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Cônjuges ou namorados são autores de um a cada oito estupros

de mulheres no Brasil

28 DE NOVEMBRO DE 2023
Entre 2011 e 2022, o país registrou um total de 350 mil agressões
sexuais contra mulheres. Em 42,5 mil casos, o autor era o cônjuge ou
namorado da vítima

Adriana Amâncio
• VIOLÊNCIA
• Histórias de violência sexual praticada por parceiros

• Educação sexual para reconhecer a violência

• Legislação sobre violência sexual


H á 17 anos, a Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha,

tipificou as formas de violência de gênero. Considerada um avanço por


romper as paredes físicas e culturais que silenciavam agressões
exercidas no espaço doméstico, a lei ainda não rompeu uma fronteira: a
do quarto, onde estupros maritais ocorrem sem que muitas se deem
conta de que são vítimas de um crime ou, quando criam essa
consciência, tenham condições de denunciar.
O estupro marital consiste em forçar a prática sexual em um
relacionamento afetivo, seja namoro, união estável ou casamento. Se a
vítima disser não ou estiver sem condições de consentir – dormindo, sob
efeito de álcool ou medicamentos – e o parceiro persistir, está
caracterizado o crime.

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Dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan),
disponíveis no Mapa Nacional da Violência de Gênero, mostram que,
entre 2011 e 2022, o Brasil registrou um total de 350 mil agressões
sexuais contra mulheres. Em 42,5 mil casos – um de cada oito -, o autor
era o cônjuge ou namorado da vítima.
Estupro marital
Entre 2011 e 2022, parceiros afetivos foram autores de 12% das
agressões sexuais contra mulheres

1 DE CADA 8
agressões sexuais foram praticadas
por cônjuge ou namorado
6,1 mil
42,5 mil registros
de agressões sexuais praticadas por cônjuge
ou namorado entre
2011 e 2022
5,0
4,6
4,7
4,2
3,4
3,2
2,9
2,6
2,5
1,9
1,5 mil
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
2022
2011
FONTE SINAN

Registros de estupro aumentam em 50% nos dias de Carnaval


Essa violência tem um forte componente racial: 66% das mulheres
vítimas de violência sexual praticada por cônjuges ou namorados são
negras. Elas também são maioria entre as vítimas de agressão sexual
praticada por outras pessoas e respondem por 54% desses registros.

Mas os dados ainda estão longe de refletir, de fato, o problema do


estupro marital no Brasil. As barreiras que impedem as mulheres de
reconhecerem que são vítimas e terem condições de denunciar – e a
própria forma de enquadramento do crime na lei – fazem com que esse
crime, além de invisível, siga impune.
Agressão sexual contra mulheres
Por tipo de autor [2011 - 2022]
CÔNJUGE
OU NAMORADO
OUTRO AGRESSOR
280 mil registros
42,5 mil registros
66%
mulheres negras
54%
mulheres negras
Mulheres negras são
a maioria das vítimas
de agressão sexual
37%
mulheres brancas
26%
mulheres brancas
2% indígenas
1% indígenas
1% amarelos
1% amarelos
6% sem informação
8% sem informação
FONTE SINAN
Segundo Isabela Del Monde, advogada, coordenadora da Campanha
MeToo no Brasil e cofundadora da Rede Feminista de Juristas, as razões
que impedem o reconhecimento e a denúncia do estupro marital são de
ordem cultural e estrutural.

Há a cultura que naturaliza a ideia de que a mulher tem obrigação de satisfazer o


marido sexualmente, a dependência emocional ou econômica e a falta de uma rede
que, além de receber a denúncia, ofereça apoio emocional e econômico para que
essa mulher construa a sua vida longe da relação violenta”

60% das mulheres que sofrem violência de gênero não


denunciam à polícia

Histórias de violência sexual praticada por parceiros


A agricultora alagoana Bárbara*, de 34 anos, é mãe de dois filhos e, por
muito tempo, criou outros dois filhos do seu último companheiro, com
quem se casou, aos 18 anos, e conviveu por 11 anos. Ela aceitou
conversar com a nossa reportagem, mas minutos antes da entrevista
recuou. Enviou a seguinte mensagem: “eu estou bem agora, para que
relembrar o passado?”. Depois de alguns minutos de silêncio, ela aceitou
contar sua história.

Depois de três anos de casamento, ao descobrir que o marido a traía, o


interesse sexual de Bárbara pelo parceiro diminuiu. “Ele bebia muito,
saía com outras mulheres e me procurava de noite, quando chegava em
casa. Eu dizia que estava triste com as traições e não queria [fazer sexo].
Ele começava a dizer que eu não queria porque eu estava com outro e
começava a me bater. Aí eu fazia. Quando terminava, eu sentia nojo”,
relata a agricultora, com falas entrecortadas por suspiros profundos.
Bárbara trabalhava, mas não ganhava o suficiente para sustentar a si e
às crianças. Também não tinha onde morar, razão pela qual
permaneceu, por anos, nessa relação abusiva. Sem alternativa, ela
resignou-se e passou a satisfazer sexualmente o marido, mesmo contra
a própria vontade, com medo de perder o esteio da casa.

Eu pensava: eu sou mulher dele, satisfazendo ele em casa, ele não vai mais
procurar mulher fora. Então, mesmo sem vontade, eu deitava com ele”
Um dia, Bárbara acordou sentindo algo gelado no pescoço. Ao abrir os
olhos, viu que o marido empunhava uma faca sobre a sua garganta. As
ameaças armadas não pararam. Em uma segunda investida, ela foi
acordada com uma arma apontada para a sua cabeça.

“Aí eu fiquei com medo e falei com a minha mãe e com algumas amigas.
Um grupo de mulheres me chamou para reuniões, foi me dando força. A
minha mãe e o meu irmão me ajudaram, alugando um lugar seguro,
comprando comida pra mim, e eu deixei ele”, recorda. “Enquanto ele só
me batia, eu estava levando, mas quando ele passou a me ameaçar com
arma, tive medo e achei que pudesse acordar morta qualquer dia”

Vítimas de violência sexual no Brasil, venezuelanas


desconhecem direito ao aborto
Isabela Del Monde explica que o crime sexual tem a ver com subjugação
da mulher. A engrenagem que atribuiu ao homem o papel de mandar e à
mulher o de servir surge na transição do feudalismo para o capitalismo,
quando ocorreu nas sociedades ocidentais a divisão sexual do trabalho.
Naquele momento, os homens passam a ir para o mundo e as mulheres
ficam reduzidas ao espaço doméstico, aos cuidados com a casa e os
filhos.

“Tem raízes muito antigas a ideia de que ao homem é garantido tudo


aquilo que ele deseja e que a mulher deve servir ao homem tudo aquilo
que ele deseja”, complementa a advogada.

Isabela explica que essa naturalização ainda se faz presente entre


profissionais da rede de atendimento. Isso faz com que muitos
desencorajem as vítimas a efetivar a denúncia ou as revitimizem ou não
caracterizem o estupro marital no registro.

Frases do tipo “o seu marido fez isso, mas é um bom pai” ou “qual o
homem que nunca fez isso no casamento?’ são exemplos da
revitimização que acontece justamente onde as mulheres deveriam
encontrar acolhimento.
“As mulheres têm medo de realizar a denúncia e serem
responsabilizadas pela violência sofrida ou naturalizada, como algo que
simplesmente acontece dentro do casamento”, reforça Isabela.

Muitas mulheres veem o casamento e a construção de uma família como


parte importante do seu projeto de vida. Em nome disso, custam a
acreditar que o parceiro tenha praticado um estupro.

“É muito difícil para uma mulher lidar com o fato de que o seu marido, o
amor da sua vida, seja um agressor. Por isso, há muitas idas e vindas,
ela pondera muitas coisas antes de denunciar”, avalia Isabela.

Pandemia deixou a casa ainda mais perigosa para mulheres


trans e travestis
A paulistana Joyce, mulher trans de 33 anos, sonhava em casar, ter
filhos e construir uma bela família. Ao conhecer o marido, não cabia em
si de felicidade, justamente por acreditar que havia dado um passo
importante para realização deste sonho. Infelizmente, o sonho virou um
pesadelo.

“Ele me procurava para fazer sexo, eu dizia que não, mas ele insistia e
me penetrava, mesmo sem que eu estivesse lubrificada. Era uma dor
horrível”, relata Joyce.

Além do sexo forçado, ainda tinha a pressão de sustentar a casa


sozinha, pois o marido não conseguia emprego. Para piorar a situação,
Joyce passou a ser vítima de um ciúme doentio.

Eu botava uma roupa para sair, ele dizia: ‘você vai dar para outro’ e começava a
me bater. Eu tinha consciência de que sofria violência, mas eu sonhava com uma
família. Eu achava que o problema estava comigo, mas depois vi que ele é que era
um agressor”
Segundo Isabela Del Monde, o caso de Joyce descortina um ponto
nebuloso que favorece a invisibilidade do estupro marital, o artigo 213
da Lei 12.015, de 2009, que altera o Código Penal e define o estupro
como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter
conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro
ato libidinoso.”
“Eu tenho certeza que muitos juízes diriam, nesse caso da entrevistada,
que ela deveria não ter praticado [sexo], se ela não quisesse. Se não
houve violência armada ou grave ameaça, não houve estupro. Esse
elemento caracterizador do crime, muitas vezes, vai impedir que a
violência sexual no casamento seja registrada como estupro marital”,
analisa a advogada.
Para a psicóloga e diretora de Saúde do MeToo Brasil, Mariana Luz, a
dificuldade de abordar o estupro marital tem impacto na saúde mental
das vítimas.

Muitas mulheres sofrem o estupro marital e ainda se sentem pressionadas pela


ideia de que são culpadas pelo insucesso da relação. Isso pode causar ansiedade,
depressão, baixa autoestima e perda do apetite sexual e da autonomia sobre o
próprio corpo, assuntos sobre os quais as mulheres já são tolhidas de falar
abertamente”
Educação sexual para reconhecer a violência
O espaço escolar pode ser um aliado para trabalhar conceitos como
consentimento, direitos sexuais e reprodutivos. Para a assistente social
Melina Pimentel, a educação tem o papel de desconstruir a violência
sexual no adulto e construir a autonomia sobre o corpo, já na infância.

“Essa educação é o caminho para que a mulher tenha o direito de


escolha de ter ou não relação sexual, de ter filhos ou não”, avalia Melina,
que coordena o Programa de Oportunidade e Ressignificação do
Coletivo Mulher Vida, ONG de Recife que combate a violência
doméstica.

“É preciso ensinar meninas e meninos sobre consentimento e liberdade e


desnaturalizar a ideia de que mulheres têm uma dívida com seus
parceiros, que as obriga a ter relações sexuais contra sua vontade”,
completa Isabela Del Monde.

Também é preciso criar estruturas para que as mulheres, especialmente as


mulheres negras, sejam encorajadas a buscar a polícia sem medo de serem
criminalizadas”
À reportagem da Gênero e Número, o Ministério das Mulheres informou,
por e-mail, que está revisando normas e protocolos de atendimento à
violência sexual e reestruturando a Central de Atendimento à Mulher –
Ligue 180. Segundo o órgão, foram inseridos os termos consentimento,
estupro de vulnerável e corretivo e violência sexual por meio de fraude,
na base de dados sobre legislação e informação do canal.

O Ministério também afirmou que está realizando capacitações com


atendentes do Ligue 180 e promovendo ações interministeriais de
combate à misoginia, “raíz de todas as formas de violência”, afirma o
texto.

Apenas 3 estados do Brasil orientam escolas a terem disciplinas


sobre educação sexual

Legislação sobre violência sexual


Até bem pouco tempo, a obrigação de satisfazer o desejo sexual do
marido estava prevista em lei para as mulheres. O Código Civil de 1916
trazia a premissa de débito conjugal. A legislação dava o direito ao
homem de encerrar o casamento, caso a mulher não cumprisse os seus
deveres como esposa.

O Estatuto da Mulher Casada, de 1962, e mais recentemente o Novo


Código Civil, de 2002, retiraram a premissa do débito conjugal e
equiparam mulheres e homens na sociedade conjugal. A Lei Maria da
Penha tipificou as formas de violência de gênero no espaço doméstico e,
em 2009, a Lei 12.015 classificou a violência sexual como um crime
contra a dignidade e a liberdade sexual da mulher.

“Antes dessa mudança, a violência sexual era um crime contra os


costumes. Veja que o que estava em jogo era a proteção dos costumes”,
observa Isabela Del Monde.

Em 2018, diversos tipos de crimes sexuais foram tipificados pela Lei


13.718. Entre eles estão os crimes de importunação sexual, que
consiste em qualquer ato sexual realizado sem consentimento, e o
estupro corretivo, praticado com o intuito de corrigir a orientação sexual
da vítima.
Mas a depender de iniciativas legislativas para mudar o quadro de
invisibilidade do estupro marital, é possível que as coisas fiquem como
estão por mais um tempo. A reportagem identificou 99 projetos de lei na
Câmara dos Deputados e seis no Senado que contêm a palavra estupro.

Somente um deles, o Projeto de Lei 3.470, da deputada Federal Iza


Arruda (MDB-PE), tipifica o estupro marital. A proposta, apresentada em
julho de 2023, trata do acréscimo de um inciso ao artigo 213 do Código
Penal, que distingue os estupros praticados por parceiros ou ex-parceiros
íntimos.
O PL aguarda designação de relator na Comissão de Constituição e
Justiça e de Cidadania. A reportagem procurou a assessoria de imprensa
da deputada para entender melhor como, na prática, essa tipificação
poderia vir a favorecer o combate ao estupro marital, mas não obteve
resposta.
*nome fictício

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