
mãe havia obliterado na última noite de sua vida.
Mais uma vez, Eliana flexionou suas próprias mãos e clamou pelo poder
que ela havia lutado tão ferozmente para compreender.
Nada respondeu.
Ela quase voltou a rir. Claro que nada respondeu, pois ela havia se tornado
nada, um naufrágio de seu antigo eu, e era um alívio saber disso. Uma Rainha
do Sol impotente não teria nenhuma utilidade para ninguém. Mas se lhe
devolvessem seus receptáculos, esse seria o verdadeiro perigo. O poder de
sua mãe em seu sangue, seus receptáculos ao redor de suas mãos mais uma
vez, e a mente do Imperador controlando a sua mente exausta. Seu controle
suplantando o dela. A vontade dele consumindo a dela. Encorajando-a a
tentar novamente. Insistindo para que tente novamente, e novamente, até que
eventualmente alguma faísca de poder esgotada se acendesse, e tudo isso
acabaria. Ele a teria – um fantoche de Rainha do Sol para brincar como ele
quisesse.
Uma tontura assustadora a atingiu quando ela imaginou os anjos arrancando
os restos de sua mente, procurando uma arma que nunca encontrariam.
Com os punhos cerrados em suas correntes, Eliana mordeu seu lábio até
sangrar.
Ela tiraria sua própria vida antes de permitir que seu poder se acordasse
para o uso do Imperador.
Eles passaram por um arco branco, depois atravessaram outro pátio de
pedra e desceram um lance de degraus em uma série de túneis. Eram escuros,
frios e tortuosos, claramente projetados para confundir os intrusos, e no ar
úmido e próximo, Eliana começou a sentir-se tão enjoada quanto quando ela
e Harkan embarcaram no Streganna pela primeira vez, quando o veneno do
lírio negro engrossou em suas veias.
Pensando nele – seus olhos quentes e escuros, seus braços firmes ao seu
redor, como ele a havia aceitado mesmo em seus piores dias – os olhos de
Eliana ficaram quentes. Ela tropeçou; um guarda pegou seu cotovelo. Era
possível, disse a si mesma, que Harkan não tivesse morrido. Não o havia
visto na praia, em Festival. Simon não tinha atirado nele, tinha atirado em
tantos outros.
Era possível. Era uma pequena e tímida esperança. Ela se revirou em seu
coração como um terno botão que trabalhava duro para se abrir, e ela o
agarrou com cada grama de força cansada que lhe restava.
O mundo ao seu redor estava mudando. Ela notou isso de forma
entorpecida, sua visão desfocada. Um piso de mármore polido. Tetos altos e
escuros, brilhando com estrelas-prata pintadas e ouro, violeta e azul
cristalino. Janelas altas de vidro pintado com fluxos de luz colorida em uma
sala alta e estreita. Âmbar e rosa, azul-turquesa e jade.
O almirante Ravikant liderou o caminho, com as mãos presas atrás das
costas, seu andar fácil e doentiamente familiar. Os passos de seu pai,
ligeiramente alterados. Depois Simon atrás dele, quieto, mas claramente
confortável, a tensão havia sumido de seus ombros. Ele estava fingindo antes,
Eliana percebeu, e agora não estava. Agora podia relaxar. Agora ele era ele
mesmo.
Uma imagem colorida em humana à sua esquerda, surpreendentemente
próxima, chamou sua atenção.
Ela vacilou, afundando nas garras de seus guardas.
Era uma estátua. Uma mulher.
Uma de muitas.
— Venha, venha — disse o Almirante Ravikant. A voz dele balançava de
alegria. — Sem perder tempo.
Os guardas a empurraram para frente, e Eliana obedeceu – mas ela quase
não notou nenhum deles.
Ao invés disso, olhou fixamente para as mulheres.
Era uma galeria de mulheres, algumas esculpidas em pedra, algumas em
vidro, outras montadas a partir de milhares de minúsculos azulejos coloridos.
Mulheres de latão dourado, mulheres moldadas a partir de chapas de aço e
fios de cobre, mulheres pintadas com salpicos de cor e penduradas nas
paredes.
A pele de Eliana formigou ao passar entre as figuras congeladas. Pareciam
muito requintadas para serem reais, mesmo as mais grotescas ostentando um
tipo estranho de beleza, e havia muitas delas, tantas que Eliana se sentia
desequilibrada, como se o mundo tivesse inclinado de novo. Era uma coleção
obsessiva, embalando a sala de parede em parede com uma lógica
aparentemente sem lógica para a disposição deles.
E então, passando por uma, Eliana parou, chocada com uma realização
repugnante.
Ela olhou para a escultura diante de si – uma mulher de pedra negra
brilhante, seus membros impossivelmente delicados, suas proporções
alongadas e estranhas. Estava de joelhos, seu corpo arqueado em agonia
óbvia, seus braços e cabeça jogados para trás e vulneráveis à fúria dos céus.
Inúmeras chamas douradas saltaram de seus braços, seus dedos, as pontas de
seu cabelo rebelde e selvagem. Seu vestido apenas a vestia pela metade, as
bainhas e o colarinho rasgados. Uma explosão de tinta dourada brilhava de
seu peito. Mais duas brilhavam nos lugares planos onde deveriam estar seus
olhos, e mais duas marcavam suas palmas abertas e rígidas.
Eliana ficou tensa. A boca aberta da mulher também era dourada, as partes
visíveis mais profundas de sua garganta pintadas como se um fogo vermelho
brilhante estivesse subindo por sua garganta.
Estava gritando.
E Eliana a reconheceu.
Olhando em volta enquanto os guardas a empurravam, ela reconheceu
todas. Eram a mesma mulher, repetidamente, suas características às vezes
exageradas ou caricaturadas, mas sempre reconhecíveis, sempre familiares.
Eliana as tinha visto, semanas atrás, séculos atrás, de volta à Celdaria,
naqueles bosques onde Rielle tinha tentado matá-la. Naqueles bosques onde
Corien tinha escorregado em sua mente e dito: Que vida você tem levado.
Que companhia interessante você mantém.
Eram todas Rielle. Cada uma delas era Rielle.
Rielle, pintada com uma espessa e furiosa pintura a óleo, sozinha na beira
de um penhasco com vista para um mar vermelho, o céu em chamas com
incontáveis estrelas. Rielle, uma mera menina, abstrata e alegre, formada por
fios emaranhados salpicados de cores garridas, com um braço que chegava a
uma pena pendurada no ar.
— Impressionante, não é? — O Almirante Ravikant perguntou com um
sorriso consciente. Eles tinham vindo para o outro lado da galeria, onde as
portas gêmeas estreitas estavam trancadas, suas maçanetas de bronze
fundidos para se parecerem com as asas. — Sua Excelência é um artista
hábil.
Que companhia interessante você mantém. As palavras de Corien
começavam a rugir, pedalando pela cabeça de Eliana em um círculo vicioso.
Que vida você tem levado.
Seu olhar voou para Simon, sua pele gelada de compreensão. Teria ele
sempre planejado traí-la? Ou teria sido a viagem mal feita e mal planejada
deles para o passado que o havia mudado? Teria Corien visto Simon em sua
mente naquele dia terrível – sua lealdade ao profeta, sua devoção a Eliana,
sua fervorosa crença em sua capacidade de salvar a todos – e tinha isso, de
alguma forma, mudado tudo? Será que Simon foi alterado quando voltaram à
Willow, infectado, suas lealdades pertencentes ao Império?
Simon tinha dito que não seria afetado por suas viagens no tempo, que
como tecelão dos fios, ele seria imune a quaisquer mudanças no mundo
futuro, assim como ela seria. Mas talvez ele não soubesse realmente, ou
estivesse mentindo mesmo assim, ansioso para agradá-la, ansioso para
completar sua missão e alterar o passado para salvar o futuro, esperando de
alguma forma, milagrosamente, evitar o pior. Ou na esperança de que o pior
o encontrasse.
E onde estava o Profeta neste novo e alterado futuro? Quem quer que eles
fossem, como tinham deixado isso acontecer?
Será que o Profeta existia mesmo?
O Almirante Ravikant empurrou as portas. — E agora, infelizmente, devo
deixá-la. Ordens são ordens. — O almirante levantou as mãos amarradas de
Eliana aos seus lábios. — Nos encontraremos novamente em breve, Lady
Eliana. — Ele olhou de relance para Simon. — Comandante.
Simon inclinou sua cabeça e não disse nada.
Então ele se foi, o anjo na pele de seu pai, deslizando de volta pela galeria
com os guardas nos calcanhares, e Simon estava puxando as portas fechadas,
e eram apenas os dois em um enorme chão de parquet cintilante, enormes
pinturas emolduradas de anjos em vôo, gigantescas janelas com as cortinas
puxadas quase até, permitindo em apenas finas correntes de luz que cortam o
chão em oitavos. O teto era alto. Três níveis de mezaninos cortinados
bordejavam a sala em três lados. Era uma sala destinada a danças, para
cerimônias elaboradas.
E no final, uma grande escadaria se enrolava do terceiro andar como uma
serpente polida e gorda. Eliana não conseguia sentir uma brisa; o ar estava
parado. Mas algo estava se movendo nas sombras da escadaria – uma
aglomeração, um puxar e empurrar da escuridão que se movia e se enrolava,
coalescendo.
Simon a conduziu para a frente, com a mão na parte superior do braço. Foi
só então que ela percebeu que estava de pé congelada às portas fechadas. As
sombras tremendo na escada a entrincheiraram, de modo que ela não lutou
contra as garras de Simon, mas quando pararam a dez passos do pé da escada,
o suor bateu na testa dela, e as palmas das mãos dela ficaram pegajosas. Ela
queria correr e se esconder do que quer que descesse as escadas; queria ficar
e olhar nos seus olhos.
Uma leve sensação de intrusão brincava com as bordas de sua mente.
Dedos tímidos invisíveis, depenando e agitando. Ela balançou a cabeça como
se abanasse a sonolência, e sua visão se deslocou violentamente, um som
discordante raspando contra o crânio. Flashes de imagens apareciam a cada
piscar de olhos: um homem de preto sentado em um trono. Uma mulher de pé
em um campo de fogo.
A própria Eliana, enterrada até o tornozelo em uma piscina rasa de água
negra, alcançando o céu de pó de estrelas.
Ela tocou uma das estrelas, e queimou seus dedos. Tentou arrancar a mão,
mas a estrela tinha se fundido com sua pele e estava sangrando pelo braço,
inundando suas veias, borbulhando pela garganta para desintegrar sua língua.
As imagens desapareceram abruptamente, deixando-a desequilibrada. Viu
as sombras se reunirem enquanto flutuavam escada abaixo, juntando-se para
se tornarem um coração negro fervilhante, e se perguntou loucamente se uma
besta estava vindo até ela, alguma criatura feroz e faminta solta das
masmorras da cidade.
Ela se sacudiu, piscando com força. Não podia confiar em sua mente. É
claro que não podia.
Que bobagem, veio uma voz que ela reconheceu, deslizando alegremente
em sua mente como um gato que se agitava. Sua mente é a única coisa em
que você pode confiar. Ela lhe mostrará o que você deve fazer para
sobreviver.
Ela olhou para cima, olhos queimando e viu formas emergindo das
sombras, até que finalmente havia botas e calças, uma camisa de linho branco
fino, um longo casaco preto, desabotoado na altura dos joelhos. Um rosto
sorridente, pálido e elegante. Olhos pretos e líquidos. Cabelos escuros e
macios, ondulados contra as bochechas e a nuca.
O Imperador. Corien.
— E aqui está você finalmente — disse. — A filha do meu grande amor. O
tempo tentou nos separar, Eliana, mas conseguimos nos encontrar
eventualmente, não foi?
Sua voz era suave e clara, tão inquestionavelmente adorável que a enojou.
Ela mal conseguia falar, sua garganta se fechava de medo.— Onde está o
meu irmão?
— Eu lhe direi se você me ajudar. Eu o trarei bem aqui e você nunca mais
se separará dele.
Estressada, o olhou fixamente. — Se eu te ajudar.
Ele riu suavemente. — Não posso dizer o quanto estou encantado por
finalmente ter a oportunidade de aprender tudo sobre você. — Ele fez uma
pausa, seu sorriso se alargou. — Bem, eu poderia dizer, de fato. Eu poderia
fazer você sentir meu deleite tão intensamente quanto eu sinto. Posso fazer
você sentir o que eu quiser que você sinta. Poderia fazer com que você
quisesse me beijar. Poderia fazer você se esfregar contra mim como um cão
rastejante.
Rodando-a, ele caiu em silêncio, e quando Simon se afastou, Eliana sentiu
o impulso absurdo e mortificante de alcançá-lo e mantê-lo por perto, apesar
de tudo.
— Horrível, não é? Amar alguém tão profundamente? Amá-los o suficiente
para se perder para eles, perder tudo para eles, se isso significasse que eles
poderiam ficar ao seu lado por um pouco mais de tempo? — A voz de Corien
ficou escarnecida, com simpatia por trás. — Eu amei assim uma vez, como
você sabe. Eu amei muitas vezes antes disso, mas nunca mais desde então. É
solitário ficar sem amor por mil anos. Ainda mais solitário construir um
império a partir das cinzas de um mundo destruído por seus próprios erros, e
fazer isso não uma, mas duas vezes.
Corien parou diante dela, perto agora. Ele considerou o rosto dela, e ela
lutou desesperadamente para não branquear sob aquele terrível escrutínio sem
pestanejar.
— Diga-me onde está Remy — disse ela, com a mandíbula bem cerrada.
— Não vou cometer tais erros uma terceira vez — disse, como se ela não
tivesse falado. — Tenho certeza de que você adivinhou isso. Tive séculos
para planejar este momento. Meu ódio tem crescido por séculos. Meu ódio
por você, Eliana, e por toda a sua espécie. Meu ódio pela mulher traiçoeira
que eu amava. Meu ódio por um Deus que me condenaria a este destino
infinito de guerra, dor e tormento.
O olhar de Corien foi atencioso, sua voz calma. — Você pode compreender
o quão profundamente eu a odeio? Vou permitir que você tente imaginar por
um tempo, até que eu decida compartilhar os sentimentos diretamente com
você. Eu te odeio, e ainda assim te amo, de uma forma estranha. É uma
divisão inquietante que anseio por tirar da minha mente, mas não posso – está
alojada lá, faz parte de mim. Eu te amo porque você é dela. Eu te odeio
porque você é dele.
Sem nenhum aviso, ele agarrou o queixo dela, virou o rosto para a
esquerda, depois para a direita, inspecionando-a, e ela estava muito
aterrorizada, muito perplexa, para reagir.
Um pequeno sorriso curvou seus lábios. — Eu a vejo ali. — Ele acenou
com sua mão livre, com sua voz aquecendo. — Eu te vejo, Rielle! — Então
ele a soltou, melancólico. — Você tem seu queixo afiado, suas maçãs do
rosto. Mas você é afiada onde ela era macia, e mais escura do que ela era. E
você tem a boca dele, seu nariz. Seus grandes olhos castanhos de vaca.
Foi a menção de Audric que a abalou, despertando dentro dela uma
surpreendente faísca de desafio. Do Portador da Luz ela conhecia apenas as
canções antigas, os contos amados de Remy. A estátua dilapidada perto do
rio em Orline – Rei Audric, orgulhoso e triste, montado no pégaso que uma
vez foi leal à Rainha de Sangue, ambos olhando para o sol nascente.
Eliana se irritou com o escárnio na voz de Corien. Olhos de vaca. Como se
o Portador da Luz tivesse sido uma simples besta lamentável.
— Considerando todo o seu grande poder — disse ela, forçando as palavras
entre os dentes, — estou surpresa que você demorou tanto para me encontrar.
Cheguei nesta época há dezoito anos. Certamente sua mente angelical deveria
ter me encontrado muito antes disso. E ainda assim você precisava de uma
ferramenta humana rude para vasculhar o mundo e fazer o seu trabalho para
você.
Ela se recusou a olhar para Simon.
Mas Corien apenas abriu os braços, palmas para cima. — Você está certa, é
claro. Se nosso mundo fosse como deveria ser, se minha amada não tivesse
danificado permanentemente o empírium quando morreu — ele gesticulou
para seus olhos negros — Eu teria te encontrado em poucas horas. Minha
antiga mente gloriosa teria encontrado você imediatamente, bem onde você
estava nos braços de Rozen Ferracora, e eu teria mantido vocês duas imóveis
até que meus soldados viessem buscá-las. E então eles teriam cortado a
garganta de Rozen, e a de Ioseph também, o que seria uma pena, porque de
todos os corpos que Ravikant já possuíra, o de Ioseph é o seu favorito. Mas
talvez seja apenas porque ele estava tão ansioso para ver a expressão em seu
rosto quando você percebesse que o corpo de seu pai adotivo estava sendo
usado.
Ele juntou as mãos, olhando para ela com uma admiração que cheirava a
zombaria. — Eu vi, você sabe. Eu vi tudo o que aconteceu naquele dia. Meus
soldados são meus olhos e ouvidos, e eu vi você naquela praia, suas mãos em
chamas enquanto você corria em direção à água. Oh, querida Eliana, você
estava tão cheia de esperança. Era realmente muito charmoso. Eu vi seu rosto
quando você percebeu que Ravikant mora no corpo de Ioseph. E então,
quando Simon te trancou em sua cela? Esplêndido. Um magnífico retrato de
descrença e devastação. Era quase como se eu pudesse ver seu coração se
partindo. O que sempre me pareceu uma expressão estranha. Um coração não
pode quebrar, pode? Ele pode estourar, pode ser rasgado em pedaços, pode
ser pisoteado e espalhado no chão, mas não pode quebrar da mesma maneira
que um osso.
Ele falou muito rápido, seus olhos negros sem fundo e brilhantes. Parecia
exultante por estar olhando para ela, como uma criança encantada reunida
com seu melhor amigo. O estômago de Eliana revirou. Ela não conseguiu
conter um pequeno soluço de pânico.
— Por favor — disse ela, concentrando-se na única coisa em que conseguia
pensar com clareza, — deixe-me ver meu irmão.
Ele a ignorou, alisando uma mecha de cabelo que grudava em sua bochecha
úmida. — Você pode imaginar se você fosse minha em vez dele? A beleza da
sua mãe adicionada à minha? Minha beleza angelical, é claro. Como eu
parecia antes de o Abismo me levar. Meu Deus. Você seria uma visão. E! —
Ele bateu palmas. — Você teria asas nas costas, assim como Simon tinha! O
sinal de um marque. Não é verdade, Simon?
— Sim, Sua Excelência — Simon disse de algum lugar atrás dela.
— Faça o que você vai fazer e pronto — Eliana cuspiu, com lágrimas
quentes em seus olhos. — Você vai me machucar. Então me machuque.
O sorriso de Corien desapareceu. — Que decepcionante. Você parece ter
herdado a falta de humor de seu pai.
— Eu também herdei sua falta de tolerância para com os tiranos do mal. —
Ela se sentiu tonta de medo, mas se forçou a olhar diretamente para ele. —
Eu sei o que você quer. Você quer me usar como arma, para finalmente
erradicar a humanidade, como não fez com minha mãe. Eu não vou te ajudar.
Você vai ter que me matar. — Procurou desesperadamente por munição. —
Você não pode me forçar a fazer o que você quer – não nessa escala e não
com o poder que possuo. Se você pudesse fazer isso, você o teria feito com
Rielle.
Uma centelha de raiva passou pelo rosto de Corien. Ela se agarrou a isso,
assustada. — Ah, viu? Há algo sobre o poder que ela tinha, que eu tenho.
Algo que ultrapassa o seu, algo que você não pode tocar.
— Assim parece — disse Corien, uniformemente.
— Você teve que persuadi-la a aderir à sua causa antes que ela fizesse o
que você queria — continuou Eliana, entusiasmada com o olhar rebelde em
seu rosto. — E agora você terá que me persuadir, só que você fracassará. Eu
nunca farei o que ela fez. Eu nunca o ajudarei a matar meu próprio povo.
— Oh, minha doce e estúpida criança. — Corien suavizou os polegares
através dos arcos escorregadios de suas sobrancelhas. — Você acha que eu
quero usar você para erradicar a humanidade? Quase fiz isso por conta
própria. É apenas uma questão de tempo até que o resto de vocês sumirem.
Não, o que você fará é sentar-se ali e observar, muda e amarrada, enquanto
Simon usa o poder que você tem tão utilmente ressuscitado para me mandar
de volta para encontrar sua mãe.
Eliana olhou fixamente enquanto Simon se aproximava, a força que havia
invocado desaparecendo em um instante. É claro. Não se tratava de seu
poder, não mais.
Era sobre o dele.
E foi ela quem o despertou.
Desesperada, tentou ficar de pé, correr até ele, mas permaneceu impotente e
congelada no chão. Ela se debatia, lutando contra os laços que não conseguia
ver. A dor explodiu em suas têmporas.
Corien lhe estalou a língua. — Poupe-se, Eliana. As correntes Angélicas
são inquebráveis.
Ela tentou gritar; ele asfixiou sua voz. Em silêncio horrorizado, ela viu
Simon, não a três passos dela, levantar seus braços e começou a puxar do ar
fios finos e pálidos de luz. Sua sobrancelha se sulcou apenas levemente, sua
postura impecável.
Eliana se enfureceu ao vê-lo trabalhar. Uma vez, havia achado a magia dele
bela. A memória de seu rosto, suavizada com admiração por seu próprio
poder, queimou um caminho furioso dentro dela, e por um único momento
cristalino, ela foi limpa de todo o terror e não conhecia nada além da lâmina
sólida e afiada de sua raiva.
Uma vez, havia se sentado ao seu lado nos jardins de Willow e consertado
uma cicatriz em seu peito. Tinham se abraçado, sussurrando velhas feridas e
o que lhes havia sido feito. Eles eram mais que suas feridas; eram mais que
sua raiva.
Uma vez, havia despertado nele um poder, e ele o havia usado para mandá-
la para um passado de séculos.
Mas desta vez foi diferente.
Os fios brilhantes que Simon puxou do ar estalaram a cada puxão. Ele lutou
para transformar seus restos flutuantes em um arco, mas quanto mais rápido
ele os alcançava, mais rapidamente eles se dissolviam e logo sumiam
completamente.
O suor gotejava na testa de Simon. Com os olhos azuis fixos em algum
ponto distante no escuro salão de recepção, ele procurou mais luz, mas nada
veio até ele. A sala estava silenciosa. Ele era um homem sozinho, os braços
tremendo no ar vazio.
Simon deixou cair as mãos. Seus ombros eram altos e quadrados. Ele não
olhou para Corien.
Mas Corien estava olhando para ele, toda diversão desaparecendo de seu
rosto. — Por que você parou?
— Eu não posso fazer isso — Simon respondeu com firmeza.
— Claro que você pode. Você fez isso antes. É por isso que você está aqui
agora, comigo. Você a mandou de volta no tempo, e agora você é meu. —
Algo afiado cintilou nos olhos de Corien. Suas maçãs do rosto eram facas
brancas nas sombras. — Faça, Simon.
Simon hesitou, então ergueu os braços mais uma vez, mas após um longo
momento de silêncio tenso, gritou e caiu no chão, estremecendo e pálido. O
ar permaneceu escuro. Sem fios.
A cabeça de Eliana zumbia de terror. Ela tentou se afastar dele, mas a
mente de Corien a segurou rápido.
— De novo — Corien disse friamente.
Simon obedeceu. A sala escura doía com um silêncio tenso. Então, por fim,
caiu de joelhos, ofegante.
— Novamente.
Ajoelhado, Simon ergueu os braços, cada músculo se esforçando como se
estivesse segurando em suas mãos uma montanha.
Corien ficou em cima dele, observando sem expressão, e quando Simon
finalmente se empurrou de pé e deu alguns passos, respirando com força,
Corien ainda o observava e nada disse.
Então seu olhar negro e quieto caiu sobre Eliana.
Ela tentou desviar o olhar, mas ele não permitiu que ela sequer
pestanejasse. Seus olhos queimaram, e seus pulmões doeram. Ela ansiava por
engolir ar, mas só conseguia sugar pedaços finos dele. Ela tentou gritar, e a
vontade de Corien engoliu sua voz.
— Estou vendo — murmurou finalmente. Ele olhou dela para Simon,
depois para ela novamente. — Estou vendo.
Simon virou-se, seus olhos lacrimejantes e vermelhos, sua pele amarelada.
— Excelência, peço desculpas, não sei o que aconteceu...
— Eu sei. — Corien veio até Eliana e acariciou sua bochecha. — Eu acho
que você não é nada sem ela, Simon. E eu acho que você a irritou.
Eliana voltou a olhar para ele, triunfo ardendo como fogo em seu coração.
Mas antes que pudesse tentar falar, ela caiu abruptamente em um denso
nevoeiro.
Corien estava em toda parte e em lugar nenhum. Ela o ouviu sussurrar, mas
não conseguiu ver seu rosto. Estava sendo movida como uma boneca, suas
pernas carregando-a contra sua vontade. Sentiu mãos ásperas no pescoço e no
braço, guiando-a. Teve um vislumbre da luz do sol, uma câmara de ouro, um
barulho de tecido preto. A silhueta de Simon. Figuras sombreadas se
movendo rapidamente. O eco do riso de Corien. Uma ordem recortada:
Certifique-se de que ela coma. Certifique-se de que ela durma.
Uma visão a levou: ela mesma dormindo confortavelmente em uma camisa
de dormir branca, em uma cama branca, em uma torre branca, com uma
paisagem branca bem abaixo. Ela sabia que era mentira e tentou resistir a
isso, tentou dar um soco no seu caminho para a liberdade, mas a visão era
muito poderosa, e ela a reivindicou.
Ela era a Eliana dormindo em uma estranha cama branca, e enquanto
sonhava, sorria, e não sabia nada de tristeza, e estava satisfeita.
Uma mão fria acariciou suas costas. Durma, Eliana. Vejo que há muito
trabalho a ser feito. Mais do que eu havia imaginado. Durma. Sonhe.
Ela obedeceu.
7
Audric

“Merovec começou a chamar os elementais diante dele no Salão dos


Santos para serem interrogados. Dentre nossos cidadãos e de suas
próprias fileiras. Ouvimos ele perguntá-los se sabem para onde Rielle
foi. Se falam com os anjos. Se são leais a ele, ou a você. Ele não permite
que os magisters testemunhem estes procedimentos – somente o Arconte,
e somente porque ele parou de usar sua magia em sua eleição, décadas
atrás. O que o Arconte vê durante estas longas horas, nós não sabemos.
Odo e eu estamos fazendo o que podemos para confortar as famílias e
discretamente aumentar nossos esforços com a Coroa Vermelha, mas o
ar está em uma posição de confusão e medo, e devemos nos mover
lentamente.”
— Carta codificada de Miren Ballastier para o rei exilado Audric
Courverie, datada de 19 de novembro, ano 999 da Segunda Era.

Em casa, quando Audric não conseguia dormir, nunca se importava.


Tinha seus livros como consolo, os arquivos reais para desaparecer, os
jardins e as catacumbas para vagar. Quando criança, tinha sua prima Ludivine
e sua melhor amiga, Rielle, que nunca se importou de ser acordada para uma
expedição noturna até a cozinha para pegar doces ou se juntar a ele para
explorar uma ala desconhecida do castelo. Baingarde era enorme, uma
construção antiga e irregular, cujos segredos Audric havia passado toda a sua
vida desvendando – bem a tempo, refletiu ironicamente, de ser expulso dele.
E então, é claro, nos últimos meses, às vezes não conseguia dormir
simplesmente devido à pura alegria de saber que Rielle estava ao seu lado na
cama. Ele fechava os olhos e imaginava a vida deles juntos, um futuro
dourado que se estendia por décadas.
À noite, com Rielle ao seu lado, achava mais fácil ignorar a perigosa
realidade de seu mundo em transformação.
Mas aqui em Quelbani, no palácio das rainhas, não havia consolo a ser
encontrado, e Rielle estava tão longe que a distância entre eles parecia
incompreensível.
Ele tentou chegar até ela. Uma vez, naquele dia terrível em que os membros
fanáticos da Casa do Segundo Sol haviam tirado suas próprias vidas nos
degraus de Baingarde, Ludivine havia conectado os pensamentos de todos os
três de uma só vez. Na época, Audric havia pensado que era um erro
descuidado cometido por Ludivine num momento de pânico e horror.
Agora, não podia ter certeza de nada.
Mas talvez algo desse elo mental de três pessoas tenha permanecido.
Algum fio esfarrapado e fino como cabelo que ele poderia acessar se tivesse
sorte.
Como se alguma vez tivesse tido sorte.
Outra onda de cansaço o varreu. Parou de andar inquieto por seus quartos
para ficar de pé em uma das janelas. Fechando os olhos, pensou em Celdaria:
as doze montanhas cobertas de neve que circundam Âme de la Terre; as
verdes terras agrícolas no centro de Celdaria; as brilhantes cidades do canal
que rodeiam a costa sul.
Rielle? Ele se sentiu tímido, envergonhado, enquanto se estendia com seus
pensamentos até a brisa da noite mazabatiana. Você está aí?
Esperou tenazmente por vários minutos. Enviou súplicas durante a noite,
desculpas, declarações de amor.
Onde você está?
Você está a salvo?
Rielle, eu sinto muito.
Eu te amo, minha querida, e sempre amarei.
Minha luz e minha vida, por favor, volte para mim.
Mas nenhuma resposta veio, e ele desistiu imediatamente com uma espécie
de desespero frenético, sua mente uma tempestade de gritos mal reprimidos.
Se afastou da janela, arrastando a mão através de seus cachos, e então, com
a futilidade de sua tentativa batendo nele com uma força vertiginosa, ele
correu para o terraço, frenético por ar fresco.
A uns quinze metros de distância, Atheria estava deitada em sua cama.
Audric havia pedido a seus atendentes mazabatianos que trouxessem
almofadas, como Rielle fazia em casa. Era uma visão ridícula – a enorme e
musculosa besta divina sentada em cima de um monte de veludo, suas
enormes asas dobradas ao redor de seu corpo como uma concha de penas –
que o fazia sentir tanta saudade de seu quarto, e de Rielle dentro dele, e
Atheria lá fora, e seu povo dormindo em suas camas na cidade abaixo, que
seus olhos cansados se encheram de lágrimas. Ele ficou ao lado de Atheria e
se apoiou fortemente no gradeamento de pedra.
— Ela pode nem estar em Celdaria agora — disse, gesticulando vagamente
em direção ao norte. — Ela pode estar em qualquer lugar. Eu poderia estar
enviando meus pensamentos para o lugar errado. Não posso enviar meus
pensamentos, não como ela pode – não como eles podem – e sou estúpido por
tentar.
Atheria pressionou o nariz contra o seu quadril, as narinas flamejando.
— Eu deveria pedir a Lu para me ajudar, mas não quero pedir nada a ela.
Com um trinado suave e curioso, Atheria descansou seu focinho sobre a
grade ao lado de seu cotovelo, como se sentisse que deveria confortá-lo, mas
não querendo particularmente deixar seus travesseiros.
— Mas — continuou Audric com um suspiro cansado, — isso parece uma
espécie de teimosia na qual eu deveria trabalhar e não permitir que me
controle. — Ele olhou de relance para Atheria. — Não é verdade?
O pégaso, momentaneamente distraído, cheirava a uma traça branca que
havia subido em sua perna.
— Certo. Obrigado. Uma excelente conversa.
Irritável, e irritado consigo mesmo por se sentir irritável, ele retomou o
ritmo, desta vez no terraço. Sua exaustão era tão completa que não se sentia
completamente intacto dentro de seu próprio corpo, tonto e ressecado. Não
dormira de verdade desde que chegou a Quelbani há quatro dias, e mal tinha
comido. Seus sonhos não tinham forma e eram ameaçadores, e cada vez que
acordava, era com o nome de Rielle em seus lábios.
Uma buzina anunciou a chegada de um barco no porto próximo. Ele
apertou os olhos, seguindo a linha da costa iluminada por lanternas, e por fim
viu um navio na água escura – atarracado e plano, iluminado pelo amanhecer.
Havia atividade na praia. Figuras apressadas, receptáculos ganhando vida.
Um pensamento alegre veio de Ludivine: é Sloane, Evyline e a Guarda do
Sol. Estão todos vivos e seguros.
Audric ficou imóvel na amurada, observando o navio que transportava seus
companheiros celdarianos exilados deslizar em direção à costa. Exilados leais
a ele, que arriscaram suas vidas e abandonaram seu país para ajudá-lo. Ele
sabia o que iriam querer – ajudá-lo a retomar seu trono, ajudá-lo a encontrar
Rielle.
Audric não conseguia imaginar essas coisas acontecendo. Sua mente
parecia desajeitada de desespero; não conseguia limpar seus pensamentos e
não queria tentar. Estava convencido de que o aperto confuso e tortuoso da
dor nunca o libertaria e passou a se sentir feliz por isso, pois se a dor o
deixasse, ele temia que algum tipo de âncora fosse desalojada. Ele se
dissolveria sem isso, simplesmente flutuaria para longe e não existiria mais –
o que não era a coisa mais terrível que ele poderia imaginar.
A coisa mais terrível já havia acontecido.
Ele caminhou calmamente até as portas de seu aposento e se certificou de
que estavam trancadas.
Por favor, certifique-se de que estejam bem alimentados, disse, sem
direcionar os pensamentos para Ludivine, mas sabendo que ela podia ouvi-los
mesmo assim, sua pequena e amada mentirosa. E que recebam lugares
confortáveis para dormir e sejam cuidados por curandeiros, se necessário.
O que aconteceu? Algo em sua voz havia deixado-a alarmada.
Perdi a mulher e o lar que amo, pensou, e temo que, antes que tudo acabe,
terei que escolher entre eles.
Ludivine ficou em silêncio por um longo tempo. Você vai machucar a si
mesmo?
Ele riu alto, amargamente. Você não seria a primeira a saber?
A verdade era que ele pensava que poderia se machucar eventualmente,
mas no momento, até mesmo pensar em fazer isso exigia mais esforço do que
poderia reunir. Ele caminhou até a cama, tirou a túnica e as calças. Ficou
olhando para o espelho alto com pés em forma de garra até que não pudesse
mais suportar a visão de si mesmo – seus membros magros e negros, cachos
escuros despenteados, as sombras sob seus olhos, seus lábios rachados. Ele se
via como Corien deve vê-lo, como Merovec e as rainhas Mazabatianas
devem vê-lo – ineficaz. Pequeno. Covarde. Opaco e miserável ao lado de sua
incomparável Rielle. Um mero humano, simples e ingênuo. Alguém havia
tomado seu trono, e ele fugiu e o deixou ficar.
O Portador da Luz, era como o chamavam. Mas em seus olhos brilhantes de
lágrimas, ele não via nada de luz, nada do rei que uma vez sonhou em se
tornar. Pensou em Illumenor repousando escura e silenciosa ao lado de sua
cama e considerou jogá-la no mar. Sua visão era um brilho cintilante, sua
garganta uma coluna quente de lágrimas, ele subiu na cama e fechou os
olhos. Não achou que conseguiria dormir, mas a quietude, pelo menos, era
pacífica. Seus membros estavam pesados com isso.
Se pudesse ficar assim para sempre, decidiu, mesmo que isso significasse
nunca mais sair desta cama, nunca mais ver Rielle, nunca mais pisar em solo
celdariano, ficaria feliz, pois isso provavelmente pouparia a todos muitos
problemas no final.
Por que lutar contra isso? Ele enviou o pensamento para Ludivine, sem
esperar nem querendo uma resposta, e deixou que sua tristeza viesse para ele
como água negra subindo.

•••

Audric acordou apenas duas horas depois, quando uma onda de água gelada
caiu em seu rosto.
Levantando-se com um suspiro, ele piscou acordando e tentou entender o
que estava acontecendo. Mal havia enxugado os olhos quando aconteceu de
novo – um painel de água fria caindo sobre ele.
Encharcado, tentou pular para fora da cama, procurando por Illumenor.
Mas os lençóis estavam encharcados e emaranhados em suas pernas, e ele se
debateu enquanto tropeçava em seus pés, segurando-se contra a coluna da
cama com uma maldição sibilada.
Ele girou abruptamente furioso. Era o auge da manhã; a luz do sol entrava
pelas janelas e seu corpo faiscava com ela. A raiva atraiu calor e luz para suas
palmas, que coçavam para segurar sua espada.
— Cubra-se — disse uma voz familiar. — A princesa está aqui e ela está
vendo tudo.
Audric enxugou o cabelo molhado do rosto, piscou e viu duas pessoas
paradas a alguns passos de distância. Uma delas era Sloane Belounnon, Grã
Magister da Casa da Noite – irmã de Tal, uma shadowcaster prodigiosamente
talentosa e obviamente irritada. Ainda usava o terno preto e azul fino que
usara no casamento muitos dias atrás, embora o tecido agora estivesse
manchado com a sujeira da viagem, assim como seu rosto pálido. Seu cabelo
preto e lustroso na altura dos ombros estava bagunçado na nuca.
Ao lado dela, sorrindo, os receptáculos ao redor de seus pulsos zumbindo
com o uso recente, estava a princesa Kamayin Asdalla – sua pele um rico
marrom profundo, seus cabelos mantidos curtos em caracóis apertados e
pretos. Debaixo de sua jaqueta branca, uma delicada corrente dourada
cintilava prendendo seu vestido iridescente na cintura.
Ela lhe acenou atrevidamente. — Bom dia.
Audric agarrou os lençóis de linho encharcados em seus quadris. Ele só
pensou brevemente em tentar algum tipo de saudação digna. — Para que foi
isso?
— Porque você sabia que tínhamos chegado, mas não desceu para nos
cumprimentar — disse Sloane energicamente. — Toda a Guarda do Sol
esteve fora de si durante toda a jornada, querendo que nós fossemos mais
rápido, porque na ausência da Rainha do Sol, eles querem proteger você, o
Portador da Luz. E se você pudesse ter visto a expressão no rosto de Evyline
quando ela foi informada de que o Rei Audric não iria descer para
cumprimentá-la porque ele ainda estava na cama e não queria ser
incomodado… Eu poderia te dar um tapa. Aquela mulher passou a amar você
e Rielle profundamente, é como se vocês fossem seus próprios filhos, e ela
deixou sua família e seus amigos e sua vida para trás em Âme de la Terre
para vir ajudá-lo – todos deixaram – e é assim que você os agradece por seus
sacrifícios?
Por um momento, Audric não conseguiu falar. Ela estava certa, é claro, e
isso o envergonhou tão completamente que ele se encolheu. Seu
entorpecimento o reassumiu depois de ser temporariamente abalado pelo rude
despertar, e ele descobriu que não se importava se a princesa Kamayin o
visse nu. Ele largou os lençóis e recuperou as calças, a túnica amarrotada.
— Bem? — A voz de Sloane tremia de impaciência. Ela sempre fora a mais
afiada, e Tal, o mais suave. — O que você tem a dizer para você mesmo?
Ele encolheu os ombros, cansado, mas decidido. — Não posso vê-las.
— Você não pode vê-las — repetiu categoricamente. — E o que isso quer
dizer? Como você se atreve a vomitar essa merda em mim.
As sobrancelhas de Kamayin se ergueram. — Se alguém falasse assim com
minhas mães, passaria o resto da vida em uma masmorra.
— Sloane me conhece desde que nasci — Audric murmurou, puxando sua
túnica. — Ela fala assim comigo o tempo todo.
— Só quando você merece. — Sloane cruzou os braços sobre o peito. — O
que você quer dizer com você não pode vê-las?
— Quero dizer… — Ele parou. Como poderia explicar que se visse Evyline
e Fara, Ivaine, Maylis – as guardas dedicadas de Rielle – seria como perdê-la
de novo? Como poderia descrever a maré negra subindo cada vez mais alto
dentro dele, apagando todos os pensamentos e sentimentos, deixando-o
entorpecido, apagado, irrelevante? Ou a raiva de Ludivine por suas
manipulações, sua raiva de Rielle por deixá-lo, sua raiva de si mesmo por
afastá-la?
E mais do que tudo, sua raiva de Corien, o que permanecia uma coisa
distante, tão titânica e fervente que sua mente não conseguia compreendê-la
totalmente e, em vez disso, se concentrou nas coisas mais imediatas, as fúrias
menores, os medos mais pálidos.
Ele olhou para Sloane, indefeso. — Não posso vê-las — disse novamente
em um sussurro, e algo mudou no rosto de Sloane. Um amolecimento.
Ligeiro, mas real.
Ela acenou com a cabeça lentamente, deu-lhe um sorriso tenso. — Você
deveria voltar a dormir. — Se aproximou dele, ajeitou a gola de sua túnica,
ergueu os olhos para seus cabelos ensopados e declarou, com um sorriso mais
gentil: — E você está horrível, deve ser dito. Voltarei esta tarde para ajudá-lo
a se preparar para amanhã.
— Amanhã?
— Estaremos nos encontrando com as rainhas – você, eu, Ludivine, a
Guarda do Sol, os conselheiros reais e os altos magísteres Mazabatianos. Um
conselho de guerra.
— E eu — disse Kamayin, girando os pulsos enquanto seus receptáculos
zumbiam. A água derramada evaporou; logo a cama estava seca. — Eu
estarei lá também.
— Eu não vou me encontrar com ninguém — Audric disse
automaticamente. A própria ideia de enfrentar todos aqueles olhos que o
observavam o fez querer dormir para sempre.
— Tudo bem então. Suponho que Merovec permanecerá em seu trono,
Corien irá destruir todos nós e, enquanto isso, você estará aqui, se
escondendo em sua cama, deixando os relatórios de Miren não serem lidos
enquanto ela e todos os outros em casa vivem todos os dias em confusão e
medo.
Com isso, Sloane marchou para fora da sala, e quando Kamayin
silenciosamente a seguiu, um estranho desejo de estar perto de outra pessoa
queimou dentro do peito de Audric. Ele pensou em chamar Ludivine e
imediatamente desistiu.
— Espere, por favor — disse.
Kamayin se virou, observando-o com curiosidade.
— Eu estou… — Ele fez uma pausa, lutando para falar. Não aguentava
mais ficar de pé e então se sentou no tapete, encostado na cama. — Você
poderia sentar comigo um pouco? Se você tiver tarefas que precisam ser
atendidas, eu entendo.
— Eu sou uma princesa — disse, sem ser rude, — não uma médica ou uma
de suas servas. Além disso, quase não nos conhecemos.
— Eu sei.
— Você não prefere que Lady Ludivine se sente com você?
Não conseguia esconder a escuridão de sua voz. — Não. Eu não quero vê-
la agora.
Kamayin acenou com a cabeça. — Eu sempre me preocupo que ela esteja
remexendo na minha cabeça.
— Um medo razoável.
— Mas você ainda a ama.
— Claro.
Kamayin soltou um suspiro. Então ela se sentou ao lado dele e abraçou os
joelhos contra o peito. — É realmente terrível o que está acontecendo. O que
pode acontecer. Para todos nós, quero dizer.
Audric encostou a cabeça na coluna da cama. — Sim.
— Tenho lido tudo sobre as Guerras Angélicais com meu amigo Zuka. Para
me preparar, você sabe. Eu não pulo as partes terríveis. Eu leio tudo. Eu sou
um pouco obsessiva com isso. Eu nunca vi uma guerra.
— Lamento que você precise fazer isso.
Kamayin ficou quieta por um momento. Então, mais suavemente, ela disse:
— Também é terrível, o que aconteceu com você. Se eu fosse você, se meu
amor se fosse e minha casa fosse tirada de mim, eu não sairia da cama por um
ano inteiro. Pelo menos. Os conselheiros de minhas mães teriam que me
arrastar para fora, chutando e gritando.
— E se eles jogassem água em você enquanto você dorme?
— Eles não ousariam — disse com naturalidade. — Teriam muito medo de
jogar qualquer coisa em mim, e com razão.
Audric sorriu um pouco e não disse nada. Não sentia que as palavras eram
exigidas dele. Foi um alívio sentar-se em silêncio ao lado de alguém que
parecia contente em apenas falar. Alguém que entendia o motivo de sua dor
mas não a sentia, e nem pedia que ele explicasse.
Ele dormiu e quando acordou, rígido no chão, estava escuro e Kamayin
havia sumido, mas ela havia lhe deixado uma pilha bem organizada de livros
na mesinha de cabeceira e um bilhete: Da minha biblioteca pessoal.
Romances com finais felizes. Se você dobrar ou rasgar uma única página,
não seremos mais amigos.
Ele pegou o livro de cima – The Hawk and the Dove. Então se arrastou para
a cama e segurou o livro contra o peito por um longo tempo, respirando o
cheiro de papel e tinta, e pensando em casa.

•••
Ele não foi à reunião na manhã seguinte, apesar das ameaças de Sloane.
Sua fúria justificada o deixou ainda mais enojado consigo mesmo. Quanto
mais furioso ficava com sua própria incapacidade de enfrentar o que viria a
seguir, mais se afundava em um turbilhão tóxico de desespero. Ele
reconhecia sua autopiedade e ainda assim não conseguia se livrar dela. Sabia
que uma caminhada ao ar livre o beneficiaria, mas se recusou a deixar o
casulo sujo de seus cobertores. Começou a se perguntar se algum dia Sloane
poderia realmente arrastá-lo da cama chutando e gritando, mas imaginou que
teria um tempo antes que ela tentasse isso.
Era muito mais fácil se desviar do olhar de decepção em seu rosto e fingir
que ela não estava lá, então foi exatamente o que fez.

•••

Quatro noites após a chegada de Sloane e da Guarda do Sol, Audric acordou


de um sono pegajoso e desconfortável com uma estranha série de sons
embaralhados.
Ele piscou para tirar o sono dos olhos e viu a cabeça de Atheria
descansando no colchão perto de seu braço estendido. Ela se acomodou no
chão ao lado da cama e o encarava com seus enormes olhos escuros.
— Dormindo aqui comigo agora, não é? — perguntou baixinho.
Ela soprou um hálito quente em seus dedos. Ele amava seus bufos, seus
gorjeios pela manhã enquanto observava o céu e imitava o canto dos
pássaros. Sabia que ela poderia morder seu braço se quisesse com aqueles
dentes afiados de predador, mas na escuridão silenciosa, ela era gentil ao seu
lado, um peso quente e familiar.
Naquela noite, sonhou em montar em Atheria. Eles voaram para o leste, em
direção ao nascer do sol; estava cansado e com o coração partido, mas o
braço da espada era forte.

•••
Audric também não compareceu à segunda reunião do conselho de guerra.
Ele sabia quando aconteceria; Sloane o visitava todos os dias para lembrá-lo
da data. Ela o advertiu e o adulou alternadamente. Apenas uma vez ela
recorreu à mendicância.
— Merovec não saberá o que fazer quando ele vier atrás dele — disse
baixinho, e os dois sabiam quem ele era. — Merovec acha que pode derrotar
os anjos, mas ele não os conhece como você. Ele é duro, intransigente. E não
conhece Rielle. — Ela se agachou ao seu lado, os olhos brilhando com
lágrimas. — Audric. Pode chegar o dia em que ela se vire contra Celdaria.
Você sabe disso. E você a conhece. Quando esse dia chegar, você pode ser o
único que pode impedi-la.
— Eu não vou machucá-la — disse, sua voz tão crua e cruel que o assustou
tanto quanto obviamente a assustou. — Não me peça para fazer isso. Peça-me
qualquer coisa, menos isso. Diga isso de novo e eu nunca vou te perdoar. E
maldita seja, Sloane, por ser tão persistentemente sem coração.
Ela o encarou por um momento, e então algo dentro dela desinflou, como
se o estivesse vendo claramente pela primeira vez e finalmente percebendo a
profundidade de sua decepção. Sua vergonha era devastadora; ele se revoltou.
Sloane não o visitou depois disso, não por dias, e então algo aconteceu sem
explicação uma manhã quando Audric acordou de algumas horas de sono
agitado. Fazia dezoito dias desde a chegada da comitiva celdariana. Quase
um mês desde a última vez que viu Rielle.
Ele se levantou da cama com uma sensação de tranquilidade que o
perturbou, como um mar ameaçadoramente parado antes de um vendaval.
Ficou em silêncio no centro de seu quarto, descalço e com o peito nu, e
reconheceu que existia no fio de uma faca. De um lado estava a terceira
reunião do conselho de guerra, que começaria lá embaixo em uma hora.
Poderia se vestir e se lavar, aparar a barba que havia crescido um pouco
selvagem. Poderia comparecer à reunião e, ao fazê-lo, enfrentar o impossível
e inevitável desgosto no horizonte.
Do outro lado, havia um final. Ele poderia tirar sua própria vida e deixar o
resto deles resolver tudo por conta própria.
Ele considerou a ideia, examinando-a como um curandeiro poderia
inspecionar uma ferida que precisava de pontos. Por vários longos minutos,
vacilou. Atheria o observou atentamente do terraço, no meio do café da
manhã, sua presa mutilada a seus pés.
Então, Audric respirou longa e lentamente e caminhou para o banheiro.
Jogou água no rosto e inspecionou o cabelo, esfregando as bochechas
eriçadas.
Adoro a facilidade com que sua barba pode crescer, Rielle lhe dissera em
muitas ocasiões, olhando-o sonhadora. Ela gostava de acariciar sua bochecha
lisa contra a áspera dele. Meu brilhante, lindo, nobre e desalinhado urso-rei,
ela disse em uma ocasião particular, bêbada de vinho e dele, e ele caiu na
gargalhada, então a beijou até que ambos estivessem tremendo e prontos.
No espelho, seu reflexo sorriu levemente.
Quarenta e cinco minutos depois, vestido com roupas emprestadas que
estavam mais soltas em seu corpo do que há um mês, sentindo-se como um
cervo com novas pernas, Audric abriu a porta para as câmaras do conselho da
Rainha Bazati, encontrou Evyline – queixo quadrado, cabelos grisalhos, seu
rosto se abrindo com esperança repentina – e acenou para ela. Sua dor e
tristeza ainda viviam dentro dele e sempre viveriam, e ele imaginava que
ainda haveria dias em que sair da cama seria um tormento indescritível.
Mas hoje, estava de pé..
— Sinto muito — disse a Evyline e a todos eles, ignorando obstinadamente
o perfil pálido de Ludivine à sua esquerda. — Eu precisava de tempo. Estou
pronto agora.
8
Eliana

“Como um elemental, você deve aprender um certo controle, que outros


humanos que não podem tocar o empirium, nunca terão. Seu corpo –
todo músculo, todo pensamento, todo sentimento – está inexoravelmente
conectado ao tecido mais profundo do mundo. Sem controle, sua raiva
poderia chicotear e quebrar uma janela, mandar uma lâmina de cozinha
voar. Seu desespero poderia rachar a terra sob os pés de sua mãe.”
— O Caminho para o Empirium: Uma Meditação na Prática
Elemental por Velia Arrosara, Grã Magister do Firmament em
Orline, capital de Ventera, anos 313-331 da Segunda Era

Quando Eliana acordou, estava no quarto branco dos seus sonhos.


Vigas de marfim e pérolas se reuniam em nove pontos do teto como cachos
de caules descoloridos. A cama era enorme, coberta de branco. Cortinas de
gaze pálida penduradas em cada poste. O chão era de pedra lisa e branca.
Tapetes brancos grossos cercavam a cama e terminavam em uma lareira
vazia. Ao lado da janela próxima, duas poltronas delicadas frente a frente,
aguardando conversa.
Buquês de flores carmesim estavam em vasos ao lado da cama, perto das
janelas, na pequena mesa de jantar, suas pétalas vermelhas onduladas
fornecendo a única cor do quarto.
Enquanto inspecionava tudo, Eliana sorriu. Que lindo quarto o Imperador
lhe dera. Como era cuidadosamente decorado, e quão atencioso por ter
deixado tantos criados, caso ela precisasse de ajuda com alguma coisa.
Havia dez, todas mulheres, silenciosas e com os olhos vidrados enquanto se
postavam contra as paredes claras. Seus cabelos eram cortados curtos e
mantos brancos as cobriam do pescoço aos pés.
— Bom dia — Eliana gritou alegremente. Ela se espreguiçou e bocejou,
depois colocou as pernas para fora da cama e para o ar fresco. Alguém a
banhou, vestiu-a com uma camisola branca fina. Um anfitrião tão generoso, o
Imperador. Ela se perguntou distraidamente se todos os anjos eram tão gentis.
Ela descobriu que além do quarto, havia uma sala de estar, uma sala de
recepção, um banheiro e um camarim, todos em tons de branco – creme e
casca de ovo e baunilha, nuvem e neve e areia. As cortinas estavam todas
abertas; a luz do sol encharcou os quartos. As flores vermelhas emitiram um
perfume forte e doce tão poderoso que fez sua língua formigar.
Ela enterrou o rosto em suas pétalas e respirou fundo.
Em seguida, foi ao banheiro para procurar um espelho. Se fosse ver Corien
hoje, deveria estar apresentável. Mas ela não conseguiu encontrar um
espelho, ou um pente, ou jóias, ou grampos para seu cabelo.
— Estranho — disse em voz alta, depois encolheu os ombros e esqueceu
que alguma vez tinha pensado tal coisa.
Portas duplas marcavam a saída de seus aposentos – duas enormes peças de
pedra branca gravadas com padrões de diamante perfeitamente simétricos.
Ela experimentou as portas e elas se abriram sem fazer barulho.
O corredor externo era amplo e pálido. Janelas alinhadas de cada lado, suas
cortinas de renda tremulando com a brisa. Além das janelas, florescia uma
profusão de flores e folhagens. O canto dos pássaros vibrou em um céu azul
sem nuvens.
Felizmente, continuou seu caminho, vagando por corredores brancos e
vazios. O sol estava quente em seus pés descalços. Ela pegou cintilantes
partículas de poeira com os dedos.
Por fim, chegou a uma única porta entreaberta em uma parede de madeira
clara e brilhante.
Seu coração se elevou com a visão, embora não pudesse dizer por que, e
quando empurrou a porta, soltou um grito, pois lá estava Simon, sentado em
uma escrivaninha com os pés para cima no parapeito de uma janela. Ele se
virou para ela e sorriu amplamente. Ele se levantou e veio em sua direção
com três passos largos, e ela o encontrou em uma poça de luz do sol no
coração da sala. Quando jogou os braços ao redor do pescoço de seu pescoço,
ele a ergueu e enterrou o rosto em seu cabelo.
— Aí está você — disse, e ela se contorceu feliz em seus braços, afastando-
se para olhar para seu rosto.
E congelou.
Estava errado. Estava tudo errado.
Aquele rosto, tão suave e sorridente, não era o de Simon. Se lembrava
agora – deveria haver cicatrizes. Ele era todo marcado; ele foi queimado e
cortado. Mas este homem que a segurava estava curado e feliz. Nenhuma
sombra aparecia no azul brilhante de seus olhos. Seu sorriso era aberto e
fácil.
— Não — ela sussurrou, e se afastou dele.
Ele a soltou, a testa franzida. — O que foi, amor?
Ela se virou para encarar a porta e gritou: — Não!
Acordou em seu quarto branco, encharcada de suor. A luz do sol se fora.
Era o auge da noite.
Do outro lado da sala, sentado em uma cadeira perto da janela, estava
Corien, banhado de prata pelo luar.
— Isso não foi real — disse, olhando para ele, com o coração disparado na
garganta. Mesmo agora que entendeu que seu sonho tinha sido uma mentira
de sua criação, ela desejou que nunca tivesse acordado, e se odiava por isso.
Ainda podia sentir os braços de Simon em volta de si, e a sensação de
leveza em seu coração enquanto vagava pelos corredores brilhantes de sol.
Lágrimas vieram aos seus olhos. Seu peito doeu de desejo. A pontada de
fome voltou ao estômago; ela não comia desde que acordara pela primeira
vez neste quarto, desde que havia batido os punhos nas portas trancadas.
— Isso não foi real — sussurrou novamente.
Corien encolheu os ombros eloquentemente e se levantou. — Poderia ser
— disse ele, deixando-a sozinha com seus guardas vidrados.

•••

Quando Eliana acordou, estava em uma praia de areia branca.


Ondas suaves e quentes batiam em seus pés. A areia era fofa e, atrás dela,
nas dunas, aglomerados de grama fina e clara farfalhavam silenciosamente
com o vento. Ela sentiu o gosto de sal nos lábios. O ar estava limpo e claro.
Ela estendeu os braços para sentir e ficou na ponta dos pés. Talvez ela
voasse. Estava feliz o suficiente para isso.
— El!
Ela se virou e sorriu.
Remy estava subindo uma trilha através das dunas, seu braço ligado ao de
um menino de olhos bondosos com pele castanha clara e cabelo escuro que
ele mantinha comprido e preso na nuca. Remy beijou sua bochecha, então
correu para Eliana com uma cesta nas mãos. Ela o observou com ternura. Aos
dezessete anos, ele era o garoto mais magro que ela já vira e mais alto do que
ela se lembrava. Ele havia crescido desde que saiu para o mercado naquela
manhã? O vento do mar bagunçou seu cabelo escuro. Seus olhos eram mais
azuis que o céu.
Ele sorriu para ela e estendeu sua cesta. — Eu me lembrei.
Ela puxou a cobertura da cesta e viu um alqueire de morangos, cada um tão
brilhante e vermelho quanto sangue. Quando mordeu o primeiro, o gosto
estourou em sua boca.
Suspirou, fechando os olhos. — Eu poderia morrer de felicidade.
Mãos quentes deslizaram ao redor de sua cintura, gentilmente puxando suas
costas contra um peito largo.
— Por favor, não — Simon murmurou. — Fique comigo.
Ela se virou para ele com um sorriso.
— São perfeitos — disse, e quando ele mordeu a fruta que ela ergueu para
ele, seus dentes roçaram seus dedos, e ela estremeceu de prazer, mas então
sentiu um cheiro estranho no ar. Uma doçura aguda que não pertencia ali.
— O que é isso? — perguntou, antes de reconhecê-lo – um perfume floral,
enjoativo e familiar.
Ela gritou, fugiu dos braços de Simon, ignorou Remy chamando seu nome
e correu.
Ela acordou não na cama, mas nos braços de Corien. Estavam caminhando
juntos ao longo de uma passagem aberta de seu palácio, com vista para a
cidade de Elysium. Agulhas brancas perfuraram o céu. Um vestido de veludo
preto apertado com uma faixa de ouro beijava suas pernas a cada passo.
Ela pensou no mar, na costa macia, no sorriso brilhante de Remy.
Corien apontou com sua bengala para uma torre próxima coberta com
telhas de bronze e figuras aladas esculpidas em pedra branca. A joia escarlate
polida no topo de sua bengala brilhava como um mau-olhado.
— Essa é a Torre dos Céus Cantantes — disse levemente. — Na Pátria, na
Cidade dos Céus, quando um anjo morria, os coros dos templos alçavam voo
e cantavam lamentos sem cessar durante três dias. Se ao menos você pudesse
ouvir, Eliana. Se ao menos você pudesse nos ver no auge de nossa glória.
Ele queria que ela chorasse, gritasse e implorasse, mas Eliana se recusou,
mesmo depois de voltar para o quarto. Afinal, ela não estava realmente
sozinha ali.
Nunca estaria sozinha novamente.

•••

Quando Eliana acordou, estava em uma casa que lembrava a sua em Orline.
Uma casa alta e estreita, todas as janelas abertas para a manhã. Pisos de
cerâmica polida, tapetes grossos na sala de estar, nos quartos, no escritório de
seu pai.
Ela encontrou Ioseph Ferracora na cozinha, picando vegetais, cantarolando
uma música. Eliana sorriu ao vê-lo. Já fazia muito tempo que não o via assim,
relaxado e preparando o café da manhã. Por anos, ele esteve na guerra, mas
agora estava em casa, e ela não conseguia parar de olhá-lo. Ele tinha pele
clara com bochechas rosadas, cabelo escuro desgrenhado como o de Remy, e
tinha um queixo quadrado teimoso e ombros quadrados. Um estranho não
esperaria que ele possuísse qualquer tipo de graça ou gentileza. Mas Eliana
sabia melhor.
Ele era capaz de talhar as mais belas estatuetas – criaturas da floresta com
pernas finas como gravetos, santos com túnicas coroadas de estrelas. Quando
ela acordou dos pesadelos da guerra que quase o reivindicou, ele a abraçou
com ternura, como se ela fosse uma recém-nascida.
Ioseph largou a faca e Eliana veio por trás dele e o abraçou, passou os
braços ao redor de seu grande peito e pressionou o rosto em suas costas.
Quando ele ria, ela sentia nas costelas.
— Por quê isso? — ele perguntou, puxando-a para encará-lo.
Ela olhou para suas feições ásperas, suas bochechas enrugadas pela barba.
Sua própria parecia que se abriria com seu sorriso.
— É por nada — respondeu. — É por tudo. Senti sua falta, Papa.
— Eu sei, minha doce menina — disse a ela, e beijou sua bochecha. — Mas
isso tudo já passou. Estamos juntos. Somos uma família e estamos seguros.
Um grito alegre voou até eles da sala ao lado, o que fez a boca de seu pai se
torcer. Ele recuperou sua faca e gesticulou em direção à porta.
— É melhor você controlar aquele seu homem — Ioseph avisou, com riso
em sua voz. — Ele e Remy vão acordar os vizinhos.
Eliana se virou para ver Remy correndo para a cozinha e Simon
caminhando logo atrás dele. Simon o pegou em seus braços, e Remy uivou de
tanto rir, bateu com os punhos nos ombros de Simon.
— Ele trapaceou, El! — Remy gritou. — Ele trapaceou nas cartas do rei, e
eu o confrontei!
— Ah, mas eu nunca mentiria para você — Simon proclamou solenemente,
e então, sobre a cabeça de Remy, deu a Eliana uma piscadela maliciosa que a
deixou vacilante ao lado de seu pai.
Mas algo estava errado, pensou, observando-os brincar e rir. Ioseph se
aproximou deles com severidade fingida, com as mãos na cintura, e
proclamou algo que Eliana não conseguiu entender, pois de repente se
distraiu. Ela olhou para a parte de trás da cabeça de seu pai, assistiu Simon
colocar Remy em seus pés e bagunçar seu cabelo, e foi isso, ela percebeu —
isso estava errado.
Remy era muito pequeno. Ele era uma criança pequena de novo, não o
garoto desengonçado que ela conhecia. E o rosto de Simon estava liso e cheio
de luz, as sombras tinham desaparecido sob seus olhos e Ioseph…
— Pai? — perguntou baixinho.
Ele não respondeu, de costas para ela, mas algo estava errado, ou pelo
menos pensou que estava, e ela precisava olhar para Ioseph Ferracora de
frente. Precisava ver o olhar quente e escuro de seu pai, as linhas amáveis ao
redor de seus olhos, e sentir a segurança de que essa estranheza se
transformando dentro dela era simplesmente uma fantasia, o eco de um
sonho.
Ela tocou seu ombro, mas antes que ele pudesse se virar, viu seu reflexo no
espelho pendurado do outro lado da sala.
Boca congelada em um sorriso, olhos negros como cavidades gêmeas.
— Você deveria ter se permitido sonhar — disse Ioseph, mas a voz não era
a sua e veio de cima do ombro dela.
Ela girou, mas quando abriu os olhos, foi para se encontrar retorcida no
chão de seu quarto. Sua camisola se agarrava a ela, encharcada de suor.
Corien estava acima dela, claramente divertido.
— Você insiste em transformar cada coisa doce que eu te dou em um horror
— lhe disse, e então a colocou de pé e a abraçou enquanto chorava. Ela
enrolou os dedos em seu casaco preto, desejando ter força para agarrá-lo.
Mas o sonho que ele mandou a deixou tremendo. Seus braços estavam
líquidos, inúteis.
— Pode ser assim — Corien sussurrou contra seu cabelo úmido. Ele
balançou com ela como se em breve fossem dançar. — A vida poderia ser
feliz de novo, Eliana, se você me deixar torná-la assim para você.
Ela sabia que ele estava certo e fechou os olhos com uma dor no peito,
lembrando-se do calor do sorriso de seu pai. Sua casa tranquila em Orline. O
jardim de Rozen Ferracora, a mesa da cozinha repleta de remendos de Rozen.
Remy seguro em sua cama, lendo em voz alta um de seus livros, e Harkan
dormindo do outro lado do caminho.

•••

Quando Eliana acordou, Simon estava de pé sobre ela, um brilho urgente em


seus olhos. Uma espada brilhava em seu quadril; presos ao peito estavam dois
revólveres.
— Não temos muito tempo — disse, ajudando-a a se sentar. — Ouça com
atenção, a qualquer momento ele descobrirá que eu fui embora e tudo estará
arruinado.
Ela o olhou. — Do que você está falando?
— É um farsa, Eliana. Foi tudo mentira. — Ele encontrou suas mãos e as
beijou. — Sinto muito por isso, mas era a única maneira de protegê-la. Eu
não poderia arriscar sua vida. — A voz dele quebrou enquanto falava contra
os dedos dela. — Tem sido um tormento te enganar. Cada momento que vejo
você sofrer é uma agonia.
O alívio inundou seu corpo, sua pele formigando. Ela se sentia tonta, sem
peso.
— Eu não entendo — disse, mas saiu da cama para segui-lo. Ele havia
reunido suprimentos. Estava segurando uma capa para ela. Na porta, Remy
mantinha vigilância. Seu cabelo estava desgrenhado, despenteado e caía
sobre os ombros. Hematomas marcavam sua pele como se ele tivesse sofrido
a queda de cem punhos, mas seus olhos brilharam triunfantes ao luar.
— Temos uma chance de escapar, e é esta noite — Simon disse,
conduzindo-a em direção à porta. — Me siga.
Mas ela recusou, plantando os pés na soleira. Algo estava errado. Havia um
tamborilar metálico agudo em sua mente, e ela não conseguia desalojar seu
ritmo. Era familiar. Já tinha ouvido isso antes.
— El, temos que sair! — Remy sussurrou da porta.
— Tiros. — Olhou para Simon, a memória crescendo rapidamente. —
Você atirou em todos em Festival. Você deu ordens aos anjos.
Ele soltou um suspiro impaciente. — Foi tudo mentira, Eliana. Você não
está ouvindo? — Ele agarrou seu pulso. Seu aperto era terrível, impiedoso. —
Ande. Agora.
Mas ela sabia a verdade: não podia confiar em nada que visse. Seu mundo
inteiro havia se tornado mentiras criadas por Corien.
Acordou em silêncio na luz fraca de seu quarto, com o rosto molhado de
lágrimas, e encontrou Corien sentado na beira da cama.
— Eu esperava por isso — disse ela, com a voz embargada de exaustão.
Nem seu sono parecia mais verdade. — Que havia uma razão para tudo além
de engano.
— Eu sei — disse Corien, sua voz um sussurro de simpatia. Ele tocou sua
bochecha, reorganizou seu cabelo despenteado.
Novas lágrimas tornaram seu quarto branco informe e sem forma. — Que
idiota eu sou — sussurrou. — Sempre fui uma idiota.
— Eu posso fazer isso parar — veio sua voz terna, lisonjeira e gentil. —
Você sabe que eu posso. Tudo que eu peço em troca é…
— Eu vou morrer antes de ajudá-lo. — Ela o olhou através das lágrimas,
tremendo com um aumento repentino de raiva. — Você pode me enviar mil
mentiras doces, mil noites de promessas, mil sonhos de tudo que desejo e de
todos que sempre amei, e minha resposta será a mesma.
Seu silêncio então foi absoluto, aterrorizante em sua imobilidade.
Ela esperou, tensa, tentando decifrar a extensão negra de seu olhar, e
quando a queimação de seus olhos se tornou insuportável e ela finalmente
piscou, ele se foi.

•••

Quando Eliana acordou, estava no quarto branco dos seus sonhos.


— Bom dia — gritou alegremente para seus assistentes. Se espreguiçou e
bocejou, depois colocou as pernas para fora da cama e para o ar fresco. Em
sua camisola, ela vagou pelos amplos corredores iluminados pelo sol de sua
casa e se perguntou, como sempre fazia, em sua própria fortuna selvagem.
Ouviu o canto dos pássaros e cantarolou junto. Arrancou uma flor vermelha
de um vaso e inalou seu doce perfume.
Por fim, chegou a portas gêmeas estreitas de madeira escura polida, seus
puxadores de bronze moldados em asas chamejantes.
Corien estava na soleira, vestindo um casaco de brocado de ébano e azul
meia-noite. O padrão bordado brilhava iridescente, como as penas de um
melro.
A alegria de Eliana morreu. Uma mentira. Era mentira. Esta não era sua
casa. Era de Corien.
— Não — disse, e se afastou dele. Logo iria acordar. Conhecia o padrão
agora. Ela acordava em seu quarto e o via olhando para ela, ouvia-o confortá-
la e persuadi-la.
Os guardas chegaram a seus cotovelos, forçando-a a avançar para a sala de
recepção sombria onde eles se conheceram.
— Outro sonho? — Ela riu, lutando desesperadamente por uma bravata. —
Não sabia que você seria tão cansativo.
Corien não disse nada, passando por ela.
— Eu tenho um presente para você, Eliana — disse suavemente, e enquanto
Eliana o seguia, tropeçando entre seus implacáveis guardas angelicais, duas
figuras nas sombras surgiram.
Simon, seus olhos planos e frios, seu corpo todo organizado de linhas
nítidas no uniforme imperial preto. Ombros quadrados, botões dourados,
faixa vermelha.
E Remy, de pé ao seu lado, magro e pálido e vestido com uma túnica e
calças simples, o tecido rasgado e manchado. Olhos arregalados, mãos
acorrentadas, lábio ensanguentado.
O estômago de Eliana embrulhou, mas ela ficou onde estava. Ela cerrou os
punhos e manteve a voz calma. — Eu já vi isso antes. Eu vi uma centena de
Remys, e alguns deles eram exatamente assim.
— Remy Ferracora — disse Corien, circulando a sala. — Um famoso
contador de histórias, ouvi dizer.
— El? — A voz de Remy estava rouca. Seus olhos dispararam
descontroladamente de Eliana para Corien para as portas. — O que está
acontecendo? Onde eles estão mantendo você?
Eliana não respondeu. Não participaria disso. De novo não. Nunca. Por
muitas noites, tinha acreditado no que viu. Havia tentado escapar. Estava em
casa em Orline com o pai, com Harkan. Ela tinha estado em uma costa branca
com Simon, em uma cabana cinza que era toda deles.
Nunca mais. Ela engoliu em seco. Ela não disse nada.
Remy olhou com medo para Corien. — Posso ir até ela?
— Claro. — Corien fez um gesto magnânimo. — Cuide disso.
Remy voou em seus braços, mas os sonhos de Eliana pareciam reais antes.
Ela desviou o olhar, sem fazer nada, sem dizer nada. Corien estava
observando enquanto os circulava, as mãos atrás das costas. Havia um leve
sorriso em seus lábios.
Ela não lhe daria nada.
— Onde você esteve? — Remy pressionou o rosto contra o braço dela. Seu
corpo magro tremia. — Eu chamei por você, e você nunca veio.
— Sinto muito — respondeu, distante. — Eu estive ocupada.
Remy se afastou para franzir a testa para ela. — O que você tem? Você não
se importa onde eu estive?
Eliana se recusou a olhar para ele. Se olhasse nos olhos de mais uma
criação da mente de Corien, ele venceria.
— Diga-me — disse, indiferente.
Remy fez uma pausa, incerto, e então disse rapidamente: — É um lugar
com muitos cômodos. Eu não sei quantos. Eu não posso contá-los. É
subterrâneo, escuro e frio. Eu os ouço ao meu redor. Milhares de vozes
gritando, chorando e rindo. — Ele hesitou, olhou para Simon. — Ele me
levou lá, no primeiro dia que chegou. Ele me colocou no meu quarto.
Ah, e agora Corien traria Simon para a mentira, tentaria desenhá-la dessa
forma. — Entendo. Que sala?
— O lugar onde sou mantido. — Remy se afastou dela, e agora sua voz
ficou com medo. — Por que você não está olhando para mim?
— Triste, não é? — Corien se aproximou, seu rosto iluminado de alegria.
— Vê-la tão mudada? Suponho que ela não se importe mais com você.
Remy se afastou de ambos. — O que você fez com ela?
— A pergunta que você deveria fazer — disse Corien, — é o que farei com
você?
De repente, o corpo de Remy parou onde estava. Ele se sacudiu para a
esquerda, depois para a direita com gritos sufocados, depois caiu, com o
queixo batendo com força no chão, e começou a gritar.
Por um momento, Eliana o encarou, congelada de horror enquanto seus
gritos a rasgavam e seu sangue rugia.
Então lhe deu as costas, olhando para as portas fechadas.
— Não serei mais seu brinquedo — disse com firmeza.
Corien deu a volta para encará-la, sua expressão de zombeteira surpresa. —
E em vez disso você vai permitir que seu próprio irmão seja? Achei que te
conhecia bem.
Ela se afastou dele. Atrás dela, os gritos de Remy rasgaram o ar. Seus
braços explodiram em calafrios. Ela foi para as portas. A qualquer momento,
acordaria em sua cama, descansada e triunfante, e Corien seria o idiota, não
ela.
— A filha do nobre Portador da Luz — ele meditou, mantendo o passo ao
lado dela. — Quem diria que você poderia ser tão fria?
Ela alcançou as portas. Quando falou, sua voz tremia de raiva.
— Acabe com isso. Me acorde.
Corien encostou-se na parede ao lado das portas. — Oh, Eliana. Você não
entende. Aqui, vou ajudá-la um pouco. Cada minuto que passa na mente de
seu irmão é um ano a menos de sua vida. Talvez mais. Cada mente é
diferente. — Ele encolheu os ombros. — Vá embora, se desejar.
Eliana olhou fixamente para a porta, para sua mão sobre a asa de bronze, e
um pavor lento e penetrante apoderou-se dela. Um gemido alto soou em seus
ouvidos; ela ouviu o som do crânio de Remy batendo no chão. Ele estava em
convulsão.
O rosto de Corien estava cheio de pena que ela não podia confiar. Ele
removeu pilhas de ouro de seus bolsos. — Aqui — disse suavemente, e
começou a prender as correntes finas familiares ao redor de seus pulsos. Os
discos gêmeos de seus receptáculos se acomodaram em suas palmas, lisos e
frios.
Corien sorriu. — Aí, você vê? Quando estou de bom humor, posso ser
muito generoso.
Ela o olhou com horror, sabendo que isso era exatamente o que ele queria,
então se voltou para Remy. Seus receptáculos eram olhos frios que não
piscavam contra suas mãos suadas.
Ela caiu de joelhos ao lado de Remy, se atrapalhou para levantá-lo, segurou
sua cabeça em seu colo. Seus olhos estavam vidrados; cuspe espumou em
seus lábios. Ela se agarrou a ele, desesperada para acalmar seus tremores,
mas ele não a viu. Ele olhava para o teto, arranhando o ar, e então começou a
arranhar a si mesmo, suas unhas rasgando seus braços, suas bochechas.
Eliana segurou seus braços, apertou-o contra seu corpo.
— Solte-o — ela chorou. — O que você está fazendo com ele?
— Estou forçando-o a reviver o momento em que meu corpo foi arrancado
de mim — disse Corien calmamente. Ele estava perto agora, observando-os
de cima. — Quando fui levado para o Abismo por seus ancestrais e
despojado de toda fisicalidade. Minha pele esfolou, meus ossos foram
esmagados, minhas veias foram sugadas pelo próprio universo. O empirium
me desmantelando em um abismo onde nada é permitido existir, exceto seu
próprio poder bruto. — Ele inspirou lentamente e exalou. — Como você
pode imaginar, foi uma agonia que não posso descrever. Ninguém que não
sentiu pode saber.
Ele se agachou para ver melhor, seu olhar negro fixo no corpo agitado de
Remy. Eliana sentiu um grande foco dentro dele, uma concentração terrível
que conectava tudo o que ele era a tudo que Remy era, pequeno e indefeso
em seus braços.
Um leve sorriso apareceu no rosto de Corien. — Depois disso, talvez Remy
possa me ajudar a descrever para você. Nosso pequeno criador de palavras.
Sentada no chão com Remy morrendo em seus braços, ela percebeu com
um choque doentio de medo que este era um paralelo horrível com aquele
momento em Karlaine: o abdômen de Remy dilacerado e sangrento, sua
própria visão um campo de ouro empírico, suas mãos submersas em sua
ferida, tricotando-o inteiro mais uma vez.
E Simon atrás dela, agarrado a ela, uma âncora naquele momento selvagem
de despertar. Contra sua bochecha, ele sussurrou, eu não vou desistir.
— Você sabe como acabar com isso, Eliana — Corien disse calmamente.
— Você sabe o que deve fazer.
Ela respirou fundo, lutando com todas as suas forças para conter o corpo de
Remy, mas era impossível. Não poderia lutar contra Corien sozinha, não sem
usar seu poder, e se ela conseguisse invocá-lo, Simon poderia conseguir
invocar o dele.
— Eu morrerei antes de ajudá-lo — disse em meio às lágrimas.
De repente, a agonia de Remy diminuiu.
Ele estava mole em seus braços, encharcado de suor. Tremendo, olhou para
o teto, seus lábios se movendo silenciosamente.
— Remy, você pode me ouvir? — Ela segurou suas bochechas e encostou a
testa na dele. Contra as correntes frias de suas peças, sua pele estava em
chamas.
— Fale comigo. Por favor, diga alguma coisa.
Ele o fez, em um sussurro tão fraco que ela teve que pedir-lhe para repetir.
— Me mate.
O sangue de Eliana congelou. — O que você disse
Seu olhar turvo travou com o dela. — Mate-me, El. Então ele não pode me
usar contra você assim.
Das sombras, Corien se espreguiçou, suas juntas estalando. — Deus,
realmente pode ser um trabalho difícil cavar e cavar assim, implantar. Focar
tão singularmente em uma mente enquanto controla milhares de outras.
Muito doloroso, realmente, se isso é um consolo de qualquer tipo?
— Ele não fez nada para você. — Eliana enxugou os olhos com as mãos
trêmulas. — Ele é inocente.
— Assim como muitas crianças angelicais que sofreram o mesmo destino
que Remy viveu — Corien voltou calmamente. — E eles não acordaram em
seus próprios corpos depois, vivos e inteiros. Ele não tem sorte?
Então Simon falou. — Se você se preocupa com ele, você fará o que for
ordenado e irá poupá-lo da dor. — O chicote silencioso de sua voz chocou
Eliana, sacudindo-a. Como poderia ter pensado que ele era caloroso,
apaixonado, altruísta? Sua boca se curvou cruelmente, como se ele
conhecesse seus pensamentos. — Ou talvez você não se importe com ele —
acrescentou. — Talvez você seja uma mentirosa tão boa quanto eu.
— Porquê ele está aqui? — ela perguntou a Corien, engasgando com sua
própria voz. — Eu não vou implorar pela ajuda dele. Eu não vou implorar a
nenhum de vocês.
A mão de Remy apertou a dela. Um pequeno sorriso tocou sua boca.
Corien olhou na direção de Simon. — Eu tenho que ter certeza de que ele
ainda é meu, não tenho? Eu posso entender como vocês dois – o lindo alvo e
seu doce irmãozinho – podem derreter o mais frio dos corações. Então, eu
gostaria que ele visse cada momento disso. Eu gostaria de testá-lo. Ele gosta
quando eu o testo.
Um sorriso privado passou entre os dois. Eliana procurou o revelador cinza
adatrox nos olhos de Simon, mas viu apenas o familiar azul brilhante.
Ele não estava sob o controle de Corien. Ele era, finalmente, totalmente ele
mesmo, e quando Eliana sentou-se com Remy mole em seus braços, a
verdade de quão sozinha estava neste lugar, como tinha apenas a si mesma
para buscar força, estabeleceu-se contra seus ossos cansados como lodo água
escura.
Ela se virou para enfrentar Corien, um apelo desesperado em seus lábios.
Ele estava lá imediatamente, ajoelhado ao seu lado. — Você pode ter tudo
que eu mostrei a você. Cada felicidade, cada paz. Vou acabar com isso,
Eliana – essa sua vida, toda a sua violência, todo o seu sacrifício. Seu irmão
estará seguro. Ele ficará tão feliz, e você também. Viva, saudável. Segura.
Segura, você pode imaginar? Pela primeira vez na sua vida.
Ele acariciou sua bochecha com as costas dos dedos. — Eu posso terminar
sua luta, se você apenas fizer essa coisa final por mim. Deixe seu poder
aumentar, como antes. Compartilhe com Simon, como você fez antes.
Mesmo com Simon assistindo das sombras, a conformidade pairava sobre
os lábios de Eliana. Ela podia sentir o gosto das palavras. Sim, ela queria
dizer. Você ganhou. Vocês ganharam.
Mas algo a deteve, algum último resquício de desafio, e com um som agudo
de frustração, Corien agarrou sua cabeça e a sacudiu.
— Tenho de voltar para ela, Eliana — sussurrou, com lágrimas nos olhos.
— Eu devo encontrá-la. Abra. Dê-nos o seu poder. Me envie de volta.

•••

Quando Eliana acordou, estava no quarto branco dos seus sonhos.


Corien estava sentado ao lado dela na cama, e Simon atrás dele, esperando,
e seus guardas adatrox de olhos opacos cercaram o quarto, vestidos de branco
e silenciosos.
Seus receptáculos, intactos em torno de suas mãos, estavam aquecendo.
E Remy… Remy não estava em lugar nenhum. Remy se fora. O que ele
disse? É um lugar com muitos quartos. É subterrâneo, escuro e frio.
Imaginando Remy preso em tal lugar, anos e anos de sua vida arrancados
dele, a dor e a raiva de Eliana se tornaram físicas, uma explosão de exaustão
de calor que varreu seu corpo. Não podia impedir que isso acontecesse, nem
queria. Ela queria que seu poder se levantasse e a consumisse, os quartos em
que ela agora vivia, o palácio que se tornou seu mundo inteiro, e cuspiu as
cinzas como veneno.
Ela se afastou de Corien, saiu cambaleando da cama e caiu com força no
chão. Suas mãos se chocaram contra a pedra branca e, com o impacto, suas
peças fundidas brilharam com a luz. Eles eram redes gêmeas de fogo ao redor
de suas mãos, e ela podia sentir, naquele momento de claridade
incandescente, incontáveis cordões de energia explodindo furiosamente para
a vida em seu comando desesperado e desconhecido.
O mundo estremeceu – um terremoto, uma explosão. As janelas de seu
quarto balançaram em suas molduras. Seus guardas tropeçaram.
No silêncio que se seguiu, Eliana se aninhou no chão, sua visão faiscando
com luz, seus dedos espalmados pelo chão de pedra. Ela ofegava, tonta e
ofegante, todos os músculos tremendo.
E em suas palmas, seus receptáculos zumbiam – vivos, agora, e esperando.
Ao vê-los, o horror deu um soco no estômago e sua visão clareou quando
uma compreensão terrível se estabeleceu.
Ela imediatamente buscou controle. A raiva ainda a percorria, e uma
terrível tristeza apertou dolorosamente sua garganta, mas ela não podia
permitir que isso a controlasse. Corien poderia tecer mil belas mentiras para
ela todos os dias pelo resto de sua vida. Não importaria. Ela não podia
permitir que isso acontecesse, nunca mais. Se imaginou empurrando contra
seus receptáculos, tornando-os frios e escuros mais uma vez. Imaginou seu
poder retornando aos cantos mais profundos de si mesma, escondido e
intocável, como sombras se retirando rapidamente ao meio-dia.
Mas era tarde demais.
Ao lado de um zumbido, anel de luz pálida, Simon estava com os braços
levantados, ambos tremendo com esforço óbvio. Mas quando ele passou pela
luz e desapareceu, ele emergiu no momento seguinte do outro lado da sala.
Ele deu um único passo cambaleante antes de cair de joelhos, ofegante, e
quando ele olhou para Corien, foi com um triunfo cansado.
Uma coisa tão pequena, um mero salto através de uma única sala, e ele não
havia tocado os fios do tempo.
Mas os fios de espaço que ele encontrou eram mais brilhantes do que
aqueles que ele havia convocado quando ela chegou em Elysium. Mais forte,
mais confiável. Foi um começo e Eliana permitiu que acontecesse. Ela tinha
feito isso acontecer. Havia perdido o controle de seu poder, deixou-o crescer
como quando Remy jazia sangrando em seus braços, e novamente na praia
em Festival, e novamente – terrivelmente, devastadoramente – nos jardins de
Willow com o coração de Simon batendo sob suas mãos. Aquele pequeno
momento foi o suficiente.
Seu estômago afundou rápido, uma rápida queda de gelo.
Corien sorriu, largo e lento.
— Excelente — disse calmamente. — Agora podemos começar.
9
Navi

“A última rainha de Vesper? Oh, todos nós a amávamos. Seu consorte


morreu no mar há muitos anos, deixou-a uma jovem viúva, mas ela
continuou construindo seus navios e criou sete filhos para serem os
pequenos coroas mais doces que você poderia esperar encontrar. Então
o Império veio à capital, matou ela e seis de seus bebês nos degraus do
Palácio do Marfim. Mas seu sétimo filho, a pequena Brizeya, nunca foi
encontrado. Alguns pensam que ela foi arrastada para o mar, onde as
ondas a colocaram para descansar ao lado de seu pai. Outros acham
que ela ainda vive, planejando sua vingança. Penso naquela pobre
criança todas as noites. Se ela ainda estiver viva, espero que nunca
descubra seu verdadeiro nome. Não há mais nada para ela aqui. Não
sobrou nada para nenhum de nós.”
— Coleção de histórias escritas por cidadãos de Vesper ocupada,
com curadoria de Hob Cavaserra

Estavam viajando pelo Pântano Kavaliano há seis dias e duas horas, e Navi
estava convencida de que nunca encontrariam o caminho de saída.
Olhando à frente através da estranha névoa tingida de amarelo que sufocava
o ar, Navi agarrou o remo com força e remou.
Ruusa, chefe de sua guarda pessoal, não gostou que Navi estivesse
remando. Ela era uma de apenas quatro da guarda pessoal de Navi que
conseguiu escapar da invasão do Império de Astavar e fugir para a segurança
com Navi, seu irmão Malik e seu amigo Hob.
Semanas se passaram desde que deixaram Astavar, semanas desde que os
curandeiros de Navi administraram o antídoto rastreador que Eliana e Harkan
roubaram de Annerkilak. Ruusa, porém, ainda não estava acostumada com a
ideia de Navi estar bem. Ela repreendeu Navi por trabalhar tanto nos remos.
Navi se esgotaria. Navi deve se proteger contra a exaustão, caso algum
pedaço dormente do soro rastreador permaneça em seu sangue.
Mas remar era a única coisa que mantinha Navi sã. Remando e recriando
em sua memória um mapa de Vesper.
Eles estavam em uma das ilhas mais ao norte de Vesper, Hariaca. Assim
que cruzassem este pântano terrível e sem fim, seguiriam o rio Hezta até a
costa sul da ilha. De lá, atravessariam o Amatis Shallows a pé até a ilha de
Laranti.
E lá, finalmente, Navi se encontraria com o líder da Coroa Vermelha em
Vesper. Uma mulher, Hob disse, chamada Ysabet. Ela seria capaz de ajudar
Navi a mobilizar os soldados da Coroa Vermelha espalhados por Vesper –
uma enorme nação composta por milhares de ilhas que variam em tamanho,
desde enormes e congestionadas por cidades até ao minúsculo e remoto – e
prepará-los para viajar através do Grande Oceano até a cidade do imperador,
Elysium. Eles iriam reunir um exército de rebeldes e perdidos, em seguida,
navegariam em auxílio de Eliana, prontos para ajudá-la a destruir o coração
do Império.
Isto é, se Eliana ainda estivesse viva. Se já não tivesse sido torturada até a
loucura ou coagida a se aliar com o Imperador.
Ou, Deus os livre, concordasse de boa vontade em se aliar com o
imperador.
Foi em um pequeno esconderijo da Coroa Vermelha em Meridian que eles
aprenderam a verdade devastadora: o ataque brutal das forças imperiais na
cidade de Festival e a captura de Eliana pelo almirante Ravikant, que
comandava a marinha do imperador.
Navi fechou os olhos. Ainda não tinha conseguido pensar em Eliana sem
que as lágrimas subissem.
— Eliana não vai ajudá-lo — murmurou Navi em Astavari. — Ela é muito
forte para ele. Ela não vai quebrar.
Era um refrão familiar, algo que pronunciava em voz alta sempre que
precisava de confirmação.
— Claro, minha senhora — respondeu Ruusa suavemente, também em sua
língua nativa.
— A mãe dela pode ter se juntado aos anjos, mas Eliana não é a mãe dela.
— Isso é verdade, minha senhora.
— Ela é mais forte do que a Rainha Rielle.
Com isso, Ruusa soltou um suspiro impaciente. — Minha senhora, você
não conhecia a rainha Rielle, então não pode saber se Eliana é mais forte do
que ela!
Navi sorriu ironicamente. — Por dias você tem me ouvido recitar minhas
pequenas orações. Eu estava me perguntando quando você iria parar de dizer,
‘Sim, minha senhora’ e ‘Claro, você está certa, minha senhora’, e gritaria
comigo em vez disso.
A boca de Ruusa era uma linha fina. Ela olhou para as árvores entre as
quais deslizavam, cada uma manchada com limo e coberta com videiras
grossas. Os quatro barcos que transportavam os outros membros de seu grupo
estavam próximos, suas lanternas pálidas brilhando fracamente na escuridão.
Um fedor quente e maduro subia da água estagnada, como o das flores que
ficaram marrons em seus vasos.
— Eu não gritei, minha senhora — murmurou Ruusa. — Tive muito
cuidado para não gritar.
— Isso depende da definição de gritar de alguém, suponho.
Ruusa ficou quieta por um momento. — Eu sinto muito, minha senhora.
Por favor me perdoe.
— Não há nada a perdoar. Eu encorajo a impertinência em meus guardas,
Ruusa. Você sabe disso.
— Claro, minha senhora. — Ruusa fez uma pausa. — É só que não quero
que fique desapontada.
— Desapontada com o quê? — Navi perguntou, já sabendo a resposta. O
medo congelou em seu coração. Ela se recusou a reconhecer.
— Com quem.
— Ah.
— Lady Eliana só lhe trouxe problemas desde que você deixou Orline. Se
não fosse por Lady Eliana, você não teria sido capturada por Fidelia no
Santuário. Você não teria que suportar tortura, nem teria experimentado e
administrado o soro rastreador.
— Agora, você não pode saber disso — disse Navi levemente. — Eu
poderia ter sido capturada em qualquer lugar por Fidelia. E se eu estivesse
sem Eliana lá para me salvar, eu seria um rastreador agora.
— E então — Ruusa continuou, sem se impressionar, — foi o desejo do
Império de encontrar Lady Eliana que os trouxe para Vintervok. Era ela que
eles queriam. É por ela que invadiram nossa cidade, minha senhora, nossa
casa. Sei que não nasci em Astavar, mas se tornou meu país, como sempre
foi seu, minha senhora, e quando sangra, eu também.
A dor na voz de Ruusa era muito crua para Navi ignorar. Ela chamou a
atenção do menino bronzeado e ruivo sentado à sua frente, que estava
ouvindo com atenção, mas fingindo não ouvir. Ele era um de seus
desgarrados, quinze anos, sua família assassinada durante um ataque ao
Império. Ele atacou o acampamento deles uma noite em algum lugar nas
florestas de poeira ao sul de Meridian. Ruusa queria matá-lo por isso, mas
Navi não tinha permitido, e agora ele era leal a ela, pronto para lutar contra o
Império. Seu nome era Miro. Desde que Navi salvou sua vida naquela noite
na floresta de poeira, ele nunca a olhou com nada além de reverência
fervorosa.
Claro, ele não sabia nada sobre sua verdadeira identidade. Nenhum de seus
perdidos conhecia. Eles a conheciam apenas como Jatana, assim como
conheciam Malik apenas como Rovan.
Que eram os últimos sobreviventes da família real Astavari permaneceria
um segredo. Ela e seu irmão eram Coroa Vermelha; odiavam o Império. Isso
era tudo que Miro e os outros precisavam saber.
Navi sorriu para o menino. — Miro, você se importaria de remar um
pouco? — perguntou na língua comum.
Ele rapidamente tomou seu lugar e, assim que Navi se acomodou em frente
a Ruusa, ela voltou a falar em Astavari. — Minha querida Ruusa, saiba que
eu ouço você. Eu sei que você deixou sua casa, um lugar que se tornou um
paraíso para você, e que todos que você ama estavam lá.
— Todos que eu amo, menos você — Ruusa corrigiu prontamente.
Com essas palavras, Navi sentiu algo ceder e seus olhos se encheram de
lágrimas. Ao empurrar seu povo para o sul, ela se recusou a pensar muito no
que eles haviam deixado para trás. Mas, oh, como ela gostaria de poder
rastejar para o colo de Ruusa, como tinha feito muitas vezes durante sua
infância, e ignorar todas as coisas impossíveis que estavam por vir.
Ruusa lançou um olhar penetrante para Navi. Ela conhecia bem as
expressões de Navi, particularmente aquela que precedia os abraços
impetuosos. — Agora não, Alteza. Não na frente de todos.
Navi sorriu e piscou os olhos secos. — Muito bem. De alguma forma, vou
me conter.
— Excelente, minha senhora.
— Mas vou lhe dizer uma coisa: eu sei que você sofre pelo que perdeu. Eu
também. Acho que vamos sofrer pelo resto de nossas vidas. A cada passo que
damos para longe de nossa casa, a dor se enreda com mais força no tecido do
nosso eu mais profundo. E assim como não posso arrancar minha tristeza de
mim, descartá-la e seguir em frente sem ela, também não posso abandonar
minha esperança.
Navi colocou as mãos sobre as de Ruusa. Os dois outros remadores em seu
barco diminuíram a velocidade dos remos para ouvir. Um era Taya, um dos
guardas de Navi, e o outro era Edran, outro extraviado que se juntou às suas
humildes fileiras na costa do Mar Estreito. Como seus outros novos recrutas,
ele não conseguia entender Astavari, mas observava Navi com olhos
arregalados de adoração.
— Devo acreditar que Eliana é a Rainha do Sol por quem oramos durante
toda a vida — disse Navi, desejando que Ruusa visse em seus olhos apenas
sua convicção e nada de seu medo. — Devo acreditar que ela tem força para
resistir a toda astúcia e crueldade que o imperador usará contra ela. Por favor,
entenda que, quando falo dela dessa maneira, não é para descartar sua raiva
ou sua tristeza, mas sim para expressar minha crença – por mim e por todos
que confiam em nós com suas vidas. Minha crença é minha esperança, e
esperança é a luz que brilha mesmo na noite mais escura.
Ruusa ficou em silêncio, seu olhar era de aço. Miro observou a troca com
uma atenção ofegante, seu remo esquecido.
Por fim, a expressão de Ruusa suavizou-se tão sutilmente que Navi sabia
que os outros não notariam.
— Eu entendo, minha senhora — disse Ruusa, — e eu te perdôo.
Navi apertou as mãos dela em agradecimento.
Então, quando ela alcançou Miro e seu remo, o pântano estremeceu.
Foi mais do que um simples tremor, que poderia ser explicado nesta parte
volátil do mundo. O som retumbou sem fim e, quando Navi tentou gritar,
descobriu que algo havia roubado sua voz.
Ela agarrou as laterais do barco, lutando para respirar, sua mente correndo.
Vulcões e terremotos eram ocorrências comuns. Novas ilhas se formaram e
as antigas se dividiram em pedaços. O povo Vesperiano – milhares de
famílias extensas, centenas de culturas, unidas pelo amor de sua falecida
rainha, que foi assassinada durante a invasão do Império – dependia de
relatórios dos Saterketa, estudiosos especializados em ler e prever mudanças
na Terra.
O guia deles, Bazko, lhes disse isso no primeiro dia no pântano, quando o
ânimo ainda estava alto e o próprio Bazko começou a conversar. Ele era leal
à Coroa Vermelha e os ajudaria a navegar com segurança pelo Pântano
Kavaliano, famoso pelo grande número de viajantes que encontraram fins
horríveis em suas águas.
Nos últimos seis dias, Navi – ansiosa por confiar, desesperada por ajuda –
havia se tornado cética. A primeira vez que Bazko lhes disse que logo
estariam deixando o pântano em busca de águas mais limpas foi há dois dias.
E agora o pântano estava tremendo, sem fim à vista, e havia um gemido
estridente soando nos ouvidos de Navi que ela não conseguia abalar. Mais e
mais alto ele subiu. Um olhar para Ruusa disse a ela que não era a única a
ouvir.
Bazko sentou-se estupefato na proa do barco da frente, agarrando-se ao
assento e olhando ao redor com ar selvagem. Ele pressionou a orelha
esquerda no ombro esquerdo e ergueu o punho direito no ar: uma ordem para
parar.
Os remadores dos outros quatro barcos do grupo puxaram os remos. Navi
procurou pelas sombras cinza-amareladas por Malik, seu irmão, que estava
tenso no barco à sua esquerda. A luz misteriosa do pântano pintou sua pele
marrom-dourada com sombras. Então ela olhou para a direita; naquele barco
estava Hob, de ombros largos, sua pele um marrom escuro e rico. Navi
costumava recorrer a esses homens em busca de conforto. Um que ela amou
durante toda a vida; outro que ela aprendera a amar nos últimos meses.
Mas agora, eles pareciam tão assustados quanto ela, e um terror frio tomou
conta de seu coração enquanto ela se perguntava se morreriam aqui, se o
pântano se abrisse e os engolisse.
O estremecimento continuou e Navi começou a contá-lo. A água pútrida
ondulou, balançando seus barcos. Insetos e cobras caíram de seus galhos na
água. Pássaros de patas compridas voaram em massa.
Então, silêncio. Absoluto e repentino. Os ouvidos de Navi tocaram, mas o
barulho horrível de choramingo havia sumido.
— O que é que foi isso? — Miro sussurrou depois de um momento. Ele
começou a se levantar, segurando o remo como uma arma. — O que está
acontecendo?
Ruusa puxou-o de volta ao seu assento. — Quieto, garoto.
Navi esperou que o guia gritasse um sinal, algum sinal de que ele sabia o
que havia sido aquele terremoto, mas Bazko não disse nada. Ele baixou
lentamente o punho, olhando para os outros como uma criança desesperada
por orientação, e ocorreu a Navi como eles eram pequenos e insignificantes
no grande e desconhecido esquema do mundo.
Quantos perdidos eles recrutaram? Enxugando o suor que escorria de sua
testa, ela contou rapidamente para se certificar de que todos ainda estavam
em segurança em seus barcos. Trinta e um. Ela, Malik, Hob, Ruusa, seus três
outros guardas vivos e trinta e uma pessoas que estavam tão desesperadas
para escapar de sua solidão ou tão obsessivamente famintas por vingança
contra o Império que concordaram em enfrentar a selva Vesperiana com uma
jovem que falava de lendas como se fossem reais, que nada podia prometer,
exceto a esperança de uma luta distante. Uma viagem à cidade do Imperador.
Um ataque ao lugar que ele chamava de lar.
O resgate de uma princesa que salvaria todos eles, se pudessem alcançá-la a
tempo.
Navi engoliu em seco contra o gosto azedo em sua boca. O que estava
pensando? Como ela e esse pequeno exército que havia formado poderiam
montar qualquer tipo de ofensiva contra as inesgotáveis tropas imperiais?
Estava errada em ter esperança, tola em até tentar. Sua casa estava perdida.
Seu mundo estava perdido. E lutar pela sobrevivência assim, agarrar-se a
fantasias selvagens de vitória, não era apenas uma forma indigna de passar o
que sem dúvida seriam seus dias finais, mas também uma grande crueldade
para com aqueles que a seguiram. Essas pessoas sem raízes, tão desesperadas
pelo menor sinal de salvação.
Ela fechou os olhos, as palmas das mãos úmidas de pavor. O que ela fez?
Para onde os estava conduzindo, e em que mentiras ela se enganou para
acreditar?
— Está tudo bem — gritou Bazko. Sua risada não foi convincente. — Um
tremor e tanto, não foi? Não se preocupe. Eles não chamam Vesper de
Terras-Inconstantes por nada.
Ruusa tocou o cotovelo de Navi. — Jatana, aqui, beba um pouco de água.
Segure para mim.
Mas quando Navi abriu os olhos para aceitar o cantil de Ruusa, algo a
distraiu – uma escuridão estranha, denteada e bruxuleante, como se uma
costura tivesse sido rasgada no ar. Não, não piscando. Mudando. Como uma
luz vista através de águas calmas, só que pairava sobre a água, a cerca de
quarenta metros de distância. Riscado com tons de ouro, violeta e o azul-
ameixa de uma contusão, ele pairou, esperando.
E algo sobre isso – o brilho fraco do ouro, a qualidade particular de seu
movimento ondulante, sua própria existência, como algo saído de um conto
do Velho Mundo – lembrou Navi, por razões que ela não conseguia articular,
de sua amiga perdida.
Eliana.
Um calafrio beijou seu pescoço. Ela se levantou lentamente, ignorando
Ruusa. Lascas de escuridão se ramificavam no ar como rachaduras em vidro.
Ela às observou crescer, prendendo a respiração, ouvindo os outros gritarem
maravilhados.
Então, as farpas pararam. Uma centena de pernas de aranha da escuridão
pairou suspensa no ar e não cresceu mais.
Um sentimento puxou o esterno de Navi, incitando-a a algo, ou talvez a ir
embora. Ela não entendeu o que isso significava, mas quanto mais olhava
para esta forma pairando, mais enjoada se sentia.
Mas teve que olhar para isto. Teve que se aproximar. Algo havia
acontecido, algo a ver com o empirium, e isso era prova. O terremoto e agora
isso. Navi precisava saber o que era. Eliana estava ferida? Ela tinha sido
morta e agora o mundo estava quebrando?
— Lá. — Ela apontou. — Você vê isso?
— Eu vejo! — Miro se agachou ao lado dela, balançando o barco e fazendo
Ruusa praguejar. — É um incêndio?
Navi recuperou o remo de Miro. — Devemos ir para lá, rapidamente.
Ruusa não se mexeu. — Seja o que for, devemos ficar longe disso.
A paciência de Navi havia desaparecido, substituída por uma necessidade
frenética de ver essa coisa, de tocá-la. Um pensamento selvagem veio a ela
que Eliana poderia estar do outro lado dele.
— Você vai pegar o seu remo — disse a Ruusa, sua voz calma, mas afiada,
— e me ajudará a chegar a essa coisa antes que desapareça, ou você se
condenará a ser uma decepção para sempre aos meus olhos.
Era uma coisa dura de se dizer, e Navi detestava dizê-la, mas logo eles
estavam se movendo, Ruusa remando em um silêncio envergonhado. Malik a
chamou, e Hob também, e Navi ouviu seus remos espirrando, mas ela não
olhou para trás, porque quando Ruusa e Taya e Edran e Miro a trouxeram
para mais perto deste olho estilhaçado flutuante, algo mudou.
Dentro do olho, no meio daquelas cores escuras rodopiantes, formas
cresceram, como tinta caindo se espalhando na água.
Navi não conseguia desviar o olhar. Essa coisa impossível prendeu ganchos
em seu coração. Se tentasse escapar, seu peito se abriria como uma fenda na
terra. O que era isso?
— Você não está indo rápido o suficiente — murmurou, e então, vendo que
a água tinha ficado rasa, saltou pela lateral do barco e mergulhou no pântano.
Logo depois, o remo de Ruusa atingiu o solo. Navi ouviu o fundo do barco
afundar na lama, ouviu Miro exclamar de medo, mas não conseguia parar de
seguir em frente.
— Navi! — veio a voz de Hob. — Pare!
— Tem algo lá dentro! — gritou de volta para ele.
Uma criatura na água passou roçando sua perna. Ela mal percebeu, subiu
uma ligeira elevação na lama sugadora. Passando pela borda manchada do
hematoma, giravam formas lentas, como espirais de fumaça.
Navi arrancou o pé da lama e encontrou terreno sólido. De lado, a mancha
era rala, quase desaparecendo quando ela olhava.
Mas, movendo-se ao redor, ela viu que, de um ângulo diferente, era mais
amplo, como um espelho escuro suspenso. Fagulhas azuis brilhantes
crepitavam em torno de suas bordas, como pequenos dedos de relâmpago. Se
ela pudesse apenas tocar essa mancha estranha no ar, afastar algumas de suas
sombras emaranhadas, seria capaz de ver o que havia dentro. Ela seria capaz
de entender.
Os pés dela estavam se movendo muito rápido. Tentou diminuir a
velocidade, se afastar, mas o próprio ar a puxava para frente. Ela tropeçou
nos próprios pés, estendeu a mão para se apoiar, mas não caiu. Seus braços
ficaram rígidos, os dedos puxados em direção ao olho escuro que não
piscava. Em um lampejo de terror, ela entendeu que aquela coisa, fosse o que
fosse, tinha uma vontade.
Queria que ela chegasse perto.
Queria que ela tocasse.
Seus dedos roçaram o ar ao seu redor, e uma pressão horrível caiu sobre
eles, então em sua mão e pulso, braço, cotovelo.
Ela olhou para baixo com horror, um grito alojado em sua garganta, e
então, a escuridão a poucos centímetros de seu rosto, um estalo como um
relâmpago brilhou diante de seus olhos.
Mil imagens se tornaram claras para ela naquele único instante chocante,
como se incontáveis vidas tivessem sido forçadas em sua mente ao mesmo
tempo. Tiras de pele saindo do osso como longas línguas negras. Mãos
procurando por ajuda que não veio. Um milhão de vozes uivantes, uma
cacofonia de fúria.
Uma cidade brilhante que não tinha fim. Bestas com asas como foices.
Uma boca imensa o suficiente para engolir o mundo, preto e insondável.
Navi voou para trás, tropeçando. Algo havia quebrado seu olhar. Mãos
agarraram seus braços e pernas, puxando-a de volta para o pântano. Ela caiu,
inalou água turva e voltou a explodir com um suspiro.
Ela bateu em algo sólido, e lá estava Malik, afundado até os joelhos na
lama, Hob e Ruusa logo atrás dele. Os homens ajudaram ela e Ruusa a subir
em seu barco e então o empurraram com força, para longe da elevação da
terra e da costura negra coroando o ar acima dela.
Então Malik e Hob subiram de volta em seu próprio barco, que havia
parado ao lado do dela, ambos gotejando e respirando com dificuldade. Miro
tirou o casaco surrado e colocou-o com ternura nos ombros de Navi.
Ela o agarrou com força na garganta e só então percebeu que as pontas dos
dedos estavam cobertas por uma fina camada de sangue.
Vendo a escuridão se afastar deles enquanto seus amigos remavam na
direção oposta, Navi começou a chorar.
Malik a observou gravemente de seu barco. — O que foi isso? O que você
viu?
Navi não conseguia começar a descrever. Sua cabeça doía enquanto as
imagens se enterravam em sua mente. Ela as sentiu aglomerando-se nas
paredes de seu crânio, grandes demais para ela, antigo demais.
Um pensamento fugaz lhe ocorreu: se isso era mesmo um pálido eco do que
Eliana sentia, vivendo com tanto poder, então era surpreendente que ela ainda
não tivesse se despedaçado.
— Era o Abismo — sussurrou Navi. — Eu sei que era, embora eu não
possa explicar como. As coisas que eu vi, como elas me puxaram… — Ela
balançou a cabeça. — Essa forma, essa coisa, é um rasgo entre aqui e ali.
Algo se abriu, e não sei por que, mas além disso, além dessa costura, está
tudo o que sempre tememos.
Ruusa olhou fixamente, seu rosto sardento ficou terrivelmente pálido.
Enquanto remava, a boca de Hob estava definida em uma linha sombria.
— Eliana sempre me falava do Portão — continuou Navi, encarando Malik.
— Você sabe disso também. Papai e Papa – eles lhe contaram, assim como
me contaram. A maioria das pessoas em nosso mundo pensa que é apenas um
boato. Eles olham para seus agressores de olhos negros e se convencem de
que não há anjos ainda vivos. Mas nós sabemos melhor.
Malik parecia sombrio. — E você acha que… essa coisa é outro portão?
— Eu acho que pode ser algum dia. Acho que o terremoto que sentimos foi
algo muito maior do que simplesmente uma mudança na Terra. Acho que foi
uma mudança no empirium, que Eliana ainda está viva e lutando. — Navi
olhou para o olho roxo distante, pairando meio escondido nas árvores. O
medo fez cócegas em sua garganta.
— E eu acho — disse baixinho, — que se queremos ajudá-la antes que seja
tarde demais, devemos nos apressar.
10
Rielle

“Querida irmã, você pode ter ouvido dizer que estou morto, e embora
seja verdade que Merovec Sauvillier quase me matou de repente, ele não
terminou o trabalho, embora eu desejasse que tivesse. Dois amigos me
resgataram. Não, não posso dizer os nomes deles, embora você queira.
Não sou mais prisioneiro de Merovec. Eu queria te dizer isso, pelo
menos. Mas não posso voltar para casa. Eu ouvi o que aconteceu em
Âme de la Terre. Eu sei que Audric e Rielle se foram. Não pude avisá-los
a tempo. Eu falhei com eles, assim como falhei em salvar meu pai. Eu
nunca quis sua coroa. Esse sempre foi o seu desejo secreto. Você será
melhor para o nosso povo do que eu jamais poderia esperar ser.
Encontre Audric. Ajude-o como puder. Eles vão me chamar de Rei
Covarde, por abandonar você. Eles vão me chamar de Abdicador. Bem,
deixe-os. Quase morrendo, percebi que o lar nunca foi um lar para mim.
Agora eu escolho viver e encontrar um lugar onde eu realmente me
encaixe, por quanto tempo todos nós tivermos neste mundo cada vez
mais escuro. Sentirei sua falta, mas não lamento ter partido.”
— Carta codificada do Rei Ilmaire Lysleva para sua irmã, Ingrid,
datada de novembro, ano 999 da Segunda Era

Corien encontrou Obritsa quase imediatamente, prendendo ela e seu guarda


no lugar com sua mente. Mas nos breves momentos após sua fuga, ela viajou
mais de cem milhas.
Eles teriam que recuperá-la a pé.
Por três dias, Corien ficou em silêncio enquanto viajavam pela paisagem
montanhosa e arbustiva de Vindica, seus penhascos e cânions, suas planícies
cortadas por rios finos. Seu ritmo era implacável. Ele mal falava com Rielle;
quando o fez, foi em comandos cortados.
Venha aqui.
Ande mais rápido.
Me beije.
Ele manteve sua promessa; ele já não ocultava seus pensamentos. Quando a
puxou contra seu corpo no escuro, Rielle agarrou seu colarinho e encontrou
sua boca com a dela.
Quando o obedeceu, foi porque ela quis obedecer.
Então, no quarto dia, encontraram Obritsa.
Rielle soube assim que abriu os olhos de um sono agitado de duas horas.
Pararam de correr durante a noite apenas quando Rielle, exausta, tropeçou em
uma rachadura no chão e quase caiu de um caminho ao lado do penhasco.
Agora, enrolada no chão de uma caverna rasa na montanha, abriu os olhos
assim que Corien parou de andar.
— Levante-se. — Ele era selvagem, seu cabelo caindo em mechas oleosas.
Ele puxou Rielle de pé. — Eles estão perto.
— Solte-me. — Ela arrancou o braço de seu aperto. — Eu posso andar
sozinha.
— Então vá em frente. E observe onde você pisa. — Seus olhos claros
brilhavam ao luar e ele exibia um sorriso duro. — Eu a tenho. Ela não pode
se mover. Eu tenho os dois.
Rielle lutou para acompanhar o passo dele, com cãibras nas laterais do
corpo. Ele estava escondendo suas intenções dela, e a expressão em seu rosto
a alarmava.
Encontraram Artem primeiro em um aglomerado de árvores torcidas pelo
vento. Em seu estômago, membros tortos. Vivo, presumiu Rielle, mas
certamente sem se mover. O pacote contendo os receptáculos havia caído e se
dividido. O escudo de Marzana cintilava prata; o martelo de Grimvald
zumbiu baixinho na terra.
Atrás dele estava Obritsa. Corien a segurava com sua mente, mas ela ainda
estava rastejando lentamente, como se se movesse através de piche. As
lágrimas escorreram por seu rosto com o esforço. Seu rosto estava magro,
seus lábios rachados. Rielle percebeu, assustada, que a garota devia ter ficado
presa nesta clareira por dias, rastejando e desesperada, tentando escapar do
aperto de Corien.
Ele caminhou em direção a Obritsa, agarrou seu cabelo branco emaranhado
e a colocou de pé. Ela não gritou. Em vez disso, deu uma joelhada na virilha
dele, retorcendo-se de seu aperto. Isso o assustou; Rielle percebeu sua
surpresa. Observou com espanto enquanto a garota tirava uma faca grosseira
de sua bota – um pedaço de pedra denteada afiada em uma lâmina. Obritsa
golpeou Corien quando ele se lançou. A faca cortou seu peito. Ele rugiu de
fúria e deu um tapa nela. A garota caiu no chão. Sua faca voou para as
árvores, e ela lutou para alcançá-la.
Corien a encontrou primeiro.
Ela desmaiou com um grito. Seu pequeno corpo se contorceu na terra como
um peixe na praia.
— Você pensou que poderia fugir de mim — disse Corien, agachando-se
sobre ela. — Você pensou que poderia me vencer.
— Sim, — Obritsa engasgou. — Por três dias eu venci você.
O rosto de Corien se contorceu de fúria. — Não preciso tocar em você para
machucá-la, mas intensifica o sentimento. — Ele baixou a mão até o rosto
dela, pressionando sua bochecha na terra. — Você não concorda?
Os gritos de Obritsa eram animais, ininteligíveis. Um gemido baixo soou à
esquerda de Rielle – Artem, ainda imóvel no chão, um gemido suave de
angústia foi a única coisa que conseguiu soltar enquanto Obritsa se contorcia.
O som era tão patético que envergonhou Rielle. E se Corien continuasse,
mataria a garota. Eles ficariam presos aqui – onde quer que aqui fosse – e
teriam que proteger secretamente o transporte por meio de coerção,
manipulação e assassinato. Possível, mas confuso.
Rielle estava cansada demais para confusões, e a visão das pernas de
Obritsa chutando, suas unhas arranhando o chão enquanto tentava se afastar
de Corien, revirou o estômago de Rielle. Um sentimento desesperado a tocou
– uma sensação de estar presa, de estar enjaulada – e percebeu que o medo de
Obritsa estava saindo dos pensamentos de Corien para os dela.
A rainha Kirvayan era uma pirralha enfadonha, mas essa não era a maneira
de puni-la.
Rielle deu um passo à frente. — Solte-a.
— Oh, mas ela fugiu — Corien disse docemente. — E deve ser punida.
— Você vai puni-la até tirar sua vida, e então não teremos um marque para
nos ajudar. Solte-a agora.
— Como um cão travesso, ela saiu correndo e nos fez correr atrás. —
Corien estalou a língua. As costas de Obritsa arquearam, seu grito estalando
com soluços.
— E é sua culpa que ela tenha conseguido fugir — Rielle apontou.
Os gritos de Obritsa diminuíram para choramingos horríveis sufocados.
— Solte-a — ordenou Rielle.
Corien resmungou uma maldição angelical, mas não cedeu.
— Tudo bem — ela disse bruscamente. — Seu idiota.
Um movimento de seu pulso e Corien voou de volta por entre as árvores.
Ele atingiu uma espinha primeiro, então caiu em uma cama de vegetação
rasteira emaranhada.
Tonta, Rielle parou perto de Obritsa enquanto a garota vomitava na terra.
Artem, com a respiração difícil, empurrou-se sobre as mãos e os joelhos.
— Korozhka — ele ofegou, depois falou com a garota em Kirvayan
enquanto se arrastava em sua direção. Rielle sabia o suficiente do idioma para
traduzir: Minha rainha, meu querido coração, estou aqui. Se você vive, eu
vivo. Se você morrer, eu não existo mais.
Diante da ternura em sua voz, uma pontada indesejável sacudiu Rielle.
Uma porta dentro dela destrancou e cedeu, e uma enxurrada de imagens
reivindicou sua visão.
Ela se viu em Baingarde, dormindo pacificamente em sua cama com Audric
à sua esquerda e Ludivine à sua direita. Membros esparramados sobre
travesseiros. Audric roncando. As pálpebras de Ludivine inquietas com
sonhos. Eles eram jovens. Era uma coisa que eles costumavam fazer na
infância – entrando furtivamente no quarto um do outro, lendo livros e
jogando, comendo bolos roubados da cozinha até adormecerem em uma pilha
como um bando de cachorrinhos cansados. Foi antes de Ludivine morrer,
antes que um anjo tomasse seu lugar. Antes dos julgamentos. Antes de
Corien.
Rielle congelou, vendo, mas não vendo o abraço de Artem e Obritsa –
Artem alisando o cabelo com mechas sujas de Obritsa, Obritsa sussurrando
ferozmente, entre lágrimas, contra seu colarinho.
O corpo de Rielle estava lá na selva de Vindica, mas de repente sua mente
estava em casa em Celdaria.
Outra visão veio. Ela estava jogando snaps em uma mesa pegajosa na
taverna de Odo. Lá estava Audric, perdendo alegremente, seus cachos úmidos
pelo calor e seu sorriso largo. E havia Ludivine – um anjo agora, embora eles
não soubessem – inclinando-se para perto, dando um beijo na bochecha de
Rielle.
Rielle se sacudiu, afastando-se de Obritsa e Artem.
Ludivine finalmente a encontrou.
— Vá embora — sussurrou Rielle. — Eu não quero você aqui.
Em resposta, outra imagem apareceu: ela mesma na loja de Garver Randell,
ouvindo pacientemente enquanto o menino Simon lhe ensinava os nomes dos
tônicos engarrafados dispostos nas prateleiras de seu pai.
E outra: ela mesma, descalça, descansando em seu terraço, aninhada na
barriga de Atheria com um livro nas mãos.
E outra: ela mesma na cama de Audric. Lençóis emaranhados em torno de
suas pernas, sua pele rosada com os beijos de Audric, seus dedos enterrados
em seus cachos.
— Pare! — Rielle se virou e procurou nas árvores. — Saia de perto de
mim! Eu não quero você aqui! Eu te deixei!
Venha para casa, veio a voz de Ludivine, distante e distorcida. Rielle podia
sentir a distância entre elas, como era difícil para Ludivine formar palavras.
Por favor, Rielle. Venha para casa para nós. Venha para casa, para mim.
— Nunca — disse Rielle, a palavra um soluço sufocado. Ela cambaleou
para longe da Ludivine que não estava lá. Ergueu as mãos para afastar a
imagem de si mesma sorrindo sonhadoramente para Audric. Tocando seu
rosto. Trazendo-o para um beijo.
— Eu nunca vou voltar — Rielle sussurrou. Ela se apoiou com força contra
uma árvore, olhando para a escuridão desta terra que ela não conhecia.
Você anseia por casa.
— Eu não tenho casa — Rielle estalou. — Eu sou um monstro. Você não se
lembra? ‘Você é o monstro que Aryava predisse. Uma traidora e mentirosa.’
Audric estava zangado e com medo. Ele se arrepende de dizer essas coisas.
Ele não acredita nelas. Os pensamentos de Ludivine estavam ficando mais
fortes, mais frenéticos. Rielle, ele ainda te ama. Ele quer te ajudar.
As lágrimas de Rielle transbordaram. Seus dedos cravaram na casca áspera
da árvore. — Eu não preciso de ajuda. Eu fiz minha escolha. Respeite isso e
me deixe.
Uma pausa. Ainda não contei a ele sobre o bebê, Ludivine disse baixinho.
Não é meu lugar. Eu disse que não faria e não disse.
O bebê.
Uma onda de choque varreu Rielle. A última das memórias que Corien
escondeu dela de repente foi lavada e limpa, cintilando como um diamante
em sua mente.
Espontaneamente, sua mão esquerda foi para a barriga. Ela sempre tinha
um pouco de gordura ali, mas agora era mais pronunciada. Com clareza
nauseante, ela entendeu o enjoo que a atormentava, a sensação desconfortável
de seu corpo inchado.
Oh, Rielle. A voz de Ludivine era gentil. Você esqueceu?
Rielle lembrou-se da menina na montanha, meses atrás – a jovem que dizia
ser sua filha. Elas lutaram. Ela havia dito que seu nome era Eliana.
Rielle se afastou da memória e balançou a cabeça para clareá-la. Uma
mentira, ela se lembrou. Algum truque de Corien. Não significou nada.
Em seguida, um crack na clareira. Movimentos embaralhados.
Rielle se virou e sacudiu o braço no ar, derrubando Artem e Obritsa. Eles
ficaram atordoados nas árvores a uma dúzia de metros de distância. Uma
tentativa de fuga de curta duração.
Não esqueci de nada, Ela não tinha mais voz para falar em voz alta.
Lembro-me de cada mentira que você já me contou, Lu, de cada mentira que
você me convenceu a contar. Você não nos disse que era um anjo até que se
alinhasse com a imagem que você queria pintar para o povo celdariano –
uma imagem minha como uma salvadora e ressurreicionista. Você não me
contou a verdade sobre como os santos enganaram os anjos no Abismo
porque não queria que eu desconfiasse de você ou temesse que estivesse me
manipulando para ajudar em algum tipo de esquema vingativo em nome de
seu povo.
Rielle estava tonta de raiva. Ela empurrou cada pedaço disso para a
presença de Ludivine, o que fez sua cabeça latejar, pois estava atacando sua
própria mente. Você me disse para mentir para Audric, e menti, e odeio você
por isso quase tanto quanto a mim mesmo. Você é uma cobra e uma covarde.
Eu odeio você.
Uma batida de silêncio. Então Ludivine falou. Você está mentindo, querida.
Rielle invadiu as árvores e encontrou Corien imóvel e ofegante onde ela o
havia jogado. Impaciente, ela passou a mão por seu corpo. Ele gritou uma
maldição quando sua coluna voltou violentamente para o lugar.
— Pare ela, por favor — Rielle sufocou, ajoelhando-se ao lado dele. — Ela
está na minha cabeça. Eu não a quero lá.
Rielle, não, espere [...]
Mas então Ludivine se fora. Em seu lugar havia uma limpeza calorosa bem-
vinda. Uma porta trancada. Uma mente limpa.
Rielle afundou nos braços de Corien e fumegou, estremecendo, deixando-o
acariciar seus cabelos e sussurrar palavras angelicais para ela. Ishkana, minha
amada. Daeleya-lira, meu coração, você está segura.
Mesmo enquanto ele a acalmava, a dor asssentou-se com força em sua
garganta, como se alguém a tivesse parafusado no lugar. No entanto, ela
estava tonta de alívio e uma alegria viciosa.
— Eu nunca vou voltar — sussurrou. — Eu não tenho casa.
— Sua casa é aqui, comigo — Corien disse, sua boca contra seu cabelo. —
Sua casa é onde quer que estejamos.
Mas havia um vazio nela, que Corien ainda não tinha sido capaz de
preencher. Com o eco de Ludivine fresco em sua mente, as memórias de casa
agarraram-se rapidamente – a risada calorosa de Audric, a suavidade de
Ludivine, os cheiros de canela na cozinha e a neve da montanha nas asas de
Atheria. Cerveja e batatas fritas na taberna de Odo. O doce perfume floral dos
whistblooms em torno do Holdfast. Fumaça de vela e incenso de oração, rico
e inebriante, no escritório de Tal.
— Nós dois juntos — Corien insistiu. — Juntos, Rielle. Isso é tudo o que
importa.
Mas Rielle sabia – e ele também, ela podia sentir – que por mais que ambos
quisessem que fosse o suficiente, não era.
Ainda não.
Primeiro, teria que deixar esta nova vida estranha, sua solidão, a tristeza
ainda doendo dentro dela, terminar de partir seu coração.
E então, teria que reconstruí-lo.

•••

Cinco dias depois, estavam em um navio de abastecimento roubado,


navegando para o sudeste através do Mar da Namíbia.
Corien convenceu sua tripulação a massacrar uns aos outros, poupando
apenas o suficiente para se livrar dos corpos dos outros e manter o navio à
tona depois. Eles percorriam suas tarefas com olhos cinzentos e cegos –
cuidando das velas, manobrando o leme, limpando o convés do sangue de
seus companheiros.
Rielle aninhou-se nos aposentos do capitão, um cobertor de lã áspero
enrolado firmemente em torno dela. Eles estavam em busca do receptáculo
mais próximo – a flecha de São Ghovan. Por meses, Corien esteve rastreando
os Obex Venteranos, os antigos guardiões que juraram proteger o
receptáculo. Eles haviam abandonado seu posto habitual e, em vez disso,
agora viajavam em um ritmo obsceno pelo mundo, nunca parando por muito
tempo, usando marques para pular de um lugar para outro.
Semanas antes, sua trilha havia terminado abruptamente no continente sul
da Patria, que séculos antes fora o coração do império angelical. Por semanas,
os Obex ficaram no mesmo lugar. Se escondendo. Esperando.
Os Obex havia exaurido seu poder e energia? Estariam eles presos, com
seus postos de trabalho esgotados e prontos para fazer uma desesperada
resistência final nas ruínas de Patria?
— Ou é algum tipo de armadilha? — Corien havia meditado dois dias
antes, enquanto estava deitado na cama do falecido capitão com Rielle
enrolada ao seu lado. — Eles sabem que eu os estou rastreando? Eles estão
planejando uma emboscada?
Ele riu da ideia, e Rielle, cansada, enjoada, sorriu fracamente contra sua
manga. O som suave de sua risada era uma raridade deslumbrante. Ela se
agarrou a isso.
— Espero que tentem uma emboscada — disse, acariciando
preguiçosamente a curva de suas costas. — Não seria divertido, meu amor?
Em sua voz, ouviu o que ele esperava dela: se os Obex estava mesmo à
espreita, planejando uma emboscada, ele queria que Rielle os matasse antes
que tivessem a chance de atacar. Dissolva-os. Queime-os.
Ele queria que ela os desfizesse.
E eu vou assistir você, Corien sussurrou em sua mente. Minha gloriosa
rainha, queimando nossos inimigos onde eles estão. Pegando o que é nosso.
Começando nossa grande conquista.
Agora, no chão, Rielle enrolou o cabelo comprido em um nó na nuca e o
segurou na mão. Ela estava cansada demais para pensar em desfazer alguém
no momento. Sua gravidez era uma doença; suas juntas doeram e seu
estômago embrulhou.
E sua mente não se aquietava. Mesmo através da porta que Corien fechou e
trancou duas vezes, Ludivine persistia. Ela sussurrava e adulaba. Enviou
carinhos e tênues fios de memória.
Rielle apertou as palmas das mãos contra as têmporas em círculos
apertados. — Lu, vá embora.
— Se você quiser vê-la — disse uma vozinha do outro lado da sala, — eu
posso mandar você até ela. Não todo o caminho de uma vez, é claro, mas
eventualmente. Seria um começo. Talvez ele não me atacasse, se você
estivesse comigo.
Rielle ergueu a cabeça, olhando com os olhos turvos.
Amarrada no canto oposto, a garota-rainha Obritsa encontrou o olhar de
Rielle. Foi a primeira vez que ela falou desde que Corien levou Artem para
baixo do convés, logo depois que reivindicaram o navio como seu. Onde a
guarda Kirvayan era mantida e que jogos Corien estava jogando com sua
mente, Rielle não sabia.
— Não é isso que você quer? — Obritsa continuou. — Ver Lady Ludivine?
Ver os dois? Afinal, você não teve tempo de se despedir de maneira
adequada.
Rielle fechou os olhos. — Eu não queria dizer adeus.
— Eu vi você na noite de seu casamento. Você ficou arrasada. Havia
agonia em seu rosto. Você não queria deixá-los, mas você o fez. Você sentiu
que não tinha escolha.
— Fiquei feliz em deixá-los — Rielle retrucou, pressionando os dedos
contra a testa. Tempestades em miniatura de poder estalaram entre os nós dos
dedos. — Eu deveria ter feito isso antes.
— Você se esquece de que visitou meu palácio, Lady Rielle — disse
Obritsa. — Eu vi todos vocês juntos. Eu vi você com o Príncipe Audric. Rei
Audric, agora. O amor entre vocês não era uma mentira.
O coração de Rielle batia forte em seus ouvidos. — Nosso amor não era
uma mentira antes — ela disse duramente. — Agora, é.
— Se você diz, suponho que seja verdade.
— Eu poderia desintegrar você com um estalar de dedos, e você sabe disso.
Considerando isso, parece estranho que você insista em me provocar.
Se Obritsa sentia medo, Rielle não conseguia perceber. As sombras sob os
olhos cansados de Obritsa faziam seu rosto parecer afundado, mas sua
postura era impecável. Ela era uma espiã, Rielle sabia – uma arma plantada
no trono Kirvayan por revolucionários determinados a derrubar a classe
dominante elemental. E agora ela era prisioneira de um anjo.
Rielle desviou o olhar. A garota era um trunfo, nada mais. Ela não merecia
admiração nem piedade.
— Ele está ocupado, talvez até distraído, mas não ficará por muito tempo
— disse Obritsa calmamente. — Se você quer ver Ludivine e Audric
novamente, você deve agir rapidamente, e você sabe disso.
Rielle levantou-se vacilante, odiando a nova gordura de seu corpo. Os
pensamentos da criança crescendo dentro dela surgiram amargamente, mas
ela lutou contra eles. Não conseguia pensar sobre a vida que estava crescendo
dentro dela ainda, nem o perigo que poderia representar. Ela não conseguia
pensar em como estava furiosa com Corien por esconder a verdade sobre seu
filho, mesmo depois de ter prometido não teria mais mentiras. Ele havia se
desculpado; ela tinha aceitado. Isso deveria ter sido o suficiente.
Rielle começou a andar. Corien estava no convés, supervisionando sua
nova tripulação de olhos cinzentos. Ela sabia que mesmo enquanto ele
trabalhava, sua mente estaria em outro lugar, em mil lugares diferentes em
todo o mundo e nas profundezas. Era possível que, agora, neste momento e
talvez por mais alguns, ele se distraísse e não olhasse para os aposentos do
capitão, onde as palavras de Obritsa permaneciam nos ouvidos de Rielle e
uma semente de dúvida começou a brotar lentamente em seu coração .
Mas a garota estava certa; a qualquer momento, ele voltaria. Em um
instante, poderia alcançá-la e ouvir tudo o que diziam.
— Levamos semanas para viajar até aqui — disse Rielle calmamente. —
Eu não seria capaz de chegar a Celdaria e voltar antes que ele percebesse que
tínhamos partido.
— Não, você não seria — concordou Obritsa.
— Ele nos encontraria antes que pudéssemos ir muito longe.
— Provavelmente.
— E nos punir. Você acima de tudo. — Ela soltou um suspiro afiado. —
Que ideia estúpida. Você é estúpida por sugerir isso.
— Sem dúvida. — Uma batida de silêncio. — Mas não valeria a pena
tentar?
Rielle respirou lentamente pelo nariz, lutando para manter a calma
enquanto os nervos borbulhavam em seu peito, subindo cada vez mais.
Valeria a pena tentar sair? Ela se imaginou de volta a Celdaria, nos
corredores familiares de Baingarde. Ela poderia confrontar Audric, saber com
certeza que ele estava vivo e bem. Exigir desculpas pelo que ele disse na
noite de núpcias.
Puni-lo, se ela decidisse. Rejeita-lo para sempre.
Ela poderia plantar seus pés no solo celdariano mais uma vez, cavalgar
Atheria até as encostas mais altas do Monte Cibelline e engolir o ar fresco da
montanha até seus pulmões queimarem.
Mas o que ela encontraria além disso? Que vida ela poderia encontrar lá
depois de tudo o que aconteceu?
Ela se virou para a parede próxima, pressionando as palmas das mãos
contra ela, a cabeça latejando ao mesmo tempo que o navio balançava. — Eu
não posso.
A voz de Obritsa ficou tensa de impaciência. — Você alega querer a
liberdade, e ainda assim permite a ele suas correntes. — Então, em um
sussurro urgente: — Lady Rielle, se você tivesse visto o que eu vi em sua
base no norte, as coisas que ele faz na montanha abaixo de sua fortaleza...
Então, abruptamente, Obritsa parou de falar.
Rielle se virou bem a tempo de ver a garota enrijecer. Seus olhos ficaram
vidrados e ela caiu de costas contra a parede.
A porta se abriu e Rielle correu em sua direção, encontrando Corien na
soleira com um beijo.
— Eu quero me livrar deles — disse sem fôlego, sua boca contra a dele, —
assim que tivermos o receptáculo e o levarmos para… como você chama
isso? Sua base?
— A Cordilheira do Norte — disse, a voz plana, não respondendo ao toque
dela.
— Sim. Assim que chegarmos lá, chegarmos em casa, podemos nos livrar
dela? — Ela gesticulou para Obritsa. — Podemos encontrar outra marque. Eu
não gosto desta. A visão dela me repele. Uma coisinha tão magricela.
Era uma mentira lamentável. Obritsa era obviamente bonita, e Corien sabia
que Rielle pensava assim.
Seus dedos se enrolaram em sua cintura. Seus lábios pairaram sobre os
dela. — Seu vestido está ficando mais apertado. Teremos que encontrar um
novo para você.
— Vários novos, por favor? Rendados e de veludo. Vestidos que fiquem
bem na minha pele. — Rielle passou as mãos pelo torso dele, parou no cinto
e se abaixou. Ele respirou fundo. Aquilo era novo, um lugar que ela havia
tocado na paisagem dos sonhos de suas mentes, mas nunca na realidade. Seu
corpo vibrando com o nervosismo, ela se inclinou mais perto e sussurrou
contra a pele acima do colarinho dele. — Coisas que pareçam boas quando
você as tirar de mim.
Ele pegou seu pulso, beijou seu pulso acelerado.
— Fique ao meu lado, Rielle — disse ele, — e você terá tudo o que deseja.
Um arrepio de medo tocou sua pele. Ele sabia que ela estava falando com
Obritsa; ela percebeu isso no momento em que ele entrou na sala.
Ela sorriu para ele, fingindo que ambos não sabiam que ela tinha tido a
chance de escapar dele e esteve perto de aproveitá-la.
Fingir que sabia exatamente o que queria e que era tão simples quanto o
beijo com que agora o reclamava.

•••

Depois de uma semana no mar, chegaram à enorme ilha de Patria, um país de


exuberantes florestas tropicais, planícies altas e altas montanhas vulcânicas.
Antigamente, ela fervilhava de anjos.
Agora, era uma terra linda em sua desolação, ecos de luxo espalhando
poeira em todas as ruas abandonadas. Largas praças de mármore rachado,
torres em espiral cobertas por cobre que se tornou verde e preto, bairros de
casas senhoriais com telhados de ardósia e prédios de apartamentos
desmoronados com imponentes terraços com colunas, todos dispostos em
grades impecavelmente projetadas. Asas de bronze e marfim, telhados
pontiagudos, marcos de rua, jardins crescidos.
Mas nos séculos desde a derrota dos anjos, a terra devorou todas as
construções. Vinhas verdes brilhantes com flores brancas de aspecto voraz
espalhavam-se dos pátios. Árvores pretas retorcidas subiam por tetos de vidro
estilhaçados. No coração de um bairro iluminado pelo sol ficava uma
biblioteca cavernosa, com as prateleiras vazias e o chão cheio de livros
podres.
— A Cidade dos Céus — Corien anunciou quando cruzaram a porta da
biblioteca. Acima, o teto era uma tapeçaria quebrada de vidro colorido. — O
coração do império angelical. Foi aqui que o empirium ergueu o primeiro
anjo do pó e soprou o presente da longa vida em seus pulmões antes de enviá-
la para viver entre as nuvens.
Rielle se afastou dele, sua garganta subindo. Ela conhecia essa história
muito bem. Muitas vezes, Audric tinha lido para ela de sua coleção favorita
de lendas angelicais. Mesmo agora, podia ouvir sua voz quente e rica moldar
as palavras, imbuindo-as com o ritmo da música.
Corien se virou bruscamente para olhá-la.
Seus olhos se encontraram, uma centena de palavras guerreiras em sua
língua.
Então os Obex os encontraram.
Na verdade, era uma emboscada, exatamente como Corien esperava, e uma
emboscada patética. Assim que a primeira flecha voou – zunindo por trás do
parapeito pontiagudo de uma torre de vigia em ruínas adjacente à biblioteca –
a exaustão de Rielle desapareceu e seu instinto explodiu.
Depois, não se lembrava de matá-los. Seus rostos, como haviam encenado o
ataque, onde se esconderam, o que vestiam, quantos eram, quantos deles
eram humanos e quantos eram marques empregadas pela Obex – Rielle não
sabia disso e não se importou em saber.
Ela sabia apenas que havia armas voando contra eles e que era hora de
matar.
Tudo acabou em instantes.
Momentos gloriosos e ardentes durante os quais não conseguia sentir nem
as bordas de seu próprio corpo nem a terra sob seus pés. Seu poder estava
esperando por este momento, fermentando sob sua pele enquanto dormia e se
preocupava; enquanto se amontoava, miserável e enjoada, no navio roubado;
enquanto se escondia dos fragmentos tenazes da voz de Ludivine em sonhos
febris da criação de Corien.
Estava esperando há semanas, um animal andando de um lado para o outro
em sua gaiola, e quando se libertou dela, a explosão de poder derrubou
Obritsa e Artem no chão. Rielle se lembrou da escuridão surgindo e tomando
conta dela, substituindo seus olhos e pulmões por ouro.
Mais tarde, ela voltou lentamente. Em suas mãos e joelhos, em um chão de
mármore quebrado, ela ofegava. Um sol vermelho de sangue a rodeou, seus
raios úmidos e brilhantes. Não havia corpos; flocos de osso flutuavam
lentamente pelo ar como neve. Um zumbido encheu os ouvidos de Rielle, e
ela não conseguia determinar se vinha de algum lugar longe ou do fundo de
suas costelas.
Ela se atrapalhou com cacos de mármore despedaçados, torrões de terra
fresca. Sua mão pousou em um longo e pesado pedaço de metal, e quando ela
ergueu a flecha de Ghovan dos escombros, sua visão clareou.
Ela se sentou em um quadro de destruição total.
A biblioteca havia sumido, suas ruínas demolidas. Pilhas de poeira e pedra
foram espalhadas pelas fundações desenraizadas como montes de neve.
Cachos de fumaça negra coroaram cada um dos dedos de Rielle. Embalou a
flecha em seus braços e sorriu, sua pele zumbindo. Sentiu as cordas da flecha
de São Ghovan se encaixarem no lugar enquanto se conectavam ao escudo de
São Marzana, ao martelo de São Grimvald, ao cajado de São Tokazi. Uma
teia de poder que a alimentava e pintava sua pele com veias de cores
brilhantes.
Ela ouviu algo pesado sendo arrastado e olhou para cima para ver Corien
ajoelhado a alguns passos à sua frente. Ele encontrou um corpo, ainda intacto
– um dos Obex, ela assumiu. Ela havia deixado passar um.
Corien agarrou seus pulsos antes que ela pudesse destruí-lo.
— Espere — ele disse, sua voz vindo através de um mar agitado de cores.
Ela piscou e piscou novamente. Talvez sua visão não fosse tão clara afinal.
Ela podia ver o preto e branco da forma familiar de Corien, o tênue brilho do
vermelho revestindo o chão, mas, além disso, tudo era ouro – ouro atrás de
seus olhos, ouro sob suas unhas, ouro nos cantos da boca de Corien.
Ela se lançou para frente e o beijou, gananciosa e cheia de fogo. Ela
mordeu seus lábios e subiu em seu colo. Ela estava faminta. Em sua mão
direita, segurava a flecha de São Ghovan.
— Rielle, espere, me escute. — A voz de Corien flutuou das nuvens.
Gentilmente, ele se separou dela. — Eu preciso que você tente algo para
mim. Agora, enquanto você ainda está quente e cantarolando. Minha linda
garota. — Ele deu um beijo em sua testa. Sua voz era urgente, vibrando de
excitação. Ou ela mesma estava vibrando? O mundo inteiro estava vibrando,
e ela tinha feito isso.
Sorrindo, tocou o rosto dele. Ela já havia se embriagado com vinho e
cerveja, mas isso não era nada comparado a estar bêbada com o êxtase de seu
próprio poder. Ela sentiu, remotamente, que nunca tinha sido tão bom antes,
nunca tão ansioso ou rápido – e nunca tão desorientador. Como de repente
estourou; com que violência isso a dominou.
Ela apoiou as palmas das mãos no chão. — O que é que você quer? — Ela
riu da forma absurda de suas mãos na terra. — Qualquer coisa. Eu posso
fazer qualquer coisa.
— Eu sei que você pode. — Corien empurrou o corpo do Obex para mais
perto dela. — Eu tenho amigos aqui. Muitos deles. Você pode vê-los?
Ele enviou-lhe um pensamento, e ela sentiu como era hesitante, quão
cuidadoso. Estava sendo cuidadoso com ela de uma forma que nunca tinha
sido antes.
Ele estava com medo.
Iria perguntá-lo sobre isso mais tarde, mas no momento estava fascinada
com os pensamentos que ele estava enviando a ela. Ela percebeu uma nova
presença – uma dúzia deles, dezenas deles, todos vagando nas proximidades.
Consciências. Poderosos.
— Anjos — ela soltou, olhando ao redor maravilhada. — Há anjos aqui.
O empirium concedeu uma visão que seus olhos nunca possuiriam. Formas
fracas flutuavam no ar, turvas e pálidas, sem forma e angustiadas. Suas vozes
fervilhavam, sussurrando. Eles não tinham mãos ou braços, mas ela os sentiu
estendendo-se para ela, implorando. Eles careciam de coesão. O ouro
empírico brilhando dentro deles estava pálido, gasto.
— Aqueles que escaparam do Abismo — Corien estava dizendo
calmamente, — mas que não são fortes o suficiente para serem soldados, eu
enviei para este lugar, para a Cidade dos Céus, para se esconder e esperar.
Por você, minha maravilha viciosa. — Ele fez uma pausa, uma batida tensa e
expectante. — Você vai tentar? Agora, por mim? Seu poder é tão vital agora
que mal consigo… Rielle, mal consigo olhar para você. Você é brilhante.
Você está brilhando.
— Eu sou a Desfeitora — ela disse simplesmente, gentilmente. Uma
explicação. — E eu sou a Assassina de Reis. Mas vocês não devem ter medo
de mim. — Ela anunciou isso para o ar. Ela se sentiu sedentada em sua
própria pele, felizmente calma. — Quem entre vocês é ousado o suficiente
para ser o primeiro anjo a renascer? Avance. Venha até mim.
Uma mente se aproximou, curiosa e com medo, tentando mascarar seu
medo. Uma criança, Rielle pensou. Um menino. Uma visão da verdade veio a
ela: como um anjo, durante a Primeira Era, essa criança tinha sido uma
criatura de pele de alabastro, cabelos que caíam em ondas ruivas sobre seus
ombros, olhos âmbar salpicados de verde brilhante. Quando o Abismo o
tomou, arrancou seu corpo dele, ele tinha apenas décadas de idade, muito
jovem para um anjo.
— Malikel — Rielle sussurrou. — Não tenha medo. Renasça.
Sua visão brilhante pelo empirium a dominou. Isso mostrou a ela que o
menino, Malikel, era em seu núcleo nada mais do que poeira estelar. Milhões
de orbes giratórias, cada uma mais brilhante do que o sol, cada uma
conectada a todas as outras – e ao solo em que Rielle se ajoelhou e à forma
cada vez mais escura do cadáver a seus pés. Era uma abominação aquele
cadáver. Ela odiou a visão disso. Por que ficaria boquiaberto diante dela
assim, tão morto e escuro, tão sem vida, quando poderia facilmente ser
restaurado?
Ela trabalhou rapidamente. Seu poder era infinito, fermentando como uma
tempestade. Ela seguiu seu alcance até Malikel, puxando os fios de sua
mente. Alguns fios próximos, escorregadios e indescritíveis, ela não podia
tocar, ainda não – os fios conectando este lugar a aquele lugar, os fios
conectando os momentos à frente dela aos momentos atrás.
Sombriamente, ela pensou em Obritsa. Não era justo que a garota gozasse
de privilégios que Rielle não podia.
— Algum dia eu irei viajar para qualquer lugar e em todos os lugares —
murmurou enquanto tricotava os fios que ela podia tocar – a fisicalidade do
cadáver, a ansiedade da mente de Malikel – e sonhava com os fios que ela
não conseguia. — Algum dia, vou viajar até o fim de tudo e depois voltar ao
início. Algum dia, marques cairão de joelhos com inveja de mim, pois eu os
superarei.
— Concentre-se, Rielle — disse Corien com urgência, sua voz próxima e
distante ao mesmo tempo. — Você está escurecendo rápido.
E ele estava certo. Algo estava mudando tão rapidamente que a fez vacilar.
A mente de Malikel, todos os seus pensamentos antigos, estavam meio
ligados a este cadáver, este corpo com sua luz brilhante. Um caminho
trançado os aproximou lentamente, uma conexão do próprio empírio – anjo
com cadáver, mente vibrante com carne morta. O início de uma nova vida,
trabalhada por sua própria vontade.
Mas então os dedos de Rielle se prenderam em um nó empírico – um
obstáculo no tecido de energia que ela havia tecido – e ela tropeçou em seu
trabalho. A energia que veio sobre ela quando ela matou os Obex Venteranos
sangrou rapidamente dela. Era como se ela estivesse segurando um palácio
com suas próprias mãos, levantando-o bem alto no ar, e então seus músculos
cederam sem aviso e toda a estrutura desabou. Os nós se desfizeram; os fios
de mente a carne e de carne a mente escorregaram de suas garras.
Ela não ouviu Malikel gritar, pois ele não tinha boca, nem voz, mas ela
sentia seu pânico, seu terror e sua dor. Não era só que os pontos que ela havia
criado estavam se desfazendo.
O próprio Malikel estava se desfazendo.
Ela sentiu a essência de sua mente se desenrolar. Algo no âmago de sua
consciência se abriu e se despedaçou, uma detonação. Seus pedaços voaram,
seus pensamentos foram reduzidos a puro terror, e então ele se foi.
Rielle sentou-se com força sobre os calcanhares.
O cadáver fumegou a seus pés, agora uma poça de sangue, ossos e órgãos
perfurados. Uma constelação de cortes crepitantes pontilhava o que um dia
fora seu torso, e através dos cortes brilhou uma luz dourada, desaparecendo
rapidamente.
Rielle ergueu os olhos para Corien através de um véu de cansaço e, quando
sua exaustão voltou, começou a entender o que havia acontecido. Os
pensamentos dos outros anjos roçaram nela, todos aterrorizados, todos
surpresos e intimidados.
— Ainda não estou pronta — disse Rielle por fim. — Eu pensei que
poderia fazer isso; eu senti como estava perto. Eu estive perto. — Ela chorou
lágrimas que não pediu, registrou uma tristeza que parecia muito longe dela
para tocar. Sua mente estava envolta em lençóis de algodão grosso. Ela queria
deitar na terra e dormir por meses. Seu nariz e boca se encheram com o
cheiro e gosto de sangue. Seus pensamentos dispararam, disparando de
desejo em desejo, e ela não sabia como acalmá-los.
Corien não disse nada. Ele a ergueu em seus braços, segurando-a contra seu
peito.
— Você precisa descansar — disse calmamente. — Verdadeiro descanso.
Temos quatro receptáculos agora. Há tempo antes de precisarmos encontrar
os outros. — Ele deu um beijo em sua bochecha e sussurrou: — Vou te
mostrar minha casa. Um lugar de assiduidade e beleza monstruosa. A água é
negra e fria, a neve infinita e limpa.
Rielle mal o ouviu. Sua visão oscilou e ela mergulhou em um mar agitado
de meia consciência. Seguindo-a estava a voz de Corien, e perseguindo isso,
uma visão: ela mesma vestida de vermelho, com uma auréola de luz. Estrelas
e luas choveram sobre suas palmas abertas, cachoeiras feitas do céu noturno.
Aos pés dela estava Corien ajoelhado, legiões de anjos atrás dele – todos
alados, todos com armaduras.
Você vai abrir o Portão, disse ele, e vai refazer o mundo.
Mas Rielle percebeu a dúvida em sua voz, o medo e a preocupação.
Enquanto espiralava na escuridão, outra voz veio até ela do oceano distante
de seu poder. Uma voz que retumbou e estremeceu. Uma voz de muitos e de
um. Ela reconheceu imediatamente. Era o preto infinito dos olhos de Atheria.
Era o rugido de seu próprio sangue enquanto observava seu dragão das
sombras lamber a bochecha do Arconte, pronto para devorá-lo. Era o
zumbido do poder em suas veias quando ela transformava o fogo em penas,
quando domava os oceanos, quando matava, matava e matava novamente.
Era a voz do empirium, e queimou suas palavras frias e impiedosas em sua
mente como uma marca da qual ela não podia escapar:
este poder é seu
você é minha
o que é meu é seu
pegue
leve-me
EU levo
Eu levanto
Eu levanto
EU LEVANTO
11
Simon

“Você acha que eu quero escrever este decreto? Você acha que eu
anseio por mais morte? Não, meu amigo. Mas você ouve como nos
chamam? Santa Katell, a Magnífica. São Grimvald, o Poderoso. E ainda
assim estamos segurando o que resta deste mundo apenas com nossas
próprias mãos cansadas. Não sei se o Portão permanecerá. Mas sei o
que vi e conheço o verdadeiro perigo dos marques tão bem quanto você.
Não podemos permitir que tudo isso aconteça novamente. O mundo não
vai sobreviver a isso.”
— Carta codificada e padronizada de Santa Katell, a Magnífica para
São Grimvald, o Poderoso, roubada dos arquivos da Primeira Grande
Biblioteca de Quelbani

Simon estava sentado em uma cadeira do lado de fora do escritório particular


do imperador, fingindo ler o livro em suas mãos.
Mas o que realmente o interessou foi a jovem sentada nervosamente em
frente a ele.
Seu nome era Jessamyn, e ela era uma aluna do Invictus – o regimento
particular de assassinos humanos do Imperador, todos eles implacáveis, todos
eles devotados à causa angelical. Ela tinha a pele castanha levemente sardenta
e uma trança elegante tingida de vermelho brilhante, que sem dúvida mudaria
em breve. O Liceu, que abrigava o quartel e os pátios de treinamento dos
Invictus, estava tão cheio de tinturas de cabelo, máscaras e fantasias quanto
uma casa de brinquedo.
Simon a estudou. Ela estava cutucando as unhas, como se sentar na sala de
recepção do lado de fora do escritório do Imperador fosse uma chatice
terrível. Mas Simon sabia melhor. Todos os agentes do Invictus eram iguais.
Ele via o brilho de suor em seu couro cabeludo. Ele via seu olhar nervoso
voar para a porta fechada do escritório, para o secretário do Imperador em sua
mesa, para os atendentes que flanqueavam as portas externas, depois de volta
para suas unhas.
Ela estava apavorada.
Como ela deveria estar.
Ele sorriu para si mesmo. Corien adoraria vê-la se contorcer.
— Você é a aprendiz do Invictus, não é? — Simon disse. — Jessamyn,
certo?
A expressão da garota azedou, mas depois se acalmou rapidamente.
Simon esperava isso. Seu professor tinha sido Varos, um assassino de quem
Corien gostava, que recentemente foi morto durante o ataque ao Festival. Por
Harkan, de todas as pessoas. Era uma pena perder um bom assassino, mas era
um conforto saber que antes de Varos morrer, ele havia conseguido se livrar
daquele idiota Venterano.
Tudo isso estava no relatório de Jessamyn. E no diário de Varos, que Simon
confiscou em nome do Imperador, havia muitas anotações sobre a própria
Jessamyn – que ela estava desesperada para se provar ao imperador. Que ela
aprendia rapidamente e atacava rápido, e que despreza seu nome humano.
O que Varos não sabia, e o que a própria Jessamyn ainda não sabia, era que
Eliana a conhecia, lutou com ela – ou pelo menos ela conheceu uma
Jessamyn que existiu, mas não existia mais.
Graças a ele.
— Sim, Jessamyn — disse firmemente. — Está correto.
Simon a inspecionou da cabeça aos pés. — Interessante que ele queira falar
com uma pessoa de tão pouca importância.
Para seu crédito, Jessamyn apenas inclinou a cabeça – embora Simon tenha
visto um músculo em sua mandíbula se contrair.
— Mesmo assim, espero poder ajudá-lo — respondeu. — Você sabe por
que ele quer me ver?
— O Imperador ouviu muito sobre você e está curioso. Ele gosta de saber
quais alunos o Liceu valoriza particularmente. Ele gostaria de vê-la por si
mesmo e expressar sua solidariedade pela morte de seu professor. Além
disso, um conselho: você não deve fazer perguntas como essa. — Simon
fechou seu livro e a olhou friamente. — Isso faz você parecer uma criança,
não uma assassina.
De dentro do escritório de Corien veio o som explosivo de vidro
quebrando.
Jessamyn ficou de pé, alcançando a adaga em seu quadril.
O secretário de olhos negros do Imperador pulou em sua cadeira, e até
mesmo Simon, que estava acostumado com essas coisas, teve que piscar para
ajustar sua visão, pois o corpo do secretário mudou e turvou, uma aura escura
se formando em torno de sua pele.
Ele saltou da cadeira. Agarrou o pescoço, o peito e os braços e soltou um
grito estrangulado antes de cambalear para fora da sala de recepção e para o
corredor. Um pouco enojado, Simon o observou partir. Não foi a primeira vez
que uma pequena perturbação abalou este secretário em particular. Ele era um
anjo forte o suficiente para segurar um corpo humano por um tempo, mas não
forte o suficiente para mantê-lo se algo o distraísse. Sua compreensão do
empirium era tênue.
Como era para todos, exceto os anjos mais fortes, desde a Queda da Rainha
de Sangue.
— Siga-o — Simon ordenou aos atendentes que esperavam. — Ele está
perdendo coesão.
Eles obedeceram imediatamente. Ele e Jessamyn estavam sozinhos.
— Uma ruptura? — ela disse baixinho depois de um momento. — Só por
estar assustado?
Simon reorganizou rapidamente os papéis abandonados do secretário. —
Ele é jovem. Eu já vi pior.
— Não é justo. — Jessamyn encarou Simon, seu queixo quadrado e seus
olhos brilhantes. — Eles não deveriam ter que viver assim, lutando corpo a
corpo. Eles são escolhidos por Deus. Eles merecem melhor…
As portas do escritório se abriram.
O Imperador ficou ali, apoiado com força contra a porta. Sua camisa branca
– mangas enroladas até os cotovelos, bainha para fora da calça – estava
encharcada de sangue.
Ele fixou seus olhos em Simon. Eles brilhavam como se lapidados em vidro
negro.
Como sempre, quando os olhos de Corien caíram sobre ele, Simon sentiu
um arrepio forte. Era o prazer que vinha de ser procurado repetidamente
como o de maior confiança do Imperador, seu mais amado.
Era o terror crescente de que Simon, depois de tudo pelo que haviam
trabalhado, continuasse falhando com ele.
— Eles não calariam a boca sobre as cruciata — cuspiu Corien. — Eu os
mantive sob controle por décadas, por séculos, e irei mantê-los sob controle
por mais décadas, se for necessário. Mas eu não terei que fazer.
Simon olhou além de Corien para o escritório e teve um vislumbre da
carnificina. Listras de tinta de sangue nas paredes e tapetes. Corpos mutilados
em uniformes pretos rasgados espalhados pelo chão como escombros. Simon
reconheceu os corpos como pertencentes a três generais angelicais. Ontem, os
generais foram encarregados de aliviar outros atualmente estacionados na
frente norte, a primeira linha de defesa do Império contra qualquer coisa que
viesse pelo Portão.
Agora, os corpos dos generais estavam arruinados no chão.
E a julgar pela expressão no rosto de Corien, os próprios anjos também não
sobreviveram ao encontro.
Simon escolheu suas próximas palavras com cuidado. Nem mesmo ele era
imune à ira do Imperador em momentos como este.
— Excelência — disse, — esta é a aprendiz do Invictus, Jessamyn, que
estava na batalha em Festival…
Não me diga coisas que eu já sei, disse Corien com uma força tão furiosa
que a dor atravessou o crânio de Simon como uma faca. Foi preciso toda sua
força para permanecer de pé e resistir a pedir desculpas. Poucas coisas
enfureciam Corien mais do que desculpas.
Em vez disso, Simon suportou a agonia e observou o olhar de Corien mudar
para Jessamyn.
— Três de meus generais têm insistido que nossas defesas contra as
cruciata são insuficientes e que logo seremos invadidos — Corien começou,
sua voz agora estranhamente calma. — Eu entrei em suas mentes covardes e
os matei, e então cortei seus corpos escolhidos em pedaços. — Ele gesticulou
grandiosamente para si mesmo. — Daí a bagunça. Diga-me, Jessamyn, o que
você acha disso?
Por um momento, Jessamyn só conseguiu ficar olhando. Então ela caiu de
joelhos e abaixou a cabeça. Suas mãos tremiam contra o chão.
— Excelência, seus generais foram tolos em duvidar de você — disse.
— Mas eles não estão totalmente errados, estão? — Corien se ajoelhou
diante dela. — Olhe para cima. Eu quero te ver. Assim é melhor. Eles não
estão totalmente errados, meus generais. Mais e mais cruciata estão abrindo
caminho através do Portão. Conseguimos matar alguns. Outros fugiram.
— Sim, Sua Excelência — Jessamyn administrou. — Isso é verdade.
Simon deu um passo à frente. Para onde Corien estava levando esta
conversa, ele não sabia, mas viu pequenas centelhas de movimento em seu
rosto pálido, como sombras de coisas que não estavam lá, e a visão o deixou
inquieto. A qualquer momento, o secretário podia voltar, e os atendentes. Os
servos poderiam chegar com o jantar destinado à refeição privada de Corien
com o almirante Ravikant – ou, pior, o próprio almirante poderia chegar mais
cedo.
Eles não podiam ver Corien assim, coberto com o sangue de seus próprios
soldados, a loucura girando como estrelas em seus olhos. A saúde do Império
dependia de sua ignorância.
Simon deu um passo à frente, sabendo com absoluta certeza o que viria a
seguir.
— Excelência — ele começou, — talvez antes do jantar, devêssemos
organizar o seu escritório…
Seu crânio se partiu, admitindo línguas de fogo negro que mergulharam em
sua garganta e puxaram sua coluna através de suas costelas.
A visão era extraordinária, tão detalhada e violenta que por um momento
Simon se perdeu e cambaleou. Ele tateou em busca de algo para se preparar e
encontrou a porta do escritório.
Dezessete anos vivendo neste palácio, e as punições de seu mestre ainda
podiam surpreendê-lo.
Você sabe melhor, veio a voz de Corien, arrependida e com pena daquele
jeito que Simon aprendeu a não confiar.
— Não me interrompa, Simon — Corien disse em voz alta. — Não gosto
de ser interrompido.
Simon respirou baixinho pelo nariz, recusando-se a engolir o ar na frente de
sua convidada. Deixe-a pensar que foi uma mera pontada de dor que ele
sentiu.
Ele observou Corien pegar o queixo de Jessamyn em sua mão. — Diga-me
o que você sabe sobre as cruciata — disse.
— Eles são bestas do Abismo — ela respondeu, sua expressão feroz com
determinação. — Eles foram informados sobre nós quando os anjos se
libertaram de sua prisão.
— Quando Rielle abriu o Portão — Corien a corrigiu.
Jessamyn corou. — Sim, Excelência.
— E quem impede as feras de invadir nosso mundo?
— Sim, Excelência — sussurrou. — Sua mente projetou as máquinas que
os derrubam quando eles entram em nosso mundo.
— A vaecordia. As armas escolhidas por Deus.
— Sim, Excelência.
— Sim, e minha mente controla essas máquinas — disse Corien — e minha
mente controla os guardas neste palácio e fala com meus generais em
Astavar, e fala com meus comandantes no Mar da Namíbia e com o adatrox
patrulhando as ruas de Orline. Minha mente percorre o mundo em busca do
Profeta. — Ele sorriu. — Minha mente é infinita. Estou além da compreensão
de qualquer pessoa que ainda vive.
Os olhos de Jessamyn brilhavam de admiração. — Sim, Excelência.
A dor havia diminuído o suficiente para Simon sentir que algo estava
errado. Ele raramente estava sozinho em sua mente. Somente quando Corien
estava imerso em seu trabalho mais profundo, ou cativado pela bebida ou
música, ou trancado em seus quartos, pensando em memórias, Simon sentiu
que a antiga mente angelical relaxou seu domínio sobre ele.
Mas estava acontecendo agora, enquanto Corien se ajoelhava no chão
diante dessa garota de olhos arregalados. Sua mente fervilhava contra a de
Simon e então desapareceu, como se alguma lâmina brilhante o tivesse
libertado. Simon viu os ombros de Corien cederem e seu sorriso vacilou, e ele
teve uma visão repentina de Corien avançando para arrancar o rosto de
Jessamyn com os dentes.
— Você está diferente, Jessamyn — Corien murmurou, inclinando-se para
perto dela. — Você está diferente do que ela se lembra. Eu gostaria de mantê-
la por perto. Acho que vai doer nela ver você. E eu gostaria de continuar a
machucá-la, até que ela não aguente. — Ele riu baixinho, tocando o rosto de
Jessamyn e depois o dele. — Até que eu não aguente mais.
Então ele a considerou por mais um momento, sua risada se acalmando. —
Na verdade, tenho uma ideia. Uma grande ideia. Veja, aí está o menino.
Remy.
Jessamyn franziu a testa. Ela lançou um olhar rápido para Simon, então
olhou de volta para Corien. — O irmão de Eliana Ferracora?
— De fato. Ele apodrece em uma cela solitária no coração de Vaera Bashta.
Você vai trazê-lo para o Liceu e ensiná-lo como Varos lhe ensinou. — Ele
sorriu, seu olhar distante. — Você o deixará frio e sem coração. Um
assassino, nada mais do que uma lâmina. E ele servirá na guarda-da-rainha, e
a cada dia que ela resistir será mais um dia olhando nos olhos do irmão que
ela ajudou a transformar em monstro.
Corien agarrou os ombros de Jessamyn e abaixou a cabeça, seus ombros
sacudindo com uma risada silenciosa. — Sim. Sim. E não haverá alívio dessa
culpa. Ela já se desespera com o que aconteceu com Remy devido às suas
ações. Logo, quando perceber o que você fez com o irmão, esse tormento vai
crescer e florescer até que ela se abra totalmente e eu possa retirar todas as
suas malditas entranhas.
Ele ergueu o olhar mais uma vez para Jessamyn. — Eu vou quebra-la. Eu
verei meu amor novamente, e então tudo será como deveria.
A expressão de Jessamyn era dura e ansiosa. — Claro, Excelência. Eu farei
o que você mandar.
Então Corien se levantou, cambaleando, a testa franzida de dor. Ele se virou
como se fosse retornar ao seu escritório, então caiu com força contra o peito
de Simon.
Simon o pegou, ajudou-o a se levantar. Ele estava murmurando duas
palavras em Lissar repetidas vezes contra a jaqueta de Simon:
Queime-os.
Simon encontrou Jessamyn olhando de seu lugar no chão. — Saia daqui. Se
você contar a alguém o que viu, arrancarei seus olhos e os alimentarei com
eles.
Jessamyn fugiu imediatamente e, depois que saiu, Simon ajudou Corien a
entrar em seu escritório e fechou a porta com um chute atrás deles. O chão nu
estava escorregadio de sangue, os tapetes inchados com ele. Evitou o corpo
que outrora pertencera ao general Bartamos e acomodou Corien na cadeira
mais próxima da lareira silenciosa.
Por um momento, Simon ficou parado sobre ele, observando-o respirar.
Corien tocou cuidadosamente as próprias têmporas, como se elas fossem se
romper com o peso de suas mãos. Não era a primeira vez que isso acontecia,
nem seria a última.
E Simon conhecia apenas uma maneira de estabilizá-lo quando sua mente
estava assim – dividida pela raiva e exaustão, envenenada por séculos de dor.
Todos os dias, mais cruciata escapava da atração do Portão. Cada dia trazia o
mundo das Profundezas mais perto do seu.
O Império precisava de um comandante, não de um louco.
Simon esperou até que ele acalmasse sua respiração, até que organizasse
seus pensamentos e se sentisse preparado para o que viria a seguir. Ele era
uma lousa, lisa e limpa. Ele era um vaso vazio, pronto para receber o que
fosse necessário.
— Você está se esforçando demais — Simon disse finalmente, mantendo
sua voz firme. — Mesmo você, poderoso como você é, não é indestrutível.
Não depois de mil anos de renascimento e conquista.
Corien riu suavemente. — Eu disse isso a ela uma vez. Eu a disse que nem
mesmo ela era invulnerável à morte. Eu lhe disse tantas coisas.
Simon olhou para as janelas, cada uma brilhando com a luz amarela do
início da noite. O almirante Ravikant chegaria ao anoitecer. Os tapetes
precisavam ser removidos, os móveis trocados, o chão esfregado.
Ele se ajoelhou diante de Corien e beijou seus dedos vermelhos, como
havia feito em quartos ainda mais escuros e sangrentos do que este.
— E, meu senhor — disse suavemente — devo salientar que você terá
dificuldade em manter seu Império leal a você se matar qualquer general que
vier ao seu escritório com uma preocupação válida.
Com essas palavras, o ar na sala mudou. Simon sentiu Corien erguer a
cabeça para olhar para ele, mas manteve a sua própria reverência. Um arrepio
de medo picou sua calma. Rapidamente, pensou naquele platô congelado de
Vindican onde Corien havia torturado sua mente pela primeira vez. Se
lembrava de acordar dias depois em ataques de agonia, sentindo como se sua
mente tivesse sido esfolada e refeita mil vezes.
Se lembrou de como Corien ficara calmo depois disso, quão gentil – terno,
até.
— O que você está dizendo, Simon? — Corien perguntou baixinho. — Que
eu não sou mais apto para governar? Que eu deveria tomar cuidado para
moderar minha raiva legítima, ou então aqueles que eu comando, que ainda
estariam apodrecendo no Abismo se não fosse por mim, se levantarão contra
mim e de alguma forma terão sucesso?
Simon balançou a cabeça. — Não, meu senhor. Eu só quis dizer que me
preocupo.
— Estranho que você diga isso — Corien meditou — pois eu me preocupo
com você. Semanas se passaram desde a chegada de Eliana e ainda
permanecemos aqui. Seu poder parece relutante. — Dedos frios, pegajosos e
rançosos, cobriram as bochechas de Simon. — Acho que precisa de um
pouco de incentivo.
E então Simon não pôde dizer mais nada, pois nas garras daquelas mãos
brancas manchadas de sangue, ele não era mais Simon. Ele era uma mente
em agonia. Era um corpo inerte no chão.
Era uma arma, desmontada pelas mãos de seu mestre.
12
Audric

“Escrevo isto pois, se eu morrer e alguém vier sobre meu corpo, saiba
onde estive e o que vi. Vaguei para o norte do lugar que já foi e não foi
minha casa, e agora entrei na cordilheira do norte chamada Villmark.
Sempre quis explorar esses picos em busca de dragões de gelo, as
antigas bestas divinas que São Grimvald montou para a batalha contra
os anjos, mas príncipes e reis não têm permissão para vagar pela selva
em busca de feras que ninguém viu em um era. Felizmente, não sou mais
um príncipe ou um rei, ou qualquer coisa, além de um homem sozinho.”
— Diário de Ilmaire Lysleva, datado de dezembro, ano 999 da
Segunda Era

Audric se esquivou da espada de Evyline. Então girou e defendeu, enviando a


lâmina de Illumenor contra a dela.
Evyline havia recomendado que lutassem com espadas de treinamento de
madeira, mas Sloane e Audric discordaram. Se Audric quisesse impressionar
as tropas mazabacianas e talvez persuadir alguns deles a se reunirem com
seus senadores antes da votação de amanhã, ele precisava se exibir
adequadamente.
Ele também precisava que o Senado Mazabatiano votasse sim em sua
petição de ajuda militar. E se Sloane pensasse que uma luta pública no pátio
do quartel ajudaria a conseguir isso, Audric o faria.
Ele só queria que Illumenor não fosse tão pesada.
Outro giro, outro golpe. Ele e Evyline dançavam em torno um do outro,
suas lâminas reluzindo ao sol da manhã. Apesar de todo o seu tamanho,
Evyline era rápida, seu jogo de pés impressionante. Ela empurrou sua espada;
Audric desviou, mas foi deselegante. Avançou sobre ele, usando o peso de
sua espada para pressioná-lo contra o chão. Ele se empurrou contra ela e se
afastou. Suas botas levantaram poeira quando girou e balançou a espada
desesperadamente para bloquear a dela.
Estava começando a se arrepender de ter recusado sua oferta de usar as
espadas de treinamento. Lutar nem sempre foi tão difícil.
Mas depois de oito semanas de luto, Audric se sentia magro e frágil, seus
músculos fracos, sua resistência erradicada. Quando disse isso a Sloane, ela
descartou suas preocupações.
— Você é o Portador da Luz — disse com um pequeno sorriso, tentando
animá-lo. — Algumas semanas na cama não arruinaram você.
Ela estava certa; ele não estava arruinado.
Ele estava, no entanto, exausto.
E Evyline era incansável. Ela balançava a espada como se não pesasse
nada, desferindo um golpe feroz sobre sua cabeça após o outro. Audric
bloqueou todos, mas apenas por pouco, e então se virou de maneira estranha
e seus joelhos vacilaram, fazendo-o tropeçar. Ele sentiu a mudança da luta e
viu nos olhos castanhos de Evyline que ela também sentia. Outra mudança
em seu peso, mais um golpe de sua espada, e ela iria vencê-lo.
Audric olhou por cima do ombro de Evyline, encontrando o olhar de
Sloane. Ela se apoiou em um pilar, os braços cruzados. Ele conhecia muito
bem a expressão preocupada que usava.
Então Evyline cedeu, desferindo um golpe desajeitado e ineficaz que
Audric desviou facilmente, permitindo-lhe recuperar algum terreno. Estava
deixando-o vencer, mas ele estava cansado demais para se importar.
Ela se esquivou, mas não rápido o suficiente. Ele girou e pegou a lâmina
dela com a sua, pressionando seu peso contra ela. O público pensaria que ele
a prendeu sob a pressão de sua espada, mas era uma mentira. Isso precisava
acabar.
— Você se rende? — ele gritou.
— Eu me rendo — respondeu Evyline, e se afastaram, respirando com
dificuldade. Evyline embainhou a espada e se curvou.
— Bem lutado, Sua Majestade — anunciou para que todos ouvissem.
Mas nenhum aplauso seguiu sua declaração, e quando Audric se atreveu a
olhar para os soldados espalhados pelo pátio assistindo a luta, seu estômago
afundou.
Dezenas se reuniram – nas janelas do quartel, nas passagens no perímetro
do pátio – e nenhum deles sorria.
Não se preocupe, veio a garantia de Ludivine, haverá outras oportunidades
para impressioná-los.
Ele resistiu ao impulso de afastá-la como uma mosca. Pedi para você não
falar assim comigo. Esta é minha mente, e não sua para entrar como quiser.
Sem outra palavra, ela se foi, e a pequena pontada de dor em seu coração o
enfureceu. Cada vez que ela falava com ele, cada vez que a dispensava, era
como ser apresentada com toda a amplitude de suas mentiras de novo: Rielle
matou seu pai, matou o pai de Ludivine, matou seu próprio pai – e tanto
Rielle quanto Ludivine tinham mantido esses segredos dele. Elas haviam
prometido apenas a verdade e então continuaram a enganá-lo.
A princesa Kamayin continuou tentando convencê-lo a perdoar Ludivine.
Precisariam dela como um aliado na guerra que viria, ela apontou.
Audric não discordou. Ele aceitaria sua ajuda quando chegasse a hora.
Mas não precisava perdoá-la.
Uma voz dos soldados reunidos gritou bruscamente uma palavra em
Mazabatian: — Traidor!
Um silêncio de choque. A palavra soou nos ouvidos de Audric como um
sino tocado.
Evyline retirou a espada e deu dois passos furiosos para a frente, fazendo os
soldados mais próximos cambalearem para trás.
— Você está se dirigindo ao rei de Celdaria — ela gritou — e você
demonstrará o devido respeito ou enfrentará as consequências.
— Está tudo bem, Evyline — disse Audric, juntando-se a ela na beira da
multidão. Ela relutantemente abaixou sua espada e deu um passo para trás
para flanquear ele. — Se alguém deseja falar comigo, pode se apresentar e
fazê-lo. Na verdade, eu agradeço.
Um momento se passou em que todos pareciam estar prendendo a
respiração. Então, à direita de Audric, uma jovem, de pele acobreada e cabelo
preto brilhante puxado em uma trança apertada, abriu caminho para frente,
seus olhos brilhantes e ferozes. Um de seus colegas agarrou seu braço,
tentando puxá-la de volta; ela se libertou.
— Meu nome é Sanya — anunciou, — e eu gostaria de falar.
Audric acenou com a cabeça para ela. — Por favor, faça isso.
— Oito semanas se passaram desde que você chegou — começou. — Você
dorme no palácio de nossas rainhas. Você come na mesa deles. Você se senta
em reuniões de conselho por horas, mas quando pedimos aos nossos
comandantes informações sobre o que foi discutido, eles desviam de nossas
perguntas e não encontram nossos olhos. Como vamos saber que você não
está protelando até que sua rainha chegue e mate todos nós? Como podemos
confiar em um rei cuja rainha o enganou tão completamente?
Ruídos baixos de concordância varreram a multidão. Os soldados mudaram
de posição e se entreolharam inquietos. Outros observaram Audric em
silêncio.
Algo dentro dele desmoronou silenciosamente. Ele nunca tinha imaginado
que seria olhado com tanta suspeita, tão hostil desconfiança.
Mas agora este era o seu mundo. Isso foi o que resultou das escolhas que
ele fez e das escolhas de outros que ele não podia controlar. Responderia a
esta mulher com a verdade.
— Você não pode saber com certeza se pode confiar em mim — disse
calmamente. — Eu entendo sua frustração e seu medo, e sinto muito.
Outro soldado deu um passo à frente – pálido e carrancudo, o companheiro
de Sanya que tentou impedi-la. — Ouvimos dizer que sua amiga, Lady
Ludivine, não é humana, mas um anjo.
— Isso é verdade.
A multidão rugiu de raiva. Mais vozes gritaram atrás dele, de cima: —
Traidor! Mentiroso!
Evyline se aproximou. — Meu senhor, devemos partir.
— A raiva deles é válida — disse, afastando-se dela.
— Você vai nos enviar para morrer por você? — Sanya gritou, seus olhos
fixos nele como flechas em seu alvo. — Desde que sua rainha mostrou o
rosto aqui na capital, enfrentamos tempestades, terremotos e inundações que
deixaram grande parte de nosso país em ruínas. E agora seremos forçados a
partir e lutar por seu trono em vez de proteger nossa casa?
— Isto é mais do que meu trono — Audric respondeu. Sabia que deveria
dizer algo melhor do que isso, que deveria falar eloquentemente sobre a
importância de todas as nações se unirem como uma para afastar o inimigo
invasor.
Mas estava cansado, e a crescente força da raiva coletiva dos soldados
parecia como pedras se amontoando em seu peito.
— Muitas possibilidades estão sendo cuidadosamente, exaustivamente
exploradas e discutidas — foi tudo o que conseguiu. — Tudo o que posso
dizer agora é que suas rainhas confiam em mim.
Sanya zombou, seus olhos brilhando. — Assim como seu povo. E agora
ouvimos que eles estão sendo expulsos de suas próprias casas e presos por
usar magia, mesmo que tudo o que possam fazer seja acender uma única vela.
É isso que vai acontecer conosco também? Estaremos todos sentados com
nossa magia arrancada de nós quando os anjos finalmente vierem?
A multidão ficou em silêncio mais uma vez.
Audric olhou para Sanya, incapaz de falar.
Porque estava certa: seu povo confiou nele para protegê-los, e ele falhou.
Ele os abandonou para se defenderem sozinhos no caos de um país à beira de
uma guerra que não poderia vencer.
De repente, uma nuvem rodopiante de sombras desceu sobre eles,
circundando-o e a Evyline. As sombras seguravam lobos com dentes
quebrando e leopardos com casacos pretos cambiantes.
Velado pela escuridão, Audric correu para a porta mais próxima que levava
de volta ao quartel, com Evyline atrás dele. O resto da Guarda do Sol
esperava lá dentro, olhando as sombras com admiração e terror. Um deles,
Maylis, murmurou uma oração e tocou sua nuca, homenageando a Casa da
Noite.
A porta do quartel se fechou. Sloane saiu das sombras, que se dissolveram
ao toque dela. O orbe de vidro no topo de seu molde, um cetro de ébano,
brilhava tão forte quanto o coração azul de uma chama.
— Isso foi minha culpa — murmurou enquanto corriam pelo quartel, de
volta ao palácio. — Nós nunca deveríamos ter ido lá. Você não está pronto
para isso.
Tentando se livrar da memória da voz furiosa de Sanya, Audric protestou.
— Meu trabalho com a espada está enferrujado, admito isso, mas…
— Não estou falando sobre o seu trabalho com a espada — ela retrucou. —
Estou falando sobre sua capacidade de enfrentar o que está por vir e inspirar
as pessoas de cuja ajuda você precisará para sobreviver.
À esquerda de Audric, Evyline resmungou um aviso. Sloane suspirou e
parou em uma curva do corredor, esfregando o rosto.
— Não se desculpe — Audric disse entorpecido. Não conseguia olhar para
Sloane. Queria voltar para seus aposentos; queria tanto dormir. Talvez isso
apagasse esse dia de sua memória. — Você está certa, é claro.
— Ouça-me, amor. — Sloane tocou suavemente a bochecha de Audric para
que ele pudesse encará-la. — Eu sei que você sofre. Sei que sua mente se
voltou contra você e entendo por quê. Mas muitos de nós estamos sofrendo, e
há mais tristeza no horizonte, então eu preciso de você – nós precisamos de
você – para juntar os pedaços de si mesmo e lutar. — Ela sorriu tristemente.
— Você é o Portador da Luz, e nosso mundo está escurecendo.
Ele a olhou através de uma película brilhante de lágrimas. Embora se
elevasse sobre ela, ele se sentiu diminuído ao seu lado. Um menino sendo
examinado por uma tia querida, apenas para ser encontrado em falta.
— Quando chegar o momento, se chegar — disse com voz rouca — e se eu
não puder fazer o que precisa ser feito?
Sloane abaixou o braço, seu olhar solene. — Então todos morreremos,
Audric. Todos nós.
Um pajem real, com as bochechas rosadas e o cabelo loiro, respirando com
dificuldade, apareceu na extremidade do corredor e correu em direção a eles.
— Uma mensagem para você, Sua Majestade — disse com uma pequena
reverência, e saiu tão rápido quanto tinha vindo.
Audric leu a carta com o pavor crescendo rapidamente em seu coração. A
mensagem era curta, as letras rabiscadas às pressas.
— As rainhas estão solicitando uma reunião logo de manhã — anunciou,
amassando o papel em seu punho. Amanhã, o Senado Mazabatiano votaria
para aprovar ou negar seu pedido de ajuda militar. — Há notícias do norte.
E fosse o que fosse, não conseguia imaginar que fosse bom.

•••

Na manhã seguinte, às nove horas, o conselho de guerra se reuniu no átrio


das rainhas, uma sala circular encimada por um teto de vidro através do qual
a luz do sol fluía, tingida de verde das árvores balançando acima. As paredes
eram de terracota rica, o piso de pérolas e cobalto.
Uma enorme mesa redonda esculpida em carvalho vermelho rico ficava no
centro da sala, em torno da qual o conselho de guerra estava sentado –
Audric, Rainha Bazati e Rainha Fozeyah, Princesa Kamayin. General
Rakallo, comandante-chefe do exército real. Os sete grande magisters.
Ludivine. Sloane. Evyline, que se recusou a sair do lado de Audric.
E esta manhã, outro homem magro e pálido que Audric supôs ser dez anos
mais velho que ele. Ele olhou para a mesa, as mãos de nós dos dedos brancos
segurando sua borda.
Tudo o que Audric sabia sobre ele era que seu nome era Jazan e que era um
espião. Meses atrás, rumores de crianças desaparecidas em Kirvaya
despertaram a curiosidade da princesa Kamayin. Quando ela enviou quatro de
seus espiões pessoais para investigar, apenas um – Jazan – havia retornado.
A sala quase não respirava enquanto ele falava.
— Ele os mantém em quartos pequenos — Jazan sussurrou, sua voz
tremendo. — Quartos com tetos baixos, pequenos demais para ficarem.
Quando manda buscá-los, eles são levados para baixo das montanhas. Para
seus laboratórios.
Jazan olhou para Kamayin. — É como uma cidade inteira, minha senhora.
Uma cidade escavada no gelo e nas montanhas negras.
A rainha Bazati ficou rígida em sua cadeira, os olhos escuros brilhando.
— O que ele quer com crianças? — perguntou Sloane, com o rosto tenso de
medo. — Por que crianças?
— Crianças elementais — Jazan corrigiu. — Minha dama. Perdão. São
todas elementais. A maioria ainda nem encontrou sua magia, e acho que é
isso que ele gosta nelas. As coisas que ele faz com elas – com a ajuda de seus
curandeiros e seus soldados – forçam a magia das crianças a despertar mais
cedo do que aconteceria naturalmente e, quando isso acontece, ele pode
controlá-la totalmente. Ele pode moldá-la. Moldá-los. — A voz de Jazan
falhou. — Também acho que ele os leva porque assusta as pessoas quando
crianças desaparecem.
Jazan passou a mão trêmula pelo rosto. — Oh, Deus, ele nos odeia. Ele vai
matar todos nós. Cada um de nós. Vai fazer isso da pior maneira possível.
Vamos morrer queimando. Nós vamos morrer gritando.
Audric se inclinou para frente. — Jazan. O que ele faz com elas?
Experimentos, você disse?
— Existem monstros no Abismo — Jazan sussurrou por entre os dedos. —
Eu ouvi seus curandeiros falarem deles. Mas não são curandeiros como os
que conhecemos. São cortadores. Eles são anjos em pele humana, embora
nem todos sejam fortes o suficiente para ficarem ancorados em seus corpos.
Alguns são, e permanecem na mesma pele por semanas. Houve alguns que eu
nunca vi mudança. Mas alguns deles passam por corpos como um soldado
passa por luvas.
— Você disse que falavam de monstros — Audric o redirecionou
gentilmente. — Que tipo de monstro?
— Eu não sei. Eles os chamavam por uma palavra estranha: cruciata. Pelo
que eu posso dizer, vivem no Abismo. E agora ele está tentando recriá-los, ou
algo parecido. Ele e seus cortadores, eles fazem soros, esses elixires vis. Eles
cheiram a veneno, e todos os túneis e cavernas sob as montanhas cheiram a
isso. E então eles…
Jazan ergueu os olhos para Audric, implorando silenciosamente. —
Existem dragões também. Dragões . — Ele riu um pouco. — A princípio não
acreditei nos meus próprios olhos, mas é verdade: ainda existem dragões no
mundo. Dragões de gelo de Borsvall. Coleiras peludas e tudo mais, como em
todas as pinturas. E ele está… — Jazan espalhou as mãos, as palmas voltadas
para cima. Ele olhou ao redor da mesa desamparado, como se desesperado
por alguém para lhe dizer que era tudo um sonho. — Ele está transformando-
os em monstros. Ele os abre e os costura de volta. E há outras feras também,
com as quais seus curandeiros brincam e costuram junto com os dragões,
ou… Deus me ajude, não sei como fazem isso. Mas essas feras são
abominações.
— E as crianças… Ele as força a forjar receptáculos e controla suas mentes
enquanto fazem isso. É perverso. Não está certo. E os receptáculos que as
crianças fazem – algumas são para si mesmas, e outras são projetadas para se
ajustar às feras, como um conjunto de armadura compartilhada entre criança e
monstro, e… Vossas Majestades, acho que ele pretende fazer um exército.
Crianças elementais com suas mentes sob seu controle, eles e seus animais
blindados com novos receptáculos. Não entendo como, mas… Essas feras,
podem atirar assim como as crianças que as montam fazem. As crianças
sacodem a terra e dobram as espadas, assim como seus animais, como
qualquer elemental. Como se criança e animal fossem uma criatura, divididos
em dois corpos.
— Isso é impossível — murmurou o Grão Magister do Baths, torcendo as
mãos sardentas. — Você viu errado.
— Não vejo errado. — Jazan enxugou os olhos com os dedos enfaixados.
Os ferimentos que sofreu foram mínimos.
E isso perturbou Audric acima de tudo.
— Por que ele deixou você viver? — Audric perguntou.
— Ele nem estava lá. Na verdade não. Não pessoalmente. — Jazan bateu
com força no peito. — Assim não. Ele estava em outro lugar no mundo, e
seus generais estavam administrando as coisas em sua ausência. Mas eu o
ouvi. — Jazan assentiu, rindo um pouco. Suas lágrimas transbordaram. — Eu
o ouvi. Eu sou seu mensageiro. Ele quer que vocês saibam o que está vindo
para vocês.
— O que ele disse? — Audric se inclinou para frente. — Você sabe onde
ele está?
— Ele está em Patria — disse Ludivine.
Todos se viraram para encará-la. Ela estava pálida e imóvel, as mãos
cruzadas na mesa. Ela encontrou o olhar de Audric e o sustentou. — Ele
trouxe Rielle para Patria. Eles estão atrás dos receptáculos dos santos.
Quando saíram de Celdaria, tinham três deles. Agora, têm quatro.
Audric fechou os olhos brevemente. É claro que Rielle ainda estaria
procurando pelos receptáculos – agora, talvez, para abrir o Portão em vez de
consertá-lo.
Várias pessoas ao redor da mesa respiraram fundo.
— Ela tem o escudo de São Marzana — Audric disse calmamente,
lembrando. — Martelo de São Grimvald.
— Cajado do Santo Tokazi — acrescentou Kamayin. Ela não falou dos
Obex que Rielle massacrou para obtê-lo, mas Audric viu a lembrança em seu
rosto sombrio.
— E agora, a flecha de São Ghovan — concluiu Ludivine sua expressão
grave.
— E uma vez que ela encontrar todos os sete — acrescentou ele, cada
palavra pesada em sua língua, — o poder deles pode ser o suficiente para ela
fazer com o Portal o que quiser.
Um silêncio caiu sobre a sala.
A rainha Fozeyah olhou furiosa para Ludivine. — Como você sabe que
estão em Patria?
Ela hesitou. — Eu tentei falar com Rielle. Eu estendi a mão para ela. Eu…
eu a vi.
O choque sacudiu Audric. — Ela está machucada? Ela está bem?
— Ela não está ferida — disse Ludivine lentamente. — Não da maneira que
você está pensando.
— Pare de falar em enigmas e nos diga a verdade — ele retrucou.
A calma de Ludivine era enlouquecedora. — A conexão dela com o
empirium é muito mais forte agora do que semanas atrás. Fiquei surpresa ao
sentir a mudança nela. Era como se eu tivesse sido empurrada para um fogo
dourado violento.
Então, uma pausa. Um pequeno estremecimento que Audric ficou
cruelmente feliz em ver. Ele esperava que isso significasse que ela estava
sofrendo de uma forma que nunca iria curar, assim como ele.
— Seu poder está aumentando rapidamente — concluiu Ludivine, — e não
sei por quanto tempo mais ela será capaz de controlá-lo.
O silêncio foi terrível. Audric se apoiou pesadamente na mesa, passou as
mãos pelos cabelos.
Pela primeira vez em semanas, ele alcançou a mente de Ludivine,
desajeitado e desesperado. Ela está com medo?
Sim. A voz de Ludivine era um mero sussurro de pensamento. E ela anseia
por voltar para casa.
Audric se afastou da mesa e foi até a janela mais próxima. Ele fechou os
olhos contra a manhã alegre, os jardins exuberantes do palácio, e tentou não
imaginar Rielle sozinha em um país desconhecido, Corien sussurrando
promessas em seu ouvido e o empirium queimando-a viva de dentro para
fora.
Infelizmente, sua imaginação sempre foi espetacular.
— Além dos dragões e das crianças e de quaisquer bestas profanas que eles
fizeram — disse Sloane, com a voz cheia de raiva — quantas tropas ele tem à
sua disposição?
— Pelas minhas últimas contas, quinhentos soldados angelicais — Jazan
respondeu, sua voz oca.
— Mais virão — disse Ludivine calmamente. — Quando Rielle abrir o
portão, haverá milhões.
— Se ela abrir o Portão — o Grão Magister do Pyre apontou.
— Mas há outros — continuou Jazan. Ele puxou inquieto a bainha das
mangas. — Milhares de humanos. Os anjos os controlam.
Audric voltou para a mesa, seu coração afundando quando começou a
entender. — Ele fez isso com os soldados Sauvillier no dia do julgamento do
fogo. Ele os controlou, os virou contra seu próprio povo.
— Seus olhos eram cinzas — Sloane respirou, seu olhar distante. Ela estava
se lembrando, assim como Audric estava. — Cinza e vazio, como se uma
névoa tivesse caído dentro deles.
— Os anjos os chamam de adatrox — disse Jazan. — Seus generais viajam
pelo mundo recolhendo-os. Milhares deles. Eles deslizam para dentro de suas
mentes e as refazem como acharem melhor. Eles os dizem o que fazer, e o
adatrox deve fazer. Acho que nem sabem o que estão fazendo. Espero que
não saibam. — O rosto de Jazan caiu, marcado por sombras. — As coisas que
os anjos os obrigaram a fazer uns aos outros… as coisas que os anjos os
obrigaram a fazer conosco…
Ele desabou em soluços, e depois que Kamayin chamou suas servas para
acompanhá-lo até a ala hospitalar do palácio, a rainha Bazati se virou para ela
e falou pela primeira vez desde o início da reunião.
— Eu tenho muitas perguntas para você, minha filha — disse em voz baixa.
— Três anos atrás, recrutei duas dúzias de espiões — disse Kamayin,
encarando suas mães com um brilho desafiador nos olhos. — Os Starlings.
Eles são muito bons. Melhor do que seus espiões, mamãe. Não se preocupe.
Eu mesmo os financio.
A boca da Rainha Fozeyah se contraiu, mas o sorriso não encontrou seus
olhos. — Como você é empreendedora.
— Toda princesa merece sua ordem particular de espiões — disse
Kamayin, eriçada. — Quando soube das crianças desaparecidas em Kirvaya,
tive que enviar meus pássaros. E é uma coisa boa que eu tenha feito. Agora
sabemos o que estamos enfrentando.
O general Rakallo, o comandante condecorado que cumprimentou Audric
na praia, fez uma careta em sua cadeira. — Sim, agora nós sabemos, e agora
tudo mudou.
— Isso não muda nada — disse Sloane, uma mordida em sua voz. —
Suspeitamos que Corien estaria reunindo exércitos para se levantar contra
nós.
O Grão Magister do Holdfast, seu rosto avermelhado cheio de cicatrizes,
falou em voz baixa. — Mas não sabíamos exatamente quão grande seriam
suas forças, e não sabíamos nada sobre esses monstros que ele está criando.
— Eu nem entendo como isso é possível — murmurou a Rainha Bazati,
com os punhos cerrados.
— A mente angelical comum, Vossa Majestade, é extraordinária — disse
Ludivine. — A mente de Corien está longe de ser comum. Antes das guerras,
ele era forte. Agora, depois de séculos passados no Abismo, planejando sua
vingança, ele está além de qualquer um de nós. Até eu.
— Exceto Rielle — Audric disse imediatamente, e assim que as palavras
deixaram seus lábios, as lágrimas brotaram de seus olhos. Foi a primeira vez
que disse o nome dela em voz alta em semanas, e a palavra acarinhada o
deixou sem fôlego.
O General Rakallo suspirou profundamente. — Sim, o único ser mais
poderoso do que o anjo decidido a nos destruir é a mulher que deixou sua
casa e seus entes queridos para se juntar a ele. Perdoe-me, Majestade, se não
acho isso particularmente reconfortante.
Kamayin levantou-se abruptamente, as mãos espalmadas sobre a mesa. —
Esse tipo de conversa não é necessária nem produtiva, General Rakallo.
O Grão Magister do Holdfast balançou a cabeça. — Eu discordo, Vossa
Alteza. Não podemos considerar Rielle uma aliada ou um trunfo. Ela é uma
arma, e agora está no arsenal de Corien.
A rainha Fozeyah sentou-se com os dedos entrelaçados nos lábios. — Ela
pode ser morta?
Agora era Evyline quem se levantava, os olhos brilhando de indignação.
Audric estendeu a mão para ela. — Evyline, por favor, sente-se.
A rainha Fozeyah ergueu as mãos, os cachos escuros e brilhantes de seu
cabelo caindo para trás sobre os ombros castanhos-amarelados, deixados à
mostra pela gola larga de seu vestido. — A rainha Rielle é amada por muitos
nesta sala. Mas devemos nos fazer essas perguntas e estar preparados para
qualquer eventualidade se quisermos sobreviver a isso.
— Qualquer coisa pode ser morta — disse a voz assombrada de Ludivine.
— Mas poderíamos chegar perto o suficiente para fazer isso? — Seu olhar
desolado se moveu para Audric. — Isso eu não sei.
— Matá-la pode não ser necessário — disse Audric calmamente, e odiava o
quão feliz estava ao ver o pequeno sorriso de aprovação de Ludivine em
resposta.
A boca do general Rakallo estava fina de exasperação. — Vossas
Majestades, podemos realmente confiar que este homem fará parte de nossa
estratégia? Ele está cego de amor. Ele já foi enganado pela Rainha Rielle
antes e pode ser enganado novamente.
— Sim, eu a amo — Audric disse, e não quis que aquelas palavras soassem
com tanta paixão. Como se fosse um crime amá-la, essa mulher temível e
inexplicável com seu temperamento e sua bravura e sua mente surpreendente
e brilhante.
— E sim — continuou — ela me enganou, e quando descobri a
profundidade de suas mentiras, deixei minha raiva e medo me dominarem. Eu
a disse que ela era a coisa que ela temia se tornar – um monstro. Eu rejeitei
sua humanidade; eu descartei tudo que há de bom nela. — Sua voz falhou. —
E há tanto bem nela. Coragem e resistência, e tal capacidade de amar que
qualquer pessoa com sorte o suficiente para ganhar sua confiança poderia
viver somente do poder de sua adoração. — Ele olhou ao redor para o
conselho reunido, silenciosamente implorando para que cada um deles
entendesse. — Eu a empurrei. E agora ela está com nosso maior inimigo. Se
não fosse por meu erro de julgamento, minha fraqueza, ela ainda poderia
estar conosco.
Ele respirou lentamente, lutando para se acalmar. — Ela foi carregada
desde o nascimento com um grande e terrível poder. Por meses foi julgada,
torturada, adorada e insultada. E apesar de tudo isso, ficou conosco – até que
cometi o erro de condená-la. Não podemos reconquista-la sem amor. E sem
ela, não podemos vencer.
A sala ficou em silêncio enquanto os membros do conselho o observavam
com vários graus de pena, constrangimento, tristeza. Raiva.
— Rainha Bazati — disse, com a voz firme, mas com um nó no estômago
— Rainha Fozeyah, vocês não pode permitir que esta notícia do norte afete a
votação de hoje. Eu imploro a vocês, falem com a assembléia antes da
votação ser chamada. Deixe-me falar com eles. Celdaria será a primeira frente
desta guerra – isso posso prometer. Corien vai querer a poesia de começar
sua conquista na sede do meu poder, e com Merovec no trono, a cidade vai
cair rapidamente. Ele está totalmente despreparado para enfrentar tal exército.
Ele é paranóico e temeroso, como atestam as cartas da Coroa Vermelha. Eu
as mostrei para você. Você leu e ouviu relatos em seu próprio submundo. Ele
não entende os anjos. Eu entendo. Ele não conhece Rielle. — Ele sorriu
suavemente, seu coração em frangalhos. — Eu conheço. E se queremos que
ela volte para nós, ela deve ter uma casa para onde voltar.
Então ele olhou para todos eles, desejando que entendessem. — Para nos
prepararmos para a verdadeira guerra que temos pela frente, devemos reunir
uma frente tão forte quanto possível no lugar onde Corien sem dúvida
pretende atacar primeiro: Âme de la Terre. E antes que possamos fazer isso,
devo reivindicar meu trono. Eu não posso fazer nada dessas coisas sem o seu
exército. Juntos, podemos ser a primeira linha de defesa do nosso mundo
contra Corien quando ele vier. A menos que vocês prefiram que ele enfrente
todos os remendos do exército irregular da Merovec juntos.
A expressão da rainha Bazati era implacável. — Eu entendo seu argumento,
Audric. Apoiei sua petição ao Senado, assim como minha esposa. — Ela
suspirou, olhando para a mesa, e então se endireitou para se dirigir a todo o
conselho. — Mas não posso falar com o Senado antes da votação. Porque
eles já votaram.
O choque percorreu a sala.
Kamayin ficou boquiaberta com suas mães, balançando a cabeça
lentamente.
— O que? — Audric sussurrou. Ele se sentiu entorpecido de terror. —
Quando? E por quê?
— Na noite passada, conversamos com Jazan junto com os oradores de
todas as dez câmaras do Senado — explicou a Rainha Fozeyah. —
Queríamos a chance de ouvir seu relatório antes de você e avaliar a situação
em particular.
— Vocês fizeram aquele homem reviver o que aconteceu com ele duas
vezes no período de doze horas? — Audric disse com raiva. — Eu não pensei
que nenhuma de vocês fosse tão cruel.
— Não é crueldade, Audric. — O olhar da rainha Bazati estava cheio de
pena. — É sobrevivência.
No silêncio tenso veio uma batida forte na porta. A rainha Fozeyah
levantou-se e abriu-a, admitindo a oradora do Senado Mazabatiano – uma
mulher rechonchuda e de rosto severo com pele negra rica e um chapéu de
cachos acinzentados. Ela examinou a sala, seu olhar penetrante se demorou
em Audric.
— Você tem novidades para nós — disse a Rainha Bazati calmamente.
A oradora assentiu, abriu um pacote de couro e começou a ler.
— Sobre a petição do rei Audric Courverie da nação de Celdaria — disse a
oradora, sua voz nítida e clara — que solicitou ajuda militar para invadir a
capital deste país e derrubar o usurpador Merovec Sauvillier, com o objetivo
de longo alcance de estabelecer uma base de defesa contra potenciais
invasores angelicais, o Senado deliberou e votou. Levamos em consideração
o conselho de nossas rainhas, dos santos magos e do povo Mazabatiano, cujas
vozes nos concederam nosso poder. Nossa nação tem sido atingida por
desastres sem precedentes nos últimos meses, e simplesmente não temos os
recursos ou os corpos para enviar para o exterior enquanto lutamos para
limpar nossas praias, reconstruir nossas fazendas e reunir nossos mortos.
A oradora fez uma pausa. — Com uma contagem final de cento e noventa e
dois a oito, propomos que a petição Celdariana seja rejeitada e que a coroa
negue seu pedido de ajuda militar.
Audric se sentou pesadamente em sua cadeira, olhando entorpecido
enquanto a oradora apresentava seu pacote às rainhas.
— Se concordarem com esta moção de negação, Vossas Majestades —
continuou a mulher — suas assinaturas confirmarão o voto. Se não, vocês
podem apelar da votação em uma sessão especial.
Audric prendeu a respiração, sem ousar falar, e então observou como se
através da lenta lama de um sonho as rainhas assinarem o documento que
condenava seu país e logo os condenaria a todos. Ele só percebeu vagamente
as reações dos outros: Kamayin correndo para suas mães, protestando
apaixonadamente; o Grão Magister de Baths tocando sua garganta em oração
solene.
A rainha Bazati estava olhando para ele, sua expressão compassiva, mas
decidida. A rainha Fozeyah conduziu uma Kamayin aos berros até um dos
escritórios particulares que circulavam pela sala.
E o pior, a coisa mais horrível, foi que Audric entendia a decisão.
Por que deveriam confiar nele? Por que deveriam enviar milhares de suas
tropas para lutar uma guerra inútil que começou séculos antes de qualquer um
deles nascer?
Se fosse retomar seu país e reunir o povo de Avitas para lutar por sua
Rainha do Sol e seu futuro, teria que fazer isso sozinho.
13
Rielle

“A partir de nossas observações no Abismo, dividimos as cruciata em


cinco grupos distintos com base em sua maior semelhança com as
criaturas conhecidas em Avitas: víboras (reptilianos), raptores (aves),
catamounts (felinos), touros (uma estranha combinação de
características bovinas e ursinas) e nibblers (insetívoros e aracnídeos,
embora muito maiores do que o típico em Avitas). Notavelmente, embora
os nibblers sejam menores do que os outros – e seu agrupamento seja o
menos populoso, talvez indicando uma falta de força que torna difícil
para eles navegar no Abismo – eles também são de longe os mais
famintos.”
— Um relatório escrito pelo anjo Kasdeia, cirurgião da Cordilheira
do Norte, datado de 17 de agosto, ano 994 da Segunda Era

Por dias, Rielle existiu em um oceano de ouro negro. Lá, nas profundezas
mais requintadas e insondáveis de seu corpo, o empirium se remexia e rugia.
Momentos fugazes de consciência iluminaram a verdade: estavam viajando
para o norte. Ela e Corien. A garota, Obritsa; seu guarda, Artem. Estavam
viajando rapidamente. Anéis de luz se abriram e depois fecharam, um leve
cheiro de fumaça a cada iluminação.
Os receptáculos que Artem carregava, agora quatro em número, emitiam
um poder novo e mais forte que zumbia contra a pele de Rielle como o ar
antes de uma tempestade, pronto para se abrir.
E Corien estava perto. Rielle sentiu a boca dele contra sua bochecha, o
ninho de seus braços ao redor dela. Às vezes ela reconhecia sua proximidade
e encontrava seus lábios com os dela. Às vezes ela se perdia no mar e
clamava por ele, mas nem mesmo ele conseguia encontrá-la nas profundezas
escuras e cintilantes.
Lá, ela estava totalmente sozinha com o empirium. Sua voz incansável era
um coro interminável de palavras muito estranhas e terríveis para ela decifrar,
e ela não conseguia tampar os ouvidos, nem queria. Envolvida em suas
ondas, ela flutuou, mergulhou e afundou e se afogou, e deu boas-vindas a
cada momento de dor que esmagava os pulmões. Ela abriu a boca e engoliu
água preta. Abriu os olhos e viu o céu repleto de estrelas douradas. Estendeu
a mão, os dedos segurando, e foi puxada para a escuridão, e ela deu boas-
vindas à queda, porque em algum lugar na escuridão estava a resposta.
Em algum lugar deste mundo infinito do empirium havia mais – mais
poder, mais compreensão.
Por que você me escolheu? Ela perguntou isso muitas vezes. O que você
quer comigo?
O empirium respondeu com palavras incompreensíveis que sacudiram seus
ossos e estalaram sua coluna, mas onde deveria ter sentido dor, sentiu apenas
ondas quentes de prazer. Ela se virou na direção da maré, deixando-a arrastá-
la pela água negra extática. Aquilo se quebrou ao seu redor, uma cortina fria
de agulhas.
Você é, rugiu uma voz que não era singular, mas sim todas as vozes, um
coro eterno.
Sim? Ela prendeu a respiração, ouvindo.
Nada além da batida constante de seu coração, a pulsação agitada das ondas
negras a respondeu.
Então o empirium falou novamente – uma explosão de ruído silencioso que
explodiu entre os ouvidos de Rielle:
Vou acordar.
Seus olhos se abriram.

•••

Ela estava cercada de branco e nos braços de Corien. Ele a segurava contra o
peito, seu cabelo preto salpicado de neve.
— Aí está você — sussurrou, o alívio claro em seu rosto. — Você voltou
para mim.
O ar explodiu em seus pulmões. Ela tossiu, expelindo água que não estava
lá e empurrou o peito de Corien. — Ponha-me no chão!
Ele obedeceu, parecendo confuso, e então Rielle estava no chão perto de
um amplo lance de degraus negros. O ar a repeliu, assim como a rocha se
estendendo por quilômetros abaixo dela e os incontáveis grãos infinitesimais
de umidade que ela podia sentir flutuando ao seu redor. Ela se voltou para
dentro, para longe dos elementos que a chamavam, para longe do empirium
que vivia dentro de todos eles. Em sua cabeça, ouviu o barulho de ondas
negras, e quando lutou contra elas, trovejaram cada vez mais alto.
— Eu sou apenas uma garota — sussurrou, rezando. Uma mentira, mas
mesmo assim a confortava.
Assim que se lembrou de como respirar, olhou ao redor e viu que estava
encolhida entre duas portas maciças, cada uma totalmente aberta. À sua
esquerda, uma vasta paisagem de montanhas e gelo. À sua direita, um hall de
entrada escuro iluminado por tochas em suportes de ferro.
Ela pressionou a testa no chão frio – ladrilhos polidos de mármore preto
com veios brancos. Bateu os punhos contra ele uma vez.
Corien se ajoelhou silenciosamente ao lado dela. — O que é isso? O que
aconteceu?
— Eu estava quase lá — disse, mal conseguindo falar. — Quase entendi.
Eu podia ver. Eu podia sentir. Eu estava nadando em direção a ele e, de
repente, estava aqui, com você. — Ela olhou para ele através das lágrimas. —
Você me acordou?
— Não — Corien disse calmamente. — Você acordou sozinha. Eu estava
preocupado… — Ele hesitou, sua mandíbula se movendo. — Estava
preocupado que você nunca mais acordasse.
Rielle fechou os olhos e pressionou a testa com força contra o ladrilho.
Estava frio como gelo e acalmou sua mente frenética. — Havia um oceano.
Um grande oceano negro iluminado com ouro. Eu estava dentro dele. Estava
me levando…
— Para onde estava levando você?
— Não, você não entende. Isso estava me levando. Queria respirar. Queria
andar, ver através dos meus olhos. — Ela lutou para se sentar, feliz por ele
não ter tentado ajudar. Se sentia desajeitada após dias de inatividade, seu
corpo estranho e pesado. Distraída, colocou a mão na barriga. A garota na
montanha passou por sua mente, uma memória que ela se recusava a seguir.
— O empirium estava me reivindicando para si — murmurou Rielle — e
eu queria que ele me tivesse.
Corien a observou com curiosidade. — Se o empirium tivesse te levado, o
que seria de você?
— Eu não sei. Isso teria me matado. Isso teria me tornado melhor ou mais
forte. Ou talvez não tivesse gostado do meu gosto e me cuspido. Mas eu teria
sabido, pelo menos, mesmo se isso tivesse me matado. Eu teria entendido.
— O que teria entendido?
A impaciência a atingiu. — Isso. Tudo isso. — Ela gesticulou para si
mesma. — Por que eu sou assim. Porque sou eu. Você não consegue sentir o
que quero dizer?
Mas quando alcançou os pensamentos de Corien, sentiu a verdade
surpreendente: apenas uma pequena parte dele permanecia dentro dela. O
resto de sua presença se foi, a alguma distância na paisagem de sua mente.
Gentil, parecia, até casto. Cuidadoso. Discreto.
Ela olhou para ele, presa entre a gratidão e a ofensa. — Você estava com
medo? É por isso que você ficou fora dos meus pensamentos? — Ela ergueu
o queixo. — Você pensou que o empirium poderia funcionar através de mim
para machucá-lo. Você estava com nojo de mim.
— Nunca. Eu pensei… — Ele fez uma pausa, em uma rara perda de
palavras. — Achei que você gostaria de privacidade. Você estava tão quente
em meus braços que me assustou. Eu pensei que estar lá, onde quer que você
tivesse ido, só iria interferir com o que quer que estivesse acontecendo. Eu
queria… — Ele abriu as mãos, rindo um pouco. — Rielle, você está além de
mim. Espero que um dia você possa me levar com você a esse lugar, e
possamos aprender todas as respostas que buscamos juntos.
Ele olhou para o chão, com a testa franzida. Seus cílios eram grossos e
escuros; Rielle sentiu um desejo repentino de beijá-los. Ela enviou-lhe o
pensamento, e seu olhar aquecido estalou para encontrar o dela.
— Não vou fingir que entendo tudo o que está acontecendo com você —
sussurrou. — Mas farei tudo o que puder para me tornar digno de você.
Por muito tempo, Rielle não conseguiu falar. Em vez disso, se levantou
cambaleante e se afastou dele, olhando para o mundo.
Estava no topo de um enorme lance de escadas de pedra, passando por uma
vasta rede de gelo, pedra, fogo e equipamentos. Os soldados executavam
exercícios. Outros trabalhadores puxavam caixotes e giravam os raios de
rodas de metal gigantescas para abrir grandes portas cravadas na terra.
Usavam roupas indefinidas e obedeciam aos soldados gritando ordens no que
Rielle pensava ser uma linguagem angelical. Atrás dela estava uma enorme
fortaleza de pedra negra. Dentro de seu saguão de entrada, guardas
mascarados silenciosos estavam em escadas sinuosas.
— The Northern Reach — Rielle sussurrou. Sua respiração se transformou
em nuvens.
Corien veio ficar ao lado dela. — Casa.
Ela o olhou – seu colarinho gasto pela viagem, sua mandíbula rígida, o
brilho orgulhoso em seus olhos pálidos enquanto examinava este reino de
gelo que construiu do nada.
Uma ternura a dominou. Ela virou o queixo dele e aproximou seus lábios
dos dela. Espontaneamente, uma memória de Audric passou por sua visão;
ela sentiu Corien estremecer, mas não se desculpou.
— Eu ainda o amo — o lembrou, pensando em sua dor persistente para que
Corien pudesse facilmente ver em sua mente. — Mas eu estou aqui com
você. Ele tem medo de mim. Você não tem. Ele me rejeitou. Você não o fez.
Isso terá que ser o suficiente por agora.
A expressão de Corien endureceu. — Você é uma criatura de contradições
enlouquecedoras — ele murmurou, passando a mão pelo cabelo.
— E você me ama por isso — respondeu. Um choque distante de ondas
escuras ecoou em seu crânio. Ela sentiu o frio do ouro infinito contra os
dedos dos pés. Tocou a cabeça, procurando por rachaduras.
— Eu mandei arrumar um conjunto de quartos para você — disse com
firmeza, afastando-se dela. — Imagino que você queira descansar.
— Não. — Audric permanecia em sua mente, sua memória quente e
estável, mesmo enquanto o resto dela fervilhava. Se olhasse muito de perto, a
dor espetava seu peito e olhos como espinhos.
Mas Audric estava longe; Audric a considerava um monstro.
Sua mente estremeceu, exausta por suas próprias hesitações. Ela ansiava
desesperadamente pelo esquecimento. Pegou a mão de Corien, enviando-lhe
um pensamento claro e duro como um diamante: Descansar não é o que eu
quero.
A força de sua sugestão o surpreendeu; ela sentiu seu deleite se desdobrar,
suavizando todas as suas frustrações.
Então Corien pressionou os dedos na palma de sua mão, chamou os guardas
para fechar as portas contra o frio e a guiou escada acima.

•••

Corien estava criando monstros.


Um pendurado no teto – embora este não fosse um que tinha feito. Em vez
disso, era seu modelo. Sua inspiração.
— Nós os chamamos de cruciata — explicou, guiando Rielle por uma
grande sala que chamou de laboratório. Suspenso no teto de pedra por uma
série de fios de cobre finos e placas de aço pendia um cadáver bestial
preservado. A besta tinha seis pernas abertas, uma pele de escamas carmesim
e um longo focinho reptiliano. Olhos vazios, cauda longa em forma de
gancho, espinha sulcada por minúsculas pontas serrilhadas. Suas mandíbulas
foram abertas, revelando várias fileiras de dentes.
Corien apontou para as pernas delgadas congeladas. — Alguns podem voar.
Outros pesam. Esta é uma víbora. Sua maior arma é a velocidade. Elas se
impulsionam rapidamente pelo solo, como os lagartos, e podem se mover
quase em silêncio.
Enquanto falava, Corien caminhou lentamente pela sala, o longo casaco
preto arrastando atrás dele. Ele havia se banhado depois de sua noite juntos, e
as ondas escuras de seu cabelo brilharam à luz das tochas do laboratório.
E Rielle ouvia enquanto ele falava. Ela realmente, verdadeiramente o fez.
Mas também achou aqueles cachos de ébano dele difíceis de ignorar –
principalmente porque ela se lembrava de como pareciam sedosos contra suas
coxas na noite anterior.
— Quando seus santos criaram o Portão — Corien estava dizendo — o ato
de rasgar o tecido do Abismo enviou ondas de caos por todo o reino. Uma
vastidão incomensurável para sempre alterada pelo crime de nossa prisão. —
Sua voz escureceu. — A construção do Portão se separou de incontáveis
fendas, a maioria insignificante demais para ser considerada. Algumas delas,
entretanto, abriram-se para o mundo de onde essas criaturas se originam. A
rachadura é pequena, mas existe e está sempre se alargando. As cruciata são
astutas, e os mais fortes deles, os mais sortudos, estão encontrando maneiras
de escapar de seu próprio mundo e entrar no Abismo. Isso levou séculos.
Ainda menos deles conseguiram passar pelo Abismo, forçar seu caminho
através do Portão e vir aqui. Mas mais virão. É apenas uma questão de tempo.
A mente de Rielle lutou para aceitar a ideia de que havia outros mundos
além do seu, além até mesmo do Abismo. Incontáveis outros, Corien supôs,
todos conectados pela imensidão do empirium.
Outros mundos. Mais uma informação que Ludivine havia se esquecido de
compartilhar com ela.
Ludivine. Ludivine. Quanto mais vezes dizia o nome para si mesma, menos
doía lembrar. Algum dia, iria imaginar o rosto de Ludivine e não sentiria
nada.
Algum dia. Mas ainda não.
— Mas o Abismo tirou seus corpos de vocês — Rielle apontou, tentando se
concentrar. — Quando as cruciata entram no Abismo, o mesmo não acontece
com eles?
A expressão de Corien era sombria. — Não. Eles parecem ser imunes a tais
indignidades.
— Talvez o empirium tenha julgado adequado punir os anjos por iniciarem
a guerra contra os humanos — Rielle ofereceu alegremente. Antagonizá-lo
clareava sua mente. Ela não conseguiu resistir. — Talvez as cruciata não
tenham cometido tal ofensa.
Corien lançou-lhe um olhar perigoso. — Possivelmente.
— Já me falaram dessas cruciata antes — ela disse, passando por ele. —
Ouvi dizer que se originaram do próprio Abismo.
— Quem te disse isso?
— Jodoc Indarien. Palestrante do Obex em Sunderlands. Ele atirou em
Ludivine com uma flecha construída com um metal estranho. Ele a chamou
de lâmina de ferrugem.
Corien enrijeceu, lendo sua memória. — Ele disse a você apenas o que
sabia, o que estava incompleto.
— Jodoc também disse que o sangue de uma cruciata é mortal para os
anjos. Isso é preciso?
— Frustrantemente, sim. — Corien olhou para a besta suspensa. Uma linha
de pontos pretos perfeitos cortava sua barriga. — Esta víbora rastejou pelo
Portão alguns anos atrás e – coisa inteligente – entrou furtivamente a bordo
de uma nave comercial que tinha vindo para Sunderlands com suprimentos
para o Obex. Eu não acho que o Obex nem sabia que tinha quebrado. Muitos
anjos morreram durante sua captura e durante a jornada aqui. É algo sobre o
sangue. Tivemos que fazê-la sangrar antes que fosse seguro dissecar. Até os
vapores podem ser tóxicos.
— Para vocês — disse Rielle. — Não para humanos. — Ela piscou
inocentemente para ele. — Jodoc disse.
A boca de Corien se apertou. — Nesse ponto, estava correto. Meus
caçadores, uma vez expostos ao sangue da besta, foram expulsos dos corpos
humanos que habitavam e perderam completamente a coesão. Felizmente,
outros tomaram seus lugares, e estou confiante de que, no futuro, iremos
arquitetar maneiras de nos proteger de suas toxinas, caso encontremos mais
cruciata no futuro.
A sugestão em sua voz matou sua diversão. Ela olhou diretamente para ele.
— Você quer dizer se eu abrir o Portão.
Ele deu a ela um sorriso tenso. O uso da palavra se não o escapou. — Sim.
Ela estremeceu com o pensamento. O empirium ondulou por ela, um tremor
escuro. Ele estava com medo ou ansioso? Ela procurou em seu próprio
coração a resposta, mas não encontrou nenhuma.
— Eu tenho muitos leais a mim no Abismo — Corien continuou. — Graças
a você, minha querida, e aos seus esforços fracassados de consertar o Portão,
agora posso me comunicar com eles. Eles me disseram que a grande maioria
das cruciata permanece em seu próprio mundo, que chamei Hosterah. Se você
abrir o portão, o risco de uma invasão de cruciata é pequeno. Se quiser, você
pode selar a maldita coisa assim que meu pessoal estiver livre. E se alguma
cruciata vier atrás de nós antes de você fazer isso, você irá destruí-la.
Rielle sentiu uma memória. Ela flutuou para a superfície de sua mente e
vagou em direção à dela. Era ela mesma, meses atrás em Sunderlands,
tentando consertar o Portão e, em vez disso, quebrando-o ainda mais.
— É por isso que você me incentivou a fazer aquilo? — Ela observou
Corien de perto. — Você queria que eu tocasse. Você queria ver se eu ainda
era poderosa o suficiente para abri-lo.
— Em parte — admitiu suavemente.
— Mas você suspeitou que eu não estava pronta e que isso me machucaria.
— Achei que fosse machucá-la e sabia que seu fracasso me ajudaria – e,
portanto ajudaria você.
Ela se afastou dele, buscando sua mente e descobrindo, para seu horror, que
ele falava a verdade. — Você me surpreende.
— E você mesma queria tentar um conserto. — Corien se aproximou dela
lentamente. — Mesmo se eu não tivesse incentivado, você teria feito
exatamente o mesmo. Por que eu não deveria ter aproveitado uma situação
que já estava acontecendo? — Ele estava perto dela agora, seus olhos
brilhando com paixão. — Tenho de pensar no meu povo, Rielle. Milhões de
anjos presos e esperando por mim para libertá-los. Lembre-se disso.
Com suas palavras, um pensamento amargo ocorreu a Rielle – que Audric,
mesmo para ajudar seu povo, mesmo que todos esperassem dele, nunca a
pressionaria a fazer algo que sabia que a machucaria.
Ela empurrou o pensamento para Corien e viu a raiva cair sobre ele como
uma rede de sombras esvoaçantes.
Satisfeita, ela ergueu o queixo e o olhou fixamente. — Você pode controlar
a cruciata como você pode controlar humanos?
Seu olhar furioso percorreu o rosto dela, como se procurasse uma fenda em
sua armadura. — Não. Suas mentes são muito estranhas.
— Então você está criando suas próprias. — Rielle se esticou na ponta dos
pés para tocar a cauda rígida da cruciata. — Bestas com sangue que não vão
te machucar. Bestas com mentes que você pode influenciar.
Os olhos de Corien seguiram cada movimento dela. — Precisamente.
Embora o controle total de suas mentes permaneça ilusório, nós
planejamos… outros métodos para manipulá-los.
Por um momento, Rielle olhou para a víbora, imaginando-a viva e má –
seis metros de músculos e pele escamosa, correndo pelo chão com garras do
tamanho de seu antebraço.
— Se eu abrir o Portão — disse lentamente — posso agravar o dano
causado pelos santos.
— Sim — Corien concordou.
— Sem querer, eu poderia alargar aquelas rachaduras no Abismo e trazer as
cruciata para cá.
— E então você vai destruí-los, como eu disse. Você vai transformá-los em
cinzas. — A irritação coloriu sua voz. — Você se preocupa com as pessoas
deste mundo. Você se preocupa com aqueles que não se preocupariam com
você. Por quê?
Porque a vida é preciosa.
Porque é a coisa certa a fazer.
Porque eu sou a Rainha do Sol. Eu protejo e defendo.
Nenhuma das respostas que refletiu parecia verdadeira. No início das
provações, ela acreditava nessas coisas, até as proclamava para que todos
ouvissem. Mas talvez estivesse mentindo para si mesma até então.
Corien estava olhando para ela atentamente. — Eles não merecem sua pena
ou proteção. Você é mais como nós do que como eles. Você pertence a nós.
— Uma pausa. — Você pertence a mim, não a ele.
Rielle tentou manter essa declaração em sua mente, mas não conseguiu
segurá-la com firmeza.
Ela se afastou de Corien para olhar para a besta, com a qual ela sentiu uma
repentina afinidade doentia. — Eu não pertenço a lugar nenhum — sussurrou.
Foi a coisa mais verdadeira que disse em algum tempo.
Os dedos de Corien roçaram a parte inferior de suas costas. — Sei que você
deve chegar a essa verdade por conta própria e esperarei que a encontre, mas
exorto-a a ver agora: onde você pertence é ao meu lado.
Quando não respondeu, ele encontrou sua mão e pressionou o polegar em
sua palma. — Tenho arquitetado essa guerra há séculos. E no final disso,
você e eu reinaremos sobre um novo mundo glorioso no qual os únicos
animais são os nossos e obedecerão a todos os nossos comandos.
Ela respirou fundo e se virou para encará-lo. — Mostre-me.

•••

Ele havia esculpido uma cidade inteira sob as montanhas. Laboratórios mais
imaculados, administrados por eruditos angelicais em vestes brancas e
revestidos com mesas de metal, prateleiras de ferramentas de aparência
perversa, fileiras de frascos tampados. Minas e forjas que queimavam dia e
noite. Quartéis para legiões de soldados mudos de olhos cinzentos que Corien
chamou de adatrox.
— Eles são humanos — disse Rielle baixinho enquanto Corien a escoltava
por um enorme salão de pedra. Em ambos os lados, linhas de adatrox
percorriam o comprimento da sala. Eram negros e pálidos, gordos e magros.
Homens borsválicos, mulheres Kirvayanas. Mazabatianas. Celdarianos.
Pareciam bonecos arrumados por uma criança – rígidos, ligeiramente
desajeitados, ligeiramente tortos.
Quando Rielle passou, seus olhos turvos não a seguiram.
— Eles serão nossa primeira onda de terror — disse Corien. —
Brutamontes estúpidos. Não muito criativo, mas certamente eficaz.
— Quantos são?
— Sete mil. Em dois meses, terei dez.
Um arrepio de medo percorreu Rielle quando ela começou a compreender o
escopo de seu trabalho. Ela se lembrou dos soldados Sauvillier no teste de
incêndio – seus olhos cinzentos, sua mudez, como se voltaram contra os
próprios vizinhos sem avisar.
Então, havia dezenas de soldados. Aqui, havia milhares. Milhares de
pessoas arrancadas de suas casas, possuídas por anjos.
— E você habita todas as suas mentes? — Rielle sussurrou.
— A maioria. Cada um dos meus comandantes controlam alguns
esquadrões. — Ele olhou para ela. A diversão iluminou seus pensamentos. —
Isso assusta você.
— Isso me impressiona. E sim, isso me assusta.
Ele levou a mão dela aos lábios. — Eu gosto de impressionar você. E
confesso, também gosto de te assustar. Agrada-me imaginá-la tremendo de
admiração por mim, como tantas vezes fiz por você. Ah. Aqui.
Ele não deu a ela uma chance de responder. Ela o sentiu registrando seu
desconforto, como a enervou completamente, e ainda assim ele incitou
alegremente. Era um jogo entre eles, um empurrão e um puxão. Ela o havia
superado no laboratório e agora ele estava ganhando terreno.
Um jogo em que o objetivo não é vencer, pensou ele, mas emergir como
vencedores iguais.
Rielle manteve o olhar treinado no caminho diante deles. E se eu decidir
que não quero mais jogar?
Corien não respondeu, em vez disso conduziu-a por uma série de
corredores mal iluminados. O ar ficava cada vez mais quente à medida que
caminhavam e, quando emergiram em uma sala cavernosa iluminada de cima
por uma grade de ferro de tochas, o fedor quase derrubou Rielle – mas ela
ficou feliz com isso. A distração era bem-vinda, evaporando a tensão entre
eles.
— Olha — Corien sussurrou, gesticulando grandiosamente. — Pequenas
obras de arte, não são? Os dragões têm sido particularmente úteis para nós.
Sua genética é robusta e versátil.
Rielle não sabia o que ele queria dizer com isso, mas mesmo assim se
aproximou da beira de um poço escavado no chão, cordas quentes de medo
apertando sua garganta. O poço em si era enorme, talvez trezentos metros
quadrados, com uma grade de ferro grossa aparafusada no topo. Ao redor da
borda havia crianças, e nenhuma delas poderia ter mais de dez anos. Elas
também tinham olhos cinzentos velados, mas havia um poder neles, como
não havia com os adatrox. Algumas ficaram de pé, outras agachados. Todas
olhavam para o poço.
E todas usavam receptáculos.
Eles eram todos idênticos – faixas gêmeas de ouro ao redor dos pulsos e um
colar de ouro no pescoço. Flutuando no ar, perfurando o fedor, estavam
cheiros familiares. Terra úmida. Pedra queimada pelo sol. Água da chuva,
fumaça, vento alpino. A picada acre das sombras e o cheiro amargo do metal.
Rielle ficou olhando, sua repulsa uma cascata rápida.
Essas crianças eram elementais, muito jovens para usar receptáculos. Sua
própria experiência com magia, e a de Audric também, eram excepcionais;
normalmente, uma criança podia começar a estudar o poder elemental quando
bem jovem, mas não forjaria seu receptáculo até pelo menos o início da
adolescência.
— Elas forjaram seus receptáculos aqui? — Rielle perguntou fracamente.
— Sim. — O prazer silencioso de Corien beijou seus pensamentos. —
Algumas aceitaram melhor do que outras.
— E se recusassem?
— Eu as convenci.
Sem falar, Rielle optou por se aproximar do poço e se ajoelhar para espiar
dentro.
Abaixo da grade, agarrando-se e arranhando-se mutuamente, havia criaturas
– uma reminiscência do cadáver cruciata, mas mais medonho. Rielle olhou
sem fôlego para a bestialidade: ombros desajeitados, musculosos; asas
atarracadas de carne e penas; peles escuras desgrenhadas e peles escamosas;
bicos e garras. Cabeças rombas e enormes como bigornas. Chifres que
estalavam contra a grade e faiscavam como pederneira. Eles rangeram os
dentes e balançaram a cabeça, gemendo como se estivessem em uma agonia
furiosa.
E embora fossem malformados e distorcidos, cada um uma colcha de
retalhos de horrores, todos compartilhavam certas características distintas. As
caudas, por exemplo, e as asas, e as peles ásperas e peludas.
— Eles são dragões — ela sussurrou. — Você os mudou.
— Melhoria por meio do grotesco. — Ajoelhado ao seu lado, Corien olhou
pensativamente para suas criações. — Um dos meus generais começou a
chamá-los de rastreadores, já que você realmente não pode mais dizer que são
dragões, pode? O nome pegou bastante. Embora até agora eu tenha achado
impossível controlar completamente a mente de uma besta divina, nossos
tratamentos os mantêm dóceis e, além disso, os fundidos das crianças os
prendem como um arreio faz a um cavalo. E, claro, eu controlo as crianças.
Veja isto.
Ele estalou os dedos – só para mostrar, Rielle sabia. Suas habilidades não
precisavam de gatilho externo.
Em torno do fosso, as crianças elementares ficaram atentas. Ecos de seus
gritos roucos ecoaram no silêncio. Corien alcançou um mecanismo preso à
grade e pressionou uma trava. Uma porta na grade se abriu.
— Mostrem para ela — Corien comandou, sua voz cheia de excitação.
Assim que a palavra saiu de sua boca, uma das crianças – um menino jovem,
de pele e cabelos claros, olhos acinzentados e bochechas redondas – ergueu
os pulsos com faixas.
Um rastreador saltou da cova para se agarrar com garras quebradas.
Pendurado ali, ele abriu sua boca larga e uivou.
Cada tocha suspensa na grade acima explodiu para a vida. Pendentes
ruidosos de chamas jorraram de seus suportes, enchendo a caverna com luz e
calor abrasadores. Placas de metal moldadas em torno do peito, barriga e
ombros da fera brilhavam como um líquido de fogo, combinando com o
brilho dos receptáculos do menino.
Rielle deu um passo para trás do inferno, o coração batendo forte quando a
verdade ficou clara para ela.
A armadura do rastreador fazia parte do receptáculo da criança, unindo-os.
Um par de assassinos, maleáveis e impiedosos. E qualquer que fosse o poder
vivido em uma besta divina, sem dúvida aumentava a magia elemental que a
criança já possuía.
E Corien…
Corien poderia controlá-los – as crianças e seus animais.
Ele podia controlar todos eles.
14
Jessamyn

“Traduzido do Qaharis formal, ‘Vaera Bashta’ significa ‘covil das


tristezas’. Esta enorme e cavernosa instalação, que se estende por três
quilômetros quadrados abaixo da cidade de Elysium, abriga prisioneiros
de todos os países de Avitas e foi projetada pelo imperador, em Sua
infinita sabedoria, para atormentar seus habitantes humanos além do
reparo.”
— A Glória de Elysium: Uma Introdução à Cidade do Imperador,
compilada pelo Conselho dos Cinco Invictus para alunos do Liceu

Acontecia duas vezes por mês, anunciado por cinco toques agudos das
enormes buzinas de latão da prisão – alguns mantidos no subsolo, outros
presos em telhados próximos na cidade acima.
Jessamyn se agachou em seu poleiro na prisão de Vaera Bashta e observou
o caos se desenrolar. Na língua comum, era chamado de abate. Em Lissar, era
cinvayat, e em Qaharis, era praeori kyta. Uma época em que todas as
fechaduras das quinze alas da prisão eram desfeitas, todas as portas abertas.
Por três horas, milhares de prisioneiros ficariam livres para fazer o que
quisessem, para matar quem quisessem, para se encolher nas sombras e
esperar que ninguém os encontrasse – até que os guardas angelicais os
forçassem a voltar para suas celas.
Jessamyn esperou até que o som das buzinas diminuísse, então saltou
silenciosamente da saliência de pedra com vista para a seção E3. A passagem
gradeada abaixo estava vazia, intocada pelo caos do abate. Isso levava às
solitárias, e os prisioneiros ali mantidos não tinham permissão para ter a
mesma diversão que os outros. Os solitários eram especiais. Muitos haviam
afrontado pessoalmente o Imperador. Conspiradores. Dissidentes.
Irmãos de princesas teimosas que se recusaram a usar seu poder como
deveriam.
Os guardas haviam se retirado para seus escritórios, comida e bebida em
mãos – nenhuma das quais saciaria sua sede ou satisfaria sua fome, mas o ato
de consumi-la, Varos havia explicado há muito tempo para Jessamyn, era
uma satisfação suficiente. Pelo menos por um tempo. Pelo menos até que não
fosse.
Enquanto Jessamyn descia a passarela vazia, os sons de violência ecoaram
em seus ouvidos. Gritos selvagens enquanto os caçadores atacavam suas
presas. Gritos sufocados e úmidos enquanto a morte tomava conta dos fracos.
Ela captou apenas vislumbres dos prisioneiros enxameando as cavernas mal
iluminadas abaixo. Um menino magrelo, com as omoplatas projetando-se das
costas nuas como um par de facas submersas, rastejou pelas sombras e
sussurrava orações frenéticas para que ninguém o encontrasse. Alguém o fez;
Jessamyn ouviu seu grito abafado, o som de osso batendo em pedra. À sua
direita, marchando em direção às enfermarias inferiores, uma gangue de
homens cantava em borsvallic, brandindo tochas que haviam arrancado das
paredes. À sua esquerda, uma gangue de crianças seminuas em trapos
imundos se lançou sobre um homem velho e o arrastou para o chão.
Eles estavam com fome. Para alguns, aquele era um momento de matar não
por prazer, mas simplesmente para encher a barriga.
Quando Jessamyn finalmente alcançou as solitárias, o abate se transformou
em um eco. O corredor era esculpido em pedra negra, imaculado e silencioso.
Dois guardas adatrox flanqueavam a porta 14. Jessamyn se preparou para
mandá-los embora, mas eles abriram a porta e se afastaram antes que ela
pudesse.
Ela apertou a mandíbula enquanto passava por eles. Esperava que, quando
o Império tivesse sido elevado à sua própria glória anterior, o uso de soldados
adatrox não fosse mais necessário. Eles podiam ser ferramentas úteis, ela
supôs, mas ela odiava seus olhos cinzentos cegos, a maneira estúpida e
trêmula com que se moviam. Controlados por anjos, suas próprias mentes
humanas achatadas e devastadas – os adatrox a lembravam de sua própria
humanidade, e quão fraca ela era. Quão facilmente poderia ser invadida e
manipulada, reduzida a alguma criatura fantoche, se falhasse em provar seu
valor para o Imperador.
Algum dia, quando ganhasse seu nome angelical, e junto um lugar como
uma conselheira do Imperador, o diria isso. E ele iria ouvir.
Um pequeno calafrio de prazer desceu por seus braços enquanto ela
imaginava. Desde seu encontro com o Imperador no dia anterior, ela não
conseguia parar de pensar nele. Salpicado de sangue, olhos selvagens e
lindos, sussurrando para ela sobre o plano que executariam juntos.
Transformar o menino Remy em uma arma. Usá-lo para desgastar o resto da
força de vontade de Eliana.
Mostrar à merda de uma princesa que a única pessoa que lhe restou no
mundo se tornou um animal de estimação ansioso do inimigo – tudo graças a
Jessamyn.
O orgulho aqueceu seu peito. Se ao menos Varos pudesse ter visto este dia.
Ele nunca teria duvidado dela novamente.
Jessamyn ficou parada na porta da cela de Remy. Ele estava encolhido no
canto. O ar estava fétido e frio.
— Acorde — ela comandou.
Um momento se passou. Remy não se moveu.
Ela correu em direção a ele, agarrou a gola de sua túnica de prisão e o
colocou de pé.
— Acorde — repetiu, empurrando-o com um grunhido.
Ele tropeçou, de olhos arregalados, e conseguiu se endireitar. Seus pés
descalços bateram em uma poça escura e rasa perto do ralo no centro do
chão.
Em silêncio, Jessamyn o avaliou. Ele era um menino magro como um
pássaro. A cabeça dele mal alcançava seus ombros. Seu cabelo emaranhado
tinha crescido selvagem; seu lábio inferior estava inchado e ensanguentado.
Arranhões marcavam seus braços e pés. Ele estava com os ombros curvados,
seu corpo curvado para frente como se para proteger sua cintura.
Jessamyn suprimiu uma onda de irritação. Apresentar uma criança sarnenta
e meio morta ao Conselho dos Cinco como seu novo aluno a tornaria motivo
de chacota, independentemente das ordens do Imperador.
Ela precisaria de um tempo sozinha com Remy antes que alguém no Liceu
pudesse dar uma boa olhada nele. Não era apenas sua reputação em jogo, mas
também a de Varos.
— Meu nome é Jessamyn — disse a ele. — Você virá comigo.
Ela se virou e foi para a porta, mas ele não a seguiu. No limiar, ela olhou
por cima do ombro.
— Ou você prefere ficar aqui? — ela perguntou calmamente. — Sozinho e
apodrecendo no escuro? Restos podres para comer e guardas vindo todas as
manhãs para bater em você?
Por fim, ele falou. — Para onde você está me levando é pior?
Isso a surpreendeu. Uma criatura de aparência tão miserável; ele não
parecia ter nenhuma inteligência sobrando nele.
— Melhor em alguns aspectos, pior em outros — respondeu, pois não
adiantava mentir. Ela se forçou a suavizar a voz. Deixe-o pensar que ela
poderia ser uma amiga. — Mas você verá sua irmã. Na verdade, se você fizer
o que eu digo, logo chegará um momento em que você poderá vê-la todos os
dias.
Seu rosto se iluminou. Em seus olhos brilhou uma pequena luz de
esperança.
Jessamyn franziu a testa enquanto ele mancava para segui-la. Portanto,
ainda havia suavidade nele.
Não por muito tempo.

•••

Naquela noite, Remy se sentou em um banquinho no quarto de Jessamyn no


Liceu, observando-a de perto no espelho.
— Seu rosto é a sua maior falha — Jessamyn lhe disse. Um corte de prata
de sua tesoura. Ele havia se banhado e agora ela estava aparando seu cabelo
em um comprimento respeitável. — Eu posso ver cada pergunta que você
deseja fazer, cada emoção que você sente.
Ela o observou tentar transformar seus traços em uma máscara fria. Poderia
ter sido engraçado, se as palavras do Imperador não estivessem sussurrando
em seus pensamentos.
Talvez ele os estivesse observando agora mesmo.
Jessamyn olhou para seu reflexo confuso nas lâminas da tesoura.
— Entendo — Remy disse, sua voz cuidadosamente uniforme.
— Você não entende nada. — Jessamyn recuou para verificar seu trabalho.
— E se você quiser sobreviver, você vai fazer tudo que eu disser. Você vai
estudar, praticar, treinar. Você vai comer o que eu como. Você vai dormir
quando eu dormir.
Remy ficou em silêncio, observando-a enquanto ela arrumava o quarto e
varria o cabelo do chão.
— Por que você está fazendo isso? — perguntou baixinho.
Jessamyn não o olhou. Quando foi designada para Varos pela primeira vez,
era uma mera criança. Ela havia dormido em uma cama dura no chão de seu
quarto. Muitas noites, tinha ficado acordada, ouvindo sua respiração e
lutando contra o sono, pois sabia que acordaria com as mãos de Varos em
volta da garganta e teria que lutar com ele ou falhar em mais uma lição. No
início, teve medo de tais testes.
Mais tarde, passou a desejá-los.
Remy seria o mesmo. E um dia, Eliana Ferracora veria aquele brilho em
seus olhos e saberia que tudo estava perdido. Não havia razão para lutar.
Havia apenas o Império e o propósito glorioso de servir a Sua Majestade o
Imperador dos Imortais.
Jessamyn encontrou seu velho catre debaixo da cama e jogou-o no chão.
Estava marrom de poeira; as bordas estavam desgastadas e remendadas.
Então se virou e encontrou Remy parado muito perto dela, uma expressão
plácida em seu rosto.
Uma olhada no espelho a mostrou a tesoura agarrada às costas dele.
Menino tolo.
E ela era ainda mais tola por permitir que as memórias a distraíssem.
Com um rosnado, Jessamyn levou a mão à garganta de Remy, cutucando-o
em sua traqueia. Ele largou a tesoura e cambaleou para trás, com falta de ar.
Ela o seguiu, bateu a palma da mão com força contra sua orelha e deu um
soco logo abaixo do peito. Ele gritou de dor e caiu de joelhos. O garoto
favorecia o lado esquerdo; ele tinha uma costela machucada, suspeitou.
Em um instante, ela puxou sua cabeça para trás, uma mão em seu cabelo. A
outra segurava uma das facas de seu cinto. Ela pressionou a lâmina em sua
garganta e se inclinou tão perto que seus lábios roçaram sua bochecha.
— Por que estou fazendo isto? — ela perguntou, repetindo sua pergunta. —
Porque Ele me escolheu para guardar Suas obras.
Ela o pôs de pé com um puxão e chutou sua coxa. Ele caiu mais uma vez,
no catre que ela havia preparado.
Jessamyn o seguiu. — Ele me escolheu para receber Sua glória —
continuou. Era o juramento de indução do Invictus, um que ela deveria ter
proferido diante dos Cinco com Varos de pé orgulhosamente atrás dela.
Remy se mexeu contra a abordagem dela, tentou correr. Ela agarrou o
banquinho e o jogou na porta. Ele se espatifou na parede e se estilhaçou;
Remy se abaixou para evitar a madeira voando.
— Eu sou a lâmina que corta à noite — Jessamyn disse, seguindo-o. — Eu
sou a guardiã da Sua história.
Agarrou Remy pelos ombros, forçando-o a voltar para o espelho. De pé
atrás dele, com as mãos firmes em seus braços, o fez encarar seu reflexo com
os olhos arregalados e as lágrimas. Em sua garganta, uma linha fina de
sangue.
— Algum dia você também será — disse a ele. — Assim ordena o
Imperador. Está feito, Remy. A ordem foi dada.
Então Jessamyn o virou, segurou-o pelo queixo de modo que seus olhares
se encontraram. Sua boca tremia; seus olhos brilhavam com lágrimas.
— Vou ajudá-lo a sobreviver a isso — disse, e pelo menos isso era verdade.
— Mas tente me machucar de novo, e farei você desejar estar de volta à cela,
apodrecendo no escuro. Você entende?
Depois de um momento, Remy assentiu. Lágrimas escorreram por suas
bochechas, e Jessamyn lutou contra o desejo de repreendê-lo por isso. Este
não era um aluno comum. Ela teria que andar com cuidado.
— Bom — disse em vez disso, e acenou com a cabeça em direção à pia. —
Essa foi a nossa primeira lição. Agora se limpe.
15
Eliana

“Traga-me duzentos músicos. Os que acabamos de eliminar eram


totalmente inadequados, e você sabia disso quando os apresentou a mim.
Traga-me compositores que escrevem sua mortalidade indefesa em cada
melodia, cantores com tempestades de tristeza em seus pulmões. Traga-
me pessoas que gostariam de poder parar de ouvir a música fervendo em
seu sangue, mas não conseguem, então eles a arrancam de seus corpos
da única maneira que sabem – por meio de ar e cordas e bateria e
caneta.”
— Carta de Sua Santa Majestade, o Imperador dos Imortais, para o
Almirante Ravikant, datada de 11 de maio, ano de 1018 da Terceira
Era

As palavras passaram pela mente de Eliana em uma leve brisa: Você vai me
machucar para recuperá-la?
Ela acordou de um sono profundo e abriu os olhos para uma névoa branca e
espessa. Sua língua estava seca e inchada, seus membros pesados. Queria
andar, mas não conseguia ficar de pé.
Então ela rastejou.

•••

Ela alcançou um pátio, então um corredor limpo forrado com um tapete azul
grosso. A luz do sol fluía através das janelas em arco com bordas de vidro
colorido, e Eliana encontrou forças para se levantar. No final do corredor
havia uma porta e, através dela, o escritório de Simon.
Suas palmas formigaram ao vê-lo.
Lá dentro, o encontrou ao lado das janelas abertas, cochilando em uma
espreguiçadeira com um livro aberto no peito. Uma brisa agitou as páginas.
Eliana afastou o livro com um sorriso largo, subiu em cima dele, alcançou
seu rosto – e então ficou muito quieta, as mãos pairando sobre sua pele.
Ele abriu os olhos e agora a fitava com um sorriso sonolento. — Que visão
para a qual despertar — disse suavemente.
Ela se afastou e fugiu da sala, o coração batendo forte. Cerrou os punhos e
ordenou que suas palmas vibrantes se aquietassem. Em torno de suas mãos,
as correntes de seus receptáculos estremeceram e faiscaram.
Aqui não. Ela formou o pensamento e empurrou-o para baixo de seus
braços. Nunca mais.

•••

Eliana abriu os olhos.


Você vai me machucar para recuperá-la?
— Eu não sei quem você é! — chorou. — Quem é você?
Ninguém respondeu.
Ela estava na beira de uma estranha floresta sem folhas. Não gostou da
aparência, mas não havia escolha a não ser entrar.
Movendo-se por entre as árvores, percebeu tarde demais que elas não eram
árvores. Eram corpos em todas as cores e tamanhos, nus e encarando
fixamente. Seus olhos estavam negros e sem pálpebras.
Anjos, esperando por ela para salvá-los.
O empirium os puniu, retirou a magia do mundo.
— Só você pode trazê-lo de volta — sussurrou um dos corpos, e embora
não se mexesse, Eliana sentiu seus dedos agarrarem sua saia. — Só você
pode trazê-la de volta.
— Salve-nos — outro lamentou. — Ajude-nos a ver.
— Estamos famintos.
— Estamos com sede.
Um estremeceu quando ela passou. — Toque me. Faça-me sentir de novo.
— Encontre-a.
Eliana tapou os ouvidos com as mãos e correu, os gritos dos anjos a
perseguindo. O calor de suas mãos queimava sua pele e seus lábios estavam
úmidos de sangue, mas ela manteve as mãos pressionadas com força contra o
crânio.
Se fosse queimar, faria isso sozinha.

•••

Eliana abriu os olhos.


Você vai me machucar para recuperá-la?
Ela olhou com horror para o homem encolhido no chão a seus pés. Ele foi
golpeado; hematomas negros desenhavam continentes em sua pele pálida. Ele
agarrava o estômago com uma das mãos e estendia a outra para Eliana. Entre
os dedos pressionados em seu abdômen, o fim de sua vida borbulhava
vermelho.
— Foi tudo mentira, Eliana — Simon disse, sua voz áspera. — Por favor
me ajude. Eu fiz tudo por você.
Eliana se afastou, os olhos ardendo tão quentes quanto as mãos. — Eu não
posso. Eu não vou. — Ela olhou para o céu. Estavam em um penhasco, com
vista para uma série de montanhas carecas. O céu estava vermelho pelo pôr
do sol. Anéis de sangue marcavam suas palmas, circundando seus
receptáculos. Eles estavam quentes; estavam prontos.
Ela os negou. Aqui não. Imaginou mergulhar as mãos em uma piscina de
gelo, como seus receptáculos fumegariam e murchariam.
— Você me ouve? — Ela ergueu a voz. O ar estava estranho, denso e
fechado, e engoliu suas palavras assim que ela gritou. — Eu não vou te
ajudar. Eu vou morrer antes de ajudá-lo. Eu posso fazer isso para sempre.
Simon engatinhou em sua direção. — Você vai me ajudar? Como você fez
por Remy. Lembra? — E então Simon deixou escapar um gemido agudo de
dor, um soluço tenso. Ele piscou com força e balançou a cabeça. — Depressa,
Eliana. Eu quero explicar. Eu quero te contar tudo. Por favor me ajude.
Eliana lhe deu as costas e foi embora. Ela o ouviu gritar, implorando para
que voltasse. Algo o estava atacando; ela ouviu um som chiado, como um
enxame de insetos, e então o bater de pés e punhos contra a carne. Um osso
quebrou e o grito de Simon foi rouco de dor.
— Eliana, por favor!
Ela fechou os olhos e caminhou até ficar com buracos nas botas e as solas
dos pés deixarem marcas vermelhas. Não era real. Ela sabia disso. Nada disso
era real.
E ainda assim, o grito de angústia de Simon a seguiu até o fim do mundo.

•••

Você vai me machucar para recuperá-la?


Eliana abriu os olhos para ver uma jovem olhando para ela.
Vestida com o uniforme preto de ombros quadrados usado pelos guardas do
palácio, a pele da mulher era de um marrom mel, suas bochechas salpicadas
de sardas. Sua longa trança era de um rico e brilhante escarlate.
Jessamyn.
A memória veio rapidamente: o calor suave da pele de Jessamyn enquanto
se beijavam naquele galpão fora da cidade de Karlaine. O alívio de seu toque
e a paz que veio depois – até o ataque, nem uma hora depois, que quase tirou
a vida de Remy.
Eliana se recuperou rapidamente. — A última vez que te vi — disse,
sentando-se — você estava me socando. Estávamos no cais em Festival.
— Eu me lembro — disse Jessamyn, cada palavra cortada. — Levante-se.
— Por quê você está aqui?
— O imperador me designou para sua escolta — foi a resposta direta.
Jessamyn agarrou o pulso de Eliana, puxando-a com força em direção à beira
da cama. — Ele ordenou a sua presença no concerto desta noite.
Então, essa Jessamyn era tão implacável quanto a que Eliana conhecia.
Dois de seus atendentes adatrox a conduziram para o banheiro. Eram
mulheres extraordinariamente adoráveis, ambas de olhos cinzentos e mudas,
uma com pele morena lisa, a outra estranhamente pálida. Suas vestes brancas
esvoaçavam em seus tornozelos, e ao redor de seus pescoços brilhavam golas
douradas.
Enquanto penteavam e modelavam os cachos soltos que agora caíam sobre
seus ombros, Eliana observou Jessamyn de perto. Embora ficasse na porta do
banheiro, posicionada como qualquer guarda estaria, Jessamyn parecia
inquieta, deslocada. Um dedo batia contra sua coxa. Ela segurou a mandíbula
com força.
Um pensamento veio à mente cansada de Eliana. Ela sabia pouco sobre a
mecânica do tempo, mas ainda assim se perguntava: seria possível que algo
de sua Jessamyn existisse dentro desta? Alguma semelhança que ela poderia
encontrar e usar, se soubesse onde procurar?
Eliana precisava mantê-la falando. Ela olhou para o vestido que esperava
em seu gancho. — Então, outro concerto hoje à noite, então. Orquestra?
Coro? Um solista, talvez?
— Não estou a par dos planos do imperador — disse Jessamyn, — e se eu
tivesse, não os compartilharia com você.
— Por que ele designou você para minha guarda?
— Não peço ao Imperador que explique suas ordens. Eu apenas as sigo.
As assistentes de Eliana ajudaram-na a se levantar, depois a enxugaram
com toalhas brancas macias e começaram a amarrá-la em uma elaborada
roupa de baixo que prendia sua cintura.
— Você não está curiosa? — Eliana insistiu.
Jessamyn olhou para ela, impassível. — Não.
Suas assistentes a envolveram em um vestido de veludo vermelho.
Diamantes enfeitavam suas mangas transparentes e sua saia brilhava com
uma camada de organza dourada.
— Eu estaria, se fosse você — disse Eliana. — Você é uma estagiária da
Invictus, não é? Você deveria estar em algum lugar do mundo, realizando
missões. Cuidando das minhas roupas, me acompanhando aos concertos –
você não acha isso um pouco insultuoso?
Jessamyn lançou-lhe um olhar fino. — Ele me escolheu para guardar Suas
obras. Ele me escolheu para receber Sua glória. Eu sou a lâmina que corta à
noite. Eu sou a guardiã de Sua história.
Um arrepio apoderou-se de Eliana com a reverência na voz de Jessamyn.
Ela encolheu os ombros. — Se você diz.
Havia jóias para combinar com o vestido – dois pesados anéis de ouro
coroados com buquês planos de estrelas. As assistentes se curvaram para
colocá-los e então se afastaram de suas mãos, onde as correntes de ouro de
seus receptáculos cintilavam. Suas sobrancelhas lisas franziram ligeiramente.
Uma abriu a boca e soltou um grito abafado de medo.
— Deixe-me — veio a ordem brusca de Jessamyn. Ela dispensou as
assistentes e colocou os anéis nos dedos de Eliana.
— Eu te conheci uma vez — disse Eliana, observando o rosto de Jessamyn
em busca de qualquer sinal da mulher que ela conhecia. — Você foi boa
comigo então. Você beija tão bem quanto luta.
Jessamyn recuou para inspecioná-la, franzindo a testa. — Elas esqueceram
seus brincos.
Eliana engoliu em seco contra uma pontada de decepção e baixou o olhar
para o chão. Se Jessamyn sentiu alguma curiosidade sobre tais comentários
estranhos, ela não se traiu e entregou nada, seu rosto de pedra dificilmente
mais familiar do que o de um estranho, e só naquele momento, com uma
rápida dor de desespero, Eliana percebeu o que esperava.
Que se a Jessamyn que conhecia pudesse ser alcançada, então talvez Simon
também pudesse.
— Diga-me — sussurrou, sua voz grossa. — Há quanto tempo estou aqui?
Jessamyn pegou brincos brilhantes de uma almofada no chão. — Dois
meses.
Um momento se passou antes que Eliana pudesse falar novamente. Dois
meses era mais tempo do que imaginava. Oito semanas ela passou em
pesadelos como o projeto de Corien, e ainda não tinha certeza se o que tinha
visto de Remy – seu corpo se debatendo, seus gritos horríveis – tinha sido
verdade ou mentira.
Seus olhos se encheram de lágrimas; rapidamente, ela piscou para afastá-
las. Não usava seus receptáculos desde aquele dia em seu quarto, quando
Simon tinha viajado de um lado para o outro. Isso foi um triunfo. Isso valeu a
pena qualquer sacrifício.
Mas como estava cansada de sacrifícios.
Eu vou acabar com isso, Eliana. A memória sussurrada de Corien veio
docemente, lembrando-a. Esta sua vida, toda a violência, todo o sacrifício.
Seu irmão estará seguro. Ele ficará tão feliz, e você também. Vivo, saudável
e seguro. Seguro, você pode imaginar? Pela primeira vez na vida.
Eliana soltou um suspiro suave e trêmulo. Ela pressionou as palmas das
mãos com força contra as pernas.
— Você vai me machucar para recuperá-la? — sussurrou.
Jessamyn, prendendo os brincos de Eliana no lugar, não respondeu.
— Eu continuo ouvindo essas palavras — disse Eliana. Ela enxugou as
bochechas, sem se importar com o ruge. — Não sei por que os ouço. Acho
que alguém está tentando me dizer algo, mas não sei quem são ou o que
querem dizer.. Você vai me machucar para recuperá-la? O que isso
significa? É um aviso? Uma mensagem?
Por um momento, seus olhares se encontraram, e Eliana procurou o rosto de
Jessamyn com um desespero que parecia meio louco.
Um lampejo de sentimento cruzou o rosto de Jessamyn e foi embora
rapidamente. Sua boca era uma linha reta de aborrecimento.
— Talvez uma memória — ofereceu. — Com tantos anjos por perto, muitas
vezes há memórias perdidas. — Ela ergueu uma sobrancelha indiferente. —
Eu sugeriria que você não insistisse nisso. O Imperador não apreciará sua
distração.
Então ela olhou além de Eliana, caiu suavemente sobre um joelho e baixou
a cabeça.
Eliana se virou para ver Corien parado na soleira, observando-as com
diversão. Ele usava um colete de gola alta de brocado preto, um casaco de
veludo preto e um colete vermelho sangue.
— Que visão você é — murmurou. — Se eu apertar os olhos e desfrutar de
mais algumas bebidas, acho que quase posso fingir que você é ela.
Ele estendeu o braço, mas Eliana recusou. Com os olhos ardendo de
exaustão, se sentiu aquecida por uma calma repentina.
Você vai me machucar para recuperá-la?
Por fim, ela conhecia aquela voz.
— Eu preciso ver Simon — declarou. Ela flexionou os dedos; seus
receptáculos estavam frios e escuros.
O sorriso de Corien se alargou. — Como minha rainha exige.

•••

Simon os esperava em uma sala de estar na ala norte do palácio. Ele usava
um uniforme escuro, o casaco na altura do joelho abotoado no alto do
pescoço e abraçando confortavelmente seu torso elegante. Ele ficou na janela,
olhando para a noite, e em sua entrada, ele se virou e inclinou a cabeça.
— Vossa Excelência — disse suavemente, seu olhar no Imperador. Ele
evitou olhar para Eliana inteiramente.
Mas, desde o momento em que entrou na sala, Eliana não tirou os olhos
dele.
— Desculpas por atrasar o concerto, Simon — disse Corien, transbordando
de uma energia tranquila e alegre. — Eu sei o quanto você gosta desse
compositor. Mas nossa rainha exigiu vê-lo, e parecia muito sério. Eu não
podia negá-la.
Então Corien encontrou uma garrafa em uma mesa de serviço, serviu-se de
uma taça de vinho tinto, levantou sua bebida para eles e se acomodou
confortavelmente em uma espreguiçadeira no canto. Um servo acendeu uma
pequena fogueira; a luz de bronze da sala mudou com sombras.
Eliana ficou em silêncio por um momento, tensa com a incerteza. Talvez
tenha sido um erro estar aqui. Ela não podia se permitir liberar nem mesmo
um fragmento de raiva.
Mas havia algo que ela precisava saber.
— Eu sou eu mesma — murmurou, os punhos cerrando e abrindo ao lado
do corpo. Não aqui, ela comandou seus receptáculos. Nunca mais.
Simon observou em silêncio. Em sua espreguiçadeira, Corien sorriu por
cima da borda de seu copo.
— Eu estava realmente ansioso por este concerto — Simon disse
finalmente, sua voz afiada com impaciência. — Então, se você não pretende
falar, afinal…
— Eu vou falar — Eliana disse baixinho, com os braços rígidos. — Aquela
noite em Karlaine. Fomos atacados. Havia adatrox. Rastreadores. Cruciata.
— Sim.
— Você e Remy estavam me seguindo, eu suponho, desde Harkan… — O
nome de Harkan ficou preso no fundo de sua garganta.— Desde que Harkan
me drogou e me tirou de Dyrefal. O dia em que o Império invadiu Astavar.
— Sim.
Essa voz oca, sem vida e fria. As unhas de Eliana picaram suas palmas.
Simon não era estúpido. Ele devia saber o que ela estava prestes a dizer, e
isso a enfureceu por ele permanecer tão calmo, e a enfureceu ainda mais por
ela não poder se permitir ficar furiosa.
Ela tornou a voz firme. — Remy foi baleado naquele dia. Um tiro no
estômago. Ele morreu e eu o curei.
— Sim.
— ‘Salve-o ou veja-o morrer’. Foi isso que você me disse. — A boca de
Eliana azedou com a memória. Era mortificante pensar em seu velho e tolo
eu. — Você me segurou. Você disse que não me soltaria.
Silêncio. Nem mesmo uma mudança de peso. Ele era uma pintura sem vida,
observando-a se desfazer.
Eliana forçou as palavras para fora. — Eu deixei você me foder.
Um pequeno sorriso apareceu no canto da boca de Simon. — E obrigado
por isso. Eu precisava.
Suas palavras a esmurraram e seu estômago embrulhou ao ouvi-las, mas ela
permaneceu de pé. O calor flamejou em suas palmas; ela mal percebeu.
— Eu continuo ouvindo algo na minha cabeça — disse entre os dentes. —
No início, não reconheci a voz. Estava distorcida, distante e minha mente
estava confusa. Mas agora eu sei que pertence a Remy. Eu tenho ouvido isso
há… — Ela hesitou. Em sua mente, os dias se transformaram em semanas em
horas. Ela não sabia há quanto tempo estava ouvindo.
— Eu não sei por que isso está acontecendo — disse finalmente, — mas eu
ouvi Remy dizer a mesma frase dezenas de vezes agora. ‘Você vai me
machucar para recuperá-la?’
Ela procurou cada cicatriz no rosto de Simon, a curva de seu lábio inferior,
a linha afiada de sua mandíbula. Uma gota de suor escorreu por seu pescoço.
Ela se imaginou golpeando-o com punhos de fogo, o que seu rosto trairia
enquanto queimava.
— ‘Recuperá-la’ — sussurrou. — Me recuperar. Porque Harkan havia me
levado. Fazia sentido para mim que você tenha levado Remy com você
quando veio atrás de mim. Você me amava, eu achava. Você queria que eu
ficasse com meu irmão porque isso me faria feliz.
Eliana se aproximou dele devagar. A cauda pesada de seu vestido arrastou-
se pelo chão. — Mas agora eu entendo. Agora vejo que você nunca me amou.
Cada vez que você me tocava era mentira. Então, por que você arrastaria meu
irmão mais novo quando poderia ter se movido mais rapidamente sem ele?
Simon observou sua abordagem, sua expressão ainda como uma pintura.
— Porque você estava desesperado para que meu poder viesse à tona —
respondeu Eliana. — Você queria ver mais do que incêndios invocados por
manchas e navios afundados por tempestades. Você queria ver meu
verdadeiro poder para que despertasse o seu, e você sabia a melhor maneira
de assustá-lo.
A três passos dele, Eliana parou. Um rugido distante de raiva agitou seus
ouvidos. Seu corpo doía de tensão. — Você atirou nele.
O sorriso de Simon voltou. Seus olhos brilharam, lupino. — Sim. Eu atirei
nele bem no estômago.
Com um grito terrível e agudo, Eliana se lançou sobre ele, com o punho
erguido para atacar. Ele se lançou para frente para encontrá-la, bloqueou seu
soco com o próprio. Seu punho agarrou-a pelo braço, e então o outro golpeou
forte em seu estômago. Antes, ela teria se recuperado rapidamente disso, mas
semanas no mar seguidas por semanas na prisão da mente de Corien a
deixaram magra e macia.
Ela cambaleou com o golpe, engolindo em seco, mas as lâminas de fúria
incandescente subindo por sua espinha não a deixaram descansar. Voou em
Simon, avançando sobre ele com chutes e socos selvagens, sua garganta crua
com seus gritos. Ele a prendeu em seus braços; ela o acertou nas costelas com
o cotovelo, depois se virou e acertou sua mandíbula com um soco feroz. Ele
vacilou; ela deu uma joelhada na virilha dele.
Quando ele tropeçou, ela se virou, pegou um vaso de uma mesa e o
derrubou na cabeça dele. Ele cambaleou e, quando o chutou, ele voou pela
sala e colidiu com a parede oposta. Várias pinturas emolduradas caíram no
chão; ele caiu junto, seu rosto manchado de sangue. À sua esquerda, a lareira
fervia.
Eliana afundou rapidamente no tapete. A raiva a segurou tremendo em suas
garras, tornando sua visão vermelha e preta. As janelas estalaram nas
vidraças. No manto, as velas transformaram-se em lanças de chamas
brilhantes. Além do terraço, na cidade, uma esguia torre branca balançou e
desabou. Gritos distantes de alarme flutuaram pelo palácio.
Aqui não. Eliana se aninhou em uma bola apertada no chão, as mãos
entrelaçadas escondidas contra o peito.
Não aqui, não aqui. Ela era ela mesma. Ela era uma menina, uma criança,
um bebê.
Nem aqui, nem nunca mais. Estava limpa e envolta em branco. Suave e
encasulada, seu poder um mero sussurro. Não estava com raiva. Não estava
com medo. Não se desesperaria.
Enquanto ouvia o tremor do palácio, lágrimas quentes de vergonha rolaram
por seu rosto. Por muito tempo, resistiu ao desejo de dar a Corien qualquer
parte de si mesma, manteve seu poder fechado e silencioso – até esta noite.
Teria sido Corien quem plantou a voz de Remy em sua mente, esperando que
isso a provocasse? Ou a memória veio de outra pessoa?
Ela olhou para cima, viu Simon se levantar e erguer os braços, procurando
por seus fios. Luzes fracas brilharam nas pontas de seus dedos por apenas um
instante antes que a sala escurecesse mais uma vez.
Os olhos de Eliana tremularam fechados, suas peças escuras dentro de seus
punhos. Quando sorriu, ela sentiu o gosto de sal.
Em seguida, um rugido familiar de raiva perfurou o ar, seguido pelo
barulho de vidro. Alguém a agarrou pelos cabelos e a colocou de pé. O rosto
de Remy floresceu em sua mente, magro e ensanguentado. Um olho azul, o
outro avermelhado por um soco cruel e cercado de hematomas. Queria
alcançá-lo, mas não o fez. Ela fechou os olhos, lutou contra a força de sua
querida voz sussurrando seu nome.
Não era real. Ela vivia dentro de um pesadelo, só isso.
— Vou machucá-lo novamente — Corien sibilou contra seu ouvido, seu
hálito azedo de vinho. — E de novo, e de novo. Eu te mostro beleza, prometo
a você paz por semanas, e é isso que eu recebo em troca? Sua maldita garota
idiota. Você está lutando uma guerra que não pode vencer e sabe disso. Eu
vou machucá-lo bem na sua frente, assim como eu fiz antes. Sim, isso foi real
e será novamente. Vou fazer chover agonia sobre ele até você quebrar. É isso
que você quer?
Ele a estava arrastando pela sala, o braço preso ao dela. Ela lutou contra ele,
mas sua mente a segurou com força, forçando-a a andar. Ela se sentiu mal de
medo enquanto suas pernas se moviam contra sua vontade.
— Eu quero ver o concerto — engasgou.
— Oh, não, minha linda — disse Corien, rindo. — É tarde demais para
sutilezas. Considere a vida pacífica que eu dei a você finalizada.
O progresso deles pelo palácio foi um borrão de movimento e cor, seus pés
desajeitados sob a direção de Corien. Quando voltou a si, piscando
rapidamente, estava em um terraço resplandecente com a luz de tochas. O
vento uivou, e uma rápida olhada ao redor mostrou que estavam em um dos
níveis mais altos do palácio, o espaço iluminado por uma dúzia de tochas.
Duas torres de vigia brancas flanqueavam o terraço, e Eliana gelou de horror
quando viu Remy pendurado em uma delas. Um guarda angelical o segurava
pelo colarinho. Seu rosto, ensanguentado e com as faces encovadas, estava
emoldurado por cabelos escuros bem aparados.
E da outra torre…
Eliana olhou para o homem pendurado no ar, suspenso assim como Remy.
Ela conhecia o rosto, mas sua mente se recusou a aceitar o que poderia
significar.
— Pai? — sussurrou. Seus braços estavam gelados.
Ioseph Ferracora olhava para ela, o rosto molhado de lágrimas e os olhos
não mais negros. Eles eram azuis, como os de Remy. Seu queixo quadrado se
projetava teimosamente, como o de Remy.
— Oh, sim, eu queria te dizer isso — disse Corien alegremente. — Seu pai
– sinto muito, o homem que te criou; sabemos quem é o seu verdadeiro pai,
não sabemos? – ele não morreu na Batalha da Baía de Arxara, como você
pode ter sido levada a acreditar. Ele estava vivo quando o almirante Ravikant
o encontrou. E como Ravikant é um dos nossos mais talentosos, um dos mais
fortes, ele foi capaz de habitar o corpo de seu pai enquanto preservava sua
vida humana, mantendo sua mente intacta e saudável. O almirante, é claro,
graciosamente se ausentou para o propósito de nossa pequena reunião esta
noite. — Corien tocou suavemente a bochecha de Eliana. — Não é uma boa
notícia? Afinal, Ioseph Ferracora ainda está vivo!
Eliana não conseguia encontrar a voz. Seus olhos se fixaram no rosto de seu
pai e não a deixaram ir. Não conseguia parar de pensar na visão que Corien
lhe enviara – Remy, Simon, Ioseph e ela mesma, feliz e rindo em uma casa
iluminada pelo sol. E havia todas as lembranças de sua infância: Ioseph indo
para a guerra; dançando com Rozen em sua cozinha; segurando a pequena
Eliana em seu colo após o desfile anual da Rainha do Sol, ambas brilhando
com pó dourado, vendo o sol nascer enquanto a estátua do Portador da Luz se
elevava acima deles.
O mundo girou lentamente; algo terrível estava para acontecer e Eliana não
tinha como impedir. Ela cerrou os punhos. Se seu receptáculo despertasse
novamente, ela não tinha certeza se seria capaz de conter o fluxo de seu poder
desta vez.
Ioseph abanou a cabeça. — Não dê ouvidos a ele, doce menina. Está tudo
bem. — Sua voz tremeu. As lágrimas rolaram por suas bochechas e pela
barba que o almirante Ravikant havia mantido tão bem aparada. — Está tudo
bem.
— Não é uma boa notícia? — Corien rugiu. Ele sacudiu Eliana com força.
— Diga-me!
Um soluço explodiu dela. — Sim. Sim!
— Estou cansado de esperar que caia em si, Eliana — disse com veemência
contra o rosto dela, — de lhe oferecer prazeres, prometendo-lhe paz. Chega.
Se eu não conseguir persuadi-la a raciocinar, serei forçado a quebrá-la.
Corien sacudiu a cabeça para a torre de Ioseph. — Salve o homem que te
encontrou nas ruas e te alimentou e protegeu até que ele saiu de casa para
lutar uma guerra que eu comecei, apenas para ter seu corpo roubado e usado
como uma marionete.
Ele a virou bruscamente, a fez olhar para a torre de Remy em seguida. —
Ou salve seu irmãozinho inocente, que até agora não te culpa por toda a
miséria que sofreu em seu nome. Tente salvar os dois, e vou rasgar seus
crânios em pedaços de dentro para fora antes mesmo de atingirem o chão.
Então, antes que Eliana pudesse respirar para implorar, os guardas
segurando Ioseph e Remy os deixaram ir, e seus corpos mergulharam na
noite.
16
Tal

“Merovec encontrou o cadáver do Arconte nas portas da Casa da Luz.


Ele afirma que o Arconte tirou a própria vida, mas não nos permite
examinar o corpo. Nos últimos dias, o Arconte implorou a Merovec para
encerrar o interrogatório dos elementais. Ele era o único membro do
Conselho Magisterial que Merovec permitia dentro de Baingarde; agora
estamos sem um aliado no castelo. A cidade está em alvoroço. Os leais a
Merovec estão pilhando templos, desmontando-os peça por peça. Os
fiéis estão desesperados, sem ter para onde ir. Merovec ouviu rumores
sobre a Coroa Vermelha e está pessoalmente entrando nas casas sem
avisar com esquadrões de soldados para fazer buscas em porões e
interrogar famílias. É como se pensasse que estamos escondendo Rielle
no sótão de alguém. Nós da Coroa Vermelha dizemos isso uns aos
outros quando precisamos de coragem: pela coroa e o país, protegemos
a verdadeira luz.”
— Carta codificada de Miren Ballastier, Grã Magister do Forge, para
o Rei exilado Audric Courverie, datada de 3 de dezembro, ano 999
da Segunda Era

Tal chegou a uma curva no caminho da montanha e parou para recuperar o


fôlego.
Abaixo dele se estendia um mar de rochas vermelhas – os cânions e
montanhas do sudeste de Vindica. Era um país que outrora pertenceu a anjos
e agora só podia ostentar uma espécie de beleza vazia e total, como se o
próprio empirium o tivesse abandonado. Cidades em ruínas foram
abandonadas ao apetite do tempo, hospedando apenas uma população de
necrófagos, errantes e o ocasional acólito ambicioso em uma peregrinação
solitária.
De seu lugar no caminho, Tal inspecionou o horizonte, as montanhas ao seu
redor, o céu anil escuro. Embora usasse um lenço longo e grosso amarrado na
cabeça e no pescoço, seus lábios ardiam e sua garganta estava seca. Os
brutais ventos da montanha, sufocados com areia, eram incessantes.
Então a voz em pânico de Ludivine irrompeu em sua mente – uma sensação
com a qual Tal permaneceu totalmente desconfortável e permitiu porque há
muito percebeu que não conseguiria encontrar Rielle sozinho. Ele não era
poderoso o suficiente. Sua mente estava embotada, sem imaginação. Sempre
esteve. Apenas um talento elementar decente e uma dedicação implacável ao
estudo garantiram a ele sua posição como Grão Magister.
Essa verdade sempre o corroeu. Agora que estava isolado há semanas, seu
apetite havia se tornado monstruoso, deixando o humor de Tal sombrio e
frágil.
Eu não consigo vê-la Os pensamentos de Ludivine o agarraram como o
aperto frenético de alguém se afogando. Aconteceu alguma coisa. Eu não
consigo mais vê-la.
Tal odiava falar mentalmente. Odiava. O ato parecia profano, o fez querer
tomar banho em água fervente.
Ela está machucada? Ele ficou parado rigidamente em um pedaço de
grama rasteira, olhando para o horizonte ao sul, onde uma linha preta fina
marcava o mar da Namíbia e Pátria além. Ela está morta?
Ele ouviu a risada exausta de Ludivine. Você acha que Rielle poderia
morrer e o mundo continuaria imperturbado de alguma forma?
Então onde ela está?
Eu não sei. Eu não sei! Ela está tão longe de mim. Até agora, e tão
assustada, Tal. Um soluço flutuou até ele através de qualquer conexão
perversa que Ludivine havia estabelecido com sua mente. Ele a está
mantendo escondida de mim. Você deve encontrá-la.
Tal soltou uma única risada amarga. O desespero o manteve em movimento
por semanas; ele mal havia parado para descansar, passando por tempestades
de neve e poeira. Havia seguido uma trilha irregular construída junto com os
sussurros frenéticos de Ludivine e qualquer informação que pudesse reunir
quando se atreveu a parar em estalagens, albergues de viajantes,
acampamentos de tribos nômades e caçadores de tesouros itinerantes.
Durante semanas, mal dormiu, tanto seus sonhos quanto seus pensamentos
ao acordar estavam cheios de Rielle. Sua imagem naquela noite horrível fora
da aldeia de Tavistère o atormentava. Eles tinham olhos fixos; Corien o
provocou. Tarde demais, Tal.
Esse desespero, a memória de seu rosto assustado na chuva, o mantiveram
avançando por longas semanas, sem se importar com seus músculos
doloridos, as bolhas em suas botas, o aperto de fome em seu estômago.
Mas agora aquela força o deixou de uma vez, como se os ossos tivessem
sido sugados para fora dele. Ele caiu no chão e ficou sentado imóvel
enquanto o vento cuspia sua implacável areia vermelha.
Tarde demais, Tal. Tal riu, enfiou a mão sob o lenço na cabeça e esfregou o
rosto com as mãos imundas. Isso é o que ele me disse naquela noite. Acho
que ele estava certo.
A voz de Ludivine estava grave. Em sua mente, Tal podia vê-la sentada em
uma cadeira cercada por vegetação, os ombros tensos e as mãos firmemente
cruzadas no colo.
Tal, você deve encontrá-la,, ela pensou para ele. Se eu não puder vê-la,
você terá que fazer isso sozinho.
— O que você acha que estou tentando fazer? — ele cuspiu. Se recusava a
falar mentalmente por mais tempo.
Não posso deixar Audric. Ele precisa de mim para ajudá-lo, e o mundo
precisa dele em seu trono.
— Eu não pedi para você deixar Audric. — Tal se pôs de pé. Esse ato
simples foi exaustivo o suficiente para fazê-lo querer deitar-se na areia e
deixar que ela o enterrasse. Mas ele tinha visto uma caverna cerca de um
quilômetro abaixo da montanha, e poderia dormir lá durante a noite.
— Vou procurar por ela no mundo inteiro — murmurou. — Eu, um único e
simples firebrand, rastrearei o mais poderoso par de criaturas que já existiu.
Um anjo e uma rainha divina. E quando eu os encontrar, ela certamente vai
me ouvir. Você não acha? Ela sempre fez isso. Nenhuma vez ela me desafiou.
Depois de um momento, Ludivine falou baixinho. Você parece um pouco
histérico, Tal. Você deveria descansar.
Se ao menos ela estivesse realmente ao lado dele para que ele pudesse dar
um tapa nela. — Eu deveria descansar? Você sabe, eu nunca pensei nisso.
Obrigado.
Você não é bom para ela estando exausto.
Ele jogou toda a força viciosa de sua frustração em seus pensamentos. E
você não foi boa para ela mesmo no seu melhor.
Ela recuou e Tal caminhou mais oitocentos metros antes de ela falar
novamente.
Você está certo. Sua voz saiu fraca. Eu falhei com ela completamente. Eu
falhei com todos vocês.
O desespero dela era honesto. Até mesmo os ecos distantes disso ondulando
na mente de Tal fizeram seus olhos arderem. Ele considerou brevemente
enviá-la um pensamento de conforto, embora ela não merecesse.
Mas algo o distraiu – um flash de luz algumas centenas de metros
montanha abaixo. Aquilo brilhou por dois segundos, tremeluziu, clareou e
então desapareceu.
Tal congelou, calafrios cobrindo sua pele superaquecida. A luz do sol havia
diminuído e as rochas ao redor dele adquiriram um brilho carmesim
assustador. De repente, estava muito ciente de como estava sozinho e
vulnerável.
Ele enfiou a mão no bolso do casaco, o tecido duro coberto de areia.
Enrolou os dedos em torno de sua adaga. Alcançou o escudo em suas costas,
sentiu seu poder puxar com força entre seu corpo e seu receptáculo.
O que é isso? Ludivine perguntou.
Nada de bom, tenho certeza, respondeu Tal. Deixe-me. Você vai me distrair
e está muito longe para ajudar.
Ele sentiu a hesitação dela..
Diga-me o que você encontrou, disse finalmente.
E se o que encontrar for minha morte?
Sua voz estava carregada de pesar. Sinto muito, Tal.
Então, com uma mudança sutil de sensação em sua mente, ela se foi.
Achatando-se contra a rocha, Tal abriu caminho pela trilha da montanha,
que se estreitava em um abismo estreito entre dois penhascos altos.
Na boca do abismo, ele esperou, sem fôlego, pois além dos penhascos, onde
o caminho se alargava mais uma vez, havia um declínio dramático e, em
seguida, uma pequena clareira de pedra plana fustigada por um aglomerado
de pedras.
E nesta clareira, um anel de luz apareceu – pequeno e fraco no início, e
então rapidamente cresceu e se iluminou, uma escuridão inconstante em seu
centro. A primeira luz tremeluziu; esta era estável.
Uma figura entrou em um anel de luz, seguida por uma segunda. Um
instante depois, a luz desapareceu, jogando a montanha de volta na escuridão.
A noite estava chegando; apenas um leve brilho vermelho do pôr do sol
permaneceu.
O batimento cardíaco de Tal disparou em seus ouvidos.
Quem eram essas pessoas, ele não sabia. Mas pelo menos um deles era uma
marque – e Rielle estava viajando com um marque.
Ele procurou na escuridão. Se ela estivesse lá, teria que agir rapidamente.
Se não estivesse, achava que não conseguiria suportar.
— Isso demorou muito — disse uma das pessoas abaixo, sua voz masculina
e rouca e vagamente familiar. — O terremoto…
— Tentou me matar e falhou — cuspiu o segundo da dupla. Uma mulher,
pensou Tal. Ela puxou o capuz de sua capa e passou as mãos por uma longa
mecha de cabelos claros e rebeldes. — O mundo inteiro enlouqueceu, Garver.
O mundo e as pessoas nele.
Os joelhos de Tal tremeram de alívio, mesmo quando um novo desespero o
atingiu. Nenhuma dessas pessoas era o marque de Rielle. Ele pressionou a
testa contra a parede de pedra ao lado, ainda quente do sol. Com as palmas
das mãos apoiadas na rocha, começou a orar.
Fogo que parece uma frota, não arde com fúria ou abandono.
Queime firme e verdadeiro, queime limpo e queime brilhante.
Quando sua mente clareou, Tal percebeu que conhecia o nome Garver, se é
que era o mesmo homem. Garver Randell era um curandeiro e boticário que
Audric e Rielle preferiam a qualquer um dos curandeiros reais do palácio,
para desespero dos curandeiros. Garver tinha um filho, Rielle lhe disse. Um
menino de oito anos chamado Simon.
— Avura? — ele ouviu Garver perguntar abaixo.
— Se foi — sua companheira respondeu. — Esses terremotos derrubaram
tudo, até mesmo as malditas montanhas.
Tal ouviu, atordoado. Avura era um dos maiores assentamentos no sopé
ocidental das montanhas Maktari, que se estendia de norte a sul ao longo de
toda a extensão oeste de Vindica.
Tal estava lá há apenas quatro dias, seguindo o caminho errático da trilha
de Rielle. A população da cidade chegava a centenas de milhares, e nunca na
história registrada um terremoto ocorreu naquela região. Certamente não um
grande o suficiente para destruir uma cidade tão grande.
O Portão irá cair. Estava acontecendo exatamente como Aryava havia
predito.
Duas Rainhas se levantarão. Uma de sangue e outra de luz.
Por anos, ele orou para que Rielle fosse a Rainha do Sol. Tinha orado tão
ferozmente e com tanta frequência que passou a acreditar de todo o coração –
que ela era boa, que não podia ser quebrada nem corrompida. Que se a
ensinasse conscienciosamente, se orasse por ela com convicção suficiente, ele
poderia garantir que ela se tornaria a pessoa que os salvaria.
Mas nada disso foi o suficiente. Ele falhou com ela. Falhou com todos. Não
era melhor do que Ludivine, incapaz de proteger o que era mais importante, e
agora Rielle estava perdida. Afinal, a Rainha de Sangue, pelo que parecia. A
Assassina de Reis, como muitos a chamavam.
Só Tal não conseguia acreditar nisso, mesmo depois de tudo o que tinha
acontecido. Não Rielle. Ele a ensinou por anos, viu sua coragem florescer.
Ela era poderosa, sim, mas era boa. Ela sabia o que era certo e sempre se
esforçou para fazer isso. Ele tentou imaginá-la como uma rainha sanguinária
nos braços de um anjo e se recusou a acreditar, mesmo que sua mente
fornecesse facilmente as imagens.
— Fogo que parece uma frota — sussurrou, suas mãos tremendo contra a
pedra aquecida pelo sol — não arde com fúria ou abandono. Queime firme e
queime de verdade. Queime limpo e brilhante.
Então, a luz floresceu através de suas pálpebras. O ar perto dele mudou.
Tal girou e abriu os olhos no momento em que a luz desapareceu. Duas
mãos fortes agarraram seus braços; uma lâmina fria cutucou sua garganta.
— Ele tem um receptáculo — disse a pessoa que segurava seus braços. Era
a mulher que tinha visto, sua voz afiada. — Um escudo amarrado às costas.
Invoque seu poder, elemental — disse calmamente — e eu irei mergulhar
esta adaga em sua garganta.
— Não há fogo nessas rochas — respondeu, cansado. — Você está a salvo
de mim, marque.
Um leve clarão de sol permaneceu no horizonte ocidental, permitindo a Tal
luz suficiente para ver o homem que segurava a faca em sua garganta. Ele
tinha cabelos castanhos grisalhos e pele avermelhada, uma barba rala e olhos
azuis penetrantes.
O homem estreitou o olhar, então usou sua mão livre para rasgar o lenço da
cabeça de Tal.
— Eu conheço você — disse ele, inspecionando o rosto de Tal. — Taliesin
Belounnon. Grão Magister do Pyre da capital.
— E você é Garver Randell — adivinhou Tal. — Curandeiro do verdadeiro
rei de Celdaria.
Uma pausa, e então Garver sorriu severamente. — O verdadeiro rei —
concordou, e abaixou sua faca.
A mulher soltou Tal e deu a volta para encará-lo. Sua pele era pálida, assim
como seu cabelo. Seus olhos eram ainda mais penetrantes que os de Garver, e
seu corpo era ossudo e afiado.
— O que, em nome de Deus, você está fazendo até aqui? — perguntou.
— Rezando — disse categoricamente.
— Sim, e nós ouvimos você descendo a encosta. Você deve observar isso
no futuro. E se eu fosse alguém que quisesse matar você?
— Annick — avisou Garver.
— Você quer me matar? — Perguntou Tal.
— Não no momento — Annick respondeu. — Mas isso pode mudar
facilmente. Diga-me, meu senhor. — Seus lábios se curvaram com as
palavras. Ele não a culpou; durante as Guerras Angélicais, quando o medo
dos marques atingiu alturas febris, a Igreja foi fundamental para erradicá-los.
Todos os sobreviventes do massacre se esconderam profundamente.
— Estamos rastreando um marque há algumas semanas — Annick
continuou, — esperando encontrar um aliado nestes tempos sombrios e
incertos. Quem quer que sejam, são rápidos e fortes e tem sido difícil
acompanhar o ritmo deles. Agora perdemos o rastro – na mesma noite em
que encontramos você, um Grão Magister da igreja Celdariana, nas selvas
angelicais. Você tem uma explicação para essa coincidência notável?
Tal olhou fixamente para o rosto de Annick, que estava com muito cuidado
e sem expressão para confiar. Então ele olhou para Garver.
— Eu também tenho rastreado um marque — disse Tal. — Eu os tenho
seguido desde Tavistère. Depois, Terenash, depois Gormar Highlands e
Zhirat. Eu estava em Avura há apenas quatro dias. Este também é o caminho
que você percorreu?
Annick caiu em um silêncio impassível. Garver franziu a testa,
considerando-o.
Com urgência, Tal continuou. — Se houver uma maneira de ajudá-lo a
redescobrir o rastro deles, por favor, me diga. Devo encontrá-los.
— Por que o ajudaríamos a encontrar um marque? — Annick perguntou,
cruzando os braços sobre o peito. — Você é da Igreja. Aqui, você é a Igreja.
— Eu nem estava vivo durante o Flagelo! Sua briga está com meus
ancestrais.
— E você fez muito na sua vida para compensar os crimes deles, não é? —
Annick disse, seus olhos brilhando. — Você pediu aos seus amigos magísters
para reescrever as leis para me permitir mostrar as asas nas minhas costas e
viver livremente no mundo, em vez de me esconder em uma caverna no meio
do nada?
Garver beliscou a ponte de seu nariz. — Annick…
— Não, eu não fiz — admitiu Tal.
— Então não finja inocência — Annick disparou. — Seu próprio sangue
está contaminado com o meu.
— Sim, tudo bem, é claro que você está certa — disse Tal rapidamente, —
e se eu sobreviver à destruição iminente do mundo, juro que reunirei o
Conselho Magisterial e exigirei que revisitem as doutrinas de Autoridade e as
registro. Mas primeiro temos que sobreviver. Devo encontrar a marque que
você está procurando e você será capaz de me ajudar a rastreá-la com muito
mais eficiência do que eu poderia sozinho.
Ele hesitou, então decidiu que o que queria dizer valia o risco. — Acho que
você os está rastreando pelo mesmo motivo que eu. Não para encontrar
aliados, mas para encontrar Rielle.
O silêncio que caiu sobre eles vibrou com a tensão. O rosto de Annick
estava ilegível.
Mas Garver cedeu. — Na noite do casamento real, senti um marque perto
da cidade. Uma coisa chocante, pois eu sabia que existiam apenas dois na
capital, sendo eu um deles. Este era novo e incrivelmente poderoso, muito
mais do que eu. Então a rainha Rielle desapareceu, e a marque com ela.
— E você os tem rastreado desde então? — Perguntou Tal.
— Com ajuda e muito mais devagar do que eu gostaria. — Ele olhou para
Annick. — Poucos marques hoje em dia podem viajar tais distâncias
sozinhas. Quem está com a rainha é alguém com um poder excepcional.
— E quando você encontrar este marque e a rainha Rielle — disse Tal, — o
que você planeja fazer, exatamente?
Antes que Garver pudesse responder, Annick riu.
— Ele ainda não chegou tão longe — respondeu ela. — Eu enumerei para
ele todos os motivos pelos quais ele não deveria fazer essa coisa temerária, e
isso está no topo da lista. Não ter um plano.
Garver se irritou. — Eu não podia ficar parado sem fazer nada.
— Não, então você decidiu viajar direto para o meu quarto sem nenhum
aviso, jogar nosso filho em mim sem nenhuma consideração pela minha
pobre e chocada esposa, e então ir perambular pelo mundo atrás de um anjo
sem nenhum plano além de me arrastar junto com você.
— Eu posso ajudar vocês — disse Tal com urgência. — Se pudermos
encontrar seu marque, podemos encontrar Rielle. E se eu conseguir encontrar
Rielle… — Um nó se formou em sua garganta, quebrando sua voz. — Se eu
puder encontrá-la, posso libertá-la dele. Posso trazê-la para casa, para
Celdaria, onde ela pertence. Só então estaremos seguros. Se não pudermos
fazer isso, temo que ela se perca para sempre e o mundo caia, assim como
Aryava proclamou.
— E se a Rainha Rielle não quiser se livrar dele? — Garver perguntou
baixinho. — E se ela foi de boa vontade? O que há sobre você que vai
convencê-la a deixá-lo?
— Eu a amo. — As palavras sufocadas explodiram de Tal. — Eu a amo e
ela me ama. Eu ensinei tudo que ela sabe. Eu a protegi por toda a vida.
— E fez um péssimo trabalho — murmurou Annick.
— Annick! — ralhou com Garver.
— Eu a conheço. Eu a conheço. — Tal olhou para cada um deles, rezando
para que acreditassem nele. — Eu posso alcançá-la. Eu sei que posso. Eu
simplesmente tenho que falar com ela. Se ela me ouvir, verá a razão. Se eu
puder tocá-la, abraçá-la, ela se lembrará de casa. Ela lutará para se livrar dele
se for preciso.
Depois de um longo momento, Garver olhou para Annick. Ela não disse
nada, sua expressão era séria, e acenou com a cabeça uma vez.
— Muito bem, meu senhor — Garver disse. — Vamos viajar juntos.
Vamos descansar a noite, então começaremos ao amanhecer.
O alívio da exaustão de Tal foi imenso demais para descrever em palavras.
Ele os direcionou para a caverna que havia encontrado, então se acomodou
no chão duro fora dela, sob uma larga boca negra cheia de estrelas. Ele
enganchou seu braço com segurança pela alça de seu escudo, que cobria seu
torso como uma concha polida.
Dentro da caverna, Garver sentou-se pesadamente e colocou a cabeça entre
as mãos. Annick se acomodou ao seu lado, olhando para a noite.
— Eu odeio estar tão longe de Simon — Garver disse rispidamente, depois
de um longo momento. — Ele é um menino de coração terno, embora tente
não ser. Ele vai se preocupar.
— Quinlan está cuidando dele — Annick respondeu. — Ela tem amigos
poderosos. Eles estarão seguros.
— Sua esposa é muito boa para você.
— É verdade — disse Annick, e acrescentou, com um sorriso na voz: —
Sabe, em momentos como este, quase me pego desejando que você e eu
nunca tivéssemos deixado de nos amar.
— Em momentos como este, eu me pego desejando não ter nenhum poder,
então eu poderia enviar sua bunda miserável para salvar o mundo e ficar em
casa com meu filho.
— Nosso filho, seu desgraçado — disse Annick com ternura, e beijou o
nariz de Garver.
Tal ouviu a conversa silenciosa deles até que seus olhos começaram a se
fechar e, pela primeira vez desde que deixou Celdaria, adormeceu com uma
chama de esperança queimando limpa e brilhante em seu coração.
17
Eliana

“Há dias em que também perco a coragem. Ouço os gritos dos


moribundos, e acho que tudo está perdido. Mas se você aprender uma
coisa com meus escritos, espero que seja o seguinte: qualquer que seja a
dor que você sofreu, a Rainha do Sol, quando vier, suportará muito
mais. E ela saberá o tempo todo que, se se render, custará de tudo o que
vive.”
—A Palavra do Profeta

Acabou rápido demais.


Eliana cambaleou pelo terraço, desajeitada de terror, e caiu de joelhos
contra o parapeito baixo de pedra. Ioseph e Remy caíram rapidamente em
direção ao chão, seus corpos um borrão na escuridão.
A partir do momento em que Eliana entendeu a intenção de Corien, sabia
qual seria sua escolha e, portanto, não hesitou. Podia sentir a verdade em suas
palavras: se tentasse salvar os dois, ele iria matá-los e ela ficaria sem nada.
Mas ele sabia disso e tinha adivinhado corretamente como ela responderia a
essa ameaça, que não teria escolha a não ser fazer o que estava fazendo agora
– estender a mão para o corpo de Remy enquanto ele girava e despencava, o
desespero fazendo suas peças ganharem vida.
O empirium mudou ao seu comando, o ar ao redor de Remy se tecendo em
uma rede acolchoada brilhante. Olhos vidrados, sua visão ficou dourada e
flexível, Eliana podia ver a mudança no ar como a pressão de um polegar
contra a pele, fazendo com que a carne do mundo se esticasse e enrugasse.
Lágrimas silenciosas rolaram por suas bochechas enquanto ela abaixava
Remy suavemente para o pátio abaixo, a pedra branca limpa agora estragada
por algo que Eliana não conseguia olhar. Em vez disso, observou um par de
guardas colocar Remy de pé e escoltá-lo até que ele se perdesse nas sombras.
Ela se encolheu no terraço, estremecendo contra o parapeito. Apoiou a
bochecha na pedra fria e áspera e, enquanto ouvia os sons dos soldados
carregando o corpo de Ioseph, algo se quebrou dentro dela. Não foi um
estalo, mas uma leve cedência, como se uma árvore amolecida e meio
apodrecida tivesse ficado alta demais e com os ventos fortes não pôde mais
suportar seu próprio peso. Uma exaustão diferente de todas que ela havia
sentido antes caiu sobre ela, puxando uma espessa manta de dormência sobre
seus pensamentos.
Ela mal notou Corien ajudando-a a se levantar. Ele afastou o cabelo do seu
rosto e enxugou as lágrimas.
— Que desperdício fazer você suportar isso — disse. — Faríamos uma
família feliz, se você permitisse. Você, eu, Remy. Sua mãe também, uma vez
que a encontrasse. Vou deixar você esfolar Simon até os ossos se quiser e
mantê-lo vivo a cada segundo de agonia.
O polegar de Corien acariciou seu queixo. Ele a observou com olhos mais
negros do que o céu acima deles. — Mande-me de volta, Eliana, e você
nunca mais terá que se sentir assim.
Então ele se virou e foi embora, e Eliana entrou em um túnel escuro e
silencioso, sem vida. Quando ela encontrou a luz mais uma vez, estava em
sua cama branca e limpa em seus quartos brancos e limpos, todas as
superfícies inundadas pelo luar suave. Ela se enrolou em cima dos cobertores,
tremendo.
Um som crepitante soou pela sala, um zumbido distorcido que a lembrou
do chiado azedo da iluminação galvanizada. De um funil de latão afixado na
parede, no alto de um canto da sala, acima de um feixe de fios grossos, vinha
a melodia crescente da orquestra tocando no teatro no andar de baixo. O
dispositivo de latão distorceu o som, fazendo parecer que a orquestra estava
fazendo música em uma montanha alta distante.
Eliana não sabia como Corien havia conseguido isso, nem se importava. A
música atingiu seus ouvidos como calcanhares cegos de mãos cruéis, e ela as
deixou socá-la para dormir.

•••

Eliana acordou com o cheiro nauseante do café da manhã chegando.


Ela observou estupidamente enquanto suas assistentes vestidas de branco
levavam os pratos para a pequena mesa de jantar branca perto das janelas
voltadas para o sul – um prato, uma tigela, um jarro, uma taça. O cheiro de
comida pairava em seu nariz e boca como uma película amarga. Eliana se
afastou da mesa bem posta. Se ela olhasse por mais um segundo, ficaria
enjoada.
Houve um momento de silêncio, e então da porta veio um bufo agudo de
impaciência. Jessamyn apareceu, marchando até a cama de Eliana em seu
uniforme preto elegante. Uma pequena coleção de facas embainhadas
pendurada em seu cinto.
— Você vai comer cada pedaço — ordenou, puxando Eliana para cima. —
Sua Excelência comanda.
Eliana não resistiu. Uma vez de pé, seguiu Jessamyn até a mesa. Sua mente
parecia confusa; mover as pernas, pensar, era como se arrastar por um
pântano. Ela se sentiu como se tivesse sido puxada por um abismo apertado
para um estado que não estava nem acordada nem adormecida.
E ainda assim seu olhar voou para as adagas de Jessamyn. Com que
facilidade seus pensamentos se voltaram para Arabeth, Nox e Whistler, suas
amadas facas há muito desaparecidas. Lentamente, uma ideia começou a se
formar.
Eliana sentou-se diante do café da manhã e mediu a respiração, permitindo
que sua ideia crescesse. Se ela se movesse muito rapidamente, perturbaria a
névoa que mantinha sua mente entorpecida, e Corien sentiria o que ela
pretendia e a impediria.
— Coma — Jessamyn vociferou, ficando de pé ao lado da mesa.
Eliana levou uma colher de purê aos lábios. A luz da manhã era filtrada
pelas janelas; o vidro estava imaculado e, além, uma pomba empoleirada na
sarjeta alisava suas penas.
A ideia de Eliana mudou e se aguçou, tomando forma. Ela não podia – não
iria – ajudar Corien. E ainda assim não poderia suportar mais isso. O
tormento noturno sem fim, Remy trazido diante dela e abusado, a
incapacidade de confiar em sua própria mente.
Essa era a resposta. Ela tinha que terminar o jogo antes que ele pudesse
vencer, e essa era a única maneira de fazer isso.
Ela comeu sob o olhar atento de Jessamyn. Passou a colher da tigela aos
lábios até que o prato estivesse limpo, e então ela começou a fruta. Uma baga
se abriu entre seus dentes.
— Onde Remy está preso? — perguntou. Se ela iria abandoná-lo neste
lugar, precisava ouvir a verdade sobre seu destino. — Ele está ferido? Ele
está sendo alimentado?
— Alimentado, sim — Jessamyn disse depois de uma pequena pausa. —
Machucado, sim, mas nada notório. O Imperador se certificará de que ele está
seguro, desde que seja útil.
Desde que seja útil Eliana sorriu com um leve alívio. Assim que ela fosse
embora, eles o matariam. Ele iria querer assim. Ele iria querer que ela fizesse
isso. Duas vidas em troca de inúmeras outras? Uma equação simples. Se
Remy soubesse, como ela, que era a única maneira de vencer, ele mesmo
seguraria a lâmina.
— Eu tinha pensado nisso — sussurrou, terminando sua fruta. — Que ele
seria mantido vivo enquanto eu também estivesse.
Ela pegou uma fatia de pão com manteiga. Ela imaginou as três adagas
amarradas ao cinto de Jessamyn, mas não ousou olhar para elas. Uma
estranha paz apoderou-se dela. Ela teria que ser rápida. Uma última morte
para o Terror de Orline.
Remy, me perdoe, ela orou.
Em seguida, ela se levantou rapidamente da cadeira e atingiu Jessamyn com
força na garganta.
Jessamyn cambaleou para trás e ofegou silenciosamente, agarrando seu
pescoço. Ela não esperava por isso. Eliana estava fraca. Ela ficou mole; não
segurava uma adaga há semanas. Mal parecia uma pessoa, quanto mais uma
assassina.
Mas o desespero deu-lhe uma nova força. Encontrou a adaga mais curta no
cinto de Jessamyn e arrancou-a da bainha. Sua mente um frenesi de luz
branca e ruído crepitante, seu sangue em chamas com o triunfo, ela empurrou
a lâmina em direção ao seu próprio estômago.
Antes que a lâmina pudesse encontrar a carne, algo a agarrou – uma
presença firme, mas gentil em sua mente, como uma mão ao redor de seu
pulso, puxando-a para trás.
Não, pequenina. Ainda não. Ainda temos coisas a fazer, você e eu.
Quem quer que fosse essa pessoa, enviando a linguagem mental em seus
pensamentos como os anjos faziam, não era Corien.
Eliana largou a faca.
Os adatrox estacionados ao redor da sala permaneceram em silêncio e
imóveis. Jessamyn encostou-se à mesa de jantar com uma das mãos e a outra
na gola. Ela não investiu contra Eliana para contra-atacar. Nenhum dos
adatrox correu para prendê-la.
Eliana se levantou devagar, olhando. Jessamyn ofegou por ar. A pomba na
janela voou com um trinado suave.
Temos um momento para falar sem interrupções, disse a voz a Eliana.
Estou enganando os olhos de seus guardas, mas não posso nos proteger por
muito tempo.
Quem é Você? Eliana se afastou de Jessamyn, o coração batendo forte nos
ouvidos. Você é um anjo.
Eu sou um amigo.
Eliana girou em busca de algo para atacar, mas a sala permaneceu quieta e
silenciosa. O único som era a respiração irregular de Jessamyn. Isso não
responde à minha pergunta.
Nem todos os anjos são iguais e nem todos adoram aos pés do Imperador.
Depois de uma pausa, a voz disse, mais gentil agora, você não tem uma
amiga? Sua Zahra, a quem você tanto ama?
Eliana sentiu uma bondade nesta voz, e uma grande tristeza. Seus olhos se
encheram de lágrimas furiosas. Você não quer que eu o pare? Este é o único
caminho.
Não. Existe outro. Não tenho muito tempo antes que ele perceba que estou
aqui, e ele não pode saber que ainda estou viva, e é por isso que eu não me
mostrei para você antes. Apesar de sua tristeza, a voz tinha uma
determinação de ferro que assustou Eliana, por mais gentil que fosse – pois
nisso, pelo menos, a voz combinava com a de Corien. Uma vontade
indomável. Séculos de propósito.
Eu gostaria de mais tempo antes de vir até você, para seu próprio bem, a
voz continuou. Esses meses estão constantemente desgastando você. Você
sofreu grandes perdas e trabalhou tão diligentemente contra seu poder para
proteger a todos nós que agora só pode encontrá-lo em momentos de grande
pressão, dor ou medo. É por isso que ele te machuca tanto. É por isso que ele
promete felicidade, apenas para arrancá-la de suas mãos. Uma pausa. Então,
um carinho imenso. O que você suportou é imperdoável. Eu gostaria de
poder dizer que não há mais por vir.
Eliana ficou perplexa. Parada em uma poça de luz do sol parada, seus
guardas cegos olhando fixamente como estátuas, ela perguntou novamente,
desta vez em voz alta: — Quem é você?
Tenho muitos nomes,, respondeu a voz. Mas você me conhece como o
Profeta.
18
Rielle

“Há apenas uma representação acadêmica conhecida de Santa Tameryn


sem sua adaga na mão – o frontispício de uma coleção meticulosamente
curada de contos infantis obscuros de Astavari. Na ilustração, visível
apenas quando iluminada pela luz solar direta, Tameryn é uma criança
e, embora normalmente sua semelhança seja de expressão grave, neste
caso ela é beatífica. Em repouso entre as flores de um prado, ela segura
em seu peito um gatinho branco em uma mão e um feixe de luz na outra.
Nenhum leopardo negro divino para protegê-la. Nenhuma adaga com a
qual derrubar seus inimigos. Nem uma única sombra à vista.”
— Uma nota de rodapé em O Livro dos Santos

Rielle esperava com crescente impaciência que o alfaiate acabasse de ajustar


o tecido de seu novo vestido.
Mas ela não podia se permitir ficar impaciente. Precisava manter sua mente
tão educada quanto seu rosto – principalmente em branco, um toque de
imperiosidade. O alfaiate movia-se rapidamente em torno dela, prendendo o
tecido, tirando medidas. Corien tinha insistido que ela tivesse um guarda-
roupa espetacular, e o alfaiate que ele recrutou para o trabalho era de
Kirvaya. Brilhantemente talentoso, Corien havia garantido a ela, e de fato o
homem havia criado algo requintado – um vestido preto de gola alta com
ombros estruturados e mangas compridas e justas que brilhavam com espirais
engenhosos de minúsculas jóias de ouro, cintura alta e uma saia dramática e
envolvente isso permitia espaço para sua barriga crescendo.
Excelente, mas Rielle não conseguia olhar diretamente. A extensão negra
dele, a espuma dourada brilhante na bainha, lembrou-a do mar infinito do
empirium e como ela quase se afogou nele.
Como ela queria se afogar nele.
O alfaiate mexeu em um envoltório de pelo cinza escuro, colocando-o sobre
os ombros.
Rielle fixou os olhos em seu reflexo. O mesmo verde que sempre vira nos
espelhos agora brilhando com faixas grossas de ouro rodopiante. A mudança
vinha acontecendo lentamente nos últimos meses, e ela a ignorou, mas não
podia mais fazer isso. O ouro logo eclipsaria o verde.
De repente, não aguentava mais ficar ali. Seu estômago estava agitado; ela
não conseguia comer mais nada sem sentir enjoo. E estava rodeada de
horrores. Monstros criados a partir de dragões e crianças forçadas a usar sua
magia. Monstros batendo no Portão. Um monstro que a beijou em um
momento e criou abominações no próximo.
E ela própria, a mais monstruosa de todas.
— Vamos terminar isso mais tarde — anunciou Rielle, colocando a mão
em sua barriga. — Estou me sentindo mal e preciso descansar.
Meia mentira, e uma que quase a fez rir. Ela nunca teria permissão para
descansar.
Enquanto suas servas a ajudavam a se despir, vestir uma camisola de
dormir e encontrar seus chinelos de pele, Rielle se imaginava prendendo os
pensamentos entre as mandíbulas de um torno, com medo de respirar alto
demais. Corien estava trabalhando em algum lugar nas entranhas de Nothern
Reach, que ainda não a apresentara. Com sua mente ocupada – direcionando
os movimentos dos anjos ao redor do mundo, comunicando-se com aqueles
que ainda estão no Abismo, trabalhando com seus médicos para cortar e
mutilar – a própria mente de Rielle estava tão clara como nunca esteve.
Mas precisava se mover rápido.
Assim que ficou sozinha, juntou cada peça de roupa quente que encontrou.
Suas robustas botas forradas de pele, que havia usado no início daquela
semana, quando Corien a levou para um tour pelas fedorentas canetas de
dragão. Meias grossas, meias grossas de lã, túnica e calças, e um longo
casaco de pele que ia até os joelhos. Um lenço para enrolar em volta da
cabeça e pescoço e um chapéu de pele para amarrar por cima.
Ela fez um saco com um dos lençóis, tentando tirar da mente a memória
recente de estar emaranhada nele, a boca de Corien quente em sua pele. Suas
mãos tremiam enquanto enchia sua bolsa improvisada de roupas. Em seguida,
pegou uma página em branco do caderno na mesa de Corien e uma caneta e
os enfiou em seu corpete.
Ela desceu correndo a escada escondida que começava atrás do espelho no
banheiro – uma passagem secreta pela qual Corien poderia entrar e sair de
seus aposentos em particular. Era meio da tarde – os laboratórios e quartéis,
as minas e forjas estariam fervilhando de atividade, mas a própria fortaleza
estava silenciosa. Rielle correu para um dos depósitos de suprimentos perto
da cozinha, pegou batatas e pãezinhos duros, algumas tiras de carne de alce
curada. Ela não conseguia adivinhar que comida seria capaz de encontrar ou
para onde a jornada levaria.
Ela estendeu a mão com sua mente, perguntando-se se sentiria Corien
olhando para ela.
Silêncio. Ele estava lá, mas distante, uma sombra tênue em sua mente. Ele
ainda estava trabalhando. Ainda havia tempo.
Dentro de um escritório vazio que pertencia a um dos comandantes
batedores de Corien, Anadirah, Rielle encontrou uma pequena mochila de
couro com uma alça para prender ao redor do torso. Ela transferiu a comida
para ela, deixando as roupas prontas e esperando no chão. Então, com o
coração batendo forte e o rosto frio como gelo, caminhou pela fortaleza até o
quartinho na ala leste onde Obritsa ficava.
— Vou ver a marque — anunciou Rielle aos dois adatrox que guardavam a
porta. — Agora.
Eles piscaram em confusão, seus olhos cinzentos e confusos, mas ela
permaneceu firme, olhando-os, e logo destrancaram a porta e se afastaram.
Sangue trovejando em seu crânio, Rielle entrou na sala e fechou a porta
atrás de si. Quaisquer que fossem os anjos designados para controlar aqueles
adatrox em particular, logo deixariam Corien saber o que tinha acontecido.
Era uma coisa estranha o suficiente para arriscar perturbá-lo.
Perto da lareira em chamas, Obritsa estava sentada em uma cadeira,
fortemente presa por longos rolos de grossas correntes. A garota estava
obviamente desconfortavelmente quente, sua pele marrom pálida
escorregadia de suor, seu olhar turvo. Tão amarrada, ela não seria capaz de
criar fios. A arte exigia o uso das mãos.
Obritsa ergueu os olhos com a entrada de Rielle, os olhos inchados de tanto
chorar, mas o rosto endurecido de ódio. — Você veio para finalmente me
matar? Ou você simplesmente veio me dizer que meu Artem está morto?
Rielle a ignorou e, com um rápido golpe de poder, dissolveu as correntes
em um instante, deixando Obritsa abruptamente livre e sentada em uma
nuvem de cinzas iridescentes.
— Não temos muito tempo — disse Rielle, retirando o papel e a caneta do
corpete e começando a esboçar um mapa da fortaleza. — Ele virá atrás de nós
em breve. Eu preciso que você me leve para longe daqui, o mais longe que
puder. Lembre-se de que temos um longo caminho a percorrer e preciso que
você mantenha suas forças. Eu juntei suprimentos e roupas e os escondi em
um armário no corredor. Iremos recuperá-los antes de partir. Vista-se
rapidamente. Acho que a melhor rota a tomar é para o norte, através de White
Wastes. Cruzaremos os campos de gelo e o pólo e, em seguida, entraremos
em Astavar pelo norte.
— Sua mudança repentina de ideia é surpreendente. — Os olhos de Obritsa
brilharam com uma nova luz forte. — Ele te mostrou, não foi? Você viu o
que ele está fazendo. As crianças elementares que ele roubou do meu país.
Mantidas em gaiolas. Em seus laboratórios, ele perverte a magia e transforma
bestas divinas torturadas em monstros. Você viu tudo.
Rielle fez uma pausa em seu trabalho. As memórias dos últimos dias
permaneceram em sua mente como fragmentos de pesadelos. Ela ansiava por
persegui-los, examinar o que Corien tinha feito e se maravilhar com a
inventividade disso.
Ela ansiava por condená-lo por isso e garantir pessoalmente que fosse
punido.
As contradições de seu próprio coração a faziam querer gritar.
— O Portão não deve ser aberto — disse, recusando-se a olhar para
Obritsa. Se ela vislumbrasse um único sorriso presunçoso, ela o queimaria no
rosto da garota. — Essas abominações que ele fez são crimes contra o
empirium.
Então ela se preparou, mantendo-se quieta e em silêncio, como se proferir
as palavras o fizesse bater porta afora.
Mas o único som na sala era o fogo crepitante. Ela soltou um suspiro
trêmulo.
— Vamos destruir os receptáculos que já temos. Eu sei onde eles são
mantidos. — Ela apontou para seus mapas rabiscados. — Você vai me levar
lá primeiro, e depois para os receptáculos. Isso criará uma distração, talvez o
atrase. Em seguida, iremos para Astavar, encontraremos a adaga de Tameryn.
— Você é capaz de destruí-los? — Obritsa perguntou, observando-a de
perto. — Eles foram forjados pelos santos.
Rielle riu um pouco, coçando distraidamente a têmpora. — Eu sou capaz de
tudo. Agora, rapidamente, enquanto ainda sou eu mesma. Antes que alguém
me pegue.
Ela fechou os olhos, empurrando contra o estrondo distante do empirium, a
mordida de suas ondas ouro-negras. Seus dedos arranhando tiraram sangue.
— Você não pode me tocar — ela sussurrou. — Você não pode me ter,
ainda não.
Obritsa parecia ligeiramente alarmada. — Com quem você está falando?
Rielle a ignorou. — Se você quiser detê-lo, fará o que eu mando. Agora.
A garota se levantou da cadeira e hesitou.
— Artem está muito bem guardado — disse Rielle imediatamente, — e já
perdemos tempo suficiente. Teremos que deixá-lo para trás. — Ela entregou
o mapa a Obritsa. Podia sentir as pontas de seu controle se desgastando, seus
pensamentos se derramando. — Depressa, maldita! Ele virá atrás de mim a
qualquer momento!
Com a boca em uma linha fina, os olhos duros e brilhantes, Obritsa
trabalhou rapidamente, seus dedos hábeis convocando fios brilhantes do ar e
os transformando em um anel de luz vibrante. Ela olhou para Rielle.
Rielle passou pela luz e Obritsa a seguiu logo depois. Os fios se desfizeram
com um assobio fervente, e o anel desabou, fechando-se.
Elas se vestiram às pressas no escritório de Anadirah, Obritsa diminuída
pelas peles muito grandes. Uma pressão suave estava crescendo na mente de
Rielle, seus pensamentos mudando para uma configuração familiar.
— Depressa — ela sussurrou, seus dedos tremendo enquanto ela prendia o
lenço e o chapéu no lugar. — Ele está vindo.
Obritsa, com os olhos arregalados, convocou mais fios. Passaram pelo anel
e entraram em uma pequena sala de pedra sem adornos em uma das torres da
fortaleza, assim como Rielle havia instruído, mas o horror a dominou quando
ela percebeu a verdade.
A sala continha apenas um receptáculo: o escudo de Santa Marzana, posto
sozinho no centro do chão. Pálidos feixes de luz invernal de quatro janelas
diferentes se cruzaram na face danificada do escudo.
Obritsa fechou seus fios e se virou. — Onde estão os outros?
Rielle olhou para o escudo, uma raiva branca e quente crescendo dentro
dela.
Corien separou os receptáculos, escondeu-os individualmente em toda a
fortaleza, e ele não lhe contou.
As últimas cordas esfarrapadas de seu controle se romperam.
Ela gritou de fúria e jogou as mãos no escudo, chamando o empirium para
ela em uma onda incandescente de poder. A sala explodiu em ouro, cada grão
de poeira, cada traço de ar e umidade iluminados com luz brilhante.
Obritsa ergueu os braços para proteger os olhos.
Um zumbido alto e discordante perfurou o ar – o escudo vibrando no chão.
Então, com um estalo alto, disparou em direção ao teto, se despedaçou em pó
e desapareceu. Tudo o que restou foi uma mancha carbonizada no chão e uma
teia de rachaduras que se estendia de parede a parede. A sala estremeceu
violentamente, o teto balançando acima.
Rielle caiu no chão, sua mente explodindo de estrelas. Seus ossos e
músculos doíam, seus dentes e o espaço atrás de seus olhos pulsavam de dor
– mas por baixo disso havia um prazer depravado e tortuoso. Havia um
formigamento delicado em seus dedos das mãos e dos pés, uma energia
flexível brincando nas pontas de seu cabelo e estalando ao longo das linhas
suaves de sua pele.
Ela sentiu uma luz próxima, virou lentamente em sua direção, como se
estivesse se movendo através da água.
— Vá, Rielle — disse Obritsa, a voz tensa de medo. — Rápido. A torre está
caindo.
Um estalo alto cortou o ar e o chão cedeu sob os pés de Rielle quando ela
passou pelo anel de luz que pairava no ar à sua esquerda. Ela sentiu Obritsa
bem em seus calcanhares e ouviu os fios se fechando atrás delas enquanto
caíam juntas em um mundo branco de neve.
O ar estava tão frio que imediatamente roubou o fôlego de Rielle. Ela ficou
de pé, ofegante, e se atrapalhou para colocar as luvas. Ao lado dela, Obritsa
ajeitou a mochila em seus ombros.
Estavam em uma geleira, uma cadeia baixa de montanhas cinzas e brancas
atrás delas. Algumas centenas de metros à frente, brilhava um sorriso negro
de água salpicada de icebergs. E, ao longe, montanhas escuras que
perfuravam as nuvens.
O coração de Rielle batia forte enquanto ela observava. Essas montanhas
marcavam Nothern Reach, e ela havia escapado delas. Dele.
E assim que o pensamento se formou, ele a encontrou.
Rielle, o que você fez? Ele a procurou, seus dedos roçando seu pulso, sua
voz acariciando seu pescoço. Sua raiva puxou seu peito; ela estava cheia,
apanhada em uma armadilha. O escudo, Rielle! Como você pode fazer isso
comigo? Conosco?
Rielle gritou: — De novo, Obritsa! Norte!
A garota obedeceu, seus olhos arregalados e assustados eram as únicas
coisas visíveis por trás de suas camadas de peles.
Rielle foi primeiro, Obritsa logo atrás dela, e quando Rielle passou pelo
anel de luz, o rugido de fúria de Corien atingiu sua nuca como um chicote.

•••

Elas pousaram em um monte de neve.


Rielle engasgou com isso, o pó branco fresco até o queixo, e procurou por
Obritsa. Ela encontrou a mão enluvada da garota, segurou-a com força e, em
seguida, enviou uma explosão de poder que derreteu cada floco a três metros
de onde estavam. A água jorrou para o solo negro e nu em uma breve torrente
fria.
Ofegando e tossindo por ar, com as peles encharcadas, Obritsa não hesitou.
Ela convocou mais fios, cada um flutuando em uma nuvem de vapor
enquanto a neve mais uma vez se fechava rapidamente ao redor delas.
Uma visão se estabeleceu diante dos olhos de Rielle: a fortaleza negra em
Nothern Reach, um buraco enorme no canto onde a torre que ela desabou
antes existia.
Ela piscou, e então Corien estava ao seu lado, envolto em peles pretas e
cinza. Havia deixado o rosto nu e, na neve implacável, sua beleza de olhos
claros era ainda mais surpreendente.
— Qual é o objetivo disso, Rielle? — perguntou a ela. — O que você
espera alcançar?
Embora ele não estivesse realmente lá, era real o suficiente em sua mente, e
Rielle balançou em direção à promessa de calor em seus braços.
Mas então se afastou dele, lembrando-se do cadáver cruciata pendurado no
teto, as crianças Kirvayan roubadas amontoadas em gaiolas, os rastreadores
uivando em sua cova.
— Você mentiu para mim — disse a ele. — Você nunca me contou o que
tem feito, que atrocidades você tornou reais. Posso ser um monstro, mas não
sou tão monstruosa a ponto de permitir o abuso de crianças e bestas divinas.
Corien riu suavemente. — Você está confusa, querida. Você está cansada.
Compreendo. Venha para casa para mim. Venha para casa e descanse. — Sua
voz escorregou pela curva de suas costas. — Lembra o quão bem eu fiz você
se sentir, como você se desfez repetidas vezes sob minhas mãos? Lembra-se
do poder disso, do quão certo pareceu? Seu lugar é aqui. Você pertence aos
meus braços, Rielle.
Com os dentes batendo no frio, Rielle gritou para Obritsa: — Mais rápido,
por favor!
— Nosso trono nos espera — Corien disse urgentemente. — Se atos
monstruosos são necessários para conseguir isso, então que seja. Foi um ato
monstruoso o que foi feito comigo e meu povo. Todo grande trabalho deve
começar em algum lugar, e o que nosso futuro reserva será glorioso o
suficiente para queimar qualquer lembrança do grotesco e cruel. Você quer
isso mais do que tudo. Eu posso sentir isso. Eu te conheço, Rielle.
Obritsa olhou para trás por cima do ombro. — Está pronto!
Rielle correu em direção ao anel de luz que brilhava acima da neve.
— Você está mentindo para si mesma! — Corien rugiu. — Sem mim, o que
vai sobrar de você? Você vai ficar sozinha! Você nunca vai encontrar…
Rielle atravessou os fios e a voz dele desapareceu.
•••

Pousaram em uma encosta íngreme de gelo. Rielle derrapou imediatamente,


mas parou em uma rocha próxima.
Mas Obritsa não conseguiu encontrar o equilíbrio e passou por Rielle com
um grito agudo de medo.
Rielle estendeu a mão e a deteve, congelando Obritsa em uma rede de força
que a manteve imóvel na neve.
Quando Rielle sentiu que começava a escorregar, seu aperto na rocha
falhou, a inspiração floresceu. Ela tocou o empirium e enviou uma onda
suave de poder precipitando-se sobre seu pequeno trecho de montanha. A
neve e o gelo transformaram-se em montes de erva fofa pontilhada de flores
silvestres e o ar tornou-se ameno e doce.
Ela desabou em um trevo frio, respirando o cheiro de grama.
A voz de Corien veio baixinho. Tenho vergonha de como falei com você.
Fiquei com medo quando percebi que você tinha me deixado. Eu sinto muito.
Fui cruel e menti para você. Rielle, você nunca estará sozinha. Sua voz
continha lágrimas reprimidas. E eu nunca vou deixar de amar você. Eu nunca
vou abandonar você ou fugir de você ou recuar de medo. Rainha do meu
coração, fui feito para isso. Eu fui trazido a este mundo para te amar.
Obritsa rastejou pela grama até o lado de Rielle e ajudou-a a se sentar. Ela
havia convocado mais fios, um anel deles zumbindo alegremente nos dedos
dos pés de Rielle.
— Está na hora — disse Obritsa, ofegante. — Venha. Está desaparecendo
rápido.
A garota estava certa. Rielle olhou ao redor com os olhos turvos para ver a
grama de seu prado murchando, as flores ficando pretas. Seu foco estava
muito disperso, seu medo e raiva correndo desenfreados.
Ela se levantou, afastou-se dos suaves apelos de Corien e passou pelos fios
de Obritsa para o que estava além.
•••

Em uma noite clara em White Wastes, Rielle e Obritsa sentaram-se de costas


contra um penhasco baixo e atarracado, olhando para uma vista magnífica de
campos nevados. O mundo branco e plano, tanto quanto Rielle podia ver.
Acima delas, um céu de estrelas e luzes retorcidas – verdes e violetas,
turquesa e âmbar. O lendário céu Astavari.
Obritsa – exausta, seu poder esgotado – encostou a cabeça no ombro de
Rielle. Rielle acariciou o braço da garota por entre as peles.
Corien estava quieto, apenas a mais nua sombra de cor no horizonte de sua
mente. Rielle sabia que deveria se preocupar com o que isso poderia
significar, mas estava cansada demais para se preocupar. Elas haviam se
empurrado impiedosamente através de White Wastes por dias, e esta foi a
primeira vez que viram as estrelas.
— Estamos quase lá — murmurou para Obritsa, que estava ficando pesada
de sono.
Uma fina veia de poder fez cócegas nas bordas da consciência de Rielle. As
dobras de seus braços formigaram; ela esfregou as botas, inquieta. O
receptáculo estava perto e estava chamando por ela. Em sua mente, viu Santa
Tameryn em batalha, montando seu leopardo negro e flanqueado por uma
matilha de lobos das sombras que ela convocou com seu lançamento – uma
adaga elegante com punho de ébano.
Rielle fechou os olhos. — Estamos tão perto — ela sussurrou. — Eu posso
sentir.

•••

Quando Rielle passou pelo último anel de luz que a levaria ao receptáculo de
Santa Tameryn, ela estava tensa e pronta, seu poder zumbindo ansiosamente
na ponta dos dedos.
Estava em uma caverna imensa à beira de um lago vasto e claro. Uma
vegetação abundante cobria as paredes da caverna – emaranhados de vinhas
rastejantes enfeitadas com folhas de jade brilhantes, cachos de minúsculas
flores brancas que pendiam como nuvens. A margem do lago era uma vasta
extensão de pedra negra brilhando com manchas de ametista. Uma brisa
suave agitou a água e, embora não houvesse nenhuma janela para o mundo
exterior, a luz do sol inundou suavemente tudo que Rielle podia ver.
Obritsa aproximou-se silenciosamente dela, baixando o capuz peludo.
Pedaços de neve caíram no chão. — Caverna de Santa Tameryn — ela
sussurrou.
Rielle fechou os olhos, respirando o ar suave. Aqui, o receptáculo estava
insistente e claro. Seu poder mostrou-lhe uma visão: Santa Tameryn em um
abraço sonolento com Santa Nerida. Uma com pele marrom-dourada e uma
cabeça com ondas escuras brilhantes, a outra com cabelo de ébano com pele
pálida dourada beijada pelo sol. Enlaçadas em uma cama branca sob um
dossel de folhas, elas brilhavam de felicidade.
Um eco de seu amor floresceu no coração de Rielle, a memória carregada
na corrente do poder do receptáculo, e foi tão opressor, tão vívido em sua
pureza, que Rielle se sentiu sufocada por isso. Limpando as lágrimas de seus
olhos, resolveu deixar este lugar no primeiro momento que pudesse, pois
trazia muitas lembranças de Audric.
Ela varreu com olhar através da caverna e encontrou um mirante circular
feito de pedra, sentado em um pedestal na água. Um muro baixo o conectava
à costa.
De pé entre as colunas do mirante estavam três homens em túnicas
cinzentas, cada um com um símbolo familiar bordado no peito – uma torre
alta e quadrada, e acima dela um olho. Um dos homens já estava puxando
freneticamente os fios do ar, o que fez Obritsa respirar fundo.
O Obex Astavari, e um dos marques que os serviam.
Rielle atacou imediatamente na direção delas, Obritsa correndo atrás deles.
— Abra mão disso — gritou Rielle, — ou eu irei destruí-los.
Um dos Obex agarrou a adaga de Tameryn nas costas. — Lady Rielle, por
favor, você deve ouvir a razão…
— Eu avisei — disse Rielle. Não havia tempo para discutir com eles, nem
para poupá-los. Ainda a cerca de cinquenta metros deles, lançou punhos de
poder voando, agarrou seus corações em sua mão ardente e os deteve, como
fizera com seu pai, com o Rei Bastien, com Lorde Dervin. Mas ela era
melhor nisso agora – mais rápida, mais eficiente. Suas mortes foram
indolores; ela se certificou disso. A adaga de Tameryn caiu no chão. Os fios
do marque se desfizeram e desapareceram.
Rielle cruzou a parede para recuperar a adaga e depois se juntou a Obritsa
na margem. A garota não parecia nem um pouco surpresa com o que Rielle
havia feito. Em vez disso, um leve sorriso iluminou seu rosto cansado.
— Conseguimos — disse Obritsa sem fôlego. — Eu fiz isso.
— Você fez bem — concordou Rielle, e então ergueu a adaga, inclinando a
lâmina para capturar a luz. Ela tentou não pensar em como Audric ficaria
exultante por estar no amado retiro de Santa Tameryn, mas sua mente era
uma traidora cruel.
— Leve-nos para a superfície — instruiu Rielle. — Em algum lugar
remoto. Aquela cachoeira pela qual passamos nas montanhas. Leve-nos até
lá.
Obritsa franziu a testa. — Você não vai destruí-la aqui?
Rielle apertou ainda mais a adaga. Ela esperou até que seus olhos
estivessem secos e sua mente livre do Audric imaginado, de pé na praia,
pasmo.
Então ela disse baixinho: — Não. Aqui não.

•••

Elas descansavam sob um grupo de pinheiros nas montanhas a alguma


distância ao norte da capital de Astavar, Vintervok. Não muito longe deles,
uma cachoeira esguia descia por uma elevação de pedra negra. Uma névoa
fina impregnou o ar, amolecendo cada folha e galho.
Obritsa dormia profundamente na cama de suas peles, aninhada entre Rielle
e um pedregulho de veludo com musgo. As sombras se estendiam profundas
e escuras sob os olhos de Obritsa, e suas bochechas estavam mais encovadas
agora do que em Nothern Reach. Mas as de Rielle também. Ela viu seu
reflexo no rio próximo e mal reconheceu a pessoa que a encarava.
Ela deixou Obritsa dormindo e vagou por entre as árvores até encontrar
uma minúscula clareira cercada de pinheiros. Lá, ela se despiu até ficar de
meia-calça e túnica fina. Sozinha, livre das grossas camadas de roupas e sem
companheiros além das árvores, se sentia menos frágil e tinha mais facilidade
para respirar. Ela se sentou em uma cama macia de musgo, encostou a cabeça
no tronco de um pinheiro e olhou para o mar de agulhas balançando acima.
Suas palmas ainda formigavam de destruir a adaga, e ela teve um desejo
apaixonado de dormir por um mês inteiro. Mas não podiam descansar por
muito tempo. O silêncio prolongado significava que Corien estava planejando
algo – ou que ele sabia de algo que ela não sabia.
Rielle pousou uma das mãos na barriga. Às vezes, sua nova forma a
revoltava, e ela chegava perto de invocar seu poder e se livrar da criatura
dentro de si de uma vez por todas. Não tinha nem tempo nem energia para as
mudanças que isso havia causado em seu corpo, o novo esgotamento de se
mover pelo mundo. E pertencia não só a ela, mas a Audric, e com aquela
corrente particular ao redor dela, nunca poderia estar verdadeiramente livre
dele.
Outras vezes, sentia tanta ternura pela criança que carregava que a deixava
extasiada. Distraidamente, ela traçou os dedos pela pele, perguntando-se
como estava se saindo depois de dias tão selvagens de viagem. Ela também
se perguntou se deveria consultar um curandeiro – e isso a fez pensar em
Garver Randell, sua lojinha que cheirava a ervas e resina, e Simon, olhando
para sua Rainha do Sol com olhos brilhantes.
O que eles devem pensar dela, sentados à mesa de jantar em Âme de la
Terre, se perguntando como foram tão completamente enganados.
Como devem ter passado a desprezá-la.
Com a cabeça nas mãos, Rielle piscou para clarear os olhos ardentes e, de
repente, embora não tivesse ordenado, sua visão tremeu e, quando se
acalmou, a floresta ao seu redor foi redesenhada em tons de dourado
inconstante.
Uma espécie de medo exausto tomou conta de seu corpo, enquanto sua
mente ganhava vida com o desejo.
este poder é seu
— Não — gemeu, cobrindo as orelhas. — Agora não.
Eu acordo
A presença do empirium era fria e infinita, seu sussurro eterno, seu poder
impensável. Ele subiu à superfície como um gigante do mar subindo para
respirar. Rielle fechou os olhos, desejando que sua visão ficasse pequena e
pálida mais uma vez.
este poder é seu
pegue
leve-me
EU LEVANTO
— Eu não posso — Rielle sussurrou, as lágrimas escorrendo por seus cílios.
— É muito.
Suas mãos estalaram com o calor, e ela as achatou contra a terra, esperando
que a pressão da terra saciasse sua fome.
Então houve uma mudança no ar, um espessamento do silêncio do mundo
que abafou todos os outros sons. O barulho da cachoeira suavizou para um
estrondo surdo; a vibração da madeira silenciou.
Rielle ergueu os olhos e teve uma visão tênue: uma sala arejada com
cortinas esvoaçantes. Janelas emoldurando uma cidade branca. Um terraço
com uma pilha alta de flores.
E parada diante dela estava Ludivine, fraca, mas sorrindo. Cabelos
dourados e pálidos em um vestido rosa suave. Ao lado dela estava um
homem com uma túnica verde, seus cachos escuros despenteados, sua pele
negra quente com a luz do sol.
Rielle prendeu a respiração. — Audric?
19
Navi

“Que o seu navio navegue de verdade


e seus fogos queimam intensamente.
Que seu coração pense em mim
enquanto as estrelas brilham sua luz.”
— Oração do viajante tradicional Vesperiano

Malik estava fora havia cinco dias, dois a mais do que deveria ter levado para
viajar para a ilha de Laranti e retornar com Ysabet, líder da Coroa Vermelha,
Hob tinha organizado para eles se encontrarem. Uma mulher, disseram os
contatos de Hob no underground, cuja influência em Vesper era
incomparável.
Mas Malik ainda não havia retornado. Navi não conseguia dormir de tanto
se preocupar com ele.
Em vez disso, se sentou até tarde em sua tenda de lona surrada, olhando
para as folhas de papel úmidas e onduladas sobre a mesa que ela e Hob
tinham feito com um velho toco de árvore. Além da aba da tenda, nuvens de
mosquitos furiosas enxameavam, mantidas sob controle pelo óleo fedorento
que seu guia, Bazko, havia vendido a eles pelo que Navi suspeitava ser um
preço exorbitante. Mas ela o gastou com prazer, embora as moedas que
conseguiram contrabandear para fora de Astavar – e trocar pelas moedas
Vesperianas antes que a notícia da invasão se espalhasse – estavam
desaparecendo rapidamente. os mosquitos do pântano eram vorazes, cada
uma do tamanho de uma impressão digital.
— Quarenta e sete — sussurrou Navi, examinando a lista codificada de
nomes à sua frente a última contagem de todos que haviam recrutado para seu
pequeno exército de perdidos. Legalistas da Coroa Vermelha, refugiados,
órfãos. — Não é suficiente.
— Não — Hob disse simplesmente. — Não é.
— Temos que nos mover mais rápido, de alguma forma. Eu odeio ficar
presa neste lugar horrível.
— Foi a decisão certa ficar e vigiar a fissura.
Navi respirou longa e lentamente, esperando que isso lhe trouxesse alguma
aparência de calma.
Não funcionou.
A lona da tenda e algumas centenas de metros de pântano ficavam entre ela
e a fissura para o Abismo, mas Navi ainda podia sentir isso puxando-a. A
forma de seu olho escuro e recortado estampou-se em sua visão, como se ela
tivesse encarado por muito tempo uma luz brilhante. Nada emergiu da fissura
e o rasgo não aumentou.
Mas o pântano tinha ficado assustadoramente quieto desde o aparecimento
da fissura. Navi teve a sensação de que ela não estava sozinha prendendo a
respiração, esperando o próximo terremoto e o que ele poderia trazer.
A aba da barraca se abriu e Miro entrou, parecendo miserável. Ele arrastou
a manga em rosto sujo. — Minha senhora, posso dormir aqui até a minha
próxima vigília? Os mosquitos estão me comendo vivo.
— Sim, claro. — Navi gesticulou para uma lona de couro surrada que
servia de cama para qualquer um que precisasse, e uma vez que a respiração
do menino se estabilizou, ela se voltou para Hob, enxugou a testa com um
pano do bolso e, em seguida, escondeu o rosto contra a umidade pano.
Os únicos sons eram os roncos leves de Miro, os mosquitos zumbindo, o
arrastar de pés suaves e barulhos retinidos enquanto os outros se moviam ao
redor do acampamento, as vozes de todos abafadas como se tivessem medo
de perturbar o silêncio anormal do pântano. Em algum lugar próximo, os
vigias patrulhavam lentamente a água.
— O que eu estava pensando, Hob? — Navi sussurrou. — Isso é loucura.
— Acho que eu chamaria de coragem precipitada, talvez — disse Hob
uniformemente, — mas não loucura.
Ela o olhou, a exaustão fazendo seus olhos arderem de lágrimas. — Um
exército para esmagar o Império. Isso é o que eu disse que construiria. Isso é
o que eu disse a Malik enquanto fugíamos de Astavar. E agora eu tenho
quarenta e sete pessoas em um pântano infestado de insetos, esperando que
eu faça algo extraordinário enquanto uma porta para o Abismo nos encara dia
e noite, e Malik, que foi ao encontro de nosso suposto aliado, se foi por
tempo demais. Eu o enviei para a morte também?
— Não faça suposições. Ysabet vai nos ajudar.
Navi soltou uma risada cansada e esfregou os olhos, desejando que as
lágrimas secassem.
— Você confia em mim, não é? — Hob disse suavemente.
— Que você me disse o que acha que é verdade? Sim, eu confio nisso. Mas
uma mulher que eu nunca conheci? — Navi olhou tristemente para sua lista
de nomes. — Eu falhei com Eliana.
— Não fizemos nada ainda. Você não teve a oportunidade de falhar com
ela.
Navi fez um som baixo e frustrado. — E essa inatividade pode ser o que a
mata, a coisa que mata a todos nós. Ou talvez… — Ela suspirou, enxugou o
rosto mais uma vez. Ela nunca tinha suado tanto em sua vida. — Talvez seja
arrogante, até idiota, pensar que tudo o que eu pudesse fazer seria de alguma
ajuda para ela.
— Você vai enlouquecer pensando em poderia e talvez.
Navi sabia que ele estava certo. E, no entanto, o mundo encolheu ao seu
redor, mesmo enquanto se expandia. Ela sentiu a verdade de sua própria
pequenez, a enormidade do mundo, quanta dor e tristeza ele continha.
Ela se levantou, girando os ombros. Uma caminhada podia limpar sua
mente, mesmo que signifique enfrentar mosquitos.
Então, as lâmpadas do lado de fora da tenda, pontilhando o acampamento
como vagalumes fracos, apagaram-se uma a uma. Gritos abafados e
assustados surgiram da noite.
Hob se levantou rapidamente, apagou sua própria lâmpada, desembainhou
sua espada e despertou Miro. Navi se abaixou para pegar seu revólver, uma
coisa tosca que eles compraram no mercado subterrâneo de Morsia. Ela
estava grata a Hob por apagar sua luz; já, seus olhos começaram a se ajustar.
Uma voz gritou do centro do acampamento. — Você que reivindica este
acampamento. Você que se chama Jatana. Se você deseja que o homem
Rovan viva, livre-se de todas as armas que carrega e avance imediatamente.
Navi estava na porta da tenda, o coração batendo forte. Jatana e Rovan: seu
nome falso e o de Malik.
Quem quer que fossem essas pessoas, tinham seu irmão.
Navi largou o revólver na lama, ignorou o aviso sussurrado de Hob e saiu.
Imediatamente, alguém a agarrou e rudemente empurrou um saco sobre sua
cabeça. Ela deu um chute e acertou uma canela, enfiou o cotovelo em algo
carnudo, mas então, mãos agarraram seus braços e Navi não conseguiu mais
ficar de pé. O saco, ela percebeu, balançando, tinha sido encharcado com uma
substância forte e fedorenta que pretendia nocauteá-la.
Ela rosnou em frustração, ouviu Hob correr atrás dela. Através do tecido do
saco, ela viu uma alfinetada distante de luz azul machucada – o olho da
fissura, sem tampa e olhando fixamente, observando sua luta sem remorso.
Então ela não viu mais nada.

•••

Navi acordou com uma brisa fresca. A luz do sol beijou seus braços e
pescoço.
Ela não usava mais um saco na cabeça. Em vez disso, um pano foi
amarrado com força em volta dos olhos, deixando o nariz e a boca livres para
respirar o ar salgado. Ela se mexeu em seu assento duro; suas mãos estavam
amarradas com um pano. Ocorreu a ela que o mundo estava balançando.
Uma voz rouca soou acima. — Ela está acordada.
Outra voz, afiada e autoritária, disse: — Deixe-me vê-la.
Com a venda removida, Navi semicerrou os olhos sob a luz forte e, depois
de um momento, viu que estava sentada em um barco pequeno e estreito. Em
frente, em um banco baixo, estava sentado alguém envolto em xales cor de
terra – alguns com franjas de contas, outros com bainha de seda rosa, todos
os quais obscureciam a verdadeira forma e tamanho da pessoa. Um lenço
escuro cobria sua cabeça, escondendo couro cabeludo e cabelo, e sobre o
rosto eles usavam uma máscara oval formada de pequenas placas de metal
unidas por elos de corrente. Fendas marcavam o nariz e a boca.
Olhares rápidos para a esquerda e para a direita mostraram a Navi que
outros barcos flutuavam nas proximidades, três figuras em cada. Uma pessoa
sentou-se para trabalhar os remos. Os outros dois estavam de pé, lanças nas
mãos, todos apontados para Navi.
A pessoa mascarada falou em voz baixa e rica. — Você é Jatana de
Meridian.
Navi olhou fixamente para a máscara. — Eu sou.
— Por quê você está aqui?
— Você me tirou do meu acampamento e me trouxe aqui.
A máscara ficou em silêncio por um longo momento. — Você vem para
Vesper na esperança de conhecer Ysabet da Coroa Vermelha. Você quer
soldados. Você quer armas. Você quer ferir o Império.
Navi não disse nada.
— Quatorze anos atrás, o Império reivindicou Vesper em nome de Sua
Santa Majestade o Imperador dos Imortais — continuou a máscara. —
Aqueles que considerarem trabalhar contra ele são considerados traidores do
Império. Nós, seus humildes servos, temos a tarefa de trazer traidores à
capital para julgamento. Mas somos perfeitamente capazes de executá-los nós
mesmos.
O suor escorria pelas costas de Navi. A brisa fez pouco para temperar o sol
escaldante. Ela percebeu que não tinha visto Malik em nenhum dos outros
barcos, nem as duas pessoas que foram com ele para se encontrar com
Ysabet. Ela se perguntou se estavam mortos no fundo do mar e se logo se
juntaria a eles. Ela segurou a língua, resistindo ao desejo de se inclinar para o
lado do barco e procurar seu irmão na água.
— O que você diria — a máscara continuou — se eu pedisse a você para
declarar sua lealdade ao Império ou então perder sua vida nas mãos de meus
guardas?
Os soldados ergueram as lanças, os corpos tensos como se estivessem
prontos para atirar.
Enquanto o barco balançava com as ondas, Navi imaginou o mundo frio e
azul do fundo do oceano. Não seria um lugar tão terrível para descansar.
E se ela ia morrer, o faria com amor por Eliana nos lábios.
— Eu diria que a luz da Rainha me guia — respondeu, olhando fixamente
para o rosto revestido ilegível da máscara, — e que seu fogo queimará o
Império.
E então, surpreendentemente, a pessoa mascarada disse: — Excelente.
Elu sacou uma adaga de dentro das roupas e pulou em Navi. Saltou sobre
ela, prendeu-a em seu assento e segurou a lâmina da adaga com força contra
sua garganta.
Navi congelou, lutando contra a vontade de revidar. Através das lacunas na
máscara revestida, olhos castanhos encontraram os dela.
Por um longo momento, aquele olhar brilhante procurou seu rosto. Então a
pessoa mascarada relaxou, levantou-se e colocou a adaga de volta na bainha.
Navi teve um vislumbre da lâmina de cobre iridescente – o mesmo metal da
caixa dentro da qual Zahra estava presa.
Navi sentiu uma pontada amarga de saudade. O que ela não teria dado para
ouvir a voz do fantasma de repente descer do céu.
A pessoa mascarada gritou um comando em um dialeto vesperiano que
Navi não conhecia. Os soldados nos barcos próximos relaxaram, baixando as
lanças. Os remadores retomaram o trabalho, empurrando os barcos em
direção a uma pequena ilha negra no horizonte.
O atacante de Navi desamarrou a máscara e desembrulhou o lenço de sua
cabeça, revelando uma jovem esguia, de rosto avermelhado, sua pele marcada
com sardas e uma cicatriz branca bastante grande. Ela sacudiu os cabelos
desgrenhados na altura do queixo, desbotados pelo sol, e tirou as camadas de
xales. Por baixo, ela usava calças marrons justas sobre pernas finas e
torneadas e botas surradas até os joelhos. A gola de sua túnica branca se abriu
para revelar duas cordas de couro com nós amarradas em seu pescoço.
— Desculpas pelo drama — ela disse, gesticulando evasivamente com um
movimento preguiçoso de sua mão. — E pela a faca. Mas não confio em
ninguém até olhá-los nos olhos e segurar uma lâmina-praga contra sua
garganta. Você entende.
Navi, em choque ao falar, disse: — Sim, na verdade. — Então ela fez uma
pausa, imaginando. Era uma mulher muito mais jovem do que ela esperava,
talvez apenas um ou dois anos mais velha do que a própria Navi. — Você é
Ysabet?
Ysabet ergueu uma sobrancelha. — E você é Navana, princesa de Astavar.
— Meu nome é Jatana. — Navi franziu a testa, fingindo confusão, mas seu
coração disparou de medo repentino. — Você sabe disso.
— O que eu sei — disse Ysabet, olhando para o mar à medida que a ilha
crescia e se aproximava, — são as histórias que ouvi do norte. Uma princesa
que trabalha na manjedoura de Lorde Arkelion como espiã para a Coroa
Vermelha. Uma fuga que desafia a morte. Uma aliança com o notório Lobo.
Rumores também de uma garota com poderes milagrosos. Alguns dizem que
ela é a Rainha do Sol. Uma frota de navios de guerra imperiais naufragados
por uma tempestade na baía de Karajak. Um exército de monstros. Astavar
finalmente invadida e caída. Os reis morreram, mas nenhuma criança real foi
encontrada. E agora, uma garota chamada Jatana e seu irmão chegam às
minhas ilhas, querendo me conhecer. Querendo montar um exército.
Ysabet fez uma pausa, depois se virou para olhar por cima do ombro.
O peito de Navi doeu de pesor, mas ela sustentou o olhar curioso de Ysabet
e não se encolheu.
— Podemos estar espalhados aqui nas ilhas Vésper — continuou Ysabet,
— e nosso número muito menor do que eu gostaria. A Coroa Vermelha é
fraca nessas ilhas, mas ainda vive, e meus corvos voam longe. — Ysabet
hesitou. Sua voz era dura, mas havia algo suave em sua boca. — Eu sei o que
é perder sua família, Navana. A injustiça disso. A agonia da dor. É por isso
que luto. Você está entre amigos aqui. Eu simplesmente precisava ver você
antes de ter certeza.
— E meu irmão? — Navi perguntou, erguendo o queixo. Ela esconderia
seu espanto e seu coração partido. Esta rainha da Coroa Vermelha não a
abalaria. — Seus companheiros?
— Eles provavelmente estão descansando, como as pessoas razoáveis que
são. Ele está sem dúvida andando de um lado para o outro em meu angar
enquanto aguarda sua chegada. Não tenho certeza se algum dia seremos
amigos verdadeiros, ele e eu. Não acho que ele vai querer me perdoar por
assustar você como eu fiz. Ah bem. — Ela deu um sorrisinho para Navi. —
Você e eu podemos ser amigas em vez disso.
Navi não tinha certeza de como responder, então ela optou por não
responder. Ficaram sentadas em silêncio enquanto sua pequena frota de
barcos se aproximava da ilha que não estava mais tão distante. Quando as
ondas os trouxeram para mais perto, ela percebeu como Ysabet estava
sentada confortavelmente na proa, observando pacientemente a ilha próxima.
Então houve um estrondo profundo na água. Até o ar parecia tremer. Navi
percebeu que um dos picos negros da ilha soltava vapor.
Ysabet a pegou olhando. Seus lábios se curvaram. — Não se preocupe,
princesa. Raratari só deve entrar em erupção por mais três meses. Tenho dois
estudiosos de Saterketa a meu serviço, e eles nunca erraram em suas leituras
da Terra.
— Espero que este não seja o primeiro erro — disse Navi, irritada por seu
alarme ser tão óbvio.
Ysabet riu, depois ficou na proa e gritou ordens para os outros barcos.
Passaram por uma larga boca de rocha e em uma enseada negra, e o queixo
de Navi caiu, pois os penhascos à frente deles começaram a se abrir – duas
portas maciças arrancadas por algum mecanismo oculto que a mente de Navi
desejou inspecionar. As portas se moviam lentamente, mas silenciosamente
para seu tamanho. Engenhosamente elaborados para se parecer com rocha,
disfarçados por sujeira e vegetação, eles se abriram para revelar uma enseada
escondida interna. E na água estava um enorme navio escuro, meio
construído. Canhões cintilavam em seus conveses inferiores.
Navi juntou-se a Ysabet na proa, olhando maravilhado enquanto eles
passavam. Era gigantesco, combinando facilmente com o tamanho de um
navio de guerra imperial.
— É lindo — ela sussurrou.
Ysabet olhou por cima. — Minha mãe o desenhou. Os últimos planos que
ela desenhou antes de sua morte, e uma de suas únicas posses que meu tio
conseguiu salvar. Eu mesma aprimorei as ideias dela. O tio disse que tenho os
mesmos dons que minha mãe tinha. Olho para o design. Uma mente para
construir.
Aquilo mexeu com algo na mente de Navi, alguma memória distante que a
incomodou para olhar mais de perto. Tinha ouvido falar há muito tempo
sobre alguém de Vesper, uma figura famosa pela construção naval. Mas ela
descartou o pensamento, não se permitindo a distração. Embora soubesse
muito pouco sobre embarcações, ela apreciava as linhas arrojadas e elegantes
do navio. Irradiava eficiência e confiança e, mesmo enquanto estava lá,
atracado, parecia zumbir com vontade de se mover.
— Ela parece rápida — observou Navi.
Ysabet deu um sorriso torto para ela. — Você conhece navios, não é?
Navi engoliu a leve pontada de constrangimento. Talvez a diversão de
Ysabet fosse uma coisa boa. — Não — admitiu, — mas gosto da aparência
dela.
Isso fez Ysabet sorrir. — Há tão pouco tempo que nos conhecemos e você
já sabe como me bajular.
Totalmente desarmada pela visão do largo sorriso de Ysabet, Navi se
atrapalhou com uma resposta espirituosa – e então ouviu um grito.
Ela olhou para cima e gritou de alívio, pois Malik estava em uma das
pontes de corda amarradas ao longo das paredes da enseada. Ela acenou de
volta para ele, em seguida, juntou as mãos no peito e sussurrou uma oração
suave.
Ysabet a observou com atenção. Ela se sentou e cruzou os braços,
recostando-se na proa. — Comecei a construí-la sem saber o que fazer com
ela — disse calmamente. — Durante anos, estive lutando pequenas batalhas,
voando de ilha em ilha e apunhalando o Império aqui e ali como um
mosquito. Roubando armas, invadindo seus armazéns. Me odiando por não
ser capaz de fazer mais. Odiando o povo de Vesper por não lutar mais, o que
foi injusto da minha parte, mas é isso.
— E então — disse Ysabet, inclinando-se para a frente, os cotovelos sobre
os joelhos, — ouvi falar dessa garota surpreendente. A Rainha do Sol, dizem
aqueles que ainda rezam para o empirium, esperando que ele volte. E então
eu ouvi sobre Astavar caindo, e percebi que estamos nos aproximando de
algo. Um precipício, talvez. E eu poderia sentar e esperar que o mundo caísse
debaixo de mim, ou eu poderia fazer algo, mesmo que fosse estúpido e
selvagem. Então, peguei os planos de minha mãe depois de mantê-los
trancados por anos e comecei a construir. Com que propósito, eu não sabia.
Mas se algum dia eu precisasse de um navio, teria um. Então ouvi falar de
você e, pela primeira vez em muito tempo, senti algo de que gostei. Eu me
senti esperançosa novamente.
Os olhos castanhos de Ysabet exibiam uma luz fervente. — O que você
quer, princesa? — disse calmamente. — Por que você luta? Se você tivesse
um exército, o que faria com ele?
Chegaram a um pequeno cais. Os dois soldados em seu barco saltaram e
amarraram-no com grossas cordas com nós. Navi permaneceu lá dentro,
olhando para Ysabet com o coração na garganta. Há semanas não sentia essa
onda de energia, essa vontade de ter esperança. Ela mal ousava confiar nisso.
— A Rainha do Sol vive — respondeu Navi em voz baixa. — Ela é querida
para mim, uma amiga que amo de todo o coração. E ela precisa da minha
ajuda. Se eu tivesse um exército, navegaria até Elysium e lutaria por ela. Eu
iria mostrar a ela que ela não está sozinha.
— E você morreria por essa amiga?
— Por ela — disse Navi, — e por todos.
Um dos soldados de Ysabet se abaixou para ajudá-la a subir no cais. Ela
acenou para ele, o olhar fixo em Navi.
— Este navio, assim que for construído — disse ela, — será capaz de fazer
a travessia do oceano em três semanas. Ele tem armas, e tem arsenais de
armas que fariam um general imperial salivar.
Navi riu baixinho de espanto. — Três semanas? Isso é tão rápido quanto
um navio de guerra imperial.
Ysabet sorriu. — Minha mãe era boa no que fazia. Eu sou ainda melhor.
Mas um navio rápido não é nada sem uma missão para guiá-lo.
Navi olhou para trás, para os canhões parados orgulhosamente em suas
docas. Ela reconheceu o design. — Esses são canhões imperiais.
— Gosto de manter meu pessoal ocupado.
Navi ouviu a leve queda de escuridão em sua voz, o brilho de um escudo
interno. Ela sustentou o olhar de Ysabet e colocou a mão gentilmente em seu
braço.
— Eu também perdi muitos — ela disse calmamente. — Eu sei o que é
saber que você vive porque outros morreram, como a dor se instala em você
como uma pedra que você não pode remover. Tenho que acreditar que se
pudessem nos ver agora, ficariam orgulhosos de nossa luta e não se
arrependeriam de sua parte nela.
Com os olhos brilhantes de lágrimas, Ysabet deu um sorriso irônico. —
Uma princesa, de fato. Você tem jeito com as palavras, Alteza.
— E você tem um navio, enquanto eu tenho uma missão.
— E você tem um exército.
— Um pequeno.
— Como o meu. — Ysabet apertou as mãos de Navi e apertou. — Mas
juntas, nossas tropas não são tão poucas. Juntas, são mais fortes.
Navi sorriu, sem fôlego de alegria crescente. Que alívio não estar mais tão
sozinha. — Você vai nos ajudar, então?
— Sim, princesa. Nós vamos ajudar uns aos outros. Vou pressionar meu
povo até que eles desejem me amar menos, para que possam se permitir me
odiar. Um mês, eu acho, é tudo de que precisamos.
Ysabet se curvou para roçar os lábios nos nós dos dedos de Navi. Então
saltou do barco para o cais, gritando comandos para os soldados que
esperavam nas proximidades.
E Navi ficou sentada por um momento, recuperando o fôlego. O calor dos
lábios de Ysabet permaneceu em sua pele. Ela cruzou as mãos contra o peito
e as manteve ali até que seus pensamentos se estabilizassem. Malik estava
descendo rapidamente pelo cais, seu sorriso brilhante e amplo. Seu irmão,
ainda vivo, e ela também.
Eliana, ela orou, agarre-se ao seu coração de ferro. Mantenha-se forte.
Nós estamos indo.
20
Audric

“Aconteceu a coisa mais notável. Eu conheci um dragão de gelo. Uma


besta divina, uma criatura de tradição feita de carne. O nome dela é
Valdís, e ela viaja com um dos Kammerat, os lendários falantes da
língua dos dragões – um homem chamado Leevi. Ele parece ter a idade
de Audric, talvez um ou dois anos mais novo que eu, e me contou uma
história surpreendente. Leevi e Valdís escaparam de um lugar chamado
Northern Reach. Por longas semanas, viajaram para High Villmark,
onde outros Kammerat vivem em segredo, protegendo seus
companheiros dragões. Valdís esteve doente, envenenado por anjos, e
achei que Leevi poderia ter me matado quando tropecei neles, não fosse
por Valdís, que sentiu em mim o sangue de Grimvald e encontrou forças
que Leevi diz não aparecer há meses. Amanhã, iremos juntos para o
Kammerat. Leevi quer que eles ajudem a libertar os outros presos nesta
fortaleza angelical. Ele diz que eu, como rei de Borsvall, posso ajudar a
convencê-los. Mas como podemos esperar ganhar uma guerra contra
seres tão cruéis e engenhosos? Não sei a resposta, mas sei o seguinte:
Amanhã, queridos santos, montarei um dragão.”
— Diário de Ilmaire Lysleva, datado de janeiro, ano 1000 da
segunda era

Lá estava ela – Rielle, em alguma floresta distante de Astavar, cercada por


samambaias e amoreiras. Cachos úmidos de cabelo grudavam em suas
bochechas e pescoço, e ela se sentava em uma cama de musgo, vestindo
apenas meia-calça escura e uma túnica branca fina, as mãos e as roupas
manchadas de lama.
Audric quase caiu de joelhos ao vê-la, lutando contra todos os instintos que
possuía de não correr para ela imediatamente. Ele tentou dizer o nome dela,
mas saiu um sussurro.
— Audric? — Rielle o olhou fixamente, as bochechas molhadas de
lágrimas, os olhos sombreados e insones.
— Sim, estou aqui. Mas não por muito tempo. — Ele deu um passo
hesitante para frente. Ele se lembrou do aviso de Ludivine: forçar os limites
da conexão mental que ela havia despertado entre os três, forçar a visão além
de seus limites, poderia fazer com que ela perdesse sua coesão imediatamente
– ou pior, chamar a atenção de Corien.
— Ele vai me encontrar em breve — disse Ludivine, atrás dele e à sua
esquerda. Através da ligação de suas mentes, Audric podia senti-la tremer
pelo esforço. Ondas de desejo batiam suavemente nele, e ele achou
reconfortante saber que Ludivine também estava em agonia – ver Rielle, mas
não ser capaz de tocá-la. Um tormento que lhe roubou o fôlego.
— Tenho praticado, Rielle — disse Ludivine, — ficando mais forte,
trabalhando para estender o alcance e a discrição de minha mente, mas ainda
requer… — Ela fez uma pausa, e Audric sentiu o fôlego de sua exaustão
passar por ele. — Requer um enorme esforço e ainda tenho muito a aprender.
Rielle os observou em silêncio. Onde quer que estivesse, a luz mudava,
atraindo um brilho estranho em seus olhos.
— Querida, você está ferida? — Audric perguntou, lutando para manter sua
voz calma. — Como você está se sentindo? — Ele procurou em seu corpo
por sinais de lesão e bebeu em todas as coisas que ele tinha perdido – a queda
selvagem e escura de seu cabelo, a curva de sua mandíbula, o espaço que ela
ocupava no mundo. Ele imaginou seu calor, o doce peso de seu corpo ao lado
dele, sua cabeça enfiada sob a dele. Ela parecia mais suave, de alguma forma,
embora seu rosto sombreado estivesse preocupantemente magro. Claramente,
ela não estava dormindo nem comendo bem.
De repente, ele não conseguia mais ficar ali e fingir que era forte. Se ele
não a tocasse – mesmo que apenas este roçar pálido e meio real de sua mente
contra a dela, flutuando no rio do poder de Ludivine – se ele não a
alcançasse, segurasse seu rosto com as mãos, descansasse a testa contra o
dela e a sentisse respirar com ele, a dor em seu peito o consumiria. Se não
pudesse protegê-la, não pudesse ajudá-la, ele poderia pelo menos tentar
alcançá-la.
Ele se apressou, sufocou o nome dela, ignorando o puxão de alarme de
Ludivine para trás, mas Rielle se afastou dele. Como se ele fosse machucá-la,
como se a tivesse encurralado.
Imediatamente, Audric deu um passo atrás, seu estômago revirando de
vergonha.
— Sinto muito — sussurrou. Ele ergueu as mãos. Lágrimas cresceram atrás
de seus olhos, mas ele as recusou. — Não há desculpa para as coisas que eu
disse a você naquela noite. Eu entendo porque você se foi. Rielle… — Mas a
lembrança da noite de núpcias, o eco amargo do que poderia ter sido, era
terrível demais, pesada demais, e partiu sua voz em duas. — Eu sinto muito,
meu amor.
Rielle o observou em silêncio, seu olhar brilhante e duro. Cintilou para
Ludivine, depois de volta para ele, e então, sem dizer nada, ela se levantou e
alisou a frente da túnica com as mãos, achatando-a contra o torso.
Audric quase riu de alívio ao vê-la parada ali, com os ombros retos e
tensos. Porque lá estava ela – sua amada, sua Rielle – e lá estavam seus
braços, havia a depressão de sua garganta, as dobras da túnica e das calças
em torno de cada curva.
Ele viu a mudança imediatamente, e ao ver sua barriga arredondada, seus
seios inchados, ele deixou escapar um som pequeno e estranho que não era
nem risada nem soluço.
Um sorriso apareceu no rosto de Rielle. Havia uma luz suave em seus
olhos, e ele se alegrou ao ver isso.
Mas ele não conseguiu desalojar o medo repentino que invadiu sua mente.
Era uma coisa horrível de se imaginar, um ciúme que não merecia lugar neste
momento.
O filho era dele? Ou era de Corien?
Ele descartou o pensamento assim que se formou. A criança era de Rielle, e
ele a amaria de todo o coração.
— Oh, Rielle — respirou, sorrindo, e seu desejo desesperado de segurá-la
em seus braços era uma lança em seu peito. — Como você está se sentindo?
Você está vendo um curandeiro? Eu sei que você deve estar assustada e
preocupada. A profecia…
— Eu vi isso — disse, sua voz distante e aguda. — Eu vi seu rosto. — Ela
deixou seus braços caírem, suas mãos em punhos e seus olhos brilhando de
fúria. — Essa é a primeira coisa que você pensa depois de todo esse tempo
separados? Se a criança é sua ou não.
O coração de Audric afundou. — Não, Rielle, isso não importa para mim.
A primeira coisa que pensei foi o quão aliviado estou por vê-la ilesa.
— Mentiroso — ela disse friamente. Seu olhar acendeu em um dourado
raivoso. — Fique tranquilo, Audric, foi você quem fez isso comigo. Tudo
isso.
Uma força violenta cortou o momento em dois, caindo entre eles como a
queda de um machado.
Audric cambaleou para trás e desabou, com a cabeça e os ombros forçados
ao chão, e quando conseguiu se mover de novo, a floresta havia desaparecido,
assim como Rielle.
Ele estava em seus aposentos no palácio da Rainha Bazati e da Rainha
Fozeyah, e além de Ludivine, estava sozinho.
Com a visão girando, o desespero fechando sua garganta, Audric
pressionou a testa e os punhos no tapete macio. Vagamente, ouviu Ludivine
se movendo e ergueu os olhos quando ela se acomodou ao seu lado, o rosto
suado e pálido. Atrás dela, as janelas abertas emolduravam um mar calmo, o
sol iluminando alegremente a água, a cidade, a praia devastada. A escuridão
se formou no horizonte beijando o mar aberto, pintando o céu de um azul
ardósia amanteigado.
— Ele a encontrou — disse Ludivine, tocando suavemente seu joelho. —
Eu sinto muito. Não havia nada que eu pudesse fazer. — Ela respirou fundo.
— Ele está mais forte do que nunca.
Audric não disse nada. Ele encontrou a ponta do tapete, onde a imagem de
Rielle estivera momentos antes. Ele pressionou as palmas das mãos contra
ele, buscando desesperadamente o eco quente do corpo dela.
Depois de um longo momento, Ludivine disse suavemente: — A criança é
sua, Audric.
— Eu não estava mentindo quando disse que não importava para mim. —
As palavras eram cinzas em sua boca e vieram tarde demais. — Ela ficará
apavorada de qualquer maneira, e vai odiar e amar também, e eu não poder
ajudá-la com isso é uma grande maldade jogada sobre nós dois. Eu mereço,
mas ela não.
— Devo dizer que Rielle sabia antes do casamento, assim como eu.
Audric riu amargamente. Era uma agonia imaginar um mundo em que ele e
Rielle pudessem comemorar e se preocupar juntos. Ele a adoraria, forneceria
a ela qualquer coisa que ela desejasse. Ela teria todos em Âme de la Terre se
excitando com ela – ou ninguém, se ela preferisse.
— Você sabia de uma informação que era importante para mim saber —
disse ele, — e ainda assim escondeu de mim? Surpreendente. Sem
precedente.
Ludivine estava quieta. — Ela me disse para não contar a você. Eu não
poderia ignorar isso.
— Se eu soubesse…
Ele parou e desviou o olhar.
— Se você soubesse — disse Ludivine, — você a teria tratado com mais
gentileza nos jardins? Você teria parado para pensar? Você teria mostrado
misericórdia e compreensão ao seu filho por não ter concedido o mesmo a
sua esposa?
Audric olhou para o chão até recuperar a voz, então olhou para Ludivine.
Seu sangue era um tambor silencioso de raiva.
— Se eu soubesse — Audric disse firmemente, — nós teríamos essa coisa
alegre entre nós, uma luz para iluminar a escuridão daquele dia. Uma âncora
para nos ajudar a enfrentar as tempestades. Você não está errada em me
acusar de imprudência, de tolice, até mesmo de indelicadeza. Mas não estou
sozinho em meus erros. E nada disso a absolve.
Ludivine encontrou seus olhos por um longo momento. O sentimento de
sua própria vergonha aumentou para encontrar o dele.
— A absolvição — disse por fim, — é algo que não procuro nem mereço.
— Nisso, podemos concordar — disse ele, o que talvez fosse injusto, mas
podia sentir-se escorregando de volta para as profundezas negras e calmas
que governaram sua vida durante aquelas primeiras longas semanas em
Mazabat, e a desesperança daquele sentimento, o peso inevitável disso, agiu
sobre ele como uma droga, exercitando sua língua.
Ele se levantou, juntando os fragmentos de sua voz, e enviou-lhe uma
despedida silenciosa.
— Obrigado por sua ajuda — disse em voz alta. — Foi um presente ver o
rosto dela novamente.
Ludivine hesitou, então gentilmente abriu todo o seu amor por ele antes de
deixá-lo em sua solidão e na fuga do sono.

•••

Menos de duas horas depois, Audric acordou com a sensação de chuva em


seu rosto.
Audric, rápido, veio a voz urgente de Ludivine. Eles precisam de você.
As portas de seu quarto se abriram. Evyline entrou correndo com o resto da
Guarda Solar.
— Meu rei, devemos nos mover rapidamente — disse Evyline, seu olhar
disparando para as janelas.
Audric se sentou e enxugou o rosto. Atheria estava perto da cama,
sacudindo suas asas e crina. Ela apalpou o tapete, as narinas dilatadas.
Audric, olhando para além dela, imediatamente viu por quê.
Ele correu para as janelas, além das quais o mundo estava escuro, a maré
alta e furiosa. Ondas enormes e agitadas se espalharam pela costa. As árvores
balançavam em uma inclinação com o vento forte. Até o castelo parecia
balançar. O céu rodou preto com nuvens, iluminado por leques irregulares de
relâmpagos. Os sinos dos sete templos da cidade repicaram, fracos em meio à
tempestade uivante.
Rapidamente, ele encontrou suas roupas, vestiu o paletó e calçou as botas.
— Eles estão evacuando a cidade? — ele perguntou.
— Sim, meu rei — respondeu Evyline. — Mas há muita confusão e muitas
das estradas já estão inundadas. Eles já viram furacões antes, meu rei,
especialmente nos últimos meses, mas sempre tiveram tempo adequado para
se preparar.
Audric encontrou Illumenor ao lado de sua cama. Quando sua mão se
fechou em torno do cabo, o familiar tremor de poder voou da palma até o
ombro. — Por que ninguém me acordou antes?
— Veio sobre nós em minutos, meu rei. Dez minutos atrás, era um dia
claro, as nuvens distantes.
Um mal-estar se instalou no peito de Audric. Isso era obra do Portão. —
Não é uma tempestade comum, então.
— Eu imaginei, meu rei — disse Evyline gravemente.
Uma onda de gritos vindos de fora os puxou para o terraço, onde a chuva
ondulava como véus negros. Atheria usou suas asas para protegê-los do pior.
Audric semicerrou os olhos contra a tempestade. O que antes havia restado
da praia danificada havia desaparecido sob as ondas crescentes que deviam
ter ultrapassado trinta metros, mais espuma do que água. Ele assistiu com
horror quando grandes pilhas de destroços varreram com a maré – bangalôs e
cais, as torres de vigia que pontilhavam a costa, o distrito do mercado, um
bairro inteiro de apartamentos. A cada onda, outro pedaço da cidade caía no
mar.
Ludivine apareceu ao seu lado com uma expressão solene.
— Quantas pessoas morreram? — Audric perguntou a ela.
— Quinhentos e dois — ela disse calmamente.
— Onde está Kamayin? As rainhas?
— Organizando seus elementais perto da água, tentando afastar o pior.
Audric se virou imediatamente e subiu nas costas de Atheria. Ele estendeu
a mão para Ludivine e ajudou-a a se acomodar atrás dele.
Evyline cambaleou para a frente. — Meu rei, não!
Mas Atheria já havia se lançado para o ar selvagem, e logo o terraço estava
bem atrás deles. O pégaso mergulhou na chuva e no vento, evitando pedaços
de entulho – árvores arrancadas, venezianas de madeira quebradas, cacos de
telhas, borrifos negros de terra e rocha. Enquanto voavam, Audric observou a
devastação abaixo. A água agitada avançou pelas ruas inundadas, levando
destroços e animais afogados. Os cidadãos de Quelbani escalaram
freneticamente por terras mais altas.
Atheria os levou a um largo trecho de estrada que se tornara a nova linha
costeira, repleto de algas, conchas e peixes encalhados. A Rainha Bazati e a
Rainha Fozeyah dirigiram esquadrões de elementais. Os Earthshakers
lutavam para estabilizar o solo encharcado. Windsingers, braços para cima,
lutavam contra o vento o quanto podiam.
E a princesa Kamayin, com o vestido colado ao corpo, receptáculos em
volta dos pulsos brilhando como estrelas presas, gritou ordens para um bando
de trabalhadores da água reunidos em um triângulo. Seus esforços
subjugaram uma onda quebrando, empurrando-a de volta para o mar – mas
mais ondas estavam logo atrás dela, implacáveis e violentas, e embora os
elementais de Kamayin lutassem bravamente, um pânico impotente estava
escrito em seus rostos.
Eles sabiam que esta não era uma tempestade do mundo natural.
Sabiam que poderiam não sobreviver.
Audric guiou Atheria até pousar ao lado das rainhas, então saltou para o
chão e sacou Illumenor. O sol estava distante, diminuído pela tempestade e
pela hora tardia, mas Audric sentia a luz em todos os lugares ao seu redor. O
calor infinito e familiar disso, sempre brilhante além das nuvens, puxou seu
coração como o ritmo de uma canção há muito amada.
Enquanto se concentrava na conexão entre ele e a luz, no poder acelerando
cada vez mais rápido através de seu corpo, Illumenor começou a brilhar. E
quando atingiu um brilho ofuscante, Audric liberou a tensão em seu corpo,
dirigiu seu poder para fora e lançou amplos raios de sol em um círculo, ele
mesmo sendo o coração em chamas.
Ele manteve a luz no lugar, sua mente agarrando as rédeas vibrantes de seu
poder. O calor transformou a chuva em vapor antes que atingisse o solo, e
enquanto permaneciam dentro dos limites da luz de Audric, os elementais
mais próximos dele podiam limpar seus rostos e recuperar o fôlego.
Enquanto mantinha seu poder firme, Audric olhou para a esquerda e notou
Sanya, a soldado que o confrontou no pátio de treinamento. Ela não era, ao
que parecia, uma elementar. Em vez disso, estava trabalhando com outros
soldados para construir grandes pilhas de destroços e sacos de lona cheios de
areia.
— Sanya! — ele gritou. — Traga-me correntes, cordas – qualquer coisa
que possa resistir ao vento. As coisas mais fortes que você puder encontrar!
Sanya, com o rosto contraído por causa da chuva forte, saltou para
obedecer, chamando outros para ajudá-la.
Kamayin correu, os receptáculos em torno de seus pulsos ainda
ligeiramente acesas, sua pele morena encharcada brilhando na luz lançada de
Audric. Atrás dela, as rainhas continuaram gritando comandos.
— O que você está planejando? — Kamayin chorou.
Audric gritou para ser ouvido. — Eu acho que posso quebrar a tempestade.
O olhar de Kamayin voou sobre sua espada, seus braços. — Você é forte o
suficiente para isso?
Uma imagem surgiu em sua mente – Rielle cavalgando Atheria para
enfrentar a onda que ameaçava as costas de Borsvall. Como ela tinha
queimado brilhantemente contra aquela parede escura de água, um farol de
esperança para todos que a viram.
Ele segurou a imagem perto, dolorido de amor. — Eu posso fazer isso. Lu,
ajude-os como você puder. Concentre suas mentes, aumente sua confiança.
Ele esperava que ela protestasse, mas ela simplesmente acenou com a
cabeça, seus olhos claros sérios, mechas de cabelo dourado escurecendo
contra suas bochechas.
Uma explosão de gritos fez Kamayin se virar e gritar de desespero.
Audric olhou para trás a tempo de ver uma onda enorme caindo em uma
seção da praia a alguns milhares de metros de distância. A onda atingiu a
crista com um rugido e depois caiu com força, achatando tudo em seu
caminho.
— Aqui! — Sanya correu junto com outro soldado. Entre eles, carregavam
uma grande corrente com crosta de areia e um rolo de corda encharcada.
Audric gritou para todos reunidos: — Vou liberar a luz! Preparem-se!
Elementais e soldados voltaram-se para a tempestade, suas expressões
resolutas. Os windsingers levantaram seus braços, e Audric sentiu o ar apertar
enquanto eles concentravam seu poder.
Então ele se soltou por conta própria. Illumenor escureceu, assim como a
praia. A chuva voltou a cair e os soldados retomaram a construção de seu
muro.
Audric escalou Atheria, gritando sobre a chuva e o vento: — A corrente!
Amarre-a à nossa volta! Apertado, mas não o suficiente para machucá-la!
Sanya e o outro soldado, Kamayin e Ludivine correram para frente,
ajudando Audric a enrolar os pedaços de corrente em volta de suas pernas e
cintura e ao redor do estômago de Atheria até que ele estivesse firmemente
ancorado no lugar entre suas asas trêmulas.
Então, lendo suas intenções, Atheria se ajoelhou, olhou para Sanya e bufou.
Sanya hesitou, segurando o rolo de corda nas mãos. — Meu senhor… a
tempestade vai soprar sua besta divina do céu.
Audric ergueu as mãos, Illumenor agarrada entre eles. — Tão apertado
quanto você puder, Sanya. Mais apertado do que você acha que deveria.
Sanya lançou-lhe um único olhar preocupado, em seguida, correu para
obedecer, envolvendo a corda várias vezes em torno de suas mãos e do punho
de Illumenor, com tanta força que suas mãos floresceram de dor.
Mais gritos se ergueram atrás dele, nos limites da cidade, mas não se virou
para olhar.
Ludivine enviou-lhe uma onda forte e quente de encorajamento. Vá, meu
querido.
Audric fechou os olhos, enviando a Atheria um pedido de desculpas
silencioso.
— Com o amanhecer eu me levanto — ele orou. — Com o dia eu brilho.
Então ele rugiu: — Voe! — e Atheria empurrou com força a areia para o ar
– onde o vento imediatamente os jogou violentamente para o lado. Atheria se
recuperou rápido, suas asas batendo furiosamente.
A tempestade era incomensurável, colossal. O vento uivava e lamentava,
batendo contra eles enquanto as ondas abaixo golpeavam a costa. Atheria
lutou muito para se manter no alto, curvando a cabeça contra o vento. Penas
foram arrancadas de suas asas e giraram para as nuvens. Seu corpo
estremeceu sob ele, e ele sabia que uma criatura menor já teria sido dizimada.
À frente deles, erguia-se uma parede negra de nuvens, iluminada por raios.
Além daquilo, disse Ludivine em sua mente, está o olho da tempestade. É
mais calmo que o resto.
Audric fechou os olhos, forçando o medo que atormentava seu corpo para
focar seus pensamentos e imaginar a tarefa que tinha pela frente. Era uma
teoria selvagem, muito possivelmente errada: que uma explosão de força
bruta, se fosse forte o suficiente, se acertasse em cheio, poderia mudar o
próprio empirium e quebrar a tempestade em suas fundações.
Tal ato também poderia matá-lo. Se jogasse cada fragmento de seu poder na
tempestade, o que sobraria dele sem isso?
Mas não podia pensar na morte. Em vez disso, Audric imaginou Atheria e
ele voando através daquela espessa parede de nuvens, então explodindo em
luz e segurança do outro lado.
E a visão de Rielle ficou com ele como uma onda de calor em seu coração –
ela e Atheria, uma pequena explosão estelar de luz lutando contra a parede de
água furiosa no Mar do Norte.
Audric forçou a abrir os olhos e não viu nada além de furiosas nuvens
negras. Uma rajada de vento atingiu Atheria, desequilibrando seu curso e
enviando o estômago de Audric até os dedos dos pés. Mas então Atheria se
levantou, lutando contra os punhos implacáveis do vento.
Um raio estourou tão perto que a cabeça de Audric vibrou com o calor
crepitante dele. Seus dentes doíam e sua boca e nariz se encheram de um
cheiro azedo e quente que o lembrou do fedor ocre que havia chamuscado o
ar quando Rielle tentou e falhou em consertar o Portão.
Seu corpo zumbia com uma energia que não era sua. Vinha da tempestade,
este furacão feito no Portão. Feriu sua pele, queimou seus pulmões e ele
começou a temer que tivesse cometido um erro terrível, que tudo o que
pudesse fazer não seria o suficiente em face de tal poder divino. O Portão foi
feito em uma época de derramamento de sangue e desespero. A própria
natureza desta tempestade, sua linhagem, era a da fúria.
Trêmulo, ele alcançou sua mente. Lu?
Estou aqui, veio sua voz firme. E você também, Portador da Luz. Mostre-
se.
Audric fechou os olhos mais uma vez, respirou fundo e ergueu as mãos,
Illumenor agarrada com força entre eles.
Imediatamente, o vento pegou a lâmina larga e os fez girar até que Atheria
os endireitou e os empurrou para frente com um grito agudo.
Audric, com a cabeça girando como se tivesse sido atingido, encarou as
nuvens que cuspiam e começou a rezar. Com o amanhecer eu me levanto.
Memórias o inundaram: ele mesmo quando criança, treinando nos jardins
reais com Magister Guillory, cada samambaia e cada pinheiro daquele mundo
sombrio e verde ornamentado com raios de sol que ele havia puxado do céu.
Com o dia eu brilho.
Suas mãos de oito anos, rechonchudas e suadas, mas mesmo assim firmes
no ar, mantendo aquelas incontáveis luzes suspensas e girando lentamente.
Perto, observando com orgulho, sua mãe e seu pai, de braços dados.
E agora, mesmo preso na tempestade, Audric sentiu a luz do sol subindo ao
seu redor, respondendo ao chamado de seu poder. Illumenor brilhou em suas
mãos, tão brilhante que ele não conseguia mais ver além dele. Seu brilho era
seu mundo inteiro, e queimou sua forma em seus olhos.
Em seguida, uma rajada de vento concentrada explodiu atrás deles,
empurrando-os para a frente na parede negra de nuvens.
Com o amanhecer eu me levanto.
Ele percebeu, enquanto o Rito do Sol corria por seus pensamentos, que o
impulso do vento tinha sido muito preciso, muito focado, para ser natural. E a
sensação disso – repleta de esperança e gratidão, vibrando com poder –
confirmou seu palpite.
Os windsingers lá embaixo mandaram esse vento para ele. Juntos, reuniram
energia suficiente para ajudar Atheria e ele a dar esse último empurrão
desesperado.
Com o dia eu brilho, Audric pensou, suas mãos formigando com poder, e
quando ele e Atheria irromperam pela parede de nuvens e para o olho da
tempestade, seu alívio foi tão imenso que ele gritou e seu poder explodiu de
alegria. A energia correu por ele, tão violenta e vívida que ele teve certeza de
que iria rasgá-lo em dois. Imaginou toda a amplitude da tempestade,
espalhando-se negra e furiosa sobre o mar, e as infinitas camadas do
empirium que o entrelaçavam como painéis de vidro dourado. Eles tocaram
as nuvens e os relâmpagos, a lâmina em suas mãos, o poder em suas veias.
Largas lanças de luz explodiram de Illumenor, e o mundo resplandeceu
branco e quente.
No silêncio retumbante que se seguiu, sua visão voltou lentamente para ele,
embora sua cabeça latejasse com a dor que escureceu metade do mundo.
Vagamente, ele percebeu que Atheria estava voando desesperadamente de
volta para a costa. Ele olhou em volta, piscando a escuridão de seus olhos. A
tempestade havia perdido coesão, suas nuvens se espalharam e se
desintegraram rapidamente. Ventos calmos passaram por ele, esfriando suas
bochechas chamuscadas enquanto Atheria disparava sobre a água.
Ele sentiu uma dor surda batendo em seus braços e olhou para suas mãos.
O punho de Illumenor brilhava com sangue. Suas palmas gritavam uma
agonia devastadora tão feroz que doeu seus dentes.
Ludivine estendeu a mão para ele, a onda suave de sua ternura silenciando
todas as sensações. Logo, ele não sentia mais dor.
Você pode deixar ir, Audric, ela disse a ele. Eles estão seguros.
Ele o fez, deixando seus braços caírem. Balançando nas costas de Atheria,
tonto, ele observou rodas de fogo coloridas girando diante de seus olhos. Ele
se perguntou se estava morrendo, se veria Rielle novamente e o que ela
pensaria quando soubesse o que ele havia feito. Então ele desabou contra o
pescoço de Atheria.

•••

Suavemente, ao som de uma voz familiar chamando seu nome, Audric


começou a se mexer, e só se permitiu despertar porque a voz era de Rielle.
Ele seguiu em direção ao céu, empurrando o peso doloroso que pressionava
contra ele, essa pressão que queria enterrá-lo. Uma imensidão de exaustão.
Então ele a viu – seu amor, sua Rielle, vestida de branco, o cabelo solto e o
rosto brilhando de amor. Ela estendeu a mão para ele; pediu que ele subisse.
Mas quando Audric abriu os olhos, o nome dela em seus lábios, a visão
desapareceu. Era apenas Ludivine olhando para ele. Ela se sentava ao seu
lado na cama, os olhos dele brilhavam com lágrimas.
— Sinto muito — sussurrou. — Eu tive que te acordar. Eu não podia
esperar mais para ver seus olhos novamente.
Audric se afastou dela. Lágrimas rolaram por seu rosto.
Ludivine deu a volta na cama para se sentar ao lado dele. Gentilmente
embalando uma de suas mãos enfaixadas, ela levou seu pulso aos lábios e
beijou-o.
— Você conseguiu — ela sussurrou. — A tempestade desabou. Seu poder a
destruiu. Você a desfez, Portador da Luz. O mar está calmo. Você salvou a
cidade.
Audric respirou até que sua dor afrouxasse o controle negro. Uma pergunta
veio a ele, embora seu coração ainda doesse.
Ludivine sorriu suavemente, lendo sua pergunta. — Sim. Sim, Audric.
Todos viram você fazer isso. Eles assistiram Atheria voar. Era diferente de
tudo que já tinham visto. Eles ficaram na praia, e os elementais sentiram o
momento em que seu poder entrou em erupção. O choque disso cantou por
seus corpos e enviou seu próprio poder em chamas. Eles contaram aos
soldados, e os soldados contaram às pessoas, e agora a cidade fala de você e
dos santos ao mesmo tempo. — Ela tocou seu rosto, e ele estava tão cansado
que se esqueceu de ficar com raiva dela e pressionou o rosto em sua palma.
Ludivine estremeceu ao beijar sua testa. — Agora venha. Eles estão
esperando por você.
— Quem?
— Todos.
Uma pequena esperança acendeu dentro dele, puxando-o para seus pés. Ele
permitiu que Ludivine o ajudasse a se vestir. Todo o tempo, olhou para as
mãos, em seguida, enviou-lhe uma pergunta silenciosa.
— Vão curar — respondeu suavemente. — Os médicos pessoais da rainha
trataram de você. Eles são extremamente habilidosos e dizem que o empirium
parece estar ajudando seu próprio tratamento. Dizem que em uma semana
você poderá tirar as ataduras. Dentro de duas, você levantará Illumenor mais
uma vez.
Ele acenou com a cabeça, vacilante e com a boca confusa. Ele se apoiou
com força em Ludivine enquanto desciam as escadas, Evyline e a Guarda
Solar logo atrás. Quando chegaram à sala do Senado, Audric se afastou
suavemente de Ludivine, pronto para caminhar por conta própria.
Mas então as portas se abriram, e Audric olhou, sua pulsação acelerada,
pois não só havia todo o Senado reunido – todos os duzentos membros,
vestidos com as cores de seus distritos – mas também seus assessores, seus
conselheiros, o Conselho Magisterial. Centenas de soldados e civis. Quando
passou pelo General Rakallo, ela colocou a mão no peito e fez uma
reverência. Eles estavam todos se curvando. Eles ajoelharam-se, tocaram os
lábios, o peito e a testa em oração.
No estrado central da sala, as rainhas se levantaram de seus assentos. A
princesa Kamayin, radiante, avançou e prendeu na lapela de Audric uma íris
azul – uma das flores mais apreciadas no Mazabat e o símbolo da coroa.
A oradora do Senado deu um passo à frente com um pergaminho nas mãos,
e Audric ouviu em estado de choque enquanto sua voz soava pelo corredor.
— Sobre a petição do rei Audric Courverie da nação de Celdaria — disse o
orador, — que solicitou ajuda militar para invadir a capital do mesmo país e
derrubar o usurpador Merovec Sauvillier, com o objetivo de longo prazo de
estabelecer base de defesa contra potenciais invasores angelicais, o Senado
decidiu reconsiderar nossa decisão anterior. Levamos em consideração o
conselho de nossas rainhas, dos santos magos e do povo Mazabatian, cujas
vozes nos concederam nossos assentos de poder.
A oradora olhou para Audric, seu rosto ilegível. — Também consideramos
os eventos recentes, incluindo o furacão que quase destruiu nossa capital e as
ações do Rei Celdariano naquele momento de crise – ações que poderiam ter
custado a vida dele.
Ela fez uma pausa. — Nosso voto final é unânime. Por meio deste,
propomos que a petição celdariana seja revisada e aceita e que a coroa aprove
o pedido do rei de ajuda militar – primeiro com o propósito de recuperar o
trono celdário, mas mais importante, para fornecer assistência na guerra
contra o anjo Corien e quaisquer conflitos que possa seguir depois disso.
Então a oradora apresentou seu pergaminho às rainhas, rolando-o sobre um
suporte de madeira polida, e por fim deu a Audric um pequeno sorriso.
— Se concordarem com esta moção para aprovar a petição celdariana,
minhas rainhas — disse a oradora, — suas assinaturas confirmarão nosso
voto.
A rainha Bazati deu um passo à frente, com a cabeça erguida, e assinou o
papel com um floreio. Então a Rainha Fozeyah acrescentou seu próprio nome
com um largo sorriso.
Kamayin correu para Audric e jogou os braços ao redor dele, e ele observou
por cima do ombro dela, sua cabeça rugindo de descrença, enquanto todos no
salão se levantavam e explodiam em aplausos estrondosos.
21
Jessamyn

“Para as torres brancas do Elysium – para estes eu prometo todos os


meus ossos. Para a glória que uma vez existiu e para a glória que
haverá – a isso ofereço todos os meus tendões. A Ele, a Luz Imortal, eu
devoto cada centímetro da minha carne.”
— Dos ritos de iniciação de novilhos à ordem de Invictus

Jessamyn se esquivou do bastão de luta de Nevia enquanto ele cortava o ar,


em seguida, disparou de volta e encontrou o bastão com o dela.
Lutar era bom. A luta a ajudou a esquecer a coisa horrível que havia feito.
Por quase uma hora direto, ela lutou com Nevia em um dos sparrings do
Liceu. Ela se recusou a parar, nem mesmo para limpar o rosto, o que foi uma
sorte, porque Nevia tinha fama de implacável e não teria concordado em
descansar.
Essa crueldade foi o motivo pelo qual Jessamyn deixou Remy em seu
quarto no meio da aula, marchou para o quartel e jogou um cajado para
Nevia, o que fez a mulher mais velha sorrir em seu jeito de lobo.
Agora elas lutavam, as portas e janelas do quintal estavam cheias de
curiosos. Recrutas com seus próprios cajados prontos, ansiosos para entrar
em ação caso Jessamyn cedesse. Mas Jessamyn não poderia ceder.
A cada golpe que desferia e recebia, ela sentia um pouco do medo selvagem
dentro dela diminuir, embora sua mente ainda girasse com a memória do que
tinha acontecido nos quartos de Eliana no dia anterior.
Como era possível que essa garota macilenta e muda – que já fora uma
assassina formidável, supostamente, embora Jessamyn não pudesse imaginar
isso – pudesse tê-la vencido? Jessamyn, aluna de um dos maiores assassinos
que Invictus já empregou? Jessamyn, virashta de Varos? Ela disse a si mesma
que foi a dor persistente pela morte dele que a distraiu. Mas isso não era
conforto, pois indicava uma suavidade à qual ela há muito se julgava
impenetrável. Uma suavidade humana que Varos tentou arrancar dela.
O cajado de Nevia roçou seu braço, fazendo Jessamyn grunhir e tropeçar.
Ela se reagrupou, girou na sola fina e flexível de sua sandália e bateu com
força em Nevia no ombro, depois novamente no quadril.
E ainda assim ela não conseguia parar de pensar sobre o que teria
acontecido se Eliana tivesse conseguido se matar, qual teria sido a punição do
imperador.
Qual poderá ser o seu castigo.
Pensar nisso a deixou desleixada. Nevia girou rápido, acertou Jessamyn na
cabeça com seu cajado e o usou para tirar os pés de Jessamyn de baixo dela.
Ela caiu com força, batendo com o queixo no chão. Estrelas explodiram em
sua visão e ela sentiu o gosto de sangue, mas a vergonha era muito pior.
Nevia a rodeou. — Nunca entendi o que Varos viu em você — disse. Não
havia malícia em sua voz, simplesmente uma curiosidade perplexa.
Então, um conjunto de portas à direita de Jessamyn se abriu e todos, exceto
ela – Nevia, os estagiários que assistiam – caíram simultaneamente no chão.
O Imperador invadiu o pátio, uma capa debruada de pele jogada sobre os
ombros, e assim que Jessamyn fixou os olhos nos dele, seu corpo enrijeceu,
seus ossos ficaram rígidos. Ela piscou e o mundo mudou.
Ela estava sozinha no quintal. O céu estava cinza, os prédios do Liceu,
pretos e sem janelas. O mundo vibrou – o ar, o Liceu, a pedra sob os pés. O
esboço de uma criança ganha vida furiosa.
Neste mundo estranho e sombreado, o imperador era glorioso – 2,5 metros
de altura, esguio e membros longos, seu rosto uma configuração requintada
de maçãs do rosto acentuadas e olhos claros e pálidos, seu cabelo uma nuvem
negra mutante. Suas roupas flutuavam sobre ele em espirais escuras. De suas
costas abria-se um conjunto de asas enormes – brilhantes onde explodiram de
seus ombros, inclinadas na sombra.
Jessamyn gritou, seus joelhos dobrando. Ela queria desesperadamente
desviar o olhar. Ele era muito bonito, muito brilhante. Ela não deveria estar
olhando para ele. Seus olhos humanos eram pequenos demais para isso.
Mas o Imperador a manteve no lugar com sua mente, forçando-a a olhar.
Ela o sentiu entrar em seus pensamentos como uma cobra por uma fenda na
pedra. Logo ela se despedaçaria, o gosto de sua fúria em seus lábios tão
metálico e azedo como sangue.
— Você levou facas para o quarto dela — disse ele, com a voz entrecortada
e alta.
Ele era muito imenso para ela. A mente dele na dela fez sua cabeça doer e
seus olhos arderem com um calor abrasador. Seus dedos estavam
profundamente nas dobras de seus pensamentos, cavando, torcendo.
O mundo cintilou e depois mudou.
Jessamyn observou horrorizada Nevia e os outros reaparecerem, embora
agora estivessem emaciados, com os olhos arregalados. Eles bateram suas
cabeças contra as paredes até que seus rostos ficassem encharcados de
sangue. Eles pularam um no outro e rasgaram com os dentes, festejando.
Jessamyn engasgou — Meu senhor, por favor…
— Você foi treinada pelos meus melhores lutadores — disse o Imperador,
— e ainda assim foi estúpida o suficiente para presentear Eliana com armas.
Sua idiotice me surpreende.
Um corvo desceu do céu e se lançou sobre um pequeno pássaro canoro.
Jessamyn observou o corvo esfaquear o peito do pássaro, rasgar sua garganta
e sacudi-lo. Com seu grande bico preto, ele arrancou pedaços de carne e tufos
de penas.
O coração de Jessamyn bateu mais rápido e mais forte. Ela estava
desesperada para tapar os ouvidos, mas não conseguia mexer os braços,
porque não os tinha mais. Em vez disso, suas asas bateram e vibraram. Ela
era o pássaro canoro na terra, e o corvo a bicou, quebrou suas costelas,
arrancou tiras de sua carne. Os olhos do corvo brilharam com um branco
brilhante, tão resplandecente quanto os olhos angelicais do imperador haviam
sido, e ela sabia que essa escuridão, esse enorme peso rugindo caindo sobre
ela, arranhando-a, era o corvo, sim, mas também o Imperador, forçando a
abrir sua mente.
— Perdoe-me, Sua Excelência — Jessamyn conseguiu falar, sua garganta
em pedaços. — Eu sofro por Varos…
— Sua dor é ridícula ao lado da minha — respondeu o Imperador. Ele era
uma coluna mutável de escuridão, pairando sobre o rosto dela como se
estivesse considerando um beijo. Ela viu seus olhos brancos, queria fechar os
dela contra eles, mas não tinha pálpebras. Ela queria gritar, mas não
conseguia abrir os lábios. Quando ela tocou seu rosto, ela descobriu que sua
boca havia desaparecido, em seu lugar um plano de carne.
— Diga-me — murmurou o Imperador, — por que ela parou? O que você
viu?
Jessamyn permaneceu inteira ao lado de seu próprio corpo. Ela observou
seu outro eu, sem boca e sem pálpebras, se contorcendo nas mãos do
Imperador.
— Ela me cutucou na garganta — Jessamyn disse, assistindo calmamente.
— Ela puxou uma adaga do meu cinto. Enfiou a faca em seu estômago, então
parou antes que a lâmina pudesse tocá-la.
— Como ela parecia naquele momento?
— Os olhos dela ficaram turvos. — Era fascinante para Jessamyn ver como
ficava seu corpo quando estava em agonia. Como seus músculos se
distenderam, como chorava copiosamente. — Ela deixou cair a faca. —
Jessamyn fez uma pausa, lembrando. A memória estava distorcida, como se
ela estivesse olhando através de um véu. — Ela fez uma pergunta. ‘Quem é
você?’
O mundo explodiu em uma luz branca brilhante, o ar gritando nos ouvidos
de Jessamyn.
Por fim, escuridão.
Ela abriu os olhos, ofegante, e olhou para o céu do meio-dia. O imperador
se fora. Ela pensou ter ouvido o som de suas botas cortando pedras. Nevia e
os outros despertaram do estupor que o imperador os havia segurado, cada
um piscando e desorientado.
E só então Jessamyn percebeu o quão estranho era que o Imperador tivesse
perguntado a ela o que havia acontecido nos quartos de Eliana. Afinal, ele
raramente deixava os pensamentos da garota. Sua mente deveria ter mostrado
a resposta.
O que significava que – embora Jessamyn nunca tivesse imaginado que
seria possível para alguém igualar a força do Imperador – algo, alguém, de
alguma forma, estava protegendo a verdade dele.

•••

Na noite seguinte, Jessamyn atravessou o Liceu em direção à biblioteca. Ela


parecia afiada nas bordas, sua pele mal ajustada. Passou o dia inteiro
estacionada fora dos quartos de Eliana enquanto o imperador trabalhava.
A irritava que ouvir os gritos da garota pudesse afetá-la tanto. Ela era
Invictus, a aluna de Varos. Tinha ouvido coisas piores. Tinha feito pior.
E, no entanto, não conseguia tirar da cabeça o que o Imperador fizera com
ela no pátio de combate no dia anterior. Era como se Jessamyn tivesse
morrido no chão sob as mãos do imperador e tivesse renascido uma versão
trêmula e nervosa de si mesma.
Um nó duro de fúria subiu na garganta de Jessamyn enquanto ela avançava
pelas sombras do Liceu. Tudo isso era culpa de Eliana. Ela se recusou a
cooperar, e assim o temperamento do Imperador se desfez.
Jessamyn tinha ouvido os sussurros no Liceu nas últimas semanas, com
medo e furioso: Mais cruciata corriam pelo Portão todos os dias. Os
Sunderlands foram perdidos, o Mar do Norte sufocado por feras. Milhares de
anjos patrulhavam as costas Celdarianas e Borsvallicas, situando-se entre o
Elysium e uma invasão de monstros, e usaram a vaecordia do Imperador para
cortar besta após besta do céu. Nenhum ainda havia passado da linha de
frente para o continente, os anjos estavam perdendo seus vasos humanos
roubados às dezenas, o sangue tóxico da cruciata forçando-os a abandonar
seus corpos, e o Império estava lutando para abastecê-los com novos
rapidamente. Alguns anjos até mesmo sucumbiram ao sangue venenoso das
feras, suas mentes intangíveis e incorpóreas se estilhaçaram além do reparo.
A frente não duraria para sempre.
Jessamyn esquadrinhou a biblioteca por Remy, seu coração pulsando com
um medo desconhecido e raivoso que ela não conseguia se livrar. Sua mente
estava quente e sufocada. Eliana tinha o poder de selar o Portão e livrar o
Império desse problema para sempre, mas ela se recusava a usá-lo. Se o
Imperador não pudesse quebrá-la a tempo, sua inatividade condenaria todos
eles.
E, Jessamyn pensou, era possível que o Imperador não fosse mais forte ou
sólido o suficiente para quebrar as defesas de Eliana. Passaram-se meses
desde sua chegada e ainda assim a princesinha perdida não havia sido
espancada.
Jessamyn prendeu a respiração, esperando a punição descer dos céus.
Algum anjo ouviria seus pensamentos traiçoeiros e viria atrás dela, a
arrastaria para o palácio e deixaria o almirante Ravikant cortá-la em pedaços.
Mas a biblioteca permanecia escura e silenciosa. Na outra extremidade,
uma pequena lâmpada brilhava. Uma figura de cabelos escuros curvava-se
sobre um livro. Remy, estudando em sua mesa favorita. Jessamyn soltou um
suspiro lento.
Quando Varos estava vivo, sua lealdade era absoluta, sua obediência
fervorosa e impensada. Mas agora Varos estava morto. Jessamyn havia
testemunhado em primeira mão o estado de espírito errático do Imperador. O
Liceu estava cheio de sussurros e monstros inundavam o mundo.
Pela primeira vez, Jessamyn estava sentindo o lento giro da dúvida. E ela
odiava. A dúvida era fraqueza; dúvida era traição.
Só havia uma coisa a fazer. Ela precisava empurrar Remy ainda mais
durante seu treinamento. Apresentá-lo aos Cinco e ao Imperador, e depois a
Eliana. Jessamyn se imaginou vendo o rosto da garota cair quando ela
percebesse o que havia sido feito com seu irmão – e com isso, sua vontade de
lutar.
Tranquilizada, Jessamyn balançou os braços como se para sacudir a poeira,
então disparou para as longas filas escuras de estantes de livros e se moveu
rapidamente em direção a onde Remy estava sentado, com a intenção de
pegá-lo desprevenido.
Mas quando ela chegou à mesa dele, ele já havia partido. O livro ainda
estava aberto, a lâmpada brilhando suavemente.
Jessamyn soltou uma maldição baixa, agarrou uma adaga de sua bota e se
virou, mas Remy não se distraiu com pensamentos rebeldes e se moveu mais
rápido.
Ele disparou para fora das sombras e a agarrou. Lâmina contra sua
garganta, um golpe afiado em seu plexo solar. Ele torceu o braço dela, quase
conseguiu desarmá-la.
Quase.
Ela se recuperou rapidamente, cortou-o rápido e afiado em seu bíceps.
— Você anda muito alto, kaeshana — disse Remy. Ele a soltou, o tom de
sua voz brilhando como prata. — Você passou pelas portas da biblioteca
como um animal. Você achou que eu não ouviria? — Era a primeira vez que
ele falava desde o que quer que o Imperador tivesse feito com ele dois dias
antes, o que quer que tivesse feito Eliana querer tirar a própria vida.
— Eu me senti generosa — Jessamyn disse. — Pensei em lhe dar uma
chance de lutar.
Reunindo seus pensamentos dispersos, lutando contra uma onda de irritação
por ele ter conseguido pegá-la tão desprevenida, ela deu a volta na mesa para
olhar para ele.
Nos meses desde que Remy veio para Elysium, ele cresceu. Quase cinco
centímetros, ela adivinhou. E agora que morava no Liceu havia semanas, ele
se endireitou, em vez de se curvar como um prisioneiro. A luz em seus olhos
era nítida, focada. Ele cruzou as mãos atrás das costas, esperando por suas
ordens. O aluno deferente, com seu cabelo escuro bem penteado e a gola bem
cuidada de sua túnica longa. Em sua bochecha havia um corte desbotado de
sua sessão de sparring na semana anterior.
Jessamyn deu uma olhada no livro que ele estivera lendo, um texto em
papel pardo escrito em Antigo Celdarian roteirizado. Fazia parte da educação
de todos os estagiários da Invictus – ganhando fluência nas línguas do Velho
Mundo, nas línguas angélicas e em todas as línguas modernas.
— Terminou de traduzir? — ela perguntou.
— Quase — Remy respondeu.
— Quase não é bom o suficiente. Você deveria ter completado todo o
volume agora. — Jessamyn fechou o livro com força e chutou sua cadeira. O
estrondo foi um trovão na sala silenciosa e cavernosa. — Vamos para os
campos de treinamento. Vamos lutar até o amanhecer e então você vai sentar
aqui e terminar, e você não vai comer até que o faça.
Remy se encolheu, mas manteve os olhos fixos à frente.
— Isso seria um erro — disse uniformemente. Apenas o menor tremor em
sua voz traiu seus nervos.
Apesar de tudo, Jessamyn ficou impressionada com seu desafio. — Oh? —
Ela deu a volta para olhar para ele, olhando de perto. — Você ficou louco,
pequeno virashta? Meus punhos arrancaram seus miolos de você finalmente?
Remy ficou quieto por um momento, então se atreveu a olhar para ela. Seu
rosto estava duro, mas havia uma pena em seus olhos que a enervou.
— Lutar comigo até o amanhecer seria um erro — disse. Sua voz falhou,
nem menino nem homem. — Você precisa descansar e, se voltar para o
palácio sem dormir, pode cometer outro erro e desagradar o imperador.
Jessamyn olhou para ele, sem palavras.
— Eu vi o que aconteceu no quintal ontem — Remy disse, desviando o
olhar. — Eu entrei em um dos sótãos e vi você lutar com Nevia. Eu vi
quando ele veio atrás de você. Ele estava muito distraído para perceber que
eu estava lá, eu acho. Eu vi os outros caírem. Eu o vi te atacar.
A boca de Remy torceu; ele estava mordendo a parte interna do lábio, um
hábito nervoso que Jessamyn o havia quebrado em sua primeira semana
juntos. Ela deveria ter batido nele por isso, mas ela estava chocada demais
para se mover.
— E eu soube o que aconteceu com Eliana — acrescentou ele, com os
olhos brilhantes. — Ouvi dizer que foi a sua faca que ela quase usou. Todo
mundo está falando sobre isso.
— Todo mundo — Jessamyn disse, silenciosamente cambaleando.
— Aqui no Liceu. Eu noto coisas, quando você não está aqui. Eu me
esgueiro e espio, como você me ensinou. — Então ele olhou para ela
novamente com uma ferocidade que a assustou. — Eu não acho que você
deveria lutar comigo esta noite. Eu acho que você deveria descansar. Acho
que você precisa ficar atenta.
Jessamyn finalmente conseguiu dar uma risada suave. — Você é um aluno
tão dedicado. Estou comovida com sua preocupação. Você, que me odeia e
provavelmente adoraria me ver executada ou exilada pelo Conselho dos
Cinco. Jogada nas cidades de tendas para os refugiados devorarem.
— Não importa se eu te odeio — Remy respondeu. — Você precisa
permanecer viva e a favor do imperador. E você estar viva é bom para mim.
As sombras da biblioteca de repente pareciam opressivas, como se
sustentassem o peso de muitos olhos fixos. Então ouviu sussurros. Seus
colegas estagiários, sem dúvida, fofocando sobre seu suposto fracasso.
Jessamyn riu, circulando Remy para que ele não visse seu rosto e como ele a
sacudiu.
Então ela se virou e o chutou na nuca, fazendo-o voar para a frente na
mesa.
— Eu preciso ficar afiada? — ela retrucou, engolindo o medo revoltante na
parte de trás de sua garganta. — Você também, pequena virashta. E se você
acha que pode escapar de uma luta esta noite, você está gravemente
enganado.
Remy olhou para ela por cima do ombro, enxugou o sangue de seu lábio.
Então ele se lançou sobre ela, e Jessamyn relaxou com seu primeiro golpe
selvagem na cabeça. Eles iriam lutar até que ela decidisse que era hora de
descansar.
Lutariam até que Remy se lembrasse de seu lugar – e até que ela se
lembrasse do dela.
22
Rielle

“Há estudiosos que acreditam que o empirium é uma força consciente,


gentil e misericordiosa, um presente de um Deus benevolente. Outros
acreditam que é inerentemente indiferente à vida que criou. Afirmo que
o empirium e Deus, como alguns o conceberam, são um e o mesmo. Não
é rude nem particularmente benevolente. É simplesmente – uma essência
incompreensível que eu, por exemplo, estou feliz por não poder tocar
intencionalmente.”
—A Essência do Incompreensível: Uma Examinação do Empirium
por Humanos Sem Magia Elemental, uma coleção de ensaios
compilados pelo bibliotecário Celdarian Vaillana Morel para a
Primeira Associação de Estudiosos

Gotas de chuva caíram nas bochechas de Rielle, e ela virou o rosto para
recebê-las.
Ela abriu os braços, porque um calor terrível a rodeava, e em seu sangue se
alastrava um inferno. Ela estava desesperada pelo respingo de chuva.
Mas a chuva estava quente, e quando atingiu seus lábios, havia uma
espessura pungente nela, um travo vermelho. Algo se enrolou em seu peito e,
quando ela abriu os olhos, viu que as gotas que molhavam seu rosto não eram
água, mas sangue.
Ela estava parada em uma piscina rasa na encosta de um penhasco com
vista para uma linha rochosa de enseadas. Sua memória retornando
lentamente, ela lembrou que Obritsa a havia levado para a costa leste de
Meridian em busca do Obex Meridian e do tridente de Santa Nerida. O vento
do oceano abaixo soprou em seu cabelo emaranhado de sangue. As ondas
quebraram e rugiram como bestas lutando por carne, e o horizonte brilhou
com relâmpagos.
Muitas tempestades, Rielle aprendeu, lançando seu poder sobre a superfície
plana da água e lendo as palavras que o empirium havia gravado nele. Mil
tempestades surgiram do portão e do céu acarpetado em todo o mundo.
Rielle riu, lambendo os lábios e apoiando as palmas das mãos no chão
escorregadio. A terra ondulou com seu toque, pois suas mãos ainda estavam
em chamas. O zumbido do tridente destruído de Santa Nerida permanecia em
sua pele. Uma flecha despedaçada estava a seus pés. O Obex realmente
tentou atirar nela, como se ela fosse um atacante comum. Como gritaram
pouco antes de ela os desfazer.
Rielle olhou por cima do ombro e fixou os olhos em Obritsa. A pequena
viajante, a rainha de Kirvayan, com seu cabelo branco emaranhado e sua pele
marrom-clara que ficara pálida com a tempestade. A menina brilhou, ouro
pintando suas mãos onde o empirium estava esperando por ela para criar os
fios. Ouro pintando sua mente, com todo seu controle meticuloso e foco.
Havia ouro no oceano e ouro no céu, e um ouro pulsante sob as rochas negras
e o oceano inquieto, subindo, subindo.
— Bem? — Rielle murmurou, zombando. — Você tem algo a dizer?
As peles de Obritsa também estavam manchadas de sangue. Flocos de
carne carbonizada pairavam no ar, mas ela não se esquivou deles.
Em vez disso, sustentou o olhar de Rielle e disse: — Você já pensou em
matá-lo?
Rielle riu. Os cabelos da nuca se arrepiaram. — Matá-lo?
— Você poderia, eu acho. — Uma lasca de cinza grudou nos cílios de
Obritsa. Ela não prestou atenção, seu rosto branco como pedra lavada. —
Obviamente você pode destruir corpos. Acho que você também pode destruí-
lo, se quiser. Desfazer seu verdadeiro eu de dentro para fora. Uma mente, um
corpo – são iguais, não são? Em seu nível mais profundo, são do empirium,
assim como tudo é.
— Eu poderia matá-lo? — Rielle experimentou as palavras, mas o
pensamento passou por sua mente como uma enguia de dentes afiados, cruel
e evasiva. Aquilo se contorceu dentro dela, e seus olhos eram tão pálidos
quanto os de Corien em seu quarto iluminado pela lua, sua carne carnuda era
a obsidiana lustrosa de seu cabelo. Ela havia destruído aquele anjo Malikel
em Patria, embora tivesse sido desajeitada, não intencional. Ela poderia fazer
o mesmo com Corien, que era muito mais forte? Ele ao menos permitiria a
ela a chance?
A raiva explodiu rapidamente dentro dela. Ela caminhou em direção a
Obritsa e a derrubou. A cabeça da garota bateu em um ponto fraco entre as
rochas, um pedaço plano de lama preta. Rielle viu a explosão raivosa de dor
em seu crânio e as estrelas piscando rapidamente em seus olhos.
— Você nunca mais vai falar sobre isso ou sobre ele — sibilou Rielle.
Apenas uma hora atrás, ela estava cansada até os ossos. Agora, com sangue
ao seu redor e suas veias fervendo com a violência da destruição, ela
renasceu.
Obritsa olhou para ela, sem fôlego. — Eu deveria ter impedido você de
matar os Obex. Você não é você mesma. Seus olhos estão mudando tão
rapidamente. O dourado está devorando o verde.
— Me parado? — Rielle sorriu largamente. — Você nunca poderia.
E então ela sentiu uma mudança no ar, esse ar que a obedecia e estava nela
e era dela, esse ar que se formaria em uma clava e esmagaria Obritsa na terra
se Rielle assim desejasse. Ele se moveu e se dobrou, permitindo espaço para
mais três corpos neste penhasco negro que se projetava para o mar, e quando
Rielle ergueu os olhos, viu dois anéis de luz se fechando. Suas narinas ardiam
com o cheiro familiar de fios de fumaça, mas estes não pertenciam a Obritsa.
Eles pertenciam a dois marques – um homem que Rielle conhecia e uma
mulher que não conhecia. O homem era alto e tinha olhos azuis, rosto e
cabelos desalinhados. A mulher era alta, magra e pálida. O homem baixou as
mãos brilhantes, o corpo rígido de tensão – e o rosto, Rielle pensou,
suavizando-se de pena, embora estivesse obviamente com medo.
— Garver? — Rielle sussurrou. A visão dele era incongruente e
profundamente perturbadora. Ela imaginou livrar o mundo dele com um
golpe de seu braço no ar. Ela não queria pensar em casa, em Audric com
aquela pergunta ciumenta torcendo seu rosto, e ainda assim havia Garver,
lembrando-a de tudo simplesmente por existir.
Outro homem passou por Garver, e isso foi pior, foi um golpe que deixou
Rielle insegura e tremendo de raiva por ele ter vindo atrás dela, por poder tê-
la encontrado aqui. Ele estava mais rude do que nunca e mais magro, seu
cabelo loiro emaranhado preso em um nó bagunçado.
Tal. Seu coração apertou com a palavra
Ele estava correndo em direção a ela, o rosto iluminado de alívio alegre, e
de repente Rielle percebeu o que ele iria ver – ela, respingada de sangue, as
mãos prendendo Obritsa no chão. Uma ruína de cinzas e morte os cercando.
A última vez que ele a vira foi na noite de núpcias. Ela era uma criatura
dourada, amarrada em renda e veludo, estúpida e feliz, e ainda era esguia
então, sua barriga e rosto não tão gordos como eram agora.
— Rielle! Oh, queridos santos, graças a Deus você está bem — disse, as
palavras explodindo dele. Quando a alcançou, um raio de terror a atravessou
como um raio.
— Afaste-se de mim — ela rosnou, sem soltar Obritsa. A garota iria correr;
a estranha pequena aliança entre elas sem dúvida foi destruída no momento
em que Rielle a atacou. Sem ela, se Rielle não pudesse agarrar Garver ou sua
amiga antes que se enfiassem em um lugar seguro, ela ficaria presa aqui nesta
costa terrível e devastada pela tempestade, e Corien levaria meses para
recuperá-la.
Tal parou assustado, a alegria caindo de seu rosto. Seu olhar percorreu a
encosta do penhasco, as rochas salpicadas de sangue.
Seus olhos se encontraram. — Rielle, está tudo bem — disse, como se
estivesse acalmando uma criança. — Eu entendo o que aconteceu aqui.
Ela riu. Como se, com sua mente simples e talentos nada excepcionais, ele
pudesse entender qualquer coisa do que ela sentia ou era.
Ele se aproximou dela com as mãos levantadas. — Você não precisa ter
vergonha. Você está destruindo os receptáculos dos santos, não é? Você
optou por não abrir o Portão. — Havia um pequeno sorriso em seus lábios. —
Eu sabia que você não iria ajudá-lo. Eu sabia que você recuperaria os
sentidos. Você estava com raiva e com medo. Eu entendi aquilo.
— Recuperar os meus sentidos? — Ela olhou para ele através de seus
cílios. O mundo pulsava em tons de âmbar e bronze. — Você não sabe nada
da minha mente e nunca poderia.
— Mas eu quero, Rielle. — Ele se ajoelhou lentamente, para que seus olhos
ficassem no mesmo nível. — Eu quero saber o que você vê. Quero entender
tudo que te machuca.
Entre eles, Obritsa lutou nas garras de Rielle, sua respiração rápida e fraca.
— Você não pode. — Uma grande frustração cresceu em Rielle. A
ignorância de Tal a enojava. — Meu poder está além do alcance de qualquer
homem que viva.
— Talvez, se você vier para casa comigo…
— Casa? — Uma pequena risada escapou dela. Ela respirou fundo,
estremecendo, o que tirou lágrimas de seus olhos. Sua voz era um mero
tremor. — Eu não tenho casa.
— Sim, você tem. — A voz de Tal era de uma imensa gentileza, e ela não
conseguia suportar que ele ousasse ser gentil quando ela se sentia tão frágil,
tão pegajosa de sangue.
— Afaste-se de mim, Tal. Você disse que me ama. Mostre-me isso e
obedeça aos meus desejos.
— Sua casa é em Âme de la Terre — disse ele, sem se deixar abater, —
comigo, com Audric e com Ludivine. Rainha Genoveve, Sloane, Miren. —
Tal olhou por cima do ombro, onde Garver estava severamente parado. —
Seu amigo Garver Randell e seu filho pequeno.
Rielle sentiu o momento em que Corien tomou conta da mente de Obritsa.
O corpo da garota relaxou sob suas mãos e, com alívio, Rielle se afastou dela,
deixando-a esparramada. Garver partiu em direção a Obritsa imediatamente,
mas Rielle esticou o braço e o empurrou de volta para o mato emaranhado,
longe da beira do penhasco. A mulher pálida, sua companheira, correu atrás
dele com um grito agudo.
Tal ficou tenso. — Rielle, por favor. Venha para casa comigo. Você não
precisa mais fugir.
— E o que devo fazer, quando for para casa com você? — Ela se agachou
no chão, seu sorriso se tornando perverso. — Devo desfilar pelas ruas,
cumprimentando meus muitos admiradores? Devo compor uma música para
acompanhar as maldições que eles vão lançar contra mim? Diga-me, Tal, o
que rima com Assassina de Reis?
— Rielle. Não vai ser assim.
— Você está mentindo para mim. — Ela balançou a cabeça, o riso áspero
crescendo, e tocou a têmpora dolorida. — Todo mundo está sempre mentindo
para mim. Audric disse que não se importa, que isso não importa, mas
importa. Ele não pode esconder isso de mim
— Se você voltar para casa, se contar a todos o que aconteceu, eles vão
entender. Eles vão aceitar você.
— Eles me odeiam — sussurrou, — e sempre vão odiar, e você sabe disso.
Tal abriu os braços para ela, e seu rosto estava tão suave, tão aberto de
amor, que Rielle, cansada como estava, com a cabeça latejando de dor e a
boca amarga de morte, o deixou se aproximar. Ele a segurou contra seu peito,
sua mão cuidadosamente em forma de concha em sua cabeça. Ele pressionou
a boca contra o cabelo dela, sem se importar com o sangue.
E por um momento, Rielle fechou os olhos e permitiu.
Mas então Tal começou a falar.
— Você estava confusa — disse suavemente. — Ele deslizou em sua
cabeça e te enganou. Compreendo.
Rielle o empurrou e se levantou com dificuldade. Seus olhos turvaram com
lágrimas, e ela odiou que ele as visse e pensasse que ela precisava de
conforto. Ela puxou as lágrimas para as palmas das mãos, transformou-as em
fogo e jogou-as no chão, onde grudaram e cresceram.
Tal observou as chamas maravilhado. O escudo amarrado às costas parecia
patético ao lado deles, um brinquedo digno de uma criança.
— Eu não fui enganada. — Rielle cuspiu, com os olhos claros. — Eu
queria ir embora. Eu o queria. Ele não tem medo de mim. Ele adora o que
posso fazer e quer que eu faça mais.
Ele olhou para ela das rochas, chocado. — Claro que quer! Ele quer usar
você!
— Ele quer que trabalhemos juntos, como um só.
— E o que há no final dessa obra? Tudo que você ama será destruído. Tudo
que você sabe se foi.
— Se eu decidir poupar alguém, ele vai permitir.
— Escute a si mesma!
— Ele me ama, Tal.
— Nós também. — Ele se levantou, seu escudo faiscando enquanto sua
raiva aumentava. — Nós amamos você, Rielle, e não pediremos a você
nenhum derramamento de sangue.
— E se eu quiser derramamento de sangue? Você ainda vai me amar,
então?
Ele hesitou, e isso foi o suficiente.
Rielle se afastou dele. — Eu vejo isso em seu rosto. O que sou te apavora.
Isso te revolta.
— Não, amor…
— Uma vida sombria, escondida em quartos confortáveis, rezando por
calma, aparecendo apenas para regar plantações morrendo ou para resfriar um
vento quente de verão, não é uma vida que eu quero. Eu morreria naquela
vida, não importa quanto amor você diga que me cercaria.
Algo estava acontecendo com o rosto de Tal, um encolhimento. Seus
músculos se contraíram e se estreitaram, e seus olhos brilharam de tristeza.
— Rielle, não é assim que sua vida seria — disse ele. — Você viveria sob a
proteção de todos. Devagar iríamos reintroduzi-la ao povo, trazer
peticionários ao tribunal para fazer perguntas, expressar suas preocupações.
— E até que fosse seguro para mim andar livremente novamente, eu me
sentaria dócil ao lado de Audric, nosso filho em meus braços? Uma esposa e
rainha devotada, calada de vergonha? Implorando por perdão? Tentando
persuadir a todos que olharam para mim com nojo de que não é o filho de um
anjo em meus braços? Eu teria que apresentá-lo aos magísteres todos os
meses para provar que nenhuma marca de asas negras se formou em suas
costas?
— Não – meu Deus, não, não é isso que aconteceria. Eu juro para você,
Rielle. Isso levaria tempo, mas…
— Pare de mentir para mim!
Os joelhos de Tal dobraram. Rielle o observou cair, seu corpo tenso de
raiva. Ela viu os lugares onde ele sentia dor – seu crânio, seu peito, seu
estômago. Feridas escuras do controle de seu poder. Sua luz era tão pálida,
tão comum. O empírium dentro dele era um mero brilho pálido. Ela ficou
maravilhada por nunca ter notado isso antes.
— Você sabe que não há mais nada para mim lá — ela sussurrou. —
Talvez nunca tenha existido.
— Sua família está lá — engasgou Tal, estendendo a mão para ela. — Seus
amigos, seus professores. Seja lá o que Corien a fez acreditar, você não é um
monstro cujo único poder é a destruição. Você é amada, Rielle.
— Você mente! — Ela lançou os braços para ele, as palmas das mãos
rígidas de raiva. Ele tentou se levantar, e ela o empurrou de volta. Ele
empurrou inutilmente o ar e arranhou sua garganta. Seus olhos estavam
esbugalhados; suas veias saltaram como rachaduras.
— Eu morreria por você — ele engasgou, se contorcendo no chão. Um
terrível som negro saiu dele, cru em sua dor, e Rielle viu o brilho de poder
em seus olhos pouco antes de soltar um rugido tenso. Ele torceu o braço para
trás, lutando contra o aperto dela com tanta força que quebrou o osso, e então,
seu rosto branco de dor, ele agarrou seu escudo.
Floresceu, uma coroa de chamas. Rielle viu Garver encolhido no mato a
alguns metros de distância, a mulher pálida ajudando-o a se sentar. Uma
pequena chama tremeluziu nas mãos de Garver – uma tocha construída de
maneira tosca. A seus pés estava uma sacola de suprimentos esfarrapada.
Rielle enfrentou o fogo que Tal atirou nela e, por um único momento
cristalino, seus olhos foram infinitos e impiedosos. Milhares de pequenas
ligações estremeceram diante dela, milhões de estrelas giratórias do
empirium, todas esperando por seu comando. Dentro de si, centenas de portas
se abriram nas dobradiças.
Foi fácil devolver o fogo ao escudo. Tal deixou escapar um grito sufocado,
silenciado rapidamente.
Ela garantiu que fosse uma queimada rápida.
Mesmo os monstros não eram sempre desprovidos de misericórdia.

•••

Horas depois, um sussurro colocou Rielle de pé.


Ela lambeu os lábios e sentiu o gosto de cinzas, então viu Corien parado na
beira do penhasco. Ela o sentiu peneirando cuidadosamente em sua mente.
Um cervo entrando em um prado após uma tempestade. Ele estava com medo
de que ela corresse novamente.
Ela riu, uma leve explosão de ar. — Eu não tenho para onde correr agora —
ela sussurrou. Ela tocou sua capa molhada, e seus dedos ficaram pretos com a
ruína.
E você não precisa, disse Corien, a visão de si mesmo oferecendo um
abraço. Ela pressionou a bochecha contra o peito dele, buscando a ideia de
calor que ele enviou gentilmente por sua mente, mas mesmo isso trouxe
pouco conforto. Ela estava insensível a isso. Seus dedos formigaram com
fogo. Ela olhou fixamente para a mancha dourada desbotada no chão onde
Tal estava.
Foi uma sensação tão solitária entender toda a verdade de sua própria
impossibilidade grotesca – e um alívio perverso por entender, finalmente,
com as cinzas de Tal arrancando suas peles, que ela nunca poderia voltar para
casa.
Corien a abraçou, murmurando coisas que ela não ouviu, mas então outra
voz falou com ela, um clarim frio, e ela virou o rosto para o nordeste,
ouvindo.
O eu-visão de Corien observou incerto enquanto ela passava por ele até a
beira do penhasco. O que você ouve?
Ela pensou em como explicar isso a ele – como a voz pertencia à coisa
ilimitada que se mexia dentro dela, e com muito mais clareza ela podia
entender agora que seus olhos foram abertos pela queima do fogo de Tal.
Durante anos, essa coisa dentro dela vinha despertando, e agora, finalmente,
esticou seus membros, abriu sua boca larga e escura.
Ela se lembrou do mar de ouro negro que a levou depois que ela matou os
Obex em Patria. E agora ele voltou, batendo contra ela, e ela não tinha medo.
Vivia em suas veias, e ela deu boas-vindas a sua vontade infinita. Como isso
a puxou, mordiscou-a. Tanto alimentando-a quanto faminto por ela.
Virando-se, ela encarou Corien. A seus pés estava Obritsa, deitada e
imóvel. A moita atrás dela estava vazia. Garver e sua companheira haviam
fugido, Rielle supôs, ou talvez ela os tivesse matado também. Imaginando
isso, ela não sentiu nada.
Rielle, me diga o que você está pensando, Corien insistiu, a preocupação
colorindo sua voz.
— Eu devo ir para o Portão. — Sua boca se moveu, e ela estava lá dentro
de seu próprio corpo, e estava em toda parte, espalhando-se pelo mundo nas
costas das tempestades. Ela era ela mesma, o faminto mar negro dentro dela e
o oceano batendo nas rochas abaixo. Ela riu. O portão. Claro. — É a única
coisa que me resta — ela sussurrou. — Eu fiz minha escolha. Agora só existe
isso. Eu, e meu poder, e as coisas que eu ordeno que faça.
E eu, Corien acrescentou calmamente.
Rielle o ignorou. Ela olhou para as ondas e não viu nada além de camadas
infinitas de ouro. Um mar de estrelas moldando o mundo. Aquilo a cegou,
mas ela não conseguia desviar o olhar.
— Ele me chama — disse, — e devo atender.
Corien acenou com a cabeça e desapareceu. No instante seguinte, Obritsa se
sentou, os olhos vidrados, as impressões digitais de Rielle estampando sua
garganta. Embora Rielle pudesse ver a menina lutando para resistir aos
comandos de Corien, ela levantou as mãos, convocou os fios e os teceu em
um círculo. Rielle caminhou por eles até uma ilha negra e úmida no meio do
oceano. O vento a derrubou de joelhos.
Não tenha medo, Corien, sua voz uma corda de amor, guiando-a. Ela se
agarrou a ele. Eu estou aqui com você. Eu tenho vindo atrás de você há
semanas. Eu vou te encontrar lá, minha linda.
Rielle mal o ouviu. Obritsa a seguiu através dos fios até a ilha negra e então
começou novamente. Seu rosto abatido estava congelado em concentração,
seus olhos turvos por Corien.
Outro anel de luz. Rielle passou por ele, e então Corien enviou um mapa do
Grande Oceano em sua mente, uma longa cadeia de ilhas meticulosamente
traçadas que tomou um caminho espalhado pelas ondas.
Eu não preciso disso, ela o disse, porque seu próprio mapa era mais
preciso. Enquanto viajavam, o empirium ondulava ouro-negro contra suas
costelas e ela ria e chorava de medo e saudade, pois nunca o sentira tão
pronunciado, tão ansioso. Nem mesmo quando seu dragão das sombras
lambeu o rosto do Arconte. Nem mesmo horas antes, quando ela matou o
Obex em Meridian. O rosto de Tal apareceu em sua mente, angustiado e
cheio de amor, mas o empirium se levantou e o engoliu.
Outra ilha no Mar do Norte. À sua direita, a costa de Celdaria se estendia
como uma fita escura distante. Vendo isso, ela não sentiu nada.
O próximo anel de luz a levou para Iastra, a maior ilha de Sunderlands, e o
enorme pedestal de pedra quadrado sobre o qual ficava o Portão.
Obritsa caiu de joelhos, o rosto contraído de dor. Corien a soltou. Ela se
encolheu no chão e levantou.
Rielle passou por cima dela e caminhou sem pressa até o portão. Flechas
voaram para ela; gritos soaram do perímetro. O Obex, de guarda, suspeitou
que ela estava vindo. Ouviu-se o chamado de uma buzina e passos correndo
pela pedra.
Ela ergueu o braço, silenciando todos eles. Não a divertia que eles
tentassem impedi-la. Foi simplesmente lamentável. Seus corpos caíram atrás
dela, todos os quarenta de uma vez.
O Portão se elevava, um monumento de luz inconstante rodeado por pedras.
Rielle flutuou em sua direção, seus pés mal tocando o chão. O empirium a
empurrava e seus próprios músculos brilhantes a carregavam, e ela se
surpreendeu ao ver que meses atrás ela estivera neste mesmo lugar. Ela olhou
para o Portão, as dezenas de rachaduras flutuando na superfície de sua luz
estranha, pretas, violetas e brancas como chamas. Aquela garota se
considerou forte o suficiente para consertar essa coisa que os santos fizeram.
Que tola ela tinha sido em tantos aspectos. Pensando nisso, Rielle brilhou
com uma raiva fria e pura como o fogo das estrelas.
O empirium encheu seus ouvidos, rugindo por ela.
eu sou seu
O fato de ela ter pensado que precisava de alguns moldes frágeis de
humanos – ou qualquer coisa, exceto suas próprias mãos – para fazer ou
desfazer o que desejava parecia ridículo agora. Ela riu, tonta de espanto.
você é minha
Rielle subiu no antigo estrado e enfiou as mãos no portão.
O poder fluiu por ela, uma corrente eterna que fez seu sangue queimar e
sacudir seus ossos. Ela agarrou o tecido do empirium, maravilhada com o
quão grosso ele era aqui no Portão, quão firmemente amarrado, quão
desesperado por liberação. Ele ondulou como o flanco de alguma grande
besta. Ela se afastou de seu corpo e, a cada centímetro ganho, um raio
explodiu do Portão, atingindo-a repetidamente – sua testa, seu peito, seus
quadris. Sua barriga, onde seu filho crescia.
Inesperado, o medo desesperado que açoitou seu coração.
Não a deixe morrer, disse para o empirium enquanto o Portão a queimava,
e ela pensou ter sentido dentro de sua fome estrondosa uma garantia, enviada
do nada e de todos os lugares:
ela vai ascender
Uma menina, então, como ela havia adivinhado. Rielle sorriu ao abrir o
Portão, despedaçando tudo o que os santos haviam derramado tanto sangue
para conseguir. Ela empurrou e arrancou até ficar na boca do Portão, os
braços rígidos estendidos e a cabeça jogada para trás para o céu. Marés
furiosas de poder rasgaram todas as suas costuras e as refizeram com pontos
de ouro.
Um uivo se ergueu acima dela, como se todos os ventos tivessem se
reunido em celebração.
Rielle mal conseguiu abrir os olhos, as lágrimas escorrendo pelo rosto.
Mas, mesmo borrados, os anjos fugitivos eram gloriosos – uma cascata rápida
de sombras, os ecos de asas negras articuladas.
Eles derramaram da luz do Portão, um rio desatado. Alguns a tocaram
enquanto voavam, com suas mentes e seu nada flexível e frio. Uma enxurrada
de gratidão frenética, de fúria triunfante, e Rielle estremeceu ao passar por
ela. Imagens a atingiram: o bater de asas brilhantes, raios de luz unindo-os a
corpos elegantes e brilhantes como focas. Cabelo que fluía como fios de
prata. Cidades altas cobertas por torres em espiral.
Quanto tempo ficou ali, Rielle não conseguia medir. Quando finalmente
caiu de joelhos, chorou, sorrindo através das lágrimas. Seu corpo vibrou com
mil hematomas; sua pele assobiou com fogo. E ainda assim estava viva, e
suas mãos estavam nuas, e havia a prova do que ela era: para fazer essa coisa
monstruosa, precisou apenas de si mesma.
Corien estava frenético quando veio até ela. Embora sentisse seu orgulho
por ela, sua alegria estonteante ao ver seu povo livre, ela ouviu aquele
pequeno obstáculo em seu coração, o medo que o traia.
Meu amor, minha bela, sussurrou, enviando conforto para ela. Seus
pensamentos a esfriaram, um falso cataplasma para suas queimaduras. Ele
enviou uma imagem: sua personalidade de carne e osso, seu belo corpo
roubado, voando em direção a ela através do Mar do Norte em um navio
negro. Ele estava vindo para trazê-la para casa.
Você fez muito, lhe disse. Olhe para você, minha gloriosa. Eu estou quase
aí.
Eu sou mais do que isso, ela respondeu, surpresa ao ver como seus
pensamentos se aprofundaram e se tornaram mais grosseiros, acomodando
uma voz diferente. Ela sentiu Corien se assustar e se perguntou através de sua
eufórica névoa de dor se em algum dia futuro, ela pararia de falar
completamente. Se algum dia, quando abrisse a boca, só o empirium falaria,
sua própria voz seria consumida e silenciada.
23
Eliana

“São Ghovan, o Destemido, forjou seu receptáculo nos altos penhascos


do oeste de Ventera durante uma furiosa tempestade. O oceano era uma
coisa longínqua e selvagem, sem fim e terrível, e os fogos forjados eram
tão grandes que queimaram suas mãos, mas ele aguentou a dor, pois
isso o lembrava do que estava começando a entender que deveria fazer.
Ele tinha visto a escuridão nos olhos de seu pai, os segredos do palácio
de seu pai, e então começou a criar seus próprios segredos.”
—O Livro dos Santos

Eliana caiu no chão, encharcada de suor.


Ela se deitou no tapete e engoliu em seco. Sua cabeça latejava ao longo dos
caminhos escaldantes onde Corien acabara de estar, um rápido e estrondoso
tambor de dor.
Ele se agachou ao lado dela e afastou o cabelo molhado de seu rosto.
— Vamos tentar de novo — disse gentilmente. — Você ia se matar. Então
você parou. Por quê?
Foi difícil encontrar sua voz. — Eu não podia deixar Remy. Ele não
entenderia.
— Mentirosa. Ele entenderia. Ele não mudou tanto a ponto de não entender
mais o sacrifício pelo bem maior. — A voz de Corien se retorceu com
zombaria. — Diga-me a verdade.
Eliana fechou os olhos. Seu corpo tremeu, tomado por calafrios febris. —
Eu não consigo — ela sussurrou, o que era verdade. Sempre que ela tentava
pensar sobre o que havia acontecido, uma confusão de sombras bloqueava
seu caminho. Ela alcançou seus pensamentos, pronta para organizá-los para
que Corien pudesse ver, pois se ela tivesse que enfrentar outro dia disso – sua
mente furiosa através da dela, seu olhar negro implacável enquanto ela se
debatia de dor no chão – ela morreria.
Se ao menos ele a deixasse.
Mas como sempre, as memórias escaparam de suas mãos.
— Eu não consigo te dizer — disse novamente, e forçou a abrir os olhos
para olhar para ele. Uma faísca de desafio estalou dentro dela. Ela pressionou
suas peças frias contra o chão e saboreou a mordida de suas correntes. — E
mesmo se eu conseguisse, eu não diria. Você pode me rasgar o quanto quiser.
Você nunca encontrará o que procura e nunca verá minha mãe novamente.
Ela está morta. Eu sou tudo que você tem agora e lutarei com você até que
um dia você perca a paciência e me mate. Então você ficará sozinho para
sempre.
Ela sorriu, uma risada exausta borbulhando em sua garganta. — Uma
eternidade presa atrás de olhos negros em um mundo cinza cheio de magia
quebrada que você não pode tocar, comer comida que você não pode saborear
e beber vinho que se transforma em cinzas na sua língua. Perguntando-se
todas as manhãs se este será o dia que finalmente será arrancado do corpo
que roubou e se ficará encalhado, incapaz de tomar outro. Eu não invejo
você. Coisa miserável.
Corien a observou por um longo momento. O silêncio encheu Eliana de um
pavor que aumentava lentamente.
— Por favor, não — ela sussurrou, cheia de pesar. — Eu não quis dizer
isso.
— Você quis, sua cadela desprezível — Corien. — Espero que tenha sido
satisfatório.
Então ele veio para ela novamente, sua vontade dura e fria como uma faca
afiada para a caça. Ele cortou seu crânio e tudo que vivia lá. Isso a rasgou,
camada por camada, até que ela esqueceu sua determinação de lutar e ficou
rígida com os gritos selvagens.

•••

À noite, Eliana chorava ou ficava encolhida sentindo dor. Ela às vezes


dormia, mas o sono frequentemente trazia visões de Corien, pesadelos
indescritíveis que a deixavam convencida de que ela havia morrido, que a
agonia de sua mente finalmente a matara. Então ela percebia que ainda estava
viva e se sentia desesperada.
Mas seus guardas a observavam de perto, e Jessamyn – de olhos vermelhos,
a pele estranhamente pálida, como se ela também estivesse achando o sono
evasivo – não carregava mais suas facas. Todos tiveram o cuidado de não
apresentar a ela nada que ela pudesse transformar em uma arma. Ela comia
todas as refeições com as mãos.
Ocasionalmente, um leve sussurro de pensamento roçava nela, e ela se
lembrava de que uma voz havia falado com ela bondosamente, que uma
mente gentil a impediu naquele dia.
Ela descartou isso como uma ilusão.
Não havia mais nada bom ou gentil em seu mundo.

•••

Desperte, disse a voz nos sonhos de Eliana, mas devagar.


Ela caminhava ao longo de uma praia plana e cinza, espalhando camadas de
espuma do mar. Com cuidado, ela entrou na água até que fechou sobre sua
cabeça.
Seus olhos se abriram.
Ela estava em seus aposentos no palácio de Corien, mas havia uma nova
quietude neles, um silêncio denso, e com ele veio uma única tentativa de
memória.
Com medo até de pensar na palavra caso ele a ouvisse, ela enviou a
pergunta, no entanto: profeta?
Estou aqui, respondeu a voz, a mesma de antes. Devemos nos mover em
silêncio, Eliana. Eu não posso ficar com você por muito tempo. Ainda não.
Eliana estava deitada como uma pedra em sua cama; os lençóis úmidos se
agarravam a ela. O sol da manhã encharcou o quarto, inundando-o de calor,
mas se ela se movesse, ele a encontraria.
Onde você esteve? Vivendo no palácio de Corien, sua presença nunca longe
dela e seus dias cheios com a ira incansável de sua mente, ela agora entendia
bem o foco necessário para falar mentalmente. Você me impediu de me
matar. Você disse que tínhamos coisas para fazer. Então você me deixou.
Eu sei. A voz do Profeta não era masculina nem feminina. Macia, mas
firme, chegou a Eliana através de camadas de lodo pesado. Ela sentiu que o
Profeta estava tentando se esconder. Sinto muito por isso. Eu tive que ficar
longe até que sua raiva se dissipasse. Eu sabia que ele estaria procurando
por mim depois do que aconteceu naquele dia.
O nome de Corien subiu ao topo dos pensamentos de Eliana em uma onda
de medo.
Cuidado, o Profeta advertiu. Não pense muito nele quando falamos. Você
pode alertá-lo da minha presença se o fizer. Se você realmente precisa
pensar nele, deixe seus pensamentos deslizarem sobre a ideia dele como
água sobre rochas.
Mas era tarde demais para escorregar na água. Um tambor de pânico bateu
nos ouvidos de Eliana, e ela só conseguia pensar no nome dele. Corien. Seus
pensamentos se espremendo como dedos duros dentro de seu crânio. Corien.
Sua presença invadindo seus sonhos com dentes brilhantes e mãos
escorregadias como cobras. Corien.
Ele está vindo. A voz do Profeta já estava sumindo. Eu sinto muito. Eu
voltarei, pequenina.
Eliana sentiu o Profeta sair como uma agulha escorregando da almofada.
Quando Corien veio, não foi para machucá-la. Silenciosamente, ele se
arrastou para a cama dela, envolveu-a em seus braços como um amante faria,
enrolando seu corpo ao redor dela.
Ele a abraçou por horas, entoando canções de ninar angelicais contra seu
pescoço. Ela resistiu ao impulso de se separar dele e lutou contra a atração do
sono, pensando em vez disso um rio de água macia fluindo silenciosamente
sobre um leito de pedras cinzentas e lisas. Logo, confusa e mole, ela mal
notou os olhos negros se enterrando em seu crânio por trás, como besouros se
aninhando cheios de ovos.

•••

Desperte, mas lentamente.


Eliana abriu os olhos para ver seus aposentos banhados de prata pelo luar.
Você vai me mostrar seu rosto, anjo? Passaram-se doze dias desde a última
vez que ela teve notícias do Profeta. Ela tinha feito questão de manter a
contagem, algo que ela havia desistido há muito tempo, pois cada dia parecia
um fardo impossível.
Agora, cada momento zumbia em antecipação enquanto ela esperava o
retorno do Profeta, e os dias intermináveis pareciam mais leves.
Ainda não, disse o Profeta, a voz cheia de pesar. Vamos ter uma conversa,
você e eu. Quanto tempo podemos conversar antes que ele se mexa, eu me
pergunto?
Sobre o que você gostaria de falar? Eliana olhou para o adatrox ao lado de
sua porta. Jessamyn não estava lá, mas viria pela manhã. Como cada dia que
vivo é um tormento? Até que ponto me tornei magra do corpo e da mente?
Quão longe está meu poder de mim agora?
Eu já sei todas essas coisas, disse o Profeta gentilmente. Mas se falar
ajudar, por favor, fale.
Eliana respirou em silêncio por vários minutos. Ela imaginou seu pequeno
rio correndo suavemente sobre as pedras.
Todos os dias eu imagino acabar com minha vida. Ela deixou o
pensamento fluir ao longo da corrente calma do rio. Você deveria ter me
deixado. Você afirma ser amigo dos humanos, mas na verdade você
condenou a todos nós.
Parece cruel implorar sua paciência, mas eu imploro mesmo assim. O
Profeta enviou uma sensação rio acima, onde bateu nos dedos dos pés de
Eliana. Era muito sutil para ler com clareza, mas aqueceu Eliana, e ela se
imaginou escondida para sempre dentro dele.
O que estou esperando? O que faremos?
Infelizmente, devemos nos mover lentamente. Devemos deslizar pela água
entre nós e nos proteger contra quaisquer ondulações que possam acordar a
besta que jaz nas profundezas. Você entende?
Eliana acomodou-se cuidadosamente nos travesseiros, fingindo dormir. E
depois? Andamos devagar, você disse. Em direção ao quê?
Uma batida de silêncio, e então os pensamentos do Profeta dispararam
velozes como peixinhos de prata nas rachaduras da mente de Eliana.
Uma segunda chance.
Um arrepio desceu pelo corpo de Eliana. Eu não sei o que você quer dizer.
Conte-me sobre sua casa, sugeriu o Profeta. Sobre Orline.
Eu não posso. Me machuca. Muita morte, muita tristeza.
Mas e as coisas boas? Conte-me sobre Remy. Sobre Harkan. Além da dor,
ainda há luz, mesmo que apenas na memória. Fale-me sobre essa luz.
Eliana esperou vários minutos antes de poder formar um pensamento
estável.
Quando Remy era muito pequeno, ela começou, ele tinha pavor de
tempestades. Eu acordava para encontrá-lo tremendo ao meu lado na minha
cama. Às vezes nem as histórias bastavam, nem mesmo as canções. Certa
noite, fizemos uma barraca com minha colcha, amarrando-a em um canto da
sala com pedaços de barbante. Dentro dela, empilhamos cobertores e
travesseiros, seus livros, as conchas que Harkan juntou para mim quando
seu pai o levou para o mar. Era uma fortaleza e, dentro dela, nenhuma
tempestade poderia nos atingir.
Enquanto Eliana falava, ela se acomodou no abraço da presença do Profeta.
Tão diferente de Corien – firme, mas nunca invasivo. Uma espuma
fermentando suavemente nas bordas de sua mente.
Muito bom, disse o Profeta, uma vez que Eliana calou-se. Quinze minutos.
Ele está vindo, mas este foi um excelente começo. Voltarei, Eliana, quando
for seguro. Confie em mim.
Como posso? Eliana sussurrou.
Mas o Profeta já tinha ido.

•••

Os dias entre as visitas do Profeta se estendiam como estradas escuras sem


fim. Por semanas, se encontraram em segredo, e as memórias
cuidadosamente escondidas de suas conversas deram a Eliana algo em que se
agarrar enquanto Corien separava seus pensamentos, procurando por algo que
não conseguia encontrar, tentando forçar dela um poder que ela se recusava a
tocar.
Quarenta e cinco minutos. Uma hora. Duas horas, conseguiram, e depois
três, sem nenhuma interferência de Corien e seus guardas notando nada, até
que finalmente, um dia, o Profeta disse: Ótimo. Agora nos movemos.

•••

A primeira vez, Eliana rastejou de um lado para o outro de seu quarto, então
se banhou sozinha pela primeira vez desde que chegou em Elysium. Ela abriu
as portas de seus quartos, com o coração batendo forte, e olhou para o amplo
corredor sombreado que ia da esquerda para a direita. Vigas brancas
arqueadas subiam sobre pisos de mármore reluzentes revestidos de tapetes
claros.
Durante tudo isso, o adatrox permaneceu imóvel e quieto. Até Jessamyn
parecia alheia. Eliana saiu de seus quartos, descalça, e acenou com a mão na
frente do rosto de Jessamyn. Nada.
O Profeta a guiou até uma sala de estar não utilizada não muito longe da
sala dela, decorada com enfeites e com pinturas em molduras douradas da
glória angelical.
Dentro dela, protegida pela presença calma do Profeta, seu coração um
pássaro frenético em seu peito, Eliana alcançou seu poder com intenção
deliberada – não o deixando explodir pela raiva, não permitindo que seu
medo superasse sua razão e forçasse seu poder sem sua permissão. Era a
primeira vez que ela fazia isso desde que chegara a Elysium, e sua mente
parecia desajeitada ao se esticar e se atrapalhar. Ela se concentrou nas linhas
familiares de seus receptáculos, finos e frios em torno de suas mãos e pulsos.
Ela empurrou seus pensamentos ao longo do chão de pedra e no ar.
Um objetivo simples: mover o ar, comandá-lo para derrubar o castiçal de
ouro que estava orgulhoso em sua mesa.
Simples, mas ela não conseguia. O ar permaneceu parado. Seu poder foi
usado para se esconder e sentiu-se relutante em emergir daquele lugar
profundo em que ela o havia empurrado. Um zumbido fraco no fundo de sua
mente, um formigamento lento ao longo das linhas de suas palmas – nada
mais. Ela olhou por cima do ombro, a boca seca de medo, esperando que
Corien viesse batendo a porta, mas o quarto permanecia só deles.
Ótimo, disse o Profeta. Agora tente novamente. Nunca saia desse pequeno
rio. Mantenha os pés frios e aterrados, mesmo quando suas mãos começarem
a queimar. Ele não pode encontrar você aqui, pequenina, não nestas águas.
Eliana obedeceu, mas foi igual. Desajeitado e distante, seu poder. Suas
mãos coçavam e não havia como coçá-las.
Rápido, agora. Volte para seu quarto. A voz do Profeta era urgente, mas
nunca assustada. Como se pudesse ver um futuro promissor que Eliana não
podia.
Ela obedeceu, deslizando de volta pelo corredor e para a cama. Seu sangue
pulsava em suas veias enquanto ela se concentrava fortemente no fluxo calmo
de seu rio. Foi um exercício mais desafiador do que qualquer coisa que ela já
havia feito como o Terror – equilibrar a Eliana, que era uma prisioneira
mergulhada em dor e desespero, e a nova Eliana, que estava começando a
mergulhar os dedos na poça de seu poder mais uma vez. Sua textura e ritmo –
como ela sentia falta disso.
Como estava com medo de acordá-lo novamente.
Uma camada de suor pintou sua pele quando se recostou na cama. O que
meus guardas viram enquanto estive fora?
Seus quartos como deveriam ser, respondeu o Profeta. Você, dormindo
agitada em sua cama, como eles esperavam. Agora, porém, devo ir. Durma,
Eliana. Você vai precisar.
Espera. Para o que estamos trabalhando? O que vamos fazer? Conte-me.
Ainda não, o Profeta respondeu após um momento. Ainda não é seguro.
Você não é forte o suficiente. Mas você será.

•••

Ocasionalmente, Corien visitava Sunderlands, onde gigantescas peças


mecanizadas de armamento chamadas vaecordia mantinham as cruciata
afastadas.
Às vezes, o palácio entrava em erupção em festas estridentes que duravam
dias. Corien arrastava Eliana até elas, enchia-a de comida e bebida, dançava
com ela sob um teto cintilante com lustres zumbindo até que ela desabasse
vertiginosamente em seus braços. Ele drogava tudo que ela consumia, ela
sabia, esperando que alguma combinação de ingredientes extraísse seu poder.
Mas nunca funcionou.
A cada nova falha, ele ficava furioso, e aqueles eram os piores dias, quando
ele a amarrava a uma cadeira e socava sua mente com a dele ou a perseguia
pelo palácio com ilusões horríveis que a deixavam se sentindo louca e
violenta, sua visão negra, seus ouvidos zumbindo como se estivessem
entupidos de abelhas furiosas. O que ela fez nesses momentos, ela nunca
soube. Ela acordava mais tarde em seus quartos com a garganta em carne
viva, sangue endurecido sob as unhas e vagas lembranças de alguém
implorando por misericórdia. Ela tropeçava em seu banheiro e se esfregava
com água fervente enquanto seus guardas observavam, sempre vigilantes. E
Jessamyn também, olhos afiados e estranhamente inquietos de uma forma
que Eliana nunca vira.
Às vezes, a sorte se curvava a seu favor e as festividades aconteciam sem
ela, ou Corien se fechava em seus aposentos, estendendo a mão para generais
do mundo todo ou empanturrando-se no mezanino de sua sala de concertos
enquanto a orquestra atormentada tocava furiosamente abaixo.
E essas eram as horas em que o Profeta vinha e Eliana praticava a fuga.

•••

O corredor fora de seus quartos, a princípio, e a pequena sala de estar. Em


seguida, as escadas na extremidade norte do corredor. A sala de música no
andar de baixo, onde Corien gostava de tocar um piano enorme. Um salão de
baile de rosa, azul meia-noite e ocre. Os dormitórios onde os empregados do
palácio dormiam. A horrível galeria escura cheia de imagens de Rielle.
Dias se passaram, depois semanas, e a cada viagem para fora de seus
quartos, os músculos de Eliana começaram a se lembrar de sua antiga força.
Ela ainda não havia conseguido derrubar o castiçal, mas havia aprendido
muito sobre o enorme palácio, suas voltas e mais voltas, e estava começando
a se sentir mais estável tanto no corpo quanto na mente.
Ótimo, disse o Profeta. Quando chegar o dia de você deixar este lugar,
você saberá fazer bem e saberá se defender.
Eliana mordeu a língua. Dezenas de vezes, ela perguntou ao Profeta o
motivo desse trabalho, que dia eles estavam esperando, que esquemas o
Profeta havia planejado.
Mas a cada vez, o Profeta se recusava a responder. Ainda não. Não até que
você esteja mais forte e eu possa ter certeza de que cada novo canto de sua
mente está bem protegido dele.
Como vou saber que este não é um jogo demente? Eliana perguntou,
irritada. Você me conduz pelo palácio noite após noite; você me empurra
através desses exercícios de minha mente e meu poder. E para quê?
O Profeta enviou-lhe um apelo gentil, seguido por aquele carinho que
Eliana tanto desejava, seu calor mais doce do que qualquer vinho.
Por favor, confie em mim, pequenina, o Profeta disse. Eu enganei muitos
em minha vida, mas não você. Nunca você.
E Eliana não teve escolha a não ser acreditar nesse estranho amigo cujo
rosto ela ainda não conhecia e torcer para não ser idiota por ousar, mais uma
vez, confiar em alguém que vivia atrás de uma máscara.

•••

Então, uma noite, quando a saudação familiar do Profeta veio, tirando Eliana
de um sonho tão vívido que a seguiu até que ela acordasse.
Como tentar lembrar uma palavra fora de seu alcance, um aperto em seu
peito, puxando-a para frente. Seus dedos formigaram. Se ela fechasse os
olhos, poderia ouvir um estrondo fino e preto, como de uma tempestade que
se aproxima. Se abrisse os olhos e os desfocasse, ondulações de ouro
dançavam nas bordas de sua visão.
Eu sei para onde iremos esta noite, ela disse, saindo da cama.
A curiosidade do Profeta aumentou. Onde?
Eu vi isso no meu sonho.
Você vai me contar?
Procure você mesmo.
Você sabe que eu não gosto de fazer isso, disse o Profeta gentilmente. Não
se eu não precisar.
Eu vou te mostrar, então.
Diga-me primeiro. Por favor. Devo saber para onde estamos indo. Houve
uma pausa. Não quero invadir sua mente, Eliana. Eu não sou como ele.
Eu direi se você me disser no que estamos trabalhando. Que planos você
tem para mim. Onde você está, e se eu posso ir até você.
O Profeta ficou em silêncio.
Eliana sorriu severamente enquanto se arrastava para o corredor, passando
pela figura carrancuda de Jessamyn. Por semanas, trabalhamos juntos.
Minha mente está mais forte do que nunca. Podemos conversar sem que ele
perceba. Você pode me esconder por, o quê, cinco horas agora, enquanto eu
me movo pelo palácio?
Isso é verdade, o Profeta disse, os pensamentos cuidadosamente em branco.
Eliana dobrou uma esquina e passou sem ser vista por um par de guardas
em patrulha. Você me fez largar aquela faca por um motivo, semanas atrás.
Acho que mereço saber. Qual é o objetivo desse trabalho que estamos
fazendo? É apenas uma diversão para passar o tempo?
Não é uma diversão.
Então o que?
O silêncio continuou.
Eliana disparou como uma sombra pelo segundo andar do palácio, a
estranha memória de seu sonho guiando-a por um labirinto de quartos
ladrilhados e corredores com cortinas até que ela finalmente emergiu em um
mundo suave de verde.
Era um vasto pátio, tão grande quanto um dos maiores salões de baile de
Corien. Paredes cheias de flores, videiras derramando-se em treliças de ferro,
arbustos pintados com bagas brilhantes. Fileiras de flores vermelhas, mesas
de madeira oleadas com mudas crescendo raízes em frascos de vidro.
Enormes samambaias trêmulas, árvores de folhas brilhantes carregadas de
frutas. Eliana ergueu os olhos para um teto de vidro colorido. Painéis
carmesim e ouro. Aberturas de ventilação abertas para deixar entrar o ar
noturno.
Ela embalou a flor vermelha mais próxima em suas mãos, sentiu o doce
aroma familiar de seus aposentos. Então é aqui que ele cultiva essas flores.
O Profeta se sentiu tenso e um pouco confuso. Seu sonho te mostrou isso?
Sim, exatamente isso. Cada último detalhe. E… aqui. Ele também me
mostrou isso.
Ela rastejou por baixo das mesas de mudas e desapareceu na escuridão
verde espessa do pátio. Era um absurdo o que ela estava fazendo, como se
estivesse brincando de um jogo de criança. Mas uma estranha tensão
floresceu em seu peito, puxando-a, e ela teve que segui-la ou ela explodiria.
Uma vibração estranha sacudiu seus dentes, e ela se lembrou de forjar seus
receptáculos, mergulhando as mãos na ferida de Remy. Isso parecia o mesmo
– a mesma vitalidade, o mesmo fio urgente de poder crescendo tenso e
dourado dentro de seus ossos.
Acho que é o empirium, ela pensou. Acho que está tentando me mostrar
algo.
Uma leve onda de alarme do Profeta. Por que você diz isso?
Eliana passou por um emaranhado de vinhas. Ela estava no fundo do pátio
agora, um silêncio espesso ao seu redor. Musgo macio sob suas mãos e o ar
verde em seus pulmões.
Então ela viu, o lugar de seu sonho – um pequeno matagal escuro formado
de samambaias e vinhas unidas, cercado pelas raízes de uma árvore florida
com galhos úmidos e casca preta áspera. Quase grande o suficiente para ela
se enrolar, e ainda assim ela abriu caminho através da vegetação selvagem até
que se sentou curvada no meio dela, tremendo.
— O ar parece rarefeito aqui — ela sussurrou, movendo lentamente os
dedos por ele. — Como se eu pudesse empurrá-lo de lado e encontrar outra
coisa por trás.
O Profeta ficou muito quieto. Você gostaria de tentar?
Sim, respondeu Eliana, tremendo. Seus receptáculos aqueceram contra sua
pele. Mas eu não acho que posso.
Talvez algo pequeno, primeiro. Algo natural. Não um castiçal, mas uma
árvore. Você pode arrancar suas raízes da terra?
Eliana tentou, sua pele logo ficou escorregadia de suor. As raízes
permaneceram cravadas no solo negro, mas o ar mudou, vitalizado por uma
carga quente que zumbia. Eliana estendeu a mão com seu poder, guiando-o
para segurar o sentimento. O mundo zumbia com o calor, assim como sua
pele, e ela se sentiu levantando do chão para seguir a nova corrente de ar.
Então ela perdeu o controle e afundou de volta na terra, exausta e com frio.
Receptáculos escuros, dor de cabeça.
Você está indo muito bem, pequenina, disse o Profeta, e Eliana se agarrou
ao calor dessas palavras.
Eles voltaram ao jardim uma e outra vez, e cada vez que Eliana se arrastava
de joelhos e mãos em seu bosque silencioso e escuro, ela sentia um pequeno
pedaço de sua velha força retornar a ela. Foi um progresso lento, pois as
punições de Corien continuaram, ainda mais cruéis do que antes. Ele podia
sentir a mudança nela, mas não conseguia descobrir sua origem, e lançou sua
fúria contra ela com os punhos e a mente. Depois desses tormentos, corpo e
mente golpeados, Eliana movia-se lentamente, e seus pensamentos às vezes
ficavam muito dispersos para se concentrar corretamente.
Algumas noites, ela não conseguia se mover da cama, e o Profeta
simplesmente a confortava, sussurrando palavras que a mente preguiçosa de
Eliana não conseguia entender, enviando a ilusão de mãos suaves em suas
costas.
Certa vez, Corien passou vinte horas direto em sua mente, procurando em
cada fenda a resposta para o que estava acontecendo, de alguma forma, bem
debaixo de seu nariz. E Eliana perdeu todo o senso de orgulho e de si mesma
quando aquelas pontadas afiadas de dor abriram seu crânio. Ela soluçou no
chão, torcendo-se e sacudindo-se no aperto de Corien, e atolada naquela
agonia negra, a única palavra que ela poderia invocar era Simon.
Ela gritou sem parar, alcançando a porta como se ele estivesse logo atrás
dela. Se gritasse alto o suficiente, ele viria atrás dela. Se implorasse, ele a
salvaria.
E então a porta se abriu e Simon caminhou em sua direção, levantou-a do
chão, roçou os lábios em sua testa. Ela sabia que ele não estava lá. A alegria
perversa de Corien esculpiu em suas costas como a lâmina de um machado. E
ainda assim Simon parecia tão real, tão familiar, que ela pressionou o rosto
contra o peito dele e se agarrou a ele.
Ele a levou para a pequena cama em Willow, sob o teto inclinado. O
braseiro brilhante no canto, a chuva batendo nas janelas. A salvo em seus
braços, quente em sua cama, ela se permitiu um momento para desfrutar da
mentira.
Em seguida, ela se desvencilhou, chutou-o quando ele a alcançou, pegou
carvões quentes do braseiro e jogou-os em seu rosto.
Escuridão, então, e a voz de Corien zombando dela enquanto ela caía.
Por dias, ela se agitou nas garras de sonhos cacarejantes, e quando acordou
novamente, seus quartos estavam silenciosos.
Ela se sentou, vestiu uma de suas camisolas e caminhou cambaleante em
direção à porta.
Eu sinto muito, pequenina, o Profeta disse, sua voz embargada de angústia.
Se eu pudesse tirar tudo isso de você, eu o faria.
Não preciso de suas desculpas, disse Eliana bruscamente. Eu preciso que
você me esconda.
E no jardim, envolta no manto feroz do Profeta, Eliana abriu a terra e
arrancou raízes apenas com seu poder. Ela agarrou o ar, usou-o para abrir
caminho através das samambaias, mais fundo no jardim. Mergulhando no
solo, ela persuadiu a água até que se acumulou em volta dela em poças
gorgolejantes e frescas.
Seus receptáculos brilhavam fracamente, lavando o matagal em ouro claro.
Ele tentou tanto quebrá-la, disse o Profeta, com uma voz calorosa e
orgulhosa, e falhou totalmente. Bem feito.
O eco de Simon sussurrou em seu cabelo. Eliana sacudiu a mão e apertou o
queixo.
Eu gostaria de tentar algo novo, ela pensou. Fitas de luz pálida fluíram
ininterruptamente por suas veias. Seu poder refletia a nova força de sua
mente. Eles estavam conectados, sua mente e seu corpo, e eles por sua vez
estavam conectados à água em seus dedos dos pés, e as raízes que ela enfiou
de volta na terra para que a árvore pudesse beber.
Ela ouviu as raízes engolirem, ondulações do empirium traindo seu apetite
primitivo e impensado, e ela entendeu o sentimento.
Seu poder estava pronto e revestido de aço. Ele estava com fome. E ela
ansiava por alimentá-lo.
O Profeta estava cauteloso. O que você vai fazer? Conte-me.
É como eu disse antes, Eliana respondeu. O mundo é tão estreito aqui. O ar
parece frágil.
Com os dedos zumbindo e quentes, seus receptáculos como pequenas
estrelas reaprendendo sua luz, ela empurrou as mãos para a frente, depois as
separou com as palmas para fora. Uma onda de energia detonou, mas ela a
impediu, absorvendo-a com sua própria carne e sangue para que não abalasse
o palácio.
O Profeta ficou maravilhado. Oh, Eliana. Ver você trabalhar é uma alegria
que não sentia há muito tempo.
Eliana ouviu apenas pela metade, as mãos ainda enterradas no ar. Veias
douradas do empirium estalaram em torno de seus dedos. Cada grão de luz
pintando o matagal dourado sussurrou para ela, e ela ouviu com atenção,
olhando para o impossível diante dela.
Uma forma flutuou no ar, escura e fina, como a pupila do olho de um gato.
Seu interior se turvou com uma cor tempestuosa – índigo e violeta, um azul
tão brilhante que era quase branco. Imediatamente Eliana se sentiu puxada
para ela, como se fosse uma boca ávida por engoli-la.
Ela cravou os dedos dos pés e apoiou as mãos na terra. Em sua mente, a
surpresa do Profeta zumbiu como um sino tocado.
O que é isso? Eliana perguntou.
Uma fenda, o Profeta disse cuidadosamente. Você abriu muitas em todo o
mundo sem saber, naqueles momentos em que invocou seu poder com medo e
raiva. Mas isto – veja como é uniforme, como é preciso. Foi a sua vontade
focada, Eliana, que abriu esta porta.
Eliana ficou olhando para ela. Algo puxou seus ombros, chamando-a para
frente. Ela procurou na escuridão, a luz raivosa mudando dentro dela, e viu
uma visão tênue de colinas baixas, bosques de pinheiros espalhados, um céu
roxo com o crepúsculo.
Uma porta para onde? Ela se perguntou, seu coração batendo forte, e antes
que o Profeta pudesse responder, as mãos de Eliana voaram para a fenda. Ela
agarrou as bordas e as abriu mais amplamente até que foi possível deslizar
para dentro.
O Profeta entrou em pânico. Eliana, espere!
Mas o empirium a puxou para este lugar, e agora sussurros dourados a
puxavam para frente.
aqui
AQUI
venha ver
estão por todas as partes
rápido
Antes que o Profeta pudesse impedi-la, Eliana prendeu a respiração, fechou
os olhos e passou pela fissura para o que havia além.
Seus pés atingiram solo sólido. Ela abriu os olhos e viu nuvens cinzentas
movendo-se rapidamente em um céu violeta. As colinas eram rasas e
onduladas, cobertas de grama verde felpuda, e não havia outro ser vivo à
vista. Sem animais, sem pessoas. Não havia nem vento. Apenas um silêncio
que parecia não natural. Uma luz estranha e pálida inundou tudo, como um
crepúsculo tingido de tempestades. Nuvens negras marcavam cada horizonte,
e abaixo de seus pés, além do verde da grama, mudava uma vasta escuridão,
como se o prado e as colinas fossem apenas um véu fino cobrindo algo
terrível e sem luz.
Então um pássaro gritou e, quando Eliana ergueu os olhos para encontrá-lo,
viu muito acima dela a forma tênue e mutante de uma enorme fera alada. Ela
passou voando, enviando escuridão pelo céu, e desapareceu, mas outra seguiu
em seu rastro, e depois outra, e mais três, deslizando e serpenteando, cada
uma delas um gigante.
Eliana recuou, olhando com horror. O que ela pensava serem nuvens
cinzentas eram na verdade as sombras dessas criaturas, enxameando de
horizonte a horizonte.
Um calor nauseante floresceu em seu esterno e inundou seus dedos. Ela se
abaixou, procurando em vão por algo para se esconder embaixo. Mas o
silêncio anormal permaneceu, e quando Eliana olhou de volta para o céu, viu
que parecia igual a antes. As formas monstruosas não estavam mais perto
dela. Era como se ela e este estranho mundo verde existissem dentro de uma
bolha além da qual bestas gigantescas se contorciam – mas se estavam longe
ou muito perto, ela não podia adivinhar. Pelo menos, parecia, não podiam
alcançá-la.
Ela se endireitou lentamente, forçando sua respiração a se acalmar. O suor
frio formigou sua nuca.
Então, um grito glótico cortou o ar, perfurando o silêncio assustador. No
horizonte, algo longo, escuro e tortuoso saiu das nuvens e começou a voar.
Esta não era uma forma cinza distante. Esta era clara e nítida, de cauda longa
com largas asas negras e se aproximando rapidamente.
Eliana se virou e correu para a fina fatia vertical de verde exuberante
marcando seu caminho de volta ao palácio de Corien. Longos minutos se
passaram antes que ela conseguisse se impulsionar, pois uma grande força
estava empurrando contra ela.
Mas com uma última explosão controlada de poder, conseguiu, caindo no
pátio do jardim. Ela se virou para agarrar as bordas da fenda. Seus dedos
formigaram como se ela os tivesse mergulhado em água quente o suficiente
para queimar. A fenda a sugou; aquele lugar, fosse o que fosse, a queria de
volta. Mas ela lutou contra sua força, juntou as pontas escaldantes e usou seu
poder para selar a fissura. Apenas um brilho fraco permaneceu no ar e então
desapareceu.
Sem fôlego na terra, pegajosa de suor, Eliana estendeu a mão para o
Profeta. Que lugar foi esse? O que eu vi?
A voz do Profeta estava sem fôlego de alívio e admiração.
Você viu as cruciata, respondeu. E você estava no Abismo.
24
Rielle

“A casa que os Kammerat construíram é impressionante – uma próspera


cidade de dragões e falantes de dragão, construída em cavernas e
desfiladeiros de alta montanha. Abaixo, um vale verdejante fornece
comida e calor. Eles dizem que os santos ajudaram a criar este refúgio
após o fim das Guerras Angélicais e que viveram sem serem perturbados
desde então. Até agora. Tem sido difícil convencer o Kammerat a voar
para Northern Reach e resgatar seus parentes. Seu isolamento é sagrado
para eles, mesmo às custas de seu próprio povo capturado. Eles dizem
que não farão mais nada nesta guerra além disso, e eu não os culpo.
Leevi, no entanto, ainda acha que pode persuadi-los. Ele vai ter que me
persuadir também, eu confesso. Por que deixar este santuário para uma
guerra sem esperança? Mas Leevi é determinado e tão bonito em sua
esperança de vitória que me deixa sem fôlego.”
— Diário de Ilmaire Lysleva, datado de fevereiro, ano 1000 da
Segunda Era

Rielle acordou em Northern Reach.


Assim que abriu os olhos, reconheceu o quarto que compartilhava com
Corien. Suas paredes de pedra negra, as grossas peles brancas penduradas em
sua cama, a ampla parede de janelas emoldurando geleiras e um céu de luz
solar fraca. Montanhas e mar, indústria e fogo.
Tudo o que aconteceu ficou no limite de sua mente, um retrato vívido de
seu próprio projeto, e ela estremeceu ao olhar para ele. O gosto amargo de
cinza ainda revestia sua língua. Em seus ouvidos ecoou o estrondo de um mar
escuro.
Corien estava sentado ao lado da cama, observando-a em silêncio. Ele
estava com seu preto cotidiano – colete de brocado, túnica abotoada nos
pulsos com obsidiana, gola alta e quadrada, capa presa nos ombros com
alfinetes de ébano.
Ela se endireitou, seu corpo se iluminando de dor, e resmungou: — Não
machuque aquela garota mais do que você já fez. Obritsa não teve escolha a
não ser me obedecer. Se você machucá-la novamente, eu vou te matar.
— Você presume que eu fiz qualquer coisa com ela — disse, sem piscar.
Ela riu, o que fez sua garganta queimar. — Você é um inocente nada
convincente.
Só então Rielle percebeu as três enfermeiras se movimentando em volta
dela, trocando as bandagens que envolviam a maior parte de seu corpo. Três
humanos – duas mulheres e um homem. Eles escolheram servir aos anjos em
troca da vida de seus entes queridos? Seus olhos nervosos voaram para o
rosto dela e depois voltaram para o trabalho. Sua pele ardia onde haviam
espalhado pomadas; ela estava envolta em longas tiras de pano branco.
E Corien ainda a observava, pálido e imóvel, mas Rielle não se esquivou
dele. Ela havia aberto o Portão com as próprias mãos. Estava radiante de
orgulho; ela era uma força incomparável. E ela soube, quando ele a olhou,
que ele também sentia: uma mudança entre eles. Uma onda de nova tensão, a
curva de uma corrente mudando seu curso.
O poder que ela demonstrou foi além do que qualquer um deles esperava.
Rielle empurrou as enfermeiras para longe. O movimento repentino e
agudo deixou suas queimaduras latejando. — Deixem-nos. Eu posso cuidar
de mim mesma.
Então ela tropeçou em seus pés e arrancou as bandagens de sua pele uma
por uma. No início, a dor foi lancinante, como se ela estivesse arrancando
tiras de sua carne enegrecida e cheia de bolhas. Mas ela apertou a mandíbula
e empurrou a agonia para se imaginar inteira e lisa, como era antes. Enviou os
pensamentos para cima e para baixo em seu corpo. Ondas de força rápida,
esculpindo.
No momento em que removeu a última das bandagens, sua pele havia
sarado e toda a sua dor havia desaparecido.
Impassível diante de Corien e dos enfermeiros boquiabertos, que haviam
congelado na porta para vê-la desfazer todo o trabalho, Rielle foi até o
enorme espelho que estava encostado na parede no canto mais distante da
sala. Fascinada, ela examinou sua nudez.
Havia um brilho dourado em sua pele, e as pontas de seu cabelo e dedos
faiscavam como uma bigorna batida. Suas íris eram tempestades gêmeas
circuladas de ouro, apenas faixas finas de verde remanescentes. Seus lábios
estavam pálidos, mordidos e rachados. As sombras se estendiam longas e
profundas sob seus olhos, e havia um novo vazio em seu rosto, como se algo
essencial nela tivesse sido retirado. Ela descobriu que não sentia falta, mesmo
com sua cabeça latejando e seus ossos doendo de exaustão.
Porque havia uma clareza em sua mente que ela nunca experimentou antes,
uma singularidade de propósito. Ainda sabia que havia nascido em Celdaria,
que havia se casado com um homem chamado Audric e matado um professor
chamado Tal, mas quando voltou seus pensamentos dessa forma, tentando se
lembrar dos detalhes de seus rostos, o que eles sentiam por ela, o que sentia
por eles, podia se lembrar de muito pouco. Apenas faixas vagas de cor e
sensação. Cada memória que uma vez a atormentou se desvaneceu nas
sombras de sua mente.
Em seu lugar fervilhavam sussurros dourados, fervorosos e cheios de
apetite, expulsando tudo menos o agora. Esta fortaleza congelada, o anjo
olhando para ela de sua cama. Seus dedos, ainda zumbindo por causa do
Portão. Ela sentiria aquela carga violenta e eterna pelo resto de seus dias, ela
sabia. A dor fria em seus dentes, o zumbido inquieto das palmas das mãos
que agarraram o tecido do Portão e o abriram completamente. Esses seriam
para sempre seus companheiros.
Rielle sorriu levemente, tocou o rosto maravilhada, depois se virou para o
lado e inspecionou a redondeza de sua barriga inchada. A visão evocou um
novo carinho nela. Ela colocou as mãos em volta dela, sentiu o pulso quente
de seu filho crescendo. Esta criança que sobreviveu ao Portão. Que ela
alguma vez pôde ter considerado acabar com sua vida era inconcebível.
Ninguém mais no mundo saberia como é ser tocado pelo poder do Portão.
Que a criança pertencia em parte a Audric era um fato que agora a deixava
indiferente.
A criança era mais dela do que qualquer outra coisa, e não a prendia a
ninguém, nem mesmo a Audric.
Quando Rielle se voltou para Corien, ela o encontrou olhando para ela,
extasiado. Ela lançou um olhar silencioso para os enfermeiros e eles saíram
correndo da sala.
Rielle caminhou em direção ao guarda-roupa. Ela sentiu o brilho de cada
passo. — Quantos anjos eu libertei?
— Quinhentos mil — Corien respondeu calmamente.
Ela vestiu seu roupão de veludo preto com faixa dourada, o bordado
intrincado de asas, flores, espinhos. — Tão pouco? Você disse que havia
milhões no Abismo.
— Tem. O Portão ainda tem força, mesmo que você tenha batido com
força. Os mais fracos da minha parentela estão achando difícil escapar de sua
atração.
— Talvez eu possa erradicar essa força — pensou Rielle. — Criar uma
passagem segura pela qual os outros possam viajar.
Corien se levantou e puxou-a lentamente para a cama. — Você pode –
disso eu tenho certeza. Você pode fazer qualquer coisa, minha estrela, meu
fogo. — Ele encontrou o oco de sua garganta e beijou-o. — Mas primeiro
devemos fazer outra coisa.
Levemente aborrecida, Rielle considerou negar. Metade de sua mente
parecia distante, imaginando o Portão e a melhor forma de alterar seu tecido
para permitir a passagem dos outros anjos. Mas as mãos de Corien eram
quentes e estavam fazendo coisas deliciosas em sua pele. Ela sorriu,
deslizando os dedos por seu torso. Isso também era um prazer que ela
ansiava.
Falariam do Portão mais tarde.
— É isto que você quer dizer? — ela murmurou.
— Faz muito tempo, Rielle, desde que pude tocar em você.
Ela estremeceu com a qualidade áspera de sua voz, como estava perto de se
desfazer. Ela se afastou dele e pediu que se ajoelhasse diante dela. Ele
agarrou seus quadris, afastou as dobras de seu roupão e enterrou o rosto em
suas coxas com um gemido.
— E então começarei nosso grande trabalho — disse Rielle, entrelaçando
os dedos no cabelo preto e lustroso dele.
— E então começaremos nosso grande trabalho — concordou. Em seguida,
ele colocou a boca sobre ela, e Rielle não soube nada além da nova força
flexível que se estendia felizmente dentro dela, o brilho luminoso de sua pele,
o poder sob ele subindo para encontrar os lábios de Corien.

•••

Havia uma vasta colmeia subterrânea de câmaras e salões sob a fortaleza de


Corien. Armários de armas, depósitos de grãos e vinho, as estreitas salas
escuras em que os criados dormiam. Dezenas de passagens conduziam aos
laboratórios, os quartéis que abrigavam adatrox, os currais onde os dragões
de gelo de Borsvall foram enjaulados, dissecados e envenenados.
No coração deste grande labirinto de pedra, um anel havia sido esculpido
no chão – um grande círculo rodopiante de asas. Acres de pilares se
espalharam a partir do círculo, cada um alto e grosso como um aríete.
Rielle estava dentro do círculo de penas. Corien disse a ela que ele próprio
o havia gravado quando a fortaleza foi construída. Ninguém tinha estado
dentro dele até agora. Até ela.
Era um altar destinado à ressurreição.
Aos pés de Rielle estava um belo jovem de uma província rural do oeste de
Kirvaya. Ele havia sido despido e tremia no chão frio. Sua pele era pálida e
macia, seus membros longos e saudáveis. A luz da tocha bruxuleando ao
redor do círculo o pintou de ouro. Escolhido por sua beleza e força, arrancado
de sua cama por uma mente angelical ávida, até mesmo deitado no chão
como um pedaço de carne, ele era primoroso. Seu nome era Tamarkin.
Corien, parado ao lado de Rielle com as mãos cruzadas atrás das costas,
segurou o homem rápido, esperando.
Com os olhos, Rielle traçou as linhas do corpo de Tamarkin – cada
músculo, cada tendão, cada osso. Ela viu sob sua pele seus órgãos pulsantes,
suas veias ricas em sangue. Em sua fundação, um mar de ouro caiu e vazou,
formando tudo o que ele era. Mais brilhante em sua mente e em seu coração,
iluminando as teias gêmeas de seus pulmões.
Ela poderia ter olhado para ele por horas, observando com fascinação os
pulsos de luz e energia que eram seus pensamentos frenéticos, seu batimento
cardíaco acelerado. Só ela podia ver essas coisas, esse funcionamento interno
profundo do corpo e do sangue; nem mesmo os anjos foram testemunhas
deles.
— Você está pronta, meu amor? — perguntou Corien suavemente.
Sonhadora, ela disse: — Quase. — Ela se ajoelhou ao lado de Tamarkin,
correu os dedos ao longo das depressões de sua pélvis, as cristas de suas
costelas. A pele dele estremeceu ao toque dela. No aperto de Corien, mudo e
apavorado, seus olhos estavam selvagens. Ele observou seus dedos como se
temesse garras.
Ao redor deles, a câmara pulsava. Truques de luz fervilharam no ar, mas
havia um peso para eles, e sua inteligência picou na mente de Rielle,
deferente mas gananciosa. O ar se curvou para abrir espaço para eles.
Anjos esperando em multidões. Sua energia era a de uma manada de bestas
em seu cercado, músculos tremendo, flancos suando.
Um deles pairou sobre a cabeça de Rielle. Seu nome era Sarakael,
escolhido por um capricho de Corien como o primeiro a ser ressuscitado.
Rielle podia sentir o fervor de Sarakael, como ele desejava cair diante dela
em uma adoração ardente.
Mas ela mal o notou. Embora pudesse sentir cada anjo observando – como
suas mentes deslizaram pelo ar, como seus sussurros farfalharam e
assobiaram – sua atenção estava inteiramente no homem deitado diante dela.
Ela se perguntou se deveria estar nervosa, mas não estava. Os calafrios que
percorriam sua espinha eram como dedos batendo nela para acordá-la.
Corien se aproximou. Agora, Rielle
Ela assentiu. Agora.
Imediatamente, Corien matou o homem. Uma quebra fácil de sua mente e,
sem a mente, tudo o mais desapareceria. Haveria agonia, ele disse a ela, por
um instante, e então um nada, um deslize para a longa escuridão da morte.
Rielle observou a luz deixar os adoráveis olhos azuis de Tamarkin.
Seu corpo vazio esperou que ela começasse.
O como era fácil, mas ela suspeitava que não seria. Ela havia pensado em
tudo. Enquanto Corien dormia, ela se sentou na cadeira forrada de pele perto
da janela e olhou para o vasto gelo, planejando seu método.
E agora, ela seguiu suas próprias instruções. Sua respiração tremia, seu
corpo vivo com um calor crescente que bateu como punhos em uma porta.
Ela estendeu a mão com seu poder e ordenou ao anjo Sarakael que entrasse
no corpo, então esperou enquanto sua tênue forma em sombra afundava por
todos os orifícios – a boca ligeiramente aberta, as narinas, as orelhas. Ela
colocou as mãos ao redor do crânio, pois esta era a âncora mais importante.
Uma mente viva para um cérebro morto. Olhos brilhantes para os opacos.
O truque, ela pensou, era trabalhar enquanto o empirium ainda brilhava
dentro do cadáver. O corpo de Tamarkin estava quente e mares de ouro ainda
pulsavam dentro dele, mas logo eles iriam diluir. Quanto mais vital for o
empirium, mais forte será a ligação.
Então começou a tricotar.
Ela usou as mãos porque achou a fisicalidade um foco útil e porque queria
parecer impressionante e desconhecida. Enquanto ela se ajoelhava no chão ao
lado desse homem morto, reconstruindo-o em algo novo e glorioso apenas
com seus dedos hábeis, os anjos olhariam para ela e se maravilhariam. O
vínculo seria mais forte do que se Sarakael simplesmente possuísse o corpo
vivo. Ela iria costurá-los, corpo a corpo, fundindo os dois juntos tão
completamente que se tornariam um único ser, mais forte do que um humano
ou anjo. Um novo tipo de vida de sua própria criação.
Rielle moveu-se sobre cada centímetro do crânio e, além de seus dedos, seu
poder procurou e explorou. Ela sentiu a textura fresca e flexível da presença
de Sarakael, esperando sem fôlego. O empirium brilhou brilhantemente nas
mentes dos anjos, e Sarakael, jovem e fraco como era, incapaz de segurar um
corpo humano sem ajuda, não foi exceção.
Uma vez, olhar para ele pode ter machucado seus olhos. Agora, ela olhou
direto para o inferno em chamas.
Ela trabalhou seu poder como uma costureira com sua agulha e teceu o anjo
em seu novo corpo. De luz incandescente a luz fraca e opaca. Centímetro por
centímetro, ponto de ouro por ponto de ouro. Milhões de pontos, cada um
minúsculo e infinito.
O suor escorria por suas costas e braços. Ela sentiu uma frieza distante –
Corien colocando um pano úmido contra seu pescoço e testa. Ela o avisou
para não interferir em sua mente, pois isso poderia atrapalhar sua
concentração, o fluxo de poder dos dedos para o anjo e para o corpo.
Mas enquanto trabalhava, ela começou a ansiar por seu toque familiar. A
ressurreição era uma imensidão para a qual ela não estava realmente
preparada. A cada ponto, ela se perdia um pouco e depois o recuperava. Seus
músculos foram dilacerados e reconstruídos mil vezes. Sua respiração ficou
rápida e afiada.
— Meu amor, você deveria parar? — A voz de Corien estava tensa de
preocupação. — É muito cedo depois do Portão?
— Me deixe em paz — ordenou Rielle. Ela formou as palavras através de
uma névoa de sonho. — Eu sou a Criadora e a Desfiguradora. A coisa que
destrói e a coisa que cria.
Sua visão turvou e expandiu até que ela pudesse ver tudo nas vastas
câmaras subterrâneas de uma vez, e então tudo em Northern Reach, reduzido
ao tamanho de uma tela de artista. Ou foi ela quem cresceu, superando as
limitações de seu próprio corpo? Ela viu as montanhas que os cercavam, o
vasto mar congelado, os Ermos Brancos. Ela viu as estrelas no céu e os
mundos que giravam além delas – e isso era muito, muito confuso.
Assustada, cheia de admiração, ela refreou sua visão errante, voltou seu foco
para suas mãos furiosamente tricotando.
Por fim, ela terminou.
Sua visão ainda estava consumida pelo empirium, e ela observou, exultante
e exausta, enquanto o corpo diante dela, esta nova criatura com sua mente
poderosa e antiga e seus membros humanos flexíveis, surgia diante dela. Ele
experimentou as pernas, esticou os braços até o teto alto e cantou em triunfo.
Ele reluziu, cintilando. Experimentou correr, saltou e disparou. Ele era mais
rápido do que Tamarkin jamais havia sido, lindamente ágil e extremamente
forte. Ele agarrou um suporte de tocha afixado a um pilar próximo e subiu
nas vigas de pedra. Nu e glorioso, ele brilhava fracamente, como se tivesse
sido mergulhado em ouro.
Rielle o observou de seu lugar no chão, mantendo o corpo imóvel. Ela
sentiu Corien parado tenso atrás dela, mas não poderia se virar para olhar
para ele; desmoronaria de exaustão e se recusava a fazer isso onde eles
pudessem ver – esse enxame de anjos, todos perseguindo Sarakael. Seus
uivos de júbilo eram um clamor em sua mente.
Sarakael saltou para o chão, depois correu para Rielle e prostrou-se diante
dela. Ele beijou seus dedos, a bainha de seu vestido.
— Obrigado, minha rainha — Sarakael murmurou a seus pés. — Minha
gloriosa rainha. Não sei como expressar minha gratidão. Poder me mover
novamente, poder correr e pular. Sentir o frio desta pedra e a umidade do ar,
o peso da montanha acima de mim e o deslizamento suave de minha pele
perfeita. Minha rainha — ele engasgou — você não pode saber o que isso
significa para todos nós.
— Isso é o suficiente, Sarakael — Corien ordenou, sua voz mudando para a
de um comandante experiente. Rielle poderia facilmente imaginá-lo como o
anjo Kalmaroth, ordenando regimentos de anjos para a guerra. — O resto de
vocês, tornem-se úteis. Meus generais, que são mais fortes do que qualquer
um de vocês – fortes o suficiente para escapar do Portão há muito tempo e
possuir corpos por conta própria para que pudessem me ajudar a começar a
construir nossa nova casa – esses generais têm tarefas que cada um de vocês
podem realizar. Até que seja convocado para a ressurreição, vocês
obedecerão a todos os seus mandamentos.
Rielle o ouviu falar como se estivesse muito longe, sua cabeça girando
como um redemoinho à beira do colapso. Ao longe, ela compreendeu que
Corien a estava ajudando a se levantar, que estava sustentando seu peso com
um braço ligado ao dela.
Quando finalmente chegaram ao quarto, Rielle se deixou cair.
Corien a pegou, beijou-a suavemente. — Minha bela, minha corajosa. Você
está aqui comigo agora. Você pode descansar.
Ela relaxou os músculos tensos e começou a tremer em seus braços.
Enquanto ele a levava para a cama, ela viu seu reflexo surpreendente no
espelho: lábios pálidos como sua pele, toda a cor sugada deles. Mas seus
olhos brilhavam como se brasas ardessem dentro deles. Ela se imaginou
abrindo a boca e soltando fogo. Se imaginou mordendo o pescoço de Corien
e injetando veneno nele.
Uma coisa estranha, tremer tanto e precisar das mãos de Corien para
sustentá-la, e ainda assim se sentir mais forte do que qualquer um de seus eus
anteriores. Era como se todos tivessem sido peles para descascar, e ela estava
começando a descobrir a verdadeira Rielle sob todos eles. Uma doce noz de
poder brilhando forte em sua casca.
Magra e cintilante, ela sorriu para seu reflexo, observando as sombras
douradas negras em sua clavícula, nas palmas das mãos, em suas têmporas
doloridas e pulsantes.
— Quando eu estiver forte o suficiente — ela sussurrou contra o peito de
Corien, — eu darei asas a todos eles.
25
Eliana

“Muitos dos escritos dos santos sobre o Abismo foram perdidos no


tempo, ou no vandalismo por facções radicais de humanos, como Anima
Primoria, que apoia os anjos e condenam a criação do Portal. Esses
escritos que não foram roubados estão sob vigilância de quem os possui
– geralmente a autoridade sagrada daquele país – e não estão
disponíveis para estudo por acadêmicos visitantes, uma realidade que
este acadêmico em particular considera não apenas ofensiva, mas
potencialmente perigosa. Só entendendo o que aconteceu naqueles dias
podemos evitar que aconteça novamente.”
—O Abismo Insondável: Uma Dissertação por Tasha Kirdova da
Primeira Associação de Eruditos

Quando o Profeta voltou para Eliana, sete dias haviam se passado desde sua
viagem ao Abismo.
Você se saiu bem, disse, enviando a ela ondas cautelosas de conforto. Ele
não vê nada do Abismo em você, e não vai ocorrer a ele suspeitar disso.
Enrolada no chão onde Corien a havia deixado, Eliana abriu os olhos. Ela
engoliu em seco e provou o cobre; tinha mordido o interior da boca ao ponto
de sair sangue. No chão, cacos de vidro estavam espalhados como neve caída.
Corien gostava de quebrar coisas quando estava com raiva. As vidraças
estavam abertas para a noite, as bordas irregulares. Metade de seus guardas
estava obedientemente varrendo os restos em pás. A outra metade, com suas
expressões brandamente vigilantes, certificou-se de que ela não tentasse
pegar um pedaço para cortar a garganta.
— Debaixo do tapete — Jessamyn ordenou, pisando no chão com a bota.
Ela olhou para Eliana, uma expressão preocupada escurecendo seu rosto. —
Pegue todos os carpetes.
Eliana os observou limpar, depois subiu na cama e fingiu dormir, o rosto
escondido sob os cabelos, mas na verdade ela estava vigiando as portas de
seus quartos, esperando que Corien voltasse por ela. As lágrimas molharam
suas bochechas, mas ela mal as sentiu. Cada som de seus guardas a fez
estremecer. Uma hora se passou, depois duas. Uma mudança de turno.
Jessamyn partiu para o Liceu, a casa do Invictus, onde ela dormiria.
Por fim, Eliana sentiu que era seguro.
Eu quero voltar, ela pensou para o Profeta, a formação de cada palavra um
triunfo. Eu tenho uma ideia. Você acha que isso pode ser feito?
Então ela lhe enviou seu plano, o que ela imaginou para o fim.
O orgulho do Profeta era inconfundível. Oh, pequenina, gosto da sua
maneira de pensar. Sim, acredito que é possível e vale a pena explorar.
Começaremos hoje à noite.

•••

No pátio, aninhada no matagal por onde havia entrado pela primeira vez no
Abismo, Eliana sentou-se na terra com as pernas cruzadas, considerando a
fenda escura pairando no ar à sua frente. Isso a puxou como uma boca ávida
por provar. Ela teve que segurar as raízes da árvore em seu joelho para se
manter longe disso até que ela estivesse pronta. Tudo perto da fenda – musgo
e folhas, a sujeira, seus seixos – tinha ficado preto e murcho. Os restos
desidratados estremeceram, puxados em direção à fissura como se resistissem
a ser engolidos.
Lembre-se, o Profeta disse a ela, no momento em que você não puder mais
me ouvir, deverá retornar a Avitas, assim como fez antes.
Eliana teria se irritado, se não estivesse com tanto medo. Você já disse isso.
E vou dizer de novo. Seu plano é fascinante, mas não é isento de riscos.
Risco. Uma palavra tão pequena para o que ela estava prestes a fazer. Os
sete santos precisaram de todo o seu poder para criar o Portão. Mais tarde,
sua mãe o abriu apenas com as mãos.
E agora, ali estava Eliana Ferracora, as mãos úmidas de suor e enroladas em
correntes de ouro.
Diga-me de novo o que é, ela disse. O Abismo.
O Profeta hesitou. Preocupo-me que a repetição só aumentará o seu medo.
Por favor. Falar sobre isso vai me acalmar.
Muito bem. O Abismo é, essencialmente, um abismo. Um vazio entre
mundos, como Zahra lhe disse, meses atrás. Sem imagem ou som. Sem
fisicalidade. Nada além de empírium bruto e irrestrito. Pelo menos, para os
anjos, isso tem sido verdade. Ocasionalmente, um deles pode sentir um
lampejo de cor, um sussurro de som. Visões que passam como meros
pensamentos antes que a escuridão vazia retorne. Mas parece que seu poder
permite uma experiência diferente. Para você, o Abismo é um lugar de
contínua ilusão corporal.
Também está cheio de inúmeros monstros enormes, não vamos esquecer,
disse Eliana secamente.
O Profeta emitiu uma vibração de divertimento. Sim. As cruciata que
entraram no Abismo de seu mundo – que os anjos chamaram de Hosterah –
podem realmente sobreviver lá. São feras estranhas e antigas que nem
mesmo os anjos entendem inteiramente. Mas pouca coisa pode sobreviver às
Profundezas. Os anjos não puderam e perderam seus corpos.
Eliana colocou as mãos no chão. A terra embaixo dela era uma âncora
familiar. O pânico bateu forte em seu coração. Imagens de seu corpo se
despedaçando passaram por sua mente.
Você não perderá seu corpo como os anjos perderam, o Profeta a lembrou,
embora sua voz vibrasse baixinho com a tensão. Eles não puderam passar
pelo Abismo ilesos, mas parece que você pode. Sua mãe também poderia, eu
acho, se ela tivesse tido a chance de tentar.
Como se isso fosse um conforto. Eliana apertou o queixo, girou os ombros.
Verei coisas em que não posso confiar, mas tenho que confiar nelas.
Acho que você verá, como no primeiro dia, imagens fracas do que acredito
serem mundos além do nosso, como se você estivesse caminhando pela
memória. Mas acho que não é memória – está acontecendo agora, ou
aconteceu, ou vai acontecer. Muitos mundos, todos conectados pelo Abismo,
nos quais o tempo não tem significado.
Eliana se concentrou em sua respiração estável. Você acha.
É uma teoria, o Profeta admitiu. Muitos estudiosos ao longo da história –
humanos e anjos – propuseram o próprio conceito que descrevo. Pense nisso.
Você foi capaz de ficar naquelas colinas, embora fossem meras ilusões, ecos
através do Abismo. Portanto, tudo o que você vê hoje, sejam estradas,
montanhas ou florestas, confie. Use. Acredite na ilusão. Deixe seu poder lhe
fornecer realidade.
Ou então cair no Abismo Sem Fim? Eliana perguntou ironicamente. Ser
consumida pelo Abismo?
Estou confiante de que você conseguirá evitar isso.
E Eliana sentia aquela confiança, enviada pelo Profeta em uma corrente
constante.
Ela desejou compartilhar do sentimento.
Em vez disso, um medo doentio corroeu seu estômago. Ela não conseguia
tirar de sua mente o céu violeta tingido de cinza com as sombras das feras.
Embora ela tivesse sobrevivido à sua primeira viagem ao Abismo, não havia
certeza de que sobreviveria à segunda. Mas se ela esperasse mais, se
assustaria com a visão desta coisa que ela havia feito.
Eliana prendeu a respiração, largou as raízes das árvores e passou
rapidamente pela fenda, esperando a mesma vista de colinas suaves e campos
vazios para saudá-la.
No lugar disso, viu uma cidade repleta de estreitas torres pretas que se
estendiam em direção a um céu escuro repleto de estrelas.
Ela congelou onde estava, no meio de uma ampla via pública abarrotada de
pessoas – mercadores carregando suas mercadorias, malabaristas lançando
orbes brilhantes, crianças conduzindo animais por cordas com nós. Alguns
dos animais ela reconheceu; outros, carnudos e manchados, não reconheceu.
Se olhasse muito diretamente para qualquer coisa, ela escapava de seu olhar,
tornava-se cinza e turva, então voava para fora de vista. Havia um desmaio
em tudo, uma leve descoloração, como se ela não estivesse olhando para algo
real, mas sim para as relíquias de um sonho.
Eles não me veem, disse ela, caminhando lentamente pela rua
movimentada. Formas escuras estremeceram nos cantos de seus olhos,
dando-lhe a sensação perturbadora de que algo vasto estava se fechando
sobre ela. Ela aprendeu rapidamente a manter os olhos focados à frente, ou o
mundo começaria a girar. Ela não conseguia pensar no que realmente a
rodeava: nada, infinito e escuro. A queda de seus pés na estrada ilusória
abaixo – isso, ela mentiu para si mesma, era real e verdadeiro.
Você entende, agora, como fizeram isso. A voz do Profeta estava grave. O
Abismo toca todas as coisas. As juntas entre os mundos aqui são finas e
flexíveis, o empirium capaz de ser moldado por quem tem o poder de fazê-lo.
Como seus santos de antigamente, que usaram seus talentos elementais para
condenar uma raça inteira.
Zahra me disse que era um tratado de paz, Eliana pensou calmamente,
combinando suas palavras com seu passo medido à frente. Os anjos iriam
entrar em outro mundo, um que era desabitado, e torná-lo seu. Os humanos
permaneceriam em Avitas, e as Guerras Angélicais terminariam.
Zahra disse a verdade, o Profeta respondeu. Foi uma mentira terrível.
Os santos não entraram no Abismo, porém, ou então teriam morrido. Não
está certo?
Eles trabalharam sua magia em Avitas, sim. Uma pausa. Mais ou menos.
Como isso foi feito?
Silêncio do Profeta.
Eliana lutou contra uma onda de impaciência. Como você sabe de tudo
isso?
Tenho guardadas comigo muitas histórias, foi a resposta enigmática.
Com suas muitas perguntas na língua, Eliana viu um menino passar
correndo. Tranças brancas caíam até a cintura e sardas pontilhavam sua pele
pálida. Ela olhou para ele por muito tempo; sua forma ficou turva e
desbotada, depois achatada, como uma sombra que caía no chão, e
desapareceu. Os paralelepípedos estavam escorregadios de chuva, e Eliana
pensou ter visto gotas caindo, mas quando olhou com mais atenção para
confirmar, a dor apareceu em seus olhos.
Ela se virou, com a cabeça doendo. Não saber o que era real e o que não
era, deixou seu estômago em nós nauseados.
Nada disso é real, respondeu o Profeta, e ainda assim tudo é real. Eu
acredito que o que você está vendo é um outro mundo, muito distante deste e
ainda tão próximo que se você estender a mão aqui no Elysium, você o
estaria tocando e não saberia. Muitos mundos repetiu o Profeta, sua voz
suave com fascínio, todos conectados pelo Abismo.
Um movimento acima dela, fraco no limite de sua visão, incitou Eliana a
olhar para cima, mas ela se recusou, com medo do que veria. Ela se lembrou
de Remy convulsionando a seus pés, Corien observando friamente de cima.
Machucou? ela pensou, sabendo a resposta. Quando você perdeu seu
corpo?
Outra batida de silêncio. Raramente conversavam sobre a identidade do
Profeta. Eliana muitas vezes temia que mergulhar muito fundo nessas
questões arruinasse tudo entre ambos.
Mas Eliana sabia a verdade desde a primeira vez que se falaram: o Profeta
era um anjo, quer decidissem falar sobre isso ou não.
Mais uma vez, o movimento acima cintilou. Eliana ergueu os olhos. Acima,
havia um céu noturno com estrelas mais numerosas do que as que ela
conhecia em Avitas. As ondas passavam pelas estrelas como se fossem
espuma na água negra, e nessa água nadavam criaturas invisíveis. Eliana
semicerrou os olhos e viu formas escuras fracas.
Seu sangue gelou. Cruciata?
Sim, o Profeta respondeu.
Elas podem me ver?
É possível.
Impelida por um instinto selvagem de apertar a garganta, Eliana alcançou
um portão de ferro e correu por um pequeno parque, onde as árvores estavam
pesadas pela chuva. Ela se escondeu atrás de uma e se agarrou ao tronco,
escondida sob as folhas ensopadas.
Mas então, por meio do medo, ela se lembrou: nada disso era real. Ela
poderia se esconder embaixo de uma árvore, dentro de uma casa, nas
profundezas de uma caverna, e nada disso importaria, pois na realidade ainda
seria apenas ela, Eliana, encolhida atrás de nada, vista por qualquer coisa que
espreitasse no Abismo. Ela não conseguia se esconder – ela estava sozinha e
vulnerável em um abismo sem fim, e esta árvore não era uma árvore, e o solo
em que ela estava não era solo de forma alguma. Ela existia no nada, e o nada
a cercava.
De repente, seus dedos passaram pela árvore, ela tropeçou e caiu. Uma
parte teimosa de seu cérebro esperava atingir o chão, mas em vez disso ela
continuou caindo, passando pelo chão que não estava realmente lá e em um
redemoinho giratório de escuridão.
Luzes piscaram, como se ela tivesse passado por uma tempestade. Ela
tentou fechar os olhos contra elas – eram muito brilhantes, estavam
machucando-a – mas não conseguiu. Estavam por toda parte, incrivelmente
brilhantes, como se todas as estrelas que vira estivessem agora explodindo
em borrifos de cor. O branco quente de um relâmpago e uma ameixa turva, o
preto-azulado perfurado de uma contusão recente. Ela tentou gritar, mas o ar
roubou sua voz. Não, não o ar. Nada. O empirium, o Profeta havia dito, cru e
irrestrito.
Gritos distantes e rugidos uivantes se chocaram uns contra os outros,
formando uma cacofonia terrível e discordante que bateu repetidamente em
seus ouvidos, como se ela estivesse caindo de um alto penhasco pelos ventos
caóticos da montanha.
Ela tossiu e engasgou, lutando para respirar. O calor varreu sua pele em
ondas dolorosas, e com uma explosão de terror, ela se perguntou se este era o
começo do fim. Ela perderia seu corpo assim como os anjos, sua pele
arrancada pelo Abismo.
Eliana, ouça minha voz.
Ela se atrapalhou com as palavras fracas e distorcidas do Profeta como se
fossem apoios para as mãos que ela pudesse usar para escalar para se livrar
da escuridão. O que está acontecendo? Eu não entendo!
Ouça-me e concentre-se no que estou dizendo. Lembra da cidade que você
viu, a estrada que você percorreu? Você deve recriar a ilusão, usá-la para se
firmar e encontrar o seu equilíbrio mais uma vez. Seu pequeno rio, Eliana –
lembre-se dele. Como isso a ancora ao seu próprio poder. Como ele a
protege de qualquer coisa que possa machucá-la.
Eliana se esforçou para pensar na cidade e em suas torres negras, no garoto
de tranças brancas, nos orbes brilhantes do malabarista. As imagens correram
para ela, despencando e frenéticas, e ela tentou agarrá-las, imaginando seus
lançamentos e o poder que carregavam como âncoras que poderiam prender o
mundo de volta ao lugar. E com cada imagem que captava e segurava vinha
um alívio do barulho estrondoso que batia em seus ouvidos. As luzes
brilhantes diminuíram; a escuridão giratória diminuiu e se estabilizou. Ela
começou a sentir as bordas de si mesma voltando – a bainha de sua camisola
beijando suas pernas, seu cabelo roçando seus ombros, o abraço frio de seus
receptáculos.
Aí está você. A voz do Profeta estava firme, não mais tão distante. Dê um
passo.
Eliana obedeceu e colocou o pé nos paralelepípedos molhados da estrada
escorregadia pela chuva da cidade-torre. Por um momento, não fez nada além
de se levantar sobre suas próprias pernas trêmulas e respirar. Agarrou-se ao
sentimento de sua própria fisicalidade, esperando que isso a colocasse na
base.
Confie na ilusão, disse a si mesma. Ela se agarrou à canção de seu poder,
vibrando em todas as veias, e em sua mente desenhou uma imagem do
mundo que tinha visto. Reconstrua a ilusão.
O garoto de tranças brancas passou correndo por ela. Tonta, se virou para
observá-lo quando ele mergulhou na rua movimentada e caiu nos braços de
um homem que se ajoelhou em frente a uma loja, esperando para abraçá-lo. O
cabelo branco do homem estava preso em muitos nós. Ele era, Eliana pensou,
o pai do menino.
Seus olhos se encheram de lágrimas enquanto os observava. Há quanto
tempo ela não era abraçada por alguém que a amava.
Volte para casa agora, o Profeta ordenou. Eu nunca devia ter permitido
isso.
Eliana se afastou da estreita luz verde ao longe que marcava seu caminho
para casa. Eu não posso. Ainda não. Eu não fiz o que vim fazer.
Eliana, você quase se perdeu no Abismo naquele momento. Isso também é
novo para mim. Se isso acontecer novamente, ou algo pior, posso não ser
capaz de ajudá-la.
Eliana flexionou os dedos. As correntes de seus receptáculos se moveram
suavemente em torno de suas mãos. Mas se eu voltar agora, posso morrer lá
da mesma forma, então posso ficar aqui e terminar.
O Profeta ficou quieto, sua raiva silenciosa uma nuvem no horizonte da
mente de Eliana, mas ela ignorou isso e fechou os olhos. Se concentrou no
leve peso dos discos de ouro descansando em suas palmas, lentamente
incitando seu poder a subir até que uma força gentil puxou seu peito. Esse
mesmo instinto a levou ao jardim do pátio, onde o ar era rarefeito.
Agora, esse puxão em seu peito, nos ombros e nos dedos, a impelia a seguir
em frente. Lentamente, abriu os olhos e encontrou a cidade negra pintada em
tons incandescentes de ouro empírico. Mais brilhante onde ela focou seu
olhar, escurecida em sua visão periférica.
O empirium é luminoso aqui, pensou para o profeta. Mais brilhante do que
qualquer coisa que eu vi em Avitas.
Como deveria ser. O Abismo é o empirium aliviado pela fisicalidade. A voz
do Profeta se suavizou. Acho que é por isso que você, filha de Rielle, pode
andar por aí sem dor. O empirium é a pegada de Deus. É o que criou os
mundos. E você carrega mais dentro de você do que qualquer ser que já
viveu.
Exceto minha mãe..
Uma pulsação trêmula, como se o Profeta sentisse uma leve dor. Sim,
pequenina. Exceto sua mãe.
Conforme Eliana caminhava pelas ruas sinuosas da cidade, seguindo o
apelo do empirium, os edifícios ficavam mais altos e próximos ao seu redor.
Ela manteve sua mente afiada, usando-a para criar um caminho que fosse
real, mesmo que a estrada sob os pés não fosse. Mesmo que isso fosse uma
ilusão, um mero eco de um mundo que vivia muito além de seu alcance, ela
acreditaria nisso. O caminho a conduziu por uma escada estreita de pedra, até
uma casa com as portas abertas para a noite.
Depressa, Eliana, disse o Profeta por fim. Horas passaram em um piscar de
olhos. Ele virá em breve. Podemos tentar outro dia, se for necessário. Não
permita que a teimosia ou o orgulho…
Aqui, Eliana pensou. Dentro da casa, no canto de uma sala que existia em
um mundo distante que não era o seu, ela havia encontrado o que procurava.
Oh, o Profeta disse, seus pensamentos suaves de espanto, pois eles puderam
ver pelos olhos de Eliana o lugar que havia encontrado: uma fenda no tecido
do Abismo, uma flexibilidade do próprio empírium, assim como descobrira
em Avitas. Só que aqui, no Abismo, isso se manifestou como um leve brilho
aquoso no ar. Era feito de mil cores, como se fosse um prisma captando a luz
do sol.
Eliana esperou mais um momento, deixando os olhos desfocarem e
voltando os pensamentos para dentro, para que o empirium pudesse guiar sua
visão dourada através do brilho para o que havia além. Ela sorriu ao ver isso,
então convocou seu poder, trouxe suas mãos ao fogo e empurrou de lado o ar
tremeluzente diante dela até que uma pequena fenda se abriu, cuspindo uma
luz azul incandescente contra seus dedos.
Além da fenda e abaixo dela, como se ela olhasse para baixo de uma nuvem
baixa, estava uma cidade, espalhada e branca. Torres em espiral cobertas por
asas estendiam-se para um céu claro do amanhecer. Havia o amplo abismo
que circundava a cidade, as pontes que a mediam.
E havia o palácio de Corien, suas cúpulas polidas e parapeitos elaborados
resplandecentes à luz cremosa do nascer do sol.
Eliana caiu no chão e sentou-se com força nos calcanhares. Ela apoiou as
mãos nas coxas, com medo de respirar muito forte, embora sua cabeça
girasse com o esforço. O mundo ao redor dela brilhou precariamente. Ela
piscou com força e, através de uma névoa cintilante, olhou para o buraco que
havia feito. Como parecia fraco, pequeno e pálido. Dedos de luz saíram de
seu perímetro, mas tão lenta e fracamente que Eliana temeu que pudesse se
curar em breve.
Isso é o suficiente por hoje, disse o Profeta. Apresse-se para casa,
pequenina, eu imploro.
Eliana se levantou, cambaleando ligeiramente. Devo torná-lo mais amplo.
Abrir ainda mais. É muito pequeno agora. As cruciata nunca vão passar.
Assim que eu for embora, pode se fechar.
Não há tempo para isso agora. Voltaremos e tentaremos novamente até que
seja feito. Ou criaremos outro plano inteiro.
Olhando para as formas tênues de Elysium, Eliana sentiu-se frenética. Não
posso esperar mais!
Se você tentar forçar demais seu poder de uma vez, pode se perder no
Abismo, ou pode atrair as cruciata para você antes de estar pronta – antes
de eu estar pronto – ou pode alertar Corien sobre nosso trabalho, e ele virá
pra você e para mim, e tudo estará perdido. A voz do Profeta era severa.
Você deve medir impiedosamente o uso de seu poder ou ficará vulnerável
quando mais precisar de força. Devemos trabalhar devagar e, ao mesmo
tempo, continuar nossos exercícios e reconstruir sua resistência. Decidimos
isso quando você me apresentou seu plano pela primeira vez.
Eliana sabia que isso era certo, mas mesmo assim ela se afastou da fenda
com lágrimas de frustração nos olhos. Ele está vindo?
Em breve, eu acho. E você deve ser inteiramente você mesma antes que ele
te veja.
Com o coração pesado no peito, Eliana saiu da casa e voltou correndo por
onde tinha vindo – passando pelo centro da cidade até suas ruas externas. Ela
viu a porta estreita que levava de volta a Avitas, uma vegetação distante
emoldurada por uma luz violenta e irritada.
É real, ela disse a si mesma, movendo-se tão rapidamente quanto ousou em
direção à sua saída. É real, é sólido. Ela diminuiu o passo, forçando-se a
sentir cada passo contra a estrada. Então ela estava na fenda e deslizando, sua
luz zumbindo contra sua pele. No solo além, segura em seu matagal
carbonizado, ela se virou e fechou a fenda com dedos trêmulos. Logo, apenas
uma tênue marca permaneceu, um truque de luz que alguém poderia
facilmente descartar. Ela o viu desaparecer, a imagem daquele buraco
insignificante no Abismo persistente em sua mente. Ficava enjoada ao pensar
em quanto trabalho restava para fazer e o que ela suportaria enquanto isso.
Aí está você, o Profeta disse, sua voz um leve tremor de alívio. Graças a
Deus. Eliana, acho que foi demais, ousado demais. Você não deve voltar
novamente. Existem outras maneiras de lutar contra ele. O buraco que você
esculpiu pode se alargar sozinho com o tempo. As cruciata vão cheirar.
— Mas quanto tempo isso vai demorar? — Eliana sussurrou. Ela estava
cansada demais para retornar a linguagem mental; ela se deleitou calmamente
com o som áspero de sua própria voz. — Não posso esperar que isso
aconteça. Devo fazer isso sozinha antes que lutar contra ele tire o que resta de
mim.
O Profeta não respondeu a isso, mas Eliana sentiu o manto firme de seus
pensamentos enquanto fugia de volta pelo palácio para seus aposentos. Um
gosto ruim inundou sua boca quando avistou suas portas, flanqueadas por
dois guardas de olhos cinzentos.
Não será para sempre, Eliana, veio a voz do Profeta, cheia de tristeza.
Estou trabalhando incansavelmente para ajudá-la de maneiras que você nem
conhece ainda, mas o momento deve ser preciso, ou perderemos nossa
oportunidade. Voltarei para você assim que for seguro. Voltaremos juntos.
Eliana não respondeu. Em vez disso, ela abriu as portas de seus quartos e
fechou-as atrás de si em silêncio.
26
Simon

“Não olhe muito para a floresta, minha querida,


Não fale muito alto durante a noite
Fique no brilho da nossa cama, minha querida,
Mantenha nossa vela sempre à vista.”
— Canção folclórica tradicional Astavari

Corien encheu sua cidade de beleza abduzida – rostos com notável simetria,
mentes estalando de talento. Poetas e músicos, artistas e carpinteiros. Cada
edifício era perfeito, projetado por mentes angelicais e feito por artesãos
roubados de suas camas em todo o mundo – prometia segurança para eles e
suas famílias se ao menos vivessem em Elysium e fizessem o que Sua
Majestade o Imperador dos Imortais ordenasse.
Enquanto Simon caminhava pela cidade até o Liceu, encontrou todos os
cidadãos que Corien havia reunido olhando para o céu – alguns
maravilhados, outros com medo.
Simon, passando por eles, manteve os olhos na estrada à frente, recusando-
se a ficar boquiaberto como o resto deles, mas a luz daquela coisa que
apareceu no ar não podia ser ignorada. Lavou tudo, iluminando a cidade com
cores estranhas. Branco e azul, índigo e ameixa. Era noite, mas a cidade
fervilhava de luz brilhante como o dia.
Apenas uma vez, nas portas do Liceu, Simon olhou para cima.
Acima da cidade, diretamente sobre seu coração, brilhava uma luz cegante
que não piscava, presa atrás das nuvens. Tinha aparecido há algumas semanas
e, a cada poucos dias, ficava maior e mais brilhante, como a cabeça de uma
violenta tempestade se formando. Alguns a descreveram como um rasgo nas
nuvens ou um hematoma. Era um ótimo olho, insistiram outros. Simon os
ouviu sussurrando durante suas patrulhas; a cidade inteira fervilhava com o
mistério disso.
Os anjos deram ao fenômeno um nome: Ostia.
Do outro lado das pontes e das planícies rochosas além, refugiados
clamando por entrada na cidade começaram a realizar sacrifícios elaborados
para obter o favor dos guardas angelicais postados no perímetro da cidade. A
luz no ar, eles acreditavam, significava que o tempo estava próximo para
algum grande ato de misericórdia ou derramamento de sangue do imperador.
Se o impressionassem, suas vidas seriam poupadas.
Se soubessem que os guardas angelicais que os observavam faziam aquilo
com nada além de diversão cruel, e que seus atos violentos não seriam
recompensados.
Simon lançou um último olhar frio para o céu. Ele sabia exatamente o que
Ostia era, assim como os anjos e muitos que viviam no Liceu. Era uma
lágrima no empirium, desajeitada, mas crescente, e além dela ficava o
Abismo. Logo não haveria apenas um portão contra o qual eles teriam que se
proteger, mas dois. A questão era: quem fez este aqui?
A resposta parecia óbvia para Simon, mas Corien passou semanas
atormentando Eliana e não encontrou nenhuma evidência que a ligasse a isso.
Seus gritos ecoaram por aquela ala do palácio dia e noite, com pouco silêncio
entre eles.
Simon entrou no Liceu e não olhou para trás.

•••

No Liceu, no salão de recepção conhecido como Rose Room, Simon sentou-


se ouvindo o corpo governante de Invictus conhecido como Conselho dos
Cinco, imaginando quanto tempo levaria para perceber que estavam sendo
espionados.
Ele olhou para as portas de cerejeira lustrosas, além das quais Jessamyn se
agachava, escutando. Seus movimentos eram desajeitados demais para passar
totalmente despercebidos; Simon ouviu o pé dela arranhar o chão. Como o
resto deles, ela estava sem dúvida no limite devido à luz assustadora
constante fervilhando no céu. Não havia mais noites verdadeiras; até as horas
mais escuras foram pintadas de prata.
Simon olhou para os Cinco, mas eles não sabiam da presença dela, o que o
enojou levemente. Eles foram feitos para ser assassinos da mais alta ordem,
mas não podiam ouvir um de seus próprios alunos arrastando os pés do lado
de fora de sua porta.
Um dos Cinco, uma mulher pálida e musculosa chamada Vezdal, se
inclinou sobre a mesa do conselho com um olhar furioso.
— Então você vê, Simon, não podemos atrasar mais — ela disse com
urgência. — Cada momento que passa pode ser o nosso último. Você viu o
céu. Eu me recuso a ver os anjos morrerem e o Império entrar em colapso
porque não agimos.
— ‘Ele me escolheu para guardar Suas obras’ — disse um dos outros
Cinco, Mirzet, uma mulher de pele negra enrugada pela idade e ainda
supostamente uma víbora com uma espada. — ‘Ele me escolheu para receber
Sua glória’. É o que diz o juramento do Invictus. Ele escolheu. Não eles.
Nossa lealdade deve permanecer com o Imperador.
— E, no entanto, o juramento também diz: ‘Eu sou o guardião de Sua
história’ — disse outro dos Cinco, sua voz suave e uniforme. Seu nome era
Kalan, um homem alto com ombros de touro. — Alguém poderia argumentar
que Sua história é a história dos anjos – o Império, toda a raça, não apenas
um anjo – e que não a estaremos protegendo apropriadamente se deixarmos
terminar, quer isso signifique ou não trair o Imperador.
Mirzet zombou, empurrou a cadeira bruscamente para trás da mesa e se
dirigiu para uma das janelas. Era a única aberta na sala, admitindo uma lança
da luz azul misteriosa de Ostia.
Kalan se virou para Simon e falou novamente. — Os relatórios de
Jessamyn nos dizem que ele se fecha no quarto da menina por horas a fio. Ela
ouve seus gritos e vê o imperador emergir depois, atormentado e
enlouquecido, mas ainda assim a garota resiste a ele. Isso é correto, Simon?
Simon observou o homem friamente. — Sim, é.
— E Ostia cresce a cada dia. Ravikant suspeita que em breve se abrirá o
suficiente para que o tecido do empirium se rompa e as cruciata se espalhe
pelas ruas de nossa cidade. Não é verdade?
— Se você está tentando me levar a trair meu senhor e imperador, você
falhará — Simon disse, sua voz baixa e regular. Ele se levantou da cadeira.
— Foi um erro vir aqui. Foi um erro ainda maior convocar esta reunião. Vou
lhe dar uma chance de me persuadir de que disse essas coisas por engano
devido ao medo e a uma interpretação equivocada do juramento do Invictus.
Se você falhar em me persuadir, eu trarei o Imperador aqui está noite e você
será morto em seus passos.
Os olhos de Kalan brilharam, suas mãos espalmadas sobre a mesa. — A
mente dele está em outro lugar, Simon. Você sabe disso. Você mesmo vê
todos os dias. Todos nós vemos. Essa obsessão em viajar ao passado e se
reunir com seu amor perdido… Isso o arruinou. Se ele fosse ele mesmo, se
sua mente fosse o que já foi, ele teria quebrado a garota Ferracora há muito
tempo. Mas ele não o fez, e monstros nos invadem do mar e do céu. Devemos
agir. Ela deve selar o Portão, e agora Ostia também, ou então será a morte
para todos nós.
Simon esperou, metade de sua atenção no tenso conselho.
A outra metade ouviu Jessamyn.
— O almirante Ravikant já está trabalhando — continuou Kalan, parecendo
mais confiante agora. Ele pensou que seu argumento estava funcionando. —
Ele reuniu seus tenentes mais fortes. Eles acreditam que a força combinada
de suas mentes será suficiente para destruí-lo. Mas, para fazer isso,
precisaremos da sua ajuda.
De repente, Vezdal levantou-se da mesa e correu para as portas. Ela as
chutou e elas se abriram, jogando Jessamyn no chão.
A menina ficou de pé no momento em que Vezdal se lançou, uma lâmina
longa e fina brilhando em sua mão. Jessamyn se esquivou, girou e chutou.
Ela errou, e Vezdal agarrou sua perna, jogando-a com força no chão.
— Garota tola! — Vezdal rugiu. — Escória traidora!
Kalan puxou Vezdal de volta para a sala, fazendo-a girar para encará-lo.
— Podemos usá-la, Vezdal — Kalan sibilou. — Ela foi designada para a
guarda da menina. Foi designada para cuidar de seu irmão. Jessamyn é um
valioso par de olhos no palácio.
Vezdal arrancou o braço dela de suas mãos. — Agora ela é um risco e
devemos eliminá-la.
Mas Jessamyn já havia fugido pelo corredor.
Vezdal correu atrás dela, pegando outra faca em seu cinto. Um dos outros
Cinco, um arqueiro formidável chamado Telantes, seguiu em seus
calcanhares. Simon ouviu o barulho de lâminas contra o chão de pedra, o fino
chicote de flechas.
Kalan se virou para Simon, suas bochechas brilhando de raiva, mas antes
que ele pudesse dizer qualquer coisa, Simon puxou o revólver de seu quadril
e atirou nele.
Antes de Kalan cair no chão, Simon girou e atirou nos outros claramente
entre os olhos – Mirzet na janela e Praxia, ainda sentado à mesa.
Simon atravessou a sala e parou sobre Kalan, que agarrou sua barriga
jorrando. Simon levantou sua arma para um tiro mortal.
— Minhas desculpas, Kalan — disse ele. — Eu não podia permitir que
você trabalhasse contra o Imperador. Você acha que Ravikant seria capaz de
fazer o que o imperador não fez? Sua mente é um cassetete. Ele mataria a
garota na primeira vez que entrasse em seus pensamentos, e então ficaríamos
indefesos diante do enxame que se aproxima.
Então Simon puxou o gatilho. Ele estava fora da sala antes que o eco do tiro
diminuísse.
Enquanto corria para fora do Liceu em busca dos outros, um único
pensamento gritou em sua mente, e mesmo com os pés batendo contra a
pedra, a arma quente na mão, ele não conseguia sacudi-la:
Eu atirei nele bem no estômago.
Eu atirei nele bem no estômago.

•••

Um labirinto de pátios cercava o palácio do Imperador – um que Simon


conhecia bem.
Ele passou por baixo de um arco de pedra de um pátio para o próximo,
mantendo o olhar fixo em Jessamyn. Ela não estava muito à frente dele; ela
havia levado uma flechada na coxa e estava desacelerando rapidamente.
Vezdal saltou das sombras e agarrou o braço de Jessamyn, girando-a.
Jessamyn se esquivou da faca de Vezdal, em seguida, enfiou o cabo da sua
própria no nariz de Vezdal com uma trituração nauseante. Vezdal cambaleou,
seu nariz jorrando sangue, mas ela só hesitou por um momento antes de
correr atrás da forma mancando de Jessamyn.
Uma sombra seguiu rapidamente no topo das paredes do pátio – Telantes,
uma aljava de flechas em suas costas.
Simon cortou outro pátio, então emergiu através de um arco de ferro
gotejando com flores assim que Jessamyn desceu cambaleando um lance de
escadas brancas. Ela correu para ele, e ele a agarrou com força antes que ela
pudesse cair.
— Invictus — ela ofegou, os olhos arregalados, seu rosto pálido pela perda
de sangue. — Ravikant.
— Eu sei — Simon disse calmamente. — Eu estava lá, se você se lembra.
Então ele a empurrou para o lado, mirou e atirou atrás dela. Dois tiros – um
para Vezdal, outro para Telantes. O arqueiro caiu da parede em uma pilha de
flores.
Simon ajudou Jessamyn em direção ao palácio, seu braço apertado em
torno de suas costas. Ele olhou para baixo. A perna dela estava encharcada de
sangue; seus olhos estavam vidrados e sem foco.
— Nossos médicos cuidarão de seus ferimentos — disse, e então tudo ficou
quieto. Um véu desceu sobre sua mente. Ele sabia muito bem. Seu sabor, seu
perfume. O surpreendente poder de sua vontade.
Simon abriu seus pensamentos para Corien, deixando-o ler o que quisesse –
o Rose Room, a frustração de Invictus, a traição de Ravikant.
Entendo. As palavras de Corien flutuaram em um rio branco.
E então estavam no palácio, tropeçando em uma pequena sala perto da
entrada sudeste. Corien andava de um lado para o outro, a camisa branca
aberta e solta sobre a calça escura, o cabelo uma bagunça emaranhada. Ele
tinha estado com Eliana; seus olhos tinham um brilho enlouquecido que só
aparecia depois de um dia trancado em seus quartos.
As enfermeiras do palácio se apressaram, acomodaram Jessamyn em um
divã e começaram imediatamente a cuidar de seus ferimentos.
Corien estava de pé sobre ela, embora Simon soubesse que ele não estava
olhando para ela. Ele podia sentir a distração desenfreada na mente de
Corien, como seus pensamentos estavam inteiramente envolvidos em torno
de duas mulheres – uma morta e outra perto disso.
— Obrigado, Jessamyn, por ter vindo me avisar — Corien disse
calmamente. Ele pressionou os lábios contra a mão dela, demorando-se tanto
tempo que as enfermeiras – humanas, de olhos claros, roubadas por sua
habilidade de curar – trocaram olhares nervosos.
Simon pigarreou e deu um passo à frente. — Meu Senhor? Quais são suas
ordens?
— Minhas ordens? — Corien se virou para encará-lo. Através das janelas, a
luz de Ostia o pintou primorosamente. Suas bochechas brilhavam como se ele
as tivesse pintado com ruge feito de estrelas.
— Minhas ordens são para abrir todas as portas para Vaera Bashta — ele
disse baixinho, sua voz fazendo cada palavra estremecer. — Cada um de seus
prisioneiros será livre para fazer o que quiserem. Cada casa, cada corpo, cada
cama é deles para reivindicar. Não há mais celas. Não há mais guardas.
Quero que minhas ruas brancas fiquem vermelhas em sua homenagem.
Claramente, esta cidade está suja de maneiras que eu não sabia. É hora de
limpar.
Então ele agarrou seu casaco do chão e saiu do quarto. Simon foi atrás dele,
mas Jessamyn segurou seu braço quando ele passou.
— Mas Remy ainda está no Liceu — ela disse, sem fôlego, seus olhos
turvos de dor, sua trança mole de suor. — Pegue-o, por favor, e traga-o aqui
antes que a prisão seja aberta. Se ele morrer antes de Eliana selar Ostia…
Simon pegou uma seringa cheia de sedativo da mão da enfermeira mais
próxima e a esvaziou no braço de Jessamyn. Ela ficou mole no divã, e ele a
deixou com as enfermeiras silenciosas para correr atrás de Corien pelo
palácio.
27
Navi

“Eu sei que você sofre. Eu sei que você olha para a vida que vivemos e o
que o mundo se tornou e sente a raiva queimar em seu coração. Mas
pense em como eu te amo, e como Nerida ama Tameryn, e como as
famílias que vimos amam umas às outras como as famílias sempre
fizeram. O amor é a única força constante que nenhuma violência ou
desespero pode diminuir. Devemos nos apegar à luz desta verdade,
Gato, mesmo quando o mundo escurece. Especialmente então.”
— Carta aprovada de São Ghovan, o Destemido, para sua irmã
Catarina, arquivada na Abóbada das Idades, em Orline, capital de
Ventera

Durante o mês passado, Navi e seu pequeno exército transportaram quase


todos os seus suprimentos escassos e a maior parte do número de seu
acampamento no Pântano Kavaliano para a enseada escondida de Ysabet.
Em quatro dias, o navio estaria pronto para partir. Uma conquista incrível, e
que tanto o pântano quanto a enseada fervilhavam de energia nervosa.
Navi não estava imune. Ela trabalhou com pouco descanso, dificilmente
permitindo que seu suor secasse entre as tarefas. Preparar pacotes de trapos,
ervas engarrafadas e telas de lona; empilhar pacotes embrulhados de carne
seca, sementes e bolos de arroz; sacos de boxe de grãos e aveia. Grande parte
do último mês foi gasto com cuidado e silenciosamente visitando um padrão
estrategicamente absurdo de mercados nas ilhas de Hariaca e Laranti, até
mesmo ocasionalmente se aventurando de volta ao porto de Algare, onde
aportaram pela primeira vez depois de deixar Meridian.
Agora, tinham um suprimento próprio decente para adicionar ao de Ysabet,
e Navi podia respirar mais facilmente, sabendo que seu povo não seria um
fardo. Se ela fosse liderar Ysabet e sua tripulação em uma missão mortal
através do oceano para Elysium, pelo menos eles seriam alimentados
confortavelmente nesse ínterim – se as lojas não fossem ruins, e se não
perdessem tudo em uma tempestade.
Navi afastou essas preocupações da mente e se enfiou na barraca, em busca
de um pedaço de papel para fazer anotações. Seus olhos ardiam de falta de
sono, mas sempre que tentava, o descanso vinha apenas em acessos. Todos
estavam sentindo a tensão – exaustão, medo e uma espécie de alegria
selvagem e vertiginosa. Por fim, iriam para o mar, invadiriam a casa do
Imperador e lutariam pela Rainha do Sol. Seriam lendas em qualquer mundo
que sobrevivesse. Seus nomes eram sussurrados nas mesas, murmurados em
orações.
Primeiro, é claro, tinham que descobrir como realmente chegar até Eliana.
Não seria uma tarefa simples romper as paredes da cidade do imperador.
Navi riu para si mesma, enxugando a testa. Ela precisava desesperadamente
dormir. E, de qualquer maneira, tinham toda a viagem oceânica para
arquitetar um plano.
Gritos alegres ecoaram além da tenda, seguidos pelo arrastar de barcos
pelas margens lamacentas do acampamento. A tripulação de Ysabet, veio
para a remessa daquele dia.
Navi congelou, o papel na mão. Ela tentou escutar além de seu coração
acelerado de repente, mas podia ouvir apenas sua própria ansiedade, a
pulsação quente em seu sangue.
Um momento depois, a aba da tenda se abriu e Ysabet entrou, trazendo
consigo o cheiro salgado do mar. Cabelo branco úmido enrolado em seu
queixo, e suas bochechas estavam vermelhas do vento.
— Está tudo bem — disse, com as mãos nos quadris, a espada embainhada
pendurada no cinto, as mangas brancas enroladas até os cotovelos. Ela
examinou a pequena tenda de Navi como se fosse o convés de seu próprio
navio. — Estaremos prontos para partir em quatro dias. Uma vela noturna, o
que não é minha preferência, mas até que estejamos longe das ilhas, teremos
que cuidar muito dos navios imperiais. Não que a Luz da Rainha não possa
lutar por si mesma – ela pode, ela é uma feroz loba de um barco – mas é
melhor evitar a batalha até que não possamos mais.
Navi estava se movendo inutilmente pela tenda, endireitando papéis,
colocando o caderno de Hob de volta sob o cobertor, mantendo o rosto
cuidadosamente em branco. Ela não suportava olhar para Ysabet. Há um mês,
fervilhava de um desejo que não sentia desde que se deitou com uma garota
aos quatorze anos. E na esteira de seu desejo havia um medo terrível de que
Ysabet risse na cara dela se o confessasse. Não importa que muitas vezes ela
sentisse os olhos de Ysabet sobre ela enquanto trabalhavam juntas, e que às
vezes quando suas mãos se tocavam, era como uma isca pegando fogo.
Mas então uma das palavras de Ysabet se fixou na mente inquieta de Navi.
Luz da Rainha. Ela se endireitou para olhar para Ysabet, cujo sorriso maroto
iluminou seu rosto.
— Você o nomeou — disse Navi fracamente, sem fôlego. — Você o
nomeou em homenagem a Eliana.
— É um bom nome, não é? — Ysabet piscou. — Eu ganho um beijo
finalmente, então?
Um calor lento derramou pelos membros de Navi. Seus olhos se encheram
de lágrimas, e ela não conseguia parar de olhar para o rosto de Ysabet,
faminta pela rapidez. Sua mandíbula e maçãs do rosto afiadas, seus olhos
castanhos vivos.
A expressão presunçosa de Ysabet vacilou. — Você está chorando. São
lágrimas boas ou ruins?
Navi balançou a cabeça e correu para ela, e as duas se chocaram como se
estivessem naquele curso a vida toda. Ela encontrou a boca sorridente de
Ysabet com a sua, colocou os braços em volta dos ombros de Ysabet.
— Graças a Deus — murmurou Ysabet contra os lábios de Navi, com as
mãos na cintura, e então não havia mais ar para falar. Ysabet beijava como
fazia tudo o mais: com uma confiança fácil que transformou os joelhos de
Navi em líquidos. Sensível no início, mordidelas provocantes que deixaram
os lábios de Navi inchados e zumbindo. E então, com um rápido olhar
acalorado, Ysabet deslizou a mão para cobrir a parte de trás da cabeça de
Navi, e Navi se esticou na ponta dos pés para encontrá-la, e isso era mais
profundo, isso era febril. As mãos de Navi agarraram as mangas de Ysabet, e
a língua de Ysabet provocou os lábios de Navi até que eles se abriram.
Com um gemido, Ysabet a conduziu gentilmente até a pequena pilha de
caixotes no canto da tenda, e Navi subiu em cima deles como se fosse a coisa
mais natural do mundo. Imediatamente, ela enganchou as pernas em torno
das coxas de Ysabet, puxando-a para perto. O calor dela, as linhas fortes e
quentes de seu corpo. Ysabet agarrou os quadris de Navi e puxou-os para
mais perto. Navi deixou cair a cabeça para trás enquanto a boca de Ysabet
viajava por sua garganta. Ela enfiou os dedos pelo cabelo de Ysabet,
encantada com sua maciez. Ela queria enterrar o rosto nele.
A manga de sua túnica escorregou. Ysabet beijou seu ombro nu.
— Eu não o nomeei assim apenas para entrar na sua cama — Ysabet
murmurou contra sua pele.
Navi sorriu, seus olhos se fechando. — Eu não tenho cama.
— Tem sim, no meu navio. — Ysabet ergueu o rosto, os olhos cheios de
estrelas. — É grande. Quarto da capitã e tudo mais.
Então o rosto de Ysabet ficou sério. Ela encostou a testa na de Navi
enquanto recuperavam o fôlego e, com ternura, afastou os cabelos negros e
sedosos de Navi de sua bochecha. Meses depois de seu sequestro por Fidelia,
seu cabelo finalmente alcançava seus ombros.
— Eu não quero apenas mentir com você, Navi — sussurrou Ysabet. —
Não se trata apenas disso.
Navi deu beijos suaves nas bochechas de Ysabet, seu coração doeu quando
Ysabet ergueu o rosto, os olhos fechados, como uma flor buscando o sol.
— Eu sei — disse Navi calmamente. — É o mesmo para mim. — Ela
estremeceu quando Ysabet roçou a bainha de sua túnica, os dedos brincando
em sua cintura nua. — Só muito tempo atrás, quando eu era bem jovem, fui
tocada assim por alguém que eu queria. Eu tinha esquecido que poderia ser
tão bom.
Ysabet fez uma pausa e se afastou dela. Seus olhos estavam graves. —
Tantas histórias que ainda temos que contar uma a outra.
Navi tocou seu rosto com um sorriso suave. — Teremos muito tempo para
contar histórias enquanto cruzamos o oceano em seu lindo navio.
— Diga isso de novo.
O sorriso de Navi cresceu. — Seu lindo navio.
Ysabet suspirou. — Adoro ouvir você dizer essas palavras maravilhosas.
Um grito perfurou o ar, seguido por outro. Navi fixou o olhar em Ysabet
por um instante e então saíram correndo da tenda. Do lado de fora, suas
equipes pegaram as armas e se esforçavam para esconder os suprimentos.
Malik puxou sua espada, sua expressão sombria. Hob preparou seu revólver.
Navi semicerrou os olhos na escuridão do pântano, Ysabet logo atrás dela.
Era noite; a luz que passava pela espessa rede de galhos acima era fina e
amarela. Navi olhou para a fissura, mas parecia a mesma de sempre – um
olho roxo fino com listras de luz inconstante, pairando silenciosamente a
várias centenas de metros de distância.
Um barco se aproximou, longe o suficiente da fissura para que Navi
pensasse que os passageiros talvez nem o tivessem visto. Alguém estava
dentro do barco, empurrando-o para a frente através da água turva com um
remo comprido.
Navi ficou tensa. Era apenas uma pessoa, um barco? Ou o primeiro de
muitos? Humano ou anjo?
Então o ar mudou como se fosse uma brisa. Emoldurada pelo pântano
parado, a perturbação chamou a atenção de Navi imediatamente. Sua
respiração engatou, pois ela conhecia aquela distorção, aquela mancha tênue
no ar que esvoaçava e mudava, sempre mudando.
Sua Alteza. A voz de Zahra transbordou de alívio. Finalmente.
Navi avançou com um grito agudo. — Não atire! Abaixem suas armas!
Malik olhou para ela, carrancudo, sua espada ainda levantada.
Navi passou por ele, a risada explodindo de sua garganta, e acenou com os
braços em saudação. Ela ouviu o momento em que Hob reconheceu o
remador – um homem baixo e esbelto, de pele clara, com cabelo cor de cobre
desgrenhado. Um grito foi sufocado, e então Hob se juntou a Navi na costa,
mergulhando na lama sem se importar. Ele agarrou o barco e arrastou-o pelo
resto do caminho até a terra.
O sorriso de Patrik era como o nascer do sol. Ele jogou o remo na margem
lamacenta, uma cicatriz desconhecida se estendendo por sua bochecha. Navi
apertou a boca com as mãos, sorrindo em meio às lágrimas. Patrik mudou
muito desde aquele dia, meses atrás, quando ela o conheceu no esconderijo
da Coroa Vermelha chamado Crown’s Hollow. Ele usava um tapa-olho preto
desgastado e estava muito magro, seu corpo marcado com cicatrizes recentes.
Mas ele estava inteiro e vivo.
Hob segurou o rosto de Patrik com as mãos trêmulas e escuras, e então,
ternamente, como se temesse que isso encerraria o sonho, o puxou para perto,
envolvendo-o em seus braços. Hob enterrou o rosto no cabelo selvagem de
Patrik, agarrou as dobras esfarrapadas de sua camisa. Hob era um homem
quieto, mas seus soluços altos eram irrestritos, explodindo em risadas
incrédulas.
Patrik pressionou seu rosto contra o ombro de Hob, seus olhos fechados.
Ele estava murmurando algo quase inaudível sob o som de alívio de Hob.
Seus dedos acariciaram a nuca de Hob. Navi mal podia vê-lo por cima da
grande elevação do ombro de Hob, mas ela conseguiu chamar sua atenção.
Ela se virou para os outros, que estavam assistindo. Malik estava radiante,
sua espada esquecida.
— Vão em frente — ela murmurou, gesticulando para que todos se
afastassem. — Dêem um momento a eles.
Imediatamente, seu pequeno exército de perdidos obedeceu, voltando às
suas tarefas com a tripulação de Ysabet – exceto a própria Ysabet, que estava
olhando fixamente para as árvores.
— Algo está aqui — ela murmurou, a mão apoiada no punho da espada. —
Algo angelical.
Navi tocou no braço dela. — Sim, mas ela é uma amiga. Um espectro
chamado Zahra. Ela me salvou uma vez, e Eliana mais vezes do que isso.
Então Navi se virou para Zahra – um borrão suave no ar, sem rosto e sem
forma. Ao contrário de Eliana, Navi não conseguia ver o eco da verdadeira
forma de Zahra. Mas dentro de sua mente, Zahra estava clara como o céu sem
nuvens.
— Antes de eu dizer o quanto estou feliz por finalmente ver você — disse
Zahra, não em pensamento, mas em voz alta, sua voz profunda e suave rica
de alegria, — e antes de eu dizer onde estivemos e o que temos visto, devo
compartilhar novidades com você, Sua Alteza.
Ysabet soltou uma maldição baixa. Com os olhos arregalados, ela deu um
passo para trás de onde Zahra derivou, embora seu olhar não tenha pousado
exatamente nela.
— Eu não entendo — murmurou Ysabet. — Nunca ouvi um anjo falar sem
um corpo.
— A mente pode realizar muito, se você tiver vontade para isso — disse
Zahra afetadamente. — O que você está ouvindo é uma aproximação e
projeção da voz que eu já possuía, amplificada e ordenada por sua própria
mente. Embora nem todos os espectros possam recriar essas coisas, minha
mente, felizmente, é forte o suficiente para isso.
Ysabet piscou para ela, depois olhou para Navi com uma expressão tão
confusa que Navi teve que conter uma risada.
— Falaremos mais sobre isso mais tarde — garantiu Navi, tocando
suavemente em seu braço.
— Agora. Minhas notícias. — A forma de Zahra no ar, por mais vaga que
fosse, pareceu se endireitar. — Trago notícias do Profeta. Eliana ainda está
viva. Ela luta contra o Imperador. Com a orientação do Profeta, ela está
aprendendo a usar seu poder secretamente. Ela está trabalhando para abrir
uma enorme fissura entre Avitas e o Abismo e em breve desencadeará hordas
de cruciata em Elysium.
Uma onda de emoção varreu aqueles que se reuniram para ouvir.
Navi se sentiu louca de felicidade. Ela colocou a mão na garganta, as
lágrimas subindo rapidamente. — Oh, Zahra. Graças a Deus. Eliana vive. Ela
vive, doces santos. O que mais o Profeta disse? E quem é o Profeta? Você
sabe?
— Sim — Zahra respondeu, mas não disse mais nada.
Navi não se importou; seu corpo estava explodindo de luz. — Você deve
nos contar tudo o que sabe. Onde você e Patrik estiveram, o que você viu.
Como podemos ajudar Eliana. Temos um navio e ele é rápido. Temos
dezenas de soldados prontos para lutar. — Ela se virou, encontrou as mãos de
Ysabet e apertou-as, sorrindo. — Eliana está viva. Ela está lutando. Eu sabia
que ela iria, e ela está. O empirium a está guiando, e…
Quando a voz de Navi falhou e ela não conseguia mais falar, Ysabet tocou
seu rosto, sorrindo suavemente. — E agora Luz da Rainha nos guiará até ela.

•••

Navi não lamentou deixar o Pântano Kavaliano para trás, embora isso
significasse viver em um navio que aparentemente estava determinado a
matá-la.
Com a boca azeda pelo gole que Ysabet lhe dera, Navi tentou finalmente se
mover. Nos primeiros dois dias após o desembarque, ela não conseguiu sair
da cama e do balde ao lado.
Mas a corrente de ar parecia ter acalmado seu estômago, e ela deixou sua
cabine para o convés. Seus ventos tiveram sorte até agora, levando-os para
longe de Vesper a uma velocidade que deixou Ysabet em êxtase. Navi estava
na porta do porão principal, de olhos fechados. O ar fresco a invadiu,
trazendo consigo os cheiros de sal e da resina espessa e oleosa que a
tripulação de Ysabet usava para polir o convés.
Navi abriu os olhos e observou seu pessoal trabalhar. Seu povo. A
tripulação de Ysabet de sessenta, e seu próprio exército de quarenta e sete.
Cento e sete humanos e um único espectro contra o oceano, a frota imperial e
todos os horrores que os aguardavam em Elysium.
Ela passou pelas imagens escuras que suas preocupações evocavam e
caminhou pelo convés, aprendendo seus passos e curvas, admirando o brilho
suave de suas grades. A tagarelice diligente da tripulação acompanhou sua
patrulha. Ela ficou feliz em ouvir alguma animação em suas vozes, agora que
as ilhas Vesper não eram mais visíveis no horizonte. Nenhum navio imperial
os estava caçando; nenhum perigo beliscava seus calcanhares.
Ainda não.
Em seguida, Navi olhou para a proa do navio e para a elaborada figura de
proa esculpida que os apressados carpinteiros de Ysabet haviam recebido
ordens de fabricar com muito pouco aviso: uma mulher, rosto erguido, braços
estendidos, tentando alcançar o céu. Seu cabelo caía em ondas e cachos até a
cintura, e em torno de sua cabeça havia uma coroa de raios largos.
Ao lado da figura de proa, o ar mudou estranhamente.
Navi parou por um momento. O espectro tinha contado a ela tudo o que
tinha acontecido nos meses desde que eles se viram pela última vez, e Navi
ainda estava tentando absorver tudo. Zahra, presa por um tempo em uma
lâmina maligna até que Eliana trouxe Remy de volta da morte e libertou
Zahra no processo. Uma reunião com Patrik e os espiões da Coroa Vermelha
na cidade de Festival. A noite do Jubileu do Almirante, quando Festival tinha
caído para uma força angelical com a intenção de encontrar Eliana por fim e
trazê-la para o Imperador.
E agora, longas semanas depois, Zahra e Patrik, os únicos sobreviventes
daquele dia terrível, finalmente chegaram para se reunir aos amigos.
Navi só gostaria de ter sido poupada de tudo o que acontecera nesse
ínterim.
Ela se juntou a Zahra, permanecendo em silêncio ao lado dela enquanto se
orientava na proa balançando do navio. Ela ansiava por ver algo mais do
espectro do que essa onda de ar.
A voz de Zahra veio melancólica. — Eu também desejo isso, Alteza.
Os respingos do mar subiram das ondas abaixo, beijando o rosto de Navi
com uma névoa fria. Ela agarrou o corrimão, seu corpo apertando com força.
— Você não precisa ficar aqui comigo — disse Zahra. — Deite-se, se
desejar.
— Ysabet me deu um caldo para me acalmar até encontrar minhas pernas
do mar — disse Navi, cansada. — Eu nunca tinha ouvido falar de pernas do
mar antes. O termo evoca imagens divertidas. Não tenho certeza do que eu
teria. Nadadeiras, talvez, ou barbatanas como uma donzela do mar. — Ela
torceu o nariz. — Espero que não sejam tentáculos.
Zahra deu uma risada indiferente e depois ficou em silêncio mais uma vez.
Tantos sentimentos sombrios fermentaram ao seu redor que até Navi,
inexperiente como era quando se tratava de decifrar os sentimentos dos anjos,
podia sentir a força deles.
Ela olhou para o fantasma, hesitou, então estendeu a mão, palma para o
céu. — Posso, Zahra?
Uma pausa, e então Zahra disse com voz rouca: — Por favor.
Navi moveu os dedos pelo ar onde o eco de Zahra flutuou. Em sua mente
cansada, ela colocou a imagem de como conhecia Zahra, como Eliana
descreveu em suas visões. Ela imaginou um anjo alto com pele negra rica e
cabelos brancos esvoaçantes, asas brilhantes e chamejantes, e então imaginou
puxando aquele anjo para um abraço caloroso. Ela beijaria a bochecha de
Zahra, se pudesse. Acariciaria seus braços até dormir.
Navi estremeceu, sua pele formigando com o frio de Zahra. Tocá-la era
como passar os dedos por água gelada, aveludada e flexível.
A voz de Zahra estava rouca de emoção. — Obrigada, Navi. Foi uma
grande gentileza. E eu vi isso vividamente. Você pode não estar acostumada
a falar comigo dessa maneira, mas sua mente é afiada e clara. Com prática,
você se destacaria, eu acho.
— Você tem minha permissão para falar diretamente à minha mente, Zahra
— ofereceu Navi. — Deve ser mais cansativo para você falar assim.
— Cansativo, sim, mas eu gosto de ser capaz de projetar pelo menos um
pouco de mim de volta ao mundo físico. Além disso, é mais respeitoso, eu
acho, preservar essa distância. Especialmente porque muitos da minha
espécie não o fazem.
— Muito bem. — Navi observou a água, escolhendo cuidadosamente as
palavras. — Você pode ir embora, se quiser. Você pode viajar mais rápido do
que nós. Você anseia por vê-la, eu sei.
A risada de Zahra foi amarga. — Anseio? Uma pequena palavra para o que
sinto. Uma garota que eu amo como a minha própria filha que foi arrancada
de mim diante dos meus olhos. Eu os vi levá-la naquela praia em Festival.
Observei o navio do almirante se afastar de mim e não pude fazer nada. O
Imperador me manteve longe dela. Eu gritei contra ele. Eu uivei por ela. Não
serviu para nada. Eu falhei com ela.
— Oh, Zahra, você não…
— Não. Não me console com isso.
Navi esperou um momento. — Eu falo sério. Vá até ela, se isso te ajudar.
— Eu não posso. O Profeta proíbe.
Isso surpreendeu Navi. Ela franziu a testa para o lugar onde ela imaginou
que o rosto de Zahra estaria. — Por quê?
— Devo ficar com vocês — Zahra disse categoricamente, — e manter seu
navio escondido, depois ajudá-los a navegar no Mar de Silarra, que ficará
lotado de navios imperiais. Será necessário muito esforço para conseguir isso,
mas devo fazê-lo mesmo assim. Eliana não tem amigos em Elysium. Não há
coroa vermelha, ninguém que a ame. Ela não pode fazer o que deve ser feito
sozinha. Você e Ysabet, sua tripulação, seu exército de perdidos, Patrik e
Hob… Ela precisará de todos vocês, quando chegar a hora. Não podemos dar
a ela o exército que ela merece, mas podemos dar a ela nós mesmos. E assim
ficarei aqui e esconderei você de procurar olhos negros.
Um momento se passou enquanto Navi digeria isso. — Você pode fazer
isso? Esconder um navio inteiro?
— É para isso que nasci. Não para me vingar dos humanos ou servir a um
imperador louco. Eu nasci para servi-la, para amá-la. Isso é o que eu
acredito. Eu os levarei até a Rainha do Sol para que vocês possam lutar ao
lado dela e ajudá-la a finalmente vencer esta guerra. Esse é o grande culminar
de todos os meus longos anos, a recompensa por aquela era sem fim nas
profundezas. Para servir a grande esperança do mundo e proteger seus
amigos com toda a força concedida pelo poder que me resta.
Navi olhou para as mãos através de um brilho de lágrimas. Humilde, ela
encontrou sua voz lentamente. — Você é muito corajosa, Zahra. E se você
discutir comigo, vou ficar com raiva.
Zahra riu. Uma frieza tenra roçou o braço de Navi.
Em silêncio, observaram as ondas escurecerem enquanto atrás delas o sol se
juntava ao horizonte. Enquanto a luz diminuía, Navi fixou uma imagem em
sua mente e a enviou desajeitadamente na direção de Zahra: ela mesma, e
Zahra como antes, parada ao lado dela. A cabeça de Navi descansando em
seu braço, seus dedos amarrados em amizade, seus corações gêmeos
devotados ansiando pelo leste.

•••
A noite estava escura quando Navi finalmente se sentiu bem o suficiente para
visitar os aposentos da capitã. A noite estava tranquila. Os membros da
tripulação estavam em seus postos designados, as ondas firmes enquanto
batiam e enrolavam.
Navi desejou que seu próprio coração estivesse firme. Como vibrava, como
apertava seu peito e garganta. Ela tocou a trava da porta de Ysabet. Vagando
pelo convés depois de deixar Zahra, ela deixou sua mente fazer perguntas,
imaginando todas as prováveis desgraças e possíveis triunfos. Havia pensado
em tudo o que acontecera e em tudo o que aconteceria. Zahra contara a ela
sobre Harkan, como ele morrera sob seus cuidados. Como Simon ficou de
olhos frios no cais e matou seus amigos e aliados. Um animal de estimação
do Imperador, declarando devoção mesmo enquanto tramava uma traição.
Navi não conseguia pensar muito nisso. Ela sabia dos sentimentos de Eliana
por Simon. A morte na praia teria sido horrível de testemunhar, a
compreensão de seu fracasso um soco no estômago – mas assistir Simon
matar seus amigos, entender quem realmente tinha sua lealdade, teria sido a
devastação mais cruel. Era uma coisa rara, encontrar alguém em quem
confiar, alguém para receber seu amor e protegê-lo. Navi conhecia essa
verdade muito bem. E então ter essa confiança quebrada, aquele amor
provado uma mentira…
Navi rejeitaria totalmente a violência, se pudesse. Mas se ela encontrasse
Simon novamente, ela o mataria.
Ela bateu na porta de Ysabet e entrou.
Ysabet estava sentada à sua mesa, sua superfície repleta de estoques de
alimentos, registros de armas, mapas do mar e estrelas.
Ela deu as costas ao trabalho com um largo sorriso. — Aí está você. Como
você está se sentindo? Você gostaria de mais do meu chá maravilhoso?
Navi continuou antes que ela perdesse a coragem. Uma coisa rara, de fato,
encontrar alguém em quem pudesse confiar. Alguém que talvez recebesse seu
amor e o protegesse.
— O que eu gostaria — disse, com a voz trêmula apenas um pouco, — é
fazer algo que temo que possa parecer presunçoso.
Imediatamente, a sala mudou, o ar entre elas ficando mais forte. Uma corda
dourada, esticada e cantante.
Ysabet se recostou na cadeira, seus olhos castanhos brilhando à luz de
velas. — Vá em frente, princesa.
Navi parou por um momento para respirar, para firmar as mãos, e então
desfez o fecho da capa. Caiu a seus pés. — Navegamos para a guerra e,
possivelmente, para a morte.
— Sim — concordou Ysabet, extasiada.
— Eu disse a você em minha tenda que já faz muito tempo que não sou
amada. — Navi tirou as botas, desabotoou as calças e as tirou. Com as pernas
nuas em sua túnica, ela observou a boca de Ysabet se abrir, a curva de seus
lábios.
O peito de Ysabet subiu mais rápido. — Sim.
Navi desabotoou a gola da túnica e a puxou pela cabeça. Nua, ela fez uma
pergunta silenciosa a Ysabet.
— Sim — sussurrou Ysabet, e então observou maravilhada como Navi se
acomodou suavemente em volta.
As mãos de Ysabet vieram até ela de uma vez – uma em seu quadril, a
outra acariciando as pontas de seu cabelo. — Meu Deus, Navi — disse com
voz rouca. — Você vai me matar esta noite. Olhe para você.
— Sim, olhe para mim. Me olhe enquanto eu te falo isso. — Navi acariciou
os arcos de seda das sobrancelhas claras de Ysabet. — Eu também disse em
minha tenda que não se tratava apenas de mentir para você, e você disse o
mesmo.
Ela nunca tinha visto o rosto de Ysabet tão suave, como se todas as suas
farpas, toda a sua bravata, tivessem derretido com o toque de Navi.
— Sim — ela sussurrou.
Navi baixou a boca para a têmpora de Ysabet. — É possível amar alguém
que você conhece há apenas algumas semanas?
— Sim. Sim. — Ysabet procurou o rosto de Navi, desajeitada em seu ardor.
Ela beijou o queixo de Navi, seu queixo, seu pescoço.
— Se vou morrer logo — disse Navi, fechando os olhos, — gostaria de
enfrentar a morte com a lembrança de você em minha mente.
A voz de Ysabet flutuou até ela, cheia de emoção. — Sim. — Ela deslizou
a mão pelas costas nuas de Navi, traçando a linha cicatrizada de sua coluna.
— Sim. — Ela puxou Navi para um beijo e Navi choramingou contra sua
boca, pois se sentia sedosa e corada nos braços de Ysabet, segura como
raramente se sentia. Mesmo na guerra, pode haver isso – amor, esperança e a
simplicidade do prazer.
Ela riu, a alegria borbulhando até os dedos dos pés. — Você não pode dizer
mais nada? — ela brincou.
Ysabet tocou o rosto de Navi, olhando para ela como se contemplasse todas
as maravilhas do mundo. — Beije-me — disse ela, um pequeno apelo em sua
voz, uma pequena curvatura incrédula, como se ela não pudesse acreditar no
que segurava.
Navi sorriu, passou os dedos mais uma vez pelos cabelos brancos e macios
de Ysabet e se curvou para obedecer.
28
Eliana

“Não posso contar ao meu pai ou aos meus irmãos, ainda não, pois não
quero criar esperanças prematuramente. Mas fui visitada em segredo
por um dos tenentes do imperador, e ele diz que sou bonita o suficiente
para ganhar um lugar no palácio do imperador como uma convidada
favorita! Ele pode me chamar hoje, na verdade, e eu sei exatamente que
vestido usar, vermelho como…”
— A última entrada no diário de Demetra Vassos, cidadã humana de
Elysium, datada de 3 de abril, ano de 1018 da Terceira Era

No sonho tranquilo e sem forma de Eliana, uma única palavra: Corra.


Seus olhos se abriram. Alguém a estava arrastando pela cama, levantando
seus travesseiros. Ela tentou se soltar e não conseguiu. A mão em torno de
seu tornozelo era firme e fria.
Ela viu o rosto de Corien, o quão tonto era, a extremidade maníaca de seu
sorriso. Seus lençóis emaranhados em torno de suas pernas. Ele a puxou com
força pela beirada da cama e se afastou, deixando-a cair.
— Levante-se. E faça alguma coisa com esse seu cabelo emaranhado. Você
parece feroz. — Ele estava vasculhando seu guarda-roupa enorme,
empurrando vestido após vestido. — Eu tenho um presente para você, mas
você deve estar devidamente vestida para recebê-lo.
Eliana levantou-se com dificuldade e olhou rapidamente ao redor de seus
aposentos. Seus assistentes adatrox ficaram com os olhos vazios em suas
vestes brancas. Jessamyn não estava lá, sem dúvida dormindo no Liceu. A luz
de Ostia pintou as janelas, lançando longas sombras no chão. Ela enterrou seu
orgulho profundamente e não sentiu nada quando olhou pela janela para a
enorme mancha escura de luz raivosa fixada no céu noturno.
Uma sombra cintilou no canto do olho. Ela se virou para encontrar a porta
aberta para seus quartos – e uma silhueta familiar.
Ela não via Simon há muitos dias para contar. Não estava preparada para
isso. Seu peito se inflamou e ela voou para ele, sua raiva limpa e afiada, seu
punho erguido para atacar. Ela não invocaria involuntariamente seu poder,
não esta noite. Sua fúria queimava dentro de uma gaiola inquebrável. Ele não
poderia chegar até ela, mas ela iria chegar até ele.
Simon a bloqueou com o antebraço, e então algo a agarrou, puxou-a para
longe dele e a jogou no chão.
Ela caiu com força, a cabeça batendo contra o azulejo, então olhou para o
mundo inclinado para ver a expressão feroz de Corien. As formas afiadas
brancas de suas maçãs do rosto, seus olhos negros não refletindo nada da luz
de Ostia. Ele não se vestia de acordo com seus padrões habituais. Sua fina
camisa branca estava solta em torno de seu torso pálido. Seu cabelo estava
despenteado e seus lábios exibiam uma mancha cor de vinho.
— Vista-se — ele disparou.
Um vestido esperava por ela na cama, brilhando como uma pele de jóias
descartada. Ela o tinha visto pendurado em seu guarda-roupa, mas nunca o
havia tocado. Um corpete de gola alta em vermelho, escuro como uma poça
de sangue e pesado com contas. Uma faixa grossa de seda preta em volta da
cintura, presa com um fecho de penas douradas. A renda preta enfeitava um
decote estreito e profundo, e a saia era um mar de camadas de seda carmesim.
Era um vestido adequado para a Rainha de Sangue.
Ela hesitou, com um medo irracional disso.
Passos rápidos cruzaram o quarto, e então Corien a empurrou contra a
cama, rasgando a manga de sua camisola. Ela se desvencilhou dele e então,
sem pensar, se virou e deu um tapa nele.
Ele sorriu, a fina linha vermelha onde o gesso cortou sua bochecha
desaparecendo rapidamente, então a agarrou e a virou, empurrando seu rosto
para baixo no tecido brilhante do vestido.
— Estou esperando — ele sussurrou contra seu ouvido, seu hálito quente e
sujo. Ele esteve bebendo, talvez festejando em um de seus refeitórios com
quaisquer cidadãos sortudos que foram selecionados para assistir ao
entretenimento daquela noite.
Então ele a puxou para cima e a empurrou com força em direção ao centro
da sala, o vestido agarrado em suas mãos. À luz de Ostia, ela se vestia sem
vergonha. Ela encontrou a silhueta de Simon, o brilho fraco de seus olhos.
Ela se agarrou a isso, sustentando seu olhar enquanto se atrapalhava com os
ganchos de seu corpete. Deixe os dois a olharem. Deixe-os ver cada cicatriz,
cada curva. Toda a vergonha de sua própria nudez tinha sido espancada há
muito tempo. Mas seus dedos tremeram quando ela amarrou a faixa, e se
sentiu pior com as dobras do vestido ao seu redor, este vestido que a
lembrava das pinturas na galeria de Corien. Ela teria preferido não vestir
nada.
— Finalmente. — Corien agarrou seu braço, puxando-a com ele enquanto
caminhava em direção à porta. Ele não lhe deu tempo para encontrar sapatos.
— Nós temos um compromisso. Você quase nos atrasou.
Eles saíram de seus aposentos para o corredor. O palácio zumbia com
barulho. Servos e foliões passavam apressados por eles em túnicas simples e
casacos bem passados. Rostos abatidos, sorrisos desesperados lançados no
caminho de Corien.
Simon os seguiu enquanto desciam uma das grandes escadarias do palácio.
Um hall de entrada brilhava, salões de baile bem iluminados circulando-o
como pedras preciosas em uma coroa. Um medo frio crescia dentro de Eliana,
tão agudo e rápido que ela sentiu uma vontade absurda de rir.
Corien a puxou escada abaixo, atravessou o corredor, passou por um
conjunto de portas e saiu para a noite. Seu aperto em seu pulso era punitivo,
seu ritmo implacável. Ela tropeçou atrás dele, sem fôlego – e então, no
labirinto de pátios e jardins que circundavam o palácio, Simon fez uma coisa
extraordinária.
Ele agarrou o braço de Corien, fazendo com que todos parassem.
— Meu senhor — disse, inclinando-se mais perto, — eu acredito que isso
seja um erro grave. Se ela for morta…
Corien deu-lhe um tapa nas costas da mão com tanta força que ele
cambaleou, depois se segurou no tronco fino de uma topiaria quadrada e bem
cuidada.
— Ela não vai ser morta — Corien gritou, retomando seu ritmo furioso com
Eliana a reboque. — Eu não quero te matar. Eu, querida? Não. Eu
simplesmente acho que você deveria ter uma boa visão disso. Acho que você
deveria sentir isso em seus ossos. Eu acho que quando vierem atrás de você,
você não será capaz de ajudar na luta contra eles. Você vai ter que fazer, ou
eles vão rasgar você com os dentes. E depois? Você vai explodir, sua criança
perversa. Você vai sangrar poder em cada rua.
— Quando quem vier por mim? — Eliana perguntou. Ela tentou olhar por
cima do ombro para Simon, mas então eles estavam saindo dos pátios, e uma
escolta de guardas angelicais em armadura imperial entrou em formação de
cada lado deles, bloqueando sua visão de tudo, exceto as ruas à sua frente.
Cheio de tendas e altares improvisados à luz de velas, cada via e beco, cada
jardim espremido entre os prédios, estava iluminado como se fosse uma
celebração.
Havia fileiras de luzes galvanizadas crepitantes, tochas brilhando
alegremente em seus suportes, portas e janelas abertas para deixar entrar o ar
fresco. Um grupo de cidadãos, liderado por um orador usando asas de papel
amarradas em seu torso, ajoelhou-se em uma fonte. Eliana observou
fascinada enquanto erguiam os braços para o céu brilhante e assustador em
súplica a uma coisa que eles não entendiam – uma segunda lua, larga,
próxima e ameaçadora. Eles tinham ouvido o nome que os anjos lhe deram.
Sussurros nas festas, rumores passavam do palácio aos mercados, do soldado
ao criado. Ostia. Outro portão, talvez. Uma segunda vinda de anjos – ou de
bestas.
Corien passou pela multidão como um navio deslizando pelo mar, as ondas
quebrando em seu rastro. O povo de Elysium abandonou suas tendas, suas
festas e correu atrás dele. Chamaram o Imperador, imploraram-lhe bênçãos,
convites para o palácio. Eles até, Eliana ficou chocada ao perceber,
começaram a chamá-la pelo nome. Eles sabiam: Eliana. Eliana.
Rainha do Sol, eles a chamavam. A Criança Nascida da Fúria!
O barulho de suas vozes se chocou contra seus ouvidos. Suas palmas
estavam escorregadias dentro das correntes de seus receptáculos. Ela desejou
desesperadamente poder alcançar o Profeta e perguntar o que Corien havia
planejado, mas ela não ousava com ele tão perto.
Então, o ar explodiu com um som de lamento.
O sangue de Eliana gelou em suas veias. As buzinas de Vaera Bashta. As
notas tristes subiram por seus braços em pés de agulha finos. O Profeta havia
contado a ela sobre os abates da prisão e garantido que Remy ainda estava
vivo.
Mas toda vez que Eliana ouvia as buzinas, ela se lembrava de Remy
sussurrando sobre um quarto subterrâneo e o imaginava morto pelas mãos de
um prisioneiro – garganta aberta, cabeça esmagada contra a pedra. O
estômago que ela curou foi reaberto por alguma faca tosca feita no escuro.
As palavras cruéis de Simon brilharam em sua mente: Eu atirei nele bem no
estômago.
Corien parou em uma praça pentagonal, cada lado marcado por arcadas
altas de pedra branca, primorosamente simétricas. Em cada canto havia uma
coluna larga encimada por uma estátua de um anjo em vôo ou em batalha. Do
outro lado da praça, vários guardas angelicais flanqueavam um conjunto de
portas pretas largas.
Corien a soltou para jogar os braços para cima. Ao redor deles, a multidão
boquiaberta silenciou. Alguns o alcançaram; outros caíram de joelhos.
— Elysium! — ele chorou. — Sua podridão será cortada! Sua sujeira será
limpa! Cada mentira que contaram, cada segredo que esconderam de mim,
será revelado! — Ele se virou, deixando todos olharem para a glória branca e
brilhante de seu rosto, seu sorriso louco. — Pois mesmo um mestre gentil
deve às vezes bater em seus cães para lembrá-los de quem está segurando a
corrente.
A multidão mudou, seus sorrisos diminuindo.
As buzinas de Vaera Bashta soaram mais uma vez – chamada final para o
abate.
— Vejam! — Corien gritou, o riso agitando sua voz. — E sejam
purificados!
Então as portas pretas se abriram, revelando uma boca escura e desdentada,
degraus de pedra descendo para as sombras.
A multidão reunida entendeu imediatamente. Seus gritos aumentaram como
os gritos de animais caçados latindo de medo. Eles empurraram um ao outro,
empurraram os lentos e os pisotearam. Um grande aglomerado de corpos
fugindo rápido.
Mas não rápido o suficiente.
Pelas portas despejava uma torrente de escuridão – curvada e magra, com
crostas e uivando. Não rastreadores, não cruciata, mas humanos que foram
mantidos por muito tempo no subsolo. Dezenas deles. Centenas. Além da
praça, soou o clangor e rangido de mais portas se abrindo, a onda distante de
gritos.
O horror inundou Eliana em ondas frias. Ela deu um passo para trás, mas
Corien estava atrás dela. Ele segurou seus braços e pressionou sua bochecha
contra a dela.
— Eu disse a eles que eles poderiam fazer o que quisessem. — Seu
sussurro tremeu com uma alegria terrível e sufocada. — Eu deslizei para
dentro de cada uma de suas mentes e disse a eles que se eles quisessem se
livrar de suas velas para sempre, eles teriam que me impressionar. Eu gosto
de ser entretido.
Eliana pensou em Remy e sentiu sua garganta subir. — Por que você está
fazendo isso?
Ele a virou suavemente. — Por sua causa, Eliana — disse ele, como se
fosse óbvio. — Você está escondendo segredos de mim. Eu sei disso. Isso é
bom. Eu também guardo segredos de você. Mas eu não posso deixar você
ficar impune por isso. E me pergunto se lutar pelas ruas pintadas de vermelho
com sangue vai te despertar como eu não posso. Pouco importa para mim
quantos nesta cidade forem mortos hoje por sua causa, mas tenho certeza de
que isso importa para você. Minha princesa de coração terno. A criança
Nascida da Fúria, eu ouvi como te chamaram. Evocativo. Eu aprecio uma
frase poética.
Ele gesticulou para um dos guardas em sua escolta, que lhe entregou um
pacote embrulhado em um pano. Corien pressionou nas mãos de Eliana e
beijou sua bochecha.
— Não se preocupe — disse ele. — Eu não vou deixar ninguém te matar.
Mas o resto deles…
Em um piscar de olhos, ele se fora, assim como os guardas. Sozinha,
imperdível em seu vestido vermelho brilhante como sangue, ela
imediatamente sentiu dezenas de olhos sobre ela.
A forma do pacote que ela segurava era familiar. Rapidamente, ela
desembrulhou.
Arabeth. Nox. Whistler. Tuora e Tempest.
Suas facas, limpas e embainhadas, presas a um cinto de couro para armas.
Como ela o odiava por presenteá-las a ela. Mesmo neste caos, nesta noite
terrível, ela estava feliz em vê-las. Suas únicas amigas sobreviventes.
Com a boca seca, as mãos tremendo, ela prendeu o cinto em volta da
cintura e correu. Abriu caminho com os cotovelos no meio da multidão,
empurrou as pessoas que a reconheceram e agarrou suas saias. Não se
perderia – um velho enrugado em roupas elegantes de brocado iridescente.
Ele agarrou sua faixa, puxou-a para ele.
— Ajude-nos! — Gotas de sangue já pintavam seu rosto. Ele tateou por
seus receptáculos. — Destrua-os!
Eliana tirou Arabeth da bainha e cortou-o no peito. Ele cambaleou para trás,
praguejando, e a soltou. Ela se virou e fugiu, sem ter noção de para onde
correr, mas sem vontade de alcançar o Profeta. Corien ainda estaria por perto.
Ele não era um marque; ele não poderia desaparecer no ar. Ele simplesmente
se escondeu.
Ela forçou suas pernas mais rápido, seus músculos já tremendo. Ela havia
ficado mais forte durante as semanas com o Profeta, mas sua antiga força
ainda era uma memória distante. Como o Terror de Orline teria rido ao vê-la
agora.
Saindo da longa arcada, cerrando os dentes contra a queimação em seus pés
descalços, ela abriu caminho por uma rua, depois virou em outra antes de
emergir em outra praça, esta muito maior que a primeira. Duas escotilhas de
metal na pedra estavam abertas. Ela correu passando pelo mais próximo no
momento em que uma mulher pálida com fios de cabelo emaranhado saltou
dele. Uma mão agarrou seu tornozelo. Ela caiu com força, arrancou tiras de
pele das mãos. Virou-se e mergulhou Arabeth na garganta da mulher. Um
grito estrangulado e a mulher desabou, agarrando-se ao rio vermelho do
pescoço. Eliana rolou debaixo dela, libertou Arabeth de um puxão e pôs-se de
pé. Suas palmas arranhadas doeram; ela enxugou o suor dos olhos.
Um baque atrás dela. Eliana se virou, esquivando-se do golpe selvagem de
outro prisioneiro – um homem com a pele clara e cheia de cicatrizes, uma
faca branca na mão. A lâmina dele pegou seu braço, cortando uma faixa fina
em no cotovelo.
Ela gritou, esquivou-se do segundo golpe e empurrou Arabeth contra seu
pescoço. Mas ele foi rápido. Ele golpeou Arabeth no ar com sua própria faca,
depois se lançou sobre ela, derrubando-a no chão. Sua visão vacilou. Ele
apalpou seu vestido e passou a língua por seu rosto. Seu hálito estava
rançoso, como carne deixada para apodrecer.
Ela o deixou babar em sua garganta enquanto reunia suas forças, então
cravou o joelho em sua virilha. Ele uivou de dor e ela agarrou Nox,
mergulhando a lâmina grossa na barriga côncava do homem.
Ele caiu sobre ela, o calor de seu sangue ensopando seu vestido. Ela o
empurrou, Nox na mão, encontrou Arabeth sorrindo seu sorriso torto na laje
branca e correu.
Mas não havia como escapar de Vaera Bashta. Para onde quer que ela
olhasse, prisioneiros esfarrapados atacavam e arranhavam, seus gritos
selvagens rasgando o ar em tiras. Dois homens desceram uma escada rolando,
depois correram atrás de uma pistola barulhenta.
Eliana não viu quem a alcançou primeiro, mas ouviu o tiro ao passar
correndo. Um menino passou por ela, escalou um cano de esgoto. A forma de
seu corpo a sacudiu, e por um momento, embora sua pele fosse mais escura,
ela pensou que era Remy. Um punho gelado se fechou ao redor de seu
coração, apertando com força enquanto ela corria. Ela esperava não encontrar
Remy. Esperava que ele estivesse escondido em alguma sarjeta ou sob uma
escada na escuridão silenciosa. O que faria se virasse uma esquina e o visse
mudado? Se não fosse mais o irmão que ela conhecera, mas um assassino que
negociava com sangue em vez de histórias?
O pensamento a atingiu enquanto corria, um terrível medo rodopiante que
cresceu dentro dela como uma corrente. Ela sentiu uma picada nas palmas
das mãos e olhou para baixo para ver seus receptáculos levemente acesos.
Ela cerrou os punhos em torno deles e subiu correndo um amplo lance de
degraus brancos, depois subiu uma escada estreita na parede de um grande
prédio de apartamentos com gárgulas cruciata bocejando em cada canto.
Escalou até encontrar um terraço alto, com as paredes cobertas de pedras
brancas onduladas. O ar estava mais quieto lá, os gritos de Elysium uma
cacofonia distante. Debaixo de um caramanchão coberto de hera, ela se
agachou, o coração batendo forte, Arabeth agarrada com força em sua mão
direita. Ela respirou até sentir que era seguro, até que o sangue que pulsava
em seus ouvidos diminuiu. Então, formou um único pensamento claro:
Por favor me ajude.
Uma resposta veio imediatamente. Estou aqui.
Eliana caiu no chão. É seguro falar?
Ele está bastante distraído com os eventos da noite, o Profeta respondeu
secamente. Com sua mente em seu estado atual, ele é facilmente desviado
por suas próprias perversidades. Mas você estava certa em correr muito
antes de falar comigo.
Eu posso ir até você? Ela se sentia como uma criança assustada,
implorando por conforto depois de um pesadelo. Sua cabeça latejava com um
medo primitivo, e ela não conseguia pensar em outra coisa. Eu não sei para
onde ir.
Um sentimento veio a Eliana então, uma ternura que seus olhos ficaram
quentes..
Devemos esperar um pouco mais, disse o Profeta gentilmente. Quando você
vier até mim, ele me encontrará logo depois. Tudo deve estar pronto então,
todas as peças no lugar. Seus amigos estão a caminho, mas você deve
continuar lutando até que eles cheguem.
Eliana colocou os braços em volta do estômago e soltou um soluço
sufocado. Se sentia frágil, pronta para voar além do medo, como se os
horrores da noite tivessem rasgado de cada placa de armadura que ela forjou
no fogo de sua prisão. Ela nem mesmo teve coragem de perguntar o que o
Profeta queria dizer com amigos. Em vez disso, sua mente agitada reviveu
aqueles momentos com Corien em seu quarto, como ele esmagou seu rosto
em seu vestido de contas como se fosse sufocá-la. Simon na porta, seu rosto
escondido nas sombras enquanto ela o encarava.
Você precisa se concentrar, Eliana. A voz do Profeta ficou mais firme.
Quanto mais dispersos forem seus pensamentos, mais fácil será para ele
encontrar você e, portanto, me encontrar.
A exaustão de Eliana era um abismo; logo ela cairia nele. Se outra pessoa
tentar me matar, talvez eu deixe.
Ele não vai deixá-los. Nem eu.
Tenho o direito de escolher minha própria morte.
Não, não tem, disse o Profeta. Muito depende de você. Eu sei que você não
pediu por este fardo, mas mesmo assim é seu. Ouça atentamente. Não
teremos melhor oportunidade do que esta para você entrar no Abismo. Ostia
está crescendo. O tecido do empirium ali se tornou fino e frágil. Acho que
você pode fazer isso com mais uma tentativa. Acho que você pode terminar
seu portão.
Não posso voltar ao palácio, respondeu Eliana, olhando para as torres
distantes do outro lado da cidade.
Não. O caos está se espalhando rapidamente pela cidade. É muito perigoso
ir tão longe. Se você for ferida, isso pode desfazer o progresso que fizemos.
Eliana enxugou o rosto e deu um suspiro trêmulo. Em vez disso, devo
encontrar outro lugar onde o empirium seja limitado. Outro caminho para o
Abismo.
Sim, e rapidamente, o Profeta respondeu. Quando ele ficar entediado com
esse abate, vai acabar com isso.
Eliana recitou os fatos que conhecia, cada pensamento trazendo um pouco
mais de estabilidade à sua mente. No palácio, o empirium me guiou até
aquele lugar no jardim. Um lugar onde eu pudesse abrir uma fenda para o
Abismo. Ele me puxou e eu escutei.
Talvez seja verdade, disse o Profeta pensativamente. Ou talvez tenha sido
você quem guiou o empirium. Você que disse o que precisava e para onde
levá-lo.
Eliana estremeceu em seu vestido molhado, o tecido encharcado de sangue
já ficando rígido. Ela desenrolou os dedos apertados. Em suas palmas, seus
receptáculos tinham um toque de calor. Eu não posso ter medo deles. Devo
usá-los para me ajudar.
Seus receptáculos são seus, o Profeta a lembrou. Uma extensão de seu
corpo, sua mente e seu poder, não uma coisa separada. É a si mesma que
você não deve temer.
Como se isso fosse uma coisa fácil. Eliana meio que formou um
pensamento rude e inútil, depois o jogou fora. Sob as folhas do caramanchão,
os gritos de Elysium subindo para encontrar seus ouvidos, ela respirou.
Houve uma brisa fria que arrepiou os cabelos de seus braços. O telhado era
feito de pedra branca, e ela sentiu a idade dele, quanto tempo havia vivido na
terra antes de ser escavado. Havia água nas folhas tremendo no alto e havia
luz do sol em algum lugar além do horizonte, onde era manhã em vez de
noite.
Suas palmas ficaram mais quentes. Mesmo com os olhos fechados, ela
podia ver suas chamas gêmeas, como sorriam ao vê-la. Ela deu boas-vindas a
seu poder, colocou as mãos em volta dele e, em seu vasto brilho, encontrou o
rio que havia feito pela primeira vez com o Profeta há tantas semanas.
Nunca saia desse pequeno rio. Ela se lembrou das palavras do Profeta,
percorreu os sulcos de sua memória em sua mente. Mantenha os pés frios e
aterrados, mesmo quando suas mãos começarem a queimar. Ele não pode
encontrar você aqui, pequenina, não nestas águas.
Pés em água fria. Mente lisa e dura como uma pedra. Fogo em suas mãos e
estrelas atrás de suas pálpebras. Suas veias são uma teia de luz.
Eu levanto
A voz do empirium explodiu dentro dela, singular e muitas. Uma onda
ameaçando chegar ao topo, faminta pela costa.
Eu levanto
EU LEVANTO
— Não — sussurrou Eliana. — Eu levanto.
Então ela se levantou. Abriu os olhos e olhou mais uma vez para a noite
misteriosa e prateada. Ela observou a luz de Ostia mudar lentamente no céu e
ouviu o barulho de seu poder, como ele se movia por seu corpo e para o ar e
vice-versa. Seu sangue pulsava com o grande e antigo batimento cardíaco do
mundo. Um mapa do empirium se expandiu diante dela, sua vastidão
brilhante desenrolando-se sob seu comando. Cordões de luz ondulando em
um mar infinito. Planos sobre planos de ouro mutável, e dentro deles um
número infinito de caminhos para trilhar.
Uma batida, uma respiração presa. Algo a puxou – a tensão de um céu
pronto para se partir com um raio. Com Arabeth na mão, ela encontrou o
caminho de que precisava e o seguiu de volta para a cidade do Imperador, os
gritos dos caçados subindo para saudá-la e os olhos de ouro de suas peças
escancarados em suas palmas.
29
Rielle

“Decidi não contar a ninguém o que vi em Meridian. Saber que Rielle


matou o Grão Magister Belounnon não trará conforto para ninguém
aqui. Mas não consigo parar de pensar na expressão de seu rosto
enquanto o incinerava: as sombras em seu rosto magro. O furioso ouro
derretido de seus olhos. Um momento ele estava lá. No próximo, houve
fogo e ele se foi. E antes que Annick e eu fugíssemos, olhei para trás
para Rielle e a vi tremendo na chuva. Ela chorou, sua pele brilhando
com um brilho dourado fraco, e olhou através do mar em direção ao
escuro horizonte leste.”
— Diário de Garver Randell, datado de 17 de fevereiro, ano 1000 da
Segunda Era

Rielle sabia depois de sua primeira ressurreição que era impossível continuar
trabalhando no subsolo. Todo aquele peso acima dela, o vulto negro e frio da
montanha. Ela precisava ver o céu.
Corien não pediu mais explicações. Ele ordenou que uma dúzia de seus
soldados e uma equipe de cem adatrox construíssem um altar na montanha ao
lado de sua fortaleza. Uma passagem de pedra saía de uma das janelas do
andar mais alto da fortaleza, perto dos quartos de Corien, atravessando a neve
até este edifício negro e alto, escuro contra o branco infinito da montanha.
A estrutura do altar lembrou Rielle do Portão, o que a encantou. Três
degraus levaram a um pedestal plano de rocha negra. Havia uma mesa de
pedra para os corpos se deitarem e pilares de pedra flanqueavam o local onde
ela ficaria. O próprio pedestal tinha asas recém-gravadas, uma tempestade
delas, penas tão finas que Rielle se ajoelhou em suas peles para passar os
dedos por suas delicadas ranhuras.
— Isso foi feito tão rapidamente — disse ela, olhando para Corien. —
Quatro dias. Como?
Começou a nevar. Muita neve, pequenos flocos rápidos, dançaram através
do altar. Um vento frio agitou a bainha da capa preta de Corien. Sua gola de
pele escura estava salpicada de branco.
Ele encolheu os ombros com a pergunta dela e estendeu a mão. — Eles não
tinham escolha.
Ela pegou a mão dele e se levantou. A luz estava diminuindo. Perto do
horizonte, além das nuvens que cuspiam neve, manchas de céu índigo
mantinham o último raio dourado de sol.
— Traga-me o próximo — ela murmurou, e o beijou distraidamente. Seus
dedos formigaram, famintos e ansiosos. — Eu quero fazer isso de novo.

•••

Corien veio até ela ao amanhecer. Ele ficou ao seu lado na luz cinza enquanto
a neve caía silenciosamente do céu.
Em silêncio, ele a observou tecer asas para o anjo renascido em sua mesa.
O corpo estava deitado de bruços, nu e totalmente branco de frio.
Uma vez, Corien tinha mostrado a ela onde as asas se juntariam às costas –
não com juntas de carne e osso, como com pássaros ou morcegos, mas com
um simples crescimento de luz florescendo. Ele havia desenhado para ela
com sua mente, mostrado a ela a aparência das asas em vôo. Não apenas
quaisquer asas, mas as suas, há muito perdidas. Pela primeira vez, ele havia
se mostrado como antes: Kalmaroth, guerreiro e rebelde. Seu nome
significava “luz imortal” em Qaharis, e ele havia entendido que significava
que ele estava destinado à grandeza. Pele pálida e cabelo escuro, alto e
esguio, olhos azuis brilhantes e asas saltando de suas costas – luz na raiz,
com pontas de sombra. Além das asas e da altura de seu corpo, Kalmaroth era
muito parecido com Corien agora.
Rielle pensava nisso enquanto trabalhava. Um sorriso brincou em seus
lábios. Ela gostava de pensar nele anos atrás, escapando do Abismo e
encontrando um humano que refletia sua própria beleza perdida.
Como uma tecelã paciente sentada em seu tear, Rielle puxou fios do
empirium do ar. Seus olhos viram ouro e nele havia muitas coisas. Lá estava
a corda longa e enrugada da coluna vertebral do cadáver. Havia lugares
escuros e tempestuosos dentro da massa de músculos e tendões onde as asas
deveriam começar. Seu corpo se agitou com dores, carretéis quentes de
tensão cavando em seus ombros, seus pulsos, a parte inferior de suas costas.
Apesar do frio intenso da montanha, gotas de suor correram umas pelas
outras por sua testa.
Mas sua mente estava clara. Seus pensamentos dispararam como pássaros
de rapina com asas em faca, rápidos e de olhos âmbar. Ela guiou o empirium
com a agulha de seu poder, e com cada punhalada de prata rápida, seu sangue
saltou mais alto, procurando mais.
Quando terminou, o anjo levantou-se da mesa e tropeçou em seus pés. Um
dos atendentes do palácio, com os dentes batendo até dentro das peles, correu
para oferecer ao anjo um manto para se cobrir.
Mas o anjo o ignorou e, em vez disso, se ergueu no ar com um grito de
júbilo. Suas asas eram incandescentes, estrelas gêmeas de luz branca fixadas
em suas costas. Elas não se moviam como asas de pássaros canoros, aquele
bater indigno. Em vez disso, se inclinavam sutilmente quando necessário para
mudar o curso do vôo. Se estreitavam ao mergulhar; se expandiam ao subir.
Logo, a forma do anjo havia desaparecido. Apenas a luz de suas asas
permaneceu, deslizando rápido de pico a pico.
Rielle lambeu os lábios rachados. — Traga-me outro.
— Vamos comer primeiro. — Corien recuperou seu manto de pele do chão.
— Você não come desde ontem.
— Eu não preciso comer.
— Você precisa. E precisa usar isso. — Ele colocou a capa sobre os ombros
dela, sobre o vestido vermelho fino que ela usava há dias. O tecido, antes
fino, agora cheirava a suor. — Você vai ficar doente de outra forma.
Ela o golpeou para longe. — Prefiro continuar a trabalhar. Traga-me outro.
Seus olhos claros estavam imóveis. — Você está trabalhando há sete dias,
Rielle, com muito pouco descanso.
— Eu estou ciente. Traga-me outro.
— Você ainda é humana. Você precisa dormir, comer e se aquecer.
Ela riu. — Que coragem você tem. Você sussurrou em meus sonhos por
meses a fio, roubando meu sono até que eu voltasse para você. E agora você
diz que preciso descansar.
Afastando-se dele, Rielle encontrou um de seus tenentes, um anjo feminino
de olhos gelados com pele marrom mel e tranças pretas. Ela não conseguia
lembrar seu nome e nem se importou em tentar.
— Você — ela disse. — Traga-me outro de uma vez.
Durante horas, a tenente esteve observando Rielle com olhos brilhantes. Ela
nem mesmo olhou para Corien antes de voltar correndo para a fortaleza, dois
anjos de posição inferior em seus calcanhares.
Rielle olhou para o céu. Em torno de seu altar ondulava um anel mutante de
sombras como se ela estivesse nas profundezas da água, olhando para a luz
através das ondas trêmulas. Centenas de anjos incorpóreos se aglomeraram
perto para assistir seu trabalho. Como ela se deliciava com o sentimento de
admiração deles. Seus pensamentos ansiosos batiam em sua mente como
mariposas batendo em uma janela, desajeitados enquanto perseguiam a luz
além do vidro.
— Não, Rielle — disse Corien com firmeza, aproximando-se dela. —
Vamos entrar agora.
— Não vamos. E se você não escolher outro anjo para mim, eu mesmo o
farei.
Ela deixou seus olhos desfocarem, e seu poder fluiu para iluminar a encosta
da montanha. No reino dourado de sua visão, seu poder atingiu as mentes dos
anjos como uma corrente em chamas se chocando contra as rochas. Os
padrões de suas ondas eram hipnotizantes. Com cada ondulação, as sensações
voaram de volta para ela, relatando. Sabores, sons, texturas.
Ah. Havia um que ela gostava.
Ela dirigiu seu poder para a esquerda. Um dos anjos se livrou do resto e
veio voando para seus braços abertos.
Rainha de luz e sangue. A voz do anjo tremeu quando ela o puxou para a
mesa escura de seu altar. Obrigada por me escolher. Você tem meu coração,
minha rainha; você tem meu amor e minha lealdade.
Rielle segurou o anjo com firmeza contra a pedra, o tecido de sua mente
esticado entre as mãos como uma tela desenrolada. A impaciência formigou
sua pele. Ela olhou para a passagem que levava à fortaleza. A neve estava
caindo mais rápido, velando as paredes pretas.
— Seus tenentes são lentos — ela observou. — Eu preciso de um corpo.
Os ombros de Corien estavam rígidos de raiva. — Solte-o e entre comigo,
agora.
— Eu quero fazer isso de novo.
— E você vai, meu amor, mas não até amanhã.
Ela apertou a mandíbula, lutando para conter a boca trêmula. Ela sabia que
ele estava certo; ela podia sentir como suas mãos tremiam, o balanço de seu
equilíbrio. Seu estômago e garganta pareciam à beira de um colapso, secos e
comprimidos, desesperados por comida.
Se ao menos ele não a tivesse impedido. Enquanto ela trabalhava, ela não
perceberia nada disso.
— Eu ressuscitei apenas trezentos anjos — ela murmurou.
Ele riu baixinho. — Em sete dias. Uma conquista notável.
— Precisamos de mais do que isso para fazer tudo o que sonhamos.
Ela lhe enviou um pensamento simples: Preciso de mais.
— Celdaria não vai a lugar nenhum — disse em voz alta, ignorando seu
apelo silencioso. — O mundo não vai a lugar nenhum e nada pode nos
impedir.
— Minha mente arde por mais disso. — Ela queria chorar de frustração; ela
queria socar a mesa de pedra em duas. — E ainda assim meu corpo está fraco
demais para isso.
— Você é apenas humana — disse suavemente.
— Eu sou mais do que humana! — ela rugiu para ele. Debaixo de sua voz
soou um mais profundo, uma distorção furiosa. O estrondo de alguma
criatura se mexendo no fundo do oceano. Rielle o encarou com um sorriso
frágil. — E não é isso que você sempre quis?
Corien estava muito quieto. Acima deles, a nuvem de anjos circulando se
encolheu.
Então Corien se aproximou, a boca pairando ao lado de sua bochecha. —
Você sabe que não desejo fazer você entrar comigo, mas farei isso se você
não me deixar escolha.
— Faça isso e eu vou te matar — ela rosnou.
Uma risada suave. — Você não vai.
Ele tinha ficado fora de sua mente desde que ela abriu o Portão e voltou
para o alcance dele, mas agora ela o sentia peneirando cuidadosamente as
bordas externas de seus pensamentos. Ele não estava errado. Ela não o
mataria. Matá-lo a destruiria. Não sobraria ninguém no mundo que pudesse
vê-la sem medo.
O anjo em suas mãos vibrou de excitação. Você pode criar minhas asas
para lançar luz iridescente? Antes, minhas asas brilhavam como cerúleo e
violeta à luz das estrelas, âmbar e lavanda ao sol.
A tenente de olhos gelados de Corien emergiu da fortaleza, flanqueada por
seus inferiores. Em seus braços estava o corpo de um homem nu de pele
escura. Rielle ficou encantada com a presunção da mulher. Normalmente,
Corien insistia em ser o único a tirar a vida do humano.
— Rielle, eu juro que vou fazer isso — disse Corien. — Vou mantê-la
muda por dias enquanto coloco comida em sua boca.
— Deixe-me — ela sibilou, observando ansiosamente enquanto o corpo se
aproximava do altar. Houve uma agitação em seu peito, derretida e
borbulhante. — Eu devo trabalhar.
Quando o tenente subiu no pedestal, Corien agarrou o braço de Rielle,
puxando-a contra seu corpo.
Uma raiva branca e brilhante explodiu atrás de seus olhos. Ela o empurrou
para longe dela com um grito agudo. O pedestal se partiu em dois. Corien
cambaleou, quase caiu.
E Rielle não pensou antes de fazer isso. Um furioso instinto a comandou, e
ela obedeceu ansiosamente. O poder abrasador fervendo dentro dela
transbordou, queimando seus braços e pernas. Ela torceu o anjo entre as mãos
como se ele fosse uma mera corda trançada. As cordas de sua mente se
esticaram, se desgastaram e se romperam. Ele era argila em suas palmas,
pedaços arrancados e esmagados.
Ignorando seu uivo de dor, Rielle bateu palmas e o esmagou no
esquecimento.
O mundo caiu sob seus pés. A paisagem à sua frente desapareceu. Em seu
lugar, um mar negro sem fim, um céu estrelado.
Assustada com a imensidão deste lugar, como ele a sugava como um
redemoinho, ela lutou contra sua atração, alcançou Corien com sua mente e
suas mãos, mas não conseguiu encontrá-lo.
Ela abriu os olhos.
Ela estava no mar negro que a levou depois que ela matou os Obex na
Patria. Ondas rasas com bordas douradas batiam suavemente em suas
canelas. O fundo do mar era macio e em constante mudança, um cobertor
móvel de pedrinhas minúsculas. Acima, uma profusão de estrelas – azul
vívido, ametista e rosa, dourado e marfim e cores que ela não conseguia
nomear. Muitos deles pintaram o céu negro que pareciam uma massa sólida,
uma folha de joias trançadas com apenas algumas pedras faltando.
— Você finalmente veio — veio uma voz atrás dela.
Ela virou. Uma criança com um vestido branco simples não estava longe
dela. Ela era pequena e tinha bochechas redondas, pele pálida e cabelos
escuros rebeldes que iam até a cintura. Seus lábios se curvaram em um
sorriso malicioso e familiar.
Rielle deu um passo para trás, com a pele arrepiada de frio. — Quem é
você?
A garota riu. — Você sabe quem eu sou.
Ela sabia. Os tons de sua própria voz soaram nessas palavras. A criança era
ela mesma como era aos cinco anos de idade, exceto que seus próprios olhos
eram verdes, e os olhos desta criança eram de um ouro brilhante. Uma aura
de luz brilhou ao seu redor, como se ela eclipsasse o sol.
— Eu não entendo. — Rielle olhou para trás por cima do ombro, como se
fosse encontrar Corien ali. Mas ela viu apenas o mar, infinito e brilhante. —
Eu morri?
— Ainda não — a garota respondeu alegremente. — A casca do seu corpo
está lá, mas o seu coração, o seu verdadeiro eu, está aqui comigo. Não é a
morte, embora pareça. É o próximo.
— Eu gostaria de me ver — disse Rielle, doente de medo.
A garota torceu o nariz. — Se você insiste.
Diante dos olhos de Rielle apareceu uma visão de si mesma, imóvel e com
os olhos vidrados, de volta à montanha. Sua pele e lábios estavam
mortalmente pálidos. Corien sentava-se nos degraus de seu altar, segurando-a
nos braços, implorando para que ela despertasse. Ele gritou para que seus
oficiais trouxessem os curandeiros de seus laboratórios.
Rielle estremeceu, observando essa versão imóvel de si mesma. Ela
certamente parecia morta.
— Não se preocupe. — A voz da garota estava alta e clara. — Você não me
ouviu? Você ainda não está morta. Agora vem. Eu tenho esperado tanto
tempo para você chegar. Caminhe comigo. Eu gostaria de mostrar o que está
aqui.
Rielle hesitou, então pegou a mão da garota. Eles caminharam pelo mar
raso de ouro negro. A bainha do vestido branco da criança flutuou na
superfície da água.
— Não tenha medo — disse a garota alegremente, levando-a adiante. —
Sou só eu aqui, e não desejo machucar você. Acho que você vai gostar muito
daqui. Acho que você vai preferir.
Rielle estremeceu. Ela desejava soltar a mão e também envolver a criança
em seus braços. — Onde estamos?
— Nós estamos em todo lugar. Não solte minha mão, por favor. Isso
tornará tudo mais fácil para você. Sua mente ainda é bastante crua em sua
humanidade.
Então a garota puxou Rielle para a frente e o céu começou a se mover. As
estrelas passavam por elas em riachos de cores brilhantes, mas a água
permanecia calma, como se de alguma forma cada passo que davam cobrisse
uma extensão de muitos quilômetros acima e apenas alguns centímetros
abaixo.
Rielle gritou e tropeçou, sua mente incapaz de compreender a
incongruência, mas o aperto da garota era forte. Sua risada soou acima do
rugido do céu.
— Para onde você está me levando? — Rielle engasgou.
— Eu quero que você me veja — a garota respondeu. — Eu não sou
bonita?
— Eu não posso olhar. — Lágrimas escorreram pelo rosto de Rielle. Seu
peito se apertou. A força das estrelas passando rapidamente, como corriam
como rios furiosos. O som iria esmagá-la.
— Compreendo. Seus olhos são simples, mas nem sempre serão. Já
começou.
Horas se passaram. Por fim, Rielle abriu os olhos o suficiente para ver seus
pés se movendo trêmulos na água negra. A superfície do mar não refletia a
luz das estrelas. As ondas mantinham sua própria luz, como se iluminadas
por fogos que ardiam profundamente debaixo d'água.
Ela encontrou sua voz, rouca pelo desuso. — Você é o empirium, não é?
— Você deve abrir os olhos totalmente e olhar ao redor. — O sussurro da
garota a fez pular.
Elas haviam parado de se mover e agora estavam sentadas no mar raso.
Algo fez cócegas na nuca de Rielle, levando seu rosto para o céu. Ela lutou
contra isso, embora doesse de vontade de olhar para cima. Se ela visse
qualquer coisa pendurada no céu acima dela, ela nunca iria querer desviar o
olhar. Em vez disso, ela observou a água quente bater em sua barriga
inchada.
Brincalhona, a garota passou as mãos pelas ondas e sorriu para Rielle. — É
aqui que você pertence. Olhe para cima e diga que você concorda. Eu
gostaria que você concordasse.
Rielle hesitou. Os seixos do fundo do mar eram sedosos entre seus dedos,
cada um pulsando com o ritmo acelerado de seu batimento cardíaco.
— Não vai olhar para cima? — a garota disse mais uma vez. — Você não
vai se arrepender.
Rielle não conseguiu mais resistir. Ela ergueu o olhar para o céu.
Entre as estrelas, globos de luz e rocha giravam lentamente – alguns
grandes e próximos, outros pequenos e distantes. Listras de cores em fitas;
outros eram planos ou turvos de nuvens. Rielle ansiava por alcançá-los e
tocá-los. Ela se sentou sobre as mãos.
— O que são? — ela sussurrou.
— Eles são mundos. Você gostaria de um?
Rielle ignorou a pergunta. — Eu não entendo. Meu mundo não é assim.
— Seria se você vivesse nas estrelas e olhasse para baixo. É uma coisa
bonita, Avitas. Verde, azul e branco. Uma pedra preciosa riscada de nuvens.
O coração de Rielle bateu com força para fora dela. Ela lutou para formar
pensamentos. — Diga-me: você é o empirium?
A garota parecia desapontada. — Tudo é o empirium.
— Mas deve haver um único lugar ou ser mais poderoso que os outros. Um
lugar onde tudo começou. Um ser que começou.
— Deve haver? — A garota inclinou a cabeça. — Talvez você seja o ser
que o iniciou, pois você é do empirium, e o empirium é todas as coisas.
Talvez nada tenha começado e sempre foi. — Seus brilhantes olhos dourados
não piscaram. — Talvez eu seja o empirium, um dos muitos que existiram, e
chegou a hora de eu renascer como outro.
A respiração de Rielle ficou fraca. — Você fala bobagem. Você é o
empirium ou não? Você é a única coisa que nos fez?
— Você tentaria me matar se eu fosse? Usurpar minha casa? — A voz da
garota tinha ficado fria. — Seu amante angelical poderia desejar que você
fizesse. As perguntas dele são pálidas. Sua visão é estreita. Sem você para
ajudá-lo, ele é insignificante.
A garota se levantou e encontrou a mão de Rielle mais uma vez. — Há
mais para ver. Você é a primeira em uma época que foi forte o suficiente para
me ver. Eu gostaria de compartilhar tudo de mim com você.
Rielle ergueu os olhos enquanto caminhavam, as ondas batendo em suas
pernas. O céu era um tumulto de cores estrias, planos sobre planos, como se o
rio de estrelas tivesse se partido em facetas que agora fluíam em uma direção
diferente.
— Se você é do empirium — Rielle começou, — e eu também, então não
estou vendo apenas você. Eu estou me vendo. Em tudo isso – essas estrelas,
esses mundos. Eu estou refletido neles.
A voz da garota borbulhava de alegria. — Agora você está começando a
entender. Venha! Rápido!
Rielle a seguiu, uma nova graça hábil em seus passos. Quão lindo era o céu,
quão glorioso em sua estranheza. Ela mergulhou a mão nele, puxou para
baixo um dos mundos giratórios. Uma pequena joia violeta, nuvens amarelas
raivosas girando em metade de sua superfície.
— Faça o que quiser — sussurrou a garota. Elas se sentaram na beira do
mar, os pés balançando. Abaixo, uma cachoeira mergulhou silenciosamente
na escuridão. — Você ama esse mundo?
Rielle examinou o mundo, girando-o lentamente para a frente e para trás
entre as palmas das mãos. — Não sinto nada por ele.
— E se seres vivessem sobre ele?
— Eles vivem? Quantos?
— Milhões.
Alarmada, Rielle lançou o mundo de volta ao céu. Ela se levantou e
observou as estrelas absorvendo-o. — Eu gostaria de sair agora.
A garota franziu a testa. — Mas há muito mais para ver.
— Estou cansada.
— Você não estará para sempre.
Os olhos de Rielle se encheram de lágrimas. Ela não conseguia desviar o
olhar do céu. Ela nunca quis parar de olhar para ele; ela queria arrancar todos
os mundos das estrelas e correr os dedos por elas até memorizar suas
texturas. E ainda assim seu corpo ansiava por quietude, pelo conforto quente
da cama de Corien. O conflito azedou sua língua, como se ela tivesse
mordido metal.
A garota se levantou. Seu aperto na mão de Rielle era de ferro, seu sorriso
cintilante. Rielle reconheceu aquele sorriso; ela mesma o havia usado.
E ela percebeu, com uma vertiginosa onda de clareza, que falava para o
empirium, sim, mas falava também para a parte de si mesma que queria ver
mais, fazer e desfazer e nunca parar.
— Venha comigo — a garota implorou. — Você verá. Estamos nos
levantando, você e eu. Há muito mais para fazermos.
Elas mergulharam de volta no mar, cruzando-o sob as estrelas turbulentas.
O ritmo da garota estava mais rápido agora. As estrelas e seus mundos se
borraram em folhas de cores ilegíveis.
O movimento chamou a atenção de Rielle. Ela olhou para a esquerda, viu
reflexos de si mesma e da garota de olhos brilhantes segurando sua mão, o
mar negro a seus pés, o caos acima. Incontáveis reflexos, infinitos no
horizonte. À sua direita, a mesma coisa, e antes dela, e atrás dela. Um prisma
infinito de si mesma. Ela girou, procurando, e quando chamou por Corien,
sua voz aterrorizada ecoou contra si mesma. Corien? A única palavra
melancólica se expandiu, ondas de som colidindo até que seus ouvidos
tocaram.
— Eu tenho muito mais coisas para te mostrar — disse a garota, franzindo
a testa. Ela puxou Rielle mais rápido. — Venha. Deste jeito. Estou sozinha e
estou cansada. É tão bom ter uma amiga. Por favor?
A pequenez da garota era uma ilusão. A força com que ela arrastou Rielle
pela água foi a de dez mil tempestades contínuas. Rielle tentou parar, cravou
os calcanhares no macio fundo do mar, mas a visão de seus reflexos, todos
fazendo a mesma coisa, a desorientou. Ela perdeu o equilíbrio e caiu, mas a
garota a segurou.
— Veja! — A garota passou o braço pelo céu. As estrelas pararam em suas
correntes estrondosas, depois se fundiram e encolheram. Pérolas brilhantes de
luz pontilhavam o céu vazio, cada uma cercada por um brilho fraco.
Com os joelhos fracos de medo, Rielle ficou maravilhada com eles. Seu
sangue rugia em seus ouvidos, assim como quando rios de estrelas brilharam
no céu. Seu poder saiu de seu peito – dezenas de dedos procurando, todos
procurando por mais. Mais luz para ser deslumbrada, mais mundos para
tocar, mais velocidade. VEla desejava cruzar um oceano ainda maior do que
aquele a seus pés. Para pular de pérola em pérola, aqueles olhos opalescentes
olhando para ela do céu, e seguir o caminho que tomaram.
— O que são? — ela respirou.
A bochecha da garota pressionada contra seu braço. — Algum dia você vai
descobrir — ela murmurou, sonhadora.
Rielle, por favor! Volte para mim!
Seu coração saltou ao som distante da voz de Corien. A dor de seu corpo
voltou para ela, como se carregada por trás de suas palavras: as dores de seu
estômago faminto, sua boca ressecada. Ela deu um passo para trás, desviou o
olhar do céu.
A garota abriu a boca e uivou de desespero furioso, e o mundo mergulhou
na escuridão.
Rielle saiu correndo pela água, embora ficasse com o coração partido por
deixar essa parte de si mesma, tão pura e inabalável em seus desejos. Ela
tinha tantas perguntas, tantos mundos para tocar. A cada passo, ela se
perguntava se encontraria outro penhasco e cairia do limite de todas as coisas.
— Você não pode me deixar! — a garota lamentou. — Eu não vou
permitir!
Algo quente e afiado puxou os braços de Rielle, seu peito, seus joelhos
trêmulos. Ela olhou para trás e não viu nada. Um abismo negro, seus pés
afundando no fundo do mar e um silêncio terrível que ameaçava sufocá-la.
Ela enviou um pensamento para Corien. Quanto mais ela corria da garota,
mais claramente ela conseguia pensar. Segure-se em mim. Não me deixe ir.
Eu estou com você. Sua voz era firme e estável. Ele enviou imagem após
imagem, cada uma menos turva em sua mente. A fortaleza erguendo-se
escura e quadrada, as montanhas em suas camadas de neve. Corien,
embalando seu corpo em seus braços. Ela viu seu próprio corpo inerte
tremeluzir, a chama de uma vela oscilando ao vento. Ondas de ouro passaram
sobre a pele de seu corpo, e ela sabia que eram muito quentes, pois ela podia
sentir aquele calor abrasador em seu próprio sangue, como ele pulsava como
água fervendo, mas Corien não se esquivou. Ele a abraçou e segurou,
sussurrando o nome dela contra seu cabelo, e com sua mente ele a chamou
para a frente através do mar. Os lamentos penetrantes da garota aumentaram
em espiral, tão ensurdecedores que Rielle pensou que seu crânio iria se
estilhaçar antes que ela escapasse.
Então, uma parede de frio bateu contra ela, empurrando o ar de volta para
seus pulmões.
Ela explodiu em si mesma, sentiu a queda delicada e úmida de neve em
suas bochechas e o calor de Corien ao lado dela, e começou a rir. Lágrimas
encharcaram seu rosto; seu peito doeu com soluços selvagens.
— Onde você foi? — Corien perguntou baixinho, uma vez que sua risada
suavizou.
Ela pressionou o rosto contra o casaco dele. — Eu fui para o que vem a
seguir — ela sussurrou. — Entrei dentro de mim e vi o que sou e o que vou
me tornar. Eu olhei para as estrelas e as puxei para baixo e as segurei.
Corien estava quieto. Ela podia sentir sua mente examinando cada palavra
sua.
— Você gostaria de voltar? — ele perguntou finalmente.
Rielle esquadrinhou o Nothern Reach, curiosa para o que aconteceu em sua
ausência. Seu poder percorreu o empirium, então trouxe imagens de volta
para ela: A avalanche que ela causou quando o empirium a levou, como ele
desceu a montanha e achatou dezenas de adatrox. Pedregulhos de gelo se
chocaram contra um dos recintos que abrigavam os condenados dragões de
gelo. Vários deles agora estavam livres, fugindo para as montanhas. Ao lado
mancavam seus companheiros Kammerat, aqueles pequenos reclusos
borsválicos estranhos e obsessivos que preferiam a companhia de dragões à
de humanos.
E, Rielle percebeu com um lampejo de interesse, eles não estavam
sozinhos.
Havia Obritsa e seu guarda, Artem. E Ilmaire Lysleva também, e outro
jovem ao lado dele. Outro Kammerat.
Imediatamente, Rielle sentiu a raiva crescente de Corien. Agora que ela
estava segura, ele os mataria.
— Não os machuque — ela ordenou. — Quem é aquele homem? Eu não o
reconheço.
— O nome dele é Leevi — Corien disse a ela, sua voz fina com raiva. —
Um dos Kammerat, um ex-prisioneiro aqui. Ele escapou meses atrás, e agora
ele retorna com o rei de Borsvall, e mais Kammerat também, todos vieram
para salvar seus parentes. — A voz de Corien enrolou. — Que heróico.
— Deixe-os ir — disse Rielle, já perdendo o interesse no pequeno grupo
frenético.
Cada pensamento de Corien se cerrou em punhos. — Eles vão pensar que
me venceram.
— E se eles o fizerem? — Rielle tocou sua bochecha e o virou para encará-
la. — Não importa no final. Nós vamos matá-los. Eles viverão e nos verão
subir. Eles morrerão por suas próprias mãos, incapazes de suportar a agonia
de seu fracasso. Qualquer uma dessas coisas que aconteça, sua alegria terá
vida curta.
Ela sentiu Corien se acalmar, observou as linhas de tensão derreter de seus
ombros. Ele pressionou o polegar em seu lábio inferior rachado.
Ela sorriu para ele. — Entende? Eles não são nada para nós. Deixe-os fugir
para suas montanhas como coelhos correndo assustados. Eu gostaria de vê-
los perceber a futilidade da fuga. Eu gostaria de assistir aquele amanhecer em
seus rostos. Não é?
Corien pressionou a sobrancelha na dela e fechou os olhos. Sua mente se
levantou para encontrar a dela suavemente, e quando ele olhou para ela em
seguida, ele estava calmo.
Então, um pensamento ocorreu a Rielle. — Eu o matei? — ela perguntou,
pensando no anjo que ela esmagou entre as mãos.
Uma pausa. Os dedos de Corien acariciaram seu braço. — Matou.
— Eu mal me lembro disso — ela disse, e ainda assim a garota dentro dela,
olhos brilhando em seu mar infinito, podia se lembrar de cada partícula do
anjo, como foi abri-lo com seu poder. Mera poeira em suas mãos, facilmente
varrida.
— Sinto muito — acrescentou, porque sentiu que era a coisa a dizer.
— Ele significava muito pouco para mim. Uma criança de uma família
comum, nem forte nem inteligente. — Corien fez uma pausa. — E de
qualquer maneira, você não quis fazer isso.
Ele estava certo. A morte daquele anjo a havia enviado para aquele lugar
sob as estrelas impetuosas, e ela já desejava voltar para lá.
Mas antes que ela pudesse fazer isso, ela precisaria ser mais forte ainda, em
mente e corpo, para que pudesse entender o que viu e ser digna disso.
Mais do que isso, ela precisava olhar mais uma vez nos olhos daqueles que
a temiam. Ela pensou em todos eles, seus nomes facilmente arrancados de
suas memórias distantes: Audric, Ludivine, o Arconte, Miren Ballastier,
Rainha Genoveve. Tal, morto em suas mãos.
Ela desenhou cada um de seus rostos e sentiu uma onda de raiva branca e
fria. Eles estariam xingando ela mesmo agora. Eles ainda pensariam nela
como humana, olhariam para ela como se ela fosse um deles. Eles talvez
ainda se imaginassem capazes de acalmá-la.
Os lábios de Corien roçaram sua testa. Ela podia sentir como o confundia,
com que cuidado ele se movia em sua mente, como se estivesse pisando
descalço em volta de um vidro quebrado.
— O que você quer, Rielle?
— Quero que todos vejam a maravilha de nosso grande trabalho e caiam de
joelhos — disse ela. — Eu quero caminhar no mar negro e escalar as luzes
para ver o que está além delas.
Ela olhou para cima, sua visão pintando Corien em tons de ouro. Ele
respirou fundo e, alegremente, ela se perguntou o que parecia para ele agora
que tinha um mundo em suas mãos. Quando eles voltassem para a fortaleza,
ela iria para o espelho antes de comer um único pedaço de comida.
— Quero olhar mais uma vez nos olhos daqueles que me temem e mostrá-
los o que me tornei — disse ela, com a voz trêmula ao pensar nisso. — Vou
mostrar a eles que estavam certos em me temer e que nunca mais vou me
esconder do verdadeiro alcance do meu poder.
Então Rielle olhou além de Corien para o céu cinza opaco e se consolou
imaginando-o refeito – vasto, rugindo e incandescente com estrelas.
30
Ludivine

“Quando o mundo era jovem, resplandecente de fogo e negro de


tempestades, o empirium tocou as areias brancas da costa norte de
Patria e ergueu do pó uma criatura de tamanha beleza que por um
momento todas as feras do mundo prenderam a respiração. Para esta
criatura, o empirium soprou o presente da longa vida, e a enviou voando
para as nuvens em asas recém-nascidas de luz e sombra que se
arrastavam até seus tornozelos, e a chamou de anjo.”
—A Garota na Lua e Outros Contos, uma coleção do folclore
angelical e mitologia

Em seu barco, com a capa úmida de água do mar, Ludivine observou os


navios de guerra Mazabatianos nas ondas. Seus olhos humanos roubados
lacrimejaram com o vento.
Havia quinze navios, seus cascos de madeira curvos e conveses vazios
polidos até brilhar. Uma bandeira de ciano e esmeralda tremulava
orgulhosamente em cada mastro, e os navios mergulharam no mar a toda vela
– mas não estavam tripulados, impulsionados por trabalhadores aquáticos e
windsingers amontoados nos barcos ao redor de Ludivine.
Em algum lugar acima, silenciosa e invisível na noite espessa, Atheria
manteve vigilância, pronta para mergulhar e extrair Audric se necessário.
— Você está maravilhosamente bem, Lu — veio a voz baixa de Audric. Ele
tocou seu ombro, pelo que ela ficou grata. Mesmo através de sua capa e
vestido, o calor de sua pele encharcada de sol era um bálsamo familiar, que
deixou seu peito doendo.
Fazia muito tempo desde a última vez que ele a tocou. Ela teve que olhar
para o pensamento de lado. De frente, isso a quebraria.
Audric retomou sua posição na proa do barco. Ele não era marinheiro, mas
parecia à vontade parado ali, sua capa esvoaçando atrás dele.
Ludivine observou os soldados remando em seus barcos, os elementais
trabalhando para empurrar os navios de guerra vazios pelo oceano. Quando
vacilaram de fadiga, olharam para Audric, este rei que não era deles. A rainha
Fozeyah permaneceu em Quelbani, supervisionando as defesas da cidade em
caso de rápida retaliação da marinha celdariana ou da chegada de outra
tempestade. A rainha Bazati e mil soldados Mazabatianos estavam viajando
pela rota terrestre para Celdaria. Em mais dois dias, chegariam à capital.
A princesa Kamayin estava sentada atrás de Ludivine, trabalhando tão
arduamente quanto os outros waterworkers que comandava, e eles estavam
gratos por ela. Seus pensamentos, quando se voltaram para Kamayin,
brilhavam de amor.
Mas era Audric, também, quem eles amavam. Eles o encontraram no
escuro, seus cachos espalhados pelo vento, sua pele negra brilhando com o
luar de fora e a luz do sol de dentro. Gravado em suas mentes estava o
momento em que ele mergulhou no olho do furacão e o destruiu por dentro,
sua espada em chamas em suas palmas ensanguentadas, o céu florescendo em
ouro.
Desde aquele dia, sua pele tinha um novo brilho. Fios dourados de luz
douraram seus cachos. Ele sempre fora lindo para Ludivine – aqueles olhos
castanhos calorosos, aquela boca carnuda, seu queixo quadrado e firme.
Agora, ele era algo saído da tradição sagrada. O Portador da Luz,
descendente de Santa Katell, renasce no ventre de uma tempestade.
Suas mãos tremiam. O escudo mental que ela criou para encobrir os barcos
não vacilou. Mas os pensamentos sombrios que vinham fermentando em sua
mente por meses se agitaram e aumentaram, ameaçando transbordar.
Para mantê-los afastados, ela pensou em seu plano novamente.
O Mar de Silarra era uma lança de água cega entre a costa sul de Celdaria e
a costa norte de Mazabat. Eles estavam viajando por lá por uma semana.
Ludivine podia ver a linha escura da costa celdáriana no horizonte.
Eles haviam enviado uma mensagem: O usurpador cairá. O sol vai nascer.
E agora quinze navios de guerra navegavam rapidamente para Celdaria.
Centenas de soldados de Merovec Sauvillier haviam cavalgado para o sul da
capital para montar uma defesa. Ludivine os sentia mesmo agora – dezenas
de mentes esperando na costa, outras deslizando para encontrá-los em seus
próprios navios de guerra.
Com a capital carente de tantos lutadores, Merovec estaria totalmente
despreparado para a chegada da Rainha Bazati e a primeira leva de seu
exército. Ludivine empurrou sua mente para o leste, em direção à estrada que
o exército da rainha viajou, e ficou satisfeita em encontrá-los no curso.
Haviam deixado Mazabat dias antes da armada de Audric e chegariam à
capital em menos de dois dias, muito antes que os soldados que Merovec
mandara para a costa pudessem voltar correndo para a capital e defendê-la.
Tudo estava como deveria ser. E, no entanto, isso não era conforto; os
pensamentos de Ludivine permaneceram um nó emaranhado de medo e
vergonha.
Ela lambeu o lábio superior, sentindo o gosto salgado de seu suor, e ficou
maravilhada. Anos neste corpo, e ela ainda não tinha se acostumado com suas
esquisitices – o gotejar gélido da ansiedade, a onda de desejo, a pontada
aguda da fome. Como um anjo, séculos atrás, ela obviamente sentia essas
coisas. Mas como um humano, cada sensação era muito mais imediata, a
fome mais urgente, o desejo mais insaciável.
Ela fechou os olhos, lutando contra a atração da memória. Ela mesma
esparramada na cama de Audric em Baingarde, Rielle aninhada entre eles.
Audric lendo à luz de velas, Ludivine brincando distraidamente com o cabelo
de Rielle. Rielle roncando, sua bochecha pressionada contra o braço de
Ludivine.
As lágrimas tornaram a garganta de Ludivine apertada e quente. Ela sabia
que esse momento nunca voltaria.
O que foi? Audric esquadrinhou a costa Celdariana. Você está preocupada.
Não é nada, Ludivine disse a ele, e ficou aliviada quando sentiu a mentira
passar despercebida.
Rielle teria sentido imediatamente.
Seu escudo está aguentando. Seus pensamentos estavam firmes, uma mão
firme guiando-a por um labirinto escuro. Espero que você esteja orgulhosa
do seu trabalho. É notável.
Ludivine quase riu. O que teria sido notável seria se eu fosse mais forte. Se
eu tivesse conseguido lutar contra o controle de Corien sobre Rielle e afastá-
la dele. Se eu a tivesse persuadido a sair do lado dele e voltar para o nosso
antes que ela abrisse o Portão.
Ao mergulharem no mar, Ludivine lembrou-se daquele dia em Quelbani em
que o céu escureceu e o mundo parou. Ela estendeu a mão para Rielle e viu
ecos indistintos do que ela havia feito – o Portão se abriu, centenas de
milhares de anjos foram libertados. Ludivine sentiu a memória ecoar na
mente de Audric também, escurecendo seus pensamentos. Ela gostaria de
poder segurar a mão dele.
Mas tocá-lo só tornaria as coisas mais difíceis.
Ludivine apertou as palmas das mãos e repassou os pensamentos mais uma
vez sobre a concha do escudo. Quanto mais diligentemente trabalhava, menos
espaço permanecia dentro dela para a culpa. A culpa desapareceria e
acabaria. Algum dia, ela não sentiria nada.
Então veio um som de assobio e crepitação. Uma lança quente de poder
elemental disparou pelo ar, e um dos navios de guerra Mazabatiano explodiu
em chamas.
No horizonte, dezenas de luzes brilharam. Pequenos incêndios, furiosos e
prontos.
Audric apontou, correndo os dedos ao longo da costa.
— Eles estão aqui — murmurou. — E eles têm firebrands.
Ludivine sentiu como Audric ficou perturbado ao ver os navios que seu
próprio pai havia encomendado navegando em sua direção durante a noite
nas mãos do inimigo. Suas velas eram fantasmas, seus novos estandartes da
Casa Sauvillier cinza e preto ao luar.
— Remadores, com tudo a estibordo! — A voz de Audric soou sobre a
água.
Os remadores obedeceram. Os seis barcos viraram à direita, uma formação
compacta dentro do escudo de Ludivine. Kamayin convocou seus elementais
em um dialeto mazabaciano do norte.
— De céu a céu! — ela chorou. — De mar em mar! Firme eu estou! Eu
nunca fujo!
Os windsingers atenderam ao chamado, entoando o Rito do Vento enquanto
trabalhavam. E então os waterworkers começaram, repetindo a segunda
oração de Kamayin:
— Ó mares e rios! Oh, chuva e neve! — Suas vozes formaram uma cadeia
estável de som sobre as ondas. — Afogue-nos nos gritos de nossos inimigos!
Eles mantiveram a armada Mazabatianos vazia navegando para o norte sem
pausa, mesmo enquanto cada navio pegava fogo e queimava. Os navios de
guerra encontraram a frota celdariana sem flechas disparadas, sem catapultas
lançadas.
— Virem, seus idiotas — sussurrou Audric, pois os navios celdarianos
demoravam a desviar-se dos navios que os atacavam.
Ludivine, de costas para as chamas, podia, no entanto, sentir como os
capitães estavam confusos. Quinze valiosos navios de guerra Mazabatianos
navegando a toda velocidade para sua destruição?
Ela se permitiu um pequeno sorriso enquanto seus seis pequenos barcos
circundavam o caos em direção à costa Celdariana. Pelos olhos de Audric, ela
viu os fogosos navios mazabatianos cercarem a desnorteada frota celdariana
e, uma vez posicionados, Audric gritou um único comando.
Imediatamente, os elementais baixaram os braços. As cabeças caíram sobre
os ombros. Alguns se inclinaram sobre a água e soltaram força.
Mas ainda havia a costa para alcançar e, após alguns momentos de
descanso, Kamayin gritou encorajamento, e sua frota encapuzada retomou o
curso para Celdaria.
Ludivine olhou fixamente para a costa escura. Seu coração era uma coisa
selvagem, seu ritmo como o clop de um cavalo correndo assustado.
Audric se ajoelhou ao lado dela. — Só mais um pouco, Lu — ele disse.
Seus pensamentos estavam cansados; ela podia sentir como a linguagem
mental o havia cansado. — Então poderemos descansar, recuperar o fôlego.
Você se saiu tão bem.
Ela apertou sua mandíbula contra o calor de sua voz. Como ela desejou seu
retorno nessas longas semanas. E agora, como ela lutou para empurrar isso de
sua mente.
Sim, eles alcançariam a costa em breve. Eles iriam descansar.
E então, ela fugiria.

•••

Os waterworkers calmamente afundaram os barcos em uma enseada profunda


na costa Celdariana, a algumas centenas de quilômetros de Luxitaine, onde
havia poucas fazendas e campos de cabras sonolentas. Eles fizeram um
acampamento rústico em uma floresta rasteira perto de um pomar de
oliveiras. O ar estava quente, mas em Âme de la Terre, no alto das
montanhas, estaria fresco com as neves da primavera.
Ludivine esperou até que a maior parte do grupo estivesse dormindo.
Apenas duas pessoas permaneceram acordadas: uma mulher pálida e
corpulenta e um homem de pele castanha, nenhum deles um elemental.
Soldados, xingando baixinho uns aos outros sobre os braços doloridos, as
mãos com bolhas de tanto remar. Mas Ludivine podia sentir o florescimento
de seu orgulho, como estavam contentes por terem visto Audric em
segurança na praia.
Sua garganta doeu quando ela os fez dormir. Eles acordariam em meia hora
mais ou menos, envergonhados por terem cochilado. Prometeriam um ao
outro nunca contar a ninguém.
O acampamento estava em silêncio, a lua um sorriso tênue. Uma cabra
baliu em seu campo escuro.
Os joelhos de Ludivine tremeram quando ela deixou os soldados para trás.
Não havia necessidade de rastejar; o poder que os protegeu através da água a
protegia ainda. Eles não ouviriam nenhum de seus passos, nem mesmo
sentiriam o ar que seu corpo se movia.
E ainda assim ela rastejou como se através de um lago congelado. Uma
espécie de loucura a tomou. Seus pensamentos gritaram; ela não conseguia
acalmar seu giro selvagem.
Em um carvalho curvado, ela fez uma pausa. Sua nuca coçou de suor. Por
um momento, olhou para o campo escuro, a casa de fazenda na colina à sua
direita.
Ela poderia ter ido então e isso estaria terminado.
Mas não resistiu a um último olhar para ele.
Audric dormia sob o carvalho, a Guarda do Sol formando um círculo
estreito ao redor dele e Sloane não muito longe, dormindo com os braços
cruzados e o rosto carrancudo.
Ludivine se ajoelhou ao lado de Audric e segurou seu rosto com as mãos.
Ela mal podia suportar olhá-lo para ver como era macio e querido durante o
sono. A linha reta elegante de seu nariz, a ruga de sua testa séria. Mesmo em
repouso, ele parecia um rei.
Ela o beijou enquanto ele dormia – suas têmporas, suas bochechas.
Pressionando sua testa na dele, ela respirou o ar que ele exalou, circulando
seus polegares contra a curva de sua mandíbula.
— Eu te amo, meu amigo — ela sussurrou. — Eu nunca não o amei. — Ela
se lembrou das palavras que ele dera a Rielle, de como seu rosto era terno
quando ele as pronunciava. — Minha luz e minha vida — ela sussurrou,
então pressionou sua boca em sua bochecha.
As lágrimas rolaram por seu rosto, seu peito tão apertado que ela temeu que
desabasse sobre si mesma. Levantando-se, ela não o olhou novamente.
Quando tropeçou para longe dele, parecia o que ela imaginava que fosse a
morte. Em seu sono, ele era inocente de sua covardia; quando ele acordasse,
ele seria espancado com isso.
Ela colocou a mão no peito, desejando que seu coração parasse de doer.
Mas ela sabia que nunca iria. Sabia disso e ainda assim o deixou, confiante de
que ele seria capaz de se esgueirar por Âme de la Terre e entrar em Baingarde
sem que ela estivesse ali para protegê-lo. Ele tinha a Guarda Solar, ela disse a
si mesma. Tinha quarenta elementais e vinte e quatro soldados habilidosos e
uma princesa de Mazabat.
Eles não precisam de um anjo, disse a si mesma, e porque eles estavam
dormindo, porque ela havia se escondido tão completamente, ela chorou sem
medo enquanto fugia. Seus soluços agarraram seu peito como uma luva de
aço. Ela escalou uma pequena crista de rocha, enxugou o rosto com as mãos
sujas de terra.
No topo, ela se sentou em uma pedra plana rachada no meio. A pedra
balançou enquanto ela chorava. Ela se abraçou e enviou a Audric todas as
lembranças que tinha de seus anos juntos. Todas as tardes preguiçosas se
estendiam no tapete perto das janelas abertas de seus quartos, todas as noites
quentes aninhadas em sua cama. Os braços dele ao redor dela, os braços dela
ao redor de Rielle. Sua cabeça escura dobrou-se sobre a dela, e o rosto de
Rielle se chocou contra o pescoço dela, ou o dele, acariciando-os alegremente
enquanto ela adormecia.
Quando acordasse, ele veria as memórias e as odiaria. Ele a odiaria por
enviá-las, lembrando-o do que ambos haviam perdido, e a odiaria ainda mais
por deixá-lo. Ele não entenderia e ela não o deixaria com uma explicação,
pois a verdade era muito covarde.
Durante anos, ela sonhou com um futuro com eles. Eles envelheceriam e
teriam filhos. O poder de Rielle aumentaria e ela usaria o empirium para
solidificar o domínio que Ludivine mantinha sobre este corpo que ela
aprendera a pensar como seu. Rielle iria ajudá-la a realmente se juntar a ele,
finalmente, se tornar humana ou pelo menos perto o suficiente – despojada de
sua longa vida, reduzida pela arte divina de Rielle a algo bruto e frágil. E
Ludivine poderia finalmente descansar, não mais lutando para permanecer
intacta dentro de um corpo, mas simplesmente existindo. Um ser que
ninguém temeria ou insultaria. Ela amaria e zelaria por Rielle e Audric e sua
família pelo resto de seus dias, e envelheceria, como eles envelheceriam, e
morreria como eles morreriam, e nunca seria obrigada a viver sem eles.
Mas em vez disso, falhou com os dois completamente. Ela sabia disso há
meses. Um ou ambos morreriam na luta por vir, talvez nas mãos um do outro,
e Ludivine não suportaria ver isso.
Ela se levantou, trêmula, e afastou os galhos da saia. Então se virou e viu
uma forma escura aparecendo entre as árvores. Monstruosamente alta,
terrivelmente imóvel. Mesmo nas sombras, os olhos negros de Atheria eram
imperdíveis. Eles se fixaram em Ludivine como se ela fosse uma presa.
Ludivine congelou. Sob o olhar da besta divina, o escudo de sua mente
parecia lamentável e infantil. Ela nunca se sentiu mais profundamente como a
covarde que era.
— Meu amor não foi suficiente para salvá-los — sussurrou, segurando seu
estômago. — Se eu ficar e vê-los morrer, isso vai me matar.
O pégaso ficou olhando. Sua cauda balançou violentamente.
Ludivine deu meia-volta, fugiu rápido através do pomar e pelos campos
além, escalou uma cerca de madeira tosca e então, às margens de um pequeno
riacho, olhou para trás.
Atheria não a seguiu. Audric acordaria para ver o pégaso ao seu lado.
Talvez visse em seus grandes olhos escuros a verdade que ela ouvira.
Ludivine endireitou os ombros e olhou para o horizonte norte. Havia
colinas e montanhas além. Florestas irregulares, rios correndo para o mar. Ela
não sabia para onde iria, o que faria. Ela conhecia apenas o tambor de seu
coração, seus passos pisoteando Covarde, o medo quente e acelerado que a
dizia para correr.
Se corresse, poderia se esconder.
E se se escondesse, quando o mundo acabasse, poderia viver contente
dentro do casulo de suas memórias e fingir que não ouviu nada.
31
Audric

“Durante semanas, os magísteres e eu sugerimos a Merovec que ele


implemente os reforços e medidas defensivas que você delineou em sua
última carta, mas ele se recusa. Ele insiste que o verdadeiro perigo está
dentro das paredes de Âme de la Terre. Ele continua seus
interrogatórios à elementais e se recusa a olhar além de nossas
fronteiras em direção ao verdadeiro perigo. Suspeito que seja porque a
ideia do que está por vir o apavora. Ele é incapaz de enfrentar isso.
Muitos elementais desapareceram. Rumores de corpos amontoados
dentro de Baingarde correm pelas ruas como um incêndio. Meu coração
se lamenta por lhe enviar esta notícia, mas também posso dizer o
seguinte: a Coroa Vermelha está pronta. Tudo está pronto para o seu
retorno. Uma série de instruções enviadas por vários mensageiros
diferentes estarão a caminho de você em breve. Paciência e coragem,
meu rei. Em breve, você estará em casa. Para a coroa e o país,
protegemos a verdadeira luz.”
—Carta codificada de Miren Ballastier para o rei exilado Audric
Courverie, datada de 21 de fevereiro, ano 999 da Segunda Era

A cada curva nos estreitos túneis escuros abaixo do Monte Cibelline, uma
parte de Audric prendia a respiração, esperando que o próximo trecho de
escuridão revelasse Ludivine.
Ela ficaria sem fôlego de excitação. As notícias vieram do norte. Ela não
tinha fugido; ela simplesmente se escondera para fazer contato seguro com
Rielle. E agora, Rielle estava voltando para casa, acelerando para o sul em
alguma outra besta divina gloriosa que descera das nuvens para salvá-la – o
que, é claro, deixaria Atheria com ciúmes, Ludivine apontaria. Ele riria e a
abraçaria, e então ela protegeria a todos – Audric, Sloane, Evyline e a Guarda
Solar, Kamayin e seus soldados – enquanto se esgueiravam para Baingarde
na calada da noite. E quando Rielle chegasse em casa, o castelo seria seu
novamente.
Mas os túneis permaneceram escuros, os únicos sons eram de sua
respiração, os passos de seus amigos e aliados, e a outra parte de Audric, a
parte menos esperançosa, sabia a verdade:
Ludivine não voltaria.
Eles escalaram um estreito lance de escadas de pedra no fundo da terra.
Evyline insistiu em liderar o caminho; ela, Sloane e a Guarda Solar haviam
feito essa rota meses antes e sabiam disso muito bem. Audric ficou
maravilhado com a passagem do tempo. Embora apenas um pouco mais de
quatro meses tenham se passado desde seu casamento condenado, as longas
semanas desde então pareceram uma era inteira, e que havia se casado com
Rielle na mesma noite do golpe de Merovec – a mesma noite em que ele
fugiu de casa – parecia bizarro, até impossível.
Eles escalaram um estreito lance de escadas de pedra no fundo da terra.
Evyline insistiu em liderar o caminho; ela, Sloane e a Guarda Solar haviam
feito essa rota meses antes e sabiam disso muito bem. Audric ficou
maravilhado com a passagem do tempo. Embora apenas um pouco mais de
quatro meses tenham se passado desde seu casamento condenado, as longas
semanas desde então pareceram uma era inteira, e que havia se casado com
Rielle na mesma noite do golpe de Merovec – a mesma noite em que ele
fugiu de casa – parecia bizarro, até impossível.
Este era um momento em que Ludivine teria estendido a mão para ele. Não
foi corvadia, ela teria dito naquela voz baixa e firme dela. Foi sabedoria.
Você não poderia saber quais aliados permaneceram para você. A visão que
Corien enviou já havia lançado a noite ao caos. Você é o herdeiro do trono.
Se você tivesse ficado naquela noite e morrido, o reinado de Santa Katell e
seus descendentes teriam realmente se perdido.
Mas a mente de Audric permaneceu sua, vazia exceto por seus pensamentos
giratórios. A cada passo, mesmo ao escalar a montanha, se sentia afundar de
volta no lugar pesado e escuro de onde mal começara a emergir nas últimas
semanas. Ele desejava dormir, enfiar-se em um canto frio desses túneis que
seus ancestrais haviam construído e fechar os olhos para sempre.
Mas então Evyline, no início da procissão, abriu a porta oculta esculpida na
montanha e eles emergiram nos jardins crescidos atrás de Baingarde.
Audric ficou de lado na entrada do túnel, permitindo a passagem dos
outros, e olhou para o mundo verde familiar ao seu redor. Tão longe do
castelo, os jardins se estendiam indômitos. Uma profusão de samambaias e
trepadeiras emaranhadas de flor da lua cresceram em torno da porta oculta.
Um tapete de agulhas de pinheiro suavizou o solo, e acima as árvores ficaram
altas e próximas.
O cheiro era tão familiar que Audric se sentiu tonto – o espesso tempero
verde das árvores trêmulas, a doçura das folhas velhas apodrecendo na terra.
Além da vegetação selvagem perto da porta, bem longe na escuridão de jade,
uma única árvore se erguia, seus galhos finos pesados com botões verdes
brilhantes e pequenas flores rosa. As primeiras flores da primavera.
Audric não conseguia desviar os olhos deles. Ele beijara Rielle pela
primeira vez sob uma daquelas árvores. Ele sabia que não deveria pensar
nisso, mas não podia deixar de fazer isso. O calor de Rielle em seus braços, a
suavidade de sua boca. Os ruídos ansiosos que ela havia respirado contra seu
ouvido, as mãos trêmulas em seus cabelos. A doce dor de felicidade por
finalmente se permitirem beijar.
Sloane tocou seu ombro. Ele esperou até que seus olhos estivessem secos,
então se afastou da árvore. Kamayin estava murmurando instruções para seus
elementais, os receptáculos levemente acesos. Evyline e a Guarda do Sol
formaram um círculo, todos recitando os sete rituais elementais.
Audric mal suportava olhá-los, aquelas pessoas que haviam decidido que
lutariam ao seu lado. Eram tão suaves na luz fraca do jardim, tão quebráveis.
Se ele nunca tivesse amado Rielle, estariam ali? Um usurpador se sentaria em
seu trono? Seu pai estaria morto e sua mãe uma casca de seu antigo eu?
Teria sido mais fácil, ele sabia, se nunca a tivesse amado.
E ainda assim, se tivesse escolha, ele faria de novo, mesmo sabendo o que
estava por vir. Ele a perderia mil vezes se isso significasse que primeiro teria
a chance de amá-la.
Eles cruzaram os jardins até as catacumbas, onde outra rede de túneis
levava à própria Baingarde. Elas se conectaram aos túneis da montanha em
várias junções subterrâneas; não havia necessidade de vir à superfície. Mas
Audric queria ver os jardins, embora soubesse que isso o machucaria.
Perto das catacumbas, as piscinas de observação brilhavam planas e pretas,
como pedras polidas cravadas no solo. Memórias de si mesmo, Rielle e
Ludivine, jovens e indiferentes, esvoaçavam pelas poças como sombras.
Sloane ficou perto dele enquanto eles corriam por entre as árvores. Seu
cabelo preto curto brilhava azul ao luar pálido. O orbe de obsidiana polida de
seu cetro zumbiu com força imediata, e as sombras se agarraram a ela com
amor, como crianças às pernas de seus pais.
— É estranho, não é? — ela murmurou. — Lembrar da última vez que
estivemos aqui? Foi uma noite tão selvagem, há muito tempo, e tão cheia de
terror. Quase não me lembro da aparência de Baingarde.
— Eu me lembro — Audric disse imediatamente. — Eu o vejo em meus
sonhos. Sinto o gosto dos bolos de canela que costumava roubar da cozinha
para Rielle. Posso sentir o cheiro do couro velho dos meus livros. Eu posso
sentir o casco frio da égua de pedra de Santa Katell no Salão dos Santos. Eu
costumava sentar e orar quando era criança, quando não conseguia dormir.
Eu poderia te contar cada escada que range na ala dos criados. Há uma
tapeçaria no segundo andar, perto do antigo escritório de meu pai. Ela retrata
Santa Nerida em pé no meio de um mar revolto, as ondas se quebrando em
cada lado dela. Há um fio dourado em seu tridente que se soltou. Bem no
eixo, abaixo do pino do meio.
Eles haviam alcançado as catacumbas. Sloane o observava com firmeza,
sem dizer nada. Os outros esperavam nas sombras, armas em punho,
esquadrinhando as árvores em busca de inimigos.
— Lembro-me de tudo — sussurrou Audric.
Uma chamada quebrou o silêncio da noite: três longos toques estrondosos
da velha torre de vigia no perímetro da cidade. Audric só tinha ouvido o som
quando Miren e seus acólitos do Forge visitaram as buzinas para fazer
reparos e refrescar a magia tecida em seu metal.
O som daquela buzina significava que inimigos haviam sido avistados.
Outra buzina respondeu, esta mais alta e mais forte. Kamayin, sorrindo,
ergueu o queixo; seus soldados ficaram mais altos. Era a Buzina da Rainha
do exército Mazabatian, anunciando sua chegada. A rainha Bazati estaria com
eles, e o general Rakallo. Mil soldados mazabatianos. Mais viriam, uma vez
que eles tivessem retomado a cidade. A verdadeira batalha ainda estava por
vir.
Audric se virou para enfrentar seu próprio pequeno exército. O menor raio
de luz escapou do topo da bainha de Illumenor, iluminando os rostos reunidos
ao seu redor com um brilho assustador.
— Que a luz da Rainha nos guie — disse ele sem vergonha, pois Rielle
pode tê-los deixado, mas as orações pronunciadas em seu nome não perderam
nenhum de seus poderes.
E ainda havia outra rainha a ser encontrada, se a profecia fosse verdade. Ela
carrega uma menina, Ludivine lhe dissera semanas antes, e sempre que
pensava nisso, seu coração doía de amor. Era a luz de sua filha que agora
seguiam? Ou era simplesmente a luz que surgiu ao acreditar que havia razão
para continuar?
Audric chamou a atenção de Kamayin. Ela acenou com a cabeça uma vez,
seus receptáculos zumbindo ouro em seus pulsos. Então ele encontrou
Evyline, elevando-se acima de todos eles. As rugas ao redor de sua boca
pareciam mais profundas do que Audric jamais vira, o cinza de seu cabelo
muito mais parecido com o branco.
Como os últimos meses envelheceram todos eles. Quão esgotados pela dor
eles se tornaram.
— Que a luz da Rainha nos guie — respondeu Evyline, e a Guarda Solar
ecoou sua oração.
Não havia mais nada a dizer. Audric correu para a escuridão fria das
catacumbas, o ar pesado com o peso de vidas vividas e perdidas, e liderou seu
pequeno exército feroz para os túneis que o levariam finalmente para casa.

•••

Baingarde fervilhava de caos.


Servos juntaram armas e suprimentos, fugiram para seus quartos, ocuparam
postos nas janelas para assistir a batalha se desenrolando lá fora. Soldados da
Casa Sauvillier corriam de depósito em depósito, depois saíam para os pátios
do castelo.
Audric, Kamayin, Evyline e Sloane lideraram, cada um, uma equipe de
lutadores através do castelo de suas fundações cavernosas. Audric havia
desenhado diagramas de Baingarde, revisado os mapas repetidas vezes até
que todos dos barcos que haviam cruzado o Mar de Silarra soubessem o
número de quartos, as escadarias a evitar, onde os guardas provavelmente
seriam colocados. Qualquer um que encontrassem, eles deveriam incapacitar
– sem matar, se eles pudessem – e para evitar a detecção, eles deveriam usar
magia elemental apenas quando necessário. Os soldados comuns que juraram
servir a Merovec Sauvillier, Audric lhes dissera, não eram os culpados pelos
crimes de seu senhor.
Audric se aproximou do imponente hall de entrada de Baingarde, sua
equipe de seis pessoas em seus calcanhares. Eles se agacharam nas sombras
do mezanino do segundo andar. Uma arcada de madeira polida percorria o
comprimento de cada corredor do mezanino, e pesadas cortinas verdes
cobriam as salas de estar privadas. Três enormes escadarias uniam o
mezanino ao corredor abaixo, onde o piso de mármore polido brilhava.
Audric observou as enormes portas da frente se abrirem, madeira grossa
reforçada com pedra. Um fluxo de soldados Sauvillier disparou noite adentro,
seu comandante berrando ordens. Mesmo depois de fechar as portas atrás
deles, Audric podia ouvir os sons da batalha na cidade. Ele olhou pelas
janelas que se estendiam por toda a extensão da parede da frente, viu as ruas
de sua cidade descendo até o grande lago feito de um santo e os amplos Flats
gramados além.
Os Flats estavam iluminados com magia – rajadas de fogo raivosas, raios
crescentes de luz solar. O exército Mazabatiano era um grande rio escuro que
corria pela passagem larga entre o Monte Taléa e o Monte Sorenne. Formas
espalhadas espalharam-se pelas planícies para encontrá-los.
Audric observou severamente. Com tantos soldados de Merovec ainda
voltando da costa, aqueles que ficaram na capital seriam oprimidos pela
eficiência brutal dos mil soldados da Rainha Bazati. Os relatórios de Miren
estimaram que apenas algumas centenas de soldados Sauvillier
permaneceram em seus postos na capital, e esses estariam apáticos e agitados,
indisciplinados, como todos os soldados de Merovec haviam se tornado.
Eles não resistiriam por muito tempo aos Mazabatianos. Foi uma diversão
fantástica desviar a atenção do castelo e uma demonstração surpreendente
para os cidadãos de Âme de la Terre de como Merovec havia preparado
inadequadamente a cidade para a invasão angelical.
Mas Audric ainda precisava se mover rapidamente.
Sob o capuz de sua capa, ele observou as sombras, seus lutadores tensos
atrás dele. No final do saguão de entrada, as grandes portas polidas do Salão
dos Santos estavam fechadas. Uma dúzia de guardas flanqueava as portas.
Mais duas dúzias estavam postadas ao redor do saguão de entrada.
Audric franziu a testa, lembrando-se das instruções codificadas de Miren.
Ele estará no Salão dos Santos, ela escreveu. Vou levá-lo e mantê-lo lá.
Mas com tantos soldados cercando as portas? Miren tinha lhe assegurado
que estariam ligeiramente protegidos, e a visão de três dúzias de guerreiros
vigilantes deixou Audric inquieto. As mensagens de Miren foram
interceptadas? Seus espiões os traíram?
Os nervos zumbiam sob sua pele; ele coçava para se mover. Uma luz
brilhou suavemente no mezanino – três vezes em rápida sucessão – marcando
a chegada do grupo de Sloane. Outro conjunto de flashes, depois um terceiro
– grupos de Evyline e Kamayin. Os guardas abaixo ergueram os olhos,
desembainhando suas lâminas.
Audric sibilou uma ordem para seus lutadores, e eles desceram correndo as
escadas, os outros três grupos fazendo o mesmo pela sala. Audric não
empunhou Illumenor. Os guardas de Merovec podem ter suspeitado que ele
estava em algum lugar nesta luta, mas ele iria mantê-los pensando por tanto
tempo quanto pudesse.
Enquanto atacavam os soldados Sauvillier, ele se preparou para o golpe e a
queima de magia – mas nada veio.
Ele observou em choque enquanto seu povo despachava facilmente três
dúzias de soldados. Não havia elementais entre eles, percebeu. As cartas de
Miren lhe contaram sobre o novo medo de Merovec da magia, como ele
suspeitava que todos os elementais fossem aliados secretos de Rielle. Mas se
proteger com guardas que não tinham chance contra atacantes que, é claro,
lutariam com magia parecia uma tolice surpreendente demais para acreditar.
Kamayin e seus elementais explodiram os soldados com vento e água –
umidade extraída do ar, o vento mantido esperando em suas palmas. O cetro
de Sloane cortou a luz azul, convocando lobos das sombras que fizeram os
soldados se encolherem. Evyline e a Guarda Solar abriram caminho em
direção ao Salão dos Santos. Eles eram uma tempestade violenta, despejando
toda a sua fúria e dor nos golpes de suas espadas. Evyline soltou um grito
gutural feroz e cortou o último dos guardas de Merovec.
Ela se virou e encontrou Audric do outro lado do corredor. Corpos
espalhados pelo chão. Alguns dos soldados gemeram, segurando suas feridas.
Mas a maioria estava imóvel.
Respirando pesadamente, Evyline baixou a cabeça. — Eu tentei o meu
melhor para poupá-los, meu rei, mas quando alguém corre para você com
uma espada, você faz o que deve. — Ela fez uma pausa. — Quando viram o
que Merovec estava fazendo, poderiam ter fugido. Poderiam tê-lo desafiado.
Audric passou por cima de um corpo a seus pés.
— Nem todos eles poderiam — ele disse calmamente. — Ele poderia ter
mantido suas famílias prisioneiras. Ele poderia tê-los ameaçado de tortura. Eu
não os culpo e lamento cada uma de suas mortes.
Então, com seu povo atrás dele, suas lanças e espadas erguidas e prontas,
Audric abriu as portas e entrou no Salão dos Santos.
Dentro da enorme sala, as sombras reinaram. A única luz vinha das tochas
de oração fixadas na base de cada enorme santo de pedra. Os tronos vazios da
Rainha Genoveve e do Rei Bastien estavam no estrado na outra extremidade
da sala. Acima deles, curvava-se um amplo loft no qual fileiras de cadeiras de
madeira polida aguardavam os Grandes Magos, os conselhos reais e
conselheiros e a nobreza convidada. Além do loft, elaborados vitrais
retratavam os santos em tempos de paz, as Guerras Angélicais bem atrás
deles. E elevando-se entre o loft e os tronos estava a estátua de Santa Katell
em sua égua branca, sua cabeça coroada com um halo de ouro polido.
Aqui, o pai de Audric questionou Rielle após a Boon Chase. Aqui, o
Arconte havia coroado sua Rainha do Sol e Ludivine havia voltado dos
mortos. O peso do passado da sala pressionado contra a pele de Audric.
Ele olhou ao redor rapidamente enquanto passava pelos santos que
observavam. Uma dúzia de arqueiros Sauvillier estava no loft, suas flechas
apontadas para ele. Ao redor da sala, espadas erguidas e flechas posicionadas,
havia mais soldados, cada um rastreando seu povo enquanto o seguia para
dentro.
E de pé no estrado estava o próprio Merovec Sauvillier, resplandecente na
cota de malha e na armadura de sua casa – uma faixa avermelhada, borlas de
prata, um belo tabardo de lã grossa tingida de azul meia-noite. Seu cabelo
loiro caía em ondas sobre seus ombros, e seus olhos eram de um azul tão
doce quanto os de Ludivine. Exceto por sua mandíbula, que era firme e
quadrada onde a de Ludivine era macia, a semelhança era fantástica.
Em seus braços, ele segurava a Rainha Genoveve. Ela estava de costas para
ele, uma lâmina de prata fina em sua garganta.
— Chegue mais perto e cortarei a garganta dela — gritou Merovec, sua voz
crescendo na sala vazia.
Audric parou, gesticulando para que os outros atrás dele fizessem o mesmo.
Deveria tê-lo aterrorizado ver sua mãe abraçada de maneira tão cruel. Em vez
disso, uma calma caiu sobre ele, deixando sua mente nítida e clara.
— Você já é um traidor e criminoso, Merovec — disse Audric. — Você
acrescentaria o assassinato de sua própria tia a essa lista?
— Minha tia traidora. — Merovec puxou a cabeça de Genoveve para mais
perto da sua, com a mão em seus cabelos. — Ela insistiu que eu ficasse aqui
em vez de sair com meus soldados para encontrar o exército Mazabatiano.
Primeiro Bastien é morto, então seu filho e sua sobrinha desaparecem. Ela
disse que não suportaria me perder também. — Ele sibilou em seu ouvido, —
Você acha que eu não sei para onde você tem andado sorrateiramente,
querida tia?
Genoveve não vacilou nas garras de Merovec. Seus cabelos ruivos
grisalhos brilhavam como cobre à luz das tochas. Seus olhos eram duas
moedas de aço.
— Eu acho que você não está ciente de muitas coisas — ela respondeu
calmamente.
— Coroa Vermelha, eles se chamam. Fiel à Casa Courverie. — Merovec
cuspiu no chão. — Meu próprio povo, tramando nas minhas costas enquanto
eu trabalho para mantê-los seguros, enquanto eu desfaço o mal que seu
próprio príncipe permitiu em seu país.
Audric fixou o olhar nos de sua mãe e deu um passo à frente. Nas sombras
no topo do loft, os arqueiros mudaram de posição, mas não perderam as
flechas.
— E o que você fez para mantê-los seguros? — ele perguntou. — Não vi
defesas reforçadas nas fronteiras da cidade, nem torres de vigia adicionais
construídas nas montanhas. Não ouvi falar de nenhuma instrução dada ao
povo sobre anjos ou como fortalecer suas mentes. Também não ouço falar de
Merovec Sauvillier forjando alianças com Borsvall ou Kirvaya.
— Borsvall e Kirvaya. — O rosto bonito de Merovec se contorceu. — Um
sem um rei, e o outro sem uma rainha. Ambos fugiram noite adentro,
deixando seus países no caos. Não quero ter nada a ver com eles.
Audric deu outro passo. — Eu ouvi o que você fez com Ilmaire Lysleva.
Ele era um convidado em sua própria casa, e você o espancou, o aprisionou.
— Mais um passo, cada um medido e cuidadoso. — Eu diria que você
deveria ter vergonha, mas sei que você não tem capacidade para isso.
Merovec soltou uma risada. — Ilmaire? Ele estava fraco. Uma recompensa
de um rei que queria que abríssemos os braços para Rielle, que ela fizesse o
que quisesse. Forçar Rielle a escolher entre o bem ou o mal, luz ou sangue, é
loucura, ele disse. Será nossa ruína. Eu vejo porque você gosta dele. Ele é
tão tolo quanto você. Ele não queria a coroa, de qualquer maneira. Eu o fiz
um favor.
— E agora você se esconde em meu castelo e aterroriza meu povo. —
Audric continuou avançando, outro passo a cada frase. Os arqueiros não
iriam machucá-lo, não sem o comando de Merovec. — Você os interroga e
invade suas casas. Você questiona a fé deles e separa famílias.
— Não posso ter certeza de qual deles você e sua noiva assassina
conseguiram corromper antes de ela deixá-lo. — Merovec inclinou a cabeça.
Um sorriso afiado alargou sua boca. — Diga-me, você se dá prazer ao
imaginá-la gemendo nos braços do novo amante?
Mas Audric era impermeável a ele, sua mente um escudo imaculado. — O
medo o consumiu, Merovec, e você transformou Âme de la Terre em um
ninho para ele. Um lugar de suspeita e desconfiança. Você não fez nada para
preparar nosso povo para o que está por vir.
Merovec olhou ao redor da sala. Sua lâmina cortou a garganta de
Genoveve. Um fino fio de sangue escorreu por seu pescoço branco, mas ela
não gritou; seu rosto nem mesmo piscou de dor e o coração de Audric se
encheu de amor por ela.
— Onde está minha irmã? — Merovec explodiu.
Audric havia alcançado o sol gravado no chão de pedra polida, onde Rielle
estivera durante seu depoimento, a apenas alguns passos do estrado. Ele ficou
no coração do sol, Illumenor cantarolando ao seu lado.
— Ela não está aqui — respondeu ele.
— Claro que está. — O sorriso de Merovec ficou amargo. — Eu sei o que
ela é agora. O desgraçado angelical no corpo da minha irmã. Ludivine! —
Ele rugiu o nome dela e pressionou a faca com mais força contra a garganta
de Genoveve. — Ludivine, ou qualquer que seja o seu verdadeiro nome
nojento, mostre sua cara!
— Ela se foi, Merovec. Há menos de dois dias, ela desapareceu na noite.
Não tenho noção do que aconteceu com ela.
— Você mente. De que outra forma você poderia entrar furtivamente em
Baingarde sem ser visto?
— Porque é minha casa. — Audric deu outro passo à frente. — Eu nasci
aqui, fui criado aqui, e foi aqui que meu pai me ensinou a governar um país,
assim como sua mãe lhe ensinou e o pai dela a ensinou. Eu sei segredos sobre
Baingarde que você nunca saberá, e eu também conheço meu povo.
— Você a está mantendo como refém em algum lugar. Você acha que será
capaz de trocar a vida dela pela de sua mãe.
Genoveve olhou fixamente para Audric, sua expressão voltada para dentro.
Nada apareceu em seu rosto – sem dor, sem medo. Nada além de uma luz
dura em seus olhos que lembrou a Audric da mulher que ela tinha sido antes
que a morte de Bastien a devastasse.
— Não é possível manter Ludivine como refém. Para evitar a captura, ela
entraria em minha mente e me dissuadiria de amarrá-la. — Audric olhou para
os vitrais além da estátua de São Katell. Ele precisava protelar um pouco
mais. — Tenho certeza que você se pergunta quando isso aconteceu. Você se
lembra de quando Lu pegou uma febre terrível quando tinha dezesseis anos?
Ela ficou gravemente doente por semanas.
Um lampejo de memória no rosto de Merovec. — Você testa minha
paciência.
— Eu conheço o sentimento. Lu morreu naquela noite. Um anjo tomou
posse de seu corpo e de seu nome. A transição foi perfeita. Ela queria estar
perto de Rielle, para observá-la e protegê-la. Sua irmã não sofreu. — Em
seguida, acrescentou calmamente: — Pensei em mandá-lo para a morte
sabendo disso, pelo menos. Ou você pode libertar minha mãe e renunciar ao
trono que você roubou de mim, e esse derramamento de sangue vai acabar.
Podemos falar mais sobre essas coisas. Você e seus soldados podem se juntar
aos meus e nos ajudar a preparar nosso país para a guerra.
Uma explosão baixa explodiu do lado de fora, sacudindo o castelo – o som
inconfundível de duas magias elementares se chocando. Em seu rastro, o
silêncio foi confuso. Um único soldado Sauvillier mudou para a direita de
Audric.
— Não há nada que você tenha tocado que não seja cinzas? — Disse
Merovec, com os olhos brilhantes. Só agora sua voz vacilou, quebrando para
mostrar o medo por trás. — Você e Rielle deixam a morte acordada. Não há
nada que possamos fazer para impedir o que está por vir, e você sabe disso.
Não podemos viver enquanto ela sobreviver. Pendurarei seu cadáver no
portão de Baingarde e, ao lado dele, os corpos de todos da Coroa Vermelha.
Meus soldados já terão os capturados agora. Seus rostos apodrecerão ao sol,
ficarão inchados e pretos. E aqueles que passarem por este monumento de
ruína se lembrarão do que aconteceu ao Rei Audric, o coração fraco, e a todos
que o amavam.
Audric olhou mais uma vez para o vitral. Uma sombra tênue passou por ele.
Sua mão moveu-se lentamente para o punho de Illumenor.
— O Flagelo foi uma época sombria em nossa história, Merovec — disse
ele. — O fato de você insistir em recriá-lo, desta vez não para caçar marques,
mas sim qualquer um que você suspeite que esteja trabalhando contra você, é
prova suficiente de que você é indigno de sua coroa roubada.
— Nem mais um passo! — Merovec berrou. Três golpes rápidos de sua
faca deixaram cortes vermelhos nos braços e na bochecha de Genoveve. Ela
gritou então, um grito abafado de dor que fez a visão de Audric pulsar escura.
— Vou abri-la e deixá-la sangrar neste trono que você acha que eu não
mereço! — O rosto de Merovec estava selvagem. — E você terá arruinado
mais uma vida!
Uma explosão penetrante engoliu a voz de Merovec. As janelas de vitrais
se estilhaçaram. Fragmentos coloridos voaram pela sala e Atheria a seguiu de
perto, a boca bem aberta para mostrar seus temíveis dentes afiados. Ela soltou
um grito de raiva que atingiu os ossos de Audric como gelo.
Merovec soltou Genoveve, tateando em busca de sua espada. Genoveve lhe
deu uma cotovelada nas costelas, depois se virou e tentou socá-lo. Ele a
agarrou pelo pulso e a jogou no chão brilhando com o vidro, chutando-a na
lateral várias vezes.
Os soldados Sauvillier no loft dispararam suas flechas. Audric se esquivou
delas, correu para o estrado. À sua esquerda, Sloane puxou sombras dos
cantos do corredor, lançou-as em falcões de bico afiado. Eles mergulharam
rápido, repelindo cada novo tiro de flecha. Evyline e a Guarda Solar
avançaram com as espadas voando. Alguns dos soldados de Merovec
tentaram fugir, gritando de terror quando Atheria os atacou. Kamayin girou,
seus pulsos em chamas. Ela estendeu a mão para as sete bacias de oração que
revestiam a sala e bateu nos soldados em fuga com punhos de água
espumosos.
Uma arqueira agachada no loft levantou-se de um salto e disparou uma
flecha em Atheria. Atingiu seu ombro direito, perto da junta da asa. Ela gritou
e mergulhou para a arqueira, que atirou nela novamente, desta vez no
músculo grosso de sua perna esquerda, mas não teve tempo de encaixar uma
terceira flecha antes que Atheria a alcançasse. Ela agarrou a arqueira pela
garganta e jogou-a com força no chão.
Audric subiu correndo os degraus do estrado e desembainhou Illumenor.
Seu poder correu por seu corpo, colidiu com a espada, então ricocheteou de
volta nele, inundando suas veias com um calor abrasador. Um ciclo
interminável de poder, lâmina com sangue e lâmina novamente. Ouro dançou
diante de seus olhos, mas em vez de obscurecer sua visão, aumentou-a.
Ele balançou Illumenor. O brilho da espada explodiu, deixando a sala livre
de sombras. Todos lutando cambaleavam, protegendo os olhos.
Merovec deixou Genoveve sangrando no chão de vidro espalhado e girou
para encontrar a espada de Audric com a sua. Suas lâminas se chocaram.
Audric se abateu sobre ele, Illumenor crepitando com a luz do sol presa.
Merovec gritou, desviou o olhar do brilho impossível, mas segurou sua
espada com firmeza.
— Você não vai ganhar, Merovec — Audric disse a ele. — Renda-se e
você viverá. Resista e eu o destruirei. Eu não quero isso para você ou para
mim. Nós somos família. Somos filhos de Celdaria.
Merovec empurrou o peso de seu corpo contra a espada de Audric,
liberando o punho de suas lâminas. Ele se lançou para o pescoço de Audric,
incapaz de mirar no brilho de Illumenor.
Audric cuspiu uma maldição. Haveria morte suficiente nos próximos dias,
mas Merovec não estava lhe deixando escolha.
Ele enfocou sua mente, enviou raios de poder que desceram por seus
braços. Illumenor queimou em brasa, seu poder estendendo-se além do metal
até que a lâmina se tornou sólida e grossa como uma lança.
Com o amanhecer eu me levanto, Audric orou, levantando Illumenor. Com
o dia eu brilho.
Ele trouxe Illumenor para baixo através do torso de Merovec, cortando sua
armadura, osso e músculo. As duas metades de seu corpo caíram no chão, as
feridas fumegantes e limpas, sem sangue. Audric olhou para a carnificina na
luz implacável de Illumenor. Ele nunca seria capaz de queimar de sua mente
a imagem daqueles olhos azuis vítreos, congelados em choque.
A sala mergulhou em silêncio. Os soldados da Casa Sauvillier que
permaneceram deixaram suas armas caírem.
Audric se ajoelhou ao lado de sua mãe, certificando-se de que ninguém
mais pudesse ver seu rosto. Ele não confiava nisso para não mostrar seu
horror, como ele odiava o potencial destrutivo de seu poder e o fato de ter
sido forçado a usá-lo dessa forma.
Ele inspecionou as feridas de Genoveve. Os cortes em sua garganta eram
superficiais, mas ela respirava com cuidado, o rosto branco. Costelas
quebradas, ele adivinhou, e esperançosamente nada pior. Ele segurou sua
cabeça, e ela virou o rosto em sua palma e soltou um soluço fraturado.
— Achei que nunca mais fosse ver você — ela sussurrou. — Eu sinto
muito. Eu sinto muito. Eu deveria ter parado ele. Eu não deveria ter deixado
ele…
Ela engasgou, sua voz perdida em dor. Audric pressionou sua sobrancelha
contra a dela. No chão ao lado deles, Illumenor tremia em uma cama de
vidro.
— Não preciso de suas desculpas — disse. — O que eu preciso é que você
viva e nos ajude nestes dias sombrios. Minha brava mãe. Eu te amo. Eu senti
saudades de você.
— Eu odeio o que me tornei desde que seu pai morreu — Genoveve
engasgou.
Audric balançou a cabeça e beijou sua bochecha. — Eu não.
Então ele se levantou. Todos na sala o observavam – seu povo, os soldados
rendidos de joelhos. Todos os olhos sobre ele eram um peso terrível, mesmo
os de seus amigos. O que eles deveriam fazer a seguir? Eles esperaram que
ele lhes contasse. Alguém sempre estaria esperando por ele para declarar
guerra ou paz, ou dispensar julgamento, ou conceder misericórdia.
Ele nunca tinha imaginado ter que fazer tudo isso sozinho.
— Evyline — começou, — envie dois de seus guardas para Garver Randell,
e diga a ele que o Rei Audric pede sua presença no castelo. Kamayin, você e
seus elementais protegerão os soldados capturados, mantenha-os aqui no
corredor. Sloane, ajude-me a enfaixar as feridas de Atheria, e então vamos
precisar encontrar um saco ou fazer uma tipoia para carregar isso.
Ele se ajoelhou ao lado do torso de Merovec, obrigando-se a olhar para o
horror daquilo.
— Devo cavalgar para as Campinas — disse ele calmamente, — e mostrar
aos bravos soldados da Casa Sauvillier que o homem por quem eles lutam
não existe mais.
Então ele fechou os olhos de Merovec e recuperou Illumenor. O calor havia
queimado qualquer vestígio de sangue. A lâmina brilhava prateada e limpa,
como se nunca em sua vida tivesse experimentado o sabor da morte.
32
Eliana

“Kalmaroth e eu fomos meninos juntos. Uma vez, eu até o amei.


Levávamos para nossas casas pássaros feridos e cuidávamos deles antes
de soltá-los na natureza. Brincávamos nos jardins de nossas mães,
líamos livros e praticávamos matemática no escritório de seu pai.
Nossas casas fervilhavam de gatos gordos e felizes; Kal nunca conheceu
um vira-lata que não quisesse levar para casa e empanturrar. Mas quem
quer que fosse esse menino, se foi. Em seu lugar está um homem que
arde de insatisfação, com perguntas irrespondíveis, com desdém por
qualquer pessoa cuja mente não se iguale à sua. Seu ciúme dos humanos
e seu poder o está consumindo. Eu não o reconheço mais. Eu vejo em
seus olhos um brilho frio que congela meu sangue. Ele deve ser
parado.”
— Escritos do anjo Aryava, arquivados na Primeira Grande
Biblioteca de Quelbani

Em um beco estreito próximo ao distrito fabril de Elysium, onde enormes


edifícios lançavam fumaça dia e noite, Eliana encontrou o caminho de volta
para o Abismo.
Dentro das paredes da fábrica, criações mecanizadas projetadas por anjos e
operadas por prisioneiros humanos retiniam e zumbiam, produzindo
armaduras e armas. As ruas estavam escorregadias de fuligem e óleo, e ainda
assim todas as cornijas manchadas eram primorosas.
Eliana ajoelhou-se perto de um dos fossos de lixo, onde aqueles humanos
cuja beleza os anjos se cansaram reviravam entre as sobras e escavavam o
lixo. O ar quente e acre feriu seus olhos. Ela sentiu o gosto de metal na
língua. Atrás dela, gritos violentos aumentaram por toda a cidade branca. Os
prisioneiros de Vaera Bashta estavam varrendo as ruas em marés de sangue, e
Ostia – o grande olho no céu, contornado em branco-azulado – despejava sua
luz sobre todos.
Neste lugar de podridão e ruína, Eliana ergueu os braços trêmulos e
cansados no ar e os afastou. Sua mente se concentrou na imagem da fissura
que ela já havia aberto no céu acima de Elysium. Lá. Ela enviou o
pensamento através das veias de seu poder, guiando-o. Ela precisava não
apenas de uma porta para o Abismo, mas de uma porta que a levasse até lá,
para a fissura que esperava e se alargava e o ar se dilatava dentro dela. Suas
peças fundidas eram fogo em suas palmas; em seu peito, o empirium girou
em lâminas abrasadoras. Ele a guiou até um beco cheio de fumaça, e ela se
agarrou a isso. Uma corda em meio a uma nevasca de cinzas, esticada e
resistente.
Ou talvez tenha sido você quem guiou o empirium, o Profeta havia dito a
ela. Você quem disse o que precisava e para onde levá-lo.
Eliana estremeceu, a pele encharcada de suor. Seu vestido arruinado se
agarrou a ela, as jóias nele piscando cruelmente.
Em algum lugar, Corien meditava, chegando ao fim de sua diversão.
A voz do Profeta estava fina com a tensão. Depressa, Eliana. O mundo gira
cada vez mais rápido.
No momento em que a fissura que ela abriu ficou larga o suficiente, Eliana
prendeu a respiração e passou por ela – e entrou em um mundo em guerra.
Ela vacilou com a visão à diante, então apertou sua mandíbula e moveu-se
através disso. Este mundo que o Abismo estava mostrando a ela, este eco de
um lugar que existia em outro lugar, era diferente do que ela tinha visto antes.
Esculturas suntuosas de bronze e ouro ornamentadas com telhados e fachadas
de lojas. Torres atarracadas cobertas de hera flanqueavam uma larga estrada
cinza, pela qual soldados blindados marchavam em linhas brilhantes.
Eles seguravam lanças longas com pontas perversas, espadas polidas para
brilhar. As pessoas sobre as quais marcharam fugiram em um caos gritando,
arrastando seus filhos e animais atrás deles. Alguns se ajoelharam com armas
nos ombros e atiraram, mas quando atingiram seus alvos e os soldados
caíram, apenas alguns momentos se passaram antes que eles se levantassem
vacilantes novamente, seus ferimentos fechados e retomassem sua marcha
inexorável para frente.
O sangue de Eliana gelou ao vê-los. Seus olhos não eram pretos, e ainda…
O que está acontecendo aqui? Ela tentou bloquear os ecos dos gritos caindo
na estrada. O que é este lugar?
Minha visão através da sua mente está turva agora, mas se eu vejo
corretamente, é um mundo chamado Sath, o Profeta disse, sua voz tão
distante que assustou Eliana. Eu o reconheço. Eu mesmo vi. Quando sua mãe
morreu, o choque ressoou pelo Abismo. Buracos se abriram em muitos
mundos. Alguns anjos perderam a fé em Kalmaroth há muito tempo e não
desejam voltar para Avitas. Eles estão construindo casas em outros lugares.
A bile de Eliana subiu. Por que algum deles esperaria no Abismo para
retornar a Avitas, então? Quando eles poderiam ir para outros mundos e
escapar do tormento do Abismo?
A voz do Profeta veio baixinho. Porque Corien é uma força incomparável
e tem enraizado em muitos anjos uma sede de vingança que não pode ser
saciada. Porque alguns anjos suportariam mais mil anos de tormento se isso
significasse que um dia eles poderiam voltar para casa. Uma pausa. Outros
se desesperam com a futilidade devastadora da guerra e querem proteger os
humanos do extermínio. Existem muitas razões.
Eliana se sentiu presa entre uma grande tristeza e uma raiva pura como
gelo. Não há fim para a ruína que minha mãe causou?
Eliana, você deve se apressar. Não permita que o Abismo a distraia.
Lembre-se do que você deve fazer.
Ela obedeceu. Um brilho branco-azulado fraco no horizonte chamou sua
atenção. Ela se fixou nele e correu, seus pés batendo forte lutando com força
contra a estrada que não estava lá. Enquanto o mundo distante de Sath
passava veloz, a escuridão cintilou e vibrou nos cantos de seus olhos: o
verdadeiro Abismo, frio e sem fim, sufocado por feras e poder bruto. O céu
estava repleto de cruciata, perto o suficiente agora que a língua de Eliana
formigava com o fedor quente de seus corpos enormes. Asas vibraram contra
sua pele; algo afiado e fino cortou seu braço. Enquanto corria, ela sentiu o ar
soprar atrás dela. Se olhasse para trás, ela sabia que veria horrores
enxameando rapidamente em seus calcanhares.
As feras estavam esperando por ela. Elas estavam prontas.
Ela também.
Ignorando o céu escuro e transbordante, ela manteve o olhar em Ostia, sua
luz ficando mais brilhante e mais próxima enquanto corria, até que finalmente
alcançou a fissura que havia feito – um corte brilhante e irregular através do
Abismo e em Avitas.
Eliana foi até a borda escaldante e caiu cuidadosamente de joelhos. Seu
pequeno corte original havia se expandido para uma área de cerca de sessenta
metros quadrados. Choques de luz e cor floresceram nele. Além e abaixo
ondulavam as formas fracas de Elysium.
O pulso de Eliana bateu rápido em sua garganta. Ela desfocou os olhos e
deixou o empirium levá-la. Ondas de ouro surgindo em seus dedos. Ela podia
ver como o tecido do Abismo se tornou fino dentro do anel denteado de
Ostia. Apenas uma fina membrana de poder permaneceu. Um painel de vidro
quebradiço, pronto para ser totalmente quebrado.
Ela pressionou os dedos dos pés contra a estrada dura abaixo de si e
acreditou que era real. Fez uma oração silenciosa para que isso fosse o
suficiente. Ela reuniu seu poder em sua mente, imaginando-o como lanças
afiadas e prontas.
Então mergulhou as mãos na borda brilhante de Ostia e deixou seu poder
explodir nela. Uma luz branca estalou contra seus dedos e serpenteou por
seus braços, como se estivesse com água até os cotovelos espumosos. Seus
receptáculos queimavam tanto que seu instinto era arrancá-los, mas ela cerrou
os dentes e continuou empurrando as mãos para fora, a dor subindo por seus
braços tão específica e flexível que se aproximava do prazer. Sua visão
perdeu todas as cores, exceto ouro.
Então, por fim, o tecido do Abismo se esticando pela boca de Ostia cedeu.
Houve um grande estremecimento quente sob suas mãos, como o de um
animal dando seu último suspiro. Um raio de energia subiu pelos braços de
Eliana, e ela caiu de volta na estrada, ofegante. Rapidamente, ela apoiou as
palmas das mãos contra a ilusão de pedra. Teve que segurar a mentira, pois a
coisa acontecendo diante de seus olhos era tão impensável que sua cabeça
girou em protesto.
Ostia havia sido aberta. Uma luz raivosa estalou em sua boca. Afinal, era o
que Eliana esperava desde o primeiro momento em que acordou em seus
quartos brancos e pensou em esculpir uma porta no céu.
Sua mãe havia aberto o Portão.
E ela havia aberto Ostia. Um buraco nas profundezas. Uma porta que sai do
abismo. Através dela, Elysium era claro como um reflexo imaculado.
Você conseguiu, veio a voz do Profeta, fraca mas triunfante.
Então as cruciata mergulharam.
Caíram do céu, mergulhando do Abismo e no Elysium, um rio monstruoso
de fúria. O clamor delas era tão grande que era como se todos os animais em
Avitas tivessem erguido suas cabeças para o céu e uivado como um. Elas
gritaram e lamentaram, arranhando uma a outra, famintas para serem as
primeiras a voar e se alimentar. Algumas eram imensas e bulbosas, bestas
desajeitadas com focinhos chatos e patas que pareciam cacetes. Outras eram
esguias e serpenteantes, e outras ainda eram aves, suas peles eram uma
mistura malhada de escamas e penas.
O sangue de Eliana congelou enquanto ela observava os raptores voar. Ela
se lembrava deles do ataque fora de Karlaine. Um havia agarrado Patrik e o
jogado no chão, quebrando sua perna. Eliana matou outro com sua adaga. A
luz de Ostia queimou-os quando passaram por ela, deixando suas penas
carbonizadas, mas voaram indiferentes, seus bicos com presas bem abertos.
As cruciata tinham vindo de outro mundo. Hosterah, o Profeta havia falado.
Eram poderosas o suficiente para sobreviver ao Abismo.
Mas Elysium não sobreviveria a elas.
Seu estômago se apertou de horror quando ela pensou nas vidas inocentes
abaixo que terminariam em garras e dentes. Quantas bestas ela já havia
soltado do Abismo, e quantas mais lutariam para passar?
Mas não via outra maneira de lutar contra ele, não sem essa distração para
ajudá-la. E se ela não lutasse com ele, estariam todos mortos de qualquer
maneira.
Só uma vez ela se permitiu imaginar Remy, perseguido por uma rua
manchada de sangue por um monstro com mandíbulas abertas. Então,
lentamente, com as mãos tremendo, se agachou na soleira de Ostia, sua
bainha irregular chiando ao seu redor. A força que emanava dele ameaçou
arremessá-la de volta ao Abismo. Ela se agarrou à borda brilhante de Ostia,
observando o fluxo agitado das cruciata. Nem todas foram capazes de escapar
da atração do Abismo. Algumas foram expulsas de Ostia; outras não se
agarraram a nada, imobilizados por uma força contra a qual não podiam lutar.
Mas as mais fortes entre elas conseguiram escapar. Eliana viu um raptor se
aproximando e gostou da aparência dele. O Profeta disse algo, um aviso, mas
Eliana ignorou e se jogou nas costas do raptor quando este passou por ela. Ela
bateu com força, lançou os braços ao redor do pescoço carnudo e escamoso e
se preparou para a queda.
Um anel de calor passou por eles enquanto mergulhavam, descascando
escamas e penas da pele do raptor. Mas então eles terminaram, a besta
gritando ao firmar suas asas. Ele tentou afastar Eliana no ar. Sua cauda
atingiu uma estátua angelical e a despedaçou na estrada abaixo.
Eliana, com os olhos turvos pelas lágrimas do vento, viu um telhado
próximo. Ela tentou rolar ao pousar, mas estava sem prática e caiu feio. O
impacto atingiu seus joelhos e ela cortou o braço em um ladrilho de ardósia
irregular. Ela escorregou pelo telhado, agarrou-se à cornija e se agarrou lá, as
pernas balançando, até que percebeu que o chão não estava longe e se soltou.
Na estrada, tropeçou para frente, cerrando os dentes contra as explosões de
dor que iluminaram suas pernas. Como o Terror, ela poderia ter pulado
naquele telhado e não sentir nada. O pensamento veio e foi rapidamente, um
eco de sua vida anterior.
Ela correu por Elysium sem saber para onde ir em seguida, desesperada
para chamar o Profeta. A luz de Ostia havia escurecido, lavando a cidade em
um vermelho púrpura raivoso, como se todas as torres tivessem sido
salpicadas de sangue. O Profeta disse a ela que seus amigos chegariam em
breve e então poderiam agir, poderiam se encontrar finalmente. Mas quando?
E quem?
Mas ela não perguntou nada ao Profeta e manteve sua mente firmemente
fechada. Corien estaria procurando por ela. Usar sua mente para buscar o
Profeta a acenderia como um farol.
Em vez disso, imaginou seu rio, as correntes de cetim frescas levando-a
rapidamente para o coração congestionado da cidade. Ela escalou um muro
baixo, subiu correndo uma escada em espiral lenta para um dos níveis mais
altos da cidade. Cruciata passaram por ela, suas caudas chicoteando, seus
gritos selvagens um coro voraz. Alguns – felinos, rápidos e uivantes –
dispararam sobre telhados e paredes com facilidade. Bandos de aves de
rapina aos berros planavam sobre sua cabeça. Elas mergulharam e se
lançaram, banqueteando-se com qualquer coisa que se movesse – os
prisioneiros de Vaera Bashta, arrancados de suas próprias mortes, e os
cidadãos de Elysium em seus trajes esfarrapados.
Nenhuma delas tocou em Eliana, mas ela não achava que sua gratidão
duraria para sempre. Ela precisava encontrar um esconderijo seguro antes que
seu humor mudasse.
Lembrando-se do pátio do telhado daquela noite, virou bruscamente para a
esquerda, depois para a direita, depois subiu dois lances de escada de pedra
manchada. Ela poderia ter chorado de alívio ao ver a escada estreita familiar,
o prédio de apartamentos com suas gárgulas cruciata bocejantes.
Por cima do ombro, avistou cruciata ainda caindo do céu. Elas se
espalhavam rapidamente pela cidade em rios de escuridão. Logo
encontrariam as pontes, as cidades de tendas se espalhando pelos campos
rochosos além.
Ela se afastou da visão, as mãos em punhos enquanto corria. Ela os mataria
assim que cumprissem seu propósito. Quando o Imperador fosse derrotado e
o Império tivesse caído, ela destruiria qualquer animal que ainda vivesse e
fecharia Ostia e o Portão.
Ela só tinha que sobreviver até lá.
No terraço cercado por pedras brancas onduladas, ela encontrou o
caramanchão coberto de hera sob a qual havia se escondido apenas algumas
horas antes e congelou. Sob o caramanchão, dois meninos pequenos
aninhados nos braços de um homem velho e uma mulher gorducha de uma
criança.
O menino mais velho estava com a mão presa na boca do mais jovem.
Todos olharam para Eliana até que ela ergueu as mãos, balançou a cabeça e
sorriu. Eles relaxaram e sorriram de volta. A mulher até se afastou para abrir
espaço para ela.
Então Corien a encontrou.
Ele apareceu de repente, caminhando pelo terraço. Seu casaco estava
imaculado – longo e preto, prensado e bordado, abotoado no ombro com um
conjunto de asas douradas.
Um dos meninos gritou. Corien rosnou baixinho e estendeu o braço. No
momento seguinte, todos os que estavam escondidos sob o caramanchão
caíram no chão, com os olhos vazios.
Eliana sabia que era inútil correr, mas tentou mesmo assim. Corien chutou
suas pernas e a jogou no telhado. Seus receptáculos, opacos e escuros,
bateram contra a pedra.
Ele agarrou seu cabelo, puxando-a com força para ficar de pé. Ela gritou, o
couro cabeludo doendo e os olhos lacrimejando, e tentou girar e socá-lo. Sua
mente exausta lembrou-se tarde demais das facas amarradas à cintura.
Corien as encontrou primeiro e rasgou o cinto dela. Arabeth derrapou na
pedra e nas sombras. Ele jogou as outras facas pela lateral do telhado. Ele não
disse nada, o que a deixou apavorada. Ele adorava se ouvir falar, adorava
como fazia as pessoas se contorcerem com suas palavras. Mas até sua
linguagem mental havia desaparecido. Seu rosto era uma bela máscara branca
de fúria.
Ele a arrastou em direção aos degraus, uma mão em seu cabelo e a outra
segurando um punhado de seu vestido. A parte simples e primitiva de sua
mente que sabia apenas que era uma presa bateu em seu crânio, implorando
para que gritasse por ajuda. Mas qualquer grito passaria despercebido na
arena louca que Elysium havia se tornado, e se ela gritasse com sua mente,
Corien poderia encontrar o Profeta.
Ela ofegou quando ele a puxou escada abaixo, seu aperto de ferro enviando
picos quentes de dor por sua espinha. Mas não permitiria que seu poder se
levantasse e a defendesse. Ela podia sentir sua raiva; não fazia muito tempo
desde que ela o usara. Seria tão fácil, disse a ela, deixá-lo sair.
NÓS LEVANTAMOS
O empirium rugiu para ela, seus punhos em chamas perfurando suas veias.
— Não — ela sussurrou, implorando para se acalmar. — Não não não.
Corien não prestou atenção a ela, seu ritmo implacável. Ela nunca tinha
orado com tanto esforço em sua vida. Uma única palavra simples: Não. Sem
energia, sem fogo, sem luz. Ela empurrou seu corpo inteiro para a palavra.
Seus receptáculos permaneceram frios em suas palmas.
Uma nuvem negra floresceu diante de seus olhos, levantando-se apenas
quando Corien a jogou no chão.
Ela piscou, o vento saiu dela. Os olhos de latão de Rielle olharam
fixamente para ela. Eles estavam de volta ao palácio, na galeria de sua mãe.
Eliana ficou inerte enquanto Corien brandia uma espada através de uma
representação de vidro fiado de Rielle, cortando uma pintura a óleo com a
ponta da lâmina. Ele agarrou a estátua de bronze empoleirada em seu pedestal
acima de Eliana e a jogou nas sombras. O barulho era ensurdecedor, ainda
mais por causa do seu silêncio.
Eliana ofegou, o suor queimando seus olhos. Ela não podia se mover muito,
mas ela podia ver que ele havia aberto um espaço ao redor de onde ela estava,
um círculo de destruição.
Por fim, ele falou.
— É isso, Eliana — disse, sua voz vibrando com algo que ela não
conseguia nomear. Apetite, ou fúria, ou talvez exaustão. — Este é o fim do
nosso jogo.
Ela se esforçou para olhá-lo. Se ela visse seu rosto, saberia o que ele sentia?
Ela não podia sentir nada dele em sua mente. Ele estava se mantendo longe
dela.
Então seu largo sorriso apareceu. Ele não estava sozinho.
Simon estava rígido ao seu lado, a mão de Corien apertada em torno de seu
pulso. O lábio de Simon estava inchado e sangrando por causa do tapa de
Corien horas antes. Por um momento fugaz, os olhos de Simon se
encontraram com os dela. Azul de gelo, azul de fogo. O olhar a sacudiu,
desfazendo o que restava de sua calma desgastada.
— Simon? — ela sussurrou.
— Sim, Simon está aqui também — disse Corien. — Presumo que você se
lembre do que ele pode fazer? Ele vai fazer isso por mim, aqui, agora. Vou
arrancar seu maldito poder de suas veias de uma vez por todas. Vou abrir sua
mente e cavar até conseguir torcer tudo o que ele é em volta dos meus dedos.
Ela olhou para Corien, sua boca seca, seu coração batendo tão rápido que a
deixou zumbindo. Havia nele um espasmo que ela nunca vira antes, o rosto
pulsando na têmpora, no canto do lábio superior.
Ela se atreveu a olhar fixamente para seus olhos negros e se perguntou
quantas mentes ele mantinha dentro dele – e quão perto elas estavam de
escorregar de suas mãos.
— Eu vou morrer — ela disse a ele. — Então você não terá nada.
Ele se agachou para acariciar sua bochecha. — O que me importa, uma vez
que Simon me mandar de volta para ela? Eu terei sua mãe. Eu posso me livrar
de você finalmente.
Frenética, ela tentou se levantar. — Você não quer vê-la. Você falhou com
ela uma vez – você a perdeu uma vez. Você vai perder de novo.
Corien se levantou, olhando para ela com frieza. Uma loucura iluminou
seus olhos. — Não, Eliana. Agora vejo os erros que cometi. Eu não vou
cometê-los outra vez.
Então ele mergulhou dentro dela. Um inferno esfolando cada dobra de sua
mente, queimando e limpando cada canto que ela trabalhou tão
desesperadamente para esconder. Tudo o que ele havia feito em seus meses
no palácio não era nada comparado a isso. A dor sugou seu fôlego, deixando-
a se contorcendo silenciosamente. Ela arranhou o chão escorregadio, seus
suspiros sufocados e roucos. Ela tentou dizer uma única palavra, para se
concentrar em uma única imagem. Olhos azuis fixos nos dela. Em vez de
Não, sua oração mudou.
Simon. Sua mente gritou, e cada imagem dele que sua mente já havia
armazenado voou para ela. Ela estendeu a mão para elas, tentou agarrar uma
e pressioná-la perto. Simon!
— Venha, Simon! — Corien uivou, jubiloso. — Quanto tempo você
aguenta vê-la assim? Horas? Dias? Semanas? Eu não tenho idade. Eu sou
infinito. Eu posso queimá-la até que o mundo desmorone ao nosso redor!
— Eu vou assistir por quanto tempo você levar para ter sucesso, meu
senhor — veio a voz plana de Simon.
— Você é um cachorrinho leal, um homem tão bonito. Mas até você, frio
como o gelo, vai se cansar dos gritos dela. A mente humana só pode suportar
certa dor. — Ele empurrou Simon. — Levante suas mãos! Encontre um fio
para mim, Simon! Faça!
Simon obedeceu, seus braços levantando rigidamente.
Os dedos de Corien, cravados profundamente nos pensamentos de Eliana,
torceram-se violentamente. Um grito explodiu dela então. Ela estava
escondida em seu matagal naquele jardim exuberante do pátio. Na Sala Azul
do navio do almirante. No baile de máscaras cintilante em Festival, em seu
quarto aconchegante à luz de velas em Willow. Ela estava em Orline, escura
e ágil, pulando de telhado em telhado com Harkan ao seu lado. Ela estava em
seu quarto, ouvindo Remy ler uma história sobre os santos.
Ela estava nos braços de Ioseph Ferracora, observando o nascer do sol,
olhando timidamente para a estátua em ruínas do Portador da Luz, nobre e
incansável em seu cavalo alado.
Seu grito encontrou uma palavra. — Simon! — Seus dedos estavam
rígidos; seus ossos logo estourariam de sua pele. — Simon, por favor!
— Simon, por favor! Simon, por favor! — Corien caiu na gargalhada. —
Você pode sentir os fios, Simon? Você pode senti-los chegando? Ela não vai
durar muito. Eu posso sentir cada escudo dela rachando. Pobre Eliana. — Ele
se aproximou e gritou em seu ouvido. — Pobre Eliana! Tão corajosa, tão
nobre, tão desnecessariamente estúpida! Você poderia ter sido feliz, sua
garota idiota. Você poderia ter tudo o que quisesse e, em vez disso, se
contorce no chão como um verme capturado, encharcado em sua própria
urina!
Eliana sugou o ar como uma criança recém-nascida, mas não foi o
suficiente. Seus pulmões estavam queimando, sua mente uma tempestade
branca estridente. Seus receptáculos começaram a esquentar; seu poder havia
tolerado essa indignidade por muito tempo. Ele inchou rapidamente dentro
dela, um mar fervente correndo para a costa.
Ela não conseguia cerrar os dedos; em vez disso, ela bateu as palmas das
mãos no chão, deixando seus receptáculos escuros. Uma visão veio: ela
mesma batendo a cabeça no azulejo até que se partisse. O prazer de Corien
deslizou dentro dela. Ele permitiria isso depois que ela tivesse dado a ele o
que ele queria. Ela poderia quebrar sua cabeça até o conteúdo de seu coração.
Logo, sua mente iria escorregar completamente. Seu poder explodiria e
despertaria o sangue de marque de Simon, e isso seria o fim. Tudo teria sido
em vão.
A respiração que ela inspirou estremeceu em seu peito, um gemido interior.
— Simon!
Então Corien voou de volta de Eliana, e sua mente se libertou dela. Algo se
interpôs entre eles; alguma porta fria de pedra se fechou ao rastejar de seus
dedos. Ele tropeçou em uma estátua tombada, caindo deselegantemente no
chão.
— É ela — ele respirou. — Ela está aqui. — E então a risada o sacudiu,
borbulhando até se tornar uma gargalhada estridente e bestial. Onde Simon
estava, Eliana não sabia. Ela estendeu a mão debilmente pelo chão, uma dor
quente vermelho-escura surgindo para afogá-la.
O uivo selvagem de Corien machucou seus ouvidos sangrando. — Mostre
seu rosto para mim, sua cobra! Onde você está? O que é que você fez?
E depois, outra voz, baixa e fina, só para Eliana ouvir: Fique conosco,
pequenina. Só mais um pouco. A ajuda está chegando. A ajuda está perto.
O Profeta. As duas últimas palavras que a mente de Eliana formou antes de
uma mão gentil, uma ternura familiar, guiá-la ao esquecimento feliz.
33
Ludivine

“Quando está sozinho em sua cama à noite, a escuridão ao seu redor,


horrores por fora e por dentro, você pode se perguntar: isso é tudo que
existe? Guerra e morte? Medo e desespero? Mas esta é a pergunta
errada a se fazer. Em vez disso, pergunte-se: o que farei quando ele vier
me buscar? No momento da minha morte, quando eu olhar para trás,
para a minha vida, o que verei? Terei orgulho do que fiz? Ou com
vergonha do que não tenho? Pense com cuidado. Eu sei que vergonha
você não pode imaginar. Eu conheço a culpa que rasteja pelo sangue
como uma doença.”
— A Palavra do Profeta

Em seu quarto particular no coração de um vasto labirinto subterrâneo,


Ludivine estava sentada em sua cadeira favorita: almofadas profundas de
veludo lilás, cerejeira polida que brilhava em vermelho na luz. Três velas
achatadas tremeluziam em pedestais de pedra polida – uma à direita, uma à
esquerda, uma à sua frente contra a parede de pedra curva.
Um para Rielle. Um para Audric.
Um para Eliana.
Seus aposentos nunca ficavam sem eles.
Uma espada ornamentada descansava em seu colo, vibrando
silenciosamente. Em seu punho dourado, uma tesselação de sóis esculpidos.
No couro escuro de sua bainha com borlas, uma elaborada tapeçaria de
tridentes e adagas, lanças e flechas, martelos e escudos. Raios de sol e bestas
divinas em vôo – um pégaso, um dragão de gelo, um pássaro de fogo.
Ludivine mudou de posição, ficando confortável. Seus corredores de pedra
estavam silenciosos, mas não durariam muito. Uma vez, foram uma ala de
Vaera Bashta, desmoronada e abandonada. Agora, após décadas de trabalho
árduo, foram reconstruídos e limpos de tudo, exceto por seus sete acólitos,
suas armas e suprimentos, sua vasta coleção de livros.
O corredor fora de seu quarto sussurrava como o vento através dos juncos
enquanto seus acólitos se preparavam para a chegada de seus convidados. Ela
fazia questão de sempre manter sete com ela. Ela gostava do número, e
disfarçar mais mentes do que isso exigiria que ela desviasse muita atenção de
seus esforços ao redor do mundo.
Sua excitação era ordenada, mas óbvia. Eles haviam se preparado
incessantemente para aquele dia, e Ludivine cuidara para que suas mentes
fossem disciplinadas, mas eles ainda eram humanos, ainda frágeis e voláteis e
cheios de contradições. Seus pequenos medos e esperanças dispararam em
sua mente como pequenos peixes dourados em um mar escuro.
Ela se viu através dos olhos deles quando passaram pela porta de seu
quarto. Pálida e quieta, uma jovem mulher de rosto doce sentada ereta em sua
cadeira. Longos cabelos dourados presos em um nó trançado na nuca, um
vestido de lã lilás e rosa abotoado na garganta. Os ombros eram quadrados, o
corpete uma couraça astuciosamente escondida. Até ela teve que cuidar de
seu abdômen. As feridas exigiam mais tempo para cicatrizar.
Seus acólitos se perguntaram, enquanto olhavam para ela, o que estava
vendo. Eles olhavam para seus olhos negros, semicerrados enquanto ela
trabalhava, e estremeciam. Mesmo que eles a amassem, vê-la às vezes os
perturbava. Afinal, seus olhos eram negros como os dele. Sua mente era
eterna e desconhecida como a dele. Mesmo se ela contasse a eles o que via
enquanto se sentava imóvel em sua cadeira, eles não seriam capazes de
entender – como podia ver tanto ao mesmo tempo, como sua mente poderia
ser tão imensa e ainda permanecer escondida bem embaixo do nariz dele.
O que ela via?
Uma cidade outrora grande e branca, detestável em sua beleza exagerada,
agora invadida por monstros.
Um olho machucado pairando sobre a cidade. Roxo carmesim e pulsante,
como uma ferida recente, e contornado por uma luz azul crepitante. Dele
vazou um rio negro de asas e escamas, garras e pelos. Cabeças sinuosas e
inteligentes com dentes que rangem. Bicos afiados agarrando a presa.
Antes, Ludivine teria ficado com raiva ao ver a destruição que Corien
causou. O medo histérico de seus cidadãos, como eles estavam
desesperadamente presos. O povo de Elysium havia trocado suas famílias e
sua liberdade para escapar da selvageria da guerra.
E agora olhe para eles.
Mas Ludivine havia superado a raiva agora, havia passado por ela havia
centenas de anos. Ela não conhecia mais a dor ou a solidão. Não sentia
nenhum arrependimento, nenhuma vergonha, nenhuma dor persistente de
amor perdido. Todos os sentimentos se fundiram dentro dela, revestindo suas
vísceras com aço.
A única coisa que restou foi o fim. Aquilo havia queimado em seu peito por
séculos, uma chama azul imóvel que crescia enquanto ela crescia, brilhando
conforme as peças de seu plano caíam nos lugares que ela havia feito para
elas.
Ela estendeu sua mente um pouco mais.
Havia Navi e a capitã da Coroa Vermelha, Ysabet. Hob e Patrik. O irmão
de Navi, Malik, e outros noventa e dois. Zahra os estava conduzindo em
direção à cidade através dos campos rochosos, ocultando-os de vista.
Ludivine observou Zahra de perto. O espectro havia usado muito de sua força
para esconder a Luz da Rainha enquanto navegava no Mar de Silarra,
evitando dezenas de navios de guerra imperiais.
Ela morreria em breve. Ludivine podia ver isso claramente. Apenas fios
finos de força mantinham a mente do espectro inteira.
Depressa, Zahra, Ludivine comandou. A ligação entre elas permaneceu
estável, guiando o espectro através do pandemônio da cidade. Séculos atrás,
ela não teria sido capaz de tal coisa – encontrar Zahra, uma aparição em um
mar de mentes, e guiá-la através do mundo.
Era surpreendente o que um milênio de desgosto poderia causar. Séculos
trabalhando sozinha no escuro para decidir o que era agora.
Ela sorriu um pouco. O que Corien gostava tanto de dizer? Eu sou infinito.
Agora, ele não era mais o único anjo que poderia fazer afirmações tão
grandiosas. Agora, ela era forte o suficiente para combinar com ele.
Talvez forte o suficiente para vencê-lo, pois ela tinha sido mais inteligente
do que ele. Mais cuidadosa, mais parcimoniosa com quem e o que ela
escolhia controlar.
Ela estendeu sua mente um pouco mais.
Lá estava Remy, magro e silencioso enquanto seguia seu caminho pela
cidade. Ele tinha uma mente aberta, inteligente e flexível, e aceitava sua
orientação como seu próprio instinto. Ela viu as cicatrizes que Elysium havia
deixado em sua mente – os horrores de Vaera Bashta, o tormento de Corien, a
morte de seus pais, a tutela brutal de Jessamyn – e ficou satisfeita. Ele seria
mais útil para Eliana dessa forma.
E no final, se tivessem sucesso, suas cicatrizes não importariam.
Remy escalou uma das calhas do palácio e deslizou para dentro de uma
janela quebrada. Alguém jogou a cabeça pelo vidro. Os prisioneiros de Vaera
Bashta estavam se reunindo nas portas do palácio, rugindo para serem
ouvidos, batendo nas paredes, implorando por entrada. As tropas de Corien se
espalharam pela cidade para lutar contra as cruciata, desesperados para evitar
os respingos de sangue azul brilhante. Usando vaecordia, os mesmos canhões
mecanizados maciços que Corien mandou para o Portão, um regimento de
anjos disparou contra Ostia e as cruciata fugiram dele.
Ludivine, sentada em silêncio nas extremidades da mente de Remy, o
conduziu a uma pequena câmara no terceiro andar do palácio. A enfermaria,
onde os médicos de Corien remendavam corpos humanos mutilados até que
estivessem adequados para uso angelical. Remy havia roubado armas do
Liceu antes que os prisioneiros o invadissem – duas pequenas adagas e uma
espada amarrada às costas. Jessamyn o treinou bem em seu curto período de
tempo juntos, e os quatro adatrox pairando apáticos nas portas eram lutadores
inúteis. Os anjos não guiavam mais seus movimentos. Eles gemeram gritos
sem palavras de agonia, balançaram seus punhos cegos, tentaram empurrar
Remy contra a parede.
Ele disparou entre eles, cortou suas gargantas, então correu para dentro da
sala.
Lá estava Jessamyn, cerrando os dentes enquanto calçava as botas e a
jaqueta sobre as bandagens. Ludivine sentiu que colocaram os olhos um no
outro. Jessamyn: alívio surpreso. Remy: alegria cansada. Ele tinha pensado
que não teria sorte o suficiente para encontrá-la.
As cruciata invadiram a cidade, disse à Jessamyn.
Eu posso ver. Sua resposta irônica.
Ele se aproximou dela com cuidado. Ludivine percebeu como ele estava
preparado para matá-la se ela tentasse impedi-lo. Ela estava ferida; ele
poderia cuidar disso.
Preciso de sua ajuda, disse ele. Eu não conheço o palácio. Você conhece. E
você é uma lutadora melhor do que eu. Precisamos tirar Eliana daqui.
Jessamyn assentiu. Eu pensei nisso. Quem mais pode parar as feras? O
Imperador certamente não pode. Ela olhou para o cinto dele. Eu preciso de
uma faca.
Ele jogou uma para ela e correram. Ludivine os observou serpenteando pelo
palácio em direção ao teatro favorito de Corien. A música começou a tocar,
acompanhando seus passos rápidos e leves. Chifres de latão colocados no alto
das vigas estalaram com o som. Luzes piscaram em cada junção de fio que os
conectava – energia galvanizada, faiscando enquanto funcionava. Lâmpadas
tremeluziam em seus invólucros.
A música era um coral, arrebatadora, triunfante. Ludivine reconheceu-o
como a sinfonia que Corien encomendara de uma aquisição recente – um
jovem compositor de Mazabat, prodigiosamente talentoso, que se rendeu para
salvar sua esposa.
Ludivine se atreveu a passar sua mente pelo teatro, o mais leve toque. Ela
viu Corien descansando em sua caixa acortinada favorita, cheio de vinho.
Havia trancado as portas; ele estava pensativo. A cidade estava
desmoronando ao seu redor, e ele estava ignorando isso. Ele quase matou
Eliana, e perceber isso o assustou. Então lá ele se sentou, furioso e
apavorado, sem vontade de enfrentar a realidade de seu fracasso.
Assim Ludivine supôs; não ousaria tocar a mente dele. Mas depois de
milhares de anos, ela o conhecia bem o suficiente para adivinhar.
Abaixo, o público – manchado de sangue e olhos selvagens, retirado da
cidade pelos generais de Corien para aumentar o entretenimento da noite –
aplaudiu freneticamente para a orquestra. Ludivine sentiu o zumbido
frenético de seus pensamentos: talvez, se aplaudissem bem alto, o Imperador
os deixaria ficar dentro de casa, trancados e seguros.
E sentada em uma cadeira perto de Corien estava Eliana, inconsciente e
terrivelmente pálida, suando pesadelos que Corien havia deixado entalados
no vidro quebradiço de sua mente.
Só quando olhou para Eliana, Ludivine sentiu dor. Seu rosto era a
combinação perfeita de Rielle e Audric. A boca cheia dele, as sobrancelhas
arqueadas dela. A mandíbula afiada de Rielle, os lindos olhos castanhos de
Audric.
Se Ludivine se permitisse, seria capaz de se lembrar do calor deles, de seus
braços em volta dela, da fragilidade suave de suas peles. A raiva de Rielle, a
dor de Audric. A paixão dela, a força dele. Acalmando Rielle para dormir
depois de mais uma noite de pesadelos. Audric uivando nos braços de
Ludivine no chão de seus aposentos em Mazabat.
Como ela os amava desesperada e fatalmente.
Mas Ludivine não permitiu nada disso. Sua mente era prateada e limpa,
afiada como a morte.
Fique conosco, pequenina. Ela não se atreveu a tocar em Eliana. Corien
sentiria isso. Em vez disso, ela disse para si mesma. Só mais um pouco.
Ela começou sua lenta retirada do palácio. Nenhum movimento muito
rápido, nenhum movimento não planejado. Todos estavam correndo para
onde deveriam. Lá estavam Remy e Jessamyn, esgueirando-se pelo palácio
em direção ao teatro. Havia Navi, Ysabet, Zahra. Patrik e Hob, seus soldados.
Todos eles lutando para abrir caminho pela cidade.
Ludivine precisava encontrar outra pessoa, talvez a peça mais essencial de
todas. Como sempre, ao alcançá-lo, ela enviou suas instruções com um
pedido de desculpas silencioso – por tudo que ela tinha feito a ele e tudo que
ele havia perdido.
Mas ela faria de novo se precisasse, e ele sabia disso. Ela iria destruir sua
mente e refazê-la mil vezes se fosse necessário.
Está na hora, ela disse a ele.
Compreendido, ele respondeu com um pequeno estremecimento de alegria,
pois mesmo todos os abusos que ela lhe infligira não haviam destruído seu
amor pelo que seu sangue podia fazer, por todos os temíveis segredos que
continha.
Ela o sentiu sacar a arma, ouviu-o caminhar pelos corredores do palácio.
Um adatrox lamurioso o interceptou, perplexo e aterrorizado. Um homem em
um terno azul arruinado, ousado e delirando com o trauma, rastejou por uma
janela quebrada e saltou em suas costas. Mas seus tiros foram limpos, suas
lâminas precisas e mortais. Ela sabia disso melhor do que ninguém, tinha se
assegurado de que ele fosse mais arma do que homem muito antes de Corien
ter a chance de fazer o mesmo.
Era o único jeito, Ludivine disse a ele, como já havia dito muitas vezes
antes. Ele não respondeu; ela não esperava que o fizesse. Ela o deixou com o
trabalho.
Ela se sentou em sua cadeira, vendo suas três velas queimarem, mas sua
mente estava em toda parte. Ela segurou sua espada e esperou.
34
Audric

“Querida irmã. Você não vai acreditar na história que tenho para lhe
contar, então vou esperar até que nos encontremos pessoalmente e você
possa ver por si mesmo as circunstâncias extraordinárias de minha nova
vida. Basta dizer que há dragões e há um garoto e eu amo todos eles.
Estamos a caminho de casa para encontrar você – embora não
diretamente – junto com uma marque e seu guarda, e vários outros que
libertamos de uma prisão angelical secreta no extremo norte. Devo
parecer louco para você, mas pela primeira vez na minha vida me sinto
eu mesmo. Verei você em breve e sei que preciso fazer muito para
reconquistar sua confiança, mas saiba de uma coisa: estou finalmente
pronto para a guerra. Estou pronto para lutar por nossa casa. E não vou
deixar você de novo.”
— Carta codificada de Ilmaire Lysleva para sua irmã, Ingrid, datada
de 30 de março do ano 1000 da Segunda Era

Audric estava sentado nos jardins atrás de Baingarde quando sua mãe o
encontrou.
— Achei que poderia encontrá-lo sob esta árvore — disse ela, sem
insinuação ou desprezo, e se acomodou ao lado dele na grama macia da
primavera. A terra estava preta e úmida, as árvores estavam pesadas por
causa da chuva daquela manhã. O crepúsculo pintou a escuridão com um
violeta suave, e as flores rosadas da árvore da tristeza acima estavam
finalmente começando a se abrir.
Audric forçou um pequeno sorriso. — Se alguém mais me pegar deprimido
debaixo da árvore onde beijei a Assassina de Reis pela primeira vez, eles
podem tentar tomar minha coroa novamente.
Ludivine, tentou mais uma vez, você está aí?
Ele tinha tentado durante toda a tarde, tinha perdido quatro horas sob esta
árvore enquanto o sol se transformava de mel em lavanda.
Onde quer que ela estivesse, ainda se recusava a responder.
— Todos os soldados mazabatianos receberam alojamento — começou
Genoveve. As dobras cinzas de seu vestido de linho agruparam-se sobre a
grama molhada como pétalas caídas.
— Você vai estragar seu vestido — Audric assinalou.
— Eu tenho muitos vestidos — Genoveve disse suavemente. — Os
comandantes e o máximo da infantaria que pudemos acomodar estão no
quartel. O resto deles estão alojados por toda a cidade. Muitas pessoas
abriram suas casas. Odo montou barracas improvisadas bem luxuosas em
seus jardins no telhado.
— Eu imagino que os comandantes em nosso quartel tenham ciúmes de
quem teve a sorte de conseguir aquelas camas.
— Sem dúvida.
Audric soltou uma risada suave. Falar sobre o procedimento deveria ter
ajudado a limpar sua mente perturbada, mas seus pensamentos ainda
pareciam nublados. Ele os mudou para os montes de notas empilhadas
ordenadamente em sua mesa.
— Mandei cartas para Ingrid Lysleva e a regente Kirvayan — disse ele. —
A Rainha Fozeyah virá com mais tropas quando estiverem prontas. Dez mil
até primeiro de maio.
Genoveve acenou com a cabeça, as mãos brancas e ainda no colo. Suas
bochechas estavam encovadas, todos os seus ossos pronunciados, mas a
torção trançada de seu cabelo ruivo estava imaculado, e seus olhos cinzas
eram de sílex.
— Na ausência do Arconte — disse ela, — o Grão Magister Guillory
assumiu a liderança da Igreja. Os outros magísteres concordaram. Foi
unânime.
Audric pensou na cadeira vazia de Tal na câmara do Conselho Magisterial,
como Miren – costas retas e ombros quadrados – se recusava a olhar para ela.
— Um sunspinner no comando da Igreja — disse Audric, sorrindo
fracamente
— E um sunspineer no trono de Katell.
Genoveve estava olhando para ele agora. Ele manteve os olhos fixos nas
piscinas negras de visão, sentado em silêncio no mar de grama a cerca de seis
metros de distância.
— E as torres de vigia? — perguntou.
— Já começaram as obras das oito que rodeiam a cidade.
— E os construtores que designei para os dezesseis restantes?
— Eles e seus suprimentos estão a caminho das estradas do norte. No final
do mês, teremos uma linha de torres daqui até a fronteira nordeste, cada uma
delas protegida por earthshakers e metalmasters.
Audric assentiu. — E eu tenho cavaleiros prontos para partir de manhã para
os territórios de todas as principais casas. Gourmeny e Montcastel. As
propriedades de Valdorais em Far Fallows.
Após uma pausa, Genoveve pigarreou. — E o que você vai fazer com os
soldados da Casa Sauvillier? Nossas prisões estão transbordando.
— Vou me encontrar com eles individualmente e, em seguida, reintegrá-
los, se eu puder. Não podemos dispensar uma única espada.
— E se houver alguém que não queira lutar por você?
— Eu não desejo lutar por mim.
Genoveve pegou sua mão. — Audric
— Eles podem ir se quiserem. Não terei um exército rebelde lutando nas
minhas costas. Mas estarão mais seguros aqui do que em outros lugares, e
vou lembrá-los disso. Cada elemental daqui até Borsvall estará se reunindo
em Âme de la Terre. Se forem embora, terão que enfrentar os anjos por conta
própria. Acho que a maioria deles vai ficar e lutar e manter sua antipatia para
si.
— Eles não desgostam de você, Audric — disse Genoveve delicadamente.
— Eles não gostam dela.
— Na verdade, não gostam de mim, e alguns até me odeiam, e talvez
desejassem que Merovec tivesse me cortado ao meio, porque fui tolo o
suficiente para amá-la. E prefiro não falar sobre Rielle, mãe.
Um longo momento de silêncio. — Sloane me contou sobre as semanas
após sua chegada em Mazabat. Ela me contou sobre o peso que você tem
carregado. A mudança em você.
Algo queimou no peito de Audric, uma faísca quente de raiva. Ele estava
grato por isso. Quando estava com raiva, não conseguia pensar em tudo o
mais.
— Ainda sou a mesma pessoa de sempre — disse ele com firmeza. — Eu
ainda posso liderar lutadores. Eu ainda posso disciplinar soldados traidores.
— Illumenor, deslizando rapidamente pelo corpo de Merovec. A memória
gostava dele, mostrava-se uma dúzia de vezes por dia. — Eu ainda posso
matar.
— Vejo a tristeza em seus olhos, Audric.
Por fim, ele a olhou. — E eu vejo a tristeza no seu. Que bem pode resultar
desta conversa?
Genoveve o observou com firmeza. — Por anos, você insistiu com seu pai
para estudar a profecia. Você implorou que ele lesse os livros que você trazia
para ele, para se educar nos escritos dos grandes estudiosos elementais. E ele
nunca o fez. Você sabe por quê?
Foi uma mudança na conversa que Audric não esperava. Ele piscou. —
Não.
— Porque estava com medo. — Genoveve olhou para as piscinas, as
catacumbas um fantasma cinza distante além delas. — A linhagem de Katell
não tinha verdadeiros sunspinners há gerações. E então você nasceu e
começou a brincar com a luz do sol ainda no berço, antes mesmo de forjar
seu receptáculo. Seu pai sabia o que isso significava, e eu também. Sempre
que ele olhava para você, via o presságio de uma guerra que há muito se
convenceu de que nunca aconteceria em vida. O mundo estava em paz. O
Portão permanecia forte. E então você nasceu. O Portador da Luz. Mais
poderoso do que ele jamais fora, e mais corajoso também. Você sempre
esteve disposto a considerar o pior e enfrentá-lo de frente. O fato de seu
poder, a ideia de uma guerra – essas coisas nunca te assustaram, nem as
palavras de condenação de Aryava.
Audric negou com a cabeça. Ela o tinha perdido com aquilo. — Estou
sempre com medo.
— E ainda assim as pessoas que lutam por você não sabem disso. Aos
olhos deles, você é Katell renascido. E agora você atrai para você as coroas
de Mazabat e Borsvall. Nossos aliados, descendentes dos santos, assim como
você. Borsvall quase se tornou nosso inimigo, mas você forjou uma nova
amizade com eles. — Ela fez uma pausa. — Foi um anjo que assassinou a
pobre Princesa Runa há dois anos?
— Esse é o meu palpite — Audric disse severamente. — Na esperança de
acender o fogo da guerra entre Celdaria e Borsvall.
— E ainda assim você não permitiu que isso acontecesse. Você ousou fazer
amizade, e agora Borsvall pode vir lutar ao nosso lado. Você constrói torres
de vigia e ordena que nossos metalmasters forjem milhares de novas espadas.
Você anda pelas ruas de sua cidade e fala com seu povo não como se você
fosse um rei e eles seus súditos, mas como se você fosse um celdariano e eles
também. Eles estão assustados, mas você não. Isso é o que eles veem.
— E, Audric — Genoveve acrescentou baixinho, seus dedos pressionando
suavemente os dele, — eu me preocupo que se você não falar sobre ela – pelo
menos para mim, ou Sloane, ou Miren, ou Princesa Kamayin – então tudo
que você está sentindo vai crescer e partir você. Nosso povo não pode ver
isso. Se vão enfrentar a morte nas pontas de espadas angelicais, eles nunca
devem olhar para você e ver o quão profundamente você foi ferido. Devem
olhar para você e ver um ícone. Não um homem, mas um símbolo. Não
Audric, mas o Portador da Luz. Não é justo, mas a coroa também não é, e
somente se você usá-la, temos alguma esperança de sobreviver ao que está
por vir. Disso estou certa.
Ela suspirou e o silêncio seguiu. Eles assistiram Atheria brincar entre os
pinheiros distantes, vibrando alegremente enquanto ela perseguia gaios
brilhantes de seus ninhos.
— Talvez se eu tivesse sido uma mãe para ela — disse Genoveve, — se eu
a tivesse acolhido em nossa família com gentileza e calor, não estaríamos
onde estamos agora.
Audric parou um momento para respirar. Ele não estava mentindo – ele não
queria falar sobre Rielle. Mas sua mãe estava ao seu lado, e nem sempre
estaria
— Não é tão simples assim — disse ele categoricamente. — Talvez se o
Arconte não a tivesse forçado a suportar as provações. Talvez se Lorde
Dervin não tivesse nos pegado nos beijando no jardim. Talvez se eu não a
tivesse afastado em nossa noite de núpcias.
Ele piscou para conter as lágrimas. — Ou talvez nada disso importasse e,
independentemente do que fizéssemos, teríamos acabado exatamente onde
estamos. Talvez a profecia de Aryava signifique exatamente o que diz: há
uma rainha da luz e uma rainha das trevas. E talvez Rielle tenha sido sempre
a última, e nada do que disséssemos a ela poderia ter mudado isso.
Genoveve fez um som suave, considerando. — Você já se perguntou onde
está a outra rainha? Se Rielle é realmente a Rainha de Sangue, então…
— Ela está grávida. — Foi a primeira vez que Audric disse isso em voz
alta. As palavras arrancaram algo dele; na ausência delas, um lugar vazio se
abriu dentro dele.
— Minha criança — acrescentou ele calmamente. — Nossa criança.
Ludivine me contou antes de partir.
Genoveve levou os dedos à boca. Um pequeno som sufocado sacudiu seus
ombros. Uma pomba deu seu grito triste alto nas flores da árvore solitária.
— Ludivine me disse que a criança é uma menina — ele continuou. —
Então, talvez ela seja nossa Rainha do Sol, nossa salvação ainda não nascida.
Genoveve pressionou os nós dos dedos contra os lábios e fechou os olhos.
Um longo momento se passou antes que ela o soltasse e enxugasse o rosto.
— Eu gostaria que Ludivine estivesse aqui para ajudá-lo — ela sussurrou.
— Lamento não ter contado a verdade sobre ela — disse Audric, embora
não sentisse pena. Ele apenas se sentia cansado. Ele imaginou sua cama, quão
enorme e solitária era, quão pequeno ele se sentia dentro dela.
— Eu entendo por que você não fez isso. Você precisava dela – vocês dois
precisavam – e se eu soubesse a verdade, eu a teria exilado, ou pelo menos
tentado. Eu teria tentado muitas maneiras diferentes de me livrar dela e
falhado, e então estaria com ainda mais pena e nojo do que já estou.
Sua mãe falava sem nenhum sinal de aversão a si mesma, sem amargura.
Agora Audric era o único a observá-la cuidadosamente – a linha reta e fina de
seu nariz, a aspereza dolorosa de sua mandíbula, como ela se segurava com
tanta imobilidade. Era porque estava com medo de quebrar? Ou porque havia
sido quebrada tantas vezes que a ideia não a assustava mais?
— Mãe — ele começou. — Não é assim.
Genoveve sorriu para ele. — Eu não preciso de conforto. Eu só quero que
você sente-se comigo. Quero que você venha até mim quando o peso disso
ficar muito pesado até mesmo para seus ombros. Eu não posso tirar isso de
você, mas Deus me ajude, eu gostaria de poder.
Ela embalou seu rosto em suas mãos, tocou suas bochechas, afastou os
cachos de seus olhos
— Meu corajoso garoto — ela sussurrou, e então trouxe a cabeça dele para
baixo para beijar sua testa.
Eles ficaram sentados em silêncio, de mãos dadas, e esperaram pelo
anoitecer. Audric observou Atheria girar sombras lentas por entre as árvores.
Não temo escuridão, ele orou. Não temo a noite.
Peço às sombras que ajudem na minha luta.
35
Eliana

“Às vezes é estranho pensar neles juntos e apaixonados, mesmo depois


de todas as histórias que li – o Portador da Luz e a Rainha de Sangue.
Um gentil, um cruel. Um bom, um mau. Eu me pergunto como sua filha
seria, se ela tivesse nascido. Eu me pergunto qual pai ela teria puxado.”
— Diário de Remy Ferracora, datado de 24 de maio, ano de 1014 da
Terceira Era

Os pesadelos eram sem forma e vastos, mas Eliana deixou que eles a
arrastassem em sua corrente selvagem. Ela se segurou cuidadosamente dentro
de uma rede esfiapada. Se lutasse muito contra as amarras, se tentasse se virar
contra os pesadelos e nadar através deles até a costa, a rede se quebraria e ela
cairia.
Eliana.
Ela se afastou da voz. Era ele novamente. Ele voltou para bater em sua
cabeça, e desta vez ela o deixaria.
Eliana, por favor, acorde!
A voz que chamava seu nome não era de Corien. Era familiar, suave,
urgente. Além dela, elevava-se a música carregada nas cordas, pontuada
pelos toques de metais de trompas.
Lentamente, Eliana abriu os olhos – e viu, agachado atrás de sua cadeira no
camarote do teatro privado de Corien, um menino magro com cabelos
escuros e despenteados, o rosto brilhando de suor.
Remy.
Ela olhou para ele, inspirou e expirou lentamente. Era uma ilusão. Era
mentira. Ela se manteve imóvel, esperando para acordar.
Mas a orquestra tocava e Remy estava acenando para ela, e sua mente
estava clara. Corien não disse nada – nenhuma provocação, nenhuma risada
cruel. Eliana olhou para Remy, seu sangue rugindo. Ela se lembrou da voz
que chamou seu nome apenas alguns momentos atrás e a reconheceu.
Era o Profeta, incitando-a a acordar.
Apenas suas longas semanas de trabalho com o Profeta poderiam ter
preparado Eliana para esse momento. Embora sua mente estivesse golpeada,
cada músculo pulsando de dor, ela procurou a calma e a encontrou. Ela
pensou em seu pequeno rio fresco e entrou silenciosamente nele.
Então ela segurou o olhar de Remy por um momento, dizendo-lhe para não
se mover, dizendo-lhe para segurar cada parte de si mesmo, e se virou
cuidadosamente em seu assento para olhar para Corien. Ela permaneceu
caída, seus olhos semicerrados. Sua visão oscilou mesmo com aquele leve
movimento. A dor apunhalou suas têmporas.
Lá estava ele, de pé perto da grade polida com sua bebida na mão. A
música no palco era ensurdecedora e ele ainda gritava por mais.
— Não consigo ouvir vocês! — Corien gritou, então engoliu o resto de sua
bebida e jogou o copo vazio no palco.
Nas filas de assentos abaixo, os cidadãos de Elysium ecoaram seu desdém,
lançando zombarias aos músicos que suavam no palco, jogando sapatos e
comida pela metade, o que quer que pudessem encontrar.
Mas os músicos não ousaram parar, os braços do maestro eram incansáveis
e a doçura da música continuava – triunfante e alegre, perversamente
incongruente com seu público.
Eliana observou Corien encostar-se ao parapeito, com os ombros curvados
e os nós dos dedos brancos. Ele balançou a cabeça em fúria; ele parecia
prestes a explodir. A qualquer momento, pegaria outro copo para jogar.
Ele iria alcançá-la.
Eliana não conseguia se mexer, paralisada de indecisão. O que ela deveria
fazer? Fingir dormir? Oferecer-se para Corien mais uma vez para que Remy
pudesse fugir?
Então o coro no grande loft curvo acima do palco se levantou como um só.
Quatro solistas vestidos com longos casacos brilhantes começaram a cantar
em uma língua angelical que sem dúvida haviam aprendido sob ameaça.
À esquerda de Eliana, além de onde Corien estava, dois adatrox arrastaram
escada acima um homem que Eliana não reconheceu. Sua cabeça pendeu; sua
expressão de olhos negros estavam apáticos e confusos. Um anjo, mas quem?
Corien ergueu as mãos, muito feliz. — Ravikant! Que alegria que você
pôde se juntar a nós esta noite. E bem a tempo do final também. Que sorte!
Ravikant. Eliana olhou fixamente para o almirante. Ela não o via desde que
ele vivia no corpo de Ioseph Ferracora. Ele havia encontrado um novo corpo,
ao que parecia – um homem baixo e magro com pele morena lisa e cabeça
raspada. O adatrox soltou Ravikant e ele caiu de joelhos. Ele havia se vestido
para a ocasião com um terno imaculado de creme macio.
Corien se ajoelhou ao lado dele e colocou a mão na bochecha suada de
Ravikant. O almirante começou a soluçar.
A orquestra se aquietou. A música tornou-se uma marcha lúdica, alegre e
astuta, acompanhada por minúsculos sinos rítmicos.
— Você achou que sairia impune? — Corien perguntou suavemente,
inclinando a cabeça. — Você achou que eu não descobriria que você
pretendia me arruinar? E aqui estava eu, pensando que éramos amigos.
Ravikant engasgou, estremecendo no chão, e o corpo de Eliana estremeceu
o que a lembrou da dor. Ela inspirou e expirou pelo nariz e manteve as mãos
relaxadas nos braços da cadeira.
Só então ela notou o chão de seu camarote ricamente decorado.
Estava cheio de cadáveres.
Corien se levantou e o corpo de Ravikant ficou imóvel. Em vez disso, outro
corpo mais perto da porta começou a ter convulsões. Uma jovem pálida em
um vestido de seda, talvez escolhida na plateia abaixo.
Eliana viu o corpo dela estremecer quando os gritos de Ravikant, seus
apelos em Lissar, escaparam de sua garganta.
— Eu posso te jogar de corpo em corpo tão facilmente — Corien meditou,
de pé sobre a garota. — Você poderia fazer isso? Eu não acho que você
poderia. Acho que todos vocês são ratos perto de mim. Acho que você
deveria ter vergonha de sua própria estupidez.
— A cidade… meu senhor… — Ravikant tentou a seguir na língua comum.
— Está sendo invadida…
Corien rosnou com fúria. O corpo da garota se acalmou, e o de um homem
de cabelos brancos e pele escura sentado apoiado em uma cadeira começou a
se contorcer em agonia. Sua voz era profunda; suas palavras eram de
Ravikant. A orquestra abaixo tocava, cordas frenéticas empurrando a melodia
cada vez mais alto.
Eliana ficou tensa na cadeira, lutando para manter a calma. Corien não
estava olhando para ela. Estava distraído, bêbado de vinho e violência. Ela
poderia correr. Remy ainda esperava atrás dela; ela podia sentir sua tensão,
como ele ansiava por alcançá-la. Se ele tivesse de alguma forma entrado,
havia uma maneira de escapar. Se ele fosse real, isto é – se ela pudesse
acreditar em qualquer coisa que visse.
As costas de Corien estavam voltadas para ela, mas não inteiramente. Sua
mente poderia ter outro foco, mas seus olhos roubados veriam se ela se
movesse.
A orquestra silenciou mais uma vez – apenas pulsações hesitantes das
trompas, ecos cautelosos dos ventos cortantes.
Eliana prendeu a respiração.
Em seguida, toda a orquestra voltou, e o coro completo, em uma passagem
triunfante e pulsante que sacudiu o teatro do chão ao teto.
Corra, Eliana. O Profeta, fraco como um sonho distante.
Corien se inclinou para mais perto de Ravikant, inclinando a cabeça para
que sua orelha ficasse perto da boca soluçante do anjo – e colocando seu
rosto completamente fora de vista. Ele uivava como Ravikant, zombando
dele. Sua voz se partiu em risadas.
Eliana não perdeu um minuto. Ela se livrou de sua cadeira e seguiu Remy
para as sombras da caixa. A música martelou em seu peito; as ofensas
furiosas de Corien, atiradas contra o almirante em línguas que Eliana não
conhecia, ecoaram em seus ouvidos.
Remy agarrou a mão dela, ajudou-a a descer um pequeno lance de escadas
na escuridão e saiu por uma porta destrancada. Uma vez lá fora, eles
correram. O estreito corredor que circundava o teatro estava
assustadoramente vazio. O mal-estar enrolou-se no peito de Eliana. O que
quer que Remy estivesse fazendo, ele não estava sozinho.
— Como você entrou no teatro? — ela perguntou baixinho enquanto
corriam pelas sombras. — Ele trancou todas as portas.
Remy a olhou rapidamente. — Nem todas elas. Uma foi deixada aberta.
Um arrepio beliscou seu pescoço. — E você confiou nisso?
— Eu não tive tempo para pensar sobre isso. Eu só sabia que você estava lá
dentro.
Sua voz estava tão estranha – era dele, mas não era. Havia um novo aço
nela. Seu rosto não traiu nada. Seu irmão e um estranho também. Eliana
gostaria que houvesse tempo para segurá-lo pelos ombros e fazê-lo olhar para
ela de maneira direta até que ela o conhecesse novamente
Eles desceram correndo um lance de escadas. No fundo, escondido contra a
parede oposta, esperava Jessamyn. Sua perna estava enfaixada e sua cor
pálida, mas seu rosto respingado de sangue estava duro e ansioso por uma
luta. Três adatrox mortos jaziam a seus pés.
— Isso demorou muito — ela sibilou, então deu a Eliana um olhar
avaliador. Se ela sentiu vergonha por ter sido uma testemunha naquela sala
branca de dor, ela não demonstrou nada disso. — Ninguém viu você sair?
— Se tivessem, não estaríamos mais de pé — disse Remy sombriamente,
movendo-se para a janela mais próxima para olhar para fora.
Eliana olhou de Jessamyn para Remy. O cabelo aparado de Remy, sua
túnica e calças que certamente não eram roupas de prisão. — Vocês já se
conhecem?
— Eu sou o virashta dela — disse Remy, como se isso explicasse tudo.
Além do vidro, a luz carmesim de Ostia inundou o mundo, mas era de
Remy que Eliana não conseguia desviar os olhos. Como ele parecia
confortável com uma adaga na mão. A expressão sombria de seu rosto, as
cicatrizes nos nós dos dedos.
— Você pode fechar essa coisa no céu? — Jessamyn perguntou, apontando
para a janela.
— Sim — Eliana disse, sem dizer o resto – que ela não faria tal coisa até
que ela ganhasse e Corien ficasse em ruínas.
— De alguma forma, precisamos levá-la com segurança — Jessamyn
murmurou, olhando pela janela. — E a cidade inteira enlouqueceu.
Remy lançou um olhar para Eliana. Ela podia ver em seu rosto que ele
sabia o que ela não havia dito, e sua boca se contraiu com um pequeno
sorriso.
Eu vou te guiar até mim A voz do Profeta veio baixinho. Diga a eles que
você sabe para onde ir. Eles irão te seguir.
— Eu sei como chegar lá — disse Eliana com firmeza. — Eu conheço o
caminho mais seguro.
Os olhos de Jessamyn se estreitaram. — Como?
Eliana forçou um sorriso irônico. — Eu sou a Rainha do Sol. Eu sei tudo.
Ele está distraído, mas não vai ficar por muito tempo, o Profeta avisou.
Saia do palácio pelo lado sul. Você encontrará vários adatrox na saída.
Prisioneiros também. As feras estão fervilhando em direção ao palácio.
Algumas já se agarram a ele, tentando abrir caminho para dentro. Vá para a
praça onde Corien a levou antes de abrir Vaera Bashta.
Eliana respirou fundo, moveu as mãos para sentir o deslizamento das
correntes de seus receptáculos. Posso usar meu poder?
Tente não usar. Ele só permanecerá ignorante sobre sua fuga por algum
tempo. Quanto mais você se afastar dele, mais facilmente poderei escondê-la.
Eliana engoliu em seco contra um nó frio de medo. Ela sentiu a presença do
Profeta, uma camada flexível de água cobrindo sua mente, mas era muito fina
para seu conforto.
— Eu preciso de uma faca — ela disse, e Jessamyn puxou uma longa adaga
de sua bota. Eliana a reconheceu como uma arma adatrox padrão. Ela testou
seu peso, seu controle. Ela acenou com a cabeça uma vez para Jessamyn em
agradecimento.
— Siga-me — disse, e correu, Remy e Jessamyn logo atrás.
O palácio era uma tumba cavernosa, suas paredes de pedra abafando o caos
além. O estrondo baixo de tiros de canhão vaecordia, o grito de cruciata
enxameando. Eliana correu por um amplo corredor forrado de janelas, as
sombras cortadas por raios de luz vermelha. Adatrox agrupou-se na
extremidade oposta como animais amontoados contra o frio. Abandonados
por seus mestres angélicos, suas mentes em ruínas, eles se viraram ao som da
abordagem de Eliana, gritando sem palavras. Eliana correu para eles, estripou
um, e quando ela se virou para encontrar os outros, eles já estavam mortos.
Jessamyn enxugou a adaga na manga. Remy arrancou sua própria faca da
barriga de sua matança.
Eliana se afastou dele, a culpa se instalando com força em sua garganta.
Deveria haver apenas um Terror de Orline, e agora a cidade de Elysium dera
luz a outro.
Eles desceram correndo dois lances de escada, para um grande salão na ala
sul do palácio. Formas escuras se chocaram contra as janelas, depois às
subiram, escalando as paredes.
Adatrox correram pelo corredor, direto para eles. Eliana atirou a faca na
garganta de um deles. Jessamyn segurou outro enquanto Remy enfiava sua
adaga em seu peito. Outro tropeçou para fora das sombras. Jessamyn sibilou
algo para Remy, e Remy retirou sua faca do primeiro adatrox, girou e cortou
o pescoço do recém-chegado.
Derrubaram outros cinco no caminho para fora do palácio, depois mais seis
enquanto corriam pelo anel de pátios que o rodeava. Um prisioneiro em
trapos saltou sobre Eliana, seus olhos enlouquecidos de medo, e com um
grito feroz, Jessamyn se jogou em seu caminho e abriu seu estômago. Outro
prisioneiro irrompeu através das sebes e balançou uma grande clava nela,
pontas de metal projetando-se da madeira. Remy saltou em suas costas e
abriu sua garganta. Os pátios estavam cheios de prisioneiros gritando por
sangue, adatrox tropeçando e agitando suas espadas.
Eliana deixou Jessamyn e Remy lutarem por ela, mas sua cabeça girava e o
mundo era uma névoa agitada de vermelho e dourado. Seu poder estava
desesperado, lamuriando por liberação. Em vez disso, usou sua faca e pegou
outras dos soldados que matou. Ainda usava seu vestido de jóias sujo e
desejava amargamente um cinto, bolsos escondidos, coldres, qualquer coisa
útil.
Na fronteira da cidade propriamente dita, eles se esconderam contra a
parede externa do pátio para recuperar o fôlego. Jessamyn, com a pele
encharcada de suor, agarrou a perna direita. Nos punhos apertados de Eliana,
seus receptáculos zumbiam de necessidade. O céu estava escuro com
raptores, as ruas fervilhantes. Perto dali, duas víboras atacaram um nó de
corpos entre elas.
Eliana olhou para trás por um dos portões do pátio e viu um mar de cruciata
correndo pelo labirinto de cercas vivas em direção ao palácio. Riachos de
escuridão subiam rapidamente pelas paredes e torres, deslizavam para dentro
das janelas e batiam nas portas. Acima do palácio, envolto em nuvens
vermelhas, brilhava uma lua crescente sorridente.
— Isso deve segurá-lo por um tempo — Remy disse severamente. — Se ele
tocar qualquer sangue cruciata…
— Ele não vai — disse Eliana de uma vez. — Ele é muito inteligente para
ser derrotado tão facilmente.
Mas um palácio repleto de monstros iria pelo menos distraí-lo por mais
alguns minutos. Ela esperava.
Depressa, Eliana, veio a voz do Profeta. Mais forte agora, mas tensa pelo
esforço.
Acima, na extremidade do pátio, um funil de latão erguido em um poste
enrolado com fios retumbava um crescendo de buzinas de latão. Eliana soltou
um forte suspiro e se lançou em uma corrida implacável. Ela ouviu as
respirações medidas de Jessamyn atrás dela, ásperas, mas constantes, e os
passos rápidos de Remy. Corpos e festejos de cruciata obstruíam as estradas
maiores da cidade. O fedor era quente e podre, a mordida de sangue azeda na
língua de Eliana.
Ela entrou em um beco. As pessoas se amontoavam nas sombras, cobrindo
os ouvidos, lamentando pelos mortos. Eles gritaram quando ela passou, cada
cabeça encharcada de sangue. O beco estreitou no final, e Eliana teve que
virar de lado para escapar. Emergindo de lá, ela olhou para baixo em uma
encosta lavada de vermelho com a luz irritada de Ostia. Paredes baixas e uma
rede de degraus brancos e atarracados separavam os jardins bem cuidados e
as piscinas rasas cobertas por fontes. Ela correu na direção deles, saltou por
cima de uma parede para o caminho abaixo, aterrissou com força, se levantou
e continuou correndo. Remy e Jessamyn estavam atrás dela alguns segundos
depois
Acima, uma fita esvoaçante de cor escura. Eliana ergueu os olhos. Um
raptor de asas vermelhas os havia encontrado, descendo do céu com o bico
preto aberto.
Eliana olhou para baixo, seus receptáculos faiscando em seus punhos, seu
poder rugindo por liberação – e finalmente ela o deixou emergir. Ela
alcançou o empirium, agarrou a besta com dedos de ouro, e a jogou
furiosamente no chão. Mais raptores mergulharam, e ela derrubou cada um
deles, seus punhos voando. Logo, o céu estava vazio e Eliana estava ofegante
em uma pilha de corpos destruídos e fumegantes.
— Merda — Jessamyn murmurou baixinho logo atrás dela.
A praça, agora, e depressa, disse o Profeta, tenso de desespero. Eles estão
vindo atrás de você. Você acabou de mostrar o caminho.
Ela olhou em volta freneticamente. Quem está vindo?
Anjos.
Mas não ele?
Ele está bastante ocupado no momento. As cruciata inundaram o palácio e
ele não pode controlá-los. Suas mentes são muito estranhas, muito fortes.
Mas seus soldados aqui na cidade estão ansiosos para impressioná-lo.
— Por aqui — Eliana disse por cima do ombro, então correu pela estrada
com Jessamyn e Remy logo atrás dela. Desceu um lance de escadas, então
acelerou através de uma ponte de pedra arqueada sobre uma estrada que
zumbia com cruciata. As criaturas irromperam por portas e janelas, jogando
pessoas gritando para as ruas.
Eliana olhou para frente e viu as cinco estátuas angelicais em torno de seu
destino. Ela se lembrou da praça pentagonal e das arcadas de pilares brancos
que a circundavam. As portas gêmeas pretas, e o que havia explodido delas
sob o comando de Corien.
A lâmina de Jessamyn passou zunindo por sua orelha. Um raptor magro
com asas pretas escorregadias caiu do céu. Eliana se esquivou, desceu
correndo uma escada em espiral de pedra branca e caiu na praça. Ela parou,
engolindo ar. Remy parou ao lado dela, Jessamyn logo atrás dele.
— Isso é loucura — Jessamyn sibilou. Ela encontrou uma espada
abandonada presa sob um corpo destroçado além do reconhecimento, puxou-
o para fora. Ela ergueu a cabeça para o céu vermelho. — Você vai fechar essa
maldita coisa ou não vai?
Eliana olhou ao redor da praça, mas não viu nenhum sinal do Profeta,
nenhuma rota de fuga, nenhum reforço. Em vez disso, ela viu anjos – dez
deles, vinte, cinquenta – descendo das estradas superiores e correndo em
direção à praça, resplandecentes em sua armadura dourada manchada.
Cruciata os seguiram, batendo em seus calcanhares. Um dos anjos jogou uma
lança. Ela girou prata pelo ar, então perfurou o peito escamoso de um raptor e
espalhou sangue azul. O anjo mais próximo caiu, depois outro. Não era
suficiente; logo, alcançariam a praça.
Mas Eliana não se atreveu a usar seu poder novamente com aqueles olhos
tão próximos. Corien sentiria, entraria em uma de suas mentes e a agarraria.
Estou aqui, ela pensou, enxugando o suor dos olhos. O que agora?
Algo se agitou em sua mente. Uma presença familiar que a deixou fria
como gelo.
A dor explodiu em seu crânio, abrasadora e brilhante. O mundo ficou
branco e ela caiu de joelhos. Os gritos de batalha giraram em torno dela, mas
ela viu apenas isso – um anjo de armadura elevando-se sobre ela, sua mão
estendida, girando lentamente como se estivesse trabalhando na maçaneta de
uma porta.
Não era um anjo que ela conhecia, mas através da fenda de seu capacete, no
fundo de seus olhos negros, Eliana viu o sorriso de Corien.
Aí está você, ele pensou, deslizando para os sulcos destruídos de sua mente.
Minha pequena fugitiva. Eu pensei que tinha perdido você.
Eliana respirou fundo, arqueando as costas violentamente. Suas mãos
procuraram apoio no solo coberto de sangue. Cada músculo de seu corpo se
esticou contra sua pele.
Presa e indefesa, ela olhou através de uma película de lágrimas para a coisa
que finalmente a mataria. Este anjo que ela nunca tinha visto, controlado por
outro louco por séculos de tristeza.
Então, da garganta do anjo mergulhou uma lâmina estranha – um cobre
iridescente, sombras movendo-se através dele. Lâmina de Ferrugem, Eliana
pensou, trêmula e cambaleando. Fontes de sangue jorraram do pescoço do
anjo. A lâmina se soltou, o corpo estremeceu e caiu com força. Vazio agora,
nada mais do que um cadáver.
E sobre ela estava Simon em preto imperial, seu rosto cheio de cicatrizes
manchado de sangue e fuligem. Sua expressão estava furiosa. Uma capa
escura forrada de carmesim caiu de joelhos, e em seu torso cortou uma faixa
vermelha como um sorriso sangrento.
Seu olhar azul brilhante encontrou o de Eliana, travado por um instante
ardente. Algo metálico caiu atrás dela. Ela se virou, ainda instável no chão,
ainda tonta, mas Simon foi mais rápido. Ele disparou na frente dela, Lâmina
de Ferrugem em uma mão, revólver na outra, e atirou em três anjos enquanto
eles saltavam para ela. Todas as três balas de cobre atingiram seus queixos,
onde seus capacetes os deixaram vulneráveis.
Há uma porta na parede oposta, o Profeta instruiu. Estreita e simples.
Pedra Branca. Corra para ela agora. Remy a seguirá. Devo protegê-lo. Eles
estão confusos, mas isso vai acabar logo.
Foi como se alguém tivesse virado o mundo do avesso. Eliana piscou,
procurando na praça, enquanto acima dela Simon disparava tiro após tiro.
Sem balas, ele jogou a arma de lado e tirou outra do cinto em sua cintura.
Devo protegê-lo, o Profeta havia dito. Porque agora, Simon era o único
atraindo sua ira. Simon, o favorito do Imperador.
Quando Eliana encontrou a porta do Profeta, um calor doentio percorreu
seu corpo. Um momento atrás, a porta não estava lá—ela tinha certeza disso.
Faixas grossas de sangue, tanto vermelho quanto azul, cortaram sua
superfície.
Agora, Eliana!
Eliana ficou de pé, procurando por Remy. Mais cruciata deslizavam pelas
paredes. Eles atacaram os anjos, os chicotearam com suas caudas.
No meio disso, Jessamyn lutava contra um único soldado angelical. Ela
balançou sua espada contra ele; suas lâminas se chocaram e travaram. O anjo
praguejou contra ela, as ondas de sua fúria ricocheteando pela praça. Eliana
conhecia aquele olhar. Ele estava tentando chegar à mente de Jessamyn, mas
não conseguiu.
Sua pele formigou. Uma porta escondida. Um anjo frustrado.
O Profeta estava em toda parte.
O anjo lutando contra Jessamyn cuspiu uma maldição em Lissar. Eliana
conhecia bem a palavra. Corien gritou para seus servos, muitas vezes jogou
como uma faca na mente de Eliana. O Profeta havia traduzido para ela.
Significava puta
Jessamyn mostrou os dentes para seu agressor. Fios suados de cabelo
vermelho se soltaram de sua trança e grudaram em seu pescoço. — Meu
nome — ela gritou, sua voz falhando, — é Jessamyn.
O anjo a jogou no chão e ergueu sua espada. Eliana desviou o olhar antes
que ela pudesse cair.
Simon estava correndo em direção à porta do Profeta, um Remy
inconsciente pendurado em seu ombro. Ele travou os olhos com os de Eliana.
— Vá agora!
Eliana correu para ela, mas percebeu imediatamente que não havia trinco.
Seu poder aumentou como o calor de uma explosão. Ela socou os punhos em
direção à porta, os receptáculos em chamas dentro de seus dedos cerrados.
A porta estilhaçou. Cacos de pedra voaram. Além dela, estreitas escadas de
pedra desciam para a escuridão.
Eliana correu na direção delas, sufocando-se com as nuvens de poeira
branca. Assim que Simon passou pela soleira com Remy, ela girou de volta e
jogou as palmas das mãos na porta. Rocha e poeira se recompuseram em
segundos, voando de volta em uma parede sólida de rocha, selada firmemente
contra a cidade além.
Na escuridão, Eliana ouvia apenas sua respiração irregular, sua própria
cabeça latejante. O túnel engoliu todos os sons da batalha.
Ela encontrou Remy pendurado no ombro de Simon, embalou sua bochecha
em uma mão e segurou a outra diante de sua boca. Uma leve lufada de ar
quente, depois outra. Ele estava respirando. Fraca de alívio, ela deu um passo
para trás, longe do calor do corpo de Simon. Eles pararam por um momento,
o silêncio espesso e abrasador entre eles. Os receptáculos de Eliana lançavam
uma luz dourada tênue nas linhas marcadas do rosto de Simon e a lâmina
iridescente ainda agarrada em sua mão, pingando sangue.
Eliana olhou para ele. — Ele está aí? — ela disse firmemente.
— Não. — Ele não olhou para ela. — Eu tentei há muito tempo. Ele é
muito forte para lâminas de ferro. Elas não podem segurá-lo. — Simon
sacudiu a lâmina um pouco, como se a desprezasse. — É outro anjo aqui,
aquele cujo corpo ele momentaneamente tomou posse para encontrar você. A
lâmina o terá enfraquecido, no entanto. Isso vai nos dar tempo.
Eliana olhou para Simon, mal o enxergando. Era muito estranho ficar
parado no escuro ao lado dele. Como se os últimos meses não tivessem
acontecido e eles estivessem de volta ao ponto de partida.
Venha até mim, pequenina. O Profeta enviou a ela um sentimento muito
confuso para decifrar. Simon conhece o caminho. Vou explicar tudo quando
você estiver aqui.
Simon mudou Remy em seu ombro e se afastou da queimadura de ouro
constante das mãos de Eliana.
— Siga-me — disse ele, sua voz rasa, ilegível.
Ela queria agarrá-lo, queimar seu rosto com seus receptáculos até que ele se
contorcesse como ela, até que gritasse o nome dela como ela gritou o dele.
Apenas a voz suave do Profeta segurou suas mãos. Lamento que precisasse
ser assim. Eu não gostei disso.
Eliana não disse mais nada a nenhum dos dois. À luz de seus receptáculos,
ela seguiu Simon descendo as escadas. Ela não conseguia desviar o olhar da
coroa loira escura de sua cabeça, despenteada e ensanguentada da batalha. Se
imaginou agarrando-o e, em seguida, esmagando o rosto dele contra a escada.
Sua cabeça doía com o último ataque de Corien, pronta para se abrir, e quase
desejou que acontecesse, pois então não teria que enfrentar o que viria a
seguir. Ela se sentia entorpecida, como se tivesse entrado em outro mundo,
um no qual não entendia nada. Suas pernas se moveram por vontade própria,
levando-a mais fundo na escuridão sem fim. Sua garganta doía a cada
inalação gelada. O ar esfriou.
Por fim, a escada acabou. Além dela, espiralava uma teia de túneis e
câmaras. Três pessoas com a eficiência alucinante de soldados passavam
correndo com armas, pacotes de suprimentos e lençóis limpos dobrados. Seus
olhos, quando encontraram os de Eliana, estavam claros.
Eles pararam para observá-la, e então mais quatro saíram correndo das
sombras, sem fôlego, os olhos brilhando. Quando ela passou por eles, caíram
de joelhos e abaixaram a cabeça. Eles beijaram os dedos e tocaram os olhos
fechados, murmurando orações em seu rastro.
Ao lado da entrada de uma câmara bruxuleante à luz de velas, Simon parou.
Mesmo assim, ele não olhou para ela. Ele colocou Remy em um banco fora
da câmara, tão terno e cuidadoso, mesmo em seu uniforme austero adornado
com asas, que Eliana quase foi para sua garganta com a faca que Jessamyn
tinha dado a ela. A sua imaginação ficou cristalina de raiva, mostrando a ela
como a lâmina afundaria em seu peito e rasparia o osso. Ela pensou em
Jessamyn, como no momento de sua morte, ela ainda acreditava que Eliana
pretendia fechar Ostia e salvar a cidade, e sentiu o aumento das lágrimas.
— Você ousa fingir bondade — sussurrou Eliana.
Um momento de silêncio. Então Simon se virou para ela, seus olhos baixos.
O pulso dela batendo contra sua garganta. Desde aquela noite nas margens de
Festival, seu rosto tinha sido de aço da testa ao queixo. Agora, cada linha
dura havia se suavizado, desfigurada pelo cansaço.
Ela queria desesperadamente desviar o olhar, mas não conseguiu. Ele
parecia se encolher diante dela, como se ela fosse brilhante demais para ser
vista.
— Era o único jeito, Eliana — disse, a primeira vez que pronunciava seu
nome em meses. Sua voz falhou sob a palavra, e seus dedos flexionaram em
seus lados, como se ele desejasse alcançá-la. — Foi isso que ela me disse. Era
a única maneira. — Ele respirou fundo, então finalmente ergueu o olhar para
encontrar o dela.
Ela se afastou dele. Aquele azul penetrante, a atingiu com toda a força
como um golpe em seu peito. Antigamente, ele continha o calor do desejo, a
pedra da raiva.
Nem uma vez até agora ela tinha visto seus olhos feridos de tristeza.
Uma voz falou de dentro da câmara. Gentil e familiar, embora diferente do
que parecia em sua cabeça. Havia clareza nela agora, como se um véu tivesse
sido levantado.
Eliana virou as costas para Simon agradecidamente, com os joelhos úmidos
e a garganta amarga, e entrou na câmara à sua direita.
Em seu coração, posicionada entre três velas bruxuleantes, uma jovem
estava sentada em uma cadeira polida. Pálida e de cabelos dourados, ela
usava um vestido rosa e lilás que abotoava até a garganta e imitava a
aparência de uma couraça blindada. Ela segurava uma espada embainhada em
seu colo, e seus olhos eram duas gotas de tinta. Incolor e antigo.
Mas Eliana não teve medo.
— Você é o Profeta? — ela sussurrou.
A mulher sorriu suavemente. — Você pode me chamar de Ludivine. Eu
conhecia seus pais.
Ela ergueu a espada de seu colo. A força da arma pulsou contra a pele de
Eliana. Seu poder aumentou em saudação, fazendo seus dentes doerem e seus
receptáculos brilharem com o calor, e ela sabia, embora nunca tivesse visto
isso antes, exatamente o que era aquela espada. Seu sangue conhecia seu
sabor, conhecia cada linha gravada de seu punho.
Ludivine ergueu a espada, a lâmina embainhada apoiada nas palmas das
mãos. Acima, seus olhos negros brilhavam. Uma visão estranha: Eliana
nunca tinha visto um anjo olhar para nada com amor.
— O último receptáculo restante dos sete santos — disse Ludivine. —
Pertenceu à sua família desde que Santa Katell a usou para atacar os anjos do
céu. Sobreviveu à morte de sua mãe. E agora, pequenina, ele pertence a você.
36
Rielle

“Fizemos tudo o que podíamos. As torres de vigia erguem-se nas


montanhas. Earthshakers e waterworkers aprofundaram o lago. As
forjas queimam dia e noite, produzindo armas às dezenas. Centenas de
civis fugiram da cidade em direção a Luxitaine. Todos os que
conseguiram resistir e lutar ficaram para trás para apoiar os exércitos
Celdarianos e Mazabatianos. Os anjos estão se aproximando. Bem,
deixe-os vir. Estamos mais prontos do que nunca. Para a coroa e o país,
protegemos a verdadeira luz. E que Deus, ou o empirium, ou seja lá o
que for que esteja lá fora estimulando essas marés negras – que algo,
qualquer coisa, nos ajude.”
— Diário de Odo Laroche, comerciante e membro da Coroa
Vermelha, datado de 24 de abril do ano 1000 da Segunda Era

Rielle sabia que estava viva. Sabia que estava de pé. Além disso, sabia muito
pouco sobre seu corpo.
Seus pensamentos vagaram pelas estrelas. Cada um trazia de volta uma
nova informação sobre as montanhas do continente ocidental, o espaço negro
sem fim além das nuvens, os outros mundos que residiam dentro dela. Sua
pele estava em chamas, seu sangue borbulhava quente. O empirium insistiu
em derramar um milhão de pedaços do mundo em sua mente. Era muito e
rápido demais, mas Rielle não conseguia parar de beber. Seus ouvidos doíam,
suas têmporas retumbavam como tambores e ela ainda consumia.
Corien chegou ao lado dela. Sua presença puxou seus pensamentos de volta
para seu corpo humano, o que a irritou. Ela olhou para o horizonte até que
sua irritação diminuiu. Ela podia ver coisas agora – coisas próximas – nas
quais ela não estava interessada antes.
Havia as montanhas ao redor de Âme de la Terre. Doze montanhas,
atapetadas de pinheiros, e a mais alta delas – assustadoramente enorme,
coberta de neve – elevava-se sobre o castelo a seus pés.
Lá estavam os exércitos que ela e Corien haviam feito nas últimas semanas
e meses. Dez mil adatrox de olhos cinzentos, marionetes dos anjos.
Incontáveis anjos permaneceram sem corpo, seu único armamento era o
astuto poder de suas mentes. E mais cinco mil caminhavam pela zona rural de
Celdaria, primorosamente trabalhada por suas próprias mãos e firmemente
amarrados aos corpos humanos que os abrigavam. Alguns voavam; outros
caminhavam. Cintilantes e tontos, finalmente famintos por vingança, sua
glória angelical seria óbvia para as pessoas que observavam sua aproximação
– os soldados tremendo nervosamente em suas torres de vigia, as crianças
parecendo com os olhos arregalados sobre os ombros de seus pais enquanto
fugiam da cidade para o mar.
Havia a luz suave do crepúsculo, âmbar e tangerina a oeste, violeta a leste.
Lá estavam as fazendas estendendo-se em linhas bem definidas em direção à
capital. Mudas de primavera girando silenciosamente no solo.
E havia a redondeza de sua barriga e a pequena vida crescendo dentro dela.
Rielle olhou de soslaio, aquele minúsculo conjunto de fibras iluminadas
batendo forte contra suas palmas. Talvez permitir que a criança vivesse,
afinal, não fosse sensato. Duas rainhas se erguerão, disse Aryava. Uma de
sangue e outra de luz.
Ela coçou a barriga, as unhas agarrando-se aos delicados fios de seu
vestido. Era uma vestimenta dramática. Seda pura cor de sangue sem
adornos, do colarinho à bainha. Longas fendas em suas coxas deixavam suas
pernas livres para se mover. A saia começava no alto de sua cintura, caindo
solta em torno de sua barriga. Ela não usava sapatos; não precisava deles. O
ar noturno da primavera era fresco, mas em seu sangue parecia o auge do
verão. Ela enrolou os dedos dos pés na terra. As solas dos pés estavam pretas
de tanto viajar.
Ela mesma havia desenhado o vestido na manhã anterior à partida de
Northern Reach. Os primeiros cinco esboços terminaram em frenesi. Cada
vez que ela recriou as linhas de sua barriga protuberante, uma selvageria a
dominou. Aquela garota na montanha. Os olhos de Audric em um rosto
assustado. A pele mais clara que a de Audric, mas mais escura que a de
Rielle, um marrom claro como a extensão de areia clara. Cabelo castanho
escuro em uma trança espessa e bagunçada, o poder incerto tremendo nas
pontas dos dedos, as mãos adornadas com finas correntes de ouro. Meu nome
é Eliana.
Rielle havia apagado cada desenho rabiscado até que a garota desapareceu
de sua mente e a tinta manchou seus dedos. A ponta da caneta marcava sulcos
duros na polida mesa de Corien. Assim que conseguiu terminar um desenho,
observou os alfaiates trabalharem freneticamente durante a noite para
terminar o vestido, satisfeita ao ver o suor pintando suas sobrancelhas.
Sua própria filha seria a rainha que se levantaria contra ela? Suas palmas
formigaram contra sua barriga.
Corien colocou sua mão fria sobre a dela, dispersando seus pensamentos.
— Olhe para eles — ele sussurrou, passando o braço no ar para cercar o
oceano impressionante de suas tropas. Lá estavam as linhas ordenadas de
soldados angelicais. Os generais usavam capas de veludo preto com bainhas
douradas. Lá estavam as feras que Corien e seus médicos haviam projetado
sob as montanhas do norte – rastreadores, imitações de cruciata, deformadas
e protuberantes. Suas asas carnudas batendo, armadura embutida em suas
peles, peles escamosas. Controlados por mentes angelicais, as crianças
elementais de olhos vazios montavam as feras, seus pulsos e pescoços
amarrados com receptáculos.
Rielle examinou o funcionamento interno das feras, ouro ardente e
complexo. Havia o poder musculoso dos dragões de gelo Borsvallicos; havia
as cicatrizes deixadas pelas facas dos loucos cirurgiões subterrâneos de
Corien. O poder das crianças elementais cercou os rastreadores e suas
armaduras forjadas como redes, prontos para puxar e chicotear, convocar e
explodir.
— Você se saiu muito bem — disse Rielle serenamente. — Mas posso ver
onde melhorias podem ser feitas.
Corien levou sua mão aos lábios. — No devido tempo, meu amor. Mundos,
lembra? Depois disso, temos mundos inteiros para se tornarem nosso.
— Para desfazer e refazer como acharmos adequado — sussurrou. Um
apetite insaciável agitou-se na medula de seus ossos.
— Rielle a Assassina de Reis. — Corien voltou o rosto para ela. — Rielle,
a Desfeitora.
— Eu tinha um mundo em minhas mãos — ela sussurrou, fechando os
olhos enquanto a boca dele roçava sua mandíbula. Seus pensamentos
cantavam enquanto eles voltavam para aquele mar infinito e cintilante, a
garota de vestido branco puxando-a para as estrelas. — Eu quero fazer isso
de novo. Diga-me que vamos. Diga-me que não vai demorar.
— Em breve, você terá tudo o que deseja — ele disse, seu hálito quente em
sua boca, — e eu também terei. Você arrancará mundos das estrelas e os fará
girar para agradá-la. Você encontrará Deus e exigirá algo melhor do que o
que nos foi dado.
Então ele se curvou para beijá-la. O calor suave de seus lábios, sua língua
abrindo a boca dela. O sangue de Rielle saltou selvagemente ao seu toque.
Ela apertou os braços em volta do pescoço dele, o calor descendo por suas
coxas. Seu exército se separou em torno deles e passou como um trovão. Seus
generais gritaram uma chamada em Azradil; a infantaria respondeu na mesma
moeda, um coro de gritos de guerra na mais cadenciada e dolorosamente
adorável das línguas angelicais.
Rielle enviou a Corien uma imagem brilhante. Havia um bosque de
carvalhos em uma colina próxima. Ele se deitaria na grama embaixo dela,
seguraria seus quadris enquanto ela se movia. Ela o teria ali nas sombras, e
quando se levantasse para enfrentar Âme de la Terre, seria com a memória de
seus gritos apaixonados ecoando em seus ouvidos.
Ele sufocou o nome dela contra a garganta de Rielle, tropeçou atrás dela
através das tropas em marcha e para as árvores, e quando eles terminaram, ele
estava tremendo na terra. Com olhos brilhantes, ele a observou se levantar.
Ela mal o notou, chutando-o levemente quando ele estendeu a mão para ela.
Ela já estava esquecendo como era ter as mãos dele sobre ela. Ela ficou sob
as árvores que protegiam sua vida amorosa, sua pele em chamas com o calor.
Sua visão pulsava com batidas de ouro. Atualmente, ela conhecia poucas
outras cores. Ouro dourou seus pesadelos, nadou cintilando em sua língua.
Através de um brilho âmbar, ela observou a enxurrada de seu exército correr
rapidamente em direção à cidade que ela pensou ser seu lar.
Pequenas fogueiras floresciam à noite – um caminho de chamas
serpenteando pelas montanhas. Um fino uivo de trompas soou, rapidamente
abafado pelo exército que cantava.
Rielle sorriu, de olhos fechados, e ergueu o rosto para o céu. Como se fosse
útil ter um aviso. Como se as torres de vigia e as trompas pudessem ser tudo
menos um constrangimento.
Corien se juntou a ela, silencioso e sombrio em seu cotovelo. Ela podia
sentir o cheiro dele em sua pele.
— Você está pronta? — ele murmurou.
Ela abriu os olhos e ele inspirou profundamente. Ela podia entender isso. O
empirium era um grande espelho dourado diante dela, e nele ela podia ver seu
reflexo. Seu cabelo escuro, rebelde até a cintura; seu vestido de seda
abraçando seu corpo; seus pés descalços e pretos. Cada veia pintada com uma
caneta dourada, duas moedas resplandecentes de luz para os olhos.
— Eu sou infinita — respondeu ela, retomando as palavras que ele tanto
gostava de dizer. Ela tentou não pensar nisso muito de perto. Que ele pudesse
se considerar infinito de alguma forma o fazia parecer bobo.
Ela se afastou dele para se juntar a seu exército enquanto este marchava
implacavelmente para frente. Podia ver além deles, além das montanhas,
além dos exércitos Celdarianos e Mazabatianos reunidos e esperando. Ela
podia ver além de tudo isso, um castelo escuro e tenso, seus corredores
farfalhando com sussurros urgentes, e um pátio perto dos arsenais, onde um
rei montava uma besta divina alada e se preparava para cavalgar para a
batalha.
37
Eliana

“Você não acha que eu desejo que ela venha tão desesperadamente
quanto você? Amigos, não passa um dia, nem um momento, sem que eu
imagine a Rainha do Sol aparecendo finalmente para nós, machucada e
ensanguentada e resplandecente de luz, pronta para se entregar ao
nosso inimigo para que possamos viver novamente. Ela está comigo em
sonhos e ao acordar. Ela ruge em meu sangue como uma paixão
incomparável. E ela também deve viver no seu, para que você esteja
pronto para lutar ao lado dela no dia do julgamento que sabemos que
espera por todos nós.”
— A Palavra do Profeta

Os sete acólitos que serviam Ludivine moviam-se silenciosamente como


gatos. Eles trouxeram um ensopado quente de carne e vegetais, xícaras de
água fresca, uma segunda cadeira, uma mesinha.
Eliana recebeu uma túnica e calças macias para substituir seu vestido
arruinado. Ela ficou imóvel enquanto os acólitos entravam e saíam da câmara
circular de pedra. Ela observou Ludivine substituir as três velas, que estavam
quase queimadas. Na penumbra, sombras piscaram no rosto pálido de
Ludivine. Seus cabelos dourados, presos em um coque ordenado, brilhavam
suavemente. Seu vestido encostava em seus tornozelos; ela mal fez um som
enquanto se movia. Ela era poderosa em sua quietude, um rio tranquilo com
enchentes esperando dentro dele.
Cheia de nervosismo, Eliana lembrou-se da voz do Profeta e tentou
combiná-la com a da mulher que deslizava pela sala. Nunca saia desse
pequeno rio. Mantenha os pés frios e aterrados, mesmo quando suas mãos
começarem a queimar.
Ludivine acomodou-se em sua cadeira, comeu em silêncio algumas
colheradas de ensopado e colocou a tigela na mesa entre elas
— Não havia outra maneira de atravessar o Grande Oceano em segurança
para mim — disse Ludivine, como se estivessem conversando por horas, — e
nenhuma outra maneira de você se tornar o que é agora. Eu precisava que
você quebrasse, e então eu precisava que você se reconstruísse em algo mais
forte do que era antes. Em uma versão de si mesma capaz de enfrentar sua
mãe no auge de seu poder. O que você era antes não era suficiente. O que
você é agora será, espero.
O rosto de Ludivine mudou ligeiramente, como se estivesse se
recompondo. — Não posso expressar o quanto lamento pelo que você sofreu.
Mas não lamento o que fiz. O arrependimento é veneno. Isso me mataria.
Seus olhos negros se voltaram para a tigela intocada de ensopado de Eliana.
— Não quero forçá-la a comer, mas farei isso se for preciso. Você precisa de
força para o que está por vir.
Uma onda de raiva passou quente por Eliana. — Meu irmão está sendo
alimentado?
— Claro. Meus acólitos também cuidarão de seus ferimentos. Todos eles
são médicos qualificados. E não, eu não vou permitir que ele machuque
nenhum deles, nem vou permitir que ele machuque Simon, nem vou permitir
que ele escape. Ele está confortável. Sua mente está descansando.
— Sua mente está forçando a dele a descansar, você quer dizer. Mantendo-
o dócil.
Ludivine inclinou a cabeça. — Coma.
Eliana se imaginou pegando sua tigela e jogando na cara de Ludivine.
Talvez o ensopado estivesse quente o suficiente para chamuscá-la. Ela
pensou em cada batida da imagem para que Ludivine pudesse vê-la. Mas
Ludivine não disse nada, apenas a observou suavemente. Os dedos de Eliana
tremeram em torno de sua colher.
— Você tem perguntas. — Ludivine cruzou as mãos no colo. — Diga.
Suas primeiras mordidas despertaram em Eliana uma fome feroz. A
princípio, ela não disse nada, colocando comida na boca. Depois de alguns
minutos, ela limpou a boca com a manga e deixou a colher cair na tigela
vazia. Então ela fixou os olhos nos de Ludivine.
— Você diz que foi a única maneira de me trazer aqui com segurança —
disse Eliana. Palavras não ditas pairaram entre elas, vibrando e tensas.
Imagens atingiram a mente de Eliana: Simon parado na beira do cais atirando
em seus amigos; Remy no convés do navio do almirante, sendo arrastado
para longe dela; seu pai caindo para a morte.
Ela colocou os pés no chão, procurando calma. — Por que você não
poderia ter vindo até mim? Você é claramente poderosa o suficiente para
escapar da detecção de Corien. Por que se esconder aqui e esperar por mim?
Algo poderia ter acontecido. Uma tempestade poderia ter afundado o navio
do almirante. Eu poderia ter conseguido me matar.
— Uma tempestade era improvável. A passagem que você fez é bastante
percorrida por um motivo. E eu demonstrei que não teria permitido que você
se matasse — disse Ludivine. — Como disse a você, eu precisava que você
se quebrasse e se refizesse como seu eu mais verdadeiro. Se eu tivesse vindo
até você, nada disso teria acontecido. Você ainda seria pequena e humana,
com medo do poder em seu sangue. — Ludivine inclinou a cabeça. — Você
conhece a lenda do pássaro de fogo Kirvayan? Para subir, primeiro é preciso
queimar.
Eliana olhou para ela. — Eu ainda sou humana.
— Não inteiramente. Os humanos não podem fazer o que você pode fazer.
Os humanos não podem fazer o que sua mãe podia fazer. Você é algo mais
do que isso, e ela também era. Você sabe disso.
— Você poderia ter vindo até mim — insistiu Eliana. — Você poderia ter
feito para mim tudo o que Corien fez, me refazer como você quisesse. Não
havia necessidade de me trazer aqui. Remy teria sido poupado do que ele
passou. Talvez meu pai ainda estivesse vivo.
— Séculos atrás, a cidade de Âme de la Terre ocupava este terreno. Agora é
Elysium. Corien construiu seu palácio não muito longe de onde ficava o
castelo de Baingarde. — Ludivine fez uma pausa. — É difícil o suficiente até
para o marque mais habilidoso viajar no tempo. Para garantir o sucesso,
eliminei a necessidade de viajar pelo espaço também.
— Viajando no tempo. — Eliana engoliu em seco, a garganta seca. — Você
quer me mandar de volta, para encontrar minha mãe. Ou para matá-la?
Uma leve centelha de sentimento no rosto plácido de Ludivine. —
Esperançosamente, não chegará a esse ponto. Você encontrará sua mãe em
um momento de paz, quando sua mente estiver clara e aberta e sua lealdade
ainda for firme para com Celdaria. Você tentará argumentar com ela,
convencê-la a se voltar contra Corien e matá-lo. Se ela atacar, você lutará
contra ela até que ela se renda ou vocês alcancem um impasse. Ou você
voltará e tentaremos novamente. Outro dia, outro momento. Vamos tentar até
que não possamos mais. Vamos tentar até ficarmos sem tempo.
— Você quer dizer até que Corien nos encontre.
Ludivine inclinou a cabeça.
— E depois? Quando ficarmos sem tempo?
Ludivine fez uma pausa. — Então você vai voltar ao passado uma última
vez, e você vai matar ela e Corien. Você fechará o Portão assim que puder,
antes que mais anjos possam escapar do Abismo. — O silêncio foi
estrondoso. — Como eu disse, espero que não chegue a esse ponto.
A bile de Eliana subiu. — Mas se eu matá-la antes de nascer, como isso
funcionaria? Como eu poderia voltar para matá-la se eu nunca existi?
— Alguém muito mais familiarizado com a arte da viagem no tempo me
garantiu que, se os fios forem puxados na sequência correta, se a magia for
calibrada com precisão, esse paradoxo pode ser evitado. Se você for forçada a
matá-la, se ela não lhe deixar outra escolha, você a matará – e, portanto, a
você mesma, do passado e do presente. Eu sinceramente espero que não
chegue a esse ponto. Você não deve deixar chegar a esse ponto.
Eliana não sentiu nada ao pensar na própria morte; há muito ela havia
superado esses medos pequenos e estreitos. Mas com a menção de viagem no
tempo, uma bolha estourou dentro dela. Ela não conseguia mais conter a
pergunta. Suas unhas cravaram na madeira polida da mesa, deixando
pequenas crescentes douradas para trás.
— Simon — ela soltou. — Conte-me.
Ludivine levou o copo d'água aos lábios. — Você terá que ser mais
específica.
— Não, não vou. Você pode sentir minhas perguntas e não é idiota. Você
sabe o que estou pedindo. — As lágrimas subiram rápido, mas ela estava com
raiva demais para tirá-las dos olhos.
Ludivine a observou pensativamente. — Você se lembra quando Simon te
mandou de volta para a Velha Celdaria? Você tentou entrar em contato com
Rielle. Ela lutou com você, e você era muito fraca para competir com ela.
— É claro que eu me lembro. Como eu não lembraria?
— Corien estava lá naquele dia, na mente de Rielle. Quando você chegou,
ele leu seus pensamentos.
Eliana ficou tensa. Ela nunca esqueceria as palavras. Ah, Eliana. Não é a
primeira vez que nos encontramos, ao que parece. Que curioso.
Ludivine assentiu. — O Imperador já havia tocado sua mente antes, mas
apenas de forma remota e sem muito sucesso. Ele sabia que você existia, mas
só conseguia encontrar seus pensamentos de forma intermitente, para sua
frustração.
— Por sua causa?
— Por minha causa. Mas naquele dia, você estava longe de mim, em outro
tempo, que Corien foi capaz de te encontrar, mesmo que por um momento. E
ele disse outra coisa, não disse?
Um arrepio desceu lentamente pelos braços de Eliana quando ela se
lembrou das palavras de Corien. Que vida você levou. Que companhias
interessantes você mantém.
— Eu me lembro — disse ela, um mero sussurro.
— Naquele momento, ele não viu tudo pelo que tínhamos trabalhado, mas
viu o suficiente — continuou Ludivine. — Ele viu Simon e sabia que ele era
um marque. Ele sabia que você o amava, mas não tinha certeza se ele amava
você. Sabia que você pretendia acabar com o Império antes que realmente
começasse. Ele sabia o suficiente, e quando você voltou ao seu presente, ele
foi alterado.
Ludivine recostou-se na cadeira, parecendo repentinamente cansada. — Eu,
é claro, vi tudo isso também. Eu vi na mente de Rielle quando ela voltou para
casa naquela noite. Mas escondi tudo o que sabia dela e de Audric também.
Eu era covarde então. Eu estava com muito medo do que tudo isso poderia
significar e não agi até que fosse tarde demais. Não pude enfrentar o alcance
do meu próprio fracasso. Então eu me escondi. Eu assisti Rielle matar
Audric. Observei os anjos invadirem Âme de la Terre. Assisti ao fim do
mundo, congelado nas garras do meu próprio medo. Após a invasão, protegi
o menino Simon para que Corien não o encontrasse. Então eu observei Simon
invocar fios e tentar viajar com você para o reino de Borsvall. Eu disse a ele
para se apressar. Eu disse que ele era forte o suficiente, e ele era. Mas não
importou.
Ludivine fechou os olhos. Sua voz se tornou um sussurro. — A força da
morte de Rielle desequilibrou os fios do espaço e convocou os fios do tempo.
Volátil e imprevisível. Eu os observei levar você e Simon para a escuridão e
então observei enquanto Baingarde desabou, as montanhas ao redor de Âme
de la Terre desmoronaram e todos os que viviam na cidade foram extintos.
Observei os anjos rastejarem das cinzas. Aqueles que conseguiram agarrar-se
aos seus corpos humanos roubados não podiam saborear, ver e sentir como
eles podiam apenas alguns momentos antes. Seus olhos eram negros, assim
como os meus. Eu os ouvi uivar, Corien o mais alto de todos, porque ele a
havia perdido.
Um longo momento se passou. O batimento cardíaco de Eliana pulsava em
suas têmporas. — Mas Simon disse que seríamos os únicos a notar qualquer
mudança. Qualquer coisa que estivéssemos no passado teria alterado. Eu
pensei… — Palavras emaranhadas em sua garganta. — Eu pensei que isso
significava…
— Que ele estaria protegido de quaisquer mudanças no futuro alterado? Ele
estava, Eliana. Mas você não vê? Era a única maneira. Certifiquei-me de que
a criança Simon estivesse lá na noite do seu nascimento. Rielle insistiu com
ele para que a levasse para um lugar seguro e eu o encorajei, pensando em me
juntar a vocês dois mais tarde. Que eu iria protegê-la como falhei em proteger
sua mãe. Enquanto o mundo se curava da morte de Rielle, eu criaria você e
Simon como se fossem meus. Então, quando você tivesse idade e força o
bastante, eu os mandaria de volta ao passado para salvar Rielle antes que ela
começasse a se perder para Corien e para o empirium. Claro, Rielle morreu
antes que Simon pudesse viajar, e a onda de choque abalou seu trabalho.
Vocês dois foram lançados para frente no tempo e eu fui deixada sozinha em
um mundo destruído
A mente de Eliana trabalhou rapidamente. — Corien também não morreu.
Ele sobreviveu.
— Ele estava ao lado de sua mãe no momento da morte dela, então seus
ferimentos foram… graves. Levou séculos para se recuperar totalmente, e sua
mente, embora ainda poderosa, nunca mais foi a mesma. E eu soube então
que o que Rielle vira na montanha – você e os fios puxados por um Simon
adulto – aquele futuro estava se tornando realidade. E eu sabia que deveria
agir.
Um calor doentio cresceu rapidamente em Eliana quando ela começou a
entender. — No passado, Corien tinha visto Simon de relance. E embora a
morte de Rielle tenha danificado sua mente…
— Eu sabia que isso poderia não ser suficiente para proteger Simon,
quando chegasse a hora — Ludivine concordou. — Eu sabia que eu mesma
deveria estar à procura dele e proteger meus esforços e minha própria
existência de Corien. Quando Simon finalmente apareceu – centenas de anos
depois para mim, mas apenas alguns segundos para ele – eu sabia que a única
maneira de mantê-lo seguro de Corien e, portanto, proteger nossa única
esperança de viajar no tempo, era enviá-lo direto para a mãos de Corien.
Corien teria que acreditar que ele era totalmente seu. Ele precisaria servir ao
inimigo para ser salvo dele.
O olhar de Ludivine estava firme e brilhante. — Eu o disciplinei. Eu o
ensinei como suportar a dor. O melhor que pude, assegurei-me de que as
cicatrizes que lhe dei correspondessem às que eu tinha visto. Meses se
passaram. Então eu o deixei no deserto de Vindica e me certifiquei de que
Corien o encontraria.
— No deserto — disse Eliana, entorpecida.
— Simon fez exatamente como eu havia instruído — Ludivine disse,
sorrindo levemente. — Tínhamos praticado até que ele acreditasse na história
que deveria contar. Quando Corien o encontrou, Simon estava desesperado
de solidão. Ele vivia sozinho há meses e estava com as cicatrizes de sua
viagem acidental no tempo, e aqui finalmente estava alguém da casa que ele
havia perdido. Rielle havia destruído sua cidade. Ela havia matado seu rei.
Foi a traição dela que trouxe os anjos para sua cidade, sua morte que o enviou
a um futuro que ele não entendia, onde ele estava sozinho e com medo. Ele
suspeitou que a filha de Rielle também tivesse sido levada para lá. Ele
ajudaria Corien a encontrá-la. Ele serviria sem questionar se isso significasse
que ele não estaria mais sozinho, e se Corien o ajudasse a encontrar sua
magia novamente. Essa foi a história que Simon contou.
O sorriso de Ludivine vacilou. — E embora ele tenha tentado por anos,
Corien não conseguiu encontrar nenhuma evidência de engano. Ele estava
desconfiado. Ele se lembrou de fragmentos daquela velha memória, de ter
visto você na montanha e ver Simon através de você, mas ele sabia que
qualquer viagem no tempo que você tentou provavelmente mudou suas
circunstâncias, talvez em favor dele, e ele não poderia recusar um presente
como Simon. A morte de Rielle quebrou o empirium. Se sua filha estivesse
aqui, seus dons não seriam óbvios; eles podem até estar profundamente
adormecidos. Ele precisaria de ajuda para encontrá-la, especialmente porque
a imensa tarefa de aumentar seu Império havia desgastado sua mente já
danificada. E que melhor ajudante ele poderia encontrar do que este menino
que viu tudo acontecer na noite em que perdeu seu grande amor? Um menino
que ele poderia moldar. Um menino que te segurou nos braços. Um marque
com sangue angelical.
Eliana fechou os olhos, apertando os braços da cadeira.
— De seu lugar ao lado de Corien — Ludivine continuou, — Simon
serviria a dois senhores. Ele a encontraria, a empurraria para despertar a si
mesma e, então, ajudaria a destruí-la, ao mesmo tempo que fingia lealdade ao
seu maior inimigo. Mas ele sempre foi meu. Ele tem sido desde o momento
em que o encontrei sozinho na neve, segurando seu pequeno pedaço de
cobertor.
Então, a pena suavizou a voz de Ludivine. — Sinto muito, pequenina. Era a
única maneira. Se te ajuda, o amor dele não foi estratégia minha. Eu
esperava, é claro, que ele pudesse aprender a amá-la. O amor tornaria mais
fácil para ele machucar você e, portanto, apressaria o seu caminho para a
destruição e então o renascimento. — Eliana abriu os olhos,
momentaneamente atordoada de sua raiva. Ludivine sorriu, magnânima. — E
agora olhe para você. Uma criatura gloriosa.
O momento acabou.
Eliana se moveu como fogo. Ela empurrou a mesa e as tigelas para o lado,
depois deu um golpe forte no rosto de Ludivine.
Ludivine não fez nenhum som, não deu sinais de dor. A marca rosa em sua
bochecha desapareceu rapidamente.
— Você o machucou — disse Eliana, com a voz firme e suave. — Você
machucou a mente dele tão severamente que ele poderia servir a você e
Corien sem que sua verdadeira lealdade jamais fosse descoberta. Você o
embaralhou, o rasgou, costurou-o de volta.
Ludivine enxugou o sangue do lábio. — Isso é verdade.
— E suponho que Corien o machucou também, repetidamente, para
garantir que ele não estivesse sendo enganado.
— Para cada noite de paz que Simon desfrutou no palácio de Corien, ele
suportou dez de tormento — disse Ludivine simplesmente. — Mas Corien
nunca poderia encontrar nada errado. Eu assegurei que seria assim. Até hoje,
ele acreditava que Simon era inteiramente seu.
Os olhos de Eliana ardiam de lágrimas. Ela mal as notou. Seu peito estava
quente de fúria. — Você é um monstro. Você torturou este menino que havia
perdido seu pai e sua casa, e então o enviou para outro monstro para ser
torturado ainda mais.
Ludivine foi implacável. — Não preciso lhe dizer que às vezes devemos
fazer escolhas difíceis e cometer atos de violência para beneficiar o bem
maior. Veja o que você fez por sua família quando morava em Orline. Veja o
que você fez pela Coroa Vermelha, por Remy, pelas pessoas deste mundo.
Você não é estranha ao sacrifício, Eliana, nem à crueldade.
Um acólito apareceu de repente na porta, assustando Eliana de sua
crescente dor. Eles eram muito quietos para o seu gosto, aqueles acólitos,
seus olhares muito diretos. Eliana se perguntou que tormento eles sofreram
nas mãos de Ludivine. Era o amor que os manteve leais ou o medo?
— Eles estão aqui, minha senhora — disse o acólito com uma reverência.
— Cuide para que sejam alimentados e suas feridas tratadas — ordenou
Ludivine. — Vamos nos juntar a vocês em breve.
O acólito acenou com a cabeça uma vez e depois se foi.
— Falaremos mais tarde — disse Ludivine, levantando-se da cadeira. —
Até então, deixo com este pensamento. A única maneira de acabar com isso –
esta guerra que por milênios atingiu todos neste mundo e em outros – é você
retornar à Velha Celdaria. Convença Rielle a matar Corien e fechar o portão.
Lute com ela se for preciso. Destrua-a se precisar.
Eliana olhou para ela, cheia de muitas tristezas conflitantes. — Você a
amava.
— Amava.
— E ainda assim você fala dela tão friamente?
— Tive séculos de luto por ela — disse Ludivine. Ela arrancou um pedaço
de cenoura da manga. Seu ensopado inacabado espalhou-se pelo chão. —
Não temo mais a morte dela como antes.
A máscara fria de seu rosto enervou Eliana. — Não entendo como faríamos
isso. Simon tentou viajar muitas vezes no palácio. Ele não conseguia
encontrar seu poder.
— Porque você não o deixaria.
Um silêncio ensurdecedor caiu entre elas.
Ludivine sorriu gentilmente. — Você entende, então, o que você deve
fazer. Você despertou novamente o poder dele quando seu amor por ele
estava chegando ao auge. Uma vez, quando você curou Remy. Então,
novamente durante seu tempo em Willow. A magia do mundo está morta,
Eliana, o empirium dilacerado e distante. Somente através de você ele vive
novamente. E com a perda de sua confiança em Simon, sob a pressão de ferro
de sua vontade irada, o poder dele tornou-se adormecido mais uma vez, e não
confiável, como você viu. Você deve realmente aceitá-lo em seu coração
mais uma vez, permitir que ele encontre seu poder novamente, se houver
alguma esperança de fazer o que devemos.
Eliana abanou a cabeça. Ela encontrou sua cadeira e afundou-se lentamente
nela, os joelhos de repente instáveis. — Como posso? Depois do que ele fez,
depois do que viu e ouviu… — Ela fechou os olhos, lutando para encontrar
sua voz. — Eu poderia dizer: 'Eu te perdôo' até minha garganta sangrar, mas
não seria verdade, mesmo sabendo o que você fez com ele.
— Eu não disse perdoar. Eu disse aceitar.
Ao ouvir Ludivine se ajoelhar diante dela, Eliana abriu os olhos e a fitou
em um campo fervente de ódio.
— Você poderia escolher não fazer isso — disse Ludivine gentilmente,
considerando-a. — Você poderia continuar a recusar seu poder. Nós
poderíamos sentar nestes quartos esperando Corien se recuperar da lâmina de
ferro e nos encontrar. Ele vai matar todos nós, incluindo Simon, eu e você,
talvez, porque ele tem pouca sanidade agora, e então tudo isso terá sido em
vão. Tudo que você suportou. Cada momento que Simon passou chorando
aos meus pés enquanto eu dissecava sua mente. Eu sei que não é isso que
você quer que aconteça.
Eliana desviou o olhar, os ombros doendo sob um novo peso terrível.
Discutir com Ludivine seria inútil. Ela sabia o que Eliana pensava com tanta
certeza quanto ela mesma.
— E se fizermos isso — ela disse calmamente, — o que acontecerá com
todos que vivem agora? Remy e Navi, todos que eu já conheci e amei?
— Eles não existirão mais. Eles nunca terão existido. Pelo menos não como
são agora. Remy ainda pode nascer um dia de Rozen e Ioseph Ferracora, mas
ele não será o Remy que você conhece, não inteiramente. Nem Rozen ou
Ioseph, nem mesmo a cidade de Orline. Se você conseguir convencer Rielle a
matar Corien, o mundo começará novamente com sua morte. Haverá paz. Ela
vai consertar o Portão, e os anjos permanecerão selados no Abismo.
Eles nunca terão existido. Eliana, entorpecida de terror, lembrou-se de suas
discussões sobre isso com Simon. Enquanto ele praticava a criação de fios
nos jardins de Willow, eles falaram de futuros alterados, vidas extintas. Ela
não tinha realmente sido capaz de compreender o conceito então, e agora não
era diferente. Era muito colossal, muito terrível. Navi, Patrik, Hob. Remy.
Seu Remy. Todos eles mudados, ou talvez nem cheguem a nascer. Talvez
vivos, talvez não. Talvez eles mesmos, talvez não. Todo um mundo de
pessoas desaparecendo da existência.
Sua boca ficou seca, suas entranhas um mergulho quente de repulsa. Ela se
sentiu de alguma forma desalojada, como se as palavras de Ludivine tivessem
abalado seus alicerces mais profundos. Ela olhou para o anjo de cabelos
dourados diante dela, mas não encontrou conforto naquele olhar negro de
aço.
Então Ludivine se levantou e se afastou da cadeira de Eliana, sua expressão
mudando. Do corredor, vieram sons de uma breve luta. Passos correndo se
aproximaram, e uma mulher com pele negra escura e cabelo preto
emaranhado que caía sobre os ombros parou abruptamente na porta. Suas
roupas estavam sujas, manchadas de sangue e fuligem.
O choque de Eliana floresceu rapidamente, limpando sua mente. Sua voz
era um sopro suave de ar. — Navi?
Navi soltou um grito estrangulado, depois correu para Eliana e puxou-a
para um abraço apertado. Eliana agarrou seus ombros, segurou-a com força.
Navi encostou o rosto no pescoço de Eliana, dizendo coisas que Eliana mal
conseguia ouvir, pois havia um zumbido em seus ouvidos, como se sua
alegria fosse a batida de um sino.
Ela olhou além do ombro de Navi para onde Ludivine estava pálida e
imóvel nas sombras.
— Isso é um truque? — Eliana sussurrou.
Não, pequenina, Ludivine respondeu. Seus olhos negros brilharam à luz das
velas.
Navi se afastou, com o rosto molhado de lágrimas. Ela colocou o cabelo de
Eliana atrás das orelhas, parecendo pronta para dizer mil coisas. Como Navi
era adorável, mesmo com o sangue secando em seus braços, o cheiro da
morte agarrado a ela. Gotas azuis brilhantes respingaram em seu colarinho.
Eliana segurou o rosto de Navi nas mãos e ainda não conseguia falar. Ela
balançou a cabeça, riu um pouco, tentou puxar a amiga para perto mais uma
vez.
Mas Navi deu um passo para trás, com as mãos quentes nas de Eliana. —
Zahra está aqui. Eu acho que ela estava esperando para ver você antes de…
A voz de Navi foi sumindo. Ela olhou de volta para o corredor. Atrás dela
estava uma mulher com cabelos brancos na altura do queixo e pele
avermelhada sardenta. Eliana piscou, sua mente correndo para se atualizar
com tudo o que ela via. Patrik estava lá, e Hob também, e o irmão de Navi,
Malik, e dezenas de outros que Eliana não reconheceu.
E vagando lentamente em direção à porta estava uma figura tênue e cinza.
Cabelo escorrendo como ondas de vento na água, olhos escuros e cintilantes.
Um eco do anjo que ela já fora, desenhada em sombras finas.
— Zahra — sussurrou Eliana, estendendo a mão para ela. Com aquela
única palavra, Zahra gritou baixinho, sumiu e então reapareceu apenas para
flutuar lentamente até o chão.
Eliana se ajoelhou para recebê-la. Suas mãos pairaram sobre o que ela
podia ver da forma encolhendo de Zahra. Ela havia diminuído para o
tamanho de uma criança. As linhas mutáveis de seu corpo eram como cachos
de fumaça sumindo.
— O que aconteceu, Zahra?
— Minha rainha — murmurou Zahra. Uma mão fina de sombra moveu-se
em direção à bochecha de Eliana. — Minha rainha, minha rainha. Aí está
você.
Navi se ajoelhou ao lado delas, seus olhos castanhos brilhando. — Ela foi
maravilhosa, Eliana. Ela escondeu nosso navio durante toda a travessia do
oceano. Nos guiou pelo mar de Silarra, nos ajudou a escapar de dezenas de
navios de guerra imperiais. Nos protegeu na estrada para Elysium, através da
cidade e aqui embaixo para você. O Profeta… — Navi olhou para Ludivine,
com a testa franzida. — O Profeta a guiou até você. Todos nós sobrevivemos
à jornada. Cento e sete de nós, vivos e bem graças a ela.
— Zahra, sua maravilhosa, como você conseguiu fazer isso? — Eliana
desenhou uma imagem em sua mente: as duas se abraçando, Zahra em sua
forma angelical, como Eliana tinha visto naquela visão muito tempo atrás.
Pele marrom rica, cabelos brancos caindo como seda de aranha até os
quadris. Armadura de platina brilhando com a luz do sol, asas finas fluindo
como rios de sombras iluminadas pelas estrelas de suas costas.
Mas antes que ela pudesse enviar a imagem a Zahra, Ludivine a
interrompeu com uma pressão suave em sua mente. Ela não aguenta, Eliana.
Sua mente está perdendo coesão de tanto esforço. Seja gentil.
Eliana olhou para o chão, onde apenas os mais tênues fios pretos marcavam
o desmoronamento de Zahra. A vaga impressão escura de seus olhos era
apenas uma sugestão de sombra na pedra. Eliana balançou a cabeça, a
garganta doendo. Suas lágrimas lavaram todas as cores do mundo.
— Zahra, por que você fez isso? — ela sussurrou.
Uma voz fragmentada respondeu, um mero sopro de som. — Por você,
minha rainha.
Então, um leve tremor na pele de Eliana. Uma cedência silenciosa, como se
o ar anteriormente tivesse sustentado um grande peso, uma inteligência
gigantesca, e agora não contivesse nada além de si mesmo.
38
Audric

“Levantai com o amanhecer, meus irmãos, minhas irmãs, meus amigos!


Levante-se com a luz! Com o sol em nossas costas, encontramos nossos
inimigos sem medo, desespero ou dúvida! Conhecemos apenas a raiva
que floresce em nossos corações! O amor por aqueles que perdemos! O
amor pelo lar que nos foi tirado! E o amor pelo dia que sabemos que
virá amanhã, e no próximo, e no próximo, até que o sol nasça e olhe
para um mundo de paz finalmente!”
— Um discurso proferido por Santa Katell de Celdaria às tropas
elementais na Batalha das Estrelas Negras

Audric cavalgou Atheria até as encostas mais altas do Monte Cibelline e


ficou parado no ar calmo e rarefeito, observando o horizonte. De tal altura, as
chamas da torre de vigia pareciam risíveis. Além delas, agitava-se um mar
negro implacável – o exército angelical, espalhado com rajadas de luz
brancas que pairavam e planavam e às vezes subiam.
Audric sabia o que aquelas luzes significavam. Ele tinha lido todos os
relatos das Guerras Angélicais que pôde encontrar. Ele tinha visto as
ilustrações em seus livros e feito seus próprios esboços quando era jovem.
Anjos em vôo, asas de luz e sombra levando-os pelos topos das montanhas e
para as nuvens. Eles poderiam deslizar através de um exército e deixar
dezenas de soldados de olhos vidrados e mente vazia em seu rastro.
Rielle lhes dera corpos, o que não era surpresa. Mas parecia que ela
também tinha dado asas a alguns deles.
Audric observou os anjos distantes voarem até que ele não pudesse mais
ficar de pé sozinho. Ele se virou para Atheria e se apoiou com força contra
ela, com os joelhos instáveis. Ela olhou para o horizonte, orelhas achatadas e
dentes à mostra. Ela estalou o rabo como se desejasse chicoteá-lo em alguém.
Ele respirou forte e rápido contra o pelo dela. Quando ele voltasse para
Baingarde, ele seria não apenas um rei, mas um comandante. Ele não
demonstraria medo. Ele não hesitaria nem se encolheria.
Mas em Cibelline, protegido pelos antigos pinheiros sussurrantes, ele se
agarrou a Atheria, procurando âncora em uma tempestade. Ela o cobriu com
sua asa, e ele alegremente se escondeu embaixo dela. Longos momentos se
passaram. Na montanha, o mundo estava quieto. Alguns pios de pássaros, um
assobio de vento. Sem botas marchando, sem crepitar de energia elemental,
sem barulho de armadura angelical.
Evyline e a Guarda Solar estavam esperando por ele na grade de pátios de
arsenais. Se vestiria em breve e precisaria da ajuda deles para fechar as placas
de sua armadura, proteger sua capa de verde esmeralda, violeta e âmbar.
E então, precisaria enfrentar isso. Enfrentá-la. Ele precisaria se mostrar
diante de seu exército, das tropas mazabatianas e dos regimentos elementais
enviados dos templos e, de alguma forma, reuni-los para enfrentar seu destino
inevitável. Quantos milhares eles poderiam reclamar? E quantos mais Corien
poderia?
Ele se soltou do calor sólido da barriga de Atheria e subiu desajeitadamente
nas costas dela. Mesmo ajoelhada, ela se elevava, e ele estava muito trêmulo
para a graça. Ele se aninhou ali entre as asas dela, então desceu e tentou de
novo, e de novo, até que sacudiu os nervos de sua pele e conseguisse subir
facilmente nas costas largas dela.
Há muitas semanas, haviam cavalgado para enfrentar uma tempestade.
Uma tempestade, um exército – um não era tão diferente do outro.
Ele manteve a mentira em sua mente enquanto Atheria descia as encostas,
rápida e silenciosa sobre as copas das árvores. Esses foram seus últimos
momentos de paz. Ele sabia de alguma forma que nunca mais seria capaz de
respirar sem também desembainhar uma espada ou ver um soldado jurado a
ele ser cortado por uma lâmina angelical.
Enquanto Atheria cavalgava ao vento, Audric tentou mais uma vez alcançar
Ludivine. Certamente ela não o deixaria assim. Ela reapareceria no último
momento com alguma grande informação ou estratégia brilhante, ou com
Rielle em seu braço. Ludivine, triunfante. Rielle, de olhos brilhantes e tonta
de alívio por finalmente estar em casa.
Uma coisa embaraçosa de imaginar, como uma criança criando fantasias.
Audric apertou sua mandíbula. Ludivine? Você está aí?
Mas ela não respondeu. Em uma cidade de milhares, em um país de
milhões, ele estava total e irrevogavelmente sozinho.

•••

Era noite quando ele encontrou seus soldados. Dez mil soldados, montados e
a pé. Blindados e encapuzados, espadas em seus quadris e receptáculos
brilhando com o poder em espera. Faixas de metal e punhais, tridentes e
lanças, escudos e martelos, tudo espalhando luz pela cidade.
Ao longo de Âme de la Terre, aqueles que não haviam fugido da cidade,
muito jovens ou velhos ou fracos para pegar em armas, se reuniram nos
telhados e aglomeraram-se nas janelas para ter a chance de vê-lo e Atheria
enquanto passavam pela cidade a caminho das Campinas.
O solo tremeu com os passos do inimigo, uma tempestade diferente de
todas as que já escureceram o céu. Logo, os exércitos angelicais iriam invadir
as montanhas. Os Earthshakers trabalharam durante semanas para reforçar as
próprias montanhas como defesa, bloqueando passagens com avalanches,
cortando rochas sólidas para criar desfiladeiros, penhascos íngremes,
labirintos de rocha. Os anjos alados seriam capazes de voar sobre esses
obstáculos, as crianças elementais roubadas talvez conseguissem achatá-los,
mas seus earthshakers estavam estacionados na passagem, prontos para
reforçar as barreiras conforme necessário. Ele esperava que esta guerra de
pedra retardasse o progresso dos anjos. Até mesmo a passagem larga e
inclinada entre o Monte Taléa e o Monte Sorenne, uma enorme lacuna nas
montanhas circundantes, havia sido fortificada. Audric olhou para a
passagem enquanto Atheria voava. Quase dois anos atrás, Audric quase
morreu lá durante a Boon Chase. Era estranho lembrar uma época em que
Borsvall era o inimigo, e não um aliado desesperado. Mais estranho ainda
para se lembrar do caos daquele dia – a terra voando ao seu redor, lambidas
rápidas de fogo cruzando as Campinas em direção à cidade.
Rielle, selvagem de medo e gloriosa em sua raiva, despedaçando o mundo
para salvá-lo.
Ele respirou fundo e incitou Atheria a sair para as Campinas, onde seus
exércitos esperavam em fileiras ordenadas. Arqueiros, soldados de infantaria
com piques e lanças, elementais segurando fogo e vento nas palmas das
mãos. Eles haviam erguido um muro de pedra imponente ao redor da cidade
propriamente dita, com seis metros de espessura e sessenta metros de altura.
Arqueiros e elementais estavam posicionados em cima deles, flechas prontas
e punhos estalando com poder. Depois que o exército marchou para as
planícies, os tremores de terra demoliram as pontes da cidade sobre o lago
que delimitava a maior parte da cidade. Agora, a água brilhava sem adornos,
uma extensão profunda e ampla curvando-se de um lado do sopé do Monte
Cibelline para o outro. Se os anjos conseguissem atravessar o lago e romper a
parede, eles encontrariam o segundo exército – outros mil soldados e
elementais, prontos para defender as ruas de sua cidade.
A mente traidora de Audric fixou-se no pensamento de que não era uma
questão de se os anjos abrissem uma brecha na parede. Era uma questão de
quando. Não havia esperança de derrotar o exército que marchava sobre eles.
Nem todos os anjos tinham asas, mas seus batedores sobreviventes lhe
contaram sobre as bestas entre as fileiras angelicais – criações perversas,
mutiladas e malformadas, assim como o espião de Kamayin relatou. Crianças
elementais cavalgavam sobre essas criaturas, de olhos cinzentos e mortais,
seus receptáculos amarrados à armadura forjada das feras. Monstros
profanos, como um dos batedores os chamou antes que ele explodisse em
lágrimas histéricas de joelhos diante da mesa de Audric. Bestas em armaduras
flamejantes. Crianças que estilhaçaram a terra sem vacilar.
Audric guiou Atheria até o topo de uma alta plataforma de pedra que o
Grão Magister Florimond havia construído na margem externa do lago. Ele
desmontou de Atheria e olhou para os Flats. Vinte mil soldados se viraram
para observá-lo – suas próprias tropas e as de Mazabat. Ele tocou o
amplificador forjado em seu cinto, um presente de Miren. Seu pai o havia
usado no dia da Boon Chase. Para comemorar mais um ano de paz em nosso
reino.
Ele levantou Illumenor até que os soldados se aquietaram. Os cidadãos
dentro das muralhas também estariam ouvindo, assistindo aos Flats com
medo em seus corações. Muitos deles sabiam que essa luta era inútil. Poucos
entendiam que a verdadeira luta não seria no campo de batalha entre humanos
e anjos.
Seria entre ele e Rielle, onde quer que a encontrasse. Se ele pudesse
convencê-la a usar seu poder contra o exército que havia criado, talvez a maré
mudasse.
Caso contrário, a cidade, o país, o mundo cairia. Disso ele estava certo. O
mundo cairá, Aryava dissera séculos antes. Duas rainhas ascenderão.
Apenas uma vez nos últimos meses Audric se permitiu olhar para aquelas
palavras com esperança. Sozinho em sua cama em Mazabat, as notícias de
Ludivine sentadas em suas entranhas como uma pedra, ele recitou as palavras
familiares. Duas rainhas ascenderão. Rielle, depois que reconquistasse sua
lealdade. E então, no rescaldo da guerra, sua filha. Uma princesa da paz e, um
dia, uma rainha.
No topo da torre de pedra, Audric abaixou sua espada. Em torno dele, o ar
ficou tenso com o silêncio tenso.
Que a luz da Rainha me guie, pensou, e manteve em sua mente uma
imaginação confusa. O formato do rosto de sua filha, o peso de sua cabeça
macia em seus braços. Como ela seria?
— Vocês estão com medo — disse ele, sua voz crescendo no amplificador.
Mesmo com sua ajuda, ele precisava gritar para ser ouvido. A noite estava
densa, fechada, como se o mundo soubesse o que estava por vir. — Vocês
vêem a escuridão vindo para nós. Vocês ouvem seu rugido. Eu também vejo.
Eu ouço em meus ossos. E eu também estou com medo. Mas, mais do que
isso, sinto amor. Sinto amor por vocês, por esta cidade em que vivemos, por
este país e pelas pessoas que vivem nele, por cada fazenda e cada floresta,
cada rio e cada montanha
Ele começou a andar pela plataforma. Sua capa chicoteava suas pernas. O
ar estremeceu, agitado pela presença de tantos elementais reunidos
— Podemos sentir medo. Isso é permitido. Está certo e é humano. Nosso
sangue correrá, nossos joelhos tremerão. Mas nossos corações… — Ele
balançou a cabeça, olhou ferozmente para eles. Milhares deles, elementais ou
não, de olhos arregalados e extasiados, seus capacetes polidos até brilhar.
Pulsos em chamas, espadas brilhando como prata, medo pulsando em cada
garganta.
— Nossos corações não falharão hoje — disse ele. — Este não é um dia de
medo. É um dia de amor. Centenas de anos atrás, nossos santos lutaram
contra esses mesmos inimigos e venceram. Eles iluminaram o céu com fogo,
lançaram montanhas no mar e levaram os anjos ao Abismo. Agora eles estão
de volta, e os santos estão mortos há muito tempo. Mas não estamos mortos,
meus amigos. Vivemos! E neste dia, serão nossas espadas que colocarão os
inimigos de joelhos! Será o nosso poder que os transformará em cinzas onde
estão!
Ele fez uma pausa, deixando os gritos e aplausos dos soldados subirem e
passarem por ele. O som o deixou doente de amor. Ele queria reunir cada um
deles contra o peito e mantê-los ali com segurança até o amanhecer. Ele
piscou até que seus olhos se clareassem.
— Nossa oração por tanto tempo tem sido esta: Que a luz da Rainha nos
guie. — Ele permitiu que as palavras permanecessem no ar. Ele sabia o que
eles iriam pensar, em quem eles iriam pensar, e permitiu que eles pensassem.
— Mas eu digo que nós somos a luz! Nós somos a salvação pela qual
oramos! Estamos esta terra que é a nossa casa, e seremos nós que
expulsaremos dela toda criatura que ousar tentar tirá-la de nós!
Ele se virou para o horizonte do norte. Um crescente negro fervilhava na
passagem da montanha. Por um momento, considerou enviar seus
pensamentos, como Ludivine havia lhe ensinado. Talvez ela respondesse.
Talvez ela tivesse encontrado Rielle e o guiasse até ela.
Mas em vez disso, ele levantou Illumenor. O sol se fora do céu, mas os ecos
de sua luz permaneceram, e ainda mais queimados no horizonte além. Ele
puxou cada pedaço que seu poder pôde encontrar em direção à superfície
prateada de sua espada, então a enviou ao solo em raios brilhantes.
—Nós somos a luz! — ele gritou.
Eles atenderam ao chamado – seu exército nas Campinas, seu povo na
cidade. Eles ecoaram ele uma e outra vez.
Sloane, à frente de seu regimento de shadowcasters, sua armadura negra
como obsidiana, ergueu seu cetro no ar. A esfera no topo brilhava em azul
como o centro incandescente de uma chama. Sua luz atraiu sombras da terra –
lobos e falcões, gatos montanheses rondando com os pelos eriçados.
O machado de Miren brilhou na luz de Illumenor, e os duzentos acólitos
mestres do metal que ela comandava socaram seus receptáculos no ar.
A princesa Kamayin ergueu os punhos como se estivesse se preparando
para enfrentar um agressor, seus receptáculos brilhando em seus pulsos.
A rainha Bazati desembainhou seu sabre longo e curvo, transformando o ar
em um ciclone.
A Guarda Solar, parada abaixo da parede, dirigiu seus cavalos para as
montanhas. Os gritos de Evyline trovejaram como os golpes de uma bigorna.
Magister Duval e seu regimento de windsingers, a guarda da cidade, os
soldados Sauvillier que haviam declarado sua lealdade ao trono. O exército
particular de Odo, formado por guerreiros e arqueiros pagos, todos agora
ostentando orgulhosamente o uniforme da Casa Courverie.
Todos os soldados reunidos ergueram a voz em um coro furioso.
— Nós somos a luz!
Seus gritos rugiam como ondas.
— Nós somos a luz!
Audric subiu rapidamente nas costas de Atheria. Ela se lançou no ar e os
arqueiros na parede se ajoelharam quando ele saiu. Eles tocaram seus lábios,
então suas pálpebras. A oração da Casa da Luz.
— Nós somos a luz!
A Guarda Solar um V cintilante abaixo dele, Audric voou baixo e rápido
sobre os gritos ensurdecedores de seu exército. Ele ergueu Illumenor alto,
lançou sua luz em feixes brilhantes através da noite. Sob a batida constante
de seu batimento cardíaco veio um estrondo de trovão quando seu exército
começou a atacar, seguindo a luz de Illumenor. Os relinchos agudos dos
cavalos de guerra ansiosos, suas respirações ofegantes. O clangor da
armadura, o zip e crepitar da magia elemental se reunindo para atacar.
O poder correu por cada veia de Audric, aquecendo as placas de sua
armadura. Uma luz branca saiu de seus dedos como faíscas de um incêndio.
— Nós somos a luz!
Suas palavras se transformaram em gritos de fúria. Abaixo e atrás dele, o
oceano de seu exército se erguia, seus gritos de guerra rasgando o ar. Eles
haviam alcançado o amplo trecho aberto das Campinas. Um amplo campo,
com quilômetros de comprimento e quilômetros de largura, ligeiramente
úmido das chuvas recentes. Os cavalos rasgaram a lama com seus cascos.
Waterworkers puxou a água da chuva do solo e girou espirais de espuma no
ar.
Audric observou o horizonte. As linhas da frente angelical haviam
finalmente rompido as montanhas e estavam avançando em direção a elas. Os
animais mergulharam nas planícies com antebraços grotescamente grandes,
patas rombas, cascos estilhaçados. Um – parecido com um urso, enorme, com
uma pele manchada que parecia dura como pedras – chicoteou sua cauda
blindada e disparou tiros de fogo. Uma luz sinistra brilhou – brilhante e
líquida, como rios iluminados pela lua desbotados de cor. Asas angelicais se
aproximando rapidamente.
Mas Audric não vacilou. Em sua mão, Illumenor era um inferno. Isso os
deslumbraria. Ele ouviu os gritos dos monstros abaixo e viu os anjos se
afastarem rapidamente, como se tivessem sido esmurrados.
Ele olhou para eles. Além das montanhas, a noite reinava. Mas Illumenor
transformou o campo de batalha em um amanhecer escaldante e impiedoso.
Ele ouviu os sons terríveis de dois exércitos se chocando. O toque das
espadas, os gritos selvagens dos soldados caídos.
— Nós somos a luz!
E ainda assim eles gritavam suas palavras.
A respiração de Audric combinou com a batida urgente das asas de Atheria
enquanto ela mergulhava em direção às montanhas. Illumenor abriu uma
ampla linha de fogo branco através do exército angelical. Ele ouviu o assovio
de flechas, as maldições sibiladas de anjos chicoteando o ar, mas nada nem
ninguém poderia se aproximar do brilho ofuscante de seu lançamento.
Ele não seria capaz de manter esse poder estável por muito tempo.
Ele voltou seus pensamentos para a batalha que se desenrolava abaixo e
procurou Rielle no caos.
39
Eliana

“‘Diga-me’, disse Morgana ao seu amor,‘ pensará em mim quando eu


partir? Devo ir tão longe de você, que tal jornada está diante de mim.’ E
Morgana chorou lágrimas de raiva, envergonhada por ele vê-la, mas
Gilduin segurou-lhe as mãos e beijou-as, e olhou para seu rosto
angustiado, e de repente Morgana sentiu paz, pois aos olhos de Gilduin
nada havia senão amor. ‘Não há nada neste mundo que eu pudesse
olhar e não pensar em você,' disse ele, 'pois em você está tudo o que eu
conheci, tudo que sou, tudo que serei.’”
— “A Balada de Gilduin e Morgana”, épico celdariano antigo, autor
desconhecido

No quarto que Ludivine reservara para ela, Eliana estava deitada ao lado de
Navi, os braços apertados ao redor dela, o rosto pressionado contra seu braço.
Ela ouviu Navi respirar e esperou que ela respondesse. Com uma pontada de
nervosismo, ela lembrou que não seria capaz de esperar muito tempo.
Corien não ficaria enfraquecido pela lâmina de ferrugem de Simon para
sempre. Ludivine se trancara em seu quarto para vigiá-lo. Cada momento que
passava os aproximava do momento em que ele recuperaria suas forças e
viria caça-la. Horas, Ludivine imaginara, e apenas algumas delas.
Eliana se aninhou ao lado de Navi, ávida por seu calor. Ela pensou em
como Navi beijou a mulher de olhos afiados e boca mais afiada, Ysabet, antes
de se retirar para o quarto de Eliana. Como seus dedos se entrelaçaram, um
toque prolongado, antes de se separarem. Não deveria ter trazido nada além
de alegria saber que sua amiga havia encontrado uma amante. Mas isso
apenas a fez pensar em quão pouco tempo ela tinha passado com Navi, Zahra
e todos que ela amava tanto, e como todo aquele tempo tinha sido enquanto
estavam na guerra.
Por fim, Navi soltou um suspiro agudo. Sua mão esquerda acariciou o
cabelo de Eliana.
— Bom — ela disse, e então não disse mais nada. Eliana ergueu os olhos
para ela, estudou seu rosto. O corte fino de sua mandíbula, seus cílios grossos
e pretos. Ela mexeu na bainha da manga de Navi, feliz por não estar dizendo
mais nada. Ela não precisava; Eliana podia ver tudo o que ela sentia em seu
rosto.
Ela perguntou baixinho: — Você tem vergonha de mim?
— Por que você tem pena dele? — A voz de Navi era gentil. — Claro que
não. Eu admito que tenho pena dele. Mas tenho muito mais pena de você e
estou feliz por nem eu nem ninguém do meu povo tê-lo visto hoje. Ele é
sábio em se manter escondido. Não tenho certeza se poderia ter contido
Ysabet, e ela nunca conheceu o homem.
Eliana sorriu um pouco. O silêncio caiu entre elas, uma longa e lenta
puxada de paz.
— Estou com raiva de ter que fazer isso — sussurrou no silêncio.
Os dedos de Navi estavam tenros em seu cabelo. — Assim como eu, minha
querida.
— Estou com raiva por querer fazer. — Eliana pressionou antes que Navi
pudesse responder: — Eu não deveria querer deixá-lo entrar de novo, aceitá-
lo, permitir-lhe seu poder. Por meses, eu me protegi das memórias dele. Eu
queria machucá-lo. Eu tentei muitas vezes. Mas agora, quando penso no que
foi feito com ele, eu o odeio menos. Quando penso em vê-lo novamente,
sabendo o que sei agora, sinto um alívio terrível. Ele sofreu, e eu também.
Todas aquelas semanas de dor no palácio de Corien… Ele viveu anos assim.
Ele entende. — Respirou fundo. — E então eu me odeio por pensar nisso
quando há muito mais em que pensar, tanto mais para…
Ela engoliu em seco contra a forte dor em sua garganta. As palavras
dançaram em sua língua. Se eu fizer isso, Navi, se eu conseguir, nunca
teremos nos conhecido. Talvez você nunca terá nascido.
Ou talvez Navi nasceria em sua adorável família em Astavar. Ela cresceria
em Vintervok sem um futuro sombrio no horizonte. Sem guerra, sem trabalho
de espionagem, sem sofrimento no redil de donzelas de Orline.
— Já existe ódio demais no mundo — respondeu Navi após um momento.
— Por que direcionar mais para si mesma?
Então Navi se mexeu até que as duas estivessem de lado, uma de frente
para a outra. Ela pressionou as sobrancelhas contra as de Eliana.
— Não temos muito tempo — sussurrou Eliana. Poderia ter sido dito sobre
qualquer uma delas, sobre qualquer parte disso, mas ela sabia que Navi
entenderia o que ela quis dizer. — Eu não tenho que perdoá-lo, ela disse. Eu
só tenho que abrir meu coração para ele novamente. — Ela riu um pouco,
com lágrimas nos cílios. — O pouco que resta.
— Então vá até ele — disse Navi em voz baixa. — E seja gentil com minha
amiga. Seu coração é mais forte do que ela pensa, não importa que mal tente
quebrá-lo.
Eliana beijou a bochecha de Navi. Ela fechou os olhos e permaneceu ali
contra a pele macia de Navi. Então se levantou da cama e não olhou para trás.

•••

Ela o encontrou em uma pequena câmara situada longe dos outros. Seus
passos a levaram até lá como asas agitadas de nervosismo, e quando bateu na
porta e ouviu sua convocação, todos os músculos de seu corpo ficaram
tensos. O pânico estilhaçou rapidamente dentro dela, uma rachadura
crescente no gelo fino. Ela considerou se virar, deixá-lo, exigindo de
Ludivine outra solução. Como poderia aceitar ou mesmo enfrentar este
homem que a machucou?
Este homem que sofreu exatamente como ela. Este homem que, como ela,
conhecia muito bem a verdadeira amplitude da crueldade de Corien.
Ela não se virou.
Entrou no quarto, encontrou Simon sentado na beira de uma cama
minúscula que parecia pequena demais para seu corpo alto. Foi aqui que ele
passou aqueles meses sob a tutela de Ludivine? Ela o tinha visitado enquanto
ele dormia, enviado pesadelos dentro dessas mesmas paredes?
Ele olhou para cima, percebendo tarde demais quem estava diante dele. Ele
não conseguia esconder a confusão aberta de seu rosto, seus olhos injetados
de sangue e bochechas avermelhadas, a selvageria de seu cabelo. Ele
encontrou os olhos dela e desviou o olhar imediatamente.
— Não — ela disse, indo para ele de uma vez. — Se eu não tenho o alívio
de não ter que olhar para você, então você também tem que me ver. — Ela
ergueu o seu queixo para que seus olhares se fixassem. Seus cílios estavam
molhados. Ele tentou desviar o olhar novamente; ela não permitiu, mantendo
seu rosto imóvel. Ele havia se mantido barbeado enquanto estava no palácio
de Corien, mas esses últimos dias selvagens não lhe deram tempo. As
bochechas dele estavam ficando ásperas de novo, e ela queria esfregar os
dedos contra elas até não se lembrar de nenhuma outra sensação. Ansiava por
machucá-lo de qualquer maneira cruel que pudesse imaginar. Ansiava por
fugir dele e de tudo que os esperava.
— Eu sei o que foi feito com você — disse a ele com firmeza. Era difícil
falar. Ela colocou uma peso metalizado em cada palavra. — Eu sei o que
você suportou. Você tem minha pena. Você não tem minha confiança.
Ele acenou com a cabeça, sua boca apertada. Ele esperava que dissesse isso.
Contra as palmas das mãos, ela podia sentir os músculos de sua mandíbula
trabalhando.
Muitas palavras aglomeraram sua garganta, muitas delas brutais. Ela
poderia ter gritado de frustração. Isso estava indo rápido demais para os dois.
Havia muita dor entre os dois, muitas mentiras e muitos dias separados.
— Mas você tem meu amor — disse furiosamente, como se fosse uma
maldição.
Simon a observou, mal respirando. Ele não piscou.
— Gostaria que você não tivesse nada meu — disse Eliana entre os dentes.
Suas bochechas queimaram de raiva e seu coração doeu em muitos lugares.
— Nem meu amor, nem minha raiva, nem minhas memórias. Eu gostaria que
você não tivesse visto o que ele fez comigo. Eu gostaria…
Não conseguia mais falar. Simon estendeu a mão para cobrir as mãos dela
com as suas. Ele mal a tocou; ela era uma casca de ovo em suas mãos.
— Eu gostaria de poder machucar você como você me machucou — ela
sussurrou. — Eu gostaria de não querer você ainda ou não me importar com
você. Eu gostaria que tudo que eu quisesse fosse ajudá-lo a encontrar seu
poder novamente. — Ela balançou a cabeça. Sua voz oscilou à beira de algo
afiado. — Mas eu quero mais do que isso. Mesmo agora, mesmo depois de
tudo.
Quando Simon fechou os olhos, as lágrimas escorreram. Ele virou o rosto
para a palma da mão dela, sussurrou seu nome contra seus dedos.
Ela observou sua boca, lutando ferozmente contra a própria miséria. Isso
dividiu sua visão em diamantes. — Ele me machucou — ela disse
suavemente. — Eu chamei por você. Gritei para você me ajudar.
Simon deixou escapar um único soluço. Atrapalhado, estendeu a mão para
ela. Seu rosto contra as costelas de Eliana, suas mãos agarrando a camisa
dela. O tenro peso de suas palmas enviou uma feroz mordida de alegria por
seus braços. Seus instintos estavam em guerra. Por deixá-lo dolorido, por se
apoiar em seu calor. Dois caminhos e nenhuma resposta.
— Deus, eu sei — disse ele, a voz abafada. — Eu te ouvi. Eu ouvi cada
palavra, Eliana. Eu ouvi todas as vezes em que ele te machucou e não pude
fazer nada. Houve momentos em que ele me fez assistir, e você estava tão
delirante de dor que nem percebeu que eu estava lá.
Suas palavras se espalharam como cacos de vidro contra a barriga dela.
Cada uma a apunhalou, e ainda assim ela agarrou seus ombros, segurou-o
rápido, desejou que pudesse pressioná-lo dentro dela até que ele não existisse
mais em nenhum outro lugar.
Segurou seus ombros e observou a parede enquanto ele chorava. Suas
lágrimas eram tão silenciosas quanto as dela, seu corpo rígido. Ambos
estavam acostumados com isso, ela supôs. Estavam acostumados a esconder
os sinais de sua dor.
E de repente, não aguentou mais permanecer de pé. Não se importou que
quisesse machucá-lo, que por meses ela o viu espreitar pelo palácio e
imaginou o assassinato em suas mãos.
Ela curvou a cabeça para beijar o topo da cabeça dele. — Vou sentir sua
falta — ela disse, sem querer dizer isso, e então um soluço explodiu dela,
inesperado e selvagem. Mal conseguia respirar; as lágrimas a agarraram
como punhos.
Havia mais a dizer, mais do que jamais poderia ser dito, mas Ludivine
estava trancada em seu misterioso quarto à luz de velas, lutando por cada
momento. Não havia tempo para dizer mais nada, não havia tempo para
consertar ou curar. Não é perdão, Ludivine havia dito. Apenas aceitação. E
Eliana tinha vindo para o quarto de Simon determinada a não fazer nada além
de falar, para trabalhar para abrir seu poder para ele e ajudá-lo a procurar
mais uma vez pelo dele.
Mas quando ele virou o rosto para ela, com as mãos trêmulas em suas
mangas, Eliana perdeu todo o sentido da ira que desejava que ele merecesse e
sabia que não merecia, e ela encontrou sua boca com alegria.
Ele esperou até que ela se acomodasse em seu colo antes de envolvê-la nos
braços. A sensação quase partiu seu peito em dois. Um casulo tão sólido de
calor. Ela gritou contra seus lábios, abriu a boca para receber seus beijos. Eles
derramaram dentro dela como facas aquecidas pelo fogo. Aço quente
cintilando vermelho, lâminas que escorregaram e cortaram. Ele cheirava a sal
e fumaça, murmurou o nome dela até que ela usasse as sílabas na pele.
Isso não traria alívio, Eliana sabia, mesmo enquanto se agarrava a ele. Seus
dedos a encontraram, e ela apertou as coxas ao redor de seu braço. Iria
terminar e doeria no corpo e no coração, tudo o que eles haviam trancado
agora, mais uma vez desencadeado. Seu poder voltaria se eles tivessem sorte,
ou talvez azar, e então ele a mandaria de volta para fazer a coisa impossível
que ela deveria fazer, e ela nunca veria essa versão dele novamente, nunca
veria nenhum deles novamente. Se ela tivesse sucesso, se o seu eu não
nascido sobrevivesse, cresceria na Velha Celdaria, ignorando tudo o que
tinha ou não sido.
Ela entrelaçou os dedos no cabelo de Simon, puxando com força para que
ele olhasse para ela. Seus olhos pousaram em seu rosto, tão abrasadoramente
quente quanto ela se lembrava, e sua mão se moveu exatamente como da
primeira vez, até que o fogo subindo dentro dela se espalhou, rugindo. O
desespero veio rápido em seus calcanhares, e ela sabia que não poderia parar,
ainda não, nunca.
Frenética, se moveu para se deitar de costas e o puxou para cima dela.
Guiou-o até o lugar e prendeu as pernas dela nas dele. Ele deve ter percebido
seu desespero, a dor selvagem crescendo em seu peito como uma tempestade
girando com um trovão impiedoso. Ele se moveu afiado e forte, como se
pudesse imbuir nela a memória de todas as noites que nunca teriam. Um
pedido de desculpas por cada vez que ele a machucou. Um pedido de perdão
que nunca viria.
Ela se arqueou contra ele, firmando o aperto de suas coxas. Puxou seu
cabelo, cravou as unhas na carne cicatrizada de suas costas. Quando ele
agarrou sua garganta, chupando suavemente em sua pele, ela sussurrou por
mais, implorou a ele, ordenou. Sua mente era uma cascata de luz. Ela não
sabia nada além dele – o mapa de suas cicatrizes sob suas palmas, o plano
áspero de sua mandíbula raspando sua bochecha, sua boca em cada
inclinação trêmula de seu corpo. Sua voz rouca, quente contra seu ouvido, e
quão lindamente se abriu sob o peso de seu nome.
Depois, se resfriando nos lençóis úmidos, macios e pegajosos no ninho de
seus braços, Eliana pressionou o rosto contra seu peito. Com a mandíbula
doendo de tensão, as pernas e os braços pesados e cansados, ouviu o ritmo
constante do coração dele.
— Eu não te amo — sussurrou ferozmente contra a pele dele.
Um momento se passou. Então ela sentiu a mão de Simon em sua nuca,
embalando-a contra ele. Seus lábios tocaram sua testa.
— Eu sei — respondeu ele, com a voz embargada de tristeza. — Eu
também não te amo.
40
Simon

“Nas estrelas eu desenho seu cabelo


Na lua eu encontro seus olhos
No meu sangue guardo o seu nome
Em meus ossos, sinto suas mentiras. ”
— Canção tradicional kirvayan

A princípio, quando acordou, Simon não pôde fazer nada além de olhar para
ela.
Ele manteve os olhos abertos o máximo que pôde, saboreando o som da
respiração dela. Mas a exaustão finalmente o puxou para um sono leve que o
deixou, como sempre fazia, lutando por uma selva de sonhos sombrios.
E então acordou com Eliana enrolada fortemente contra ele, seu rosto
enrugado de raiva mesmo durante o sono. Ele mal respirou enquanto a
observava. O emaranhado de cabelo escuro caindo sobre sua bochecha, seus
lábios rachados, sua pele machucada e macia – não por suas próprias mãos,
embora pudesse muito bem ter sido.
Ele nunca esqueceria seu rosto naquela noite. Enquanto dançavam no
cintilante salão de baile de Festival, ela se agarrou a ele. Com medo, mas
relutante em demonstrar. Apenas o aperto forte e suado de sua mão ao redor
da dele enquanto valsava traiu seu verdadeiro terror. E então, no navio do
almirante, ele deu um passo à frente em seu uniforme imperial e observou
sem sentir como toda a luz deixou seus olhos.
Sem sentimento. Sim, tal como Ludivine lhe ensinara, e desde o início, fora
um excelente aluno.
E, no entanto, houve momentos em que ele quase jogou tudo em ruínas.
Ele cuidadosamente se afastou de Eliana para balançar as pernas nuas para
fora da cama. Ele passou as mãos pelos cabelos, depois segurou a cabeça e
olhou para o chão.
Ele não podia banir de sua mente a imagem dela se contorcendo enquanto
Corien se agachava sobre ela, zombando dos gritos dela com os seus. A
galeria de vidro estilhaçado ao redor deles, e Eliana estendendo a mão para
ele.
Ela gritou por ele, chorou seu nome, e ele apenas ficou parado olhando,
uma coluna de pedra perfeita, aguardando suas ordens. Em sua mente,
Ludivine não disse nada, mas ele a ouviu mesmo assim.
Quebre e condene todos nós.
O coração de Simon disparou, sua respiração acelerou. Ele ergueu os
braços trêmulos no ar e quase riu alto, porque mesmo com essas memórias
batendo em sua mente cansada, seu poder ganhou vida de uma vez. Os fios
giravam facilmente no ar e grudavam em seus dedos como rebarbas atraídas
pela fricção do linho. A energia picou nele; o ar zumbia com uma música
distante.
Ele imaginou o corredor de pedra lisa do lado de fora de seu quarto. Teto
baixo, suportes de ferro para tochas. Ele tentaria isso primeiro, apenas um
pequeno salto da sala para o corredor.
O empirium está dentro de todos os seres vivos, e todos os seres vivos são
do empirium, ele recitou, o calor subindo rapidamente em sua garganta.
Seu poder conecta não apenas carne com osso, raiz com terra, estrelas com
céu, mas também estrada com estrada, cidade com cidade.
Momento a momento.
Mas enquanto Simon tentava focar sua mente, ela estremeceu e escapuliu
dele. Os fios em seus dedos tremeluziram.
Ele apertou sua mandíbula, seu corpo rígido com a tensão, suas mãos
acesas com o poder que se tornou desconfortavelmente quente. Ele não
estava acostumado a trabalhar com magia e não conseguia fixar seus
pensamentos no corredor fora desta sala. Seu quarto. Muitas noites ele tinha
ficado acordado como um menino, frio de pavor, se perguntando se Ludivine
viria até ele para a lição da manhã seguinte silenciosamente, em sua mente,
ou em vez disso viria silenciosamente pelo corredor fora de seu quarto. Uma
bandeja de café da manhã em suas mãos, e seus olhos negros firmes contendo
dentro deles um novo terror com a intenção de desvendá-lo.
Ele piscou o suor de seus olhos. Ele nem mesmo culpava Ludivine por tudo
que ela havia feito. Ele não culpava nenhum deles – exceto pelo anjo
lambendo suas feridas lá em cima e a rainha monstruosa que ele tanto amou.
Simon quase riu ao pensar nela. A Assassina de Reis, como a chamavam.
Como ele uma vez a adorou. Mesmo perto do fim, quando rumores
desagradáveis corriam para cima e para baixo nas ruas de Âme de la Terre e
os music halls tocavam com o som de canções sujas escritas para insultá-la,
mesmo assim Simon tinha acreditado que sua Rainha do Sol voltaria para
eles.
Mas agora sua mente não se fixava na memória da Assassina de Reis. Ele
mal conseguia se lembrar do nome verdadeiro dela. Ele tentou forçá-lo e seu
corpo estremeceu de dor.
Ludivine o ensinara muito bem a não pensar nela. E Corien… Corien
gostava que ninguém pensasse nela, exceto ele.
Simon franziu a testa para suas mãos rígidas. Elas balançaram no ar como
se estivessem lutando contra uma porta invisível. Os fios brilharam uma vez,
depois desbotaram.
Ele enfiou os dedos no cabelo e se curvou sobre os joelhos, um grito de
frustração alojado em sua garganta. Ele fechou os olhos com força contra o
tumulto de sua mente. Muitas imagens, muitas vozes. Muitos cortes, muitas
cicatrizes.
Então algo se mexeu atrás dele – um pequeno som, uma pergunta – e ele se
manteve imóvel, tenso de desejo e quente de medo. Quando Eliana o tocou,
com as mãos suaves tenras em seu braço, ele deixou escapar um soluço
áspero. Ele pegou a mão dela e a levou aos lábios. Mas não conseguia olhar
para ela. Mesmo que tivessem uma vida inteira de anos para dividir entre
eles, ele não tinha certeza se algum dia seria capaz de se convencer de que
merecia olhar para ela.
— Eu estava tentando lembrar alguma coisa — Eliana disse baixinho
depois de um tempo, — mas estou tendo problemas. Imagino se você poderia
me ajudar.
Simon fechou os olhos. Ele poderia ouvi-la falar pelo resto da vida que lhe
restava. Sua voz continha sombras, mas ainda era dela. Como ele havia
sentido falta disso. Como ele agonizou em seu quarto silencioso no palácio,
tentando ignorar o eco distante de seus gritos.
— Claro que vou te ajudar — ele murmurou.
— Bem, é um pouco engraçado. Quando nos conhecemos, você e eu, em
minha casa em Orline. Lutamos. Você usava sua máscara.
Simon procurou a memória. Estava irregular, assim como todo o resto.
Flashes de cores caóticas presos atrás da escuridão agitada. Ludivine
trancava-se em seu quarto, Corien trancava-se em seu palácio, cada um deles
lutando contra o outro – as ondas de sua guerra o golpeavam até agora,
protegido no coração profundo da casa de Ludivine como ele estava.
— Eu me lembro — ele disse finalmente. — Lutamos. Você foi muito bem.
— Eu fui — concordou Eliana, — mas aqui está uma coisa que não consigo
me lembrar. — Ela fez uma pausa. — Quantas vezes eu soquei a sua cara?
Três? Cinco?
Uma risada áspera explodiu dele. Ele não estava acostumado a rir. Se
alojou estranhamente em sua garganta, deixando-o tonto.
— Eu apontei uma arma para você — ele lembrou. — Você me chamou de
trapaceiro.
— Sim — ela disse levemente. — Eu teria vencido você de outra forma.
— Improvável.
Houve uma pausa. Então Eliana se aproximou dele, sua perna tocando a
dele. — Eu tentei me lembrar de outras coisas.
Ele sabia o que ela estava fazendo. Ele sentiu o calor constante do poder
dela alcançando-o, como se ela fosse de fato o sol se pondo para aquecê-lo.
Ele já podia sentir seu poder crescendo para encontrar o dela. O ar ao seu
redor começou a clarear, e seus pensamentos junto.
Ele soltou um longo suspiro e ergueu os braços mais uma vez.
— Que outras coisas? — ele perguntou. A luz floresceu suavemente nas
pontas dos dedos. Uma boa queimação.
— Qual era o nome do seu pai. Você me disse uma vez.
— Garver — respondeu. O nome saiu estranhamente de sua língua. O rosto
de seu pai era apenas uma leve mancha de memória. — Garver Randell.
— Ele era um curandeiro.
— Sim.
— E um marque, como você.
Simon concordou.
— Diga-me, Simon — Eliana disse gentilmente.
— Sim — respondeu. — Um marque, como eu. — Ele lambeu os lábios
secos. — O que mais você quer se lembrar?
— Os nomes dos nossos amigos que você atirou no Festival — disse sem
fazer julgamentos.
Mesmo assim, ele lutou para falar. — Darby. Oraia. Éster. Dani e seu filho,
Evon.
— E muitos outros.
— Sim.
— Tudo a meu serviço.
— Sempre, Eliana. — Sua voz ficou presa em espinhos. Sempre. Uma
palavra cruel, uma palavra mentirosa.
Ele prendeu a respiração, esperando que ela falasse novamente. Além de
suas mãos girou um círculo de luz deslumbrante. Tópicos, esperando para
serem percorridos.
— Também estou tentando me lembrar de como foi aquela primeira noite
em que estivemos juntos — ela sussurrou por fim.
— Foi tudo — Simon respondeu. Ele ouviu o som frágil de sua voz como
se não pertencesse mais a seu próprio corpo e ele estivesse ouvindo de algum
lugar distante, um lugar dourado e quente à luz de seu poder crescente. —
Você foi tudo naquela noite. Você era o mundo inteiro e eu estava seguro
dentro de você. Pela primeira vez, me senti seguro.
Eliana lentamente envolveu seus braços ao redor do torso dele, em seguida,
pressionou a bochecha entre suas omoplatas e o segurou.
— Eu também — ela sussurrou.
Simon deixou-se viver ali por um momento, então se levantou e vestiu as
calças. Ele levou a sensação de seu abraço silencioso com ele através dos fios
e emergiu no canto mais distante da sala com o nome dela nos lábios. A luz
dos fios se fechou em seus calcanhares, lançando um leve toque amargo de
fumaça.
Ele se virou para encontrar Eliana olhando para ele. A visão dela quase o
derrubou. Nua nos cobertores amarrotados, ecos de violência marcando sua
pele, ela ergueu a cabeça e olhou para ele com firmeza. O ar ao redor dela
brilhou com poder. Uma rainha em sua cama, iluminando o mundo desperto.
Ele precisou de tudo para se afastar dela e tentar de novo, cada vez mais
longe e com mais facilidade, até que viajou até o final do complexo de
Ludivine e voltou para seu quarto em um piscar de olhos.
Ele caiu no chão frio, tremendo com coisas que não conseguia nomear.
Ouviu Eliana se levantar da cama, puxar sua túnica descartada e vir até ele.
Ela se ajoelhou e tocou seu rosto. Tão cuidadoso, a queda de seus dedos em
sua pele, como se tivesse medo de que ele fosse voar para longe dela. Que ela
acordaria, e seria mais um sonho enviado pelo inimigo.
Simon olhou duramente para o chão. O que estava por vir o aterrorizou.
Apenas duas vezes em sua vida ele tentou viajar no tempo, e ambos os casos
terminaram em desastre.
— Quando eu era mais jovem — disse ele com voz rouca, — não precisava
desse tipo de ajuda para fazer magia.
— Não há nada de errado em precisar de ajuda.
— Não, não há. Eu tinha simplesmente esquecido como era recebê-la.
Ele sentiu uma mudança, então, uma mudança na batalha que fervilhava no
perímetro de sua mente. Ele sabia o que significava e se enfureceu contra
isso. Ele puxou Eliana para si com força, e ela o agarrou com a mesma força
e o segurou perto. A respiração dela estava quente em seu cabelo, seu corpo
fino sob suas mãos.
— Somos mais do que nossa raiva — disse ela, em voz baixa. Essas foram
as palavras que ela havia dito em Willow, os jardins macios com a chuva ao
redor deles, as mãos quentes em seu peito cheio de cicatrizes. A memória
vagou docemente, a última folha caindo antes do inverno.
— Somos mais do que aquilo que nos foi feito — disse ele em resposta, e
sentiu o sorriso dela contra seu pescoço.
A porta se abriu. Um dos acólitos sem nome de Ludivine, impassível,
nitidamente eficiente. Eliana se virou para encarar o homem por cima do
ombro.
— Sim? — ela retrucou, e o som agudo de sua raiva fez Simon doer de
amor..
— Ela diz que está na hora — disse o acólito, olhando nos olhos de cada
um. — Ele nos encontrou.
41
Eliana

“Não é o próprio conceito de atravessar o tempo que tanto assusta


aqueles que criticam a prática. Em vez disso, seu medo origina-se das
repercussões potenciais, da imprevisibilidade. O tempo não é um relógio
que pode ser calibrado, por mais habilidoso que seja o viajante. O
tempo é interminável, brutal e tão indomável – e mutável – quanto o
mar.”
— Meditações sobre o Tempo por Basara Oboro, renomado
estudioso Mazabatiano

Eliana correu para a sala preferida de Ludivine, Simon logo atrás dela.
Ambos usavam roupas limpas fornecidas pelos acólitos. O casaco de Eliana
abotoava em seu ombro e caia sobre os joelhos, flexível o suficiente para ela
se mover, mas grosso o suficiente para oferecer alguma proteção. Ela usava
um cinto de armas pesado, carregado com adagas, e sentiu falta de suas
próprias facas perdidas.
Ela olhou para Simon apenas uma vez. Momentos atrás, ele a segurava, o
rosto aberto e suave. Agora, ele estava armado para a batalha. Um casaco
longo como o de Eliana e, por baixo, uma cota de malha. Revólver na cintura,
facas nas botas e nas bainhas presas aos antebraços.
Dentro da sala, Ludivine sentava-se com Remy como ela tinha feito com
Eliana – em duas cadeiras frente a frente dentro de um amplo triângulo de
três velas tremeluzentes.
Ludivine ergueu os olhos, a pele pálida como osso. Eliana se assustou ao
ver o quanto ela havia mudado em apenas algumas horas. Sombras
escureceram as cavidades de seu rosto e o suor pontilhava seu lábio superior.
Mas sua voz ainda era fria como água. — Está tudo funcionando como
deveria?
Eliana poderia alegremente ter batido nela novamente por isso. Tanta frieza
em sua voz, como se não soubesse exatamente o que tinha acontecido, como
se não pudesse sentir o estado de seus corações.
— Tudo está como deveria ser — Simon respondeu, seu olhar brilhante
como aço aceso.
Ludivine não vacilou, mas Eliana ouviu sua voz, suave e triste em sua
mente. Sinto muito, pequenina. Nem sempre fui como sou agora. Eu gostaria
que você pudesse ter me conhecido quando meu coração ainda estava
inteiro.
Eliana não respondeu nada. Sem piedade, sem gentileza. Não tinha espaço
para isso. Seu corpo estava tenso e trêmulo; ela empurrou com força contra si
mesma como se estivesse lutando contra uma enchente crescente. Ela ouviu
passos suaves na entrada da sala e olhou para trás para ver Navi e Ysabet,
Patrik e Hob, Malik e vários outros logo atrás deles.
Navi estendeu a mão para ela. Eliana agradecida pegou sua mão, então
enfrentou Ludivine mais uma vez. Ela não olhou diretamente para a nuca
escura de Remy, com muito medo de pensar sobre o que ele e Ludivine
poderiam estar discutindo.
— Seu acólito disse que Corien nos encontrou. — Ela mordeu cada palavra,
dentes duros e língua afiada. — Agora o que você quer que façamos? Onde
ele está?
Ludivine se levantou. Serena, ela inspirou e expirou, então inclinou a
cabeça ligeiramente, como se estivesse ouvindo um som distante.
Eliana ficou tensa. Um momento denso passou, e então ela ouviu: uma
vibração retumbante, um grito alto e distante. Fraco, mas imperdível. O ar
ficou mais pesado, ficou parado. Era o momento antes de uma tempestade
estourar.
Atrás de Eliana, os outros se mexeram nervosamente.
Ysabet marchou para a frente, com as mãos nos quadris e os olhos
semicerrados. — Ela fez algo. Você pode sentir que? A pedra está vibrando
sob nossos pés. — Ela sacudiu a cabeça. — O que você fez, anjo?
Ao lado de Eliana, Simon se mexeu. Ela olhou para ele. Ele não olhava
para ela, mas ela sentia que agora era por um motivo diferente.
Ludivine gesticulou para os dois acólitos que flanqueavam a porta.
Imediatamente, eles começaram a esvaziar a sala – as cadeiras, o tapete, os
pedestais em que as velas queimavam. Apenas as velas em si permaneceram,
e a espada embainhada de Katell.
Remy silenciosamente veio para o lado de Eliana, encontrou sua mão livre.
A dor que agora vivia em sua garganta floresceu cruelmente. Se fizessem
isso, nada disso importaria. Nem Vaera Bashta, nem o Invictus, nem o novo
brilho duro nos olhos de Remy. Ele nasceria filho de Ioseph e Rozen
Ferracora e viveria uma vida feliz na cidade de Orline, escrevendo histórias e
assando bolos. Ela se recusou a reconhecer qualquer outra possibilidade.
— Esta câmara fica no coração de um labirinto — disse Ludivine, muito
quieta enquanto seus acólitos se movimentavam ao seu redor. — Existem
dezenas de câmaras, centenas de passagens. Alguns levam a quartos. Outros
não levam a lugar nenhum. Isso nos dará algum tempo. Cruciata são
inteligentes, mas sua sede de sangue embota seu juízo.
Navi respirou fundo.
Logo atrás de Eliana, Simon ficou em silêncio, as mãos em punhos ao lado
do corpo.
Timidamente, Eliana alcançou a mente de Ludivine. Imediatamente
Ludivine mostrou-lhe a verdade, seus olhos negros sem piscar e sem
vergonha.
— Você trouxe as cruciata para o subsolo — sussurrou Eliana. Gritos
estridentes e ásperos, ainda distantes, seguiram suas palavras, como se as
feras tivessem ouvido seu nome.
Alguém atrás dela – Hob, ela pensou – murmurou uma maldição afiada.
— Por quê? — Navi sussurrou asperamente. — Como?
A câmara zumbia com vibrações crescentes. Algo estava se aproximando
deles, algum peso implacável marchando. As feras? Ou pior?
O estômago de Eliana caiu. A clareza a invadiu, o calor perseguido pelo
frio.
— Porque os anjos estão vindo atrás de nós — disse ela, — e as cruciata
nos protegerão.
— Nos proteger? — Patrik zombou, olhando para Ludivine. — Elas não
têm amor por nós, e agora dois inimigos logo estarão sobre nós, graças a
você.
Fazia tanto tempo desde que Eliana tinha visto Patrik que a visão de seu
rosto pálido e furioso repousou estranhamente na superfície de sua mente,
como óleo cobrindo a água. Ele era familiar e ainda não, carne e sangue e
ainda uma memória. Ele olhou para Ludivine, seu olho arruinado escondido
atrás de uma mancha preta desgastada. E lá estava Hob, alto e carrancudo ao
seu lado, cicatrizes recentes em sua pele marrom escura. Navi, os olhos
brilhando de lágrimas, a boca fina de raiva. Ysabet atrás dela, parecendo
pronta para arrancar a garganta de Ludivine com os dentes. Malik na porta,
seu rosto tão parecido com o de Navi – lindo nariz reto, quentes olhos
escuros. E aglomerados no corredor, todos que Navi trouxera com ela para o
outro lado do oceano. Dezenas de refugiados, marinheiros e lutadores
experientes, todos agora presos no subsolo.
Olhando para eles, um lento formigamento de horror se espalhando por sua
pele, Eliana entendeu por que Ludivine esperou para guiá-la até ali. Ela
estava esperando a chegada do pequeno exército de Navi – uma infantaria
descartável. A ajuda está chegando, o Profeta havia dito a ela. A ajuda está
perto.
Ludivine sorriu fracamente para todos os presentes. — Está na hora.
Rápido. Ela precisa de vocês.
Um por um, seus rostos mudaram. Uma onda de sentimento passou por eles
como uma onda cintilante de calor. O medo se transformou em raiva. As
lágrimas secaram e as bocas se firmaram. Patrik foi o primeiro a se virar e
desembainhar a espada, passando pelos outros para correr pelo corredor. Hob
o seguiu logo atrás dele, então Malik, então Ysabet, com um rosnado feroz.
Navi sufocou um soluço e puxou Eliana com força para seus braços. Um
momento depois, ela se foi, a última deles a deixar a câmara. Eliana ficou
congelada, os sons de seus gritos de guerra abafados pelo sangue latejando
em seus ouvidos. Outra respiração e seu medo se dissipou. O som veio de
volta para ela. Ela chamou o nome de Navi, tentou correr atrás deles. Mãos
puxaram suas costas contra um peito forte. Enfurecida demais para gritar, ela
empurrou Simon para longe com uma explosão de poder de seus
receptáculos. Ela não percebeu que tinha derrubado Ludivine no chão e
começou a socá-la até Remy e Simon a puxarem para longe.
— Cada momento que você me ajudou, todos os dias você trabalhou
comigo para fortalecer meu poder — ela cuspiu, — você sabia o que faria.
Você viu Navi e os outros chegando à Elysium e os guiou até aqui. Você
sabia que os enviaria para lutar contra as cruciata, os sacrificaria sem pensar
se isso nos desse algum tempo. Você sabia e nunca me disse nada.
Ludivine se sentou, enxugando a boca. Enquanto Eliana observava, seu
lábio parou de sangrar. — Claro que não.
— Porque você temia que eu lutasse com você.
— Eu não temia nada. Eu sabia que você reagiria como está reagindo
agora.
Um soluço explodiu de Eliana quando ela imaginou o rosto de Navi. — Eu
os amo..
— E eles te amam. Mesmo aqueles que nunca te conheceram. Eles adoram
o que ouviram sobre você. Eles acreditam na sua capacidade de salvá-los. E
se eles tiverem que morrer para permitir essa chance, então eles devem
morrer. — Um sorriso tocou os lábios de Ludivine. — Navi desenha imagens
irresistíveis de você para quem quiser ouvir. Claro que eles amam você. Uma
noite ao lado de Navi, ouvindo histórias sobre você, e qualquer um
acreditaria no que ela diz. Que você é uma rainha para sempre.
Eliana desvencilhou os braços de Simon e Remy. Seus pés eram pedras no
chão. — Você entrou na cabeça deles agora mesmo, mandou-os embora para
lutar. Você poderia ter feito isso com qualquer pessoa, recrutado dezenas de
pessoas do Elysium. Duzentos, quinhentos. Por que eles?
Ludivine soltou uma risada leve. Não moveu seu rosto. Sua boca estava
pálida, seus olhos grotescamente escuros na tela descolorida de sua pele.
— Não tenho certeza se você entende o quão bravo ele está — disse, sua
voz suave como uma lâmina polida. — Requer muito da minha força mantê-
lo fora desta sala. Tenho muito pouco para gastar, apenas o suficiente para
encorajar as pessoas já inclinadas a morrer para você ir e fazer exatamente
isso. Eu não poderia ter conduzido as pessoas da cidade até nós. Eu não
poderia entrar em suas mentes e transformá-los em soldados fantoches. Isso
teria me deixado muito vulnerável. Isso teria deixado Simon muito
vulnerável, ou você. E agora, cada parte de mim que ainda vive está lutando
contra ele.
Eliana pressionou os punhos nas coxas. Uma centena de pessoas caíram em
significância contra a totalidade da humanidade. Ela sabia disso.
E ainda assim se agarrou à sua raiva. — Você não deu escolha a eles — ela
sussurrou.
— Eles escolheram navegar até você — disse Ludivine. — Escolheram
seguir Zahra por uma cidade que se despedaçava quando a qualquer momento
ela poderia ter morrido e eles teriam sido descobertos. Uma fenda na
armadura mental de Zahra, e um navio de guerra poderia tê-los encontrado,
explodido em pedaços em alto mar. Eu apenas fiz uma sugestão agora. Uma
leve brisa nas costas dos guerreiros já preparados para morrer e ansiosos para
lutar.
Eliana estava entorpecida de tristeza para protestar quando Ludivine
segurou suas mãos. Ela desejou que Zahra estivesse diante dela, em vez deste
anjo de olhos negros com um espaço vazio onde seu coração roubado deveria
estar. Ela formou o pensamento violentamente, acertando-o na cara de
Ludivine.
Permaneceu sereno, liso como a porcelana.
— Cinco dos meus acólitos morreram vinte minutos atrás enquanto eu
puxava cruciata para minha casa — Ludivine disse calmamente. — Passei
muitos anos com todos eles. Eu lamento a morte deles. Mas eu não vacilei em
mandá-los para lá, nem eles vacilaram em ir. Quando Navi, Ysabet e sua
tripulação deixaram Vesper, sabiam que navegavam para a destruição. Eles o
fizeram com prazer. Eles fizeram isso por você. Foi escolha deles lutar então
e lutar hoje. Devemos agora honrar essa escolha, fazendo o que deve ser
feito.
Eliana sustentou o olhar negro de Ludivine, então se virou para encarar a
porta vazia. Navi estava lá, e Patrik e Hob, apenas um momento antes. Atrás
dela, Simon e Ludivine estavam falando. Ela os ignorou, ouvindo em vez
disso os sons distantes da batalha. Gritos monstruosos, rugidos guturais
úmidos.
Espadas quebrando.
— Eu ouço espadas — ela disse, as palavras sujas em sua língua.
— Meus acólitos, antes de morrer, tentaram deixar cem cruciata entrarem
no subsolo — respondeu Ludivine. — E Corien enviou quinhentos anjos na
frente dele. Eles se moverão lentamente, evitando o sangue cruciata que
nossos amigos derramaram. Isso nos dará algum tempo. Mas o número total
acabará dominando as feras. Eles serão o mar que abre caminho para ele.
Antes que uma hora se passe, ele estará nesta sala. Mas então, você já terá ido
embora.
Eliana se virou. Simon estava no centro da sala, de costas para ela. Ele
puxou fios do ar, um tecelão de luz.
Ludivine colocou a mão no ombro de Remy. — Remy e eu temos praticado
Antigo Celdarian. Caso algo aconteça com Simon, Remy saberá como falar
com quem você encontrar. A língua comum era diferente naquela época, e os
celdarianos provavelmente confiarão em você se você falar a língua deles.
Felizmente, o vocabulário de Remy já era bastante robusto. Ele aprendeu
muito em seu tempo com Jessamyn. — Ela sorriu com ternura, colocou uma
mecha do cabelo escuro de Remy atrás da orelha. — Se ao menos tivéssemos
mais tempo para ficar juntos, Remy Ferracora. Sua mente é fascinante. Ela
contém tantos sonhos, mesmo depois de meses vivendo na escuridão.
Observando-os, Eliana se sentiu mal. Ela arrebatou Remy de Ludivine,
então caminhou com ele para o outro lado da sala.
Nas sombras, ela se fortaleceu. Pressionou suas sobrancelhas contra as dele,
segurou suas bochechas. Seus olhos eram todo o seu mundo. Injeção e azul,
orlada com cílios escuros.
— Eu diria que você não pode ir comigo — disse ela, — mas, de alguma
forma, não acho que você vá aceitar isso.
Um pequeno sorriso ergueu os cantos de sua boca. — Se eu ficar aqui, com
certeza morrerei. Se eu for com você, posso viver.
Ela mordeu a língua. Não era o momento de falar sobre o tempo, o que
poderia ou não acontecer, o que seria ou não mudado.
— É isso — ela disse fracamente.
Remy colocou suas mãos sobre as dela, gentilmente pressionou seus dedos.
— Você pode fazer isso, El.
Parecia errado ouvir o apelido em sua nova voz rachada. Este menino
diante dela, este assassino magro com olhos vigilantes. Ela deu um beijo
feroz em sua testa. Se ela não olhasse diretamente para ele, ela poderia fingir
estar longe dos últimos meses e imaginar seu quarto em Orline. As cortinas
de renda, a colcha de sua mãe, a voz de Remy embalando-a para dormir
enquanto lia sobre santos e anjos, bestas divinas e reis.
Do corredor vieram sons horríveis, o estrondo e o rasgo de dentes e espadas
como um relâmpago abrindo a terra. Um grito agudo irrompeu do caos.
Eliana achou que parecia Navi. Seu pescoço ficou frio de suor.
Ludivine passou por eles em direção à porta. A luz dos fios crescentes de
Simon iluminou as paredes estranhamente, um pálido ouro branco que
carregava consigo um cheiro forte e acre como a carga de prata de nuvens de
tempestade cuspindo.
— Quando você passar pelos fios, se verá nos jardins reais atrás de
Baingarde — disse Ludivine. Seu cabelo era ouro líquido na luz crescente.—
Foi uma noite tranquila. Audric, Rielle e eu estávamos descansando sob uma
árvore da tristeza no final de um longo dia. Longo, mas bom. Os testes
acabaram. Ainda não havíamos saído para a excursão que a apresentaria ao
reino. Seu pai havia morrido recentemente, e o de Audric também, e havia
tristeza em nós e medo, mas quando éramos apenas nós três, também havia
paz.
Ela olhou para trás por cima do ombro. A luz da linha deu aos seus olhos
um brilho dourado. — Simon?
— Quase lá — disse, sua voz fortemente enrolada.
Eliana foi até ele e ficou ao seu lado. Ela sentiu Remy se juntar a ela, teve
um vislumbre de quão suave com admiração seu rosto se tornou enquanto ele
observava Simon trabalhar. A expressão o tornara mais familiar.
— Há algo que eu possa fazer? — Eliana perguntou.
Simon balançou a cabeça com força. — Não.
— Você está indo maravilhosamente bem.
Sua boca se curvou. Suas têmporas brilharam de suor. — Como você
saberia?
A verdade era que ela não sabia. Mas era lindo, como antes, ver seus dedos
longos e hábeis retirando a luz do ar. O sulco sério em sua testa, as linhas
definidas de sua mandíbula.
Ela colocou a mão em seu braço. Seu corpo relaxou, e os fios giratórios de
luz reunidos nas pontas de seus dedos se solidificaram, brilhando.
Apesar do medo virando frio em seu peito, Eliana sorriu.
— Obrigado — Simon sussurrou, sua voz fina sob o zumbido crescente de
seus fios, e embora ele não pudesse remover as mãos do ar, ela o sentiu se
mover em direção a ela. Suas pernas se tocaram. Remy enganchou seu braço
no dela, pressionou sua bochecha em seu ombro. Ele murmurou uma frase
em Celdarian Antigo repetidamente. No canto do olho de Eliana, uma das
velas tremeluziu.
Então, uma explosão de som vindo do corredor, uma cascata titânica de
metal contra pedra. Passando pela porta voou uma cruciata morta,
arremessada por algo fora de vista. As elegantes penas preto-esverdeadas do
raptor pintadas com listras azuis brilhantes no chão.
— Ele está vindo e mais rápido do que eu pensava — anunciou Ludivine.
Sua voz não traiu nada, mas Eliana sentiu o menor dos tremores em sua
mente.
— Você vai nos enviar e depois vir logo atrás de nós — disse Eliana com
firmeza para Simon. — Feche o fio atrás de você. Não olhe para trás.
Simon concordou. Um leve estremecimento percorreu seu corpo. Seus fios
– dezenas deles, talvez centenas – estavam se reunindo em um anel sólido de
luz giratória. E enquanto Eliana observava, fios mais escuros se juntavam aos
mais claros, consumindo-os. Eles estalavam como chicotes, chicoteando uma
escuridão cuspida no ar. O anel de luz tremeluziu, diminuiu e então se
iluminou. Fios escuros entrelaçados com fios de luz. Formas se manifestaram
além do anel – altas sombras verdes como enormes soldados marchando em
linhas limpas. Árvores?
A pele de Eliana arrepiou. Os jardins reais atrás de Baingarde.
Ela recuperou a espada embainhada de Katell e prendeu-a no cinto de suas
armas, em seguida, puxou a espada para inspeção. Era mais elegante do que
ela imaginava que seria, o punho dourado esculpido para se assemelhar aos
raios de sol, a lâmina polida para um alto brilho. Embora parecesse enorme,
parecia leve e ágil em suas mãos. Ela se levantou, maravilhada com a
facilidade com que a espada se movia no ar. Seus receptáculos cantavam
contra o punho, sua luz brilhante beijando o metal.
Gritos horripilantes ricochetearam nos corredores do lado de fora. Alguém
cuja voz ela não conhecia implorou por misericórdia.
Uma pressão negra ondulou contra sua mente e trouxe consigo um leve
sussurro:
Eliana.
Com o coração batendo forte, ela devolveu a espada de Katell à sua bainha.
Dores se apoderaram dela, saudades terríveis de seu quarto em casa, da
querida brava Zahra, do abraço caloroso dos braços de Navi. Observando os
fios, ela segurou o nó em sua garganta para que não pudesse subir mais. Ela
revirou os ombros, mudou de um pé para o outro, balançou as mãos e os
dedos. Seus receptáculos lançaram luz no teto.
Ao lado dela, os braços de Simon tremiam no ar como se sustentasse um
peso impensável. Ela estendeu a mão para ele, então pensou melhor. Se ela
pudesse envolvê-lo em seus braços, enterrar o rosto mais uma vez no espaço
quente entre seus ombros.
Em vez disso, ela encarou o anel giratório de luz, suas faíscas cuspindo pela
sala, e se preparou para correr. Seus músculos ficaram tensos, a espada de
Katell um peso leve e desconhecido contra sua perna. Ao lado dela, Remy
segurava uma adaga em sua mão direita. Em seu quadril brilhava outra. Seu
rosto, que ficou abatido por sua época em Elysium, poderia ter sido esculpido
em pedra, empoleirado no topo de um dos templos de Orline como um tributo
aos ferozes santos da antiguidade.
No momento em que Corien chegou, Eliana sentiu como se fosse o cair da
noite em sua pele. O ar pulsou, de repente tão espesso e próximo que Eliana
ofegou para respirar. Um rugido de fúria atingiu as paredes. Metal bateu
metal. Corien também tinha uma espada? O que parecia, dois anjos travados
em um combate de lâmina e mente?
Ela manteve os olhos nos fios, sentiu Remy começar a se virar e o agarrou,
girando-o de volta.
— Não olhe para ele — ela murmurou. — Olhe para Simon. Olhe para a
luz.
Ela podia sentir os dedos de Corien arranhando as bordas de seus
pensamentos, cavando por ela. Sua calma estilhaçou como madeira.
Eliana. Seus sussurros tombaram como pedras caindo. Uma onda de som
furioso. Eliana.
— Vá.
A voz rouca de Simon soou como um tiro. Eliana olhou os fios girando
como se eles cercassem um abismo, frio e sem fundo. Uma onda de medo
varreu sua pele, afiada como agulhas.
Ela resistiu ao impulso de tocar Simon e, em vez disso, aproximou-se dele
o máximo que ousou.
— Agora? — ela sussurrou.
Lágrimas brilhavam nos olhos dele. Sua boca se torceu. — Agora. Vá,
Eliana.
Atrás deles veio um grito agudo. Algum instinto ardente obrigou Eliana a
se virar. A camisa branca de Corien, meio rasgada, brilhava molhada com
sangue vermelho e azul. Veias negras desenhavam um mapa escuro no
inverno de sua pele. Ele respirava com dificuldade, e cada passo era instável,
mas o que quer que o sangue cruciata tivesse feito a ele, qualquer dor
persistente que a lâmina de ferrugem tinha deixado nele, ele estava lutando.
Um anjo menor, tão encharcado, poderia ter morrido de uma vez.
Mas Corien mostrou os dentes e ergueu a espada bem alto. Ludivine
tropeçou. Uma de suas mãos voou para a têmpora. Com um grito de fúria,
Corien se lançou contra ela. A lâmina cortou o pescoço de Ludivine. O
sangue jorrou como chuva vermelha. Sua cabeça caiu no chão e rolou. Seu
corpo se dobrou e sua espada caiu no chão.
Um gemido de pânico explodiu no crânio de Eliana. Ela girou de volta para
os fios e se lançou sobre eles. Ela agarrou a mão de Remy, o puxou com ela
através do anel de luz.
Um tiro atingiu o ar.
Atrás dela, Simon gritou.
Eliana se virou para alcançá-lo, mas algo o puxou para longe, fora de seu
alcance. Ela viu um flash de seu rosto, brilhando de dor, e então ele se foi.
Seus fios se moveram bruscamente, desviaram e se endireitaram, como se
uma nuvem os tivesse passado e o sol tivesse voltado. Os fios mais escuros,
aquelas gavinhas sibilantes do tempo, se dividiram e se reformaram. Eles
agarraram Eliana e Remy, lançando-os para frente. Sua mente gritou de
medo. Algo agarrou sua garganta, roubou sua voz.
Então ela colocou os pés em terreno sólido. Os fios se fecharam atrás dela,
chamuscando seus calcanhares.
Ela respirou fundo, desesperada por um mundo verde tranquilo e fresco. Os
jardins reais atrás do castelo Baingarde. Era uma noite tranquila.
Mas então um raio de fogo passou por cima de sua cabeça. Ofegante, se
abaixou, puxando Remy com ela. Eles atingiram o chão com força. A lama
sugava seus pés e mãos. Os cheiros sombrios de sangue e fumaça misturados
fizeram sua cabeça girar. Algo passou disparado por eles, algum grande
animal com a cabeça peluda e mosqueada e uma longa cauda de serpente.
Com cada um de seus passos estrondosos, a terra estremeceu. Algo brilhou
em torno de seus tornozelos enquanto Eliana os observava passar. Tiras
planas de metal incrustadas na pele inchada, cada peça brilhando com uma
luz familiar.
O horror a invadiu. Esta criatura não era exatamente uma cruciata, pelo
menos não como qualquer outra que ela tinha visto, mas estava perto o
suficiente e usava receptáculos. Em suas costas estava sentado uma criança
de olhos cinzentos com pulsos que estalavam em fogo. O sangue de Eliana
gelou. Uma criança elementar, controlada como os adatrox eram.
Ela se levantou. Remy ficou de pé ao lado dela. O mundo era um tumulto
de luz do sol e fogo, escuridão que se movia e uivava. Algo estava
queimando nas proximidades. Eles correram engasgando com a fumaça e
encontraram uma crista rochosa para se esconder atrás. Se enfiaram em uma
fenda escorregadia de lama e sangue. Ao lado deles estava um homem de
armadura, seus olhos vítreos bem abertos e uma de suas pernas arrancada.
Eliana escondeu a luz de seus receptáculos contra o peito e olhou por cima
da rocha para o caos.
Era um campo de batalha, tão vasto que poderia ser o mundo inteiro.
Soldados em armaduras balançaram suas espadas, arremessando suas lanças.
Um cavalo sem cavaleiro passou correndo, suas rédeas arrastando-se. Eliana
se encolheu quando um falcão das sombras voou gritando por eles.
Mergulhou em um soldado blindado, primeiro as garras e se expandiu. Um
casulo de escuridão o envolveu rapidamente, sufocando-o e jogando-o no
chão.
A noite havia caído e, no entanto, rajadas e raios de luz iluminavam a luta
em flashes erráticos. Eliana viu uma mulher pálida com cabelo preto curto
balançar um bastão preto com uma esfera azul brilhante no topo. O orbe
desenhou sombras do chão, e logo uma matilha de lobos escuros saltou para
longe dela e para a batalha, suas mandíbulas bem abertas. Um homem atingiu
o chão com um escudo brilhante, quebrando a terra. Cinco soldados
tropeçaram desajeitadamente nele, e Eliana viu um de seus olhos quando eles
caíram – cinza e turvo, sem expressão.
Seu sangue gelou. Adatrox.
— Veja. — Remy, agachado ao seu lado, apontou para a esquerda, onde a
silhueta de uma enorme montanha assomava à distância. Mil luzes pequenas
se espalharam por seu sopé. Incêndios marcavam uma enorme parede de
pedra. Era uma cidade construída nas colinas que se erguiam em direção à
montanha, e em seu ápice ficava um castelo cinza tênue com torres
alcançando o céu.
— Baingarde — Remy sussurrou. Em sua voz, ela ouviu o mesmo temor
reverente que o manteve lendo sobre o Velho Mundo noite após noite, ano
após ano.
Algo explodiu nas proximidades. O fogo floresceu e cresceu. Um soldado
voou – voou – para longe do inferno, carregado rapidamente por lanças de luz
branca envoltas nas sombras.
Por um momento, Eliana só conseguiu ficar olhando. Ela passou uma vida
sombria no palácio de um anjo, mas nunca antes ela tinha visto um com asas.
Remy puxou seu braço, puxando-a para baixo. Se achataram atrás da rocha.
Os receptáculos de Eliana tremeram contra suas palmas. Sem fôlego, o rosto
pressionado na terra, ela sentiu o gosto de magia em sua língua. Sufocou o
vento, explodindo frio e metálico em sua boca, como se ela tivesse beijado
um raio. Sua visão era nítida como vidro. Seu sangue rugiu, jubiloso.
Palavras flutuavam em sua mente em correntes de ouro.
Rielle estava viva. O empirium ainda não havia sido quebrado. Eliana
cravou os dedos na lama, resistindo ao puxão ascendente do ar mágico
maduro. Era possível voar sem asas?
— Esta não é a noite da qual Ludivine falou — disse ela.
— Não — Remy concordou. Na luz inconstante e explosiva, seus olhos
eram joias brilhantes. — Esta é a primavera, o último ano da Segunda Era. É
a Batalha de Âme de la Terre. A batalha que acabou com o mundo.
42
Audric

“Vamos cavalgar até você o mais rápido que pudermos, mas Audric –
são muitos quilômetros entre Styrdalleen e Âme de la Terre, e meu povo
foi devastado por um inverno rigoroso de nevascas, terremotos e
avalanches constantes e ataques contínuos em nosso aldeias. Milhares
estão mortos. A capital está transbordando de civis que perderam suas
casas, seus filhos, seus pais. E estamos ficando sem comida. Meu irmão
me escreveu dizendo que vem com ajuda, mas ainda não chegou e temo
que nunca chegue. Você é a melhor esperança que temos para
sobreviver a isso, Audric. Fique firme contra o inimigo e fique de olho
no horizonte nordeste.”
— Carta codificada de Ingrid Lysleva, Lorde Comandante do
exército Borsválico, para o Rei Audric Courverie de Celdaria, datada
de 19 de abril, Ano 1000 da Segunda Era

Ele não conseguiu encontrá-la.


Audric tinha imaginado que aconteceria imediatamente, que alguma
incrível explosão de poder aconteceria em minutos. O resto do campo de
batalha empalideceria em comparação a ela. Ela ficaria no centro de tudo,
braços abertos, o poder fluindo como um raio de seus dedos.
E Audric mergulharia em sua direção, lançando sobre ela uma luz tão
ofuscante que até ela cambalearia. Ele pularia de Atheria antes que a besta
divina atingisse o chão, levantaria Illumenor para atacar. Talvez ele dissesse
o nome de Rielle. Talvez ela não permitisse nem mesmo isso.
Mas ele não conseguiu encontrá-la.
E eles estavam perdendo.
Ele assistiu a batalha abaixo como se ela o tivesse tomado durante o sono,
algum pesadelo febril horrível rolando diante de seus olhos incrédulos. Os
anjos caíram às dúzias – lanceados por receptáculos de fogo, cortados em
dois por escudos giratórios lançados com força por seus mestres elementais –
mas segundos depois, estavam inteiros novamente. Os pedaços arruinados de
seus corpos simplesmente rastejaram em direção um ao outro e se
remontaram. Eles encontraram suas armas caídas e voltaram para a batalha.
Alguns deixaram seus corpos para serem pisoteados e esquecidos e, em vez
disso, lutaram sem serem vistos. Os soldados celdarianos caíram em silêncio.
Sem feridas, sem sangue. Apenas rostos pálidos contorcidos, bocas
congeladas no início dos gritos. Uma windsinger chicoteou seu chicote pelo
ar, convocando rajadas afiadas que derrubaram anjo após anjo no chão. Um
momento depois, a luz de seu receptáculo se apagou. Seu corpo estremeceu,
seu rosto mudou, e ela escorregou do cavalo e se foi, pisoteada por um mar
de cascos e garras.
A mão de Audric apertou Illumenor. A luz do sol que fluía da lâmina estava
diminuindo e os anjos fervilhavam um pouco além do alcance de sua luz.
Eles assobiaram em Lissar, gritaram para ele largar sua espada, bateram suas
lâminas contra os raios brilhantes de Illumenor até que os ouvidos dele
zumbiram com o som de punhos contra o vidro.
Ele não podia baixar a luz. Eles o cercariam em segundos.
Mas tinha que fazer algo pelas dezenas, as centenas de soldados sendo
abatidos ao seu redor. Ele procurou freneticamente pelo menor triunfo. O
zíper azul-branco do receptáculo de Sloane, a faísca e o giro dos martelos de
metalmaster acertando seus alvos.
Não era o suficiente.
Uma maré negra de bestas agitou-se implacavelmente em direção à muralha
da cidade, abominações com receptáculos costurados em suas peles e rugidos
poderosos como pedras caindo. Crianças de olhos acinzentados cavalgavam
em cima delas, seus pulsos em chamas, sombras voando deles como flechas.
Um bando de feras aviárias cruzou o lago com asas nuas e mergulhou na
parede. Arrancaram os arqueiros de seus postos e jogaram os corpos entre
eles, rasgando carne e osso até que restassem apenas sobras.
Audric deitou-se contra Atheria e fechou os olhos. Imediatamente, ela
mergulhou rapidamente para o campo de batalha. Os anjos seguiram em
ambos os lados, suas asas piscando. Seus gritos de guerra eram uivos de
lobos.
Antes de atingir o solo, Atheria subiu bruscamente, depois girou e cortou o
campo de batalha como um navio elegante em águas escuras. Illumenor abriu
um caminho vacilante através das fileiras angelicais, espalhando-as. Audric
engoliu em seco. O vento que passava por ele era afiado como uma faca,
negro de fumaça. Ele olhou por cima do ombro, viu a destruição deixada para
trás em seu rastro ardente e sentiu uma pequena explosão de esperança.
Em seguida, um peso enorme bateu em Atheria e a derrubou com força.
Audric caiu, perdeu Illumenor, saiu rolando. Mãos o agarraram. Alguém
cravou uma lança na terra ao lado de seu ombro. Ele se retorceu, esquivou-se
de outra e, em seguida, vasculhou a lama em busca da espada. Algo gritou
alto, um terrível rosnado esganiçado. Sua mão pousou no metal. Uma
familiar corda de poder agarrou-se à sua palma.
Ele agarrou Illumenor e girou de volta em direção ao seu agressor – um
anjo enorme em armadura de ouro. Ele empurrou sua lança mais uma vez.
Audric se esquivou e Illumenor explodiu em uma luz brilhante. O anjo largou
a arma, recuou e protegeu os olhos. Suas lâminas se chocaram. Outros anjos
convergiram para eles, espadas erguidas. Ele sentiu suas mentes tateando em
busca da dele, os dedos cavando nas bordas de seus pensamentos, mas algo o
estava protegendo – uma barreira flexível e familiar que repeliu seus ataques.
Ludivine. Ele esperava que fosse ela. Um nauseante lampejo de terror o
varreu quando ele imaginou outra pessoa o mantendo vivo, atraindo-o através
desta batalha para um fim que ele não podia ver.
Ele girou para encontrar as espadas do anjo, Illumenor brilhando mais forte
a cada choque metálico. Se esquivou de seus golpes, apunhalou um anjo na
virilha, esculpiu um raio de luz branca no peito revestido de outro. Ele
procurou Ludivine no caos, mas ela estava se mantendo escondida. Ela estava
assistindo a luta se desenrolar de alguma caverna protegida na montanha? Ela
realmente os deixou para morrer?
Um grito furioso atraiu sua atenção. Atheria estava travando uma batalha
com uma das bestas – ombros elevados fora do chão, costas enrugadas com
pelos e ossos. Atheria empinou, orelhas achatadas e asas batendo. Cortes
vermelhos listraram seu estômago. Ela chutou com as patas dianteiras e bateu
na besta com os cascos.
Algo duro e frio bateu na nuca de Audric. Ele caiu, sua visão escurecendo.
Ele tentou se levantar, mas foi jogado no chão. Uma bota chapeada em seu
peito o prendeu na lama. Ele olhou para cima, piscando com força, e viu a
forma de um anjo com armadura emoldurado por radiantes asas brancas.
Uma lâmina tocou sua garganta. Sua pele cedeu, uma pontada de dor aguda
como uma agulha.
Então o ar floresceu com som. Rico e caloroso, como vozes elevadas em
uma canção.
A pressão no peito de Audric diminuiu. Ele saltou para cima, Illumenor em
chamas, e cortou o torso do anjo em dois. O corpo caiu, suas duas metades
fumegando, e não se levantou novamente. Qualquer anjo que vivia dentro
dele havia fugido, e Audric percebeu por que imediatamente.
Do outro lado das Campinas, grandes formas aladas estavam caindo do céu.
A luz giratória da magia lançada os iluminou enquanto se lançavam para a
batalha. Eles varreram rapidamente a luta e derrubaram dezenas de anjos no
chão.
Audric olhou maravilhado para seus poderosos corpos peludos, suas
enormes asas em forma de gancho que retumbavam como tambores enquanto
batiam.
Eles eram dragões. Dragões, que ninguém via há muito tempo. Dezenas
deles, alguns magros e esguios, do tamanho de cavalos, outros largos e
musculosos, grandes como navios de guerra. Figuras cavalgavam em cima
deles carregando cajados e espadas, mantos voando como asas escuras atrás
deles.
Uma passagem de uma das histórias favoritas de Audric passou por sua
mente. No alvorecer da Segunda Era, com os anjos banidos para o Abismo,
os santos começaram a esculpir novas cidades no solo devastado pela guerra
e, durante esses primeiros anos de paz, as bestas divinas fugiram das cidades
humanas. Para onde foram, não se sabe, mas alguns acreditam que os
dragões de gelo, os campeões bestiais de São Grimvald, recuaram para o
extremo norte. Eles permitiram apenas que seus companheiros escolhidos, os
Kammerat, aqueles que falam a língua dos dragões, se juntassem a eles
naqueles confins congelados. Todos os outros que ousaram procurá-los
pereceram, seus corpos voltaram para casa à noite, envolto no traje civil
com capuz escuro, a benevolência Kammerat.
Audric observou com admiração enquanto os Kammerat levavam trompas
de osso polido aos lábios. Eles montavam os dragões tão facilmente como se
tivessem nascido em cima deles. Foram eles que encheram o ar com música,
as chamadas em cascata de suas trompas tocando durante a noite.
As feras que atormentavam os arqueiros na parede largaram suas presas e
dispararam de volta através do lago para encontrar os recém-chegados, seus
gritos agudos perfurando o ar. Dois batalhões alados correram um em direção
ao outro através de um céu de fumaça e faíscas. Por um breve momento, a
visão deixou os dois exércitos mudos. Anjos e humanos se encolheram de
medo.
Então veio um clamor estrondoso da passagem entre o Monte Taléa e o
Monte Sorenne. Audric semicerrou os olhos através da fumaça e um calafrio
o percorreu. Seu coração disparado voou para a garganta.
Pois lá, espalhando-se pela passagem, a terra se reorganizando
ordenadamente para fornecer um caminho seguro, havia um mar de lâminas
brilhantes. Enormes cavalos de guerra salpicados de prata com caudas
brancas se espalhando e estandartes ondulantes mostrando as cores de São
Grimvald e da Casa Lysleva – laranja ígnea, azul profundo e lavanda suave
como o pôr do sol, tudo estalando em um campo de carvão.
O exército borsválico, de três mil homens, rugiu das montanhas. Seus
novos receptáculos brilharam; suas trompas soaram sons de batalha altos e
agudos.
Aplausos explodiram nas Campinas. Celdarianos e Mazabatianos lançaram
suas espadas no ar.
O alívio queimou o corpo de Audric, deixando-o tonto. Não se permitiu
esperar pela chegada deles, mas agora a visão deles trovejando para a batalha
acendeu um novo fogo em seu coração.
Ouviu um barulho atrás dele, girou e cortou três anjos em dois com três
golpes rápidos, seus braços resplandecendo com poder. Eles caíram, seus
corpos arruinados chiando como lenha em chamas.
Assobiou para Atheria. Ela veio até ele imediatamente, as narinas dilatadas,
o pelo manchado de sangue. Ele hesitou ao ver as feridas dela, mas ela
avançou impaciente; suas asas tremeram para voar. Ele se pendurou em cima
dela e então estavam no ar, correndo para enfrentar o exército de Borsvall no
sopé. Illumenor iluminou o caminho, e ele sabia que nas Campinas e na
cidade, seu povo estaria olhando para ele. Veriam a luz de Illumenor
avançando em direção às montanhas, veriam os guerreiros de Borsvall
cavalgando em sua ajuda e ficariam mais altos e ousariam pensar no amanhã.
Atheria mergulhou baixo, trouxe Audric ao nível do líder das tropas de
Borsvall – um cavaleiro em um cavalo de guerra branco, destemido e rápido.
Dois vassalos a seguiram, voando com as cores de sua casa. Era Ingrid
Lysleva, comandante do exército borsválico e regente na ausência de seu
irmão. Ela não havia tomado o trono, Audric tinha ouvido, mesmo a pedido
de seus magísteres e conselheiros.
Ingrid olhou para cima quando Atheria começou a voar ao lado dela,
acompanhando o ritmo de seu cavalo. Ela usava um capacete de prata com
chifres e quando encontrou os olhos de Audric, foi com um sorriso feroz e
selvagem.
Atrás dela, um dos dragões girou do céu para voar ao lado deles. Um
dragão menor, magro, mas feroz, com dentes trincados, olhos de ouro vivo e
uma crista de pelo branco irregular. Seu cavaleiro estava deitado contra seu
pescoço. Ele era um homem de pele clara com cabelo escuro, cujo rosto
Audric não reconheceu. Ele estava vestido com um casaco comprido e solto e
uma capa costurada em um tecido simples escuro. Um dos Kammerat, então,
Audric pensou. Atrás dele, agarrado à cintura, estava outro homem, com
roupas semelhantes, barbudo, louro e mais magro do que Audric se lembrava.
Seus olhos se encontraram através do espaço selvagem entre eles. Ilmaire
ergueu a mão em saudação e o coração de Audric se elevou ao ver seu amigo.
Ele nunca acreditou nos rumores de que Ilmaire estava morto. Vê-lo vivo e
bem, cavalgando um dragão ao lado de sua irmã, enquanto os três voavam
para a batalha, trouxe uma nova força aos membros cansados de Audric.
Illumenor ganhou vida brilhante.
Centenas de anjos se viraram para enfrentar o exército borsválico que
atacava, com as lanças prontas. Do céu choveu flechas pretas. Audric ouviu
cavalos gritando atrás dele, ouviu soldado após soldado caindo. Mas ainda
assim atacaram, os estridentes gritos de guerra de Ingrid perfuraram o ar, e
pouco antes de encontrarem as fileiras angelicais, Audric estendeu a mão com
seu poder, reuniu cada partícula de luz solar lançada pelo campo de batalha
tinha conseguido convocar e empurrou tudo em um caiu golpe em direção ao
inimigo.
A luz detonou nas Campinas, derrubando metade dos anjos de joelhos. O
resto cambaleou, atirando sem pontaria. O exército borsválico rasgou as
linhas inimigas como fogo em uma floresta. Os sons da batalha engoliram
Audric inteiro. Ele vislumbrou o brilho das espadas, o branco do osso
quebrado. O cinza manchado de uma pele de animal, a cabeça peluda de um
dragão. Peitorais angelicais marcados com aquela orgulhosa crista de asas.
Audric conduziu Atheria através da briga. Ele lançou luz para a esquerda e
para a direita, atirando anjos de suas montarias, jogando as feras em enxame
para longe de sua matança. O exército borsválico se agitou atrás dele,
seguindo o caminho que ele abriu.
Então o ar apertou, formigando a pele de Audric. Uma voz flutuou em sua
direção como se carregada pelo vento, mas ele soube imediatamente que
ninguém mais podia ouvi-la.
Audric, sussurrou.
Suando, sem fôlego pelo uso de seu poder, Audric estremeceu nas costas de
Atheria, pois era a voz dela o chamando, e tremia com algo que ele não
conseguia nomear.
O ouro estourou no canto do olho. Ele girou, puxando Atheria para cima do
campo de batalha, e olhou para trás, para as Campinas, além do lago e da
muralha alta, e do outro lado da cidade em direção a Baingarde.
Dos telhados do castelo brotava uma luz tão radiante, tão nítida em sua
pureza que até mesmo Illumenor parecia esmaecer. A luz atingiu o céu
noturno, vulcânica, e então assumiu uma forma – duas asas enormes em vôo,
ousadas e familiares. O mesmo símbolo estampado em cada tórax angelical
agora pairando no ar acima de Baingarde, alto como nuvens de tempestade.
Uma declaração: Aqui estou.
A mente de Audric lhe disse para ignorar a isca. Mas uma raiva feroz e
limpa o atravessou, sacudindo seus ossos como raios, e os avisos de sua
mente eram fáceis de ignorar.
— Vá! — ele rugiu, inclinando-se fortemente em direção à cidade, e
Atheria obedeceu. Os anjos correram atrás dele, suas asas brilhando. Ele mal
os notou, derrubando-os facilmente no ar com sua espada brilhante. Ludivine,
onde quer que estivesse, ainda o estava ajudando, ou então era Corien
permitindo sua passagem, brincando com ele para se divertir. Audric não se
importou com o motivo. Os ataques mentais dos anjos ricochetearam nele,
inúteis como pedrinhas jogadas em uma montanha. Seu poder correu quente
por seu corpo, irradiando sua visão. Illumenor moveu-se sem seu comando.
Ele pensava apenas em Baingarde, as asas incandescentes acima dali. A
mulher de pé ali dentro.
Atheria disparou sobre o lago, esquivando-se de bestas aladas. Logo
estavam na muralha da cidade – seus parapeitos queimando, os elementais
em cima em um combate desesperado. Animais escalaram para fora do lago e
escalaram a pedra. Os filhos elementais do exército angelical criaram pontes
para facilitar a passagem sobre o lago. Soldados de olhos cinzentos corriam
com enormes escadas negras, bestas sibilantes protegendo sua passagem;
centenas de outros haviam alcançado a grande parede de pedra e começaram
a bater nela com uma grande viga de aço e madeira. Cada impacto explodiu
como um trovão.
Audric olhou por cima do ombro, tentando circular de volta e usar
Illumenor para cegar todos os soldados angelicais nas novas pontes, dando
tempo a seu próprio povo para demoli-los. Mas a luz sobre Baingarde o atraiu
e ele se voltou para a parede com a fúria no coração.
Assim que Atheria alcançou a muralha, um enxame de pássaros negros
voou para Audric com garras minúsculas como agulhas e bicos pontiagudos.
Seus gritos eram roucos, estranhos, mais caninos do que aviários. Atheria
vacilou, tentou sacudir a cabeça e as asas para se livrar deles, mas eles se
agarraram a ela como gotas de óleo.
Audric esquadrinhou o chão além da muralha. Ele conhecia esses pássaros.
Eles não estavam tentando atacá-lo; eles estavam tentando mandá-lo embora
da cidade. Quando encontrou o brilho azul do cetro de Sloane, ele sibilou o
nome dela em fúria. Atheria mergulhou rápido; os pássaros feitos de sombra
se desprenderam dela. Quando pousaram, ela estava limpa. Nas portas dentro
da muralha, os soldados correram para fazer barricadas. Elementais no chão
apontaram seus receptáculos para cada animal escalador. As enormes asas
pairando sobre Baingarde lavavam tudo em uma centena de tons de ouro.
Sloane se apressou, seu rosto pálido manchado de sangue, os olhos tão
azuis quanto seu receptáculo.
— O que você pensa que está fazendo? — ela gritou.
Audric desmontou. Atheria sacudiu a cabeça e pisou nos restos desbotados
dos pássaros de Sloane.
— Estou fazendo exatamente o que combinamos — disse, sua voz tão
zangada quanto a dela. — Encontrar Rielle. Conseguir a ajuda dela se eu
puder. Para-lá se for preciso. — Ele jogou a mão em direção ao castelo, as
asas brilhando acima dele. — Lá está ela. Então eu estou indo até ela.
— Você não a derrotará sozinho, Audric. Pelo menos se você a encontrasse
no campo de batalha, você teria ajuda, uma chance de falar com ela enquanto
o resto de nós providenciamos cobertura. — Sloane agarrou seu braço, seu
rosto desesperado. Seu cabelo preto encharcado esculpia linhas duras em suas
bochechas pálidas. — Deixe-nos ir com você.
Ele olhou além dela. Lá estava Miren, descendo apressada da muralha, o
cabelo ruivo puxado para trás em um nó bagunçado. Evyline e mais duas
Guardas Solares estavam em seus calcanhares, as capas pingando. Kamayin
chegou logo atrás delas, levando uma onda de água sobre a muralha. Ela a
carregou através do lago desde o campo de batalha. As pontas de seu longo
casaco de couro chicotearam ao redor dela como línguas. Ela caiu com um
respingo, cruzou os pulsos na frente do peito como um escudo. Seus
receptáculos brilharam; a água baixou, encolhendo-se em esferas gêmeas de
espuma fluindo em suas palmas. Em seu rosto negro e brilhante, havia um
sorriso triunfante.
Evyline alcançou Audric primeiro. Ofegante, ela se ajoelhou diante dele. —
Nós vimos as asas, meu rei. Nós sabíamos que você voaria para elas. Não
podíamos deixar você enfrentá-la sozinho.
— Você terá uma chance melhor conosco ao seu lado — acrescentou Miren
sombriamente, ficando um pouco afastado deles. Ela apertou seu machado de
duas cabeças. Uma nuvem compacta de metal ganhou vida ao seu redor –
lâminas de adaga quebradas e minúsculas estrelas de metal com pontas
mortalmente afiadas.
— Ou qualquer chance — acrescentou Kamayin secamente. Ela empurrou
os outros e passou um braço ao redor dos ombros de Audric. Com o rosto
meio enterrado no colarinho dele, ela disse baixinho: — Não seja idiota, seu
idiota.
Audric gentilmente se separou dela. — Rielle pode querer me manter vivo,
ou Corien pode, por tempo suficiente para falar comigo.
— Provocar você — corrigiu Miren. — Se divertir e se exibir.
— Possivelmente. Mas vocês… Por que se importariam com qualquer um
de vocês? Ela pode queimá-las até as cinzas no momento em que as vir.
— Talvez isso lhe dê tempo suficiente para esfaqueá-la — disse Kamayin
alegremente. Mas seus olhos estavam duros e sua mandíbula travada.
Audric se afastou delas e passou a mão pelos cachos encharcados de suor.
Ele não sabia o que dizer a elas. Ele desejou que não o tivessem impedido.
Ele poderia ter cavalgado naquela onda de raiva todo o caminho até o castelo,
enfrentado Rielle sem um momento para pensar sobre isso. Sem tempo para
se lembrar dela, sem tempo para sentir medo. Agora, aquela selvageria se
fora. Seu corpo doía com hematomas, lembrando-o de sua própria
fragilidade.
Alguns passos à sua esquerda, uma luz começou a girar. Um anel se formou
rapidamente, faiscando branco, e dele saíram quatro pessoas. Duas que
Audric não reconheceu – uma mulher magra, de pele e cabelos claros, com
olhos azuis furiosos, e outra mulher, alta e rechonchuda e de pele acobreada,
com cabelos pretos grisalhos em uma coroa de tranças ao redor da cabeça. A
visão o lembrou de Ludivine, de como ela havia popularizado aquele mesmo
estilo de cabelo no norte. Sua garganta se apertou dolorosamente.
Mais duas pessoas emergiram do anel de fios. Um homem com pele
marrom clara, cabelos e olhos castanhos escuros – e uma garota com cabelos
brancos, sua pele de um marrom claro semelhante, seus próprios olhos
brilhando com poder.
Audric recuou em choque. — Obritsa. — O homem era seu guarda-costas,
o silencioso e estóico Artem.
A rainha de Kirvaya balançou a cabeça bruscamente, seu rosto uma
máscara sombria de determinação. — O que você precisa que façamos?
Audric olhou para todos. Os dedos da mulher pálida brilharam, como se ela
também estivesse pronta para invocar fios. Duas marques, então. Claramente,
todos tinham uma história para contar, mas não havia tempo para perguntar.
Um coro de gritos de guerra fez todos olharem para cima. Outro regimento
de anjos alados alcançou a cidade, juntando-se aos que já haviam passado
pelo caos elemental das Campinas. Eles voaram por cima da muralha e
dispararam pelas ruas sinuosas. Elementais os perseguiram – windsingers
deslizando sobre as correntes de seu próprio poder, terremotos cavando
através do solo. Uma formação de dragões correu pela parede em
perseguição, Kammerat de manto preto cavalgando sobre eles.
Audric se desviou da visão de seu povo fugindo aterrorizado. Essas ruas
foram sua casa. Agora, eles queimaram com o fogo da guerra.
— Ajude-os a sair — disse com voz rouca. — Leve-os para o sul, ajude-os
a se esconder. O máximo que você puder.
Obritsa não hesitou. Ela trocou um olhar penetrante com a mulher pálida, a
outra marque. Imediatamente, elas convocaram os fios, esperaram Artem e a
mulher com as tranças do norte se apressarem e o seguiram logo atrás. Os
anéis de luz se fecharam.
Audric foi até Atheria. Ele segurou seu rosto comprido em suas mãos,
pressionou sua testa contra seu focinho de veludo.
— Você pode fazer mais bem lá fora do que comigo — disse a ela
calmamente.
Por um momento, ela ficou quieta. Seus olhos negros eternos o observavam
gravemente. Então bufou e se afastou dele. Suas asas roçaram como seda
contra sua bochecha. Ela se lançou no ar e voou rápido para o campo de
batalha. Ela deu um grito agudo, semelhante ao de um falcão e terrível,
enquanto desaparecia por cima da parede.
Audric se virou, piscando com força, e olhou para o castelo. Nenhuma
palavra mais foi dita. Nenhuma foi necessária. Miren e Sloane à sua direita, e
Kamayin, Evyline e as duas Guardas do Sol à sua esquerda – Fara, ele gostou
de ver, e Maylis, duas das favoritas de Rielle.
Juntos, correram pela cidade. Audric sufocou seu poder, manteve Illumenor
apagada. Por enquanto, deixaria os outros lutarem por ele. Olhos focados nas
ruas à frente, ouviu o estrondo da magia de seus amigos, o baque de suas
espadas.
Ele estava, talvez, correndo para encontrar sua condenação.
Mas ele não a enfrentaria sozinho.
43
Eliana

“Sinta a terra sob seus pés


e o vento que move as árvores
Veja as sombras mudando nos campos,
a maré que puxa os mares
Ouça o chicote de metal forjado em oração
O estalo e cuspe da chama
Observe o sol subir no céu e queimar...
Um fogo que nenhuma espada pode domar!”
— “A Glória dos Sete”, hino de guerra tradicional celdariano

Corpos marcaram o caminho em direção à cidade de Âme de la Terre. Corpos


blindados abandonados por seus anjos. Adatrox, infantaria descartável, suas
armaduras rudes e seus rostos congelados em expressões de horror.
Elementais fumegantes, sua magia morrendo mais lentamente do que seus
corpos. Cavalos e arqueiros, e as feras que lutavam pelos anjos, criaturas que
pareciam imitações perversas da cruciata que Eliana conhecia.
Muitos ainda vivem. Eles lutaram a pé no campo de batalha molhado de
lama e sangue, colidindo no ar. E centenas, talvez mais de mil, inundaram a
cidade em ondas agitadas de couro e aço. A parede defensiva havia caído, sua
pedra grossa totalmente destruída.
Eliana correu para se juntar a eles, Remy ao seu lado. Usaram os caídos
como abrigos, correndo de cadáver em cadáver. A cada um, se ajoelharam,
procurando uma pausa na luta, depois correram, escorregando no chão
escorregadio e pisoteado. Um dragão passou voando, perseguindo uma
matilha de feras que se arrastou em direção à parede. As asas poderosas do
dragão transformaram o ar em um trovão, derrubando Eliana e Remy no
chão.
Remy, com o rosto respingado de lama, olhou para o dragão. Eliana o
deixou olhar enquanto ela arrancava os capacetes de dois corpos angelicais
que jaziam nas proximidades. Ela empurrou o dela, tentando não engasgar
com os odores vis que revestiam o capacete, o chão, ela mesma.
Eliana puxou o braço de Remy, puxou-o para cima e empurrou o segundo
capacete para ele. Eles correram. Na parede, não hesitaram. A hesitação
atrairia olhos angelicais. Eles brandiam suas armas – a espada que Remy
havia recuperado de um adatrox caído, e a espada de Katell, escurecida para
se parecer com qualquer outra arma. Eliana cerrou os dentes enquanto se
juntavam às companhias angelicais que fluíam pela pedra quebrada. Ao lado
dela, Remy imitou seus gritos de batalha. Eliana não ousou. Ela pressionou
cada músculo de seu corpo com força. O ar estava repleto de magia, o
empirium totalmente desperto e observando. Seus ossos doíam com o esforço
de sufocar seus receptáculos, garantindo que a espada de Katell permanecesse
escura.
Se esquivou da lâmina balançando de um jovem soldado de olhos
arregalados – não um anjo, mas um humano, tentando em vão defender sua
cidade. Era desajeitado; ela passou por ele facilmente e o fez tropeçar com
sua espada.
Eles haviam passado pelas portas, escalando uma praça que talvez fosse,
em tempos de paz, um grande mercado. Agora, era o caos. Bestas escalaram
as paredes dos edifícios; adatrox de olhos cinzentos marchavam escada acima
da praça e se espalhavam pelas ruas estreitas do bairro. Anjos com asas
brilhantes atravessaram janelas altas e mergulharam dentro.
Eliana olhou para cima em direção à montanha que pairava sobre a cidade.
Em sua base estava Baingarde, agora marcado por um par de enormes asas
douradas com a metade do tamanho do próprio castelo. Sempre que Eliana
olhava para elas, seu sangue aumentava perigosamente e ela precisava cerrar
os punhos com mais força para evitar que seus receptáculos vazassem para a
vida.
Não havia dúvida de quem tinha feito aquelas asas ou quão
desesperadamente o poder de Eliana queria que ela as alcançasse.
Remy ofegava enquanto corriam, seu capacete pintado com sangue fresco.
Quando chegaram a um cruzamento fervilhante no segundo nível da cidade,
ele disparou para trás de um grande pilar quadrado, tirou o capacete e jogou-o
em direção a uma porta de pedra arqueada onde um portão estava aberto, sua
ferragem destruída meio derretida e chiando. O capacete rolou pelo caminho
de duas garotas correndo de mãos dadas. Mesmo as sombras fervilhavam de
pessoas desesperadas por escapar. Uma das garotas saltou sobre o capacete e
gritou. A outra puxou seu braço e soltou um soluço áspero. Elas continuaram
correndo.
— Eu tive que matar uma criança para passar pela parede — Remy disse
estupidamente, observando-as fugir. Seus punhos abriram e fecharam. —
Algum garoto idiota sem armadura e uma faca tão grande quanto seu rosto.
Ele não saía do caminho.
Eliana não conseguia encontrar palavras para confortá-lo. Sua garganta se
fechou em angústia; o ar estava quente e podre de morte. Ela se apertou
contra o pilar e olhou além dele, para a carnificina.
O povo da cidade, com os braços carregados de crianças chorando, corria
aos berros pelas ruas. Eles fugiram em direção ao castelo, pois era o único
lugar que restava para correr. Tropas angelicais marcharam implacavelmente
dos bairros mais baixos da cidade. Soltaram flechas; atacaram com espadas
erguidas bem alto. Dezenas de cidadãos caíram, embora nenhuma arma os
tivesse atingido. Eles caíram como pássaros alvejados do céu, rolaram escada
abaixo e derrubaram outros.
Uma companhia de elementais em mantos de carvão e laranja, escarlate e
ouro, saiu correndo de uma estrada lateral, plantou-se entre os anjos e os
humanos em fuga. O fogo estalou de seus escudos brilhantes. Armas
abandonadas voaram do chão e chicotearam pelo ar nas tropas angelicais,
cortando pescoços abertos.
Eliana procurou o melhor caminho para o castelo. Mas cada rua e beco,
cada lance de escadas e parapeito parecia rastejar com mais inimigos a cada
segundo. Uma forma bestial escura saltou de telhado em telhado, então
escorregou por uma parede e se chocou contra uma multidão de pessoas
correndo em direção a um prédio em busca de abrigo.
As palmas das mãos de Eliana começaram a queimar. Ela cerrou os dedos
com força e se virou, pressionou as costas contra o pilar, tentou recuperar o
fôlego. Uma multidão gritando passou correndo. Um cotovelo a empurrou.
Um homem com uma criança gritando jogada por cima do ombro passou
correndo. De algum lugar no caos veio uma explosão de vidro e madeira.
Gritos aumentaram e foram silenciados rapidamente.
Você terá que lutar contra eles — disse Remy baixinho ao lado dela. —
Jamais faremos de outra forma. Há muitos deles.
Eliana fechou os olhos com força. — Eu não posso. Ela vai me encontrar.
Ele vai me encontrar.
— E virão atrás de você, e você lutará com eles aqui em vez de lá.
— Ou eles vão me matar onde estou, sem nunca ter que deixar o castelo.
Algo puxou seu peito, um puxão urgente familiar. Seus receptáculos
acenderam e estalaram como um fogo crescente.
Uma voz de milhares, de milhões, nem gentil nem cruel, falou em sua
mente. Uma única instrução fria, falada não com palavras, mas com
sentimento, com um sabor particular de poder saindo de suas veias.

Os olhos de Eliana voaram para o portão de ferro em chamas. Ela empurrou
o pilar e abriu caminho através da multidão correndo. Remy sibilou seu
nome, agarrou sua manga. Ela se soltou, rastejou sobre o portão destruído e
entrou em um pequeno pátio. Um de muitos, ela podia ver, de vários
tamanhos e designs. Arcadas de pedra imaculada os conectavam, e passagens
estreitas cobertas por mandris envoltos em videiras criavam um labirinto de
trilhas para caminhada. Pálidas estátuas alinhavam-se nas paredes, escondidas
em alcovas privadas cheias de flores. Outras estavam orgulhosas nas cornijas
elaboradas, com mantos e popa. Olhos voltados para o céu, escudos nas
mãos.
— Devem ser templos — sussurrou Remy, juntando-se a ela com sua
espada erguida. — Lá está Santa Marzana. E de novo, ali. Você pode dizer
pelo escudo que ela segura.
Mas Eliana mal o ouviu. Ela estava olhando para o outro lado do pátio,
onde um homem e um menino estavam ajoelhados ao lado de uma mulher se
contorcendo de dor. O homem estava pálido com cabelos grisalhos, sua pele
enrugada, mas seus movimentos eram hábeis quando ele cortou uma flecha
do ombro da mulher. Ela gritou além do pano enfiado em sua boca, virou o
rosto para o braço do menino. Ela esmagou a mão dele, os nós dos dedos
brancos de dor, mas o menino não se encolheu. Cinza e sujeira manchavam
seu rosto suado, mas seus olhos eram penetrantes, de um azul brilhante
vigilante.
Eliana, olhando para ele, podia ouvir pouco além de seu próprio coração
batendo forte. Os gritos e estrondos da batalha desapareceram. Remy
murmurou uma pergunta, então avistou o garoto e respirou fundo.
O som a desfez. Seus olhos se encheram de lágrimas enquanto observava o
menino passar um pote para o homem ao lado dele e depois curativos para
tapar o ferimento. Tudo em seu rosto era familiar – a protuberância teimosa
de sua mandíbula, a expressão de sua testa séria. Seu cabelo, cinza na
penumbra, desgrenhado e despenteado, precisando de um corte.
Seu nome estava em sua garganta. Ela agarrou a frente de seu casaco, e
então a mão de Remy, porque se ela não o segurasse, ela correria pelo pátio,
toda a razão abandonada, pela chance de olhar pelos olhos de Simon,
inocente e ainda não cheio de dor.
Alguns momentos depois, o homem deu um tapinha no ombro da mulher. O
pai de Simon, Eliana presumiu, sua mente girando loucamente. Garver
Randell. Ela observou Simon ajudar a mulher a se levantar. Seu pai prendeu
uma bandagem de pano em torno de seu torso, cuidadosamente colocou um
bebê agitado dentro dela. A mulher acenou com a cabeça fracamente, em
seguida, deu um beijo na cabeça de Simon e saiu mancando por uma das
passagens estreitas do pátio.
O pai de Simon correu por outra passagem de uma vez, e Simon o seguiu
de perto, sua bolsa de suprimentos amarrada às costas.
Uma vez, antes de desaparecer nas sombras, Simon parou e olhou para trás
por cima do ombro. Uma carranca em seu rosto, um pequeno brilho temível.
Havia ecos do homem que ela amava, o homem que ela havia deixado para
morrer nas mãos de seu carrasco. Pensando nisso, o ar deixou seus pulmões;
ela agarrou a mão de Remy com força e tentou afastar de sua mente a
imagem de Simon, sozinho à mercê de Corien.
Então o jovem Simon se foi, correndo atrás do pai, e o pátio estava vazio –
exceto por uma forma, longa, escura e ágil, como a que ela vira poucos
momentos atrás escorregando por um prédio.
E agora estava aqui, disparando para a passagem que Simon e seu pai
haviam tomado.
Eliana lançou-se em uma corrida febril pela alvenaria de paralelepípedos e
nas sombras, e quando ela emergiu em outro pátio maior, ela viu a besta
agachada para pular – escamosa e bulbosa, mas felina em sua graça. Em
forma de dragão, mas uma versão mutilada e viciosa. Receptáculos
carbonizadas haviam se fundido com seu corpo, mas a criatura pareceu não se
importar. Olhou para as pessoas reunidas nas proximidades. Simon estava lá,
e seu pai, e vários outros, amontoados em torno de um homem caído no chão.
Eles não viram a besta, nem os outros três se aproximando pelo jardim do
pátio. Caudas chicoteando o ar, focinhos longos brilhando com sangue.
Eliana não pensou uma única vez na espada ou nas facas na cintura e no
casaco. Ela estalou os pulsos para despertar seus receptáculos e se jogou na
besta que ela havia seguido. Ela a agarrou, rolou, então bateu as palmas das
mãos contra sua pele e o lançou voando pelo pátio. Bateu na parede com um
grito assustado, depois caiu e não voltou a subir.
O pequeno grupo de pessoas gritou e se espalhou.
Eliana se afastou deles, a presença de Simon como um gancho em seu
coração. As três outras bestas convergiram para ela, com as bocas bem
abertas, as largas patas malformadas batendo no chão. Uma criança montava
uma delas, pressionado contra as costas de seu animal. De olhos cinzentos e
silenciosa, a criança mandou discos giratórios de luz voando para ela como
flechas.
Eliana esquivou-se deles, então atirou de volta na criança ondas cruas de
poder, furiosas e ardentes. Em meros segundos, seus agressores se
transformaram em cinzas. Fragmentos dos receptáculos explodidos
deslizaram pelo chão como faíscas e depois escureceram.
Eliana se levantou, respirando com dificuldade. Ela viu Remy observando
das sombras, pronto para vir em seu auxílio. Ele balançou a cabeça para ela,
sua boca fina. Eliana flexionou as mãos, deu um jeito em seus pensamentos
selvagens, ordenou que seus receptáculos escurecessem.
Mas já era tarde demais? As pessoas no pátio a tinham visto. Corien
também? Rielle?
Ela ficou quieta, buscando uma mudança no ar, mas nenhuma veio. Um
momento se passou, depois dois.
Ela se atreveu a olhar para trás. Simon se fora, assim como seu pai, e Eliana
reprimiu um grito selvagem. Uma dor se apoderou dela, tão forte que pareceu
um soco no peito.
Um homem deu um passo à frente, alto e sombrio. Ele gesticulou para que
os outros se afastassem e os fez correr por uma passagem estreita entre
edifícios de pedra clara. Santos ficavam em cada esquina, observando com
olhos brancos e vazios.
Logo, o homem estava com apenas dois outros – soldados, as mãos nas
espadas e os ombros quadrados de tensão. O homem se aproximou de Eliana
lentamente. Um dos soldados assobiou: — Odo!
O homem acenou de volta, e quando saiu das sombras, Eliana viu seu rosto.
Ele tinha pele castanha, lisa e esticada, cabelo preto oleado em ondas
perfeitas, uma barba preta bem cuidada. Ele parou a alguns passos de
distância, estreitou os olhos escuros e disse: — Quem é você?
Eliana não respondeu, ainda não querendo confiar nele. Era para Simon que
o empirium a estava conduzindo ou para este homem? Odo, o soldado havia
dito. Um nome, talvez, ou uma palavra da Antiga Celdariana que ela não
conhecia?
Ela ergueu o queixo. Precisava que ele visse que ela não tinha medo.
— Eu preciso entrar em Baingarde — disse ela com firmeza. — Pode me
ajudar?
Remy correu e traduziu, e a sobrancelha do homem se ergueu. Eliana não
entendeu sua resposta.
— Que resposta estranha para minha pergunta — Remy traduziu. O homem
olhou para as mãos de Eliana, para a espada de Katell pendurada em seu
cinto.
Antes que Eliana pudesse elaborar uma resposta, Remy deu um passo à
frente. Ele falou em Celdariano Antigo, sua voz dura e clara. Ela não
conhecia cada palavra, mas entendia o suficiente.
— Ela é Eliana — Remy anunciou, — filha da Assassina de Reis e do
Portador da Luz, herdeira do trono de Santa Katell. É a espada de Katell que
ela carrega, e é o sangue de Katell em suas veias. Ela vem de um futuro em
que o mundo é governado pelos anjos do Império Imortal. Ela busca sua mãe
e pretende acabar com esta guerra.
Enquanto ele falava, Eliana olhou fixamente para este homem. Ela tirou a
espada de Katell de sua bainha e a permitiu brilhar. Um frio lento passou por
ela, e seu poder subiu alto contra sua pele, sussurrando ao longo da lâmina da
espada, me conheça.
Então Remy disse uma série de palavras familiares – a mesma frase que ele
recitou repetidamente em voz baixa na câmara de Ludivine pouco antes de
passarem pelos fios de Simon.
O homem diante deles piscou. Atrás dele, seus dois companheiros se
endireitaram, olharam um para o outro em confusão e surpresa.
— O que você disse? — Eliana sussurrou.
— ‘Pela coroa e pelo país, protegemos a verdadeira luz’ — disse Remy
calmamente. — As palavras da Coroa Vermelha. Foi aqui que tudo começou.
— Ele ergueu a voz. — Como entramos no castelo? Você sabe? Você pode
nos ajudar?
Uma batida de silêncio. O homem deu um passo à frente e falou. Remy
traduziu rapidamente. — Meu nome é Odo Laroche e sou amigo do rei.
O olhar do homem mudou-se para Eliana, afiado e perscrutador. — Você se
parece com eles. Seus olhos. Sua boca.
Então ele olhou para seus receptáculos. — Sua mãe, porém, não precisa de
receptáculos. Você precisa?
— Algum dia, talvez, eu não precisarei deles — disse Eliana. — Mas eu
sempre os desejarei.
Odo pareceu satisfeito com a resposta. Sua voz suavizou um pouco.
— E como vou saber que você não é um anjo? — Remy traduziu.
Eliana tirou a adaga da cintura e fez um corte fino no antebraço. Ela
estendeu para ele ver. Os segundos se passaram. A ferida não fechou, uma
linha de cor rubi em sua pele. Ela pensou na indestrutível Eliana de outrora.
Como ela tinha sido imprudente, pulando de telhados sem pensar e levando
golpes como se fossem presentes.
— E ainda assim você não fala celdariano — disse Odo, — e nem mesmo a
língua comum que eu conheço. A sua é uma variante de algum tipo. Eu
reconheço apenas algumas palavras. Que estranho.
— Nada estranho — respondeu Eliana. — Fui ensinada a falar daqui a mil
anos. As coisas mudaram.
Odo ergueu uma sobrancelha. — Claramente. — Ele olhou para Remy. —
E você também é filho de Santa Katell, você que fala pela princesa?
Eliana esperou pela tradução de Remy, então pegou sua mão antes que ele
pudesse responder. — Não. Ele não é. Mas seu nome é Remy, e ele é meu
irmão.
A mão de Remy apertou a dela.
Odo balançou a cabeça, olhando fixamente para os dois. Então se virou e
acenou para que o seguissem.
— Você tem sorte, Alteza — disse enquanto corriam pelo pátio. Seus
companheiros ficaram na retaguarda. — Existem muitas entradas ocultas para
Baingarde pelas quais se pode entrar despercebido, e eu conheço todas elas.
Embora, por favor, não diga isso ao seu pai.
O pai dela. O coração de Eliana vibrou em sua garganta. Ela esperava que o
Portador da Luz, onde quer que estivesse, lutasse longe do castelo e de suas
asas misteriosas de luz.
Eles se moveram rapidamente por uma série de jardins e pátios cobertos de
escombros. A magia elemental riscou o céu noturno com cores. Rugidos
bestiais rolaram pelos telhados, e o chão estremeceu com passos em marcha.
Centenas de pessoas se acotovelavam para entrar nas portas de cada templo
por onde passavam. Eles soluçavam de joelhos, oravam sobre velas
tremeluzentes, reuniram cadeiras e mesas para trancar as portas.
Odo conhecia maneiras de contornar as multidões, maneiras secretas que os
levavam ao subterrâneo. Uma dessas passagens os levou a uma mansão vazia,
silenciosa como uma tumba. Cortinas de seda tremulavam nas janelas
abertas, e a luz das asas de Rielle se derramava dourada sobre o piso de
ladrilhos. Eliana estremeceu. Eles estavam tão perto de Baingarde que sua
língua parecia confusa de poder.
Os companheiros de Odo ficaram de guarda na entrada enquanto o próprio
Odo conduzia Eliana e Remy primeiro para o porão, e depois para outra sala
abaixo dela, escura e úmida. Odo foi até uma mesa no canto, encontrou um
pedaço de papel e uma caneta.
— Eu não posso ir com vocês — ele murmurou, desenhando um mapa. —
Ainda há muitos presos nesta cidade, e o que você deve fazer está além de
qualquer ajuda que eu possa lhe dar.
Ele deu a ela o mapa, então olhou para a espada de Katell. Tão perto do
castelo, a lâmina zumbia com uma luz que Eliana não pôde conter.
— Você diz que procura sua mãe — disse Odo. — Quando você a
encontrar, o que você fará?
Eliana olhou fixamente para ele, fingindo uma calma que não sentia. —
Acho que você sabe a resposta para essa pergunta, Odo Laroche.
Depois que Remy traduziu, um leve e triste sorriso tocou o rosto de Odo, e
Eliana se perguntou como ele conhecia Rielle, o que pensava dela, se eles
eram amigos antes de tudo dar tão terrivelmente errado.
— Sim — disse ele calmamente, — eu sei a resposta.
Então destrancou uma porta de madeira lisa e uma segunda além dela. Ele
se ajoelhou em uma escotilha no chão de pedra. Em algum lugar acima, uma
detonação. As fundações da casa tremeram e poeira choveu do teto.
Odo se levantou. A espada de Katell iluminou seu rosto severo e triste. —
Depressa, Sua Alteza. A cidade caiu. Em breve, seu povo também cairá.
Remy desceu a escotilha e Eliana o seguiu. Havia uma escada de metal,
então uma ligeira queda para um chão plano de terra. Seus receptáculos
iluminaram uma passagem estreita e escura. Ela ouviu as fechaduras se
fecharem acima deles, olhou uma vez para Remy. Ele acenou com a cabeça,
seu rosto sombrio na escuridão, e correram.
44
Audric

“Há manhãs em que acordo e acho que vou conseguir estender a mão e
senti-la ao meu lado. Eu me convenço de que não terei que lutar com
ela. Que ela vai me ver e querer voltar para casa. Então me viro para
encontrar minha cama vazia e me lembro da verdade sobre o que devo
fazer. ‘Não sei como amar você e ser a pessoa que a envia para a
guerra,’ uma vez disse a ela. Se eu soubesse então o que viria para nós.
Se ao menos tivéssemos mais tempo.”
— Diário de Audric Courverie, Rei de Celdaria, datado de 30 de
abril do ano 1000 da segunda era

Dentro do castelo, tudo estava quieto. Soldados e criados jaziam espalhados


pelo chão do hall de entrada, rígidos onde haviam caído, seus rostos sem cor
e suas bocas congeladas em gritos.
Audric passou por eles em silêncio, tentando não pensar onde sua mãe
poderia estar. Quando a deixou, ela estava supervisionando a evacuação em
toda a cidade, conduzindo as pessoas para o sul através dos túneis, outrora
secretos, da montanha.
Mas isso foi horas atrás. Qualquer um dos corpos mortos a seus pés poderia
ser dela. Ou talvez ela estivesse em algum lugar da cidade, seus olhos cegos
voltados para as estrelas.
Audric não olhou para nenhuma forma humana pela qual passou, com
muito medo de ver uma cascata de cabelo ruivo.
— O que é isso? — Kamayin sussurrou. Ela estava perto de um dos pilares
de pedra do salão. Riachos de ouro caíram, pulsando com luz. Estavam por
toda parte, nas paredes e no teto. Flutuando pelas escadas do mezanino do
segundo andar, flutuaram como ramos delicados suspensos na água.
Kamayin, com os olhos arregalados, alcançou o mais próximo. Seus
receptáculos brilharam mais forte quando ela se aproximou.
Miren correu e segurou seu pulso. — É Rielle. Ela está fazendo isso. Não
toque nisso, em nada.
Ela olhou por cima do ombro e Audric viu em seu rosto o mesmo desejo
que sentia. Seu poder doía dentro dele – ele mal conseguia respirar ao redor
disso – e Illumenor cantarolava em sua mão, como se realmente pertencesse
não a ele, mas à luz dourada que fluía pelo palácio.
Audric.
Ele não respondeu à voz de Rielle e não disse nada aos outros. Subiu com
cuidado a grande escadaria, evitando as linhas finas de ouro que mudavam e
sibilavam, cobras cegas em busca de calor. Sloane seguiu atrás dele, então
Kamayin, Miren, Evyline, Fara, Maylis. Sete sombras assustadas rastejando
lentamente por um castelo fervilhando de luz.
À medida que subiam, as veias de luz à deriva ficaram mais brilhantes. O
coração de Audric bateu forte; o medo estava espesso dentro dele. Cada passo
a frente enviava a dúvida por seu corpo.
O que encontrariam no topo? Em sua mente, ele viu Rielle como ela estava
na noite de núpcias. Antes da visão de Corien, antes daquela cena horrível
nos jardins. Ela estava radiante em seus braços enquanto eles giravam pela
pista de dança, seu vestido uma nuvem cintilante e sua felicidade mais livre
do que ele jamais vira.
Ele manteve essa imagem em sua mente enquanto estava diante de um
conjunto de portas de vitral no quarto andar da ala oeste. Situado nas portas,
brilhavam dois sóis em vidro âmbar e laranja, feitos em homenagem a Santa
Katell, cada um erguendo-se sobre um campo verde. Emoldurando as portas
havia um mar de veias douradas abrindo caminho para dentro. O ar vibrou
nos ouvidos de Audric e em seus dentes, uma batida do coração carregada de
raio. Além das portas, havia um amplo terraço que abrangia a largura do
quarto andar do castelo. Era o lugar favorito de seu pai para reuniões
privadas.
Audric fez uma pausa, a mão pairando sobre a trava. Ele não olhou para
seus amigos, mas os sentiu por perto, seus lançamentos estalando com força
ansiosa, suas espadas em punho.
Ele respirou fundo e abriu as portas.
Uma explosão de calor o saudou, mais quente do que qualquer outra que ele
sentira desde a infância, quando forjou Illumenor. Ele empurrou o ar
escaldante e saiu para o terraço. Lágrimas encheram seus olhos. A luz estava
em toda parte, o calor insuportável. Ele ouviu Sloane xingar atrás dele e o
suspiro agudo de Kamayin.
Emaranhados de luz cruzaram o terraço e se espalharam pelo corrimão
como cachoeiras. E do outro lado, olhando para a cidade em direção ao
campo de batalha, estava uma figura luminosa. Cabelo escuro com fios de
ouro, vestido carmesim debruado com fios de luz. Ela olhou para longe deles.
Suas mãos agarraram o corrimão e de seus dedos esticaram as asas que ele
vira do campo de batalha. Elas encheram o céu noturno, muito altas e
próximas para serem vistas por completo.
Ao lado dela estava um homem com um longo casaco preto e uma capa, um
sorriso secreto no rosto pálido.
A raiva explodiu dentro de Audric, uma raiva como nunca havia sentido
antes. Queimou seus dedos; ferveu em seu peito como óleo queimando uma
chama.
O sorriso de Corien se alargou.
— Ela me disse para não matar você — disse ele. — Eu poderia,
facilmente. Todo aquele heroísmo, aquele impressionante trabalho de espada,
os gritos e os cânticos. Inspirador, realmente. Mas ela queria que você a
visse. Ela queria olhar para você uma última vez.
Então Corien deu um passo para o lado, curvando-se graciosamente, e
Audric observou, prendendo a respiração, enquanto Rielle se virava para
enfrentar eles.
No momento em que ele viu seus olhos, seu coração afundou.
Seus olhos brilhavam como ouro. O poder que ela emitia, quente como
ondas de fogo, levantou seu cabelo de seus ombros em mechas escuras, e a
bainha de seu vestido vermelho flutuou em seus tornozelos. Seu olhar caiu
para a barriga dela, ao redor de sua criança, e mais uma vez, ele pensou em
sua filha. Duas rainhas ascenderão. Uma princesa da paz. Olhos escuros,
talvez, como ele, mas com a língua afiada e a boca tímida de Rielle.
Ele encontrou os olhos de Rielle mais uma vez. Sua beleza era chocante, e
ele nunca teve mais medo, não dela, mas por ela. As sombras marcadas em
seu rosto, as novas cavidades em suas bochechas, as linhas ao redor de sua
boca – o que as havia esculpido ali? Pesar ou dor? Sua pele ondulou, ondas
douradas surgindo abaixo dela. Não o teria surpreendido ver a carne dela
descascar, revelando qualquer grande e terrível poder que estava por baixo.
Outra ondulação de ouro, a mudança das ondas em uma tempestade e todos
os músculos de seu rosto se contraíram. Ela balançou um pouco, estendeu a
mão para trás para se apoiar contra a grade.
— Rielle, o que aconteceu? — Audric sussurrou. Ele deu um passo em sua
direção.
A luz serpenteando pelo terraço açoitou seus tornozelos. Ele se esquivou,
assim como Miren e Sloane logo atrás dele, mas Fara e Maylis não foram
rápidas o suficiente. A luz arrebatou suas pernas e as jogou sobre a grade
noite adentro. Elas nem tiveram tempo de gritar.
Kamayin gritou de horror. Evyline uivou o nome de Rielle.
Rielle piscou. Ao seu lado, suas mãos tremiam, e quando ela falou, sua voz
se multiplicou, como se cada rio de luz que envolvia o castelo estivesse
replicando suas palavras.
— O que aconteceu — disse ela, cada sílaba ligeiramente arrastada, — é
que escapei de você. Eu me tornei o que você nunca permitiria que eu fosse.
— E o que é isso? — Ele se atreveu a dar mais um passo em sua direção.
— Diga-me o que você viu. O que o empirium mostrou a você?
Ela inclinou a cabeça, olhando para ele. Seus olhos brilharam. — Tudo.
— Você pode ser mais específica? Tudo é muito para se imaginar.
Um sorriso de escárnio. — Para você.
Ele continuou a se aproximar dela, acenando para os outros de volta.
— Diga a ele — sugeriu Corien, inclinando-se descuidadamente contra o
parapeito a poucos passos de onde Rielle estava. — Eu gostaria de observar
sua mente tentando e não conseguindo compreendê-la.
— Eu vi mundos — disse Rielle, com um sorriso frágil. — Eu os segurei
em minhas mãos e os fiz girar. Eu escalei as estrelas. Eu coloquei meus pés
sobre a borda de todas as coisas. Desfiz um anjo e depois fiz mais cinco mil.
E isso é só o começo.
Audric manteve os olhos em seu rosto, ignorando Corien. — Como são os
mundos?
Ela piscou novamente. A pergunta a surpreendeu. Uma pausa, e então um
lampejo de sentimento em seu rosto, algo além daquela fome selvagem e
fundida.
— O nosso é azul e verde — ela disse calmamente, — com nuvens brancas
girando em torno dele como fitas. E existem outros. Um que é violeta
brilhante e um que é amarelo com tempestades e outros pequenos mundos
que são pouco mais do que rochas.
— Surpreendente. — Ele diminuiu sua abordagem. Um passo, dois
batimentos cardíacos, outro passo. — E o limite de todas as coisas? Você
pode me dizer como é?
— Como uma cachoeira de um milhão de cores — disse ela, sorrindo. Seu
olhar estava em outro lugar. — Cai para sempre e começa de novo.
— Chega — Corien estalou. — É hora de acabar com isso.
Rielle olhou para trás de Audric e um pouco do ouro desbotou de seus
olhos. — Onde está Ludivine?
— Ela se foi — Audric respondeu. — Ela me deixou há algumas semanas.
A testa de Rielle franziu. — Por quê?
— Covardia. — Corien enumerou as palavras em seus dedos. — Egoísmo.
Vergonha. Faça sua escolha.
Rielle olhou para Audric. Seus olhos brilharam, não de luz, mas de
lágrimas. Ela respirou fundo, estremecendo.
— Lu — ela sussurrou.
Encorajado, Audric deu outro passo em direção a ela. — Pense no que você
poderia mostrar a todos nós — disse ele, — o que você poderia nos ensinar.
Coisas que nenhum de nós seria capaz de entender sozinho. Você nos
ultrapassou, é verdade, e algumas pessoas estão com medo e continuarão a
ter. Alguns vão te odiar. Isso também é verdade. Mas a maioria vai te amar,
mesmo aqueles que às vezes temem você.
Ele fez uma pausa e se ajoelhou. Atrás dele, Sloane murmurou um aviso.
Ele a ignorou.
— Eu estava errado em rejeitá-la — disse ele, olhando para o brilho
brilhante do rosto de Rielle. — Eu estava com medo. Você pode entender por
quê?
Ela olhou para ele. Sua boca tremia. Corien veio em sua direção, mas então
o ar ondulou bruscamente, empurrando-o para longe. Enfurecido, ele olhou
para ela de dentro de arbustos de luz.
— Rielle, ele está tentando distrair você — Corien rosnou. — Eu sei que
você pode ver isso. Se você forçar minha mão…
— Toque minha mente e eu vou te matar — disse ela calmamente.
Audric manteve sua voz igualmente firme. — Rielle, eu te fiz uma
pergunta. Por favor, você vai atender?
Ela olhou para ele, mar de ouro em seus olhos. Eles lançam sua própria luz.
— Você estava com medo de mim. — Ela falou devagar, como se estivesse
decifrando um quebra-cabeça. — Eu entendo o porquê.
— Mas eu nunca parei de te amar, nunca — ele disse a ela rapidamente. O
momento era precário; ele tinha que contar tudo a ela antes que o ar entre eles
estalasse. — Nenhuma vez durante estes últimos meses eu parei de amar
você. Nada que você faça pode mudar isso, e eu sei o quanto você pode fazer,
querida. Estou começando a entender, apenas um pouco, e o resto eu quero
entender. Eu quero ouvir tudo sobre os mundos que você viu; eu quero sentar
com você perto do fogo e ouvir você falar sobre como é o sentimento das
estrelas em suas mãos, e se está frio perto daquela cachoeira no limite de
todas as coisas, e qual dos mundos é o seu favorito. O nosso, tão bonito e
verde-azulado, ou talvez aquele tempestuoso, seus céus zangados e amarelos.
Audric observou os olhos dela brilharem, sentiu suas próprias lágrimas
crescerem. — Mas não podemos fazer nada disso se não pararmos primeiro
esta guerra. Nosso povo está lutando para viver quando poderia fazer isso tão
facilmente, se você permitir. Nossos ancestrais não podiam viver juntos, mas
nós podemos. Os santos enganaram os anjos, mas nós não. Me ajude a fazer
isso. Podemos fazer um novo mundo, você e eu. Bem aqui onde nascemos.
Nosso Lar. Podemos torná-lo um lugar onde todos nós, mesmo nossos
inimigos, podemos aprender a viver em paz.
Ele se recusou a olhar para Corien, mas ele podia sentir o grande aumento
de sua raiva.
Por um momento, Rielle pareceu considerar isso. Seu rosto se suavizou.
Cuidadosamente, Audric sorriu para ela. — Venha para casa para mim,
Rielle. Por favor. Sentimos sua falta.
Foi a coisa errada a dizer.
Não houve nenhum aviso. Ela se lançou para ele, rasgando a luz do ar
enquanto se movia. Ele se levantou e, quando eles se chocaram, foi com
espadas. Rielle fez uma do nada, uma arma escaldante de pura luz e poder.
Ela a segurou com as palmas das mãos nuas, olhando para ele por cima da
lâmina larga e crepitante. Audric agarrou Illumenor com as mãos
escorregadias de suor. Seus músculos queimaram e seus joelhos tremeram.
— Eles sentiram minha falta? — A voz de Rielle se quebrou mais uma vez,
centenas de pedaços estrondosos assobiando de fúria. — Todos que tem me
temido? Todos que me disseram para orar e orar e orar, para ignorar minha
fome, para usar meu poder, sim, mas apenas conforme ordenado pela igreja e
pela coroa? Assassina de Reis, eles me chamaram. E você nunca os advertiu.
Em particular, você me amava. Você colocou seu filho em mim. Você se
casou comigo. Mas você os deixou gritar palavrões em nossos portões, me
amaldiçoar e gritar por minha morte. E quando a verdade foi revelada, você
se tornou igual a eles, mesmo jurando que nunca o faria.
Ela se aproximou. Sua boca brilhava com estrelas. — Assassina de Reis.
Monstro. Você mesmo disse. E agora você vê que estava certo nisso, pelo
menos, e errado em tudo o mais. Você nunca pensou que eu poderia me
tornar isso, nunca se deixou imaginar. Isso assustou você. Não a minha
Rielle, você disse a si mesmo. Ela nunca faria isso. Ela é boa, fiel e pura de
coração. E quando vislumbres do meu verdadeiro eu ficaram claros para
você, você se encolheu de mim. Você me tocou com raiva. Você me olhou
como se não me conhecesse. E você nunca conheceu. Você conhecia uma
mentira.
Audric reuniu seu poder enquanto ela falava e agora o usava para empurrar
com força contra ela. Illumenor ficou branca. Rielle tropeçou e se controlou.
Sua espada apagou-se como uma vela, mas quando ela girou de volta, havia
feito outra. Esta estalou com fogo vermelho e, quando se chocou contra
Illumenor, as faíscas queimaram as bochechas e a testa de Audric. Ele gritou
de dor, mas segurou firme a espada. Sombras se moveram pelo rosto de
Rielle. Ele podia ver a forma surpreendente de seu crânio, como brilhava
como bronze aceso.
Os outros correram para ajudar e, em meio a uma névoa de exaustão, ele
observou Rielle lançá-los para longe – Miren, Sloane, Kamayin, Evyline,
cada uma delas presa no terraço com tentáculos sibilantes de poder.
— Rielle, olhe o que você está fazendo! — Seus joelhos cederam. Ele caiu
no chão de pedra. — Essas pessoas são suas amigas!
— São? Alguém é? — Os olhos de Rielle se voltaram para as outras. Sua
língua molhou os lábios. Ela olhou para Sloane. — Eu matei o irmão dela. —
Depois, para Miren. — E o amante dela. — Seus olhos encontraram Evyline.
— As amigas dela, agora há pouco. Elas estão quebrados no chão. — E então
Kamayin. — E metade do povo dela está morto no campo de batalha. E todos
neste palácio estão mortos, assim como seu pai e o meu.
O lamento furioso de dor de Kamayin perfurou o ar. Audric ouviu Miren
lutando contra suas amarras. Cada pedaço de metal no terraço estremeceu de
raiva.
— E estas são minhas amigas? — Rielle sussurrou. — Estas são as pessoas
que me receberão em casa? — Seus olhos ardentes se fixaram em Audric.
Uma terrível tristeza passou por seu rosto, tão rapidamente que ele percebeu
que provavelmente a tinha imaginado. Alguma esperança delirante, enquanto
ele jazia esmagado sob ela, de que ela se arrependesse quando tudo acabasse.
Ela exalou, um hálito quente e trêmulo. — Você não sabe o que é viver
assim — disse, e ele não conseguia ler sua voz, não sabia se ela queria dizer
isso como uma ostentação ou um apelo.
Ele ofegou para respirar. Seu poder o sufocaria. — Diga-me então! Pare
com isso e me diga, diga a todos. Peça-nos ajuda. Deixe-nos ajudá-la!
— É tarde demais, Audric. Já era tarde demais anos atrás, o momento em
que nasci com isso no sangue. Foi também tarde, quando Aryava pronunciou
suas últimas palavras. — Seus olhos brilhavam, mas suas palavras eram frias
como pedras no fundo do mar. — Éramos tolos por não ver isso.
Onde antes seu rosto era suave, agora uma porta se fechou sobre ele, e
Audric soube, enquanto a olhava fixamente, que nunca mais se abriria.
Ela empurrou com força, jogando-o no chão. Illumenor saiu derrapando
pelo terraço. Em algum lugar no mar de luz infinita, Corien estava rindo.
Rielle não segurava mais uma espada. Era o próprio braço dela que
queimava, uma brilhante lança de luz vermelha, e ao mergulhar em direção
ao coração dele, Audric segurou seu amado rosto em seu olhar e sussurrou:
— Rielle, eu te amo.
45
Eliana

“Eu ouço a voz de Aryava em meus sonhos – não a voz que eu conhecia
e amava, mas a voz de seus últimos momentos, quando ele parecia
diferente de si mesmo, suas palavras roucas e distorcidas. "O mundo vai
cair," ele proclamou. “Duas Rainhas ascenderão.” E algo frio e antigo
olhou para mim com seu olhar desbotado – algo que não pertencia a ele.
Naquele momento, fui vista pelo que havia feito, pelo que todos nós
fizemos. O que tínhamos que fazer e faríamos de novo.”
— Dos diários de Santa Katell, escritos nos anos após as Guerras
Angélicais, roubados da Primeira Grande Biblioteca de Quelbani

Baingarde estava cheio de luz, veias grossas e pulsantes que se enredavam


como as raízes de uma árvore gigantesca. Seguiam atrás de Eliana enquanto
ela subia correndo as grandes escadas do castelo. Alcançaram suas pernas,
seus receptáculos, a lâmina da espada de Katell.
Foi um tormento passar por elas. Elas a puxavam como uma canção,
prometendo sua glória e infinita bondade se ela parasse e as tocasse.
Enquanto subiam, apenas Remy, rápido e silencioso ao lado dela, a manteve
avançando. Sentimentos de saudade floresceram em seu peito, mesmo
enquanto seu estômago embrulhou de medo.
Por fim, alcançaram um conjunto de portas de vidro colorido através das
quais derramavam-se rios estonteantes de luz crepitante. Uma das portas foi
deixada aberta.
Eliana ficou a alguns passos de distância, olhando para ela. Seu coração
bateu forte em seus ouvidos. Suas mãos estavam escorregadias de suor. Ela
ouviu vozes levantadas em discussão, o crepitar da magia e alguém rindo.
Uma risada familiar que fez o frio se espalhar por seu corpo.
Remy, ao seu lado, olhou para as portas. Atrás delas resplandecia um brilho
impensável e, naquele brilho, ele parecia menor do que nunca, sua espada
roubada um brinquedo de criança.
— É ele rindo? — Remy olhou para ela, seu rosto pálido sob a capa de
cinzas. — É Corien?
Ela estava apavorada demais para assentir. Pesos batiam contra a pedra –
quatro, em rápida sucessão. Uma mulher gritou de dor selvagem, e então um
homem, gritando palavras que ela não conseguia entender. Algo na voz do
homem era familiar, embora ela nunca tivesse ouvido antes, e de repente o
empirium estava crescendo dentro dela, sem palavras e urgente, empurrando-
a em direção às portas.
Ela poderia ter desafiado. Ela poderia ter corrido, voltado para o porão de
Odo e se escondido no escuro até que os anjos viessem atrás dela.
Em vez disso, se aproximou lentamente das portas e olhou para um terraço
de pedra e fogo. Cordas de luz prendiam quatro pessoas à parede do castelo e
ao chão do terraço, seus membros tortos como asas de insetos espetados.
Olhos arregalados, vozes roucas de gritar, observaram uma mulher pálida
com cabelo escuro selvagem, sua pele pintada de ouro com luz, uma espada
de chamas vermelhas quebrando em suas mãos. Um homem lutou com ela –
pele castanha, cachos escuros e úmidos colados na testa. Sua espada brilhava
com a luz do sol, mas não era nada comparada à própria mulher. Ela era
gloriosa, incandescente e seus braços tremiam quando ela o pressionou contra
o chão.
Eliana olhou para o mundo brilhante terrível além das portas, observando-
os lutar como se através da névoa de um sonho. Nomes vieram a ela, pois é
claro que eram eles: Rielle, a Assassina de Reis, e Audric, o Portador da Luz.
Ela ouviu a dor na voz de Rielle, a fúria e o medo. O desespero de Audric
quando as faíscas da espada de Rielle queimaram seu rosto e braços. Seu
corpo gotejava sangue, suor e fuligem, e sob o vestido carmesim de Rielle
havia uma barriga inchada com uma criança.
Eliana tocou o próprio estômago, como se isso de alguma forma diminuísse
a estranheza de observar aquelas pessoas que a haviam feito.
Mas então a espada de Rielle mudou, unindo-se a seu corpo até que seu
braço direito era uma fita de fogo vermelho. Ela recuou para atacar, mirando
no coração de Audric, e Eliana o observou fechar os olhos, viu seus lábios se
moverem em torno de palavras que ela não conseguia ouvir.
O pânico explodiu dentro dela. Ela correu para o terraço, e o mar de galhos
dourados aglomerando-se no chão se abriu para abrir caminho para ela. O
braço de Rielle brilhou, mas antes que pudesse cair, Eliana se jogou na frente
de Audric, reuniu todas as suas forças e arremessou a espada de Katell.
O braço de Rielle se chocou contra a lâmina de Eliana e as duas lanças de
luz se travaram. Uma vermelha e flamejante, a outra dourada pulsando como
uma manhã brilhante. Cada lâmina estalou, lançando chuvas de faíscas.
Sobre a lança de seu braço, os olhos de Rielle se arregalaram em choque. A
pressão na espada de Eliana diminuiu ligeiramente e seu alívio foi tão grande
que ela se sentiu tonta. Ela começou imediatamente a falar.
— Mãe — ela disse na língua comum, confiando que Remy estava por
perto. — Eu sofri muito para encontrar você. Por favor escute.
Ela esperou, quase sem respirar, e então, sobre o rugido de suas armas e o
zumbido quente da luz derramando sobre a grade do terraço, a voz de Remy
soou, traduzindo suas palavras.
A expressão de Rielle ficou sombria. Ela olhou para Remy, depois de volta
para Eliana, e cuspiu algo maldoso, algo que Remy não teve tempo de
traduzir. Ela empurrou com força a espada de Eliana. O poder subiu pelo
corpo de Rielle em raios de luz, dourando seu vestido vermelho, e por um
momento, Eliana temeu que seus próprios joelhos se dobrassem.
Mas então ela pensou em Remy atrás dela, enfrentando o fim do mundo ao
seu lado, e Simon, de volta no futuro, e Navi e Patrik e Hob, e Ysabet, e
Malik, e todos os outros mortos que escolheram lutar por ela.
Ela plantou os pés firmemente na pedra e extraiu poder dela, do ar que ardia
quente contra sua pele, do céu noturno queimando com magia. A espada de
Katell se tornou uma lança de pura luz e poder estalando em suas palmas.
Branco e dourado, como o brilho das estrelas. Seus receptáculos brilharam
em suas palmas, alimentando a nova espada que ela havia feito. Seus
músculos queimavam e seus olhos lacrimejavam com o calor do fogo, mas
ela se ergueu, segurando firme contra o poder de sua mãe.
Outra onda de surpresa cruzou o rosto de Rielle. Ela olhou maravilhada
para a espada, e Eliana sentiu uma pequena onda de triunfo.
Se houvesse alguma dúvida na mente de Rielle sobre a verdadeira linhagem
de Eliana, talvez não houvesse mais.
Uma presença rastejou perto do limite de sua mente, fervendo como
chamas famintas.
Eliana o encontrou imediatamente – Corien, mas não aquele que ela
conhecia. Olhos pálidos e confusos, mas não havia loucura nele, e até mesmo
sua mente, sondando a dela, parecia mais tranquila.
Ele deu um passo à frente, a boca aberta para falar.
Rielle sacudiu a cabeça para ele. Ele voltou voando contra a grade e caiu no
chão. Não preso lá como os outros, mas simplesmente jogado. Um aviso.
Eliana aproveitou o momento. Pode ser o único que ela receberia. — Você
está com dor — disse ela. — Eu a vejo e entendo.
Atrás dela, Remy começou a traduzir. Eliana olhou para ele. Ele se ajoelhou
ao lado de Audric, ajudando-o a se sentar. O Portador da Luz parecia
abalado, seu rosto queimado pelo fogo de Rielle. Ele capturou os olhos de
Eliana, e em seu olhar ela viu o dela, e no rosto dele ela viu pedaços dela. Sua
mão estava apertada em torno de Remy, e mesmo nesta noite horrível de
violência, o rosto de Remy estava iluminado de alegria, pois aqui estava ele,
ajudando o Portador da Luz a se apoiar nele, segurando a mão de um dos
grandes reis da antiguidade.
— O empirium fala com você — disse Eliana, tirando os olhos de Remy
para encontrar Rielle mais uma vez. — Ele fala comigo também. Ele me diz
para ascender. Diz que é meu e que pertenço a ele. Mas eu pertenço apenas a
mim mesma. E é o mesmo para você.
Rielle a observou, a luz lambendo seu corpo para cima e para baixo. Ela
dificilmente parecia humana, sua beleza hipnotizante e terrível: a curva
acentuada de seu nariz e queixo; a curva desafiadora de sua boca rachada; as
sombras como abismos sob seus olhos; sua pele brilhando translúcida.
Abaixo disso rugiam rios de poder.
A coluna de Eliana coçou de suor. Ela sacudiu sua cabeça para Audric. —
Você não quer fazer isso. Você o ama. Você o ama tanto que, depois de
matá-lo, depois de eu nascer, você vê claramente o que fez e tira a sua própria
vida. Você destrói esta cidade. Você quebra o empirium. Elementais não
podem mais fazer mágica, e os anjos ficam com os olhos negros em seus
corpos humanos, privados de paladar, olfato e visão. Mil anos se passam. O
Império Imortal surge.
Eliana olhou para Corien apenas uma vez — Ele se autodenomina
Imperador. Ele e seus soldados conquistam o mundo. Eles matam e
saqueiam. Eles arrasam templos e assassinam reis. Monstros rastejam para
fora do Abismo e vêm atrás de nós.
Então Eliana pensou em Zahra e, por um momento, não conseguiu falar.
Quando ela o fez, as lágrimas sufocaram sua voz.
— Alguns anjos o desafiam — disse ela, — mas não é o suficiente.
Foi então que Rielle começou a baixar a arma. O fogo vermelho se
extinguiu, revelando seu braço pálido e não queimado. Eliana prendeu a
respiração, contou até três e apagou a própria espada. A fumaça se enrolou
entre elas. A espada de Katell era um cabo e lâmina simples, mais uma vez,
brilhando suavemente com a luz.
Eliana se ajoelhou e Rielle a seguiu, olhando como uma criança extasiada
ouvindo uma história para dormir.
— Uma força de resistência chamada Coroa Vermelha luta contra o
Império, mas eles perdem — Eliana continuou, a tradução de Remy rolando
no ritmo adorável e cadenciado do Velho Celdarian. — Ele me captura. Por
meses, ele me tortura. Ele tenta me forçar a usar meu poder. Eu resisto.
O menor dos sorrisos ergueu os cantos da boca de Rielle. Seus olhos
brilharam e Eliana, assustada, pensou que aquela pequena faísca pudesse ser
orgulho.
— Como você escapou dele? — Perguntou Rielle.
Sua voz era surpreendentemente baixa e singular, quase engolida pelo
zumbido do poder que enchia o terraço. Como ela era jovem; quão jovens
todos eram. Remy, seus olhos sombreados com horrores. O pequeno Simon,
correndo pela cidade com seu pai, cuidando dos feridos da guerra.
— Com a ajuda de uma amiga — disse Eliana por fim. Ela não mencionaria
Ludivine. O próprio nome parecia perigoso. — Mãe, por favor, escute. Veja o
que você fez. Veja tudo o que você está fazendo.
O olhar de Rielle se desviou para Audric. Eliana ficou feliz por não poder
ver seu rosto. A esperança que poderia viver ali, ou o desespero. Ela pegou a
mão de Rielle, esperando que o poder entre elas acendesse. Mas sentiu
apenas uma mão, lisa e pequena, com unhas roídas e um pequeno calo no
polegar direito.
— É um grande fardo — disse, — e um grande presente viver com este
poder que temos. É impossível para os outros entenderem. É difícil suportar
seu medo e sua adoração.
Rielle riu, um som terrivelmente triste. Ela tocou a bochecha de Eliana. —
Pequenina — ela disse, — eu anseio por sua adoração. Eu anseio por seu
medo.
Eliana estremeceu. O apelido do Profeta na voz de sua mãe. — É isso que
você mais deseja?
Uma batida de silêncio se estendeu tenso e denso. Então a expressão de
Rielle mudou, uma rachadura em sua armadura brilhante.
— Não — ela sussurrou.
— O que você quer então? Mais do que tudo?
Os olhos de Rielle brilharam. — Descansar.
— E mais alguma coisa — adivinhou Eliana.
Rielle assentiu. Um sorriso secreto e sonhador apareceu em seu rosto. Ela
parecia desumana, então, como se sua carne fosse cair em breve e deixar para
trás uma criatura que só conhecia a fome.
— Isso — disse Rielle. Ela olhou em volta para a luz que havia feito, o
brilho de suas asas no céu noturno. Ela fechou os olhos e respirou fundo.
Abaixo delas, o castelo se movia com ela, a pedra se contraindo e expandindo
para combinar com seu ritmo.
Lágrimas escorreram pelo rosto de Rielle. Sua voz estava embargada de
sentimento. — Eu também quero mais disso. — E então balançou a cabeça e
tocou a têmpora. Uma risada cansada escapou dela. — Eu não sei ser o que
sou, dividida em duas assim. Uma rainha da luz e uma rainha das trevas. Eu
sou a profecia de Aryava, só que sou apenas uma rainha. Uma rainha com
desejos de duas. Eu não posso suportar isso.
Eliana tocou o rosto da mãe, um instinto no qual ela não pensou muito até
que já tivesse sido feito. Como a pele de Rielle era lisa, quente e fina sob a
palma da mão.
— Você pode — disse ela com firmeza. — E você vai. Todos nós temos
luz e trevas dentro de nós. É isso que significa ser humano.
Atrás de Eliana, Audric respirou fundo. Os olhos de Rielle se voltaram para
ele, depois de volta para Eliana.
— E se eu for mais do que humana? — ela perguntou.
— Então você deve carregar mais luz e mais escuridão também, e eu
também devo. — Eliana tentou sorrir. — Esse é o nosso fardo.
A boca de Rielle tremeu. — Eu não pedi esse fardo. Eu o rejeito. Eu odeio
isso. — Ela olhou para Eliana, implorando. — Não importa aonde eu vá ou o
que faça, nunca estarei livre disso.
E ela estava certa, Eliana sabia. Uma dor horrível e quente apertou sua
garganta. O poder em seu sangue sempre desejaria mais. E ter fome, querer
consumir, desejar poder e poder, desejar se tornar mais do que simplesmente
uma criatura de carne e osso – esses anseios as tornariam inimigas de alguns,
odiadas, temidas e incompreendidas, insultadas e reverenciadas na mesma
respiração. E outros, os espertos o suficiente para ver o verdadeiro alcance de
sua dor, seu medo, seus desejos e esperanças, as explorariam sem remorso.
Eliana não olhou para Corien, mas usou a imagem dele em sua mente como
uma pedra de amolar para sua raiva.
— Você está livre agora — ela disse ferozmente. — Uma escolha está
diante de você, e só você pode fazê-la.
Ela não deu mais detalhes. Ela não precisava. Enquanto Remy traduzia,
Rielle ouviu atentamente e seu rosto se suavizou. Linhas cansadas marcavam
sua boca e olhos.
— Há muito tempo — disse Eliana, — temos sido ferramentas de quem nos
ama e de quem nos odeia. Aqueles que pensam que conhecem nossas mentes,
nossos corações, nossa força. O poder que nos alimenta.
Ela apertou a mão de Rielle, então se inclinou contra ela, sobrancelha a
sobrancelha. Sangue e suor escorreram de suas palmas.
— Levante-se comigo agora — sussurrou Eliana, — e ajude-me a mostrá-
los como somos realmente fortes.
Os olhos de Rielle brilharam em ouro, chamas divinas idênticas. — Que a
luz da Rainha nos guie — disse com voz rouca, com um pequeno sorriso
irônico.
Eliana devolveu. — Nós somos a luz. E nosso fogo vai acordar o mundo.
— E depois? — O olhar de Rielle ficou distante. Ela gesticulou vagamente
para o campo de batalha, para as pessoas que ela havia prendido no chão. Ela
engoliu em seco. — Depois de tudo isso, e daí?
— Uma vida aqui — disse Eliana com firmeza. — Uma vida sozinha, se
quiser, explorando o empirium. Uma vida sem os desejos de outra pessoa
sussurrando em sua mente, roubando sua capacidade de ver com clareza. A
chance de encontrar paz consigo mesmo, com seu poder, com o mundo.
— Eu fiz coisas — Rielle disse, sua voz baixa e grossa, — que não podem
ser esquecidas. Onde quer que eu ande, a raiva me seguirá. E se eu tivesse a
escolha de fazê-las ou não novamente… — seus olhos olharam para algo
distante. — Eu não sei o que eu escolheria.
Eliana não poderia argumentar contra isso. — Você está certa. Você sempre
será lembrada por essas coisas. Mas você também pode ser lembrada por
outras, se quiser.
Eliana apertou as mãos de Rielle e se atreveu a beijar sua bochecha, a pele
quente como fogo e lisa como aço polido.
O olhar cansado de Rielle endureceu e ela ergueu o queixo, como
desafiasse a exaustão para tentar vencê-la.
Apesar do calor da guerra ao redor, Eliana olhou para o rosto manchado de
cinzas de sua mãe e estremeceu, entendendo que ela se ajoelhou na presença
de todas as estrelas que já haviam queimado – e que o mesmo poder
impensável havia construído seus próprios ossos.
Ela encontrou os olhos de Rielle. Seus olhares se encontraram. E então,
como um só, com os batimentos cardíacos eternos do mundo batendo em seu
sangue, Eliana e Rielle se levantaram com as palmas das mãos em chamas e
se viraram para encontrar o destino que haviam escolhido.
46
Rielle

“Suponha que algo tivesse acontecido de forma diferente naquela noite,


quando o Portador da Luz lutou contra a Rainha de Sangue acima de
um campo de batalha de elementais e anjos. Uma palavra ou gesto,
ligeiramente alterado, ou um passo para a direita em vez de para a
esquerda. O destino do mundo, guardado dentro de um único momento
frágil.”
— A noite que abateu o mundo: o que sabemos sobre batalha de
Âme de la Terre de Axel da Costa de Prata, estudioso radical
Astavari, impresso no ano 941 da Terceira Era

Os olhos de Rielle voaram imediatamente para Corien. Ele era uma forma
ainda negra em sua floresta crepitante de luz, e antes que ela pudesse pensar
no que fazer com ele, o que dizer a ele, ele estava sobre ela.
A dor explodiu atrás de seus olhos. Os dedos dele eram flechas negras,
mergulhando em seus pensamentos mais profundos. Eles acertaram em cheio,
e deles espalharam ondas horríveis de dor. Ele não iria matá-la, mas iria
lembrá-la de que poderia.
De mãos e joelhos no chão do terraço, ela engoliu o ar. Sua visão estava
cheia de estrelas. Ela era um tijolo de argila mole, e Corien estava cortando-a
em duas, quatro, oito, uma faca inflexível. Poderia cortar para sempre e nunca
se cansar.
Rielle desabou no chão e bateu com as mãos no crânio. Ela iria voar em
pedaços. Ele a mandaria para longe girando.
A luz pintando o terraço, flutuante e dourada, tremeluziu e depois diminuiu.
Foi apenas por um momento, um balbuciar como um batimento cardíaco que
falhou, mas Kamayin, Miren, Sloane e Evyline se desvencilharam de suas
amarras, lutando para se livrar. O menino, companheiro de Eliana, correu
para se juntar a elas.
Então, todas as luzes que Rielle havia criado, incluindo as asas brilhando no
alto, explodiram em chamas.
— Saia da minha cabeça! — ela gritou. Fogo fresco rugiu alto.
Corien a observou friamente. Havia uma nova raiva em seu rosto que ela
nunca tinha visto antes. — Não. Eu tentei isso. Eu permiti isso. Nunca mais.
Louca de dor, Rielle se levantou e buscou cegamente por seu poder. Ela
empurrou as palmas das mãos para o ar. Raios de ouro estalando voaram pelo
terraço e dispararam noite adentro. Sua pontaria era terrível, seus
pensamentos dispersos. Ela não podia ver, cega pelas lágrimas e pelas ondas
brancas pulsantes da fúria de Corien. Tudo o que ela podia sentir era o fogo
frio de sua raiva.
E ainda, sem piscar, ele a observou.
Ela tentou novamente, lançou seu poder em direção a ele em desespero. A
energia pulsava no terraço, quente e ondulante, como se algo enorme tivesse
caído do céu. Corien assobiou. Sua cabeça girou para a direita. Quando
voltou a olhar para Rielle, pequenas pontadas vermelhas de sangue
mancharam seu rosto. Um momento depois, eles se foram.
— Rielle, estou bem aqui! — Audric se arrastou até ela. Suas feridas não
desapareceram e seu rosto estava vermelho de terror, mas mesmo assim ele
lutou para alcançá-la. — Eu estou bem aqui. Fale comigo. Olhe para mim por
favor!
O mundo estava líquido. Rielle estava debaixo d'água, remando
freneticamente para a superfície. Ela não conseguia respirar, ela não
conseguia encontrar o chão.
Com as lágrimas escorrendo pelo rosto, ela procurou por Eliana.
A garota não se moveu. Ela estava rígida, sua expressão dura de raiva. A
luz brilhou em suas palmas, pronta para ser lançada. Consumada pelo calor, o
ar tremia ao seu redor. Mas se ela golpeasse Corien, isso machucaria Rielle?
Ele iria se voltar contra ela e prender as duas?
As portas de vidro se abriram. Seus sóis pintados se estilhaçaram. Uma
dúzia de soldados angelicais espalhou-se no amplo terraço, seguidos por três
bestas, cinco, oito. Uma caiu do telhado, deslizando para a frente nos ganchos
pretos e brilhantes de suas asas. Outra, reptiliana e de olhos rápidos, uma
criança elemental nas costas, lançava chicotadas de vento de seus
receptáculos enegrecidos pelas cinzas.
— Proteja o rei! — Evyline rugiu, puxando sua espada. Seus braços e
pescoço exibiam tiras de carne queimada. Os outros correram para se juntar a
ela – Miren, seu exército de facas disparando como raios pelo ar; Sloane,
puxando sombras de cada abertura e fenda. Espirais prateadas de água agitada
voaram dos pulsos brilhantes de Kamayin, e Evyline atacou, com os olhos
selvagens, cada golpe de sua espada como a queda de um trovão.
Mas então Eliana se virou e se lançou para a luta. Ao lado dela, os outros
não eram nada, desajeitados e normais. Mesmo tonta de dor, Rielle não
conseguia desviar os olhos da filha. Ela era adorável na batalha, seus braços e
pernas eram rápidos como os de uma dançarina. Seu casaco chicoteou em
torno de suas pernas. Ela estava suja de sangue e poeira, mas o zumbido de
seu poder a pintava resplandecente, como se ela tivesse nascido dos traços do
pincel brilhante de um artista. Suas mãos brilhavam mais intensamente de
todas, envoltas em seus receptáculos – dois pingentes presos
confortavelmente em suas palmas por correntes finas.
Mais bestas caíram do telhado, gritando estupidamente por sangue. Com
um grito agudo e furioso, Eliana girou para enfrentar o mais próximo e o fez
voar. Ele bateu no corrimão de pedra e caiu na escuridão.
Rielle poderia ter observado Eliana por horas. Arcos de luz dispararam pelo
ar, esmagando a armadura dos anjos, mandando-os ruidosamente ao chão.
Mas é claro que eles se levantaram repetidamente e o fariam para sempre, até
que reivindicassem a vitória.
Então Rielle sentiu o ar apertar com malícia, a respiração antes de um grito.
Seu estômago caiu por quilômetros.
Os anjos finalmente implantaram suas mentes, suas armas mais ferozes. A
força bruta de seus pensamentos estalou no ar, procurando alvos. Eles
agarrariam essas mulheres lutadoras uma por uma e as jogariam para a morte,
ou as fariam pular da beira do terraço elas mesmas, ordenariam que elas se
virassem até que nada restasse além da ruína. Eles deixariam Eliana para o
fim e a desmontariam pedaço por pedaço. Rielle respirou fundo, tonta de
medo.
Mas então algo mergulhou do céu. Quase sombras, quase corpos, mas
nenhuma dessas coisas e as duas ao mesmo tempo. Foi como quando Rielle
abriu o Portão – lampejos de beleza, pele macia que brilhava como se tivesse
emergido do mar, breves lampejos de armadura e mantos, vestidos e casacos
cheios de cores. Cabelo claro ondulado, longos cachos escuros esvoaçando
com fitas. Eles eram anjos, cada uma de suas mentes carregando ecos do que
eles já foram. E sem corpos para contê-los, suas memórias se espalharam
livremente.
Observando-os descer, Rielle lutou para se levantar e gritar um aviso. Mas
esses anjos, sem corpo e rugindo, mergulharam para lutar ao lado de Eliana,
protegendo Sloane e Kamayin. Eles teceram através dos anjos atacantes,
empunhando ecos de espadas que eles não seguravam em uma era. Um deles
tinha olhos negros como pedras de rio, cabelos brancos como fios de espuma
do mar, armadura de platina brilhante. Ela mergulhou na frente de Eliana,
desviando de ataques de mente e garras. Seu grito de guerra atingiu os ossos
de Rielle.
Os anjos com armaduras, sólidos nos corpos que Rielle fizera para eles,
amaldiçoaram os recém-chegados. Rielle sentiu a forma específica de sua
fúria: esses traidores lutariam não apenas pelos humanos, mas por essa garota
que viera do futuro para destruir o maior entre eles – Kalmaroth, renascido,
sua salvação e seu campeão.
Um pedaço de Corien pairava na mente de cada um dos anjos, pronto para
o caso de ele precisar comandá-los, e quanto mais fundo ele se afundava nos
pensamentos de Rielle, mais claramente ela podia sentir sua fúria
incandescente. Ela engasgou com isso, sua garganta fechando. Palavrões
saíram de suas bocas em Lissar, em Qaharis. Traidores! Sujos!
Meros segundos se passaram desde o momento em que Rielle se levantou
com Eliana ao seu lado. Ela ergueu a cabeça contra um grande peso – a
pressão de Corien, insistente e cheia de raiva, cada um de seus pensamentos
em torno.
Ele ficou de pé sobre ela, com as mãos cruzadas atrás das costas. Sua voz
estava baixa, e ainda assim seus ouvidos sangraram com isso.
— Depois de tudo que compartilhamos — disse ele, — depois de tudo que
conquistamos, você se afastaria de mim? — Ele olhou para além dela. Seu
rosto se transformou em linhas duras de raiva. — Você deixaria essa garota,
mentirosa, ficar entre nós?
Rielle tentou se levantar, mas a mente de Corien empurrou mais fundo,
prendendo-a. Ela ouviu um grito e girou na pedra, com os olhos turvos, para
ver Eliana cair de joelhos. Seus receptáculos lançaram um poder acelerado
que abriu um caminho carbonizado através do terraço. Ela agarrou a cabeça e
gritou, e quando ela tentou se levantar, algo invisível a atingiu. Sua cabeça
girou e ela caiu com força no chão.
A fúria cresceu dentro de Rielle em uma onda de luz branca. A dor em sua
cabeça ameaçou abrir seu crânio, mas ela o empurrou e se levantou,
encontrou Corien, cortou o ar com o braço e o atirou para longe do terraço.
Ela girou com o coração na garganta. Eliana estava de pé e lutando
novamente, e do outro lado do campo de fogo entre eles, seus olhos se
encontraram, e Rielle nunca havia sentido tanto amor em sua vida.
Corien levantou em instantes. Ela o ouviu se levantar e olhou para ele
enquanto ele voltava mancando para buscá-la. Sangue escorria por sua
têmpora; seu cabelo estava molhado. Ela sentiu uma pontada de remorso, mas
iria derrubá-lo de novo se fosse preciso.
— Você não vai tocá-la — disse a ele uniformemente.
— Ela é uma mentirosa, — ele cuspiu. — Você a deixaria ficar entre nós?
Essa garota que saiu da noite contando histórias destinadas a me machucar?
A escuridão tomou conta de Rielle, arrastando garras de dor em seu rastro
e, quando clareou de seus olhos, ela encontrou o céu envolto em chamas. Ela
estava no chão do terraço, gritando, e cada vez que se virava para se levantar,
para alcançar seu poder, o chão rachava embaixo dela. Espirais de luz voaram
de seus dedos e grandes nós de fogo choveram do céu.
— Rielle, ouça o som da minha voz! Não tenha medo! Eu estou bem aqui!
Mas ela não podia permitir que Audric se aproximasse dela. Ela iria matá-
lo, ou Corien o faria. Ela empurrou com força na direção de sua voz e
esperava que o tivesse mandado para longe o suficiente.
Corien se agachou diante dela, observando enquanto ela lutava para
respirar. Fracamente, ela ouviu Audric, ainda chamando por ela. Fique
comigo, Rielle! Lute com ele!
Ela segurou a cabeça, lutou para olhar turvamente para Corien. A visão dele
era horrível. Seu rosto era monstruoso, pálido como osso, seus olhos de um
branco brilhante que apunhalou os olhos dela como agulhas. De alguma
forma, ele tinha asas. Enormes e negras, eram feitas de mil pássaros que
cuspiam gritos estridentes e ásperos.
Rielle lutou para olhar para Eliana. Lá estava ela, sendo cercada por
dezenas de feras furiosas. Com bicos e garras, eles a rasgaram em pedaços.
As chamas subiram pelo corpo de Miren. Em segundos, ela era cinzas. O
companheiro de Eliana, o menino, se abriu de repente, e do lugar onde sua
cabeça estava havia caído ondas brilhantes de besouros negros.
Rielle fechou os olhos, mas ainda assim os viu morrer, e ainda viu os
besouros se fundirem para se tornarem um reflexo de si mesma. E ela era o
fogo também, e ela era cada uma das bestas rasgando o corpo de sua filha, e
ela era cada pássaro pulando nas costas de Corien.
— Isso é o que você é — disse Corien calmamente, sem piscar. — Esta é a
escuridão que vive dentro de você. Veja, Rielle. Lembre-se. Ame isso, como
eu amo.
Por fim, Rielle encontrou sua voz. Ela não conseguia olhar para ele. Ele não
permitiria. Ele pressionou seu crânio contra o chão.
— Eu me lembro de tudo — ela murmurou, suas lágrimas quentes contra a
pedra áspera. — Eu me lembro de como você drogou meus pensamentos, me
manteve estúpida por semanas. Lembro-me de longos meses em que você
veio até mim em sonhos. Eu disse que queria dormir, e você me manteve
acordada mesmo assim, sussurrando para mim sobre ressurreição.
— Você adora nosso excelente trabalho — disse ele. — Isso traz um prazer
que você nunca sentiu antes, uma alegria que você nunca poderia ter
encontrado com eles. Você sabe disso, Rielle.
Ela piscou com força contra as explosões de dor batendo em seu crânio. Ela
tentou alcançar seu poder, mas seus pensamentos estavam muito dispersos.
Era como agarrar a água apenas com as mãos.
— Deixe-me levantar — ela engasgou.
— Não. Não, até que eu saiba que você caiu em si.
Um soluço de raiva escapou de sua garganta. — Me liberte!
— Você tem medo de ser um monstro — disse ele, seu sussurro crescendo
em seu ouvido. — Isso devora você. Você matou seu pai. Você matou Tal.
Você matou e matou, e matará novamente. A Desfeitora. — Sua voz deslizou
contra ela como uma boca no escuro. — E se for verdade? Somos todos
monstros cheios de perversidades e violência. Pelo menos você e eu
aceitamos isso e temos o poder e a inteligência para fazer algo com isso.
Rielle balançou a cabeça, lutando sob a pressão plana e dura de sua mente.
Uma imagem veio à tona, agarrada rapidamente em meio ao caos que ele
estava fazendo com seus pensamentos: Eliana, caindo de joelhos em agonia.
Eliana, radiante na batalha. Eliana, beijando sua bochecha.
— Eu posso ser um monstro — disse Rielle, com as palavras cheias de dor,
— mas eu não sou mais sua.
O choque de Corien foi tão claro e rápido como se ela o tivesse golpeado.
— Eu te amei — disse ele com voz rouca, — como nunca amei ninguém.
Você sabe disso. Você sente isso toda vez que eu olho para você.
A pedra do terraço estava derretendo sob os dedos de Rielle. Ela rezou para
que isso a sugasse e a fizesse cair. Sujeira e pedrinhas, lançadas pelo vento,
picaram suas bochechas. Uma tempestade estava aumentando. Dez
tempestades. A montanha tremeu sob o castelo, e o castelo tremeu sob seus
pés.
— Olhe para mim.
Ela não olhou. Ela assistiu o mundo ondular de ouro na ponta dos dedos.
Corien agarrou seu queixo, forçando-a a olhar para ele. — Olhe para mim!
— ele rugiu, e então a puxou do chão e capturou sua boca em um beijo
violento.
Seus pensamentos deslizaram rápido e travados dentro dela. Ele encontrou
as cavidades mais profundas de sua mente e se estabeleceu lá. Seus dentes
pegaram seu lábio, mordendo com força. Ele enviou suas visões, memórias.
Sua cama em Northern Reach, as peles tortas, seus corpos nus e corados.
Aquela caverna em Kirvaya onde ela o beijou pela primeira vez. A segurança
quente de seus braços depois que ela fugiu de de Âme la Terre, com o
coração partido e furiosa. Como ele cantou seu nome, pressionou seus lábios
em seu cabelo.
Ela choramingou, agarrando suas mangas. O som o encorajou. Ele
aprofundou o beijo, as mãos apertadas ao redor de seu crânio, e ela podia
senti-lo brincando com seus desejos, alimentando-os. Se ela não respondesse,
ele a forçaria. Se ela não visse a verdade em suas palavras, ele iria refazer
seus olhos para que ela nunca visse nada além do que ele permitia.
E seria fácil, Rielle pensou, permitir isso a Corien. Em troca, ela não teria
que tocar em nada que a machucasse, ou enfrentar as coisas que havia feito,
ou descobrir como viver neste mundo no qual ela não se encaixava bem. Ela
poderia explorar seu poder sem restrições e não se importar com o que deixou
para trás.
Ela tentou puxar de volta para respirar, cambaleando com seus beijos, mas
ele apertou seu domínio sobre ela, puxando-a contra ele. Sua raiva era uma
película de alcatrão no fundo de sua boca. Ela não conseguia respirar; sua
cabeça pulsava com ondas brancas de dor. Seu aperto tornou-se um castigo,
suas unhas cravando-se na carne dela.
— Minha — ele soluçou contra sua boca. — Você é minha, Rielle, e eu sou
seu. Nós nos entendemos. Eu não posso fazer isso sem você. E sem mim,
você estará realmente sozinha. Eles nunca vão aceitar você. Ele nunca vai
aceitar você. Eles vão tecer novas mentiras todos os dias. Eles vão sorrir na
sua cara e, então, quando a porta se fechar, eles vão sussurrar com medo de
você e conspirar contra você, e as crianças vão estremecer ao ouvir o seu
nome. Você sabe disso. Até ele. — Ele a sacudiu com força. — Você sabe
disso.
— Pare — ela engasgou, sua voz presa em sua garganta. Sua mente
arrastou seus pensamentos. — Me solte, por favor!
— Nunca mais, Rielle. Olhe o que você me fez fazer. Eu não queria isso.
— Sua boca se moveu para baixo em seu pescoço, seus dentes arranhando
sua pele. Sua presença era uma névoa em sua mente, espalhando-se
rapidamente. Em breve, isso cobriria tudo. Ela estava indefesa contra ele.
Quando ela alcançou o empirium, seus dedos encontraram lama.
— Minha — Corien murmurou. Sua mão apertou ao redor de sua garganta.
Quando ele voltou para a boca dela, os pássaros gritando em suas costas,
ela captou seu pequeno sorriso de triunfo, o brilho de seus dentes.
Ela encontrou um fraco fio de força e bateu as mãos contra o peito dele.
Imediatamente, seu casaco pegou fogo. Ele se afastou dela, gritando, e o
arrancou. A camisa branca por baixo era um campo vermelho molhado. Finos
cachos de fumaça subiram de sua carne carbonizada.
Seus olhos voaram para ela, brancos de raiva. Ela olhou para trás,
procurando freneticamente por Eliana. As visões de Corien haviam
desaparecido. Sem besouros, sem feras dilacerantes. Lá estava ela, ainda
lutando. Suas mãos em chamas, seus calcanhares lançando faíscas. Feita de
luz, sua filha, e nunca vacilante. Que mulher destemida ela havia criado.
Rielle riu, sufocando-se com as lágrimas de exaustão.
Atrás dela, Corien cuspiu: — Você é uma criatura abominável. — Ele
agarrou uma mecha de seu cabelo e a colocou de pé. Ele cheirava a carne
queimada e ainda assim era bonito, as maçãs do rosto pintadas de fuligem, os
lábios corados de calor e desejo.
— Eu sei disso — disse ele, — e conheço cada canto de seu coração
selvagem, sua capacidade para a crueldade, seu capricho, mas ainda assim
amo você. Eu tomaria você bem aqui se você me deixasse. Medo de você? Eu
te exalto. Lembra do que eu te disse? — Ele riu, apertando seu cabelo. —
Você poderia me queimar mil vezes, e eu ainda iria querer você para mim.
Rielle se esforçou para ouvir os sons da luta de Eliana. Como eram lindos,
como todas as canções que ela já havia conhecido.
— Eu te amei, Corien — disse, sem fôlego de dor, com uma compreensão
nova e confusa. Cada um dos golpes ardentes de Eliana atingiu como um sino
dentro dela, lutando para limpar sua mente cansada. — Eu confiei em você.
Parte de mim sempre pertencerá a você. Mas nem tudo de mim. — Ela
tropeçou no peso de sua língua. — Você viu que eu estava com medo e
trabalhou para me manter assim. Você viu que eu estava sozinha e me
lembrava disso toda vez que pensava em deixá-lo.
Ele riu, acariciando sua bochecha. — Ouça você. Rainha do meu coração.
A dor está fazendo você delirar? Rejeite-os, como você pretendia, e eu vou
tirar tudo que machuca você. Rielle. — Lágrimas em sua voz. — Por favor,
faça isso por mim.
A visão de Rielle pulsou negra. As mãos de Corien eram gentis em sua
garganta, mas ela procurou seu poder e não conseguiu encontrá-lo. Aquele
empurrão, aquela explosão de fogo em suas roupas – ela não conseguiu
encontrar mais nada. Sua mente estava cheia dele, e se restava algo de si
mesma, ela não conseguia ver. Em algum lugar, Audric gritava por ela, mas
não adiantou. Corien estava dentro dela e ele nunca iria embora, não agora.
O mundo girou, jogando-a. Ela cedeu contra o peito sangrando de Corien,
seus olhos se fechando. Que felicidade, deixá-lo abraçá-la. Ele havia
prometido que tiraria a dor, que ela nunca estaria sozinha. Talvez fosse
normal acreditar nele. Estranho, que ela pudesse ter pensado de outra forma.
Corien beijou seu cabelo, suas bochechas. — Meu amor — sussurrou, um
sorriso em sua voz. — Aí está você. Você voltou para mim. Muito bom,
Rielle.
Então, abruptamente, alívio.
Algo frio e cortante caiu entre eles, rompendo as cordas que os prendiam.
Rielle caiu no chão e Corien cambaleou para trás.
Seu olhar furioso disparou para as portas do terraço.
Encolhida no chão, a cabeça latejando como se tivesse sido espancada por
horas, Rielle estremeceu na pedra quente e observou uma forma pálida
invadir o terraço.
Ela respirou fundo.
Era Ludivine, severa e rápida, seu cabelo dourado em um coque apertado,
seu vestido de brocado lilás e ameixa brilhando à luz do poder de Rielle. Ela
marchou em direção a Corien com a espada de Santa Katell em suas mãos.
A garganta de Rielle se apertou de medo repentino. Ela se virou,
procurando desesperadamente por Eliana, mas Eliana estava viva e bem,
girando para lançar luz na espada de Katell. Lâmina se chocou contra a
lâmina e se manteve lá, rugindo, e embora Ludivine não fosse um elemental,
o receptáculo de Katell agora brilhava como se ela fosse. Ela ergueu a espada
bem alto, lançando fortes raios de luz branca.
Corien, com o ódio vívido em seu rosto, encontrou Illumenor onde Audric a
havia deixado cair. Uma dupla crueldade: lutar com a espada do homem cuja
morte ele almejava e usar um receptáculo que não era seu.
Audric gritou de dor. Rielle procurou por entre as chamas, viu apenas
lampejos dele entre as rajadas de luz, e então ela não pôde mais procurar, pois
Corien avançou para Ludivine com um rugido, e eles se encontraram em uma
batalha furiosa. Dervixes denteados de sombra e luz acenderam entre o
receptáculo de Santa Katell e a espada do Portador da Luz, as lâminas
confusas por serem seguradas por anjos.
O rosto de Ludivine estava duro, tenso e pálido. Ela não era uma guerreira,
nunca tinha treinado para isso, e ainda assim ela voou em Corien, seus golpes
brutais.
Mas não era só com espadas que eles lutavam. Rielle percebeu isso
lentamente enquanto os observava girar e colidir. Sua visão ainda latejava, e
sua inteligência lutava para se recompor, mas isso ela sabia: pela primeira vez
desde que ele tinha vindo para ela há muito tempo, Corien não estava em
nenhum lugar em sua mente.
O estranho vazio a fez entrar em pânico. Apoiando-se nos cotovelos, ela
procurou por ele e, em seguida, por Ludivine, enviou-lhes uma pergunta
cautelosa.
Você está aí?
Mas nenhuma resposta veio. Os pensamentos de Rielle eram inteiramente
seus. Isso a assustou, a vastidão disso. Ela havia esquecido como era a
sensação, e a solidão dentro dela cresceu tão ferozmente que ela teve
dificuldade para respirar.
Uma mão tocou suavemente a sua, ancorando-a. Ela o reconheceu
imediatamente, embora já tivesse passado meses desde que sentira o toque de
sua pele.
Mas ela não conseguia olhar para Audric. Ver as queimaduras em seu rosto
a desfaria. Ela o alcançou em silêncio, encontrou seus dedos escorregadios de
sangue. Ele a ajudou a sentar e ela se apoiou com força em seu peito. Ele
estava estável mesmo então, um calor sólido, mesmo com seu pulso batendo
descontroladamente sob seus dedos e sua respiração irregular. Atrás deles,
seus amigos sangraram para protegê-los. A filha deles – sua filha
surpreendente e impossível – lutava contra feras com mãos feitas de fogo.
E diante deles, dois anjos travavam um combate furioso. Espadas roubadas
caindo, o ar ao redor de seus corpos brilhando como prata com poder. Formas
pálidas se formaram em suas costas. A cada golpe, a cada grito de raiva, as
formas se elevavam mais alto, florescendo no ar repleto de magia, até ficarem
duas vezes mais altas que suas contrapartes. Uma forma era Kalmaroth, o
anjo que Corien havia sido. Alto e fumegante, as asas brilhando em suas
costas. Até mesmo a memória dele era magnífica. Sua espada estalou como
um raio.
E lá estava Ludivine, e Rielle sentiu um aperto na garganta ao olhar para
ela. Ela nunca tinha descoberto o nome angelical de Ludivine, tinha sido
gentilmente afastada do assunto sempre que ousava perguntar, e agora ela
desejava ter pressionado por isso, porque essa memória, esse eco de seu
verdadeiro eu, era requintada. Ela parecia ter talvez a idade de Rielle, ou
talvez um pouco mais velha, como Audric, e havia uma qualidade luminosa e
insuportavelmente bela em seu rosto que trouxe lágrimas aos olhos de Rielle,
pois ela sabia que olhava para uma criatura antiga que até agora, depois tudo
o que ela tinha visto e feito, não conseguia entender verdadeiramente. Essa
Ludivine, pálida e de cabelos louros, tranças brilhantes enroladas nas costas
em elaboradas espirais, não era tão alta quanto Corien, mas seus olhos
brilhantes eram ferozes e suas asas enormes eram tão radiantes quanto o sol.
Os olhos ardentes de Rielle se moveram para Ludivine, sua Ludivine. Fios
de cabelo dourado se soltaram do nó. O medo havia despido seu rosto de
todas as cores. Ela olhou rapidamente para Rielle, um brilho intenso em seus
olhos.
E quando seus olhares se encontraram, o mundo sumiu de Rielle, deixando-
a sem peso. Uma onda fria de pavor desceu por seus braços. Audric deve ter
percebido a mudança nela. Ele murmurou uma pergunta urgente. Era Corien?
Ele a estava machucando de novo?
Mas Rielle não suportou responder, pois ela entendia a verdade do que
Ludivine havia feito. Com um olhar, Ludivine contou tudo a ela. Elas
compartilharam anos de olhares conhecedores nas mesas de jantar, anos de
olhares suaves e sonolentos enquanto acordavam nos braços uma da outra, ou
nos de Audric, ou todos juntos. E agora, isso.
O sangue de Rielle rugiu, seu coração uivou em protesto e uma centena de
arrependimentos, mil palavras de pesar, alojados em sua garganta como nós
de fogo. Mas ela não diria nenhuma delas, não poderia poderia dizer
nenhuma delas.
Pois Ludivine havia enfrentado Corien não apenas com a espada, mas com
toda a força que sua mente possuía. Quantas vezes Ludivine confessou que
sua força empalidecia em comparação com a de Corien? E, no entanto, aqui
estava ela, atirando-se nele sem esperança de sobrevivência, atraindo-o para
uma batalha tão feroz que ele abandonou a mente de Rielle para lutar.
Deixando-a livre, por quanto tempo Ludivine pudesse distraí-lo, para fazer
o que devia ser feito. Como se Ludivine estivesse segurando uma porta
fechada pela qual Corien estava arranhando do outro lado, dando a Rielle
tempo para correr. O caminho estava livre e desmoronaria se Rielle não
agisse rapidamente. Corien perceberia o que estava acontecendo e se desfaria
de Ludivine, e o momento estaria perdido.
Instável, Rielle se levantou.
— Fique para trás — ela ordenou, afastando-se de Audric. A culpa era um
veneno em suas veias. Sua boca estava amarga com isso. A cada batida do
coração, ela pensava no altar negro naquela montanha congelada, o anjo que
ela esmagou entre as mãos como argila macia. Um minuto ali, no próximo,
aniquilado.
Eu não posso, ela pensou descontroladamente. Em meio às lágrimas, ela os
observou lutar. Corien e Ludivine, Ludivine e Corien. Não importa como eles
a machucaram, como ela os machucou. Suas mentiras, suas crueldades, como
eles a puxaram entre eles. Perder qualquer um deles iria destruí-la. Perder os
dois era algo que ela não conseguia imaginar. E, no entanto, Ludivine estava
segurando Corien, dando a Rielle uma mente pacífica, finalmente. Uma
mente livre de sussurros.
Uma escolha está diante de você. A voz de sua filha, beijando sua
memória. Só você pode fazer isso.
E você deve. Ludivine conseguiu pronunciar algumas palavras frágeis.
Dentro delas havia um amor forte e arrebatador. Está tudo bem. Não tenha
medo. Ludivine olhou para ela mais uma vez. Havia um peso naquele olhar.
Uma finalidade.
E então, como um golpe rápido na garganta, Ludivine ficou subitamente
frenética, sua voz finalmente falhando. Ela tinha feito tudo o que podia. Sua
força vacilou, desaparecendo. A raiva de Corien floresceu como ondas
negras.
Agora, Rielle, por favor!
Rielle sabia que ouviria essas palavras pelo resto de sua vida – a voz
desgastada de Ludivine, tremendo de medo, implorando a Rielle para matá-
la.
Ela se lembraria de tudo o que aconteceu naqueles segundos antes do fim.
Como ela alcançou Corien e Ludivine, segurou-os nas mãos como se ela
fosse o deus que os criou. Como Corien percebeu tarde demais o que ela
pretendia e gritou para ela parar, sua voz quebrando. Ela se lembraria de
reunir o empirium – cada partícula dele, cada fio cintilante ao seu alcance.
Quão avidamente seu poder respondeu e quão devastadoramente rápido voou
sobre eles.
O mundo flamejou quente e brilhante – a montanha escura, o castelo em
chamas no topo dela. A mente de Rielle, as palmas das mãos, o ar gemendo
como se estivesse pronto para estourar. Tudo ficou branco e depois não havia
mais nada. Uma escuridão silenciosa e crescente. O fogo se foi. As luzes que
fluíam pelo castelo desapareceram, como se nunca tivessem sido feitas.
Rielle caiu de joelhos com força.
Respirou uma vez, duas vezes. Três vezes e uma quarta.
Tremendo, ela olhou para cima.
Manchas coloridas floresceram diante de seus olhos. Ela piscou, o mundo
voltando para ela. As montanhas, a cidade, as estrelas além. O campo de
batalha em algum lugar abaixo. Uma colcha de luz e fogo, formas escuras
perplexas disparando pelo ar.
Rielle ficou olhando, e olhando, e enquanto olhava para os pontos
carbonizados onde Ludivine esteve e onde Corien lutou contra ela, sentiu
algo crescendo dentro dela. Algo selvagem e solitário, como a floresta à
noite, como um mar tomado por tempestades. Não havia nem mesmo cinzas
deixadas para trás, alguma ruína delas que ela pudesse tocar. Seu poder ainda
fervilhava em suas palmas e na cavidade de sua garganta, nas dobras de seus
cotovelos e nos ossos de seus pés. Ele zumbia baixinho, satisfeito.
Alguém atrás dela gritou de surpresa – talvez Miren, talvez Evyline – e
Rielle se virou para ver que todos os anjos e animais no terraço haviam
desaparecido. Um brilho fraco permaneceu no ar onde eles estiveram uma
vez. Ondulações no empirium, ecos de vida súbita e totalmente apagados.
Rielle sabia o que isso significava, olhou estupidamente para sua nova
realidade como se estivesse lendo instruções roteirizadas. Corien se gabou
inúmeras vezes:eu sou infinito. A qualquer momento, sua mente estava
conectada a milhares de outras pessoas – adatrox, crianças elementais
montadas em seus monstros. Capitães angelicais, soldados ansiosos. Anjos
em Avitas; anjos nas profundezas. E então Ludivine, lutando contra ele,
confundiu sua mente com a dele, seus poderes se uniram como lâminas
guerreiras, e agora eles se foram, eles se foram – Rielle matou os dois ao
mesmo tempo, eficiente, como uma flecha em dois corações – e então todas
as mentes em que estavam no momento de suas mortes também foram
destruídas. Não apenas mortos – esmagados em nada, reduzidos a cinzas tão
pequenas que não podiam ser vistas, tocadas ou saboreadas. Milhares deles,
destruídos no momento em que Corien fora, deixando os exércitos angelicais
em ruínas.
A coisa que crescia dentro de Rielle explodiu. Um uivo animal escapou de
sua garganta. Ela estava além do choro. Era um sentimento para o qual não
havia palavras. Sua dor a deixou trêmula e suas mãos eram garras na pedra,
unhas ásperas contra ela. O ar estava azedo com as coisas que ela havia feito.
Braços a levantaram. Audric a ajudou a se sentar contra ele, gentilmente
pegou suas mãos e as segurou contra sua garganta. Ela sentiu a batida de seu
coração contra seus dedos, as curvas suaves e vulneráveis de seu pescoço.
— Estou aqui — disse ele, sua bochecha molhada tocando a dela. — Estou
aqui, estou com você, estou aqui. — As lágrimas tremeram em sua voz, pois
ele amara Ludivine também. Ele tinha estado nos jardins, à mesa do jantar, na
cama quente ao amanhecer.
Rielle se agarrou a ele, lutando contra sua gola, e então um pensamento
terrível lhe ocorreu. Ela olhou freneticamente além de Audric para o terraço
além. Os anjos incorpóreos que lutaram por Eliana flutuaram acima em uma
conferência misteriosa e sussurrada. Viva, mas incerta. O que viria a seguir?
E agora?
Mas Rielle não se importava com eles, nem se importava com Miren, que
tropeçava em seus pés, ou Sloane, se virava com a mão na boca, ou Evyline,
mancando em direção a eles.
— Minha rainha? — Evyline conseguiu, hesitante, ajoelhar-se. Pulo e anos
apagados de seu rosto. — Você está conosco? É você?
Rielle não respondeu. Ela estava olhando além de Evyline para Kamayin,
que estava afundando lentamente no chão. Com os olhos arregalados, ela
olhou para duas formas fracas se movendo em direção uma à outra – um
menino e uma menina, tremeluzindo como sombras lançadas por velas.
Uma palavra se alojou na garganta de Rielle. Eliana?
Ela estendeu a mão para ela, perguntando-se para onde ela iria ou se não
iria a lugar nenhum. Se a mulher chamada Eliana deixaria de existir, agora
que ela havia feito aquilo que viajara tanto para fazer.
Rielle prendeu a respiração trêmula.
Apagaram.
Eles se foram.
47
Audric

“Neste dia, Audric Courverie, o rei de Celdaria, proclama, de acordo


com a Igreja, uma aliança com a nação dos espectros, que estão isentos
de qualquer responsabilidade pelas ações de seus parentes e com quem
o povo de Celdaria espera forjar uma amizade de paz e comunhão.”
— Um decreto real emitido por Audric Courverie, Rei de Celdaria,
datado de 21 de maio do ano 1000 da Segunda Era

Ao amanhecer, Audric abriu os olhos silenciosamente e, antes que estivesse


totalmente acordado, se virou para encontrar Rielle ao lado dele.
Ela dormia com uma camisola fina de linho branco, enrolada de lado para
permitir espaço à barriga. Afastada dele, seu rosto estava escondido. Um
medo se apoderou dele, como sempre acontecia nesses momentos
aterrorizantes ao acordar, de que algo tivesse acontecido com ela durante a
noite, algum anjo vingativo que havia ultrapassado as defesas dos fantasmas.
Ele prendeu a respiração até que viu o peito dela subir e descer. O alívio
surgiu através dele, e ele piscou até que sua visão clareou. Por um momento,
ele traçou as linhas emaranhadas do cabelo escuro espalhado pelo travesseiro.
Então ele se moveu em direção a ela lentamente, passando os braços ao redor
dela. Se ela se virasse para ele, ele veria as linhas cansadas emoldurando sua
boca e esculpidas em sua testa.
Ele encontrou as mãos dela, fechadas em punhos duros contra seu peito. Ela
estava com um calor febril, mas Garver Randell a havia declarado
perfeitamente saudável. Audric envolveu suas mãos suavemente ao redor das
dela, como se pegasse água que estava desesperado para não derramar.
Em seu sono, ela estremeceu, e então ele a sentiu amolecer, a tensão que
mantinha mesmo enquanto sonhava começando a desaparecer. Logo, estava
flexível em seu abraço, quente e trêmula. Ela levou os dedos dele aos lábios e
apertou os braços dele com mais força. As lágrimas caíram em suas mãos, e
ele enterrou o rosto em seu cabelo, sua garganta doendo enquanto ela
chorava. Mesmo com a roupa de cama trocada e os tapetes substituídos, seu
quarto cheirava a fumaça do fogo de Rielle, assim como o resto de
Baingarde, assim como a cidade devastada além dele.
— Você gostaria de café da manhã? — ele sussurrou finalmente. Mal
ousou se mover. As manhãs eram horas muito frágeis. Outro dia significava
mais funerais, mais patrulhas enviadas às Campinas para vasculhar os
destroços em busca de corpos ainda não recuperados, mais orações
sussurradas e maldições murmuradas. Ninguém se atreveu a machucar Rielle
ou mesmo chegar perto o suficiente para tocá-la. Quando caminhavam pelas
ruas em ruínas para visitar os quartos dos curandeiros e prestar homenagem
aos templos, as multidões os seguiram, observando. Alguns desconfiados,
outros pasmos. Alguns até sorriram e se ajoelharam em agradecimento
quando ele passou, Rielle silenciosa e pálida em seu braço. Eles a alcançaram
com mãos piedosas. Eles brilharam nas sombras e sonharam com sua morte.
— Sim — ela disse, sua voz fina. — Café da manhã. Garver me disse que
eu deveria comer. Pela criança, pelo menos.
Audric reconheceu o leve tom de suas palavras pelo que eram. Ele beijou
seu ombro, descoberto onde a camisola tinha caído. Então ergueu o cabelo
dela e beijou seu pescoço. A mão dele roçou a curva de seu quadril, e ela
suspirou um pouco, aliviada, e pressionou sua boca quente em suas mãos.
Isso, ela conhecia. Isso, enquanto ela fazia isso, silenciava todo o resto.
Ele se moveu suavemente, os braços cruzados com força sobre o peito, os
lábios macios contra sua orelha, e ela se agarrou a ele, os dedos cavando em
seus bíceps. Quando ela começou a subir, seu corpo arqueando contra ele e
um grito suave caindo de sua boca, ela o trouxe voando com ela. Mesmo em
sua dor, ela tinha fome, insistia, e naqueles lentos e brilhantes momentos logo
depois, o ar entre eles estava em paz.
Sonolenta, ela beijou seu braço, então entrelaçou seus dedos com os dele e
os trouxe para descansar contra sua barriga. A filha deles chutou contra as
palmas das suas mãos. Ele pensou na garota que lutou por eles no terraço.
Seus olhos escuros cintilantes, o chicote selvagem de suas mãos brilhantes.
Ele segurou o nome dela na boca. As sílabas se tornaram preciosas para ele.
Eliana.
A manhã pintou as janelas de branco. Rielle entrava e saía do sono, e
Audric permanecia acordado, vigilante. Havia uma dor em seu peito que ele
desistiu de tentar acalmar. Se ele desdobrasse os braços ao redor dela, ela
poderia se soltar. Se adormecesse, ele poderia acordar e descobrir que ela
havia partido.
Uma batida suave na porta o alertou da hora. O cansaço caiu pesadamente
em seus ombros.
— Meu rei — anunciou Evyline, com a voz abafada, — os conselhos estão
se reunindo.
Se Audric fechasse os olhos e mantivesse sua mente muito quieta, quase
poderia fingir que nada sobre os longos meses anteriores havia acontecido.
Que fora há dois verões, e Rielle estava ao lado dele, dormindo
pacificamente. Que Corien estava longe e Ludivine dormia em seus quartos
no andar de baixo.
Mas se mantivesse os conselhos esperando por muito tempo, eles passariam
o resto do dia carrancudos e tornariam uma coisa já difícil ainda mais difícil.
Afastar-se do refúgio macio de sua cama era um tormento. Audric se vestiu
em silêncio e, enquanto fechava os botões de sua jaqueta, deu a volta para o
lado dela na cama. A localização do espelho era uma boa desculpa. Ele
mexeu em seus cachos, inspecionou as queimaduras que se curavam em suas
bochechas e mandíbula.
Rielle estava olhando para ele, a camisola amarrotada, o olhar suave.
— Eu te amo — ela disse baixinho, e ele sabia disso – ele viu em seus
olhos e sentiu em seu toque. Ele se curvou para beijá-la, e ela se espreguiçou
com fome por ele, seu aperto desesperado em seu cabelo.
— Minha luz e minha vida — ele murmurou contra sua testa escaldante. —
Eu te amo, sempre te amei e nunca vou parar.
Tinha se tornado um refrão, uma música passada entre eles nos últimos dias
até que as palavras pareciam sulcos desgastados. Seus olhos tremularam
fechados ao seu toque, e quando ele finalmente se afastou, ele vislumbrou
uma luz dourada fraca passando por seu rosto. Uma piscadela astuta iluminou
suas maçãs do rosto, a curva de seus lábios e se foi.
Uma pedra fria caiu entre as costelas de Audric. Ele passou os polegares
pelo rosto dela como se pudesse limpar o que quer que fosse, essa
luminescência que às vezes ganhava vida sob sua pele. Ela o olhou
sonhadora, seus olhos verdes sonolentos de repente girando com correntes
douradas. Abaixo deles, as sombras se estendiam longas e escuras.
— Está acontecendo de novo? — Rielle sussurrou.
Ele acenou com a cabeça, incapaz de falar. Isso vinha acontecendo há
semanas.
Ela pegou a mão dele e beijou os nós dos dedos. Ele a ajudou a ir ao
banheiro, depois a acompanhou de volta à cama e mandou um pajem buscar
comida no andar de baixo. Com os pés balançando acima do chão, ela o
observou juntar seus papéis, sua capa e sua caneta favorita. Quando se
despediu dela com um beijo, ela segurou seu rosto machucado com ternura
nas mãos e, por todo o andar, a doçura de seu toque permaneceu. Mesmo
assim, Audric não conseguia sacudir a corda do pavor que se enrolava
lentamente em seu coração.
Sim, Rielle o amava. Ele sabia disso, mas temia que algum dia, para ela,
não fosse o suficiente.

•••

Os dias passaram rápido demais, cada um repleto de atividades que o


deixaram exausto ao cair da noite.
Ele se reuniu com os conselhos reais, cuidou do conserto das torres de vigia
e da muralha, ajudou a guarda da cidade sobrevivente enquanto limpavam
lentamente as ruas em ruínas. Os odores repulsivos os atraíram para os corpos
enterrados nos escombros, tanto humanos quanto não humanos. Uma fera
estripada com o estômago cheio de moscas. Uma criança espetada no coração
por uma viga quebrada do telhado de seu quarto.
Sobre cada corpo, ele se ajoelhou e orou. Às vezes, as pessoas próximas se
juntavam a ele. Às vezes ficavam parados e olhavam com ressentimento.
Muitos morreram, mas ele sobreviveu.
Ele se obrigou a olhar para a dor deles sem pestanejar. Às vezes, ele
acordava de sonhos encharcados de suor, seus ossos doendo de algum medo
primitivo, e ele sabia com uma certeza cortante que deveria ter morrido
naquela noite. E, no entanto, lá estava ele, tremendo na beira da cama com a
cabeça entre as mãos, vivo e inteiro com apenas algumas cicatrizes e um
corte feio com curativo na perna.
Então Rielle o alcançava, chamava seu nome suavemente, e nos braços dela
ele encontraria uma espécie de consolo até que o pesadelo seguinte o
chamasse.

•••

Frequentemente, Rielle se juntava a ele quando se reunia com seus


conselheiros. As reuniões maiores, com dezenas de pessoas reunidas no Salão
dos Santos, eram uma coisa – Rielle sentava-se silenciosamente em seu trono
ao lado de Audric e oferecia ideias quando necessário. Qual era a condição do
Portão? O que seria necessário para fechá-lo e quando ela seria forte o
suficiente para tentar? Poderia ser fechado novamente, ainda mais forte do
que antes?
Quantos anjos ainda permaneceram no Abismo?
E que outras criaturas um dia podem escapar disso?
Mas as reuniões mais íntimas nas pequenas câmaras de conselho ao redor
do Salão dos Santos – isso Rielle evitara até chegar o dia em que sua
especialidade foi necessária.
Eles se sentaram ao redor de uma grande mesa quadrada de carvalho
polido. Rielle à direita de Audric, e à sua esquerda, Genoveve, pálida e
silenciosa, seu cabelo ruivo preso em cachos perfeitos. Ao lado dela estava
Sloane, sombras sob seus olhos turvos. Ardeline Guillory da Casa da Luz
estava sentado do outro lado de Rielle, seguido por Rafiel Duval do
Firmament, suas grossas tranças pretas amarradas na nuca. A cadeira do
Arconte estava vazia, brilhando com esmalte, e então veio Brydia Florimond
em suas vestes tremeluzentes de umbra e verde suave, sua pele avermelhada
remendada com bandagens.
Então havia Miren, rígida e impassível. Entre ela e Sloane, a cadeira de Tal
estava vazia.
— Recebemos relatórios da Rainha Obritsa — Audric disse, puxando os
papéis. — Ela está pedindo ajuda. Suprimentos, curandeiros, soldados. A
fortaleza de Corien…
— Sim — murmurou Rielle, com o olhar distante. — Northern Reach.
Uma pausa, o silêncio se esticando sobre a mesa. Magister Duval olhou
para suas mãos, sua boca fina.
— Sim — disse categoricamente. — Northern Reach. Quando Corien
morreu, muitos dos anjos também morreram, mas não todos. Todos os anjos
que não estavam ligados a ele no momento exato de sua morte sobreviveram.
Centenas ainda estão presos e abaixo das montanhas em prisões elaboradas.
O exército de Obritsa está divididos entre os esforços de resgate e a revolução
crescente em Genzhar.
— Sim — disse categoricamente. — Northern Reach. Quando Corien
morreu, muitos dos anjos também morreram, mas não todos. Todos os anjos
que não estavam ligados a ele no momento exato de sua morte sobreviveram.
Centenas ainda estão presos e abaixo das montanhas em prisões elaboradas.
O exército de Obritsa está divididos entre os esforços de resgate e a revolução
crescente em Genzhar.
Ele prendeu a respiração e olhou para Rielle. Ela era adorável em sua
quietude. Costas retas em sua cadeira, o queixo ligeiramente levantado, os
ossos delicados de seu rosto marcando linhas nítidas da testa ao queixo. Seus
olhos estavam fixos na mesa imaculada e brilhante, mas Audric sabia que não
era a mesa que ela via.
— Antes de aprovarmos qualquer coisa — disse ele, — precisaremos de
esquemas do local, uma noção da geografia de Northern Reach. Certamente,
existem lugares escondidos no subsolo que os Kirvayans perderam, e
precisamos de qualquer coisa que possa nos dar uma vantagem. A sua
memória está completa o suficiente para criar um mapa, Rielle?
Rielle riu baixinho. — Claro — ela sussurrou, sua voz cheia de segredos.
— Lembro-me de tudo.
Sloane mudou de posição na cadeira. O Magister Florimond olhou
fixamente para a caneta. Genoveve fechou os olhos, apertando a boca.
Mas Miren não fingiu nada. Ela olhou para Rielle, manchas de cor brilhante
em suas bochechas.
Audric engoliu em seco contra a virada de seu estômago. Pela primeira vez,
ele se sentiu feliz com a morte de Ludivine. Ele não suportaria olhar para o
rosto dela e ver a pena que vinha de saber exatamente o que Rielle lembrava.
— Excelente. — Sua voz soou oca para seus próprios ouvidos. Ele
embaralhou os papéis, retirou o relatório oficial de Ilmaire e a carta dobrada
dentro. — E Ilmaire também escreveu. O Portão permanece inalterado, mas
dezenas de peixes mortos e outros animais aquáticos surgiram na costa ao
longo de vários trechos do Mar do Norte. Ele está preocupado que o Portal
possa estar emitindo algo tóxico, talvez substâncias desconhecidas do
Abismo, e que eles estejam afetando nosso ar e água de maneiras que ainda
não examinamos.
Ele fez uma pausa, se recompondo. Quando ele olhou para Rielle, ele se
sentiu entorpecido. — O que o empirium lhe diz? Oferece uma explicação
para isso?
Ele lutou para manter uma leve curiosidade em sua voz, e ainda assim ele
queria cair de joelhos aos pés dela e gritar com ela até que aquele olhar
distante e interior que ela usava se desfizesse. Sacudi-a até que ela estivesse
livre disso.
Rielle distraidamente bateu na borda da mesa. Sua sobrancelha franziu, e
quando ela falou, foi com uma espécie de rejeição irritada, como se ela
estivesse se concentrando em algo muito distante e a pergunta de Audric não
fosse nada além de um incômodo.
— Sim — ela disse calmamente.
Ele esperou uma elaboração. Nenhuma veio. No silêncio, suas bochechas
queimaram. Magister Guillory pigarreou. O que devem pensar dele, de
Rielle, de tudo isso.
— O que diz então? — Audric perguntou a ela. — Você pode… me
desculpe, essa pode ser uma pergunta boba. Você pode purificar o mar de
alguma forma? Prevenir mais devastação?
Rielle suspirou. O som pareceu diminuí-la. Como ela estava pequena e
impossivelmente distante. Ela olhou para ele, reunindo um sorriso. Ele odiava
isso. Ela estava tentando fazê-lo feliz, tentando tranquilizá-lo, mas falhando
completamente.
— Claro que posso — ela murmurou.
E então Miren não aguentou mais.
Ela zombou, inclinando-se para frente. A força explosiva de sua raiva
deixou os botões de latão do casaco de Audric em chamas com o calor.
— Isso é tudo que você vai dizer? — Miren disse, sua voz rouca de tristeza,
seus olhos brilhantes. — Sim e claro? Você poderia dizer outra coisa. Você
pode olhar para nós como se estivéssemos realmente aqui na sua frente. Ou
você pode se desculpar. Você poderia me olhar nos olhos e pedir desculpas.
— Sua voz quebrou, seu queixo quadrado enquanto ela lutava contra as
lágrimas. — Você ao menos lamenta o que fez a todos nós?
Rielle a encarou, piscando, e ela parecia tão estranha naquela cadeira, tão
mal ajustada, que Audric apertou a garganta de medo. Rielle olhou para
Miren como se tentasse entender um tipo desconhecido de erva daninha – não
uma que ela estivesse interessada em puxar, simplesmente uma que ela não
havia notado até que os espinhos espetaram seu tornozelo.
Ele gostaria de poder deixá-los todos, guiar Rielle até o quarto e mantê-la
lá. Alimentá-la e amá-la e esfregar suas costas doloridas até que seu rosto
recuperasse a cor e ela parecesse humana mais uma vez.
— Miren, você vai segurar a língua — disse Genoveve com firmeza. —
Rielle nos salvou, vou lembrá-la. Ela destruiu Corien e levou muitos de seus
soldados com ele.
— Não antes de milhares morrerem. Não antes que nossa cidade estivesse
em ruínas. Casas destruídas e famílias despedaçadas. — Miren pousou as
palmas das mãos na mesa, torcendo a boca. Ela não havia dito o nome de Tal
nem uma vez, mas Audric ouviu o eco dele em cada palavra.
— Diga, Rielle — Miren engasgou. — Diga que você sente muito.
Rielle examinou as mãos e olhou calmamente para Miren. — Se eu te
disser, você vai acreditar em mim?
A sala prendeu a respiração, o silêncio repleto de nervosismo.
E então Miren caiu contra sua cadeira, sua expressão achatada. — Não —
ela disse finalmente. — Eu não vou.
Rielle sorriu um pouco, o sorriso mais triste que Audric já vira. — Eu não
culpo você. Mas eu sinto muito, de verdade. Eu gostaria que pudesse ser
desfeito. Eu desejo que Tal…
Miren ficou de pé, seu machado brilhando em seu quadril. Cada pedaço de
metal na sala vibrou, pronto para voar ao seu comando.
— Não diga o nome dele para mim — disse Miren asperamente. — Nunca.
Ele te amava mais do que tudo, mais do que a mim, e isso não foi o suficiente
para você. Nada que possamos dar a você é o suficiente.
Então Miren se afastou da mesa e saiu furiosa. Um momento depois,
Genoveve apertou a mão de Audric suavemente e se levantou para segui-la.
— Eu sugiro que nos retiremos para almoçar — Audric disse no silêncio
pesado, — e nos encontremos novamente à tarde. Três horas nesta mesma
mesa, por favor.
Enquanto os outros saíam rapidamente da sala, ele juntou seus papéis.
Rielle ficou imóvel ao seu lado. Ele não conseguia olhá-la. Se o fizesse, veria
a verdade em seu rosto, a coisa que mais temia – mais do que os anjos ainda
vagando pelo mundo, mais do que tudo o que se escondia além do Portão e
poderia algum dia emergir dele.
Se olhasse para ela, veria a verdade: Miren estava certa.
Sem encontrar os olhos de Rielle, Audric ofereceu-lhe a mão. Sem
palavras, ela o pegou, seus dedos tão leves contra a palma da mão que o
assustou. Enquanto voltavam escada acima para seus quartos, ele se agarrou
ao som de seus passos, saboreando cada uma de suas respirações difíceis. Sua
barriga, enorme e maravilhosa. Ela praguejou baixinho, com cuidado, como
se tentasse fazer uma piada, e a risada dele pareceu frágil em sua língua.
O almoço os esperava – pão fresco e queijo macio, figos regados com mel,
uma salada de tomates e pepinos. Eles comeram em silêncio e nem uma vez
Rielle largou sua mão. O polegar dela esfregou o dele repetidamente,
deixando para trás suaves manchas de ouro.

•••

Uma noite, Audric deixou Rielle dormindo irregularmente em sua cama e


subiu para o telhado. O ar do verão estava quente e os pássaros noturnos
gritavam das densas florestas que cobriam o Monte Cibelline.
Ele percorreu as longas passagens do quinto andar, cada uma delas
delimitada por uma grade de pedra branca. Encostado em um deles, ele olhou
para o andaime que abraçava a face oeste do castelo. Duas torres desabaram
durante a batalha. Grandes buracos arrancados das paredes por magia
elemental inclinada deixaram Baingarde com uma aparência abatida e frágil.
Ele esfregou a ponta do nariz, afastando a queimação do cansaço atrás de
seus olhos. Com o sono vieram os sonhos. Não queria nada disso.
O movimento mudou no canto do olho, suave e deslizante. Ele assistiu
Atheria voar, sorrindo ao vê-la beliscar morcegos do ar. A visão era bem-
vinda – e cada vez mais rara. Quando Rielle estava acordada, a besta divina
ficava longe de Baingarde.
Ainda mais dor para Rielle carregar.
O ar mudou ao lado dele como o peso de algo se movendo na água fria.
Um arrepio percorreu sua pele. Ele ainda não estava acostumado com o
sentimento de espectros, nem confiava inteiramente neles, embora não
tivessem dado a ele nenhuma razão para não confiar, a não ser o fato de o que
eles eram. Anjos sem corpos – anjos que recusaram a ressurreição.
Dezenas agora guardavam a cidade, centenas patrulhavam as montanhas e
aquele que vagava perto dele agora era seu favorito. Seus ombros relaxaram
um pouco quando ele a reconheceu – o caniço cinza alto de seu corpo, olhos
negros e serenos, membros longos e finos. O cabelo escuro escorria
fracamente até a cintura, mas perto de Rielle, um eco de seu verdadeiro eu
brilhava com poder para todos verem – cabelo branco reluzente, pele negra
rica e armadura de platina brilhante, como ela usava quando entrou pela
primeira vez no Profundo.
— Zahra — Audric disse calorosamente. — Precisa de algo?
O fantasma inclinou a cabeça em saudação. Sua voz era ressonante, como o
badalar de sinos pesados. — Nada além de companhia, meu senhor rei. A
noite está tranquila.
— Estou aliviado em ouvir isso. — Ele olhou para o vasto céu escuro. Às
vezes, ainda o eco fraco de asas queimando ali. Às vezes ele sentia o calor em
seu pescoço, e a memória deixava seu gosto na boca enjoado. Ele fechou os
olhos, mantendo-se firme.
Então Zahra soltou um suspiro. De repente, a sensação dela foi perturbada.
Era uma coisa útil ter amado um anjo. Ele podia ler facilmente o humor dos
fantasmas, e agora ele tinha um exército deles.
— Eu menti — disse Zahra miseravelmente. — Na verdade, eu preciso de
algo. Eu preciso dar a você uma resposta que você está procurando.
Ele virou para encará-la. Mudando e estranho como era, seu perfil obscuro
tinha uma dignidade silenciosa que ele achou imensamente reconfortante. Ele
estava querendo dizer isso a ela.
— Uma resposta a que pergunta? — perguntou.
—Você está se perguntando por quê lutei contra meu próprio povo, porque
jurei lealdade a você e sua família. Você tem se perguntado desde a noite em
que me ajoelhei aos seus pés, e a resposta que demos aos seus conselhos não
o satisfez.
Atordoado em silêncio, por um momento ele só pôde olhar para ela. Uma
raiva crescente o ajudou a encontrar suas palavras. — Você tem lido meus
pensamentos. Isso não fazia parte do nosso acordo.
Zahra se virou com os olhos arregalados. — Não, meu rei. Não quebrei
nenhuma parte do nosso acordo. O tratado entre nós foi bem escrito, e todos
nós que colocamos nossos nomes nele o fizemos porque acreditamos no
potencial dessa nova amizade.
— Então como…
— Meu senhor rei. — A voz de Zahra era afetuosa, e ele se lembrou
imediatamente de sua ausência de idade e sua pequenez em comparação.
Como ela viveu por séculos antes de seu nascimento e passaria por centenas
mais depois de sua morte. — Você é um homem de força excepcional, tanto
de espírito como de coração. Mas sua curiosidade é rápida e muitas vezes
desafia seus esforços para permanecer inescrutável. Suas perguntas vêm de
você como pássaros. Não posso deixar de vê-las em seu rosto, mesmo
aquelas que você decide não perguntar.
Ele ergueu as sobrancelhas. Uma coisa ousada para ela dizer, mas houve
um estranho alívio em se sentir assim. — Diga-me o que você tem a dizer,
então.
Ela hesitou. — É uma longa história. Talvez eu tenha errado em me
aproximar de você agora. É apenas que… oh, meu senhor rei, é uma história
tão selvagem. Estou esperando semanas para te contar. — Ela cintilou, cheia
e ansiosa, mexendo nas pontas do cabelo. — Devemos ir para o seu
escritório, talvez, onde você possa sentar-se confortavelmente.
— Estou confortável aqui. O ar fresco é um bálsamo. Conte-me, Zahra.
Você disse que tem respostas para mim.
— Sim, meu rei. Você se pergunta por que lutamos por você naquela noite,
por que traímos nosso povo para se aliar com o inimigo. Parte da resposta é
simples, e dissemos isso a seus conselhos: não concordamos com a missão de
vingança de Kalmaroth. Nem todo anjo que vivia no Abismo era uma criatura
de violência e raiva. Perdoe-me, meu senhor rei, mas é injusto olhar para
muitos milhões de nós e reduzir todos nós a um sentimento, uma filosofia,
um desejo.
Envergonhado, Audric assentiu. Ele abriu a boca para falar, mas Zahra
ergueu a mão.
— Por favor, se você permitir, devo contar tudo de uma vez. Há muito a
dizer, e você tem reuniões pela manhã, meu senhor rei. Em algum momento,
você precisará dormir.
Ele deu a ela um sorriso irônico. — Suspeito que não durmirei muito depois
que você contar sua história.
— Talvez não. Eu chamo de selvagem. Uma palavra inadequada para esta
história, mas não consigo pensar em outra. — Ela fez uma pausa, respirando
fundo. Um triste e estranho hábito de fantasmas, ela o explicou – não tinham
pulmões, mas ainda sentiam o instinto de respirar. — Você vai se lembrar —
disse ela, — da garota Eliana. Sua filha, meu rei.
A palavra amada o atingiu. Ele não esperava isso. — Lembro-me de muitas
coisas daquela noite, mas dela acima de tudo.
— Nós lutamos na cidade naquela noite antes de virmos até você. Nós
protegemos seu povo dos anjos. Nós os escondemos das feras que os
caçavam.
Ele sabia disso e começou a agradecê-la, como havia feito muitas vezes
antes, mas ela se apressou antes que ele pudesse.
— Enquanto lutávamos, eu a senti — disse Zahra. — Eliana. Ela era
diferente de todos os que viviam no mundo, todos menos o menino ao seu
lado. Os dois eram de outra época. Eu soube imediatamente. Todos nós o
fizemos, e foi isso que nos fez correr até você e os anjos invadindo o castelo
para lutar contra você. Todos nós ansiamos por tocar sua mente, por entender
sua estranheza, mas ordenei aos outros que a protegessem e a seus amigos, e
enquanto eles mergulhavam para protegê-los, apenas eu lia seus
pensamentos. Meu rei…
Ela se ajoelhou, superada. As sombras se agruparam ao seu redor, como se
ela estivesse ajoelhada em águas rasas e escuras.
— Eu vi tudo o que ela tinha visto — ela sussurrou. — Eu vi o mundo em
que ela viveu. Eu vi o Império Imortal e tudo o que ele havia feito. Eu vi as
pessoas que ela amava e aqueles que a magoaram. Eu me vi através dos olhos
dela. Naquela época que viria, em que sua filha havia vivido e lutado, eu era
sua amiga. Eu a amava e ela me amava.
Lentamente, Audric se sentou ao lado dela. Os suaves ventos noturnos
beijaram suas mãos. Acima, Atheria mergulhou para seu jantar, cantando
alegremente.
— Eu senti tudo naquele momento em que minha mente tocou a dela —
disse Zahra com voz rouca. — Eu vi tudo o que ela suportou e o que
aconteceria ao mundo se ela falhasse. Eu morri por ela naquele mundo futuro.
Morri em seus braços e ela chorou no lugar onde eu estive. Meu senhor rei,
isso é o que eu vi. É por isso que lutei por ela e por você, seu pai, e sempre
lutarei. Eu morri por ela e morreria de novo.
Zahra pegou as mãos dele. Seus dedos escuros passaram pelos dele como
fumaça. A pressão fria e flexível de sua proximidade o fez estremecer. Com
ternura, ela tocou sua bochecha. Ternamente, mas ainda assim sentia que
nada jamais seria típico entre eles, não enquanto vivesse.
— Posso contar o resto? — perguntou. — Posso contar a história de sua
filha?
Lágrimas em seus olhos, completamente desfeitas, Audric assentiu, e então
ouviu durante a noite Zahra falar de um futuro que nunca existiria.

•••

Era como se ela o tivesse ouvido, sua filha.


No dia seguinte, Sloane entrou repentinamente em seu escritório, com os
olhos brilhando. Sua excitação convocou as sombras da sala. Elas se
levantaram tremendo de seus cantos e se esticaram nas janelas brilhantes.
Ele sabia antes de Sloane respirar fundo para falar. Uma luz se abriu dentro
dele, aquecendo todos os ossos cansados de seu corpo. Uma única palavra
surgiu, florescendo em seus pensamentos:
Eliana. Eliana. Eliana.
Claro, esse seria o nome dela.
— Mandei chamar Garver — disse Sloane. Ela estava brilhando na porta,
seu sorriso largo uma visão bem-vinda. Os dias tinham sido difíceis, mas essa
alegria era fácil e desesperadamente necessária. — Sua mãe está com ela, e as
enfermeiras. A dor ainda não veio, mas ela insiste que isso vai acontecer
muito em breve. Ela está chamando por você. Ela está nervosa, mas não
tenho certeza se já a vi tão feliz.
Ela esperou que ele se levantasse, mas ele não conseguiu. Seus joelhos
certamente cederiam se tentasse.
Sloane foi misericordiosa. — Levante — ela disse gentilmente, ajudando-o
a se levantar da cadeira. — Está na hora.
48
Rielle

“Dos céus você nasceu, para os céus você retorna


De volta aos lugares altos, a lua distante, a queimadura fria
Mas por que a grande canção chamou você tão cedo, filho das estrelas?
E por que, oh, por que você ouviu?”
— Lamento angelical tradicional

Amanhecia na glória polida de outono e Rielle não conseguia mais segurar.


Hoje era o dia. Ela o diria assim que ele acordasse.
Eliana, plena e feliz, dormia em seu peito. Passaram-se cinco meses desde
que ela chegara ao mundo, estranhamente quieta, olhando para tudo com
aqueles enormes olhos castanhos, e Rielle ainda não se acostumara com o
quão bonita ela era. Sua pele lisa, negra clara como a bochecha de um fulvo;
sua cabeça macia, impossivelmente pequena; o cabelo escuro sedoso girando
em cima dela. Seu peso quente, como ela se encaixava perfeitamente nos
braços de Rielle. Os barulhos suaves de borbulhar que ela fazia enquanto
agitava seus minúsculos pés enrugados, as mãos cerradas como se prontas
para socar.
Rielle beijou a cabeça de Eliana e a deitou cuidadosamente em seu berço.
Enquanto a luz do sol da manhã rastejava pela sala, ela observou a filha
dormir. Às vezes, sua boca se movia, sem sugar nada. Às vezes, suas
pálpebras tremiam – um sonho – e Rielle ria, maravilhada com essa pequena
pessoa dormindo embaixo dela, essa pessoa que ela carregou mês após mês
terrível e glorioso.
Ela não sabia o que esperar quando Garver colocou a criança em seus
braços. Quase vinte horas de trabalho de parto excruciante, uma dor tão
impensável que a puxou para o fundo do próprio coração, onde tudo parecia
dourado e quente, e ela deslizou por uma queda fundida. E então, no final,
uma criança. Audric segurando a mão dela, rindo em meio às lágrimas, e essa
criatura, essa garotinha, olhando para ela. Amassada, minúscula e
absolutamente perfeita, os olhos arregalados e escuros, como se já estivesse
pensando nas perguntas a fazer.
Teria sido mais fácil se Rielle não tivesse sentido nada naquele momento.
Ela poderia ter fingido amor com bastante facilidade. Sem Ludivine para
revelá-la, ela poderia ter enganado a todos. Os espéctros a evitavam, exceto
Zahra, que era irritantemente reverente. Não importa que ela fosse capaz de
matar anjos. A mãe de Eliana deveria ser protegida e amada sem questionar.
Mas um olhar para o rosto de Eliana, e Rielle estava perdida. Entregá-la a
Audric em troca do sono parecia irracionalmente devastador. Ela poderia
passar a tarde toda beijando os dedos de Eliana e se esquecer totalmente de
comer. Ela poderia observá-la por horas e nunca se cansar de ficar olhando.
O amor a deixou tonta, cambaleando, com vertigem. Ela acordava no meio
da noite para confortar Eliana, apoiava as pernas em um sofá e colocava
Eliana nas coxas. Sussurava para ela, a embalava suavemente. Audric
acordaria mais tarde e cumprimentaria Rielle com um beijo em sua testa. Ele
havia parado de comentar sobre seu estado febril, pelo que ela era grata. Ele
colocaria Eliana em seu ombro e caminharia lentamente pelos quartos. Se a
noite estivesse quente o suficiente, ele abriria as janelas, deixaria a brisa
esfriar a pele superaquecida de Rielle. Ela o observava da cama, queimando
silenciosamente, os olhos pesados, e enquanto ele cantava canções sem
sentido para a filha à luz da lua, ela adormecia com o som de sua voz.
Tudo isso, esse amor quente como lágrimas em sua garganta, e ainda assim,
quando Rielle voltou para a cama naquela manhã de outono, ela sentiu a
mesma inquietação e cansaço que sentira nas horas anteriores ao nascimento
de Eliana, e nos dias antes disso, em cada longa semana que se passara desde
a destruição de Corien e Ludivine no terraço.
Enquanto ela se acomodava nos travesseiros, aconteceu novamente, assim
como acontecera apenas uma hora antes. Cada vez que vinha para ela, menos
tempo se passava desde a anterior. Audric dormia pacificamente,
esparramado de costas como sempre, a boca entreaberta, os cachos
despenteados. Rielle se afastou dele e pressionou a boca contra o ombro.
Um calor pulsante floresceu em cada junta, como se algo enterrado
profundamente em sua medula a estivesse separando. Seu poder iluminou
todas as suas veias; ela fechou os olhos e viu a árvore cristalina ofuscante que
era seu corpo e todos os seus caminhos de sangue. A dor era ensurdecedora.
Quando veio, ela não conseguiu ouvir mais nada. Ela fechou os olhos, cerrou
os dentes, prendendo a respiração até a sensação passar. Ela a segurou por
tanto tempo que sua visão começou a manchar, mas não podia soltá-la até
que fosse seguro. Nunca antes em sua vida ela tinha sido capaz de ficar tão
quieta.
Quando abriu os olhos, ofegando silenciosamente por ar, Audric a estava
observando. Ele estendeu a mão para ela, e ela encontrou forças para se
afastar dele. Uma pressão permanecia na ponta dos dedos, nas têmporas, forte
e quente, tênue. Se ele a tocasse, ela explodiria.
— O que eu posso fazer? — Ele estava sentado agora, totalmente acordado.
— Devo mandar buscar comida? Água? Vamos passear nos jardins? A noite
está fria. Isso pode lhe trazer algum alívio.
Rielle olhou para ele, piscando os pontos fora de seus olhos. Há quanto
tempo ela estava sentada lá, encontrando ar novamente? Podiam ter se
passado horas. Seu corpo doía como se ela tivesse se machucado
recentemente, mas quando olhou para seus braços nus, ela viu apenas ouro.
Ele bateu contra seus ossos, enterrando-se em suas unhas.
Queria sair.
— Nada. Você não pode fazer nada, Audric. Não há alívio para mim, e
acho que você sabe disso. — E então ela arriscou juntar as mãos com as dele,
porque não poderia viver mais um segundo sem dizer a ele o que deveria ser
feito. Ela beijou seus pulsos, expirou lentamente contra os nós dos dedos. —
Eu tenho que partir, querido. Eu não posso ficar aqui.
Ele riu um pouco, franzindo a testa, como se ela tivesse contado uma piada
bizarra. — O que você quer dizer com partir? Partir para onde?
Ela fechou os olhos. — Você não é estúpido. Por favor, não finja. Cada
palavra que falo me custa. Eu tenho que ir. Eu não posso…
Ela fez uma pausa, engolindo em seco, como se estivesse tentando não
vomitar. Mas não era uma doença rasgando-a. Era fome, era necessidade, era
cada cicatriz invisível gravada em seus ossos levantando sua voz em
angústia, eram os pequenos fios de ouro em seu sangue enrolando-se como
espirais, prontos para quebrar.
Eu levanto
A voz do empirium, sem palavras e estranha, era gentil. Não havia bondade
ali, nem arrependimento, mas havia algo como reconhecimento. Isso será
difícil, parecia dizer a ela. E ainda assim não era motivo para poupá-la.
Nós levantamos
— Eu sei — ela sussurrou, sua voz áspera. — Dê-me um pouco mais de
tempo. Só preciso de um pouco mais.
— O que está dizendo? — Audric segurou seu rosto com as mãos, seus
olhos brilhantes. — Conte-me. Deixe-me falar sobre isso.
— Ouve tudo o que você diz, Audric, e não se importa. Não é uma pessoa
ou um ser. É tudo que vive. É você, eu e todos nós.
— Vou cuidar disso.
— Não seja ridículo.
— Eu darei tudo. Darei a mim mesmo. Qualquer coisa. — Sua voz
envolveu as lágrimas sufocadas. — Tem que haver alguma coisa. Uma troca
a ser feita.
Rielle tocou sua bochecha. — Escute a si mesmo. Como se o empirium
fosse uma coisa que barganha. Você não está enfrentando um inimigo,
Audric. Isso não é uma negociação. Ele está tentando me ajudar. Eu evolui
para além deste corpo. Estou com dor e isso está oferecendo alívio. Eu só
tenho que largar a corda e cair.
— Por favor — ele sussurrou repetidamente. Olhos fechados, boca apertada
contra a palma da mão. — Por favor, não, isso não.
Quanto mais ela olhava para ele, menos força tinha para permanecer sólida,
para sentar-se na cama.
— Eu já disse a você o que os últimos meses fizeram comigo — ela
sussurrou, com os olhos secos, e ainda assim ela mal conseguia falar, o peito
em nós. — Algo despertou em mim e não consigo parar com isso. Eu
empurrei meu poder além de seus limites, e agora ele continua correndo, me
arrastando atrás dele. Você tem que me deixar ir.
— Não, eu não tenho. Eu não posso. Essa não é a única maneira, Rielle.
— É a única maneira. Olhe para mim. Eu não pertenço mais aqui. Talvez eu
nunca tenha pertencido. Costumávamos ter essa conversa o tempo todo. Nada
disso deve surpreendê-lo.
— Sim, tivemos aquela conversa, e todas as vezes, eu disse que é claro que
você pertence aqui. Esta é sua casa, sua família. Ainda acho isso, mesmo
depois de tudo o que aconteceu. Seu poder não é você completamente. É
apenas uma parte.
Ela sorriu com ternura para ele. — Mesmo se eu não tivesse nenhum poder,
você me amaria assim como ama agora.
— Eu amaria. Eu amaria. — Ele desviou o olhar, olhando ferozmente para
a cama. — Vamos encontrar curandeiros – vamos vasculhar o mundo por
eles. Estudiosos do empirium, os melhores cirurgiões de Mazabat.
— Audric...
— E os espéctros – suas mentes angelicais são espetaculares. Eles nos
ajudarão a projetar algo para ajudá-la, algo para suprimir a dor e acalmar seu
poder…
— Audric, olhe para mim.
Pequenos movimentos de cabeça, incrédulo. Ele não iria aceitar e não iria
olhar para ela. Ele passou a mão pelo cabelo e fez um som de asfixia.
— Por favor, não faça isso — disse ele com voz rouca. Ele pressionou sua
testa contra a dela. — Não nos deixe.
— Eu mal consigo me segurar — ela disse, acariciando seus cabelos. — Eu
luto contra isso todos os dias, essa virada dentro de mim. Algum dia, vou
perder o controle, e então o que acontecerá com todos vocês? Você não
consegue ver o perigo? — Como era querido, o deslizamento suave de seus
cachos por entre seus dedos. Cada carícia de seus dedos dourava os fios
escuros de ouro.
— Você é mais forte do que imagina.
— E, no entanto, que tipo de vida é lutar todos os os dias contra si mesmo?
— Eu vou te ajudar — ele sussurrou, os olhos fechados com força.
— Você me ajudou. Você me acolheu de volta em sua vida. Você defende
minha bondade e honra cada vez que entra em um templo e alguém grita na
sua cara, me denunciando. Você me deu Eliana.
— E você iria deixá-la de qualquer maneira? Você a deixaria crescer sem te
conhecer?
Uma facada em seu coração. Ela se separou dele. — Você acha que não
pensei em tudo isso cem vezes?
Ele baixou o olhar e enxugou o rosto. Por fim, o calor subiu por trás de seus
olhos. Ela disse a si mesma que não iria chorar, mas ele parecia tão
envergonhado, caído na cama. Com o peito nu, as lágrimas caindo em suas
mãos.
— Eu sei que você pensou nisso — ele sussurrou. — Eu vi tudo isso mudar
em seus olhos. Eu disse a mim mesmo que era apenas minha imaginação.
Todas as manhãs eu acordo pensando que será o dia em que você me dirá o
que acabou de dizer.
— E cada dia que vivo é mais um dia de dor que mal posso suportar. Mais
um dia em que você e Eliana e todos que lutamos tanto para salvar estão em
perigo. Olhe para mim.
Ela ergueu o queixo dele, viu o brilho intenso de seus olhos. Ela deu um
beijo forte em sua boca.
— Eu devo partir — ela disse a ele, cada palavra uma luta. — Você sabe
disso. Você me viu sofrendo.
Seu rosto era uma tapeçaria de desespero. — Eu vi.
— Você viu as mudanças em mim. As luzes sob minha pele, como eu
queimo mais quente do que a febre.
— Você chora dormindo algumas noites — disse ele, tocando a bochecha
dela com as costas dos dedos. — Alguns dias, você fica longe de mim, de
todos nós. Eu me pergunto para onde você foi.
— E ainda assim você me pediria para ficar?
Desamparado, ele balançou a cabeça. — Eu me odeio por isso.
Ela ouviu em sua voz o ódio e a culpa. O quarto deles, suave pela manhã,
brilhava com suas lágrimas. Ela beijou suas belas mãos, cada uma áspera
com novas cicatrizes. Ela gostaria de ter estado lá para ver Atheria carregá-lo
para dentro do furacão. Da costa, Sloane disse a ela, ele deslumbrou. Uma
orbe de luz, correndo sem medo para a escuridão.
— Você não merece ódio — ela sussurrou. — Eliana vai aprender com
você como se amar. Seja gentil com seu próprio coração, mesmo que apenas
por ela.
— Rielle — disse, a palavra estilhaçando-se contra a pele dela, — não sei
como viver em um mundo sem você nele.
— Você vai aprender.
— Mas o Portão — ele disse desesperadamente. — Quem vai fechar, se
você se for?
— Eu não deixaria isso para você enfrentar sozinho, Audric, eu…
Ela fechou os olhos, afastando-se ligeiramente. A dor estava aumentando
mais uma vez, com dentes afiados e agitados. O ouro mordeu o interior de
seus olhos e uma grande força puxou suas palmas, as solas dos pés, o topo de
seu crânio, a parte inferior de suas costas. Os punhos afundaram em seus
músculos e se retorceram, esmagando osso contra osso. Logo ela se separaria,
e que alívio seria. Ela pensou no mar negro sem fim, no céu cheio de estrelas,
na garotinha estendendo a mão.
Venha comigo, a garota havia dito. Estamos nos levantando, você e eu. Há
muito que fazer.
— Fique comigo. — Com ternura, Audric agarrou suas mãos. Suas palmas
estavam úmidas, sua voz trêmula de preocupação. — Estou bem aqui, Rielle.
Ouça minha voz. Por favor, Deus, fique comigo. Por favor, minha querida.
O suor escorria por suas costas, acumulando-se sob os seios. Se ela
mergulhasse na água congelada, ela derreteria todos os icebergs. Se ela saísse
da cama, se seus dedos tocassem o chão, ela cairia para sempre.
— Estou aqui — sussurrou fracamente, uma vez que ela pôde falar, e ele a
abraçou, quase sem respirar, até que esta última explosão de agonia passou –
a roupa de cama encharcada, sua pele em chamas como cobre polido,
lágrimas escorrendo como rios por suas bochechas. Ela se voltou para o
corpo de Audric, escondeu o rosto na curva de seu pescoço. Lentamente, com
cuidado, ele acariciou seus cabelos úmidos, como se ela fosse um pássaro
soprado de vidro ou uma besta que ele não ousava provocar.
— Amo você, Rielle — sussurrou ele, tremendo. — Eu sempre te amei e
nunca vou parar.
Eu gostaria que você parasse, ela queria dizer a ele. Seria mais fácil para
você se parasse de me amar. Mas não havia necessidade de esfaquear um
homem moribundo, e sua voz já a estava acalmando, induzindo-a a uma
calmaria tonta – o nome dela em seus lábios, sua voz rasgada em pedaços.
Ela caiu em um sono vermelho e superficial.

•••
Rielle esperou o suficiente para que Audric suspeitasse que ela havia mudado
de ideia. Todas as manhãs, ele acordava para encontrá-la ainda ao lado dele, e
a esperança se abriu em seu rosto, iluminando seus olhos quentes e suaves.
Ele começou a dormir mais profundamente, não acordando mais toda vez que
ela se mexia.
Então veio uma noite fria. Um vento forte bateu com os dedos nas janelas.
Nuvens negras contra as estrelas, a lua nova e escura.
Rielle acordou de um sono que mal merecia uma palavra. Ondas de luz
escaldante pulsaram atrás de seus olhos. Cada explosão surda arrancava outro
pedaço de seu crânio.
Ela prendeu a respiração, ouvindo. Eliana dormia em seu berço, punhos
cerrados na boca, respirações suaves. Quando Rielle saiu da cama, Audric
não acordou. As sombras escureceram a pele macia sob seus olhos. Ele
negaria, mas agora ela era apenas uma fonte de dor e preocupação sem fim
para ele.
Ela correu silenciosamente pela sala em seus pés descalços. Na porta, teve
que parar por um momento, colocar a mão sobre a boca até que o soluço
crescendo em sua garganta cessasse. Ela queria desesperadamente beijá-lo
mais uma vez, inclinar a cabeça sobre o corpo minúsculo e quente de Eliana e
pressionar o rosto nas bochechas redondas de sua filha.
Mas não podia arriscar acordá-los. Ela saiu para o corredor e fechou a porta
atrás dela. Nunca um som teve tanto terror e alívio de estilhaçar os ossos.
Com os joelhos tremendo, ela se apoiou com força na porta e ergueu a mão
para silenciar Evyline antes que a mulher pudesse falar.
— Mande os outros embora — murmurou Rielle, olhando para o chão. Ela
achou difícil olhar para Evyline, que pedira muitas vezes a Rielle permissão
para substituir Maylis e Fara. Mas Rielle não permitiria. Ela queria olhar para
os dois lugares vazios em sua velha guarda. Ela queria sentir o remorso que
isso trazia, deixá-lo ficar espinhoso em seu estômago.
Evyline obedeceu imediatamente. Logo estavam sozinhas.
— O que é, minha rainha? — Evyline colocou a mão larga nas costas de
Rielle. — É um anjo?
Era impensável, que Evyline pudesse perdoá-la, mas quando Rielle
finalmente encontrou coragem para olhar para ela, viu apenas amor nos olhos
cansados da mulher mais velha.
— Estou indo embora — Rielle sussurrou. — Eu preciso que você me
ajude a alcançar as montanhas. Não posso estar na cidade quando isso
acontecer.
Os olhos de Evyline se arregalaram. Rielle a observou engolir seus
protestos, escurecendo seu rosto ao aceitar essa ordem.
— Muito bem, minha rainha. — Evyline ofereceu o braço e Rielle o pegou
com gratidão. — Onde devemos ir?
— Monte Taléa. No sopé, perto da passagem. — Rielle fechou os olhos
com força. O poder ondulou na ponta de seus dedos, empurrando com força
as camadas de suas unhas. As pontas de seu cabelo brilharam brancas.
O rosto de Evyline estava tenso de preocupação enquanto eles corriam pelo
corredor. — Teremos tempo de chegar lá? Minha rainha, me perdoe, mas seu
rosto… está cheio de luz. Estrelas abaixo das maçãs do rosto.
— Eu sei. — Na escada, elas pararam. Rielle se encostou na parede. Sua
mente primeiro foi para Ludivine, um erro horrível que a deixou sem fôlego
de tristeza. Ela empurrou a memória de Ludivine, e de Corien logo atrás dela,
e em vez disso formou a imagem de um anjo diferente em sua mente.
Zahra? Por favor, rápido.
Um momento depois, o espectro emergiu da parede próxima, seu cabelo
caindo atrás dela em correntes brancas. Evyline se encolheu de surpresa e
cuspiu uma maldição.
Zahra ajoelhou-se imediatamente. — O que eu posso fazer, minha rainha?
— Duas coisas — disse Rielle com firmeza. — Eu preciso que você nos
proteja enquanto caminhamos pela cidade. Ninguém pode nos ver. Mantenha-
os longe de mim.
— Sim, minha rainha.
— E eu preciso que você garanta que Audric não acorde, não até que eu
esteja longe o suficiente de Baingarde para que mesmo se ele corresse a todo
vapor, mesmo se ele corresse para mim em Atheria, ele não poderia me
impedir. — Ela cerrou os dentes, piscou os pontos brilhantes de seus olhos.
— Você entende por que estou fazendo isso.
O rosto de Zahra exibia uma grande tristeza. — Claro, minha rainha.
— E você pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo? Não confio em mais
ninguém, Zahra. Eu preciso de você e apenas você.
— Eu posso, e vou. — Uma onda de poder passou pelo rosto de Zahra,
como se a corrente de sua mente tivesse mudado de curso. Sua voz baixou.
— O rei não vai acordar até que você alcance as Planícies, minha rainha.
— Bom. — Respirando fundo, Rielle olhou para o túnel escuro da escada.
Cada passo parecia uma montanha. Agulhas de luz penetraram em seus
músculos. Quando ela se moveu, a dor arranhou seu interior, como se cada
osso tivesse crescido cerdas pretas e afiadas.
— Tenho muito a lhe contar enquanto caminhamos — disse ela, e
cambaleou em direção à escada antes que Evyline pudesse alcançá-la. —
Ouça com atenção, pois o que eu fizer esta noite afetará todos os que vivem.
Ela teve que parar de falar, então, até que elas tivessem descido as escadas
sem fim e deixado o castelo para trás. Evyline a levou até uma porta perto da
cozinha e saíram para os jardins. Rielle olhou apenas uma vez para as
piscinas de observação e, quando examinou a escuridão, o empirium
mostrou-lhe uma vaga lembrança, gravada em ouro – ela mesma correndo
rápido pelas pedras escorregadias, Ludivine seguindo firmemente atrás,
Audric olhando nervosamente da grama.
Ela chorou então, enquanto seu sangue rugia para ela andar mais rápido.
Ela estava quase lá; estava chegando ao fim. Em breve, não sentiria dor e não
haveria razão para se agarrar ao que restava de seu corpo desgastado. Sua
mandíbula doeu tão brutalmente que era difícil falar. Algumas noites,
pensava que iria acordar e descobrir que tinha trincado os dentes durante o
sono.
Apenas quando estavam na cidade ela recuperou a voz.
— Vou morrer esta noite — disse ela, — e quando isso acontecer, vou fazer
com que o empirium em Avitas caia no sono. Ele ficará adormecido por anos.
As pessoas ficarão assustadas quando acordarem e descobrirem que seu
poder foi silenciado. Sinto muito por isso, mas deve ser feito.
— Por quê? — Evyline sussurrou, a palavra fina com horror.
— Para fechar o Portão — Zahra disse baixinho. — E para impedir mais
guerra antes que ela comece.
Evyline ficou olhando. — Mais guerra? Mas nós lutamos uma guerra e a
vencemos.
— Mas a revolução está em chamas em Kirvaya entre aqueles com magia
elemental e aqueles sem, e se não for controlada, ela se espalhará. — As
palavras de Zahra vieram rápidas e suaves. — Os marques vão ouvir falar da
Eliana que veio do futuro até nós e vão experimentar cantos de magia que
não devem tocar. A princesa estará em perigo. Muitos anjos ainda vivem, e
sua dor por Kalmaroth é terrível. Eles virão atrás de você novamente e
novamente. Eles encontrarão uma maneira de chamar outros do Abismo, a
menos que o Portão esteja selado.
Evyline empalideceu. — Eu entendo.
Rielle forçou os olhos a abrirem enquanto o mundo ofuscante os instava a
fechar. Cada prédio que eles passaram queimando com mil fogos brancos.
Cada passo enviou ondas de poder ondulando pelo solo.
— Nenhum novo anjo será capaz de possuir corpos humanos — ela
administrou, lutando para formar palavras – dentes contra língua, língua
contra garganta. — Aqueles sem corpos continuarão assim, e quaisquer
sobreviventes que eu ressuscitei verão o poder de suas mentes diminuído.
Receptáculos elementares ficarão escuros. Marques…— Ela hesitou,
pensando no pequeno Simon. Como ele estava sóbrio e quieto, de prontidão
enquanto seu pai trazia Eliana ao mundo. — Os marques não vão mais
conseguir criar fios. Deixarei apenas três coisas intactas: as bestas divinas, os
espectro leais à coroa e Eliana.
Foi doloroso dizer o nome de Eliana, como se cada sílaba fosse um golpe
em suas costelas. Seu coração deu uma guinada de volta em direção a
Baingarde, em direção às salas silenciosas que continham os dois pedaços
sobreviventes de seu coração.
— A princesa manterá todo o seu poder? — Evyline perguntou.
Rielle assentiu. — Algum dia, o empirium voltará. Algo acontecerá para
despertá-lo. Outro conflito, talvez um novo inimigo. Posso ver alguns
vislumbres disso, mas o empirium não me mostrou mais nada. O Portão é
uma porta para o Abismo, e o Abismo é uma porta para todos os mundos que
existem. Algo virá. E quando isso acontecer e o empirium voltar, o mundo
vai buscar a orientação de Eliana.
Suas lágrimas cresciam selvagemente. — Eu gostaria de não ter que pedir
isso a ela. Eu gostaria de não estar deixando Audric para enfrentar um mundo
sofrendo pela perda de sua magia. Mas não conheço outra maneira de
protegê-los nos anos difíceis que virão, e em breve não estarei mais aqui para
fazer isso sozinha.
— E os templos, minha rainha? — Evyline perguntou densamente. — O
que iremos adorar, se a magia se for?
— Nada o impedirá de orar ao sol e às sombras. E se as orações antigas se
tornarem inadequadas, vocês escreverão novas.
Uma nova agonia a fez cair no chão. Rachaduras correram pela estrada de
paralelepípedos, estilhaçando centenas de pedras cortadas com precisão. Ela
tremia, ofegante, e quando olhou para cima, não viu uma estrada, não uma
cidade, mas um vasto mar raso. Em seu horizonte, uma garota de branco.
Evyline tentou ajudá-la a se levantar, mas só conseguiu colocá-la de
joelhos. A terra puxou o pescoço de Rielle, suas gavinhas teimosas e
famintas. Lutar era como lutar contra a forte pressão do oceano. Se ela
quisesse chegar às montanhas a tempo, precisaria de ajuda. Outro corpo para
ajudá-la a se levantar e andar, alguém em quem ela pudesse confiar.
A voz de Zahra veio até ela, distante e fraca. — Minha rainha, estamos
perto da casa de Garver Randell.
— Traga-o para mim — ela resmungou, e cada palavra tinha gosto de
relâmpago. — Diga a ele para se apressar.
Ele veio imediatamente, ficou quieto por um momento, depois se ajoelhou
ao lado dela. Rielle semicerrou os olhos para ele através de uma parede
branca de dor. Seu rosto enrugado, seus olhos brilhantes e penetrantes.
— Você parece insistir no teatral — observou ele ironicamente, e com a
ajuda de Evyline, ambos se esforçando, ele conseguiu colocar Rielle de pé.
Ela sentiu a pressão suave de uma mão gasta contra sua testa.
— Aonde quer que você vá, criança — ele disse suavemente, — espero que
você encontre paz lá.
Paz. Ela riu, perplexa com o pensamento. Ela teria permissão para tal coisa,
mesmo na morte?
não morte
O empirium a repreendeu, uma correção perplexa. Por que ela pensaria que
qualquer coisa era tão simples quanto uma única morte humana?
Então o que? ela perguntou, ofegando por ar.
Respondeu com um sentimento, os ossos finos de uma única palavra: mais.
Eles alcançaram a grande muralha destruída e carbonizada ao redor da
cidade. Zahra os escondeu dos guardas enquanto passavam apressados pelo
portão recém-construído. Uma vez, Âme de la Terre não precisava de tal
parede. Antes, nenhum deles pensava que nada disso pudesse acontecer,
independentemente das orações que murmurassem ao lado de suas camas.
E então estavam do outro lado da ponte do lago e nas Campinas,
tropeçando no chão em ruínas. Sulcos de garras bestiais, crateras ainda
fumegantes por causa da magia elemental. Os acólitos do templo ainda não
haviam feito os reparos necessários no campo de batalha, concentrando-se em
recuperar corpos, limpar a cidade, aconselhar os enlutados. E agora, sempre
que o povo de Âme de la Terre olhasse pelas janelas, eles veriam os
resquícios da guerra. Eles pensariam na Rainha de Sangue e como ela roubou
sua magia deles. Alguns deles ficariam gratos por isso, encontrariam conforto
no novo silêncio do ar. Alguns ficariam selvagens de tristeza, mas sem magia
para ajudar sua fúria, e com o castelo guardado por um exército de espectros,
Audric e Eliana estariam seguros, pelo menos por alguns anos.
O trovão percorreu as planícies, atraído pela queda trôpega dos pés de
Rielle. À medida que se aproximavam da passagem, o ar crepitava dourado.
Evyline ergueu os olhos, sua expressão dividida entre espanto e medo.
— Zahra, você pode permitir que Audric acorde agora — Rielle engasgou,
seus pés descalços batendo na lama fria. — Vá até ele. Diga a ele tudo o que
eu disse, quando ele estiver pronto para ouvir.
Zahra não disse nada, mas uma corrente de ar frio beijou a nuca de Rielle, e
então o espectro se foi.
— Diga-me o que você vê, Evyline — Rielle respirou.
— Eu vejo luz dourada cruzando o céu — respondeu Evyline. — Em vez
de raios denteados, como relâmpagos, são pétalas, vastas e pulsantes. Eles se
encontram, eles se separam, eles se encontram novamente.
— E eu vejo Audric — disse Rielle, sua voz captando cada palavra. O
empirium era uma tela vasta e interminável, formas girando do solo ao céu.
Ela leu tudo que estava escrito nele. — Ele acordou. Ele está correndo por
nossos quartos, procurando por mim. Ele está chamando meu nome sem
parar. Eliana… — Ela começou a chorar. Em sua vida, ela amou ferozmente,
mas nunca tão perfeitamente assim. — Eliana está acordada e chorando.
Audric está… Ele está chamando os guardas. Ele está segurando Eliana
contra o peito, gritando meu nome novamente. Ela está gritando em seu
ouvido e ele está indo para o terraço. Ele vê minha luz. Ele sabe o que eu fiz.
— Por favor, não, criança — disse Garver. — Não olhe. Só vai doer você
observá-los.
Rielle caiu de joelhos em uma suave elevação de lama. Acima de suas
árvores altas douradas com o último resplendor do outono, e acima delas, o
sopé escuro de pinheiros do Monte Taléa.
— Afastem-se — ela gritou, empurrando o peito de Garver. Ela agarrou a
mão de Evyline, apertou uma vez e a empurrou para longe também. Ela
esperou até que tivessem encolhido de volta para as árvores, ambos parados
em uma crista com uma pilha alta de pedras. Abaixo deles na lama, ela
balançou as mãos e os joelhos. Engolindo sem ar, engolindo em seco contra a
tempestade que se erguia dentro dela. Estava na hora, mas ela não sabia por
onde começar.
respire
solte
Rielle olhou para as mãos na lama. Pálido e pequeno, rodeado por sombras.
nós levantamos
A menina agachou-se diante dela – ela criança, olhos brilhantes e sorrindo.
Descalça, vestido branco esvoaçando em seus tornozelos, pulsos magros e
cabelos escuros desgrenhados.
— Venha comigo agora — a garota disse, totalmente gentil, sua voz terna.
— Há muito mais para fazermos.
O mundo brilhava com diamantes. Uma dor lancinante atingiu as têmporas
de Rielle, mas quando ela alcançou a mão da garota, alguns dos nós
aterrorizados em seus ombros se desfizeram e, nas bordas de sua visão, rosas
de luz dourada brilhante floresceram aos milhões. A luz irrompeu dela em
mil riachos brilhantes, e nos últimos momentos antes de consumi-la, ela viu
muitas coisas para nomear. Mas algumas coisas ela viu, e soube, e manteve
perto.
Ela viu a cidade destruída que fora seu lar, seus sete templos acesos com
velas de luto, o lago brilhando como um sorriso em torno de sua parede.
Em Sunderlands, a luz do Portão gemeu e girou, espiralando em si mesma,
um ciclone de violeta e ouro, até que não houvesse mais nada da porta que
havia existido. Apenas duas grandes pedras cinzentas, o ar entre elas
inteiramente comum e tremendo com os ventos do mar.
Nas montanhas altas e frias de Borsvall, o rei Ilmaire dormia ao lado de seu
novo marido, Leevi do Kammerat, que fala a língua dos dragões. A capital de
Styrdalleen era mais uma vez a cidade alada que fora na Primeira Era, com
dragões grandes e pequenos empoleirados em cada torre, grandes asas
dobradas, incansavelmente vigiando a noite em busca de inimigos. Em uma
parede de pedra branca com vista para a costa estava Ingrid Lysleva,
comandante do exército e amada irmã do rei. Ela olhou com os olhos
estreitos para o mar do Norte em direção à ilha distante do Portão, onde
nuvens estranhamente iluminadas giravam lentamente, como nenhuma
tempestade que ela já vira.
Na cidade polida de Genzhar, em um palácio de escarlate e ouro, a jovem
rainha, Obritsa, olhou friamente para os magos traidores que venderam os
filhos de sua cidade a Corien em troca de lugares de honra no novo mundo
angelical. O carrasco ergueu a espada, mas no último momento Obritsa o
deteve, poupando a vida dos magísteres. Ela se ajoelhou diante deles
enquanto eles choravam em suas mãos, e então, com um sorriso forçado,
disse-lhes algo que Rielle não pôde ouvir.
Na cidade de Quelbani, a pérola de seu país, suas ruas destruídas pintadas
de pálido pela lua, a princesa Kamayin Asdalla lia à luz de velas no quarto de
suas mães. Atrás dela, elas dormiam em sua ampla cama branca, seus rostos
suaves, suas mãos entrelaçadas. Kamayin ergueu os olhos de seu romance,
com os pés descalços no parapeito da janela, e distraidamente bateu com os
dedos dos pés. Ela deixou o livro no colo e se virou para a mesa ao lado dela,
acrescentou várias notas ao papel em seu cotovelo. No topo da página havia
uma pergunta, circulada duas vezes: Como avançamos a partir daqui?
E em um pequeno terraço fora da suíte mais requintada de Baingarde, o rei
de Celdaria embalava sua filha contra o peito, observando o horizonte
florescer brilhante com o adeus.
Um começo e um fim

“Minha querida filha, minha pequenininha. Você pode não entender o


que eu fiz há muito tempo. Você pode estar com raiva de mim, pode me
odiar, pode crescer e ser indiferente a mim. Mas seja o que for que você
sinta, saiba que eu a amei desesperadamente, e é por isso que tive que
deixá-la. Você terá uma vida agora e, embora o mundo tenha mudado,
ele estará seguro por um tempo. Você ficará assustada, alguns dias.
Você pode ter medo. Mas você é mais forte do que qualquer chama que
arde. Cuide de seu pai. Segure-o perto de seu coração. Cuide de seus
amigos. Ame a si mesma e ao poder que dei a você. Observe o céu e
sinta o sol em sua pele. Nade nos rios e brinque nas sombras. Em cada
momento, em cada folha de grama, em cada caminho não percorrido –
lá estarei, ao seu lado, sempre estarei. Minha Eliana. Minha corajosa
garota. Aí está você, começando.”
— Carta de Rielle Courverie, falecida rainha de Celdaria, para sua
filha, Eliana Courverie, princesa de Celdaria e herdeira do trono de
Katell, datada de 11 de novembro, ano 1000 da Segunda Era

Cinco anos depois

Eliana sentou em seu banquinho favorito em seu canto favorito de seu lugar
favorito em todo o mundo – exceto por seu quarto, e o quarto de seu pai, e a
sala de estar de sua avó com as bestas divinas pintadas no teto, e as
catacumbas tranquilas e frescas, onde a bela estátua de sua mãe marcava um
túmulo vazio.
Além de todos esses lugares, a loja de Garver era sua favorita. Ela gostava
do jeito que cheirava a plantas e tônicos, um tipo de cheiro azedo, mas limpo
que despertou seu nariz, e ela gostava das ervas em seus pequenos potes de
vidro, os tônicos e unguentos rotulados com as letras precisas de Garver. Ela
gostava das mesas de trabalho arrumadas e de como Garver as havia lixado,
como o ar ficava úmido quando eles preparavam novas misturas para
engarrafar e guardar.
Havia o alegre jardim de flores e ervas do lado de fora das janelas e agora,
no início do verão, estava cheio de cores. Às vezes, a sombra de Atheria
passava pela janela enquanto ela voava, procurando o almoço nos céus. Havia
o sino de prata brilhante pendurado na porta, e havia a vassoura que Garver
mantinha no canto, e a chaleira de chá esquentando no fogo.
Mas de tudo na loja, por mais maravilhoso que fosse, Eliana gostava mais
de Simon.
Ela deu uma olhada nele enquanto ele trabalhava. Ele tinha um rosto muito
solene para um menino de treze anos, todos diziam. Bastante severo, Eliana
tinha ouvido. Mas ela gostava de seu rosto e sua seriedade. Sua testa pálida
franzia quando ele lia listas de ingredientes, e seu cabelo era de uma cor
dourada escura, caindo desordenadamente sobre sua testa. Ele tinha dedos
hábeis que cortavam raízes e ervas tão rápida e cuidadosamente que uma
sensação de calor tomava conta de Eliana enquanto o observava. O
sentimento dizia a ela que estava segura. Quando ela estava com ele e suas
pequenas facas afiadas, nada poderia machucá-la.
— Posso tentar? — ela perguntou, deslizando para frente em seu
banquinho.
Ele olhou para ela. — Não.
— Por quê?
— Porque as facas são afiadas. Você quer cortar seus dedos?
— Não.
— Bem então.
— Mas algum dia poderei usar as facas boas?
Ele sorriu um pouco, terminou de cortar sua pilha de mil-folhas, colocou-as
na palma da mão e jogou-as na tigela de esmagamento.
— Talvez — respondeu. — Por enquanto, você vai usar as facas ruins.
Ele ergueu as sobrancelhas, olhando para as facas ao lado dela. Elas eram
mantidas sem brilho para seu uso e, portanto, não eram boas para cortar, o
que significava que, quando as usava, ficava lenta e parecia estúpida, e
odiava parecer estúpida na frente de Simon.
— Elas não são facas ruins — disse Garver de sua própria mesa. — São
facas para aprender.
Eliana fez uma careta para as facas, e então Simon riu baixinho e bateu nela
com o cotovelo. Essa sequência de eventos a animou consideravelmente,
tanto que ela cortou sua própria pilha de folhas mais rápido do que antes,
então lançou a Simon um olhar de triunfo altivo.
E isso o fez rir alto, sua grande risada que ele quase nunca usava. Ela sorriu
para ele, observando-o sorrir. Era raro vê-lo tão feliz. Muitas vezes, enquanto
esperavam que as raízes fervessem ou penduravam as folhas para secar,
Eliana surpreendia Simon olhando pela janela com uma tristeza terrível no
rosto.
Acontecia com mais frequência quando os ventos estavam fortes, trazendo
o cheiro de pinheiro das montanhas. Simon ficava quieto naqueles dias,
estranho e sério, e não sério do jeito que ela gostava. Naqueles dias, ele quase
não falava. Havia sombras em seu rosto e seus olhos eram penetrantes e
furiosos, ou então vazios e cheios de tristeza. Quando isso acontecia, ele mal
olhava para ela.
Uma vez, ele até gritou com ela. — É possível que você pare de falar
comigo pelo menos uma vez na vida, mesmo por alguns minutos? — ele
gritou, e então seu rosto se enrugou de horror, pois ela imediatamente desatou
a chorar. Garver o mandou escada acima para seu quarto, nem mesmo o
deixando tentar se desculpar, e então ficou sentado em silêncio com ela até
que Zahra veio para levá-la para casa.
Mais tarde, chorosa e fungando no colo do pai, Eliana perguntou a ele por
que Simon havia feito isso. Por que ele ficava tão triste alguns dias, tão cruel
e afiado.
E seu pai – seu querido e gentil pai, que sempre tinha as respostas para suas
perguntas – segurou-a por um longo tempo, aconchegando-a em seu colo sob
seu cobertor favorito. Ela pensou que talvez ele tivesse adormecido.
Então disse suavemente contra o cabelo dela: — Minha querida, você pode
não entender tudo isso agora, mas vou te contar de qualquer maneira, porque
é isso que fazemos, não é? Nós conversamos um com o outro. Dizemos a
verdade.
— Sim, papa — disse, olhando para ele. Ela tinha ouvido seu pai parecer
triste e sério muitas vezes, especialmente quando visitavam o túmulo de sua
mãe, mas agora era diferente. Esta voz guardava segredos.
— Simon, eu acho, lamenta a perda de seu poder. Você se lembra do que eu
disse sobre o que sua mãe fez quando morreu?
Eliana tinha visto pinturas dela e tinha ouvido seu pai descrevê-la muitas
vezes. Quando ela imaginava sua mãe – seus olhos verdes, o poder pintando
seus cabelos e braços com ouro – Eliana às vezes tinha que prender a
respiração, porque parecia que poderia se virar e ver sua mãe parada ali.
Como se a mente de Eliana pudesse trazê-la de volta do empirium, onde quer
que a tivesse levado.
— Ela ajudou o empirium a dormir — disse ao pai, com a voz baixando
para um sussurro, como sempre acontecia quando falava de sua mãe. Ela
pensou cuidadosamente em cada palavra, porque seu pai a ensinou como isso
era importante. A magia em seu mundo se fora, disse ele, mas alguma ainda
permanecia nas palavras que falavam, e esse poder deve ser respeitado. Ela
segurava o colar que seu pai lhe dera – um disco de ouro em uma corrente
fina, gravado com a imagem de sua mãe montando Atheria. Segurá-lo sempre
a fazia se sentir um pouco mais forte.
— Algum dia o empirium vai acordar de novo — disse Eliana ao pai, —
mas agora está dormindo, e só eu…
Ela parou de falar, suas bochechas aquecendo enquanto ela olhava para o
chão. Quando não estava orando nos templos com Miren e Sloane, ou lendo
livros sobre o empirium com seu pai, Eliana muitas vezes se esquecia do
poder dentro de seu corpo. Seu poder era o motivo pelo qual ela podia ver
Zahra e os outros fantasmas, enquanto todos os outros não podiam. Seu poder
era o motivo pelo qual seu pai a mandava para a loja de Garver para aulas, e
por que seu pai, Miren, Sloane e Zahra lhe ensinavam tantas coisas que às
vezes ela sentia como se sua cabeça tivesse crescido três vezes maior do que
deveria. Queriam que ela aprendesse tudo o que havia para saber sobre essa
magia que vivia em seu sangue, e não ter medo dela, e saber muitas outras
coisas também, como cura, música e matemática, para que seu poder não
fosse a única coisa que ela amava.
Às vezes, quando Eliana lembrava que não era como ninguém no mundo,
isso a fazia se sentir solitária, como um pássaro empoleirado no alto de uma
árvore, alto demais para os outros pássaros alcançarem.
Seu pai beijou sua cabeça. — Só você ainda pode tocar o empirium. Isso
mesmo, Eliana. E não é uma coisa ruim. Você não deve ter vergonha disso.
Sua mãe deixou seu poder intacto por um motivo. Talvez ela tenha pensado
que algo assustador iria acontecer algum dia. Talvez ela te amasse tanto que
queria que você mantivesse este pedaço dela dentro de você.
Eliana estremeceu. Que coisa assustadora pode acontecer algum dia, e o
que ela poderia fazer para impedir?
— É por isso que Simon às vezes se sente triste, eu acho — disse seu pai.
— Por isso que às vezes ele até parece zangado com você. Você ainda tem
poder, e ele não. Seu dom foi tirado dele, assim como o meu, como o de
todos – por um bom motivo, tenho que acreditar que foi por um bom motivo
– mas eles se foram, mesmo assim. Acho que ver você às vezes lembra
Simon do que ele perdeu.
Ao ouvir isso, os olhos de Eliana se encheram de lágrimas. — Eu não
deveria ser mais amiga dele? Eu não quero deixá-lo triste, Papa.
— Não, querida, não foi isso que eu quis dizer. Na verdade, acho que ele
ficaria mais triste se você parasse de ser amiga dele. Pode simplesmente
haver dias em que ele não seja ele mesmo, e você precisará ser paciente com
ele. Talvez você até ache que não deveria falar com ele nessas horas, e está
tudo bem. Vocês podem trabalhar juntos em silêncio ou ler um dos livros de
Garver e deixar Simon sozinho em sua mesa. Você acha que pode fazer isso?
Mas hoje não foi um daqueles dias. Foi um dia de luz e alegria na loja de
Garver, e Eliana olhou e olhou fixamente para Simon enquanto ele ria – ria
por causa de uma coisa que ela tinha feito! Seu peito doeu um pouco,
olhando para ele. Foi uma dor doce e silenciosa, e ela não se importou. A
sensação a lembrou de estar em casa, em seu quarto seguro e quente,
observando o rosto de seu pai enquanto ele contava uma história sobre sua
mãe.
A campainha de prata tocou na porta e Eliana girou ao ver que Zahra viera
buscá-la para casa – mas ela não estava sozinha. Seu pai tinha vindo também,
durante todo o caminho desde o castelo! Mesmo ele tendo dito a Eliana que
provavelmente teria que se sentar em reuniões chatas durante toda a tarde, lá
estava ele com seu sorriso largo e olhos escuros como os dela, estendendo os
braços para segurá-la.
Eliana quase caiu do banco na pressa de correr para ele. Ela gritou o nome
dele em saudação enquanto pulava em seu peito, e ele a segurou e a ergueu e
beijou seu cabelo. E lá estava sua voz, tão querida e calorosa, perguntando se
ela gostaria de almoçar com ele e Odo hoje, e talvez se sentar no terraço de
Odo com as samambaias e as flores, e o próprio Odo iria se juntar a eles, o
que significava histórias. Histórias estranhas e selvagens trazidas a ele por
todas as pessoas que trabalhavam para ele, os espectros que espionavam para
ele, os mercadores que vendiam para ele.
Eliana ficou tonta. Uma tarde inteira sentada aos pés de seu pai enquanto
Odo contava histórias para eles!
Ela beijou sua bochecha, que estava áspera por causa das queimaduras
antigas e porque ele realmente precisava se barbear. Ela torceu o nariz e disse
isso a ele, e ele riu, e a alta e maravilhosa Zahra se abaixou para tocar sua
testa – uma rajada de ar frio como o início do inverno, quando o ar cheirava a
neve.
Eliana se virou nos braços do pai. — Terminamos, Garver? Posso ir?
A boca de Garver se contraiu. — Não, criança, eu proíbo você de ir com
seu pai, o Rei. Em vez disso, você deve ficar aqui o resto do dia e varrer a
poeira do meu chão.
Ela ficou boquiaberta com ele, uma sensação de horror absoluto subindo
por seus braços, e então Garver, rindo, voltou ao trabalho.
— Bom dia para você, meu rei, e obrigado — disse com uma pequena
reverência e um aceno. — Como sempre, sua filha foi muito útil hoje.
Eliana soltou um suspiro forte. Ela olhou para o pai, indignada. — Você
quer dizer que ele estava brincando? — Ela olhou para Garver, ainda mais
indignada. — Você estava brincando?
Eles deixaram a loja, a risada de Garver em seus ouvidos e Simon em seus
calcanhares. Ele ficou quieto ao lado do pai dela e abriu o portão do jardim
para eles.
— Você vai trazê-la de volta na próxima semana, não é? — Simon disse
esperançoso quando eles começaram a subir a estrada. — É menos chato
cortar folhas e coisas quando ela está aqui. — Ele fez uma pausa, seu rosto
cuidadosamente em branco. — Você sabe. Porque eu tenho que vigiá-la
constantemente. Certificar de que ela não corta os dedos. Ensinar a usar suas
facas de aprendizagem.
Eliana mostrou a língua para ele, mas sabia que ele não estava realmente
zangado, porque ele já estava sorrindo, e seu pai estava rindo daquela jeito
lindo e caloroso que ela tanto amava. Atheria estava voando em grandes
círculos preguiçosos pelo céu brilhante de primavera. Zahra vagava ao lado
deles, contando a Eliana sobre os gatos selvagens que vira nas montanhas
naquela manhã e, acima, bem longe na estrada, Baingarde estava nas colinas
e pinheiros, esperando seu retorno. Sua casa.
Enquanto caminhavam pela estrada, Eliana se aconchegou no ombro de seu
pai, observando Simon ficar cada vez menor. Ele sempre esperava no portão
do jardim até que eles alcançassem o topo da estrada. Era apenas educado,
disse ele, uma demonstração de respeito pelo rei. E a princesa, Eliana sempre
o lembrava, à qual ele geralmente respondia com um encolher de ombros
alegre.
À medida que se aproximavam do fim da estrada, Eliana prendeu a
respiração, ouvindo seu coração batendo forte. E se ele não esperasse? E se
ele voltasse para a loja antes do que deveria? Seus olhos lacrimejaram
enquanto ela olhava fixamente e se recusou a respirar, embora estivesse
começando a se sentir um pouco tonta.
Zahra enviou-lhe um pensamento afetuoso e ligeiramente exasperado:
pequenina, se você não respirar logo, vou forçá-la.
E então – ali. Simon finalmente ergueu a mão, como sempre fazia,
exatamente como havia prometido. O coração de Eliana se encheu de luz ao
ver isso, e ela riu contra o ouvido do pai, tão feliz que não conseguiu
responder quando ele perguntou o que era engraçado. Em vez disso, ela
sorriu e acenou de volta para Simon até que dobraram a esquina e a lojinha
que ela tanto amava, e seu jardim, e o menino parado pacientemente no
portão, sumiram silenciosamente de vista.
Elementos da Trilogia Empirium

Em Celdaria, reino de Rielle, a Igreja é o corpo religioso oficial. Os cidadãos


adoram em sete templos elementais que ficam em cada cidade Celdariana. Os
templos variam de simples altares em uma única e pequena sala aos
elaborados e luxuosos templos da capital, Âme de la Terre. Existem
instituições religiosas semelhantes em nações ao redor do mundo de Avitas.
No tempo de Eliana, a maioria dos templos elementais foram destruídos pelo
Império Imortal, e poucas pessoas ainda acreditam nas histórias do Velho
Mundo sobre magia, os santos e o Portão.
Agradecimentos

Dezesseis anos atrás, eu sonhei com uma personagem chamada Rielle e


decidi que queria contar sua história. (Decidi, como se ela me desse alguma
escolha no assunto.)
E agora, o último livro da Trilogia Empirium – a história de Rielle e Eliana
– está completa. Palavras não podem descrever a sorte que sinto por ter tido a
chance de compartilhar esses livros com o mundo. Eles têm sido a alma da
minha vida criativa. Não tenho certeza se amarei qualquer história tanto
quanto amei esta, que é uma sensação terrivelmente estranha e agridoce.
Ao longo dos anos, muitas pessoas me ajudaram a tornar esta trilogia uma
realidade, muito mais do que posso agradecer aqui. A todos os leitores,
bibliotecários, educadores e livreiros que abraçaram esses livros e os
ajudaram a ter sucesso, agradeço do fundo do meu coração por seu apoio,
entusiasmo e gentileza. E para meus entes queridos, meus amigos e família –
você sabe o quanto eu te adoro e como sou grata por você nunca ter deixado
de acreditar em mim. Estou tão feliz por você ser meu.
Para este livro final, quero dedicar esses reconhecimentos particularmente à
minha equipe de publicação. Sem eles, sem sua compreensão, compromisso e
trabalho árduo, esta história ainda viveria apenas em minha mente. Sua
devoção, talento e habilidade tornaram esses livros uma realidade, e esse é
um presente extraordinário que guardarei em meu coração para sempre.
Obrigada – um milhão de obrigadas – à minha destemida e imperturbável
agente, Victoria Marini, cuja defesa e compaixão incansáveis não apenas
ajudaram meus livros, mas também me ajudaram como pessoa. Agradeço
também à equipe da Irene Goodman Literary Agency, especialmente Lee
O’Brien e Maggie Kane, bem como à sempre útil Penelope Burns da
Gelfman Schneider / ICM Partners e Renee Harleston, por sua visão e
experiência.
Devo expressar minha gratidão infinita a Annie Berger, editora
extraordinária, que tem sido uma parceira criativa de valor inestimável – e
que tem uma confiança tão infalível em minhas habilidades – que às vezes
me sento e fico boquiaberta com minha própria sorte.
Agradecimentos imensos e sinceros à infatigável equipe do Sourcebooks,
especialmente à incessantemente paciente Beth Oleniczak, bem como Sarah
Kasman, Stefani Sloma, Lizzie Lewandoski, Katie Stutz, Mallory Hyde,
Valerie Pierce, Margaret Coffee, Sierra Stovall, Ashlyn Keil, Caitlin Lawler,
Heather Moore, Michael Leali, Jackie Douglass, Danielle McNaughton, Todd
Stocke, Steve Geck e Dominique Raccah.
Gostaria de agradecer especialmente à editora de produção Cassie Gutman,
por seus olhos penetrantes e paciência sem limites; e a Nicole Hower e David
Curtis, pelas gloriosas capas da trilogia. A Sourcebooks tem sido um lar
maravilhoso para Rielle e Eliana, e sou muito grata a todos que trabalham lá
por fazerem eu e minhas filhas nos sentirmos parte da família.
Sou particularmente grata a Alison Cherry, editora excepcional (e amiga
extraordinária) – obrigada por tornar este livro melhor e por me apoiar,
sempre.
Muito obrigada também às equipes da Penguin Random House Audio and
Listening Library – Aaron Blank, Heather Job, Brieana Garcia, Rebecca
Waugh, Emily Parliman e Jessica Kaye – por seu trabalho nos audiolivros da
trilogia. E meu mais caloroso agradecimento a Fiona Hardingham por sua
atuação narrativa magistral.
O processo de dar vida a um livro envolve muito mais pessoas do que
simplesmente o autor sozinho. Quando dou um passo para trás e olho para
todos que me ajudaram a contar essa história, sinto-me verdadeiramente
abençoada e humilde pela demonstração de amor e fé. Obrigada.
Sobre o Autor

Claire Legrand é autora do best-seller do New York Times de vários livros


para jovens leitores, incluindo Some Kind of Happiness, indicado ao Edgar
Award, The Cavendish Home for Boys and Girls, e Sawkill Girls, que foi
indicado ao prêmio Bram Stoker e um Prêmio Literário Lambda. Ela mora no
centro de Nova Jersey.
Esperamos que tenha gostado do livro. Por favor, deixe
uma avaliação positiva no perfil do autor em redes como
Amazon, Goodreads, Skoob etc. Tudo bem se a
resenha/avaliação for escrita em português, contanto que
você não diga que leu em PT em momento algum, evitando
também prints do livro. Se tiver condições, por favor,
adquira a obra, é o mínimo que podemos fazer!

Você também pode gostar