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Crónica de D.

João I
Capítulo 11
Do alvoroço que foi na cidade cuidando 1 que matavom o Meestre, e como aló 2 foi
Alvoro Paaez 3 e muitas gentes com ele.

O Page do Meestre que estava aa porta, como lhe disserom que fosse pela vila
segundo já era percebido 4 , começou d’ir rijamente 5 a galope em cima do cavalo em
que estava dizendo altas vozes, braadando pela rua:
— Matom o Meestre! matom o Meestre nos Paaços da Rainha! Acorree ao Meestre que matam!
E assi chegou a casa d’Alvoro Paaez que era dali grande espaço 6 .
As gentes que esto ouviam, saiam aa rua veer que cousa era; e começando de falar uũs com os outros,
alvoraçavom-se nas voontades 7 , e começavom de tomar armas cada uũ como melhor e mais
asinha 8 podia. Alvoro Paez que estava prestes 9 e armado com ũa coifa 10 na cabeça segundo usança
daquel tempo, cavalgou logo a pressa em cima duũ cavalo que anos havia que nom cavalgara; e todos
seus aliados com ele, braadando a quaes quer que achava dizendo:
— Acorramos ao Meestre, amigos, acorramos ao Meestre, ca filho é del-Rei dom Pedro.
E assi braadavom el e o Page indo pela rua.

Soarom as vozes do arroido 11 pela cidade ouvindo todos braadar que matavom o Meestre; e assi como
viuva que rei nom tiinha, e como se lhe este ficara em logo de 12 marido, se moverom todos com mão
armada, correndo a pressa pera u 13 deziam que se esto fazia, por lhe darem vida e escusar 14 morte.
Alvoro Paaez nom quedava d’ir pera alá 15 , braadando a todos:

— Acorramos ao Meestre, amigos, acorramos ao Mestre que matam sem por quê!
A gente começou de se juntar a ele, e era tanta que era estranha cousa de veer. Nom cabiam pelas ruas
principaes, e atrevessavom logares escusos 16 , desejando cada uũ de seer o primeiro; e preguntando uũs
aos outros quem matava o Meestre, nom minguava 17 quem responder que o matava o Conde Joam
Fernandez, per mandado da Rainha.
Capítulo 115:
Per que guisa estava a cidade corregida pera se defender, quando el-Rei de
Castela pôs cerco sobr’ela.

Nem uũ falamento 1 deve mais vizinho seer deste capitulo que havees ouvido 2 , que poermos
logo aqui brevemente de que guisa 3 estava a cidade, jazendo el-Rei de Castela sobr’ela; e
per que modo poinha em si guarda o Meestre, e as gentes que dentro eram, por nom receber
dano de seus ẽ migos 4 ; e o esforço e fouteza 5 que contra eles mostravom, em quanto assi
esteve cercada.
Onde sabee que como 6 o Meestre e os da cidade souberom a viinda del-Rei de Castela, e
esperarom seu grande e poderoso cerco, logo foi ordenado de recolherem pera a cidade os
mais mantiimentos 7 que haver podessem, assi de pam e carnes, come quaes quer outras
cousas. E iam-se muitos aas liziras 8 em barcas e batees 9 , depois que Santarem esteve por
Castela, e dali tragiam 10 muitos gaados mortos que salgavom em tinas, e outras cousas de
que fezerom grande açalmamento 11 ; e colherom-se 12 dentro aa cidade muitos lavradores com
as molheres e filhos, e cousas que tiinham; e doutras pessoas da comarca d’arredor, aqueles
a que prougue 13 de o fazer; e deles 14 passarom o Tejo com seus gaados e bestas e o que
levar poderom, e se forom contra 15 Setuval, e pera Palmela; outros ficarom na cidade e nom
quiserom dali partir; e taes i 16 houve que poserom todo o seu 17 , e ficarom nas vilas que por
Castela tomarom voz.
Os muros todos da cidade nom haviam mingua 18 de boom repairamento 19 ; e em seteenta e
sete torres que ela teem a redor de si, forom feitos fortes caramanchões 20 de madeira, os
quaes eram bem fornecidos d’escudos e lanças e dardos e beestas de torno 21 , e doutras
maneiras com grande avondança 22 de muitos viratões 23 . (...)
E ordenou o Meestre com as gentes da cidade que fosse repartida a guarda dos muros pelos
fidalgos e cidadãos honrados 24 ; aos quaes derom certas quadrilhas 25 e beesteiros 26 e homẽ es
d’armas pera ajuda de cada uũ guardar bem a sua. Em cada quadrilha havia u ũ sino pera
repicar 27 quando tal cousa vissem, e como 28 cada uũ ouvia o sino da sua quadrilha, logo todos
rijamente 29 corriam pera ela (...).
E nom soomente os que eram assiinados 30 em cada logar pera defensom, mas ainda as outras
gentes da cidade, ouvindo repicar na See, e nas outras torres, avivavom-se os corações
deles 31 ; e os mesteiraes 32 dando folgança 33 a seus oficios, logo todos com armas corriam
rijamente pera u diziam que os Castelãos mostravom de viinr. Ali viriees os muros cheos de
gentes, com muitas trombetas e braados e apupos 3355 esgremindo espadas e lanças e
semelhantes armas, mostrando fouteza contra seus ẽ migos.
Nom curavom entom do texto que diz: “Que mais ajuda a egreja o reino com suas orações,
que os cavaleiros com as armas”; nom se guardava ali a degratal: “Clerici arma portantes”,
aos quaes segundo dereito nom convem de tomar armas, posto que seja pera defensom da
terra; mas clerigos e frades, especialmente da Trindade, logo eram nos muros, com as
melhores que haver podiam. (...)

E nom embargando todo isto, o Meestre que sobre todos tiinha especial cuidado da guarda e
governança da cidade, dando seu corpo a mui breve sono, requeria per muitas vezes de noite
os muros e torres com tochas acesas ante si, bem acompanhado de muitos que sempre
consigo levava. Nom havia i neuũs revees dos que haviam de velar, nem tal a que
esqueceesse cousa do que lhe fosse encomendado; mas todos muito prestes a fazer o que
lhe mandavom, de guisa que, a todo boom regimento que o Meestre ordenava, nom minguava
avondança de trigosos executores. (...)
Ó que fremosa cousa era de veer! Uũ tam alto e poderoso senhor como el-Rei de Castela,
com tanta multidom de gentes assi per mar come per terra, postas em tam grande e boa
ordenança, teer cercada tam nobre cidade! E ela assi guarnecida contra ele de gentes e
d’armas com taes avisamentos por sua guarda e defensom! Em tanto que diziam os que o
virom, que tam fremoso cerco de cidade nom era em memoria d’hom ẽ es que fosse visto de
mui longos anos atá aquel tempo.

1 – ação:

No presente capítulo, Fernão Lopes narra como o Mestre de Avis e o povo preparam a
cidade de Lisboa para resistir ao cerco dos castelhanos. Com efeito, tomando conhecimento
de que o rei de Castela planeava invadir a cidade, o Mestre comandou a sua defesa e
ordenou que se guardassem mantimentos e outras provisões, uma vez que o reabastecimento
da cidade ia estar impedido. Além disso, muitos foram aqueles que se protegeram dentro
das muralhas e que ajudaram na organização dos equipamentos e da logística da defesa:
repararam-se e fortaleceram-se as muralhas; verificaram-se as armas; distribuíram-se
tarefas de defesa e de manutenção da ordem na cidade. De salientar, a capacidade de
liderança do Mestre e a forma como as gentes do povo obedeciam às suas ordens e
cooperavam naquela importante e árdua missão, "sempre mostrando forteza contra seus
ẽ migos". A par dessa nobre atitude do Mestre, enfatiza-se, através de uma atitude de
admiração por parte do narrador, o trabalho de equipa e o esforço coletivo daquela massa
popular que, unida, se preparava para os duros tempos que se adivinhavam.

2 – personagens:

Ator individual –

Mestre de Avis - No presente capítulo, o Mestre apresenta-se com uma capacidade de


liderança exímia. A forma como assume toda a preparação e organização da cidade, que será
alvo de um cerco por parte dos castelhanos, é descrita pormenorizadamente por Fernão
Lopes, de forma a louvar e engrandecer os atos de D. João. De destacar, o respeito e
recetividade do povo às “ordenanças” do Mestre, facto que reflete a sua figura de
autoridade, astúcia e altruísmo.

 mostra uma forte capacidade de liderança:

Ex: «Nem uũ falamento deve mais vizinho seer deste capitulo que havees ouvido, que
poermos logo aqui brevemente de que guisa estava a cidade, jazendo el-Rei de Castela
sobr’ela; e per que modo poinha em si guarda o Meestre…»

«E nom embargando todo isto, o Meestre que sobre todos tiinha especial cuidado da
guarda e governança da cidade…»
 assume o comando da defesa da cidade:

Ex: «Onde sabee que como o Meestre e os da cidade souberom a viinda del-Rei de Castela,
e esperarom seu grande e poderoso cerco, logo foi ordenado de recolherem pera a cidade os
mais mantiimentos que haver podessem…»

 o povo acata as suas ordens serenamente:

Ex: «…mas todos muito prestes a fazer o que lhe mandavom, de guisa que, a todo boom
regimento que o Meestre ordenava, nom minguava avondança de trigosos executores. (...)»

 é uma figura de autoridade, de respeito e astúcia:

Ex: «E ordenou o Meestre com as gentes da cidade que fosse repartida a guarda dos muros
pelos fidalgos e cidadãos honrados; aos quaes derom certas quadrilhas e beesteiros e
homees d’armas pera ajuda de cada uũ guardar bem a sua. Em cada quadrilha havia uũ sino
pera repicar quando tal cousa vissem, e como cada uũ ouvia o sino da sua quadrilha, logo
todos rijamente corriam pera ela (...).»

Ator coletivo –

Povo e a cidade de Lisboa - Mais uma vez, a figura do povo revela a sua forte presença,
funcionando como um todo, unido e disciplinado, na importante missão de defesa da cidade
de Lisboa contra o cerco de Castela. De facto, a população obedece às orientações e ordens
do Mestre, cumprindo minuciosamente e na íntegra cada tarefa atribuída. Destaca-se, pois,
a voz da consciência coletiva, uma voz que se vai afirmar em coro para, até ao fim, defender
Lisboa contra o inimigo castelhano. De referir, que a cidade de Lisboa, através da figura
do povo, acaba por ser personificada e encarada como uma personagem coletiva – também
ela se prepara, se veste de defensora, se fecha dentro das suas muralhas, no fundo,
também ela sente o desejo patriótico de vencer Castela.

 age como um todo unido e organizado:

Ex: «E nom soomente os que eram assiinados em cada logar pera defensom, mas ainda as
outras gentes da cidade, ouvindo repicar na See, e nas outras torres, avivavom-se os
corações deles; e os mesteiraes dando folgança a seus oficios, logo todos com armas
corriam rijamente pera u diziam que os Castelãos mostravom de viinr. Ali viriees os muros
cheos de gentes, com muitas trombetas e braados e apupos esgremindo espadas e lanças e
semelhantes armas, mostrando fouteza contra seus ẽ migos.»

 cumpre de forma exemplar as ordens do Mestre:

Ex: «… mas todos muito prestes a fazer o que lhe mandavom, de guisa que, a todo boom
regimento que o Meestre ordenava, nom minguava avondança de trigosos executores. (...)»

 reflete uma consciência coletiva e patriota:

Ex: «E ela assi guarnecida contra ele de gentes e d’armas com taes avisamentos por sua
guarda e defensom! Em tanto que diziam os que o virom, que tam fremoso cerco de cidade
nom era em memoria d’homees que fosse visto de mui longos anos atá aquel tempo.»

 personificação da cidade de Lisboa:


Ex: «Nem uũ falamento deve mais vizinho seer deste capitulo que havees ouvido, que
poermos logo aqui brevemente de que guisa estava a cidade, jazendo el-Rei de Castela
sobr’ela; e per que modo poinha em si guarda o Meestre…»

3 – espaço:
O espaço onde decorre a ação deste capítulo é a cidade de Lisboa, palco dos preparativos e
da organização da sua defesa contra o cerco castelhano.

 a cidade de Lisboa, onde decorrem os trabalhos de defesa contra o cerco


castelhano:
Ex: «Os muros todos da cidade nom haviam mingua de boom repairamento; e em seteenta e
sete torres que ela teem a redor de si, forom feitos fortes caramanchões de madeira, os
quaes eram bem fornecidos d’escudos e lanças e dardos e beestas de torno, e doutras
maneiras com grande avondança de muitos viratões. (...)

E ordenou o Meestre com as gentes da cidade que fosse repartida a guarda dos muros
pelos fidalgos e cidadãos honrados; aos quaes derom certas quadrilhas e beesteiros e
homẽ es d’armas pera ajuda de cada uũ guardar bem a sua.»

4 – Narrador:

Num discurso, que oscila entre a objetividade e a subjetividade, Fernão Lopes descreve todas as
ações de organização da defesa da cidade de Lisboa de forma pormenorizada, revelando, em
alguns momentos, espanto e emoção perante o esforço e o trabalho de equipa daquela massa
popular. De destacar, igualmente, neste capítulo, o facto de o narrador se dirigir, em alguns
momentos, ao leitor, convocando-o para o texto.
 revela um discurso objetivo e subjetivo:

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