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Interculturalidade
Módulo 3
“Acontece todos os dias”. 10 relatos sobre discriminação em Portugal – OBSERVADOR
Parte II
[Música]
É "stressante" ter que analisar se aquele tratamento é por conta da sua nacionalidade ou
não.
Eu por exemplo: estar a ir com a minha mãe na rua e a pessoa passar para o outro lado.
Nas finanças, por exemplo, estava com a minha mãe. Quando tens um bebé tens
prioridade.
E assim que ela passa à frente, toda a gente começa a dizer: "Ah e tal", a reclamar.
Se fosse uma uma mulher não-cigana, eles nunca iriam dizer isso.
Já ouvi, por exemplo, dizerem-me diretamente: "Não gosto quando falas com o teu
sotaque." "Como assim, não gostas?"
Percebem o meu sotaque. Eu ligo: "Olhe, sobre o anúncio do T1..." Falaram que estava
arrendado.
E depois, conversando com os seus colegas de casa, descobres que o único que
teve de pagar três rendas antes de entrar fui eu.
Na escola, não consigo dizer "eu tive amigos." Não chegam perto de ti, não falam contigo.
Não mantêm uma amizade contigo.
Eles, por exemplo, estão a jogar à bola e tu queres entrar e jogar também e "não, tu não
jogas."
Tinha algumas crianças que me ajudavam, eram ciganos. Foram a minha salvação. Foram
eles que me ajudaram a ultrapassar esta barreira.
Quando estamos num grupo de amigos a conversar, alguém se lembra de fazer uma piada
de brasileiros e falam: "Ah, porque o brasileiro aquilo e não sei o quê, gostam disto,
gostam daquilo." E depois: "Ah, não, mas não me leves a mal, Gabriela. Tu és diferente."
Chamavam-me "Oreo". O Oreo é preto por fora, porque a bolacha é escura, e tem um
creme branco por dentro. Portanto, eu seria portuguesa, a parte branca, porque não
gostava de kizomba, porque não falava com sotaque.
Entrei num restaurante. "Olhe, nós temos uma reserva com X pessoas..." O senhor do
balcão virou as costas [e disse] para a cozinha: "Olha o menu do chinoca." E eu estava a
ouvir.
Quando eu desliguei, umas senhoras viraram-se para mim e disseram que sou uma
vergonha, que eu não devia ter vestido o traje português. Que não é justo para os
portugueses eu vestir o traje português.
Tenho amigas africanas que querem namorar com um rapaz branco e o comentário que
ouvem das futuras sogras é: "Teria um desgosto se meu filho namorasse uma preta."
Eu entrei no meu primeiro trabalho e nunca disse quem era. Eu nunca disse que sou
cigana.
Tenho uma amiga numa escola cujos colegas têm medo dos chineses. Pensam que todos
os chineses têm vírus [Coronavírus].
São tratamentos diferenciados que são tão normalizados pela sociedade que passam
despercebidos não só por quem o faz, mas por nós que recebemos.
Eu acho que algo que é dito várias vezes não é brincadeira. É dito a sorrir para parecer
brincadeira, mas não é brincadeira. Tem sempre uma gota de verdade.
Eu estava a trabalhar na loja e quando estava a atender uma brasileira, ela perguntou-me:
"De onde é que vocês vêm?"
Eu estava a levar-lhe uns sapatos, para a ajudar, ela deixou os sapatos, não disse nada e
saiu. Não disse nada.
Eu cresci entender que piadas racistas como as dos ciganos são racistas, ofendem e
inferiorizam os ciganos. Da mesma maneira que piadas sobre negros são piadas racistas.
E que, se nós vamos normalizando e banalizando tudo, tudo é aceitável.
Quando me perguntam: "Portugal é um país racista?" Eu não acho que Portugal seja um
país racista. Eu acho que há focos de racismo.
O racismo é uma realidade, não é um mito. Não acontece de vez em quando. Acontece.
Todos os dias.
Defeitos existem em todas as culturas. O meu objetivo enquanto cigana é mostrar que
nós não podemos nunca generalizar isso.
Porque nós não somos perfeitos. Conforme a gente está carregada de coisas boas, a
gente também está carregada de coisas más. E tudo que a gente vive nos influencia, para
o bem e para o mal.
[Música]