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LOGOS

As idealizações de sucesso
no imaginário brasileiro:
um estudo de caso
Ronaldo Helal*

RESUMO
Este artigo é parte de um projeto que
investiga algumas práticas das chamadas
culturas populares, tais como o surgimen-
O de suas biografias, além de
possuírem vários aspectos re-
correntes e semelhantes, fun-
los chamam a atenção para a infância
pobre e o talento e a vocação como
damentais na construção da figura mítica
do herói, carregam também elementos
diferenciados que formam para­digmas
distintos e aparentemente antagônicos
no imaginário brasileiro. Assim, temos
to e a formação de ídolos e heróis repre- características inatas. Nisto a de Zico na biografia de Zico (1996) uma ênfase
sentativos de um espetáculo de massa e não se diferencia das demais. Em outra inicial no passado relativamente pobre e
suas relações com a indústria cultural. As ocasião (Coelho e Helal, 1996), verifiquei no prazer e talento inato em jogar futebol,
análises concentram-se em um estudo
preliminar que trata da construção e do
as mesmas características nas biografias que surgiram bem no início da infância.
significado da idolatria no universo do do lendário jogador de beisebol Babe “Nasci numa rua chamada Lucin­da
futebol: a biografia do ex-jogador Zico. Ruth e da cantora Tina Turner. A ênfase Barbosa, em Quintino, um subúrbio do
Palavras-chave: futebol; ídolo; herói. na boa formação familiar de Zico é, no Rio de Janeiro. (p.7) Minha mãe tem hor-
entanto, bem diferente das narrativas de ror a hospital e por isso deu à luz em casa,
SUMMARY Babe Ruth e Tina Turner, já que ambos ti- com a ajuda de uma parteira amiga da
This article is part of a project that investiga- veram perdas terríveis na infância. O fato gente - bem como Dona Matilde queria
tes some practices of the so-called popular é que a pobreza ou a infância simples e como muita gente da vizinhança fazia
cultures, including the emergence and
formation of idols and heroes represen-
ajudam na identificação com o homem naquele tempo. Sou o caçula de uma
tative of the a mass spectacle and their comum, e o talento inato enquadra-se na família numerosa”. (p.8)
relations to the cultural industry. The analyses ordem das coisas inexplicáveis, fazendo “Quintino, aquele bairro humilde da
concentrate on a preliminary study which com que os ídolos sejam vistos como Zona Norte do Rio de Janeiro (...) A casa
cover the construction and the meaning seres singulares, diferenciando-se dos dos Antunes continua ali na rua Lucinda
of the worship of idols in the universe of demais. Assim, a infância simples e o Barbosa, uma rua típica de cidade do
soccer and the biography of the former talento como algo natural são facetas interior (...) Lá no alto, a casa (...) simples,
soccer player Zico. da história de vida de Zico que ajudam com aquela varanda, um pequeno jardim
Keywords: soccer; idol; hero.
simultaneamente a humanizá-lo e miti- e um portão rangedor, que chiava sempre
RESUMEN ficá-lo. Em uma análise sobre a figura de quando era aberto, avisando a chegada
Este artículo forma parte de un proyecto Zico elaborada em meados da década de de alguém”. (Bucar Nunes, p.15)
que investiga algunas prácticas de las 80, o escritor Artur da Távola esclarece “Futebol era o que mais me dava
llamadas culturas populares, tales como que: “Ele (Zico) despontou há alguns prazer na vida. Contam lá em casa que,
el surgimiento y formación de ídolos y anos como o próprio herói da mitologia depois de papai e mamãe, a primeira
héroes representativos de un espetáculo em sua primeira fase, chamada de ‘ino- palavra que eu disse foi Dida - meu
de masa y sus relaciones con la industria cência’, ou ‘alheamento’, quando ainda primeiro e até hoje meu maior ídolo no
cultural. Los análisis se concentran en
é figura pura e sem mácula (...) A figura futebol”. (p.12)
un estudio previo que trata de la cons-
trucción y el significado de la idolatría
de comunicação de Zico presta-se à “Os seus brinquedos preferidos: a
en el universo del fútbol: la biografía del perfeição a essa primeira etapa; provém bola, depois a bola, e depois ainda, a bola
ex-jugador Zico. de uma família de subúrbio muito unida (...) Nas peladas, onde o valor individual
Palabras-llave: fútbol; ídolo; héroe. e amiga, vive no e para o lar, é um rapaz era demonstrado na hora da escolha dos
simples, incapaz de um gesto desleal e jogadores de cada equipe, passou a ser
traz apenas o seu talento fora do comum preferido.
para o futebol (a espada, o escudo ou o - Par ou ímpar?
capacete ou a capa do herói)”. (Távola, - Par. Um, dois, três e já!
1985, p.356) - Ganhei. Quero o Zico!” (Bucar Nunes,
De fato, a biografia de Zico é permea- 1986, p.17)
Geralmente, as biografias dos ído-
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s êxitos e conquistas de ídolos e celebri- entre ídolos deste universo e os de outros, de Zico fala da luta do “fraco” contra o
dades despertam a nossa curiosidade. como música e dra­maturgia. Enquanto “forte”, da vitória através do trabalho e
Suas trajetórias de vida rumo à fama e os primeiros freqüentemente possuem da determinação, e de uma sucessão de
ao estrelato costumam ser narradas na características que os transformam em obstáculos e provações que ele teve de
mídia de forma mítica, conferindo uma heróis, os do outro universo raramente superar. Construída em uma época em
maior dramaticidade às conquistas. No carregam estas qualidades. A explicação que o futebol ainda não era um fenômeno
Brasil, estas narrativas das trajetórias de para este fato reside no aspecto ago- totalmente “midiatizado”, a narrativa da
vida de nossos ídolos enfatizam sobre- nístico, de luta, que permeia o universo figura mítica de Zico é um emblema de
maneira a genialidade e o improviso do esporte. O “sucesso” de um atleta um modelo que une profissionalismo e
como características marcantes e fun- depende do “fracasso” do oponente. É paixão, determinação e prazer, esforço
damentais para se alcançar o sucesso. uma competição que ocorre dentro do e alegria de praticar o futebol. O filme
Isto torna-se ainda mais evidente nos próprio universo do espetáculo. Ambos, Uma aventura do Zico, de Antônio Carlos
universos das artes e dos esportes. ídolos do esporte e ídolos da música, se Fontoura, lançado em 1999, expressa
Acreditamos, por exemplo, que Chico transformam em celebridades, mas só exemplarmente estas junções presentes
Buarque não precisa de muito “treino” os ídolos do esporte são considerados na biografia de Zico.
ou “trabalho” para compor suas canções. “heróis”. Edgar Morin (1980) e Joseph Nossa análise concentra-se em duas
O talento e a ge­nialidade seriam suficien- Campbell (1995) chamam a atenção para biografias do atleta. Uma, Zico: uma lição
tes. Outro exemplo, seria o da seleção a diferença entre celebridades e heróis. de vida”, foi escrita por Marcus Vinícius de
brasileira que conquistou o tricampeo- Enquanto os primeiros vivem só para Bucar Nunes e publicada em 1986 pela
nato em 1970, até hoje idealizada como si, os heróis devem agir para “redimir a Offset Editora Gráfica e Jornalística, com
uma equipe que não precisava treinar, e sociedade”. o jogador ainda em atividade e no auge
tampouco necessitava de recomenda- Esta característica do “ídolo-herói” da idolatria. A outra é Zico conta a sua
ções táticas, quando sabemos que, na acaba por transformar o universo do história”, escrita por ele e publicada em
verdade, a comissão técnica se utilizou de futebol em um terreno extremamente 1996 pela FTD, quando já era um bem-su-
métodos de condicionamento e prepara- fértil para a produção de mitos e ritos cedido empresário do ramo futebolístico.
ção física dos mais modernos da época. relevantes para a comunidade. Dotados Note-se que a FTD é especializada em
Ou ainda o da seleção que conquistou o de talento e carisma, o que os singulariza publicações voltadas para o público juve-
tetracampeonato em 1994, criticada por e diferencia dos demais, estes “heróis” nil. Editar a biografia de Zico revela, pois,
parte considerável da mídia justamente são para­digmas dos anseios sociais e, a crença na importância da sua história
por deixar clara a ênfase em uma “mar- através das narrativas de suas trajetó­ para a formação do caráter.
cação forte” e uma rígida disciplina tática. rias de vida, uma cultura se expressa e
Mesmo vencedora, o trabalho do técnico se revela. De fato, o mito, conforme nos Mito, talento e esforço
da seleção até hoje não foi reconhecido, o ensina Eco, é uma “projeção na imagem
mesmo acontecendo com os técnicos das de tendências, aspirações e temores Esforço e determinação como ele-
outras conquistas. (Rocha, 1997) particularmente emergentes num indi- mentos fundamentais para se alcançar
Qual a relação das idealizações que fa- víduo, uma comunidade, em toda uma êxito são, muitas vezes, relegados a um
zemos das nossas conquistas e do sucesso época histórica”. (1979, p.239) plano secundário nos discursos constru-
de nossos ídolos com os “mitos” da nossa A quantidade de ídolos na história do ídos pelos cronistas dos universos das
futebol brasileiro é muito grande. Dife- artes e dos esportes. No caso específico
cultura? Por que “construímos” narrativas
rentes enquanto sujeitos, suas biografias do futebol, chega a ser até uma crítica
que miti­ficam o êxito e o sucesso sem
podem ser agrupadas em alguns modelos contundente chamar um jogador de
a ênfase no trabalho e no esforço? Por
“esforçado”. É uma maneira de dizer que
que frisamos sempre que o aluno que ou arquétipos singulares, próprios da
ele não tem talento, porém se esforça.
passou em primeiro lugar no vestibular nossa cultura. Enquanto paradigmas des-
O oposto seria o talento puro, genuíno,
levou “uma vida normal, namorando, ses modelos de existência, as biografias
inato, que não precisa de treino ou es-
indo à praia ou ao cinema” em vez de ter destes heróis “editadas” pela mídia falam
forço para ser aprimorado, como se não
estudado 8 horas por dia? Por que falar freqüentemente de trajetórias recorren- fosse possível ser talentoso e esforçado ao
em “esforço” seria um demérito em nosso tes (Coelho e Helal, 1996). Assim, agrupar mesmo tempo. Freqüentemente, quando
país? Não existiriam também outros pa- tais modelos de ídolos do futebol brasi- tratamos de ídolos do futebol, deparamos
radigmas de idealização de sucesso? E se leiro e investigar a edição “midiatizada” com uma narrativa que idealiza talentos
existem, não seriam porventura vertentes de suas trajetórias podem nos ajudar a inatos e irreverência como ingredientes
brasileiras, só que pouco cul­tuadas? São entender melhor a relação entre mídia e do sucesso. A biografia de Zico fala de
estas questões que vão permear as refle- cultura popular. uma outra realidade, calcada primordial-
xões deste artigo, que se propõe a analisar A escolha da biografia de Zico deveu- mente no predomínio do esforço e da de-
criterio­samente a idealização do sucesso se ao fato de se tratar do maior ídolo do terminação como instrumentos basilares
contida na biografia de um dos maiores futebol durante as décadas de 70 e 80, para se alcançar êxito. É justamente esta
ídolos do futebol nas décadas de 70 e estrela de uma geração de jogadores faceta que gostaria de chamar a atenção,
80: o atleta Zico, hoje um bem-sucedido vitoriosos em seus clubes mas que não pois ela nega uma ideologia de sucesso
empresário. lograram êxito em Copas do Mundo.1 cultuada no nosso imaginário quando se
Ao tratar da biografia de um atleta Figura muitas vezes contestada fora trata de ídolos futebolísticos. A partir daí,
esportivo, enfatizo uma diferença básica do universo do Flamengo, a biografia podemos entender como as narrativas
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obstáculos e as perdas que a vida impõe técnicos temiam pelo seu corpo ainda no Maracanã, que não sabia jogar na
do que em seu talento extraor­dinário para franzino e ele passou o ano de 1973 no seleção, que não suportava marcação à
a prática do futebol. Neste sentido, a cons- banco de reservas do time principal, européia, e mais dezenas de acusações
trução da narrativa mítica em torno de sendo escalado em diversas posições às quais respondia jogando. Era o que
Zico enquadra-se no rol dos arquétipos durante as partidas. Contudo, até deste eu sabia fazer: jogar futebol”. (p.45)
universais de idolatria aos heróis. Ela nos fato Zico tirou algo de positivo enfati- “Aprendi com meu pai a respeitar meu
mostra que não basta o ato heróico em si, zando que aprendeu a jogar em todas trabalho e a valorizar o que consigo
de forma isolada - no caso, as vitórias, as as posições do ataque, o que o tornou com meu esforço. Todo dia tínhamos
realizações e os gols no futebol. O herói ainda mais versátil e completo para o que treinar finalizações e passes. São
tem de preencher outros requisitos - tais futebol moderno (Bucar Nuces, 1986, p.61 nossos instrumentos de trabalho (...)
como perseverança, determinação, luta, Eu me habituei a ser o jogador mais
honestidade, altruísmo - para se firmar no cobrado. Estava em evidência o tem-
posto.4 E Zico os preenche com bastante po todo, era minha responsabilidade,
eficácia. A biografia de Zico fala de inclusive, dar o exemplo de dedicação
Ainda dentro desta idéia de arquétipo uma realidade calcada no esfor- e profis­sionalismo, não faltar aos treinos
universal, observamos que a trajetória de sem motivo justo, não perder vôos nem
vida de Zico é permeada por constantes
ço e determinação como instru-
horários (...) Eu queria fazer carreira,
desafios que ele superou com “armas” mentos para se alcançar êxito. É queria ser o melhor, ou pelo menos estar
da sua personalidade para lograr êxito. esta faceta que chama a atenção, entre os melhores. Então, isso tinha um
Campbell (1990, p.133-134) explica que pois ela nega uma ideologia de preço, havia responsabilidades incluídas
as “provações são concebidas para ver se sucesso cultuada no nosso ima- nesse objetivo”. (p.56-57)
o pretendente a herói pode realmente Referindo-se a um episódio ocor-
ser um herói. Será que ele está à altura rido na vida de Zico em 1979, Bucar
da tarefa? Será que é capaz de ultrapassar Nunes destaca de forma em­ble­mática:
os perigos? Será que tem a coragem, o e Zico, 1996, p.36). Mas o que a biografia “E foi com absoluta convicção que ele
conhecimento, a capacidade que o habi- de Zico mais sublinha é o início de um pôde comprovar, mais uma vez, que
litem a servir?” De fato, as provações na caminho cheio de provações e obstáculos o TRABALHO com DETERMINAÇÃO
carreira de Zico começaram bem cedo. superados através de um espírito de luta é o capital que menos falha. E então
Depois do problema do corpo franzino, fora do comum: “Foi um período difícil. Deus ajuda. Os comentários, apesar do
Zico sofreu uma grande decepção por Precisava me superar em cada jogo, em sucesso do Flamengo e dos gols fora
não participar das Olimpíadas de 1972. cada treino, provar a cada dia para todo de série, que surgiam a cada partida,
Seguindo o conselho do próprio técnico mundo que tinha condições de ser titular”. eram maldosos. Principalmente em
da seleção olímpica, Zico, que em 1971 já (Zico, 1996, p.37) relação aos jogos internacionais (...)
começara a jogar entre os profissionais, A oportunidade veio em 1974, quan- Estava mostrando ao mundo que tinha
voltou para os juvenis a fim de ser con- do o técnico dos juvenis - que tinha sido condições de estar entre os melhores
vocado para as Olimpíadas que se realiza- campeão com Zico e, portanto, conhecia porque tinha trabalhado com afinco,
riam no ano seguinte. A convocação não todo seu potencial - assumiu o comando desde criança, para vencer na sua
veio e Zico, a princípio, reagiu de forma do time profissional. Mais uma vez, uma profissão”. (p.110-114)
“humana” e “ordinária”, com sentimento surpresa: início do primeiro treino com o O que se verifica, de forma nítida,
de revolta, decepção e muito abatimento: novo técnico no comando e Zico foi esca- na biografia de Zico é a construção de
“alguma coisa, uma espécie de confiança lado no time. No entanto, este fato serviu uma narrativa na qual uma série de
nos outros, na justiça do mundo, tinha se para despertar definitivamente o espírito obstáculos, perdas e fracassos é sempre
desfeito. A seleção havia se classi- guerreiro e desenvolver o senso de pro- acompanhada de uma história de muito
ficado para os Jogos Olímpicos com um fissionalismo: “agora a vontade maior era trabalho, determinação e profissionalis-
gol meu, eu confiara na promessa de mostrar, imediatamente, a si próprio, que mo: “Nada acontece por acaso e para to-
convocação. Fiquei muito abatido e só não iria faltar garra para dar a volta por das as coisas há um preço. Em qualquer
pensava em largar o futebol” (Zico, 1996, cima mais uma vez. Com satisfação ou atividade, treinamento e persistência
p. 33-34). No entanto, esta “derrota” na não, era profissional e estava ali para trei- são fundamentais”. (Zico, 1996, p. 125)
carreira do atleta o transformou em um nar”. (Bucar Nunes, 1986, p.63) O resultado Dentro da explicação de Um­berto Eco
“guerreiro” ainda mais lutador e obsti- foi que marcou dois “gols belíssimos” e os (1979) sobre o fascínio que o mito do su-
nado: “a primeira semana de treino foi reservas venceram por 3 a 1. (Idem, p.64) per-homem exerce sobre nós, podemos
melancólica. Dura de chegar ao fim. Mas Estava conquistada, de forma sofrida, a dizer que do Zico “humano” - e as perdas
já na semana seguinte, ao lembrar da posição de titular. Deste momento em das Copas do Mundo contribuíram para
não convocação, treinava com mais garra diante, Zico mitifica a camisa 10 do Fla- dar um tom ainda mais “humano” à sua
ainda, transformando toda a sua revolta mengo, conhece a fama e transforma-se biografia - surge o “ídolo”, um ser “extraor-
íntima em energia positiva para treinar”. em um grande ídolo. Tudo isso, porém, dinário” que através de muita luta, treino,
(Bucar Nunes, 1986, p. 52) em um caminho cheio de obstáculos e trabalho e esforço superou os obstáculos
Mesmo com toda esta dedicação, provações. Conforme ele mesmo diz: “Por e atingiu a glória. No final das contas,
cada vez mais aprimorando sua técnica, toda a minha carreira, enfrentei diversas estamos diante de um vitorioso. Hoje um
Zico levou um tempo para se firmar na tentativas de desacreditar meu futebol. empresário bem-sucedido.
equipe profissional do Flamengo. Os Já disseram que eu só era bom jogador Assim, a biografia de Zico ao enfa-
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da por um constante processo de junção por parte da mídia.2 por volta das 10h30min da noite estava
entre o homem e o mito, o ordinário e O fato é que em ambas as biografias chegando em casa. Banho, um capricho
o extraordinário, fundamental para a de Zico a postura “anglo-saxônica” é su- na última alimentação do dia, e pumba...
identificação do ídolo com os fãs. Neste perenfatizada, tanto ou mais até do que APAGAVA”. (Bucar Nunes, 1986, p.38)
sentido, ao dizer que Dida é até hoje seu o talento extraordinário do atleta. A partir daí, passa-se a enfatizar
maior ídolo no futebol, temos, mais uma A ascensão de Zico foi bastante gra- primordialmente a obstinação, o auto-
vez, o Zico reverente, humano, ordinário. dual, com muitos obstáculos no caminho, controle e a disciplina de Zico. Bucar
É o extraordinário juntando-se ao ordiná- a começar pelo corpo franzino que quase Nunes afirma que ele “tinha orgulho do
rio, ao “homem comum” que tem seus o impediu de, aos treze anos de idade, seu autocontrole, da sua determinação,
ídolos e os reverencia. De fato, os ídolos em busca do seu objetivo”. (Idem, p.32)
têm que conviver constantemente com o Mais adiante destaca as palavras do
drama de ser dois: homem e mito. Como médico responsável pelo tratamento: “o
no futebol é comum o jogador possuir A construção da narrativa mí- que mais me encanta (...) é o seu senso
um apelido (pelo qual é conhecido e tica em torno de Zico enquadra-se de responsabilidade. É fora do comum a
famoso) podemos dizer, por exemplo, dedicação desse garoto. Nessa idade, a
que por trás dos “homens” Edson, Diego no rol dos arquétipos universais turma geralmente contesta (...). Ele, não.
e Arthur, surgiram os “super-homens” de idolatria aos heróis. Não basta Vai sempre com o mesmo pique, com a
Pelé, Mara­dona e Zico. Note-se que esta o ato heróico em si - no caso as mesma vontade, seguindo, literalmente
“esqui­zofrenia” inerente ao ídolo, ou essa vitórias. O herói tem que mostrar à risca, as nossas determinações” (Idem,
divisão em duas per­sonas, uma “público- p.39). E o próprio Zico, ao se lembrar da-
mítica”, outra “privada-humana”, pode
determinação, perseverança e quela rotina, faz a seguinte reflexão: “Anos
aparecer explicitamente nos discursos depois, quando sofri aquela contusão no
de alguns deles como Pelé, por exemplo, joelho, alguém iria me dizer que na vida
que sempre frisou a diferença entre “Pelé” fazer um teste no Flamengo. Por isso, a gente precisa de duas coisas: paciência
e “Edson”. logo após se firmar na escolinha, Zico se e memória; e precisa de memória princi-
A partir deste processo comum em submeteu a um árduo tratamento para palmente para lembrar que precisa ter
quase toda a narrativa mítica da figura reforçar a musculatura, renunciando a paciência.” (Zico, 1996, p.26)
do herói, a biografia de Zico passa a vários prazeres próprios da adolescên- Este tratamento a que se submeteu
privilegiar o esforço e o trabalho como cia. Este período de sua vida ganha uma ainda bem jovem fez com que Zico ficas-
determinantes para se atingir o sucesso. dimensão singular na biografia. Mais do se conhecido no início da carreira como
De forma exemplar, é o próprio Zico que dificuldades financeiras, comuns nas “craque de laboratório”. Ou seja, de um
quem diz no prefácio do livro de Bucar histórias de vida dos astros do futebol e planejamento “científico”, com a ajuda de
Nunes, Zico: uma lição de vida: “Sempre que ajudam no processo de identificação médicos, nutricionistas e modernas técni-
entendi, desde menino, que ninguém com os fãs, esta passagem na vida de Zico cas e aparelhos de educação física, surgiu
será capaz de exercer bem a sua profissão, fala de determinação, esforço e renúncia, uma grande estrela do nosso futebol. Era
sem se exercitar bastante e sempre, para dando início a uma trajetória repleta de o racional, o objetivo e o matemático unin-
o exercício dela. Afinal, não aprendemos obstáculos rumo ao posto de estrela do-se ao lúdico, ao talento e à improvisa-
que o maior merecimento dos vitoriosos maior do futebol brasileiro. ção. É interessante notar, no entanto, que
é confiar, apaixonadamente, na eficácia “O despertador tocava no horário ha- apesar das biografias enfatizarem positiva-
do trabalho? Acho que isto deveria ser, bitual: 5h30min da manhã. Com a roupa mente a dedicação de Zico a este trabalho
sempre, o objetivo maior de cada um de do colégio e devidamente alimentado “científico”, à época a alcunha “craque de
nós: lutar por aquilo que se gosta. A vitó- com um café da manhã reforçado, partia laboratório” era utilizada, muitas vezes, de
ria será conseqüência. Mas, sem dúvida, para o ponto de ônibus ou para a estação forma pejorativa, significando um craque
muita luta, muito trabalho, muito suor de Quintino. A primeira parada de ônibus não genuíno, fugindo das características
existem no caminho da determinação de ou do trem era a Central do Brasil. Daí à “artísticas”, “espontâneas” e “criativas” do
cada um”. Gávea (...). Chegava cerca de meia hora nosso futebol.3
Este é um discurso mais próximo da antes do treino, que iniciava às 9 horas.
ética puritana das sociedades anglo-sa- Mais ou menos às 11 horas estava deixan- Provações, derrotas e conquistas
xônicas, afastando-se do modelo “Mala- do o campo número dois do Flamengo.
sartes” e “Macunaíma” que parte da mídia Um banho rápido, almoço lá mesmo na O que se evidencia nesta biografia
tende a cultuar no Brasil, especialmente cantina da Gávea, e pé na estrada, rumo à é que o mito Zico surge ancorado pri-
no domínio do futebol. Talvez um estu- cidade, porque às 12h30min as aulas esta- mordialmente em características de sua
do sobre a construção da figura mítica vam começando (...) Às 5 da tarde, no final personalidade. Este fato é decisivo na
de Romário, por exemplo, nos revelasse da aula, tinha que tomar outra condução. construção da figura mítica. Brandão
uma biografia muito mais próxima do O destino era novamente a Zona Sul da (1993, p.23) fala de “hono­rabilidade
modelo “Malasartes” e “Macunaíma”, cidade onde, na Academia Paula Ribeiro, pessoal”, “excelência” e “superioridade
exaustivamente analisado por Ro­berto treinava firme até às 8 horas da noite. No em relação aos outros mortais” como
virtudes inerentes à condição do herói.
DaMatta (1979), que traz para o discurso retorno para Quintino, aí pelas 9 da noite,
A “superioridade” de Zico em relação
acadêmico a narrativa do “malandro” mesmo passando pela Central do Brasil
aos outros mortais encontra-se mais na
como uma vertente tipicamente brasileira, para a tradicional ‘conexão’, o trânsito, forma com que enfrenta os desafios, os
corroborando, assim, a postura adotada facilitado pelo horário, era mais rápido:
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tizar, de forma peremptória, o sucesso Pedagógicos e Culturais, nos 1/2, vol.5. Centro
através do esforço e do trabalho, Educacional de Niterói, 1996.
junta-se aos modelos de heróis mais DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e he-
próximos das sociedades anglo-saxôni- róis. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São
cas, permeadas por uma ética única do
Paulo: Perspectiva, 1979.
trabalho e do indivíduo. Este modelo é HELAL, Ronaldo. “Mídia, ídolos e heróis do fute-
antagônico ao padrão predominante na bol”. In: Comunicação, movimento e mídia na
construção da idolatria nas narrativas, Educação Física, CEFD/UFSM, 1999.
por assim dizer, “oficiais” - nas quais a HELAL, Ronaldo. “Cultura e idolatria: ilusão,
mídia é o instrumento legitimador - no consumo e fantasia”. In: ROCHA, Everardo
Brasil. Aqui, temos freqüen­temente um (org.). Cultura e imaginário. Rio de Janeiro:
ideal “essen­cializado” de seres “moleques” Mauad, 1998.
e “irreve­rentes”. O ponto que quero cha- HELAL, Ronaldo. “Mídia, construção da derrota e
mar a atenção é que a biografia de Zico, o mito do herói”. In: Motus Corporis, vol. 5, nº
2. Rio de Janeiro: UGF, 1998.
mesmo contrariando este padrão “oficial”,
HELAL, Ronaldo e GORDON J., Cesar Claudio. “Socio-
também é uma vertente brasileira. Posto logia, história e romance na construção da iden-
que se faz sucesso é porque “cola” com tidade nacional através do futebol”. In: Estudos
os anseios da comunidade. Mesmo que históricos. Rio de Janeiro: FGV, 1999.
a maioria dos modelos de idolatria em MORIN, Edgar. As estrelas de cinema. Lisboa:
nossa sociedade enfatize um padrão Horizonte, 1980.
mais próximo do que “essen­cia­lizamos” ROCHA, Everardo. “As invenções do cotidiano: o
como sendo tipicamente brasileiro, há descobrimento do Brasil e a conquista do tetra”.
espaço para outras narrativas mais uni- In: Pesquisa de Campo nos 3/4. Rio de Janeiro:
versalistas, que nem por isso deixam de Núcleo de Sociologia do Futebol/UERJ, 1996.
ser brasileiras. É importante estarmos SOARES, Antonio Jorge G.. Futebol, raça e nacio-
nalidade: releitura da história oficial. Tese de
atentos para os discursos que fogem
Doutorado. Rio de Janeiro: Programa de Pós-
dos padrões considerados “oficiais”. Eles Graduação em Educação Física/UGF, 1998.
podem ser extremamente reveladores de TÁVOLA, Artur da. Comunicação é mito. Rio de
faces do Brasil que não nos acostumamos Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
a celebrar. ZICO. Zico conta sua história. São Paulo: FTD,
1996.

Notas
1
Muitas das observações aqui apresentadas fo-
ram extraídas, com algumas alterações, do artigo
“Mídia, Ídolos e Heróis do Futebol”, publicado
na revista Comunicação, movimento e mídia na
Educação Física, vol.2 , CEFD/UFSM, 1999.
2
Sobre uma discussão a respeito da reprodução de
narrativas da imprensa pela academia ver Soares
(1998) e Helal e Gordon (1998).
3
Esta observação está calcada em depoimentos
tomados pelo autor de pessoas ligadas ao universo
do futebol.
4
Para uma análise sobre o modelo universal da
figura do herói tendo como fonte de análise o
filme Herói por acidente de Stephen Frears, ver
Helal (1998).

Bibliografia
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega, vol.
3. Petrópolis: Vozes, 1993.
BUCAR NUNES, Marcus Vinícius. Zico: uma lição
de vida. Brasília: Offset Editora Gráfica e Jor-
nalística, 1986. * Ronaldo Helal é Professor da Fa­
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São cul­dade de Comunicação Social
Paulo: Cultrix, 1995. da UERJ, Doutor em Sociologia pela
COELHO, Maria Claudia e HELAL, Ronaldo. “A New York University, Pesquisador do
indústria cultural e as biografias de estrelas: as his- CNPq e autor de Passes e impasses:
tórias de Babe Ruth e Tina Turner”. In: Cadernos futebol e cultura de massa no Brasil e

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