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Texto

Peças de museu
Acabo de sofrer uma das maiores humilhações da minha vida. Ainda por cima aqui no meu bairro, as
pessoas a olharem para mim com aquele sorriso de meia boca, género «coitadinha, não liguem».
Ia eu, muito pacificamente pela rua acima, deitar umas cartas no marco do correio, quando oiço
estalar uma gargalhada a acompanhar o vozeirão do meu amigo Fernando que ali, em altos berros, para
toda a gente ouvir, me reduzia à insignificância de ainda precisar de usar um objeto tão fora de moda.
Olhei em roda à procura do tal objeto, que eu não descobria em parte nenhuma, mas ele não parava de
falar e de rir, que há não sei quanto tempo não via uma pessoa servir-se daquilo, que se tivesse ali uma
máquina fotográfica até registava o momento, se eu não sabia que havia uma coisa chamada computador
e outra coisa chamada e-mail, e ria, e ria, e as pessoas passavam, olhavam, e riam com ele, e eu ali,
finalmente a perceber que era do pobre marco do correio que ele falava.
Lembrei-me, então, de outra vez em que uma coisa semelhante se tinha passado comigo, embora não
tão ostensivamente humilhante, coisa bem mais pacata e silenciosa. Estava eu nessa altura de férias no
Luso, a tentar escrever alguma coisa à mesa do café. Faltou-me a tinta e rapo de um tinteiro pequeno
que tinha acabado de comprar e, logo ali, encho a caneta. É então que uma das empregadas se especa à
minha frente, mãos espalmadas na barriga, e murmura: «Jasus! Desde o tempo da minha escola primária
que eu não via uma pessoa fazer isso!»
Pois é. Eu escrevo cartas. À mão. Com caneta. Com tinta. E— o que ainda torna tudo muito pior —
gosto muito. E tenho muita pena que esse prazer se esteja a perder. Às vezes penso que o progresso e os
avanços (tecnológicos e não só) estão a fazer desaparecer alguns dos grandes prazeres da nossa vida.
Para já, a enorme loucura da pressa com que sempre andamos fez-nos perder o prazer de ter tempo para
perder tempo.
Come-se em pé no balcão da esquina, e a correr, porque atrás de nós estão mais dois ou três à espera
do lugar.
E o pão que comemos não sabe a pão, feito à pressão naquelas casas que substituíram as honradas
padarias e se chamam «boutiques do pão».
E a maçã que comemos não sabe a maçã, feita em estufas, toda do mesmo tamanho e com aquele
aspeto que até parece que saiu da história da Branca de Neve, e onde nenhum bicho entra, porque o
bicho é esperto e nós não.
E depois há o telemóvel para resolvermos negócios enquanto estamos a atravessar o passeio, para não
perdermos alguns minutos, e quando nos enfiamos no comboio nem sequer olhamos para a paisagem
porque ligamos imediatamente o nosso PC portátil, e fazemos da carruagem a extensão do nosso
escritório, perdendo todo o prazer da viagem.
E escrever cartas. O prazer de tocar no papel, de sentir o aparo deslizar, de saborear as palavras que
se vão alinhando, o prazer de escrever cartas de amor ridículas, cartas de adeus desesperadas, cartas
banais da pequena intriga familiar, cartas enormes como as que escrevíamos na nossa adolescência,
quando os amigos nos faziam tanta falta e os dias erar-n desmesuradamente grandes.
E olho para as prateleiras da estante, com aqueles volumes de correspondência de escritores, que sabe
tão bem ler, e penso que tudo isso vai acabar também, e as cartas, e os selos, e os bilhetes postais, e os
marcos de correio de portinha ao centro, e as canetas e os tinteiros vão transformar-se muito
rapidamente em peças de museu para mostrarmos aos netos dizendo «a avó ainda usou isto» e eles a
olharem para nós e a não acreditar.

Alice Vieira, Pezinhos de coentrada

Soluções: 1. V – F – F – F – F – V – F; 2.1. a), 2.2. a), 2.3. b), 2.4. c), 2.5. a), 2.6. b)

Avaliação global
Muito Insuficiente 01 a 3 certas
Insuficiente 4 a 6 certas
Suficiente 7 a 9 certas
Bom 10 a 11 certas
Muito Bom 12 a 13 certas
Ficha de trabalho de Português – Compreensão do Oral

Nome ____________________________________________________________ T.ª _____ N.º _____

Ao mesmo tempo que ouves o texto Peças de Museu, responde aos itens.

1. Com X, classifica as afirmações como verdadeiras (V) ou falsas (F).


O que contribuiu ainda mais para a autora se sentir humilhada foi o facto de a ação ter decorrido no
seu bairro.
Fernando, o amigo da autora, riu-se muito por vê-la parada no meio da rua.
A autora só escreve cartas no computador.
A autora acha bem que se usem outros meios de comunicação em vez das cartas.
A autora escreve todas as cartas com uma esferográfica.
A autora sente prazer em tocar o papel e sentir o aparo deslizar.
A autora acha bem que, atualmente, já não haja necessidade de escrever tantas cartas.

2. Com X, assinala a opção que completa cada frase, segundo o sentido do texto.

2.1. O texto narra um facto acontecido com a autora quando ela…


… se dirigia para o marco do correio.
… se dirigia para o café.
… estava de férias no Luso.

2.2. Quando viu a autora, o seu amigo Fernando…


… riu-se dela.
… chamou-a.
… elogiou-a..

2.3. O Fernando perguntou à autora se não sabia para que serviam…


… os telemóveius e os computadores.
… os computadotres e os e-mails..
… os computadortes e o fax..
2.4. No Luso, a empregada ficou surpreendida por ver a autora pegar…
… num amparo e num tinteiro.
… numa lapiseira e num tinteiro.
… numa caneta e num tinteiro.

2.5. A autora pensa que se perdeu «o prazer de ter tempo para perder tempo» porque agora o pão não
sabe a pão e se come…
… à pressa e em pé.
… sentado, mas à pressa.
… devagar e em pé.

2.6. Uma das consequências do uso das tecnologias nos comboios é que as pessoas deixaram de ter
tempo para…
… falar umas com as outras.
… apreciar a paisagem.
… tratar dos negócios.

Bom trabalho!

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