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O Despertar de Belle

Catherine Roberts

Fefe, Darlyng, Alessandra MC e Val Nascimento

Sinopse

A plácida vida de Caroline-Marie Du Berry, jovem e travessa condessa de Chambord,


está a ponto de ficar de pernas para o ar. Órfã de mãe, criada por um velho conde
antissocial e dedicado à caça, Caroline é algo selvagem para sua posição e não entende
porque deveria dançar e ter boas maneiras, por isso a ideia de ter um novo professor
que a instrua em matérias intelectuais a horroriza e pretende zombar dele à sua
chegada.

Caroline não sabe que cairá nas redes do amor e da paixão com o jovem, bonito e
inteligente professor espanhol contratado por seu pai, um nobre de baixo nível,
arruinado, em busca da salvação do patrimônio de sua família. Marco tampouco
imagina tudo o que lhe espera na França: mulheres libertinas, bailes, segredos,
assassinatos e uma jovem aluna algo rebelde.

Os libertinos Madame Dupin e seu amigo e amante, o bonito modelo de artistas e


cientista Denis Papin, serão as piores influências dos dois jovens, levando-os, sob a
máscara de preceptores, a uma rede de enganos, mentiras e sensualidade.
Ao meu marido Tomam:
meu melhor amigo, meu amante,
minha inspiração, meu Marco de Gaula.
À minha irmã Sandra: Tramise.
A todas as mulheres dispostas a serem amantes de sua vida.

Nota da autora
Esta novela está ambientada em cenários reais do Vale do Loire ou Vale dos reis
franceses, nos preciosos castelos de Chambord e Chenonceau. Os personagens reais
que aparecem em suas páginas acompanhando os protagonistas — Denis Papin,
Gastón de Orleans, Louise-Marie Dupin, Rousseau, Voltaire, Diderot, Erik e
Antonietta—, estão, em sua maioria, cronológica e espacialmente situados de acordo a
uma realidade. Apesar de reproduzir algumas de suas ideias e frases, e revelar
curiosidades sobre eles, a personalidade e os fatos narrados formam parte de uma
ficção. E a ficção está feita para desfrutar.

A gente aprende, quando se faz velho, que nenhuma ficção pode ser tão estranha
nem parecer tão improvável, como o seria a simples verdade.
Emily Dickinson
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Capítulo 1

Vale do Loire ou dos Reis, França - ano 1745

Diário do barão Marco De Gaula

Nunca havia me sentido tão humilhado como naquele dia. Tudo começou quando
meu bom amigo Jean-Édouard Du Berry, conde de Chambord, pediu-me o favor
pessoal de ir à França, nosso país vizinho, com o fim de educar à sua jovem filha nas
matérias que estávamos acostumados a debater em nosso seleto e secreto clube.
Naquele mesmo dia, a dama completaria dezessete anos e poderia unir-se a este,
tirando-me a honra de ser o membro mais jovem.

— Pode ser que ache a minha querida filha algo selvagem, cher ami. Desde que
morreu minha esposa, deixei de exigir as boas maneiras — tinha-me advertido
Édouard.

Nenhum prazer supunha para meu pai que um filho dele, um portador de seu
“ilustre sobrenome”, tivesse que ver-se rebaixado daquela maneira, próprias palavras.
Isso lhe parecia o fato de trabalhar para outros. Mas a precária situação econômica
pela qual atravessava minha família, depois de uma larga rajada de maus
investimentos e empréstimos não devolvidos, tinha-me levado a aceitar aquele
trabalho. Não havia escolha. Por outro lado, meu entusiasmo juvenil e minha utópica
crença de que as coisas podiam mudar me faziam sentir a vocação por transmitir
ideias. Nossas ideias. Ia converter-me, à minha curta idade, vinte anos recém-
cumpridos, em professor.

Ao contrário de meu pai, barão De Gaula, eu não encontrava nada negativo em


trabalhar, como dizia ele: “como os pobres”. Mas, sobretudo, aquele emprego era uma
grande oportunidade para ir às reuniões clandestinas dos membros franceses de nosso
clube. Tão libertinos, tão avançados em ideias, tão amantes do luxo e dos prazeres,
tão… interessantes. As reuniões, perigosas e ilegais, eram organizadas no château de
Chenonceau. Madame Dupin, a encantadora anfitriã deste castelo, disfarçava-as
sabiamente de inocentes “lanches”. Madame Dupin: famosa, diziam, não só por sua
beleza e sua generosa hospitalidade, mas sim por sua secreta defesa da filosofia e das
ciências. “Todos deveríamos as estudar para compreender o mundo no qual vivemos”,
havia-me dito em uma de suas cartas, “incluídas as mulheres”. Que ânsia sentia por
conhecê-la! Embora eu não fosse dos que se entusiasmavam facilmente com qualquer
mulher, seu compêndio de qualidades me obrigava a subi-la a um idílico pedestal.

Madame Dupin estava casada e eram uns vinte anos mais velha que eu. Embora,
também, conforme me contavam na França nenhuma das duas coisas supunha um
impedimento para levar a cabo qualquer tipo de caso. De fato, era a partir de que uma
mulher estivesse casada que começava sua verdadeira vida social, sua liberdade e o

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O Despertar de Belle – Catherine Roberts

álibi de ter um marido a que atribuir qualquer paternidade. Mesmo assim, eu não
albergava mais esperança que sua amizade.

Eu, calejado em letras e ciências, amigo de homens e mulheres do mundo, aos


meus vinte anos eu quase não via isso. Tinha a teoria, mas não a experiência. E, recém-
saído da lúgubre e dissimulada Espanha, estava desejoso por conhecer a França e seu
liberté.

Mas esse dia, o dia da minha chegada ao castelo de Chambord, viu-se abafado.
Gravemente abafado.

Tinha viajado da Espanha somente acompanhado pelo Manuel, o velho cocheiro da


família. Uma escolta contra os assaltantes de caminhos tinha sido um luxo que não
havia podido me permitir. Mesmo assim, toda a viagem tinha transcorrido quase sem
incidentes, já que sempre tínhamos seguido a esteira de outras carruagens e
caravanas. Mas o último lance até Chambord ninguém mais o compartilhava. Todos
receavam quando lhes comunicávamos nosso destino, como se sobre as terras de meu
amigo, o conde, pesasse um mau presságio. Inclusive houve mulheres nos povoados e
nas carruagens do caminho que se benzeram quando nomeei “Chambord”, como se
assim espantassem algum tipo de demônio ou alguma classe de maldição. Diziam
expressões, ao ouvi-lo, que minha boa mãe cristã tivesse expressado como: cruz credo,
para assim afastar o mal. Assim, logo ficamos na mais absoluta solidão, naqueles
verdes e amaciados atalhos franceses.

O mapa refletia que o caminho até o castelo dava um grande rodeio, rodeio que se
podia evitar usando os atalhos que atravessavam o bosque. Mas o conde tinha-me
desaconselhado com grande ansiedade a cortar desta forma. Lia em suas veladas
palavras um perigo iminente que no bosque habitava. Podia ser aquilo pelo que nossos
companheiros de viagem se benziam, mas que ninguém nomeava. Um perigo que, fora
qual fora, parecia pior opção que enfrentar-se a um bando de assaltantes.

Assim, a poucos quilômetros de nosso destino, tinha acontecido o inevitável: um


grupo de quatro jovens tinha emergido da solidão e do silêncio para nos desapropriar
da carruagem, da bagagem e do pouco dinheiro que levava comigo. Manuel e eu, um
pobre velho e um homem de letras e de paz, logo opusemos resistência. Uma parca
resistência: nossas mãos nuas contra suas quatro compridas e afiadas facas. Sorte
tivemos de acabar virtualmente ilesos; apenas com o cabelo desgrenhado e as camisas
feitas farrapos. As casacas e os sapatos tinham levado também. Graças à enorme
pressa com que pretendiam acabar, conseguimos ficar com as calças, felizmente. E
também com minha maleta: nela não levava mais que alguns livros e apontamentos
para minhas aulas, coisa que não pareceu interessar muito aos assaltantes —que, com
toda segurança, não saberiam ler. Tão ignorantes eram que não sabiam que muitos
daqueles livros que ali levava tinham mais valor que minha carruagem.

E, igual apareceram, desapareceram.

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Mal começava naquele país, teria que pedir a Édouard um adiantamento do meu
salário de professor para voltar a me vestir diariamente, e, sobretudo, se eu quisesse
aquela noite para ser apresentado à sua filha. Pela primeira vez em minha vida, era
literal quando dizia que não tinha nada que me vestir. Além disso, Édouard teria que
me adiantar outra quantidade para pagar a viagem do Manuel de volta à Espanha.
Estava completamente morto de calor; sentia vontade de retornar e empreender
viagem de volta à Espanha. Mas essa opção teria sido covarde.

Teria que economizar tempo para chegar ao castelo ou o baile começaria sem
mim. Não ficava outra coisa que caminhar atravessando o bosque. Não importavam
agora os conselhos e prevenções. Manuel e eu decidimos: atalharíamos pelo bosque.

Como dizia, não imaginava uma chegada mais humilhante, uma situação mais
patética, até que, depois de longas, eternas horas andando por aquele bosque
supostamente maldito, coberto de barro e machucado pelos arranhões dos ramos,
aquela jovem a cavalo com aspecto de criada cruzou em nosso caminho.

Nem sequer escutamos aproximar-se o cavalo incrível que montava, tal devia ser o
alvoroço que nossos passos inexperientes causavam na solidão do bosque.

De repente, elevamos ambos a cabeça e nos encontramos frente àquele enorme


cavalo baio e à formosa moça que o montava.

—Monsieur Marco De Gaula? —perguntou a dama com o que me pareceu um


sorriso zombador no rosto.

Motivos não lhe faltavam.

Suas roupas eram singelas e sem colorido, como geralmente são as roupas do
pessoal de serviço de qualquer parte, mas seu branquíssimo e belo rosto desprendia
uma luz imprópria de uma simples criada.

—Eu mesmo —respondi com toda a dignidade que foi possível. A moça me olhou
de cima a baixo e sorriu descaradamente. Pareceu-me um gesto bastante indigno.
Senti-me muito mais humilhado do que tinha imaginado. Sem dúvida, era uma enviada
ou uma criada deChambord. E tinha esperado um pouco de respeito e preocupação de
sua parte.

—Rapidamente chegou, através dos camponeses, o rumor e a notícia do ataque à


sua carruagem. Uma partida de homens saiu em sua busca, pelo caminho —disse sem
apear-se, do alto de seu formoso cavalo de pelagem branco-amarelada. — Não
deveriam se aventurar através do bosque. Não ouviram as lendas que correm a
respeito dele?

—Mesmo que tivesse ouvido alguma lenda, isto não teria me impedido de
continuar minha marcha, mademoiselle. Não queria atrasar mais minha chegada, pois
preciso falar com o conde o mais cedo possível; antes da festa em honra da jovem

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condessa. Suponho que você pertence ao serviço de Chambord. Se tivesse a


amabilidade de me guiar até o castelo…

— Sim. Sim, é obvio. Sou uma moça das baias. Eu mesma os levarei até o castelo.
Sigam-me.

Ante meu assombro, puxou as rédeas, girando o cavalo, e deu a entender que a
seguíssemos a pé. O lógico teria sido que me oferecesse o cavalo, conhecendo quem
eu era, e que ela continuasse a pé. Também me surpreendeu que afirmasse trabalhar
nas baias sendo mulher e mantendo esse aspecto, muito limpo para andar entre palha
suja e suor de cavalo. Embora pareça que assim o delatavam suas botas de montar.

O velho Manuel e eu cruzamos nossos olhares atônitos e, depois de um


encolhimento de ombros, seguimo-la.

— Sabe, na Espanha não é muito habitual encontrar mulheres trabalhando nas


baias. É um trabalho bastante duro.

—Possivelmente encontrem aqui em Chambord muitas coisas que lhes pareçam


fora do habitual.

Havia algo nessa desconcertante moça que me fazia desconfiar. Esse sorriso
zombador, esse rosto muito fino, seu selvagem cabelo castanho que brilhava com o
sol, seu porte sobre o cavalo, próprio de uma rainha. Ela era algo impressionante.

Depois de completar o penoso caminho por aquele úmido e verde bosque, por fim,
as árvores se afastaram e o castelo apareceu ante nós como uma visão.

Nunca esquecerei a primeira vez que vi Chambord. Sobre uma extensa base de
pedra branca em que se podiam contar vinte janelas, erguiam-se seis torres: dois nos
extremos da base de pedra e outros quatro no centro do pátio, formando um branco e
impressionante castelo central. Entre as torres acabadas em telhados de piçarra preta,
havia mais uma torre, bicuda e mais alta que as demais; mais tarde eu saberia que a
chamavam a Torre-Lanterna de Chambord. E ao redor desta se levantavam um sem
fim de chaminés e torres com geométricos desenhos pretos e diferentes alturas.
Criavam a impressão de que no telhado do castelo estivessem dispostas as peças do
xadrez, em metade de uma partida entre gigantes.

E para poderosos e gigantes o tinha concebido o rei Francisco I quando sonhou o


desenho de Chambord. A reis e imperadores afligia por sua magnificência, construído
segundo a teoria do número áureo.

Eu era nobre de nascimento. Consequentemente, tinha vivido entre palácios e


castelos, mas podia jurar que nunca tinha visto nada como Chambord.

—Devo despedir-me aqui —anunciou a dama das baias. — Sigam; na lateral


esquerda acharão uma entrada aberta. Em seguida virão os criados para ocupar-se de

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seu alojamento. Espero que não lhes aconteça mais inconvenientes e que tenham uma
agradável estadia.

Dito isto, a moça girou o corcel e partiu a galope, me deixando desconcertado e


com uma palavra de agradecimento na boca.

Manuel e eu pomo-nos a andar.

Já perto da porta principal do castelo, um mordomo reparou em nossa presença.


Precipitou-se para nós com a conveniente cara de preocupação, algo que eu
considerava mais apropriado e acolhedor que o trato que nos tinha dispensado a
moçados estábulos.

—Monsieur Da Gaula! Estávamos terrivelmente preocupados com você —ofegou o


emperiquitado mordomo, suando dentro de seu fraque.

— Espero que se encontre bem depois do desafortunado incidente. Como é que


não chegou na carruagem que enviamos para lhe buscar?

Por fim tinham-me recebido com um pouco de hospitalidade. Esse homem tinha
um aspecto bonachão. De gesto amável e algo gordinho, parecia caminhar com uma
tabela colocada sob a camisa do uniforme, em contínua posição de “firmes”.

—Atalhamos pelo bosque —lhe expliquei— e ali encontramos uma empregada das
baias que nos acabou de guiar até o castelo.

—Uma moça diz? —Pela cara do mordomo pensei que devia me haver expressado
mal; era possível, minha pronúncia do francês não era totalmente correta— Só há
homens trabalhando em nossas baias.

Memórias de Caroline-Marie Du Berry

Essa manhã me vesti com o traje mais singelo do meu guarda-roupa: um vestido de
musselina marrom com o qual aparentava ser uma simples criada. Penteei-me
apressadamente, presa da excitação, e deixei que as mechas soltas do meu cabelo
continuassem assim. Corri escada abaixo, saltando os degraus de dois em dois. Nossas
duas enormes escadas de mármore branco se enrolam uma sobre a outra, girando em
hélice duplo através dos quatro pisos, formando a coluna vertebral do castelo. Foi um
desenho do próprio Leonardo Da Vinci para o rei Francisco I, o mesmo que mandou
construir nosso querido Chambord, meu lar. Aquele velho rei queria este castelo: um
aproximado de quatrocentas e quarenta cômodos, trezentas e sessenta e cinco
chaminés e oitenta e quatro escadas, apenas como “refúgio” e museu de seus troféus
de caça; tão monumental como o castelo, era seu ego.

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Ainda, às vezes, quando uso essa escada, sorrio ao recordar do tempo de menina,
em que corria por ela brincando de esconder com os filhos do capataz e das
cozinheiras.

Saí, sorridente, à luz do pátio sóbrio e quadrado do castelo e dirigi-me às


cavalariças da asa sudoeste. Touraniere era meu enorme baio, trazido da selvagem
Camargue. Surpreendeu-se de que o selasse a essas horas da manhã, muito tardia para
sair de casa. O cavalo girava as orelhas intrigado. A ele nunca escapava nenhum só dos
meus medos ou sentimentos e essa manhã notava perfeitamente meu coração
pulsando rapidamente. Divertia-me muitíssimo a situação que estava a ponto de
acontecer, e queria sair ao seu encontro.

Tudo tinha começado quando depois de intermináveis lutas dialéticas com meu
pai, conde de Chambord, finalmente não tinha podido evitar que este me trouxesse
um novo professor. Com a idade de dezessete anos, eu já era hábil em montar e atirar,
e essa era a única coisa realmente indispensável para um habitante de Chambord.

Mas minha tia, regente das decisões do castelo depois da ausência da minha mãe,
tinha considerado que era apropriado que eu recebesse noções de artes refinadas. A
meu pesar.

Minha tia Marie, irmã do meu pai e também viúva há muitos anos, tinha sido
acolhida entre os muros de Chambord depois que suas próprias posses foram levadas
à ruína por seu falecido marido, por causa da bebida e do jogo.

Minha tia tinha aparecido em frente às portas de Chambord quando eu tinha


apenas cinco anos, carregando um pequeno vulto choroso que tinha resultado ser
minha prima favorita: Tramise.

Assim, depois de cinco anos de vestidos sujos por brincar no barro das ruas do
povoado e de joelhos cortados de subir em árvores, chegaram as lições de música,
boas maneiras, oratória e de línguas como o inglês, o espanhol e o italiano, tão na
moda. Aproveitava minha tia estas aulas para que sua filha, Tramise, também
recebesse uma boa educação. E eu agradeci; sem uma companheira tudo teria sido
ainda mais aborrecido.

Embora, sim: apesar do desgosto e da discussão de minha tia, a preceptora que


ensinava boas maneiras e protocolo durou em casa muito pouco. Meu pai a despediu
quando viu, palavras textuais: “os gansos estirados e tortos” nos quais tornamo-nos
minha prima e eu. Sempre dizia que lhe dava vontade de agarrar a escopeta de caça e
jogar tiro ao ganso com minha prima e comigo, e acrescentava que as meninas deviam
correr livres e sujaras mãos para converterem-se em verdadeiras damas: damas fortes,
tenazes, capazes de dirigir um castelo como o nosso. Lembro-me que minha tia
desvaneceu.

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Mas quando pensava que tudo por fim tinha acabado e que poderia começar a
desfrutar dos bailes e reuniões sociais proporcionados pela minha temporada, vinha
um novo professor. E o que era pior, apenas para mim; minha prima já era livre. No
que me instruiria o novo professor?

Chateava-me que tivesse que estar preocupada de recebê-lo precisamente esse


dia, o dia da celebração da minha apresentação e introdução na sociedade. Chateava-
me que me distraíra dela. Tinha todos os meus pensamentos postos em começar a me
arrumar para o meu primeiro baile. E para esse momento faltavam poucas horas.

O mais ridículo de tudo era que para repartir estas novas lições, de matéria ainda
desconhecida, contratou-se a um rufião com título de nobreza da Espanha, mas em
situação econômica familiar comprometida. Quer dizer: um pedante obrigado a
trabalhar. E estava se atrasando!

Acabavam-me de informar que o orgulhoso galã espanhol tinha sofrido no caminho


o roubo de sua carruagem. Nem sequer lhe alcançou o dinheiro para uma escolta. Para
sua vergonha apareceria a pé, de um momento a outro, pelo lado sudeste do bosque.
E eu sabia que atalhos tomar para adiantar à pomposa partida que tinha saído em sua
busca. Dar-lhe-ia uma “calorosa” e particular boas-vindas.

Meti no estribo esquerdo a ponta da bota de montar que escondia sob o vestido,
agarrei-me à cela, tomei impulso e montei. Um moço dacavalariça abriu uma ala do
portão, deixando que um jorro de luz inundasse o estábulo em penumbra. Touraniere
começou a avançar ao passo para os jardins, acostumando os olhos à luminosidade. A
ambos os lados do caminho que levava para o bosque se estendia uma enorme manta
de grama, agora ocupada pelo equipamento e o pessoal que preparavam a festa desta
tarde, em minha honra. Vi como algumas criadas se apressavam a pôr adornos florais
em toda parte.

Eu nunca tinha visto flores no castelo, nenhuma, ao meu pai produziam uma
imensa tristeza. Por todo jardim estava acostumado a haver enormes desenhos na
grama, sulcos de terra que formavam rebuscadas flores de Lis.

Tinha ouvido uma vez as cozinheiras dizer em que quando minha mãe era viva todo
o castelo vivia e que as flores o cobriam por dentro e por fora. Os arranjos florais
decoravam cada rincão e nos jardins se combinava uma imensa variedade de plantas
para formar chamativas figuras geométricas de cores, ao mais puro estilo da
jardinagem clássica francesa: tudo muito quadrado e ordenado, como os franceses
mesmos.

Deixei a ermida à direita, a velha granja à esquerda e entrei no espesso bosque.


Guardava silêncio tratando de não afugentar as corças, esquilos ou aos majestosos
cervos que habitam a vasta extensão de Chambord. A marcha discorria entre os
fresnos1, os álamos e as grandes copas ainda úmidas pelo orvalho matinal que refletia

1Ou Freixo–árvore de porte médio; pode atingir 25 a 40 metros de altura, conforme a espécie e vive até 250 anos. A
casca adquire (com a idade) sulcos profundos, verticais e é castanha-escura acinzentada.

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toda variedade de verdes e dourados. As luzes e cores do bosque no início da


primavera, acompanhados pelo gorjeio dos pássaros e o som dos riachos que iam
contornando, conferiam ao bosque um aspecto irreal.

Apesar desta beleza, corriam aterradoras histórias a respeito de monstros com


ferozes focinhos e fantasmas de velhos habitantes do castelo que tentavam caçá-los
nas noites de lua. Os camponeses eram muito supersticiosos e acrescentavam aos
rumores sobre o bosque, convertendo-os em pavorosas lendas. O pessoal de serviço
do castelo, formado no geral por pessoas covardes e intrigantes, também contribuía
para isso. Assim, eram poucos os que se aventuravam sozinhos muito longe, mas eu ia
caçar no bosque com meu pai cada domingo desde que me sustentei em cima de um
cavalo, e aquilo que se conhece não dá medo.

Para mim, o mais aterrador sempre tinha sido escutar os uivos das manadas de
lobos que povoavam o bosque quando tratava de conciliar o sono, a sós, em meu
dormitório.

Apesar dos maus comentários da gente do povoado, meu pai, o bom conde de
Chambord, preferia a caça à missa dominical. Se de adorar um altar se tratasse, ele
teria preferido adorar o de Diana, deusa pagã da caça.

Meu pai não havia tornado a pisar na igreja nem na capela real do castelo desde
que minha mãe faleceu ao me dar a luz. Estava zangado com Deus por tê-la levado tão
cedo, tinha perdido a fé.

Detive o cavalo espectador. Algo pareceu mover-se ao longe. Algo muito ruidoso
inclusive para ser um javali em plena correria. O que devia procurar era um jovem de
uns vinte anos; muito alto, muito arrumado —segundo a criada que tinha
acompanhado o meu pai em uma viagem à Espanha— e de cabelo castanho,
habitualmente recolhido em um laço baixo, ao modo da nobreza. Surpreenderia ao
nobre cavalheiro em tão humilhante situação e, ao parecer, acabava de caçar a minha
presa. Um homem alto e realmente arrumado apareceu de entre a mata,
acompanhado de um lacaio. Uma camisa rasgada deixava ver um forte e duro peitoral,
coberto de um pelo muito masculino. Seu cabelo despenteado caía sobre seu rosto e o
suor banhava seu corpo.

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Capítulo 2

Diário de Marco De Gaula:


Um estranho recebimento.

Não havia mulheres trabalhando nas baias de Chambord…


O certo é que me pareceu estranho. Possivelmente devo ter entendido mal a
jovem do bosque; começava a duvidar do meu domínio do francês…

—O simples fato de que encontraram uma moça sozinha no bosque, já épor si


mesmo estranho —continuou o mordomo, um pouco aturdido ainda, reparando pela
primeira vez na existência de Manuel, para voltar a dirigir-se de novo unicamente a
mim um segundo depois.

— Possivelmente se trata da criada de alguém abrigado no povoado. Veio muita


gente com o motivo da festa! Mas permitam me apresentar: Meu nome é Philippe e
sou um dos mordomos que ficará feliz em lhe servir no que desejar durante sua
estadia aqui em Chambord, embora eu tema que hoje teremos mais trabalho que
nunca, atendendo a todos os convidados que estão chegando para a festa desta noite.

—Precisamente por esse motivo eu gostaria de poder me entrevistar o quanto


antes com o conde, pois temo que minhas roupas…

—Não se preocupe por isso, Monsieur Marc —me rebatizou Philippe.—Assim que
ele teve notícia de seu assalto, o conde mandou trazer de Blois um traje e uma peruca
que mais ou menos pudessem encaixar com suas medidas. Embora os dados que
tínhamos de você fossem escassos, temo-me. O conde não nos disse que você era tão
alto… esperemos que os enviados tenham podido encontrar algo com tanta
precipitação.

—Qualquer coisa estará bem. Estava preocupado por não poder sequer assistir ao
baile.

—Em troca, houve um inconveniente com seu alojamento. Veja, ao chegar com
tanto atraso e por não ter notícias suas, a duquesa de Gramont insistiu em instalar-se
nos aposentos que estavam destinados a você, por isso lhe preparamos uma habitação
temporária, algo mais perto do serviço… Désolé2. Espero que ainda assim a encontre
acolhedora. Assim que a duquesa partir, tudo voltará à normalidade.
Aquilo era uma ofensa e um menosprezo em toda regra. Recebiam-me como a um
esperado convidado e me atribuíam o quarto de um simples professor. De todo modo,
devia começar a assimilar que esse seria meu lugar em realidade.

2Desculpe

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O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Não se preocupe, Philippe. Contanto que possa me assear e ter um leito onde
descansar, qualquer câmara vai parecer-me mais que bem.

—Agradeço a sua compreensão e suas palavras amáveis, apesar da sua posição,


levando em conta um dia como hoje.

—O mesmo que eu digo Philippe. O mesmo digo…

Uma vez no interior do castelo, o primeiro que chamava a atenção era uma
estranha escada em caracol central, com dupla entrada e dupla rampa. Philippe notou
que a estava observando com curiosidade.

—É uma escada em caracol de hélices combinadas, modelo do genial engenheiro


Leonardo Da Vinci. Termina na cúpula que chamamos Torre-Lanterna. Quando tiver
ocasião, suba e admire-a. Dela poderá acessar o terraço das chaminés, da qual há
umas panorâmicas… espetaculares!

O mordomo fez que acompanhassem ao Manuel até as cozinhas. Despedi-me


afetuosamente de meu fiel cocheiro e Philippe me guiou pelo fascinante castelo.
Entramos em um labirinto de escadas em caracol, salas com as portas fechadas,
grandes chaminés, curiosas e belas estufas de cerâmica que me dobravam em
tamanho, esculturas, tapeçarias, cabeças de cervos pendentes e serventes, muitos
serventes que corriam apressados pelas exigências dos convidados e os últimos
preparativos para a festa.

Chegamos até a que ia ser meu quarto. Um aposento na ala chamada “do Francisco
I”. Efetivamente, a câmara não era muito grande, mas era acolhedora. Na pequena
chaminé, um débil fogo já esquentava o aposento de paredes pétreas. A um lado, o
armário. A larga cama em frente à lareira e, entre as janelas, uma escrivaninha que
muito bem poderia me servir para preparar o trabalho. Uma pequena porta, quase
oculta, comunicava com um lugarzinho de asseio que ficava separado do dormitório:
um luxo que não era nada fácil de encontrar. Ali havia um espelho, uma bacia para as
“evacuações”, uns panos, uma bacia para o asseio diário e algo que me surpreendeu:
um estupendo e moderno material de barbear. Meu amigo Édouard, sempre à última
moda.

Aproximei-me das duas janelas que iluminavam o aposento. Através delas se via o
bosque e o fosso que rodeava três quartas partes do castelo. Pelo fosso navegavam
um par de barcos a remo, levando pequenos grupos de cavalheiros embelezados com
chapéus de dia e elegantes damas, protegidas sob suas sombrinhas para fugir do
inimigo declarado da pele dos nobres: o sol.

—Meu querido amigo Marco! —exclamou uma voz estridente da porta. Era o
conde, com um aspecto mais alegre e opulento do que eu recordava. — Dê-me um
abraço! Que boas-vindas à França que você recebeu! —ironizou, divertido. Girou-se
para o mordomo.— Philippe, podese retirar. Monsieur não tem muita bagagem que
desempacotar, vá, vá, vá!

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O Despertar de Belle – Catherine Roberts

O conde emitiu uma sonora gargalhada. Tinha bom humor apesar de ser francês. E,
embora fosse a França um país onde reinavam e imperavam as aparências, sentia-me
com o conde como se tratasse com um boiadeiro popular e afável da minha terra. Por
isso mesmo tínhamos chegado a ser grandes amigos.

—Por sorte salvei os livros que me pediu que trouxesse —lhe informei.

—Esses ladrõezinhos analfabetos não sabem apreciar o verdadeiro valor das coisas.
Não suspeitariam nunca o que teriam obtido por este saque. Em troca vão vender sua
roupa e possivelmente vejamos o ferreiro do povoado passeando com um de seus
trajes no domingo. Mas não se preocupe, encomendei um traje para você esta noite.
Pedi que a peruca fosse a mais discreta possível, já que sei que você não gosta, querido
amigo. Considera-o um presente de boas-vindas.

—Se não lhe ofender, prefiro não aceitar como um presente, Édouard. Pensava lhe
pedir um adiantamento do salário para pagar isto e a viagem de volta do Manuel, o
cocheiro.

—A viagem de volta do cocheiro já está organizada e também corre por minha


conta. O traje para esta noite será um presente. Não vai me fazer essa desfeita por
mais que insista. Já sabe que é um dos poucos dos que realmente gosto de ver estes
dias na casa. Encheu-se de gente estranha a que tenho que fazer a corte e o alvoroço
—disse o conde, realizando uma graciosa brincadeira em uma reverência. — Tudo isto
da apresentação em sociedade e a temporada da minha filha foi ideia da minha irmã
Marie; se fosse por mim eu teria arranjado um bom pretendente para minha filha e
acabou. Alguém com mais paciência que fortuna é o pretendente ideal, amigo. Por isso
duvido que vá encontrar aqui, esta noite.

— Mas não quero lhe aborrecer mais, querido Marc. Alegro-me de que esteja aqui
conosco, apesar de suas boas-vindas à Chambord. Agora tenho que ir à sala de jantar
imediatamente para comer com alguns dos convidados que já estão aqui. É obvio,
pode vir se quiser, embora suponha que desejará se assear um pouco e descansar.

Necessitava tanto descansar que me incomodavam, inclusive, as subidas de


volume repentinas do meu camarada Édouard. Sabia que naquele reino da Europa
central os espanhóis tinham fama de ruidosos, mas os repentinos chiados franceses
que saltavam em meio de sua enxurrada de sussurros me sobressaltavam e me
incomodavam um pouco os ouvidos.

—A verdade é que sim, querido amigo. Sem dúvida preciso dormir um pouco antes
do baile, se quiser me sustentar em pé nele.

—A sesta espanhola, esse invento do diabo que lhes permite viver e trabalhar até
essas horas que nós consideramos noite! Muito bem. É óbvio, amigo Marc. Pedirei que
lhe tragam o almoço ao quarto. Descansa, meu amigo. Esta noite teremos mais
oportunidade de conversar e por fim poderei lhe apresentar à minha pequena

~ 14 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Caroline-Marie e aos outros membros do clube. Madame Dupin está desejando lhe
conhecer!

Édouard saiu do quarto. Tirei a camisa danificada. Meu corpo estava ligeiramente
machucado. Os ramos bicudos e os espinheiros do bosque tinham deixado sua marca
nele. Lavei rapidamente minhas feridas e, por fim, joguei-me sobre a ampla cama.
Antes de me dar conta, estava dormindo.

Sonhei com a imagem da moça do bosque e também com a resistência que tinha
mantido com os assaltantes. Justo quando estes tiravam suas adagas em meus
pesadelos, despertaram-me uns golpes na porta.

Levantei-me relutantemente e abri, sem recordar que não levava a camisa.

Era uma criada de cara desagradável, com grandes peitos, que me olhava de cima a
baixo.

—Trago-lhe seu traje e mais água quente para a bacia —disse secamente, e entrou
sem esperar minha permissão.— Os convidados começaram a reunir-se na galeria.
Daqui a uma hora fará ato de presença à “condessinha”. Oh! Perdão, é um apelido
familiar. Refiro-me à jovem condessa.

A criada deixou a bacia e se plantou frente a mim.

—Enfim… Sou Charlotte, do serviço da sala de jantar e ajudante de câmara, mas


somente hoje sua criada —disse irritada, com o que me pareceu grosseria e quase
desdém.— Suponho que nos veremos frequentemente a partir de agora, Monsieur De
Gaula.

E, dito isto, saiu rapidamente do quarto, antes que eu pudesse dizer uma palavra.
O que acontecia com as mulheres desse país?

Assombrou-me o descaramento dessa criada, criada ou o que fosse. Parecia ter


gênio ruim e o tom com o qual se referiu à condessa não pareceu nem carinhoso nem
familiar. Parecia uma zombaria, por certo.

Em minha Corte alguém assim estaria na rua rapidamente. Mas não era meu
assunto.

Devorei o frugal almoço de pães e queijos franceses, com um pouco de fruta fresca
e geleias, e comecei a me assear. Quando terminei de me vestir me sentia ridículo. A
casaca e as meias-calças violáceas ficaram muitos ajustadas, a camisa era um pouco
exagerada para meu gosto e os sapatos estavam pequenos, mas não levei a mal o meu
amigo; um número tão grande como o que uso só se podia encontrar feito sob
medida. Mas o pior era a peruca branca. Embora fosse muito singela, esta moda da
nobreza me parecia incômoda e pouco higiênica.

~ 15 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Quando abri a porta me senti aliviado ao ver que Philippe, o mordomo, esperava
para me acompanhar até a galeria da recepção.

Philippe sorriu um pouco quando me viu. Devo ter parecido um macaco vestido de
seda. Não me sentia tão à vontade como em meus trajes confeccionados na Espanha,
mais folgados e menos efeminados.

—Está muito elegante, senhor —disse Philippe, cortesmente, apesar de seu mal
dissimulado sorriso.

—Acredito que me sentia melhor esta manhã —brinquei.

Guiou-me, serviçal, até a galeria de recepção situada no torreão central ao que


chamavam “donjon”, e neste ponto se despediu.

A galeria era uma preciosa sala decorada em vermelho e branco, com elegantes
abajures de cristal coroados por um enorme espelho de prata. Presidiam a galeria os
retratos dos distintos donos que Chambord tinha tido ao longo de sua história, do rei
Francisco I até o, nesse momento, rei da França: Luis XV; passando pelos Médicise pelo
rei destronado da Polônia que Luis hospedou aqui.

Um nó apertou meu pescoço antes de entrar na sala. Temia tantos olhares


estranhos postos sobre mim. Em troca, ocorreu que deixei de me sentir ridículo ao
contemplar o interior daquela galeria. Tranquilizou-me ver que eu passaria
completamente desapercebido… por minha simplicidade.

Os elegantes convidados enchiam a galeria com o luxo e charme que desprendiam


de seus coloridos vestidos das mais ricas sedas e veludos, suas muito numerosas e
pomposas joias e a decoração de seus penteados e perucas. Perucas empoadas com
talco branco. Perucas de estilo Allonge para os cavalheiros e ao modo Fontange para
as distintas damas. Perucas decoradas com toda uma série de flores, joias, figuras e
excêntricas formas: desde singelos coques brancos com pérolas, até recriações exatas
da maquete do castelo de Chambord.

Naquela variada amostra da moda francesa se via claramente como superava em


originalidade e opulência a Corte espanhola, manchada pela contínua intromissão da
Igreja, que tratava por todos os meios de apagar a sensualidade e o vivo espírito
festivo do seu povo.

Em seguida divisei entre os nobres vizinhos da região, o corredor que formavam os


membros do nosso clube, ao fundo, sob o retrato do conde. Um sorriso cheio de
emoção e admiração foi ao meu rosto. Era uma honra e uma sorte poder conhecê-los
em pessoa. O grupo estava formado por três jovens de trinta anos que vestiam de
forma quase tão singela como eu —se àquilo podia chamar-se de singelo— e também
os acompanhava um casal de mais idade e ascendência, que parecia liderar a
conversação. Reconheci cada um pelas descrições que Édouard me tinha referido em
suas cartas. Os três jovens eram Denis Diderot, o filósofo e matemático Jean

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O Despertar de Belle – Catherine Roberts

d’Alembert e o genial escritor e compositor Jean-Jacob Rousseau. Este último gotejava


tanta dignidade e sabedoria em seu rosto que nunca teria imaginado que assim seria
em pessoa, mas não havia dúvida: era o rebelde que se fazia chamar Rousseau.
Monsieur Rousseau estava muito bem acompanhado por quem não podia ser outra
que a preciosa Madame Dupin, esposa do secretário do rei e senhora das magníficas
propriedades de Chenonceau. Em seus quase quarenta anos, era a dama que mais
espera criava na sala e a qual eu sonhava conhecer. Efetivamente, era uma mulher
radiante, de sorriso bondoso e cachos dourados que caíam em cascata sobre seus
ombros e seu amplo decote. Mas sua imagem real distava algo da que eu tinha
formado em meus sonhos…

Isso sim: sentia-me um privilegiado, parte de algo grande.

Traguei saliva e avancei para o grupo. Mas, quando me dirigia para eles, alguém
me agarrou pelo braço me retendo.

—Querido barão De Gaula, nosso futuro professor! Sou Marie, a irmã do conde
Édouard, —me informou uma alegre mulher gordinha, embutida em um chamativo
vestido verde — observei que se sentia um pouco perdido entre esta gente. Venha,
nos acompanhe à minha filha e a mim. Minha sobrinha está a ponto de fazer sua
entrada.

Não acabei de compreender por que, mas a visão de sua jovem filha me encheu de
uma estranha emoção. Era uma moça de uns quinze anos, loira, não saberia dizer se
formosa; apenas que seus olhos de cervo fugiam tímidos do meu olhar. Diria que
fugiam tímidos, do mundo.

—Esta é minha pequena Tramise — anunciou Marie. —Tramise, este é o novo


professor de sua prima: Monsieur Marc De Gaula —disse, em francês. — Monsieur é
um barão espanhol, Tramise. Será nosso convidado no castelo. Ele não é bonito? —
acrescentou com o mesmo afável descaramento que o teria feito seu irmão.

Logo que cruzei minha saudação com sua jovem e ruborizada filha, escutei o
anúncio da grande entrada da condessa. Finalmente veria o rosto da minha futura
aluna.

Meu amigo, o conde, estava levando a jovem condessa de Chambord pelo braço.
Fiquei surpreso com sua primeira visão. Nunca tinha visto uma dama mais bonita: sua
peruca branca decorada com escassas e formosas flores simulava, felizmente, um
penteado muito singelo. O espartilho de seda lavrada em cor marfim, deixava intuir
uma muito fina cintura e realçava um busto jovem e firme. Em torno de seu comprido
pescoço, uma brilhante gargantilha iluminava seu rosto empoado. Um rosto que… já
tinha visto antes. Apenas parecia a mesma, mas… sim, era ela! Incrível: a moça do
bosque!

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O Despertar de Belle – Catherine Roberts

A suposta empregada das baias era nem mais nem menos que a condessa herdeira
de Chambord. E minha futura aluna. Já tinha me parecido estranha sua história e seu
comportamento… simplesmente, riu-se de mim.

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O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Capítulo 3

Memórias de Caroline-Marie Du Berry:


A noite do baile.

Sempre tinha imaginado minha entrada na sala de recepção, o dia da minha


estreia, como um momento feliz, o mais feliz da minha vida. Como meu momento.
Mas, na hora da verdade, não podia deixar de pensar em minha mãe. Dava os
primeiros passos na sala imaginando que seu fantasma estava ali, me olhando com
orgulho entre a gente, de pé junto a minha tia.

Enquanto caminhava, tentando acomodar minha respiração à opressão do


espartilho, não podia fazer mais que sorrir, dissimulando a vontade de chorar.

Tinha a cintura tremendamente apertada e os seios doloridos por aquele artefato.


Meu pai sempre tinha permitido que eu me vestisse à vontade, desconhecedor das
modas, mas minha tia havia insistido em me apertar para o evento em um espartilho
interior que realçasse “meus encantos”. Eu olhava, hipnotizada, meus próprios
“encantos” de tanto em tanto: converteram-se em duas enormes bolas ameaçadoras,
ameaçavam sair-se ou me asfixiar.

Tentei não pensar nisso. Minha tia, minha prima e todo o pessoal do castelo
tinham colaborado na preparação deste estranho momento com toda sua ilusão, e
agora resultava que não me sentia especialmente feliz. Ao olhar os convidados, todos
vizinhos, nobres e latifundiários do nosso vale real, dava-me conta pela primeira vez
que não tinha amigos fora de Chambord. Estava a sala cheia de garotas da minha
idade, filhas dos outros nobres da região, mas eu as tinha visto apenas algumas vezes
em minha vida.

Entretanto, recordava minha infância cheia de jogos e travessuras: as que tinha


compartilhado com os filhos e filhas dos serventes do castelo. Mas, depois, conforme
fomos crescendo, começaram a me tratar cada vez com maior distância e respeito.
Tinham trocado o “você” do “você aceita” pelo tratamento de “vós” sem que eu mal
tenha notado, envolvida que estava em minhas aulas de tiro, de idiomas ou minhas
tardes de caça.

E agora não estavam ali.

O mais parecido que tinha de uma amiga e confidente era minha prima Tramise.
Tramise vivia conosco no castelo desde que seu pai, já falecido, levou suas
propriedades à ruína com suas más gestões. Meu pai tinha acolhido minha prima
encantado, pensando que outra presença jovem daria à casa mais alegria. Mas Tramise

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O Despertar de Belle – Catherine Roberts

tinha um comportamento muito peculiar, tanto que os criados a chamavam entre eles
de “a enfeitiçada” ou “Mademoiselle Fantôme”: a senhorita fantasma. Este apelido foi
dado porque Tramise sempre fazia o possível para passar despercebida, falando
corretamente e andando tão silenciosamente que parecia que flutuava. Tramise
passava muito tempo sozinha, e quando aparecia nas salas o fazia sem ruído e
inesperadamente, dando aos criados uns sustos terríveis.

Mas essa noite lhe era impossível passar despercebida. Envolta em um inocente
vestido de seda rosa pálido e carente de peruca, seu cabelo loiro brilhava mais que
nunca e seu rosto parecia o de um anjo. Uma vez mais tínhamo-nos saltado o
protocolo para permitir que ela estivesse na festa, já que era menor de idade, mas
ocorria que certamente ela não teria nunca sua própria apresentação em sociedade.
Era como uma irmã para mim e eu tinha suplicado ao meu pai sua presença.

Depois que meu pai beijou minha mão, minha tia e ela foram as primeiras a
aproximar-se. E traziam consigo o pobre professor. Não reprimi um sorriso ao vê-lo,
vestido em um ridículo traje violeta que lhe vinha muito pequeno. Olhava-me com
certa recriminação e nervosismo, arranhando-se dissimuladamente sob a peruca
empoada.

Era alto e um tanto maior que eu, mas seu rosto refletia uma impressionante
inocência. Eu não sabia como poderia concentrar-me em suas aulas, após ter
percebido seu bem formado e masculino peitoral sob a camisa rasgada que usava no
bosque.

Agora me arrependia um pouco de haver zombado dele, porque essa noite a


ninguém seria apresentado como um professor, mas sim como o barão Marco De
Gaula. E assim foi como me apresentaram ele.

Olhei-o, maliciosa, e ele me fez uma reverência, beijando minha mão. Havia um
brilho de ironia em seu sorriso e uma promessa de vingança em seus olhos.

Tinha uns olhos de lobo malvado, incríveis.

Depois de um breve e formal: “—Um prazer, Mademoiselle Du Berry. Ansiava conhecê-


la”. E um simples e mal-intencionado, por minha parte: “—Ardia em desejos. Seja bem-
vindo e desfrute da minha festa”, —retirou-se para deixar passo ao seguinte convidado
protocolarmente obrigado a me saudar.
Essa noite me apresentaram a tanta gente que mal prestei atenção em seus nomes
e a todos os seus títulos. Mas Denis Papin, um jovem inventor da vizinha população de
Blois, sim, que me chamou poderosamente a atenção. Era inevitável. Para começar,
porque era o único cavalheiro sem peruca: Exibindo sua larga juba dourada dava
mostra pública do seu rechaço às normas sociais. E, para concluir, porque era
impossível não ver como os olhares de todas as mulheres presentes, de qualquer
idade, cravavam-se nele como agulhas em uma almofada de costura.

Eu, em troca, tentei lhe mostrar educada indiferença.

~ 20 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

O galã em questão me beijou a mão com uma inclinação, e logo olhou-me aos
olhos sem censura nem respeito. Tinha uns rasgos faciais muito marcados, inclusive
mais que o professor; ambos tinham mandíbula ampla e quadrada e nariz reto. Sem
dúvida, Monsieur De Gaula era mais alto e magro, mais gracioso; mas o peito de Denis
Papin parecia o de um touro.

Papin era um personagem contraditório, do qual muito tinha ouvido falar. Por um
lado, sentia grande respeito por ele já que era um grande cientista, quase um gênio:
um membro da Academia das Ciências, que em sua luta por agradar às mulheres tinha
inventado uma nova panela que cozinhava mantimentos “a pressão”, jogando fumaça
de maneira infernal, como se se tratasse do traseiro do demônio. De outro lado, a
beleza e a vaidade de Denis Papin eram requeridas por muitíssimos artistas, que o
usavam como modelo de seus quadros e esculturas.

Por esta estranha confluência, não sabia muito bem o que pensar dele.

Mas não tive que pensar muito; ele se dirigiu a mim primeiro:
—Se ninguém me preceder em honra, adoraria que me permitisse ser seu
acompanhante durante o jantar e que, mais tarde, concedesse-me o primeiro baile de
sua estreia, belle mademoiselle.

—A honra é uma qualidade que não ousaria medir em títulos nem em riqueza, a
não ser no que a alma de um homem alberga. Portanto, é sua a tarefa de me entreter
durante o jantar e de me guiar em meu primeiro baile. Suspeito que é um perito
nestes assuntos.

—Intui bem, querida.

É obvio, minhas palavras não tinham sido mais que galanteria. Realmente, não me
fazia muita graça a ideia de abrir meu baile com ele. O senhor Papin estava habituado
a ser o centro das atenções. Necessitava que todas as olhadas estivessem dirigidas a
ele. E essa noite o tinha garantido uma vez mais.
Agradado seu ego, afastou-se para minha tia sem deixar de me olhar. Ao chegar
até ela me esqueceu e dedicou à amadurecida mulher todo seu sedutor olhar. A muito
iludida tremeu como uma folha.

—Caroline-Marie, filha —interveio meu pai. — Apresento a minha boa e muito


querida amiga Louise-Marie Dupin de Chenonceau, a que tanto lhe falei.

Por fim lhe punha rosto à admirada amiga do meu pai. Realmente era muito bonita
apesar de sua maturidade e parecia muito agradável. Madame Dupin era uma lenda na
região. Seus cachos de cabelo, de um loiro muito claro, caíam graciosamente sobre o
decote de seu vestido azul pálido. Tinha um aspecto bondoso e etéreo. Além disso,
meu pai dizia que sua inteligência era publicamente comparada a de um homem.

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O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Meu marido lhe apresenta suas desculpas por não poder assistir, mas o
ocupavam urgentes assuntos de Estado —se desculpou Madame Dupin, segurando-me
com natural confiança e um grande sorriso.— Mas, enfim, eu estou encantada em
conhecê-la, querida. Seu pai fala maravilhas de você, mas é muito mais encantadora
do que ele me havia dito —disse, coquete, piscando um olho ao meu pai.— Tem que
vir com ele ao Chenonceau em sua próxima visita, levo muito tempo desejando-o.

Esmagou-me seu excesso de cortesia, mas, afinal, falar de coração era uma prática
pouco habitual no protocolo.

—Sentir-me-ia muito feliz, madame. Eu também levo tempo desejando ir a um de


seus lanches, que de tão boa fama gozam —lhe disse, sem mentir.

—Não, não. Não estou falando de um insosso lanche social de bolos e chá. Refiro-
me a que será bem-vinda em nossas reuniões… —disse baixando a voz. — Estou certa
de que as achará muito mais interessantes… seu pai me falou de sua grande
inteligência e de sua capacidade. Mas não é o lugar para lhe contar mais. Agora será
melhor que terminem as apresentações e felicitações para que possamos ir todos
jantar e dançar. Está linda, querida.

Afastou-se, roçando minha mão com suavidade extrema e me deixando com a


boca aberta pelo desconcerto e a intriga.

Atrás da senhora Dupin vinha o que parecia ser seu acompanhante essa noite: um
jovem de trinta anos com uma grande peruca, olhos afundados e queixo e nariz
bicudos. Tratava-se do tutor de seus filhos, além de uma famosa eminência.
Reconheci-o antes que meu pai o apresentasse: era Jean-Jacques Rousseau, um
polêmico escritor que saldado seu exílio depois de uma terrível injustiça, estava
colhendo grande êxito escrevendo tragédias e novelas “moralizantes”.

O homenzinho beijou minha mão rápida e secamente e me dedicou uma nervosa


reverência. Seu olhar parecia distante e seus pensamentos perdidos. Sem dúvida lhe
incomodavam os protocolos sociais.

Depois de dezenas de lentas saudações mais, chegou enfim, o anúncio do jantar.

Dirigimo-nos à preciosa sala de jantar, decorada especialmente para essa noite


com centenas de flores e gigantescos candelabros. A luz tênue das velas arrancava
brilhos mágicos da folha de ouro e dos tons marfim que banhavam o mobiliário da
sala. Uma mesa realmente enorme se dispôs ao longo para a ocasião.

Vi como minha prima e minha tia convidavam o professor a sentar-se junto a elas,
um pouco afastadas de nós por culpa da ordem que marcava o protocolo. Minha tia o
tinha disposto assim. Meu pai e eu presidimos o centro da mesa. Os amigos do meu
pai e alguns altos cargos convidados por compromisso seriam nossa aborrecida
companhia; aborrecida… ou isso pensei.

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O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Inauguramos o banquete elevando as taças de champanha em minha honra.


Procurei a minha prima com o olhar, necessitava-a ao meu lado. Mas cruzei com o
olhar do professor e, rapidamente, elevei a cabeça, desafiante. Devia aparentar
dignidade e dissimular que por um momento e sem prévio aviso meu coração se
acelerou. Desejava que seu olhar estivesse centrado em mim. Desejava-o. Tive que
fazer um esforço para não morder o lábio. Ato seguido, como anfitriã, levantei o garfo
à vista de todos, aguardei e o dirigi para meu prato. Era o sinal: todo mundo podia
começar a comer. Carne de ave de caça em molho de cranberry nos aguardava como
primeiro prato.

Tentei relaxar e me centrar no jantar. Respondia educadamente as perguntas


preparadas e insossas quando escutei como o excêntrico Rousseau e o altivo conde
Gastón de Orleans se encetavam em uma discussão:

—Acredito que o problema é que Luis XV está exercendo um governo despótico —


dizia Monsieur Rousseau.— Resolve os assuntos de Estado rápido e sem decisão,
deixando-se influenciar por sua Corte de rasteiros aduladores, sem comprovar se é
verdade a informação que lhe dão e cedendo privilégios somente a estes. Por esta
razão não tem nem ideia dos verdadeiros problemas que assolam o seu país! Somente
se confia em sua Corte de clérigos e nobres, e estes procuram o próprio interesse. Não
escuta a voz do povo!

—Não quer olhar por medo de ver coisas de que não goste — apontou Madame
Dupin, de acordo com a opinião.

O velho pai do conde Gastón, sentado junto ao seu filho, emitiu um som gutural
que delatava o quanto acabava de escandalizar-se.

—Você também apoia essas ideias absurdas, Madame Dupin? —replicou Gastón de
Orleans, com azedo desprezo.— Enfim, suponho que pensar assim está na moda, mas
não acreditarão a sério que a opinião da plebe pode importar algo, não é?

—São a força de trabalho do país! —defendeu Rousseau. — E também têm


necessidades e reivindicações, monsieur.

— Além de sábios conselhos que contribuir —disse eu, sem saber se fazia bem ou
mal intervindo na conversação. Notei que meu pai erguia a cabeça, assim tomei sua
mão e segui. — Meu pai sempre escutou as pessoas que trabalham diretamente
nossas terras, nossos cavalos, a reserva de caça… quem melhor que eles para saber
quais são os problemas e necessidades de cada um de seus ofícios?

—Desculpe, jovem e formosa dama, —replicou Gastón— mas se aceita um


conselho: nunca diga sandices semelhantes se for à Corte do rei. Jamais obteria assim
nenhum privilégio.

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O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Não quero mais privilégios, distinto conde. Vivo com mais do que é necessário. O
que quero é que tudo vá bem em minhas terras, para que as pessoas tenham o que
comer e viverem em harmonia.

O pai do conde não emitia palavra, mas por sua cara temperamental passava toda
classe de gestos. Seus olhos exagerados, seus pigarros e os sorvos nervosos que dava
ao champanha resultavam do mais gracioso, mas me fizeram temer que lhe desse uma
parada cardíaca ali mesmo de um momento a outro.

—Possivelmente troquem de opinião quando começarem a conhecer os prazeres


que pode lhes oferecer a Corte… —disse seu filho, com o brilho libidinoso da ambição
em seus olhos, fiel reflexo da educação que lhe tinha dado o velho conde de
Orleans.— Eu sinto discordar de alguns de vocês, mas realmente não entendo por que
teríamos que nos rebaixar e pedir à plebe sua opinião. Não acredito que essa gente
inferior e imperfeita seja capaz de raciocinar com clareza.

—Isso que diz não tem nenhum fundamento natural —afirmou Denis Papin. —
Todos nascemos com uma capacidade intelectual independente da fila que ocupamos:
observe se não aos artistas, ou ao meu grêmio: os cientistas. Nós, os homens da
ciência, contribuiríamos com muitos avanços e melhoraríamos a produtividade das
terras se nos escutasse. Não será que apenas tem medo que se ampliem os direitos
sociais e gente como você perca algum dos muitos que tem?

—Não. Simplesmente acredito que há classes, como essas entre as quais você se
inclui com tão incompreensível orgulho, que não devem ter nenhum direito à opinião.

Monsieur Rousseau ficou em pé de pura exaltação. Madame Dupin o tentou reter,


pousando uma mão em seu braço, como quem tenta tranquilizar a um menino de
berço, mas não o conseguiu. Toda a mesa ficou em silêncio, espectadora.

—Eu discordo do que você diz, Monsieur Gastón, —exclamou o polêmico


dramaturgo—mas defenderei até a morte seu direito de dizê-lo3!
Fiquei tão surpreendida por toda a carga de significado que tinha aquela última
frase: “defenderei até a morte seu direito de dizê-lo”, que nasceu de mim lhe dedicar
um reconhecimento e umas palmas de aplauso ao engenhoso e agudo Rousseau.
Comecei a aplaudir. Sobressaltei-me quando, ao cabo de uns segundos, toda a larga
mesa me imitava, aplaudindo sonoramente ao tímido homenzinho. Inclusive o
ressentido conde Gastón de Orleans se viu obrigado a ceder e unir-se ao aplauso,
relutantemente. O professor espanhol me olhava fixamente enquanto aplaudia com
uma enigmática expressão, mescla de zombaria e orgulho em seus olhos.

Não tinha nem ideia naquele momento de que, por meu ato, aquela frase ficaria
para a história.

3 N.A.: Nomeação atribuída ao seu companheiro contemporâneo e ilustrado, Voltaire.

~ 24 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Depois disto, o conde de Orleans, amedrontado, optou por não pronunciar uma
palavra mais.

O resto do jantar transcorreu sem incidentes. E, ao fim, os primeiros acordes


chegaram da sala de música.

Todos nos dirigimos para lá.

Os convidados começavam a dispor-se em amplo círculo, deixando um espaço no


qual eu devia inaugurar o baile. O presumido Denis Papin se aproximava de mim com
ar mais que triunfal quando, de repente, meu pai lhe cortou o passo.

—Desculpe, Monsieur Papin, mas não vou renunciar à honra de ser eu mesmo
quem compartilha a primeira dança da minha filha.

Um sorriso foi ao meu rosto e as lágrimas aos meus olhos. Ao tempo, a cara do
Monsieur Papin se ia chateando.
—Não se preocupe; a cederei na segunda peça —teve que acrescentar meu pai.

A música começou a soar e começamos a girar pela pista. Evitei encontrar os


olhares que nos rodeava, perdida sozinha no de meu pai. Mas, ao acabar a peça e
depois do aplauso geral, retornou Denis Papin, mais decidido que nunca. Espremeu-me
em seus braços enormes, sem respeito pelo espaço mínimo que me permitia respirar.

Esse homem não tinha limites nem maneiras, embora deva admitir que tinha me
impressionado com seu discurso e suas ideias inovadoras.

A música soou de novo e Denis voltou a ser o vaidoso de sempre. Exagerava


ridiculamente os passos de baile e agitava ao vento sua juba dourada. Tinha um
orgulho desmedido para ser apenas um homem das ciências; em épocas passadas
nada longínquas, um simples herege. Sorte tinha de que nestes tempos de iluminação
precisamente as ciências e as filosofias voltassem a estar tão na moda como nos
tempos de Platão. Inclusive os pintores gostavam de pintar ultimamente as damas
semidesnudas, unicamente cobertas por túnicas de estilo Império.

Sim... sua sorte e seu carisma, unidos à sua beleza, convertiam-no no homem da
moda. Nenhum nobre que se apreciasse prescindiria dele para qualquer evento em
todo o Vale do Loire.

—Seu pai já elegeu um pretendente para você, Senhorita Du Berry? —perguntou,


aos poucos segundos, sem decoro nem preâmbulos.

— Apenas acaba de começar minha temporada, Monsieur Papin. Temos tempo


suficiente para valorar aos possíveis candidatos. Não estará pensando você em
oferecer-se a formar parte de minha lista, não é? —perguntei, antes que me tomasse
por tola.

~ 25 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

O descarado corpulento riu sonoramente.

—Você é uma jovem direta. Eu gosto. Advirto-lhe que isso eu gosto… e eu estou
acostumado a acabar obtendo o que me agrada.

—É isso uma ameaça?

—É uma ameaça, em toda regra.

Lancei lhe uma advertência direta apenas entreabrindo os olhos.

—Suas palavras me divertiriam se não tivessem soado tão presunçosas.


—Presunçoso? Não, querida: realista. Conheço minhas possibilidades e não me
ando com melindres. Note-se, por exemplo, neste momento todo mundo nos olha.

Não acreditava que fosse tão irritante e encantadoramente inocente.

—Óbvio, monsieur! Recordo-lhe que você está dançando com a anfitriã —disse
docemente, como quem quer amansar a uma fera.

Para minha surpresa, Denis riu sonoramente.

—Ambos sabemos, minha formosa partenaire, que eu contribuo em ampla medida


a esses olhares —disse arqueando as sobrancelhas.— Não há homem ou mulher neste
nosso Vale dos Reis que não tenha sonhado alguma vez com minha selvagem juba ou
com minhas feições clássicas, ao mais puro estilo grego. É um fato.

—É obvio. Isso é porque você está imortalizado em quase todos os quadros e


esculturas com as quais ultimamente se adorna Blois, nossa capital. É impossível não
sonhar com você se a gente for uma pessoa que sai, como costume, à rua.

—Agora que o menciona, não vi nenhuma escultura atual no castelo. Deveria sua
família ficar na moda, e que melhor que fazê-lo com meu rosto? —disse-me,
mostrando as duas fileiras de dentes brancos.

Eu também tentei sorrir, mas se tornou o intento em uma careta grotesca de boca
torcida e cenho franzido.

— Consultareiao meu pai —disse, contendo a risada.

Era o que me faltava! Sair pela manhã dos meus aposentos e me topar de novo
com sua cara em mármore de travertino. Procurei com o olhar ao meu redor com
alguém ou algo que pudesse me resgatar.

Observei como uma longa fila de jovens e não tão jovens aguardavam seu turno
para dançar com minha prima Tramise. Nós nos olhamos e eu lhe sorri. Ela encolheu os
ombros, um pouco sobressaltada.

~ 26 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Então vi também como um grupo de damas revoava ao redor de alguém: tratava-


se do professor, o barão De Gaula. Não lhe via confortável com tanta demanda de
cuidados de todas aquelas mulheres.

Me ocorreu que podíamos nos resgatar mutuamente.

Desculpei-me com o Monsieur Papin, que ainda assim tentou me reter um


momento mais. Fiz um esforço por me soltar de seus braços.

Abri-me passo entre o grupo de mulheres que paqueravam sem dissimulação com
o jovem e arrumado barão espanhol. Era bem conhecido o ímpeto sexual que todo
ibérico despertava entre as damas da Corte francesa. Esses aspectos cheios de honra,
esses corpos masculinos robustos e bem formados, essa pele quase exótica, esses
membros —pensava eu, ainda inocente, somente em mãos e pés— tão
proporcionalmente grandes… constituíam um capricho extravagante, uma promessa
de força amorosa tão viril contra a qual nossos brancos e delicados franceses
dificilmente poderiam competir.

Irrompi no grupo:
—Barão De Gaula, agora me encontro disponível para a dança que lhe prometi, —
menti descaradamente, guiando-o com um olho— se o desejar.

Muitas me olharam com ódio, irritadas e surpreendidas por minha interrupção.

Nem sequer lhes dirigi o olhar. Eu não as conhecia e elas não tinham vindo ao baile
para me acompanhar em meu grande dia, mas sim para pescar marido, coisa que não
deixava de me doer um tanto. Nenhuma delas se dirigiu a mim depois das
apresentações de protocolo em nenhum momento, nem sequer pela cortesia de fingir
vontade de conhecer esse novo membro da alta sociedade francesa que a partir dessa
noite era eu. A isto acrescentamos que eu não estava acostumada a tratar com mais
damas de alto berço que minha tia e minha prima. Os restos das minhas amizades
infantis, espantariam a manada de raparigas bregas e esbranquiçadas com propensão
ao desmaio ali reunidas.

Meus olhos sorriam ao professor, em espera de sua resposta.

Levantou-se e avançou para mim com uma cara de extremo alívio que parecia
dizer: “Obrigado”.

Cuidando que ninguém pudesse ouvi-lo, aproximou-se do meu ouvido e sussurrou


risonho:

—Será um perigoso prazer acompanhá-la.

Tomou minha mão, elegantemente enluvada para a ocasião, e me guiou para a


pista. Colocamo-nos em posição para começar a peça. A música soou.

~ 27 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—É o momento ideal para uma desculpa —disse, enquanto me guiava em um


suave baile.

Sabia perfeitamente que se referia a uma desculpa de minha parte, por minha
pequena maldade ao havê-lo enganado no bosque. Ao parecer, queria começar essa
mesma noite suas lições de disciplina. Não ia permitir.

—Uma desculpa? Não acredito que tenha nada pelo que desculpar-se comigo,
professor.

Ergueu-se e quase parou na pista, incrédulo.

—É obvio que não sou eu quem deve desculpar-se! Queria dizer…


—Sei perfeitamente o que queria dizer.
Sorri. Ele elevou os olhos, armado de paciência, e finalmente devolveu-me um
cálido sorriso.

—Ainda não começaram as aulas e já vou ter que pedir ao seu pai um aumento de
salário. Este trabalho não está pago!

Continuamos dançando, ambos sorridentes, divertidos, flutuando pela pista de


baile. E então me ocorreu algo muito estranho: esqueci que o mundo girava ao nosso
redor. Sem sequer estar consciente, os coloridos trajes, as perucas, as librés… se
fundiram em uma neblina imprecisa. Deixei inclusive de escutar a música, concentrada
só emquão confortável que me encontrava girando entre os braços de Marco. Uns
braços fortes e agradáveis que, sem ter o tamanho gigantesco dos braços do Denis,
faziam-me sentir segura, protegida.

Tão absorta estava em nossa dança que, quando terminou a valsa não percebi. Eu
continuei a dançar. Felizmente, Marco me deteve e pigarreou.

Olhei seu rosto: estava a ponto de proferir uma gargalhada. Separei-me dele sem
uma palavra, um pouco envergonhada, e me dirigi para o terraço exterior. Necessitava
de um pouco de ar fresco. Tinha ficado em ridículo.

Tive que me desculpar ao meu passo com alguns cavalheiros que esperavam turno
para dançar comigo, mas não fui muito delicada.

Com minha retirada, alguns homens aproveitaram para dispersar-se também;


deviam estar desejando-o. Começaram a reunir-se pelos cantos para beber e
conversar. Algumas damas também começaram a formar filas e a dar conta do ponche.

O ar frio do exterior gelou meu rosto. Apoiei-me no corrimão de pedra e olhei para
os jardins escuros, tenuamente iluminados por tochas. Também neles tinha começado
um espetáculo: Minha tia Marie tinha contratado atores e atrizes de comédia aos quais

~ 28 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

tinha disfarçado de ninfas e faunos, para depois fazê-los correr seminus por toda a
noite entre as tochas e sebes do jardim. Imitavam perseguições infantis e paqueras
sensuais. Emulavam cenas da novela da moda, Sonho de uma noite de verão, do inglês
Shakespeare.

Cavalheiros e damas começaram a sair do salão de baile para, depois de me


dedicar uma apressada inclinação, correr a depositar suas defecações em meus jardins
e em meu bosque. Agradecia-lhes mentalmente pela delicadeza de não deixar suas
evacuações em qualquer canto dos meus salões. Mas os que estavam expostos ao frio
e à escuridão eram os menores...no dia seguinte o pessoal do serviço certamente
encontraria surpresas desagradáveis por toda a casa.

Meu pai me seguiu ao terraço. O agradeci mentalmente... necessitava de sua


companhia. Vinha de braço dado à senhora Dupin.

O simpático casal vinha falando de temas banais:


—Sua sobrinha Tramise não deixa de receber felicitações por sua beleza —estava
dizendo Madame Dupinao meu pai. — Parece muito doce. Depois deste êxito deveria
pensar em lhe organizar sua própria apresentação em sociedade, querido. A fila de
pretendentes seria uma das mais longas da região. Em que pese a que não tenha
posses próprias, se você a avalizasse com um bom dote, com certeza que poderia casá-
la muito bem.

—Bem, tem só quinze anos… e o certo é que, querida Louise-Marie, embora viva
com ela em harmonia, compartilhando a mesa diariamente, nunca cheguei a vê-la
como uma outra filha. Não lhe dei o mesmo trato que à minha filha e não sei se
deveria fazê-lo para coisa semelhante. Além disso, assim que se corra a voz entre os
possíveis pretendentes de seu permanente estado de tristeza e solidão, acredito que o
projeto poderia ser desperdiçado.

—Tramise está muito agradecida com você por havê-la acolhido, pai —intervim,
saindo da penumbra da noite.— E não está triste, simplesmente é seu caráter tímido.
Comigo conversa bastante, e inclusive ri.

—Tenho bom olho para estas coisas... —continuou a senhora Dupin — sabe,
querido. Me faça caso: poderia a casar bem.

—Possivelmente não seja uma má ideia —concluiu meu pai, encurralado.—


Quando algum desses moços incautos me der uma oportunidade, vou tirá-la para
dançar e lhe darei a notícia. Em um par de anos terá sua própria apresentação em
sociedade.

Emocionada pelo que acabava de ouvir, girei para me dirigir à pista de baile e
advertir a minha prima de que meu pai tinha boas notícias para ela.

Mas dei de cara contra um muito duro peito masculino, causando muito dano ao
meu nariz.

~ 29 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Levantei a cabeça para ver quem tinha sido o imprudente.

~ 30 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Capítulo 4

Diário de Marco De Gaula:


Um baile com a Belle.

Estava sendo uma noite terrível: Desconfortável nesse estreito traje arroxeado que
comprimia minhas partes nobres e marcava sua forma, afastado no jantar dos únicos
amigos que conhecia na festa —a maioria por carta— e com os quais tanto ansiava
falar: os membros do clube, e acovardado ante o descaramento nada sutil das damas
francesas.

Nunca tinha visto na Corte espanhola nada igual. Não estava preparado.

Tinha recebido seis propostas para me apresentar em seis aposentos distintos. O


mais surpreendente é que, ao escutar a primeira dama como me faziam mais
propostas, uma segunda e uma terceira, não se incomodou absolutamente, ao
contrário: propôs-me economizar esforço recebendo todas juntas em um só aposento.
Mandaria seu marido a um dos quartos vazios, sem mais. Ante minha negativa, a
insistente dama propôs turnos atrás de uma grande sebe do jardim. Assim que as
rechacei uma vez mais, outras três damas distintas trataram, muito delicadas e
lisonjeadoras esta vez, de tentara sorte.

Nesse momento, no que já não podia nem responder de puro assombro, apareceu
a anfitriã da festa, com seu sorriso malévolo e seu vestido branco marfim, como se se
tratasse de um anjo salvador.

A luz que essa moça desprendia e a raiva e perplexidade que ela parecia gostar de
provocar me tinham intrigado. Sem dúvida, tratava de mascarar com suas travessuras
sua natural inocência: seus olhos falavam dela.

Durante o jantar, enquanto simulava escutar as intrigas sobre o povoado e o


castelo que contava sua tia, Marie, de Chambord, tinha estado dissimuladamente
atento à discussão de Rousseau com o conde Gastón. As palavras de reconhecimento
que a jovem condessa Caroline tinha dirigido ao seu pai, em defesa da voz do povo e
ao Monsieur Rousseau, foram o que me fez começar a pensar que era muito mais que
a típica nobre travessa e caprichosa que aparentava ser. Era uma nobre com voz
própria, um espécime do mais estranho. Tinha captado minha atenção, conseguindo
inclusive que me esquecesse um tanto da minha sonhada senhora Dupin, de
Chenonceau.
Madame Dupin parecia preferir a companhia de homens amadurecidos e
ilustrados, como Monsieur Rousseau e meu amigo o conde de Chambord, que a de
inexperientes jovens como eu. Aproximou-se de mim um momento, durante o baile,
para me saudar e me dar uma amável boas-vindas. Dava-me então conta de uma coisa:

~ 31 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Às vezes os sonhos se veem derrotados pela realidade. Tinha-a idealizado. Se ela


também se equilibrasse sobre mim como as outras damas, com alguma proposta
lasciva, duvido muito que eu tivesse respondido em realidade como o fazia em meus
sonhos. Constava-me que era culta e inteligente, pelas referências do clube, e se
arriscava a que as reuniões se levassem a cabo em sua casa: isso era algo digno de
admirar. Mas devo admitir que não senti ao vê-la tudo o que tantas vezes imaginei
sentir. Também devo admitir que, de haver-se produzido a oportunidade de algum
encontro sexual, tivesse temido muito não estar à altura.

A dança com minha nobre futura aluna foi o momento que realmente mais
desfrutei. Até que, de repente, desculpou-se ruborizada e correu para o terraço.

Vacilei, desconcertado. Retirei-me dissimuladamente a um lado, sem saber como


reagir. Possivelmente algo em mim realmente lhe tinha incomodado. Duvidei durante
uns breves minutos. Eu estava apostando o salário! Eu era a única esperança para
minha família. Esperava não haver sido tão inoportuno para ter que voltar à Espanha
humilhado e de bolso vazio. Esperava que não! Decidi segui-la ao exterior. E, ao sair,
topei bruscamente com alguém. Era ela! Reconheci o aroma de pó de rosas de seu
cabelo —concretamente, de sua peruca. Seu rosto deu contra meu peito e sua testa
contra meu queixo.

Emitiu um gracioso grito de surpresa e dor.

Como ato reflexo para evitar o choque, nossas mãos se juntaram no ar, ficando
suspensas nele, roçando-se, quando assimilamos com quem tínhamos chocado.

—Já nos retirávamos —se apressou a dizer Madame Dupin, com olhar perspicaz.
Um olhar que nos mostrava sua cumplicidade. Ruborizei-me absurdamente.

Caroline-Marie e eu ficamos sozinhos no belo terraço exterior.

— Me honraria com um passeio? —propus, rapidamente, conciliador.

—Para assinar a paz? —disse, me olhando de esguelha com os olhos entreabertos.

Suspirei aliviado: em seus olhos brilhantes e em seu tom de voz não havia
nenhuma sugestão de carta de demissão.

—Poderíamos dizê-lo assim.

Ofereci-lhe meu braço, como costumava ser a cortesia, ela vacilou um momento
antes de agarrá-lo, sorridente, mas altiva. Era muito graciosa: fingia sua altivez, por
algum motivo não lhe saía natural. Parecia estar desfilando em um baile de máscaras.

Encaminhamo-nos para os grandiosos jardins. Somente no Palácio de La Granja,


em Segóvia, tinha visto luxo similar. O que nunca tinha visto eram ninfas e faunos

~ 32 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

brincando de correr e jogando eroticamente entre as sebes. Mas assim eram os


franceses. E por coisas como essa que me atraía tanto trabalhar no país.

Em silêncio, diluímo-nos na escuridão dos remotos atalhos.

Caroline-Marie me falava, sossegada, dos terrenos e posses de Chambord. Apesar


das lendas lúgubres que se contava sobre eles, ela parecia adorar aqueles bosques.
Contou-me como seu pai a ensinou a caçar neles desde pequena e que era das poucas
pessoas capazes de orientar-se em sua imensidão. Confessou-me, além disso, o qual
tomei como uma grande adulação, que se sentia incapaz de reconhecer ante seu pai
que ultimamente estava desenvolvendo certa apreensão de tirar a vida de um animal
de forma tão gratuita. O nobre esporte da caça era, ao parecer, em Chambord, uma
tradição centenária e duvidava de que seu pai entendesse o que lhe ocorria. Só tinha
compartilhado esta preocupação comigo e com sua prima, disse-me com voz cúmplice,
mas firme. Não me surpreendeu de todo que me confiasse isso, havia sempre um
estranho vínculo na relação aluno-professor que convertia aos últimos em “guardiões
dos segredos” dos primeiros, sobretudo se careciam de figuras como irmãos maiores,
como era seu caso. O resto de habitantes do castelo, por isso me disse, não eram
todos de confiança. Poderiam escandalizar-se se isto chegasse aos seus ouvidos e
fariam correr pelo povoado todo tipo de rumores sobre ela. Assim funcionavam as
coisas.

Perguntou por minha família. Deixou a um lado a altivez fingida, as zombarias e a


soberba forçada para interessar-se pela situação que me tinha levado até ali. Sem
esperá-lo, estava descobrindo uma dama com quem era um prazer falar.

Contava-lhe detalhes sobre minha escassa família, apenas meus velhos pais e um
irmão, e como foi minha grande casa de Madrid antes dos tempos de decadência,
quando uns gritos não muito longínquos alertaram-nos.

Detivemo-nos em seco, lívidos e olhamos ao nosso redor.

Os gemidos que escutaram de novo, provinham da escuridão do bosque.

Como guiados por um impulso, em lugar de nos afastar dali, corremos os dois para
eles.

O nervosismo de Caroline aumentava conforme se aproximava da origem dos


gritos: alguém necessitava de ajuda e ela tinha reconhecido o dono da voz.

Ao fim demos com a origem dos soluços. Não estávamos preparados para o que
encontramos entre as altas árvores, perto da velha ermida.

O pai de Caroline, meu amigo Édouard, jazia no chão, ensanguentado e


semiconsciente. Apressamo-nos em sua ajuda. Caroline elevou a cabeça de seu pai e a
pousou sobre seu impoluto vestido claro, deixando nele um rastro indelével de
sangue. O conde não podia falar. Os olhos dançavam exagerados em suas conchas,

~ 33 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

causando uma imagem que me revirou o estômago de impotência e horror. Mas,


depois de um evidente esforço, o conde conseguiu assinalar para cima com o olhar.

Tratava de nos dizer algo.

Algo caiu sobre meu ombro. Algo líquido, denso e deslizante.

Seguimos seu olhar ao tempo. O grito de terror de Caroline rompeu o ar denso da


noite. Do ramo da árvore que havia sobre nós pendurava, enforcado, também
ensanguentado e esmigalhado pelo que pareciam profundos arranhões, o corpo sem
vida do velho conde de Orleans, o pai do conde Gastón.

~ 34 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Capítulo 5

Memórias de Caroline-Marie Du Berry:


As intrigas de Chambord.

Os convidados abandonaram precipitados Chambord, com a inconveniência de


fazê-lo mais cedo do que o planejado. Todos brincavam de correr pelos luxuosos
corredores, espantados e aterrados pela notícia: Um assassino desconhecido rondava
nossas propriedades. Segundo rumores de quem tinha visto as feridas das vítimas…
possivelmente uma besta. Os velhos contos sobre “as bestas de Chambord” voltariam
a estar entre as intrigas preferidas da sociedade logo que partissem as carruagens com
os convidados.

Uma besta rondando os arredores do castelo… A ideia provocava em mim mais


coragem que terror. Não tinha nenhum medo dessas lendas, mas nosso nome e o de
nosso castelo se associariam à palavra “maldito” a partir dessa noite.

A ideia da “besta” atraía tanto aos varões que alguns suplicaram às suas
atemorizadas esposas esperar um dia mais no castelo e organizar uma partida de caça
para encontrá-la. Mas todas elas demandaram, histéricas, sair da propriedade o
quanto antes, sem sequer esperar o raiar do dia. Havia atividades de caça já previstas
para entreter aos homens no dia posterior ao grande baile, mas estes viram frustrados
seus desejos de aventura e demonstração de dignidade.

O castelo, pouco a pouco, foi convertendo-se em um silencioso lugar fantasma. Os


convidados partiam com celeridade, depois de serem interrogados pelos agentes da
Gerdarmería deBlois. Os serviçais recolhiam os restos da festa em pares, temendo ficar
sozinhos, com a cabeça encurvada e o olhar alerta e cheio de terror. Tão só Denis
Papin, Madame Dupin e, é obvio, o professor, ficaram na propriedade, realmente
preocupados com seu bom amigo, o conde.

O médico da família acompanhava o meu pai, que agonizava em seu enorme leito
com dossel: uma cama em forma de barco, de carvalho maciço, com feias cabeças do
monstro mitológico “Medusa” esculpidas em suas esquinas. Tinha renunciado fazia
muitos anos a dormir nos aposentos que pertenceram ao rei Francisco: ricos quartos
brancos e dourados, cheios de espelhos, muitos objetos valiosos, altos tetos decorados
e várias portas ocultas que davam às passagens. Meu pai nunca os tinha achado
acolhedores. Os pesadelos tinham acossado tanto a ele como a minha falecida mãe
quando tinham tentado pernoitar neles.

Eu também tinha renunciado às azuis e inquietantes habitações da rainha; assim


que minha tia, ao vir viver conosco, mostrou-se encantada de dispor delas, alojando

~ 35 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

sua filha nos aposentos contíguos, às do serviço de sua majestade. Meu pai e eu, em
troca, ocupávamos pequenas e acolhedoras câmaras de tetos baixos, com painéis de
madeira e camas confortáveis, ambas em forma de gôndola. Umas cortinas e um
dossel rosáceo ocultavam minha cama; umas grandes colunas de dosséis granadas a de
meu pai. Junto aos nossos respectivos dormitórios, havia apenas um quarto vazio para
o serviço, que em meu caso, só foi usado pela ama que me cuidou de pequena: uma
senhora roliça chamada Madame Gauttier, da qual não tenho boa lembrança.

Somente uma porta oculta dava desde meu quarto às passagens, mas eu nunca
tinha chegado a utilizá-la. Em troca, ultimamente, parecia-me ouvir como se alguém se
movia atrás dela… e tanto minha prima como eu tínhamos a certeza de saber quem
podia ser.

Não era consciente de que estava rodeada pelos braços fortes de Denis Papin,
devido à dor que sentia. Ele tinha abandonado seu ar altivo e sarcástico à vista da
situação. Mantinha-se sério e muito inteiro, mas a preocupação banhava seus olhos
como uma pátina brilhante.

Ambos esperávamos, junto à porta, o relatório do médico e sua permissão para


entrar.

Por fim saiu o doutor, com um tímido sorriso e o nariz enrugado para segurar
melhor seus óculos.

—O senhor se recuperará de suas feridas —nos anunciou, para nosso regozijo.—


Mas necessita de descanso e imobilidade absolutos. Evitem tocar seu corpo para não
lhe causar dor. Pode ser que a recuperação total seja questão de meses.

Denis ficou fora falando com o médico sobre o estado das feridas e o tratamento a
seguir, eu não pude prolongar mais minha espera e entrei para beijar o meu pai.

Seu estado me provocou uma profunda pena. Detive-me em seco ao vê-lo e se


esfumou do meu rosto a alegria. Aproximei-me devagar e depositei um suave beijo em
sua ampla testa. Era terrível ver alguém tão grande e forte como ele naquele estado de
debilidade e indefeso. Quem teria feito isso e por quê?

Sentei-me junto a ele, na cama.


—Pai, pode falar?

Assentiu levemente com a cabeça. Em seus olhos apareceu um sorriso; os sorrisos


verdadeiros são aqueles nos quais participa o brilho dos olhos.

—Dizem os guardas que puderam ver o atacante…

—Foi uma besta, minha filha… —interrompeu, pigarreando com dor. — Um


enorme ser que andava em duas patas, com afiadas garras em suas mãos… atacou

~ 36 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

primeiro ao conde de Orleans, que me acompanhava em meu passeio. Eu tentei


defendê-lo do ataque e…

—Não faça esforços, pai. Não fale mais. Isso não tem importância agora, os agentes
se encarregarão. Possivelmente foi uma besta escapada de algum circo ambulante
próximo…

—Não sei… por outro lado, antropomorfo, filha. Movia-se como um homem.

—Então possivelmente um paciente escapado de um manicômio, disfarçado.


Possivelmente um anarquista que tem algo contra a nobreza e queria danificar a festa.
Fosse quem fosse, com certeza que era alguém escondido com alguma feia máscara
para não ser reconhecido, pensou nisso?

—Não sei… não era uma pessoa normal, minha filha, não era…

—Nada tem importância, pai, mais que sua recuperação. Assim não se esforce.
Aqui está a salvo —disse, acariciando seu cabelo, com os olhos entreabertos.

—Não sei se me recuperarei, minha filha. Temo lhe deixar sozinha…

—Não diga isso, pai! Claro que temos muitos anos para compartilharmos… não
diga isso…

As lágrimas começaram a fluir e a escorregar por minhas bochechas, por mais que
tentei evitar. A simples ideia me destroçava por dentro.

—Ainda assim, minha formosa filha, é premente falar de seu futuro. Quero
descansar tranquilo se algo ocorrer.

—Isso compreendo, pai. Disponha e eu obedecerei.

—O primeiro que quero é que se forme, filha, e que entre em nosso clube, pelo
qual muitos apostamos tanto. Descansa em seus aposentos hoje de tantas emoções.
Mas amanhã, à primeira hora, sem falta, o professor Marco irá atualizá-la e começará
a lhe formar —disse, entre sussurros.

A ideia não me agradava o mínimo, mas a última coisa que ia fazer era contrariar o
meu pai, em seu estado. Além disso, tinha um desejo imenso de descobrir, afinal, do
que tratava esse clube dele, tão secreto.

—É obvio, pai. Não o decepcionarei.

Sorriu levemente.

—Sei, jovem filhotinha.

~ 37 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Ambos sorrimos, com melancolia. Chamava-me assim de pequena, quando


saíamos a caçar juntos. Até o momento não havia tornado a fazê-lo.

—Outra importante questão, filha, é o tema de seu compromisso.

Abaixei a cabeça, envergonhada, e me surpreendi ao contemplar a profusão do


meu próprio decote. Ainda levava o formoso vestido marfim de meu baile, marcado
com o sangue do desastre, como uma marca terrível do quanto custou a minha idade
adulta.

—Sinto não estar ainda comprometida, pai —sem olhá-lo, lhe disse. — Ontem não
houve ocasião de receber propostas… depois do baile saí a passear com o professor
Marco… e então foi quando os encontramos. Sinto não ter dado ocasião a nenhum
pretendente.

—Isso não importa agora —afirmou meu pai, com sofrimento.— Não importa. Já
firmei um compromisso para você.

—Como? —perguntei incrédula. Meu pai não era o tipo habitual de nobre que fazia
aquelas coisas sem consultar. Nossa união era atípica e estranhou-me sobremaneira
seu anúncio cortante.

Um suor frio e um terrível mal-estar invadiram meu corpo.

Temi muitíssimo fazer a seguinte pergunta. Não queria partir do castelo, nem
pertencer a ninguém que ousasse me dar ordens.

—De quem se trata, pai?

—Bem, lhe direi que teria me encantado poder lhe desposar com meu bom amigo
Denis Papin. Observei quanto lhe agradava, ontem, quando dançava com você. Mas
ele não é nobre, nem possui nenhum título que faça possível o enlace.

—Pai, não sei o que observou ontem durante o baile, mas acredito que ao Denis
agradam todas as damas, em geral.

—Essa é sua fama, sim. Mas sei o que digo, minha filha, acredite. Conheço-o bem
—afirmou. — Em qualquer caso, não é possível tão feliz união. — “Feliz para o meu
pai”, pensei. — E alguém chegou primeiro, de todos os modos, no propósito de pedir
sua mão.

Meu coração se acelerou e um nó terrível prendeu minha garganta, sufocando-a.

—De quem se trata, pai?

—Do conde Gastón de Orleans.

~ 38 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Aquelas palavras caíram sobre mim como um jarro de água fria, até ao ponto de
que tremores e angústia invadiram meu corpo.

Meu pai me observava, consternado. Ele foi preso em um ataque de tosse.

Acalmei-o, docemente, tentando evitar as lágrimas. Em qualquer outra


circunstância, haver-me-ia oposto e teria chiado ali mesmo até conseguir o que queria.
Mas com meu pai naquela situação tudo era distinto. Não queria desgostá-lo, mas não
pude evitar que meu ânimo se refletisse em minha expressão.

—Sei que o conde Gastón não é de seu agrado, filha. E, se for sincero, tampouco é
do meu.

—Então, pai…?

—O conde se aproximou de mim e me disse, enquanto levantavam o cadáver de


seu pai, que queria uma compensação ou me acusaria do assassinato.

—Mas isso é…! —Estive a ponto de soltar tal insulto que tivesse ficado
ricocheteando pelos séculos entre os painéis de Chambord. — Esse presunçoso
abominável! Oh, esse miserável! Filho de uma loba! Quer que eu seja sua
compensação?

Meu pai fechou os olhos um momento e logo falou baixinho.

—Seu pai encontrou a morte em nossos jardins; pede sua mão em compensação
pela ofensa.

—Mas, não fica aí. O muito…! Oh! Ameaça declarando-se contra ti —eu pontuei ao
meu pai devido aos nervos. — Que baixeza. Que má índole… embora, que motivos
poderia alegar para lhe acusar? Ninguém acreditaria. Isso é absurdo! Você nunca
machucaria a um homem! Todo mundo o conhece. E os agentes nem sequer o
expuseram porque, claramente, também lhe atacou o assassino.

—Gastón alegaria diferenças ocultas entre seu pai e eu, e que aproveitei o passeio
para me encetar em uma briga que acabou com sua vida. Ele me ferira, então, em
defesa própria. Está tudo bem amarrado. Seria sua palavra contra a minha, e o conde
Gastón é muito temido. Filha… embora finalmente não pudesse prová-lo, nosso nome
ficaria manchado para a história. Mas ainda assim, se considerar que é muito o
sacrifício, estou disposto a…

—Não está disposto a nada, pai! Me prometa a esse maldito conde arrogante e eu
lhe baixarei a crista. O matrimônio não significa que eu vá entregar-me a ele!

—Não sabe o que diz agora, querida minha —disse meu pai, beijando minha mão
unida à sua. — Ele terá todo o direito a tomar-te à força.

~ 39 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

— Irei matá-lo, pai, se tentar. Se lhe der netos, não serão dele! afirmei, em um
ataque de imprudente ira. — Maldita hiena…

— Cedo ou tarde, todos os maridos acabam sendo iguais, filhotinha. Afinal, que
esposa não é forçada alguma vez por seu marido? Nenhum casal nobre se conhece
além das festas e dos bailes da primavera, às vezes nem sequer isso. E as decepções
chegam cedo ou tarde, filha, mas chegam sempre. Não é tão desatinado lhe dar uma
oportunidade, em que pese a que não comungue com nossas ideias, o conde é um dos
personagens mais ricos e influentes da França.

—A ideia segue me repugnando, por habitual que seja. Possivelmente seja fruto da
minha inexperiência. Mas o farei, pai. Não duvide em lhe oferecer meu compromisso.
Nosso bom nome não ficará em dúvida por seus ardis.

—Quão único posso tentar é atrasar o enlace o máximo de tempo possível.


Enquanto isso, vive, minha filha. Se dedique a viver. Tenta ser feliz.

—Obrigada, pai. Mas vai ser muito custoso ser feliz lhe tendo estendido nesta
cama. É o único que me importa.

Depositei um suave beijo em sua testa, observei seu sorriso cansado e saí do
aposento.

Denis, que ainda esperava fora tentou me deter para fazer perguntas, mas o
separei com um tapa e segui meu caminho, zangada e decidida, deixando-o
boquiaberto.
Precisava contar tudo à minha prima Tramise o quanto antes. Corri ao seu quarto.
Minha querida prima estava sentada em sua penteadeira, mais pálida e absorta do que
o normal. Olhou-me em silêncio quando abri sua porta sem uma prévia chamada.

Corri a me refugiar em seus braços, rompendo a chorar.

Pouco a pouco, sem deixar de me dar ternos beijos de consolo, ajudou-me a tirar o
vestido ensanguentado e a pesada meia calça, que tinha deixado uma marca em minha
cintura, me deixando só com a anágua e o espartilho interior, sem que meu pranto
cessasse em nenhum momento.

Depois de um comprido dia em que minha prima e eu compartilhamos, juntas em


seu leito, sonhos, confidências e prantos, as criadas entraram para nos ajudar a nos
lavar e nos preparar para o jantar. Ambas decidimos por penteados e vestidos
discretos: o ânimo e a situação não admitiam muito adorno. Um discreto vestido azul
escuro de pescoço alto para mim e um vestido amarelo limão coberto com pontos de
tom chantillí, muito recatado, para minha prima. Charlotte ajudou a nos vestir e
Catherine, uma das velhas criadas, perita em penteados, fez um lindo coque trançado
à caçula da casa. Em troca, não se esmerou muito com meu cabelo: um recolhido
singelo, mas com volume, formado por minhas ondas naturais.

~ 40 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Descemos à sala de jantar.

Os convidados de meu pai: Madame Dupin, Denis e o professor espanhol Marco


acompanharam nos à mesa, minha tia, minha prima e a mim, vestidos com
ornamentos discretos. Em outra ocasião, teria sido um acolhedor e agradável grupo.
Mas o jantar transcorria em respeitoso silêncio. Pedi que apenas se iluminasse a mesa
com a metade dos candelabros, em mostra de respeito e falta de alegria.

Nenhum tema parecia adequado para iniciar uma conversação depois do


acontecido. Possivelmente, meu pai teria informado aos seus três amigos do meu
compromisso, mas ninguém parecia mostrar-se informado. Possivelmente, sabiam que
a situação não era digna de felicitações de compromisso e preferiram calar.

Eu, certamente, não pensava anunciá-lo.

Precisava me recompor me alimentando com algo. Por isso foi um gosto tremendo
para os meus sentidos quando Charlotte entrou na sala de jantar com a fumegante
sopa de cebola. Não havia melhor sopa de cebola em toda a França que a que se
preparava nas cozinhas de Chambord, com um forte sabor de vinho e muito queijo. Ao
servi-la, Charlotte aproximou seu volumoso decote da cara do professor, a muito
descarada. Sempre fazia esse gesto também com meu pai. Minha prima Tramise e eu
suspeitávamos que era ela quem corria de noite pelas passagens até seus aposentos.
Bem, devia cuidar de não o fazer agora que meu pai devia guardar absoluto repouso.
Possivelmente, por esta mesma razão, parecia estar procurando um substituto no
jovem barão espanhol. Só em pensar que o quarto de Marco estava tão perto aos dos
serviçais e quão fácil seria para ela ir sem ser vista, fez com que eu sentisse umas
pontadas de mal-estar. Seriam aquilo ciúmes? Ciúmes, pelo professor? O que
significava isso? Não lhe dei mais importância. Pensei que sentia um mal-estar similar
quando se tratava de Charlotte e meu pai. Possivelmente eu não gostava do
descaramento da viçosa criada. Todo o castelo sabia que meu pai a buscava quando
estava muito necessitado de amor. Mas ela procurava a todo ser masculino que se
movesse pelo castelo, desprendendo mais calor que as estufas do Marechal de Saxe.

Olhei de esguelha à minha prima sentada junto a mim e lhe sussurrei:

—Charlotte é do tipo de criada que me dá medo…

—Sei ao que se refere —sussurrou Tramise, sem nem mover os lábios. — Quando
era menina, pensava que os criados eram de uma raça distinta, uma raça capaz de
atravessar os muros ou mimetizar-se com eles para ver e escutar tudo o que ocorre no
castelo. Era aterrorizante!

Ri levemente ante a imagem. Mas o que era aterrorizante era ouvir essas palavras
precisamente dessa boca; essas qualidades de mimetismo todos as atribuíamos a ela:
“Mademoiselle Fantôme”. Minha prima era famosa por aparecer nos cômodos sem
prévio aviso e sem fazer ruído. Mas também sabíamos todos que minha prima era tão
doce e inofensiva como um bolo.

~ 41 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Sorri-lhe, arrepiada. Eu não gostava do tema, com um assassino solto.

— Depois de tudo há gente como Corinne, a cozinheira, ou Jean Louis, o capataz


dos estábulos, que estão aí para nos proteger deles.

Eu mal podia dormir depois de uma conversa tão perturbadora, com o castelo
cheio de vigias desconhecidos montando guarda e fazendo interrogatórios.

A preocupação com meu pai não tinha deixado tempo para eu pensar no assassino,
que ainda andava solto. Deitada no leito, minha mente começou a dar voltas,
procurando possíveis culpados. Mas somente a imagem de Charlotte me vinha à
mente: Charlotte correndo passagens acima, até o aposento do meu pai; Charlotte
batendo brandamente à porta do professor… em ambos os casos levava uma faca na
mão e nenhuma boa intenção. Começava a ser uma obsessão. Possivelmente,
simplesmente invejava seu fogo e sua liberdade, sua capacidade de ser desejável, e a
culpava por isso.

No fundo, eu tinha desejos de ser também libertina. Havia dois homens arrumados
dormindo em minha casa, sob o meu teto. Não sentia especial interesse por Denis
Papin, apesar de seu atrativo natural, mas não podia evitar sentir uma queimação ao
pensar nesse bonito e estrangeiro professor. Suas enormes mãos deviam saber bem
como acariciar um corpo de mulher. Deviam ser peritas em explorar suas
sensibilidades e curvas. E sem me dar conta, minhas mãos começaram a percorrer meu
corpo, como se fossem as suas. Imaginei que abria essa pequena porta dissimulada
entre o papel floreado da parede e descia ao piso de baixo através das passagens
escuras, somente embelezada com minha leve camisola. Imaginei que chegava até sua
porta, com o coração acelerado, duvidando se entrava ou não. Imaginei que reunia
coragem suficiente para fazê-lo. E ele, surpreso, levantava-se na cama ao ver-me e os
lençóis que o cobriam deslizavam para baixo, me deixando ver seu peito másculo. Ato
seguido, ele separava o lençol por completo e me recebia entre seus braços, beijando
meu cabelo, me deixando beijar seu duro corpo. E o beijava até a extenuação. Até que
ele sussurrava que o que fazíamos não estava bem, que eu era sua senhora e ele um
simples empregado no castelo. Meu corpo foi percorrido por um calafrio ao imaginar
essa frase em sua boca. Então montei escarranchada sobre ele e… e não soube
continuar. O que vinha depois disso? Supus, contrariada, que aprenderia em minha
noite de bodas com o Gastón. A ideia era horrenda, mas não deteve meus desejos.
Veio para mim, uma vez mais, a lembrança da camisa aberta e rasgada do barão no
bosque, deixando a descoberto um duro e plano peitoral coberto de um pelo não
muito grosso, mas sim muito mediterrâneo e viril. Imaginando que acariciava esse
peitoral perfeito, minhas mãos recolheram e subiram minha fina camisola de cetim e
se perderam em minha zona mais secreta.

~ 42 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Minha mente e minhas mãos tratavam de averiguar o que poderia vir depois. Mas,
em seguida, em mim nasceu a vergonha e depois a culpa por ser uma amante tão
torpe. Invejei ainda mais Charlotte, porque ela não ficaria em ridículo como eu, em
caso de adentrar nos aposentos do professor.

Fiz-me um novelo e, chorando por causa de todas as emoções do dia, escutando o


cântico habitual e sinfônico dos lobos de Chambord, por fim dormi.

~ 43 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Capítulo 6

Diário de Marco De Gaula:


A primeira aula.

Quando pensei que nenhuma circunstância podia superar a desgraça do roubo da


minha carruagem e minha ridícula chegada, não podia nem imaginar as surpresas que
ainda nos proporcionava Chambord.

Depois de interromper bruscamente o baile para anunciar o achado dos corpos,


tive poucas lembranças do acontecido depois. Inclusive durante o jantar, onde pensava
que meus companheiros falariam do tema, tínhamo-nos mantido todos em respeitoso
silêncio, como em um estado de choque. Somente as duas jovens cochichavam
segredos; era estranho que ninguém lhes houvesse dito que fazer isso é uma grave
falta de educação quando há mais pessoas na mesa. Mas devia perdoar à minha jovem
anfitriã, pois a via desorientada ante a situação e muito preocupada com o seu pai.
Possivelmente ambas ainda eram muito jovens para ter em conta coisas assim em
momentos como aqueles.

Marie, a irmã do conde, em representação da família, tinha-me oferecido trocar de


quarto e me alojar em um aposento muito melhor, agora que tinham ficado livres. Mas
me sentia seguro em meu pequeno e modesto embora confortável quarto, perto do
pessoal do serviço. Finalmente, não o troquei.

Depois que as jovens se retiraram, Marie nos acompanhou à biblioteca. Ordenou


que nos servissem ponche e nos acompanhassem aos nossos aposentos mais tarde, e
desculpando-se, também se retirou.

—Sinto muito pelas desgraças que a França está lhe proporcionando, Monsieur De
Gaula —confessou sincero, Denis, fazendo girar o ponche na taça de bom cristal.

—Em realidade, é só uma continuação da má fase que vinha arrastando minha


família na Espanha. Começo a me perguntar se a má sorte não sou em quem porta.

—Simples casualidades. Não seja tão duro consigo mesmo —disse a amável
senhora Dupin, colocando-se atrás da minha poltrona ao ir procurar ponche e
pousando uma suave mão em meu ombro. Senti um ligeiro calafrio me percorrer.

— O certo é que apesar de tudo, agradeço ao conde minha sorte. Graças a ele
tenho um teto magnífico e um trabalho que tenho muita vontade de começar. Face às
vicissitudes, a isso se pode chamar sorte, em meu caso.

~ 44 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Assim que se fala —me animou a senhora Dupin, sorrindo inocente. — E, o que
foi dos livros durante o ataque? Acredito que todos resistiram.

—Felizmente os ladrões não tinham o mínimo interesse neles.

—Tampouco nos livros forrados de pele humana que você trazia, Marco, se me
permitir que lhe chame assim —interveio Denis.

—É obvio, somos companheiros nisto. Não se preocupem, os livros estão a salvo.


Sei que desejam ver essas velhas e tétricas relíquias, esses códices forrados de pele de
inocentes torturados durante a Inquisição espanhola. Neles se descrevem os mais
horríveis métodos de tortura.

Louise-Marie Dupin esboçou um sorriso torto, como se tivesse estado esperando


desejosa essas palavras, e dedicou um olhar fugaz ao Denis. Aproximou-se devagar da
minha poltrona e se acomodou muito perto de mim, envolta em um halo misterioso.

—Monsieur, não quero lhe parecer mórbida e indiscreta, mas sinto uma enorme
curiosidade por saber… qual é o método mais doloroso, professor? E o mais rápido e
eficaz?

—Bem, acredito que de todos os aparelhos cujas ilustrações tive o duvidoso prazer
de ver, aquele que prolonga mais o sofrimento é a Roda Alemã. Parece-me o mais
terrível de todos: extremidades amassadas e membros atados a uma roda… —me
ressenti ao recordar essa ilustração de pesadelo. — Embora com um empalhamento a
morte possa demorar até três dias em chegar. E o mais usado é, sem dúvida, o Potro
da Tortura em todas suas versões, onde se pode chegar a arrancar extremidades.
Assim que possamos compartilharei as ilustrações destas máquinas depravadas. Mas
sim, tenho resposta para o método mais rápido e limpo. É, sem dúvida, a mannaia:
uma enormelâmina sustentada por um peso que quando se retira deixa-a cair em um
golpe seco, seccionando limpamente a carne que haja debaixo. Se, por exemplo, quer
castigar a um ladrão, sob a lâmina colocarão sua mão, lhe privando dela como castigo.
Quando as autoridades eclesiásticas, na Itália e na Espanha, procuram a morte rápida e
total, a extremidade que colocam debaixo é a cabeça.

—Quando vamos nos civilizar! —exclamou Louise-Marie. — Ainda somos bárbaros!


—Em troca me ocorrem múltiplas utilidades para essa lâmina… mannaia —disse
Denis. — Seria um genial cortador de verduras ou de malhas em grande escala.

—Nosso genial cientista sempre pensando muito bem.

—O bem para o povo —afirmou Denis, elevando sua taça.

—Eu acredito que o povo francês, se tivesse a oportunidade, usaria a mannaia para
cortar a cabeça do seu rei. Quantos insultos recebe meu marido por ser apenas seu
tesoureiro!

~ 45 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—E você se arrisca a fazer debates contra o Estado em sua própria casa. Sempre
admirei secretamente essa valentia em você, Madame Dupin —confessei.— Mas, não
teme que seu marido descubra?

—Meu marido está muito ocupado em Paris. Passo a maior parte do tempo
sozinha em Chenonceau —disse insinuante. — Sabe você, jovem Marco, que lhe
chamam “O castelo das mulheres”? Parece que somos as grandes dirigentes solitárias
de sua história.

— Eu adoraria visitá-lo: “O castelo das mulheres”. Soa fascinante.

—Quero fazer o quanto antes uma reunião ali com todos os membros do clube,
embora tema que meu querido Jean-Édouard não esteja recuperado para então.

— Em relação ao conde —disse intervindo. — Monsieur Papin… se não for


incômodo, que opinião lhe merecem essas feridas, do seu ponto de vista científico?
Havia nelas algo anormal. Que objeto poderia as haver perpetrado?

O silêncio alagou a cálida biblioteca. Por um momento só se escutou o crepitar do


fogo. Denis trocou um rápido olhar com a senhora Dupin.

—É certo que parecem infligidas por afiadas lâminas, por várias de uma vez. Mas,
possivelmente alguém tenha fabricado para o propósito alguma espécie de luva com
elas presas, como… como uma…

—Como uma garra —afirmei. — A jovem condessa e eu vimos as feridas.

—Sei que o conde fala, além disso, de uma besta, de uma espécie de enorme lobo,
mas isso não pode ser —afirmou Denis. — O capitão me informou que encontraram
pegadas encaminhadas à cena do crime, e não eram pegadas de animal. Eram pegadas
humanos. Enormes; similares às suas, professor. Sem dúvida, humanas.

Denis fez uma pausa dramática.

—O mais importante e inquietante na investigação do caso… é quão estranho


resulta não ter encontrado nenhuma pista do assassino, à parte das pegadas. Um
utensílio pessoal, um botão, um cabelo delator, uma arma…

“Nada devem comentar ainda com ninguém! —advertiu-nos. — Todos os detalhes


do caso devem seguir sendo secretos até que se conclua a investigação”.

—Tomara conclua logo e se façam públicos os detalhes —suspirou Madame Dupin.


— Não são bons convidados os rumores e lendas… e é o que vão estender todos os
convidados entre o povoado e a Corte. Para mim, o mais estranho é que não se
conhecem inimigos do nosso Jean-Édouard.

~ 46 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Se algo acreditar, é que nosso amigo estava no lugar errado e com a pessoa
errada —sentenciou Denis. — Acredito que foi um dano necessário o seu, necessário
para poder atacar a verdadeira vítima: o velho conde de Orleans. Ele sim tinha
inimigos. Tanto ele como seu filho preencheriam uma larga lista deles. Acredito que a
investigação não será fácil, nem breve. E, agora, à pobre Caroline-Marie lhe cabe casar
com o monstro de seu filho. Estou seguro de que a humilhará, de que a forçará… se
vingará de um inimigo invisível com ela. Espero que esse maldito não se cruze em meu
caminho ou não poderei conter minhas mãos —disse, fazendo gesto de agarrar um
pescoço e apertar.

—Pobre menina… —acrescentou Louise-Marie, cabisbaixa.

Depois de uma larga conversação, que já vinha necessitando para esclarecer certos
as pectos, nos despedimos para ir descansar. Ali estava o fiel Philippe quando
deixamos a biblioteca. Ofereceu-se a nos acompanhar aos “aposentos” —se assim
também se podia chamar a minha pequena câmara. Denis disse conhecer muito bem o
castelo, assim ele mesmo se encarregaria de acompanhar e guiar a senhora Dupin até
seu dormitório. Eu imaginei claramente o motivo de tal oferecimento. Velhos amigos
para todos os misteres, ao parecer.

Eu não tive tanta sorte e acabei sendo acompanhado pelo velho e cordial Philippe.
Mas alguém mais veio em meus sonhos.

Ligeiras línguas de ar gelado penetravam pelos madeiros da janela, fazendo dançar


brandamente as cortinas. Cobri-me até a cabeça, enrolado de lado, e as emoções dos
dois dias anteriores começaram a passar velozes por minha mente, uma atrás da
outra, em rápida sequência. Detiveram-se no momento preciso em que vi pela
primeira vez a empregada de cavalariça mentirosa, tão radiante e maliciosa, montada
em seu cavalo, nos fazendo ao cocheiro e a mim caminhar atrás de sua garupa. Seus
quadris e seus ombros balançavam-se ao ritmo do passo do cavalo. Sua cintura fina,
mas arredondada, foi emoldurada pelos raios suaves de sol que invadiam o bosque.
Logo visualizei a imagem da mesma jovem chegando à sala de recepção, tão branca e
luminosa que parecia a aparição angélica da amazona que antes tinha sido.

Uma mescla de ambas as imagens foi à minha cama: primeiro tirei o vestido da
delicada dama que me acolhia em seu castelo, enchendo seu decote generoso de
profundos beijos; depois a deitei e me inseri entre os seios fortes e suaves da
orgulhosa amazona, enchendo-os de beijos mais tenazes e decididos.

Quando acariciei mentalmente suas coxas me derrotou a mescla de paixões


contrapostas: essa menina por vezes doce, e por vezes forte. E pensar que tantas
qualidades estavam reunidas em uma mesma pessoa; uma pessoa que, além disso,
falava com firmeza, generosidade e ideias claras, enfrentando um conde arrogante que
finalmente o destino converterá em seu marido. Uma vez apagado e satisfeito meu

~ 47 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

fogo, me causou pena por ela tremendamente. Imaginei que a abraçava e lhe prometia
uma vida melhor.

Tão somente foi um vão e impossível sonho, mas um sonho doce por fim.

Pela manhã me envergonhei de mim mesmo por ter pensado dessa maneira, na
moça que seria minha aluna a partir desse mesmo dia. Que diferentes se viam as
coisas pela manhã! O ponche deve ter provocado um fatal efeito. Devia apagar esses
pensamentos da minha mente e limpá-la para a primeira aula.

Mediria o intelecto da minha aluna com uma pequena prova. Tinha que me
concentrar.

Quando cheguei à biblioteca novamente, onde daríamos as aulas, não encontrei


nem a amazona selvagem nem a dama delicadamente vestida, encontrei uma séria e
discreta aluna cabisbaixa, envolta em um severo traje marrom de gola alta de renda.
Arrependi-me uma vez mais de meus pensamentos da noite anterior; eu sonhando
com ela quando ela devia estar passando tão mal!

Saudou, sem sequer me olhar, perdida em seus pensamentos. Decidi tirá-la de seu
transe sem olhares. Abri minha maleta de couro, coloquei a mão nela e tirei uma
cebola. Antes dela dar-se conta do que eu estava fazendo, a lancei contra sua mesa, na
qual ricocheteou, gerando um grande barulho que fez Caroline gritar, e logo cair ao
chão.

Olhou-me boquiaberta, com cara de poucos amigos.

—Lança-me seu café da manhã, Monsieur De Gaula? Ou é que, possivelmente,


representei alguma má atuação?

—Bem, ao menos consegui despertá-la. A moça impertinente já está aqui de novo.

—Impertinente? —disse, visivelmente doída. — Isso o diz quem me lança uma


cebola a modo de saudação de bom-dia?

—Recolha-a, por favor, senhorita. É o nosso material de trabalho de hoje.


Caroline aumentou os olhos com surpresa, mas obedeceu.

—E o que quer você que eu faça com uma cebola? Sopa não sei fazer, advirto-lhe.

~ 48 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

— Imagino. Não vamos ter aula de cozinha, não se preocupe. No momento só


quero que comece a usar sua imaginação. O que você crê que tem em suas mãos neste
momento?

Caroline olhou a cebola e piscou.

—Além de uma pestilenta cebola?

—Não. Refiro-me, precisamente, à pestilenta cebola. Deixe voar sua imaginação. O


que poderia representar este nobre e são legume?

—Representar? A fome? Não, não diga nada, barão! Me deixe um momento!


Tenho-o: as lágrimas, a dor… vamos ter aula de poesia dramática!

—Não, o certo é que não. Mas não está nada mal à metáfora, ao menos saímos do
tema culinário. Tente-o de novo. Fixe-se em sua forma.

— Redonda, possivelmente como… o mundo? Parece provado que o mundo é


redondo.

—Vamos por um bom caminho. Agora, posso ter sua cebola, por favor?
Minha obediente aluna me devolveu, com cara de poucos amigos, mas
interessada.

Tirei da minha polivalente maleta uma enorme faca que tinham me emprestado
nas cozinhas, e, ante a estupefação de Caroline, parti a cebola em duas.

Voltei a dar-lhe uma das duas metades.

—Bem, e agora, o que observa?

—Observo… camadas, camadas concêntricas.

—Efetivamente! —disse, sobressaltando-a. — E que relação têm as capas e o


mundo?

—O mundo está formado por camadas… o planeta. Camadas de terra


possivelmente?

—Desencaminhamo-nos outra vez. E vou explicar: A história do homem começou


crua, mas pura, como o centro da nossa cebola. Sem protocolos sociais, sem coisas
materiais, com muito amor e sem nenhum Deus. E as distintas épocas pelas quais
passou depois, seriam como as camadas sobrepostas. Nenhuma camada poderia
existir nem se sustentar sem a anterior. Mas, o que ocorre quando nos aproximamos
da superfície, das camadas atuais? Cada vez estão mais secas, apodrecemo-nos,
secamo-nos de valores autênticos e de pureza cada vez mais. Nossa sociedade se
deprava, e o rei da França, igual ao da Espanha e tantos outros, com seus excessos,

~ 49 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

não faz mais que contribuir com isso. Arruínam ao povo e lhe dizem o que deve fazer
enquanto eles caem nos vícios e pecados que tanto renegam em público. É a maior
baixeza dos poderosos!

“É algo que somente os nobres da Corte vemos, o povo suspeita, mas nem imagina
quanta razão têm suas intrigas. Por isso somos nós, os nobres iluminados com a
verdade, os nobres ilustrados, valentes de coração e nunca submissos a qualquer
preço, os que devemos ajudar o povo a entrar na era da Razão”.

Caroline-Marie me observava com a boca aberta e uma mão inconsciente sobre o


peito.

—E como podemos ajudá-los? O que podemos fazer? —perguntou, estremecida.

—O primeiro e fundamental é lhes brindar com algo que lhes é negado: Educação.
Um conhecimento da História. Sem conhecer o passado não se pode compreender o
presente, nem vislumbrar as necessidades do futuro.
—Educar o povo?

—Efetivamente. E para isso, o primeiro que estamos criando em nosso clube,


encabeçados pelo Rousseau, Voltaire, Diderot e Madame Dupin, é um conjunto de
livros que recolhem todo o saber e história que possui o ser humano. É um projeto
muito ambicioso e secreto: a tradução, ampliação e colocação à disposição do público
francês da Enciclopédia de Chambers.

“Denis Papin e eu nos dedicamos ao tratado sobre as Ciências Naturais. Em parte,


por isso tinha tanta ânsia de vir à França: poder colaborar ombro a ombro com meus
colegas do clube e falar com eles abertamente e não só por carta. Além disso, a
senhora Dupin dispõe em seu castelo de Chenonceau de todo um laboratório que me
permitiria utilizar, com preciosos instrumentos pintados à mão por ela mesma, com os
que realizou algumas prova e medições, assessorada por nosso popular cientista, Denis
Papin”.

—De onde vem de você essa fascinação pela natureza, barão?

—A natureza, como sabemos, é o conjunto de todos os seres e de todos os


movimentos dos que temos conhecimento, assim como de outros muitos dos que
nada podemos saber, posto que são inacessíveis aos nossos sentidos, mas em que não
existe um Deus. Isso é o interessante da ciência: Se a ignorância deu a luz a diversos
Deuses, o conhecimento os destrói4.

4 Frase atribuída ao barão do Holbach, no qual se inspira a autora


para criar o barão Marco De Gaula nesta novela.

~ 50 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Capítulo 7

Memórias de Caroline-Marie Du Berry

Uns dias tinham passado do ataque e meu pai se recuperava pouco a pouco das
feridas.

Os agentes da Gendarmería andavam desconcertados, não conseguiam dar pistas


confiáveis que os guiassem para o atacante. Misturavam toda classe de intrigas da
sociedade, vinganças e outras teorias, inclusive começavam a repensara hipótese
fantasiosa da “Besta”.

Eu tinha a consciência tranquila, pois todos estávamos seguros em Chambord de


que o ataque não foi contra meu pai. Ele apenas estava ali, acompanhando ao velho
conde, conversando com ele em um lugar afastado, quando o assassino aproveitou
aquela oportunidade. A Providência quis que fosse meu pai o acompanhante casual do
conde quando se levou a cabo o assassinato. Ao menos isso queria pensar… me
refugiava em que ele não tinha inimigos e estava segura que o assassino tinha
concluído seu trabalho e já se encontrava a quilômetros de Chambord. Assim, apesar
de tudo, a possibilidade da existência de um assassino rondando minhas posses não
era a maior das minhas preocupações. Pelo contrário, quase era uma emocionante
anedota que me dotava de maior interesse. Muitas proposições de matrimônio,
enviadas antes que corresse a notícia do meu compromisso, começaram a chegar, mas
não lhes emprestei nenhuma atenção, devido à conformidade com meu destino.

Por outro lado, da boca de Marco, comecei a ouvir falar da educação para o povo e
dessas maravilhosas Enciclopédias, que reuniriam e poriam à disposição de qualquer
um todo o saber. À disposição de qualquer um! Certamente, mais que o rei, a Igreja
teria muito que dizer a respeito: eles monopolizavam em seus monastérios esse saber,
com ciúmes. Vendiam livros a preço de ouro e se alguém apenas queria estudá-los ou
estar informado, o preço era ingressar em qualquer de suas distintas ordens religiosas.

O que não sabia naquele momento era que nessas reuniões do clube de amigos do
meu pai se estava forjando o caldo de cultivo para a Grande Revolução que se levaria a
cabo em nosso país a finais de nosso século, e que, embora ajudaria a cumprir as
ambições dos Enciclopedistas, teria consequências terríveis para alguns de nós…
Começamos também a estudar uma matéria totalmente nova para mim, chamada
“Filosofia”. Escutar da apaixonada boca de Marco as estranhas e revolucionárias ideias
que os homens tinham tido sobre o mundo e sua política, dos antigos gregos até
nossos companheiros Voltaire e Rousseau, foi uma experiência que nublava meus
sentidos e avivava meu espírito. Surpreendeu-me ver em que lugar tão relegado e
desnecessário ficava Deus para os grandes pensadores, e o pouco escutado que tinha

~ 51 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

sido sempre o povo, ao qual Marco defendia com entusiasmo, com absoluta segurança
e com sua sedutora voz forte, profunda e firme.

Sua voz me fazia vibrar. Entrava em mim como um ronrono. Levantava-se da mesa
e passeava, muito erguido, enquanto seus olhos brilhavam quando me enchia com
toda essa sabedoria proibida e ancestral. Gesticulava de maneira muito minuciosa,
muito medida e segura para ser espanhol. Não se deixava levar pela paixão. Era
cortante.

—Como bem replicou ao conde Gastón durante o jantar de sua estreia, —me disse,
de forma quase paternal— o povo é a força do Estado e temos que atender suas
necessidades e escutar suas ideias. Do seio da pobreza é de onde, pelo comum,
surgem a ciência, o engenho e os talentos mais geniais. Homero, poeta imortal da
Grécia, fez eternos àqueles heróis cujos nomes, se não fosse por ele, estariam
sepultados em um eterno esquecimento… Virgílio, Horácio, Erasmo, nasceram na
escuridão5.

Cada manhã, depois das lições, ia ao quarto do meu pai para almoçar com ele e lhe
contar todo o aprendido. Ele me olhava com orgulho e sorria, fraco ainda.

—É uma lástima que nem suas contribuições nem as da senhora Dupin fiquem para
a História, minha filha, pelo absurdo feito de serem mulheres. Os livreiros de Paris que
editarão as Enciclopédias dizem que plasmar entre os autores nomes de mulher lhe
tiraria ao projeto toda a credibilidade, e se negam a fazê-lo. Isto é algo mais difícil de
trocar que a política, querida filha, mas algo pelo qual também deveriam começar a
lutar algum dia —me confessou meu pai.

Tantas coisas estavam ainda por mudar! Tantas coisas se podiam fazer melhor.
Havia muito que fazer para conseguir um mundo justo e livre. E esse era o propósito
último, o propósito secreto daquelas reuniões clandestinas do clube dos
Enciclopedistas. Conspirando por trocar a política da França, em ocasiões na casa do
próprio Tesoureiro do Rei.

Depois da visita ao meu pai, saí a passear pelos arredores do fosso com minha
prima Tramise. Não queríamos nos afastar muito do castelo. Mas caminhar por aquela
enorme extensão de grama verde salpicada de flores selvagens que rodeava as águas
estancadas, era suficiente para tomar um pouco de ar fresco. De fato, até me era
bastante apetecível, naqueles momentos. Caminhamos uma junto à outra, escondidas
do sol com sombrinhas de nós torcidos.

—Apaixona-me escutar Marco, —confessei à minha prima— com sua boa figura,
sua voz profunda e justa e esse ardor contido, expresso somente em suas mãos e em
seus olhos. Ontem fez trazer do povoado um novo traje, que insistiu em pagar com seu
adiantamento, e lhe assentou francamente bem.

Minha prima me olhou, arqueando uma sobrancelha.

5Sentença atribuída ao barão de Holbach.

~ 52 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Pensei nesse traje marrom que se amoldava ao seu traseiro pequeno, às suas
amplas costas e aos seus quadris, com um elegante lenço atado no pescoço e sua juba
castanha em torno dele.

—Prima, acredito que não é ético apaixonar-se por um professor.

—Ninguém está se apaixonando. Eu só gosto de como fala… e é tão bonito.

Ambas rimos, cúmplices.

—Não lhe agrada mais Denis? Se fosse eu mesma mais adulta, me deixaria seduzir
por ele.

—Denis foi agradável comigo na noite do assassinato, mas não; não sonho com ele.
Tem muito mundo para mim. Se me entende.

—Seduz a qualquer dama. Não tem critério nem preferências. Eu lhe entendo.

—Não me faria sentir especial ser seduzida por ele. Uma mais…

—Eu sim me sentiria especial! É tão atraente! —disse Tramise, rindo. — Mas não
se preocupe. Nem me olha. Deve pensar de mim que sou apenas um bebê.

Os dias passaram em tranquila rotina: lições, visitas ao meu pai, passeios com
minha prima e jantares com minha tia e os convidados: Denis e Marie-Louise. A eles,
minha prima e eu tínhamos acesso não mais que em breves e tópicas conversações
durante os jantares. O resto do tempo descansavam, encarregavam-se junto à minha
tia da papelada e do seguimento da investigação, reuniam-se com meu pai ou com o
professor na biblioteca.

Marco e eu tínhamos começado a nos estudar de tanto em tanto, sem nos dar
conta, mais ou menos a partir da segunda ou terceira lição. Não se podiam debater
temas tão transcendentais estando mais pendentes do cumprimento do protocolo do
que da importância do que se dizia. Essas conversações clandestinas e plenas de
confiança estavam criando entre nós um emocionante vínculo, que o faziam ir cada
noite com pontualidade às minhas fantasias. Como teria gostado de reunir a coragem
para ir ao seu leito! Sobretudo antes de ser deflorada pelo odioso Gastón, ao que,
depois de lhe prometer minha mão em matrimônio, estávamos dando muito tempo.
Não me preocupava minhas bodas com ele. Tinha bastante me preocupando com meu
pai, atendendo ao Marco e tentando me concentrar em minhas lições. Estava vivendo
o presente com intensidade.

~ 53 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Mas, quando não estava repassando as origens da Filosofia ou me preocupando


com meu pai, só podia pensar em uma coisa: O que aconteceria realmente se eu saísse
uma noite às escondidas do meu dormitório e descesse pelos túneis até o andar de
serviço? Atrever-me-ia então a me plantar frente à porta do espanhol, ofegando pelo
risco de ser encontrada ali? Atrever-me-ia a abri-la? E por último, atrever-me-ia a me
colocar em sua pobre e simplória cama para surpreendê-lo? A resposta era: Não.

Seguia-me acossando a ideia de ser uma amante terrível. Tão inexperiente que não
sabia o que se devia fazer além dos beijos, que por outro lado, tampouco estava
segura de saber dar.

Quem me diria quando o conheci que seria a Denis Papin, o arrogante modelo e
cientista, a quem eu acabaria fazendo estas confissões; precisamente a ele…

Na sexta-feira posterior à festa e ao ataque, ambos distintos convidados seguiam


em nossa propriedade. E comecei a intuir que à minha querida tia Marie isto não trazia
nenhum contentamento.

Aquele dia, depois da visita diária ao meu pai depois da lição, encaminhei-me aos
aposentos azuis, — chamadas “da rainha”— com o propósito de visitar minha prima.
Abri a porta do quarto destinado à antiga criada da rainha, e ali estava ela, formosa,
sentada frente à penteadeira, com seu comprido cabelo loiro solto caindo pelas costas.
Sua mãe, colocada detrás dela, lhe escovava o cabelo com acalmado orgulho. Senti
uma pontada de ciúmes e saudei-as discretamente, tentando não romper esse íntimo
momento entre mãe e filha.

Sentei-me no peitoril da janela e contemplei a paisagem de bosques infinitos.


Olhei para baixo, com um pouco de vertigem, dezenas de metros me separavam do
fosso, mas nele divisei através dos cristais translúcidos, um pequeno barco a remo
dirigido pelo Denis. Seus braços fortes moviam os remos como se de palitos se
tratasse, fazendo que a barcaça sulcasse com facilidade as águas escuras. Minha
opinião dele tinha começado a mudar ao ver como se comportava com meu pai, como
um verdadeiro amigo. Frente a ele, sentada na proa do barquinho, viajava Madame
Dupin, protegida sob uma formosa sombrinha de encaixe rosa.

Estava muito agradada com a estadia de ambos os convidados no castelo. A


senhora Dupin parecia alguém tão doce e boa conselheira que não me teria importado
tê-la como madrasta. Ambos faziam muita companhia ao meu pobre pai. Escutava-os
rir em sua câmara frequentemente e estava começando a lhes agarrar afeto por isso.

—Nossos convidados parecem desfrutar de sua estadia em Chambord —disse, sem


deixar de olhar para o fosso. — É como se nada horrível tivesse acontecido.

—Respira-se muita calma —disse minha tia, desconfiada. — Em minha opinião,


eles sabem mais do que contam. Acredito que em realidade estão aqui na qualidade
de espiões. Eu não gosto nada desse excesso de amabilidade que ambos demonstram.

~ 54 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Tia! Mas, o que está dizendo? São os únicos que realmente se preocupam com o
meu pai. Devemos lhes estar agradecidos, estão mantendo seu ânimo muito elevado. E
isso é fundamental para sua recuperação.

—Está cega pelo amor ao seu pai, querida… é ainda muito jovem e crédula para se
dar conta de algumas coisas, sobrinha. Eu, em qualquer caso, não vou permitir que
minha filha se mescle com eles e possa ver-se influenciada por suas frivolidades.

Naquele momento percebi que nestes dias minha prima tinha estado
completamente confinada em seus aposentos, salvo pelos passeios que fizemos
sozinhas. Não tinha se misturado com os convidados mais do que para os jantares, e
tampouco no transcurso destes lhes tinha dirigido excessivamente a palavra. Tinha-o
atribuído inconscientemente à sua raridade e acanhamento, mas parece que sua mãe
tinha tido algo a ver com isso.

Causava-me pena que Tramise não aproveitasse essa estranha ocasião que lhe
brindava de relacionar-se e conhecer eminentes pessoas da nossa sociedade.
Certamente minha tia não lhe permitiria fazê-lo até estar casada. E o pior era que ela
parecia complacente e submissa. Sorria-me através do espelho para confirmar isso,
parecia-se mais a um potro fugidio e amansado que a uma jovem adolescente bela e
solicitada.
Depois de me perder por um tempo indefinido em meus pensamentos,
contemplando encantada a paisagem de Chambord, um impulso me fez levantar de
repente e não cometer o mesmo engano que minha prima. Ia aproveitar o tempo e ser
cortês com os convidados.

Desci correndo as escadas circulares de Da Vinci por uma de suas duas brancas
rampas, segurando a saia do formoso vestido verde de encaixe que tinha escolhido
para esse dia. Encaminhava-me decidida para o fosso quando vi entreaberta a porta da
biblioteca. Philippe acabava de sair dela com a bandeja do serviço de chá na mão.
Minha curiosidade me fez trocar de destino e me encaminhar para ela.

Madame Dupin tinha terminado seu passeio e se encontrava sorvendo seu chá,
sentada em solidão em uma das grandes poltronas. Seu formoso e delicado perfil
ficava recortado pela luz do entardecer, o qual contemplava com encantamento.

Vestia um delicado vestido de cor rosa pálido, a jogo ao parecer, com a sombrinha
que vi da janela.

Aproximei-me devagar, tratando de não a sobressaltar.

—Minha querida menina —disse, voltando-se para mim. — Agrada-me sua


presença. Me acompanhe no chá, por favor, se lhe agradar.

Eu ainda não tinha me acostumado com a liberdade que ela tomou em me


proteger; afinal eu era nobre e ela não, mesmo que ela fosse esposa do tesoureiro do

~ 55 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

rei. Mas o atribuí à sua estreita amizade com meu pai e tomei como um sinal de
confiança, sem mais.

—Eu queria lhe expressar, madame, quão agradecida estou por sua presença aqui
e por sua companhia ao meu pai nesses dias. Não há suficientes agradecimentos.

—Que menos se pode fazer por um amigo e colega? Seu pai é um grande homem,
não merece o que lhe ocorreu por culpa, sem dúvida, dessa família de déspotas que
são os condes de Orleans. E vocês três, as três mulheres do castelo, não merecem
estar sozinhas; embora tenha a sensação de que a sua tia Marie não se importaria. Não
nos deu muita atenção nestes dias. Inclusive em alguma ocasião evitou nossa
saudação.

—Minha tia é uma mulher que leva muito tempo sozinha. Tornou-se desconfiada.
Tenta ser a matriarca deste castelo, sem atrever-se de tudo a ocupar esse lugar, pois
no fundo sabe que não lhe corresponde. Isto a leva a não saber de todo como
comportar-se em algumas ocasiões. Além disso sempre esteve carregada de
preconceitos. Rogo que a desculpem e não a levem muito em conta.

—Entendo que classe de mulher é. E a respeito, apenas é que…


—Que parece que ela não lhe respeita —concluí.

Seu silêncio deu razão à minha resposta.

—Sinto muito, madame, se está ferida por seu comportamento descortês. O resto
da minha casa não tem dúvida sobre que tipo de pessoa vocês são; de fato ninguém
duvida em todo o Vale.

—Querida… leva muito tempo sem transpassar suas posses e ainda é muito
inocente. No Vale há todo tipo de rumores sobre minhas atividades licenciosas na
ausência do meu marido.

Duvidei um momento.

—Eu apenas escutei rumores sobre sua beleza e generosidade, não mais do que
isso. Para falar a verdade… pelo contrário, sim ouvi rumores sobre os devaneios do seu
marido em Paris; não ao reverso.

A senhora Dupin riu de forma cristalina, mostrando seus dentes brancos e


perfeitos. Desconcertou-me esta amostra de estranho humor.

—Isso não são rumores, querida! Isso são evidências tangíveis como uma rocha. As
mulheres, frequentemente, têm que se acostumar a viver com isso. Eu mesma habito
um castelo que um dia não foi mais que o presente de um rei à sua favorita. As
esposas sempre são compartilhadas.

~ 56 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Um calafrio nauseabundo me percorreu ante seu comentário.

—Oh…! Vejo em seu rosto como lhe afetaram minhas palavras sinceras. E não é
para menos, minha querida Caroline-Marie. Mas assim é.

Soltou o chá, depositando-o sobre uma mesinha próxima, para me agarrar as


mãos.

Olhou-me profundamente nos olhos com seus belos olhos azuis.

—Vejo a força do seu pai em você. Esta força lhe ajudará a sobreviver ao seu
matrimônio. E… espero que ela seja suficiente. Sei que não se deixará manipular de
forma fácil, ao menos a princípio. Mas tenha cuidado, Gastón gosta de rebeldes —
disse levantando-se. — Quanto mais se rebelar mais lhe atrairá e mais o provocará a
lhe forçar uma e outra vez.

Baixei a cabeça e madame fez uma pausa.


—Se quiser um conselho de amiga, permita que lhe possua sem opor resistência.
Se deixe fazer com a mesma paixão que o faria se fosse um cadáver. Assim,
rapidamente perderá o interesse e sairá a procurar seu entretenimento fora.

—É um conselho horrível —lhe disse, em um sussurro.

—Sei, mas é o melhor se quiser que Gastón lhe deixe em paz com prontidão.
Acredite-me; de outra forma pode ser muito pior. E… —me elevou o queixo.— Olhe-
me: Sempre poderá contar comigo. Se Gastón não lhe permitir vir a se refugiar alguma
temporada junto ao seu pai, me mande um aviso. Eu o arrumarei para lhe convidar
formalmente ao Chenonceau. Somente a você.

Meus olhos se umedeceram ante a perspectiva do futuro que madame narrava.

—Obrigada, Madame Dupin. Não sabe quanto a agradeço.

—Encontrará, sempre que necessite, a uma mentora em mim. Eu aprecio o seu pai
e apreciei a sua mãe. Além disso, —disse sorrindo— eu gosto de seu caráter,
jovenzinha. Tenho vontade que o seu debate fogoso rompa os esquemas dos meus
convidados em Chenonceau. Espero que muito em breve possa ir.

—Eu também desejo conhecer seu muito formoso castelo, madame. E desfrutar de
interessantes noitadas com você.

Despedi-me e saí aos jardins, com os olhos cheios de lágrimas ao imaginar o que
me podia esperar. Odiava a forma que tinham os outros de falar do meu futuro com
Gastón; era como se me fossem enviar para o próprio demônio e não pudessem fazer
nada mais que ter pena. Eu estava segura de que não ia ser tão terrível e de que esse
presunçoso, prepotente e trapaceiro não ia me tocar. Não iria permitir. Antes a morte.

~ 57 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Caminhava a passo ligeiro pelos jardins, perdida em meus próprios e horríveis


pensamentos, quando escutei uma voz que me sobressaltou.

—Qual é o perverso objeto das suas frustrações, jovem condessa?

Levantei a cabeça: era Monsieur Denis quem falava.

Denis estava mais do que arrumado com seu traje azul de jaqueta curta e sua
camisa com umas séries de encaixes brancos que contribuíam com volume no peito,
aumentando ainda mais o tamanho de seu já profuso peitoral.

—Que horrível causa pode ser capaz de tornar amarga essa doce boca? —repetiu,
pousando uma mão suave em minha bochecha.

Sem poder lhe responder, rompi a chorar.

As lágrimas que andava retendo estalaram em uma corrente vergonhosa para mim,
seguidas de uma série de soluços e gemidos que não podia conter.

Denis deteve seu jogo banal e me abraçou, como o fez há quatro dias atrás junto à
porta da câmara do meu pai, enquanto esperávamos o diagnóstico do médico.
Surpreendeu-me uma vez mais a dureza e envergadura de seu corpo; nunca se está
preparada para o tamanho de tais abraços.

Quando tinha terminado de manchar sua casaca com minhas lágrimas e tratado de
secar meus olhos, ofereceu-me seu braço e começamos a caminhar em silêncio.

Denis tratou de entreter minha mente me falando com naturalidade de temas


banais, inclusive tratando de me fazer rir, embora falhassem seus primeiros intentos.
Sem nos precaver, afastamo-nos muito, arrastando a cauda do meu decotado vestido
de renda verde pela grama úmida e primaveril.

—Você tem sido muito generoso e compreensivo comigo, Denis. É justo que lhes
conte, por fim, o que antes tanto me afligia.

— Somente se quiser, se estiver confortável.

—O certo é que sim, Denis. Encontro-me com você extremamente confortável.

Iluminou-se seu sorriso como se de uma réstia de lanternas se tratasse.

—Está bem; esteja segura de que conta com minha confiança.

—Está bem —repeti, devagar. — Vinha de uma conversa com Madame Dupin
sobre o que ocorrerá quando me desposar com o conde Gastón.

~ 58 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Pelo que ocorrerá… em que sentido?

— No sentido… da intimidade.

—Compreendo.

—É terrível que todo mundo dê por feito que ele vai me forçar contra minha
vontade.

—É que, sinto dizê-lo, provavelmente assim será. Apenas procuramos lhe


acautelar. Se não fosse por sua ameaça de acusação de assassinato ao seu pai… este
compromisso nunca teria sido efetivado. Sentimo-lo todos muito, seu pai mais.

—Eu vou tratar de ser feliz. Serei uma mulher livre, ele me impeça ou não.

—É um propósito muito louvável, desejo que você consiga.

— Somente me dói ter que vender a esse miserável minha primeira intimidade. O
que quer que aconteça comigo depois, não me importa.

—Não têm por que lhe oferecer então sua primeira intimidade, mademoiselle.

Deteve seu passeio em seco e, por surpresa, agarrou-me fortemente em seus


braços.

—Me permita lhe deflorar.

—Obrigada, mas não —disse, depois de me repor da surpresa.

Empurrei-o para trás brandamente.

—Agradeço-lhe o oferecimento, Monsieur Papin, mas tampouco me sinto


confortável com a ideia de cometer pecado por despeito. Eu gostaria que fosse…

—Por amor? É uma romântica, mademoiselle?

—Não sei, para falar a verdade, monsieur. Mas… eu gostaria que ao menos minha
primeira vez fosse com o propósito dos meus desejos.

— Oh! Acaba comigo com suas palavras, mademoiselle. Acaba de me dar a morte
—exclamou Denis, com um gesto teatral. — Pensei que o objeto de desejo de toda
mulher que me conhecesse fosse, sem dúvida, eu.

Ri irreconciliavelmente.

—Sinto muito, monsieur. Não pretendia lhe ferir.

~ 59 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Isso quer dizer que existe um objeto de desejo alternativo a mim, portanto. Vá…
assim tenho um rival. Interessante. E quem é aquele que rivaliza comigo e apropria-se
das suas fantasias? Algum criado? Um moço de estábulo, possivelmente?

Avermelhei até que me doeram as bochechas.

Confiava nesse extravagante cientista de musculosos braços e cabelo leonino.


Decidi lhe confessar minha forte atração.

—Seu “rival” é… o jovem professor espanhol.

—Oh! É fantástica, querida —aplaudiu. — Uma relação imoral aluna-professor. É


uma jovem libertina, uma grande promessa.

—Não penso nele dessa maneira —menti, pois já tinha sonhado algumas vezes que
me deitava contra a escrivaninha. — Somente três anos de idade nos separam, e além
de professor, é nosso convidado. E um barão —justifiquei também para mim mesma.
— É uma classificação menor, mas um grau de nobreza, afinal.

— Baixa nobreza, querida. E você é uma condessa. Além disso, ele está a seu
serviço, ao menos durante umas horas por dia. Uma fantasia com alguém de classe
inferior é algo muito louvável; é uma fonte de erotismo impagável.

—Equivoca-se. Nunca tive esse tipo de fantasia, por exemplo, com um criado. É o
espírito do professor o que me consome. Um desejo que me sobressalta e quase me
ataca pelas noites, e que vai aumentando dia após dia, avivado por cada uma de suas
palavras.

—Sim acredito que sei do que fala, certamente o barão é um jovem


espiritualmente muito fogoso. Seu olhar queima a pele, os olhos e o coração daqueles
sobre os que se pousa. E também acredito que uma formosa flor como você não
deveria desperdiçar a oportunidade de gozar do amor antes de ser desposada por esse
animal do conde Gastón. Se eu fosse você, desceria ao quarto do barão De Gaula, sem
dúvida. E mais, eu mesmo o faria imediatamente se soubesse que lhe atraem também
os cavalheiros. Mas não me precavi de nenhum sinal que o indique, assim não o
tentarei. Não me interporei no caminho de sua paixão, condessa —disse, sorrindo
travesso. — Mas também me fixei nesses olhos escuros espanhóis, cheios de fogo,
nesse corpo alto e proporcionado… que deve ter tudo em sua justa proporção —riu.

Por um momento, ri com ele. Sem dúvida o segredo do êxito de Denis com as
mulheres radicava em sentir-se, em parte, como uma delas e saber o que queriam
exatamente. Ao Denis parecia agradar tanto mulheres como homens.

—Gastón me mataria e me humilharia publicamente se comprovasse que não


chego com minha virgindade intacta ao meu matrimônio com ele.

Ficou pensativo um momento.

~ 60 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Demônios! Possivelmente nisso tenha razão. Mas há outras muitas formas de


obter prazer de um homem sem danificar sua virgindade.

Essa afirmação despertou totalmente minha curiosidade.

—Prazer? Também para mim ou só para ele? —perguntei, desde minha inocência e
ignorância mais puras, conforme delatava a vermelhidão de minhas bochechas.

—Poucos homens ponderam ambas as possibilidades, pensam somente no prazer


próprio. Mas me vejo na obrigação de agradá-la, condessa. Contar-lhe-ei o que poderia
fazer-se por uma mulher.

—Todo mundo fala de quão prazeroso é o ato sexual e o proclama aos quatro
ventos como se fosse a mais alta meta alcançável, mas o certo é que eu não entendo
de onde pode surgir tanto prazer, o que ocorre nesse ato para transtornar tanto as
pessoas.

—É a união completa, carnal, violenta… —Denis parou no meio do caminho, fechou


os punhos com gesto teatral e agarrou ar para depois suspirar— E… ah!, a união
sublime de duas pessoas. Geralmente do homem e da mulher, quando o membro
deste, endurecido pelo ardor, afunda-se na zona mais íntima da dama. Embora nem
sempre tem por que formar-se assim o casal, como eu tenho descoberto, monamour.

— Estou curiosa, então, pelo que você disse antes, monsieur: Como se pode,
então, desfrutar sem que o membro se afunde em nossa zona mais íntima?

Denis soltou uma estrondosa gargalhada.

—Está perguntando a um perito reconhecido nesse campo —afirmou Denis, sem


sombra de humildade. — O membro do homem pode ser acariciado também com
outros orifícios, como o traseiro ou a boca, além disso, é obvio, do gesto habitual de
agitá-lo com as mãos —me informou, para minha surpresa. — Por outro lado, o corpo
da mulher está cheio de pontos sensíveis mais prazerosos ainda que as profundidades
da sua vagina, lugar por onde se concebe a vida. E, quando se sabe acariciar estes
pontos, uma mulher pode ver o céu de maneira mais intensa ainda que com a cópula
e, além disso, sem cometer pecado.

—Sem cometer pecado?

—Só é pecado a cópula fora do matrimônio porque pode levar a conceber um ser
vivo bastardo, mas não o é todo o resto.

—A verdade, monsieur, é que sigo sem entender o que é “todo o resto”.

—Está bem, deixe então que lhe ilustre.

~ 61 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Denis olhou a ambos os lados do caminho, tomou minha mão e me introduziu em


um caminho do labiríntico jardim. Convidou-me a me sentar junto a ele, em um
banquinho de pedra. Então, antes que eu pudesse opor resistência, puxou para baixo o
decote do meu espartilho, deixando meus seios ao ar. Nem sequer me deu tempo de
me queixar ou de gritar. Agarrou-me firmemente pelos ombros e pousou seus lábios
nos meus, me deixando sem ar para protestar. Começou a mover em meu interior uma
enorme língua que me invadia, brincando com a minha, me sugando de maneira que
algo se removeu em mim, justo entre minhas coxas. Depois lambeu minha bochecha e
a beijou brandamente.

Repetiu essas ações baixando, pouco a pouco, por meu pescoço e logo por meu
decote. Eu fui incapaz de reagir, com falta de ar, com a pele arrepiada. Quando ia
tentar protestar, depositou sua delicada e enorme boca sobre um de meus seios. Um
calafrio me alagou como um raio, me roubando o ar do peito, quando começou a fazer
movimentos circulares com sua grossa língua. Depois se retirou e substituiu sua língua
por uma de suas mãos.

—Começaremos pelos seios —explicou Denis, a modo de instrução. — Verá que


com um simples atrito sobre o mamilo nu, este se tensa e se endurece. Nota-o?

Não respondi, mas era evidente que o notava.

—O prazer sobre esta zona pode aumentar, se em lugar dos dedos se aplica a
língua brandamente, assim.

Um novo calafrio convulsionou todo meu corpo; eu mal entendia o que estava
ocorrendo comigo, mas me sentia próxima ao desmaio.

—Muito bem —prosseguiu meu atrativo e perito instrutor. — E, agora, para que
possa comparar, aplicarei minha língua sobre um mamilo e meus dedos sobre o outro.
Você dirá o que é que prefere ao experimentar ambas as formas de prazer ao mesmo
tempo. Assim o poderá exigir mais tarde ao barão, se você decidir deitar-se com ele.

Morta de vergonha, não pude evitar ofegar. Estava extasiada pela excitação.

—Sem dúvida, prefiro a língua —pude articular.

—Vejo que estes gostos variam de uma mulher a outra. Mas a maioria opina como
você. Passemos então para algo mais dramático.

Quando Denis começou a levantar saias e anáguas comecei a me assustar


realmente.

—O que faz? Vai à zona do pecado!

—Asseguro-lhe que não. Confie em mim. Se recoste sobre o banco. Eu me porei


aqui, de joelhos, e lhe mostrarei um mundo novo graças a uma parte de carne que há

~ 62 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

justo acima de seu chat 6, é o chamado boutondu rose. E sua única função é
proporcionar o maior prazer feminino. Surpreender-lhe-ia o elevado número de
mulheres que não sabem que o possuem ou para que o têm. Eu, mostrando-lhe isso,
vou lhe dar o maior dos presentes.

Enquanto as anáguas me cobriam o rosto, Denis abriu sem muitos melindres os


botões que levavam minhas meias para os casos de urgência fisiológica.

—Mas não pode ir aí! Não… oh!

Os atos de Denis cortaram os protestos imediatamente, me deixando em uma


situação de total vulnerabilidade, que acelerou meu coração e me provocou estranhos
estremecimentos. Assim que o prazer aumentou muito de intensidade, vi-me obrigada
a me queixar de novo.

—Encontro-me mau. Isto não pode ser bom. Denis, ordeno-lhe que pare!

Mas a ordem inspirou Denis a proceder com maior intensidade ainda.

—Também aqui procederemos com as mãos e a língua e voltará a me dizer o que


prefere. Vou acabar de lhe ajudar a tomar a decisão.

—Não! Meu Deus, Denis!

—Será similar a uma morte, é o mais parecido a alcançar o paraíso na Terra.


E, efetivamente, senti-me morrer. Mas, depois dessa breve morte em vida, era
uma pessoa totalmente nova. Depois de me recuperar, depois de uns longos minutos,
e recuperar a normalidade na respiração, senti-me totalmente adulta e livre. Inclusive
feliz. Tanto tinha que agradecer ao meu extravagante companheiro sem maneiras...

Denis estava eufórico: tinha completado seu papel de cavalheiro instrutor à


perfeição. Tinha ajudado a mais uma dama em apuros. Teve que me ajudar inclusive a
me pôr em pé.

No caminho de volta ao castelo, Denis também me deu umas divertidas indicações


para proceder com Marco, ao menos em meus sonhos, usando seu membro como
quem saboreia e se recreia com uma rica fruta sem cortar.

Tinha todo um mundo por descobrir, mas estava muito mais segura de mim
mesma. As ideias sobre o que poderia fazer com o corpo do barão começaram a
amontoar-se abundantemente em minha cabeça, no momento, com o único propósito
de habitar minhas fantasias…

6 “Gato”, término coloquial para referir-se à vulva em francês.

~ 63 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

No dia seguinte, justo uma semana depois do baile, meu pai chamou-me aos seus
aposentos para me anunciar, segundo o mordomo Philippe, uma grande notícia:

—Querida filha, Denis e Louise-Marie se comportaram como uns verdadeiros


amigos ficando esta semana conosco no castelo, mas logicamente, já devem partir
ambos à Chenonceau para seguir cumprindo com suas obrigações com respeito ao
nosso clube —anunciou, para meu desânimo. O castelo ficaria muito entristecido sem
eles.— E Louise-Marie me tem proposto que os acompanhe.

Minha cara mudou naquele momento: iluminou-se, e meus olhos suplicaram.

—Dei-lhe minha permissão imediatamente para lhe levar com eles.

—Oh, obrigada, pai!

—Mas não cessarão suas lições, —acrescentou cortante— irá acompanhada do


nosso amigo barão, em qualidade de convidado de Madame Dupin, mas também
como seu professor. Ambos assistirão ali, em Chenonceau, a uma de nossas reuniões
do clube, e quero que você o faça em meu nome.

O orgulho invadiu meu rosto. Meu pai depositava em mim sua confiança e, além
disso, por fim ia viajar! Por fim visitaria o formoso e legendário castelo de
Chenonceau! O castelo das mulheres. Onde a amante de Enrique II, Diana de Poitiers,
criou imensos jardins apenas para competir contra a temível mulher do rei, a poderosa
Catarina de Médici. Diana gostava de chateá-la.

Causou-me pena que meu pai não pudesse me acompanhar nesta viagem, como
sempre sonhei, mas sabia que ficava em boas mãos. Minha tia e minha prima se
ocupariam amorosamente dele, e uma guarda reforçada seguiriam vigiando o castelo.

—Além disso, —acrescentou meu pai — desta forma lhe terei um tempo mais
afastado do conde Gastón, que insistiu em nos visitar e em levar a cabo o matrimônio
em breve. Daremos uma desculpa para não o fazer ainda.

Suspirei amargamente ao recordar o meu terrível prometido. Mas o certo é que


não poderíamos seguir evitando-o durante muito tempo mais. Certamente, à minha
volta, encontraria sua presença no castelo. Mas antes, pensava desfrutar de todo o
possível, pensava viver, e que melhor que fazê-lo em Chenonceau...

~ 64 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Capítulo 8

Diário de Marco De Gaula:


Os prazeres deChenonceau.

A carruagem dava tombos pela pavimentação no caminho para nosso novo


destino. Enormes árvores se levantavam em ambos os lados do caminho como colunas
do Partenón. Campos de flores amarelas e rosas se estendiam, como formosos
tapetes, até o limite do bosque e até as bordas do Loire. Como espanhol acostumado
às extensas planícies de matagal escasso, surpreendia-me a frondosidade desses
campos verdes, a largura e força do rio Loire, a contundência dos arvoredos
intermináveis e cheios de mistério…

A viagem durou algumas horas, e por essa razão agradeci que os carros franceses
fossem muito mais confortáveis e acolchoados que as carruagens entre as quais eu
tinha sido criado, embora tivessem uma profusão de cores, laços e almofadas de
plumas muito femininas para meu gosto. Compartilhava o coche com o Denis Papin,
que resultou um agradável companheiro de viagem, apesar de sua insistência em
elogiar continuamente os traços da condessa Caroline-Marie, como se quisesse me
transmitir um velado interesse por ela em suas palavras. Não entendia o que pretendia
um homem plebeu, tão solicitado e mulherengo como ele, com essa fixação por uma
jovem condessa que estava prometida, mas o escutei com respeito.

Bem conhecia eu os traços dessa jovem que viajava no outro coche com Madame
Dupin, e que me roubava o sonho, sem que eu pudesse fazer nada para evitá-lo. O que
ia Denis a contar para mim!

Para minha surpresa e contra o que pensei a princípio, tinha resultado ser uma
aluna muito avançada, que inclusive me superava de tanto em tanto, adiantando-se e
indo mais à frente ante os enigmas filosóficos do que ninguém tinha ido jamais.

Estimulava-me essa provocação intelectual. Caroline nunca teria me agradado se


fosse uma boba sem qualidades.

Isto, acrescentado a um rosto inocente, uns olhos maliciosos e um dom para a


travessura e a rabugice, formava um conjunto com o qual um homem sabia que jamais
ia se aborrecer. Além disso…, para que negá-lo, seu corpo pequeno e curvilíneo era o
objeto dos meus devaneios noturnos, sem que nada pudesse fazer para evitá-lo.
Mas não eram mais que fantasias, claramente. Essa jovem alegre logo seria
desposada por um nobre de sua mesma estirpe, de ascendência obsoleta e cérebro

~ 65 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

antiquado. Causava-me pena. Temia que a “condessinha” perdesse os sorrisos; fazia-


me especialmente feliz vê-la sorrir.

Enfim chegou o anúncio dos cocheiros: Entrávamos nas terras deChenonceau.

Impacientei-me e coloquei a cabeça para fora do coche para poder divisar o


famoso castelo. Mas apenas vi um comprido e interminável corredor para carruagens,
abrigada por hastes altas, de ao menos uma dezena de metros. Depois passamos perto
de um estranho monumento grego, um pórtico quadrado de três arcos; era mágico e
estranho ver algo assim ali, não só quero dizer na França a não ser ali; perdido naquele
solitário jardim, rodeado de bosque.

—Note-disse Denis.— É a pequena comemoração de Chenonceau à liberdade da


antiga cultura grega. E as sebes quadradas que divisas diante do pórtico formam um
labirinto, em honra ao famoso Labirinto do Minotauro da mitologia.

Ao que parecia, em Chenonceau, não se privavam de excentricidades e caprichos.

Impensável ver algo tão frívolo em um jardim espanhol, por desgraça.

Mais adiante passamos junto a uma formosa granja, com a decoração típica
francesa de vigas de madeira sobre paredes de cal. Ao redor havia pequenos lagos com
cisnes e salgueiros chorões, e vários perus reais passeando majestosos pelas
imediações. Era como o desenho de uma menina sonhadora.

E, por fim, divisamos o castelo. Pequeno e branco, coroado por telhados de piçarra
negra das pedreiras do Loire, rematado pelo rio Cher e o bosque que crescia de novo
atrás dele.

Sem dúvida aquele castelo tinha algo especial. Não era nem a quarta parte de
Chambord, mas tinha algo formoso e que o fazia único: Estava construído sobre o rio
Cher, cruzando-o de ponta a ponta como se fosse uma ponte.

Antes de chegar a ele, várias edificações apareciam dispersas em torno de seus


simétricos e floridos jardins: estábulos, adegas, casa para os criados, um moinho…
tudo belo e harmônico. Tudo de pedra branca impoluta e telha do preto brilhante.
Depois do antigo moinho fortificado, uma praça se elevava já quase sobre o rio, para
dar digna entrada ao castelo principal.
Os coches se detiveram na dita praça.

Os quatro ocupantes saíram deles, sorridentes e admirados. E, enquanto outros


ainda tratavam de estirar as pernas, a condessinha foi correndo em disparada para
uma lateral e apareceu no rio, como se de uma menina se tratasse. Girou-se e me
olhou, com um rosto de satisfação que nunca esquecerei.

Mas quando ia avançar para ela, a senhora Dupinse aproximou:

~ 66 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Espero que tenham tido boa viagem, cavalheiros. Bem-vindos ao meu humilde
lar.

A porta principal se abriu e vários criados saíram a nos receber, seguidos de um


companheiro já conhecido do dia do baile: o excêntrico preceptor e músico Rousseau.

Rousseau era o tutor do jovem filho de Madame Dupin, Émile; quem, conforme
nos informou ela, encontrava-se em Paris, visitando seu admirado pai.

Rousseau e sua senhora saudaram-se com muita familiaridade.

—Passemos todos a tomar um refresco —nos convidou Louise-Marie. — Enquanto


isso o serviço transladará suas bagagens aos seus aposentos.

Depois de admirar o painel do teto da entrada escura e estreita do castelo,


passamos todos ao salão Luis XIV. Depois desse nome tão fastuoso, outorgado à sala
depois da visita do dito rei, escondia-se um salão decepcionantemente diminuto
embora fortemente decorado. Uma enorme chaminé branca onde bem se podia assar
um porco inteiro presidia o salão, rematada por uma salamandra de pedra coroada:
um símbolo real. Havia, em tão poucos metros quadrados, uma profusão de tapetes,
cortinas, poltronas desnecessárias e quadros de toda índole. Chamava especialmente a
atenção um quadro onde apareciam representadas “As Três Graças”, três mulheres
loiras, entradas moderadamente em carnes, que dançavam nuas, agarradas pelos
braços.

Caroline se aproximou do quadro, admirada também por ele. Lembrança que seu
sensual corpo estava apertado por um gracioso vestido rajado de tons claros e um
diminuto chapéu “encantador”, muito do estilo de Madame Dupin. Sem dúvida estava
aprendendo da moda adulta de sua anfitriã.

—Esta “Graça” é você, madame? —disse admirada, com os olhos muito abertos.
Madame Dupin levou uma mão ao rosto e fingiu ruborizar-se.

—Oh! Efetivamente. Sei que é uma excentricidade, mas assim me sugeriu o pintor
e não pude me negar a lhe dar o gosto: posei nua para o grande Van Loo.

Estávamos contemplando a nossa anfitriã como Deus a trouxe ao mundo, pintada


pelas mãos de um tal VanLoo, que não seria tão “grande pintor” como insinuou Louise-
Marie, pois eu nunca tinha ouvido falar dele. Sem dúvida, o quadro era do mais frívolo,
mas ainda assim, era outra surpresa que jamais poderia haver encontrado se tivesse
ficado na Corte espanhola. Sorri ao imaginar a cara que poria minha devota mãe no
caso de ver semelhante quadro na casa de uma de suas anfitriãs. Sem dúvida sairia
correndo do castelo, jogando pragas intermináveis sobre a dama. Mas, em troca, ali
parecia apenas uma espécie de honra, algo estranho, mas sem muita importância
moral.

~ 67 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

À parte disso, não me agradava especialmente como o pintor tinha representado o


corpo de Louise-Marie, que mostrava seu seio pequeno, seu púbis e parte de seu
generoso traseiro, colocados de perfil, com pérolas na loira juba. Ao natural me
parecia melhor proporcionada e mais bela. Poderia dever-se esta transformação a que
o viço era símbolo de nobreza e o pintor possivelmente queria agradar sua modelo,
dotando-a de “dignidade” com uns quantos quilogramas a mais.

Depois de um delicioso chá acompanhado de abundantes e gordurosas massas, a


senhora Dupin se dispôs a nos mostrar, orgulhosa, seu castelo.

Ali tudo era pequeno, escuro e belo. A pedra branca lhe subtraía escuridão a cada
rincão e a abundância de decoração escolhida por ela com duvidoso gosto, enchia
tanto os olhos de opulência que disfarçava o pequeno tamanho dos cômodos.

O escritório de seu marido, Claude Dupin, era uma peça muito especial que tinha
sido usada como escritório pela mesma Catarina de Médici. Apenas uns metros
quadrados e uma mesa de boa madeira, mas se olhasse através das três janelas
situadas atrás desta, via de perto correr o rio Cher. Estávamos justamente em cima
dele.

A esses cômodos e o comprido corredor que cruzava sobre o rio lhe chamavam A
Galeria. Também desde suas janelas se contemplava a água muito de perto, e a bela
imagem do castelo refletido no rio, dobrando sua visão como se se tratasse de um
espelho gigantesco. Madame Dupin nos confessou que nessa Galeria tão especial era
onde se celebravam os luxuosos bailes.

Enquanto Caroline observava tudo com curiosidade, perguntando detalhes e


elogiando cada canto, Jean-Jacques Rousseau se mostrava ausente, evadido e
silencioso. Sem dúvida era um homenzinho do mais estranho, que parecia falar só
quando se exaltava. Denis Papin conhecia de sobra o castelo e se limitava a seguir sua
anfitriã e sorrir, estufando o peito e caminhando com as mãos nas costas.

Depois demos uma caminhada pelas adegas e a granja, onde madame tinha um
pic-nic organizado sobre a grama. Caroline-Marie se aproximou do lago para oferecer
parte de seu pão aos patos.

—Possivelmente lhe pareça estranho comer no chão, Monsieur De Gaula —disse


Rousseau. — Mas saiba que os costumes campestres do povo, a evocação da natureza,
são a última moda a imitar pela nobreza da França.

—E me parece uma moda deliciosa —acrescentou Louise-Marie. — Se esta moda


continua vou ter que transladar meus aposentos à granja.

Denis foi o único que riu.

— Ficaria encantadora vestida de pastorinha-lhe disse malicioso.

~ 68 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Oh, Denis… — respondeu com presunção. — Comam o quanto queiram, não se


privem dos queijos defumados nem do foi e especialmente feito aqui, na granja.
Depois poderão descansar, poderemos todos descansar, corrijo. Eu também estou
desfeita depois de madrugar e da incômoda viagem. E esta noite lhes oferecerei um
pequeno banquete.

— Nos reuniremos, além disso, com outro membro de nosso clube que já
conhecem — acrescentou Jean-Jacques. — Meu grande amigo Monsieur Diderot, o
dramaturgo.

— Oh, isso é estupendo — apontei. — Na noite do baile fiquei com vontade de


conversar mais com ele, mas claro, impediram-me isso os acontecimentos…

—Esqueçamos agora esses terríveis feitos — disse rápido madame, olhando para
Caroline, que já voltava do lago.— Essa menina precisa esquecer-se de tudo e juntar
forças. Há algo que não sabe, como bem sabem vocês: Seu pai não se recuperará.

—Tentemos distrai-la — acrescentou Denis.— Não lhe esperam tempos fáceis.

De volta ao castelo, Louise-Marie nos mostrou os famosos jardins de Chenonceau,


dos quais ela estava muito orgulhosa e mandava cuidar com esmero.
—Este jardim, o menor, é o que foi mandado criar pela esposa de Enrique II,
Catarina de Médici. Mas a poderosa Catarina tinha subestimado as artes de persuasão
de sua grande rival, a amante favorita do rei, Diana de Poitiers; cujo aposento escolhi
como próprio quando me transladei aqui, com meu marido —acrescentou de forma
muito graciosa, como quem se confessa pecadora. — Diana de Poitiers deve ter sido
uma mulher muito ambiciosa, pois sabia que Catarina de Médici, a esposa do rei,
adorava este castelo e não parou até que o rei o deu de presente a ela, embora fosse
somente sua amante. Então Diana, não satisfeita com isso, quis demonstrar a Catarina
que ela tinha o dobro de importância no coração do rei, criando um jardim duas vezes
maior e o dobro de formoso que o da rainha. Temo-lo justo do outro lado, à direita do
palácio — disse diligente, nos levando até ele.

Efetivamente, este grandioso e belo jardim gotejava ambição. Formava um


labirinto de sebes baixas e flores que criavam simétricas formas de losango, como um
jardim de conto. Bem que eu gostaria de brincar de esconder e correr entre esses
labirínticos corredores sendo menino.

—Vejo-os esgotados — observou Louise-Marie, com acerto. — Madrugamos com


sensatez para empreender a viagem, mas não me perdoaria se meus convidados
aparecessem bocejando e com os olhos inchados em minha reunião desta noite. Meus
serviçais os acompanhará aos seus quartos. Espero que tenham sido escolhidos para
vocês com acerto. Por exemplo, para nossa querida pupila Caroline, escolhi o “Quarto
das cinco rainhas”, que anteriormente foi ocupada ao longo da história pela Maria
Estuardo, Margarida de Valois, Luisa de Lorena, Isabel de Austria e Isabel deValois. E
para os cavalheiros, quartos próximos. Dispus eu mesma as mais formosas;
excetuando a “Habitação Escura”, é obvio.

~ 69 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—A “Habitação escura”? —inquiri.

—Oh! É obvio. Desculpe Monsieur Marco. Você, por não ser da região, não ouviu
falar dela, logicamente. Como eu não lembrei! Pois… resulta que temos em
Chenonceau uma habitação “maldita”: Uma habitação que Luisa de Lorena, depois da
morte de seu marido, escolheu para passar o resto de seus dias guardando luto. Ela fez
decorar em preto até o último rincão desta habitação, incluindo lençóis, paredes e
teto. E assim foi mantida após, por respeito, por todos os outros proprietários que teve
Chenonceau.

Depois da exaustiva viagem e do passeio, por fim pude descansar umas horas na
grande cama do meu quarto, que felizmente não era preta. Uma cama com lençóis
vermelhos, com um dossel sustentado por quatro colunas maciças, esquentada pelo
calor suave de uma muito alta chaminé de grande boca.
Com preguiça e sem muito desejo, preparei-me para a primeira reunião oficial do
clube. Madame nos tinha comentado que, precisamente por ser a primeira, ocorreria
em um ambiente mais relaxado do que o habitual. Vesti-me com uma casaca verde e
um lenço jogado atado ao pescoço. Em conjunto era o traje mais excêntrico que tinha
usado em minha vida, e ainda assim, não chegava à altura das adornadas
indumentárias dos meus companheiros.

Ao sair, encontrei Mademoiselle Caroline que também saía ao mesmo tempo ao


corredor, e se despedia da ajudante de câmara que Madame Dupin lhe tinha
emprestado para lhe arrumar o cabelo e ajudá-la a vestir-se. Levava um escandaloso
vestido de veludo vermelho, que contrastava com sua pele branca e seu cabelo preto.
Algo que, suspeitei, nunca colocaria em Chambord.

Olhou-me com o queixo levantado e um nascente sorriso travesso. Desejei-a tanto


naquele momento que temi que se fizesse evidente minha reação física ante sua visão.

Estávamos os dois a sós naquele silencioso e pequeno corredor do segundo andar,


cujas janelas deixavam ver o plácido e límpido rio uns metros mais abaixo.

O silêncio se fez entre nós.

Avancei para ela e lhe ofereci meu braço, me segurando com todas as forças para
não beijá-la na bochecha rosada.

—Mademoiselle, preparada para nossa primeira noite no clube?

Ela me sorriu com essa boquinha torcida que só ela sabia pôr, com a diferença de
que agora essa boca carnuda estava maquiada com vermelho carmim.

— Estou preparada para tudo, barão.

~ 70 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Ante a perspectiva de suas palavras comecei a imaginar se seria possível um


pequeno caso entre a jovem condessa e eu, naquela casa de conto de fadas,
acolhedora e retirada da realidade. Não sabia discernir se essas últimas palavras eram
atrevimento, mostra de valentia ou se cabia a possibilidade de que fossem sinais. Mas
não me atrevia a dar nenhum tipo de passagem: Se meu instinto estivesse equivocado,
meu posto de trabalho estaria em jogo e eu não podia fazer isso à minha família. Já
tinha podido mandar parte do adiantamento ao meu pai, em Madrid, e esperava com
ânsias poder contribuir muito mais.

Reunimo-nos todos no saguão. A senhora Dupin estava especialmente bela


também essa noite, devia reconhecê-lo, embora tivesse sido relegada das minhas
fantasias. Mas seu chamativo vestido em tons amarelos e dourados a devolvia à
inocência da juventude. Apesar de seus quase quarenta anos, era perita em sorrir
como uma menina. O vestido, além disso, combinava com o tom do seu cabelo,
cuidadosamente enfeitado para a ocasião. O espartilho era, também, claramente
favorecedor: elevava seu seio, criando um efeito imensamente melhor que a imagem
do seio mostrado em seu óleo “Das Três Graças”.

Meus companheiros também luziam excêntricas plumas e adornos supérfluos e


desnecessários; ao meu modo de ver, muito femininos. O senhor Rousseau inclusive ia
maquiado e se desenhou um ridículo lunar. Enfim pude saudar de novo ao valente
boêmio e ligeiramente afamado Diderot, convidado também à sessão. Um homem
moreno e magro, de trinta anos como Jean-Jacques, mas que à diferença dos parcos
lucros deste, já contava seu crédito com a nomeação, por parte dos jesuítas, de
professor das artes filosóficas. Era, além disso, reconhecido no mundo do teatro como
excelente escritor de dramas burgueses.

Sentia-me tremendamente jovem e ignorante ao lado destes dois cavalheiros, e


começava a me perguntar o que fazia ali.

A senhora Dupin nos conduziu por uma escada em caracol até as amplas cozinhas
subterrâneas, ou melhor, dizendo, a um piso abaixo do principal, que ficava quase à
altura da água. O saguão das cozinhas fazia as vezes também de sala de jantar para o
serviço da casa; umas acomodações muito confortáveis que muitos camponeses
quereriam para seus lares. Uma profusão de panelas de cobre cintilava ao fundo, na
sala dos fogões. Passamos pelo forno de pão, o matadouro e perto da portinhola onde
atracavam os barcos que traziam os mantimentos. E justo ali, junto a esta incomum
porta, encontrava-se a entrada do laboratório secreto de madame.

~ 71 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Capítulo 9

Diário de Marco De Gaula:


Os prazeres deChenonceau: Continuação.

Entramos todos admirados no estranho aposento, como se fôssemos exploradores


ingleses internando-se em uma selva hindu. E não era para menos a comparação em
expectativa, se tivéssemos em conta os estranhos e proibidos instrumentos e os livros
censurados pelo clero que ali se amontoavam. Adornos estranhos e esotéricos
também decoravam o aposento, como velas de igreja acesas dentro de crânios
humanos.

Catarina de Médici tinha sido a primeira, conforme nos contou a senhora Dupin, a
começar colecionar livros proibidos e pagãos. E para esconder a coleção criou aquele
aposento secreto. Era um aposento úmido, sem janelas, cheio de tapetes, almofadas e
lanternas de modelo oriental. Atrás de uma divisória, mais protegidos, encontravam-se
os livros e os instrumentos de laboratório, pintados à mão — em vermelho com flores
verdes— pela própria Madame Dupin. Contou Louise-Marie que desde que descobriu
esse aposento não tinha feito outra coisa que usar a fortuna de seu pai e de seu
marido para aumentar essa coleção que começou a temida e poderosa Catarina de
Médici. Esse comentário foi uma frivolidade de sua parte: sabíamos que era uma
proprietária de terras generosa que também investia seu dinheiro para garantir que
nada faltasse à sua gente.

Sentamo-nos sobre grandes e cômodas almofadas orientais e ela mesma nos serviu
um chá muito aromático que eu nunca tinha provado.

—Seu nome é chá Chai, trazido da misteriosa Índia por um importador inglês,
amigo do meu marido, só para o prazer dos meus convidados — disse agitando suas
pestanas.

—Este chá é um escândalo para os sentidos — afirmou Denis.

—Se alguma vez o Papa o provasse, o censuraria — acrescentou Jean-Jacques, para


riso geral.

Jean-Jacques Rousseau só parecia encontrar-se à vontade ante temas de debate.


—Oh! Queridos, acredito que deveríamos deixar o debate religioso de lado na
sessão de hoje, recordem que nosso querido Diderot está felizmente casado com uma
plebeia muito católica e devemos respeitar.

~ 72 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Não subestimem minha capacidade de escândalo, madame, lhes rogo —disse


ele, com voz firme. — Lembrem-se que renunciei às comodidades da casa de meu pai
por me negar a formar parte do clero, contra seus desejos. Pensem que, apesar da
minha educação católica, se renunciei deve ser por alguma razão.

— Penso eu que essa renúncia bem poderia ter sido, precisamente, consequência
de sua educação católica — se atreveu a apontar Rousseau.

—Pensa com acerto, colega Jean-Jacques. Nunca quis repetir as imoralidades que
ali dentro vi cometer, para logo exortar ao povo com tão descarada hipocrisia. Prefiro
ser dono da minha moral e condizente com meus atos.

Caroline-Marie deixou de beber para olhá-lo assombrada, com olhos luminosos.

—Assim que se fala companheiro — disse Denis Papin, dando um forte golpe de
ânimo nas costas do despreparado Diderot, fazendo-o derrubar parte de seu chá.

Os efeitos doces e, ao mesmo tempo, picantes dessa bebida hindu, junto à fumaça
do incenso que invadia esse quarto sem janelas, começavam a criar certo relaxamento
estranho em todos.

Depois do lanche, a mesma madame trinchou um assado de pato e serviu um vinho


branco de suas adegas para acompanhar a carne da ave. À vista estava que queria que
a noite fosse tão íntima que nem sequer pudesse interferir nenhum criado do serviço.

—Madame, lhe agradeço imensamente por nos haver estendido esta armadilha
deliciosa —disse Denis, amável e irônico, terminado já o manjar. — São inigualáveis
proporcionando prazer a um homem; bem sabe que lhe conquista pelo estômago.

—Bem sabem vocês que também domino à perfeição outros órgãos para sua
conquista.

Ambos riram travessos, ante a aprovação dos outros. Somente Caroline e eu


parecíamos surpreendidos.

—Sem dúvida os domina, madame.

—Fazem-se notar na conversação os efeitos do vinho de Chenonceau —interveio


Jean-Jacques, elevando a taça.

—Não o suficiente — acrescentou a madame. — Vamos respeitar a você, Jean-


Jacques e também ao Monsieur Diderot, já que pertencem a essa espécie escassa de
homens felizmente casados, mas alguém deve escandalizar os ouvidos dos nossos
jovens convidados. E quem melhor que nosso sedutor cientista Denis Papin, aqui
presente, para nosso regozijo — acrescentou, sorrindo.

—Oh! Diga-me o que quer que eu conte, libertina madame, e lhe agradarei.

~ 73 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Bem… algo que nem eu mesma saiba, para que assim também a mim possa
surpreender. Vejamos… já que conheço todos seus atos realizados, diga qual é a sua
fantasia mais selvagem e oculta, monsieur?

—Excelente pergunta. Mas claro, são tantas que… — disse, em tom de graça. —
Vejamos. Acredito que poderia ser… Oh, sim! —exclamou, olhando diretamente para a
jovem Caroline-Marie. — Já sei. Agradar-me-ia instruir uma jovem virginal e iniciá-la no
excitante mundo do prazer.

—Oh! É um perigo, monsieur! —afirmou madame, golpeando o peito de Denis. —


Cuidado jovenzinha, — disse à jovem condessa— aqui temos um corruptor de
inocentes!

A condessa, a quem já se via um pouco sobressaltada, avermelhou tanto que sua


pele se tornou indistinguível de seu vestido.

—Bem, e de que maneira você gostaria de instruir a sua vítima?

O homem entreabriu os olhos, tornando-os escuros, e sorriu.

—Eu gostaria de ensinar a uma jovem pura a descobrir seu próprio prazer.

—Bem, que surpresa — disse Diderot. — Não o seu, mas sim o prazer feminino?

—Isso. Isso me agradaria mais. Fazer-lhe saber todos seus pontos sensíveis,
levando-a até a extenuação. Romper a barreira de sua moral com suaves mentiras…
vê-la encolher-se e retorcer-se de prazer. Ver a primeira vez que uma jovem dama se
derrama, e saber que foi graças a mim.

Naquele momento Caroline-Marie se levantou de repente, tão rápido que quase


cai para trás, mas Monsieur Diderot a segurou.
—Sinto muito, não me encontro muito bem — se desculpou minha pupila, de
forma inesperada. — Terão que me desculpar todos, mas não estou acostumada… ao
vinho.

—Não há problema, querida, não tem por que se desculpar — disse madame.—
Chamarei alguém do serviço para que a acompanhe ao seu quarto para descansar, se o
desejar.

— Eu agradeceria.

—Não é necessário que chame o serviço — intervim. — Eu mesmo a


acompanharei.

~ 74 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Não se preocupe, colega Marco — disse então Rousseau, ficando em pé. — Eu


também me retiro. Além disso, conheço o castelo, assim não será nenhum incômodo
acompanhar a jovem dama.

Essas palavras frustraram minhas intenções. Tinha pensado em acompanhá-la para


estar um momento a sós com ela. Além disso, estava preocupado com seu estado. Mas
não tinha confiança suficiente para dizer que eu me retirava também, teria sido muito
descortês. Uma coisa era acompanhá-la e voltar, e outra me retirar assim da reunião,
coisa que não agradaria nada à anfitriã. Assim não encontrei desculpa, nem saída.

—Está bem, então — disse, como um bobo.

E fiquei sentado sem mais, observando como o objeto dos meus desejos partia
com o rosto descomposto. Sem poder lhe perguntar ao menos se ela se encontrava
melhor, me deixando com o coração apertado.

Depois de um incômodo silêncio, Denis retomou a conversação.

—Bem, não deixemos que a marcha de dois espíritos débeis, nos arruínem a
noitada. Ainda nos resta noite pela frente e muita diversão. Assim, agora nos diga
madame Dupin: Qual é a sua fantasia mais selvagem e oculta? Agora é com você.

—Pois bem, estou de acordo com meu colega Denis, é uma pena que se retirem,
mas continuaremos a noitada sem mais. E lhe darei o gosto de responder à sua
pergunta sem nenhum tipo de temor ou vergonha. Vejamos. Lá vou com minha
fantasia, cavalheiros: Uma vez, no sul da França, conheci um membro da cúria, um
Cardeal muito, muito rico e também extravagante. Gastava sua fortuna nas coisas mais
inverossímeis e gostava das raridades exóticas.

—Não irá você dizer que sua fantasia é deitar com um membro do clero, madame?
—interveio Diderot. — Se houvesse sabido teria aceitado encantado a proposição do
meu pai de ingressar na Igreja!

Todos rimos sinceramente — algo não tão habitual— e o ambiente pareceu voltar
a retomar seu leito emocionante de histórias de perversão.

— Você me deixe acabar, monsieur, porque vejo que vou lhe decepcionar. Este
Cardeal não era algo dentro do habitual. Quando disse que colecionava “raridades
exóticas” não me referia a mulheres de estranha beleza oriental, e sim a frivolidades
materiais: desde excêntrica comida de longínquos lugares, até animais selvagens e
incríveis.

“Foi em suas posses onde eu vi, pela primeira e única vez em minha vida, um
enorme tigre, trazido das selvas de Bengala. Era… tão grande! Tão belo e poderoso
que, muito secretamente, desejei entrar em sua jaula, me colocar debaixo e deitar
com ele. Imaginem o que teria dito meu marido e meu amigo, o Cardeal, se pudessem
adivinhar meus pensamentos!”

~ 75 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

— Os teria encantado, sem dúvida! — afirmou Denis, elevando uma sobrancelha.


— É grandioso. O melhor que já ouvi.

—Um tigre! Bem, Madame Dupin, é insuperável! Essa história não tem
comparação; agora as nossas carecerão de interesse — afirmou o dramaturgo Diderot.

Animados pela história, o grupo prosseguiu sua conversação entre risadas e graças,
exceto eu, que me pus a pensar em minha própria fantasia. Qual era a situação mais
mórbida com a qual eu poderia sonhar? De repente me sobressaltaram meus próprios
pensamentos. Ao repetir em minha cabeça as palavras “situação mórbida”, o primeiro
que me veio à mente foi uma aula com a jovem condessa. Nessa aula eu interrompia
de repente uma explicação para tomá-la, em um arrebatamento, e a elevava para pô-
la sobre a mesa, com suas pernas rodeando minha cintura. Depois a beijava
apaixonado, e finalmente ela me indicava o desejo de que a possuísse; assim, a invadia
com tal força que… uns calores reais assolaram meu corpo. Arrependi-me de pensá-lo
um segundo depois. Ela era um ser desejável, mas ao mesmo tempo frágil, não era só
alguém com quem deitar… Era alguém a quem cuidar e a quem amar. Uma das poucas
mulheres que tinha encontrado ao longo da minha vida com quem sentia que podia
conversar infinitamente e rir. Sob sua aparência de orgulho e capricho se adivinhava
rapidamente um coração enorme e fácil de romper. Recordava a um cervo perdido no
bosque: a cabeça alta e os olhos brilhantes, refletindo uma grande busca de amor.
Definitivamente, era alguém a quem eu imaginava mimar, se eu fosse rico e pudesse
oferecer a vida que ela merecia.
Mas algo falhava em nossa história. Ela era de um nível bastante superior e para
maior vergonha, eu a servia como professor. Sempre se tinham ouvido mórbidas
histórias sobre grandes senhores e damas que estavam acostumados a deitar com
serventes ou histórias sobre descendentes que chegaram a ser reis e que em realidade
foram engendrados por simples moços de cavalariças. Eu não queria que nossa
história, se fosse existir, fosse como aquelas; eu queria que nossa história estivesse
cheia de legitimidade e… de amor. Ela não merecia outra coisa.

Mas… o que eu estava dizendo? Existir? O quê? Era um bobo sonhador… isso nunca
ia ocorrer.

Foi a voz da minha anfitriã que me tirou do meu devaneio.

—Barão, no que está pensando com tanta atenção que esquece que todos os
outros estão aqui?

—Em você — inventei automaticamente para agradá-la, antes que pudesse me


arrepender.

Todos calaram a um tempo e ficaram mudos olhando a ambos. Madame Dupin


levou uma mão delicada à boca e soltou um risinho ao tempo que suas bochechas se
ruborizavam. Não tinha nem ideia de como arrumá-lo. Provei:

~ 76 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—É… pela história do tigre.

—Acaso lhe escandaliza por sua curta idade e sua pouca experiência vivida? —
perguntou Madame Dupin, com um tom sedutor em sua voz. — Porque lhe asseguro
que minha intenção não é outra que lhe escandalizar —acrescentou, inclinando-se
perigosamente para mim. — Mas, isso sim, —disse brincando com dois dedos sobre
minhas roupas — sempre com histórias reais, eu nunca invento nada, não me faz falta.
Já vivi o suficiente…

Estiquei-me e me retirei um pouco para trás.

—Oh, mon Dieu! Não se assuste. Não lhe atraio, barão? Estarei perdendo
aptidões?

Por um momento pareceu que ia pôr-se a chorar. Olhei desconcertado aos meus
dois companheiros, que me fizeram gestos dissimulados com a cabeça para que a
agradasse. Essa mulher esmagadora me intimidava. Era atraente, sem dúvida, e tinha
ficado em meus pensamentos platônicos por algum tempo… mas à curta distância ela
era muito para mim. Era muito para quase qualquer um. Observei seu olhar implorante
e sua boca entreaberta e meu membro se esticou sob a calça.
—Asseguro-lhe que me escandalizo sobremaneira com cada uma de suas palavras,
madame — disse, acovardado. — Desculpe se não sei como reagir. É porque é a
mulher mais atrevida e inquietante que já conheci.

Madame Dupin sorriu. Parecia dar-se por satisfeita e eu suspirei aliviado. Mas
então se equilibrou sobre mim. Tinha-o arrumado por uma parte, mas sem pretendê-
lo, tinha-a provocado por outra. Agora a senhora Dupin se sentia excitada pela ideia de
ser eu um jovem inexperiente e ela uma bela preceptora. E já tinha começado a
desabotoar os botões da minha meia-calça. Não sabia como deter aquilo! Mas
tampouco sabia se queria detê-lo… minha excitação cresceu de repente até quase
doer.

Diderot, com cara de resignação e pouco interesse se levantou de sua almofada e


se retirou ao outro lado do aposento em busca de um lugar onde urinar.

A senhora Dupin seguia entregue à sua tarefa de pinçar em minha entreperna, em


busca da forma de liberar meu membro, me olhando com os olhos entreabertos
enquanto mordia a comissura do lábio.

Eu estava completamente imóvel por causa da tensão, do desconcerto. Minha


respiração se agitou por causa dos nervos. Não fui capaz de mover nem um músculo
do meu corpo; exceto um, que se movia para cima, indo livre, crescendo e crescendo,
para surpresa e gozo de Madame Dupin. Não sabia quanto poderia aguentar se me
tocasse, mas devia tentá-lo, não podia desprezar assim a minha anfitriã.

—Pare, madame! Ou não resistirei e tomará como uma imperdoável ofensa.

~ 77 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Ao contrário! — exclamou. — Seria uma grande adulação que ainda sem lhe
tocar explodisse de prazer.

Emitiu uma risada cristalina e olhou ao Denis. Então, Denis Papin, conhecedor dos
desejos de sua amiga, colocou mãos à obra. Colocou-se atrás dela e começou a
levantar saias e anáguas e a baixar as meias. Para antes que Denis acabasse seu nada
fácil trabalho, o pouco interessado Diderot já tinha abandonado o aposento e madame
já tinha encontrado o que procurava em mim.

Olhou-me com olhos de surpresa, com umas enormes pupilas. E eu a olhei, quase
com sentimento de culpa. Impactou-me ver meu pênis liberado frente ao seu rosto.

—Nunca havia visto semelhante tamanho de membro, barão! Não se ofenda Denis,
mas acredito que necessitamos de mais convidados espanhóis!

—Como queira, madame — respondeu Denis. — Minha paixão é ampla, já sabe.

—Oh, monDieu! Eu gostaria de fazer um molde de seu membro para meu uso
pessoal. É, é… perfeito! — exclamou madame.

Então pousou sua úmida e perita boca sobre meu membro endurecido e temi que,
então sim, este fosse explodir. Era muito insuportável o prazer, como se milhares de
formigas saíssem à carreira sobre meu corpo, como beber a água mais pura depois de
dias no deserto, como receber um quente casaco para o frio; o quente casaco de sua
boca. Enquanto isso, Denis ocupava seus dedos e sua boca ao mesmo tempo em sua
vulva.

Não tinha nem ideia de que, entre os nobres, fossem tão naturais essas práticas.

No seguinte momento, madame estava sendo grosseiramente sacudida pelo Denis,


que se erguia atrás dela, com a camisa desabotoada e com o cabelo solto, a modo de
leão furioso, e punha estranhas caras que, supus, deviam parecer-se com a minha
naquele momento.

Tentava pensar em outras coisas para resistir um pouco mais. Mas a língua tenaz e
onipresente de madame brincava e brincava, sem deixar lugar da minha intimidade
sem ser invadido ou acariciado. Excitada pelo que ela mesma estava recebendo,
aumentou a intensidade, abriu-se o espartilho em um arrebatamento e liberou seus
suaves, pequenos e turgentes seios que saltaram acima e abaixo ante mim durante uns
segundos e não pude aguentá-lo mais. Retirei-me para trás.

—Entendo que precisa parar um pouco —disse, mimosa, erguendo-se sobre seus
joelhos e respirando também. — Troquemos as posições: eu ficarei agora de barriga
para cima. Denis se ajoelhe aqui junto à minha cabeça e me deixe que lhe masturbe,
pois não poderá aguentar muito mais dentro de mim. E, por favor, Marco, me penetre!
Morro por provar essa estupenda glande espanhola.

~ 78 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

— Isso não posso lhe conceder, madame. Sinto muito. Sinto que minha primeira
vez deve ser com alguém a quem ame, em uma relação permanente. Deve entendê-lo.
Não se ofenda, por favor. O de hoje já está sendo incrível para mim.

—Oh… é uma pena, querido Marco. Também queria desfrutar de você dentro de
mim. Agora terá que me ressarcir… devolva-me o prazer que eu dei a você. Enquanto
dou prazer ao Denis com minhas mãos, pouse sua boca em meu boutondu rose.

Então ela me assinalou um pequeno promontório carnudo, escondido entre os


lábios de sua zona íntima. Minha cara mudou. Claramente, nunca tinha pensado em
me dirigir ali, mas poderia ser toda uma experiência. Sem saber muito bem o que devia
fazer, inclinei-me e minha boca se abateu sobre seu boutondu rose. Aquela sensação
foi estranha, mas agradável. O corpo de Louise-Marie se convulsionou. Assustei-me
quando ela gemeu tão forte que não sabia se era devido ao prazer ou à dor, e entrou
em uma espiral apaixonada de gritos e sacudidas nos chamando aos dois por nosso
nome enquanto agitava o membro do Denis. Ele aproveitou que tinha as mãos livres
para acariciar com certa técnica os mamilos dela, um com cada mão, ao mesmo
tempo. Madame começou a umedecer-se em excesso, como se pequenos riachos
caíssem sobre o musgo de uma cascata oriental e seguissem correndo, mais abaixo,
molhando a rocha. Tratei de fazer o melhor possível com minha boca e também com
meus dedos e aumentar mais e mais minha intensidade… até que a quebra de onda
que a sacudia como um mar enfurecido a uma barcaça cessou.

Ambos respiramos, derrotados. Mas Denis seguia com vontade demais e eu me


encontrava à beira do abismo de toda excitação imaginável. Então Denis, sem deixá-la
descansar muito tempo, trocou de posição, aproveitou que ela, tombada ainda de
barriga para cima, oferecia-se facilmente, e a penetrou de novo com ferocidade.

—Vamos, Marco, se mova! —ordenou-me Denis, para que me afastasse, levado


pelo arrebatamento.

Situei-me junto à cabeça de madame, onde antes estava Denis, e ela agarrou
brandamente meu membro, movendo-o em sua mão de cima a baixo e introduzindo-o
pouco a pouco, já sem forças, entre seus lábios rosados. Sem poder evitá-lo, derramei-
me em sua boca sem prévio aviso. Temi que madame se zangasse pelo desastre
ocorrido, mas, em troca, limpou-se com a mão e riu de forma escandalosa.

Denis fez o mesmo sobre seu ventre.

~ 79 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Capítulo 10

Memórias de Caroline-Marie Du Berry:


Uma fábula romântica.

Embora tivesse que continuar com minhas lições, estava sentindo aquela estadia
em Chenonceau como um merecido descanso, longe da realidade. Como se nenhuma
das preocupações que deixei em Chambord e que me assolariam de novo ao retornar,
pudessem transpassar as barreiras de poder e beleza do “Castelo das mulheres”.

Tinha descansado como uma autêntica rainha nos aposentos das cinco rainhas,
valha a redundância, possivelmente por algo a escolhiam estas e a chamavam assim.
Estava felizmente disposta a confrontar o ensolarado dia que se haveria ante mim.
Abri a janela e contemplei a cercania do limpo rio Cher, com suas aves aquáticas
desfrutando de suas plácidas águas, balançadas pelo canto dos pássaros do bosque
próximo. Se meu querido Chambord era o protagonista de um conto de terror, esse
pequeno palácio era o protagonista de uma fábula romântica.

Despi-me e me aproximei nua da janela. Isso era algo que nunca tinha feito, mas
me sentia livre, e era delicioso desfrutar da brisa fresca lambendo meu seio e meu
pescoço e revoando em meu cabelo. Fechei os olhos e me expus a ela, me retirando
envergonhada, um minuto depois, ante o pensamento de que pudesse observar-me
algum jardineiro ou empregado do serviço.

Na noite anterior havia me sentido muito sensual, embainhada naquele vestido


vermelho; uma cor atrevida, reservada apenas para nobres e prostitutas. Tinha
gostado da sensação de sentir o olhar de Marco descer, de forma automática e
inevitável, para minha cintura e meu decote. Não queria perder esse efeito sobre ele.
Não pensava pôr os vestidos descoloridos de pescoço alto que punha em Chambord
para assistir às suas lições. Tinha que procurar algo mais atrevido.

De repente tocaram à porta, me sobressaltando:


—Sim? —gritei, devido ao sobressalto.
—Sou Mireille, sua criada, mademoiselle. Trago-lhe a bandeja do café da manhã,
com sua permissão.

Envergonhei-me de minha nudez. No dia anterior Mireille tinha me penteado e


vestido, mas eu a tinha recebido em anáguas, meias e espartilho interior, como era
devido.

~ 80 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Se for tão amável, desça a bandeja do café da manhã ao escritório onde
receberei minhas lições junto ao barão. Tomarei ali mesmo.

—O que você ordene, mademoiselle.

Imaginei sua ligeira reverência depois da porta, antes de partir. Mireille me


agradava muito. Nada a ver com a brusca Charlotte, que inclusive ousava me olhar
com azedo gesto e maus modos em sua fingida cortesia. Só aguentava aquilo pelo caso
que Charlotte mantinha com meu pai. Mas senti falta ter em Chambord uma criada
com a diligência e doçura de Mireille.

Finalmente, decidi-me por um formoso vestido de seda em tons alaranjados, com


flores amarelas e brancas bordadas à mão no busto e nas mangas, as quais foram
rematadas por largos pontos brancos. Este vestido foi desenhado e ordenado costurar
por minha tia, como todo o guarda-roupa para minha temporada. Escolhi-o para esse
dia porque, embora tivesse um inocente e campestre estampado, dispunha de um
amplo e generoso decote. E isso é o que eu procurava para minhas lições com Marco.

Ansiava vê-lo de novo.

Desci emocionada e sorridente as escadas brancas em caracol, sem saber de onde


provinha tanto excesso de alegria. Mas algo deste excesso se esfumou ao entrar no
escritório do marido de Madame Dupin, onde tomaria as lições, e ver o semblante de
Marco.

Parecia sério e cansado, com os olhos avermelhados e não muito bem penteado
esse dia.

Olhei-o, interrogante.

—Barão, encontra-se bem? Necessita que posterguemos as lições de hoje? Não


vejo problema em fazê-lo.

Ele fez um gesto cortante, terminante, com a mão.

—Não. Só estou um pouco cansado. Mas seria bom para eu lecionar, de todo modo
— acrescentou entre sussurros.

Fez-me suspeitar que a reunião da noite anterior não devia ter acabado muito
bem.

— Vou servir-lhe eu mesma um pouco do chá do meu café da manhã, barão. Devo
cuidar do ânimo do meu professor — disse, sorrindo. — Verá como se repõe em
seguida. Ao menos assim o espero… me conte, ocorreu algo interessante na reunião de
ontem, depois que eu parti?

Ficou pensativo, cabisbaixo, durante um tempo que chegou a me desesperar.


~ 81 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Pensei que, essa manhã, apesar de seu suposto cansaço e indisposição, estava
especialmente atrativo, com uma casaca escura e o cabelo preto algo revolto, com seu
perfil recortado pela luz que se filtrava pelos cristais translúcidos das três janelas que
haviam atrás dele, pelas quais se via o rio.

—Nada interessante — disse ao fim. — Mas foi uma pena lhe ver partir. Queria que
tivesse ficado — disse ofegante.

— Por quê? Falaram de algo interessante? Alguém mais compartilhou suas


escandalosas fantasias?

—Bem, algo contou a senhora Dupin sobre um tigre…


—Um tigre?!
Marco me indicou com um gesto da mão que baixasse a voz.
—De certo modo… mas depois não ocorreu nada. Nada muito… interessante.
Mesmo assim, eu não gostei de lhe ver partir…

—Terei mais oportunidade de conversar. De repente me encontrei enjoada e muito


cansada — menti. — Mas hoje estou estupendamente sã.

Odiei recordar a vergonha e o mal-estar que Denis Papin me fez passar com suas
grosseiras e mal-intencionadas palavras. Odiava-o. Não queria voltar a vê-lo, ao menos
no momento. Com um par de frases inoportunas tinha destruído a boa concepção que
eu tinha de sua pessoa e tinha feito eu me arrepender de tudo o que tinha descoberto
com ele. Eu não gostava que jogassem comigo. E menos ainda em público…

—Podemos começar as lições, então? —disse Marco, muito sério.

Sorvi um pouco de chá, agarrei uma bolacha e deixei o café da manhã a um lado.
Logo me acomodei na sólida cadeira de despacho, estilo Luis XIV.

—Adiante, por favor.

Depois de uma interessante lição, onde aprendi o papel a que ficava relegada a
mulher segundo as filosofias políticas de Sócrates, Platão e Descartes — cadeia de
famosos professores e seus respectivos alunos, vi como Marco recolhia seu material
suspirando e cabisbaixo. Seu formoso cabelo preto caía em mechas sobre seu rosto de
traços duros e doces ao mesmo tempo.

Tinha terminado a lição bastante antes do normal. Pensei que, possivelmente,


viesse-lhe bem tomar um pouco de ar fresco.

— Lhe agradaria dar um passeio pelos jardins, professor?

~ 82 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

— Acabamos a aula. Pode se dirigir a mim como “barão”. Além disso, aqui, no
ambiente do clube, somos companheiros.

—Ousa esquecer que trabalha a meu serviço? —brinquei, elevando o queixo.

Sorrindo meio de lado para fazer notar minha falta de seriedade.

Ele sorriu, por fim, também e imitou meu gesto altivo.

—Vejamos se esse passeio desembaraça um pouco os ares orgulhosos dessa


cabecinha.

—Nem o maior dos furacões, temo-me! — Concluí, saindo antes dele.

Dirigimo-nos para os jardins pequenos: os jardins de Catarina; mais íntimos e


agradáveis. Menos calculados que os “jardins da amante”. Mais selvagens.

Passeamos sem sombrinha, sentindo sobre a pele o sol alegre da primavera; esse
sol que tem o poder de devolver o dormido à vida e que dizem que faz nascer o amor.
Eu não necessitava do sol primaveril para despertar sentimentos em mim. Já tinham se
despertado na escuridão dos escritórios e bibliotecas, ante essa lábia fogosa com a que
Marco falava desses personagens antigos de nomes estranhos, como Sócrates ou
Platão, com essa capacidade de expressar força e acanhamento ao mesmo tempo.
Alguma coisa despertou essa forma ineficaz de mostrar sua indiferença para mim...
suas brincadeiras, seu respeito, sua amizade sincera com meu pai. Algo novo e agônico
nascia em mim ante a lembrança desse peito firme e plano que aquele dia vi, ante a
repetida visão desse traseiro enxuto, dessas pernas longas e fortes, ante seus olhos
doces e seu queixo duro. Inclusive essa barba incipiente de dois dias que parecia não
ter tido tempo de retocar, parecia-me certamente atrativa.

Embora estivesse um pouco apagado o brilho travesso habitual de seu olhar. E isso
não me produzia nenhuma boa sensação.

Em um arrebatamento de decisão, tomei-o pela mão e lhe fiz me seguir até que
nos adentramos em um caminho do jardim.

Notei sua respiração agitada e virei o rosto para que não me visse sorrir.

Não encontrava o que procurava: algum banco onde pudesse sentar junto a ele e
conversar.

Segui andando, com sua mão tomada, me adentrando cada vez mais naquele
rincão escuro de arvoredo… carente de bancos onde sentar-se…
Não sabia como reagir. O que ia dizer-lhe agora? Tão somente escutava sua
profunda respiração, espectador. Girei-me, apertando os olhos com gesto de cachorro
perdido, e o olhei sem saber o que dizer ou fazer. Estávamos cara a cara, sentindo
nossos mútuos fôlegos. Observei sua boca entreaberta, o perfil atraente e masculino
~ 83 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

do queixo e do seu nariz, seus olhos brilhantes cheios de interrogação, seu peito forte
que subia e baixava agitado… e, sem pensar dois segundos, sem razão e com medo,
beijei-o. Lancei meus braços ao seu alto pescoço e uni minha boca contra a sua. Em um
primeiro momento, retrocedeu. Em seguida soube que sua pequena retirada se devia
somente à surpresa, pois em seguida tomou-me em seus braços como quem anseia o
reencontro do filho perdido durante anos, com a mesma ânsia e delicadeza.

Suas mãos subiram e desceram por minhas costas, pelo início do meu traseiro e
meu cabelo; desesperado, ansioso. Tomou meu rosto entre elas, olhou aos olhos e
beijou minha testa, antes de voltar para minha boca. Senti algo inesperado nela: sua
muito doce língua me invadia. Logo recordei isto do meu fugaz e errôneo encontro
com o Denis, do qual agora tanto me arrependia. Antes não sabia que o uso da língua
era necessário em um beijo, agora o desejava. Sem dúvida contribuía a aumentar em
meu corpo o calor. O beijo de Marco era distinto: suave e agradável, cheio de
profundo desejo, como uma carícia. Por um momento acreditei que ia desmaiar em
seus braços.

Retirei-me para respirar e me deixei cair na grama. Peguei sua manga para atrai-lo
para mim. Marco olhou para os lados antes de sentar-se. Ia dizer algo; uma frase
estava a ponto de escapar de seus lábios, uma frase que, intuí, eu não ia gostar. Assim
com um novo olhar de cachorrinho ferido e um novo beijo sobre seus lábios doces e
suculentos, calei-o. Ele pareceu render-se. Beijou, meigamente, meu pescoço e depois
meu cabelo, me rodeando ternamente com os braços a cintura. Necessitava mais dele.
Necessitava de suas mãos enormes me percorrendo! Deitei-me sobre a relva, sob o
resguardo das copas das árvores e o convidei com o olhar.

—Não. Você não merece isto — disse de repente, para minha surpresa. — Assim
não.

Pedi explicações com um só gesto dos olhos.

—Caroline… lhe desejo como nunca deveria fazê-lo. Você é a minha fantasia desde
aquele trágico dia em que lhe vi. E depois fui descobrindo tanto em você… que
acredito que alguém como você não merece ser tratada assim… seduzida na
clandestinidade — disse, muito doce.

—Eu não lhe pedi que me seduza. Já estou totalmente seduzida. Marco, eu
também lhe desejo. Desejo-lhe desde a primeira vez que te escutei falar… com esse
tom seguro e profundo em sua voz… ou possivelmente desde que te vi perdido no
bosque, com o peito descoberto — confessei, rindo. Olhei-o aos olhos, muito de perto,
e me tornei séria para lhe dizer as coisas claras. — Desejo-lhe, não só por sua figura e
sua origem espanhola, mas também por suas ideias, por sua moderação, por sua
sinceridade e sua ternura, por sua nobreza e bondade de coração… desejo fazer tudo
isso meu…

—Mas eu não te desejo — disse detendo minhas mãos, que o buscavam de novo.
— Eu te amo. Não é somente forte desejo o que sinto por você.
~ 84 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Acabava de me deixar sem respiração.

Não soube o que dizer. Tinha-lhe mentido. Maldita seja! Eu não só o desejava, sem
dúvida o amava também. Era um ser que não merecia outra coisa. Podia imaginar uma
vida perfeita e feliz junto a ele; jamais me havia ocorrido antes coisa semelhante.

Acariciou meigamente minha bochecha e, sem saber por que, detive-o.


—Marco… vou-me casar… não posso te amar — menti, uma vez mais.

—Sei —disse, me desmontando.— Sei. E possivelmente te perderei para sempre.


Seria feliz apenas lhe dando aulas por toda minha vida, para poder lhe ver todos os
dias. Mas certamente, quando estiver casada, o conde Gastón não lhe permitirá
estudar.

—Oh! Sim, me permitirá isso! Farei o que me agrade! Quero ser uma esposa livre.
Sobressaltei-me ao ver como os olhos de Marco se empanavam. Nós dois sabíamos
que isso não era tão fácil, que possivelmente Marco tivesse razão.

—Eu gostaria tanto fazer você feliz — disse, acariciando meu cabelo. — Eu adoraria
fazê-la minha própria esposa. Estaria tão orgulhoso sempre de você. Oxalá pudesse
resgatá-la.

As lágrimas vieram também aos meus olhos.

Nunca tinha pensado nessa possibilidade. Mas, em realidade, não tinha tido tempo
de expô-la. Nunca tinha contemplado a ideia de um matrimônio por amor.

—Marco, não me torture. Não… não posso…

—Sinto muito. Não tinha que ter pronunciado essas palavras — se mortificou. —
Foi uma irresponsabilidade da minha parte.

Ficou de pé, com gesto tão sério que parecia temível, e pegou-me pelas axilas para
me levantar, como se fosse uma menina indefesa.

Olhei-o profundamente nos olhos.

— Foi o mais bonito que alguém já me disse. E o mais valente.

Marco sabia que havia dito uma temeridade, inclusive, embora eu não tivesse
estado prometida: ele apenas era, com o propósito de arrumar um matrimônio, um
arruinado barão espanhol. Sabia que havia se exposto ao mais humilhante rechaço.
Mas, por essa valentia e nobreza, admirava-o. Sim; era mais que desejo. Era… tudo.

Voltamo-nos a fundir em um beijo. Senti a ponta gelada de seu nariz aquilino sobre
meu pequeno nariz. E exalamos ao uníssono um suspiro. De repente, um ruído
~ 85 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

sobressaltou a ambos. Alguém nos chamava pelo caminho. Era a voz da criada Mireille.
Sobressaltamo-nos ao mesmo tempo. Nervosos, recompusemo-nos e sacudimos
nossas roupas antes de sair ao seu encontro.

—Estamos aqui, Mireille! Achávamo-nos dando um passeio, desfrutando dos


formosos jardins — improvisei com celeridade e aborrecimento. — O que ocorre?

—Madame Dupin me deu ordem de lhes informar que todos os convidados se


reunirão agora na sala de jantar que dispusemos na Galeria para desfrutar do almoço.
Esperam sua presença.

—Está bem, Mireille. Muito obrigada por nos informar. Desculpe-me se tiver sido
árduo nos encontrar.
— Por nada. Não se desculpe, por favor, senhorita — disse com uma graciosa
reverência.

Essa criada era um raio de luz. Não devia ter mais de vinte anos e sua altura e sua
compleição eram muito similares às minhas. Possivelmente por isso a sentia mais afim.
Seu rosto, algo sardento, e seu cabelo luminosamente ruivo a faziam parecer mais
jovem.

Seguimo-la até a estupenda mesa que se dispôs na Galeria. Não havia estadia igual
em nenhum outro castelo que não fosse Chenonceau: um corredor sobre a água, sobre
o próprio rio, que fazia as vezes de corredor, de sala de música e baile, ou como agora,
de estupenda sala de jantar. Já estavam lá Louise-Marie, Denis, Jean-Jacques e
Messieurs Diderot sentados em torno da mesa, conversando enquanto aguardavam
nossa chegada.

—Enfim, queridos meus — disse madame, levantando-se para me abraçar. — O


que ocorreu? Alongaram-se as lições?

—Sim — respondeu Marco, com rapidez. — Em certo modo, continuaram nos


jardins.

Madame fez o gesto adequado para que tomássemos assento e todos começassem
a comer.

—Lições nos jardins. Interessante — apontou Jean-Jacques Rousseau. — Assim o


fazia sempre Platão com seus discípulos: lições no campo ou, ao menos, no pátio
arborizado de sua escola. Considerava importante o bom ambiente acadêmico, sem
fechamento, em contato com a natureza.

—E seu discípulo Aristóteles também — acrescentou Marco. — Para ele todo


ensino devia ser levado à prática, além disso. Teve a primeira grande coleção de
plantas e animais do mundo. Eles foram fornecidos pelo próprio Alexandre, o Grande,
que foi seu aluno, por sua vez. Aristóteles inclusive fez abrir porcos ao seu príncipe
~ 86 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

discípulo, para que assim aprendesse bem a disposição e forma de nossos órgãos
internos.

A senhora Dupin torceu o nariz, mostrando sua repulsão.

—Parece-me muito interessante — falei então, para mostrar meu apoio a Marco.
— Enquanto não tiver que matar ao ser para o propósito e possam usar-se exemplares
defuntos, claro. Mas, sem dúvida, é a forma mais direta de aprender e muito melhor
que ver desenhos imprecisos e difusos em livros velhos. Além disso, não compreendo
por que nestes livros cada autor coloca os órgãos de uma forma distinta, ao seu
desejo. É como se cada um de nós os tivéssemos em um lugar do corpo, ao azar!
—Disse bem — falou Denis. — A Ciência é uma das matérias que mais consenso
requer e, por esse motivo, nosso clube dos Enciclopedistas dedica tanto tempo a ela.
Não há consenso nas teorias astronômicas, nem naquelas que tentam explicar o
princípio da vida fora da religião, nem na origem e cura de muitas enfermidades… nem
sequer nopequeno óbvio como nossa anatomia interna há consenso, como bem
aponta a condessa. Por não falar da teoria reprodutiva - acrescentou o cientista. — Há
médicos que ainda consideram que somente o sêmen do homem leva a essência da
vida e que a mulher é um mero receptáculo, quase dispensável. Em troca, outras
teorias modernas sustentam que tanto os homens como a mulher contribuem com sua
parte para a criação do novo ser. E esta teoria vem ao observar corpos humanos
dissecados.

—No país de que provenho, — disse Marco, com uma voz firme e profunda que me
fez vibrar — tudo isto o explica a Igreja e não se fala mais. Dão suas teorias e queimam
ou escondem os livros que as rebatem. A medicina oficial começa a estar algo melhor
vista em meu país, mas os bispos sustentam ainda que as enfermidades são castigos
que manda Deus e que não se deveria intervir em sua cura, iria contra as leis divinas.

—O reino da Espanha continua sendo peculiar — apontou Madame Dupin,


abanando-se com um leque de suaves plumas que movia com graça. — Se importaria
em contar quão diferente é a Corte espanhola? Quero saber se necessitarem de minha
presença ali, para escandalizar e despertar suas mentes e para avivar suas fantasias —
disse resolvida, lhe piscando um olho.

—Você causaria escândalo, madame — lhe respondeu Marco. — Tanto que, se em


uma reunião social contasse por exemplo a história de ontem, inclusive sua vida
correria perigo.

— Oh! Diz isso para me agradar — disse encantada.

—Asseguro-lhe que é certo. Na Corte espanhola reina o recato imposto pela Igreja
até extremos tão irrisórios como não deixar que os casais reais durmam juntos ou que
se vejam nus. Por não falar da maneira em que devem vestir-se as mulheres se não
quiserem enfrentar represálias. Seus decotes e suas mangas “três quartos” que deixam
ver a pele nua dos punhos femininos são inaceitáveis na Corte de Madrid.

~ 87 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—E você, — interveio Denis— o que opina a respeito?

Não me agradou nada seu tom ao dirigir-se a Marco. Possivelmente fosse por
minha má predisposição para o Denis após o ocorrido, mas eu não gostei.

—Sem dúvida eu nasci com uma mentalidade mais próxima à francesa —


respondeu Marco, com cautela. — Entretanto, nenhum extremo me parece são e a
Igreja do meu país é radicalmente extremista. Assim, nem todas as lições de estrita
moral nem todos os sermões escutados, conseguiram me apartar da cabeça meu
pensamento independente e, em sua justa medida, liberal.

—Dão-lhes conta? “Em sua justa medida” — apontou Denis. — Por que “em sua
justa medida”? O pensamento libertino não tem fronteiras.

—O certo é que me confesso amante da liberdade em quase todos os seus


sentidos, mas não na libertinagem desmedida — concluiu Marco, depois do qual notei
um incômodo silêncio entre os presentes.— Não até certos extremos como aos que
chega, por exemplo, seu compatriota o marquês de Sade —esclareceu.

—Pois eu estou de acordo com o Sade e com o Denis — atravessou Madame


Dupin. — Se alguém se confessar libertino, não deve pôr limites nem medida — disse,
olhando a Marco. — Deve saber moço, no que está metido: Não só estamos urdindo
uma nova França, mas também um novo mundo, e nele a bandeira deve ser a
Liberdade.

Assustei-me um tanto ao notar tensão nestas palavras da senhora Dupin, que


contradiziam a Marco. Inclusive o chamou “moço”.

Mas ele se mostrava muito tranquilo e seguro, e não se amedrontou:

—Mas minha objeção trata precisamente disso, madame — disse, com bastante
risco, ao não lhe seguir a corrente. — Como disse Thomas Hobbes: “Minha liberdade
acaba onde começa a sua”. Quando se faz mal a uma segunda pessoa é onde a
liberdade, para mim, deixa de chamar-se assim para converter-se em crime.

Denis e Louise-Marie me olharam em silêncio, reflexivos.

—Certo é que, em um mundo de liberdade absoluta, o crime seria adequado —


interveio Diderot, o tranquilo professor em filosofia.— Nenhuma de nossas ações seria
punível e haveriam vítimas se não houvessem limites, sofreriam muitas pessoas. Se
todo ser humano seguisse seus primários instintos, sem ter em conta opiniões nem
sentimentos de terceiros, deixaríamos de ser civilizados.

Houve um novo e enigmático olhar entre madame e Denis.

~ 88 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Acredito que nosso jovem barão espanhol tem razão — disse Rousseau.— Um
dos trabalhos mais árduos do nosso clube vai ser determinar uns limites para a
liberdade.

Durante o frugal e tenso almoço, senti que estava perdendo algo, que algo me
escapava ante o amontoado de tensão desdobrada nos tons e olhares. Supus que
sempre ocorria quando se debatia sobre política. Não podia nem imaginar o
verdadeiro motivo daquela tensão…

Depois do almoço retirei-me à grama do lago para ler, e inundada em um livreto de


poesia me achava quando uma enorme silhueta masculina peneirou a luz do sol sobre
as páginas do meu livro. Era a orgulhosa silhueta de Denis.

O tratei sem formalidade, devido ao aborrecimento e a que já tínhamos


transpassado todas as soleiras da confiança.

—E bem? Vem a me humilhar de novo?

—Em realidade, a lhe pedir desculpas. Não caí em mim que não era mais que uma
menina inexperiente e inocente quando tentei brincar com… já sabe. Atribuí a você
mais senso de humor.

—E eu lhe atribuí mais delicadeza.

—Não vou repetir que o sinto… somente queria que soubesse que não houve má
intenção em minhas palavras, que era só um jogo. E… também queria lhe dar um
conselho, pela apreciação que pude professar para você neste curto tempo.

—Afeto?

—É obvio que sim, embora não o creia. E mais, se não lhe visse obrigada a se casar
com o Gastón, competiria firme por conseguir sua mão.

Não pude evitar rir. Inclinei a cabeça e o olhei incrédula e divertida.

—Apesar de suas múltiplas inclinações?

—Algum dia, terei que assentar a cabeça.

—Não sei se viverei para vê-lo. Desgraçadamente, não acredito que o destino
consiga anular meu futuro matrimônio e me dar o prazer de ver como cumpre o que
acaba de dizer. E bem, Denis, qual era esse conselho que vinha a me dar?

—Se afaste do espanhol.

—Vá, Denis, por um momento havia tornado a pensar bem de você, mas já o
desmerece de novo.
~ 89 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Estou falando a sério. Asseguro-lhe que é por seu bem.


—E se ele não quiser afastar-se de mim?

— Achará problemas. Ambos acharão.

—Muita gente casada ou prometida tem casos, para não dizer todo mundo. O que
lhe preocupa neste? O que tem de especial?

—É… um bom conselho acredite. Se esqueça dele o quanto antes, para o seu bem.

—Sei muito bem o que tenho que fazer e o que não.

—Não, não tem nem ideia — repôs com gesto afetado.

Fechei o livro, levantei-me e me aproximei devagar dele.

—Obrigada, Denis. Sempre quis um irmão mais velho — acrescentei, com ironia.

Deixando-o estupefato e resolvendo a conversação, retirei-me ao meu formoso


quarto para escrever uma carta à minha prima. Eu lhe confessaria o ocorrido com
Marco. Precisava compartilhá-lo com alguém. Se Denis soubesse… Marco me tinha
insinuado matrimônio! Quem iria imaginar! E tinha me confessado seu amor… sentia-
me tão feliz! Que mais poderia sonhar… se fosse livre?

Necessitava desesperadamente das palavras e conselhos da minha prima. Me


causava pena por não estar ali, em Chambord, com ela e poder debatê-lo.

Depois escrevi outra carta distinta ao meu pai.

Pensei que escrever a cada dois dias seria o melhor, daria tempo ao mensageiro a
chegar de um castelo a outro e descansar ao menos uma noite, para não esgotar muito
ao cavaleiro e ao cavalo. Assim o faria.

Esperava também, com ânsia, notícias da minha casa, especialmente de meu pai.
Supunha que já estaria algo mais reposto.

Sobressaltaram-me uns golpes na porta. Que maneira tão brusca tinham em


Chenonceau de chamar!

—Sim? Quem é?

Não houve resposta. Mas um envelope branco apareceu, lançado com força do
outro lado da porta.

Olhei-o, atordoada, e duvidei um momento antes de recolhê-lo.

~ 90 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Aproximei-me devagar e o abri. Não estava lacrado.

Em seu interior, só uma breve nota:

Preciso vê-la.

Esta noite, depois do jantar, quando todos se retirarem aos seus aposentos,
espero-a na Habitação Escura.

Era a letra de Marco.

~ 91 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Capítulo 11

Diário do barão De Gaula:


Surpresas...

Não podia acreditar! Minha querida condessa sentia desejos por mim. Tinha-me
beijado, tinha-me acariciado… Tinha lhe confessado muito mais do que deveria… Mas
pouco me importava. Preferia que ela fosse até o momento do seu matrimônio
sabendo minha verdade, e o momento que tinha vivido nos jardins, esse breve, mas
mágico momento, não o trocaria por nada. Além disso, agora sabia, enfim, que sim,
tinha licença ao seu corpo, em caso de desejar beijá-la. Não ia me afastar com rechaço,
porque ela também me desejava.

Precisava vê-la outra vez a sós. Não podia esperar. Escreveria-lhe uma carta ou,
muito melhor, uma breve nota chamando-a para algum lugar solitário. Sob sua couraça
de fingida dureza, tinha lido nela um sentimento muito similar ao meu. Um sentimento
superior ao mero desejo. Suas mãos e seus lábios estavam cheios de amor e de
desejos.

Desta vez seria eu quem facilitaria o passo, já que o primeiro e mais difícil ela havia
dado. Algo pouco usual, mas possivelmente ela sabia que, em nossa situação, não
havia outra saída. Eu tinha muito que perder se houvesse arriscado e tivesse sido
rechaçado. A chamaria essa mesma noite, sem maior demora. Precisava sentir outra
vez seus lábios.

Chamei a criada que atendia os quartos, Mireille, para solicitar-lhe umas peças de
papel e uma pluma. Assim que terminei a nota, coloquei-a em um envelope, fechei-o e
pedi à Mireille que o entregasse à Caroline, de minha parte. A ideia me pareceu
emocionante e romântica.

Viria minha dama ao encontro?

O jantar transcorreu entre um baile de olhares, cheio de emoção e segredo, como


se fôssemos dois meninos fazendo uma travessura e temendo ser descobertos. Vi
como à Caroline escapou um pequeno sorriso fugaz, dissimulado atrás do guardanapo.
Isso aumentava minhas expectativas para sua aceitação de um segundo encontro. Só
devia esperar… e já tinha dado o passo.

Os olhares que eu temia eram os da senhora Dupin; havia sentido seus olhos me
atravessar com aborrecimento. Havia sentido suas palavras cheias de fel quando se
dirigia para mim. Não entendia por quê. O que se passaria em sua indecifrável mente?
Descartei me preocupar com isso naquele momento. Tinha que comprovar se a
condessa iria ao meu encontro. Esse e só esse era meu desejo.

~ 92 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Fui veloz, depois do jantar, ao meu quarto. Nossos dois aposentos estavam no
mesmo piso que a Habitação Escura. Esperei até deixar de ouvir ruídos de portas bater.
Quando parecia que todos estavam em seus aposentos e o corredor ficara silencioso,
não tive mais paciência, e furtivamente, cheguei à tétrica e escura habitação. Era um
lugar ideal, onde ninguém se atreveria a nos incomodar.

Quando abri a porta, o jorro de luz que entrou do corredor deixou que eu
vislumbrasse parte da habitação. O chão de madeira escura, o negrume e a disposição
dos móveis, o teto cinzento com tristes lágrimas pintadas em prata; a grande cama
situada à direita, tão escura como um féretro… e uma figura feminina sob a janela, me
esperando, ajoelhada no genuflexório onde Luisa de Lorena orava por seu marido.
Pareceu-me um pouco tétrico, mas possivelmente a Caroline parecesse romântico,
quem sabe o que acontece na mente de uma mulher.

Fechei a porta silenciosamente e me aproximei devagar do lugar onde tinha visto a


figura, quase sumida na total escuridão. Ela continuava de joelhos, de costas para mim.
Dava-me conta de que levava uma espécie de véu caindo do alto da cabeça. O teria
posto para ir ao encontro de forma oculta.

Ajoelhei-me também atrás dela e a acariciei, ante o que ela gemeu, agradada.
Abracei-a fortemente pelos ombros, quase à altura dos seios, que ainda não me
atrevia a tocar por medo de sua reação. Mas ao abraçá-la notei algo que me deixou
boquiaberto: debaixo do comprido véu não levava roupa. Estava nua. Excitei-me mais
do que era capaz de controlar e minhas mãos voaram por sua suave pele, torneando
seu perfil como se fosse a escultura de uma deusa grega, voaram por seu ventre e por
seus quadris, roçando sem querer o suave pelo de seu púbis.

Ela suspirava silenciosamente, mas não se dava a volta. Não me importei, essa
postura me excitava ainda mais. Beijei-a nos ombros e lhe acariciei os braços, até que
não pude mais. Segurei-a com força para voltar-lhe para mim.

Justo nesse momento alguém abriu a porta.

A silhueta de uma mulher apareceu no corredor, recortada pela tênue luz. Olhava-
me, paralisada. Demorei uns instantes em distinguir de quem se tratava.

Era Caroline-Marie… a condessa era quem acabava de abrir a porta.

Então… a quem tinha em meus braços?!


O jorro de luz de velas que Caroline deixou entrar iluminou a ambos.

Ela nos reconheceu imediatamente, pude vê-lo em seu rosto.

Olhei, com estupor, à mulher que abraçava por engano: era Mireille, a donzela de
confiança de Louise-Marie.

~ 93 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Soltei-a no ato, espantado e zangado. Mas já era tarde. Caroline estava


entreabrindo de novo a porta e partindo. Deu uma portada muito forte para a hora
que era e escutei seus passos afastar-se à carreira. Eu quase não podia reagir… o que
tinha acontecido?

Dispunha-me a abandonar a habitação e correr atrás dela quando, de repente,


escutei uns aplausos e umas risadas conhecidas. Não provinham de Mireille. Uma nova
figura emergiu das sombras: era Madame Dupin.

—O que…? O que significa isto? —gritei, enquanto Mireille assustada, retrocedia.

—Bom trabalho, Mireille. É uma donzela fiel. Já pode partir. E se cubra.

—Você armou isso? —perguntei incrédulo, à minha anfitriã. — Por que?! Como…?

—É obvio que armei. Quando minha fiel Mireille me contou seu pequeno idílio no
bosque com a jovem condessa, e me informou da posterior escritura de sua nota
panaca, vi como me caia isso tudo de bandeja. Santos inocentes!

—Mas… por quê? —fui capaz de articular.

—A mim ninguém rechaça, nem tampouco me substitui com essa velocidade —


disse com voz fria; uma voz da qual não a teria acreditado capaz.

—Como? —repeti.

—Ontem me humilhou, rechaçou-me. Este é seu castigo.

Ali entendi... Embora minha mente não tivesse capacidade para tal loucura, estava
comprovando que havia mentes ressentidas e calculadoras, com excessiva facilidade
para a ofensa. Recordei os olhares desagradáveis que me tinham dedicado tanto Denis
Papin como Madame Dupin durante o dia, sem que eu lhe desse muita importância.
Agora conhecia claramente o motivo, embora não acreditasse que fosse uma razão de
aborrecimento: Na noite anterior tinha rechaçado Louise-Marie. Depois de Denis
acabar com ela e retirar-se, Madame Dupin se deitou em meus braços até acalmar-se.
Logo disse que queria mais, que não estava completamente saciada e que tinha muita
curiosidade por deitar comigo.

Mas eu não o desejava. Não porque Louise-Marie não fosse uma mulher adorável,
— ou isso pensava até aquele momento— mas sim porque queria que minha primeira
vez fosse com uma mulher completamente desejada por mim. E assim tratei de
explicar-lhe, pelo visto, sem êxito. Teria jurado que pareceu compreendê-lo.

—Atreveu-se a me rechaçar — repetiu, com voz ferina. — Isso não se faz a


nenhuma mulher. E menos a uma mulher como eu. Equivocou-se comigo. Agora
também seu pequeno capricho, Caroline-Marie, sabe o que se sente. E, pode lhe falar
de Mireille, mas não tente lhe dizer que foi coisa minha. Sabe o que ocorrerá? Não só

~ 94 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

não acreditará como pensará que tenta pô-la contra mim. Assim somos as amigas —
acrescentou, encolhendo-se os ombros e rindo.

Não tinha nada que lhe dizer, se abrisse a boca seria somente para lhe falar que era
uma víbora e uma harpia que tinha perdido o sentido, mas não o fiz pelo bem da
continuação do projeto comum do clube. Os restos dos membros não tinham culpa. E
o resto da humanidade se beneficiaria desse projeto.

Sem gastar uma palavra mais, corri ao quarto de Caroline, mas o achei fechado
com chave. Toquei brandamente com os nódulos várias vezes e esperei, mas nenhuma
dessas vezes houve resposta. Finalmente, passado um tempo, rendi-me.
Possivelmente precisasse desafogar-se em solidão. Devia estar muito contrariada, e
não era para menos. Era uma pena que não me abrisse a porta para eu poder
esclarecer o quanto antes o mal-entendido.

“Resolveremos tudo manhã”, pensei.

Mas no dia seguinte Caroline não consentia em me falar. Cancelou as lições


alegando indisposição, e ficou toda a manhã em seu quarto. Quando saiu para o
almoço, apenas me olhou, embora sim me falasse o necessário, ao estar em público.
Tratava de aparentar normalidade.

Quem dominava essa estranha e fingida “normalidade” era Louise-Marie, que


inclusive me jogava eventuais olhares carregados de invejoso triunfo.

Durante o resto do dia, Caroline não permitiu que me aproximasse se afastava ou


se desculpava quando via que íamos ficar a sós. Voltou-se mal-humorada e solitária.
Passou a manhã encerrada com chave em seu quarto e depois do almoço fez
companhia à Louise-Marie, ao Denis e ao Rousseau, sem ter nem ideia de que a
primeira era a invejosa e calculista causadora de sua angústia. Jogou com eles a
báciga7e o xadrez. Eu me retirei ao rio para pescar, com a esperança de achar um
momento de solidão que possivelmente a atraísse até mim. Brindava-lhe uma
oportunidade para ir falar comigo.

Mas os peixes não morderam a isca e Caroline não apareceu.

Já havia visto muitas vezes em minha própria mãe este comportamento, quando se
sentia ferida em seu orgulho. Sabia por experiência própria que insistir ou forçar a
situação ia ser inclusive contraproducente. Devia lhe deixar seu tempo, lhe permitir
seu espaço.

Mas, no dia seguinte, uma vez mais cancelou suas lições. Desta vez comunicou ao
Rousseau, interessado em seu estado de saúde, que a assolava “a enfermidade de
mulher”; a velha e perfeita desculpa.

7Jogo de cartas

~ 95 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Precisava falar com ela. Tinha que diminuir-lhe o desnecessário sofrimento. Não
entendia por que nem sequer me permitia lhe oferecer uma explicação.

~ 96 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Capítulo 12

Memórias de Caroline-Marie Du Berry:


O lago.

O que podiam ter sido umas maravilhosas e reparadoras férias em Chenonceau,


tornou-se uma estadia angustiosa, monótona e bastante solitária nos seguintes dois
dias. Se não fosse por minha amiga Louise-Marie, que se comportava comigo como um
anjo, nada me teria retido ali e sem dúvida teria voltado para Chambord.

Tentava por todos os meios evitar cruzar com esse vil traidor que me assanhara
com sua verborreia liberal e suas artes espanholas. Como tinha sido tão estúpida?
Perguntava-me. Embora não pareceu, em princípio, tão mulherengo, o sangue quente
do touro emergiu para procurar prazeres carnais fáceis de obter. Todos eram iguais.

Durante um par de dias, o mais angustiante que recordo depois da agressão que
tinha sofrido meu pai, repetiu a mesma rotina: pela manhã me encerrava em minha
habitação para dormir, ler… ou chorar.

Depois do almoço, organizávamos arquivos em grupo para a Enciclopédia ou


realizávamos largos debates frente a um chá. Marco me liberava às vezes de fingir ante
sua presença, saindo ao rio a pescar.

E pelas tardes, depois do jantar, incapaz de escrever cartas à minha família por
falta de boas notícias, jogava com Madame Dupin e com Rousseau a báciga ou o
xadrez.

O resto dos momentos livres os usava para escapar à granja. Tranquilizava-me ler
ali, rodeada de aves, cães e cabritos. Era o único lugar onde me sentia segura.

Qualquer coisa para não pensar no ocorrido naquela noite, na Habitação Escura.
Nos momentos mais serenos tinha tratado de pensar se não poderia ser algum tipo de
confusão. Mas não. Se tivesse sido assim, ele teria vindo me explicar isso em seguida.
Também cheguei a pensar que possivelmente fosse Mireille a culpada. Possivelmente
a dita criada leu a nota e foi à habitação em meu lugar, descobrindo ali a Marco e
seduzindo-o, ou caindo nas redes de seu encanto de forma inevitável. Mas essa teoria
não resolvia nada. Marco sabia que eu chegaria de um momento a outro, e enquanto
esperava tinha tido tempo de despir Mireille! O que pretendia? Possivelmente era
toda uma manobra para provocar meu ciúme? Não. Muito arriscado. Também cheguei
a pensar que a nota não fosse para mim; que Mireille poderia ter derrubado pelo
corredor e, com um chute, acabou em minha câmara.

Isso era bastante improvável. Estava me voltando louca.

~ 97 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Nada tinha sentido. Então tirei uma conclusão: Todos os homens eram seres débeis
e mentirosos. Nada valiam suas palavras bonitas; eram fumaça de incenso para
deslumbrar, mas depois não deixavam mais que sedimentos de cinza. Não entendia
por que tinha tido uma intuição tão contrária e tão incorreta com Marco.

Agora entendia por que não haviam matrimônios por amor. O amor é traiçoeiro,
efêmero, enganoso… em troca, as alianças por interesse dão seus benefícios e seus
frutos.

Ansiava voltar logo para Chambord. Não me importava mais que Gastón me
visitasse e fixasse logo a data das bodas. Tanto fazia estar casada com um rato
arrogante ou com um mentiroso traidor. Havia coisas mais importantes na vida.

Na segunda tarde desse par de dias desgraçados, encontrava-me junto ao pequeno


lago da granja, sentada sobre o verde manto de grama tratando de ler em solidão,
consumida e desconcentrada pela mesma tormenta de maus pensamentos, quando
uns passos atrás de mim me alertaram. Não tive tempo de me voltar antes de
identificar o visitante por sua profunda voz:

—Se não deixar logo de retorcer esse livro o converterá em cinzas —disse Marco
com tato, tentando sorrir.

De um só impulso me pus em pé e, sem que meu cérebro controlasse o que fazia


meu corpo, comecei a atacá-lo, dando-lhe golpes selvagens com o mencionado livro,
que ao terceiro golpe já estava em estado de semidestruído. Ele tomou-me entre seus
braços, aferrando ao tempo meus pulsos em um intento de deter minhas investidas.
Abraçou-me com tal força que imobilizou meus braços e, ao fim, deteve-me.

—Preciso falar com você. Não suporto vê-la assim. Não podia esperar mais.

—Mais? Não crê que já esperou muito? A que veio tudo isso? Deve-me uma
explicação —disse assinalando por volta do segundo piso do castelo. Logo me separei
dele e lhe dei as costas, retomando uma postura orgulhosa.— Deixa. Não necessito de
suas explicações. É livre para estar com quem lhe agrade. Mas não me procure agora
de novo se já se cansou de Mireille, nem me engane mais com suas mentiras.

— Não tenho nenhum interesse por Mireille. Apenas me agrada estar contigo.
Nunca menti para você.
—Já lhe disse que não me importa. Que é livre. E eu vou me casar.

Tenho que reconhecer que o último acrescentei apenas para fazer-lhe mal. Para
que ele sentisse um pouco da dor que me causara.

—Não quer saber o que ocorreu na realidade?

Morria por sabê-lo.

~ 98 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Não me interessa.

—Muito bem. Então…

Escutei como seus passos começavam a afastar-se e me virei bruscamente.

Ele se virou quase ao mesmo tempo.

—Foi sua querida senhora Dupin! Pronto, já o hei dito! Não penso ir daqui sem lhe
dizer a verdade. Não penso deixar que siga sofrendo sem motivo, embora lhe permita
isso seu orgulho. Quero somente a você, maldita orgulhosa!

Surpreendentemente, as lágrimas virilmente suavizaram o foco de seus olhos. Não


podia assimilar nenhuma palavra desse discurso em sua correta ordem.

—Madame Dupin? —perguntei evitando a última frase. — O que ela tem que ver
nisto?

— Armou-nos uma armadilha.

—Uma armadilha? Ha! E por que teria que fazer uma coisa assim? Não coloque
Madame Dupin em seus jogos. Advirto-lhe isso. Você mente para mim de forma
descarada.

—Sei que no fundo sabe que eu não minto. Não minto nunca. E para mim foi uma
decepção comprovar que Madame Dupin sim, o faz. É uma artista da aparência e do
engano. Eu a idolatrava antes de conhecê-la e ainda um pouco até há dois dias,
quando tudo ocorreu. Ela está profundamente ciumenta de você… porque sabe o que
sinto.

Levantei meus olhos para ele e… tremi ante o que encontrei. Soube que estava me
dizendo a verdade.

—Ela soube de nosso encontro por Mireille e mandou a criada no lugar de nossa
entrevista, para que eu a confundisse com você na escuridão. Ela mesma me
confessou isso. Quem sabe por que as mulheres fazem estas coisas tão cruéis e
calculadas? —prosseguiu. — Orgulho? Diversão? Possivelmente sim, em parte!
Mas foi o despeito em maior medida.

—Despeito? —perguntei, sem entender de onde provinham os ciúmes de Louise-


Marie.

Marco caminhou em círculos sobre o verde manto que sujava suas botas,
segurando com as mãos sua cabeça cabisbaixa, como tratando de encontrar palavras.

Deteve-se em seco e me olhou de maneira tão fixa que retrocedi assustada.

~ 99 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

— Na noite da reunião no laboratório, depois de você sair, Louise-Marie tratou de


me seduzir. Não o conseguiu… de tudo. Sentiu-se rechaçada. E logo soube por Mireille
o que aconteceu entre nós no arvoredo.

—Não acredito — disse antes de pensar.

—Bem, não posso fazer mais. Denis foi testemunha.

Nossos olhares se desafiaram em silêncio, até que a serenidade do seu ganhou o


combate.

—Ela… tentou lhe seduzir? —perguntei por fim.

—Comigo o tentou, com o Denis conseguiu. Devo ser honesto e lhe dizer que, a
princípio, caí na armadilha de seu jogo, subjugado pela situação e convencido da
impossibilidade de surgir qualquer coisa com a mulher que ocupava meus sonhos —
disse, sem fôlego. Calou um momento.— Mas não consegui reunir coragem para deitar
com ela, como ela desejava, nem para agradá-la. Não a desejava. Louise-Marie foi uma
espécie de amor platônico para mim antes de conhecê-la em pessoa… na teoria. Mas
na prática só você faz com que todo meu corpo estremeça e meu coração vibre.

Não soube o que dizer. Baixei o olhar à grama.

—Louise-Marie não está acostumada a que a rechacem. Sentiu-se, ao que parece,


profundamente ferida em seu orgulho. Depois ocorreu o nosso… e inteirar-se foi para
ela o grão que derramou a terrina.

Encolheu-me o coração, tanto por sua confissão como por sua sinceridade.

—Está ciumenta… — disse enquanto pensamentos com um pouco de lógica


começavam a empilhar-se enfim em minha mente. A vaidade e egocentrismo de
Louise-Marie formavam parte dela, tanto como sua simpatia e beleza. Mas se as
primeiras ganhavam a batalha… ocorriam desastres como aquele. Mesmo assim, ainda
faltavam peças. — E, por que o encontrei abraçado à Mireille? Não se deu conta de
que era ela?

—Pensei que fosse você. Sinceramente. Era tudo escuridão.

—Há! —exclamei, não tão incrédula como ferida, franzindo o cenho e empurrando-
o com energia. — Aproveitou a ocasião.

Voltou a me segurar, suplicante. Com os olhos brilhantes de impotência.

— Me escute, maldita seja! Eu dei à Mireille a nota para que ela a entregasse a
você, mas ela falou para Louise-Marie, que idealizou o plano: uma armadilha para
mim. Despiu Mireille e a colocou contra a luz para que eu a confundisse com você
quando chegasse. Você não demoraria a entrar e, tal e como passou me descobrir nos

~ 100 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

braços de outra mulher. Realmente pensei que fosse você! Quem mais poderia ser?
Tinha marcado contigo. Ela não falou, nem se virou. Ao acariciá-la não notei nenhuma
diferença; não conheço tão a fundo as formas do seu corpo e têm uma figura muito
similar. Isso foi o que aconteceu! Não posso lhe contar outra coisa porque lhe
mentiria. E mais: a própria Louise-Marie estava escondida nas sombras, desfrutando
de toda a cena. Caiu-me o coração ao chão quando vi você aparecer. E quando ela
surgiu, depois de você partir, compreendi tudo.

Duvidei um momento. Realmente, era uma história muito rebuscada para ser
inventada. E havia sempre algo tão abrasadoramente franco nele… e tão orgulhoso e
manipulador na senhora Dupin… que, para minha enorme decepção, possivelmente
pudesse ser.

Eu tinha admirado as qualidades de madame como uma parva, sabendo que seu
dom de tratar bem as pessoas muitas vezes escondia um sorriso ou um elogio
completamente falso, e uma ambição desmedida e muito bem dissimulada por ser o
centro da atenção. Mas… realmente, tão longe podiam chegar o orgulho e a ambição
por um capricho?

Tinha muito que aprender. Senti-me de repente muito jovem e tola.

—E por que esperaste tanto…? —perguntei, por fim, depois de um tempo durante
o qual respeitou minha reflexão.

—Pensei que não acreditaria em mim — disse aflito, aproximando-se de mim.— E


não era fácil decepcioná-la a respeito de Louise-Marie. Além disso, ensinaram-me que
as mulheres necessitam de seu tempo depois de um grave aborrecimento. E, mesmo
assim, golpeou-me sem piedade com seu livro — disse com meio sorriso e tom de
ironia. — Se eu viesse para você mais cedo, você poderia ter me degolado com a borda
quebrada de uma xícara de chá.

—Não ria de mim.

— De minha vida, ultimamente, só há risada contigo.

Não pude evitar lhe dedicar um amplo sorriso ante essa frase.

Permanecemos abraçados e bobamente sorridentes, ambos aliviados, um nos


braços do outro. Uma enorme carga acabava de desaparecer da minha cabeça, dos
meus pensamentos, mas agora um incipiente medo me assolava ante a ideia de ser o
foco da frustração e ciúmes de outra mulher; uma mulher socialmente poderosa.
Poucas coisas eu imaginava mais perigosas que isso.

~ 101 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Escurecia na granja. Decidimos chegar juntos ao castelo, conversando


tranquilamente. Decidimos que devíamos nos comportar com normalidade. Levantaria
suspeitas ante os outros convidados se Marco e eu não falássemos nem
aparecêssemos juntos durante tanto tempo.

Despedimo-nos sem artifícios de todos, e fomos para os nossos respectivos


quartos. No dia seguinte retomaria as aulas com muita vontade.

Só que… não pude esperar o dia seguinte.

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O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Capítulo 13

Memórias de Caroline-Marie Du Berry:


Meu Deus.

A ansiedade que me invadia essa noite, deitada no confortável leito do quarto das
Cinco Rainhas, percorria-me o corpo como se de uma invasão de formigas se tratasse.

Não podia dormir. Não podia fazer mais que pensar em Marco e no que realmente
passou faziam só duas noites. Nessa tremenda trapaça, fruto de uma mente ociosa e
aborrecida, que nos tinha separado durante este tempo. Pensei em como ele deveria
ter sentido, em suas lágrimas contidas ao me contar isso, em sua humilhação ao ver a
senhora da casa emergir das sombras… um sentimento de vingança entristecedora me
invadiu.

E, de repente, pensei que melhor vingança que cumprir com o que ela tratou de
impedir com tão más e ásperas artes: Marco e eu queríamos estar juntos. Ela devia
assumi-lo. Afinal, ela já era uma mulher casada, eu ainda não. E logo estaria submetida
a um marido horrível, que possivelmente estaria à minha espera quando eu voltasse.

Senti que a vida encurtava para mim. Que um sopro decidira quando e como
estaríamos aqui e, sobretudo, quanto tempo nos outorgava para tratarmos de ser
felizes. Assim saí da cama e, de camisola, sem nada mais debaixo, tratando de não ser
vista, encaminhei-me para sua habitação.

Bati levemente com os nódulos, com o coração descompassado e um nó de tensão


na garganta.

—Quem é? —perguntou com voz sonolenta.

Por medo de ser ouvida não respondi. Bati de novo levemente.

Uns passos, enfim, dirigiram-se para a porta. Esta se entreabriu.

Apenas vislumbrei o olho de um surpreso Marco pela porta entreaberta, empurrei


e me coloquei dentro. Produzia-me pânico permanecer mais no corredor.

Passado o primeiro momento de desconcerto, sorriu e veio para me abraçar e me


elevar em seus braços fortes. Levantou-me uns centímetros do chão até ter minha
boca à sua altura e me beijou, apalpando meu corpo através do fino tecido. Minhas
mãos foram procurar e percorrer seus músculos longos e suaves, sobre ossos finos mas
fortes, e em um momento, achei-me acariciando as duas protuberâncias que
formavam seu pequeno traseiro. Empurrei-o para mim com ânsia.

~ 103 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Ao ceder meu corpo para baixo por seu próprio peso, minha camisola foi
escorregando para cima, deixando assim a descoberto minhas pernas por completo,
ficando meu traseiro também no ar, embora não por muito tempo. Em seguida duas
grandes mãos o apertaram, me elevando para colocar minhas pernas em torno de seu
quadril e me levando assim até o leito.

A grande altura do leito produziu que, ao me depositar nele e deitar-se sobre mim
para beijar apaixonadamente meu decote, nossas zonas mais íntimas se encontraram.
Assustei-me e dei um pulo ante a dureza e enormidade que acabava de intuir.
Levantei-me um pouco e fiz que ele se apoiasse no leito com os braços estendidos para
poder observar o que era aquilo que acabava de sentir em minha virilha. Minha boca
se abriu e minhas pupilas se dilataram. Jamais pensei que aqueles órgãos masculinos
pudessem alcançar semelhante tamanho!

—Não pode caber em mim — lhe disse assustada. — Me rasgaria…

— Eu faria encaixar perfeitamente, — disse devagar, piscando um olho para mim


— mas deve chegar virgem ao matrimônio ou Gastón fará você pagar as
consequências, portanto, respeitar-lhe-ei nesse sentido. Mas o resto do seu corpo será
meu — afirmou, como uma ordem.

Lançou-se sobre mim, com uma profusão de quentes e doces beijos que
arrepiaram todo meu corpo como nunca teria imaginado. Aquilo era muito distinto do
que Denis havia me explicado. A demonstração de Denis foi um breve e concreto
prazer físico. Aquilo era… um tudo. Da ponta dos dedos dos meus pés até a raiz do
cabelo, todo meu corpo tiritava de emoção, prazer e desejo. Admirava a pessoa que
agora deixava seu enorme peso sobre mim e isso dava uma adição única e especial aos
sentimentos de formigamentos que corriam descontrolados, por meu corpo. Eles se
expandiam e entronizavam.

Aquilo devia ser como estar no céu.

—Isto deve ser o que se sente no céu — confirmou meu subconsciente sem que eu
o ordenasse, acompanhado pela dança de meu peito, que se curvava em arco. — Esta
felicidade é como encontrar a Deus.

Exalei um profundo ofego.

—É mais que isso: —esclareceu Marco— Agora eu sou seu Deus.

Essas palavras fizeram com que eu suspirasse, levantasse-me e posicionasse-me de


pernas abertas sobre ele.

Eu mesma podia ver escapar o brilho do meu olhar, sentir o calor que emanava
livre e profuso das minhas bochechas rosadas, contemplar o brilho das mechas
selvagens de cabelo que me caíam pelo rosto.

~ 104 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—E você será minha deusa — confirmou Marco com fingida vaidade,


categoricamente, erguendo-se de joelhos e me olhando nos olhos. — Minha princesa.

Seus olhos brilharam de forma travessa.

— Mas como em todo jogo de poderes terá que saber quando usar sua hierarquia
e quando não… e quando um deve manter a sua vez. Assim que… o que quer que faça
por você este humilde Deus servidor, milady?

Sorri ante a perspectiva de seu jogo.

—Eu lhe ordeno… que se desfaça da regata e que caia sobre o leito para que eu
possa observá-lo.

—Aprende rápido as regras e vantagens do jogo —disse, sem deixar de sorrir.

Começou a despir-se. Agradou-me ver como obedecia às ordens com senso de


humor e um pequeno ponto de acanhamento. Ri também e desfrutei da teatralidade
que estava dotando ao ato de despir-se, algo entre a voluptuosidade e a peça mais
cômica. Mas ao girar por completo deixando em frente a mim seu torso e seu
abdômen nus, minha boca se abriu sem que ninguém o ordenasse; abriu-se além do
indecoroso.

Observei seu formoso corpo, perfeitamente cinzelado pelos deuses, como uma
estátua romana. Uma estátua algo fina, isso sim, pois ainda não se recuperara de sua
época de escassez. Meus dedos foram em sua busca e meus lábios não demoraram em
peregrinar por esse caminho sagrado de carne e descobrimento que oferecia a visão
de “Marco apóstolo”. A carne morena e curtida me recordava o largo peito de um
cervo líder e altivo, contrastando isto com a estreiteza de seu quadril e cintura. E então
deixou cair suas calças… agora podia vê-lo em sua plenitude absoluta. Perguntei-me,
novamente, se o que via era real. Desde toda a vida, tinha tido duas visões que serviam
de referência para imaginar o “equipamento masculino” em questão, e que me
permitiam comparar: um era o pequeno carvãozinho sujo dos meninos que brincavam
sem calças pelas poeirentas ruas do povoado, e outro foi ver o que inseriam os corcéis
nas éguas em nossos estábulos. Claro que sabia que não podia esperar nenhuma coisa
nem outra, mas tampouco esperava que me recordasse mais ao segundo…
possivelmente, devido a sua magreza anatômica, pudesse ser que sobressaísse tanto
seu membro, que julguei da longitude de um de meus palmos, bem aberto, e cuja
envergadura não podia rodear facilmente com a mão, como comprovei quando a dirigi
para ele como sob o efeito de uma mágica atração.

Fechei os dedos devagar, um a um, sobre aquela maravilha que tinha detido os
batimentos do meu coração. Comprovei, como se se tratasse do punho de uma espada
que apenas podia empunhá-lo. Acariciei-o de cima abaixo, brandamente, descobrindo
suas protuberâncias e curvas, como se do jogo dos sentidos se tratasse. E a cada passo
deste jogo notava um bombeamento ou inchaço no dito membro que me fazia temer…

~ 105 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

— Pare. Vou-me derramar e não quero fazê-lo ainda.

Provocadora, em lugar de obedecer, deixei cair uma alça da minha camisola de


forma que um dos meus seios brancos e voluptuosos fosse quase completamente
descoberto.

Os olhos de Marco aumentaram diante dessa visão.

—Isto é aquilo de que falam os trovadores e cavalheiros nos botequins.

—E desta sensação, os poetas em seus versos — acrescentei.

—É mais… — disse. — É ainda melhor.

Então, ele mesmo me deteve a mão com brusquidão.

—Me dê uma pausa, minha deusa. Não quero sair tão rápido do paraíso. Agora me
cabe lhe percorrer…

Antes que eu pudesse me dar conta, a enorme e masculina boca de Marco enchia
meu pescoço, meu decote e meus seios de úmidos beijos, cheio de vontade e ao
tempo cheio de ternura e inerente respeito. Ele recreou-se, com adoração, no canal do
meu decote e eu segurei a respiração por medo que ele chegasse ao mamilo, essa zona
era muito sensível, e já tinha comprovado uma vez que podia me fazer perder os
estribos. Quando sua boca se aproximava perigosamente deles, tanto que já podia
senti-los reagir sob seu fôlego quente, levantou a vista e me olhou enigmaticamente.

Lutei comigo mesma ante o ardente desejo. Gritei-lhe que não se detivesse agora.
E meu seio caiu por completo sob a intensidade de sua boca. Algo se derramou entre
minhas pernas. Sua língua era muito hábil, mais hábil ainda que a do Denis. Golpeava-
me em ritmo cadenciado. Uma de suas mãos viajou até minha úmida intimidade e
começou a mover-se sobre ela com decisão, ao mesmo ritmo que sua língua sobre
meu peito. Eu, por minha vez, agarrei seu membro com uma de minhas mãos,
enquanto com a outra rodeava seu pescoço para não desmaiar e para atrai-lo ainda
mais para mim. Comecei a bombear seu membro, percorrendo-o com paixão com
minha mão, e, em seguida notei que isto o animava ainda mais. Intensificou seu ritmo
sobre mim, me fazendo gritar.

Ambos nos derramamos ao mesmo tempo. Desabamo-nos sobre o colchão. Sorri;


triunfante e derrotada ao mesmo tempo. Orgulhosa. Poderosa. Feliz.

Retomamos fôlego. Marco tomou meu rosto entre suas grandes e masculinas mãos
e me olhou afetuosamente nos olhos, ambos deitados de lado.

—Não se case. Não case com o conde Gastón, rogo-lhe isso.

—O que? Por que…? Por que me faz esse pedido?

~ 106 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Porque não posso suportar a ideia de que lhe faça mal. Não posso saber que não
vai lhe brindar nunca com mais carícias. Conforme tenho entendido, o conde trata as
mulheres como às suas presas de caça. Não quero nem pensar em ver sua pele com
um arranhão ou uma contusão e menos ainda em lhe ver submetida a outros
vexames…

Não pude dizer nada, estava tremendo de apreensão e medo.

Deitei-me e me cobri com as mantas. Marco me abraçou com firmeza.

— Case comigo.

Virei a cabeça à velocidade do raio para encontrar um pouco de seriedade em seu


rosto.

— Você está brincando comigo? Por favor, não brinca comigo, não me sinto muito
forte nestes momentos…

—Seja minha esposa — repetiu com surpreendente seriedade.

Imediatamente se ajoelhou na cama, nu, e tomou-me a mão.

—Não tenho nenhum anel, nem tampouco muito que lhe oferecer: uma bonita e
antiga casa na Vila de Madrid que não pôde ser restaurada em muito tempo devido às
dívidas, todo o pessoal do serviço que possuo está nas cozinhas e, o pior, existe a
necessidade de compartilhar o casarão com os demais membros da minha família.

Os olhos de Marco se foram entristecendo à medida que falava. — Eu não sou


Gastón. Mas não o sou em nenhum sentido. Embora não possa lhe oferecer uma vida
fastuosa na Corte francesa, posso lhe garantir uma vida singela, mas feliz, cheia de
carícias, longas conversações junto a um chá, noites inesquecíveis e dias cheios de
sorrisos.

Um espasmo se apoderou de meu corpo e, indevidamente, duas lágrimas


começaram a escorregar por minhas bochechas avermelhadas. A felicidade de sua
proposição se mesclava com a angústia de não poder lhe dar um felicíssimo “Sim”.

Virei-me de costas para ele para que as lágrimas fluíssem.

—Não posso deixar que o conde acusasse o meu pai de assassinato, Marco —
disse, tomando uma de suas mãos e apertando com carinho. — Esse homem é capaz
de tudo, dá-me medo… se lhe rechaçar agora, possivelmente também venha atrás de
mim… ou de você.

Virei-me de novo para abraçá-lo e chorar, agora sim, profusamente.

~ 107 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Sabe tão bem como eu que apenas uma acusação, um rumor de suspeita que
chegue a algum tribunal servirá para derrocar o bom nome do meu pai; assim seria
embora nunca encontrassem provas. E, não só por meu pai… você, então, tampouco
quererá por esposa a filha de um suposto assassino.

—Querer-te-ia por esposa mesmo que você fosse o próprio diabo —disse,
comovido.

Seu rosto se iluminou enquanto sorria. O que durou apenas um momento. Voltou a
entristecer seu semblante um segundo depois.

— É a mulher mais bela, graciosa e inteligente que já conheci e que nunca mais
encontrarei. Como vou poder lhe esquecer?

—Não me esqueça, suplico-lhe isso. Não esqueça isto — pedi, lhe beijando
brandamente nos lábios. — Eu não poderei. Desejo-te tanto…

—Te amo.

Um tremendo calafrio de felicidade percorreu meu corpo ao escutar essas duas


palavras, carregadas de força e verdade, ditas no erotismo de um sussurro, seguidas
de um mágico beijo.

— Te amo — respondi, quando pude respirar em meio à loucura de nossos beijos.

Agora nossas mãos percorriam sem censuras nossos respectivos corpos. Quase
sem saber como, vi-me privada da minha camisola, e minha pele, exposta ao ar seco
da noite estremeceu ante os beijos imprevisíveis que recebia. Cada fricção e carícia
eram um êxtase, em maior ou menor medida. Começava a me afligir a necessidade de
sentir Marco em meu interior. Estava a ponto de perder a prudência e pedir-lhe
consumida na maior das marés, perdida em um oceano de sensações e sentidos,
evadida das dimensões e conteúdo desse aposento, quando de repente uma rajada de
luz entrou pela porta, que tinha sido bruscamente aberta.

Alguém se introduzia no quarto!

A luz da vela que levava o intruso iluminou seu rosto. O rosto que menos, naquele
momento, teria desejado ver.

Inutilmente, ambos tentamos nos cobrir, no meio do sobressalto.

A senhora Dupin se plantara, como uma aparição, ante nós, com um olhar de
severidade e rancor profundamente sinistro.

Sem mediar palavra me pegou pelos cabelos e atirou-me como se eu fosse uma
mula, até me fazer cair ao chão. Ao incrédulo Marco apenas lhe deu tempo a reagir.
Agarrou uma das minhas pernas, mas não pôde evitar a queda.

~ 108 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

De algum lado da escuridão apareceu um chicote nas mãos de Louise-Marie, um


chicote que descarregou brutalmente sobre mim, alcançando os meus rins, com uma
dor insuportável que me fez espremer sobre o frio chão.

A segunda chicotada não chegou. Marco já havia se equilibrado sobre ela para
impedir. Ao vê-lo levantei para detê-lo, calculando em uma fração de segundo as
consequências que poderia ter para ele atacar a uma mulher poderosa como ela.

—Detenha-se, estúpido, ou chamo os meus guardas — anunciou madame. — Não


sabe que difícil e frio podem chegar a ser os cárceres de Paris.

—Se lhe puser uma mão em cima quebro o seu pescoço — disse Marco com uma
voz tão profunda e tétrica que paralisou a ambas. Parecia que tinha falado o próprio
demônio.

Madame Dupin se acovardou. Retrocedeu uns passos, baixando o chicote.


Meus rins seguiam encolhidos e imóveis pela dor.

— Fora daqui sua insensata! —gritou-me. — Seu pai lhe encomendou e agora vou
devolvê-la manchada. Em que lugar me deixa isso?!

Agachou-se à minha altura e seu rosto se transformou, aterradoramente, do ódio


mais profundo a uma careta de compaixão.

—Não fui manchada, sigo intacta.

—Volta imediatamente para seu aposento e se isto se repetir faço chamar o seu
prometido eu mesma para que se encarregue de você, entendeu?

Olhei-a com ódio, muda como uma tumba.

—É uma pequena vadiazinha. Afinal, o que se podia esperar de uma selvagem,


criada sem mãe nem preceptoras? Não sei o que pensava se oferecer a um semental
espanhol como ele. Com certeza foi uma decepção. Tem sorte de se casar logo e,
assim, não sofrer as consequências de ver-se rechaçada por Marco amanhã.

Amaldiçoei minha inocência. Recordava como cheguei a pensar, ao conhecê-la, que


seria uma estupenda candidata a contrair segundas núpcias com meu pai e exercer o
lugar de madrasta. Lembrei que pareceu uma mulher algo altiva, mas bondosa,
elegante, sociável… agora via sua verdadeira natureza, malévola e ruim, mas o que a
fazia realmente perigosa era a maestria com que dominava a arte da falsidade. Devia
ter aprendido a ser “sociável” com seu marido, o tesoureiro do rei. Todo mundo sabia
que as arcas da França eram administrada de forma turva e descontrolada, embora o
próprio Rei recebesse relatórios ao contrário. Em realidade se cobriam todos os
caprichos desmedidos da Corte e outros ilustres convidados, gastava-se pesadamente
em guerras vizinhas das que não se tirava proveito algum e se adornavam castelos e

~ 109 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

galerias com toda classe de luxos desnecessários, enquanto o povo passava fome. E
Louise-Marie sempre tinha dissimulado perfeitamente esta informação, inclusive
indignando-se pela situação quando surgia o tema nas conversações e calculando de
fazer, de tanto em tanto, presentes aos seus serventes e lavradores, presentes tirados
das arcas comuns, mas que lhe tinham servido para ganhar no Vale a estupenda fama
de “generosa”. Quando a realidade era que ela não só estava informada de tudo, mas
sim extraía benefícios próprios desproporcionados. Mas os arrumava para seguir
parecendo a única enriquecida “generosa” com o povo.

Sempre tinha sabido disto e a tinha desculpado, mas agora o admitia como era,
com toda sua gravidade, porque a odiava. Odiava-a de forma pessoal.
Não entendia como alguém podia ser tão maquiavélico, nem que motivos a
levavam a ser assim, mas tive que acreditar em meu pai, que sempre me dizia que “as
piores intenções também podem ocultar-se atrás de um sorriso”. Ante mim tinha o
exemplo vivo.

Madame deteve, elevando uma mão, às palavras que Marco estava dirigindo-lhe.
Eu, ainda em choque, traumatizada com meus próprios pensamentos, não os tinha
escutado discutir. Apenas vi como ela se dava a volta para partir.

Mas antes de sair se virou, altiva, e se dirigiu a ele.

—Quando quiser uma mulher de verdade querido Marco, não perca tempo com
meninas púberes. Já sabe qual é a porta da minha câmara.

—Nem que fôssemos os dois últimos seres sobre a Terra.

Madame Dupin sorriu depreciativa.

—Acaso seus fluidos não alagaram minha boca já uma vez? Não parecia que fosse
precisamente uma tortura para ti.

Essas palavras me deram uma pontada aguda no coração. A que se referia? Marco
me tinha insinuado algo, mas não explicou muito bem. Podia imaginá-lo. Enojava-me
pensar que tinham mantido esse contato. Marco era livre aquela noite ainda não
tínhamos declarado mutuamente nossos sentimentos e ele não tinha esperança, mas…
não podia evitar me sentir doída e um pouco ultrajada.

Madame me levantou bruscamente do chão, me elevando de um braço e me


empurrou para o corredor. Olhou uma vez mais a Marco, que se elevava na penumbra,
nu e cheio de fúria. Olhou-o de cima abaixo.

—Já sabe onde estou.

Fiquei encerrada a chave em meu quarto. Ainda não sabia que assim seria o resto
das noites que durasse nossa estadia em Chenonceau.

~ 110 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Deixei-me cair contra a porta, escorregando por ela com minhas costas nuas,
enquanto segurava a camisola e tratava de parar minhas lágrimas. Sentia a urgente
necessidade de voltar para casa… e não sair jamais. Ansiava ver meu pai. Queria ver
sua melhoria com meus próprios olhos e abraçá-lo. Mas não queria alarmá-lo
retornando antes do previsto. Era melhor deixar passar uns dias mais. Uns dias nos
quais teria que interpretar uma brilhante dissimulação para minha anfitriã e o resto de
seus convidados, a quem, sem saber por que, também odiava. E… não sabia se devia
falar com Marco. Não queria que Louise-Marie fosse às nuvens de novo e chamasse o
meu temido prometido. Agora sabia que era bem capaz.

Meti-me na cama, ainda dolorida. Sem poder dormir, comecei a pensar que ainda
ficavam as aulas: era a situação perfeita para poder ver Marco a sós e lhe falar. Ansiava
voltar a ouvi-lo falar sobre o mundo e seus milagres, com aquela voz profunda e
penetrante que ainda estava vibrando em minha pele e em meus ossos.

E, me centrando neste último pensamento, dormi.

Mas, no dia seguinte, dei-me conta que nem todas as minhas expectativas se
cumpririam: Quando anunciei à madame minha volta às lições sugeriu que Mireille nos
acompanhasse nelas, com a excelente desculpa de aproveitar também para dar um
pouco de instrução à sua criada de confiança. Que curioso que semelhante mudança
no plano de estudos lhe tivesse ocorrido justo agora e não antes...e assim,
silenciosamente, com olheiras, com os rins feitos migalhas e com uma nova e perigosa
companheira, comecei umas lições que tinham podido ser idílicas.

O resto do dia seguiu com uma rotina de leituras ao ar livre depois do almoço,
obrigadas saudações à madame, desejadas olhadas furtivas ao Marco, chás da tarde
em reunião, jogos de cartas decoradas com brasões… Não encontrava o momento de
falar um segundo a sós com Marco, cuidou-se de estar agora sempre presente nossa
sinistra anfitriã.

Sentada à mesa de jogo coberta com veludo verde, encontrava-me pesando as


possibilidades sobre o tema, quando ao tomar minhas cartas depois da partilha
efetuada por Marco, encontrei entre elas uma carta a mais. Uma carta marcada:
rainha de copas. Não pude evitar lhe sorrir e ele me piscou um olho. Como o tinha
feito? Não me teria ocorrido nunca que também dominasse a arte da prestidigitação.
Imediatamente guardei a carta em um bolso secreto localizado entre as dobras da
minha saia, com a maior dissimulação. Para rebater a tristeza que me invadia, nesse
dia tinha eleito um vestido alegre: amarelo com muitos pingos de renda branca na
saia. Um pouco de estilo espanhol, em honra ao Marco. E tenho que dizer que a moda
espanhola, apertada no peito e quadril e de mangas grandes, à qual eu sempre tinha
sido relutante, assentava maravilhosamente bem às curvas femininas.

Entre mais lições com meu especialíssimo professor, chás e debates que sempre
abordavam os mesmos temas, transcorreu uma semana mais. Meus próprios
problemas tornaram impossível para mim permanecer lúcida sobre as questões de
Estado, da filosofia e da moral que se tratavam ali com tanta… liberdade. Mas o certo

~ 111 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

era que escutar ao Denis Papin e à Louise-Marie falar de moral me punha os cabelos
em pé. Embora seja justo dizer que, apesar de tudo, existia uma diferença substancial
entre ambos seres imorais: ele parecia ter coração; já ela… tinha o coração escondido
sob um estado de loucura e soberba indefiníveis.

Outros convidados, o preceptor Rousseau e o calado e pragmático Diderot


pareciam desfrutar da estadia alheios a tudo, como se de umas férias no paraíso se
tratasse. Embora eles dissessem que era “a calma que precede a tempestade”, que
estavam desfrutando do “savoirevivre8” francês antes que se forjassem seus planos de
mudança e revolução para o país. Diziam que conseguiriam que houvesse
conhecimento, igualdade e justiça para todos, e então a situação da França mudaria
para sempre, dos pés à cabeça. Não sabiam a razão que tinham. Não ia ser tão fácil
como eles pensavam; pouco conseguiriam sozinhos com as assembleias, livros e os
panfletos de seu plano inicial. Cabeças teriam que rolar para que a mudança
ocorresse… e rolariam.

Eu, por minha parte, só pensava em que dia anunciar meu desejo de retornar à
Chambord e começar a preparar a viagem, quando me chegou uma preocupante carta
de minha prima Tramise. Uma carta depois da qual a volta não era uma opção.

8Sala de estar

~ 112 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Capítulo 14

Memórias de Caroline-Marie Du Berry:


Retorno à Chambord.

Queridíssima e amada prima,


Tenho medo. Sinto-me apanhada, assustada, em minha própria casa.
Possivelmente deveria dizer em sua própria casa, mas lhe conheço e sei que você não
me permitirá isso, quer que a sinta como minha.

Sinto lhe perturbar, mas me voltarei louca se não lhe confessar que sinto uma
grande incerteza, um grande desassossego, uma ansiedade que me afoga…

Todos andam murmurando. Seguem pensando na “besta” como no assassino. E


pensam que deve andar ainda por perto. Mas as batidas organizadas para inspecionar
os arredores não tiveram resultado algum. Temem que o monstro do bosque inclusive
possa penetrar no castelo. Os serviçais já não falam; sussurram. Já não cantam;
baixam o olhar. Chiam ao ver aparecer minha sombra precedendo minha presença.

Os agentes não contemplavam esta teoria, mas ao não achar nenhuma outra pista,
acabaram por escutar os falatórios.

Seu pai, meu querido tio, também segue insistindo em que isso é o que viu. É
possível que seu estado de agitação e a própria escuridão o levassem a uma confusão,
porque… um monstro, querida prima? Que tipo de “monstro” do bosque pode enforcar
homens? Acredito que à sua volta deva incitar os agentes a centrar-se em teorias mais
lógicas e plausíveis, pois assim nunca vão dar com o assassino.

Não tenho medo, como vê, do mito da besta, mas sim do ambiente que aqui se
respira. Asfixia-me. Mamãe dificilmente me permite sair de minhas acomodações nem
ir sozinha a nenhuma parte do castelo. Mamãe acredita que algo mau está rondando
Chambord. Mas eu sei o que é… é a tristeza. Só queria lhe transmitir que sem você tudo
é tristeza e que nos faz muita falta.

Todos dizem que sou uma alma solitária, mas não sou uma alma solitária; sou uma
alma sozinha.

Eu acredito que necessitamos que alguém ponha em todo este assunto um pouco
de prudência.
Contigo e com o professor se foi a prudência, sem dúvida alguma, e também se foi
a alegria. Oh! Arrependo-me de lhe dizer isto e de lhe torturar em sua grata estadia em

~ 113 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Chenonceau, mas necessito tanto de você! Eu lhe sinto capaz de controlar tudo e fazer
com que tudo volte à normalidade. Agora que não está, dou-me conta de quem era a
verdadeira Senhora deste castelo.

Mesmo assim, se não lhe agradar e não for seu desejo, por favor, não adiante sua
volta. Não é uma petição… não me interprete mal.

Sabendo-lhe querida e necessitada pelos seus, desfrute como nunca dos prazeres
que lhe brinde Chenonceau, pois aqui não os encontrará à sua volta.

Beijos infinitos,
Tramise, de Chambord.

A carta removeu minhas vísceras no mais profundo.

Não era a intenção de minha prima que eu voltasse, apenas me informar e


expressar seus sentimentos, pois ninguém mais tinha para isso. Mas decidi que, com
toda rapidez, tínhamos que voltar. Tinha que recuperar o controle de Chambord.

Poucos momentos se recordam com maior felicidade e alívio que uma esperada
volta ao lar, e isso é exatamente o que senti quando vislumbrei pelo guichê da
carruagem a massa de pedra clara que era Chambord, com sua coroa de infinitas
chaminés de distintas formas e tamanhos formando estranhas figuras gigantes no
terraço, sua Tower-Lantern central e seus grandes torreões cônicos ao redor. Era uma
massa formosa. Um palácio gigante. Aquele era meu lar.

Devia reconhecer que Chenonceau estava cheio de encanto, mas não havia no
mundo nada tão grandioso como Chambord.

Para minha maior alegria, minha prima, minha tia e o serviço nos esperavam junto
à porta principal. Além disso, parte do povoado tinha saído a nos receber, saudando
com seus lenços à nosso passo ou correndo, como os meninos e adolescentes faziam,
junto à carruagem. Naquele momento me pareceu que não podia haver melhor lugar
no mundo. Não entendia de que medo e tristeza podia me falar minha prima.

Depois de abraçar afetuosamente aos serviçais, — gesto do qual se surpreenderam


— atrasei-me em respeito ao professor e à Madame Dupin, que para nossa desgraça,
tinha-nos acompanhado na carruagem, junto à Mireille também, com o propósito de
não nos deixar sozinhos. Uma incômoda companhia que tinha feito que passasse
quase toda a viagem dormindo. Agora ansiava uns minutos para abraçar a minha prima
e a minha tia Marie e lhes dizer que vivíamos no lugar mais maravilhoso do mundo,
apesar de tudo. Minha prima torceu o nariz ao escutá-lo e lhe pisquei um olho para lhe
fazer entender que já estava ali, com ela, e que mais tarde falaríamos de sua carta.

~ 114 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Sem demorar mais, dirigi-me enfim a ver meu adorado pai. Era um momento muito
esperado, mas ao me aproximar de seus aposentos pressenti que algo não estava
certo. Comecei de repente a caminhar cabisbaixa, com o punho fechado sobre o
coração, por esses corredores que conhecia desde minha infância e que agora
encontrava escuros e silenciosos. Tenho que agradecer ao meu passo lento,
amortecido pelos largos e grossos tapetes, o ter podido escutar as primeiras palavras
de uma conversação. Uma conversação que se estava levando a cabo no interior dos
aposentos onde descansava meu pai.

Sua voz debilitada era apenas audível, mas em troca, a voz aguda de Madame
Dupin se escutava nitidamente através da porta de carvalho esculpido.

—Aflige-me em excesso lhe comunicar isso Jean-Éduoard, querido, mas acredito


que é minha obrigação como amiga e colega.

—Quando me chama por meus dois nomes, sei que se trata de algo que eu não
gostarei de saber, Louise.

—Não, você não gostará. Adora a sua pequena Caroline e a vê como um ser sem
mácula. Mas me temo que seu comportamento durante sua estadia em Chenonceau
não foi precisamente próprio de uma senhorita, e, como amiga sua, isto me transtorna
imensamente, querido.

Fez-se silêncio.

Meu coração paralisou ao tempo que o fôlego do meu pai continha suas palavras.
Mas como podia essa mulher falar assim com um pai doente de sua própria filha!? E
depois do que me tinha feito… O que pretendia?!

—Me diga a que se refere exatamente Louise-Marie, já sabe que minha filha não
teve uma educação estrita quanto às boas maneiras, mas domina com graça inata os
básicos. Foi uma aluna irreverente?

—Deus seria piedoso se somente se tratasse disso! Temo que o assunto entra em
terrenos mais… desonrosos, inclusive perigosos.

—Louise-Marie, não me encontro muito bem para tantas intrigas. Seja direta, rogo-
lhe isso.

—Sua filha vendeu sua virgindade a um pobre comprador. Esse despejado que
contratou como professor, ao que todos professavam amável carinho por suas
contribuições ao clube, foi mais preparado que todos nós. Roubou-lhe seu maior
tesouro com sua galanteria e rudes maneiras espanholas. Seduziu a sua filha… embora
temo que possa ter sido ao reverso, pois foi ela que encontrei no leito dele.

~ 115 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Um momento, Louise! Tem provas do que diz? É uma acusação muito grave para
ambos. Ele poderia perder seu trabalho em meu castelo, a única fonte de ganhos atual
de sua família. E quanto à minha filha… o conde Gastón poderia…

—Por isso mesmo que lhe conto moncherie! Porque me preocupo com ela. O
conde é um animal descerebrado e pode submetê-la à pior das surras, se não algo
pior: repudiá-la.

—E como pôde ocorrer?! Coloquei a honra da minha filha em suas mãos, Louise!
Confiei em você. Não viu nenhum sinal prévio de amor? Às mulheres não escapam
essas coisas. Deveria acautelá-la você mesma do que lhe podia ocorrer.

Um novo silêncio breve indicava que Louise-Marie não sabia o que dizer. Parecia
que havia uma pequena falha em sua própria armadilha. Decidi esperar um momento
mais antes de entrar no quarto. Queria escutar como saía desta.

—Não vi nenhum indício de flerte, é obvio, querido meu. Como bem diz, sou muito
perspicaz. E embora me pareceu notar um bom entendimento entre eles na noite da
festa, depois em minhas posses, o barão mostrou certo interesse por Mireille, uma das
minhas criadas. Quem ia pensar…

Era insultante a fluidez com que essa mulher mentia sem mais. A indignação tinha
feito com que meu rosto ardesse como lenha em uma fogueira.

—Então, diz que os encontrou juntos, Louise? —disse meu pai com voz pesarosa.

—Temo que assim seja. Juntos no leito do barão De Gaula. Sem nenhum traje
absolutamente…

—Me economize os detalhes — disse meu pai de forma furiosa e cortante.—


Chame a minha filha. Quero vê-la imediatamente.

—O que fará com o barão? É um perigo manter a esses dois sob o mesmo teto.

—Tenho que pensar no assunto, Louise. Primeiro, minha filha.

Louise-Marie ia sair. Corri nas pontas dos pés, me afastando da porta, até certa
distância a partir da qual retornei sobre meus passos, fazendo-os soar bem alto.

A porta se abriu ante mim e tive que me conter para não me atirar ao pescoço de
uma sorridente e satisfeita Madame Dupin.

—Oh! Ia buscá-la, preciosa — disse cheia de surpresa e falso gesto.

Não pude articular palavra. Dediquei-lhe um curto olhar severo e, com uma
inclinação de cabeça, despedi-me, entrando no quarto do meu pai e fechando a porta
atrás de mim, virtualmente no afiado nariz de madame.

~ 116 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Apesar de saber o que neste momento poderia estar pensando de mim, não
reprimi o gesto de correr a abraçar ao velho conde. Necessitava-o como o ar nos
pulmões. Ambos nos desfizemos em lágrimas, quase sem poder evitá-lo.

Choramos juntos pelo reencontro, mas em meu foro íntimo sabia que também
chorava pela pena causada pela falsa notícia. Não conseguia falar. Ao fim o olhei
através de uma cortina de lágrimas.

—Filha…

Depositei um dedo brandamente sobre seus lábios ásperos e ressecados.


Encontrei-o algo mais magro do que o habitual, com seu escasso cabelo despenteado.
Senti uma pontada de dor ao pensar que possivelmente não o estavam cuidando o
suficientemente bem e outra de arrependimento por não ter retornado muito antes.
Mas agora o importante era liberá-lo dessa última carga venenosa que Louise tinha
inventado.

—É mentira, pai, não se preocupe — balbuciei entre soluços.

Ele franziu o cenho, confuso.

—O que? O que é mentira, meu amor? —disse acariciando minha bochecha.

—Sigo sendo virgem. Não há nada que temer. Chegarei ao leito do Gastón intacta.

— Escutaste a conversação…
—Não pude evitá-lo, pai. Ia entrar em seus aposentos quando escutei a voz de
madame… e dou graças ao céu por isso, pois de outra forma não teria podido lhe
aliviar deste desnecessário desgosto. Isso nunca ocorreu. Não tema…

Meu pai ficou com a boca entreaberta, com uma palavra indefinida suspensa no ar.

—E por que demônios afirma tal coisa madame?

Torci a boca em sinal de culpa e lhe falei, cabisbaixa.

—É certo que nos encontrou… corrijo: que me encontrou… nas habitações do


professor. Mas… não fizemos nada que ponha em risco meu matrimônio… não somos
tolos. Ambos seguimos intactos.

Meu pai, para minha surpresa, olhou-me com ternura e fez uma pergunta insólita.

—Está apaixonada?

Mil respostas lutaram para sair dos meus lábios: “Sim, como uma menina”. “Uma
ilusão transbordante agita meu peito quando estou em sua presença ou simplesmente

~ 117 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

penso nele” ou “Ele tem tudo para que eu possa chegar a ser imensamente feliz”…
mas nenhuma destas opções facilitava as coisas com as minha boda iminente. Assim,
não pude dizer a verdade. Tampouco queria preocupá-lo além da conta, em seu
estado, lhe dizendo que sua querida amiga apenas procurava nos prejudicar. Devia lhe
economizar sofrimento. E, sobretudo, devia liberar Marco da culpa.

—Não sei pai. Apaixonada? Não. Foi… um flerte. Suponho que veio da atração de
receber lições de um cavalheiro tão arrumado. Compreende? Admito-o: foi minha
culpa. Eu fui ao seu quarto. Sou jovem… fui uma inconsequente pela primeira vez em
minha vida. Mas sim, tive a claridade suficiente para não fazer nada que danificasse
meu futuro matrimônio, nem minha honra. E ele —me apressei a acrescentar—
sucumbiu somente devido à minha insistência, comportando-se em todo momento
como um cavalheiro, pai. Asseguro-lhe isso. Não lhe guarde, rogo-lhe isso, nenhum
rancor. Ele tratou de me respeitar e não teve culpa. Nenhum de nós tentou chegar a
qualquer ponto perigoso. Conhece-nos. Somos pessoas honradas, afinal, apesar de
termos sofrido este arrebatamento.

—Precisamente porque lhes conheço é que não posso acreditar que fossem tão
insensatos. E, há outra coisa que não entendo, como é que Louise-Marie acabou
irrompendo no quarto?

Não lhe ia confessar que as intenções de Louise-Marie giravam em torno de


encontrar Marco só… ou à espionagem maliciosa.

—Suponho que alguém do serviço deve ter me visto ou escutou algo e avisou à sua
senhora.

—Isso não é habitual; o serviço deve guardar discrição nestes assuntos para com os
convidados. De outra forma, poucos nobres visitariam a casa de outros, especialmente
nas festas.

—A não ser que tenham que vigiar de perto a uma jovem convidada a seu cargo.
Pai, muita gente se serve de espiões, sabe. Sim é habitual, embora nós não o
pratiquemos.

Suspirou com tal potência que criou eco no teto decorado.

—Apenas te direi uma coisa… — sussurrou. Entrecerrou os olhos e eu temi seu


olhar. — Acredito. Acredito em você porque é minha filha e porque sei que no fundo é
sensata. Nessa ordem.

Agora eu lancei o sonoro suspiro de alívio.

—Mas… somente, somente no caso remoto de que não me tenha dito toda a
verdade, vou dar um conselho: Uma vesícula com sangue de porco.

~ 118 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Meu desconcerto não soube como encaixar essas palavras. Era uma beberagem
mágica contra bruxas mentirosas que acusam as meninas ante seus pais ou uma
receita culinária?

—Cherie…, —explicou meu pai — se daqui até suas bodas sua estimada virgindade
sofresse algum tipo de… lhe chamemos “acidente”, pede nas cozinhas uma parte de
tripa fina e um pouco de sangue de porco. Cria com eles uma bolsinha e introduza em
sua parte mais íntima. Assim dissimularia ante o Gastón a ausência de sua primeira
perda de sangue. Quero dizer, se fosse necessário. Esperemos que não.

Meu estômago virou ante a bizarra ideia, mas apenas por ser um conselho de meu
pai finalmente sorri e me elevei para lhe dar um beijo no rosto.

—Me acredite; não será necessário. Mas obrigada pelo conselho, velho caçador.

Ao fim, depois da anedota do feiticeiro remedeio, pudemos rir vagamente e falar


durante longo momento sobre sua saúde e sobre minha primeira estadia fora dos
muros de Chambord… isso sim, omitindo todos os “pequenos” episódios
desagradáveis.
E outro episódio sobremaneira desagradável estava a ponto de começar.

Meu pai, homem em excesso crédulo e tranquilo, não era capaz de admitir a si
mesmo que, efetivamente, muitos nobres intrigavam e subornavam graças à ajuda de
fiéis espiões infiltrados entre o serviço. O serviço de Chambord devia ser dos poucos
que na França constituíam a exceção à regra. E, não sabemos quem foi, mas
certamente um desses efetivos espiões, tinha dado aviso ao meu aborrecível
prometido, o conde de Orleans, de que tínhamos abandonado Chenonceau e
empreendido a viagem de volta.

A notícia de sua iminente presença em nosso castelo não se fez esperar. Irromperia
logo em nossas vidas como um lobo em um redil desguarnecido.

~ 119 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Capítulo 15

Memórias de Caroline-Marie Du Berry:


A sombra oculta nos corredores.

—Tramise!

—Oh, prima… — exclamou minha pequena loira, chorosa, com seus olhos de safira
molhados como chuva sobre cristal.

Seu vestido rosa pálido fazia jogo com sua ternura.

—Já estou aqui. Já não está sozinha.

Fundimo-nos em um melancólico abraço, que deu forças a ambas.

—Oh, querida prima… que adulta e serena lhe vejo — declarou, tomando minhas
mãos e afastando um passo para me admirar.— Parece que anos, em lugar de
semanas, se passaram pela vida de todos.

—Você também tem essa sensação?

Afirmou com a cabeça, com um nó compungido entupindo sua garganta. Minha


pequena me olhou atentamente, franzindo os lábios em expressão de estranheza.

—Vejo-lhe distinta. É realmente possível que tenha crescido em tão poucos dias?

—Quer dizer que estou mais velha?

Ela riu com sinceridade, apertando os dentes, em um gesto característico.

—Velha aos dezessete… isso teria que ser visto. Não, prima querida, está mais bela
do que eu recordava, mas ao mesmo tempo há algo mais sério em seu rosto.

—São muitas as preocupações ultimamente. Realmente, como bem diz, parece que
se passaram anos desde minha estreia na temporada.

—Não foi agradável sua estadia em Chenonceau? Eu lhe invejo por isso.
Soltei-me de suas mãos e fui acomodar-me sobre o divã de seda amarela que
ficava nos pés de sua cama. Admirei um breve momento seu singelo e escondido
dormitório, que pertenceu às sucessivas criadas das antigas rainhas e com uns
tapinhas sobre a seda convidei-a a sentar-se junto a mim.

~ 120 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Tenho tanto que lhe contar… nem tudo foi felicidade e despreocupação em
Chenonceau, certamente. Mas, antes de lhe aborrecer com penalidades, tenho que lhe
contar que nestes momentos há algo que sim, me faz muito feliz.

Balançou graciosamente a cabeça e seus cachos loiros balançaram como cães


alegres.

—Isso é fantástico! Conta-me tudo!

Deixei cair os olhos um momento, para levantá-los maliciosamente para ela depois.

— Conheci o amor…

—Sabia! Viveste um amor clandestino? Que romântico!

—Bom… clandestino deve ser. Recorda minhas bodas iminente.

Vi em seu rosto como lhe rompia o coração.

—Sinto muito… queria dizer…

—Sei o que queria dizer. Não se preocupe, moncherie. Foi muito mais que uma
aventura… nos apaixonamos! Apaixonei-me… pelo professor.

Se fosse possível, a boca da minha prima teria caído dois pisos para baixo, até dar
com as lajes do pátio de entrada.

—Nosso bonito barão é inteligente! E, é correspondida? — perguntou, feliz.

Estiquei as pálpebras e elevei o queixo com presunção.

—Totalmente.

—Ah! —exclamou minha prima, com irreprimível surpresa, cobrindo a boca para
tentar silenciar suas gargalhadas.

Elevou-se para saltitar emocionada por todo o quarto. Observei agradada a forma
de viver as emoções que se tem aos quinze anos.
—Não posso acreditar nisso. Não posso acreditar nisso! Mas se é… é um Deus! É
um Deus grego, ou, melhor dizendo, um Adônis espanhol. É muito bonito, muito…
imponente e masculino.

—E como fala...

Minha prima me olhou, elevando as sobrancelhas.

~ 121 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Sim, suponho. Oh, me conte todos os detalhes!

Passei ali grande parte da tarde. Pedimos o lanche em seu quarto e, entre
chocolate quente e pastéis, relatei à minha adolescente companheira todos os
detalhes que considerei românticos e positivos, guardando para mim os enganos e
excentricidades da senhora Dupin. Ao menos de momento, preferia economizar mais
desgostos à minha sensível mademoiselle. Já teríamos tempo para aquilo.

Ao fim, antes de nos despedir, expressou-me seus temores e desejos sobre o que
ocorria no castelo.

—Tem que reunir os serviçais sem demora e lhes falar — disse balançando a
cabeça de lado a lado, com preocupação evidente.— O faria eu, se soubesse que
minhas palavras lhes pudessem dar forças. O teria dito minha mãe, se soubesse que os
criados confiam nela. Mas não acontece nenhuma das duas coisas. Apenas você pode
tranquilizá-los.

—Tentarei hoje mesmo. Falarei com eles — assegurei, lhe dedicando um sorriso.

Mas antes de cumprir minha promessa, dirigi-me ao “esconderijo secreto” que


usava na infância — quer dizer, até fazia quase um mês— quando precisava me ocultar
do mundo ou simplesmente estar sozinha para pensar. Alinhei-me entre o feno e a
palha das cavalariças, enrugando meu vestido de viagem de lã merina tinta em
granada escura, fazendo-me um novelo à medida que me encolhia, justo atrás de
Touraniere.

Tinha sentido falta do meu fiel baio, que agachou sua enorme e larga cabeça até
deixá-la à minha altura, deixando-se acariciar. Deixei repousar minha testa contra seu
focinho e senti como se compassava nossa respiração. Ambos fechamos os olhos.
Quando os voltei a abrir, já tinha escurecido.

Levantei-me. Eu tive que empreender o que, com tristeza, dava-me conta de que
era meu primeiro dever em solitário, à frente de Chambord. Tive a horrível sensação
de que não seria a última vez que teria que substituir meu pai em suas funções. Antes
que se servisse o jantar, reuni nas cozinhas todo o pessoal. Criadas, ajudantes de
câmara, lavadeiras, cozinheiras, lacaios, costureiras, moços, jardineiros… Philippe, o
mordomo. Apenas olhando em seus rostos, compungidos e cinzas, tão cinzas como
seus uniformes, pude ver que minha prima tinha toda a razão: algo grave e geral
ocorria.

Passeei ante eles pensativa, com as mãos nas costas, até que me detive em seco
para olhá-los um a um nos olhos, comprovando agradada como não se esquivavam do
meu olhar. Aquilo era mais difícil do que eu pensava. Mas, simplesmente, deixei que
falasse o coração.

~ 122 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

— A maioria de vocês eu conheço desde que nasci. Têm que saber que não estão
em seu posto de trabalho, estão em sua casa. Mas não só têm que saber; têm que
sentir.

“Não estou aterrorizada com os rumores, nem com as lendas. Estou aterrorizada
ao ver que o medo tomou o controle de Chambord. Se nos sentimos seguros, estamos
tão seguros como sempre. Mas se sucumbimos… nossa casa está derrotada.”

—Mas, senhorita — interveio Philippe, o único com suficiente confiança para fazê-
lo.— O que podemos fazer se não nos sentimos seguros? Esse assassinato, para nosso
pesar, ocorreu em Chambord. E… não está resolvido. Sabemos que não se
encontraram pistas que conduzam para nenhum de quantos convidados aquela noite
estiveram presentes, nem tampouco aos membros do serviço… em vez disso…

— Acreditam no sobrenatural?

—Há rumores… velhas lendas.

—As bestas de Chambord. Estranhas bestas que habitam nossos bosques. Sempre
convivemos com elas. O que mudou? Não se provou nas batidas de caça que não se
trata mais do que de lobos e javalis? Os lobos não podem enforcar um homem. Um
homem que tinha muitos inimigos. Inimigos humanos.

—Um homem cujo filho logo estará em nossa casa. E se, quem quer que seja o
assassino, não tenha acabado a vingança?

Congelou-me o coração ao começar a compreender.

— Então se trata disso… é a presença do conde de Orleans o que temem em


realidade.

—Pode voltar por ele —se atreveu a dizer Corinne, a chefe das cozinheiras. — A
besta… ou o assassino, não sabemos. Oh, Deus, quem sabe?! Pode voltar por ele e…

Não pôde acabar a frase. Corinne abraçou ao menino de sete anos que tinha diante
dela, seu filho, e se pôs a chorar. Agora compreendia tudo. A sombra de um assassino,
qualquer que fosse sua natureza, era o que o serviço temia que voltasse a mover-se
entre os cantos escuros deChambord. Temiam isso muito mais que as lendas com as
que, afinal, tinham convivido sempre. O conde Gastón não significava infelicidade
somente para mim. Ao ver que tinham razão, tomei uma decisão:

—Se for necessário, irei de Chambord uma vez casada. O afastarei daqui.

—Não pode fazer isso, senhorita — aventurou Philippe. — Chambord é sua vida.

—E que outra coisa posso fazer?

~ 123 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Ante o silêncio geral, concluí:


—Farei o que for necessário. Por Chambord, farei o que for necessário. E, agora,
voltem todos para seus trabalhos. Temos uma convidada que espera que lhe
honremos com a formalidade de um jantar.

Assim que saí das cozinhas, e depois de caminhar alguns passos, senti a
necessidade de correr. Não podia me permitir que ninguém me visse correndo pelos
corredores do castelo, assim procurei a entrada mais próxima aos corredores secretos
do serviço. Uma marca alargada que rompia a simetria do desenho de uma tapeçaria
de parede me deu o sinal. Tirei do bolso da minha anágua uma pequena chave que
nunca tinha utilizado. Adorei e temi ao tempo a escuridão em que me adentrei. Corri
seguindo as frestas de luz que manchavam a escuridão, filtradas a cada poucos metros
de cada aposento e chaminé. Lancei um pequeno gemido ao vislumbrar umas velhas
escadas em caracol, enquanto subia por elas me dei conta de que, naquele labirinto,
não seria tão fácil encontrar a saída para meu dormitório. Dois pisos de escadas mais
acima e vários intentos depois, situei-me ao fim, já sem fôlego. Estava perto das
habitações do antigo rei Francisco. Meu discreto aposento, que tinha pertencido a
uma de suas filhas menores, não devia estar longe. Ladrilhos desgastados e vigas e
tábuas de madeira lascada e poeirenta apareciam em toda parte, ao azar, pelo chão,
teto e paredes. Parecia que aquela parte do castelo tinha cem anos mais que o resto, e
outros tantos levariam certamente sem limpar. Uma lasca considerável rasgou a saia
do meu vestido e outra de menor tamanho se cravou em meu dedo indicador. Meu
coração se acelerou ante toda imprevisibilidade que ia aparecendo naqueles lances
alternados de penumbra e escuridão.

Algo inesperado me ocorreu ao ver, por fim, o pequeno corredor que dava à porta
secreta do meu quarto: senti um medo inexprimível. Sempre tinha dormido ali
razoavelmente segura, sabendo que esse corredor existia, mas sem pensar jamais
nele. Agora que me punha no lugar dos empregados do serviço, dava-me conta de
quão fácil era espiar a qualquer dos que ocupavam as habitações superiores… e
inclusive nos observar à noite… enquanto estávamos dormindo. Àquilo devia referir-se
minha prima quando me falou daqueles criados que lhe pareciam de uma raça
diferente, capaz de mimetizar-se com o mobiliário e atravessar paredes e muros.

Quando por fim me encontrei em meu quarto, apoiada contra a porta secreta que
tinha fechado atrás de mim, observei meu inapresentável aspecto: o vestido de viagem
estava extremamente poeirento e seu tom avermelhado fazia jogo com o sangue que
estava brotando do meu dedo. A lasca não tinha sido tão pequena como tinha pensado
ao sentir a dor.

Dirigi-me para minha penteadeira de mármore e madeira de ébano, com o dedo


ferido na boca.

Uns golpes na porta principal me detiveram em seco.

—Caroline? Está aí?

~ 124 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Meu coração retomou seu ritmo ao comprovar que era a voz de minha prima.

Um som mínimo escapou ridiculamente de minha garganta.

—Posso entrar?

—Adiante.

—Meu Deus! —exclamou ao ver-me. — O que lhe ocorreu?

— Já esteve alguma vez nas passagens?

—Oh! —exclamou, levando a mão ao peito. — Pensei que você tinha caído do
cavalo ou algo assim. Ficou louca? Esteve aí dentro?!

Encolhi os ombros.

—Dado meu aspecto…

Em poucos segundos, minha surpreendida prima tornou seu gesto de reprovação


em curiosidade, torcendo seu narizinho. Veio sentar-se na borda da cama enquanto eu
retocava meu despenteado coque, sentada em frente à penteadeira.

—E, como são? —perguntou entrecerrando os olhos, com certo mistério.


—Escuros, poeirentos e… perigosos — respondi, ao tempo que lhe mostrava minha
ferida recente, ainda sangrando.

—Oh! E o que descobriu? Conectam todo o castelo?

—Todos os cômodos principais. Conectam com os armazéns de lenha e com as


cozinhas, de onde entrei. Dizem que há várias saídas para o exterior, para escapar se
sofrermos algum ataque ou incêndio.

—Mmm… que interessante. Embora nunca vi nenhuma porta no muro exterior que
não conheça aonde leva. Onde desembocam?

—Ao que parece, as saídas dão ao bosque, conforme me contou meu pai.

Minha prima se aproximou silenciosa da janela e escrutinou a paisagem noturna.


Um pouco absurdo, mas mesmo assim, parecia mantê-la absorvida.

—Estou pronta — anunciei, uma vez limpa e trajada em um vestido limpo de


organza azul, com singelos bordados brancos nas entretelas da saia. — Me ajude você
mesma a recolocar as cintas, Tramise. Não precisamos chamar Charlotte.

~ 125 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Em vez disso, chamamos Catherine, a velha penteadora, pois meu cabelo já era
outra coisa. Esse dia estava especialmente difícil. Catherine só pôde fazer um recatado
coque. Em troca, desdobrou algo de sua arte com o recolhido de minha prima.

—Chegaremos com atraso ao jantar — confirmou Tramise. — Pode ser que a


senhora Dupin se incomode, não sei, mas minha mãe com certeza o fará.

Um metafórico jarro de água fria caiu sobre mim ao escutar esse nome. Madame
Dupin se empenhava em seguir em minha casa, como um inacabável pesadelo do qual
parecia que não ia me liberar nunca. Entramos na pequena sala de jantar branca e
dourada, cintilando na luz tênue dos candelabros, anexa ao grande salão, e meus olhos
escaparam mecanicamente ao meu controle para encontrar-se com os de Marco.
Vestido com um novo traje arroxeado de gola alta estava ainda mais sério e atraente
que de costume. Elevou-se, respeitoso, ante nossa presença, e ambos intercambiamos
um rápido olhar, antes que minha prima e eu tomássemos assento na pequena mesa
oval que usávamos para jantares familiares informais. Madame, por outro lado,
sentou-se estrategicamente no lugar de poder, em frente à minha prima e a mim,
entre minha tia e Marco.
—É muito amável ao nos acompanhar nestes momentos ainda difíceis, senhora
Dupin — disse, entrando em seu próprio jogo. — Mas, nos fale de seus planos: Quando
acredita que poderemos deixar de ser uma moléstia para você e deixá-la voltar para
sua maravilhosa vida cotidiana?

Louise-Marie não reprimiu uma risada.

—Querida, não pense que vou deixa-la sozinha nesta dura situação. Seu pai
doente, seu iminente matrimônio… —se lamentou com um falso gesto reconfortante,
enquanto sorria com maestria e enrugava a testa, simulando ternura em seus traços,
tão convincentemente como a mais famosa atriz. Odiava, além disso, que me cuidasse
em público, mas não se privava de fazê-lo. — Já anunciei ao Jean-Édouard, seu querido
pai, que ficarei lhe ajudando a enfrentar ao conde Gastón da melhor maneira possível
e não irei ao menos até que passe sua noite de bodas.

—Oh, você é um encanto, querida Louise —gritou minha tia, desprezando toda
essa “boa vontade”.— Reconheço que, quando lhe conheci, estava receosa por causa
dos rumores de libertinagem que correm sobre você… mas quem deve fazer caso dos
rumores e julgar precipitadamente, não é, meninas? Senhora Dupin, tenho que
reconhecer que você é um amor. Estamos muito agradecidos.

Engasgou-me o pãozinho branco lubrificado com manteiga.

—Cof, cof… — tossi, quase engasgada, entre os golpes nas costas de minha prima,
a preocupação de minha tia e o meio sorriso de Marco, que não sabia se ria ou
chorava…

Finalmente o pão voltou para seu correto lugar em minha garganta.

~ 126 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Obrigada — consegui dizer quando me recuperei. — Sim, realmente as


aparências são um autêntico perigo, tia. Ninguém sabe as surpresas quenos aguardam
— disse com absoluta dupla intenção, compartilhando com Marco um olhar cúmplice.

Depois do jantar, doeu-me na alma me despedir formalmente do meu professor.


Tínhamos trocado a chave fechada em meu quarto em Chenonceau pela segura
vigilância que a senhora Dupin se preocuparia em levar a cabo aqui. Ainda não sabia se
pensava encarregar-se ela mesma, se pensava utilizar Mireille, com quem sempre
viajava, ou se se atreveria a pagar alguém do meu próprio serviço. Já não me
surpreenderia. Tinha comprovado que esse poder deixa as pessoas como ela tão
inconscientes que seria capaz de qualquer coisa para satisfazer seus caprichos, algo
que até pouco tempo atrás, seria inconcebível para mim pensá-lo sequer. Mas já tinha
visto que assim era e quantos limites impensáveis se podem transpassar quando
alguém acredita que carece deles. As críticas e consequências de atos assim chegariam
logo até sua pessoa, mas escorregariam pela seda de seu vestido até formar uma
mancha de corrupção maquiavélica no chão. Uma mancha escura, gordurenta e
pestilenta que muito tempo ficaria ali, fumegante, à vista do povo, sendo às vezes
impossível de apagar; uma mancha que estranha vez se pegava ao corpo do poderoso,
estranha vez acabava oprimindo seu coração e açulando-o a procurar emenda.
Madame, em troca, levantaria a cabeça, bem alto, recolheria as anáguas e passaria
com seus sapatinhos de laços sobre a mancha, como se não fosse com ela. Embora
todo aquele que tivesse muito boa visão sempre poderia ver um rastro estranho nos
rastros de suas pegadas… só teria que estar atenta.

Ao entrar em meu quarto, tive a estranha sensação de que alguém tinha estado ali.
Alguém que não pertencia ao serviço habitual. E em seguida descobri que não era uma
sensação a não ser uma realidade. O can-can e as anáguas do meu vestido de viagem
jaziam espalhados e arrevesados sobre a cama. Estava segura de havê-los deixado
ordenados e alisados a um lado. Era como se alguém tivesse estado rebuscando entre
eles. Rainha de copas… a carta que Marco me tinha dado furtivamente estava
enrugada no chão. Em seguida olhei o conteúdo dos bolsos. À primeira vista não
parecia faltar nada, mas em um segundo exame mais minucioso… rapidamente me dei
conta. A chave! Não estava a chave dos passadiços. A chave que pensava que poderia
ser minha salvação para ver-me de novo com Marco; de novo… e possivelmente pela
última vez.

Oh… nem sequer o tinha pensado. Pela última vez… soava tão mal que tinha estado
me protegendo de pensá-lo. E queria seguir sem pensar, mas… o conde Gastón
chegaria de um momento a outro em Chambord e a vigilância então seria dupla.

Teria sido capaz Madame Dupin de entrar em meus aposentos e remexer até me
tirar essa chave? Saberia que pertenciam às passagens? Não tinha muito sentido, mas
apenas podia pensar nela ou em Mireille como as culpadas de ter remexido entre
minhas roupas. Afundada nestas perguntas sem resposta, aproximei-me
instintivamente da janela, pensando na rede de túneis que hoje tinha percorrido e
nessas supostas saídas para o fosso e o bosque… e então a vi.

~ 127 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Corria pelo limite dos jardins da asa oeste, com seu reconhecível vestido claro
balançando-se no vento da noite, como um espectro fugindo das luzes noturnas do
castelo. Antes que eu pudesse reagir, a figura se adentrou no meio do bosque. Tive a
intuição de correr atrás dela, mas o medo me deteve.

Ela tinha me tirado essa chave. Agora tudo estava claro. Teria que esperar o dia
seguinte para lhe pedir explicações. Tinha-a reconhecido perfeitamente. O espectro de
vestido nevado que se internava misteriosamente no bosque noturno era minha
amadíssima prima Tramise. Mademoiselle fantôme.

~ 128 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Capítulo 16

Memórias de Caroline-Marie Du Berry:


As bodas.

Mas, no dia seguinte, não tive nem uma só pausa para falar com minha prima
sobre o que fazia no bosque. O que pretendia adentrando-se só na perigosa mata
noturna? Não o poderia saber até mais tarde, pois naquela manhã os acontecimentos
se precipitaram vertiginosamente: quando eu me levantei e baixei às salas do primeiro
piso, Gastón já estava no castelo. Minha tia me agarrou bruscamente pelo braço e me
segurou em uma curva do corredor justo quando meu rosto ficava lívido ao detectar
sua presença.

—Caroline, o conde está aqui…

—Isso acabo de ver. Por que tão logo? Não me deixou nem uma pausa.

—E temo que não vai lhe deixar… traz consigo todos os papéis preparados para
levar a cabo o compromisso. Preparemos-nos para algo, mas, sobretudo, se comporte.

Não me deu sequer tempo de assentir ante as frias palavras da minha tia, a voz do
arrogante conde me golpeou pelas costas, me arrepiando o cabelo e me gelando o
sangue.

—Aqui está minha bela prometida — disse com tom de forçada educação.

Voltei-me devagar para ele, para me arrepiar com horror ante seus pequenos e
malvados olhos e seu falso sorriso, emoldurado por uma escura e frisada barba. Seu
desproporcional corpo, de magras pernas e torso rechonchudo, ia envolto em veludo
preto, pois guardava luto por seu pai. Um par de guardas pessoais, também com barba
— era moda imitar a estética do senhor, — erguiam-se atrás dele, levantando o olhar à
decoração do teto, queixo elevado.

—Não diz nada, querida? — perguntou. — Bem, melhor assim. As damas, quanto
mais discretas melhor. Deus abençoa aos bons homens com esposas mudas.

Minha tia arqueou uma sobrancelha e levantou um instante sua vista do chão para
comprovar que realmente existia tal ser, que provavelmente recordava o seu falecido
marido. Logo devolveu seu olhar ao piso de madeira trançada, amedrontada.

— Madame, —disse, dirigindo-se à minha tia Marie — se for você tão amável, eu
gostaria que seu irmão, o conde, fosse informado o quanto antes do que lhe acabo de

~ 129 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

anunciar… E pode começar os preparativos, se assim você o dispuser. Quanto à minha


jovem prometida, eu gostaria de informá-la eu mesmo dos novos planos.

—É obvio, — disse minha tia, depois de calar um momento— é seu direito. Passem
à biblioteca. Eu irei informar e preparar o conde.

Gastón me ofereceu seu braço, mas comecei a andar para a biblioteca como se não
o tivesse visto.

Alguém já tinha esquentado o cômodo, um grande fogo ardia na escura chaminé,


assim fui direto ao móvel bar, para servir ponche para ambos, tal e qual tinha visto
meu pai fazer tantas vezes com seus convidados. Os guardas de Gastón fecharam a
porta atrás dele e ficaram fora colados a ela, vigiando-a.

—Vão formar parte da nossa vida a partir de agora? —perguntei. — Guardarão


também a porta do nosso quarto ou possivelmente estarão dentro dele para nos vigiar
melhor?

Gastón arrancou uma das taças de ponche da minha mão e soltou uma sonora
gargalhada.

—Adoro que minha futura mulher tenha senso de humor! Levo guarda pessoal
desde o dia em que meu pai apareceu enforcado em seus jardins, querida. A
investigação é tão inútil que não sei se eu mesmo devo temer por minha vida ou foi
um ajuste de contas já saldado. Mas, mesmo assim, apesar deles, vejo que vamos nos
divertir.

—Não acredito.

—Tome o ponche, querida — disse com desprezo, perdendo todo tom formal. —
Tenho notícias para você.

Ofereci-lhe assento com o movimento de uma mão e eu também acomodei minha


saia de listras azuis em uma poltrona estofada em seda brocada.

—Não deveríamos perder o respeito, não deveríamos ser informais ainda…

—Respeito? —repetiu. — Eu não lhe tenho isso e “você” —disse com ironia— não
me têm isso, sejamos sinceros. Se preferir, explico-lhe isso falando com “você”. Mas,
entenda, não é para mim mais que uma moeda de troca. Matrimônio em troca de
vingança. Matrimônio em troca de orgulho ressarcido. E matrimônio em troca de
patrimônio, por que não dizer. Sejamos claros. Acaso esperava amor?

—Patrimônio? —perguntei, evitando a última frase. — Não possui você um


patrimônio muito maior que o da minha família? Nós apenas somos donos deste
castelo e suas terras, você é dono de tantas posses que deveria lhe ser indiferente esse
ponto.

~ 130 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Logo este castelo será meu também. Não importa quanta riqueza se acumule na
vida, um maior patrimônio sempre assenta bem.

—Inclusive à custa de tirá-lo de quem têm menos? Assenta-lhe bem?

—É obvio, não entendo como sequer pergunta. Sua família já não possuirá nada
após este acordo, sei, tudo ficará à minha mercê. É parte da minha satisfação. Inclusive
posso desalojar o seu pai se desejar muito. Não tem por que descansar em minhas
posses, mas tranquilize-se, não sou um monstro… de momento. A menos que você me
dê motivos para ser um.

Mordi meu lábio inferior com raiva, tão fortemente que senti dor. Que não era um
monstro? Apenas pela ideia de desterrar assim a um moribundo já era.

—Por certo, — acrescentou — decidi passar nossa noite de bodas e uma certa
temporada após ela aqui, em Chambord. Isso lhe agrada? É um lugar magnífico para ir
caçar e não há nada que eu mais adore no mundo. Assim o desfrutarei.

—E… para quando têm prevista tão “feliz” união?

Gastón fez girar os restos de ponche no fundo de sua taça e levantou sua vista para
mim. Sorriu.

—Esta mesma tarde.

Levantei-me de um só salto da poltrona, fechando os punhos sobre o vestido.

—Como?!

Ele riu, realmente encantado. Estava desfrutando muitíssimo da situação. Não


parava de rir.

—Surpresa, querida. Meu guarda e um advogado pessoal trouxeram o


imprescindível para a ocasião. Minha família não tem por que assistir devido ao seu
estado de luto, e a você tão apenas faz falta um vestido preto, por respeito ao meu
pai. Algo do qual sua tia já se está encarregando: casará com seu vestido de viúva.

Um horror supremo se apoderou do meu corpo. Um advogado. Um vestido de


viúva…

—Além disso, —prosseguiu— para demonstrar meu amor por Chambord, trouxe
um presente para você, muito significativo nesta terra. Ordenei que o deixem em seus
aposentos. É meu presente de bodas.

~ 131 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Quase não podia respirar. O suor começou a invadir minhas têmporas e meu
pescoço. Uma terrível angústia ameaçava esvaziar o escasso café da manhã que
guardava meu estômago.

—Posso me retirar? —disse em um sussurro quase inaudível. — Me esperam para


minhas lições.

—Oh! Esse é outro tema que devemos tratar. Não necessito para nada uma mulher
com conhecimentos de nenhum tipo, parece-me um gasto desnecessário. A de hoje é
a última lição que receberá.

—Não…

—Ousa negar meus desejos? —perguntou com evidente aborrecimento repentino,


tinha desaparecido todo o sorriso de diversão de seus lábios.— Não estou acostumado
a que me contradigam, nem a discutir ordens diretas. E não vou começar a me
acostumar a isso com você. — Levantou-se da poltrona e veio para mim, aproximando-
se muito. — Hei dito que a de hoje é a última aula, amanhã será minha esposa e minha
esposa não receberá formação.

—Não.

Agarrou fortemente meus pulsos, apertando-os com força.

—Não? Não, o quê? A que diz não? Quem crê que é ou vai ser?

— Está me machucando.

—Acostume-se à dor. Boa sorte fará com que você saiba como suportar a nossa
noite de bodas. Oh, vá! Se isso for esta noite — riu de novo.

Tratei de escapar dele: um engano fatal. Era um homem que se excitava com as
presas indefesas menores que ele. E quanto maior fosse a luta, mais saboreava o
triunfo da posse. Assim adorou que eu me revolvesse como uma lagartixa assustada e
apertou seu enorme corpo contra mim. Senti um asco tal ante seu aroma de suor
rançoso que tossi em seu rosto, algo que o zangou ainda mais. De uma só bofetada me
atirou ao chão de costas. A poltrona ficou a centímetros de golpear minha cabeça.

—Vá, parece que terei que domar o potro antes de comprá-lo —disse agradado.

Aproveitei seu curto instante de indecisão para me levantar e correr, quase


engatinhando, até a porta. Golpeei a porta dupla de carvalho com as palmas de ambas
as mãos, gritando algo que não recordo, desesperada. Era inútil: fora, seus homens
montavam guarda. Imaginava tensos e imóveis, olhando-se de esguelha.

Gastón puxou minha saia e me arrastou pelo chão, subindo ao mesmo tempo a
capa de anáguas que deixou cair sobre meu rosto. Esperneei com todas as minhas

~ 132 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

forças, mas ainda assim Gastón conseguiu abrir uma fenda entre minhas pernas,
embainhadas em meias brancas. Tentava romper minha roupa interior, enquanto eu
gritava sem cessar. Sentir perto, do outro lado da porta, a esses guardas imóveis e
saber que meu pai estava na cama, um piso mais acima, alheio a tudo, causou em mim
uma maior e incontrolável sensação de impotência.

Quando minhas mãos agarraram minhas pantalonas para evitar que fossem
baixadas, Gastón aproveitou para colocar o tecido do forro da minha saia em minha
boca. Sua intenção de me calar quase me afoga. Um impulso levou então minhas mãos
à boca e fui despojada de um puxão da minha roupa interior, que cedeu.

Então senti que algo se rompia em meu interior. Meus olhos se tornaram brancos e
uma terrível queimação, um ardor insuportável me partiu em duas.

—Já é minha. Minha! —Pareceu-me ouvir, enquanto esgotada, continuava em


minha luta. — Desejo você desde a noite do baile, antes que tudo ocorresse. Quando
lhe vi passear e dançar com outros homens… Oh! Mas já está: ganhei! É minha puta.

Pareceu-me escutar um som de armas no exterior da biblioteca, mas nada podia


me confirmar o que era exatamente que estava ouvindo. De repente, tudo o que vi foi
uma bota que, à tremenda velocidade, apartou o rosto de Gastón de cima do meu e
seu corpo saiu para trás. Depois de um segundo de dúvida, levantei-me, baixando
todas as minhas saias azuis e minha anágua branca, e me retirei até pregar minhas
costas contra a madeira que recobria a parede. Só então vi quem era meu salvador.
Não podia ser de outra forma: Marco dava um tremendo murro ao ridículo Gastón,
que ao seu lado não parecia mais que um boneco de pano com as calças baixadas.
Imediatamente, os dois guardas, feridos gravemente, retiravam Marco de cima do
conde. E, depois deles, entrava a senhora Dupin, que depois de contemplar o
panorama, fechou a porta atrás de si e ajudou Gastón a levantar-se.

—Descerebrado ingrato! O que pretendia? —gritou-lhe madame ao professor.

—Esse animal estava forçando a condessa.

—Chist! —falou ela, posando um dedo sobre seus lábios. — Baixa a voz. Esse
“animal”, como você o chama, é virtualmente seu marido. Sorte que todos estão nos
pisos superiores e ninguém além de mim ouviu o escândalo. Se estimas um pouco a
sua Caroline, mais lhe vale que ninguém saiba de sua vergonha ou o descrédito será
insuperável.

—Mas a estava forçando! Pensam que vou ficar de braços cruzados?!

— Dentro de muito pouco estarão casados e ela deve acostumar-se a esse tipo de
dano; não lhe faz nenhum favor com sua intervenção —respondeu madame Dupin a
Marco. — A dor é algo inerente à nossa condição de mulheres. Se não puder suportar
vê-lo, sugiro-lhe que parta do castelo.

~ 133 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Não! —gritei, de forma incauta. Gastón me olhou de forma reveladora.

—Não? Por que tanto interesse em que o barão não parta, condessinha? Você sabe
algo disto, senhora Dupin?

—Bem, assim poderia dizer-se —respondeu, arrastando as palavras e, claramente,


desfrutando.

—Por isso tanto interesse nas aulas… rameira!

Gastón se dirigiu para mim com a palma da mão em alto, Marco se revolveu, retido
pelos guardas, e felizmente, Louise-Marie se interpôs.

—Senhores, comportem-se. Ambos! Baixemos a voz e nos comportemos todos.


Tiremos proveito desta situação: Caroline, isto não lhe demonstra que é melhor para
todos ter Marco fora de suas terras?

Olhei-a incrédula, com os olhos muito abertos.

—É obvio que não. O melhor para todos seria ter você e o Gastón fora das nossas
vidas, bem longe de qualquer ser humano… ou ser vivo.

Ela riu com tranquila frieza.

—Pode ser que pense assim, querida, mas essa opção não existe. Marco, você é
mais razoável —disse voltando-se para ele. — Desapareça da vida desta jovem se de
verdade gosta dela. É o melhor para ela. Seu matrimônio é iminente, os acordos estão
preparados.

—Sugere que eu parta do castelo por defender e amar a sua proprietária? Você
não pode dar-me essa ordem — disse Marco, tentando escapar, com sua formosa juba
castanha alvoroçada e os olhos injetados de dor.

—Mas eu sim… — disse, tentando ser consistente com minha responsabilidade e…


com sua própria segurança.

Quase pude ouvir como a Marco lhe rompia o coração. Mas então entendi que, se
seguisse ali perto de mim, qualquer um dos dois, ou os dois, poderíamos acabar
mortos. Agora o via. A “sugestão” de madame Dupin era uma clara ameaça velada. Ela
nunca sugeria nada: ela expressava desejos que não admitiam uma negativa.

—Eu também acredito que é o melhor… — falei ante meus incrédulos ouvintes. —
Ao menos por um tempo, deveria voltar para a Espanha, com sua família, Marco.

Madame Dupin não evitou seu sorriso. Marco relaxou seu corpo e os guardas, a um
movimento de cabeça de Gastón, liberaram-no. Recompôs-se e me olhou com uns
olhos injetados em lágrimas de impotência; uma adaga no meu coração não significaria

~ 134 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

mais sofrimento do que contemplá-lo. Depois de uma breve e estudada reverência


para mim, retirou-se ao seu quarto para começar a preparar sua bagagem.

A senhora Dupin se aproximou, com a atitude encantada e sinistra de uma falsa


melhor amiga. Arrumou-me com mãos direitas o cabelo, as saias e o decote do vestido.
Sua pele gelada acariciando casualmente a minha ao me arrumar me pareceu um
autêntico beijo de Judas; sentia cada calafrio como uma chicotada. Voltou à minha
cabeça o desejo de que aquelas mãos fossem as de minha mãe. O que teria acontecido
se ela vivesse? Teria ocorrido algo de tudo aquilo? Permitiria, para sua própria filha,
umas bodas sem amor? Provavelmente sim. Afinal, ela mesma se casou com um
conde. Estava segura de que meu pai a amava muitíssimo, muitas eram as provas nas
palavras, nos suspiros e na tristeza nos olhos do meu pai… mas nunca saberia se o
amor profundo do conde alguma vez foi correspondido. Possivelmente, uns avós
maternos oportunistas — aos que nunca conheci— obrigaram sua filha a casar-se e…
só possivelmente, ela agora também me obrigasse. Não podia sabê-lo. Não acreditava
assim, no fundo.

Quase sem forças, subi as brancas escadas espirais de Da Vinci até meu quarto,
apoiada no braço de Louise-Marie. Esperava-me ali outra surpresa; o que, segundo
Gastón, era um digno presente de bodas. Aquilo foi a última coisa que pude resistir.
Nunca tinha desmaiado em minha vida, considerava-me suficientemente forte para
resistir, inclusive apesar dos espartilhos e das largas batidas pelo bosque sobre um
cavalo, mas tudo acabou por obscurecer-se e nublar-se quando contemplei o que me
aguardava: esparramado sobre o tapete árabe e o piso trançado do meu pequeno
dormitório havia um enorme urso morto. Era o troféu de caça do Gastón, que
cumprindo uma velha tradição, era-me devotado como presente. Um pobre e belo
animal de dimensões desmesuradas me olhava com olhos mortos e sofridos e boca
torcida em um grito de socorro. Restos profusos de sangue empapavam o tapete e
deslizavam-se como lenta lava de vulcão pelo chão, em minha direção. Só lembro que
senti um afogamento acentuado que veio dos meus pulmões e que uma nuvem escura
apareceu, irremediavelmente, ante meus olhos antes de cair no que me pareceu um
sonho profundo.

Uma baforada de ar e estava de novo em meu pequeno quarto e… neste mundo. O


primeiro que contemplei foi minha cama de gôndola, com seus dosséis rosáceos sobre
mim. Pareceu-me estranha, como se não fosse minha, como se o meu leito sempre
tivesse sido a terra. Fui consciente do desejo profundo de descansar na terra mais fria
e úmida, consagrada ou não, eu tinha tanta, minha única condição e desejo é que
estivesse em meu bosque, em algum lugar dos bosques de Chambord.

Já não levava meu vestido azul nem minhas anáguas rasgadas; vários pares de
mãos estavam ajustando ao meu corpo outro vestido. Tinham aproveitado minha
inconsciência para me pôr isso A criada Charlotte, minha tia Marie e madame Dupin,
todas vestidas com trajes escuros e penteadas com recatados coques, estavam me
abotoando a frente e ordenando os tecidos de um vestido preto. Olhei minha saia
simplória e reconheci em seguida o vestido oficial de luto da minha tia. Caía-me por
cima como um lençol grande. Levantaram-me. Levaram-me para a penteadeira. Vi que

~ 135 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Catherine, a penteadora, também estava no quarto; com ritual sério aguardava seu
turno para me colocar o escuro véu. Conseguiram me ajustar o espartilho na parte do
seio e atá-lo com um laço de cetim preto na cintura.

Minha prima também estava no quarto, seu branco perfil ficara recortado contra o
cristal da janela pelas últimas luzes da tarde. Apenas nos olhamos um momento e ela
devolveu a vista para a paisagem. O que escondia para ela aquele bosque onde ontem
mesmo a vi adentrar-se? Esperava com ânsia o momento de ficarmos a sós para poder
lhe perguntar. Mas… ia-me ser difícil fazê-lo em breve. Já que eu seria uma mulher
recém-casada…

As bodas aconteceram na solidão da capela do castelo, na mais estrita intimidade e


sem motivos de alegria. Avancei cabisbaixa e triste para o altar tenuemente iluminado
pela luz que filtravam as janelas de canto. Avançava sozinha, pois o estado do meu pai
só lhe tinha permitido assistir à cerimônia de uma cadeira no observatório do piso
superior, transportado até ali por vários criados. A escassa família de Gastón não tinha
podido assistir devido à precipitação e seu próprio luto. Na capela só me
acompanhavam minha tia, minha prima e madame Dupin. Meu pai, pelo complexo que
seria lhe fazer baixar aquelas escadas, reunia-se no observatório, um piso mais acima,
junto a Marco e aos criados de maior confiança: Charlotte, Catherine, Corinne —a
cozinheira chefe— e o mordomo Philippe. Sentia seus olhares de lástima, junto ao
olhar profundamente ferido de Marco, posar-se sobre minha nuca enquanto eu
avançava pelo curto e sombrio corredor para o altar. Resisti à forte tentação de me
voltar para eles. Possivelmente fosse uma das últimas olhadas que recebesse do meu
barão.

Cheguei junto ao meu solitário prometido. Nem sequer o olhei. Não havia nada
que expressar, somente levar a cabo o que era meu dever. Ajoelhei-me, absorta mas
não ausente, no fofo veludo vermelho do genuflexório, tratando de não pisar nas saias
pretas. O pároco da ermida do povoado estava acompanhado pelo advogado de
Gastón, ambos carentes de toda expressão. Dois homens que cumpriam com seu
trabalho, alheios a toda a dor da minha família, provavelmente ignorantes dela.

Pareceu-me que o pároco Jean-Pierre abreviou a cerimônia, muito sóbria e cantada


em latim, onde trocou as perguntas aos cônjuges por ordens de intercâmbio de
alianças e deu ordem final de que partíssemos “em paz”.

~ 136 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Capítulo 17

Diário de Marco De Gaula:


A despedida.

Não pensava ir sem falar a sós com ela, não pensava fazê-lo, embora me
amordaçassem. Eu iria, se esse era seu desejo, embora soubesse que no fundo isso era
impossível. Destroçava-me o coração.

Depois da triste cerimônia e o seguido jantar, retirei-me ao meu pequeno quarto,


consciente de que era a última noite que ia dormir nele.

Ainda podia ver a imagem do Gastón arrastando uma bela, embora séria e
enlutada Caroline, pelo corredor da capela, como se levasse em procissão uma virgem
de mantilha manchada de preto. Ainda podia ver como seu olhar adivinhava o que
expressava o meu: um desejo louco de lhe arrebatar a noiva das mãos e a levar comigo
para longe dali. Ele o viu claramente ao cruzar comigo durante as felicitações, depois
de seu percurso nupcial, possivelmente por isso não pôde esperar sequer a que
acabasse o jantar para me ordenar que não demorasse nem um só dia em recolher
minhas coisas e voltar para a Espanha. Isso não me surpreendeu, o doloroso foi ver
como meu amigo, o conde Édouard, baixava a cabeça, de acordo, como se nada
absolutamente pudesse fazer. Estava rompendo seus próprios planos de deixar à sua
filha o legado do saber e o trabalho dos Enciclopedistas. Derrotava-me admitir que sua
complicada situação pessoal pesasse mais. Estava devastado.

Não pensava entrar em discussões. Nem sequer esperaria ao dia para partir. Logo
que despontasse a alvorada… não queria ver o sofrimento de Caroline… ou a ausência
dele.

Deixei minha bagagem preparada e tratei inutilmente de dormir.

O tempo passava lento, quando em meio ao meu cochilo, acreditei ter um sonho.
Pareceu-me estar sonhando que a porta do meu quarto se abria e aparecia Caroline
com uma fina bata de seda e uma branca camisola.

Demorei uns segundos compridos em me certificar de que não era um sonho: era
real. Ela estava ali. Distinta, de repente adulta, como sempre formosa.
Antes que eu pudesse reagir e me levantar, ela veio à cama e me abraçou, colando
seu corpo ao meu, como tantas vezes tinha desejado, confesso, ali mesmo. Chorou uns
minutos, abraçada a mim. Meu próprio nó na garganta e minha emoção fizeram que
demorasse um tanto em perguntar:

~ 137 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—O que faz aqui, meu amor? Gastón pode…!

Ela me sossegou com um suave sussurro e um dedo sobre meus lábios.

—Gastón dorme como uma ratazana — disse com um sorriso triste.

— Não aconteceu nada — acrescentou, ampliando mais o sorriso.

Durante um momento não entendi o que queria me dizer, possivelmente devido à


minha perplexidade e minha sonolência.

—Como?

— Ele não me tocou! Corinne me deu o melhor presente de bodas: uma


beberagem no jantar do Gastón para deixá-lo profundamente adormecido. Ele mal
conseguiu chegar até a cama. Quando cheguei ao dormitório real do rei Francisco,
lavada, penteada e com a camisola posta, já tinha caído como um peso morto.

Não sabia muito bem o que lhe dizer. Suspirei profundamente e sua alegria em
seguida me contagiou. Embora não soube prever o que viria depois.

—Posso ser enfim, tua…

Invadiu-me o alívio e o desejo, embora também um pouco de medo. Mas não pude
fazer nada mais que sorrir. Ela me abraçou mais estreitamente e me beijou. Seu beijo
era úmido e decidido. Deixava transparecer seu desejo, um desejo profundo contra o
qual não podia nem queria lutar. Um desejo ávido.

Meu corpo reagiu rapidamente a seu favor. Senti seu corpo junto ao meu quando
entrou em minha cama, sob meus lençóis, deixando que ao fazê-lo subisse sua
camisola, ficando por cima dos joelhos. Senti o atrito de suas pernas completamente
nuas. Rezei para que ninguém nos interrompesse desta vez. Matá-lo-ia sem mais.
Comecei a acariciá-la com precipitação, com ardente urgência. O fino e suave tecido
deixava intuir seu corpo de curvas terminantes. Agradeci a quem inventou as
camisolas de noiva e amaldiçoei a quem impôs os grossas tecidos habituais e as
múltiplas saias, anáguas e meias. Inseri a mão e me atrevi a subir para seu traseiro.
Não sabia se ia aguentar muito tempo seu tato. Sua suave pele me provocava calafrios
e sua mão, por sua vez, percorrendo meu cabelo e minhas costas com decisão não me
ajudava. De repente, sem muita demora, ela pressionou seu ventre contra meu
membro, que pensei que se romperia pelo nível de tensão. Ela se recolocou melhor;
em lugar de seu ventre, pressionou agora sua úmida intimidade contra mim.

Fiquei imóvel e ela pareceu achar estranho. Voltei a procurar seus lábios, tentando
retirar sua mão do lugar de mim onde se dirigia, com dissimulação, até que me
encontrei acariciando seus seios. Tratei de pensar em outra coisa distinta para poder
seguir adiante. Mas ela não demorou muito em montar-se escarranchada sobre mim.

~ 138 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Beijou todo meu corpo, desde minha noz até meu membro e fechei fortemente os
olhos quando o introduziu em sua boca. Senti quebras de onda de forte calor. Sua
língua de veludo me percorria sem cuidado nem controle. Tinha que detê-la se
quisesse chegar mais longe, embora odiasse pôr fim naquele voluptuoso prazer.
Devolvi-lhe o prazer em troca, tombando-a para trás, de barriga para cima e me
perdendo em sua intimidade com toda minha gana. Em poucos minutos seus suaves
gemidos se converteram em algo similar a gemidos de dor, embora bem soubesse eu
que não era isso o que ela estava sentindo. Agarrou fortemente meu cabelo
profundamente e se curvou com um último gemido sufocado por uma almofada. Algo
mais depravado e satisfeito pelo que lhe acabava de provocar, tombei-me sobre ela e a
beijei. Minha mão baixou de novo ao seu traseiro e levantei uma de suas pernas.
Acreditei que o mundo viria abaixo como uma enorme cascata quando me introduzi
nela. Ao princípio parecia impossível encaixar as peças e inclusive temi ante seus
gemidos por sua própria segurança. Senti-me como um poderoso guerreiro que
pretendia atravessar a donzela de um só golpe. E algo similar pretendia fazer. E, depois
de vários intentos delicados, decidi não ter excessivo cuidado, se fosse necessário,
devia-a atravessar. Tampei sua boca, empurrei e entrei em seu interior. Agora me
movia como uma mão dentro de uma luva de cetim.

Era como um beijo profundo. Igualmente úmido e macio, mas muito mais ardente.
O calor perolava nossos corpos por completo com gotas de suor. Todos os meus
músculos se esticaram e fui consciente da fortaleza e imensidão do meu próprio
membro, das minhas grandes mãos, do meu próprio peito, iluminado pela luz da lua
cheia que entrava em torrentes pela janela e me vi mesmo como um gigante ante ela.
Ela era minha vítima indefesa e ao mesmo tempo minha menina, minha grande paixão.
Todas as partes do meu corpo a faziam parecer pequena e vulnerável, eram como os
tentáculos de um monstro que a possuía. Só que era ela quem pedia com os olhos que
me inserisse apaixonadamente em sua intimidade.

Tínhamos compartilhado tantas coisas. Nunca pensei que naquele momento me


poria emocional, mas assim era. Era ela muito mais que um corpo e um capricho, era
uma alma que eu amava. Tinha visto seus temores familiares mais íntimos, seus medos
e suas fantasias de um mundo mais livre e melhor. Tínhamos falado de filosofia, de
natureza, de literatura e da vida… quase todos os dias. Não havia nada no mundo
como nos escutar mutuamente… ou sim. Aquilo era o auge da nossa união.

— Eu amo você — sussurrei, me arrependendo um segundo depois de haver dito


isso a uma mulher casada.

— Eu te desejo — disse ela, em vingativa resposta, equilibrando seu corpo sobre o


meu.

Nesta nova postura via o corpo dela com claridade. Quando observei e rocei seus
seios, senti-me quase explodir.

—Cuidado, cuidado. Não se mova. Pode ser perigoso.

~ 139 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

— Apenas uma vez. Necessito-o. Não poderei dar beberagens ao Gastón todas as
noites.

—Amanhã já não haverá mais noites para nós. Já não estarei aqui.

Ela se deteve em seco, se esticou tão de repente que me machucou um pouco.

—Não me faça chorar agora. É por sua própria segurança. Por enquanto você irá
embora, mas não amanhã. Ficará como convidado embora seja um par de dias mais e
resolveremos as aulas para que fique satisfeito… embora pudéssemos ter aulas
durante alguns de nossos passeios. Mais adiante… devemos engenhar para voltar a nos
encontrar.

Eu tinha muito medo de como isso ia ocorrer no futuro.

—Aproveitemos o momento — disse, trágico.

Ela suspirou e me abraçou com uma tensão nervosa que me fez sentir o homem
mais triste do mundo e, ao tempo, o mais próximo à felicidade.

Nós continuamos uns momentos mais, até que observei seu êxtase e, rapidamente
saí de seu interior por medo de prejudicá-la se me derramasse dentro dela. E,
efetivamente, meu corpo enfim descarregou-se sobre seu ventre, quase de forma
dolorosa, me deixando derrotado e inútil.

Caroline se aconchegou ao meu lado com um amplo e satisfeito sorriso. Abraçou-


se ao meu peito e o acariciou brandamente com a gema de seus dedos.
—Isto foi maravilhoso. Você é maravilhoso. E eu… não sei como vou deixar que vá
embora.

Beijei-a no alto da cabeça, como a uma menina, e a abracei com todas as minhas
forças, com uma força que pretendia que ninguém me arrebatasse isso.

—Não deixe que eu adormeça; devo voltar para a cama nupcial antes que a manhã
desperte Gastón.

—Deveria voltar agora. Se não ambos vamos dormir...

—Somente um momento. Me deixe que lhe abrace. Tenho que pensar em como
arrumar outro encontro ao menos uma noite mais… fica uma noite mais…

Por nada do mundo queria me mover dali. Estaria junto a ela uma noite mais e
todas as noites do mundo… se fosse por mim. Mas tinha que admitir a realidade. Sem
aulas, meu papel ali não tinha justificativa nem sentido. Podia ficar um tempo mais
como convidado, mas… seguia correndo perigo com o Gastón alerta e receoso.
Caroline tinha estado, em seguida, consciente disso. O que eu poderia fazer? Tirá-la
naquela mesma noite dali e fazer que fugisse comigo ao meu arruinado imóvel de

~ 140 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Madrid, longe de tudo o que ela amava em Chambord? Era impossível e, além disso,
não era uma alternativa muito feliz.

Assim, tudo o que fiz foi o que devia fazer: acompanha-la à porta das passagens um
par de horas depois, lhe prometer que no dia seguinte daríamos um passeio e beijar
brandamente seu cabelo… em despedida.

~ 141 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Capítulo 18

Memórias de Caroline-Marie, de Chambord:


A dama do bosque.

Na manhã que despertei junto a um Gastón que roncava como uma mula no
matadouro, sob os efeitos de algum licor, naquela cama suntuosa em que uma vez
dormiu um rei, iludida totalmente pelos eflúvios e as sensações da noite anterior,
nunca pensei que seria a mesma manhã em que saberia que já não veria mais Marco.

Ele tinha se convertido rapidamente em parte, não só da minha alma, mas sim da
alma de Chambord; tinha-lhe insuflado vida. O que eu tinha feito me casando com o
Gastón? Até que ponto tinha vendido minha alma ao diabo?

Tinha pecado por ser ingênua e egoísta. Tinha acreditado salvar ao meu pai ao
celebrar minhas bodas. Tinha-me acreditado uma “dama valente” mentalizando o que
sempre tinham me contado sobre os matrimônios acordados, os matrimônios sem
amor: receber ao marido no leito uma só vez e depois continuar a vida, permitindo
suas infidelidades e abusos; enquanto eu, por minha parte, por regra geral, procuraria
um amante.

Os amantes eram os verdadeiros amores das damas. Tinha sonhado que Marco
fosse o meu. E agora… já não estava aqui. Nem sequer tinha esperado um dia. Partiu-
se ao despontar o amanhecer, sem me permitir uma despedida. Inteirar-me pelo rosto
de consternação de Philippe tinha dito tudo. O rosto constrangido do meu fiel criado
levando a mensagem… para todos, adeus.

Não estava segura de até que ponto o merecia. Para ele tinha sido uma autêntica
tortura presenciar minhas bodas. Também saber que nos teria que abandonar. Nada
lhe podia reprovar. E, entretanto…

Mas… sim que tinha algo que reprovar a alguém. Gastón não tinha sido o culpado
final da partida de Marco, apenas Louise-Marie, que o propôs. Mas isto não tinha
acontecido sem a aprovação do… meu pai, tal e como me tinha comunicado Philippe.

Eu não queria reconhecer isso. Não tinha permitido que chegasse esse momento
em minha mente; tinha-o sufocado. Mas, se acatar este tipo de decisões injustas,
originadas pelo capricho de alguém atroz, era o que me esperava o resto da minha
vida, algo devia fazer. Ao menos, algo devia dizer.

Precisava me fazer ouvir.

~ 142 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Realmente, nunca pensei que meu pai chegasse a tal extremo de submissão. Ainda
mais dado à amizade que o unia a Marco. Não era coerente. Como o tinha deixado ir?
Por que não tinha procurado ele, que era, afinal, o dono verdadeiro de Chambord,
outra solução? A raiva e o desejo de procurar culpados me consumiam.

Eu me cobri com uma bata de cetim branco, parte do enxoval de noiva que minha
tia me trouxe, e saí dos aposentos nupciais sem sequer pentear-me.

Os criados se apartavam ao meu passo e abriam os olhos até tamanhos ridículos.

Não toquei a porta do aposento do último verdadeiro senhor de Chambord; entrei


sem mais. Acertei ao supor que estava acordado: o remorso tira o sono.

—Pai, já não lhe reconheço… como deixou que realmente Marco partisse? E mais,
como pôde se deixar dirigir pelos desejos de Louise-Marie e Gastón até o ponto de
permitir que o desalojassem? Partiu! Marco partiu de verdade!

—Sinto muito por meu amigo Marco, mas agora é Gastón quem tem total poder
sobre nossos bens e territórios. Em realidade… faz tempo que estamos em suas mãos.

—Mas… isso não pode ser. Isso não pode ser assim!…o castelo é nosso. Você…
você… você é o seu senhor — disse, duvidando realmente da minha afirmação.

—É melhor para todos não lutar contra a vontade de seu marido, por sua
segurança.

Minhas vísceras deram um salto, revolvendo-se de cima abaixo ao escutar essa


palavra.

—Melhor? De verdade é melhor? Para quem? —perguntava de maneira


automática, enquanto crescia meu aborrecimento e um sentimento horrível florescia
dentro de mim.

Eu mesma tinha contribuído para que os desejos de Gastón se fizessem realidade


por medo, mas agora que via esta mesma ação em outros… parecia-me tão covarde…
Meu pai desviou o olhar e suspirou de maneira que temi que acabasse agravando sua
enfermidade.
—Me responda, pai; para quem é melhor realmente? Para você, por não ter lutas
dialéticas nem desgostos? E quanto a todos os outros? E quanto a mim, sua filha!? Não
tenho medo de um bofetão, tenho medo de perder o verdadeiro amor! Oh… pai.
Nunca pensei que teria que dizer isto em toda minha vida, mas… é um covarde.

Arrependi-me no segundo seguinte do que acabava de dizer. Sem dúvida estava


cega por minha própria dor. Os olhos de meu pai se fecharam um momento. Temi por
sua saúde, mas em seguida se voltaram a abrir com algo novo e desconhecido
aparecendo neles, algo que arrepiou de temor toda minha pele.

~ 143 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—E você, minha filha? Não é você acaso outra covarde? Permitiu que se levasse a
cabo essas bodas com muita integridade, até este momento. Estamos na mesma
posição: ambos temos feito o que considerávamos correto.

Meu coração ficou reduzido a pó. Se o tinha consentido tinha sido… por ele. Por ele
e para que o nome da minha família seguisse imaculado. E, agora o quê? Para isso
tinha servido. Assim me jogava isso na cara?

Possivelmente tinha toda a razão. Possivelmente essas bodas não tinham sido mais
que um ato covarde de minha parte. Tinha chegado a pensar que era um sacrifício, que
era desinteressado da minha parte. Tinha-me estado convencendo e disfarçando
minha própria covardia?

Não pude chegar a expressar minhas próprias palavras em voz alta. Não pude dizer
ao velho prostrado na ostentosa cama de dossel o que sentia.

Retirei-me, flutuando em um estado de choque.

Philippe me esperava, anormalmente cabisbaixo, na porta de meu quarto. Nunca o


tinha visto assim. Senti os anos correr sobre todos nós ao observá-lo. Tanto tinha
significado Marco na vida de todos? E tanto mal significava também a chegada de
Gastón? Tudo ia mal…

—Philippe… eu gostaria de ficar todo o dia em meu aposento. Não quero sair, nem
receber visitas. Poderia se encarregar para que me tragam o almoço?

—Isso parece senhorita… perdão, “senhora” —corrigiu para meu assombro. Essa
mudança de tratamento era algo para o qual não tinha me preparado. — Mas vai ser
difícil conseguir que sua tia, a senhorita Tramise ou inclusive madame Dupin não
irrompam para lhe perguntar por sua noite de bodas, como é costume.

—Por favor… especialmente não quero ver madame Dupin.


Philippe deixou transparecer em seu rosto a surpresa. Um pouco também novo
nele: a expressão de qualquer emoção. Realmente devia sentir-se débil.

Então recordei algo:


—E meu marido?
—O senhor segue dormindo e tampouco quer ser incomodado. Mas me
comunicaram seu desejo de instalar-se de forma permanente nas habitações do rei
Francisco I. Ordenou levar todo seu equipamento para lá.

Naquele momento comecei a temer perder meu quarto, o discreto aposento rosa
da minha infância e juventude. Confortáveis e pouco suntuosas, aquelas paredes
estofadas tinham me visto crescer e não tinha pensado sequer na ideia de uma
mudança.

~ 144 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

— Disse algo sobre mim, Philippe?

—Nada, senhora. Não se expressou com claridade devido ao seu estado,


virtualmente submerso no sonho, mas parece que a intenção é ocupá-las sozinho.

Suspirei de alívio.

—Se for assim, me alegro Philippe. Eu não gostaria de trocar de quarto, e muito
menos compartilhar seu leito.

Philippe tomou ar para falar e tratou de começar a fazê-lo, mas se deteve.


Claramente tinha mordido a língua ante alguma pergunta que finalmente tinha
considerado indiscreta. Senti por ele. Essa manhã eu estava disposta a responder algo.
Parecia que o estado de “casada” tinha a faculdade de me soltar a língua. E
possivelmente isso não fosse mau. Tinham-me educado para pensar que sim, mas cada
vez era mais da opinião de que as coisas claras podiam economizar uns quantos mal-
entendidos.

Philippe recuperou sua firmeza e se despediu com um aceno de cabeça.

—Darei a ordem cortante de que ninguém a incomode.

—Obrigada, Philippe — disse quase para mim mesma.

Fiquei um momento no batente da porta observando como partia. Era um homem


admirável, sem dúvida, cheio de mais honra que muitos nobres. Não sabia nada da
vida pessoal de Philippe, nem de Charlotte, a quem tanto tinha julgado, nem de tantos
outros criados e empregados aos que levava toda a vida vendo. E, ali, apoiada no
batente de carvalho esculpido de minha pequena porta, pela primeira vez pensava
nisso. Sempre tinha me considerado caridosa, alguém que pensava nos outros, mas em
realidade tinha sido preciso casar e sofrer um abandono para começar a fazê-lo de
verdade. E mais, para começar a vê-los como pessoas.

Dormi todo o dia, até uma hora incerta da tarde.

Retirei um tanto as cortinas que cobriam a cama e observei que meu almoço jazia
algo seco, sobre a mesinha. Pão, foi e uvas de aspecto incerto. Parecia só sobra da
entrada do jantar do dia anterior. Nunca um almoço em Chambord tinha sido tão sem
alma. Eu nem sequer tinha fome. Algo ocorria ao meu estômago. Sentia-o fechado.

Apalpei-me e me dei conta que tinha caído adormecida sobre a cama vestida com a
bata de cetim. Doía-me profundamente sob o ventre, aquele lugar que na noite
anterior tinha ocupado com fogosidade e ternura o rude membro de Marco. Aquela

~ 145 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

dor tão duradoura e penetrante não podia ser normal no amor. Assemelhava-se à dor
aguda do sangramento mensal. Tive que aguardar sentada sobre a cama antes de
poder me pôr em pé. Levei-me uma mão ao cabelo. Ao tocar meu cabelo, também me
assustei: era uma meada impenetrável.

Levantei-me com parcimônia e agarrei a escova de ouro e madrepérola da


penteadeira. Passeei por todo meu quarto enquanto tratava de escovar o cabelo;
solto, alcançava virtualmente minha cintura. Observei meus velhos móveis herdados.
Tudo parecia digno… de uma menina. Uma menina que eu já não era.

Pela primeira vez, senti-me estranha em meu dormitório.

Aproximei-me da janela. As luzes do entardecer pintavam de violeta e rosado o céu


sobre o bosque infinito de Chambord. As copas das árvores simulavam os pincéis,
voltados para o estranho céu.

Então, algo se moveu nos jardins, perto do castelo, no limite com o bosque. Ali
estava outra vez! Era de novo Tramise. Escapava de novo ao bosque. Invadiu-me a
preocupação e a curiosidade: O que ela trazia entre as mãos? Observei durante uns
segundos, tensamente junto ao vidro, que caminho, que direção seguia. Não pude
deixar de me preocupar ao vê-la adentrar-se uma vez mais na mata. Nada bom
augurava esse bosque; precisava correr atrás dela. Mas também necessitava não ser
vista, nem tanto por mim, mas sim por ela: fosse o que fosse, parecia que o fazia com
segredo e discrição.
Soltei a escova e, rapidamente, sem me preocupar com nada mais, procurei uma
forquilha e forcei a fechadura da porta que dava às passagens. Abri a porta secreta,
imperfeitamente oculta pela tapeçaria de uma das paredes, e voltei a me enfiar
naquele mundo de pó e sombras. Era difícil não se machucar nem torcer um tornozelo.
Consciente de que isso só seria um grande impedimento, tratei de ter cuidado.
Transpassei tábuas e desníveis, corredores e escadas, excrementos de roedores e teias
de aranhas, sombras e luzes infiltradas, em uma carreira contra a escuridão que se
abatia sobre o castelo e contra a segurança de minha prima, que sentia escapar de
entre meus dedos.

Quando por fim cheguei à porta de baixo, do mezanino, a que conectava com o
jardim, encontrei um tipo de fechadura distinta. Era uma porta de ferro fechada ao
teto. Ou não. Pela orientação, era a porta que acabava de usar minha prima não fazia
muito tempo. Deixei os nervos de lado e passeia tentá-lo com a forquilha. Então,
quando ia correr às cozinhas, vi com surpresa que a fechadura já estava aberta.
Efetivamente, minha prima acabara de sair. Apenas tinha que empurrar o portão no
outro sentido. A porta chiou e cedeu pesadamente. Era do mais lógico: Tramise tinha
deixado essa porta aberta para não ter problemas ao retornar. Até há pouco tempo
essa seria apenas uma porta oculta e imprestável que ninguém usava… ou sim.

Já duvidava de tudo.

~ 146 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Apareci entre as sebes do passeio do fosso, fechei meus olhos e me enrosquei com
meu cabelo. Estava em uma espécie de canal de irrigação, quase igual ao nível da água
que rodeava o castelo. Fechei a porta e tratei de me mover entre as sebes, que
arranhavam e enganchavam minha bata. Essa saída não tinha sido feita para
emergências de senhoritas que tivessem que fugir do castelo embelezadas com
grandes vestidos.

Girei-me um momento para as janelas superiores. Inconscientemente, fixei-me em


ver se havia alguém observando, como eu o tinha feito antes. Não detectei nenhum
movimento nos cristais, nem nos arredores, assim corri ao bosque. Se alguém tivesse
visto me teria tomado, com pavor, por um espectro: envolta no cetim da bata branca,
com o cabelo preto solto e correndo de uma forma que nunca o faria uma dama.

Uma vez sobre a grama e a terra do bosque notei o quanto eram inúteis e caseiras
minhas sapatilhas. Senti falta de minhas botas de couro de montar, mas o certo era
também que estas sapatilhas me davam as mesmas vantagens que a uma ninfa: passo
silencioso e inadvertido e ligeireza. E assim, discreta e veloz segui correndo pelo que
me pareceu um eterno caminho. Tratando de escutar qualquer pista que me
aproximasse de Tramise, sem mudar de direção, qualquer coisa que não fosse um
grito… contornei árvores enormes de folhas caídas, abetos que abriam seus ramos ao
céu, saltei sebes selvagens, restos de cascas de castanhas velhas, apartei espinheiros
que me arranharam as mãos e os braços… até que, por fim, quando já retrocedia a
esperança de encontrá-la, uma clareira iluminada pela incipiente lua se abriu ante
mim. Paralisei-me dos pés à cabeça, contendo o fôlego ante o que ali vi. Tanta era a
surpresa de encontrá-la como também de que maneira:

Uma cena de arte gótica em movimento estava levando-se a cabo ante meus olhos.
Uma desatada, etérea e irreconhecível Tramise montava escarranchada sobre uma
besta, uma besta de aspecto humano, ou possivelmente um humano com aspecto de
besta. Não se distinguia na escuridão mais que a um homúnculo coberto de grosso
pelo animal do rosto aos pés, pelo de lobo, de cão, de besta. Um ser assustador de
grande altura e musculatura, evidentemente bípede apesar de estar deitado sob uma
frenética e loira Tramise, que pulava sobre ele com paixão inexprimível, com seu
pequeno e escasso seio descoberto e banhado pela nascente lua.

Quando e de que maneira tinha passado Mademoiselle Fantôme de menina loira,


invisível e escorregadia a amante entregue de um ser… sobrenatural? Era um mistério
que ultrapassava as barreiras da minha lógica, que escapava ao alcance do meu
entendimento.

Permaneci petrificada, boquiaberta, incapaz de mover um músculo por medo de


evidenciar que o que estava vendo estava ocorrendo em realidade. Quando, de
repente, escutei os matagais mover-se atrás de mim. O coração se converteu em
artilharia disparada em meu peito. Desde minha imobilidade observei, de esguelha,
como meu cabelo escuro voava enquanto eu caía para diante, empurrada por uma
força que em um primeiro momento não pude distinguir.

~ 147 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Alguém me empurrou até me fazer dar de bruços contra a terra, com a brutalidade
própria de uma fera enfurecida.

Instintivamente me voltei para meu agressor, rodando sobre a grama. Tratava-se


de meu marido, o conde Gastón. Incapaz de reagir, de pensar por que estava ali nem o
que pretendia não pude me defender a tempo, Gastón pegou-me fortemente pelo
cabelo.

— Cadela! —gritou-me, tratando de me esbofetear, enquanto eu lutava por me


liberar de seu peso. Depois dirigiu seu olhar para a clareira. — Pensava que não ia lhes
encontrar? Já tinham me falado destes clãs, mas nunca pensei que pudesse se unir a
eles. Casei-me contigo porque pensava que era mais tola. Malditos sejam, incultos
pagãos, filhos do diabo!

Não pude casar todos os dados com muita lucidez. Gastón tinha me seguido
pensando, ao que parecia, que me dirigia ao meu próprio encontro amoroso no
bosque.

Mas suas palavras falavam de algo mais preocupante: parecia que já tinha ouvido
falar do que ocorria naquele bosque e que eu não podia nem imaginar nem explicar.

Cobri o rosto com minhas mãos e tratei de golpeá-lo com as pernas, inutilmente.
Uma tremenda bofetada me golpeou como um látego a bochecha e parte da boca.
Então, uma força inesperada me liberou dele e o jogou no chão, caindo para trás.

Tinha sido aquele ser quem tinha me liberado. A enorme e peluda besta, que fazia
uns instantes jazia com Tramise, era quem tinha jogado a um lado o conde.

—Foge, Caroline! —gritou minha prima, então. — Volta para castelo!

—Não! —respondi, enfim me pondo em pé.

Gastón, aproveitando meu descuido, agarrou um dos meus tornozelos tão


fortemente que me pareceu que chegava até o osso. Vi como a enorme massa de pelo
se equilibrava sobre o conde de novo, observei uma aparência e movimento mais
humano do que tinha me parecido em princípio. Ambas as “bestas” se encetaram em
uma briga que os levou a desaparecer entre a erva daninha. Tramise então chegou até
mim, correndo descalça, com o cristalino cabelo despenteado lhe cobrindo a cara e
uma alça do branco espartilho interior caída sobre seu braço.

—O que faz aqui?! —perguntou, quase agressiva, com os olhos tão reluzentes
como exagerados.

—Lhe segui — consegui dizer.

O rosto de Tramise mudou e seu rosto se tornou assombrado. Girei a cabeça para
onde ela olhava e pude observar o seu estranho amante levantando os braços em sinal

~ 148 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

de rendição, de joelhos, com uma imensa adaga de estripe apontando ao seu


estômago, sem dúvida, parte do armamento de caça de Gastón.

—Me explique o que significa isto, esposa, ou este ser imundo morrerá. Não
esperava me encontrar com tal comitiva de seres desprezíveis quando lhe persegui.
Mas o certo é que já conhecia esta maldita besta. Como você ousa tomar o que é meu?
—perguntou, dirigindo-se a ele. —Você pagará mais caro do que imagina,
desventurado. Me acusam de ser uma besta e por isso fogem de mim as mulheres;
qual é então o seu segredo, você que em realidade o é?

Tramise escapou da força com a que a tratava de reter e correu a postar-se entre o
ignoto ser e a adaga de Gastón.

—Não permitirei que siga lhe fazendo mais mal. Faz anos que destruiu a família de
Erik, somente por serem diferentes. Somente por sua estranha enfermidade
arrebataram suas terras para uni-las ao seu condado, em pública humilhação. E bem
sabemos que você assassinou o seu pai.

Aquele estranho homem coberto de pelo, sobre o qual se intuía na escuridão uma
calça esfarrapada, tampou a boca de minha prima por trás, para sossegá-la. Mas ela se
liberou. Erik era o nome, ao que parecia, daquele ser humano tão estranho e especial.
— Não, não me calarei! Agora destruístes a meu primo também, maldito conde avaro.
Maldito seja como malditos somos nós por seu capricho!

—Você pagará isso também, Tramise, se não se apartar. E seria uma pena
autêntica. Acredito que todos lhe subestimamos, jovenzinha. Pessoalmente, estava
esperando que alcançasse uns anos mais para me satisfazer com seu corpo também.
Bem fácil me será agora que compartilhamos o teto, assim não o danifique, não quero
ferir um dos maiores tesouros de Chambord.

A besta ajoelhada atrás dela gemeu de impotência, claramente com um gemido


humano. Algo tinha sido meio doído no mais profundo de seu ser. Pôs as mãos sobre
os ombros dela, em gesto para protegê-la, mas então a enorme faca se aproximou
mais deles.

Dei um passo para frente para chamar sua atenção. Queria distrair Gastón e dar
aos jovens amantes um pouco de tempo. Mas não funcionou. Gastón era um homem
acostumado a lutar com várias bestas de uma vez e detectou minha intenção. Tirou
outra arma mais, um pequeno arcabuz de caça curta, decorado em madeira e ouro,
que apontou ao meu estômago.

Gastón riu com desprezo, sonoramente.

—Uma esposa entregue deveria estar sempre do lado de seu marido, e se não for
assim pagará com a morte. Não está sendo boa esposa. Suas propriedades, sua vida e
seus pertences, incluindo o serviço, agora são meus, querida. Meus e da senhora

~ 149 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Dupin, que os desfrutará tanto como eu, depois de tudo que me ajudou a fazer. Afinal,
foi dela a ideia de ameaçar seu pai com a acusação de assassinato.

—Oh, miserável! —exclamou Tramise.


—Não entendo por que ainda me surpreendo… — sussurrei.— Não deveria.

—Essa acusação é falsa, seu pai é totalmente inocente — disse então o homem-
besta. — Eu posso demonstrá-lo.

A ridícula risada aguda e maquiavélica de Gastón voltou a romper a paz do bosque.

—E, como vais fazer isso, maldito monstro exilado? O que sabe do assassinato do
meu pai?!

—Tudo. Fui eu quem o assassinou.

Gastón ficou paralisado, com uma palavra a meio de escapar de sua boca escura.
Tramise levou as mãos à cabeça, caindo um pouco para frente, em sinal inconfundível
de ser já conhecedora desta informação e não querer que se revelasse. E meu
coração… com toda segurança se deteve um momento.

Todos ficaram imóveis e cabisbaixos, e nos possuiu o silêncio.

Temi que Gastón atacasse em qualquer momento minha prima, que seguia
postada de joelhos frente a ele, protegendo seu amigo. Era algo vingativo e singelo
pagar com ela, assim o temi seriamente, porque atuar de forma vingativa e singela era
digno de Gastón.

—Vingança… foi por vingança — sussurrou ao fim Gastón, procurando os olhos


amendoados do ser.

—Exato. Permita que Tramise se vá e lhe explicarei isso tudo. Tudo o que precisa
saber.

— Trocará a vida dela pela sua — disse o conde, com total tranquilidade.

—Sei. Mas não a misture nisto.

A paixão nas palavras daquele estranho ser traduzia uns sentimentos autênticos e
poderosos. Momentaneamente, inclusive, invejei minha prima.

Não sabia o que estava acontecendo ali, mas muito em breve ia se explicar, o que
eu sabia era que sem dúvida estava ante um ser nobre.

Gastón inclinou rapidamente a cabeça, indicando à minha prima que se colocasse


de lado, junto a mim. Ambas nos abraçamos, ficando ao alcance de sua pistola.

~ 150 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Não podia deixar passar a ocasião da visita de seu pai ao castelo — disse a besta
humana com uma voz hesitante e muito doce para seu aspecto. — Faz muitos anos
nos tirou tudo o que possuíamos, e levou também a vida do meu pai, Pierre Gonsalvus,
tudo fruto apenas de seu preconceito, de seu rechaço injustificado a uma família
poderosa, mas de aspecto diferente. Conseguiu nos tirar isso tudo com suas armações,
as quais sequer denunciaram no dia, absortos em nossa incredulidade, tratando de
encontrar outra explicação… Tratando de pensar que ninguém podia ser tão
desumano. Mas seu pai escapou disso, acusou meu pai de falsos delitos demoníacos e
tramou para administrar nossas propriedades, como se fosse, além disso, um favor
para nós, seus “pobres filhos doentes e sua indefesa viúva”, quando em realidade era
uma estratégia para que ficássemos à sua mercê. E assim se viu quando nos separou
das decisões importantes, nos expulsando logo depois de nossa própria casa e
promulgando rumores que fomentassem o medo das pessoas por nós.

—Tramise… —intervim eu — por que não me advertiu? Conhecia esta história,


conhecia os antecedentes do pai de Gastón como estelionatário… por que, por que
não me advertiu?

—Seu pai também os conhecia… Eu temia que o verdadeiro culpado do assassinato


do velho conde se revelasse. Amo a este homem.

Gastón riu.

—É possível amar a uma besta?

—Não, não o é — respondi eu por ela. — Você me enganou para ser sua e ainda
assim não o amo.

—Gastón é fruto de uma educação na avareza mais pura, algo que fazem bestas
de verdade — esclareceu Tramise, com voz doce. — Não é culpa dele. Em troca,
quando um dia, por acaso, conheci o Erik no bosque… me dei conta de quão incultas
são as aparências. Ele perdeu tudo e sofre uma grave enfermidade hereditária que faz
com que tenha todo o corpo coberto por completo de pelo9, e ainda assim conserva
sua valentia e um coração nobre.

— Um coração nobre não assassinaria nem sequer por vingança — apontou


Gastón.

—Não podia deixar passar a oportunidade de ter o assassino do meu pai tão perto,
no castelo… minha irmã mais nova, Antonietta, segue sofrendo. Desde que o velho
conde nos expulsou de nossa própria casa de Blois, vivemos como bestas mendigas,
pior que os animais, ocultos neste bosque. Devido à aparência que nos dá nossa
enfermidade não pudemos começar de novo em nenhuma outra cidade, é algo
impossível de aguentar em sociedade, sem dinheiro… E enquanto nós seguíamos
invisíveis na mata, — prosseguiu, olhando Gastón diretamente nos olhos — víamos
como vocês não só desfrutavam das que foram nossas posses emBlois, mas ainda as

9Hipertricose congênita, também chamada de síndrome de Ambras ou "lobisomem".

~ 151 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

perdiam no jogo e enganavam outras nobres famílias para obter mais. O último desejo
do meu pai, antes de morrer, foi que eu vingasse a família.

A besta mais real que havia ali: o conde Gastón, voltou-se para nós, sem perder de
vista os movimentos de Erik, que tremia levemente a uns metros de nós, ainda de
joelhos. A lua iluminou o assustador rosto daquele ser coberto de pelo marrom escuro
por completo, entre o qual apareciam uns brilhantes olhos humanos e uns lábios
rosados. Era a visão mais horripilante que jamais tinha visto, a cena mais surrealista
que vivi, e também a mais emocionante.

Uma família de estranhos seres, muito humanos apesar de tudo, tinha vivido na
indigência em nossos próprios bosques.

Não pude evitar lhe perguntar:

—Vocês são os causadores das lendas dos bosques de Chambord?


—Muitas das lendas que durante anos correram pelos territórios pertencentes ao
castelo e os arredores de Blois, foram causadas pela presença da minha família no
bosque. Minha mãe, minha irmã mais nova e eu. Minha mãe era a única que não
padecia da doença, possivelmente por isso a escolheu recentemente a morte. Agora
ficamos somente minha jovem irmã, Antonietta e eu. “As bestas de Chambord”, sei
que nos chamam. Mas, apesar do nosso aspecto, não somos bestas. Somos de origem
nobre, marqueses de Blois, e sofremos uma estranha enfermidade, que data de dois
séculos atrás na família, de um antepassado espanhol chamado Petrus Gonsalvus, pela
qual nascemos com pelo em abundância em todo nosso corpo.

—Como os animais! São autênticos monstros! —cuspiu Gastón.

—Oh, conde! Você sim que é um monstro! —bramou Tramise. — Você e seu velho
e malvado pai foram quem fez correr as primeiras lendas sobre esta pobre família
inocente, que tantos anos tinham convivido em harmonia em Blois. Despejaram-os
com mentiras causadas por seu temor!

—Não vale a pena, meu amor —disse ele, brandamente. — Existem pessoas que
ante o diferente, não encontra outra saída que não fazer o mal.

—E por isso vou tolerar que acabe com você, Erik? Nunca tolerei que fosse formar
parte da minha família. Não posso suportá-lo!
Tramise rompeu a chorar. Estalou em muitos soluços e lágrimas, claramente
contidas fazia muito tempo, ao que parecia.

—Sinto muito, querida prima — sussurrou entre soluços. — Não queria lhe fazer
infeliz contando a verdade sobre seu futuro marido, não queria que duvidasse por
minha culpa sobre seu compromisso necessário com o Gastón. Conheço o Erik há dois
anos, desde aquele dia que me perdi no bosque. Ele me resgatou e após foi nosso
segredo. Amo-o. Amo-o por dentro e por fora tanto como você ama o professor.

~ 152 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Gastón se revolveu, inquieto.

—Condessa… — interveio Erik. — Devo lhe dizer que jamais foi minha intenção
fazer mal algum ao seu pai, tão somente levar a cabo minha vingança. Sinto muito que
aconteceu.

—Já estou farto de ouvir como se declara culpado — afirmou, altivo e sorridente,
Gastón. — Sabe o que isso significa? Agora mesmo vou acabar o bom trabalho que
começou meu pai: limpar a cidade de Blois de monstros.

—Não! —gritou a pequena Tramise, lançando-se ao seu pescoço, em um gesto que


surpreendeu a todos, incluído o confuso e hesitante Gastón, que surpreso, disparou.

Tramise caiu em meus braços. O sangue espesso e escuro começou a manchar seu
sutiã branco. Tinha interceptado a bala; estava alojada em seu estômago.

Capítulo 19

Memórias de Caroline Marie, deChambord:


O enterro.

~ 153 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

As lágrimas estão entre as flores.


Como o orvalho, lambem suas pétalas…
Já não há corolas, já não há cores,
Os casacos de morte unem os viscos.

Começava um poema.

Observando a caixa mortuária que continha os restos do meu passado, senti-me


estranhamente tranquila.

Meu pai já tinha feito muito antes de ir-se e, finalmente, tinha ajudado a todos
antes de fazê-lo. Pois seu único desejo final tinha sido partir tranquilo.

Ainda não tinha abandonado meu luto figurado pelo Gastón e ali estava outra vez,
envolta em véus escuros que agora cobravam sentido, de pé junto à ermida do castelo.

Os dias dourados tinham ficado longínquos, mas possivelmente outros viriam,


agora que cada coisa estava em seu lugar.

O que mais temi no mundo na noite em que Gastón disparou em minha prima foi
estar agora ali, naquele lugar, por ela, vendo jogar terra sobre um ataúde pequeno e
branco. Mas o destino e Erik ajudaram a que as coisas acabassem de outra maneira:

Naquela noite, não muito longínqua, naquela clareira do bosque onde a lua nos
tinha ajudado a iluminar tantos segredos, Erik não perdoou Gastón que pudesse ter
matado o seu amor, a sua pequena Tramise. Enquanto eu colocava os dedos em sua
ferida, evitando seus gritos, em busca de uma bala recente e superficial, Erik utilizava
contra Gastón sua própria faca de caça. Uma faca de estripe que uma vez mais fez
honra ao seu nome.
Erik, deixando-se levar pela raiva e ânsia de justiça, apunhalou o meu falecido
primeiro marido como se fosse um porco. Depois de abri-lo virtualmente ao meio,
proferiu sobre seu corpo uns arranhões com a faca que deixavam bastante
reconhecível a “marca da casa”. Eram iguais aos vistos no corpo do velho conde na
noite do baile. Por alguma razão, eles eram chamados de lobos. E aos lobos também
decidimos invocar para que se encarregassem do que ficara do corpo daquele que
tinha convertido em esporte, matá-los. Gastón ficou ali para os animais.

Sustentava a minha prima, que gemia roucamente entre meus braços, tapando
com uma mão fortemente sua ferida, quando ao fim Erik veio a me ajudar. Fizemos-lhe
uma atadura improvisada com os farrapos de seu vestido, a levantamos e nos
encaminhamos ao castelo. Quando estávamos próximos, Erik titubeou. Ante sua

~ 154 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

primeira dúvida de aproximar-se dali, repreendi-lhe, lhe assegurando que nada ia lhe
ocorrer.

Mas, antes de sair da mata, pude vislumbrar uma tocha grande portada por alguém
que ia seguido de mais gente.

Fiz-lhe deter um momento e corri para as vozes, por medo que descobrissem ao
“banido”. O medo percorreu meu corpo.

Era Denis Papin. Ainda não sabia se podia confiar nele, meu instinto se balançava
com ele como a agulha de uma bússola no polo norte.

Corri para ele, vendo que não haveria outro.

—Denis! Nos ajude!

Tomou-me entre seus braços e me estreitou. Vi que o seguiam parte dos meus
guardas.

—Caroline! O que ocorreu? Fui ao castelo ao me inteirar da notícia das


precipitadas bodas. O que faz aqui? —perguntou com nervosismo. — Não
encontrávamos nem Tramise nem você… não lhes encontrávamos por nenhuma parte
e escutamos um disparo!

— Foi Gastón. Disparou em Tramise, está ferida.

—Onde está?

Mordi o lábio e hesitei em revelá-lo. Por outro lado, o tempo não jogava em meu
favor.

—Maldita seja. Onde está? O que é que ocorre?

—Vem comigo… — pedi, enquanto o guiava na mata. — Aí tem ele, mas Denis, ele
é inocente. Recorda-o! É inocente.

Denis apenas me olhou confuso, como se olhasse para uma louca, e correu na
direção que lhe indiquei. Corri atrás dele, mas não conseguia ir tão rápido.

Vi-o deter-se em seco ante o que encontrou. Assim como ocorreu ao guarda que o
seguia, a surpresa os paralisou um momento. Mas Denis não demorou para reagir de
novo e tomar Tramise dentre os braços de Erik.

—Levá-la-ei ao castelo — anunciou. — Fica com ele ou ele não contará.

—Está bem. Apressa-se, por favor!

~ 155 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Denis se deteve um momento e girou a cabeça.

—Onde está Gastón? —perguntou Denis.

—Os lobos darão conta dele — retruquei com tal ferocidade que, simplesmente,
olhou-me cúmplice e se encaminhou decidido até o castelo sem uma palavra mais.

As artes de todos os serviços, dos jovens que curavam feridas dos cavalos até as
beberagens duvidosas que conhecia a cozinheira, uniram-se para salvar Tramise. E o
conseguiram. Finalmente, não havia serviço mais unido e com maior carinho por um
amo que o que tínhamos em Chambord. E era algo que nunca tínhamos valorizado…
como se fosse fácil que algo assim acontecesse.

Algo mais a ter em conta a partir daqueles dias.

Apenas tinha demorado um dia em enviuvar. Tanto minha prima como meu pai se
recuperavam prostrados em camas, já não tinha ao meu lado o professor nem sabia se
tinha chegado bem à Espanha… e Madame Dupin voltou à acusação.

No dia seguinte o luto já vestia a todos. Demos sagrado repouso aos poucos restos
de osso e vestuário que do Gastón tinham deixado os lobos. A versão oficial de sua
morte foi o ataque repentino dos animais, depois da imprudência de entrar no bosque,
em plena noite.

Enquanto estava de pé, naquele dia, junto ao nicho escavado na terra, impassível,
pude escutar os soluços desmedidos de Louise-Marie. Fazia-se segurar por vários
lacaios.

Pouco depois, eu me encontrava na biblioteca familiar, sentada no escritório ante


uma montanha de papéis, quando uma milagrosamente recomposta Louise-Marie
bateu na porta. Entrou antes de ser concedida a permissão.

Jogou um olhar de esguelha aos selos do condado das propriedades que se


repartiam sem ordem pela mesa.

—Deveria me deixar ver esses papéis. Eu posso lhe ajudar.

—Acredito que já não vou necessitar mais da sua ajuda.

—Bom… eu vim com toda minha boa intenção…

—Não me entendeu. Não vou necessitar mais da sua ajuda… nesta casa. Por que
permanece aqui, Louise-Marie? Já não está o professor, nem tampouco meu marido,
seu amante… quer dizer, um deles.

—Como se atreve a insinuar…?

~ 156 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Não o insinuo, afirmo-o. E há testemunhas de que quer se intrometer nas


propriedades que deixou e que agora pertencem a Chambord. Não pretende me fazer
nenhum favor, somente quer me enganar para roubar. Vá de Chambord.

A incredulidade foi ao seu rosto em forma de brancura absoluta. Sua boca se abriu
e esticou tanto que sua cara praticamente se desfigurava.

—Não pode me expulsar daqui. Vou dizer ao seu pai e não irei.

—Agora meu pai já não tem o que dizer. Economizarei a ele as explicações para lhe
economizar desgostos. Não lhe seria grato comprovar que sua melhor amiga queria
roubar a sua própria filha, além de lhe subministrar desgostos. Escutei você falar com
ele tentando pô-lo contra mim. Fazer isso com um pai e sua própria filha… acreditava
que fosse mais humana e mais inteligente, Louise-Marie. Mas suponho que ao final a
verdade sempre vence, apesar do tempo ou dos acontecimentos que venham a
ocorrer.

—Não vai contar-lhe nada do que aconteceu?

—Se você for agora mesmo pela porta e não voltar a nos incomodar, nenhuma
palavra mais sairá da minha boca. Nem a meu pai nem a ninguém de fora destes
muros.

Sua careta de desolação pouco a pouco se converteu em sorriso.

—Bem. Antes de ir…lhe darei algo —disse, misteriosa, inserindo a mão em um


bolso de seu traje de seda listrada. — De todas as formas… não há boas notícias nela.

Lançou sobre a mesa uma carta enrugada, com a assinatura de… Marco! Marco
tinha me deixado uma carta de despedida e possivelmente eu nunca saberia! Agora o
rosto desfigurado me possuía, enquanto ela sorria entusiasmada.

Fez o gesto de recolher a cauda de seu vestido, junto a uma leve genuflexão como
gesto irado de despedida.

—Será bem-vinda se vier a Chenonceau.

—Se eu for obrigada a ir, guardar-me-ei as costas.

Sorri também ante aquele jogo de absurdos. Mas no fim me senti livre.

Abri a carta, tristemente. Louise-Marie já tinha me anunciado que não esperasse


boas notícias de seu conteúdo. Assim suspirei e temi ler aquelas palavras. Mas o certo
era que, uma vez aberta, só o fato de observar os traços, diretamente da mão do
professor, aquelas mãos que tanto tinha amado, já me enchia de serenidade.

Até que vi que ele sentia exatamente o mesmo… e lutava por deixar de fazê-lo.

~ 157 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Querida “filhotinha”,

Não. Não vou lhe chamar mais com diminutivos, não vou me enganar. Minha
intenção ao lhe escrever é obter uma resposta, para voltar a ver suas palavras, embora
seja sobre papel, para guardá-las com carinho e as reler uma e outra vez na Espanha,
já que esse reencontro que insinuou… duvido que seja possível alguma vez.

Mas, se me responder, por favor, minha intenção não é receber simples notícias
vazias que somente me indiquem se está bem ou simplesmente viva ainda. Minha
verdadeira intenção é ver suas palavras escritas sobre o papel para ler nelas algo além
da simples indiferença, da concreta e entrecortada informação, desejaria ver alguma
pequena mensagem onde se vislumbre uma segunda intenção. Uma esperança velada.
Uma lembrança. Uma confirmação de que o nosso amor existiu.

Conhecemo-nos em uma época estranha para os dois. Quisera tivéssemos nos


conhecido muito antes. Antes de tudo. Espero que nos “conheçamos” de novo em um
futuro mais acalmado e feliz.

Mas não dê atenção às minhas palavras, no fundo sei que nada devo esperar.
Tratarei de lhe esquecer e de viver sem que seja para mim uma obsessão; tratarei de
fazer minha vida sem mais. Mas bem sei que de quando em quando ressurgirá um
sentimento estranho para me atormentar e então me perguntarei o que teria passado
se o destino nos tivesse permitido estar juntos mais tempo.

Bem, agora estou seguro: Asseguro-lhe que não espero resposta a esta carta.
Enquanto escrevo estas letras, vejo o que será o melhor. Claramente: não responda a
ela. Não, a esta não. Agora não. Se alguma vez lhe escrever para lhe perguntar coisas
banais, então sim esperarei uma resposta de cortesia, pois, corrijo: será para mim o
mais importante simplesmente saber que está viva, que está, que ainda está neste
mundo.
Sempre seu, em espírito:
Barão Marco De Gaula.

Fechei aquela carta com as mãos tremendo, a visão imprecisa por causa das
lágrimas que não queria deixar fluir e um nó na garganta que me afogava. Tinha que
encontrar fortaleza suficiente para fazer atender a meu Marco: não responder. Ao
menos, ainda não. Tinha muito por resolver. Possivelmente o melhor seria de todos os
modos, serenar-me e seguir adiante com minha vida por um tempo, deixando que ele

~ 158 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

seguisse a sua. Mas as lágrimas banhavam por completo meu rosto… não concebia o
fato de não voltar a vê-lo. Mas realmente necessitava um tempo só para minha
família; tinha muito no que pensar, muito que fazer. Com aquela primeira decisão de
jogar Louise-Marie de minha casa passei a ser a verdadeira proprietária e dirigente de
Chambord. E a segunda decisão estava clara: devolver à família Gonsalvus o que era
legitimamente dela. A terceira, e não menos importante, seria prometer minha prima
a Erik e devolver assim a este, seu prestígio em sociedade.

Algo bom tinha tirado de ter sido consorte do Gastón. Ele era o proprietário atual
das terras maquiavelicamente arrebatadas à família de “lobos”. E já era hora de que
voltassem para eles outra vez.

Quando fomos todos juntos ver a antiga casa de sua família no povoado de Blois, a
desolação mais intensa foi ao rosto do Erik. Tinha sido completamente saqueada. O
povo de Orleans tinha vendido todo o conteúdo que possuía algum valor, faltavam
inclusive os papéis de parede e as portas, assim decidimos alojá-los conosco, no
castelo, até que a casa fosse reconstruída e ali então, alojaria os dois irmãos e Tramise,
depois das bodas.

A inexistência da fortuna da que sempre tinham feito tanto ornamento os condes


de Orleans, fazia-se cada vez mais patente, com cada visita a uma nova propriedade.
Seus administradores nos mostravam vazia, com vergonha no rosto, ou nos faziam
partícipes de que antes de minhas bodas já tinham sido adquiridas por um novo dono,
a maioria delas como prêmios no jogo. Depois de pagar todas as dívidas e o acerto da
casa de Blois, minha herança, em lugar de aumentar, tinha minguado. Teria gostado de
ver a cara da Louise-Marie se tivesse seguido conosco. Sorri ante a ideia. Ela mesma
teria partido ao comprovar a situação real, não teria precisando expulsá-la.

Quem se comportou como um autêntico amigo até o final, até aquele dia cinza em
que havia falecido meu pai, foi o rebelde Denis Papin. Seu apoio moral, legal e sua
companhia não nos abandonaram. Inclusive me pediu perdão porque sua amizade de
anos com a Louise-Marie lhe impediu de “querer ver”, embora no fundo se declarasse
consciente de tudo. Não necessitava meu perdão para ocupar um lugar em meu
coração.

Recordo com um sorriso certa manhã junto a ele: Os pássaros cantavam junto ao
arroio, um arroio afastado, perdido nos bosques de Chambord. Denis e eu jazíamos
caídos sobre a grama da borda, com as enlutadas roupas arregaçadas por causa do
calor. O laço caía como quebradas azeviches sobre minhas pernas nuas, as pernas nuas
de uma jovem viúva. Eu era uma viúva de dezessete anos, a que acompanhava em seu
desconsolo, um desconsolo vazio, lento e oco, o galã Denis.

Ambos escutávamos os sons do bosque, em silêncio, com os pés metidos na água


fresca daquele arroio de verão.

—Ondas de tempo passaram em só meses. Apaixonei-me, cresci, fui esposa, fui


viúva, fui sobretudo amante. Perdi ao Gastón, meu marido forçado; perdi meu

~ 159 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

capricho: a Marco, meu amor; e, em breve, sei que vou perder também ao meu pai,
enfim o médico me disse a verdade sobre seu estado. Já não sou a menina a ser
superprotegida. Mas sou tão órfã de repente… de pais, de marido e de amor. Embora
nunca tenha amado Gastón, sinto que uma etapa da minha vida também se queimou
com ele. Deu-me um novo sobrenome, Orleans, que não manterei. Vê? Tirou-me
inclusive uma parte do meu próprio nome. Voltarei a ser Belle du Berry, condessa
viúva de Chambord, embora não seja fácil que voltem a me chamar assim. E quanto a
Tramise… a menina que era minha prima, minha melhor amiga, em que toda minha
vida me resguardou, agora aparece ante meus olhos como uma mulher com mais
futuro que eu. Afasta-se também de mim, uma vida compartilhada a espera.

—Fico eu. Muitas mulheres se sentiriam ditosas — disse Denis, sem me olhar.

—O que tem feito o destino para que o pedante e mulherengo Denis, esse
inacessível, solicitado e vaidoso cavalheiro de Blois, convertesse-se em meu amigo e
fosse o único que me consolasse?

Ele me olhou de esguelha.

—Está muito bela em sua dor. Seu rosto branco está agora mesmo estranhamente
iluminado, emoldurado por seu cabelo preto e seu véu de luto afastado para trás.

Meu coração deu um pequeno salto ao escutar essas palavras, mas em seguida
recordei quem era e me esforcei por não me deixar enganar. Denis seguiu vendendo-
se a si mesmo como um bom futuro pretendente para mim. Regozijou-se em seu
próprio curriculum, com tanta ironia chamado, e sua habitual faísca de orgulho ficou
apagada ante a certeza de que aquele mesmo histórico, que a ele tanto lhe agradava,
era precisamente o que não lhe permitiria nunca viver um amor puro, como o que
Marco ofereceu. Com o Denis, tão apenas se poderia esperar diversão da vida, não
amor.

—O destino pôs um demônio no mundo — disse, referindo-se a ele mesmo. — E


para rebater esse mal logo pôs a um anjo —prosseguiu, incansável, beijando minha
mão — Isso é o que fez.

Ri. Os dois sabíamos que era apenas um jogo; ele, no fundo, respeitava minha dor
e apenas pretendia me fazer rir. Eu já estava conseguindo conhece-lo. Já não me
zangava ante seus jogos, tinha aprendido a rir e a identificar a ironia e a falsa aparência
durante minha jornada.

Denis me atraiu para seu flanco com a força mais suave da que era capaz seu
potente braço.

—É um lisonjeador. Não acredito em você. Nenhuma palavra.

—Um dia será minha e sabe. Um dia suplicará por meus beijos.

~ 160 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

—Poderia lhe beijar agora mesmo, isso não me supõe problema — disse,
recostando minha cabeça, cansadamente, contra o ombro viril do Denis. — Mas não
seria mais que por carinho e amizade. Embora lhe beijasse nos lábios…

—Não sabe nem onde têm o coração. Não é isso? —Meu silêncio foi sua resposta.
— O que lhe dava Marco para lhe fazer sentir assim?

—Sua presença mesmo. Iluminava meus dias. Não recordo quase nada antes dele e
o que lembro tenho como um véu escuro. Ele retirou esse véu da minha vida. Sua
presença era um motivo para me levantar cada manhã com um sorriso. Desde o
segundo dia que o conheci foi assim. Foi mágico. Sua honestidade, sua rebeldia…
escutar suas palavras… sua exótica forma de falar, sua valentia e humildade. Sua
paixão…

—Definitivamente, contra tudo isso não posso competir. Especialmente contra o


ponto da humildade… Eu devo luzir os dons que Deus me deu.

Voltei a sorrir ante suas palavras; troquei minha careta de doloroso desejo por um
incipiente sorriso. Denis, ao ver isto, começou a me fazer cócegas. Ambos brincamos
durante uns felizes, mas muito breves momentos, rodando inadequadamente sobre a
grama fresca, salpicando água do arroio com os pés descalços.

—Sorria, menina, eu gosto de lhe ver sorrir. Têm toda uma vida para voltar a
encontrar o amor.

—Não haverá outro Marco. É difícil. E se houver… quem quererá a uma viúva
negra?

—Não têm nem ideia, não é?! Será a viúva mais cotada de Paris. Jovem, bela e
ainda um tanto rica. Venha comigo a Versalles e lhe conseguirei marido em dois dias.
Isso sim, em troca deve me permitir ser seu amante.

Então sim que não pude conter mais minha delicada risada. Estalei em gargalhadas.
Mas agradeci ao céu por tê-lo por perto.

—Não quero outro marido. Mas reconheço que eu adoraria conhecer Paris. Minha
cabeça leva meses ocupada somente na gestão das posses e das dívidas. Agora que
todos os buracos que deixou Gastón foram saldados e grande parte do meu próprio
patrimônio desapareceu com eles… agora que minha prima está prometida e a um
passo de partir de Chambord, minha cabeça só se centra em passar o máximo de
tempo possível com meu pai. Devo estar junto a ele para despedir-me como merece, o
tempo que falta.

—Sobre esse ponto não posso brincar, nem discutir. Têm toda a razão. Eu estarei
junto a você. Mas me prometa que quando as águas se acalmarem… já sabe o que
quero dizer, me acompanhará a Paris.

~ 161 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Olhei o céu. Sondei o precioso azul intenso manchado de brancas nuvens, mas só vi
um universo incerto e infinito.

—Quando tudo se acalmar, irei a Paris — prometi.

—Enganam-me meus ouvidos?

—Não terei nada que fazer. Nem mais nada que perder. Irei a Paris.
Denis sorriu. Mas um suspiro e uma careta de tristeza chegaram ao rosto dele.

E, assim, poucas semanas depois, aos seis meses de minhas primeiras bodas e da
morte de Gastón, também nos deixou meu pai. Dei-me conta que tinha sido a única
que sempre tinha acreditado que se recuperaria. Todos os outros pareciam saber a
verdade.

Viver com a verdade era, em última análise, menos doloroso que viver com
segredos.

Quando fui consciente disso, apenas um par de semanas antes de seu falecimento,
decidi enfim escrever ao barão, ao querido professor dos meus sonhos, mas somente
para informar a situação atual da muito delicada saúde do meu pai e da passada morte
do Gastón, sem deixar transparecer nenhum sentimento. Sentia que não devia
incomodá-lo mais com coisas do coração. Minha carta foi fria e breve.

Não pude assegurar que chegasse ao seu destino, como às vezes ocorria com
tantas cartas perdidas, pois não obtive resposta.

E aqui estamos outra vez. Uns se foram, mas outros novos chegaram. Ao pé do
nicho escavado para o ataúde do meu pai estamos hoje todos os presentes habitantes:
minha desconsolada tia Marie; minha prima Tramise, que une sua mão à do Erik
publicamente; Philippe, Charlotte, que chora o seu falecido amante, e o resto do
serviço. Uma mão varonil, a mão do Denis Papin, apoia-se sobre meu ombro, me
transmitindo seu firme calor. E eu seguro a mão de Antonietta, uma pequena menina
inocente com a cara cheia de pelo, como seu irmão. Uma menina salva de viver na
indigência, que não entende por que lhe substituímos pelo preto seu precioso e novo
vestido rosa.
Vejo chegar uma carruagem estrangeira. Um arrumado conhecido desce dela.

É o habitante que faltava em Chambord, que nunca deveria ter ido e quem já não
deixarei que parta. Essa era sua resposta à minha última, breve e fria carta: ele, Marco,
em pessoa. Um elegante e sóbrio traje ressaltava sua silhueta, mas inclusive ao longe
podia ver que a solenidade de seu rosto não dava passo à mínima alegria. Algo tinha
mudado em seu olhar: uma sombra de sofrimento, de maturidade convertiam-no em

~ 162 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

um homem. Já não era o menino que encontrei no bosque. Mas aquela noite o
abraçaria igual, com uma nova e intensificada paixão.

Agora estamos todos. Somos muito distintos e variados. Sei que novas surpresas
nos apresentarão: sei que dançaremos um dia entre rosas, para fugir ou chorar em
outro, e que novamente voltará a ser difícil, mas juntos enfrentaremos esta nova
etapa.

Os que estão hoje aqui são os habitantes de Chambord.

~ 163 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Epílogo

Torre da Prisão da Bastilha, Paris, 1793

Aquelas cartas que Marco e eu escrevemos em nossa juventude para nós mesmos,
a modo de diário, pulverizavam-se agora sobre a fria pedra da minha cela, entre
minhas pernas quase nuas, cobertas apenas pelo saco escuro que era meu único traje.
Eram o único pertence pessoal que meus carcereiros tinham-me permitido manter.

Minha última visita à Corte de Paris, depois de muitos anos entre Chambord e
Espanha, tinha-me saído tremendamente cara. Quando uma coluna furiosa de
mulheres parisienses me tirou da carruagem, às portas de Versalles e disseram-me,
entre gritos, que enquanto gente como nós, as nobres, preocupávamo-nos com nossos
amantes, as mulheres como elas se preocupavam em achar o pão que levar-se à boca.
Umas palavras que me doeram na alma e que agora poderia dizer no sentido inverso.
As mesmas palavras que seguem dedicando especialmente à rainha Maria Antonieta;
não em vão, a rainha e eu vamos morrer no mesmo dia.

Depois da revolução de 1789, muitos dos castelos franceses tinham caído, junto
com todos os seus pertencentes. Ironicamente, alguns camponeses se encarregaram
de que se salvassem Chambord e Chenonceau, pois o segredo das reuniões
revolucionárias que se celebraram neste último deixou de ser precisamente um
segredo. O nome de Rousseau ficou associado àquele castelo de que tinha tantas e tão
variadas lembranças. Louise-Marie foi salva com ele, ao mostrar a ata de uma daquelas
reuniões onde se forjaram os Enciclopedistas, onde bem se lia que tinham sido levadas
a cabo emChenonceau. Mas nenhum daqueles velhos documentos que meu pai e eu
ajudamos a redigir para e pelo povo estavam assinados por mim, nem tampouco
levavam mais nome nas atas que o antigo Du Berry, caído no desuso desde meu muito
breve matrimônio com Gastón de Orleans. O povo não me associava nem nunca
associaria às próprias ideias que tinham suposto sua libertação e sua Revolução. Eu ia
pagar por ter sido a esposa do Gastón como a rainha o faria por ter sido a mulher do
esbanjador Luis XVI. Os justos pelos pecadores, salvando as distâncias. É
desencorajador ver como as asas que tanto nos custou dar ao povo se acabaram
convertendo em uma onda de assassinatos bastante atrozes, mas mais desencorajador
foi saber que a maioria dos nobres deste país nem sequer pensou nunca nos
problemas do povo, apenas em seguir espremendo-o ao máximo. Os poucos que
lutaram por eles tiveram que fazê-lo mediante clubes dos mais secretos. Mas nenhum
dos lados viu a natureza indiscriminada, cruel e sanguinária da Revolução. E, agora,
anos depois de rodar de cárcere em cárcere, depois de acabar chegando à Prisão da
Bastilha e à espera de minha iminente execução, por mais que conte minha história…
ninguém acredita em mim.

~ 164 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Grande parte de Chambord e suas terras foram vendidas depois da morte do meu
pai, conseguindo assim não só saldar todas as dívidas que nos deixou Gastón —de
cujas posses não deixou nada em pé— mas também salvar o patrimônio familiar de
Marco, para o qual o tínhamos cedido quase tudo.

Legalmente, meu matrimônio com Marco não existe mais que na Espanha, onde eu
deveria ter ficado. Ali tinha conseguido ser realmente feliz, naquele país cheio de sol e
boa gente, durante muitos anos. Mas, do que me queixo? Agradeço por ter desfrutado
quase meio século junto a Marco e ter tido três formosos filhos: dois meninos e uma
menina que nasceu com o caráter que tanto me custou forjar.

Como saber que minha breve visita a Paris ia chegar no momento mais
inoportuno? Como saber que, indocumentada e dada por desaparecida, ninguém
conhecia meu paradeiro, portanto ninguém ia vir em meu resgate? Assim que as
massas assaltaram a carruagem com a que me dispunha a entrar nos jardins do antigo
castelo real francês, despojaram-me de toda posse, não ficou nenhum só papel oficial
ou joia que credite minha verdadeira identidade… nada mais, além destas cartas
privadas, supostamente, carentes de valor.

Apenas agradeço uma e outra vez, imensamente, que finalmente minha filha que
ia acompanhar-me naquela viagem, adoecesse no dia anterior à minha partida e
ficasse na Espanha.

Que me dão por desaparecida… é algo que se encarregam de me recordar os


carcereiros. E quatro anos levam me submetendo a esse mau trato, todos e cada um
dos homens e mulheres que guardaram as chaves dos parcos buracos onde pernoitei
até chegar aqui.

A Prisão fortificada é, com diferença, o cárcere mais acomodado em que estive.


Aqui há muitos nobres que mantiveram seus pertences e suas roupas, incluído o
próprio rei, que antes de morrer na forca em janeiro passado, foi entretido com uma
biblioteca de perto de 300 títulos. Eu só tenho minhas cartas… que hei relido uma e
outra vez. Acredito que não me tiraram isso porque um pouco de humanidade exista
sob toda a raiva que carregam seus corações… e porque os carcereiros não sabem ler.

Está muito perto já a hora da guilhotina e releio as cartas, compulsivamente, sem


cessar.

Saltos sobre a pavimentação. Deve ser outra nobre que se dirige ao seu novo
aposento gradeado. Todos estamos caindo. Pergunto-me até que ponto não tem razão
o povo e devemos ser castigados por nossa obsessiva avareza e nosso “trabalho!”
consistente em acumular patrimônio.

Os saltos se aproximam cada vez mais, até que se detêm ante mim.

Levanto o olhar e observo uma saia listrada que me recorda algo… possivelmente
seja uma nova companheira de cela. Mas não abrem as barras, não abrem a porta.

~ 165 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Há uma mulher parada junto ao guarda, me olhando.

Elevo mais o olhar e o impacto do que vejo me atira para atrás: uma anciã Madame
Dupin me observa de fora das grades. Está exatamente igual na forma, mas não no
conteúdo… mesmo vestido listrado, mesmo penteado. Mas trocou sua cor de cabelo
loiro pelo branco e em suas mãos e seu rosto se reúnem mais de um milhão de rugas.

Penso que o delírio me está fazendo ver fantasmas.

—Madame Caroline De Gaula? —pergunta com uma voz quase irreconhecível.

Não me chegam as forças para lhe responder com palavras, mas a anciã lê a
aprovação em minha cara.

É ela. Não é um fantasma. Seus jogos e intrigas a ajudaram não só a sobreviver à


guerra, como a estar do outro lado das grades. Em que mundo vivem algumas
pessoas? Se eu não tivesse vivido tantos anos em outro mundo alternativo, não teria
querido compartilhar o mesmo céu.

Mas suponho que tudo é mais fácil se tudo na vida é um jogo… e ninguém fica com
os pés. Nunca se sabe. E para mostrar um botão: uma cela mais à frente está a rainha
Maria Antonieta, denunciando minha teoria.

—Recolhe essas bonitas cartas das que tanto me falaram os carcereiros… e me


siga.

Me siga? Acaso ela mesma ia me levar pela mão à guilhotina? Queria assegurar-se
de ver minha cabeça rolar?

Não havia nada a perder. Nem a ganhar. Nem a dizer.

Era meu “último dia do fim do mundo”. Assim, imperfeitamente, pus-me em pé,
vencendo a idade e ao reumatismo contraído no cárcere, sem soltar minhas cartas.

O carcereiro me empurrou para que a seguisse.

Percorremos vários corredores repletos de celas desoladoras, que encerravam


agora fantoches do que um dia foram grandes senhoras. Chegamos a umas escadas,
cujos degraus altos fizeram meus joelhos se ressentirem. O guarda abriu finalmente
uma portinhola pela qual passamos só as duas e voltou a fechá-la atrás de nós.
Estávamos em uns túneis úmidos.

Madame avançava sem deter-se. Sem girar a cabeça para trás.

~ 166 ~
O Despertar de Belle – Catherine Roberts

Giramos por várias seções, estávamos passando sob o castelo. Eram os túneis de
saída secreta da torre. Quando a água começou a fazer-se mais patente vi que
tínhamos chegado à rede de esgoto de Paris.

Louise-Marie se movia com agilidade pelas bordas, embora devesse ter… mais de
80 anos?! Quantas vezes os teria percorrido em sua juventude?

Ao menos já podia estar segura de uma coisa: aquele não era o caminho para a
guilhotina. Estava tirando-me. Estava tirando-me dali! Não queria acreditar porque não
queria surpresas desagradáveis ao final. Mas parecia evidente que me conduzia para
algum lugar do rio que podia significar… liberdade.

A poucos passos estava de evidenciar que sob as capas múltiplas de frivolidade


tinha pulsado um coração.

Ao fim, deteve-se junto a uma portinhola de cujas ranhuras se filtravam a luz.


Enquanto abria o pesado fecho com uma força inesperada, dirigiu-me suas últimas
palavras:

—Faz alguns meses que sei que estava na Prisão da Bastilha. Mas não te liberei
antes porque queria me assegurar de que lhe vinham recolher. Não queremos mais
vagabundas pelas ruas de Paris, já há suficientes.

Quando abriu a porta o sol me cegou. Demorei uns segundos em me acostumar à


luz e em lhe dedicar meu último olhar incrédulo antes de sair.

Quando olhei enfim para fora, comprovei a que se referiam suas palavras… “Lhe
vinham recolher”: O sol recortava uma figura masculina conhecida, amada; ali estava
Marco. Vestido como um camponês, claramente para não ser detido pelos piquetes da
Revolução. Seguia tão bonito como sempre, embora um pouco mais curvado e com
rugas de preocupação na testa mais profundas que as que eu conhecia até quatro anos
atrás. Como devia ter sofrido. Não podia acreditar que o pesadelo acabara. Corri
atravessando a luz. Corri, como em um sonho, para seus braços.

Escutei como se fechava a porta de ferro atrás de mim e senti, às costas, o sorriso
de Louise-Marie.

~ 167 ~

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