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O CONCEITO DE VIDA EM RICARDO REIS

Resume-se num epicurismo triste toda a filosofia da obra de Ricardo Reis. Tentemos
sintetizá-la.
Cada qual de nós – opina o Poeta – deve viver a sua própria vida, isolando-se dos outros
e procurando apenas, dentro de uma sobriedade individualista, o que lhe agrada e apraz.
Não deve procurar os prazeres violentos, e não deve fugir às sensações dolorosas que
não sejam extremas.
Buscando o mínimo de dor […], o homem deve procurar sobretudo a calma, a
tranquilidade, abstendo-se do esforço e da atividade útil. […]
Devemos buscar dar-nos a ilusão da calma, da liberdade e da felicidade, coisas
inatingíveis porque, quanto à liberdade, os próprios deuses – sobre que pesa o Fado – a
não têm; quanto à felicidade, não a pode ter quem está exilado na sua fé e do meio onde
a sua alma devia viver; e quanto à calma, quem vive na angústia complexa de hoje,
quem vive sempre à espera da morte, dificilmente pode fingir-se calmo. A obra de
Ricardo Reis, profundamente triste, é um esforço lúcido e disciplinado para obter uma
calma qualquer.
Reis, Frederico (in http://arquivopessoa.net/textos/2881 [consult. 2011-10-19]

O conceito de vida, formado por Ricardo Reis, vê-se muito claramente nas suas odes,
pois, quaisquer que sejam os seus defeitos, o Reis é sempre claro. […] Para Ricardo
Reis, nada se pode saber do universo, exceto que nos foi dado como real um universo
material. […] Conformemo-nos com esse universo externo, o único que temos, assim
como nos conformaríamos com o poder absoluto de um rei, sem discutir se é bom ou
mau, mas simplesmente porque é o que é. Reduzamos a nossa ação ao mínimo,
fechando-nos quanto possível nos instintos que nos foram dados, e usando-os de modo a
produzir o menos desconforto para nós e para os outros, pois têm igual direito a não ter
desconforto. Moral negativa, mas clara. Comamos, bebamos e amemos (sem nos
prender sentimentalmente à comida, à bebida e ao amor, pois isso traria mais tarde
elementos de desconforto); a vida é um dia, e a noite é certa; não façamos a ninguém
nem bem nem mal, pois não sabemos o que é bem ou mal, […] a verdade, se existe, é
com os Deuses, ou seja, com as forças que formaram ou criaram, ou governam, o
mundo […].
É isto – este conceito tão fundamente negativo das coisas – que dá à poesia de Ricardo
Reis aquela dureza, aquela frieza, que ninguém negará que tem, por mais que a admire;
e quem a admira – pouca gente – é por essa mesma frieza, aliás, que a admira.
PESSOA, Fernando, 2006, Prosa Publicada em Vida. Lisboa: Assírio & Alvim

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