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Sempre ouvimos dizer que brasileiro é apaixonado por carros.

Isso é uma verdade, ainda mais


quando conhecemos alguns personagens que deram importante contribuição para a história da
indústria automobilística no Brasil e no mundo.
Sabe quem inventou a radiografia? Um brasileiro. E quem desenvolveu a máquina de escrever? Um brasileiro. O câmbio automático? Foi criado por
uma dupla de brasileiros. E quem inventou o avião? Essa é fácil: Alberto Santos Dumont. O que talvez poucas pessoas saibam é que o Pai da Aviação
foi também o inventor do relógio de pulso e o introdutor do automóvel no Brasil.

A radiografia foi o resultado da pesquisa do médico Manuel Dias de Abreu – vem daí o nome popular de “abreugrafia”. Doutor Manuel estudou
durante muitos anos uma forma de radiografar órgãos do corpo humano e, em 1936, criou o sistema que permitia gerar imagens do pulmão por
meio de chapas radiográficas.

A abreugrafia foi inventada pelo médico brasileiro Manoel Dias e ajudou a salvar milhares de pessoas da tuberculose. Imagem: Revista Brasileira de Tuberculose.

Já a máquina de escrever foi uma criação do padre Francisco João de Azevedo, que teve a ideia de adaptar um piano de 24 teclas para que ele
pudesse imprimir letras em um papel.
O câmbio automático foi desenvolvido pelo engenheiro mecânico
José Braz Araripe. Ele criou o protótipo e o projeto do câmbio em 1932.
Falaremos mais sobre ele neste e-book.

Alberto Santos Dumont dispensa apresentações. É dele a façanha


realizada em 23 de outubro de 1906, quando decolou com o 14-Bis
do Campo de Bagatelle, em Paris, num voo de aproximadamente
220 metros.

O padre paraibano Francisco João de Azevedo criou a primeira máquina de escrever no século 19.
Imagem: Unisinos.

Essa foi a primeira aparição pública de uma


aeronave pilotada por um ser humano voando
a essa distância, o que tornou o inventor
conhecido por toda a Europa como o inventor
do avião.

Menos para os Estados Unidos, que consideram


os irmãos Wright como os precursores da
aviação. Os irmãos norte-americanos Wilbur e
Orville Wright teriam realizado, em dezembro
de 1903, um voo impulsionado por catapulta.
Portanto, três anos antes do voo do 14-Bis. O
problema é que o feito não teve público, nem
registro e a engenhoca americana precisou de
O avião construído pelo inventor brasileiro Alberto Santos Dumont conquistou o Prêmio Archdeacon e o Prêmio do Aeroclube da França ao realizar
um impulso (a catapulta) para iniciar o voo. um voo de 220 metros em Paris. Imagem: Wikipedia.

Mas essa polêmica fica para outra ocasião, pois o brasileiro Pai da Aviação tem mais duas
realizações notáveis em seu currículo. Santos Dumont foi o responsável pelo surgimento do
relógio de pulso e o dono do primeiro veículo com motor a combustão a rodar em
terras brasileiras.

O Brasil sempre teve grandes inventores e visionários. Isso sem considerar que milhares
de engenheiros e empresários nascidos ou estabelecidos no país trabalham na indústria
automotiva em todo o mundo, gerindo projetos e desenvolvendo novas tecnologias para
a indústria da mobilidade humana.
O pedido de Santos Dumont para Louis Cartier foi um modelo
de relógio que ficasse fixo no braço e facilitasse o controle das horas.
Assim nascia o relógio de pulso. Imagem: Watchtime.
O que falta é torná-los mais conhecidos e reconhecidos pelas suas contribuições ao mundo automobilístico. Essa é a proposta deste e-book SABÓ.
Conheça alguns empresários e inventores brasileiros que ajudaram a escrever a história do automóvel no Brasil e no mundo.

SANTOS DUMONT

Alberto Santos Dumont passou sete meses em Paris, onde realizou o primeiro voo pilotado e registrado. Imagem: Amaro Aviation.

Em novembro de 1891, desembarcava no porto de Santos (SP) o primeiro automóvel. O veículo era um Peugeot Type 3 Vis-à-Vis, trazido de navio
na bagagem do brasileiro Alberto Santos Dumont. Equipado com um motor a gasolina de dois cilindros, capaz de desenvolver 3,5 cv de potência,
o modelo alcançava a velocidade máxima de 18 km/h.

Santos Dumont comprou o veículo naquele mesmo ano, durante uma viagem com a família à França, viagem esta que durou sete meses. Com
pouco mais de 18 anos e já demonstrando paixão pelos automóveis, o então jovem inventor chegou a visitar a fábrica da Peugeot, na cidade de
Valentigney, uma pequena comuna a quase 500 km da capital francesa, para fechar o negócio.

O próprio Pai da Aviação relata em sua autobiografia: Os meus balões, que as máquinas terrestres serviram para ele adquirir muitos conhecimentos:
“Daí em diante, tornei-me adepto fervoroso do automóvel. Entretive-me a estudar os seus diversos órgãos e a ação de cada um. Aprendi a tratar e
consertar a máquina. (...) Minha experiência de automobilista serviu muito para as minhas aeronaves”.

Além do Peugeot Type 3, que trouxe pessoalmente ao Brasil quando retornou daquela viagem, Santos Dumont importou ainda outro modelo
da marca: um Phaeton Type 15, ano 1897.
Santos Dumont e seus familiares a bordo dos primeiros carros da cidade de São Paulo em frente ao casarão da família. Imagem: Acervo do Museu da Energia de São Paulo.

O Type 15 também tinha motor de dois cilindros, mas rendia 8 cv – mais que o dobro do Type 3. O curioso é que esse propulsor não possuía velas,
e sim barras de metal que se aqueciam até ficarem incandescentes.

Mais tarde, outros dois veículos chegaram ao Brasil. Um veio para São Paulo trazido pela família do fundador da Polícia Militar paulista, Tobias
de Aguiar, e o outro ficou no Rio de Janeiro, encomendado pelo jornalista José do Patrocínio.

O curioso é que nenhum desses três automóveis foi o primeiro a ser registrado no país. Essa primazia coube ao conde Francesco Matarazzo, que
recebeu a placa P-1 (esse P indicava que era um carro particular) em 1900.

Santos Dumont também tem o mérito de outro invento


histórico: o relógio de pulso. Até o início do século XX, os
relógios ficavam guardados nos bolsos, presos a uma
corrente. Como Santos Dumont necessitava cronometrar o
tempo de voo de seus aviões durante suas experiências,
retirar constantemente o relógio do bolso representava
um estorvo.

A família Matarazzo a bordo do primeiro carro a ser registrado em São Paulo. Ele pertenceu ao conde Francesco Matarazzo
e recebeu a placa número 1, em 1900. Imagem: Antigos Verde Amarelo.
Santos Dumont e Louis Cartier eram amigos na época. Conversando Em 1930, Américo Emilio Romi e seu enteado, Carlos Chiti, criaram
sobre suas aventuras aéreas, Dumont reclamou da dificuldade de uma pequena oficina mecânica, a Garage Santa Bárbara. A pequena
se usar o relógio de bolso. Explicou ao relojoeiro que tinha que tirar oficina ficava na cidade de Santa Bárbara d’Oeste, município da
a mão do volante e os olhos da direção por demasiado tempo, região de Campinas, a 138 km da capital paulista.
já que tinha que consultá-lo, olhando para baixo.

Ele, então, encomendou ao joalheiro Cartier um modelo que ficasse


fixo no braço e facilitasse o controle das horas. Nascia o relógio
de pulso com a participação direta de Santos Dumont.

Em 2022, a relojoaria francesa relançou a linha Cartier Santos,


uma réplica perfeita do relógio de pulso original criado para
Santos Dumont. A Garage Santa Bárbara foi o berço do primeiro carro fabricado no Brasil (foto de 1933). Imagem:
Fundação Romi.

O que surgiu como uma empresa de reparação de automóveis logo se


transformou em uma oficina especializada em manutenção de implementos
agrícolas. Atendia a demanda surgida pelo crescente número de imigrantes
norte-americanos que se instalaram na região como produtores rurais, e o
volume de arados, tratores e outras máquinas utilizadas na lavoura.

Não demorou muito e a pequena empresa de manutenção tornou-se em fabricante


de máquinas. A Garage Santa Bárbara transformou-se na Romi, maior fábrica
de implementos agrícolas do Brasil. Ainda hoje é um dos mais importantes
fabricantes mundiais de máquinas-ferramentas, além de produzir fundidos
Em 2022, a relojoaria francesa relançou a linha Cartier Santos, uma réplica perfeita do relógio de pulso e usinados, atendendo a indústria automobilística e de autopeças e outros
original criado para Santos Dumont. Imagem: Hodinkee.
segmentos industriais.

AMÉRICO EMILIO ROMI Pois foi a Romi, sob o comando de Emilio Romi e de Carlos Chiti, a responsável
pelo primeiro carro feito no Brasil: o Romi-Isetta. Até então, os veículos que
circulavam no país eram importados ou modelos trazidos sob a formato de CKD e
montados em oficinas das marcas no Brasil.

O veículo fabricado pela Romi, de apenas dois lugares, tornou-se um marco


na cultura automobilística nacional, quando lançado em setembro de 1956. O
Romi-Isetta tinha formato de uma gota d’água e uma única porta frontal. Era a
versão brasileira e mais barata do Isetta, o original no qual o pioneiro brasileiro se
inspirou. Foi produzido sob licença da marca italiana.
Em 29 de junho de 1956, Américo Emilio Romi e familiares visitaram a linha de montagem do
Romi-Isetta, que funcionava nas instalações da Indústrias Romi. Dentro do Romi-Isetta, Américo
Emílio Romi e Olímpia Gelli Romi. Imagem: Fundação Romi.
Desde jovem, João Augusto Conrado do Amaral Gurgel sonhava em
construir um carro brasileiro. Nascido em março de 1926, na cidade de
Franca (SP), formou-se em engenharia mecânica na Escola Politécnica
da Universidade de São Paulo. João Augusto apresentou como projeto
de conclusão de curso um pequeno veículo de dois cilindros, batizado
de Tião.

Tião quase custou sua reprovação no curso, pois o projeto solicitado


era a construção de um guindaste. A ousadia lhe valeu a advertência
de um professor: “carro não se fabrica, Gurgel, se compra.”
Desfile de modelos Romi-Isetta pelo centro da cidade de São Paulo – Rua Xavier de Toledo. O
lançamento oficial do Romi-Isetta ocorreu em 5 de setembro de 1956. Imagem: Fundação Romi. Mesmo assim, o sonho de fabricar carros no Brasil não foi
abandonado e o jovem engenheiro continuou no setor automotivo,
Com o sucesso do Romi-Isetta, a indústria automobilística vindo a trabalhar na Buick Motor Corporation e na General Motors
internacional viu um mercado propício no Brasil. Montadoras Truck and Coach Corporation. Também realizou cursos de pós-
europeias, norte-americanas e asiáticas passaram a instalar fábricas graduação enquanto esteve nos Estados Unidos.
no país. Desse modo, passamos a ser fabricantes de automóveis de
empresas como Volkswagen, Ford, General Motors e Fiat. Com o mercado de carros no Brasil crescendo, diversas empresas
estrangeiras vieram se instalar no país e empresários começaram a
A Romi, porém, não continuou a sua fabricação de carros de passeio. investir na indústria nacional. Nesse cenário nasceu a Gurgel Motores.
No dia 13 de abril de 1961 saía o último Romi-Isetta da linha de O sonho de infância de João Augusto de produzir carros nacionais
produção, um exemplar branco e amarelo-limão. finalmente se concretizava, contrariando a sentença de seu professor
da Escola Politécnica.
JOÃO AUGUSTO CONRADO DO AMARAL GURGEL
A empresa foi uma das montadoras brasileiras com maior
notoriedade. A marca teve início em 1969, na capital paulista,
transferindo sua produção, em 1975, para a cidade de Rio Claro,
município a cerca de duas horas de São Paulo.

Com o persistente engenheiro mecânico à frente dos negócios, o


primeiro veículo da nova fábrica foi o modelo Ipanema. Era um bugue
que ganhou fama por rodar bem em terrenos acidentados.

Esse desempenho foi crucial para o direcionamento da montadora,


que passou a investir em carros com pegada off-road.

Obstinado, Amaral Gurgel realizou seu sonho de fabricar um veículo 100% nacional. Um sonho
que se desfez depois de 26 anos de persistência. Imagem: Gurgel Clube de SP.
Um marco importante na história da Gurgel foi a invenção patenteada do sistema de chassi chamado Plasteel. Esse mecanismo misturava plástico e
aço. O uso do Plasteel foi inovador e gerou um novo nicho de mercado.

Outro fato notável e histórico foi a produção do Gurgel Xavante, um icônico carro usado até pelas Forças Armadas. No início dos anos 1970, o Exército
Brasileiro comprou um grande lote da versão militar do Xavante.

Gurgel Xavante, um veículo adotado pelo Exército Brasileiro. Imagem: Gurgel Clube de SP.

Em julho de 1973, após o enorme sucesso dos primeiros produtos, Gurgel decidiu expandir sua fábrica, adquirindo uma grande área em Rio Claro,
para construir uma planta maior.

Ao longo das quase três décadas de existência da montadora, o Xavante teve algumas variações. Em todas elas, a peça-chave era o chassi Plasteel.

Menos de três meses depois do lançamento do Xavante, o mundo


conheceria a grande crise do petróleo. Os países árabes e Israel entraram
em conflito, levando o preço do barril a disparar cerca de 400% em
questão de meses.

Diante desse desafio, Gurgel partiu para o projeto que se tornou quase
um símbolo da empresa: o carro elétrico Itaipu E150. O veículo recebeu
esse nome para homenagear aquela que seria a maior usina hidrelétrica
do mundo, construída entre 1975 e 1982.

Visionário, Amaral Gurgel lançou o carro elétrico Itaipu E150 em 1974. O veículo tinha espaço apenas
para o condutor e um único passageiro. Imagem: Commons/ Wikimedia.
O projeto inicial consistia em um furgão com velocidade máxima de
30 Km/h, que depois foi alterado para 60 Km/h nas versões finais. A
autonomia era de 50 Km, com 10 horas de recarga. Em valores atuais,
o veículo custaria o equivalente a R$ 60 mil.

No início dos anos 1980, com mais um choque do petróleo, a Gurgel


produzia 10 modelos de automóveis, todos movidos a gasolina ou álcool.

O custo elevado de seus veículos foi o motivo para a criação do


Cena, acrônimo para Carro Econômico Nacional. Projetado para ser O Gurgel modelo BR-800, totalmente fabricado no Brasil, foi o primeiro veículo popular do país.
extremamente barato, o veículo foi rebatizado de BR-800”. Imagem: Wikipedia.

Com preço de 3 mil cruzados (moeda vigente à época), o veículo podia ser comprado apenas adquirindo-se ações da própria Gurgel. Na prática,
a empresa buscava meios de se capitalizar, algo que ocorreu com as 8 mil unidades vendidas.

Nos anos 1990, a aposta da Gurgel em veículos populares encontraria forte concorrência. O governo de Fernando Collor de Mello abriu o mercado
nacional, isentando de IPI os veículos com motorização 1.0 litro.

A inovadora montadora brasileira vendeu 40 mil carros de 20 modelos diferentes. E ainda criou diversos protótipos que não chegaram a sair do
papel ao longo de sua trajetória, entre 1969 e 1996.

Mesmo tendo relativo sucesso e bom


desempenho de vendas, isso não foi suficiente
para manter a fábrica Gurgel funcionando. A
montadora brasileira decretou falência em 1994,
após o número de vendas cair drasticamente.

Cerca de oito anos após ser diagnosticado com


mal de Alzheimer, João Gurgel morreu em 30 de
janeiro de 2009, aos 83 anos. Não teve em vida
o devido reconhecimento por seu trabalho que,
por décadas, marcou a indústria automobilística
brasileira.
João Gurgel à frente de parte dos modelos da única montadora nacional de automóveis, que ele próprio construiu. Imagem:
Gurgel Clube de SP.
NELSON FERNANDES
Esse também é o enredo de um sonho que virou realidade. No início da década
de 1960, o jovem empresário Nelson Fernandes, nascido em 24 de fevereiro
de 1931, já era o criador de um clube de campo na zona norte da cidade de São
Paulo, o Acre Clube. Também havia fundado o Hospital Presidente na mesma
região da capital. E tinha em mente algo mais ambicioso: fabricar um automóvel
100% nacional.

Assim como havia feito para viabilizar a criação do clube e do hospital,


Nelson passou a vender títulos de propriedade da fábrica de automóveis,
a fim de captar acionistas*. Estes teriam direito a dividendos e prioridade na
compra de um carro a cada 15 meses, com 20% de desconto e parcelamento
em 30 meses. Condições excelentes ainda hoje.

Bom vendedor, em outubro de 1963, Nelson Fernandes fundava a Indústria


Brasileira de Automóveis Presidente (Ibap), com instalações em andamento
na cidade de São Bernardo do Campo, Grande São Paulo. O terreno possuía
mais de 1 milhão de metros quadrados com 1.500 metros de frente para o
quilômetro 32 da Via Anchieta e 800 m de fundos para a Estrada Velha de
Aos 31 anos, Nelson Fernandes já havia criado um hospital e um clube de campo, e começava a realizar Santos. Somente a fábrica tinha previsão de ocupar uma área construída
o sonho de construir uma fábrica de veículos 100% brasileira. Imagem: Arquivo pessoal.
de 300 mil m2.

Nelson Fernandes estava com 31 anos de idade e cheio de disposição


para realizar o sonho do “carro nacional”. Sua intenção era produzir
três modelos em sua fábrica no ABC Paulista. O primeiro seria um carro
popular com motor de 300 a 500 cm3, o segundo, um utilitário, e o
terceiro, o modelo de luxo Democrata, um três-volumes em versões
cupê de duas portas e sedã de quatro portas, com motor traseiro de seis
cilindros e 2,5 litros.

A Ibap era uma empresa 100% nacional e sua meta de produção era bem
ambiciosa: 350 carros por dia. Era uma marca impressionante para o ano
Em outubro de 1963, Nelson (de óculos escuros na foto) fundava a Ibap - Indústria Brasileira de de 1968, pois era o que a Volkswagen produzia diariamente, somando-se
Automóveis Presidente. Suas instalações ocupariam um terreno de mais de 1 milhão de metros
quadrados na cidade de São Bernardo do Campo. Imagem: Antigos verde amarelo.
o Fusca e a Kombi.

No setor de pessoal, a Ibap também tinha uma proposta diferenciada.


Os 120 funcionários iniciais teriam alguns benefícios não usuais na época. Entre eles, um título de propriedade da Ibap, participação na diretoria,
desconto na compra de um carro e preferência para se tornarem revendedores.

* Esse mesmo formato de capitalização da empresa seria usado, posteriormente, por João Gurgel na criação da Gurgel Motores e,
mais recentemente, por Elon Musk, empresário sul-africano-canadense, naturalizado estadunidense, que usou a mesma estratégia
para criar a Tesla, fabricante de veículos elétricos.
Como os modelos da Ibap teriam projetos 100% brasileiros, a empresa não teria que pagar royalties a nenhuma empresa estrangeira. Isso a tornaria
mais lucrativa que qualquer uma das montadoras concorrentes instaladas no país e seus veículos seriam mais baratos e atraentes.

O veículo popular deveria ser o primeiro modelo fabricado, mas uma inversão fez o Democrata passar à frente. A carroceria feita de plástico
reforçado com fibra de vidro permitiria o início imediato da produção do Democrata. Não havia a necessidade de um demorado e caro
desenvolvimento de ferramental para prensar as chapas metálicas, que o carro popular demandava.

O luxuoso Democrata poderia ter duas ou quatro portas, motor italiano (o único componente não nacional, fornecido pela Procosautom –
Proggetazione Costruzione Auto Motori), com cabeçotes de fluxo cruzado confeccionados em alumínio e montados na traseira interior, com
revestimento de madeira jacarandá.

Lutando contra as gigantes do mercado e o lobby realizado por elas


junto ao governo militar que havia assumido o controle do país em
1964, a trajetória da montadora 100% brasileira teve uma breve vida
de cinco anos. Durante esse período, a empresa fabricou apenas um
modelo, que nunca chegou a ser lançado além dos protótipos.

Além disso, a companhia foi alvo de uma CPI, por suspeita de golpe
nos investidores, e um lote de 500 motores provenientes da Itália foi
apreendido pela Receita Federal, sob alegação de contrabando.

Apenas cinco protótipos do Democrata foram produzidos e, em 1965,


a Ibap foi processada por fraude. Três anos depois, a empresa acabou
Apenas cinco protótipos do Democrata foram produzidos e somente três foram restauradas com peças que
haviam sido apreendidas pela Justiça. Imagem: vemquetemautos.
fechando suas portas, antes mesmo do primeiro automóvel sair de suas
linhas de montagem.

A Ibap foi investigada pela Polícia Federal e pelo governo militar. A empresa de Nelson Fernandes fechou após ser indiciada pelo crime de “coleta
irregular da poupança popular sob falsa alegação de construir uma fábrica de automóveis”.

O patrimônio da empresa foi sequestrado pela Justiça, que somente duas


décadas mais tarde reconheceu ter sido indevida a intervenção do Banco
Central na empresa. Ações suspeitas por parte do Ministério da Indústria
e Comércio e de outras autoridades governamentais à época condenaram
as instalações da fábrica ao abandono por todos esses anos.

Das cinco unidades finalizadas, só restaram três, restauradas com peças


que haviam sido apreendidas pela Justiça. Um dos exemplares foi Logotipo da empresa. Os investidores viravam sócios da Ibap e ganhavam diversas vantagens para
entregue a Nelson Fernandes, que passou a dedicar-se ao negócio de a aquisição dos veículos, além de preferência para virarem revendedores e uma medalha com o emblema
da montadora. Imagem: arquivo pessoal.
cemitérios verticais. Os outros dois veículos permanecem com o mecânico
e colecionador José Carlos Finardi, de São Bernardo do Campo.
Nelson faleceu no dia 29 de janeiro de 2020, mas deixou um grande legado e até hoje não existe uma única marca de veículo 100% nacional.

ROGÉRIO FARIAS

A história da Troller começa em 1994 no Nordeste. Nessa época, o


empresário Rogério Farias começou a desenvolver um novo utilitário
4x4 na cidade de Horizonte, município distante cerca de 50 km de
Fortaleza.

Cearense de Nova Russas, Rogério Farias é administrador de empresas


por formação e engenheiro mecânico por insistência. Em 1994, já um
empresário bem-sucedido, ele começa a construir um veículo 4x4,
apenas com o objetivo de rebocar sua lancha. É que o bugue não
conseguia puxá-la em suas andanças pelo litoral do Ceará.
A história da Troller se inicia no ano de 1994, no Ceará, com o empresário Rogério Farias. Imagem:
Diário do Nordeste. Rogério desenvolveu, então, um veículo com tração automática. Como
naquela época não poderia importar a parte mecânica, o jeito foi fazer
ele mesmo algumas peças para montar o jipe desejado. Em pouco mais de um ano, Rogério tinha um carro 4x4 pronto, inclusive com o nome
definido: Troller.

Em agosto de 1996, com o primeiro veículo finalizado, o desafio era torná-lo um modelo viável em escala comercial. Rogério tinha vendido outra
fábrica que possuía e tinha US$ 1 milhão em caixa. Investiu toda a quantia na produção dos primeiros carros.

Contando apenas consigo mesmo e mais duas pessoas na montagem


dos modelos, a pequena linha de produção (quase artesanal) fazia
um Troller por semana. Do segundo semestre de 1996 até o fim do
ano seguinte, 44 protótipos do jipe cearense foram vendidos para
pilotos de rali, numa espécie de laboratório de testes do novo veículo.

O retorno foi positivo, de maneira geral, e os Troller fizeram sucesso


nas competições fora de estrada das quais participavam.

Apenas dois anos depois da fundação, a Troller passou para as mãos


do também cearense Mário Araújo Alencar Araripe, engenheiro,
empresário e fundador da Casa dos Ventos, maior geradora de
energia eólica em território nacional.
A partir da aquisição por parte de Mário Araripe, o investimento na linha de montagem se intensificou.
Imagem: El Comercio.
Araripe foi o responsável por capitalizar a empresa. A fábrica recebeu
investimentos e teve as instalações ampliadas, com aporte de verbas
também para a engenharia, a fim de melhorar a qualidade do jipe.
Já sob o novo comando, sai o primeiro modelo de produção em série: o Troller RF Sport. A carroceria era feita de plástico e fibra de vidro, possuía
chassi tubular e os eixos – e alguns outros componentes – eram “emprestados” do Jeep Cherokee.

No início, o jipe era equipado com motor VW 1.8 AP, a gasolina, e


com 99 cv de potência. Já em 1998, o modelo passa a usar o motor
VW 2.0, também AP, com 110 cv. O câmbio era manual de cinco
marchas e a tração, claro, 4x4 com reduzida.

No ano 2000, os Troller fizeram bonito nas competições nacionais e


internacionais off-road. Os veículos da marca foram campeões do
tradicional Rally dos Sertões e, na categoria geral, do Rally Cross
Country. Além disso, conseguiram uma quarta colocação no Paris
Dakar, na categoria para iniciantes.

Em 2007, a Ford comprou a marca e assumiu o controle da Desde sua concepção, os veículos Troller tinham um público-alvo definido: os amantes das trilhas off-road e ralis.
produção da Troller. Na época, Rogério Farias não tinha mais Imagem: Pingback.

nenhuma participação na empresa.

Em janeiro de 2021, a Ford anunciou o fim de toda e qualquer atividade industrial no país, arrastando junto a Troller. Com isso, o último T4 foi
produzido e se encerrou mais uma página da história do automobilismo no Brasil: o esforço para ter um carro 100% nacional.

Além do 4x4 Troller, Rogério também desenvolveu lanchas, um carro anfíbio e dois Bugues, o Fyber 2000 e o Fyber 3000. Hoje, o empresário ainda
vive no Ceará e desenvolve elevadores e peças para parques de energia eólica. Mas essa já é outra história.

URBANO ERNESTO STUMPF

Há muitos anos, cientistas de todos os lugares vêm discutindo


formas de reduzir a emissão de carbono e outros poluentes
pelos veículos a motor. Enquanto o mundo busca substituir os
combustíveis fósseis por propulsores elétricos ou híbridos, o Brasil
já conta com uma matriz energética ecoeficiente. O país possui uma
abundância de usinas hidrelétricas e desenvolveu o carro movido
a um combustível renovável, de origem vegetal e com baixas
emissões, o etanol.

O engenheiro e professor do CTA Urbano Ernesto Stumpf desenvolveu a tecnologia que permitiu aos automóveis
rodarem com etanol. Imagem: Força Aérea Brasileira.
O motor movido a álcool é fruto das pesquisas de um engenheiro brasileiro, o gaúcho Urbano Ernesto Stumpf. Foi ele que desenvolveu para o
governo a tecnologia que permitiu aos automóveis rodarem com o álcool hidratado, hoje conhecido como etanol.

O carro a álcool surgiu no final da década de 1970 como alternativa à crise do petróleo. E tornou o Brasil autossuficiente num combustível que
apenas nosso país utiliza em larga escala, inclusive adicionado à gasolina. Hoje em dia, a gasolina recebe cerca de 25% de etanol anidro em sua
composição para uso em automóveis.

O carro a álcool foi um marco para a indústria automobilística nacional. A tecnologia não se limitou ao veículo de passeio. Diversas montadoras
lançaram caminhões leves e médios com motores movidos a álcool.

Durante a crise do petróleo de 1973, diversos países tiveram que racionar o uso de combustíveis fósseis. O Brasil foi impactado da mesma forma que
os grandes mercados consumidores, mas, ao contrário destes, decidiu buscar um caminho um tanto radical: criar um combustível alternativo.

O Governo Federal, presidido pelo general Ernesto Geisel, determinou que houvesse uma opção à gasolina refinada pela Petrobrás.

Como a estatal petrolífera não tinha tecnologia para desenvolver o


novo combustível, a pesquisa ficou a cargo do CTA – Centro Técnico
Aeroespacial, hoje renomeado como Departamento de Ciência e
Tecnologia Aeroespacial (DCTA). Trata-se de um órgão militar e
instituição científica e tecnológica do Comando da Aeronáutica, em
São José dos Campos (SP).

A matriz energética dos futuros automóveis nacionais já havia


sido escolhida. Ela surgiu na forma do álcool, produto obtido no
processo de refino da cana-de-açúcar.

O álcool já era historicamente conhecido como potencial substituto


ou complemento aos derivados de petróleo, incluindo o querosene,
a gasolina (mesmo de aviação) e o diesel.

No CTA, o engenheiro e coronel-aviador Urbano Ernesto Stumpf


tomou a frente do projeto, desenvolvendo a tecnologia que
permitiu aos motores de ciclo Otto trabalharem de forma regular
com o etanol.
Como a Petrobras não tinha tecnologia para desenvolver o novo combustível, a pesquisa ficou a cargo do CTA -
Centro Técnico Aeroespacial. Fonte: Aquivo Força Aérea Brasileira.
O projeto foi apresentado ao Governo Federal logo que ficou pronto, Nesta fase, entre 1973 e 1976, os testes eram executados pela Divisão
em meados dos anos 1970. Inicialmente, o rendimento era baixo, mas de Motores do Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento (IPD), que
o custo de abastecimento com o álcool era ainda menor. O motivo é tinha um time de técnicos e engenheiros liderado por Stumpf.
que o Brasil era um grande exportador de açúcar e este tinha preço
baixo no mercado internacional. Desde 1975, o Polara rodava com álcool. No ano seguinte, foram
acrescentados os modelos VW Fusca e Gurgel Xavante, ambos com a
Assim, com parque industrial já instalado, ficou fácil a aceitação e mesma mecânica.
popularização do carro à álcool. Além disso, existiam diversas usinas
de açúcar aptas a fornecer o combustível. Só faltavam os motores que A equipe do CTA partiu do Centro com os três veículos movidos a
trabalhassem de forma regular e durassem diante do poder corrosivo álcool para rodar o país. Os carros atravessaram nove estados em 21
do produto. dias, percorrendo 8.500 km de estradas. Essa caravana foi decisiva
para mostrar ao mercado nacional que o álcool era viável.
Urbano Ernesto Stumpf realizou vários testes a partir de um Dodge
Polara, o primeiro carro movido a álcool do projeto. Logo, outros Com os resultados satisfatórios, o governo militar autorizou o uso do
fabricantes cederam seus modelos para mais avaliações. combustível vegetal. As montadoras, então, começaram a se preparar
para a nova ordem que estava surgindo.

O Dodge Polara da foto e mais dois veículos, um VW Fusca e um Gurgel Xavante, percorreram 8.500 km testando o motor a álcool desenvolvido pelo CTA. Imagem: Antigos Verde Amarelo.

Em 1979, o Fiat 147 se tornou o primeiro automóvel do mundo produzido em série movido 100% a álcool. Outros vieram no começo dos anos 1980
e o mercado chegou a ter mais de 90% das vendas de carros movidos por essa fonte de energia, ecológica e nacional.
Urbano Ernesto Stumpf morreu em 1998, aos 79 anos, sem ter visto Em 1921, o canadense Munro Alfred Horner também registrou um
o surgimento do carro flex, tecnologia nacional que unificou etanol mecanismo com funcionamento pneumático, mas sua solução não
e gasolina dentro dos motores. Hoje, 95% das vendas de automóveis funcionava tão bem na prática. A transmissão automática inventada
no país são de automóveis e comerciais leves que utilizam por Horner foi patenteada em 1923 e usava ar comprimido em vez de
regularmente tanto o álcool quanto a gasolina. fluido hidráulico. Por isso, sua invenção não tinha potência e nunca
encontrou aplicação comercial.
JOSÉ BRAZ ARARIPE E FERNANDO LEHLY LEMOS
A primeira transmissão automática usando fluido hidráulico foi
desenvolvida em 1932 pelos dois engenheiros brasileiros, que viviam
nos Estados Unidos.

Posteriormente, o protótipo e o projeto foram vendidos para a


General Motors, que introduziu a tecnologia no modelo Oldsmobile de
1940. A montadora apresentou o veículo como transmissão Hydra-Matic,
sendo considerado o primeiro carro com câmbio automático. Mesmo
assim, a nova tecnologia não era um item de série, sendo oferecida
como um opcional. E bastante caro, pois custava o equivalente
a 10% do preço do modelo.
Esquema gráfico apresentado pela General Motors para lançar a transmissão HYdra-Matic. Imagem:
Actualidade Motor.
Na atualidade, o câmbio automático já representa mais de 60%
das vendas dos carros brasileiros. E tudo começou com os dois
Tecnologia dominante em diversos países, como nos Estados Unidos engenheiros emigrados.
e em boa parte da Europa e da Ásia, só mais recentemente o câmbio
automático se tornou um sistema de transmissão acessível para a José Braz Araripe e Fernando Lemos se mudaram nos anos 1920
maioria dos motoristas brasileiros. Em 2012, por exemplo, apenas 15% para o Estados Unidos. Foram trabalhar nas oficinas de reparos
dos veículos vendidos possuíam transmissão automática. navais da Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro, também
chamada de Loide Brasileiro, uma empresa estatal ou paraestatal
Até então, a grande maioria dos carros em circulação eram equipados de navegação. Durante mais de uma década, os dois se debruçaram
com caixa de transmissão manual e o câmbio automático só estava sobre o projeto de transmissão automática.
disponível em veículos dos segmentos luxo e esportivo.
A GM acabou se interessando e propôs duas ofertas: 10 mil dólares na
Uma incoerência histórica, se considerarmos que o câmbio hora ou 1 dólar por carro vendido com a tecnologia. Provavelmente,
automático foi inventado por dois brasileiros, José Braz Araripe e sem ter ideia da capacidade de popularização dos automóveis (e de
Fernando Lehly Lemos. seu próprio invento), a dupla escolheu a primeira opção.

A tecnologia já havia sido esboçada em 1902 pelos irmãos Sturtevant,


de Boston, no estado de Massachusetts. No entanto, o invento deles
era mecânico e funcionava apenas em altas rotações.
Fazendo a conversão da moeda norte-americana
em valores atualizados, a dupla de inventores
brasileiros faturou o equivalente a 160 mil dólares.
Se tivessem escolhido a segunda opção, teriam
embolsado 250 mil dólares referentes apenas aos
veículos com câmbio automático vendidos em 2022.

A invenção brasileira se popularizou e, em 1940,


a Chrysler lançou o Fluid Drive Transmission. Em
1951, a Ford veio com o Ford-O-Matic. Nos anos
1950, o câmbio automático chegou aos populares
Chevrolet com o nome Powerglide e, nos anos
1960, ganhou a terceira marcha.

Nos Estados Unidos, em menos de 20 anos, os


carros com transmissão automática se tornaram a
preferência nacional: todo automóvel americano já
saía de fábrica com câmbio automático.

Reprodução de anúncio publicitário apresentado pela General Motors para o lançamento do Oldsmobile com câmbio automático.
Imagem: Arquivo GM.
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