Você está na página 1de 54

Introdução

A Gesta Dei Francorum (“As Façanhas de Deus Por Meio dos Francos”) é uma
crônica da Primeira Cruzada, escrita em latim em torno de 1100-1101 por um
participante da épica empresa sagrada.

O nome completo é Gesta Francorum et aliorum Hierosolymytanorum (“Gesta dos


Francos e os outros peregrinos para Jerusalém”).

Esta Crônica narra os acontecimentos da Primeira Cruzada a partir do lançamento,


em novembro 1095 até a batalha de Ascalon, em agosto de 1099. Ninguém sabe o
nome do autor (que muitas vezes é referido como “Anônimo”), mas é sabido que
fazia parte do exército cruzado recrutado por Boemundo de Taranto em 1096 no
ducado de Apúlia, sul da Itália. Supõe-se que o autor da foi um clérigo, muito
próximo, ou a serviço de Boemundo de Taranto, um dos heróis da I Cruzada.

A grande quantidade de pormenores a respeito deste chefe cruzado fundamenta


essa suposição.O relato foi composto e redigido durante a Cruzada com a ajuda de
um escriba que, ocasionalmente, acrescentou comentários pessoais. A Gesta
descreve o dia-a-dia da Cruzada (itinerário, operações táticas, logística) e aquilo
que se passava no ânimo dos cruzados (mudanças de estados de espírito,
disposições em relação aos gregos, etc.). Enquanto depoimento de uma testemunha
ocular dos acontecimentos, a Gesta tem um valor incomparável.

Para os contemporâneos cultivados da Idade Média, seu autor era um “rústico”.


Foi assim que Guiberto de Nogent escreveu sua Dei gesta per francos (1108) com
base no original, mas dizendo que ele “muitas vezes deixava o leitor atordoado
pela sua vacuidade insípida.” O monge Roberto de Reims foi contratado para
reescrever a Gesta completa visando a beleza histórica e literária. Houve ainda
outros embelezamentos. Porém, o original ficou conservado até nossos dias,
constituindo uma das mais prezadas fontes contemporâneas da Primeira Cruzada.
Esse original foi escrito em latim.
O Discurso em Clermont do Papa Urbano II
Ao chegar a hora de cumprir o que Nosso Senhor ensina aos fiéis diariamente,
especialmente no Evangelho: “Se alguém quiser vir após Mim, renuncie a si
mesmo, tome a sua cruz e siga-me”, uma poderosa agitação tomou conta de toda a
região da Gália. A idéia era que, se alguém quisesse zelosamente seguir o Senhor,
com coração e mente puros, e desejasse fielmente carregar sua cruz seguindo as
Suas pegadas, não hesitaria em tomar o caminho do Santo Sepulcro.

E assim Urbano, Papa da Sé Romana, com seus arcebispos, bispos, abades e


sacerdotes, tão logo puderam, puseram-se a caminho para além das montanhas e
começaram a fazer sermões e a pregar com eloqüência, dizendo: “Aquele que
quiser salvar sua alma não deve hesitar em pegar humildemente o caminho do
Senhor, e se não tiver dinheiro suficiente, a misericórdia divina lhe dará o
bastante”.

Então o senhor apostólico continuou: “Irmãos, devemos suportar muito sofrimento


pelo Nome de Cristo ‒ miséria, pobreza, nudez, perseguição, necessidade, doença,
fome, sede, e outros males deste tipo, como o Senhor disse a Seus discípulos: “Vós
deveis sofrer muito por causa de Meu Nome” e “Não vos envergonheis de Me
confessar diante dos homens; em verdade eu vos darei boca e sabedoria”, e,
finalmente, “Grande será a vossa recompensa no Céu”. E quando este discurso
começava a repercutir fora, pouco a pouco, por todas as regiões da Gália, os
francos, após ouvirem tais relatos, imediatamente mandaram costurar cruzes sobre
seu ombro direito, dizendo que seguiriam unanimemente os passos de Cristo, pelos
quais tinham sido resgatados das garras do inferno.
O Fim dos Exércitos de Pedro, O Eremita
Mas Pedro, acima mencionado, foi o primeiro a atingir Constantinopla, nas
calendas de agosto, e com ele uma grande hoste de Alamanos. Lá encontrou
Lombardos, Longobardos e muitos outros reunidos. O imperador lhes disse: “Não
cruzeis o Estreito até que o chefe da hoste dos Cristãos chegue, pois não sois
suficientemente fortes para travardes batalha contra os turcos”. Depois da
travessia, chegaram à Nicomédia, onde os Lombardos, Longobardos e Alamanos
separaram-se dos francos porque estes estavam inflados de rigor.

Os Lombardos e Longobardos escolheram um líder cujo nome era Reinaldo. Os


Alamanos fizeram o mesmo. Entraram na Romênia e continuaram por quatro dias,
para além da cidade de Nicéia. Eles encontraram uma fortaleza chamada
Xerigordo, que estava vazia, e tomaram-na. Nela encontraram uma ampla reserva
de cereais, vinho e carne, e uma abundância de todo tipo de provisões. Os turcos,
por conseguinte, crendo que os cristãos estavam na fortaleza, passaram a assediá-
la. Havia uma cisterna diante do portão da fortaleza, e em sopé uma fonte de água
corrente, perto da qual Reinaldo saiu para interceptar os turcos. Mas estes, que
chegaram no dia da Dedicação de São Miguel, encontraram Reinaldo e aqueles
que estavam com ele e mataram muitos deles.

Aqueles que permaneceram vivos fugiram para a fortaleza, que os turcos logo
sitiaram, privando-os de água. Tal foi a aflição de nosso povo causada pela sede,
que sangrou seus cavalos e jumentos e bebeu o sangue; outros jogavam seus cintos
e lenços para dentro da cisterna e espremiam a água em suas bocas; alguns
urinavam nas mãos uns dos outros e bebiam; outros cavavam o chão úmido e
deitavam de costas e espalhavam terra sobre os seus peitos para aliviar a secura
excessiva da sede.

Os bispos e sacerdotes, de fato, continuavam a confortar nosso povo, e a admoestá-


los para que não sucumbissem: “Em toda a parte sede fortes na fé de Cristo, e não
temais os que vos perseguem, assim como o Senhor disse: “Não temais os que
matam o corpo, mas não são capazes de matar a alma”. Esta angústia durou oito
dias. Então, o senhor dos Alamanos fez um acordo com os turcos de entregar-lhes
seus companheiros e, fingindo ir à luta, fugiu até eles, e muitos com ele. Contudo,
os que não estavam dispostos a negar o Senhor receberam sentença de morte;
alguns, a quem levaram vivos, dividiram entre si como ovelhas; colocaram outros
como alvos e os mataram com flechas; a outros venderam e doaram como animais.
Levaram alguns levaram cativos para suas próprias casas, outros para Coraçone,
outros para Antioquia, outros para Aleppo ou onde quer que morassem. Estes
foram os primeiros a receber um martírio feliz em nome do Senhor Jesus.
Em seguida, os turcos, ouvindo dizer que Pedro o Eremita e Walter Sans Avoir
estavam em Cibotos, localizada acima da cidade de Nicéia, lá foram com grande
alegria para matá-los e os que estavam com eles. E ao chegarem encontraram
Walter com seus homens e logo os mataram a todos. Mas Pedro o Eremita tinha
ido a Constantinopla, um pouco antes, porque não conseguia conter as diversas
hostes que não lhe davam ouvidos. De fato, os turcos precipitaram-se sobre estas
pessoas e mataram muitas delas. Algumas encontraram dormindo, algumas
deitadas, outras nuas – mataram a todas. Com essas pessoas encontraram um certo
padre celebrando Missa, a quem logo martirizaram sobre o altar.

Aqueles que conseguiram escapar fugiram para Cibotos, outros atiraram-se de


cabeça no mar, enquanto alguns se esconderam nas florestas e montanhas. Mas os
turcos, perseguindo-os até a fortaleza, colheram madeira para queimar o forte. Os
cristãos que estavam no forte, portanto, atearam fogo à madeira que tinha sido
colhida, e o fogo, virando em direção dos turcos, cremou alguns deles; mas o
Senhor livrou nosso povo do fogo naquele momento. No entanto, os turcos
pegaram-nos vivos e dividiram-nos, assim como haviam feito aos outros, e os
espalharam por todas estas regiões, alguns para Coraçone e outros para a Pérsia.

Isso tudo aconteceu no mês de outubro. O Imperador, ao ouvir que os turcos


tinham dispersado nosso povo desta maneira, ficou extremamente feliz, mandou
buscá-los e os fez cruzar o Estreito. E depois de o terem atravessado, comprou
todas as suas armas.

Dos Primeiros Exércitos Cruzados


Logo, os exércitos francos deixaram suas casas na Gália e, em seguida formaram
três grupos. Um grupo de francos, a saber, Pedro, o Eremita, o Duque Godofredo,
seu irmão Balduíno, e o Conde do Montes Ásperos, que entraram no Reino da
Hungria. Estes poderosíssimos cavaleiros, e muitos outros que desconheço, foram
pelo caminho que Santo Carlos Magno, o milagroso rei da França, há muito tempo
havia percorrido, até Constantinopla. O segundo grupo ‒ a saber: Raimundo,
Conde de São Gil e o Bispo de Poio, Ademar de Outeiro ‒ entraram na região da
Eslavônia. A terceira divisão, contudo, passou pela antiga estrada de Roma. Nesta
se estavam Boemundo de Taranto, Ricardo dos Principados de Salerno, Roberto
Conde de Flandres, Roberto o Normando, Hugo o Grande, Everardo de Poços,
Achard de Monte dos Melros, Ysooard de Monção, e muitos outros. Em seguida
foram para os portos de Bríndisi, ou Bari, ou Otranto. Então Hugo o Grande e
Guilherme, filho de Marchisus, foram para o mar no porto de Bari e, atravessando
o estreito, chegaram a Durazo. Mas o governador do lugar, com coração cheio de
más intenções, imediatamente levou estes renomadíssimos homens para o cativeiro
tão logo soube que tinham desembarcado ali, e ordenou que fossem
cuidadosamente conduzidos ao Imperador em Constantinopla, onde deveriam
prestar vassalagem a ele.
Como Boemundo de Taranto se Fez Cruzado
Mas Boemundo, poderoso na batalha, que estava envolvido no cerco de Amalfi no
mar de Salerno, soube que uma hoste incontável de Cristãos de francos havia
chegado para ir ao Sepulcro do Senhor, e que estavam preparados para dar batalha
contra a horda pagã. Começou então a investigar de perto que armas de combate
essas pessoas portavam, e que sinal de Cristo carregavam no caminho, ou que
brado de guerra davam. Em ordem, foram-lhe dadas as seguintes respostas: ‒ “Eles
carregam armas adequadas para a batalha; ‒ no ombro direito, ou entre ambos os
ombros, usam eles a Cruz de Cristo; ‒ o brado, “Deus o quer! Deus o quer! Deus o
quer!” bradam eles, em verdade, a uma só voz”.

Movido diretamente pelo Espírito Santo, ordenou que a mais preciosa capa que
trazia consigo fosse cortada em pedaços, e logo fez com que dela se fizessem
cruzes. Então, a maioria dos cavaleiros engajados naquele cerco correu
ansiosamente até ele, de maneira que o Conde Rogério permaneceu praticamente
sozinho. Retornando à sua terra de origem, o cavaleiro de Taranto diligentemente
se preparou para empreender, com seriedade, a viagem ao Santo Sepulcro.

Finalmente, cruzou ele o mar com seu exército. Com ele estavam Tancredo, filho
de Marchisus, Ricardo dos Principados de Salerno e o Conde Rainulfo seu irmão,
Roberto de Ansa, Herman de Canas, Roberto do Vale Surda, Roberto, filho de
Tostanus, Hunfredo, filho de Raoul, Ricardo, filho de Rainulfo, o Conde de
Roscigno com seus irmãos, Boellus de Chartres, Albaredo de Cagnano e Hunfredo
do Monte Sedeúdo. Todos estes cruzaram o mar para prestarem serviço a
Boemundo e desembarcaram na região da Bulgária, onde encontraram uma grande
abundância de cereais, vinho e alimentos. Daí descendo para o vale do
Andronópoli, eles esperaram até que todos também tivessem cruzado o mar.

Em seguida, Boemundo convocou um conselho com seu povo, confortando e


admoestando a todos (com estas palavras): ‒ “Senhores, ouvi vós todos, porque
somos peregrinos de Deus. Devemos, portanto, ser melhores e mais humildes que
antes. Não saqueiem esta terra, uma vez que ela pertence aos Cristãos, e que
ninguém, sob pena de ferir-se, tome mais do que necessita para comer”.

Partindo dali, caminhamos com grande abundância, de vila a vila, cidade a cidade,
fortaleza a fortaleza, até chegarmos a Castoria. Lá comemoramos solenemente o
Natal do Senhor. Ficamos lá por vários dias e procuramos um mercado, mas as
pessoas não estavam dispostas a nô-lo conceder porque temiam-nos muito,
pensando que não viemos como peregrinos, mas para devastar sua terra e matá-los.
Por isso, tomamos seu gado, cavalos, jumentos, e tudo que encontramos. Deixando
Castoria, entramos em Pelagonia, onde havia uma certa cidade de hereges
fortificada. Atacamo-la por todos os lados, e ela logo cedeu à nossa influência.
Então, ateamos fogo nela e queimamos o campo com seus habitantes, isto é, a
congregação dos hereges. Mais tarde, chegamos ao rio Vardar. E então o Senhor
Boemundo atravessou com seu povo, mas não com todos, pois o Conde de
Roscigno com seus irmãos ficaram para trás. Nisso, um exército do Imperador veio
e atacou o Conde com seus irmãos e todos que estavam com eles. Tancredo,
ouvindo isso, voltou e, arremessando-se para o rio nadou ao encalço dos outros, e
dois mil foram para o rio seguindo Tancredo.

Finalmente, caíram eles sobre os bizantinos, lutando com nossos homens.


Tancredo e seus homens atacaram o inimigo repentina e corajosamente e os
venceram gloriosamente. Tomaram a vários deles e levaram-nos, atados, na
presença de Boemundo, que falou para eles da seguinte forma: ‒ “Homens
miseráveis, por que motivo matais o povo de Cristo e meu? Não tenho nenhuma
desavença com seu Imperador”. Eles responderam: ‒ “Não podemos fazer o
contrário, estamos a serviço do Imperador, e o que ele ordena devemos cumprir”.
Boemundo lhes permitiu partir impunes. Esta batalha foi travada no quarto dia da
semana, que é o início do jejum. Por tudo seja bendito o Senhor! Amém.

O infeliz Imperador enviou um dos seus homens, a quem ele muito amava, e a
quem chamam Corpalatius, juntamente com nossos enviados, para nos conduzir
em segurança através de sua terra até que chegássemos a Constantinopla. E,
enquanto fazíamos uma pausa diante de suas cidades, mandou que os habitantes
nos oferecessem víveres, assim também como fizerem os de quem temos falado.

Na verdade, tinham eles um tão grande temor pelo mais valente exército do senhor
Boemundo, que não permitiram que nenhum de nós entrasse nas muralhas da
cidade. Nossos homens queriam atacar e tomar uma determinada cidade fortificada
porque estava cheia de todos os tipos de produtos. Mas o renomado Boemundo
recusou-se a dar permissão, não só por justiça para com a terra, mas também por
causa de seu juramento ao Imperador. Portanto, ao saber das notícias, ficou
enormemente irritado com Tancredo e todo o resto. Isso aconteceu ao entardecer.

Quando amanheceu, os moradores da cidade saíram e, em procissão, carregando


cruzes em suas mãos, puseram-se na presença de Boemundo. Satisfeito, ele os
recebeu, e com alegria deixou-os partir. Em seguida, chegamos a uma cidade
chamada Serrai, onde montamos nossas tendas e tivemos provisões suficientes
para aquele momento. Lá, o sábio Boemundo fez um acordo muito amistoso com
dois corpalatii e, em respeito por sua amizade, bem como por justiça para com a
terra, ordenou que todos os animais que tinham sido roubados por nossos homens
fossem devolvidos. Corpalatius prometeu a ele que enviaria mensageiros para, em
ordem, devolver os animais a seus proprietários. Então, continuamos de castelo em
castelo e de vila a vila até a cidade de Rusa.
O povo dos gregos saiu, trazendo-nos muitas provisões, e foi alegremente ao
encontro do Senhor Boemundo. Lá, instalamos tendas, no quarto dia da semana
antes da festa do Senhor. Lá também, o douto Boemundo deixou todo o seu
exército e avançou para falar com o Imperador em Constantinopla. Deu ele ordens
a seus vassalos, dizendo: ‒ “Aproximem-se da cidade gradualmente. Eu, porém,
continuarei à frente”. E ele levou consigo alguns à frente do exército de Cristo e,
vendo os peregrinos comprando comida, disse a si mesmo que sairia da estrada e
conduziria o seu povo onde viveriam felizes. Finalmente, entrou ele em um certo
vale cheio de bens de todos os tipos que são alimento adequado para o corpo, e
nele celebramos a Páscoa com muitíssima devoção.

Godofredo de Bulhão e a Perfídia do Imperador de Bizâncio


Duque Godofredo foi o primeiro de todos os senhores a vir a Constantinopla com
um grande exército. Chegou ele dois dias antes da Natividade de Nosso Senhor e
acampou fora da cidade, até que o iníquo Imperador ordenou que ele fosse
hospedado em um subúrbio da cidade. E quando o duque estava assim instalado,
todo dia enviava seus escudeiros para, sob juramento, buscar feno e outras
provisões para os cavalos.

Quando agora eles planejavam ir aonde quisessem, sob a força de seu juramento, o
Imperador colocou-os sob vigilância e deu ordem a seus turcópolos e patzínacos de
atacá-los e matá-los. Então, quando Balduíno, irmão do duque, soube disso,
colocou-se em uma emboscada e, em seguida, descobriu-os matando seu povo. Ele
os atacou com grande raiva e, com a ajuda de Deus, os derrotou. Capturando
sessenta deles, matou alguns e entregou o restante ao duque, seu irmão. Quando o
imperador soube disso, ficou extremamente zangado. Então o duque, vendo que o
Imperador ficou furioso, partiu com seus homens para fora e acampou fora da
cidade. Além disso, ao entardecer, o Imperador ordenou que suas forças atacassem
o duque e o povo de Cristo. O invicto duque e os cavaleiros de Cristo perseguiram-
nos, mataram sete deles, e afugentaram o resto até as portas da cidade. O duque,
retornando às suas tendas, permaneceu lá por cinco dias, até que tivesse chegado a
um acordo com o Imperador.

O Imperador disse-lhe para cruzar o Estreito de São Jorge, e prometeu que teria
todo o tipo de víveres lá, assim como em Constantinopla, e de distribuir esmolas
aos pobres com as quais eles pudessem viver.

Os Ardis Traiçoeiros do Imperador Grego


Quando o Imperador soube que o honradíssimo Boemundo tinha vindo até ele,
ordenou que este fosse recebido com honras e cuidadosamente instalado fora da
cidade. Quando ele tinha sido assim instalado, o ímpio imperador mandou buscá-lo
para que fosse falar com ele em segredo.

Com a mesma finalidade, vieram o duque Godofredo com seu irmão, e finalmente
o Conde de São Gil aproximou-se da cidade. Então, o Imperador, em ansiosa e
ardente fúria, estava excogitando algum modo pelo qual pudessem, hábil e
fraudulentamente, conquistar esses cavaleiros de Cristo. Mas a Graça Divina,
revelando seus planos, fez com que nem ele nem seus homens achassem tempo ou
lugar para lhes fazer mal. Por fim, todos os líderes nobres que estavam em
Constantinopla se reuniram. Temendo que fossem privados de seu país, eles
decidiram em seus conselhos e cálculos engenhosos, que nossos duques, condes,
ou todos os líderes deveriam prestar um juramento de fidelidade ao Imperador.

Estes absolutamente recusaram e disseram: ‒ “É-nos realmente indigno e, além


disso, parece-nos injusto prestar um juramento a ele.” Porventura nós seremos
ainda muitas vezes enganados por nossos líderes. No final, o que deveriam eles
fazer? Eles dizem que por força da necessidade humilharam-se, quisessem ou não,
à vontade do injustíssimo Imperador. Contudo, ao poderosíssimo Boemundo, a
quem ele temia enormemente porque em tempos passados, Boemundo muitas
vezes o tinha expulsado do campo com o seu exército, o Imperador disse que, se
ele, de bom grado prestar-lhe juramento, dar-lhe-ia, em troca, terras na extensão de
quinze dias de viagem até Antioquia, por oito de largura.

O imperador jurou-lhe de tal modo que, se ele observasse fielmente o juramento,


nunca ultrapassaria a sua própria terra. Por que razão cavaleiros tão corajosos e tão
fortes fizeram isso? Porque eles foram constrangidos por muita necessidade. O
Imperador também fez a todos os nossos homens uma promessa de segurança. Do
mesmo modo, fez ele o juramento de que ele, juntamente com seu exército, viria
conosco, por terra e por mar; que fielmente nos forneceria provisões por terra e
mar, e que ele diligentemente repararia nossos prejuízos; além disso, que ele não
queria e nem permitiria que qualquer um dos nossos peregrinos fosse perturbado
ou molestado a caminho do Santo Sepulcro.

Raimundo de Tolosa e as Intrigas do imperador Aleixo I Comneno


O Conde de São Gil, no entanto, foi instalado fora da cidade em um subúrbio de
Constantinopla. Assim, o Imperador ordenou ao conde que prestasse homenagem e
juramento de fidelidade a ele, como os outros haviam feito. E enquanto o
Imperador fazia essas demandas, o conde meditava como ele poderia vingar-se do
exército do Imperador. Mas o Duque Godofredo, o Conde Roberto e os outros
príncipes disseram a ele que seria injusto lutar contra os Cristãos. Boemundo
também disse que se o conde fizesse qualquer injustiça ao Imperador, e se
recusasse a prestar-lhe juramento de fidelidade, ele próprio tomaria o partido do
Imperador. Assim, o conde, depois de receber os conselhos de seus homens, jurou
que não consentiria em ter a vida e a honra de Aleixo maculada, quer fosse por ele
próprio ou por qualquer outra pessoa. Quando ele foi chamado para fazer o
juramento, respondeu que não faria isso, ainda que com risco de sua própria
cabeça. Em seguida, o exército do Senhor Boemundo aproximou-se de
Constantinopla.

Tancredo, de fato, o Príncipe Ricardo e quase a totalidade da força de Boemundo


com ele, atravessou furtivamente o Estreito, para evitar o juramento ao Imperador.
E agora o exército do Conde de São Gil aproximou-se de Constantinopla. O conde
permaneceu lá com seu próprio grupo. Portanto, o ilustre Boemundo ficou para
trás com o Imperador, a fim de planejarem como arranjar provisões para as pessoas
que estavam do outro lado da cidade de Nicéia.

A Vitória em Nicéia
E assim o Duque Godofredo foi primeiro a Nicomédia, juntamente com Tancredo
e todo o resto, e lá estiveram por três dias. O duque, na verdade, vendo que não
havia estrada aberta pela qual ele poderia conduzir seu exército para a cidade de
Nicéia, pois um exército tão numeroso não poderia passar pelo caminho por onde
os outros haviam passado antes, enviou à frente três mil homens com machados e
espadas para cortar e abrir essa estrada, para que ficasse aberta até a cidade de
Nicéia. Eles cortaram essa estrada por uma montanha muito grande e estreita, e
fixaram cruzes de ferro e madeira ao longo do caminho para que os peregrinos
identificassem o caminho.

Enquanto isso, chegamos à Nicéia, que é a capital de toda a Romênia, no quarto


dia, um dia antes da Nona de Maio, e lá acamparam. No entanto, antes da chegada
de Boemundo, tal era a escassez de pão entre nós que um pão era vendido por
vinte ou trinta denários.

Depois da chegada do ilustre Boemundo, este ordenou que o maior número de


provisões possível fosse trazido por mar, que chegaram por duas vias ao mesmo
tempo, por terra e por mar, e houve a maior abundância em todo o exército de
Cristo . Além disso, no dia da Ascensão do Senhor, começamos o ataque à cidade
por todos os lados, e a construção de máquinas de madeira e torres de madeira,
com os quais pudéssemos destruir as torres nas muralhas.

Atacamos a cidade com tanta coragem e ferocidade que chegamos a arruinar sua
própria muralha. Os turcos que estavam na cidade, horda de bárbaros que eram,
enviaram mensagens para outros que tinham vindo dar-lhes auxílio. Eis o que dizia
a mensagem: que eles poderiam aproximar-se da cidade com coragem e seguros, e
entrar pela porta do meio, pois desse lado ninguém iria se opor a eles ou molestá-
los. Este portão foi cercado naquele mesmo dia ‒ o sábado depois da Ascensão do
Senhor ‒ pelo Conde de São Gil e pelo Bispo de Poio.

O conde, aproximando-se por outro lado, foi protegido por poder divino, e com seu
poderosíssimo exército se glorificava por sua força terrestre. E assim ele encontrou
os turcos vindo aqui contra nós. Armados de todos os lados com o sinal da cruz,
ele correu em cima deles violentamente e venceu-os. Eles puseram-se em fuga e a
maioria deles foram mortos. Novamente eles voltaram, reforçados por outros,
alegres e exultantes, seguros do resultado da batalha, e trazendo consigo as cordas
com as quais nos levariam atados até Coraçone.

Além disso, alegres começaram a descer a crista da montanha, a uma curta


distância. Todos que desceram lá ficaram com suas cabeças cortadas nas mãos de
nossos homens; além disso, nossos homens lançavam as cabeças dos mortos longe
para dentro da cidade, para que os turcos pudessem se aterrorizar com isso. Em
seguida, o conde e o bispo reuniram-se em conselho a respeito de como eles
poderiam ter danificado uma certa torre que estava em frente a suas tendas.

Foram designados homens para fazer a escavação, com besteiros e arqueiros para
defendê-los de todos os lados. Então, eles cavaram até as fundações da muralha e
assentaram vigas de madeira sob ela, e em seguida atearam fogo a ela. No entanto,
a noite tinha chegado, a torre já tinha caído no meio da noite, e porque era noite
não poderiam lutar com o inimigo.

Com efeito, durante a noite os turcos apressadamente construíram e restauraram


tão solidamente a muralha, que quando amanheceu ninguém poderia molestá-los
daquele lado. Agora, o Conde da Normandia veio, o Conde Estêvão e muitos
outros, e, finalmente, Roger de Barneville. Por fim, Boemundo, bem na frente do
exército, sitiou a cidade. Ao seu lado estava Tancredo, depois dele o Duque
Godofredo, o Conde de São Gil, perto de quem estava o Bispo de Poio.

De tal maneira foi sitiada por terra que ninguém se atrevia a entrar ou sair. Lá
todas as nossas forças foram reunidas em um só corpo, e quem poderia ter contado
um tão grande exército de Cristo? Penso que ninguém jamais viu ou verá
cavaleiros tão distintos! No entanto, havia um grande lago de um lado da cidade,
no qual os turcos enviavam seus navios para trazerem forragem, madeira, e muitas
outras coisas.

Então nossos líderes reuniram-se em conselho e enviaram mensageiros a


Constantinopla para pedir ao Imperador que mandasse navios para Cibotos, onde
há um forte, e que ele devia mandar trazer bois para arrastar os navios pelas
montanhas e pelos bosques, até que se aproximassem do lago. Isso foi feito
imediatamente, e ele enviou seus turcópolos com eles. Eles não quiseram colocar
os barcos no lago no mesmo dia em que eles foram trazidos, mas sob o manto da
noite eles lançaram-nos no lago. Os barcos foram enchidos com turcópolos bem
enfeitados com armas.

Além disso, nos primeiros albores da manhã, os navios colocaram-se em boa


ordem e apressaram-se através do lago contra a cidade. Os turcos maravilharam-se
ao vê-los, sem saber se eram tripulados por seus próprios exércitos ou pelo do
Imperador. No entanto, quando reconheceram que era o exército do Imperador,
ficaram amedrontados até a morte, chorando e lamentando, e os francos se
alegraram e deram glória a Deus. Os turcos, além disso, vendo que não poderiam
ter nenhum outro auxílio de seus exércitos, enviaram uma mensagem ao
Imperador, de que estariam dispostos a entregar a cidade, se lhes permitissem ir
embora com suas esposas e filhos e todos os seus bens. Então o Imperador, cheio
de vaidade e maus pensamentos, mandou que eles partissem impunes, sem nenhum
medo, e que fossem levados até ele em Constantinopla, com grande certeza de
segurança. Destes cuidava ele zelosamente, de modo que os tinha preparado contra
qualquer dano ou obstáculo da parte dos francos.

Estávamos empenhados naquele cerco há sete semanas e três dias. Muitos dos
nossos homens lá receberam o martírio, e, contentes e jubilosos, entregaram suas
almas felizes a Deus. Muitos dos pobres morreram de fome pelo Nome de Cristo, e
estes levaram triunfalmente para o Céu suas vestes do martírio clamando em uma
voz, “Vingai, Senhor, nosso sangue que foi derramado por Vós, que sois bendito e
digno de louvor por todo o sempre. Amém”. Enquanto isso, após a cidade ter-se
rendido e os turcos conduzidos a Constantinopla, o Imperador cada vez mais
alegre porque a cidade tinha sido entregue ao seu poder, ordenou que uma enorme
distribuição de esmolas fosse feita aos nossos pobres.
A Batalha de Dorileia
No terceiro dia da marcha para Antioquia, os turcos fizeram um assalto violento a
Boemundo e seus companheiros. Os turcos começaram a gritar, a uivar e chorar
em voz alta incessantemente, fazendo um som infernal, não sei como, na sua
própria língua.

Quando Boemundo viu de longe os inúmeros turcos gritando e chorando num som
diabólico, imediatamente ordenou que todos os cavaleiros desmontassem e
armassem prontamente um forte. Antes, falou a todos os soldados: ‒ “Meus
senhores e os mais fortes dos soldados de Cristo! Uma difícil batalha está se
formando em torno de nós. Que todos avancem contra eles, corajosamente, e que a
infantaria monte este fortim com cuidado e rapidez“.
Quando tudo isso tinha se passado, os turcos já haviam nos cercado por todos os
lados. Eles nos atacaram, cortando, jogando e atirando flechas por toda parte, de
uma forma estranha. Embora mal pudéssemos contê-los, ou até mesmo suportar o
peso de um tal exército, no entanto, todos nós conseguimos manter nossas fileiras.
Nossas mulheres foram uma grande bênção para nós naquele dia, pois carregaram
água para nossos combatentes e confortaram os lutadores e defensores. O sábio
Boemundo imediatamente ordenou que os outros, ou seja, o Conde de São Gil, o
Duque Godofredo, Hugo de França, o Bispo de Poio, e todo o resto dos soldados
de Cristo se apressassem e marchassem rapidamente para o campo de batalha. Ele
disse: ‒ “Se eles querem lutar hoje, quem venham com força total”.

O forte e corajoso Duque Godofredo e Hugo de França adiantaram-se com seus


exércitos. O Bispo de Poio seguiu com suas tropas, e o Conde de São Gil veio em
seguida, com um grande exército. Nosso povo estava muito curioso para saber de
onde uma tal multidão de turcos, árabes, sarracenos, e outros cujos nomes ignoro,
tinha vindo. Com efeito, esta raça excomungada enchia todas as montanhas,
montes, vales e planícies por todos os lados, tanto dentro como fora do campo de
batalha.

Tivemos uma conversa secreta e, depois de louvarmos a Deus e de termos nos


aconselhado, dissemos: ‒ “Unamo-nos todos na Fé de Cristo e na vitória da Santa
Cruz, pois, se Deus quiser, hoje todos nos tornaremos ricos”. Nossas forças
puseram-se em uma contínua linha de batalha. À esquerda havia Boemundo,
Roberto o Normando, o prudente Tancredo, Roberto de Ansa, e o Príncipe
Ricardo.

O Bispo de Poio aproximou-se por uma outra montanha e, assim, os turcos infiéis
ficaram cercados por todos os lados. (o Beato Bispo Ademar tinha, em outras
palavras, conduzido um grupo de cavaleiros franceses do sul através das
montanhas, ao redor e atrás das linhas turcas. O aparecimento súbito no campo do
Bispo e seus cavaleiros, que vieram por trás dos flancos turcos, pôs os turcos em
pânico e garantiu a vitória aos cruzados). Raimundo de São Gil também lutou no
lado esquerdo. À direita estavam o Duque Godofredo, o Conde de Flandres (um
valentíssimo cavaleiro) e Hugo de França, juntamente com muitos outros cujos
nomes desconheço. Logo que nossos cavaleiros chegaram, os turcos, árabes,
sarracenos, angolanos, e todas as tribos bárbaras rapidamente fugiram pelos
atalhos das montanhas e planícies. Os turcos, persas, paulicianos, sarracenos,
angolanos e outros pagãos eram 360.000, além dos árabes, cujos números só Deus
conhece.
Com velocidade extraordinária, fugiram para suas tendas, mas não puderam
permanecer lá por muito tempo. Mais uma vez fugiram e nós os seguimos,
matando-os um dia inteiro. Levamos muitos despojos: ouro, prata, cavalos, burros,
camelos, carneiros, gado, e muitas outras coisas que não conhecemos.

Se o Senhor não estivesse conosco na batalha e não tivesse nos enviado um outro
exército repentinamente, nenhum dos nossos homens teria escapado, pois a batalha
durou da terceira até a hora nona. Mas Deus Todo Poderoso é misericordioso e
bondoso. Ele não permitiu que Suas tropas perecessem, nem quis Ele entregá-las
nas mãos do inimigo; antes, Ele prontamente enviou-nos ajuda.

Dois dos nossos honrados cavaleiros foram mortos, a saber, Godofredo de Montes
Ásperos e Guilherme, o filho do marquês e irmão de Tancredo. Alguns outros
cavaleiros e soldados de infantaria, cujos nomes não sei, também foram mortos.

Quem será suficientemente sábio e instruído para se atrever a descrever a


prudência, coragem e bravura dos turcos? Eles acreditavam que poderiam
aterrorizar a raça dos francos, ameaçando-os com suas flechas, como tinham
aterrorizado os árabes, sarracenos, armênios, sírios e gregos. Mas, queira Deus,
eles nunca serão tão poderosos como nossos homens. Na verdade, os turcos dizem
que são aparentados aos francos e que nenhum homem deveria, por natureza, ser
cavaleiro, a não ser os francos e os próprios muçulmanos.

Falo a verdade, que ninguém pode negar. Que se tivessem sido sempre firmes na
Fé de Cristo e do Cristianismo, se tivessem querido confessar ao Deus Trino, e se
tivessem honestamente acreditado, de boa fé, que o Filho de Deus nasceu da
Virgem, que Ele sofreu e ressuscitou dos mortos e subiu ao Céu na presença dos
Seus discípulos, que Ele enviou o conforto perfeito do Espírito Santo, e que Ele
reina no Céu e na terra; se eles tivessem acreditado em tudo isso, teria sido
impossível encontrar um povo mais poderoso, mais corajoso, ou mais hábil na arte
da guerra. Pela graça de Deus, no entanto, nós os derrotamos. A batalha ocorreu no
dia primeiro de Julho.

Das Atribulações dos Cruzados em Antioquia


Aconteceu em Antioquia que os grãos e os alimentos começaram a ser
excessivamente caros antes da Natividade do Senhor. Não nos atrevemos a ir para
um grande ataque; não poderíamos encontrar absolutamente nada para comer
dentro da terra dos Cristãos, e ninguém se atrevia a entrar na terra dos sarracenos
sem um grande exército.

Na última convocação de uma assembleia, os senhores decidiram como eles


poderiam cuidar de tantas pessoas. Concluíram eles no conselho que uma parte da
nossa força deveria sair diligentemente para arrecadar alimentos e guardar o
Exército em toda parte, enquanto a outra parte deveria permanecer fiel na vigia do
inimigo.

Finalmente, Boemundo disse: ‒ “Senhores e ilustríssimos cavaleiros, se assim o


desejarem, e se parecer digno e bom para Vós, serei eu que partirei com o Conde
de Flandres, nesta busca”. Assim, quando as festividades da Natividade haviam
sido gloriosíssimamente celebradas na segunda-feira, segundo dia da semana, eles
e mais de vinte mil cavaleiros e soldados de infantaria partiram e entraram na terra
dos sarracenos, seguros e ilesos.

Foram reunidos, de fato, muitos turcos, árabes e sarracenos de Jerusalém,


Damasco, Aleppo, e de outras regiões, que estavam a caminho para reforçar a
Antioquia. Então, quando souberam que um exército Cristão estava sendo levado
para sua terra, prepararam-se para a batalha contra os Cristãos, e logo ao
amanhecer chegaram ao local onde nosso povo estava reunido. Os bárbaros se
dividiram e formaram duas linhas de batalha, uma na frente e uma atrás,
procurando cercar-nos de todos os lados.

O digno Conde de Flandres, portanto, cingido por todos os lados com a armadura
da Fé verdadeira e o sinal da cruz, que ele usava fielmente todos os dias, foi de
encontro a eles, juntamente com Boemundo, e nossos homens precipitaram-se
todos juntos sobre eles. Eles imediatamente puseram-se em fuga e às pressas
deram as costas; muitos deles foram mortos, e nossos homens levaram seus
cavalos e outros despojos. Mas outros, que tinham permanecido vivos, fugiram
rapidamente e partiram para a ira da perdição. Nós, porém, voltando com grande
alegria, louvamos a Deus e glorificamos a Deus Trino em Um, que vive e reina
agora e para sempre, amém.

Finalmente, os turcos, na cidade de Antioquia, inimigos de Deus e do Cristianismo


Santo, crendo que o Senhor Boemundo e o Conde de Flandres não estavam no
cerco, saíram da cidade e ousadamente avançaram para dar batalha contra nós.
Sabendo que os cavaleiros mais valentes estavam fora, eles armaram emboscada
para nós em todos os lugares, sobretudo daquele lado onde o cerco estava se
estendendo.

Uma quarta-feira descobriram que podiam resistir e nos atacar. Os mais iníquos
bárbaros saíram cautelosamente e, caindo violentamente em cima de nós, mataram
muitos dos nossos cavaleiros e soldados que estavam fora de sua guarda. Até
mesmo o Bispo de Poio, nesse dia amargo, perdeu seu senescal, que estava
portando seu estandarte. Não fosse um córrego que nos separava, eles teriam nos
atacado mais vezes e causado grande dano ao nosso povo.

Nessa altura, o célebre Boemundo, avançando com seu exército da terra dos
sarracenos, chegou à montanha de Tancredo, desejando saber se por acaso
encontraria qualquer coisa para levar consigo, porque eles estavam saqueando toda
a região. Alguns, na verdade, encontraram algo, mas outros foram embora de mãos
vazias. Então o sábio Boemundo, censurou-lhes, dizendo: ‒ “Oh, povo infeliz e
miserável! Oh, o mais vil de todos os Cristãos! Por que quereis ir embora tão
rapidamente? Apenas parai, parai até que estejamos todos reunidos, e não vagueis
como ovelhas sem pastor. Além disso, se o inimigo encontrá-los vagando, matar-
vos-ão, pois eles estão vigiando noite e dia para encontrá-los sozinhos, ou errando
em grupos sem um líder, e eles empenham-se diariamente para matá-los e levá-los
cativos”. Quando concluiu suas palavras, ele voltou para seu acampamento com
seus homens, mais de mãos vazias que cheias.
A Conquista de Antioquia
Não posso enumerar todas as coisas que fizemos antes da cidade ser tomada,
porque não há absolutamente ninguém nestas regiões, quer seja clérigo ou leigo,
que possa escrever ou relatar como as coisas aconteceram. Entretanto, vou dizer
um pouco. Havia um certo Emir da raça dos turcos, cujo nome era Pirus, que
tornou-se grande amigo (e espião) de Boemundo.
Através de um intercâmbio de mensageiros, Boemundo muitas vezes pressionava
este homem para recebê-lo dentro da cidade da forma mais amistosa possível e,
depois de prometer a ele o Cristianismo mais abertamente, mandou dizer que o
faria rico, com muitas honras. Pirus rendeu-se a essas palavras e promessas,
dizendo: ‒ “Guardo três torres, e prometo entregá-las gratuitamente a ele, e a
qualquer hora que ele deseje eu o receberei dentro delas”.

Assim, Boemundo estava seguro de que entraria na cidade, e, encantado, com


mente serena e semblante alegre, dirigiu-se a todos os líderes, com palavras
alegres, tais como: ‒ “Homens, ilustríssimos cavaleiros, vêde como todos nós, em
maior ou menor grau, estamos em extrema pobreza e miséria, e como ignoramos
totalmente de que lado nos sairemos melhor. Portanto, se vos parecer bom e
honroso, que um de nós se coloque à frente do resto, e se ele puder obter ou
planejar (a captura) da cidade por qualquer plano ou esquema, por si ou com a
ajuda de outros, vamos a uma só voz conceder-lhe a cidade de presente”.

Eles terminantemente recusaram e repeliram, dizendo: ‒ “Esta cidade não deve ser
dada a ninguém, mas vamos possuí-la equitativamente, já que tivemos esforço
igual, então tenhamos recompensa idêntica com ela”. Boemundo, ao ouvir estas
palavras, riu um pouco para si mesmo e retirou-se imediatamente.

Não muito tempo depois ouvimos mensagens de um exército de inimigos nossos:


turcos, publicanos, angolanos, azimitas, e muitas outras nações gentias que não sei
como enumerar ou nomear. Imediatamente todos os nossos chefes se reuniram, e
realizaram um conselho, dizendo: ‒ “Se Boemundo pode tomar a cidade, por si
próprio ou com a ajuda de outros, vamos dá-la a ele livremente e com o
assentimento de todos, com a condição de que se o Imperador vier em nosso
auxílio e desejar executar todo o acordo, como jurou e prometeu, vamos, por
direito, devolvê-la a ele. Mas se ele não fizer isso, que Boemundo a mantenha sob
seu poder”. Imediatamente, portanto, Boemundo começou humildemente a
suplicar a seu amigo, diariamente, oferecendo, do modo mais humilde, as maiores
e mais doces promessas desta forma: ‒ “Vede, verdadeiramente temos agora um
momento adequado para realizar todo o bem que desejamos; portanto, agora, Pirus,
meu amigo, ajude-me”. Enormemente satisfeito com a mensagem, replicou que o
ajudaria de todas as maneiras, como ele deveria fazer. Assim, ao cair da noite, ele
cautelosamente enviou seu filho até Boemundo como garantia de que ele pudesse
estar absolutamente certo de sua entrada na cidade.
Mandou também um recado para ele desta maneira: ‒ “Amanhã, soe as trombetas
para que o exército Franco adiante-se, fingindo que saquearão a terra dos
sarracenos, e depois voltem rapidamente pela montanha, à direita. De fato, com a
mente alerta aguardarei esses exércitos, e eu vou levá-los para as torres que tenho
em meu poder e encargo”.

Então Boemundo mandou chamar um servo seu de nome Malacorona, e ordenou-


lhe que, como arauto, admoestasse fielmente a maioria dos francos para se
prepararem para ir à terra dos sarracenos.

E assim foi feito. Nisso, Boemundo confiou seu plano ao Duque Godofredo e ao
Conde de Flandres, também ao Conde de São Gil e ao Bispo de Poio, dizendo: ‒
“A graça de Deus favorecendo, esta noite Antioquia nos será entregue”. Todas
estas questões foram finalmente acertadas; os cavaleiros se colocariam nos
planaltos e os soldados no pé da montanha.

A noite toda eles cavalgaram e marcharam até o amanhecer, e depois começaram a


se aproximar das torres que Pirus vigilantemente guardava. Boemundo logo
desmontou e deu ordens para o resto, dizendo: ‒ “Ide, com a mente segura e de
feliz acordo, e subi pela escada para dentro de Antioquia que, se Deus quiser,
teremos de imediato em nosso poder”.

Subiram a escada, que já tinha sido colocada e firmemente amarrada às estruturas


da muralha da cidade. Cerca de sessenta dos nossos homens subiram e
distribuíram-se entre as torres que aquele homem estava vigiando. Pirus, ao ver
que tão poucos dos nossos homens haviam subido, começou a tremer de medo por
si próprio e por nossos homens, temendo que caíssem nas mãos dos turcos.

E ele disse, “Micro francos echome ‒ Há poucos francos aqui! Onde está o
ferocíssimo Boemundo, aquele invicto cavaleiro?” Enquanto isso, um servo
Longobardo desceu novamente, e correu o mais rápido até Boemundo, dizendo: ‒
“Por que estais aqui, ilustre homem? Por que vieste para cá? Eis que já tomamos
três torres!”
Boemundo adiantou-se com o resto, e todos foram alegres até a escada. Assim,
quando aqueles que estavam nas torres viram isso, começaram a gritar com vozes
alegres: ‒ “Deus o quer!” Começamos a igualmente a gritar, agora os homens
começaram a subir lá em cima de modo espantoso. Então, eles chegaram ao topo e
correram apressadamente para as outras torres.
Aqueles com os quais eles se depararam ali foram logo postos à morte; e até
mesmo um irmão de Pirus foi morto. Entretanto, a escada pela qual tínhamos
subido quebrou acidentalmente, baixando então, entre nós, o maior desânimo e
tristeza. Contudo, embora a escada estivesse quebrada, havia ainda perto de nós
um portão que havia sido fechado do lado esquerdo e, por ser noite, tinha
permanecido despercebido por algumas pessoas.

Mas, pelo tato e indagando sobre ele, nós o encontramos, e todos correram para ele
e, depois de tê-lo arrombado, entramos por ele. Então, o barulho de uma multidão
incontável ressoou por toda a cidade.

Boemundo não deu nenhum descanso a seus homens, mas ordenou que seu
estandarte fosse levado até a frente do castelo em uma colina. Na verdade, todos
juntos gritavam na cidade. Além disso, quando ao amanhecer, aqueles que se
encontravam nas tendas ouviram o violentíssimo brado ressoando pela cidade,
saíram correndo às pressas e viram o estandarte de Boemundo em cima do monte,
e com rapidez todos correram precipitadamente e entraram na cidade.

Eles mataram os turcos e sarracenos que lá encontraram, exceto aqueles que


tinham fugido para a cidadela. Outros turcos saíram pelas portas e, fugindo,
escaparam vivos. Mas Cassiano, seu senhor, temendo enormemente a raça dos
francos, fugiu com os muitos outros que com ele estavam e entraram na terra de
Tancredo, não muito longe da cidade. Seus cavalos, entretanto, estavam exauridos,
e, refugiando-se em uma quinta, arrojaram-se em uma casa.

Os habitantes da montanha, sírios e armênios, ao reconhecer Cassiano, logo o


agarraram, cortaram sua cabeça, e levaram-na à presença de Boemundo, para que
pudessem ganhar sua liberdade. Eles também venderam sua espada da cintura e
bainha por sessenta besantes.

Tudo isso ocorreu no terceiro dia do mês de Junho, no quinto dia da semana, no
terceiro dia antes das Nonas de Junho. Todas as praças da cidade já estavam
repletas de cadáveres, de modo que ninguém podia suportá-la devido o mau odor.
Só se conseguia andar nas ruas da cidade passando por cima dos corpos dos
mortos.
Os Chefes Muçulmanos Contra-Atacam
Algum tempo antes, Cassiano, Emir de Antioquia, tinha enviado uma mensagem
para Curbara, chefe do Sultão da Pérsia, enquanto ele ainda estava na Coraçone,
para vir ajudá-lo enquanto ainda havia tempo, porque um poderosíssimo exército
de francos tinha sitiado Antioquia.

Se o Emir o ajudasse, Cassiano lhe daria Antioquia, ou o enriqueceria com um


dom muito grande. Como Curbara tinha, há muito tempo, reunido um enorme
exército de turcos, e tinha recebido permissão do Califa, o seu papa, para matar os
cristãos, ele começou uma longa marcha para Antioquia.

O Emir de Jerusalém veio em seu auxílio com um exército, e o Rei de Damasco


chegou lá com um exército muito grande. Na verdade, Curbara reuniu também
incontáveis povos pagãos: turcos, árabes, sarracenos, publicanos, azimitas, curdos,
persas, angolanos e inúmeros outros povos.

Os angolanos eram três mil, e não temiam lanças, setas, nem qualquer tipo de
armas, porque eles e todos os seus cavalos eram equipados com ferro ao redor, e
em batalha eles se recusaram a carregar qualquer armamento, exceto espadas.
Todos estes vieram ao cerco de Antioquia para dispersar o agrupamento de
francos.

E quando se aproximaram da cidade, Sensadolus, filho de Cassiano, Emir de


Antioquia, foi ao encontro deles, e em lágrimas correu logo para Curbara,
rogando-lhe com estas palavras: ‒ “Chefe invencível, eu, um pleiteante, suplico-
Vos que me ajudeis, agora que os francos estão me sitiando de todos os lados na
cidade de Antioquia; agora que têm a cidade sob sua influência e procuram afastar-
nos da região da Romênia, ou mesmo ainda da Síria e de Coraçone. Eles têm feito
tudo o que queriam, mataram meu pai, agora nada mais resta a não ser matarem-
me, e a Vós, e todos os outros de nossa raça. Há muito tempo espero sua ajuda
para socorrer-me deste perigo”. Respondeu-lhe Curbara: ‒ “Se quereis que de boa
vontade eu entre em seu serviço, e para ajudá-lo fielmente neste perigo, ponha
aquela cidade em minhas mãos, e depois vêde como eu o servirei e protegerei com
os meus homens”. Sensadolus respondeu: ‒ “Se puderes matar todos os francos e
dar-me suas cabeças, dar-te-ei a cidade, e prestar-te-ei honras e guardarei a cidade
sob teu senhorio”. A isto Curbara respondeu: ‒ “Isso não vai dar certo; entregue-
me a cidade”. E, querendo ou não, ele lhe entregou a cidade.
Mas no terceiro dia depois que tínhamos entrado na cidade, a guarda avançada de
Curbara correu na frente da cidade; seu exército, no entanto, acampou no Portão de
Ferro. Tomaram a fortaleza de assalto e mataram todos os seus defensores, que
encontramos atados com correntes de ferro, depois que a maior batalha havia sido
travada. No dia seguinte, o exército dos pagãos moveu-se, e, aproximando-se da
cidade, acampou entre os dois rios e ficou lá por dois dias.

Depois de terem retomado a fortaleza, Curbara convocou um de seus emires que


ele sabia ser veraz, gentil e sereno e lhe disse: ‒ “Quero que tomeis sob vosso
encargo a guarda desta fortaleza em fidelidade a mim, porque há muito tempo sei
que sois fidelíssimo; portanto, peço-vos guardar este castelo com o maior cuidado,
pois, como sei que sois prudentissimo em vossas ações, não posso encontrar aqui
ninguém que seja mais veraz e corajoso”. A ele, o emir respondeu:‒ “Nunca
recusaria obedecê-lo em tal serviço, mas antes de que me persuadais apelando,
darei meu consentimento, com a condição de que, se os francos expulsarem seus
homens do mortal campo de batalha e conquistarem, imediatamente entregarei esta
fortaleza a eles”. Curbara disse-lhe: ‒ “Reconhecendo sua honradez e sabedoria,
consinto plenamente a qualquer bem que deseje fazer”. E então Curbara retornou
ao seu exército.

Imediatamente os turcos, debicando dos ajuntamentos de francos, trouxeram à


presença de Curbara uma certa espada muito miserável coberta de ferrugem, um
arco de madeira muito desgastado e um lança extremamente inútil que tinham
acabado de tomar de peregrinos pobres, e disseram: ‒ “Eis as armas que os francos
levam para travar batalha contra nós!”

Então Curbara começou a rir, dizendo diante de todos que estavam naquele
encontro: ‒ “Estas são as guerreiras e brilhantes armas que os cristãos trouxeram
contra nós na Ásia, com as quais eles esperam e contam expulsar-nos para além
dos limites da Coraçone e apagar nossos nomes para além dos rios da Amazônia,
eles que tocaram nossos parentes da Romênia e da cidade real de Antioquia, que é
a famosa capital de toda a Síria!”

Em seguida, convocou seu escriba e disse: ‒ “Escreva rapidamente diversos


documentos que devem ser lidos em Coraçone. Para o califa e para nosso Rei, o
Senhor Sultão, o mais valente dos guerreiros, e para todos os mais ilustres gazis
(guerreiro sagrado islâmico) de Coraçone; saudações e homenagem sem medida.
Deixe-mo-los alegrarem-se e deleitarem-se em alegre concórdia e satisfazerem
seus apetites; deixe-mo-los comandarem e darem a conhecer a toda aquela região
que as pessoas se entregam inteiramente à exuberância e ao luxo, e que se alegram
de ter muitos filhos para lutar bravamente contra os Cristãos. Recebam eles, com
prazer, estas três armas que recentemente tomamos de um esquadrão de francos, e
que saibam agora que armas os exércitos francos usam contra nós; arcos muito
finos e perfeitos que usarão contra as nossas armas, que são duas, três vezes, ou até
mesmo quatro vezes soldadas ou purificadas como a mais pura prata ou ouro.
Além disso, saibam todos, também, que impedi os francos de entrarem em
Antioquia, e que mantenho a cidadela à minha inteira disposição, enquanto os
inimigos estão embaixo na cidade. Da mesma forma, agora tenho a todos em
minhas mãos. Fá-los-ei sofrer pena de morte, ou serem levados até Coraçone no
mais duro cativeiro, porque com suas armas estão nos ameaçando para retirar-nos
e expulsar-nos de todo o nosso território, ou lançar-nos fora além da Índia
superior, como expulsaram todos os nossos irmãos da Romênia ou da Síria. Agora
eu te juro por Maomé e todos os nomes dos deuses, que eu não voltarei diante de
Vós até que eu tenha adquirido, com a minha forte mão direita, a cidade régia de
Antioquia, toda a Síria, Romenia e Bulgária, até a Apúlia à honra dos deuses, e à
Vossa glória, e à de todos aqueles que são raça dos turcos”. E assim concluiu ele
suas palavras.
A Santa Lança de São Longuinho
Mas, um dia, quando nossos chefes, tristes e desconsolados, estavam postados
diante da fortaleza de Antioquia, um sacerdote veio até eles e disse: ‒ “Senhores,
se vos agradar, ouvi um determinado assunto que vi em uma visão. Quando uma
noite, deitado na igreja de Santa Maria, Mãe de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo,
o Salvador do mundo, apareceu-me com Sua Mãe e São Pedro, príncipe dos
apóstolos, e parou diante de mim e disse: ‘Vós me conheceis?’ ‒“Respondi: ‘Não’.
Ao ouvir estas palavras, eis que vi um dia de cruz em Sua cabeça. Uma segunda
vez, pois, o Senhor me perguntou: ‘Vós me conheceis?’ Para ele, eu respondi:
‘Não vos conheço, exceto que vejo uma cruz sobre Vossa cabeça como a de Nosso
Salvador. Ele respondeu: ‘Sou Ele’. Imediatamente caí aos Seus pés, suplicando
humildemente que Ele nos ajudasse na opressão em que nos achávamos. O Senhor
respondeu: ‘Eu vos tenho ajudado com benevolência e agora vou ajudá-lo. Permiti
que tivesses a cidade de Nicéia, e que vencesses todas as batalhas e vos conduzi
para cá até este ponto, e Me afligi com a miséria que sofrestes no cerco de
Antioquia. Eis que com ajuda oportuna conduzi-o são e salvo para dentro da
cidade, e atentai! Vós tendes tido muitos prazeres maus com mulheres cristãs e
pagãs depravadas, dos quais um mau odor além da medida sobe até o Céu’. Então
a Virgem amorosa e o Bem-aventurado Pedro cairam aos Seus pés, orando e
suplicando-Lhe que ajudasse Seu povo no presente martírio, e o bem-aventurado
Pedro disse: ‘Senhor, por tanto tempo o exército pagão tomou minha casa, e nela
têm-se cometido pecados indescritíveis. Mas agora, Senhor, desde que o inimigo
foi expulso daqui, os anjos se alegram no Céu’. O Senhor então disse-me: ‘Vá
dizer ao Meu povo que volte para Mim, e Eu retornarei a eles, e dentro de cinco
dia enviar-lhes-ei uma grande ajuda. Que eles oficiem todos os dias o responsório
Congregati sunt’. Senhores, se vós não acreditais que isso seja verdade, deixe-me
subir até esta torre, e me jogarei para baixo, e se eu sair ileso, acreditem que isso é
verdade. Se, no entanto, eu tiver sofrido qualquer dano, degolem-me, ou lancem-
me no fogo. Então, o Bispo de Poio ordenou que o Evangelho e a Cruz fossem
levados, para que ele pudesse prestar juramento de que isso era verdade.

Todos os nossos chefes foram orientados nesse momento a prestar o juramento de


que nenhum deles fugiria, para a vida ou para a morte, enquanto estivessem vivos.
Diz-se que Boemundo foi o primeiro a fazer o juramento, em seguida o Conde de
São Gil, Roberto da Normandia, o Duque Godofredo, e o Conde de Flandres.
Tancredo, na verdade, jurou e prometeu desta forma: que, enquanto ele tivesse
somente quarenta cavaleiros com ele, não só não se retiraria dessa batalha, mas
também, da marcha para Jerusalém. Por causa disso, a assembleia dos cristãos
exultou muito ao ouvir esse juramento.
Enfim um grande milagre se realizou, pois havia um certo peregrino do nosso
exército, cujo nome era Pedro, a quem, antes de entrar na cidade, Santo André, o
apóstolo apareceu e disse: ‒ “Que fazeis, bom homem?” Pedro respondeu: “Quem
és?” O apóstolo disse a ele: ‒ “Sou Santo André, o apóstolo. Saiba, meu filho, que
quando entrares na cidade, ide à igreja de São Pedro. Lá acharás a Lança de Nosso
Salvador, Jesus Cristo, com a qual Ele foi ferido enquanto estava pendurado no
braço da cruz”. Tendo dito tudo isso, o apóstolo imediatamente se retirou. Mas
Pedro, com medo de revelar o conselho do apóstolo, não sabia como dar isso a
conhecer aos peregrinos. No entanto, disse: ‒ “Senhor, quem acreditaria nisso?”
Mas naquela hora Santo André pegou-o e levou-o para o lugar onde a Lança estava
escondida no chão. Quando estávamos, uma segunda vez, em tais estreitos como já
mencionamos acima, Santo André voltou, dizendo-lhe: ‒ “Por que motivo ainda
não tirastes a Lança da terra, como te ordenei? Saiba, na verdade, que quem
trouxer essa Lança na batalha nunca será derrotado pelo inimigo”.

Pedro, na verdade, imediatamente deu a conhecer aos nossos homens o mistério do


apóstolo. O povo, porém, não acreditou, mas recusou terminantemente, dizendo:
“Como podemos acreditar nisso?” Pois eles estavam totalmente apavorados e
pensavam que fossem morrer logo.

Então, este homem saiu e jurou que tudo era muitíssimo verdadeiro, uma vez que
Santo André lhe havia aparecido duas vezes numa visão, e lhe tinha dito:
‒ “Levantai-vos e ide dizer ao povo de Deus que não tenha medo, mas confie
firmemente com todo o coração no Deus único e verdadeiro e eles serão vitoriosos
em toda parte. Dentro de cinco dias o Senhor lhes mandará um tal sinal que eles
ficarão felizes e alegres, e se quiserem lutar, deixai-os ir imediatamente para a
batalha, todos juntos, e todos os seus inimigos serão derrotados, e ninguém poderá
lhes opor”.

Então, quando souberam que seus inimigos seriam derrotados por eles, começaram
logo a recobrar ânimo e a se encorajar, dizendo: ‒ “Levantai-vos, e sêde corajosos
e atentos, pois o Senhor dos Exércitos virá ao nosso auxílio na próxima batalha, e
será o maior refúgio para Seu povo, que Ele contempla padecendo na dor”. Assim,
ao ouvir as declarações do homem que relatou para nós a revelação de Cristo
através das palavras do apóstolo, pressurosos fomos imediatamente ao local que
ele tinha indicado, na igreja de São Pedro.

Treze homens cavaram lá da manhã até as vésperas. E aquele homem encontrou a


Lança, assim como havia indicado. Eles a receberam com grande contentamento e
espanto, e uma alegria sem medida espalhou-se pela cidade toda.

A Mãe de Curbara Pressente o Desastre


A mãe do mesmo Curbara, que morava na cidade de Aleppo, veio imediatamente
até ele e, chorando, disse: ‒ “Filho, estas coisas que estou ouvindo, são
verdadeiras?”‒ “Que coisas?”, disse ele. ‒ “Ouvi dizer que você vai entrar em luta
com o exército dos francos”, respondeu ela. E ele respondeu: “A senhora sabe toda
a verdade”. Então, ela disse: ‒ ”Filho, em nome de todos os deuses e por sua
grande bondade, advirto-o a que não entreis em batalha com os francos, porque
você é um cavaleiro invicto, e nunca ouvi falar de qualquer imprudência sua ou de
seu exército. Ninguém nunca te viu fugir do campo de batalha diante de um
vencedor. A fama do seu exército se espalhou para o estrangeiro, e todos os
cavaleiros ilustres tremem quando ouvem seu nome. Pois sabemos muito bem,
Filho, que você é poderoso na batalha, e valente e engenhoso, e que nenhum
exército de Cristãos ou pagãos pode ter coragem diante de tua face, mas à simples
menção de seu nome fugirão como ovelhas fogem diante da ira de um leão. E por
isso eu te suplico, filho querido, que vos sujeiteis ao meu conselho: nunca vos
imagineis em vossa mente ou conselho, de querer fazer guerra com o exército
cristão”.

Então Curbara, após ouvir a advertência de sua mãe, respondeu com voz irada: ‒
”Que é isso, mãe, que estás me dizendo? Acho que estás louca, ou cheia de fúrias.
Pois tenho comigo mais emires do que o número de cristãos, de condição maior ou
menor”. Sua mãe respondeu-lhe: ‒ “Ó filho dulcíssimo, os Cristãos não podem
lutar com suas forças, pois sei que eles não são capazes de prevalecer contra você,
mas o Deus deles está lutando por eles diariamente e está olhando por eles e
defendendo-os com a Sua proteção dia e noite, como um pastor cuida de seu
rebanho.

Ele não permite que sejam feridos ou perturbados por qualquer povo, e quem quer
que pretenda pôr-se em seu caminho, este mesmo Deus deles coloca igualmente a
derrota, assim como Ele disse pela boca do profeta Davi: ‘Dispersai as pessoas que
se deleitam nas guerras’, e em outro lugar: ‘Despejai a Vossa ira sobre as nações
que não Vos conhecem e, contra os reinos que não invocam o Teu Nome. Antes de
estarem prontos para começar a batalha, seu Deus, todo poderoso e potente na
batalha, juntamente com os Seus santos, já conquistou todos os seus inimigos. Até
quando Ele prevalecerá contra você, que são Seus inimigos, e que estão se
preparando para resistir a eles com todo o seu valor?! Este, além disso, querido,
conhece em verdade: estes. os Cristãos, chamados “filhos de Cristo” e pela boca
dos profetas “filhos adotivos e da promessa”, segundo o apóstolo são os herdeiros
de Cristo a quem Ele já deu a herança prometida, dizendo através dos profetas: “do
nascente ao poente será o vosso limite e ninguém poderá resistir diante de vós.
Quem pode contradizer ou opor-se a estas palavras? Certamente, se você
empreender esta batalha contra eles, será tua a maior perda e desgraça, e você
perderá muitos de seus cavaleiros fiéis e todos os despojos que você tem consigo, e
fugirá com inexcedível temor. No entanto, você não morrerá agora nesta batalha,
mas, neste ano, porque com raiva súbita, Deus não julga imediatamente aquele que
O ofendeu, mas quando Ele quer, pune com manifesta vingança, e por isso temo
que Ele exigirá de você uma pena amarga. Você não morrerá agora, eu digo, mas
perecerá apesar de todos os seus bens presentes”.

Então Curbara, profundamente entristecido em seu coração, diante das palavras de


sua mãe, respondeu: ‒ ”Caríssima Mãe, rogo-vos, quem vos disse essas coisas
sobre o povo Cristão, de que Deus ama somente a eles, e que Ele detém o mais
poderoso exército de lutar contra Ele, e que aqueles Cristãos conquistar-nos-ão na
batalha de Antioquia, e que capturarão o nosso espólio, e nos perseguirão com
grande vitória, e que morrerei neste ano de morte súbita?”

Então sua mãe respondeu-lhe com tristeza: ‒ “Filho querido, eis que há mais de
cem anos foi encontrado no nosso livro e nos volumes dos Gentios que o exército
Cristão viria contra nós, nos conquistaria em todos os lugares e dominaria sobre os
pagãos, e que o nosso povo estaria sujeito a eles em todos os lugares. Mas não sei
se estas coisas estão para acontecer agora ou no futuro. Miserável mulher que sou,
segui-o desde Aleppo, cidade belíssima, na qual, contemplando e fazendo criativas
rimas, eu olhava para as estrelas do céu e sabiamente examinava os planetas e os
doze signos, ou multitudes infindáveis.

Em todas essas achei que o exército cristão venceria em toda parte, e por isso estou
muito triste e temo enormemente ficar sem você”. Curbara disse-lhe: ‒ “Querida
mãe, explique-me todas as coisas credíveis que estão em meu coração”.
Respondendo a isto, ela disse: ‒ “Isto, querido, farei livremente, se eu souber as
coisas que são desconhecidas para você”. Ele disse a ela: ‒ ”Não são Boemundo e
Tancredo deuses dos francos, e eles não os libertam de seus inimigos? Não
comeram estes homens, em uma refeição, duas mil novilhas e quatro mil porcos?”
Sua mãe respondeu: ‒ ”Querido filho, Boemundo e Tancredo são mortais, como
todo o resto, mas o seu Deus os ama muito acima de todos os outros e lhes dá mais
coragem na luta que aos demais. Pois (é) o seu Deus, Onipotente é o Seu nome,
que fez o céu e a terra e estabeleceu o mar e tudo que neles há, cuja morada está
preparada no Céu para toda a eternidade, cujo poder é temido em todo lugar “. Seu
filho disse: ‒ “Ainda que seja assim, não vou deixar de travar batalha contra eles”.

Então, quando sua mãe soube que ele de forma alguma cederia ao seu conselho,
voltou, muito triste, para Aleppo, carregando consigo todos os presentes que podia
levar. Mas no terceiro dia Curbara armou-se com a maioria dos turcos com ele, e
foi em direção à cidade do lado em que se localizava a fortaleza.

Pensando que poderíamos resistir-lhes, preparamo-nos para a batalha contra eles,


mas tão grande era o seu valor que não podíamos contê-los e, sob coação, portanto,
entramos na cidade. O portão estava tão incrivelmente fechado e estreito para eles
que muitos morreram lá, pressionados pelos demais. Entretanto, alguns lutaram do
lado de fora da cidade, outros no interior, no quinto dia da semana durante todo o
dia até à noite.

Como os Exércitos Muçulmanos Foram Esmagados em Kerbogha


A partir do milagroso achado da Santa Lança, reunimos-nos em conselho de
batalha. Imediatamente, todos os nossos líderes decidiram o plano de enviar um
mensageiro para os turcos, inimigos de Cristo, para perguntar-lhes
afirmativamente: ‒ “Por que motivo entrastes insolentemente na terra dos Cristãos,
e por que acampastes, e por que matais e assaltais os servos de Cristo?”

Quando seu discurso já tinha terminado, encontraram a Pedro o Eremita e Herlwin,


e disseram-lhes o seguinte: ‒ “Ide para o exército maldito dos turcos e
cuidadosamente dizei-lhes tudo isso, perguntando-lhes porque eles ousada e
arrogantemente entraram nas terras dos Cristãos e nas nossas próprias”.

Ao ouvir estas palavras, os mensageiros partiram e foram para a assembléia


profana, dizendo tudo a Curbara e aos outros da seguinte forma: ‒ “Nossos chefes
e nobres gostariam de saber porque razão vós, precipitada e arrogantemente,
entrastes em sua terra, a terra dos Cristãos. Pensamos que, sem dúvida, e
acreditamos que vós viestes para cá porque desejais vos tornar inteiramente
cristãos; ou viestes aqui com o propósito de molestar os cristãos em todos os
sentidos? Todos os nossos chefes juntos pedem-lhe, portanto, que rapidamente
deixem a terra de Deus e dos cristãos, que o santo apóstolo Pedro, por sua
pregação, converteu há muito tempo ao culto de Cristo. Mas eles concedem, além
disso, que podeis levar consigo todos os vossos pertences, cavalos, mulas,
jumentos, camelos, carneiros e gado; ser-lhes-á permitido carregar convosco todos
os demais pertences, onde quer que desejem”.

Então Curbara, chefe do exército do Sultão da Pérsia, com todos os outros, cheio
de arrogância, respondeu em linguagem feroz: ‒ “Vosso Deus e vosso
cristianismo, não procuramos e nem desejamos, mas absolutamente rejeitamos a
vós e a eles. Agora, chegamos aqui porque muito nos admirava que os príncipes e
nobres que vós mencionais chamem esta terra deles, a terra que tiramos de um
povo efeminado. Agora, quereis saber o que estamos lhe dizendo? Portanto,
voltem logo e informem os seus senhores que se desejarem tornar-se turcos, em
tudo, e quiserem negar o Deus que vós adorais de cabeça baixa, e desprezar suas
leis, nós lhes daremos isso e mais terras, castelos e cidades suficientes.

Além disso, por outro lado, faremos com que mais nenhum de vós sejais soldado
de infantaria, mas serão todos cavaleiros, como somos e sempre os teremos em alta
estima. Caso contrário, saibam que todos serão punidos de morte, ou serão levados
acorrentados para Coraçone, para servir a nós e a nossos filhos em cativeiro
perpétuo”.
Nossos mensageiros rapidamente voltaram, relatando tudo o que essa raça
crudelíssima havia respondido. Dizia-se que Herlwin conhecia ambas as línguas, e
ter sido o intérprete de Pedro, o Eremita. Enquanto isso, nosso exército, ameaçado
de ambos os lados, não sabia o que fazer, pois de um lado eram perseguidos pela
fome torturante, e de outro eram constrangidos pelo medo dos turcos.

Finalmente, quando completaram-se os três dias de jejum, e foi realizada uma


procissão de uma igreja para outra, eles confessaram os seus pecados, foram
absolvidos, e fielmente receberam a Comunhão do Corpo e Sangue de Cristo; após
a coleta das esmolas, celebrou-se uma Santa Missa.

Em seguida, foram formadas seis fileiras de batalha com as forças dentro da


cidade. Na primeira fileira, bem à frente, estava Hugo, o Grande com os francos e
o Conde de Flandres; na segunda, o Duque Godofredo com seu exército; na
terceira estava Roberto o Normando, com seus cavaleiros; na quarta, trazendo
consigo a Lança do Salvador, estava o Bispo de Poio, juntamente com seu povo e
com o exército de Raimundo, o Conde de Saint-Gilles, que ficou para trás para
observar a cidadela de medo que os turcos descessem à cidade; na quinta fileira
estava Tancredo, filho de Marchisus, com seu povo, e na sexta fileira estava o
sábio Boemundo, com seu exército.

Nossos bispos, sacerdotes, clérigos e monges, vestidos com paramentos sagrados,


saíram conosco com cruzes, orando e suplicando ao Senhor que nos protegesse,
guardasse e livrasse de todo o mal. Alguns ficaram na muralha da porta, portando
as sagradas cruzes, fazendo o sinal e nos abençoando. Assim estávamos armados,
e, protegidos com o sinal da cruz saímos pelo portão que fica diante da mesquita.

Depois que Curbara viu as fileiras dos francos, tão bem formadas, saindo uma após
a outra, disse: ‒ “Deixem-nas sair, para que melhor possamos tê-las em nosso
poder!” Mas depois que saíram da cidade e Curbara viu o enorme exército dos
francos, ele foi muitíssimo assustado. Imediatamente enviou um recado para o seu
emir, que era encarregado de tudo, que se via uma luz queimando na frente do
exército (que emanava da Santa Lança), e que deveria mandar soar as trombetas
para que ele recuasse, sabendo que os turcos haviam perdido a batalha. Curbara
começou imediatamente a se retirar pouco a pouco em direção à montanha, e os
nossos homens seguiram-lhes pouco a pouco.

Finalmente a formação dos turcos foi quebrada, uma parte do exército foi para o
mar e o resto parou ali, esperando fechar os nossos homens entre si. Quando
nossos homens viram isso, fizeram o mesmo. Uma sétima fileira foi formada lá, a
partir das fileiras do Duque Godofredo e do Conde da Normandia, e em sua cabeça
estava Reinaldo. Eles enviaram esta fileira de encontro aos turcos que estavam
vindo por mar.

Os turcos, no entanto, travaram batalha com eles, e lançando flechas mataram


muitos dos nossos homens. Outros esquadrões, além disso, passaram do rio para a
montanha, que estava a cerca de duas milhas de distância. Os esquadrões
começaram a surgir de ambos os lados e a cercar nossos homens de todos os lados,
lançando javelinas, atirando flechas e ferindo-os.

Neste instante (Santo, Santo, Santo, sois vós Senhor Deus dos Exércitos!), saíram
também de cima das montanhas inúmeros exércitos com cavalos brancos, cujos
estandartes eram também brancos. E assim, quando nossos líderes viram este
exército, reconheceram a ajuda de Cristo, cujos líderes eram São Jorge, São
Demétrio e São Maurício.

Deve-se acreditar nisso porque muitos de nossos homens viram isso. Entretanto,
quando os turcos, que estavam estacionados no lado em direção ao mar, vendo que
não podiam agüentar mais, atearam fogo à vegetação de modo que, ao ver isso,
aqueles que estavam nas tendas fugiriam. Estes, pegaram todos seus despojos
preciosos e fugiram. Mas nossos homens combateram ainda um tempo onde se
encontrava o maior exército dos turcos, ou seja, na região das tendas.

O Duque Godofredo, o Conde de Flandres, e Hugo, o Grande cavalgavam perto da


água, onde estava a força do inimigo. Estes homens, fortificados pelo sinal da cruz,
juntos atacaram o inimigo primeiro. Quando as outras fileiras viram isso, também
atacaram.

Os turcos e os persas, por sua vez, bradaram. Então, invocamos o Deus vivo e
verdadeiro e os atacamos, e em nome de Jesus Cristo e do Santo Sepulcro
começamos a batalha, e, com a ajuda de Deus, os matamos. Mas os turcos,
apavorados, começaram a fugir e nossos homens os seguiram até suas tendas.

Então, os cavaleiros de Cristo preferiram persegui-los a procurar espólios, e os


perseguiram até a Ponte de Ferro e, em seguida, até a fortaleza de Tancredo. O
inimigo, na verdade, deixou seus estandartes lá, ouro, prata e muitos ornamentos,
também carneiros, gado, cavalos, mulas, camelos, burros, cereais, vinho, manteiga,
e muitas outras coisas de que precisávamos. Quando os armênios e sírios, que
habitavam nessas regiões, souberam que havíamos vencido os turcos, correram
para a montanha para encontrá-los e mataram tantos muçulmanos quanto puderam
pegar. Nós, porém, retornamos à cidade com grande alegria e louvando e
abençoando a Deus, que deu a vitória ao Seu povo.

Então, quando o emir, que estava guardando a cidadela, viu que Curbara e todo o
resto havia fugido do campo diante do exército dos francos, ficou muito assustado.
Imediatamente e com grande pressa procurou os estandartes dos francos. Assim, o
Conde de São Gil, que estava estacionado diante da cidadela, ordenou que seu
estandarte fosse levado até ele. O emir pegou-o e colocou-o cuidadosamente sobre
a torre. Os Longobardos que estavam lá disseram imediatamente: ‒ “Este não é o
estandarte de Boemundo!” Então o emir perguntou e disse: ‒ “De quem é?” Eles
responderam: “Pertence ao Conde de São Gil”. Nisto o emir foi e tomou o
estandarte e devolveu-o para o Conde. Mas naquela hora o venerável Boemundo
veio e deu-lhe seu estandarte. Ele recebeu-o com grande alegria e entrou em um
acordo com Boemundo ‒ de que os pagãos que desejassem abraçar o Cristianismo
poderiam ficar com ele, e que ele deveria permitir que aqueles que desejassem ir
embora que partissem a salvo e sem serem molestados.

Ele concordou com tudo o que o emir pediu e logo enviou os seus servos para a
cidadela. Poucos dias depois disto, o emir foi batizado com aqueles de seus
homens, que preferiram reconhecer a Cristo. Mas aqueles que desejaram aderir às
suas próprias leis, o senhor Boemundo mandou que fossem conduzidos para a terra
dos sarracenos.

Esta batalha foi travada no quarto dia antes das calendas de Julho, na vigília dos
apóstolos Pedro e Paulo, no reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Quem é a
honra e glória para todo o sempre. Amém. E depois que nossos inimigos haviam
sido completamente conquistados, demos graças a Deus Trino e Uno, o Altíssimo.

Alguns dos inimigos, exaustos, outros, feridos em sua fuga desvairada,


sucumbiram à morte no vale, floresta, campos e estradas. Mas o povo de Cristo,
que sobreviveu, os peregrinos vitoriosos, voltaram para a cidade, rejubilando-se do
feliz triunfo sobre o inimigo derrotado.
A Marcha à Jerusalém
Assim, saímos da cidade fortificada e chegamos a Trípoli no sexto dia da semana,
no dia treze de Maio, e ficamos lá por três dias.

Finalmente, o Rei de Trípoli fez um acordo com os chefes, e ele logo devolveu-lhe
mais de trezentos peregrinos que haviam sido capturados lá e deu quinze mil
besantes e quinze cavalos de grande valor; ele também nos deu um grande
suprimento de cavalos, jumentos e de todos os bens, ficando assim, todo o exército
de Cristo, muito enriquecido.

Mas ele fez um acordo com eles que se ganhassem a guerra para a qual o Emir da
Babilônia estava se preparando contra eles, e pudessem tomar Jerusalém, ele se
tornaria cristão e reconheceria a sua terra como (um dom) deles. E dessa forma
ficou resolvido. Deixamos a cidade no segundo dia da semana, no mês de Maio e,
passando por uma estrada estreita e difícil durante todo o dia e noite, chegamos a
uma fortaleza cujo nome era Batrum.

Então, chegamos a uma cidade perto do mar chamada Biblos, na qual sofremos
grande sede e, exaustos, chegamos a um rio chamado Abraão.

Então, na véspera do dia da Ascensão do Senhor, atravessamos uma montanha na


qual o caminho era muitíssimo estreito, e lá esperávamos encontrar o inimigo
armando emboscada contra nós. Mas Deus nos favoreceu e nenhum deles se
atreveu a aparecer em nosso caminho.

Então nossos cavaleiros foram à frente e abriram caminho para nós, e chegamos a
uma cidade à beira-mar chamada Beirute, e daí fomos para outra cidade chamada
Sidom, daí para uma outra chamada Tiro e de Tiro para a cidade de Acre. Mas de
Acre, chegamos a um lugar fortificado cujo nome era Haifa e, então, chegamos
perto de Cesaréia. Lá foi celebrada a Festa de Pentecostes no terceiro dia de Maio.
Então chegamos a Ramla, que os sarracenos haviam esvaziado de medo dos
francos. Perto dali ficava a famosa igreja onde repousava o precioso corpo de São
Jorge, desde que lá, pelo Nome de Cristo, ele alegremente recebera o martírio de
pagãos traiçoeiros.

Lá nossos chefes realizaram um concílio para escolher um bispo que deveria ser
encarregado deste lugar e erigir uma igreja. Deram-lhe dízimos e enriqueceram-no
com ouro e prata, com cavalos e outros animais, para que pusesse viver mais
devota e honradamente c
om aqueles que estavam com ele. Ele ficou lá com alegria.
A Conquista de Jerusalém
Finalmente, nossos chefes decidiram sitiar a cidade com máquinas de cerco, para
que pudéssemos entrar e adorar o Salvador no Santo Sepulcro. Eles construíram
torres de madeira e muitas outras máquinas de cerco. O Duque Godofredo fez uma
torre de madeira e outros dispositivos de cerco, e o Conde Raimundo fez o mesmo,
embora fosse necessário trazer madeira de uma distância considerável. No entanto,
quando os sarracenos viram nossos homens envolvidos neste trabalho, reforçaram
enormemente as fortificações da cidade e aumentaram a altura das torres pequenas
durante a noite.

Em uma determinada noite de sábado, os chefes, depois de terem decidido quais as


partes da muralha eram mais fracas, arrastaram a torre e as máquinas para o lado
oriental da cidade. Além disso, montamos a torre de madrugada e a equipamos e
cobrimos no primeiro, segundo e terceiro dias da semana. O Conde de São Gil
ergueu sua torre na planície ao sul da cidade.

Enquanto tudo isso acontecia, nossa reserva de água era tão limitada que ninguém
podia comprar água suficiente por um denário para satisfazer ou saciar sua sede.
Dia e noite, no quarto e quinto dias da semana, fizemos um determinado ataque à
cidade de todos os lados. No entanto, antes de fazermos este assalto à cidade, os
bispos e padres convenceram a todos, exortando e pregando, para honrar o Senhor
marchando em torno de Jerusalém três vezes em uma grande procissão, e se
preparar para a batalha através da oração, do jejum e esmolas.

Logo no início do sexto dia da semana, mais uma vez atacamos a cidade de todos
os lados, mas como o ataque foi mal sucedido, ficamos todos aturdidos e
temerosos. No entanto, quando se aproximou a hora em que Nosso Senhor Jesus
Cristo se dignou a sofrer na cruz por nós, nossos cavaleiros começaram a lutar
bravamente em uma das torres, ou seja, o grupo com o Duque Godofredo e seu
irmão, o Conde Eustácio.

Um dos nossos cavaleiros, chamado Ludolfo de Turnai, escalou o muro da cidade,


e tão logo ele subiu os defensores fugiram dos muros e pela cidade. Nossos
homens os seguiram, matando até o Templo de Salomão, onde a matança foi tão
grande que nossos homens patinavam em sangue até os tornozelos. O Conde
Raimundo trouxe o seu exército e sua torre até perto da muralha pelo sul, mas
entre a torre e a muralha havia um fosso profundo.

Então, os nossos homens reuniram-se em conselho para decidir como poderiam


preenchê-lo, e mandaram proclamar por arautos que aquele que carregasse três
pedras para o fosso receberia um denário.

Foram necessários três dias e três noites de trabalho para enchê-lo, e quando
finalmente a vala ficou cheia, moveram a torre até a muralha, mas os homens que
defendiam essa parte da muralha lutaram desesperadamente com pedras e fogo.
Quando o Conde soube que os francos já estavam na cidade, disse aos seus
homens: ‒ “Por que tardais? Eis que os francos estão agora mesmo dentro da
cidade”. O emir que comandava a Torre de São David entregou-se ao Conde e
abriu o portão no qual os peregrinos sempre costumavam pagar o tributo. Mas
desta vez os peregrinos entraram na cidade, perseguindo e matando os sarracenos
até o Templo de Salomão, onde o inimigo se reunira em maior número. A batalha
durou o dia todo de tal forma que o Templo estava coberto de sangue. Quando os
pagãos haviam sido derrotados, nossos homens prenderam um grande número,
tanto homens quanto mulheres, quer matando-os ou mantendo-os em cativeiro,
como licitamente desejassem.

No telhado do Templo um grande número de pagãos, de ambos os sexos, estava


reunido, e estes foram levados sob a proteção de Tancredo e Gastão de Berta. Mais
tarde, o exército espalhou-se pela cidade e justamente tomou posse do ouro e da
prata, cavalos e mulas, e das casas cheias de bens de todos os tipos. Regozijando e
chorando de alegria, nosso povo veio para o Sepulcro de Jesus, nosso Salvador,
para adorar e pagar as suas dívidas (isto é, pagar o voto dos cruzados de rezar no
Sepulcro).

Ao amanhecer, nossos homens cautelosamente foram até o telhado do Templo e


atacaram os homens e mulheres sarracenos, executando-os com espadas nuas.
Alguns dos sarracenos, contudo, saltaram do telhado do Templo. Tancredo, vendo
isso, ficou muito irritado.
Justitiae Pax Opus
Então, nossos líderes decidiram, em Conselho, que cada um deveria oferecer
esmolas com orações, para que o Senhor pudesse escolher para Si aquele que Ele
queria que reinasse sobre os outros e governasse a cidade.

Ordenaram também que todos os sarracenos mortos fossem lançados fora por
causa do odor fétido, pois a cidade toda estava cheia de corpos; e assim os
sarracenos que sobreviveram arrastaram os mortos até os portões de saída e
arranjaram-nos em pilhas como se fossem casas. Ninguém jamais ouviu nem viu
um tal morticínio de pagãos, pois formaram-se piras funerárias com eles como
pirâmides, e só Deus sabe o número deles. Mas Raimundo fez com que o emir e os
outros que com ele estavam fossem conduzidos até Ascalão, íntegros e ilesos. No
entanto, no oitavo dia após a tomada da cidade, escolheram Godofredo como
Defensor do Santo Sepulcro (primeiramente como Rei de Jerusalém, porém este se
recusou a ser coroado de ouro na cidade onde Nosso Senhor foi coroado de
espinhos), para lutar contra os pagãos, espalhar a fé e proteger os cristãos e seus
reinos no oriente. No dia de São Pedro da Vincula eles também escolheram como
patriarca um homem muito sábio e honrado de nome Arnolfo.

A Cidade Santa foi conquistada pelos soldados cristãos de Deus no dia quinze de
Julho, o sexto dia da semana no ano do Senhor de 1099.

Fonte: August C. Krey, A Primeira Cruzada: relatos das testemunhas e


participantes, (Princeton: 1921), 262. Traduzido do latim para o inglês pelo
Professor James Brundage, As Cruzadas: uma História- Documentário
(Milwaukee, WI: Marquette University Press, 1962), 49-51. Nota sobre
direitos autorais: O Professor Brundage informou a Medieval Sourcebook
que a copyright não foi renovada neste trabalho. Além disso, ele deu
permissão para uso de suas traduções.

Você também pode gostar