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07/12/2020 Silêncio além do sofrimento - Torá e Estudos

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Silêncio além do sofrimento


Por Simon Jacobson

Há alguns anos, em um Seder de Pêssach, eu estava


sentado perto de um judeu francês que, no decorrer de sua
busca espiritual de toda uma vida, tinha descoberto o Zen.

Incrivelmente vigoroso e bem-humorado aos 70 anos, Julian


se autoproclamava um ateu cuja crença fundamental era na
natureza, uma crença apoiada por muitos anos seguindo os
caminhos da vida americana nativa em reservas indígenas
no Canadá.

Senti que Julian estava resistindo a todas as tentativas de


ser engajado nas discussões à mesa sobre Judaísmo.
Quando começamos a conversar, ele partilhou comigo –
quase que para demonstrar sua antipatia a tudo que fosse
judaico – que estava sempre absorvido pela filosofia Zen,
especialmente seus Koans (exercícios teóricos mentais).
Havia, no entanto, dois Koans que fugiam à sua compreensão:
Koan nº 1: “Uma mão entra na água, mas a manga da roupa não se molha. Como?”
Koan nº 2: “Um touro colide com uma janela. Sua cabeça, corpo e pernas continuam entrando
vidro adentro, mas não sua cauda. Por quê?”

À medida que a noite avançava, e nós dois tomamos vinho de Pêssach (ele mais do que eu),
senti uma oportunidade de responder ao dilema de Julian. Perguntei a ele se estava
familiarizado com o mais original e importante de todos os Koans. A palavra hebraica “Kohen”
significa sacerdote, referindo-se aos sacerdotes que serviam no Templo de Jerusalém.

No Templo Sagrado, havia dois tipos de serviço: o dos cohanim e o dos levitas. Os levitas
serviam a D'us com cânticos, cada dia compondo uma nova melodia para louvá-Lo. Os
cohanim serviam em silêncio. Por maior que fosse o poder da canção, não pode ser
comparada ao poder do silêncio. A quietude do serviço dos cohanim acessava a dimensão
mais íntima do Divino, cuja intensidade não pode ser contida nem mesmo na mais bela
melodia.
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Sob a nossa limitada perspectiva, o som é mais alto que o silêncio. Sob o ponto de vista da
verdadeira realidade, o silêncio é mais poderoso que o som. Não porque D'us está mais
próximo do silêncio do que está do som, mas porque o silêncio nos proporciona a capacidade
de nos elevar acima de nossa limitada percepção e sentidos para vivenciar o sublime.

Agora, disse eu a Julian, vamos voltar ao seu primeiro Koan. “Uma mão entra na água, mas a
manga da roupa não se molha. Como?” A água pode ficar molhada? Não, porque a água já é
molhada. Sob a nossa limitada perspectiva, uma mão e uma manga secas que entram na
água ficam molhadas, porque seco e molhado são dois estados diferentes. A realidade, no
entanto, não é seca nem molhada e portanto inclui e integra ambas. Quando nos sublimamos
(“tevilá”, submersão num micvê, tem as mesmas letras que “bitul”, “auto-anulação” nas “águas
puras do conhecimento,” quando sentimos o silêncio, então nossa manga e nosso braço e
todo o ser não podem se molhar, pois somos a própria umidade.

Ao seu segundo Koan: “O touro inteiro colide com a janela e a cauda não. Por quê?” Deixe-me
perguntar a você: “Por que não? Por que a cauda deveria seguir?”

Um professor de Filosofia pediu aos seus alunos para escreverem uma dissertação
respondendo a uma pergunta: “Por quê?” Todos os estudantes, escrevendo longos ensaios,
erraram, exceto dois. Um deles recebeu um ‘A’ por ter respondido “Porque sim!” O outro
recebeu um ‘A+’ por ter respondido “Por que não?”

Todas as nossas questões “por que” originam-se do fato de começarmos com princípios
definidos que são “dados” e portanto perguntamos “por quê?” No entanto, sob a ótica de D'us,
aquilo que está além de todas as definições e paradoxos, qualquer questão “por quê”, e
quanto a isso qualquer pergunta é absurda. Perante D'us “por que não?” é a pergunta mais
apropriada.

O touro, nosso lado agressivo, colide contra uma janela. Nós, nossa lógica, espera que tudo o
mais siga batendo, incluindo a cauda. Quando a cauda não o faz, perguntamos: “Por quê?”

Meu amigo, eu disse, suspenda sua lógica e fique em silêncio. E agora, “por que não?”

O francês deu um salto na cadeira. “Claro! Após todos esses anos – é claro, é claro…” Ele
continuou resmungando consigo mesmo, intercalado com breves ataques de riso…

“Por que não? Por que não? Por que… não?”

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Ficou sentado imóvel durante algum tempo. Então olhou para mim em silêncio. Um silêncio
que era mais alto que quaisquer palavras. E ele disse: “Então por que este D'us – o seu D'us –
permitiu o Holocausto?”

Ele não precisou explicar mais.

Fiquei quieto. Então olhei a verdade no olho – no meu e no dele – e lhe disse: “Você acaba de
acertar o maior de todos os ‘koans’. Tendo passado a vida inteira intrigado, procurando os
mistérios do ‘koan’, você está incomodado pelo supremo koan, o supremo paradoxo.”

Ele inclinou-se para mais perto de mim, olhando-me nos olhos, ouvindo com a maior atenção.
“Por que você está preparado para aceitar as experiências transcendentais que resultam dos
paradoxos intrínsecos inerentes a todos os Koans, porém não quer aceitar o paradoxo de um
D'us bom que permite o mal? Se D'us é realidade – a inteireza da realidade – não é possível
que D'us transcenda nossas limitadas definições de bem e mal? Ou seja, que D'us não seja
bem nem mal (na maneira que definimos os termos), nem “seco” nem “molhado” nem “sim”
nem “não”, e portanto não podemos perguntar “por quê” ou nem mesmo “por que não”.

“O motivo pelo qual você – e eu, e todos, sem dúvida – agonizamos sobre este Koan é que
este atinge um ponto… outros Koans são exercícios teóricos intrigantes e podem até levar a
alguma verdade mais importante. Porém, ao final do dia, vivemos e dormimos pacificamente
sabendo que nossa lógica não compreende o som de uma mão batendo palmas, ou a mão
seca na água molhada. No entanto, não podemos dormir em paz quando sabemos e sentimos
a agonia de crianças inocentes sendo impiedosamente gaseificadas, suas cinzas dispersas
pelo vento, seu sangue indefeso sendo absorvido pela grama do solo da Bavária.

“Este, meu amigo, é o supremo Koan. E não tenho resposta para ele. Nenhum de nós jamais
terá uma resposta. Na verdade, o próprio D'us talvez não tenha uma resposta que possamos
entender, e D'us, também, não dorme em paz. Quando os romanos torturaram os maiores
sábios e santos de seu tempo, fazendo-o com uma barbárie desenfreada, os anjos celestiais
clamaram a D'us: ‘Esta é a Torá e esta é sua recompensa?!’ D'us não deu qualquer explicação
teológica. Ele disse simplesmente: “Fiquem quietos…”

Silêncio. A única resposta.

Julian inclinou levemente a cabeça. Olhou para mim durante uma eternidade. E não
pronunciou mais nenhuma palavra durante toda a noite. Eu também não.

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Porém, antes de ir para casa ele me disse à porta: “É tão difícil. O sofrimento é tão profundo...”

Somente mais tarde eu soube que aquele judeu francês, além de sobrevivente do Holocausto,
é um Cohen, um sagrado Cohen.

Por Simon Jacobson

Rabino Simon Jacobson é autor do campeão de vendas Rumo a Uma Vida Significativa: A Sabedoria do Rebe
(William Morrow, 1995), e fundador e diretor do Meaningful Life Center.

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