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“TUA” HISTÓRIA VIVIDA
(Histórias de Vida)
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Maria Otilia Pereira Lage
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA
PROJETO FOZTUA
coordenadores
ANNE MCCANTS (MIT, EUA)
EDUARDO BEIRA (IN+, Portugal)
JOSÉ M. CORDEIRO (U. Minho, Portugal)
PAULO B. LOURENÇO (U. Minho, Portugal)
www.foztua.com
ISBN: 978-153-01702-8-9
Fevereiro 2016
Design gráfico, paginação e capa por Ana Prudente
Editado e impresso por Inovatec (Portugal) Lda. (V. N. Gaia, Portugal)
Impressão da capa e encadernação por Minerva – Artes Gráficas, Lda. (Vila do Conde, Portugal)
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Maria Otilia Pereira Lage
EVOCAÇÃO DE MEMÓRIAS
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AGRADECIMENTOS
Às populações locais do Vale do Tua, a quem se dedica este livro, à estimulante in-
teração dos entrevistados e à equipa do trabalho de campo realizado, todos no seu
conjunto, fundamentais aliados para a realização do estudo subjacente à presente obra.
ÍNDICE
009 INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO
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001 Ou seja, a história–objeto na definição do historiador francês Pierre Vilar, o que nos remete para o estatuto
ontológico da história.
002 Esclarecendo o conceito de «historia de vida» como técnica etnográfica comum à sociologia, história e
psicologia, pode entender-se por «história» uma história em minúsculas, de «personagens comuns » que se
não refere a façanhas de heróis ou homens famosos, mas é pelo contrário reflexo de uma vida simples, sem
fama nem glória; e por «vida», os relatos contados na primeira pessoa por qualquer protagonista vulgar capaz
de expressar-se com fluidez e uma boa dose de memória firme, relatos estes que também se diferenciam das
biografías narradas pelos escritores ou das memórias de pessoas públicas.
003 Tal finalidade teve desde logo tradução parcial na continuição deste projeto, numa 2ª fase, alargada em 2014
/ 2015, às comunidades escolares dos 5 municípios do vale do Tua cujos resultados se divulgam na edição de
novas publicações como por ex: LAGE, Maria Otilia Pereira - Vidas e Viagens à volta do vale do Tua. Projeto
Foz Tua MemTua 2 escolas, 2016. LAGE, Maria Otilia Pereira, Org. - Vale do Tua: Trabalho de campo e história
local (Antologia). Projeto Foz Tua MemTua 2 escolas, 2016.
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Tua feita de gentes, pedra e água ao longo de uma história densa mais que cente-
nária que singulares narrativas orais decompõem, reconstituem e nos devolvem.
Assume-se como meio de divulgação de uma herança cultural viva, lega-
da pela ação de populações anónimas, cuja presença na região se assinala ao
longo de sucessivas gerações. É nessa medida que se começa por refletir aqui
sobre a função do historiador, através do poema “O Profissional de Memória”
do grande poeta brasileiro, que por isso se escolheu para epígrafe de abertura,
qual fotografia antiga em tom de sépia, evocadora de lembranças que embora
por vezes diluídas se conservam, ainda hoje, na sabedoria de factos que comu-
nicam e na atmosfera sugestiva que transmitem.
O processo de investigação que lhe subjaz monumentalizando a memória
reconstituída com as populações devolve-a a estas, como pertença coletiva e
identidade cultural própria, tentando integrá-la no desenvolvimento de uma
memória com futuro que se reclama para este património histórico.
004 Trabalhadores e operários ferroviários da via e do movimento, maquinistas e chefes de estação, revisores,
inspetores, chefes de lanço, guardas de linha, pequenos, médios e grandes agricultores e comerciantes,
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emigrantes e combatentes da guerra colonial portuguesa, utentes e viajantes do Comboio do Tua, familiares
de figuras emblemáticas da história da construção da linha férrea do Tua (engenheiros, empreiteiros,
políticos, pessoas públicas e notáveis locais), jornalistas regionais, administradores, operários e técnicos de
empreendimentos agro-industriais e fabris que foram fator de desenvolvimento interativo com o comboio e a
linha férrea.
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perfeitamente enquadrado na paisagem, pois todo ele acaba por revelar uma
singular delicadeza face à grandiosidade do vale. No local avançam agora as
obras de construção da barragem de Foz-Tua.» [Duarte Belo, Portugal – Luz
e Sombra, pp 102-103]
Assim, pela linha do Tua “coluna dorsal de Trás-os-Montes” na opinião de
muitos dos seus ex-ferroviários, entramos no coração do Nordeste Transmon-
tano e na história natural do seu notável vale do Tua, atravessado ininterrupta
e diariamente durante mais de 120 anos por esta linha férrea de bitola estreita
que, ao longo de 133 km, serviu com as suas 17 estações e mais de 21 apea-
deiros, um grande número de povoações. Por isso, é suposto ter sido a campeã
das linhas férreas nacionais deste tipo.
Na segunda metade do séc XIX, antes da construção da linha do Tua, era
assim traçado o «Rápido esboço do estado económico e cultural d’este distric-
to de Bragança”:
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005 D. Antonio Xavier Pereira Coutinho - «Rápido esboço do estado económico e cultural d’este districto de
Bragança”. Cap.I.“A Quinta Districtal de Bragança no anno agricola de 1875 a 1876 –Relatório. Apresentado
ao Ill.mº e Exc.mº Snr. Adriano José de Carvalho e Mello digníssimo governador civil pelo agrónomo do
districto..., Porto, Typ. do Jornal do Porto, 1877. In Notas e Recensões : “O DISTRITO DE BRAGANÇA em
1876 numa carta de D.Antonio Xavier Coutinho”. REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS - GEOGRAFIA I
Série, Vo l. III, Porto, 1987, p.247.
006 “Notas e Recensões: “O DISTRITO DE BRAGANÇA em 1876 numa carta de D.Antonio Xavier Coutinho”.
REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS - GEOGRAFIA I Série, Vo l. III, Porto, 1987, p. 243 a 277.
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007 Litescape.pt. Alves, Isabel Fernandes - Vozes Transmontanas na Paisagem. Paisagens de pedra e água na poesia
de A. M. Pires Cabral. Lisboa, FCSH / NOVA, Editora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2013.
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sões Terra Quente e Terra Fria distinguem duas regiões naturais, a saber:
a chamada Terra Fria que “(…) é um planalto de 700-800 m de altitude
média, dominado por algumas serras pouco altas e entalhado por vales pro-
fundos e estreitos. O clima é rude e contrastado, com inverno frio e longo
e um estio muito quente. (…) O carvalho negral, o castanheiro, o freixo ou
negrilho, formam tufos distantes, o solo das depressões cobre-se de esteva
odorante. O cereal dominante é o centeio, em afolhamento bienal.”(…);
e a que se designa “A Terra Quente formada pelos vales que afluem ao
Douro, providos às vezes de largas bacias, encaixados alguns centos de me-
tros no planalto. O clima é, por isso, muito diferente: com poucas chuvas,
inverno moderado pelo abrigo das altas vertentes e verão com dias tórridos
que sucedem a noites abafadas. O manto vegetal toma, pela primeira vez, uma
feição francamente mediterrânea: belas matas de sobreiros, olivais, plantações
de figueiras, amendoeiras, laranjeiras e outras árvores de fruto. Mas a origina-
lidade da região está na cultura da vinha. Calcada exatamente sobre um aflora-
mento de xisto que o Douro atravessa no sentido da maior dimensão, a «região
demarcada dos vinhos do «Pôrto» é a mais admirável obra humana que pode
ver-se em Portugal. (…)”008
008 Orlando Ribeiro, Apud GUEDES, Maria Teresa Valente de Sousa Guedes - O Alto Douro na obra de Orlando
Ribeiro. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2010. Tese de Mestrado em riscos, cidades e
ordenamento do território.
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009 A.M. Pires Cabral apud ALVES, Isabel Fernandes - Vozes Transmontanas na Paisagem. Paisagens de pedra
e água na poesia de A. M. Pires Cabral. Lisboa, FCSH / NOVA, Editora da Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas, 2013.
010 LAGE, Maria Otilia Pereira, Org.; BEIRA, Eduardo, Fot. - “Tua” Colectânea Literaria: O vale, o rio e a linha
Férrea. Projeto FozTua, 2013.
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O ambiente físico e natural do vale do Tua atrás descrito tem vindo sucessi-
vamente a ser transformado pelo trabalho de seus habitantes e pela ação de
todos quantos participaram na sua história económica e social. Aí, como a
nível nacional, foi fator inegável de mudança a alteração das comunicações
e meios de transporte registada sobretudo na viragem do séc XIX para o séc
XX, a qual seria marcada pela incontornável influência da linha férrea do Tua,
marco na história oitocentista dos caminhos-de-ferro portugueses, bem como
pelo seu profundo impacto na vida e na história das populações locais desta
região, sobretudo durante todo o século passado.
Define-se então neste capítulo o espaço social historicamente construído
nesse ambiente físico e natural. Para isso faz-se a caracterização sociodemo-
gráfica de um universo populacional representativo dessa contextualidade es-
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011 Conceito teórico desenvolvido pelo reputado sociólogo francês Pierre Bourdieu
012 Ibidem.
013 BOURDIEU, Pierre – “A ilusão biográfica”. In Usos e Abusos da Historia Oral, p. 190-191.-
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5 / M.F.L.82 anos Pombal - C.A. Pequena proprietária Feminino Comboio do Tua; Termas
e comerciante, viúva S. Lourenço / transporte
de ex-emigrante na carros bois / Emigração.
Alemanha Anos1940-1980.
8 / F.Q. 66anos Amieiro, Alijó. Ferroviário e chefe de Masculino linha do Tua / S. Tomé e
estação da linha do Tua, Príncipe / África / serviço
aposentado presidente militar. Anos 1970-1990.
da Junta de Freguesia
de Amieiro- Alijó
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33 / M.J.M.L.C. Angola Filha do Dr. João Lopes Feminino Família João da Cruz,
A. M. da Cruz Júnior, médico Empreiteiro da linha do
81 anos natural do concelho de Tua / Falência / linha do
Carrazeda de Ansiães, Tua - Construção (1900-
neta de João da Cruz, 1905). Anos 1905-1950
empreiteiro da linha
do Tua.
34 / M.J.L.C Angola Neta de João da Cruz, Feminino ibidem
82 anos empreiteiro da linha
do Tua, filha Dr. João
Lopes da Cruz Júnior,
médico natural do
conc.de Carrazeda de
Ansiães.
35 / M.FL Angola ibidem Feminino ibidem
C83anos
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5
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0
“+90” 90 - 80 80 - 70 70 - 60 60 - 50
anos
40+60
Grafico nº2 - Distribuição por Género
Feminino 17
Masculino 30
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36+4+9112613
Ferroviários 36%
Operários 4%
Engenheiros 9%
Agricultores 11%
Professor / as 9%
Farmacêutica 2%
Enfermeira 2%
Veterinário 2%
Livros / Imprensa 6%
Cantora 2%
Técnicos 4%
Profissão desconhecida 13%
Entrevistados
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próximo das histórias de vida que, por sua vez, constituem a ancoragem da
história vivida do Tua.
Pode intuir-se, com base na perspetiva sociológica abordada, que o traçado
seletivo desta galeria de “agentes eficientes” e suas trajetórias concorrem ativa
e explicitamente para a definição dos contornos nítidos de uma dinâmica e
diacrónica “superfície social” característica das populações desta sub-região
transmontana do vale do Tua.
A sua linha férrea e o comboio constituem o eixo organizador do conjunto
de narrativas de vida e de trabalho que a seguir se transcrevem parcialmente,
estruturadas em dois sub - núcleos: Trajetos de vida no vale do Tua; Trajetórias
de trabalho na linha e comboio do Tua. Os Ferroviários.
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tias ainda têm uma propriedade com cortiça, laranjas, azeite… iam lá regar
as laranjas mas nunca me deixaram ir porque era muito longe… é na encosta
do rio Tua que vai ser alagada pelas obras da barragem…
…Sou a mais nova dos netos de Manuel Maria Lopes Monteiro, enge-
nheiro civil, nascido em 1855 e falecido em 1923. Licenciou-se em 1883 / 84.
Vivia na aldeia do Castanheiro. Formou-se no Porto, ainda não existia a linha
do Douro em toda a sua extensão. Assim, viajava de barco até à estação da
Ermida, fazendo o restante trajeto de comboio. Quando começou a trabalhar,
ganhava “5 escudos em ouro por mês” sempre ouvi dizer isto na família....
Viveu em Bragança, onde foi engenheiro das obras públicas. Também esteve
a exercer as mesmas funções em Mirandela e em Vila Real.… teve um papel
importante na construção da linha do Tua: isso estava bem documentado em
vários livros de família que estarão nas mãos de um alfarrabista, uma vez que
foram vendidos. Foi diretor das obras públicas em Bragança. Antes de falecer,
fez as partilhas: a casa do Castanheiro ficou para 4 dos filhos; a casa de Arnal
coube a 2 dos filhos e a casa da Fontelonga ficou para os restantes 3 filhos.
A casa da Fontelonga, muito posteriormente, foi doada pela tia à igreja e
funciona lá atualmente o lar de idosos. Também, na aldeia do Castanheiro, foi
doada uma propriedade pela minha tia Isaura para ser construída a Escola
Primária que ainda hoje lá está. Parte da casa do Castanheiro, a frontaria, a
certa altura foi vendida a um sujeito que veio de África e eu fiquei com a parte
de trás da casa, que é a mais antiga, a original, onde existe ainda um enorme
lagar, a pia de pisar o vinho, uma trave enorme onde se fazia a prensa e tem
ainda aquelas lojas todas...
Na aldeia do Castanheiro havia três grandes famílias: os Monteiros, os
Frias / Filipes e os Freitas… no Verão, a nossa família frequentava muito as
termas de S. Lourenço…. íamos de burro e cavalo e atalhávamos pela aldeia
do Pombal.
Como se vivia no Castanheiro no tempo da minha juventude? De acordo
com o que observava, as pessoas viviam muito mal… tinham vidas muito sa-
crificadas e trabalhavam, muitas vezes, em condições difíceis. Por exemplo:
para lavarem a roupa, deslocavam-se a pé até ao rio Tua, onde faziam as
barrelas com cinza e estendiam lá a roupa. De regresso, subiam com tudo à
cabeça e sempre a subir até à aldeia. Posteriormente, na quinta da Lavandei-
ra, que tinha uma mina de água belíssima, construíram um lavadouro público,
em pedra, o que facilitou a vida das mulheres. As crianças andavam sempre
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às vezes por causa do tamanho das nossas orelhas, uma porque as tinha muito
grandes e a outra porque as tinha muito pequenas. A nossa mãe, para pôr fim
à discussão dizia: ”orelhas grandes, vida longa; orelhas pequenas, vida cur-
ta...”. E, na verdade, a que tinha as orelhas pequenas, partiu aos 51 anos de
idade e a outra irmã ainda está viva para contar estas histórias...
…Fiz a 4ª classe na escola do Pombal. Gostava muito de ler e os da família
Lima que tinham muitos livros emprestavam-mos. Por exemplo, o engenheiro
Lima pôs-me à disposição os livros do seu escritório. Lembro-me que trouxe
de lá um livro que me marcou para o resto da vida. Chamava-se “Saúde e
Amor na vida sexual” e era de um escritor italiano. Havia, no Pombal, ou-
tra família importante, a família dos Lebres que eram morgados. Esta terra
“produziu” 3 governadores civis: o Dr. António Luís Freitas, que foi gover-
nador civil de Bragança. Os outros dois foram o Eng. Raúl Lima e o Dr. João
Noronha…
…No meu tempo não havia muita gente do Pombal a trabalhar na estação
de S. Lourenço. No entanto, um homem do Pombal, de nome Manuel Pinto,
esteve muitos anos a trabalhar na estação, mas a gente que lá trabalhava
vinha mais do Amieiro. Daqui também houve um maquinista que já morreu…
…ia-se por esta linha fora para Mirandela. A viagem de ida e volta era fei-
ta no mesmo dia. Também se ia a Bragança, mas aí já era preciso lá dormir…
Na altura também se ia à feira a Candedo quando era necessário comprar ou
vender animais…
…Naquele tempo havia muitos casamentos de raparigas com 12 anos de
idade. Faziam-se para juntar fortunas de família… uma irmã do meu bisavô
casou com 12 anos e teve 12 filhos…
...Quando eu andava na escola primária, as pessoas passavam mal: havia
muitas necessidades… Nós, graças a Deus não… tínhamos os produtos da ter-
ra… e o meu Pai caçava. Usava um “enchoeiro” (armadilha) para apanhar
perdizes. Servia-se de uns pauzinhos (“aboízes”), onde espetava uma haste
de um sombreiro já velho, com um feijão pequeno para atrair a perdiz… Por
aqui nunca vi lobos, mas havia-os: iam aos currais e matavam muita ovelha.
As raposas matavam muitas galinhas….
…Ainda me lembro bem da forma como se atravessava o rio, na Brunheda,
antes de haver a ponte: era a pé, por cima das poldras, ou de barco… [Infor-
mante 5, duas entrevistas em 2011]
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• Proprietária agrícola natural de aldeia das encostas do Tua / ex-profes-
sora de ensino primário
…Nasci aqui no Fiolhal que, em tempos, foi um baldio. Era um feudo. Tem
casas ainda do século XVI. Foi dado a umas famílias, os Figueiredos, que vie-
ram dos lados de Viseu e se tinham tornado conhecidos por feitos praticados
na Índia… A minha bisavó, natural do Castanheiro do Norte, era filha única
com muitos haveres. Casou com um rapaz de Castanheira de Pêra que tinha
estudos e era irmão do Padre de lá. Dedicava-se aos negócios de lanifícios. O
seu trabalho obrigava-o a deslocações de comboio até ao Pinhão e, daí até ao
Tua, de mala-posta. Quando vinha, ficava instalado em casa dos pais da mi-
nha bisavó. Ele tinha 26 anos, era bonito, estudado e de boa família. Ela tinha
apenas 13 anos e casaram-se. Ela dizia: “eu não me casei, casaram-me…”.
Tiveram 20 filhos. Só num ano teve 3 filhos: um, em Janeiro e dois gémeos
em Dezembro. Nunca amamentou os filhos pois tinha sempre uma ama de
leite. Naquele tempo (séc. XIX), todo o homem de estatuto tinha uma amante,
a quem a mulher fechava os olhos desde que o marido desse bom viver em
casa. E isso acontecia. Sempre que tinha mais um filho, “enquanto estivesse a
guardar o mês”, comia frango ao longo da semana e comia cabrito assado ao
fim-de-semana… faleceu aos 85 anos… A minha mãe era do Fiolhal e era filha
de um brasileiro. Sou a pessoa mais velha da família Costa Santos… Muitos
jovens desta região partiram por causa da filoxera. Só em 1880 se iniciou
o debelar desta doença da vinha com a introdução das cepas americanas.
Independentemente desta doença, o pequeno lavrador passou sempre muitas
vicissitudes: por exemplo, tinha que dar 950kgs de uvas para uma pipa de 550
litros de vinho do Porto…. então pôr filhos a estudar era dificílimo…
…No Brasil, o meu avô começou a trabalhar num armazém de secos e mo-
lhados, armazém de vinho, vinagre, petróleo, arroz, feijão, grão, etc.. Como
era muito sério e muito trabalhador, ganhou a confiança dos patrões que, ao
fim de alguns anos, lhe propuseram sociedade… Depois de vários anos de
trabalho no Brasil, regressou ao Fiolhal, em 1890, onde comprou um casal
que estava à venda (propriedades dispersas que podem até não se situar na
mesma aldeia). …uma curiosidade: trouxe do Brasil um cordão de ouro e um
xaile de merino preto para cada uma das irmãs e um capote alentejano para
cada um dos irmãos. Regressado do Brasil, não trabalhava porque recebia
uma reforma. Tinha um Procurador. Quando regressou do Brasil, já havia a
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tes e fazia uma ficha sobre aquilo que mandava. De momento, haverá nesse
centro, na Biblioteca Municipal, à volta de 2.000 títulos sobre Trás-os-Montes.
Vou lançar agora o 5º volume sobre bibliografia transmontana…
…mas já antes e quando juntei algum” dinheirito” comprei um “caixote”
KodaK e, nas férias, entre os anos 1949 – 1952, fotografava as pessoas da
minha aldeia. Decorridos 50 anos, resolvi fazer uma surpresa às pessoas, am-
pliando as fotografias e oferecendo-as a quem de direito. Constatei que muitas
pessoas não possuíam uma única fotografia dos familiares e ” ficaram mais
contentes com aquilo do que um gato com um chocalho”, como se costuma
dizer… “Há pequenos nadas que podem fazer a felicidade das pessoas”. Em
vale de Juncal foi criada uma associação cultural com o nome do meu Pai.
Este local tem livros, reúne pessoas que arranjam algum dinheiro para fazer
melhorias quer na aldeia, quer na própria associação. Estão agora lá também
muitas das fotografias que eu tirei com o meu “caixote”.
... O fundador desta casa [Livraria Académica fundada em 1912] convi-
dou-me a ficar com ela pois eu sempre trabalhei com livros… Por isso tencio-
no comemorar os cem anos da minha Livraria… e fazer uma exposição sobre
A Renascença Portuguesa014 que tem os mesmos anos da livraria...[Informan-
te nº9, uma entrevista em 2012]
Como podemos concluir destes excertos de fontes orais que documentam
a diversidade de trajetórias de vida das populações ribeirinhas do vale do Tua,
viver e trabalhar neste meio rural sempre foi tão difícil que os que tinham
ou podiam ter outras ambições cedo abalavam do seu lugar de pertença; no
entanto,ligados ao torrão natal por afeições e memórias, a ele regressavam
sempre. Constantes migrações internas e emigração crescente, como única via
de procura de uma vida melhor para si e seus filhos, foram aqui movimen-
tos populacionais dominantes, mormente desde que passaram a ser facilitados
pelo caminho-de-ferro.
014 Movimento cultural português com um ideal nacionalista, surgido em 1912, no Porto, onde esteve ativo alguns
anos. Foram seus principais mentores, Jaime Cortesão, Teixeira de Pascoais e Leonardo Coimbra. A Revista
Águia, publicada no Porto entre 1910 e 1932, e em que colaboraram Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro,
era o seu órgão oficial.
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imaginário ferroviário traduzido por esta expressão émica “Ou Tua ou rua ou
praias do Pinhão” que poderá interpretar-se como sinónimo de ameaça ou de úl-
tima oportunidade em matéria de colocação no exercício de funções profissionais.
A este título, são significativas as seguintes histórias de vida de ex-ferroviá-
rios da linha do Tua selecionadas num conjunto de 17 entrevistas feitas a pessoal
ferroviário que permitem questionar tal asserção que se tornaria lugar-comum.
É de destacar a sua relevância, designadamente ao nível do que demons-
tram sobre vinculação à profissão ferroviária, considerada acima de tudo “uma
família”, a consciência social de pertença à sua terra natal, as condições favo-
ráveis nos caminhos- -de-ferro à reprodução social e mobilidade sócio-profis-
sional cujas manifestações diversas e diferentes etapas permeiam todos estes
fragmentos de suas narrativas orais.
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de subir na carreira, fui para Alfarelos, onde fiz o curso de Agulheiro. Fui
promovido a Agulheiro e fui de novo para Foz-Tua. Entretanto, concorri para
Capataz de Manobra e fui para a estação de Vila Nova de Gaia, onde esti-
ve durante 2 anos… coordenava o trabalho dos serventes… Concorri, então,
para Encarregado de Apeadeiro… chefiava estações de pouco movimento… e
fui colocado em Chanceleiros, estação na linha do Douro, a seguir ao Pinhão.
Depois, fui para a Régua, de novo para Foz-Tua e, de seguida, para a estação
de Santa Luzia da linha do Tua. Entretanto, abandonei por algum tempo os
caminhos-de-ferro devido a uma transferência que considerei injusta e à não
atribuição da casa a que tinha direito e fui para Foz-Tua trabalhar na empre-
sa Cockburns. Foi então que aconteceu a revolução de 25 de Abril. Mas a pai-
xão pelos caminhos-de-ferro era mais forte do que eu e concorri novamente,
tendo sido colocado em Santa Luzia [Setembro de 1974]… Durante o tempo
em que estive em Santa Luzia, tinha uma motorizada que ficava em S. Lou-
renço, enquanto percorria a pé o caminho até ao local de trabalho, pois não
havia estrada… Saí de Santa Luzia a fim de ir frequentar, no Entroncamento,
o curso de Fator. Fui depois colocado em Ferradosa, a chefiar a estação.
Daí, voltei para Foz-Tua, pois o apelo da minha terra era sempre muito forte.
Aqui, trabalhei como Fator… No Tua [1980-1993] tive casa como agulheiro,
no bairro que lá existe para famílias dos ferroviários… era da CP… agora é
da Câmara… Depois de ter trabalhado em Foz-Tua, pedi a reforma [1993]. …
Trabalhei sempre muito, a uma média de 12h por dia. Havia falta de pessoal
para trabalhar… Mas também ganhava… além disso tinha direito ao modelo
X44 que permitia viagens gratuitas aos funcionários. Quando havia casa dis-
ponível, também podia viver nela. No caso de não haver, arrendava casa, mas
pagava sempre uma renda pequena… Sempre gostei dos comboios… tinha as
regalias dos caminhos de ferro… tinha passe livre do meu falecido pai… nun-
ca quis ser polícia…” [Informante nº 3; 2 entrevistas em 2012 e 2013]
***
• Maquinista
…Nasci na Carrapatosa. Aos 18 anos, comecei a trabalhar nos caminhos-
de-ferro. Há 52 anos que vivo na Lavandeira (Carrazeda de Ansiães), onde
casei. Frequentei a escola primária em Linhares. Da Carrapatosa a Linhares,
demorava mais ou menos 40 minutos “a andar a pé e descalço”, “ quando ía-
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mos a brincar uns com os outros, demorávamos duas horas”. Fiz a 4ª classe:
“naquele tempo, quem é que tinha estudos? Alguns ainda faziam a admissão,
mas muito poucos…
Quando comecei a trabalhar, depois de casar, fui para Cotas, por cima do
Pinhão. Mais ou menos no ano de 1967 vim para o Tua, onde estive vários
anos, mas sempre a trabalhar na linha. Depois, pedi a transferência para a
tração: fui para Cernada do Vouga, um ano para Aveiro até que me matriculei
na escola de Campanhã para poder ascender a fogueiro. Fui, então, para a
Boavista (Porto) e depois para a Régua, mas já como fogueiro. Depois da
Régua, fui frequentar a escola de Campanhã para poder ser Maquinista. Para
se ser Fogueiro, a formação era de 2 ou 3 meses, mas para se ser Maquinis-
ta, era maior. Em ambos os casos tinha que se passar numa Junta Médica e
no Psicotécnico. Havia maquinistas que tinham que ir todos os anos à Junta
Médica, a Lisboa, ou porque tinham tensão alta ou porque se suspeitava de
algum problema de coração. Por vezes ficavam impedidos de exercer durante
algum tempo. Eram muito rigorosos com isso. Quando havia mudança para
novas locomotivas, tinham sempre que ir à Junta Médica e ao Psicotécnico. …
eu fui diversas vezes… E, sempre que mudavam de locomotiva tínhamos for-
mação e avaliação... Tínhamos que ir à Escola de formação em Campanhã.
Tínhamos formação em função das máquinas que conduzíamos e fazíamos
provas escritas e provas orais. Quando tínhamos que conduzir locomotivas
novas, voltávamos à Junta Médica e ao Psicotécnico. Tínhamos formação
escrita quando mudávamos de locomotiva. Fazíamos provas escritas e orais…
…quando mudei para o vapor, fui conduzir as Allans, que eram automoto-
ras de cor azul no início e, depois, vermelhas. …Eram um rico material, com
grande estabilidade; só eram problemáticas no Verão, por causa do calor. Por
vezes deitavam a água fora; de Mirandela até ao alto de Rossas era preciso
saber lidar com elas... A propósito disto, lembro-me de um maquinista que de-
morou uma hora e quarenta minutos de Mirandela a Bragança precisamente
porque não soube lidar bem com as dificuldades que lhe surgiram por causa
do calor. No dia seguinte, eu, com a mesma máquina e o mesmo calor, demorei
trinta minutos. Nas subidas, era preciso abrir um bocadinho aos vasos, mas
aos poucochinhos. Fomos indo assim até que no alto do Azibo abrimos os
vasos todos e pusemos-lhe a água fresca da ribeira do Azibo…
…as máquinas Diesel …foi das coisas boas que vieram para a linha do
Tua; bastava ser cuidadoso na condução porque avarias elas não tinham...
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máquina 81, que era a mais fraquinha que lá havia e andava sempre atrasado.
Eu conduzia a 111, que era a melhor máquina que lá havia. Depois, eu passei
para a 81 e ele para a 111. Eu comecei a conhecer a máquina, o meu ajudante
também era bom rapazinho e, ambos, lá nos íamos desenrascando, sobretudo
na etapa entre Mirandela e os Cortiços, onde se patinava mais e o que é certo
é que chegávamos à tabela. O Zé Alvarenga, com a 111, chegava sempre atra-
sado... A 111 era a melhor máquina a vapor que havia na linha do Tua… A 81
era a máquina mais antiga e a mais fraquinha que lá havia. Andava sempre
atrasada… A 84 era uma maravilha. O percurso entre o Romeu e os Cortiços
demorava quase sempre 20 minutos. No Verão, atrasava-se por causa da folha
do sobreiro que caía nos carris e por causa da humidade… Quando vieram
as Chepas, havia um comboio que chegava à meia-noite… até Rossas, era a
subir e dava o sono. Eu, como maquinista, para não ter sono, ralhava comigo
próprio e dizia coisas como estas: ó seu burro, tu não vês que vais a conduzir
uma automotora?!... então, é a dormir que se conduz um automóvel?!...”.
Normalmente, fazia o percurso Tua – Bragança…
…As locomotivas Mallet [tipo de locomotiva a vapor articulada] …só exis-
tiam no Tua e no Pocinho…
…a parte da linha que custava mais a fazer era desde a ponte de Carva-
lhais até Rossas, sempre a subir… Tive o descarrilamento de uma Chepa, na
ponte de Rebordãos, mas vinha a 25Km de velocidade. Saíu dos carris sem
que se tivesse percebido a razão.
…Eu fui escolhido para fazer o comboio em que veio Mário Soares. Para
mim foi um dia de fome. Vinha um inspetor atrás de mim, que não percebia
nada de condução, mas queria tudo à moda dele; era muito mesquinho; vie-
mos com o café desde Bragança até ao Cachão...
…uma vez, eu já trazia 16 horas de condução, vínhamos de noite e, quando
cheguei a Bragança, não quis ir ao ramal particular levar o adubo à CUF.
Participaram de mim: tinha de pagar 500 escudos de multa. Só que como já
levava 16h. de serviço, a participação não valia de nada porque tinha horas
a mais... seria ilegal fazer a participação…. [acha que era mais importante:]
…ser cuidadoso, ter atenção a quem vai à nossa retaguarda, cumprir o mais
possível os regulamentos, colaborar com toda a gente, respeitar toda a gente
sermos exigentes connosco próprios...”[Informante nº 40, duas entrevistas em
2014]
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• Chefes de estação
…Esta estação de Santa Luzia, aqui em frente, inicialmente era chamada do
Amieiro mas, como havia lá para o sul, perto de Pombal, a estação de Amiei-
ra, o que originava confusões e troca de mercadorias, decidiram mudar-lhe o
nome e batizá-la com o nome da santa padroeira da aldeia, que era e é Santa
Luzia.
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Maria Otilia Pereira Lage
***
…Na minha criancice vivi muito entre o Porto e Coleja. Porquê? Porque
um irmão do meu pai a quem nós chamávamos o” tio rico”, levou-me para
o Porto para eu poder estudar. Ele saiu daqui para ir fazer a tropa e nunca
mais voltou. O meu tio tinha mais posses que os outros porque era amante
de uma senhora, com dinheiro, que me recebeu muito bem. Só que quando
eu frequentava o 4º ano do liceu Rodrigues de Freitas, ela faleceu. O meu tio
foi viver para o hotel da Boavista, na Foz, e eu vim para Coleja para casa do
meu pai, tinha eu 14 ou 15 anos. Passei a ter que ir com ele aos peixes… O
meu pai pescava de noite, 3 ou 4 kg. de peixe que vendia na sua aldeia e em
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aldeias vizinhas. Ganhava 20 escudos que lhe davam para uma semana. Não
tinha ambição nenhuma e enquanto lhe durasse o dinheiro, não fazia mais
nada. Nessa altura havia pouco peixe: deitavam tiros de dinamite no rio para
matarem os peixes… Nesta aldeia havia mais alguns pescadores… Depois ele
entusiasmou-se e comprou uma rede maior em 2ª mão, na foz do Sabor, um
“tresmalho” que tirava 15 ou 20 kg. de peixe. Fazíamos pescarias de noite.
Depois, eu ia vender o peixe pelas aldeias.
…Fui o 3º ferroviário que saiu desta aldeia… Era uma vida difícil… iniciei
o meu trabalho no Pocinho como fator de 3ª e de 2ª. Interrompi o trabalho
para fazer tropa em Moçambique. Quando regressei, fui para Vargelas, onde
estive durante treze anos e meio. De 1986 a 1994 estive em Foz-Tua como
chefe de estação. Depois, a meu pedido, fui para Leça do Balio e, de lá, me
reformei.
Andei na linha do Tua quando fui fator de 2ª: estive destacado em Santa
Luzia e em Codeçais… mas nestes sítios estive só para dar apoio, quando ha-
via falha de pessoal... Quando trabalhei na estação de Foz-Tua, ainda “apa-
nhei o tempo do comboio a vapor”. …Deixei de trabalhar como ferroviário
no ano de 2001 porque a linha fechou. Vim-me embora por rescisão amigável.
Reformado, só estou desde 2005. Vim viver definitivamente para Coleja, onde
tinha comprado propriedades com as economias que fui fazendo. Com o re-
gresso à minha aldeia natal, realizei o sonho da minha vida… Eu gostava de
ter sido agricultor, de ter batatas, vinho e azeite para todo o ano e um porco
morto, que é sustento para o ano todo. E realizei esse sonho: depois do 25 de
Abril comprei por 530 contos as propriedades que tenho. Nesta data, o meu
vencimento também aumentou para quatro contos e quatrocentos. …Já depois
de adulto, fiz o 12º ano no liceu Rodrigues de Freitas, a estudar à noite…
…O Tua era uma grande estação, muito trabalhosa e com muita gente; a
propósito até havia um dito entre os trabalhadores: ou Tua ou Rua, já que nin-
guém pedia para ir para o Tua… A maior parte do trabalho devia-se ao facto
de ser uma estação de transbordo; o maior trabalho era o do pessoal braçal…
o comboio transportava tudo ou quase tudo. Para o Tua, iam comboios reple-
tos de adubo, quando iam para cima e repletos de trigo quando vinham para
baixo. Havia também vagões completos de urnas que vinham de Amarante.
Não me recordo de lá passarem vagões de cortiça.
…Os comboios que vinham da via estreita, de Bragança para o Tua, com
três e quatro carruagens, vinham sempre cheios. Aos fins de semana até ti-
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Maria Otilia Pereira Lage
nham quatro e cinco carruagens. E cabia sempre mais gente porque as pes-
soas também viajavam de pé…
…Na sala de espera da estação de Foz-Tua, há um mini museu que fui eu
que comecei a fazer… tinha lá um livro de reclamações muito interessantes,
muito bem escritas, com uma caligrafia lindíssima, normalmente feitas por
viajantes, no tempo em que havia o gosto pela escrita, o que não é o caso
de hoje… Não tive lá grandes problemas. Vivia por cima da estação. Acho
mesmo que fui um privilegiado dentro dos caminhos-de-ferro, dado que tive
sempre direito a casa nas diferentes estações onde trabalhei. Tinha viagens
pagas para a minha mulher e para as filhas, enquanto solteiras, ou os filhos
até aos 21 anos de idade. Hoje, essa regalia já acabou. Havia também as
tainadas nas estações: em Vargelas chegava a assar 15Kg de peixes do rio!
Mas, aqui fazíamos uma vida muito económica; também não havia café nem
onde gastar o dinheiro. Além disso, a partir de 1973, com a instalação da
quinta dos Taylors, com quem mantinha muito boas relações, passei a ter
água e luz que não pagava, graças a eles. Também tinha sempre carne de
porco e bacalhau que eles mandavam para o chefe da estação (os chefes de
estação, mesmo que fossem fatores, eram muito respeitados porque sempre
sabiam ler e até escreviam cartas… os trabalhos com as mulheres guardas de
passagens de nível foram os mais custosos que tive. Era mesmo o maior re-
ceio que eu tinha. Em Vargelas, tinha duas que andavam sempre à porrada…
para arranjarem problemas, todas elas estavam por aí… no Tua, além das
duas das passagens de nível, também tinha duas para os dormitórios… Nes-
tas aldeias por aqui nestas redondezas houve sempre gente a trabalhar nos
caminhos de ferro; uns chamavam outros. Aldeias onde me lembra de haver
ferroviários: Castanheiro, Ribalonga, S. Mamede, Alijó, Parambos, Pombal,
Codeçais, Brunheda, Tralhariz, Pereiros, Amieiro, Abreiro, etc… [Informante
nº 16, duas entrevistas]
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vontade do meu marido. Mas tínhamos três filhos para educar e eu queria o
melhor para eles. Apesar de o meu marido ter chegado a Fator de 1ª e ga-
nhar bem, eu achava que devia ajudá-lo. Depois de o marido ter falecido, vivi
ainda durante mais seis anos na Estação.…” [Informante nº 11 - Encontro de
Ferroviários do Tua, 25 de Abril, 2013]
***
• Guarda da secção museológica ferroviária de Bragança
“(…) O meu pai era ferreiro. A mãe era doméstica e cultivava os produtos
de uma lavoura de subsistência. Tenho duas irmãs. Uma delas é guarda de
passagem de nível e trabalha em S. Romão do Coronado.… Depois de fazer o
exame da 4ª classe fui trabalhar com o meu pai para a oficina. Mas não era
ferreiro que eu queria ser. O meu sonho era outro: ser ferroviário. Eu quando
via um amigo meu que trabalhava na C.P. com aquele boné na cabeça, só
pensava que também havia de ter um boné assim... O Belmiro Aragão, chefe
de estação e tio de um amigo meu, meteu lá o sobrinho como praticante de
Fator. Mas, o rapaz não era sério e metia a mão na gaveta. Um dia, quando
ouvi dizer que precisavam de pessoal para trabalhar na via, falei com esse
Chefe que, de início, achou que eu tinha pouco físico. Mas… eu lá fui... para o
Tua, onde comecei a trabalhar, no dia 27 de setembro de 1961, como eventual
de dia. No dia 14 de novembro do mesmo ano, fui transferido para Cachariz
e Albergaria dos Doze. Sempre como eventual de dia, fui mandado sucessiva-
mente para Lamarosa, Entroncamento, Praia de Ribatejo, Santa Margarida,
Barquinha, Tramagal. Daqui, novamente para o Entroncamento. Depois para
Alcântara Mar, como servente de 3ª classe. Aqui, trabalhei até ao dia 1 de
dezembro de 1966. Seguidamente, fui transferido para a estação de Salsas,
onde trabalhei desde 4 de dezembro de 66 até novembro de 1991, altura em
que fechou a estação. Fui, então, para Paços de Brandão, Arrifana, Pocinho,
Mogadouro, onde estive destacado apenas 5 dias. Daqui, pedi transferência
para a estação de Bragança, isto em 1984. Fiquei nesta estação e fazia Bra-
gança – Mirandela e Mirandela – Bragança.
Um dia tive um acidente de trabalho em Macedo de Cavaleiros… Foi o dia
mais triste da minha vida porque fiquei impossibilitado de trabalhar na via.
Estive de baixa, fui submetido a uma Junta Médica e a C. P. queria-me refor-
mar…. No entanto, não aceitei a reforma porque sabia que tinham serviço
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“TUA” HISTÓRIA VIVIDA
compatível para mim, no meu novo estado. Eu queria mesmo trabalhar por-
que “nunca fui homem de tabernas”. …Desde 1991 até 2005 exerci funções
de guarda da Secção Museológica de Bragança. Zelei por todo o material
que aqui se encontrava e que ainda se encontra em ótimo estado de conserva-
ção… eu ainda hoje tenho saudades do caminho-de-ferro e se a C. P. abrisse
uma secção do Núcleo Museológico, eu ainda era capaz de ir trabalhar…
há lá uma carruagem verde, de 2ª classe, que foi restaurada nas oficinas do
Pocinho e que transportou o ex-presidente da República, Dr. Mário Soares,
desde o Tua até Bragança, quando ele visitou esta cidade. Fui eu um dos que
fizeram o acompanhamento presidencial desde Bragança até ao Cachão…
Quando em 27 de setembro de 1906, foi feita a fusão, a Companhia Nacional
deixou de o ser e passou a ser C.P. (Companhia dos Caminhos-de-ferro Por-
tugueses – empresa pública), essa carruagem foi para o Núcleo Museológico.
…eu é que fazia a manutenção de todas as locomotivas, tinha-as sempre a
brilhar... a locomotiva 114 ainda trabalhava; aliás elas estão todas em bom
estado de conservação, mas o facto de não serem usadas, faz com que depois
não trabalhem…
Uma das vezes em que o Eng. Giestal Machado visitou o Núcleo, foi ver a
placa giratória, que eu tinha sempre muito bem oleada, o que o levou a fazer
o seguinte comentário: “o Senhor está de parabéns, mas nós também. Eu não
posso exigir mais do Senhor!...”. Havia sempre visitas de estudo de alunos
com as respetivas professoras, que também me davam os parabéns pela boa
organização e funcionamento do Núcleo. Estão lá placas com a fotografia das
máquinas, as suas características, etc. Há lá máquinas que eram da oficina,
tais como o torno ou a limadora. Também lá está a carruagem em que viajou
el-rei D. Carlos. Em 91, ela já não estava ao serviço porque já havia as au-
tomotoras “Schepas”, as quais só andavam bem no tempo fresco. No tempo
quente precisavam logo de água. Eram jugoslavas. No entanto, tiveram que
deixar de funcionar porque não aguentavam. No ano de 91, já trabalhavam
as Diesel…
…Em 27 de setembro de 1906, a locomotiva nº 1 foi o 1º comboio que che-
gou a Bragança… Ainda me lembra de a ver trabalhar… Também lá estão os
quadriciclos, os quais tinham a seguinte funcionalidade: quando o chefe de
lanço queria passar uma vistoria ao seu próprio lanço, servia-se do quadrici-
clo, assim como os engenheiros para fazerem a inspeção à linha. É um veículo
manual. Quando era preciso utilizar os quadriciclos, a linha ficava interdita
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***
• Coletivo de ferroviários
[RQ] …Comecei a minha carreira como fogueiro, em Mirandela… a seguir,
ingressei na escola de maquinistas em 1971... Efetivei-me como maquinista
em Mirandela, onde estive de 1977 até 2009, altura em que me reformei…
[F A] …Comecei o meu trabalho na C P como servente de tracção, em
1957, com a 4ªclasse e com a idade de 18 anos… A CP era o que havia de mais
rentável naquela altura!.... Depois fui fogueiro e comecei a trabalhar como
maquinista em 1971…. Efetivei em Mirandela, onde trabalhei até à idade da
reforma. …Fiz muitas vezes a viagem de Foz-Tua a Mirandela no comboio a
vapor: o sucesso da viagem dependia muito de como a máquina se portava e
da habilidade do fogueiro…
[JR] …eu passei a transição do vapor para o Diesel, quando era che-
fe de estação em Foz-Tua. A máquina a Diesel podia com 400 toneladas…
a de vapor só podia com 200… começámos a fazer comboios até às 400
toneladas. Bastava-nos pedir autorização ao posto regulador e ela era-
nos concedida através de um telegrama… Eu iniciei a minha vida na CP
como chefe, fator, em 1969, no Pocinho. Fiz a tropa e quando regressei fui
para Vargelas, onde estive 13 anos e meio, até ser chefe de estação… ti-
nha então 37 anos. Fui depois para o Tua, onde estive, como chefe de 1986
até 1994.
[MJ] …entrei para a CP em 1941. Em 1951 fui para Torres Vedras (Oes-
te), onde estive até 1954. Depois fui para Caminha, onde permaneci 8 anos.
Concorri a subchefe e fui para Arcozelo das Maias, no Vouga, onde estive
dois anos. Entretanto, a meu pedido, fui 2 anos para Viana do Castelo. Depois
concorri a chefe de distrito e fui para o Romeu, em 1964. Estive lá 8 anos.
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“TUA” HISTÓRIA VIVIDA
Seguidamente fui para o Tua, como chefe de lanço, durante dois anos. Daqui
fui para Bragança onde permaneci 15 anos e, por último, vim 2 anos para
Mirandela, de onde me reformei. Ser chefe de lanço era trabalhar entre Bra-
gança e Tua. O pessoal da via, aqueles que trabalhavam na manutenção da
linha, não me tornavam a vida fácil: tinha que os orientar e tinha que fazer a
escrita dessa gente toda. Ainda tinha a meu cargo os guardas das passagens
de nível. Antes de entrar para a CP trabalhei na Companhia Nacional (Linha
do Sabor, Linha de Chaves, linha do Tua a Bragança e Linha do Dão). Tra-
balhar para uma empresa ou para a outra era exatamente a mesma coisa… A
única diferença é que tinha um vencimento maior na Companhia Nacional…
Lembro-me muito bem do ano de 1941 – o ano da fome –… fui muitas vezes
a pé de Vilar de Rei, no Sabor, a Mariz, saber de pão e chegava a casa sem
nada. Fui muitas vezes a Sendim saber de pão e, de pão, nada!... E éramos
12 pessoas em casa… Conheci muito bem o tempo da guerra… Trabalhei nos
comboios durante 48 anos!....
[P. A] …comecei por assentar travessas… depois passei a revisor de bi-
lhetes, tendo trabalhado nas linhas do Douro, do Tua, da Beira Baixa… do
Tejo para o Norte, onde passa o comboio, trabalhei em todas as estações...
Fiz trabalho de revisor entre os anos de 1968 e 1982. De 1982 a 86, trabalhei
como inspetor, com sede no Porto, …mas corria o Norte todo... foram os anos
da pré-reforma… Como inspetor, tenho histórias boas e histórias ruins para
contar. No que respeita às últimas, falo da quase certeza de passar o Natal
com a família e acabar por passá-lo na estação de Santarém, na companhia
do maquinista e do revisor… Consoámos sozinhos daquilo que levávamos,
pois se quiséssemos uma pinga de água, nem tínhamos onde a ir beber… E
assim passámos os três a noite toda… E também, qualquer um de nós não
tinha direito a receber horas extraordinárias, embora fizéssemos muitas!…
[todos] …“Antes do 25 de Abril éramos uns mártires, éramos multados
por tudo e por nada!... …tínhamos 13, 14 e 15 horas de serviço …muitas ho-
ras extraordinárias sem ganhar… como serventes era do primeiro ao último
comboio, mas sem horas extraordinárias… das 8h da manhã ás 11h da noite…
na folga entrava-se às 3h… havia também a folha de trânsito. Se tivéssemos
atrasos no horário, o que acontecia às vezes e por motivos alheios à nossa
vontade, tínhamos que justificar a razão do atraso. No entanto, a parte boa da
questão, é que era sempre possível arranjar-se uma avaria que nos livrava de
pagar a multa que nos seria descontada no vencimento…
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Maria Otilia Pereira Lage
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“TUA” HISTÓRIA VIVIDA
3. CONTEXTO Socio-histórico:
Cartografia de materiais de memória
Vários e sucessivos factos da história nacional e global, para além dos mais
variados episódios que marcaram a vida das populações locais no vale e linha
do Tua, se fizeram sentir na história local e regional do vale do Tua, desde, por
exemplo, a I Guerra Mundial (1914-1918) e II Guerra Mundial (1939-1945),
a exploração do volfrâmio durante o Estado Novo (1939-1955), a Guerra Co-
lonial portuguesa em África (1961-1974), até às mudanças surgidas com o 25
de Abril de 1974 e o início do processo de democratização.
Os efeitos e as mudanças induzidas de tais acontecimentos político-econó-
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10
10 7
3 4 4 1
0
1890-1940 1900-1950 1920-1970 1940-1980 1950-1990 1970-1990 1990-2010
anos
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…a primeira vez que andei de comboio foi para irmos à aldeia de Code-
çais… uma professora que era de cá casou lá e ficou lá a viver com o chefe da
estação de Codeçais… também fui a Mirandela ao médico… íamos apanhar o
comboio à estação de S. Lourenço… era mais perto daqui… Andei novamente
neste meio de transporte para ir a Bragança, mas já mais tarde… tinha lá
pessoas conhecidas…
…Do Tua vinham muitos peixeiros vender peixe pelas aldeias. Conhe-
ci bem uma vendedora, a Percevelha, que vendia sardinhas… as peixeiras
quando anoitecia ficavam na Lama Grande… o sr Cândido que vendia muita
madeira tinha lá uma casa e dava-lhes dormida e uma comidinha… era boa
pessoa e a mulher também… faziam isso por caridade” [Informante nº 14]
***
***
“…Sobre o meu avô, só sei aquilo que o meu pai contava, tinha eu 13
anos… era um homem muito trabalhador e inteligente que tinha feito a for-
tuna à sua custa; tinha muitas quintas, tinha Vinho do Porto; era muito res-
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“TUA” HISTÓRIA VIVIDA
neciam. E a linha do Tua morreu muito por culpa das pessoas que deixaram
de frequentar o comboio... Lembro-me de um desprendimento entre Brunhe-
da e S. Lourenço (perto do Tralhão): houve um descarrilamento, a máquina
vinha carregada de trigo e o maquinista faleceu. Outro, entre a Brunheda e
Foz-Tua, em que o maquinista ficou sem uma perna... Estes acidentes acon-
teceram ainda no tempo da máquina a carvão… Quando o eng. V. afirmou
que não podia garantir a segurança da linha, não pensou que as máquinas
continuaram a andar de Mirandela para o Tua e havia segurança… houve
depois mais descarrilamentos com as novas automotoras do que havia nesses
tempos.... Pela linha do Tua vinham muitas mercadorias – havia vagões para
os pequenos volumes. Com o IP4, deixou de haver transporte de mercadorias
(pequena e grande velocidade)… acabaram os vagões completos e acabaram
as mercadorias rápidas que só subsistiram alguns anos… A linha deixou de
ser a vapor nos anos 80. Antes da construção do IP4, a linha tinha muito
movimento. Havia 5 ou 6 composições diárias… Muita gente daqui que traba-
lhava no Cachão ia e vinha de comboio todos os fins de semana e outros, todos
os dias… quase metade da nossa povoação… homens, mulheres, rapazes…
trabalhava lá… o comboio daqui lá demorava cerca de 1 hora… O complexo
do Cachão também utilizou muito a linha para fazer o escoamento de cereais,
adubos, postes para os telefones e as próprias travessas da linha… No Amiei-
ro, o único transporte que havia era o comboio... quando acabou a ponte a
aldeia ficou isolada… só no verão se podia passar a pé numas cascalheiras
que há ali abaixo… Para atravessarem o rio, havia o barco e o teleférico….”
[Informante nº 8]
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Maria Otilia Pereira Lage
• I Guerra Mundial
“…da I Guerra Mundial… lembro-me… o Zé Pinto… fidalgo… do cimo do
povo... andou lá e o Zé Carlos Almeida que casou com a Berta e morreu pouco
depois, tuberculoso… ouvi contar que fugiram da guerra de cavalo…
…”.[Informante nº 14.]
***
“…Tenho ideia de ouvir dizer que o meu pai tinha nove filhos legítimos
e mais do que isso ilegítimos… O meu pai era médico militar; reformou-se
como coronel-médico. Estudou no Porto nos primeiros anos do curso, mas
quando o pai morreu e perdeu as quintas, ele teve que emigrar para o Brasil,
onde fez imensas coisas para sobreviver, até que percebeu que tinha mas é
que continuar a estudar. Pediu dinheiro emprestado à lavadeira que era por-
tuguesa e veio para Portugal continuar os estudos, mas em Lisboa… Aqui,
agarrou-se aos livros a sério e formou-se... Depois foi para África (Angola).
Como médico militar, andou nas campanhas de África da 1ª Guerra Mundial,
onde tínhamos problemas com os Alemães…
…Uma das formas que o meu pai teve de ganhar dinheiro no Brasil, foi a
fazer versos, pois tinha muita facilidade para isso. Fazia versos para os na-
morados oferecerem às namoradas; e fazia discursos políticos que ele apro-
veitava de uns para os outros; só tinha que mudar umas tantas palavras e
adequava-se a todas as fações políticas. Fez muitas outras coisas. Trabalhou
na estiva; foi empregado de um talho… aqui, um dia, aconteceu-lhe algo que
o fez perceber que precisava de regressar a Portugal e dar um rumo à sua
vida… Um dia entrou nesse talho um antigo colega da Escola Médica do Por-
to que ficou muito admirado quando o viu ali…. Ele sentiu-se tão mal, tão mal,
que jurou que havia de voltar para Portugal para se formar. Voltou, começou
a levar a vida a sério e formou-se mesmo... Parece que enquanto estudou no
Porto, andava sempre na paródia, mas quando foi estudar de novo, agora
para Lisboa, decidiu que tinha mesmo que se formar. Com medo de se tentar
e de não estudar o suficiente para se poder formar, pôs uma pistola em cima
da secretária e disse: “João Lopes da Cruz, no dia em que perceberes que não
te formas, dás um tiro na cabeça”. Tinha passado por tanta coisa que tinha
percebido que aquele era o melhor caminho para ele.… O meu pai tem em
Carrazeda de Ansiães uma rua com o seu nome João Lopes da Cruz (filho)…
71
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA
Tal como o pai, era muito generoso e tinha bom coração. Quando estava em
Luanda e via os doentes, se as pessoas fossem mesmo carenciadas, não só
não lhes levava dinheiro pela consulta, como ainda lhes deixava algum em
cima da mesa para a galinha e para a canja. Tinha uma casa só para receber
os Trasmontanos que emigravam para lá, enquanto eles não começavam a
ganhar a vida em África… Quando regressou a Portugal, a grande preocu-
pação dele foi desipotecar duas quintas em Trás-os-Montes que o meu avô
perdeu quando faliu com as obras da linha do Tua. Uma delas era a quinta
do Zimbro, que tinha um vinho do Porto muito bom. Mas, como era muito boa
pessoa, acabou por dar as quintas a uma irmã que vivia lá e que tomava conta
da mãe …” [Informante nº 34]
• II Guerra Mundial
“…Da II Guerra não tenho grandes lembranças… o volfrâmio… sim… nessa
altura houve muito dinheiro porque se vendia o minério, muito caro, para
Espanha… as raparigas que andavam a ele, metiam aquelas “chinas” nas
meias, vendiam-no… era caro… e faziam bom dinheiro… compravam boas
saias e vestidos… ficaram mais vaidosas… eu nunca andei… o meu trabalho
sempre foi em casa e nas propriedades… os homens compraram casas… Os
compradores vinham buscá-lo. Passavam-no, de noite, de uns sítios para os
outros… era clandestino… Para o Tua, nunca vi que fosse… para a Alijó,
talvez…”. [Informante nº 14]
***
72
Maria Otilia Pereira Lage
***
“…1945, ficou conhecido pelo Ano da Fome, em que tudo era racionado.
Faziam-se trocas: por exemplo, trocava-se um litro de azeite por um quilo de
açúcar. Lembro-me de uma senhora da Ribeirinha da linha do Tua, que tinha
muito açúcar e que fazia este tipo de troca… Quando não havia pão, faziam-
se talassas: faziam-se na sertã, com farinha muito rarinha e açúcar por cima.
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“TUA” HISTÓRIA VIVIDA
Tomava-se com elas o café, todos os dias… Um pão centeio chegou a custar
50 escudos. Começou a não haver mercearia nos “sótos”… Aquilo que se po-
dia arranjar era através de senhas que se iam buscar à Câmara de Carrazeda.
Era tudo racionado. E havia muitas famílias com 6, 8 e 12 filhos...Só com um
filho, eram muito poucos…” [Informante nº 5]
***
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Maria Otilia Pereira Lage
“…A CP era o lugar que nos dava mais segurança naquela altura… estive
como eventual, na CP, até 1970. Em Janeiro desse ano fui assentar praça em
Vila Real e comecei a fazer tropa em Abrantes, onde fiz a especialidade de in-
fantaria. Depois fui para Moçambique. Fiquei na pior zona de guerra: Cabo
Delgado. Estava já perto da Tanzânia. Só para chegar de Lourenço Marques
até à Companhia para onde fui, demorou 3 meses… fui em rendição indivi-
dual: o cabo que fui render, era de Braga, tinha levado um tiro nas costas, na
sequência do qual morreu. O batalhão a que eu pertencia foi para Cabinda,
mas na altura, os que tinham mais pontuação, por estranho que pareça, não
eram os que eram mais depressa mobilizados e os do meu batalhão queriam
que eu trocasse com um soldado casado, mas ele entendeu que se não tinha
sido mobilizado, também não tinha que trocar. Então, vim para Lisboa, onde
estive um mês, seguindo depois para o quartel de Chaves para ir substituir
aquele cabo que morrera. …A vida no batalhão não era fácil, sobretudo por-
que eu ia sempre para os Adidos e passava o tempo a mudar de sítio: Louren-
ço Marques, Nampula, Moeda, Sagal, Palma, Porto Amélia… Estava sempre
sob fogo mas o maior medo ainda era o das minas. Tive dois acidentes nas
minas anti-pessoais, vi morrer muitos colegas, vi outros que ficaram cegos,
outros sem pernas e muitos horrores…
…Um pelotão de combate tinha 25 homens. Tinha 2 Cabos e 1 Furriel.
Depois, ainda se dividia em 4 equipas. Eu tinha a minha equipa. Quando
transportavam os camiões, as equipas tinham que picar o caminho (aquilo
não era estrada nem era nada…). Só depois é que passava o camião a que
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“TUA” HISTÓRIA VIVIDA
chamavam o rebenta minas que era uma Berlier sem portas, nem tejadilho,
nem nada e ia carregada de sacos de areia. Dos lados havia tipo de uma bala
e os que iam atrás, tinham os sacos no chão e, no centro, uma metralhado-
ra, chamada A Breda, onde ia sempre um 1º Cabo e um Soldado que era o
municiador que puxava as balas. …Foi aqui que fui duas vezes ao ar, nas
minas... Nestas minas, ficava-se desorientado, abalado… Quando se ia para
um daqueles lugares onde estivessem aqueles a quem os soldados chamavam
“turras”, iam sempre paraquedistas ou os Comandos para ajudarem; faziam
o reconhecimento e depois instalavam-se à volta para eles descerem. Quando
iam para o mato, iam mais confiantes… Só mais para o fim é que regressei à
zona de Inhambane, onde já era melhor (quase não se ouvia falar de guerra).
Ainda estive um mês destacado com o pelotão a que pertencia, num lugar
chamado Malvérnia que era a antiga Rodésia. Mas, o pior ainda estava para
vir: o pelotão a que pertencia foi destacado par a o Norte, já mais perto da
Beira. No Norte tivemos um grande ataque quando seguiamos por uma es-
trada. Vi morrer colegas e muitos africanos e aí é que fiquei mesmo abalado.
Nesta zona tive uma vida um bocado atribulada. Ao todo, fiz 34 meses de tro-
pa. …Quando regressei, em 1972, não conseguia falar sobre a guerra. Andei
a tratar-me em Mirandela e no Quartel Militar do Porto… Quando fui para
Moçambique, embarquei no navio Pátria que demorou 22 dias. Para cá já vim
de avião. Embarquei na Beira…
…Em 1973, emigrei para o Luxemburgo. Aí também ainda tive acompa-
nhamento médico… acho que nunca mais fui a mesma pessoa. Para ir para
o Luxemburgo, tive que pagar a quem conseguiu que eu fosse, mas já fui com
documentação. Fui trabalhar para uma linha de caminhos-de-ferro, chama-
da “Companhia do Seco”. Tinha que andar a reforçar as pontes antigas, de
ferro, mas o trabalho era penoso. Apanhava-se muito pó e não era um tra-
balho nada saudável; apesar de ter um chefe que gostava do meu trabalho,
acabei por desistir e ir trabalhar para o Aeroporto, na parte da aerogare, na
assistência para carregar, descarregar e limpar o avião…. Aí fui incentivado
a candidatar-me para a Delegação dos Trabalhadores (mais ou menos em
1980). Fiquei logo como Delegado à Segurança e depois como Secretário, de-
pois Vice e, finalmente, Presidente. Mas fui-me apercebendo de que as pessoas
de lá não gostavam muito dos Portugueses; igualavam-nos aos Marroquinos
e aos Argelinos; não éramos bem vistos. Eram contra nós pelo facto de ainda
termos as colónias. Ora, se nós tínhamos feito aquela guerra contrariados
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Maria Otilia Pereira Lage
e tínhamos sofrido na pele com todo aquele horror, nós achávamos que eles
assim estavam a bater à porta errada. Vinham comboios cheios de skinheads
(os da cabeça rapada), manifestar-se contra os portugueses. Teve que vir o
Duque falar à televisão …ele ainda tem uma costela aqui de Bragança… para
acalmar os ânimos. …É que estes jovens emigrantes que tinham feito a guerra
do Ultramar não tinham ainda família constituída e estavam lá sozinhos, bem
treinados na luta e, então, os hospitais enchiam-se naqueles dias das mani-
festações… partíamos-lhes as costelas com os cartazes que eles traziam; eu
estive envolvido nisto, pelo menos umas três vezes... Quando me aposentei,
regressei a Codeçais, aonde vivo com a minha família. Agora que estou re-
formado apenas me dedico a cultivar as minhas hortas… [Informante nº 30]
• 25 de Abril de 1974
…quando foi do 25 de Abril, uma vez, ao chegar a Salsas, o fator Pimentão
estava a dizer que havia uma revolução e o Jorge tinha lá um cartão a dizer
VIVA A LIBERDADE… Pusemos logo o cartão na frente da máquina e lá
fomos assim até ao Tua… Antes do 25 de abril, já havia o sindicato dos fer-
roviários, mas era quase só para os compadres e afilhados. Não funcionava
nada. Depois do 25 de Abril formou-se o sindicato dos maquinistas e as coisas
avançaram um bocadinho… já ganhávamos mais uns tostõezitos e tínhamos
mais direitos... Em 1991, em Mirandela, tirava quase 300 contos... Foi nessa
altura que fiz a minha casita na Lavandeira. Mas, quantas vezes comíamos em
andamento! Saíamos de Mirandela às 5 da tarde para chegar a Bragança por
volta das 8 ou 10h para comermos, mas quantas vezes estávamos a comer e a
neve passava de um lado para o outro! Era complicado... [informante nº 40]
***
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Maria Otilia Pereira Lage
Em síntese, ficou bem visível no caso do vale do Tua, que se à história local
interessa, sobretudo, a apreensão do “tempo dos lugares”, um tempo realmente
vivido pelas populações das e nas localidades, composto por uma amálgama
de experiências distintas, a história nacional e internacional “generalizante”
trabalha um tempo uniforme, o chamado “tempo do mundo” que “não é, nem
deve ser, a totalidade da história dos homens” (F.BRAUDEL: 1996, 8-18). 015
Daí, também, o interesse acrescido do presente capítulo em que se relevaram
ecos e impactos locais de acontecimentos históricos nacionais e internacionais
do séc XX que se fizeram sentir na região do vale do Tua, bem como se deu
ênfase aos modos como foram apreendidos e vividos coletivamente pelos seus
indivíduos, naturais e residentes.
015 LAGE, Maria Otilia Pereira – “O tempo dos lugares: Carrazeda de Ansiães e Torre de Moncorvo na I
República. “ Revista CEPHIS, n2, 2012, p.337-363.
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4.HISTÓRIA VIVIDA.
A arte de contar e fazer contar no Vale do Tua
“A Vida não é a que uma pessoa viveu, mas sim a que ela recorda e
como a recorda para contá-la. “
(Gabriel Garcia Marques)
016 Gabriel Garcia Marques, escritor colombiano, Prémio Nobel da Literatura em 1982.
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tecido, uma vez que tem de suportar-se em fontes e registos em que os tempos
idos se traduzem já transformados pelas recordações e memórias dos homens.
E podemos,a partir de agora, operacionalizar esses rastros do acontecido
ampliando com maior solidez e vivacidade o conhecimento socio-histórico
desta sub-região transmontana e da linha férrea do Tua.
As análises feitas ao material das entrevistas realizadas, exemplo dessas
fontes orais e rastros ou restos, permitem observar, como se viu, múltiplos
temas que por elas perpassam suscetíveis de serem traduzidos em palavras-
chave que representam os conteúdos essenciais das narrativas dos entrevista-
dos e os acontecimentos que mais os marcaram. Recuperam-se os conteúdos
mais significativos do conjunto das entrevistas: dados, informações e assuntos
recorrentemente abordados bem como o que neles perpassa, subliminarmente,
e o que se subentende nos discursos e memórias dos atores.
Identificam-se cinco vetores transversais que atravessam e organizam os
conteúdos – o vale e o rio, a linha férrea e o comboio, a envolvente natural e
a exploração termal e agro-industrial (Termas de S. Lourenço, Sociedade Cle-
mente Menéres no Romeu, CUF-Mirandela e Cachão).
Traduzem-se e interpretam-se os principais e mais expressivos resultados
do trabalho de campo que lhes subjaz, baseado em metodologias da história
oral, através da compilação, ordenação e transcrição dos excertos mais repre-
sentativos das narrativas entendidas como fontes orais essenciais à construção
da História Contemporânea das populações locais do vale do Tua.
Estabelece-se com os atores sociais uma relação simétrica entrevistador
-entrevistado e os seus depoimentos e testemunhos são tidos como os de au-
toridade no assunto, pois se parte do princípio que os dados e informações
não precisam de ser verificados nem referenciados às trajetórias dos próprios
indivíduos que os forneceram podendo ser cruzados entre si e com outros do-
cumentos.
Uma das contribuições da história oral foi a da ampliação da conceção de
fontes históricas e testemunhos verbais autorizados, inclusive de indivíduos e
populações anónimas, até na medida em que, como refere o historiador Paul
Thompson “ o gravador tem permitido que a fala da gente comum – sua habi-
lidade narrativa, por exemplo, - seja, pela primeira vez, seriamente compreen-
dida” (Thompson, 1992: 41).
Cada depoimento é tratado como uma versão sobre o acontecido e o vivido,
sem minimizar o facto de que “a ‘entrevista de memórias’ comporta possibi-
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Na Terra Fria, com invernos longos e frios e geadas regulares, são fre-
quentes os lameiros de regadio, o trigo e a batata, os carvalhos, sendo também
comum a criação de gado. Os montes e serras são um equilíbrio da sustenta-
bilidade, com ecossistemas agrários-sociais, com grande extensão de culturas
cerealíferas (trigo, centeio, cevada, e milho miúdo), e ainda algumas impor-
tantes espécies arbustivas produtoras de lenha e de frutos como a castanha, a
azeitona e a amêndoa.
Distingue-se ainda uma zona de transição, com características intermédias
entre a Terra Fria e a Quente. Os valores de precipitação os mais elevados
surgem a poente e vão decrescendo para nascente e para sul; este clima muito
particular permite não só um bom cultivo da vinha e oliveira mas também a
fruticultura.
Todas estas características fazem da paisagem um património único de Trás
-os-Montes a preservar e uma das suas grandes atrações, com a presença hu-
mana, apesar de atualmente cada vez mais rarefeita, devido ao envelhecimento
populacional e desertificação crescente, ainda a fazer-se sentir, nas práticas
agrícolas e hortofrutícolas em regra de economia familiar que lhe conferem
um carácter único e distinto, como é o caso da vinha e dos pomares de amen-
doeiras, oliveiras, laranjeiras e outras árvores de fruto.
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Vale e rio do Tua encaixados entre serras. Aldeias de Castanheiro e Tralhariz, apeadeiros
da linha do Tua.
Foto aérea de Henri Richard
Nesta invocação poética do rio Tua capta-se a ambiência singular deste lu-
gar que sempre deixou nas pessoas que com ele conviveram ou convivem, um
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nosso casamento, mas veio tocar o Sr. Alfredo Pereira, da Vila e o Zé António
das Areias, o irmão do Luís, veio ajudar…”.
[Casou-se no fim da 2ª Guerra Mundial. Lembra-se de tudo o que se passa-
va nessa altura porque o marido lia sempre o jornal e, enquanto ela fazia meias
para os filhos, ele transmitia-lhe o que lia sobre a guerra.]
(…) Eu sabia a guerra todinha… e, na altura, houve para aqui uma grande
fome. Vinham os do Governo tirar o azeite à gente… olhe que chegávamos a
esconder os bidões debaixo da palha da cria; as mulheres enchiam as bexigas
dos porcos de azeite e punham-nas à cinta para fingirem que estavam grávi-
das. Vinham homens, de noite, com os odres, enchiam-nos e iam-nos passar ao
Canal, por baixo da ponte da Brunheda, para irem para Carlão. Compravam
azeite e minério… os de Carlão sempre foram muito negociantes... lembro-me
bem da “fome de 41” quando o pão chegou a custar 50$00 o alqueire. Iam
buscá-lo às costas além do rio e traziam-no até ao barco, tudo feito em segre-
do. Eram Os Pimpões de Candedo que vendiam o pão em segredo. …Nessa
altura, eu dei muito azeite e “abadas” de figos a gente das Areias e de Zedes
porque havia muita pobreza...
(…) Enquanto fui solteira, nunca viajei para o Porto. Ia à Régua, mas a
maior parte das vezes, ia a Mirandela ao médico e a tudo o que era preciso…
quando íamos à festa, iam grupos de mocidade…. Depois de casada fui algu-
mas vezes ao Porto “para gozar e depois fui lá muita vez porque tive lá o meu
marido doente... Apanhava o comboio na estação da Brunheda para onde ia a
pé: saía ainda de noite, de lampião na mão, e chegava já de noite…
[Antes de casar, andou a trabalhar na extração do minério de volfrâmio].
(…) Nessa altura, andava tudo ao minério. Foi enquanto a guerra durou.
O minério ficou mais caro porque os Americanos davam mais dinheiro do que
os Alemães e quanto mais se picavam uns aos outros, mais o minério aumen-
tava. O kilo era a 50$00 e a 55$00. O nosso tinha volfrâmio e estanho. Aquele
que tinha só volfrâmio era mais caro: a 700$00 o kilo. Trabalhei durante 4
anos no minério, três como efetiva e um ano sem o ser. Trabalhava perto da
aldeia, na cota da Ribeira, junto à Quinta do Tralhão e à Quinta dos Veigas.
Também havia uma mina nas Areias, no terreno que era do Sr. José Joaquim
e outra na Pranheira, mas nunca fui para lá trabalhar… [Segundo a sua opi-
nião] … os ricos iam fazer concessão de minério aos pobres e a toda a gente.
O Sampaio da Carrazeda também foi à Ribeira e queria fazer uma concessão,
mas o meu pai impediu-o e disse-lhe que tinha o terreno registado em seu
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nome. Mas, já nas Areias, o Barbosa fez uma concessão no terreno do José
Joaquim e o dono ficou sem ele…
(…) O meu trabalho no minério?...consistia em britar as pedras com um
martelo; saíam placas misturadas com pedra, britava-se para tirar a pedra e
depois ia para a lavandaria e lavava-se tudo. Não havia máquinas. Era tudo
feito manualmente…. Sim, eu ainda apanhei muitas “chinas” (pedras muito
mineralizadas)… O minério estava nas rochas… Nós não fizemos poços, mas
o Fonseca de Paradela tinha um sobreiral com muito minério e fazia-os. Ti-
rou de lá muita quantidade. Depois vendia-se a negociantes de Carlão. Os de
Carlão diziam às raparigas: - apanhai também a “pirita” (pirite)… era de cor
preta… que nós pagamos a 20$00 o kilo. E nós assim fazíamos…. Chama-
vam-lhe a “candonguice”… Também se apanhava o cornelho (de cor preta)
pois vendia-se bem e diziam que era para fazer penicilina. Era segregado pela
espiga do centeio. Quando chovia, o pão ganhava cornelho.
…nem eu nem o meu marido nunca emigramos… Não podíamos pois ti-
nhamos muito trabalho com os nossos campos que cultivávamos. Mas um dos
nossos filhos emigrou para França e trabalhou lá durante 10 anos, na região
do Loire. …Uma vez veio cá e levou-me para passar lá algum tempo. Até gos-
tei da França, mas não para lá ficar. Tinha cá a minha vida e muito que fazer.
Vim de boleia com uns vizinhos. Fui e vim de carro. Nunca andei de avião….
[O genro explica que o marido da D. J., José Augusto Araújo, proprietário
agrícola, tocava música, era leitor assíduo do jornal diário, gostava de ler e lia
muito, escrevia bem e foi durante vários anos o Regedor da aldeia e faleceu no
exercício do cargo, no dia 23 de abril de 1974. Tinha 49 anos. Ela não gostava
que ele tivesse este cargo, sobretudo devido aos pastores que eram muito confli-
tuosos por causa dos locais de pasto.] … “engaleavam-se” uns com os outros…
(…) O meu marido faleceu 2 dias antes do 25 de abril, ele que teria gosta-
do tanto de assistir à queda da ditadura! [Era um homem de esquerda que não
gostava de Salazar, comenta a filha]. …“O meu marido não era da oposição,
mas quando Humberto Delgado morreu, ele até botou luto; andava com uma
gravata preta”. Quando havia eleições vinham a esta aldeia “descarregar
o voto” os das seguintes aldeias: Codeçais, Pereiros, Felgueira, Brunheda
e Sentrilha. Entre os de Codeçais havia muitos ferroviários e esses eram to-
dos contrários, eram da oposição. …Uma ocasião, um rapaz de lá, quando
descarregou o voto, deu vivas à liberdade e disse bem alto que daria a forca
pela liberdade e prenderam-no, mas não sei em que eleições foi... A urna que
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continha os votos era uma talha das do azeite e toda a gente votava, os que
estavam em casa doentes, os que já tinham morrido, era uma farsa.
(…) Não… nunca tirei a carta, nem mesmo a de trator. Para o serviço
da lavoura tinha trator e tinha um cavalo e um burro. Quando precisava de
cavar e de lavrar as terras, “metia” 3 e 4 burras para esse serviço. Também
contratava homens para trabalharem com o atomizador quando era preciso
sulfatar… o meu atomizador foi o primeiro que cá houve, comprei-o ao Sr.
Carvalho do Grémio (Carrazeda)… Enquanto o meu marido foi vivo era ele
quem se ocupava com a parte financeira; depois de ele morrer, passei eu a
fazer as contas e a tratar de tudo….
Vendia aquilo que produzia. O azeite vendia-o muitas vezes ainda no la-
gar onde o ia fazer… o lagar do Eng. Lima… [no Pombal, aldeia vizinha
do Pinhal]. Também vendia muito aos da Frieira, aos de Carrazeda, aos das
Areias, aos de Zedes e a outros que mo compravam... Produzia vinho de dois
tipos: o de consumo e o tratado. Ainda no tempo do meu pai, ele enchia os
tonéis com o vinho de consumo e vendia o “vinho tratado” aos Ingleses (os
Smiths) que pagavam muito bem. Depois, já no meu tempo, eu vendia o vinho
tratado para os Ingleses, para os Agrelos de S. Mamede… era o filho do Gar-
cia que o “carrava”…, para a Casa do Douro… “fez muita, muita falta ter
acabado”… e para a Cockburns (Quinta das Carvalhas), que também era um
grande comprador e, mais tarde para a atual Syminghton… também cheguei
a vender vinho para o Pinhão… o vinho de consumo vendia-o em tonéis para
a Carrazeda para o Sr Alfredo Pereira e para o Sr. Carlos Malhado…
…Depois da morte do meu marido ia muito mais vezes à Carrazeda: à
feira, ao Grémio da Lavoura e a outros sítios tratar da vida…. Primeiro ia a
cavalo, depois começou a haver uma carrinha e eu ia nela… também ia de
comboio à Régua receber o dinheiro do vinho…
…não tenho fotografia do meu casamento… e quem as tinha?... nem do
batizado dos filhos, naquele tempo não havia… era preciso ir à Carrazeda…
por acaso tínhamos cá um rapaz muito habilidoso que lá comprou uma ma-
quinita e tirava algumas por aí… até tirava muitas à canalha… era o Santei-
ro, o que fazia as esculturas em madeira…”
[o genro, que assistiu à entrevista, mostrou algumas peças, religiosas e pro-
fanas, desse artista popular. A entrevistada cantou então uma canção que o
marido fez, e que já quase moribundo cantou aos filhos, em jeito de testamento
de valores]:
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…1941 foi o Ano da Fome, em que tudo era racionado. Faziam-se trocas:
por exemplo, trocava-se um litro de azeite por um quilo de açúcar. Lembro-me
de uma senhora da Ribeirinha da linha do Tua, que tinha muito açúcar e que
fazia este tipo de troca.
Quando não havia pão, faziam-se talassas: faziam-se na sertã, com farinha
muito rarinha e açúcar por cima. Tomava-se com elas o café, todos os dias.
…Um pão centeio chegou a custar 50 escudos. Começou a não haver mer-
cearia nos “sótos”…
…Aquilo que se podia arranjar era através de senhas que se iam buscar à
Câmara de Carrazeda. Era tudo racionado. E havia muitas famílias com 6, 8
e 12 filhos...Só com um filho, eram muito poucos...
Quando andava na escola primária, as pessoas passavam mal: havia mui-
tas necessidades…
…uns iam pescar peixes no rio… o meu pai caçava… ali perto do rio usava
um “enchoeiro” (armadilha) para apanhar perdizes. Servia-se de uns pauzi-
nhos (“aboízes”), onde espetava uma haste de um sombreiro já velho, com um
feijão pequeno para atrair a perdiz…
…Por aqui nunca vi lobos, mas havia-os: iam aos currais e matavam muita
ovelha. As raposas matavam muitas galinhas….
…Ainda me lembro bem da forma como se atravessava o rio, na Brunheda,
antes de haver a ponte: era a pé, por cima das poldras, ou de barco… depois
ainda houve o funicular que funcionou alguns anos entre a estação de Santa
Luzia e a aldeia do Amieiro do lado de lá do rio… [Informante nº 3]
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“Agreste a travessia dos vales ao longo do Tua (…) São paisagens únicas, des-
lumbrantes, algumas delas apenas acessíveis ao comboio.” (Francisco Manuel
Viegas)017
Ao longo do rio Tua, um dos poucos rios selvagens do país, corre ainda hoje,
embora desativada, a linha do Tua, obra centenária da engenharia portuguesa e
uma das mais espetaculares linhas de comboio do país e da Europa, o primeiro
e único troço de caminho-de-ferro em Trás-os-Montes que ficará a breve tre-
cho parcialmente submerso pela albufeira da barragem do Tua, recentemente
construída.018
…A linha do Tua é fabulosa mas mete um bocado de respeito… uma vez fiz
a viagem de comboio até Mirandela… fui só mesmo para ver… tive medo…
era de respeito… [Informante 7]
A paisagem da linha do Tua, em particular no baixo Tua é, em geral, ca-
racterizada por traços e fatores agrestes e inóspitos, de carácter seco, desu-
manizado, onde o sol e o calor são intensos, durante os estios, perdurando os
nevoeiros no inverno, que cedem lugar a fortes nevadas nas terras altas e pla-
nálticas a partir de Rossas até Bragança. De grande riqueza natural, o cenário
é de contrastes entre o rio, as rochas e as encostas de cores e texturas variadas.
“…uma vez, em Bragança, às seis e tal da manhã havia muita gente na
gare e sabem porquê?... é que tinha caído uma grande nevada e, por cima,
caíu uma grande geada. Não se podia circular de carro: se isso acontecesse
hoje na A4 ou no IP4, ou essa porcaria toda, eu queria ver como era... eles
haviam de ter de ficar encerrados em Bragança... eu sou contra o fecho da
linha, sou contra a barragem do Tua, sou contra isso tudo... as Nações foram
desenvolvidas pelos comboios, não foi pela camionagem!... Eu viajava sempre
de comboio e ainda viajo! “ [Informante 40 -2ª entrevista]
017 Autor do livro - Comboios Portugueses: um guia sentimental. Com Fotografias de Maurício. Abreu. Lisboa:
Circulo de Leitores, 1988.
018 No projeto da EDP em fase final de construção em 2016, a albufeira criada pela barragem ficará em princípio
a uma cota de 195 metros de altura o que submergirá os últimos 15km da via férrea do lado da foz do Tua.
A EDP será a empresa a explorar por 75 anos este investimento hidroeléctrico com uma capacidade de 324
megawatts de potência proveniente da energia criada pela barragem, uma parcela de energia elétrica pouco
relevante no conjunto da produção energética nacional em boa medida concentrada no Vale do rio Douro e
seus afluentes, como o Tua.
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“TUA” HISTÓRIA VIVIDA
Disponível em http://ml.ci.uc.pt/mhonarchive/histport/msg02106.html
“Nasci em Foz-Tua. Aos três anos de idade, fui para Mirandela e morava
por cima da estação do caminho-de-ferro porque o meu pai era maquinista na
via estreita da linha do Tua, entre Bragança e Tua. Fiz a 1ª classe em Miran-
dela, mas devido à morte prematura do meu pai, regressei a Foz-Tua, onde
frequentei a escola até fazer a 4ªclasse. A morte do meu pai deveu-se a uma
tuberculose óssea contraída em serviço, num inverno de muita neve, quando
019 Base de dados do IPPAR.
102
Maria Otilia Pereira Lage
conduzia o comboio e, no Alto de Roças, teve que sair para desimpedir a via e
varrer a neve dos carris. Molhou-se todo, não mudou de roupa e com o calor
da máquina, constipou-se devido à grande diferença de temperatura. Tinha
trabalhado na linha do Tua durante 18 anos, faleceu aos 33, tendo deixado o
filho órfão de 3 anos e a viúva com uma pensão de 174 escudos / mês. O meu
avô também tinha trabalhado nos caminhos-de-ferro… era assentador na linha
de Minho e Douro.
Fiz a tropa em Lisboa (6 meses como recruta no Entroncamento). Na tro-
pa, fui para o Batalhão de caminhos-de-ferro. Aí, tirei a especialidade de
condutor de comboios.
Com saudades da minha terra natal, concorri e fui colocado na estação de
Roças, em 1962, onde permaneci 6 meses. Concorri para Foz-Tua, onde tra-
balhei como Servente. Na altura, a estação tinha bastante movimento, eram
mais ou menos 50 pessoas a laborar no local.
Na ânsia de subir na carreira, fui para Alfarelos, onde fiz o curso de agu-
lheiro. Fui promovido a agulheiro e fui de novo para Foz-Tua… Entretanto,
concorri para Capataz de Manobras e fui para a estação de Vila Nova de
Gaia, onde estive durante 2 anos… Concorri, então, para Encarregado de
Apeadeiro e fui colocado em Chanceleiros, estação na linha do Douro, a se-
guir ao Pinhão. Depois, fui para a Régua, de novo para Foz-Tua e, de segui-
da, para Santa Luzia… Antes disso, abandonei por algum tempo os caminhos
de ferro devido a uma transferência que considerei injusta e à não atribuição
da casa a que tinha direito e fui para Foz-Tua trabalhar na empresa Cockbur-
ns. Foi então que aconteceu a revolução de 25 de Abril.
Mas a paixão pelos caminhos-de-ferro era mais forte do que eu e concorri
novamente, tendo sido colocado em Santa Luzia. Aqui, havia bastante movi-
mento de passageiros, aos fins-de-semana, para o Cachão. Mas, durante a
semana, o movimento era pouco com gente do Amieiro, de Pombal, do Fran-
zilhal, etc… As pessoas do Amieiro atravessavam o rio Tua, de barco,para vi-
rem apanhar o comboio. Quando o rio tinha demasiada corrente, serviam-se
do funicular. A ponte caiu numa altura em que o rio teve uma grande cheia. Os
passageiros de Pombal e do Franzilhal vinham de burro. Os de Pombal iam
pelo Barrabás que só tinha caminho para burros. Nessa altura, a estação de
S. Lourenço estava fechada. Durante o tempo em que estive em Santa Luzia,
tinha uma motorizada que ficava em S. Lourenço, enquanto percorria a pé o
caminho até ao local de trabalho, pois não havia estrada. É curioso que a
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“TUA” HISTÓRIA VIVIDA
estação de Santa Luzia passou a ter este nome depois de ter sido inicialmente
chamada de estação do Amieiro (isso já não é do meu tempo…). Mas a expli-
cação da mudança de nome deve-se ao facto de haver, na linha do oeste, perto
de Alfarelos, uma estação com o nome de Amieira. Isto confundia os funcio-
nários e havia bastantes vezes troca de mercadorias, que depois tinham que ir
para leilão por não serem reclamadas por quem de direito.
Como já referi, o movimento em Santa Luzia permitia-me ter tempo para
ler os regulamentos dos comboios, que eram muitos.
Saí de Santa Luzia a fim de ir frequentar, no Entroncamento, o curso de Fa-
tor. Fui depois colocado em Ferradosa, a chefiar a estação. Daí, voltei para
Foz-Tua, pois o apelo da minha terra era sempre muito forte. Aqui, trabalhei
como Fator: fazia circulação de comboios, fazia a bilheteira e fazia despa-
chos de mercadorias, tais como adubos e cereais (de referir que esta linha
transportou muitas barricas de ouro, na altura da 2º Guerra).
O tráfego da linha do Tua só reduziu depois de terem cortado Mirandela e
Bragança. De uma cidade à outra demoravam-se 4horas. Do Tua a Bragan-
ça, eram 6 horas. Foi necessário reduzir a velocidade de 60Km para 30Km
devido ao facto de a linha ser perigosa. Mas, depois de passar a estação de
Mirandela já não havia necessidade de reduzir a velocidade.
Depois de ter trabalhado em Foz-Tua, pedi a reforma. Trabalhei sempre
muito, a uma média de 12h por dia. Havia falta de pessoal para trabalhar…
Mas também ganhava… além disso tinha direito ao modelo X44 que permitia
viagens gratuitas aos funcionários. Quando havia casa disponível, também
podia viver nela. No caso de não haver, arrendava casa, mas pagava sempre
uma renda pequena…”[Informante nº 3]
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Maria Otilia Pereira Lage
020 Transcrição parcial de entrevista de grupo realizada em Mirandela, a 25 de Abril de 2012, no fim do
almoço de confraternização dos ferroviários da linha do Tua, com 5 ex-trabalhadores da CP, desde os anos
1950 a 2009, e atualmente reformados de diversas carreiras: R.Q. natural da aldeia da Lousa e residente
em Mirandela; M.J. da aldeia de Carrapatosa (Linhares de Ansiães), sogro de R.Q.; F.A. da mesma aldeia,
residente em Lavandeira(Carrazeda de Ansiães); J.R., natural da aldeia de Coleja, freguesia de Seixo de
Ansiães; e P. de Mirandela.
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“TUA” HISTÓRIA VIVIDA
para baixo, só havia rede entre o Castanheiro e Santa Luzia. Daqui até ao
Tua, voltava a não haver rede. Se era durante a noite, nas máquinas a vapor
tinham uma luz produzida a partir do óleo de purgueira, que alimentava uma
candeia, a qual não alumiava praticamente nada.
Os sítios mais difíceis da linha no tempo da máquina a vapor eram de Fo-
z-Tua até Santa Luzia porque havia subidas muito íngremes. Depois fazia-se
bem. Mas, entretanto surgia a subida de Frechas e… depois dos Carvalhais
até Roças, era sempre a subir, durante80Km…”
[E concretiza, sobre a anunciada perigosidade da linha entre Mirandela e
Bragança em que é quase unânime a afirmação de que ela não era perigosa]
“…como maquinista e como praticante das Allans, com motor AEC, du-
rante todo o ano de 1973, a nossa marcha era sempre na casa dos 50 / 60 Km
/ h, isto com carris de 8 metros. Com as renovações, vieram os carris de12 e
de 18 metros e, então, em vez de irmos a essa velocidade, passámos a ir a 30
/ 40Km”. E continua: “ uma vez tive uma conversa com o Inspetor acerca dos
péssimos horários dos comboios de que os utentes se queixavam e ele respon-
deu-me: “nós temos ordens para fazer os piores horários, que é justamente
para acabar com a linha”… A linha não era perigosa, mas os responsáveis
acharam que sim… O engenheiro V. C. disse que não se podia responsabilizar
pela segurança da linha, mas “o problema é que ele não percebia nada destes
assuntos”… o que é certo é que apesar dos maus horários e de outras tenta-
tivas de fechar a linha, as automotoras entre Bragança e Foz-Tua, andavam
repletas.”
[M. de J.] “…Ser chefe de lanço era trabalhar entre Bragança e Tua. O
pessoal da via, aqueles que trabalhavam na manutenção da linha, não lhe tor-
nava a vida fácil: tinha que os orientar e tinha que fazer a escrita dessa gente
toda. Ainda tinha a seu cargo os guardas das passagens de nível… eram tra-
balhadores muito difíceis de gerir. Será porque eram quase sempre mulheres?
Trabalhavam sempre duas: uma guarda e uma substituta. Normalmente gera-
vam-se conflitos entre elas. Muitas delas eram familiares de ferroviários…”
Também recordam muitas das boas histórias que viveram no Comboio do
Tua. Por exemplo, a dos cozidos que faziam nas panelas a vapor. Diz R. Q.:
“ainda lá tenho a minha: nem a dou, nem a vendo, nem a empresto …Na
casa da máquina, onde a gente guiava o comboio, havia um tubo próprio que
dava para ligar à panela, o que a tornava uma autêntica panela de pressão
onde se fazia um cozido que era uma autêntica sopa de pedra. Também cozía-
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Maria Otilia Pereira Lage
mos lá o feijão mesmo sem o deitar de molho. Nessa altura, comíamos todos
do mesmo prato, que era um grande prato de barro vermelho. Muitas vezes só
tínhamos dez minutos para comer, mas aquilo sabia-nos pela vida!”.
Apesar de tudo, todos estes trabalhadores consideram que a vida de um fer-
roviário era muito melhor do que, por exemplo, a de um agricultor: “tínhamos
outra apresentação, usávamos uma farda decente e tínhamos o vencimento
certinho ao fim do mês”. [Entrevista colectiva nº 11, Mirandela, Encontro de
ferroviários da linha do Tua no dia 25 Abril, 2012]
Naturalmente, os ferroviários são os que melhor conhecem a linha do Tua,
sobretudo os que nela trabalharam e diariamente vivenciaram, durante longas
trajetórias biográficas e carreiras profissionais diversificadas. Daí que conti-
nuemos a recorrer às suas vozes e experiências que decorrem agora das narra-
tivas orais de um outro coletivo de ferroviários que descrevem com minúcia
alguns episódios e factos concretos próprios do movimento, evolução e declí-
nio da linha do Tua, situando-os na história da região.
[ADJ, operário da CP desde 1967, nas Oficinas Gerais da Linha em Miran-
dela] …Nessa altura havia as automotoras Allans...máquinas holandesas…
Mirandela tinha três distribuídas por três operários e António Diamantino
tinha uma a seu cargo. O Carvalho tinha outra e o Pinto tinha a terceira…
[AJR, elecricista e JEG, chefe de eletricistas das O.G.:] …as Oficinas em
Mirandela eram o local onde arranjávamos todo o material da linha do Tua, e
olhe que não era pouco… era o material motorizado, o do vapor e o circulante
todo; mas, o grande centro de reparações era em Campanhã. Apesar de ser a
altura do vapor, a iluminação das carruagens era elétrica. Era feita por um
gerador. Tinha uma poli no rodado e uma correia que fazia girar um dínamo.
Esse dínamo, que era montado no chassis, girava e ia para um enrolador de
tensão, onde se regulava a corrente para carregar as baterias. Funcionava
como o alternador de um carro. A locomotiva era iluminada a carboneto e
Pur“ As máquinas mais fiáveis em manutenção e em despesa eram as Diesel.
Claro que quando se passou para o elétrico ainda foi melhor!... O local onde
funcionavam as Oficinas era composto por duas secções: a secção do moto-
rizado e a secção do vapor; havia o cais descoberto e o cais coberto; havia a
secção do motorizado (das automotoras Allan); havia uma secção denomina-
da “As forjas”, onde faziam ou reconstruíam as molas para as carruagens;
mais para o lado da CUF, havia a secção do vapor. Seguia-se a secção dos
tornos e depois a secção do material rebocado; em frente, estava a secção do
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normalmente… mas a linha faz falta não só para nós como para o público
em geral. Havia muito pessoal que trabalhava lá: via, movimento, oficinas…
A linha fechou, não foi por desleixo, mas porque a quiseram fechar. Ainda
fizeram uma renovação de Macedo a Sendas, mas depois fecharam mesmo a
linha de Bragança a Mirandela… [R.R.Q. conta também a sua versão do que
se terá passado com o desvio das locomotivas na estação de Bragança]… As
locomotivas foram lá buscá-las, de noite, e trouxeram-nas em dois camiões
TIR para Mirandela. Dizem que cortaram as comunicações todas para virem
em silêncio, a fim de ninguém saber. Não havia comunicações com ninguém
para não telefonarem para este ou para aquele. Em relação à que estava
retida em Macedo, foi a mesma coisa. Foi lá um inspetor buscá-la. A GNR
guardou todas as passagens de nível e, no dia seguinte de manhã, já estava
em Mirandela. Não se sabia de nada, nem mesmo o chefe da estação… Não
houve ali reação nenhuma das pessoas... Eu só soube nesse dia de manhã. Eu
entrei ao serviço às 6:30 h, de manobras, o chefe de estação que estava lá ao
serviço, telefonou-me pouco antes a dizer: «Ó Queijo, a que horas entras ao
serviço?». «Às seis e meia da manhã» -respondi. «Então, vê se estás cá a ho-
ras, porque se passa isto assim-assim». Eu até fiquei um bocado surpreendido.
Ora eu que estava a acabar de me preparar, arranquei para a estação.E qual
não foi o meu espanto, quando chego à estação e me dirijo ao inspetor que
lá estava, que eu conhecia, vi dois sujeitos da polícia judiciária logo atrás de
mim. Como eu conhecia o inspetor, cumprimentei-o e ele perguntou-me se eu
estava de serviço. Respondi que sim e ele mandou-me ir buscar uma máquina
para descarregar as que estavam nos dois camiões TIR, as de Bragança, mas
a de Macedo que também já lá estava (terá sido carregada pelas 4 a 5 da
manhã). Dizem que foi o próprio inspetor que a foi lá buscar. Depois, andei
ali toda a manhã. Descarregaram-se as máquinas, arrumei tudo no depósito,
arrumou-se tudo na oficina e eles lá seguiram a sua vida. E, a partir daí, não
soube mais nada…
[Sobre os descarrilamentos verificados na linha num curto período dos
anos 1970] …numa semana saímos para um descarrilamento e só regressá-
mos, salvo erro, na semana a seguir. Começámos lá para cima, nos Cortiços,
no Quadraçal, ou lá onde é que foi; depois houve outro, aquele em que antes
das Fragas Más, no Castanheiro, a máquina ficou a cair para o rio. Isto foi em
78. Naquele tempo havia descarrilamentos por causa dos temporais, devido
às pedras que caíam e por falta de manutenção das trincheiras…
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… isto é, dantes não se podia exigir nada e depois já se podia pedir e… pe-
dindo muito, conseguia-se!”. A comunidade (família) ferroviária era bastante
unida.
[Sobre as desvantagens da via estreita para o transporte de mercadorias de
e para o Romeu / Sociedade Clemente Menéres, Lda. e para o Complexo Agro
-Industrial do Cachão, a partir de 1964, explicam BSC, ajudante de condutor
e de maquinista em Bragança e Macedo de Cavaleiros e LQFT, supervisor na
linha do Tua de Mirandela ao Cachão]
…Todas as cargas de cortiça, naquele tempo, saíam do Romeu em com-
boios de mercadorias e eram grandes cargas; da fábrica do Cachão eram
escoados e despachados muitos produtos daquela estação para Lisboa e para
o Porto e outros locais. Um movimento impressionante que, a pouco e pouco,
se foi degradando: ou porque as estações não se iam abrindo, ou por causa
dos camiões, ou por falta da aposta por parte das entidades que pudessem ter
apostado mais no caminho-de-ferro. E vinham muitos passageiros do Tua até
estas estações. Tudo o que era carregado desde Bragança, que havia com-
boios de mercadoria com fartura, tudo era passado à mão no Tua (quer da via
larga para a via estreita, quer da via estreita para a via larga). Na altura, não
havia empilhadores, era tudo passado às costas dos trabalhadores do Tua,
onde havia o cais de transbordo e que dia e noite faziam o transbordo de todo
o material, até altas horas. E eram assim os nossos trabalhos…
[Estação de Mirandela e comunidade local envolvente] …Vivi alguns anos
na estação de Mirandela. Os meus filhos nasceram e criaram-se lá. Um já
tem 25 anos e outro 30 e foram nascidos e criados ali. Naquele tempo, não
era só o emprego que nós tínhamos na CP, pois mais do que um emprego, era
uma família que nós tínhamos. Se nos faltasse alguma coisa, íamos a fulano a
buscar e retribuíamos, quando fosse necessário. E mais que um emprego, era
como que uma família que ali tínhamos. Os garotos brincavam ali e andavam
pelos comboios sem risco nenhum. Os manobradores tinham sempre aquele
cuidado e reparavam se havia qualquer garoto por ali a brincar. E, no fundo,
o que ali tínhamos era como que uma família. O que era muito interessante.
Havia a estação e algumas casas em volta. A própria estação tinha habita-
ções de ferroviários com uma outra parte para dormitórios de maquinistas e
pessoal circulante e outra parte para residência do pessoal da estação. Havia
casas junto da estação para habitação de funcionários que viviam ali. Havia
o cafezito da Tia Glória, onde era obrigatório entrar e tomar o café… A Tia
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dutor de Dresina. Às vezes, íamos destacados por uma semana e essa semana
passava a anos. A empresa arranjava-nos as condições mínimas para ali po-
der estar: arranjava uma casita para ali poder estar. Ia a mulher e levava-se
o indispensável para ali poder estar. E, no fim-de-semana, vinha-se à aldeia e
segunda-feira, de manhã, regressávamos para retomarmos o serviço.
[a solidariedade e a perfeita integração na comunidade, do pessoal ferro-
viário, é salientada por B C, outro ferroviário de Mirandela] …havia muitas
situações entre o pessoal circulante, porque entre o pessoal da via estavam
mais familiarizados. Quando éramos destacados, como a mulher ficava em
casa, às vezes cozíamos umas batatas e se precisávamos de uma cebola íamos
ao pessoal que ali vivia e dele nos socorríamos. Vivíamos as situações dramá-
ticas dos nossos colegas. Havia muita solidariedade entre todos. Muitas vezes
o pessoal circulante não trazia nada de comer e aquilo que inicialmente era
para quatro chegava para seis… Estávamos perfeitamente integrados na co-
munidade local de Mirandela. Não éramos de modo nenhum uma comunidade
à parte... Os próprios habitantes eram solidários com as nossas necessidades.
Íamos tomar café à D. Glória ou ao café Cabora Bassa e a outro que havia
por ali. Aquelas hortinhas, em frente à estação, era tudo fabricado. E havia
ali sempre qualquer coisa, quando se necessitava… [L. Q. explicou ainda a
funcionalidade das pequenas hortas de que dispunham] …Essas hortas funcio-
navam assim: aqueles que estavam ali destacados e que vinham alguns dias
até ali não iam trazer coisas. E aquilo era para a comunidade dos ferroviá-
rios. Quem delas precisasse, fosse de quem fosse, o ferroviário podia ir buscar
e não havia problema nenhum… [Informantes nºs 24 a 29, entrevista nº 18, 2ª
entrevista de grupo realizada no encontro de Ferroviários da linha do Tua, no
Azibo, em 25 de Abril de 2014]
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Estas águas tinham tal fama curativa, que o próprio diretor das águas de
Chaves, afirmava que as de S. Lourenço eram melhores.
Vinha muita gente de Bragança, do Porto e até de Espanha. Também vi-
nham de todas as aldeias mais ou menos próximas, sendo que os habitantes
do Amieiro vinham a pé pela linha. A época balnear ia desde Junho até aos
Santos (início de Novembro). As pessoas do Pombal só iam no fim das colhei-
tas para aproveitarem o facto de já haver menos afluência de gente.
No entanto, não havia médico. Só este ano de 2011 é que estas termas co-
meçaram a ser exploradas de maneira diferente e passaram a ter um médico
para ver as pessoas antes destas iniciaram qualquer tratamento. No entanto,
o tanque primitivo continua disponível para aqueles que o querem utilizar.
No tempo que referíamos anteriormente, em que as pessoas que lá se ins-
talavam tinham que cozinhar, havia “chicheiros” que vinham vender a carne,
havia peixes do rio e todo o outro peixe que vinha no comboio. Também havia
“um comércio” para os produtos de mercearia. Também se vendia louça que
dizia “Recordação de S. Lourenço”.
No meu tempo não havia muita gente do Pombal a trabalhar na estação
de S. Lourenço. No entanto, um homem do Pombal, de nome Manuel Pinto,
esteve muitos anos a trabalhar na estação, mas a gente que lá trabalhava vi-
nha mais do Amieiro. Daqui também houve um maquinista que já morreu…”
[Informante nº 3]
A forte vivência destas termas pelas populações locais é visível nas memó-
rias muito vivas desta nonagenária, proprietária agrícola do Pinhal do Norte,
aldeia próxima das Caldas de S. Lourenço, onde começou a ir desde criança
em companhia dos pais.
(…) Iamos sempre no fim da vindima… era quando ia quase toda a gente
de por aqui perto… Juntava-me lá com as minhas primas das Areias, com
as filhas do Sr. Cândido, ferreiro, também das Areias, íamos aos bailes que
lá se organizavam e pernoitávamos lá, dormindo no chão. Na casa do Ma-
lheiro havia sempre bailarico. Tomávamos banho no tanque e como éramos
só raparigas e não tínhamos fato de banho, tomávamos em cuecas apenas…
Instalávamo-nos no mesmo quartel, a casa da curva, que agora está a cair…
também íamos para cima para os da Barbosa, para os do Sr. Pinto ou para
o da Acácia... Costumávamos almoçar lá com a família e comíamos o que
levávamos de casa: chouriços, salpicões, um frango ou um coelho, aquilo que
tínhamos…. Naquela altura, para ir para o S. Lourenço, ainda não havia o
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caminho que há agora. Ia-se pelo alto do monte… Nessa altura o S. Lourenço
era muito movimentado, mas não havia lá onde comprar nada… O comboio
trazia gente da Régua, do Porto, de Soutelo, de Nagozelo, etc. e havia mulhe-
res do Pombal que ganhavam dinheiro a carregar as coisas que as pessoas
precisavam de trazer para as termas. Passavam lá 10 ou 15 dias. Tomavam
banho, os homens jogavam as cartas, as mulheres faziam a meia, faziam ren-
da. Conversavam uns com os outros. À noite havia os bailes e eu até tive um
tio enfermeiro que arranjou lá casamento. Ela era de Soutelo, da família dos
Soverais, uma gente muito rica. Casaram e foram para Angola…. [Informante
nº39]
As Caldas de S. Lourenço, a cujas propriedades medicinais e sanitárias as
populações locais desde cedo e de há muito se habituaram, serviram ainda ao
longo dos anos outros interesses e necessidades quotidianas em especial dos
que viviam nas aldeias ribeirinhas e estações da linha do Tua, e que as adota-
ram quase como parte da sua identidade cultural:
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dupla entrada, o método das partidas dobradas… já era aquilo que seria um
TOC (Técnico Oficial de Contas) dos nossos tempos. Ele criou leis laborais
na fábrica de rolhas em Mirandela, tais como as que tinham a ver com o
despedimento dos trabalhadores: se estes quisessem abandonar o trabalho
tinham que avisar com 15 dias de antecedência, mas o mesmo era válido para
o patrão se quisesse despedir o trabalhador…
Outro aspeto: Clemente Menéres nunca teve sócios a não ser os primeiros,
onde até houve uma situação desagradável; a firma era Pais & Menéres. Mas,
a partir daí, as sociedades foram sempre com os filhos. Inicialmente ele era o
único dono do Romeu, nunca o misturou com as outras empresas…
…Real Companhia Vinícola: inicialmente, a fábrica era Menéres & Com-
panhia e mais tarde, quando decresceu a importância comercial da firma,
houve alguém que comprou parte das quotas e criou a Real Companhia Viní-
cola Portuguesa. Aí já os meus tios e o meu avô não ficaram sócios, mas ficou
o mais novo, José da Fonseca Menéres, e Alfredo Menéres passou a pertencer
só ao Conselho Fiscal. Aí esvaziou-se a importância da fábrica… E era uma
verdadeira fábrica porque reunia todas as potencialidades próprias: tinha a
serração própria, a tanoaria; fabricava as próprias caixas de madeira para
exportar o vinho; tinha já uma instalação elétrica própria para produzir ener-
gia; tinha uma vagoneta que facilitava o escoamento dos produtos todos pelo
porto de Leixões…
…O modo como Clemente Meneres desenvolveu o negócio foi com o crédi-
to bancário. Ele tinha muito crédito pessoal, não tinha propriamente fortuna
pessoal. Era também muito amigo do fundador do Banco Espírito Santo e
tinha facilidade em lidar com a Banca…
…Desde 1902 até 1916, data da sua morte, apostou fortemente na par-
te agrícola e conseguiu recuperar da crise financeira que tinha acontecido.
Deixou à família, em testamento, as quotas muito bem distribuídas e deixou
muitos bens… Houve, durante a 2ª guerra, em 1941 / 42, uns alemães que
passaram pelo Romeu e ofereceram 20 mil contos pela Sociedade…
São de Clemente Menéres estas frases: “Gerir sem livros, é gerir às ce-
gas” e ainda “Ter casa o suficiente e terra até que não a vejas”. Eram alguns
dos seus princípios. Ele era um homem que estava sempre a querer inovar e
não era por acaso que ia muito ao estrangeiro. Dedicou-se aos três setores:
Agrícola, Comercial e Transformador. A sua primeira iniciativa, no Porto,
como industrial, foi a criação da fábrica de conservas. Aqui, havia uma par-
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parar, mas não quero que os meus filhos fiquem aqui, quero que vão lá para
baixo ganhar a vida” e por isso os meus tios espalharam-se cá por baixo
(zona envolvente da cidade do Porto)… Um deles morava em Ovar…
…Um dos meus avós é de uma aldeia adiante de Fiães, e outro é de Vilar
de Paraíso. A minha mãe dizia assim muitas vezes “eu tenho muita família em
Vilar do Paraíso, mas não conheço lá ninguém”…
…Eu já não conheci o meu avô, Joaquim Barbas, porque ele já tinha mor-
rido quando nasci”.
…“Os Menéres que eu conheci bem já morreram todos. O primeiro deles,
a quem nós chamávamos o Menéres Velho, trabalhava numa casa de fechadu-
ras, no Porto. Depois emigrou para o Brasil... Quando regressou, foi para o
Romeu… Constituiu uma sociedade com mais de cinquenta sócios, com regras
rígidas. Por exemplo, ninguém podia deixar de ser sócio enquanto vivesse,
nem podia desfazer a sociedade. Era um homem cheio de vontade de subir
na vida: era menino para lavar a própria camisa, à noite, e no dia seguinte,
vesti-la e sair para a rua a parecer um lorde…
O Menéres Velho teve dois filhos: o José Menéres e o Manuel Menéres.
Tanto o José como o Manuel eram casados. O José era da idade da minha
mãe, o Manuel era muito mais novo. O José tinha duas filhas: chamavam-se
Josefina e Maria Beatriz. Mas tinha mais filhos. Uma delas até casou em Ma-
cedo de Cavaleiros com um ricaço, lá viveu e lá morreu. O Manuel teve um
filho, o Clemente…
…Os Menéres não estavam lá permanentemente, mas passavam lá sempre
o mês de Maio e a época das vindimas. Durante o resto do ano também iam lá.
O Manuel ia mais vezes, às duas por três, estava lá caído. O José podia não ir
tanto, mas preocupava-se mais…
…Com o comboio, acabou a mala-posta. Mas isso do comboio é outra his-
tória, porque o comboio não era para passar ali, o comboio era para ir não
sei por onde, mas os Menéres tinham todo o interesse em que ele fosse por ali.
Foi tudo feito com a influência deles, senão não teria sido assim.
…Quando eu lá estava nas férias, íamos à estação buscar o correio. Quan-
do sentíamos o comboio a vir de Mirandela para cima ainda dava mais do
que tempo para ir à estação. …Depois aquilo tornou-se muito bonito e muito
movimentado, mas foi mais tarde…
[Trajetória biográfica, profissional e famíliar] …O meu pai morreu nas
Areias, em 1952. Já tinha 90 anos…
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- ela tinha sido educada num colégio católico, e era muito religiosa. Vivia em
Codeçais, onde era a maior influente da igreja, e por causa disso acusaram-
na de ir dinamitar a ponte de Abreiro. Naquela altura a ponte de Abreiro foi
dinamitada e ela foi uma das acusadas… porque o homem era dos caminhos-
de-ferro e ativista monárquico…
O meu pai ficou furioso porque diz que aquilo não lembrava a todos. Ela
esteve presa em Braga, não propriamente na cadeia, mas numa casa - impro-
visavam cadeias em casas, e metiam lá as pessoas. Ela chorava muito. O meu
pai, com pena dela, pagou a uma mulher que mandou para lá para lhe fazer
companhia dia e noite. É que a minha irmã levava aquilo muito a sério porque
estava muito sentida. Depois, a minha mãe foi para lá uma temporada para
lhe fazer companhia. A minha mãe contava coisas muito engraçadas relacio-
nadas com essa estadia.
Depois voltou para Codeçais, porque foi julgada e acabou a pena. Aquele
que veio a ser meu cunhado, o Amador, era chefe da estação de Codeçais. Foi
nesta aldeia que se conheceram e se casaram. Primeiro, ela estava na aldeia
e ele ia lá todos os dias. Depois, começou a ter muito serviço na estação e
precisava de estar lá e ela também gostava mais de estar lá com ele do que
de ficar na aldeia. Eu ainda lá estive a viver algum tempo com a minha irmã.
Eu andava na escola e, por causa disso, é que estava lá com ela. Tinha 7 ou 8
anos, era da idade do meu sobrinho, do filho mais velho da minha irmã.
…O meu pai não gostava de ver o meu cunhado no Romeu e arranjou-lhe,
com a ajuda dos Menéres, trabalho num armazém de azeites no Porto. Ele
veio para esta cidade e vivia aqui. Ele e a minha irmã estiveram aqui instala-
dos porque o meu pai lhes montou uma casa, onde viviam muito bem, mas o
meu cunhado atirou com tudo ao ar em pouco tempo. Só sabia estar a mandar,
não tinha habilidade para aquilo. Depois foi para África, para os caminhos-
de-ferro, em Moçambique, e esteve lá uma temporada. A minha irmã ficou cá
sozinha. Depois ele queria que ela fosse lá ter. A minha irmã ainda chegou
a arranjar a mala para ir para lá. Nessa altura tinha três filhos, o Alberto, o
José Augusto e a Elisa.
…A minha mãe e a minha irmã eram muito amigas e andavam sempre jun-
tas, davam-se muito bem. A minha mãe era muita amiga do meu pai, sempre
foram o casal ideal, e a minha irmã também era amiga do pai. No Porto, a
minha irmã continuou a ensinar, numa instituição para onde iam os filhos dos
professores.
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A minha mãe era um bocado mais nova do que o meu pai. Não era muito
instruída, mas tinha a 4ª classe.
Eu era 30 anos mais nova do que a minha irmã. Era da idade dos filhos
dela, éramos todos da mesma idade, tios e sobrinhos, era tudo a mesma coisa…
…Vivi no Romeu até ir estudar para Bragança. Era novita quando me ma-
tricularam no Liceu, tinha para aí 10 ou 12 anos. O comboio era o meio de
transporte que nós usávamos para ir a qualquer parte. Nessa altura já tinha
vindo várias vezes ao Porto. Ficávamos em casa da minha irmã, que vivia
nesta cidade.
Eu fiz a Escola do Magistério no Porto, depois de ter acabado os estudos
no liceu de Bragança. Fazia todas as viagens de comboio. Demorava um dia
inteiro. Vinha do Romeu ao Tua, onde mudava de comboio. Até chegar ao
Porto era um dia de pândega.
Quando era miúda ia todos os anos, com os meus pais, passar as férias a
qualquer parte. Muitas vezes íamos para as termas de Moledo do Douro e de
Aregos. Nós, eu e o meu irmão, viajávamos com eles no comboio…
…O meu pai tinha um carro e um motorista para tudo quanto precisava.
Tinha telefone na cabeceira da cama; naquele tempo, já era como agora.
Ele ia pagar as contribuições a todas as sedes do concelho onde os Menéres
tinham propriedades. Em cada zona tinha um guardador dos sobreiros e es-
ses homens iam de vezes em quando ao Romeu. O meu pai, quando chegava
a casa, dizia para a empregada: “olha, está ai o corticeiro para almoçar”
(chamavam-lhe os corticeiros). Algumas vezes iam lá receber, outras vezes
iam levar as contas. O meu pai também corria o concelho todo, era ali um rei
pequeno, ele é que mandava em tudo e em todos…
…A mãe da minha irmã era de uma gente tão completa e tão boa que a
minha mãe dizia que “ tudo o que vinha da mão dela parecia de uma senho-
ra”. Ainda lá tenho numa caixa, nas Areias, uns pompons vermelhos, com um
colchete na ponta, que serviam para embelezar a cama, quando ela estava
feita. Para a minha tia Quitéria, isso era tudo chinês…
[A vida diária no Romeu]: …A minha mãe tratava da cozinha, gerindo 7 ou
8 criadas; a minha mãe era a governanta da casa: passava tudo pela mão dela;
era quem punha e dispunha e decidia tudo. Por exemplo, quando iam os ho-
mens tratar das vinhas, vindos do Douro, era a minha mãe que lhes calculava
aquilo que eles precisavam de comer, era ela quem, todos os dias, dava à em-
pregada que vinha com eles, aquilo que eles haviam de comer no dia seguinte…
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Maria Otilia Pereira Lage
Ela dispunha de tudo quanto era preciso e não se podia queixar porque
ela tinha quantas empregadas eram precisas. Se ela dissesse que precisava
de mais mulheres para trabalhar na cozinha, o José Menéres dava-lhe carta
branca para chamar as que ela quisesse. Até havia sempre 3 ou 4 operárias da
jeira que eram certas quando havia falta de pessoal. Como tínhamos telefone
para todos os lados, a minha mãe telefonava para lá e dizia assim: “Ó Sr.
Francisco Domingos, mande-me a Leonídia, a Beatriz, esta e aquela, preciso
cá delas por serem sempre as mesmas e já estarem habituadas”. A minha mãe
não fazia nada diretamente; as mãos dela andavam muito tratadinhas porque
ela tinha pessoal para tudo. Também tinha uma cabecinha como poucos, lá
isso era verdade…
…Passando ao meu pai… era a mesma coisa. Depois de jantar, ia todas
as noites para o escritório, onde recebia todo o pessoal: iam os da quinta do
Monte Meões que é aquela, cá em baixo, onde está a estrada e onde há dois
pinheiros mansos muito grandes, um em de cada lado, onde estava um caseiro
todo o ano a tomar conta. Tinha lá um telefone, que servia para o meu pai
tratar dos assuntos quando não podia lá ir. Às vezes, metia-se no carro e ia
lá num instante e outras vezes vinha o caseiro ao Romeu. Mas ainda havia
mais duas quintas que ficavam à beira de casa: a da Raposa e a do Olival
das Vinhas. Havia muitas mais, mas ficavam mais longe, algumas já junto de
Macedo; dessas não sei dizer os nomes. Eu não ia muito a Macedo: ficava-
nos fora de mão. A vida fazia-se toda para Mirandela. O meu pai não ia lá
todos os dias, mas pouco menos… Umas vezes ia de carro, outras vezes ia de
comboio. A viagem demorava uns dez ou 15 minutos…
…O meu pai, às vezes, estava no escritório, de repente surgia algo que
era preciso e ele só, ia logo: “eu vou a Mirandela num instante e já venho”.
Pegava no casaco ou em qualquer coisa, ia para a estação e dizia assim, “di-
zei à minha mulher que eu vou a Mirandela e venho já” outras vezes tinha o
motorista à mão e só dizia: “ó fulano, leva-me a Mirandela”
…Nessa altura, a estrada era de terra batida, mas era muito movimentada;
tinha sempre muita gente para cá e para lá. Mirandela sempre foi um meio
bastante desenvolvido: tinha feiras de mais de quantas coisas e o meu pai
tinha lá aquelas relações todas e resolvia as coisas todas num instante...
…Nós utilizávamos diariamente o telefone para Mirandela: a minha mãe,
à noite, pensava em tudo o que era preciso para o dia seguinte. Telefonava
para lá a encomendar tantos kl de carne, tantos kl de peixe, mande-me isto,
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10, que eram os quartéis. Se não fosse o 31 e o 10, Bragança não tinha vida
nenhuma…
…A gente do exército, os mais graduados, eram os explicadores dos alunos
que precisavam de apoios extra. Eu ainda tive explicações de Matemática com
um desses homens (eu era mais fraquita a Matemática)…
…A primeira vez que fui a Lisboa, foi quando comprei a minha casa.
Fiquei instalada num hotel na Praça da Figueira e fui comer ao “João do
Grão”. Fui lá por causa da papelada da compra da casa, já que eu estava
inscrita na Caixa Nacional de Pensões e me saiu uma posição. Era preciso
tratar do assunto com rapidez e o meu marido não estava com pressa nenhu-
ma. Também lhe disse que ou se despachava e vinha comigo ou eu tratava do
assunto sozinha… Eu fazia mesmo questão em não perder a oportunidade que
me tinha sido dada…
…A casa do Romeu era do meu pai. Ele não vivia lá…. A casa era em
Vale de Couço e ele vivia em Jerusalém do Romeu. Ele comprou-a porque a
minha mãe fazia questão de ter uma casa na terra dela. Ele tinha a intenção
de lá fazer obras, mas como não a habitava, nunca chegou a fazê-las. Depois,
passados muitos anos, quem vendeu a casa foi o meu irmão. Vendeu-a a um
emigrante…” [Informante nº17]
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a minha mãe como professora e fui para a escola do Romeu; o irmão andava
no 7º ano e a minha irmã estava com a tia Leonor num colégio em Bragança.
Estava tudo pronto para irmos quando a minha mãe adoeceu e nunca mais se
levantou. Isto foi em maio ou junho e ela morreu em Novembro. O meu pai,
quando recebeu a notícia, veio logo no primeiro barco. Passámos a viver os
três juntos, mas o meu pai continuava a querer que fossemos para Luanda,
pois estava lá tudo pronto para isso. Fizemos de novo as malas. Mas punha-se
um problema: o meu irmão mais velho já não podia acompanhar-nos porque
ia entrar na Universidade. O meu pai decidiu que era melhor ficarmos juntos.
Conseguiu arranjar um emprego “muito fraquito” na Junta Nacional dos Vi-
nhos. Não teve ninguém que o ajudasse, nem em Codeçais, nem no Romeu e
passou uns anos muito mal. Foram alguns amigos que emprestaram dinheiro
até que conseguiu arranjar uma transferência para Gaia, para a Junta Nacio-
nal do Vinho e “começou a respirar mais fundo embora tivesse muitas dívidas,
na altura. Omeu irmão já estava no FQN (preparatórias de medicina), dava
explicações e ajudava muito o pai. A minha irmã tratava da casa e eu, o filho
mais novo, ia para o liceu. No Porto, vivemos na Travessa dos Clérigos. De-
pois surgiu a oportunidade de alugar, por um preço muito baixo, uma quinta
em V. N: de Gaia, entre as Devesas e a Calçada das Freiras, mais concreta-
mente no lugar do Marco – Quinta de Valverde. A quinta, além da casa, tinha
lagares, tinha vinhas, estava muito bem apetrechada.O meu pai alugou-a por
três anos e, como sabia muito de agricultura, aquela quinta pagou-lhe as
dívidas. No fim dos três anos, a senhoria, como viu que a quinta era rendosa,
pediu uma exorbitância pela renovação do contrato. Fomos então viver para
o Porto, para a rua da Boavista, mesmo em frente ao depósito de fardamentos,
já eu andava no 5º ano do liceu. Vivemos aí até que acabei o curso, em 1950.
(…) Agora, o que eu gostava de afirmar era o seguinte: o esforço do meu
pai deu como fruto, dos três filhos que teve, 11 netos, 6 meus e 5 do meu irmão;
a minha irmã foi professora primária, casou, não teve descendência e viveu em
Avanca; foi diretora da Casa Museu Egas Moniz durante alguns anos e o meu
cunhado era contabilista no Amoníaco Português, em Estarreja... Nessa altu-
ra, o meu pai já estava muito mais sossegado, já não devia nada a ninguém e
já vivia uma vida relativamente feliz… O meu pai até dizia com muita graça:”
os meus filhos são muito meus amigos… para me ajudarem, escolheram os dois
cursos mais compridos da faculdade, medicina e engenharia…”. (Na altura,
engenharia também tinha 6 anos)… Desses 11 netos, há já 20 bisnetos...
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(…) Sim, a minha mãe foi presa quando morava em Codeçais, onde namo-
rava com o meu pai, Amador dos Santos, que havia de ser seu marido e que
era um conspirador monárquico, acusado de favorecer a entrada das tropas
de Paiva Couceiro em Bragança. A mãe foi acusada de ensinar doutrina cristã
na Escola, mas ela defendeu-se dizendo que não era na escola, mas sim na
Igreja, para onde ia com as crianças depois do horário letivo. Isto passou-se
entre 1910 e 1914. Estiveram ambos presos em Braga… A minha mãe estava
lá acompanhada pela mãe da Tia Leonor… Esteve lá três meses e foi jul-
gada… Amador dos Santos, como era revisor do caminho-de-ferro, levava as
mensagens que tinham sido entregues no Porto, do Tua para Bragança e, em
Bragança, ia de noite levá-las a Espanha. Ele foi sempre monárquico até à
morte de D. Manuel II… ele não aceitava o D. Duarte Nuno…
[Sobre o episódio de dinamitar a Ponte do Diabo, Lopes dos Santos sabe,
como diz, o que o pai lhe contou] …havia um comboio de tropas que ia sair
do Tua para Bragança para ir combater tropas republicanas. E o meu pai deu
ordens, já que ele era chefe da célula monárquica de Codeçais, para o meu tio
Manuel, que era o irmão mais velho, dinamitar a ponte de caminho-de-ferro
de Abreiro, para o comboio não passar com as tropas. Ainda por cima, o meu
pai era revisor desse comboio. Ao chegar perto da ponte, o meu pai pôs-se na
última carruagem para dar o salto e ficou muito chateado porque a ponte não
foi dinamitada porque o meu tio Manuel era mais velho e tinha juízo…
... A ponte de Abreiro foi construída pouco antes da ponte da Arrábida, nos
anos 50… “Lembro-me bem; eu já era engenheiro e estava na Hidro Elétrica
do Cávado que depois veio a dar a EDP.
A Ponte do Diabo era uma ponte rodoviária que foi levada pela cheia de
1909. Está lá agora uma ponte nova feita pela Junta Autónoma de Estradas
(Eng. Correia de Araújo) …sim, o Eng. Jorge de Sena fez parte da equipa que
fez os pareceres técnicos e a ponte foi construída nos anos 50 do séc. XX.
[Voltando ao Romeu] …Passei lá parte da minha infância; conhecia lá
tudo e toda a gente. Depois da minha mãe morrer e do meu pai já cá estar
no Porto, fui algumas vezes passar um mês, nas férias grandes, com a Tia
Leonor. Eu conhecia melhor o Romeu do que Codeçais. O Romeu tinha uma
qualidade de vida muito superior – tínhamos os automóveis, tínhamos as es-
tradas, tínhamos tudo… Vivíamos em casa do meu avô que usufruía das coisas
da família Menéres... Muito mais tarde, em 1954 ou 55 o Sr. José Menéres já
tinha morrido e quem estava à frente da casa era o irmão, Manuel Menéres
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que tinha feito umas obras sociais tremendas, o melhoramento das aldeias…
[Sobre a vida dos Menéres, nessa altura, no Romeu]: …eles eram uma fa-
mília muito grande e, nas férias, juntavam-se lá muitos elementos da família.
Conheci bastantes e, entre eles, o Manuel Menéres – eu já estava casado e a
trabalhar na OPCA quando surgiu a oportunidade de ir trabalhar para Lis-
boa, para as obras do Metropolitano, quando ele perguntou ao meu patrão se
conhecia algum engenheiro que pudesse ir ao Romeu para orientar as obras
das duas barragens que ele quis fazer no Quadraçal para ter água para regar
as oliveiras… então fui eu para lá... O Manuel Menéres quando me viu ficou
delirante. Levei um encarregado, orientei os trabalhos todos, estive lá durante
uma semana, mas nunca mais lá fui... A construção das barragens foi no ano
de 1955…
…A Casa Menéres tinha muitos trabalhadores e vários feitores. Havia o
Olival das Vinhas, o Moinho do Gato, a Canameira, Monte Meões e outros
sítios… O meu avô era o administrador daquilo tudo... Ele costumava andar
no Ford, modelo TM505, guiado pelo Cardoso que era do Porto e, depois,
pelo Zé Prado que era transmontano. O Ford modelo A era o dos patrões…
Tinham, pelo menos, duas camionetas que vinham trazer cortiça ao Porto… A
cortiça vinha pela camioneta mas também vinha pelo comboio. O transporte
pelo comboio ficava mais caro porque tinha que fazer transbordo no Tua… Eu
viajava sempre de comboio para o Romeu: saía de S. Bento às 10h. e chegava
ao Romeu por volta das 6h. da tarde.
[Sobre a sua vida profissional] …O primeiro emprego que tive “a sério”
foi na barragem da Caniçada, numa empresa luso-italiana, a ETEL, onde
estive quatro ou cinco anos. Foi nessa altura que casei… Já andava mortinho
por casar, já namorávamos há sete anos e não havia dinheiro… e foi depois
que me nasceu o primeiro filho… Entretanto, recebi um convite para ir para
o Picote para a OPCA, que tinha adjudicado o desvio provisório e não tinha
nenhum engenheiro com experiência de túneis… então, por indicação de uma
pessoa minha amiga, convidaram-me e eu que estava a ganhar quatro contos
e quinhentos, fui ganhar oito…. Estive dois anos e alguns meses no Picote...
Depois fui para Lisboa para o Metropolitano e em 1958 entrei para a EDP.
Ainda não tinha acabado a construção da barragem de Paradela… fui para
a construção da barragem do Alto Rabagão, onde estive desde o primeiro dia
até ao último. Só vim com a família para o Porto, quando o filho mais velho,
o Zé Nuno, teve que ir para o liceu. Nessa altura, montámos casa na Foz e ia
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com as instalações. Suponho que o D. Manuel de Melo era da família Cid Melo
e Castro que era uma família muito rica. Cid Melo e Castro ainda chegou a
ser ministro de Salazar. Não era brasonado e, no tempo do rei, quem não era
brasonado, ia de vela… Os terrenos onde foi construída a CUF, seriam da fa-
mília Cid Melo e Castro. O D. Manuel de Melo passou a pertencer à família ao
casar-se com a filha de Melo e Castro. [Informante nº 21]
A história de vida que se segue, ilustrativa da situação dos operários em
Mirandela, vila e hoje única cidade do vale do Tua, em grande medida devido
à influencia histórica da linha do Tua, traça um quadro muito expressivo da ati-
vidade fabril intensa e pouco frequente na região, com suas práticas e saberes
técnicos especializados e leigos. Evidencia ainda a inserção e impactos posi-
tivos no desenvolvimento local e regional desta unidade empresarial da CUF,
que descreve em articulação com outros estabelecimentos da mesma empresa
espalhados pelo país, demonstrando assim conhecer bem a história da mesma.
“…O meu pai trabalhou mais de 40 anos na Cerâmica de Vila Nova, onde
era amassador de barro, o qual, na altura, era amassado a cutelo. Esta fábri-
ca foi construída por Armindo Carvalho, Alfredo Neto, Aníbal Rocha e David
Pires, em 1930. Trabalhava com barro vermelho que vinha de um lugar perto
da cidade de Mirandela, onde está agora construído um bairro. Fabricava
sobretudo telha e tijolo. Chegou, no entanto, a fazer imagens de santos. O pro-
cesso era todo manual. Laborou à volta de 50 anos, pois fechou nos anos 80.
A minha mãe era doméstica, tomava conta dos filhos que chegaram a ser
11, mas cinco deles morreram com o garrotilho (o mesmo que difteria), doen-
ça da época.
Na idade normal, frequentei a escola de Carvalhais de onde saí com 11
anos. O meu sonho era ser serralheiro mas, como” não tinha altura bastante”,
ninguém me dava esse trabalho. Assim, trabalhei, durante um ano, numa sa-
pataria. Entretanto, saí e, no mesmo dia, arranjei emprego numa serralharia,
onde estive até ir para a tropa, em 1963. Na tropa, tive um acidente quando
tive que transportar um colega às costas: parti um joelho. Fui parar ao Hospi-
tal da Estrela, onde estive internado durante 88 dias, até que fui considerado
incapaz para o serviço militar. Os meus superiores queriam que eu declarasse
que parti o joelho devido a uma brincadeira, mas eu recusei-me a fazê-lo e
exigi que ficasse declarado que tive o acidente ao ser obrigado a transportar
um colega às costas. Nessa altura, já era casado e já tinha 2 filhos. Vim para
casa. Passado algum tempo fui chamado para a CUF, isto ainda em 1963.
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preciso secá-la, peneirá-la para lhe tirar a polpa e o cango e, por fim, moê-la
para depois ir para a extração para ser lavada.
…Durante um ano… 6 meses eram para trabalhar o bagaço da azeitona
…; 3 meses para o coquenote e a copra… era meio – meio…; 2 meses eram
para a grainha da uva e o resto, um mês, para reparações.
…Quando foi construída, a fábrica tinha 11.000m2 de área coberta e tinha
uma área total de 38.000m2…
…Aquilo que me dava mais dores de cabeça eram as avarias: às vezes
punha-me a pé às 3 e 4 da manhã para fazer reparações. Era também o sen-
tido da responsabilidade. Nós, depois, já tínhamos muitos equipamentos. Por
exemplo, para trabalhar a copra e o coquenote, aquilo tinha que ser moído
com um moinho de martelos e o granulado tinha que sair mais ou menos
certo; aquilo depois ia a uns brutos moinhos, com 5 rolos, de 1.000 KG cada
rolo, uns em cima dos outros e o produto depois saía em flancos que era para
ir à extração para não empapar… Trabalhei em Alferrarede com um lavador,
mas era já… tapete: entrava o produto num lado e estava sempre o chuveiro
a cair em cima…
…A partir de 1970, eu era encarregado da conservação e do fabrico. Re-
portava ao Eng. Meneses. Ele tinha abaixo dele o Marques Dias que tinha vin-
do do Barreiro, com o curso da Escola Industrial; era boa pessoa e também
vivia no Bairro como eu.
…Na altura do 25 de Abril, o Eng. Meneses convocou todo o pessoal da
fábrica para comunicar que, a partir dali, eu era o Encarregado, tendo pedido
a colaboração de todos….
…Nessa altura, todo o pessoal já sabia ler e escrever…
…Nessa altura, o pai do Eng. Normando era Diretor Comercial. Quando
faleceu, Marques Dias ocupou o cargo dele. Entretanto, este também saiu
para montar a sua própria empresa. Queria a toda a força levar-me com ele
para S. Miguel de Acha que distava 25km de Penamacor e 25Km de Castelo
Branco. Mas eu não quis ir porque já tinha os quatro filhos a estudar na Es-
cola Secundária, aqui mesmo à beira de casa…
…Sobre a Central Eléctrica – quando a fábrica começou, os motores eram
poucos e a maior parte eram a vapor. Tinham o nome de burrinhos. Eram
motores de pistão. A base principal que fazia movimentar toda a fábrica era
constituída pelas caldeiras – duas – que trabalhavam com a pressão de 12Kg /
cm2; tinham 8m de comprimento por 1,5m de altura, 100 tubos cheios de água
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para aquecer. Duas caldeiras que trabalhavam todo o dia faziam trabalhar
toda a fábrica: a extração, os secadores em caso de necessidade, o lagar e a
central. Na altura, a central funcionava a vapor. A partir de 63 já era melhor
ter uma central de eletricidade. Tinha um transformador e recebia a eletri-
cidade da rede. Nos anos 60, a CUF tinha completa autonomia para tudo.
Tinha a melhor oficina de Mirandela. Éramos completamente autónomos. Já
tínhamos um torno que torneava um veio com 30 metros, se fosse preciso. A
caldeira trabalhava muito tempo a lenha que era transportada pelo caminho-
de-ferro e era rachada ali: todos os dias havia mais de 10 homens a rachar
lenha; o meu pai ainda trabalhou neste serviço. A lenha vinha de Roças e de
outros sítios onde houvesse linha de caminho-de-ferro para poder transportar
os troncos. Depois passou a trabalhar com o subproduto do bagaço. Dava
para alimentar as duas caldeiras e ainda se vendiam milhares de toneladas
para as cerâmicas. Também se consumia muita casca de amêndoa…
…A CUF era das empresas portuguesas que tinha melhores condições
para os trabalhadores, mesmo aqui em Mirandela. Tínhamos o Hospital da
CUF que era só para os trabalhadores da empresa e tínhamos também uma
boa Caixa de Previdência. Os nossos filhos eram subsidiados nos estudos e
recebiam sempre roupa e brinquedos pelo Natal…
…A CUF fechou em 1987 e eu ainda estive lá sozinho, a tomar conta da-
quilo, mais sete anos. Reformei-me aos 57 anos de idade. Quando saí da em-
presa, fui indemnizado…
…O volume de negócios da empresa era quase todo escoado pela CP. Mais
tarde, em 63, 70, era tudo transportado por camionetas para Mirandela. Mais
tarde ainda, mais ou menos nos anos 70, ainda montamos um senfim de carga,
no Tua, para carregar as camionetas. O senfim era um parafuso que empurra-
va as coisas e funcionava como elevador…
…Quem podia habitar o Bairro da CUF: o serralheiro, o eletricista, o
encarregado e o pessoal do escritório. As casas eram muito boas e já tinham
aquecimento. Situavam-se perto da atual Escola Secundária. Os armazéns do
subproduto estavam no espaço em que funciona agora o Instituto Piaget.
…Quanto a poluição originada pela fábrica, devo dizer que ela era míni-
ma porque todo o subproduto e a carga eram manuais, isto no tempo em que
a fábrica foi construída. A partir de 63, quando começou o vapor, então já
se formava uma nuvem. Mas também é preciso lembrar que em 63 não havia
uma única casa na rua D. Afonso III nem no Bairro do Fomento; aquilo eram
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tudo terrenos de cultivo. Quem deu cabo daquilo tudo foi quem quis ali os
bairros. Ainda se fez uma câmara de descarga ao longo de 30 metros com
umas janelas de abrir e fechar, o que eliminou bastante a poluição.
Tínhamos 2 bombas no rio que estavam 24h. a puxar água para 2 tanques
que levavam 300mil litros cada um, mas mesmo assim tinha que haver recu-
peração de água, através de bombas de recuperação, uns tanques. Também
havia recuperação de hexano através de um depósito, uma cisterna que estava
a um metro de profundidade. Apesar dos cuidados existentes, deve ter havido
fuga porque uma vez aconteceu um acidente junto da casa do ferroviário, cujo
filho morreu porque, ao brincar, “chispou” com um pau nalguma pedra, e
houve uma descarga que incendiou o local.
…Apesar de tudo, a CUF foi de extrema importância para a região. E foi
essencial na história de Mirandela: garantiu postos de trabalho, deu mão-
de-obra durante 70 anos e consumia os produtos da região; uns vendiam e
outros compravam…
…Quando o Sr. Alfredo da Silva montou o lagar, os magnates de Mirandela
não receberam bem a ideia. Um deles foi o Dr. Manuel Maria Pires que era o
médico avençado da CUF. Mas havia outro: o Dr. Aires Lima, o Conde de Fei-
jó, o Capitão Elídio Esteves, o Zé Lima, O Hermenegildo, o Dr. Amândio… Al-
guns deles só trabalhavam a própria azeitona, pois tinham os seus lagares....
…Recentemente, logo a seguir a Frechas há uma unidade de óleo alimen-
tar. Quem a construiu foi Aníbal Pires, em sociedade com alguém. No entanto,
o negócio não correu bem. O atual dono da empresa vive em Lisboa…
…Pergunta-me a razão pela qual o Sr. Alfredo da Silva veio construir esta
empresa em Mirandela. Repare que ele só construía onde houvesse linha de
caminho-de-ferro e matéria-prima. Ele próprio, para se deslocar, só utilizava
o comboio. Quando lhe perguntavam para onde ia, respondia invariavelmen-
te: “vou para Calcanhares do Mundo”…
[E prossegue acrescentando outras curiosidades] …Alfredo da Silva tinha
em todas as fábricas um boi que trabalhava como um funcionário: andava
permanentemente para trás e para a frente, puxando um cilindro de porpia-
nho que calcava o subproduto para que não fermentasse. Assim, em todas as
fábricas havia a casa do boi…
…A fábrica tinha óptimas instalações. Estava equipada com todo o mate-
rial necessário para fazer face a um incêndio...
…Na caldeira havia uma buzina que funcionava a vapor: chamavam-lhe a
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Nos anos 1960 surge no Cachão, outra aldeia e estação da linha do Tua,
próxima de Mirandela, o Complexo Agro-Industrial do Cachão (CAICA), o
maior empreendimento agro-industrial surgido de raíz em Trás-os-Montes,
de iniciativa pública liderada pelo engenheiro Camilo de Mendonça. Da sua
história, breve mas de impacto desenvolvimentista na região, principais redes
políticas, sociais e pessoais de funcionamento e de destacados protagonistas
individuais, nos dá conta, num retrato pormenorizado, o seguinte excerto de
entrevista do jornalista octogenário da imprensa regional de Mirandela, cuja
narrativa oral, crítica mas empenhada nos acontecimentos narrados, é repleta
de informação, factos e dados concretos.
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não. Já tinha mil, duzentos e tal trabalhadores quando era um complexo que
podia viver com 200 ou 300… Foi um dos erros do Camilo. É que para ele
não havia” apartheids”… Ele queria fazer a sede administrativa do Cachão
em Mirandela. A 1º reunião que fez foi na sede do Sport Clube e fê-la com o
objetivo de criar um lagar tipo cooperativo para o azeite. Ora, aqui, os impor-
tantes e os que tinham capital tinham todos lagar… A reunião foi um fracasso
e o Camilo foi escorraçado. Isto passou-se ainda quando a CUF estava em
plena laboração.
Também houve muitas atividades de emparcelamento promovidas pelo Ca-
chão. Entretanto, o povo começou a dificultar a venda de terrenos. O Cachão
não se sustentava porque tudo funcionava com muitos funcionários. Quando
aconteceu o 25 de abril, o projeto do Cachão já tinha 14 anos, mas o Estado
estava sempre a injetar dinheiro para lá. O Camilo era íntimo do 1º Ministro…
Marcelo Caetano veio a Mirandela em 68 / 69. Foi uma grande e verda-
deira explosão popular. Em 68 tinha vindo o ministro Veiga Simão. Foi nessa
altura que Mirandela teve direito ao liceu. Mirandela, o que tem, vem do
Camilo, do Trigo de Negreiros e, agora, um bocadinho do Vara… O Dr. Trigo
de Negreiros, depois de deixar o lugar de ministro, foi presidente do Supremo
Administrativo e continuou a apoiar o Cachão. Aliás, esta empresa funcionou
enquanto houve dinheiro. Pós 25 de Abril, foi para lá um capitão que perce-
bia tanto daquilo como eu percebo de têxteis. Só para lá foram analfabetos!...
Também lá esteve o Gomes de Castro (este casou com uma prima do Durão
Barroso) que, com o apoio do Pires Veloso ainda fez alguma coisa. Com o 25
de abril, a CUF também fechou. O Cachão teve uma grande diferença em re-
lação à CUF: é que recebia os produtos dos agricultores e pagava tarde, mal
e a más horas. No entanto, no tempo do Eng. Camilo, este não ganhava nada
com o Cachão. O que lhe valia é que, como administrador da Sogás, recebia
30 contos e tinha direito a carro. Mas, o que ele dissesse era uma escritura. O
comerciante por largo não queria o Cachão; agora o agricultor minimamente
inteligente só podia querer o Cachão. Havia uma proximidade funcional entre
os serviços do estado e os serviços de agricultura, os quais estavam larga-
mente ao serviço dos projetos do Cachão. Esta empresa era um alfobre de So-
cialistas que, na realidade não o eram, andavam a enganar Cristo… Quando
Gomes de Castro veio para o Cachão, eu fiz-lhe a radiografia do comando do
pessoal e alertei-o para o facto de ele ter caído num mundo que não conhe-
cia e que eu conhecia demasiado bem. Disse-lhe, entre muitas outras coisas,
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começou a ver que era extremamente difícil manter aquilo, começou por que-
rer correr com o Dr. Correia de Barros, o que tinha o jornal Além Douro e a
Revista Nordeste. E queria que fosse eu a substitui-lo. A páginas tantas, como
eu estava no MAP e não queria sair de lá, ele já me queria dar o emprego sem
eu lá ir. Ora eu não podia aceitar tal proposta! Mas ela continuava com aque-
la ideia de querer dar emprego a todo o licenciado do distrito de Bragança e
a todos os que lá quisessem trabalhar, ideia com a qual eu não podia estar de
acordo. Mas este sistema só funcionou até ao 25 de abril durante o tempo em
que o dinheiro vinha sempre. Quando vinham aquelas bateladas, acertavam
contas. Com o 25 de abril, é fácil perceber o que se passou. Após esta data,
fugiu para França e depois para o Brasil. Teria mais ou menos 60 anos de
idade. No Brasil, mais concretamente no Nordeste, onde o Eng. Manso o foi
visitar, ele chegou a uma altura em que não tinha dinheiro nem para tabaco…
Foi lá Professor e Assessor de uma secretaria de estado da agricultura. Ga-
nhava pouco. Não queria vir para Portugal porque se sentia envergonhado.
Só regressou ao seu país quando já estava doente e em cadeira de rodas.
Foi para uma clínica para a Parede (Lisboa), mas morreu num corredor da
clínica quando ia fazer uma TAC. Na revista do Nordeste foi publicado o seu
elogio fúnebre… a estrutura da família do Eng. Camilo era de Alfândega,
Vilarelhos, não de Carrazeda. Ele era sobrinho da D. Maria Olímpia, casada
com o Dr. Trigo de Negreiros e ela era de Vilarelhos… pertencia aos Mendon-
ças. [Informante nº 21]
Retomando, a propósito, a história do movimento intenso de mercadorias na
linha do Tua, a que esteve ligada a laboração dos três empreendimentos agroin-
dustriais de maior capacidade produtiva nesta região transmontana, atrás docu-
mentados (CUF, Sociedade Clemente Menéres, Lda. e CAICA), importa referir
que a dada altura, entre os anos 1950 e 1970, o intenso transbordo de produtos
e mercadorias na estação de Foz Tua, acabou por suscitar dificuldades ao escoa-
mento regular da produção e à captação de matérias-primas, designadamente a
essas empresas mas também aos maiores comerciantes e agricultores regionais,
aos silos e às cooperativas de Mirandela, Macedo de Cavaleiros, Mogadouro,
Vila Flor, Carrazeda de Ansiães, Murça, Alijó e Bragança...
A CUF tentou mesmo uma solução com a instalação no Tua de um sem-fim,
de um monta-cargas, acabando por vir mais tarde a transportar a sua produção
e as matérias-primas em camiões da empresa; também o CAICA passou a
utilizar um serviço de camionagem próprio, alternativo ao comboio, e desviou
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leite de cabra e o café… o açúcar também era por ração… uma das senhoras
da Ribeirinha na linha do Tua, com muitos filhos, tinha muito açúcar… então
trocávamos 1 litro de azeite por 1kg de açúcar… a população daqui tinha
muitas ligações com as povoações da Linha de Mirandela para baixo… nessa
altura havia tanta gentinha…! havia 3 comboios de passageiros e outros de
mercadorias, transporte de adubos e outras coisas… ganhavam uma comis-
são… havia o mercado negro… iam pelo comboio e traziam 3 ou 6 alqueires
de trigo escondido que aquilo era contrabando…
…para aqui vinha gente do Pinhal, de Zedes, das Areias, do Amedo, apa-
nhar a azeitona, cavar as vinhas, fazer as vindimas… eram rebanhos de ho-
mens… vinha tudo de comboio… só daqui perto é que vinham de burro… as
estradas por ai são só de 1947 e depois…
…no Pombal, na altura da guerra havia 800 pessoas… agora ainda há
para aí umas 200…
…para além da estação de S. Lourenço havia também a estação do Amiei-
ro, donde se vinha e ia de barco para o outro lado a povoação de Amieiro…
e a estação da Brunheda que servia o pessoal do Pinhal, Sentrilha, Paradela-
…o Castanheiro tinha apeadeiro… as aldeias todas deste lado do rio tinham
acesso ao comboio da linha do Tua…
…no verão, vinha muita gente de todo o lado, de comboio para o S. Lou-
renço, para as termas… contava a minha mãe que chegavam de padiolas e
saiam de cá curados… vinham e iam de comboio… chegou a haver lá uma
pensão muito grande onde ficava gente muito rica e doutores… o dono era
daqui do Pombal… chegou a vir para lá para o S. Lourenço gente de Espa-
nha e de Lisboa e de todo o lado para curar moléstias de pele.. nós íamos lá
todos os domingos tomar banho e só depois das vindimas é que íamos para
as termas … lembro-me de uma vez vir lá um geólogo e o director das águas
termais de Chaves que disse que as águas do S. Lourenço eram melhores que
as de Chaves….
…desastres na linha? …lembro-me de ouvir falar de um comboio que caiu
ao rio por baixo do S. Lourenço e que morreu o fogueiro e há uns anos, outro
desastre na Brunheda… e também de quando o rio chegou à linha, nas cheias
grandes de 1911…
…homens daqui que trabalharam na linha do Tua…? Havia um maquinis-
ta daqui que já morreu… em Mirandela também havia outro, o filho da Am-
brosina… havia chefes de estação… o Luís Azevedo que casou lá em cima em
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Roças, a estação mais alta… o Manuel Pinto da idade dos meus pais também
foi lá chefe da estação…
…também havia muita gente daqui que ia ao rio e vendiam… o peixe tam-
bém vinha pelo comboio e também as peixeiras que o traziam do Castanheiro
e do Tua…
…uma mulher do Tua arranjou cá uma casinha e do Tua mandava vir o
peixe ou ia lá ela buscar e vendia-o aí… remediava-se a gente como podia…
…traziam e levavam no comboio, lenha que vinham aqui fazer, vinho e sal,
e mais coisas… tudo ia e vinha pelo comboio… [Informante nº 3]
Nesta minuciosa narrativa oral podemos intuir como se foi forjando na his-
tória recente das populações do vale do Tua um valioso património histórico
representado pela linha e comboio do Tua, uma cultura popular ainda intrin-
secamente ligada à natureza e uma profunda identidade rural de fortes raízes
ambientais.
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025 Com uma extensão de mais de 133 quilómetros. O troço entre Mirandela e Bragança já havia sido encerrado
em 1991-1992, tendo mais tarde, em 2008, sido suspensa a circulação no 1º troço entre Foz Tua-Mirandela.
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çais, também: quando lá andei, éramos para aí uns doze, de várias categorias.
Desta aldeia trabalhava muita gente no Cachão. O transporte utilizado era
o comboio… Fazia-se mais vida em Mirandela do que na Carrazeda devido
ao comboio que também transportava os animais e tudo… quando era do
transporte dos adubos (entre 1960 e 1965) havia muito comboio a circular…
No Tua, era tudo carregado a braços: o adubo, o carvão, as pipas de vinho,
a cortiça, as travessas da linha… só daqui de Codeçais, em 1955, passaram-
me 800 arrobas de cortiça pelas costas; juntava-a para o cavalo carregar…
ganhava 20$00 de sol a sol….
…nunca emigrei porque trabalhava no caminho-de-ferro e era do qua-
dro… tinha mulher e já um filho e achei que não devia deixá-los... [Informante
nº 32]
Acerca dos protestos aquando do fecho do troço da linha do Tua, Mirandela
-Bragança, criticou o desaparecimento das locomotivas pela calada da noite e
o corte das comunicações e recorda ter ido, com mais gente dali, a uma mani-
festação em Lisboa e a outra em Espanha, onde havia um movimento idêntico.
…Em Codeçais, sentiu-se muito o fecho da linha porque a aldeia ficou
muito mais isolada… às terças e quintas é que há transporte para a Carraze-
da, mas só temos duas horas e meia para estarmos na vila; se vamos ao centro
de saúde e a consulta é demorada, temos que vir de táxi... e sem poder fazer
mais nada… [Informante nº 32]
Nesta sequência, importa então revisitar a história recente do projeto de
construção da barragem no rio Tua que afeta parte do território do noroeste
português nos cinco municípios do vale do Tua já referidos, bem como a con-
trovérsia pública surgida026 mais especificamente em torno do encerramento
da histórica linha férrea.
O projeto de construção da barragem de Foz Tua027 suscitou crises e crité-
rios conflituantes nos processos de consulta e decisão pública, valores dissi-
dentes e negociações várias tendo envolvido estudos de avaliação de impactos
negativos e positivos com escolhas metodológicas controversas e propostas de
026 Laura Centemeri, José Maria Castro Caldas. A escolha apesar da (in)comensurabilidade: Controvérsias e
tomada de decisão pública acerca do desenvolvimento territorial sustentável. 2013. p.101-125 <hal-01054935 >
HAL Id: hal-1054935 https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-1054935.
027 Previsto no Plano Energético Nacional (1989) e no Plano de Bacia Hidrográfica do Rio Douro (1999),
viria a ser integrado e considerado prioritário no Programa Nacional de Barragens com Elevado Potencial
Hidroelétrico, lançado pelo governo português em 2007, em conjunto com mais 10 novas instalações hidro-
eléctricas, localizadas maioritariamente na bacia do Rio Douro, mas cuja construção não chegou a avançar.
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031 Foi realizado por uma equipa multidisciplinar de investigadores (áreas de Engenharia, História, Geografia,
Arquitetura, Antropologia e Museologia) apoiada por técnicos de comunicação audiovisual com coordenação
geral de : Eduardo Beira (School of Engineering-UM and MIT Portugal Program); Anne McCants (History
Dpt., MIT, USA), José Manuel Cordeiro (ICS-UM and CITCEM), Paulo Lourenço (School of Engineering-
UM).
032 Agradece-se a cortesia desta fotografia à sua autora, Luisa Fernanda Lima Porto,Assistente Administrativa do
Metropolitano Ligeiro de Mirandela.
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033 CALLON, Michel et al. – Sociologie des agencements marchands. Textes choisis. Paris:Presses de Mines -
Transvalor, 2013.
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034 Ver, por exemplo, o seguinte trabalho sobre a barragem do Tua que se aproxima desta linha de análise: Laura
Centemeri, Jose Maria Castro Caldas - A escolha apesar da (in)comensurabilidade: Controvérsias e tomada de
decisão pública acerca do desenvolvimento territorial sustentável. 2013. p.101-125 <hal-01054935 > HAL Id:
hal-1054935 https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-1054935.
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Foto da fase final de construção da barragem do Tua junto à Foz do rio Tua
Foto de José Assunção
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035 Este método foi aplicado pela primeira vez no departamento de sociología da Universidade de Chicago, que
se tornou o centro da disciplina nos Estados Unidos durante muitos anos, fundando uma linha de pensamento
sociológica, designada “Escola de Chicago” que teve grande apogeu nos anos 1920 e que deu origem à teoria
conhecida como “interaccionismo simbólico”. Thomas e Znaniecki, membros desse departamento, publicaram
em 1918 a obra – O campesinato polaco nos Estados Unidos e na Europa, cuja novidade era essa metodologia
usada durante anos em que durou a sua investigação.
036 ARJONA GARRIDO, CHECA OLMOS, Juan Carlos- “Las historias de vida como método de acercamiento
à realidade social.” Gazeta de Antropologia. Nº14, 1998. Disponível em: http://hdl.handle.net/10481/7548
[consulta em 2 Maio 2015]
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A boa investigação, com o uso desta técnica, procura obter narrativas que
não sejam exclusivas da vida do informante mas que introduzam também o
contexto espácio-temporal descritivo de lugares, outros protagonistas e perso-
nagens, factos históricos, etc. tal como os informantes os perceberam em seus
momentos próprios. Visa alcançar a fiabilidade e veracidade do que os infor-
mantes contam pelo que analisa os seus discursos e a coerência interna dos
relatos, a sua forma de estruturação e a congruência dos resultados finais. Con-
trasta ocorrências paralelas e lacunas de informações, dados, acontecimentos
significativos, memórias e histórias paralelas ou relatos de acompanhantes do
informante. Esta análise contrastiva pode suscitar novas pistas e dados sobre
o narrado, facilita e melhora o tratamento do material recolhido (narrativo,
documental e histórico) com técnicas de triangulação da informação que per-
mitem fazer a validação dos relatos.
A maior dificuldade e exigência desta técnica verifica-se na fase de análise
e interpretação dos conteúdos em que é preciso realizar dois tipos de análise:
uma “vertical” de cada narrativa e outra “horizontal” do conjunto das entre-
vistas e relatos. Cruzando ambas as análises e recorrendo à “saturação da in-
formação por repetição” obtém-se então um núcleo central de toda a história.
A análise de conteúdo permite trabalhar com a informação intrínseca e ex-
trínseca para aceder não só ao que é explícito mas ainda ao que se encontra
implícito ou subentendido no que os informantes não disseram expressamente
mas têm presente, o que se revela muito útil na captação de contextos mais ge-
rais quer do informante quer do seu mundo. Através da descrição e da narrati-
va, os sujeitos constroem-se, no âmbito de estratégias discursivas que acionam
um jogo de interações, não com intenção exclusiva e unívoca, mas utilizando
mensagens em geral, comunicação simbólica, etc. em que se podem entrever
ideologias, valores e outros elementos, para além do que o informante preten-
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037 THOMAS, W.I., ZNANIECKI, Florian (1958) - The Polish Peasant in Europe and America I. New York, Dover
Publications, p.38 (autor clássico das histórias de vida)
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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038 Significando lugar onde se nasceu, criou e habituou a viver e ao qual sempre se quer voltar, como
frequentemente acontece em muitas das aldeias do vale do Tua, às quais os seus emigrantes sempre retornam,
depois de viajarem pelo mundo e terem sido mesmo bem sucedidos.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CALLON, Michel et al. (2013)– Sociologie des agencements marchands. Textes choisis.
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comensurabilidade: Controvérsias e tomada de decisão pública acerca do desenvolvimento
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publié. Paris: PUF.
NORA, Pierre (1984), Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard.
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“TUA” HISTÓRIA VIVIDA
APÊNDICE DOCUMENTAL
Corpus de fontes orais e guião-roteiro do Documentário
Este apêndice permite percorrer e evocar a história do tua (vale, rio, linha e
comboio) narrada em discurso direto, através das memórias de populações
anónimas.
O corpus contemplado compõe-se de uma diversidade polifacetada de es-
tórias, narrativas, testemunhos e memórias recolhidas e transcritas simulta-
neamente em suporte escrito e audiovisual, constituindo um arquivo de fontes
orais, património documental que se contruiu e assim se vê preservado.
Todas estas entrevistas são inéditas e apresentam o (s) nome(s) do (s) entre-
vistado(s) e do(s) entrevistador(es). As entrevistas não excedem as 5.000 pala-
vras e são indexadas com as palavras-chave correspondentes, posteriormente
organizadas em índice temático e tratadas em diagrama “cloud” ou diagrama
nuvem incluído no corpo do texto do presente livro. São antecedidas de uma
apresentação com ficha técnica e dados biográficos do informante de, no máxi-
mo entre 500 e 1000 palavras. Os seus conteúdos essenciais foram descritos,
organizados e mobilizados na produção deste livro.
Na sua maioria são complementadas pelos respetivos registos audio-video-
gráficos, também eles objeto de tratamento para edição, constituindo um im-
pressivo arquivo audiovisual relevante que deu origem a uma base de dados
multimédia disponível por consulta na web.
Apresentam-se ordenadas por informante e cronologia da sua realização, da
data mais antiga para a mais recente. Um subconjunto de sete entrevistas pre-
viamente realizadas, sem registo audiovisual, numa etapa inicial e preparatória
da realização deste trabalho de campo, constitui informação prévia de novas
entrevistas com os mesmos informantes, os primeiros sete entrevistados, e
encontram-se, por isso, acopladas a cada um destes, na qualidade de primeira
entrevista.
As respetivas realização e divulgação têm a autorização do(s) entrevistado(s)
que concordam com os objetivos e a edição deste trabalho destinado a consti-
tuir um acervo documental e audiovisual de memórias sobre a história e vivên-
cia da linha férrea e comboio do Tua, em funcionamento entre 1887 (inaugura-
ção do troço Tua –Mirandela), 1992 (encerramento entre Carvalhais-Bragança)
e 2012 (Tua-Mirandela).
Produzido no âmbito do projeto internacional e multidisciplinar FOZTUA, pa-
trocinado pelo MIT, Universidade do Minho e EDP, este acervo de entrevistas
destinado a ser incorporado num núcleo de memória do vale e da linha do Tua,
a disponibilizar em sede de Centro Interpretativo do Vale do Tua, integra o mo-
vimento de acesso livre à informação.
Estão disponíveis 50 entrevistas realizadas com 47 entrevistados durante qua-
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Maria Otilia Pereira Lage
tro anos, entre 2011 e 2014, que abrangem os seguintes temas constituintes
dos tópicos principais dos guiões de entrevista:
• O quotidiano nas povoações ribeirinhas do Tua
• Os anos da fome (anos 1940)
• Escassez e racionamento de bens alimentares e produtos ener-
géticos na II Guerra Mundial
• Exploração e comercialização de volfrâmio durante a I e II Guer-
ras Mundiais
• A vida e o trabalho nos caminhos-de-ferro
• Ferroviários: carreiras, trajetórias profissionais e condições de
trabalho
• Transporte de passageiros e mercadorias
• Acidentes ferroviários
• A construção da linha do Tua
• Os galegos
• A importância local da linha e comboio do Tua
• Perceções do encerramento da linha e da construção da barra-
gem do Tua
• Histórias de vida
• Emigração
• Mobilidades
• Trânsitos
• Termas de S. Lourenço
• Empreendimentos agro-industriais no Nordeste Transmontano,
junto à linha do Tua: o da SCM no Romeu, o da CUF em Mirandela e
o do Cachão.
Para servir de fio condutor e guião a uma proposta de roteiro para produção
do documentário vídeo, elaborou-se, a partir de conteúdos informativos e lite-
rários, o seguinte esquema:
GUIÃO- ROTEIRO
1º Ato – Origens / fim da Monarquia (vistas panorâmicas e paisagísticas do
vale e do rio, espécies animais e vegetais, atividades piscatórias / venatórias
e envolventes)
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1º ATO - ORIGENS
Cena 1 – Dinamite. Braços abertos às montanhas
Cena 2 – A máquina era o fascínio daquele comboio.
Baforadas de fumo e rolos de vapor
“Fragas Más”: Pontes, túneis, estações e apeadeiros
Cena 3 – “Ribeirinha” : Sobreviver em meio agreste
Cena 4 – O comboio arrastador, estouvado saltimbanco
3º ATO – INTERFACES
(entre o que fui e o que sou… encontros de ferroviários)
Cena 11 – Contemplação do rio Tua (imagens e textos literários), cenário cultu-
ral e humano que se sente fluir percorrendo-o de canoa… e não só através dos
mapas, quadros, caudais, hidrogramas e cotas.
Cena 12 – O vale do Tua, integrado na sua paisagem ecológica, com o traçado
da via férrea histórica e singular que acompanha o rio, com as suas culturas em
terraços, enquanto património de memória e identidade de Portugal e patrimó-
nio natural e cultural da Europa.
Um conjunto significativo do acervo de entrevistas selecionado para este efeito,
com base em critérios de qualidade, diversidade e representatividade foi objeto
da respetiva edição de imagem e som pelo staff de tecnologia audiovisual de
apoio ao projeto FOZTUA que produziu o documentário vídeo que complemen-
ta este livro.
Para tal produção, contribui como referência de base, o roteiro e guião ex-
plicitados na rubrica quatro desta obra, da qual este video é parte integrante
enquanto material acompanhante.
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