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Afoxé Filhos de Gandhi/RJ: memórias, patrimônios e usos da África na cidade
2
afro-brasileira, também estava no centro de uma interessante rede de trocas sociais que
envolvia tanto variados níveis sociais do “mundo dos homens” quanto o “mundo dos
orixás”.
Pretendo assim neste texto refletir sobre a articulação discursiva de memória e
patrimônio dos integrantes desse grupo dentro do contexto de valorização fundiária na
Região Portuária carioca e sobre as formas de expressão de sua cultura afro-brasileira,
com ênfase na descrição etnográfica do “Presente de Iemanjá” organizado pelo bloco. E
também abordar as estratégias sociais que eles utilizam para alcançar um maior
reconhecimento identitário e como esse desejo de reconhecimento é projetado para o
conjunto da sociedade ao mesmo tempo em que transforma as próprias experiências do
grupo em seus aspectos religiosos, carnavalescos e políticos.
3
ainda é bastante atribulado e remonta aos projetos urbanísticos que foram sendo
sucessivamente idealizados e implantados na região a partir da década de 1980.
O primeiro projeto denominado de “revitalização urbana” voltado para os bairros
da Região Portuária foi idealizado pela Associação Comercial do Rio de Janeiro em 1983
e tinha como principal objetivo transformar o local, de características predominantemente
residenciais, em um pólo exportador. Para isso, propunha o aumento do uso do espaço
por atividades voltadas para o comércio e a indústria em apoio à movimentação portuária
(Compans, 1986).
Mas o movimento de bairros local e o poder público da época, liderado pelo
governador Leonel Brizola (1983-1987), apresentaram conjuntamente uma contramedida
que inviabilizou tais planos de transformação urbana: a preservação de cerca de dois mil
bens dos bairros Santo Cristo, Gamboa, Saúde e parte do Centro, em projeto que ficou
conhecido pela nomenclatura SAGAS1. Entre os bens preservados, estavam casas,
igrejas, cortiços e pinturas de botequim. O intuito era controlar a atuação do mercado
imobiliário e garantir o uso residencial do local através da fixação de normas de
intervenção nos imóveis preservados e de normas de construção de novas edificações.
Segundo narra a arquiteta Nina Rabha2, a iniciativa de preservação estava diretamente
relacionada com a proposta de transformação da região.
1
Decreto municipal nº 7.351/88.
2
Nina Rabha realizou na década de 1980 seu mestrado em geografia pesquisando a Região Portuária do
Rio de Janeiro e entre os anos de 1993 e 2001 foi diretora da I Administração Regional (Portuária), durante
as gestões dos prefeitos César Maia e Luiz Paulo Conde. Guimarães, 2008b.
3
Luis Eduardo Pinheiro foi diretor do Departamento de Inventário e Planejamento do Departamento Geral
de Patrimônio Cultural da Cidade do Rio de Janeiro entre os anos de 2001 e 2004. Guimarães, 2004.
4
preservação física dos logradouros e imóveis, mas, principalmente, como forma de evitar
que uma possível especulação imobiliária expulsasse do local seus antigos moradores.
Quando se criou esse projeto SAGAS, o vice-governador da época, o Darcy Ribeiro, fez uma
visita ao local e, deslumbrado com aquele espaço, disse: “vamos tombar tudo, imediatamente”.
E os moradores disseram assim: “nós não queremos ser tombados. Nós queremos permanecer
no lugar”. (Luis Eduardo Pinheiro, entrevista concedida a mim em setembro de 2003)
5
O imóvel, no entanto, encontrava-se ocupado irregularmente por 32 pessoas e não
havia qualquer ação de reintegração de posse sendo movida pelo poder público estadual.
Apesar da direção do grupo recorrer à Fundação Leão XIII, à Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Social e ao Serviço Social da União, nenhum dos órgãos se dispôs a
retirar os ocupantes.
Mas, na virada do ano, houve a mudança do governo estadual e o prédio foi
novamente cedido, só que desta vez para a prefeitura de César Maia (1993-1996). Uma
nova configuração política, econômica e urbanística também se formou neste momento.
Durante o mandato de Maia foi aprovada uma lei que reclassificava como Área de
Especial Interesse Urbanístico um amplo território dos bairros da Saúde e da Gamboa.
Essa lei possibilitava o desenvolvimento de projetos específicos de estruturação urbana
na região e se sobrepunha aos impedimentos legais e burocráticos do SAGAS, que
bloqueavam a realização de grandes operações imobiliárias4.
Logo em seguida à sua aprovação, em 1995, surgiu um novo e mais amplo
movimento de revitalização da Região Portuária, envolvendo conjuntamente a prefeitura,
a Associação Comercial do Rio de Janeiro, a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro
e a Companhia Docas do Rio de Janeiro, órgão gestor do porto vinculado ao Ministério
dos Transportes e proprietário de 500.000 m² de terras e imóveis no local. No entanto, as
medidas de cooperação foram interrompidas pelas divergências entre as concepções
urbanísticas da prefeitura e da Companhia Docas, fazendo com que cada uma elaborasse
seus próprios projetos para a transformação da região e a partir de então tentasse agregar
em torno deles a iniciativa privada (Barandier, 2006).
Nesta época, o imóvel da Rua Camerino cedido ao Gandhi e logo depois à
prefeitura foi desocupado através da retirada dos moradores informais pela Secretaria
Municipal de Desenvolvimento Social. Mas o espaço permaneceu lacrado e sem qualquer
uso. Findado o governo de César Maia, a direção do Gandhi procurou o secretário de
governo da nova prefeitura, gerida por Luis Paulo Conde (1997-2000). Como o novo
prefeito não quis dar continuidade ao projeto de intervenção urbanística na Região
Portuária e o custo de uma reforma do imóvel seria elevado, o secretário sugeriu aos
integrantes do bloco que eles invadissem o local antes que a prefeitura o devolvesse para
4
Lei Municipal 2.236 de 14.10.94.
6
o estado, já que depois seria mais difícil negociar o uso do local. Foi então em 1997 que
os integrantes do bloco se apossaram de fato da sede e reiniciaram uma negociação com
o estado para que fosse regularizada a cessão de uso que, na previsão inicial, estaria
vigente somente até 2002. O tempo passou, e o bloco continuou ocupando o espaço
mesmo sem o consentimento do novo governo estadual e sendo ameaçado de ser multado
pelo governo de Garotinho (1999-2003).
O retorno de César Maia (2001-2008) à gestão municipal, no entanto, provocou a
retomada de idealizações de grandes projetos de “revitalização urbana” para a Região
Portuária. O Plano Porto do Rio foi divulgado no primeiro ano de mandato e buscava
agregar a iniciativa privada e diversos órgãos federais para viabilizar a sua execução. A
proposta era abrangente, com medidas voltadas à criação de um novo sistema viário, à
alteração da legislação urbanística e à implantação de “projetos especiais”, com destaque
para as ações de valorização do patrimônio cultural e de reabilitação de imóveis
históricos para usos habitacionais5. Nos primeiros anos da sua gestão, alguns projetos de
grande impacto local foram realizados ou divulgados, como a polêmica em torno das
licitações da construção do Museu Guggenheim, no Píer Mauá, e as construções da Vila
Olímpica e da Cidade do Samba, na Gamboa. Tais ações, embora pontuais, conseguiram
promover o aumento do valor fundiário da região e também estimular a mobilização de
novos e antigos grupos sociais em torno de suas expressões identitárias6.
Logo em seguida, também houve no âmbito do governo estadual uma
modificação na política imobiliária traçada para a região. Com o início da gestão de
Rosinha (2004-2007), esposa do ex-governador Garotinho, todos os imóveis que eram da
Secretaria Estadual de Segurança Pública foram transferidos para a Secretaria Estadual
de Previdência Social, para que fossem gerados recursos para o pagamento da pensão de
aposentados e pensionistas. Como na Rua Camerino quase todos os imóveis eram do
estado e estavam alugados abaixo do preço de mercado, iniciou-se uma pressão para que
eles fossem reajustados e também para que o Afoxé Filhos de Gandhi fossem taxados,
incluindo a cobrança dos aluguéis dos anos anteriores.
5
Sobre a busca dos projetos turísticos em oferecer uma experiência diferente da que o turista vivencia em
seu cotidiano, experiência que pode estar ancorada nas noções de passado histórico, de culturas populares,
regionais ou primitivas, e mesmo de culturas empresariais, métodos produtivos e aventuras em paisagens
naturais, ver Gonçalves, 2007a; Kirshenblatt-Gimblett, 1998; MacCannel, 1976.
6
Sobre a tendência da prefeitura de César Maia em legitimar algumas identidades em detrimento de outras
nos planos urbanísticos para o Morro da Conceição, ver Guimarães, 2009a.
7
Além do bloco não possuir recursos para quitar a dívida, o estado também não
ofereceu nenhuma garantia de que seria renovada a cessão de uso. O motivo alegado pela
Secretaria de Previdência Social para não garantir a renovação era que outra instituição
estava pleiteando a utilização do imóvel. Machado então soube através de “um amigo” da
Secretaria que essa instituição era o Conselho Estadual dos Direitos dos Negros –
CEDINE. Começou assim uma nova etapa de pressões e negociações políticas até que
ambas as entidades chegaram a um acordo de fazerem uma reforma nos escombros do
imóvel e construírem três andares no terreno, cada entidade ocupando um andar inteiro e
o terceiro servindo para uso comum.
Mas, nos meses em que o projeto arquitetônico estava sendo elaborado, o governo
estadual mudou para a direção de Sérgio Cabral Filho (2008-2011) e a direção do
CEDINE também mudou. O Conselho então voltou atrás do acordo feito com o Gandhi
dizendo que havia chegado à conclusão de que o bloco não tinha mais nenhum direito de
ocupar o imóvel. Mas, depois de algumas reuniões tensas entre a direção do Gandhi e do
Conselho, entrou um novo personagem político que se solidarizou com as reivindicações
do grupo: a atriz Zezé Motta, antiga integrante do Movimento Negro Unificado – MNU
convidada pelo governador a dirigir a Secretária Estadual de Promoção da Igualdade
Racial – SEPIR. Repetindo a estratégia de apadrinhamento bem-sucedida com Albino
Pinheiro, a direção do Gandhi convidou a atriz para ser a nova “madrinha” do bloco. E,
desde então, ela vem apoiando a iniciativa do grupo de reformar o imóvel e transformá-lo
em um “Centro de Cidadania Afoxé Filhos de Gandhi”.
Descobri que havia um Afoxé Filhos de Gandhi no Rio de Janeiro com sede na
Região Portuária através da leitura de um documento público, o Relatório Histórico e
Antropológico sobre a Comunidade de Remanescente de Quilombo da Pedra do Sal,
produzido em 2007 pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA.
Nele, é narrado o conflito imobiliário envolvendo a entidade católica Venerável Ordem
Terceira de São Francisco da Penitência e inquilinos e ocupantes informais de imóveis
sob sua administração que, diante de uma série de ações de reintegração de posse e
8
despejo, se organizaram para pleitear o reconhecimento étnico como comunidade
quilombola, formando o Quilombo da Pedra do Sal, numa referência ao acidente
geográfico localizado próximo ao Largo de São Francisco da Prainha, sopé do Morro da
Conceição.
Entre a série de imóveis reivindicados pelos quilombolas estava a atual sede do
bloco na Rua Camerino. E algumas fotos e referências ao Gandhi eram feitas no corpo do
relatório para comprovar a continuidade histórica na região de tradições afro-
descendentes que se encontravam associadas à categoria “Pequena África”. Esta
categoria, embora receba diferentes conteúdos semânticos de acordo com cada contexto
político, possui como base histórica a utilização do porto da região e do Mercado do
Valongo para a comercialização de escravos, atividade que marcou as ocupações dos
bairros da Saúde e Gamboa por africanos a partir do século XVIII e depois por baianos, a
partir de meados do século XIX.7
Depois de ter encontrado essa referência da participação do grupo no pleito do
Quilombo da Pedra do Sal, presenciei sua apresentação em uma feijoada que os
quilombolas estavam oferecendo na Pedra do Sal em comemoração ao dia de São Jorge,
23 de abril de 2008. No evento, cerca de 30 pessoas almoçavam em cadeiras de alumínio
e, no centro do Largo João da Bahiana, em frente à pedra, se encontrava formada uma
animada roda de samba. Até que a entrada dos músicos do Afoxé Filhos de Gandhi
alterou o cenário. Alguns homens vestidos de calças brancas, camisetas brancas com uma
estampa do bloco e turbantes brancos na cabeça iniciaram o toque do ijexá, ritmo
caracterizado pelo som dos atabaques e a marcação do agogô. Parte das mulheres
presentes se posicionou em roda cantando e dançando e algumas, para marcar a transição
do samba de roda para o novo ritmo, envolveram o tronco por um tecido que meses
depois soube ser um “pano da costa”, peça de vestuário dos rituais de candomblé. O tom
da apresentação, embora mais solene que o anterior da roda de samba, continuava
festivo, com a diferença de ter atraído para a dança mulheres já idosas, as “tias”,
respeitadas por todos os presentes no evento.
7
Em leituras mais recentes e dentro do contexto de redemocratização do país na década de 1980, a
“Pequena África” ganhou novas delimitações espaciais e identitárias, referenciadas em linhas gerais nas
práticas culturais de baianos e africanos do início do século XX desenvolvidas em torno de músicos e
personalidades como Tia Ciata, João da Bahiana, Pixinguinha, Heitor dos Prazeres, Assumano Mina e João
Alabá, entre outros moradores do bairro da Saúde e da Praça Onze. Sobre a construção e apropriação
política da noção de “Pequena África” a partir da década de 1980, ver Guimarães, 2009b.
9
Na continuação de meu mapeamento sobre os grupos articuladores de discursos
pautados na cultura afro-brasileira, encontrei novamente com integrantes do Gandhi no
dia 13 de maio, em comemoração à assinatura da Lei Áurea e também ao dia do Preto
Velho, figura simbólica do negro escravizado e possuidor de grande sabedoria e
paciência, cuja comida característica é a feijoada numa referência à culinária das
senzalas. Só que, desta vez, o bloco estava aderindo ao evento de outro grupo da Região
Portuária: o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos - IPN.
O IPN foi fundado por Merced e seu marido Petruccio, residentes no bairro da
Gamboa, após eles descobrirem em 1996, durante uma reforma no piso de sua casa, um
antigo cemitério de africanos escravizados que haviam morrido durante a viagem de
navio ou logo após sua chegada no porto e que, por não terem sido batizados em ritual
católico, foram enterrados numa vala coletiva pelo governo colonial 8. Surpreendida com
a descoberta, desde então a família desocupou parte da residência para organizar um
centro de estudos arqueológicos e desenvolver ações de resgate da cultura negra.
Na feijoada do IPN, o Gandhi se apresentou de forma semelhante ao dia de São
Jorge: entre duas rodas de samba, alguns músicos tocaram o ijexá enquanto mulheres em
roda executavam danças inspiradas nos cultos aos orixás. Mas, apesar da semelhança
ritual, um fator externo à apresentação me chamou atenção: a ausência dos quilombolas
no evento, que mais tarde soube, através de conversa com sua liderança, Damião Braga,
serem contrários à comemoração do dia da Abolição, em consonância com as decisões do
MNU, que consideram que a data retira dos negros o protagonismo do fim da escravidão
no país. Em função dessa avaliação simbólica, integrantes do MNU criaram o Dia da
Consciência Negra como marco da resistência negra à escravidão, também conhecido
como Dia de Zumbi dos Palmares, em 21 de novembro.
O circuito dos principais reivindicadores da herança afro-descendente na região
se concluiria em junho, quando conheci o movimento Porto Cultural, que propunha a
união das organizações sociais da Região Portuária para a discussão de propostas a serem
apresentadas aos governos nacional, estadual e incluídas nos projetos de revitalização
urbana. O movimento agregou 23 instituições, alguns pesquisadores de universidades
8
Sobre a história deste cemitério de escravos, ver Pereira, 2007.
10
cariocas e moradores da região9. Entre as instituições participantes estavam o Gandhi e o
IPN, mas ausentava novamente o Quilombo da Pedra do Sal. E em texto circulado por
Damião Braga na “mídia alternativa”10 foram explicitados os posicionamentos contrários
dos quilombolas em relação à atuação do Instituto Bandeira Branca/Batucadas Brasileiras
- IBB e também do bloco de carnaval Escravos da Mauá, importantes articuladores do
movimento Porto Cultural. O texto, intitulado “Escravos, Batucadas e a Lei Áurea”,
acusa, através da utilização de uma analogia com o papel de Princesa Isabel, as duas
organizações de estarem explorando a “história quilombola” da região para conseguir
verbas para seus projetos sociais.
Assim, após o acompanhamento de eventos comemorativos e reuniões políticas,
da leitura de textos e da realização de conversas informais compreendi que havia na
região vários grupos sociais que se auto-intitulavam herdeiros da memória e patrimônio
da cultura afro-brasileira, só que com concepções, discursos e estratégias de formação de
alianças diferenciadas. No entanto, o Gandhi possuía, além da unânime aceitação,
algumas particularidades de organização social e espacial, já que operava as fronteiras de
pertencimento ao grupo e de ocupação territorial de forma intrinsecamente variável,
movimentando em torno do bloco um grande sistema de relações sociais e trocas.
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possuem como principal evento o Presente de Iemanjá. E, no recreativo, está um
conjunto ainda mais amplo, onde se incluem os simpatizantes e foliões do bloco que
ocupam as ruas da cidade durante os desfiles de Carnaval.
A diretoria do Gandhi é formada por um conjunto restrito de integrantes que se
responsabiliza pela organização dos eventos do grupo, pela sua articulação política e pela
manutenção de seus preceitos religiosos. É ela também que se apresenta em eventos de
caráter mais acentuadamente políticos, como os da Região Portuária descritos acima e em
outros de apoio a vereadores, deputados ou movimentos sociais reconhecidos como
incentivadores da cultura afro-brasileira. Para o entendimento do grupo, a definição das
funções político-administrativas do bloco é fundamental, já que, como apontam
diferentes narrativas sobre a história do Gandhi, desde sua fundação a personalidade de
seus dirigentes define consideravelmente suas propostas de atuação.
Atualmente, a diretoria é composta pelo presidente e ogã Carlos Machado, pelo
vice-presidente e ogã Carlinhos, pelo diretor de patrimônio e zelador de santo Ulisses,
pela produtora e iaô Regina Branca, pela diretora de departamento feminino Tia Creusa e
pelo diretor de charanga Nato. Igualmente importantes hierarquicamente dentro do grupo
são os músicos da “charanga”, cujos mais freqüentes são o Cabeça Branca, o Galeto, o
Roberto, o Alfredo e o cantor Cotoquinho. Além de fundamentais em todo tipo de
apresentação do bloco, eles possuem especial prestígio por serem em sua maioria ogãs de
barracões de candomblé, ritualmente incumbidos de tocarem para os orixás. Também
possuem participação constante nas apresentações, apesar de não comporem a diretoria
do bloco, a Mãe Marlene d'Oxum, a mãe pequena Nazaré, o iaô Gustavo e Dona Rosa.
Segundo Machado, o Gandhi foi um dos primeiros “blocos afro” do Rio de
Janeiro, fundado em 1951 por iniciativa de trabalhadores da zona do cais do porto e com
a participação de alguns integrantes do Ijexá Filhos de Gandhi de Salvador, fundado dois
anos antes. Embora não tenha conseguido precisar a informação, Machado acredita que o
primeiro presidente do Gandhi foi Alberto Pontes, já que foi dele a iniciativa de organizar
o bloco juridicamente em 1961. Na década de 1970, Aureliano Gervásio da Encarnação
assumiu a gestão do Gandhi e depois assumiram, consecutivamente, o Guerra, o Bento
Benício - conhecido como Índio -, o Guerra novamente e, por fim, o Machado.
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Wilson, ex-integrante do bloco que participou ativamente na época das gestões do
Guerra e do Índio, me narrou que, desde a gestão do Encarnação, os presidentes do
Gandhi eram filhos-de-santo e ogãs da casa de Pai Ninô d'Ogum, sendo assim a cadeia
sucessória do bloco fortemente marcada pelas práticas religiosas de seus integrantes e
uma extensão das relações sociais desenvolvidas neste barracão específico. Segundo
Wilson, a posse do Machado como presidente do Gandhi foi o resultado das mudanças
implantadas desde a gestão de Guerra, um italiano, “primeiro branco a dirigir o Gandhi”,
que começou a investir no desenvolvimento das práticas políticas e recreativas do bloco
com o intuito de aumentar sua “comercialização”.11
Embora Machado não narre a história do Gandhi a partir de sua vinculação à casa
de Pai Ninô d'Ogum, as informações que fornece sobre as gestões anteriores são
complementares à história narrada por Wilson. Segundo Machado, na época da gestão do
Encarnação o bloco viveu sua fase áurea, conseguindo “colocar na rua” até quatro mil
desfilantes. Para ele, tamanha popularidade do bloco era devida principalmente ao seu
prestígio no meio religioso, pois além de ser ogã da casa de Pai Ninô d'Ogum,
Encarnação era baiano e havia sido “feito no santo” em Salvador.
Encontrei apenas dois relatos escritos sobre o Gandhi carioca, ambos publicados
pelo antropólogo Raul Lody (1976, 1993), participante do bloco durante a década de
1970. Apesar dos textos de Lody serem fortemente marcados pela busca de pontos de
comparação dos afoxés encontrados no país em diferentes épocas e se basearem numa
noção valorativa de “autenticidade” das manifestações de “africanidade”, eles fornecem
várias informações etnográficas sobre o Gandhi da época de Encarnação. Além dessa
contribuição, Lody também foi reconhecidamente o responsável pela consolidação do
termo “candomblé de rua” para definir as práticas dos afoxés, termo que posteriormente
foi incorporado às letras musicais do bloco.
Sua descrição do bloco enfatiza as referências das práticas dos rituais gexá: o
padê para Exu no início e os cantos para Oxalá no fim das apresentações, as coreografias
inspiradas nas danças para os orixás, a música marcada pelo toque de atabaques, agogôs
e cabaças e os cânticos em dialeto africano para cada orixá. Lody divide a organização do
afoxé em dois planos: o sócio-religioso e as formações de cortejo. De acordo com sua
11
Sobre a introdução de uma lógica de comercialização e profissionalização nas práticas carnavalescas, e
as polêmicas geradas dentro dos blocos e escolas de samba, ver Cavalcanti, 1994.
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narrativa, a presidência do bloco ficava ao encargo de um homem com grande prestígio
religioso entre os barracões de candomblé, normalmente um ogã ou um pai de santo. E as
mulheres, embora não ocupassem o cargo principal de direção do bloco, possuíam cargos
destacados, principalmente as que tinham também um grande reconhecimento religioso,
como as equedis, ebambis e mães de santo.
De acordo com a narrativa de Machado, foi o reconhecimento das origens e
práticas religiosas de Encarnação, juntamente com sua opção de tocar
predominantemente músicas do candomblé nas apresentações do bloco, que fizeram com
que várias casas de santo convocassem seus filhos para desfilar durante os dias de
carnaval e o Presente de Iemanjá. É tendo como referência a recuperação do tempo áureo
de Encarnação que Machado dirige atualmente o bloco, embora sua trajetória dentro do
Gandhi seja bastante diferente e sua concepção de bloco também.
Machado foi convidado para ser vice-presidente do bloco em 1992, durante a
gestão do Guerra e o processo de aquisição da atual sede do bloco na Rua Camerino.
Reconhecido politicamente e respeitado pessoalmente entre os moradores da Região
Portuária, Machado também possuía uma trajetória marcada pela presidência de um
bloco carnavalesco, a Vizinha Faladeira, do bairro do Santo Cristo, o que fortalecia as
propostas de atuação política e recreativa do Gandhi. Foi somente em 1998 que Guerra
propôs a ele que assumisse as atividades do bloco, que passava por um período de grande
desarticulação: no carnaval desse ano, o Gandhi havia desfilado com apenas seis
integrantes de “velha guarda” na Avenida Rio Branco. No entanto, Machado recebeu o
convite com preocupação, já que não era iniciado no candomblé, e a conversa que teve
com Guerra sobre isso me foi narrada por ele da seguinte forma:
Eu falei: “Você vai me criar um problema sério. Eu não sou da religião, eu não tenho nenhum
tipo de experiência”. Ele disse: “Mas você administra como se fosse um bloco”. “Mas o Gandhi
não é um bloco, você sabe que não é um bloco, e você sabe que eu vou levar bordoada a torto e
a direito”. Ele parou, pensou. “Se eu não assumir você não vai entregar pra ninguém?”. “Não,
não vou entregar pra ninguém”. “Então me dá um tempo, que eu vou tomar as minhas
providências”. Foi aonde eu procurei um zelador de santo pra poder me confirmar, pra poder
aprender as defesas mínimas pra me proteger. (Carlos Machado, presidente do Afoxé Filhos de
Gandhi/RJ, novembro de 2008)
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como é o presidente quem deve proteger o conjunto dos integrantes do bloco e também o
que sofre mais com as críticas e inimizades políticas, ele deve fortalecer seu “ori”, termo
iorubano que significa “cabeça”, local onde se crê residir o orixá. Machado explica a
ocorrência do “mal” nas práticas do candomblé como uma ação, que pode ser o próprio
pensamento, de prejudicar outra pessoa, mesmo que o agente não recorra a um
“trabalho”, ou seja, que peça a um orixá a realização de determinado acontecimento
através da oferta de comidas, bebidas, objetos e palavras rituais.
Quando fui me iniciar no candomblé já tava com 49 anos. Fiz agora nove anos de santo, pra
poder assumir o Gandhi. E foi a coisa mais certa que eu fiz, se eu não faço isso, se não aprendo a
me defender, a essa altura provavelmente eu já estava morto. Não que tivesse feito nada, alguma
coisa pra me matar, mas é que a forma como as pessoas do santo tratam a religião é uma forma
muito absurda. Eu como um religioso, se eu desejar o mal de alguém, desejar, dentro do meu
coração, quero fazer mal a fulano, só essa vontade, dependendo do tipo de pessoa, eu já estou
praticando um mal pra ela e ela vai sofrer alguma coisa. E na frente do Gandhi você adquire
muitas inimizades desse tipo. De pessoas que não vão fazer nenhum trabalho pra te derrubar,
porque quando você faz um mal você recebe uma reação no sentido contrário na mesma
intensidade, o que bater lá vai bater em você também. É dividido. Então muitas vezes as pessoas
não fazem, mas pensam. Pecam pelo pensamento. Quando você faz uma oferenda, “bota o nome
de fulano aqui, acende uma vela”, a vela é um pagamento pra fazer um mal àquele que você
botou o nome dele ali. Aquilo que você pediu para aquele fulano, pode estar certo que uma parte
daquilo ali vai voltar pra você. Então, como as pessoas sabem disso, elas preferem não fazer.
Mas pensam. E no que pensam, a força da cabeça dele, a força do ori, que é a cabeça, a força dos
orixás, pode provocar também um estrago. (Id.)
Eu não sei não, eu não tenho sangue negro nas veias. Eu tenho sangue português, europeu, e
indígena. (...) Mas em algum tempo no meu passado eu devo ter sido negro, devo ter sido
escravo, nada justifica a minha aptidão a fazer esse trabalho. E eu faço de coração, não faço
por interesse. Faço de coração mesmo. Desde que... 1968 eu entrei pra Marinha, ali eu
comecei a fazer um trabalho coletivo. De lá pra cá, sempre trabalhei no trabalho coletivo. E
quando comecei a trabalhar pela causa negra, já vai quase 30 anos isso. Apesar de não
compartilhar com 40, 50% das reivindicações da forma como eles colocam, não concordo.
Mas como aí existe outra parcela de coisas que concordo plenamente, aí a gente vai tocando,
encontra um e outro: “branquelo”. E digo “sou branquelo sim, mas sou mais negro que
você”. (Ibid.)
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E com a continuidade parcial e a renovação do “quadro social” do bloco durante
os anos de gestão do Machado, a ruptura em relação ao barracão de Pai Ninô d'Ogum
trouxe ao grupo uma nova e extensa categoria de desfilantes, os “ex-integrantes”,
indivíduos que no passado tiveram um papel destacado política ou religiosamente no
desenvolvimento das atividades do Gandhi e que continuam participando dos seus
principais eventos, mas que atualmente encontrarem-se afastados da diretoria do bloco
por não concordaram com suas propostas de atuação.
Os que não têm luz são aqueles que ficam na encruzilhada, que estão ali em busca de luz.
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Quem faz o mal? São eles. Mas eles fazem o mal não porque eles querem fazer o mal, eles
não fazem o mal pelo mal. Eles fazem o mal porque nós, seres humanos, pagamos a eles para
que eles façam o mal. E como o objetivo deles não é fazer o mal e sim fazer o bem, porque
eles estão buscando luz, quando você paga para ele fazer o mal ele se revolta contra você.
Porque, se você pagou, ele tem que fazer. Então ele vai fazer, vai prejudicar uma pessoa, mas
ele manda de volta pra você também porque você ta prejudicando ele. Então quando você
paga a um Exu pra ele fazer o mal ele vai fazer porque ele tá recebendo. Não é o que ele
quer, mas ele tem que fazer. E, na hora que ele faz ,ele perde um pouquinho de luz que ele
ganhou lá trás. Vai atrasar um pouco o desenvolvimento dele. E aí, com raiva, tô colocando
isso de uma forma bem grosseira, com raiva de você ter atrasado a trajetória dele, ele faz o
mal a pessoa, mas faz o mal também pra você, pra ver se você aprende a não desejar o mal
dos outros. (Ibid.)
Antes de fazer Iemanjá, nós temos que dar comida a Exu. Antes de qualquer comida pra
orixá, Exu tem que comer. Antes de qualquer evento de rua, tem que fazer um agrado a Exu.
Então uma vez por ano nós temos que fazer um grande agrado a Exu por causa do Carnaval.
Então no início de janeiro a gente faz o agrado pra Exu para o Presente de Iemanjá, e já faz
também para o Carnaval e para o ano inteiro. Esse é o grande agrado. Depois você só vai
fazendo pequenas manutenções. O que é esse pequeno agrado? É uma troca de energia.
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Aquilo que as pessoas chamam de sacrifício, de matança, é uma troca de energia. O sangue
do animal ele tem uma energia, a energia da vida. Então, quando você oferece esse sangue
para Exu, para o orixá que for, você tá dando vida, oferecendo uma energia de vida pra eles.
Essa energia pode ser dada de várias formas, de várias maneiras, aí você tem que abrir o jogo
pra saber de que forma isso vai ser feito. (Ibid.)
Nas oferendas aos orixás, uma categoria recorrente é “axé”, que é o sangue e
alguns órgãos vitais dos animais, partes consideradas “energia viva”. Em troca dessa
energia, os ofertantes recebem proteção e outros benefícios. Somente no caso da oferenda
a Exu todo o corpo do animal é ofertado. No caso dos demais orixás, apenas o axé é
oferecido e a carne do animal é comida pelos participantes do ritual e demais convidados.
Assim, é comum serem servidos nos barracões de candomblé frangos, cabritos, patos,
pombos e outros animais rituais. Os animais que serão ofertados a Exu no Presente a
Iemanjá, no entanto, não estão predeterminados, por isso a necessidade de serem abertos
“jogos” feitos por três integrantes da diretoria do bloco. Em 2009, estes jogos foram
feitos separadamente por Machado, Carlinhos e Ulisses, e do conjunto de resultados é
que foi definido o que seria ofertado.
Após esses jogos é decidido se Exu quer um “bicho de quatro pernas”, ou apenas
um “bicho de duas pernas e pena”, ou “comida seca”, que são as que não têm sangue, que
podem ser compradas, cozidas e oferecidas. Então é ofertada uma “mesa” ao Exu, só que
não àquele que é ligado ao orixá, mas ao que fica nas encruzilhadas das ruas, também
chamado de Tranca Rua ou Zé Pilintra. Nestas mesas, além das comidas, geralmente é
oferecida cachaça. Só após os jogos de búzios é que os integrantes do bloco começam a
fazer os preparativos do Presente que, além da oferenda a Exu, incluem as comidas
específicas para cada uma das iabás e diversas articulações com o poder público para que
o cortejo e a oferenda dos “balaios” das iabás sejam realizados. Os balaios são grandes
cestos preenchidos de canjicas e acaçás e enfeitados por pequenos ramalhetes de flores
brancas, folhas de bananeira, papel crepon de acordo com a predominância de cor de
cada iabá e envoltos em filó. No centro dos balaios, os participantes do cortejo podem
ofertar moedas, perfumes, espelhos e enfeites para que seus desejos sejam atendidos.
Para a produção do Presente de 2009, foram desenvolvidas várias ações pela
diretoria do bloco, como receber a permissão do governo do estado para a liberação de
uso de uma barca do trecho Rio-Niterói para levar para a Baía de Guanabara as cerca de
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mil pessoas que acompanharam o cortejo dos balaios, de duas traineiras para levar as
pessoas que carregaram os balaios, para a aquisição de fogos de artifícios para serem
queimados no momento de oferta os balaios, de equipamento de som e palanque para a
apresentação da charanga e do cantor do bloco e também para discursos dos
organizadores e apoiadores do evento, e diversas autorizações, como da Polícia Militar,
da Delegacia de Polícia, do Corpo de Bombeiro, da Região Administrativa, da sub-
prefeitura e da Companhia Estadual de Transporte para que o trânsito fosse interrompido
no momento de passagem do cortejo.
Após encaminhada a estrutura necessária para a realização do Presente, na véspera
do dia do cortejo os integrantes da diretoria do bloco fizeram várias oferendas a Exu,
também denominados de “despachos” ou “padês”, por todas as esquinas da Região
Portuária e do Centro da cidade por onde passarão os balaios até que sejam colocados na
Baía de Guanabara. E, no dia do Presente, foi feita na alvorada uma nova oferenda para
Exu na sede do bloco e foram confeccionados os balaios por Tia Creusa e Regina,
integrantes femininas da diretoria do bloco. Após os balaios ficarem prontos, eles foram
carregados em cima da cabeça por mulheres até o carro que os levou à concentração dos
participantes do cortejo.
O percurso do carro incluiu a sede do Gandhi na Rua Camerino, as avenidas
Marechal Floriano, Presidente Vargas e Passos e os Arcos da Lapa, até que os balaios
foram finalmente colocados embaixo de tendas de plástico no centro da Cinelândia, onde
se localiza a Câmera dos Vereadores. Lá ficaram concentrados os participantes do cortejo
e o carro de som com a charanga. Nas tendas dos balaios, mães de santo jogaram perfume
e benzeram os participantes que aguardavam em pequenas filas. Nessa concentração, que
durou cerca de duas horas, entre 11 e 13 da tarde, outros balaios de casas de candomblé
também foram agregados ao evento e uma grande roda de dança foi feita no meio da
praça. Os participantes do evento compareceram vestidos predominantemente de roupas
brancas, como nas festas nos barracões de candomblé.
O evento foi extremamente festivo e o único momento em que imperou um tom
um pouco mais solene foi a saída do cortejo da Cinelândia, quando mulheres carregando
os balaios nas cabeças fazem uma fileira horizontal e começaram a caminhar em direção
à Praça XV, até a entrada na barca da Baía de Guanabara. Nem todas as pessoas que
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acompanham o cortejo entraram na barca, já que muitos dos que compareceram à
concentração na Cinelândia aproveitaram o horário livre do almoço e depois tiveram de
retornar aos seus trabalhos. Os que entraram, no entanto, intensificaram o toque dos
atabaques e dançaram e cantaram, sendo que algumas poucas pessoas “caíram no santo”
durante a travessia. Muitos jogaram flores e bebidas espumantes nas águas. E, no
momento em que foram ofertados os balaios nas águas, a barca parou no meio da Baía, os
participantes se aglomeram nas janelas e fotógrafos e cinegrafistas se acotovelaram para
conseguir uma boa imagem. Encerrando o evento, a barca retornou à Praça XV, onde os
participantes do cortejo ficaram em torno de barraquinhas de bebida e comida enquanto o
carro de som tocava música brasileira.
Isso foi uma forma que o colunista encontrou de chamar atenção. “Procura-se vivo ou morto o
Afoxé Filhos de Gandhi”, aí usou lá os termos, “similar aos Filhos de Gandhi de Salvador”. Aí
vinha a reportagem. Aí me falaram que ele tava procurando, entrei em contato com a coluna, a
coluna me colocou em contato com ele, aí começou uma relação. Parecia que ia dar enredo, mas
acabou que quase não consegui colocar o carnaval dos 50 anos do Gandhi na rua. (Ibid.)
Essa relação a que Machado se refere, mas que acabou sendo frustrante, foi a
forma do financiamento do governo em apoio à comemoração dos 50 anos do Gandhi
carioca. Ele conta que, após o contato de Gil, articulou o uso gratuito de um local para os
ensaios do carnaval de 2001, o Clube dos Portuários. Gil então montou uma grande
estrutura no clube para os ensaios, com camarotes, aparelhagem de som e iluminação, um
equipamento que Machado calcula que custava por semana cerca de cinco mil reais.
Segundo Machado, a combinação era que o próprio Gil iria frequentar os ensaios e
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chamar convidados para atrair público para o bloco, mas isso não ocorreu. E como o
bloco tinha se desarticulado no final da gestão de Guerra, essa grande estrutura acabou
ficando subutilizada durante os ensaios, que só chegavam a reunir de 20 a 30 pessoas por
semana.
Apesar desse acontecimento desgastante com Gil, a influência de Salvador nas
práticas do bloco carioca aumentou com a visita de Machado em 2000 ao presidente do
Gandhi baiano. O bloco já possuía uma forte relação com a Bahia, por causa do histórico
de seus fundadores e das freqüentes trocas entre os barracões de candomblé. Mas foi a
percepção de Machado do sucesso popular conseguido pelo Gandhi soteropolitano, que
“coloca na rua” cerca de dezesseis mil desfilantes trajados no carnaval, que fez ele propor
inovações em uma característica marcante do bloco carioca: a mudança dos cânticos em
ioruba para músicas de sucesso em português.
O grande mote do sucesso de Salvador foi justamente eles começarem a cantar em português.
Mais do que cantar em português, o Gandhi Salvador pega músicas que foram sucesso de meio
de ano, convida o cara, veste o cara de Filhos de Gandhi, bota no ritmo ijexá e bota o cara em
cima do trio elétrico e manda ele cantar a música dele. Todo mundo canta e dança. Gilberto Gil
canta. Os homens que tem música de sucesso. Carlinhos Brown todo ano emplaca uma música
do meio de ano, todo ano ele se veste de Filhos de Gandhi, ele já faz mais ou menos no ritmo
ijexá. Veste a roupa dos Filhos de Gandhi, vai pra cima do trio elétrico cantar a música dele. É
um sucesso. (...) Aí aqui no Rio você vai fazer isso, as pessoas não querem. Porque não é assim,
assado, que nem em Salvador. Até o dia que eu fui a Salvador e descobri que eles falavam aquilo
e não tinha nada a ver com a verdade de Salvador. (Ibid.)
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Quando você tem um afoxé desfilando, ou indo pra rua, se ele realmente é um afoxé ele é um
candomblé de rua. Ainda que ele não cante as cantigas de candomblé na rua, como os Filhos de
Gandhi eu faço questão hoje de não cantar, só levar a parte cultural, mas para colocar o Gandhi
na rua eu tenho um preceito religioso que tem que ser cumprido antes de colocar o Gandhi na
rua. Então na realidade ele não deixa de ser um candomblé de rua, mesmo ele sendo um afoxé
cultural. (Ibid.)
Na realidade, o Gandhi é uma entidade que é respeitada pelo seu tempo de existência. A questão
religiosa está sempre em pauta, e quando você quer pegar uma questão religiosa de uma forma
mais amena, mais profana, Filhos de Gandhi é realmente a entidade. Os vereadores que tem
ligação com a religião afro, na hora que precisa ter um evento assim, precisa mais de um clamor
religioso, de uma credibilidade, de uma entidade que fale de paz... Porque, apesar de todas as
dificuldades que nós temos, a nossa credibilidade hoje está em alta. Então nada melhor do que
chamar os Filhos de Gandhi, porque você associa o seu nome a uma entidade de 58 anos, uma
entidade que tá começando a ter uma credibilidade maior. (Ibid.)
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adequado para shows, caso do Gandhi, outros tiveram no mesmo espaço um palco de
dimensões maiores e aparelhagem potente e ainda houve outros que se apresentaram em
um grande palco montado na Praça XV. Como todos os palcos foram patrocinados pelo
governo do estado, essas variações foram questionadas por Machado, que considerou que
não houve a valorização de grupos “tradicionais” dentro da cultura afro-brasileira.
O que é 1.500 reais para uma apresentação num evento daquele? Teve gente na Praça XV
que levou cachê de 16 mil. O Neguinho [da Beija Flor] parece que foi 16 mil, o outro
também, o Martinho da Vila. Uma pessoa! Tá legal, eles são famosos, mas pela primeira vez
eles participaram de um evento pela consciência negra. Os Filhos de Gandhi não têm nome
hoje, mas é uma entidade que tem 58 anos, tem uma história. Desde a inauguração até hoje
foi a única instituição que esteve em todas as festividades, inclusive debaixo de chuva,
sozinho. Não tinha mais ninguém e os Filhos de Gandhi estavam lá fazendo a alvorada. (...)
Então o nosso próprio povo, o povo da cultura afro não se valoriza. Quando eles deveriam
estar valorizando a entidade que tem maior representatividade dentro da cultura afro-
brasileira, eles não dão essa representatividade, esse merecimento, o fortalecimento
necessário. (Ibid.)
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em frente à sede do Gandhi, também na Rua Camerino, depois de procurar alguns
imóveis na região.
Aquela casa, quando ele conseguiu fechar o patrocínio da Petrobras, ele me procurou, ele já
tinha me pedido isso, “me indica um imóvel”. Aí eu falei: “aquele imóvel tal tá desocupado”.
Antes tinha mostrado uns três ou quatro pra ele. Passou um tempo, quando ele conseguiu
fechar com a Petrobras, ele voltou a me procurar, eu falei “continua desocupado”. Procurou o
proprietário, achou que tava muito caro, aí descobriu a Bering, aí quase fechou com a Bering,
olhou uma série de outros imóveis... No final das contas acabou fechando ali, em frente ao
Afoxé Filhos de Gandhi. Aí ele falou assim “pô, Machado, estamos fadados a ficar juntos”,
eu falei “é, estamos fadados a ficar juntos”. Essa é a história. Tinha que ser, tínhamos que ser
vizinhos, tínhamos que fazer essa parceria, não é a toa. Eu acho que a história religiosa ela
não acontece por acaso, tem uma motivação. Acredito que nós estamos hoje com todos os
ingredientes para realmente fazermos essa parceria, e fazermos com que a coisa aconteça.
(Ibid)
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Uma interessante discussão sobre a prática de construir monumentos de “redenção” ou “reparação” a
eventos históricos traumáticos de determinada sociedade é feita por Huyssen, 2000.
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Como sintetiza Machado na citação que introduz este texto, o sistema de
pensamento do Afoxé Filhos de Gandhi é altamente pautado pela reciprocidade. As
trocas movimentadas por seus integrantes se baseiam primeiramente nas práticas dos
barracões de candomblé e envolvem o mundo dos homens e dos orixás, através de rituais
que visam trazer proteção e benefícios. Estas trocas iniciais são então expandidas para as
relações entre os barracões de candomblé, já que a maioria dos integrantes do Gandhi
estabelece rede de amizades para além dos eventos do bloco, rede que gira
principalmente em torno das festas de culto aos orixás. A circulação de pais e mães de
santo, ogãs, iaôs e equedis nos diferentes barracões oferecem a densidade social vista no
Presente de Iemanjá e nos desfiles do Carnaval. Durante todo o ano, são essas redes de
amizade que unificam os integrantes do bloco e mantêm a sua freqüência em eventos
como as apresentações em apoio político a outras instituições vinculadas à cultura afro-
brasileira. Esse circuito de trocas do Gandhi ainda se prolonga localmente, com as
alianças que ele estabelece na Região Portuária e que também possuem a intermediação
dos barracões de candomblé. E, mais amplamente, é o Presente de Iemanjá que estende a
atuação dos barracões para o conjunto da cidade, já que apresenta nas ruas centrais suas
práticas ao culto dos orixás e necessita de uma série de autorizações públicas que, ao
serem concedidas, lhes conferem legitimidade social.
Por fim, o circuito do Gandhi se completa com o Carnaval e a participação em seu
quadro social de indivíduos considerados possuidores de especial prestígio por estarem
envolvidos em atividades da política oficial, da indústria da diversão e do entretenimento
ou da academia. Estes indivíduos são incluídos no sistema de trocas por serem
mediadores dos projetos do bloco e são classificados em categorias como “presidentes de
honra”, “madrinhas” ou simplesmente “amigos”. Em contrapartida a mediação que
oferecem, eles recebem a participação do bloco em seus eventos políticos e culturais,
numa troca de legitimações. Sendo que os desfiles do Carnaval são o ápice das trocas do
grupo, já que neles o bloco se integra a um movimento popular de contornos mais
amplos, recebe a participação de desfilantes que não pertencem ao candomblé e executa
um repertório musical diferente dos barracões e considerado de maior apelo participativo.
Esse amplo sistema de trocas movimentado pelo grupo, além de ser estruturante
de sua forma de pensamento e no estabelecimento de suas relações sociais, também
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contribui no alcance de objetivos gerais de ordem política, religiosa e recreativa, como o
maior reconhecimento público da tradicionalidade do bloco na representação da cultura
afro-brasileira, o aumento de participação de filhos de santo em suas apresentações e seus
desfiles e a possibilidade de profissionalização de sua diretoria e de seus músicos. Esses
objetivos gerais são muitas vezes traduzidos em específicos, como a legalização e
restauração da sede do bloco e os projetos do Centro de Memória do Afoxé Filhos de
Gandhi, do Memorial da Abolição e do Monumento aos Estivadores.
Acompanhando as atividades e projetos do Gandhi, concluí que o “patrimônio
imaterial” que ele articula em seu discurso e prática está em constante negociação social.
Pensando na oposição analítica entre bens alienáveis e bens inalienáveis (Weiner, 1992),
é possível compreender que as recentes transformações das práticas do grupo foram
realizadas para que o bloco permanecesse com o reconhecimento social para fora dos
limites dos barracões de candomblé. Um bem inalienável é um bem entendido como
patrimônio de determinado grupo ou indivíduo, que não deve ser trocado, vendido ou
extinto, já que sua perda desencadearia numa mudança de status e posição social de seu
proprietário frente à sua rede de relações. No caso do Gandhi, foram alienados de suas
práticas carnavalescas e apresentações públicas os cânticos iorubanos, para conseguir em
troca um maior apelo na participação de camadas sociais externas ao mundo dos
barracões. Mas esta flexibilização não retirou de suas práticas os fundamentos dos rituais
do candomblé, o bem inalienável do grupo e de onde ele retira todo seu prestígio social.
A trajetória do bloco ligada à participação dos barracões do candomblé possui
uma base histórica, como visto nos relatos sobre a criação e transformação de suas
práticas ao longo de seus 59 anos de existência, e não pode, portanto, ser explicada
etnograficamente. Mas a etnografia é capaz de identificar quais são as relações sociais
que sustentam a posição e o status sociais do bloco tanto localmente quanto em contextos
mais amplos da cidade e do país, como visto no sistema de trocas de legitimidades
movimentado por seus integrantes. O sucesso no reconhecimento social do Gandhi, no
entanto, extrapola essas redes de relações. Pois sua eficácia simbólica reside na
ressonância de seu patrimônio (Gonçalves, 2007b), ou seja, na capacidade que o bloco
tem de evocar no expectador comum a apreciação de uma experiência cultural autêntica
referenciada no “mundo dos orixás”.
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
______. 2007a. “Os limites do patrimônio”. In: FILHO, Manuel Ferreira Lima; Eckert,
Cornélia; Beltrão , Jane (orgs.). Antropologia e patrimônio cultural: diálogos e desafios
contemporâneos. Blumenau: ABA/ Nova Letra.
27
______. 2008b. “Entre a preservação e a revitalização da Região Portuária: uma conversa
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______. 1976. Afoxé. Caderno de Folclore 7. Rio de Janeiro: MEC/ Campanha de Defesa
do Folclore Brasileiro.
MACCANNEL, Dean. 1976. “Staged Authenticity”. In: The tourist: a new theory of the
leisure class. Nova Iorque: Scocken Paperbacks.
PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. 2007. À flor da terra: o cemitério dos pretos
novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond/ IPHAN.
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PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. 2001. Porto do Rio: Plano de
Recuperação e Revitalização da Região Portuária do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
SMU/IPP.
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