Você está na página 1de 181

Maria Otilia Pereira Lage

“TUA” HISTÓRIA VIVIDA


(Histórias de Vida)

Maria Otilia Pereira Lage

1
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA
(Histórias de Vida)


Maria Otilia Pereira Lage
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

PROJETO FOZTUA

coordenadores
ANNE MCCANTS (MIT, EUA)
EDUARDO BEIRA (IN+, Portugal)
JOSÉ M. CORDEIRO (U. Minho, Portugal)
PAULO B. LOURENÇO (U. Minho, Portugal)

www.foztua.com

ISBN: 978-153-01702-8-9
Fevereiro 2016
Design gráfico, paginação e capa por Ana Prudente
Editado e impresso por Inovatec (Portugal) Lda. (V. N. Gaia, Portugal)
Impressão da capa e encadernação por Minerva – Artes Gráficas, Lda. (Vila do Conde, Portugal)

4
Maria Otilia Pereira Lage

EVOCAÇÃO DE MEMÓRIAS

Passeando presente dela


pelas ruas (…)
imaginou injetar-se
lembranças, como vacina.

para quando fosse dali


poder voltar a habitá-las,
uma e outras, e duplamente,
a mulher, ruas e praças
….

Mas desconvivendo delas,


longe da vila e do corpo,
viu que a tela da lembrança
se foi puindo pouco a pouco
….

A lembrança foi perdendo


a trama exata tecida
até um sépia diluído
de fotografia antiga

Mas o que perdeu de exato


da outra forma recupera:
que hoje qualquer coisa de uma
traz da outra sua atmosfera.

(JOÃO CABRAL DE MELO NETO


“O Profissional de Memória”)

5
AGRADECIMENTOS

Às populações locais do Vale do Tua, a quem se dedica este livro, à estimulante in-
teração dos entrevistados e à equipa do trabalho de campo realizado, todos no seu
conjunto, fundamentais aliados para a realização do estudo subjacente à presente obra.
ÍNDICE

009 INTRODUÇÃO

015 1. ESPAÇO FÍSICO ENVOLVENTE: O VALE DO TUA EM TRÁS-OS-


MONTES

022 2. GALERIA DE INFORMANTES E TRAJETÓRIAS BIOGRÁFICAS


024 2.1. Universo populacional do Vale do Tua
034 2.2. Painel de trajetórias biográficas representativas

062 3. HORIZONTE SOCIAL E TEMPORAL: Cartografia de materiais de


memória
066 3.1. Contexto e conjunturas socioeconómicas locais e regionais
070 3.2. Processo histórico-social e político geral

080 4. HISTÓRIA VIVIDA: A arte de fazer e de contar no Vale do Tua


083 4.1. Roteiro de um documentário histórico e sentimental
086 4.2. Recursos naturais, patrimoniais, materiais e técnicos
163 4.3. Enquadrando e desenredando (externalidades). Barragem do Tua

166 5. A METODOLOGIA: MÉTODO BIOGRÁFICO E “HISTÓRIAS DE


VIDA”
157 5.1. Histórias de vida e história oral
170 5.2. Reconstituição de memórias e vivências do Vale do Tua
173 CONSIDERAÇÕES FINAIS

175 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

178 APÊNDICE DOCUMENTAL


- Corpus de fontes orais e guião de documentário
Maria Otilia Pereira Lage

INTRODUÇÃO

O presente livro foi produzido no âmbito do projeto internacional FOZTUA


(2010- 2015), uma parceria académica entre a Universidade do Minho (Portu-
gal) e o programa MIT Portugal, envolvendo o MIT - Massachusetts Institute
of Technology (USA), que tem decorrido paralelamente ao projeto de constru-
ção da barragem de Foz Tua.
Tem por objetivo mapear as principais transformações ocorridas no desen-
volvimento do vale do Tua, na região transmontana, a partir de finais do séc
XIX e durante o séc XX, mais precisamente com a construção e funciona-
mento da linha férrea do Tua (1887-2008) e evidenciar, num enquadramento
histórico e ambiental, as linhas dominantes de mudança social aí verificadas.
Assenta na análise documental de cerca de meia centena de entrevistas
representativas da história recente da população local e no estudo transdisci-
plinar dessas narrativas orais impregnadas de significado e densidade histórica
que permitem, numa ação conjunta investigador – informante, a reconstrução
da socio-história do vale e linha do Tua na longa diacronia de mais de 100 anos.
Esta é reveladora da evolução de múltiplas dimensões concretas: ambiência
natural e recursos mineralógicos e termais (Caldas de S.Lourenço); construção
e funcionamento do centenário caminho-de-ferro de via estreita, impactos e
importância no desenvolvimento local; atividades quotidianas nas povoações
ribeirinhas, negócio do volfrâmio, racionamento e fome durante a II Guerra
Mundial; recorrentes migrações, surtos de emigração das populações rurais
nos sécs XIX e XX e presença de galegos; vida e trabalho nos caminhos-de-
ferro; estatuto e carreira sócioprofissional de ferroviários; mobilidades sociais,

9
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

comunicação e transporte ferroviário de passageiros e mercadorias; acidentes


ferroviários; iniciativas de empreendedorismo agro-industrial (Romeu, CUF-
Mirandela e Cachão).
Uma das concretizações deste trabalho consiste em reconstituir a memória
social e história - vivida001 das populações do vale do Tua, através de relevantes
“fontes orais” e “histórias de vida”002 significativas que, a nível micro, eviden-
ciam ter sido fundamental o caminho-de-ferro para o desenvolvimento econó-
mico, social e cultural desta comunidade cuja tradição rural se mantem, mas em
que interessa observar diferentes dinâmicas de evolução para a modernidade.
O livro e o vídeo que o complementa põem-nos em contacto direto com os
protagonistas de uma “história vivida” e contada na 1ª pessoa através das me-
mórias e relatos de vidas, atividades, profissões e acontecimentos do vale do
Tua que a ferrovia mudou. Aí se reivindica, coletivamente, em narrativas orais
de cunho autobiográfico, um direito ao “legado da transição” como instru-
mento para enfrentar os desafios de um futuro imediato e incerto. Isto porque
a História e Memórias do vale, rio, linha e comboio do Tua, indissoluvelmen-
te ligadas às vivências e experiências de vida e de trabalho das populações
transmontanas, são essencialmente o produto dos homens que construíram e
agiram essa história e memórias, contribuindo para garantir a sua continuidade
transformada, desde finais do séc XIX até aos nossos dias. Assim, este livro
e o documento videográfico constituem registo dessa memória social e ação
histórica local que é obrigação intelectual e dever cívico transmitir às gerações
presentes e futuras.003
“Tua” história vivida (histórias de vida) é assim uma obra plural entretecida
de múltiplas e polifacetadas vozes que, no seu conjunto, constroem uma meta-
narrativa que se desenrola na surpreendente sub-região transmontana do Vale do

001 Ou seja, a história–objeto na definição do historiador francês Pierre Vilar, o que nos remete para o estatuto
ontológico da história.
002 Esclarecendo o conceito de «historia de vida» como técnica etnográfica comum à sociologia, história e
psicologia, pode entender-se por «história» uma história em minúsculas, de «personagens comuns » que se
não refere a façanhas de heróis ou homens famosos, mas é pelo contrário reflexo de uma vida simples, sem
fama nem glória; e por «vida», os relatos contados na primeira pessoa por qualquer protagonista vulgar capaz
de expressar-se com fluidez e uma boa dose de memória firme, relatos estes que também se diferenciam das
biografías narradas pelos escritores ou das memórias de pessoas públicas.
003 Tal finalidade teve desde logo tradução parcial na continuição deste projeto, numa 2ª fase, alargada em 2014
/ 2015, às comunidades escolares dos 5 municípios do vale do Tua cujos resultados se divulgam na edição de
novas publicações como por ex: LAGE, Maria Otilia Pereira - Vidas e Viagens à volta do vale do Tua. Projeto
Foz Tua MemTua 2 escolas, 2016. LAGE, Maria Otilia Pereira, Org. - Vale do Tua: Trabalho de campo e história
local (Antologia). Projeto Foz Tua MemTua 2 escolas, 2016.

10
Maria Otilia Pereira Lage

Tua feita de gentes, pedra e água ao longo de uma história densa mais que cente-
nária que singulares narrativas orais decompõem, reconstituem e nos devolvem.
Assume-se como meio de divulgação de uma herança cultural viva, lega-
da pela ação de populações anónimas, cuja presença na região se assinala ao
longo de sucessivas gerações. É nessa medida que se começa por refletir aqui
sobre a função do historiador, através do poema “O Profissional de Memória”
do grande poeta brasileiro, que por isso se escolheu para epígrafe de abertura,
qual fotografia antiga em tom de sépia, evocadora de lembranças que embora
por vezes diluídas se conservam, ainda hoje, na sabedoria de factos que comu-
nicam e na atmosfera sugestiva que transmitem.
O processo de investigação que lhe subjaz monumentalizando a memória
reconstituída com as populações devolve-a a estas, como pertença coletiva e
identidade cultural própria, tentando integrá-la no desenvolvimento de uma
memória com futuro que se reclama para este património histórico.

A construção da barragem do Tua pela EDP (2009-2015), a desativação dos


comboios e da linha férrea concitam interesses privados, controvérsias públi-
cas e iniciativas académicas de estudo e condições de possível preservação da
História e Memórias do Vale do Tua. Neste contexto, que pode entender-se
sociologicamente como “causa pública” de contraditórias origens e movimen-
tos, tem lugar a implementação do referido projeto internacional FOZTUA
com apoio da EDP, cuja configuração económica de base pede uma análise das
externalidades de empreendimentos deste tipo em Portugal.
Numa das vertentes específicas desse projeto, uma equipa interdisciplinar de
investigadores realizou, durante 4 anos, intensa investigação envolvendo traba-
lho de campo junto das populações locais, com larga expressão de ex-ferroviá-
rios da linha do Tua. Foi realizada durante a pesquisa, recolha e organização da
informação necessária, uma série diversificada e representativa de entrevistas
a pessoas com reconhecida experiência de vida, produzindo-se assim materiais
de memória e conteúdos relevantes sobre as realidades históricas e sociais do
vale, rio e linha do Tua. Foram recolhidas, e registadas em diferentes suportes
(escrito e audiovisual) 50 entrevistas semi-estruturadas, individuais e coletivas
com 48 informantes privilegiados de diferentes categorias etárias (entre os 55
e os 104 anos de idade) e estratos sócioprofissionais004, sendo depois editados

004 Trabalhadores e operários ferroviários da via e do movimento, maquinistas e chefes de estação, revisores,
inspetores, chefes de lanço, guardas de linha, pequenos, médios e grandes agricultores e comerciantes,

11
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

os respetivos registos videográficos, constituindo-se assim dois arquivos com-


plementares de materiais escritos e audiovisuais cujos conteúdos informativos
configuram o núcleo principal de suporte documental desta obra.

O trabalho de campo decorreu a espaços-tempos metodicamente progra-


mados e incidiu sobre dezenas de aldeias, vilas e cidades da área geográfica
do vale do Tua, tendo exigido sucessivos contactos com um amplo universo
de meia centena de informantes privilegiados de 3 gerações, amostragem re-
presentativa de homens e mulheres, com diversificados perfis e estratos so-
ciais, ocupações profissionais, formações e trajetos de vida diferentes, e uma
diversidade de papéis e posições sociais ocultas ou mais destacadas sobretudo
em meio rural mas também urbano. Estas fontes orais integram depoimentos,
testemunhos, narrativas, trajetórias e histórias de vida, e constituem um im-
portante repositório de vivências, memórias individuais e coletivas, perceções
e representações que localmente se conservam sobre a construção, evolução,
declínio e encerramento da linha do Tua.
Esse acervo devidamente organizado e tratado documenta a singularidade
local e a abrangência nacional da história recente da economia, sociedade e
cultura desta micro-região transmontana e sua envolvente natural cuja apre-
sentação geográfico-histórica se faz no 1º capítulo deste livro.
O segundo capítulo faz um mapeamento de natureza sociológica do uni-
verso de informantes privilegiados com quem se trabalhou. Eles são os atores
sociais na espácio- temporalidade em estudo e os aliados fundamentais deste
trabalho, cuja contribuição se retribui, com justa voz pública, de modo especí-
fico e adequado, nos capítulos seguintes.
Nos terceiro e quarto capítulos, mobiliza-se mais extensivamente o im-
portante corpus documental de fontes históricas orais inéditas, a cuja análise
interpretativa se procede, o que confere particular vivacidade aos contextos
e acontecimentos observados por diferentes escalas, aspetos e dimensões da
micro-história da região do vale do Tua.
Com o quinto e último capítulo, em que se explica sucintamente o mé-
todo e metodologias da investigação realizada sobre que assenta esta obra,

emigrantes e combatentes da guerra colonial portuguesa, utentes e viajantes do Comboio do Tua, familiares
de figuras emblemáticas da história da construção da linha férrea do Tua (engenheiros, empreiteiros,
políticos, pessoas públicas e notáveis locais), jornalistas regionais, administradores, operários e técnicos de
empreendimentos agro-industriais e fabris que foram fator de desenvolvimento interativo com o comboio e a
linha férrea.

12
Maria Otilia Pereira Lage

completa-se a apresentação da estrutura em que se organiza a sua escrita.

Salientamos, por fim, dimensões que compõem o principal argumento de


“TUA” História Vivida, o qual se sintetiza.
Os requisitos da história vivida e fontes orais, bem como as exigências
da reconstituição de histórias de vida, foram concetual e metodologicamente
orientados por um quadro teórico transversal designadamente aos domínios da
história, sociologia, etnometodologia e comunicação audiovisual.
As singulares histórias de vida repertoriadas apresentam uma notável ri-
queza longitudinal já que assentam na reconstituição de memórias e trajetos
biográficos individuais, recorrem a entrevistas em profundidade e utilizam in-
clusivé documentação pessoal. Por sua vez, a história escrita a partir de fontes
orais, ao privilegiar a reconstituição de memórias, depoimentos e testemu-
nhos, utiliza documentação de natureza pessoal e particular, sem porém deixar
de atender à construção social e histórica dos acontecimentos e seu conheci-
mento e estudar processos de mudança, evolução e regularidades. A análise
transdisciplinar das narrativas orais evidencia na longa diacronia e à escala
micro, persistências e mudanças mais significativas da história ambiental, so-
cial e cultural dos últimos cem anos do vale do Tua, em especial as induzidas
pela construção, funcionamento e encerramento do caminho-de-ferro do Tua
(1876 -1998). Todos os testemunhos ligados à história da linha férrea do Tua
disponibilizam conhecimentos e impressões que possibilitam compreender
acontecimentos, ações, protagonistas, práticas e saberes leigos e técnicos, mu-
danças sociais e culturais.
A substância social, cultural e histórica que com os informantes privilegia-
dos, nossos aliados imprescindíveis na observação participante, se descreve
e evidencia prende-se com as aspirações legítimas de cada indivíduo ao seu
desenvolvimento pessoal, humano e profissional que se confrontaram e con-
frontam com constrangimentos e leis que em grande medida lhes escapam.
Donde a preocupação em desmontar e interpretar discursos vigentes sobre
a história do vale e linha do Tua, tentar recuperar e repor o que populações e
indivíduos hoje maioritariamente solitários, mas não silenciosos, entendiam e
entendem como sendo as suas verdades sobre o assunto.
Assim, investigadores e atores sociais tornaram-se “colaboradores, com-
pondo e construindo a história” (Atkinson,2002, p.126) das comunidades do
vale do Tua.

13
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

A chegada do comboio do Tua ao nordeste transmontano nos finais do


séc XIX viria a marcar em definitivo a história seguinte do vale do Tua que
gerações transformaram num espaço único de cultura e saber, construindo a
paisagem e o território. É a este legado coletivo que se quis dar visibilidade,
nele interessando todo o tipo de leitores e o público em geral.

14
Maria Otilia Pereira Lage

1. ESPAÇO FÍSICO ENVOLVENTE:


O VALE DO TUA EM TRÁS-OS-MONTES

«A linha do Tua é, no seu início, paralela à linha do Douro, e ao próprio rio


Douro, mas com um declive ascendente acentuado. Ao infletir para norte, dei-
xa o vale do Douro, e entra no vale do Tua, pela margem esquerda do rio.
Numa curta inflexão do trajeto ferroviário, há uma paisagem que se transforma
profundamente. Pelo seu carácter inesperado, a vista que se colhe da ponte
rodoviária, de onde Orlando Ribeiro fez a fotografia, é das mais impressio-
nantes de todo o percurso da linha ferroviária. Para montante temos o vale do
Tua, que neste troço se apresenta muito cavado. É a porta de entrada de um
universo surpreendente e único que vamos percorrer. A Ponte das Presas e o
túnel com o mesmo nome, que imediatamente se lhe segue, são a primeira
expressão de uma intervenção humana que constituiu um dos maiores desa-
fios da engenharia portuguesa do século XIX. Todo o conjunto se encontra

15
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

perfeitamente enquadrado na paisagem, pois todo ele acaba por revelar uma
singular delicadeza face à grandiosidade do vale. No local avançam agora as
obras de construção da barragem de Foz-Tua.» [Duarte Belo, Portugal – Luz
e Sombra, pp 102-103]
Assim, pela linha do Tua “coluna dorsal de Trás-os-Montes” na opinião de
muitos dos seus ex-ferroviários, entramos no coração do Nordeste Transmon-
tano e na história natural do seu notável vale do Tua, atravessado ininterrupta
e diariamente durante mais de 120 anos por esta linha férrea de bitola estreita
que, ao longo de 133 km, serviu com as suas 17 estações e mais de 21 apea-
deiros, um grande número de povoações. Por isso, é suposto ter sido a campeã
das linhas férreas nacionais deste tipo.
Na segunda metade do séc XIX, antes da construção da linha do Tua, era
assim traçado o «Rápido esboço do estado económico e cultural d’este distric-
to de Bragança”:

«Quem percorrer, ainda que seja rapidamente, este districto, vê logo


quanto são avultadas as suas riquezas naturaes. (...) Mas no entanto esta
primeira impressão de riqueza vem logo associada com outra, que se
pôde talvez exprimir pela palavra - aridez - bem triste, bem estranha,
por isso mesmo que as duas são opostas e formam tamanho contraste.
É que na montanha núa de qualquer vegetação, de ordinário até a mais
rasteira, a terra despega-se e cáe sob a acção das chuvas e das geadas.
No valle, por onde serpenteia a corrente, as aguas alagadiças, e sem
que sejam reguladas, formam brejo improductivo. No cimo apparecem
despidas as rochas, esqueleto informe que deixa romper a descoberto a
carne que se esphacela: em baixo os lôdos fertilíssimos ficam perdidos
e são arrastados pelas aguas.
Atravessam-se assim por esta forma largos tractos de terreno, ora
vadeando uma corrente, ora pela lombada ou meia encosta da serra,
seguindo o atalho caprichoso talhado e batido com os pés dos homens
e dos animaes.
Continuando assim o caminho vê-se de repente a paisagem mudar de
aspeto. No valle as aguas são melhormente repartidas, e o paul torna-se
em lameiro que se cobre de herva; a vinha trepa em alguma das encos-
tas; nas terras menos fundas apparece o centeio em companhia de algum
dos outros cereaes; nas terras mais quentes encontra-se sempre a olivei-

16
Maria Otilia Pereira Lage

ra; e associadas a estas, que diremos culturas predominantes, agrupam-


se então uma infinidade de outras mais secundárias, e variando sempre
com o terreno e com o clima. No centro de um d’estes pedaços cultiva-
dos encontra-se uma povoação...» (D.Antonio Coutinho, agrónomo)005

Assim era o território do distrito brigantino, já bem entrada a segunda me-


tade do século XIX, uma vasta área isolada e adormecida, marcada por uma
variedade de terrenos e de clima, povoamento disperso e de contraste acen-
tuado entre a aridez das serras e rochas multiformes de vegetação rasteira e os
vales quentes das vinhas e oliveiras fertilizados pelos lodos e águas alagadiças
onde o sistema de troca direta era ainda vigente, já que em matéria de indús-
trias «até os nomes são desconhecidos», e as estradas se contam pelos dedos.
Desse «paiz que vive entregue a si mesmo”, deixa D. António, autor citado, na
sua carta a Batalha Reis, um quadro triste e sombrio.
Cinquenta anos depois, a região será percorrida por um geógrafo - Vergilio
Taborda - que dela faz um outro retrato. Trás- os- Montes é, porém, ainda o
mesmo. Por isso, tantos ensinamentos que Taborda colhe nas obras do mes-
tre. As feiras, as tarefas agrícolas, as migrações de trabalho, tudo se mantem.
Finda a sementeira, a terra entra em repouso sobre o manto das geadas e com
ela os homens, recolhidos à lareira, nos longos serões de inverno, até que a
primavera, despertando a natureza, de novo os enleie nas malhas dos mesmos
trabalhos. O isolamento continua ainda.006
De facto, como bem descreve já no séc XX, Vergilio Taborda, notável geó-
grafo transmontano aqui citado (a negrito e entre aspas]:

“Distinta é a região norte transmontana… terras mais altas, des-


dobrando-se em montanhas e planaltos montuosos, um clima ri-
goroso de invernos frios e verões quentes, variado até ao infinito
consoante as circunstâncias de relevo e exposição, húmido e plu-

005 D. Antonio Xavier Pereira Coutinho - «Rápido esboço do estado económico e cultural d’este districto de
Bragança”. Cap.I.“A Quinta Districtal de Bragança no anno agricola de 1875 a 1876 –Relatório. Apresentado
ao Ill.mº e Exc.mº Snr. Adriano José de Carvalho e Mello digníssimo governador civil pelo agrónomo do
districto..., Porto, Typ. do Jornal do Porto, 1877. In Notas e Recensões : “O DISTRITO DE BRAGANÇA em
1876 numa carta de D.Antonio Xavier Coutinho”. REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS - GEOGRAFIA I
Série, Vo l. III, Porto, 1987, p.247.
006 “Notas e Recensões: “O DISTRITO DE BRAGANÇA em 1876 numa carta de D.Antonio Xavier Coutinho”.
REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS - GEOGRAFIA I Série, Vo l. III, Porto, 1987, p. 243 a 277.

17
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

vioso a oeste, mais seco à medida que se caminha para a frontei-


ra oriental… um solo granítico e arcaico, magro e descarnado nas
partes altas, de maiores aptidões agrícolas nos vales… junto à serra
de Bornes, é caracterizada por um solo de xisto precâmbrico e um
clima peculiar de verões muito quentes e uma secura acentuada….”
[Nas terras também definidas como terra mista, com condições espe-
ciais de altitude e exposição e aspetos peculiares de clima, vegetação
e culturas] “que recebem o hálito de vales propriamente durienses”
[predominam a vinha, a oliveira e a amendoeira e com elas o centeio
também. De clima excessivo, é uma região de carvalhos, tojos, giestas,
carqueja e urze, aqui e além, e sobretudo] “nas paisagens xistosas do
Tua, pintalgados pela flor e cheiro inconfundíveis da esteva.”
[A contrastar com a dureza e altura dos montes, surgem os pomares,
as hortas, os soutos - espaços mais próximos do homem e da sua fome.
De referir que a propriedade é, na sua maioria,] “de pequena superfície
e fragmentada” [e a apropriação do solo revela a alma do transmontano
–] “um ser com sede e fome de terra”. [No que respeita ao povoamen-
to, pode-se falar de uma arquitectura da solidariedade; temendo o frio e
a solidão, as casas juntam-se umas às outras, formando grupos compac-
tos de aldeias e lugares. Estes aglomerados de pedra têm, muitas vezes,
como razão da sua existência, estarem perto da água, uma aliança íntima
e frequente. É perto da água que existem as boas terras: os solos mais
frescos e fundos das veigas, a terra fértil das hortas, espaços que, no todo,
evidenciam um entendimento entre o homem e o local onde vive.] 007

O geógrafo citado rejeita os termos “Terra Fria” e “Terra Quente” para


distinguir, dentro do Alto Trás-os-Montes, norte e sul, pois vê nesta no-
menclatura reflexos de uma linguagem popular, ao contrário de outro re-
putado geógrafo, Orlando Ribeiro, que posteriormente os utiliza quando
se refere à influência do rio Douro e seus afluentes sobre parte da região,
marcando uma “diferença de altitude e de clima, que essas expressões evi-
denciam”. Assim, já em meados do séc XX, este autor considera, numa
notável síntese geográfica de informação reunida durante décadas em seus
cadernos de campo, durante várias viagens feitas à região, que as expres-

007 Litescape.pt. Alves, Isabel Fernandes - Vozes Transmontanas na Paisagem. Paisagens de pedra e água na poesia
de A. M. Pires Cabral. Lisboa, FCSH / NOVA, Editora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2013.

18
Maria Otilia Pereira Lage

sões Terra Quente e Terra Fria distinguem duas regiões naturais, a saber:
a chamada Terra Fria que “(…) é um planalto de 700-800 m de altitude
média, dominado por algumas serras pouco altas e entalhado por vales pro-
fundos e estreitos. O clima é rude e contrastado, com inverno frio e longo
e um estio muito quente. (…) O carvalho negral, o castanheiro, o freixo ou
negrilho, formam tufos distantes, o solo das depressões cobre-se de esteva
odorante. O cereal dominante é o centeio, em afolhamento bienal.”(…);
e a que se designa “A Terra Quente formada pelos vales que afluem ao
Douro, providos às vezes de largas bacias, encaixados alguns centos de me-
tros no planalto. O clima é, por isso, muito diferente: com poucas chuvas,
inverno moderado pelo abrigo das altas vertentes e verão com dias tórridos
que sucedem a noites abafadas. O manto vegetal toma, pela primeira vez, uma
feição francamente mediterrânea: belas matas de sobreiros, olivais, plantações
de figueiras, amendoeiras, laranjeiras e outras árvores de fruto. Mas a origina-
lidade da região está na cultura da vinha. Calcada exatamente sobre um aflora-
mento de xisto que o Douro atravessa no sentido da maior dimensão, a «região
demarcada dos vinhos do «Pôrto» é a mais admirável obra humana que pode
ver-se em Portugal. (…)”008

Em que medida as descrições anteriormente expostas sobre aspetos físicos,


humanos e culturais dos distintos lugares da região transmontana, com par-
ticular destaque para os seus vales, podem suscitar sentimentos de pertença
e identificação, presentes quer nas trajetórias e histórias de vida aqui con-
templadas, quer em categorias estéticas e literárias ou mesmo nos crescentes
movimentos ambientais dos nossos dias?
Para além da crescente e pormenorizada atenção que desenvolvem, desen-
cadeiam uma forte influência na compreensão física e imaginativa da vida
humana associada aos lugares numa forte intimidade e estreita cumplicidade
baseadas no conhecimento e no respeito, entre os seres humanos, o seu territó-
rio local de origem ou de pertença e os aspetos materiais do ambiente natural,
histórico e cultural.
Territórios e indivíduos interpenetram-se numa leitura compreensiva cuja
depuração e decomposição metafórica geram a catalização de afetos, percep-

008 Orlando Ribeiro, Apud GUEDES, Maria Teresa Valente de Sousa Guedes - O Alto Douro na obra de Orlando
Ribeiro. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2010. Tese de Mestrado em riscos, cidades e
ordenamento do território.

19
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

tos e singularidades que delineiam mundos físicos e mentais que compõem o


cenário contrastante e polícromo de uma densa história vivida do quotidiano
neste território que as histórias de vida dos seus naturais e habitantes entrete-
cem e exemplificam.

“nós, os excessivos transmontanos, nascemos excessivamente longe. Um


rio e uma cadeia montanhosa separam a nossa terra do resto de Portugal. E nós
somos esse rio, feito de mil rios e riachos, e essa montanha, feita de mil serras
e colinas.
(...) O rio: a água rumorosa e ágil. A montanha: a pedra estável e grave. A
água - aventureira. A pedra – taciturna. Água e pedra. Nós: os andarilhos das
sete partidas e os obstinados prisioneiros da gleba.” (Antologia 15). (…) esta
é uma terra dúplice: terra de vinho, terra de água, terra de azeite, terra de pão,
terra de luz (...) mas terra também de horizontes austeros, imutáveis, opressi-
vos, que asfixiam sonhos e incitam à retirada” (ibidem). Mas os que nela nas-
cem, crescem e morrem com esta terra agarrada ao corpo e ao espírito: “traze-
mos as unhas sujas dela, os olhos namorados dela.” E, por isso, (…) “esta terra
é-nos inevitável – obriga os que imitam a pedra e a vivem por dentro, e obriga
os que imitam a água e a vivem por fora. Isto é: os que a amam em presença e
os que a amam em memória”009

O imaginário literário do vale do Tua010, longe, construído de pedra, terra e


água, por prisioneiros da gleba de alma resistente à vida de andarilhos de múl-
tiplas partidas, torna-se presente nesse horizonte impressivo de serras, riachos
e colinas onde frutificam com a vegetação e o alimento diário, ações diárias
corajosas e memórias vivas capazes de transpor a opressão, a imutabilidade e
a asfixia.
Fica assim delineado, diferenciada e complementarmente, o enquadramen-
to físico e ambiental deste singular e valioso património histórico e cultural (i)
material, que se pode intuir na “terra mater” das histórias de vida em que se
molda esta obra e a preenchem de colorido humano e social.

009 A.M. Pires Cabral apud ALVES, Isabel Fernandes - Vozes Transmontanas na Paisagem. Paisagens de pedra
e água na poesia de A. M. Pires Cabral. Lisboa, FCSH / NOVA, Editora da Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas, 2013.
010 LAGE, Maria Otilia Pereira, Org.; BEIRA, Eduardo, Fot. - “Tua” Colectânea Literaria: O vale, o rio e a linha
Férrea. Projeto FozTua, 2013.

20
Maria Otilia Pereira Lage

Porém, este cenário rico, profundo e variado ao nível da geografia histórica


e natural compreender-se-á de um modo mais vivo quando dermos voz aos
que nele se construíram contribuindo para a sua construção socio-histórica, o
que se fará nos próximos capítulos.

21
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

2. GALERIA DE INFORMANTES E TRAJETÓRIAS BIOGRÁFICAS

O ambiente físico e natural do vale do Tua atrás descrito tem vindo sucessi-
vamente a ser transformado pelo trabalho de seus habitantes e pela ação de
todos quantos participaram na sua história económica e social. Aí, como a
nível nacional, foi fator inegável de mudança a alteração das comunicações
e meios de transporte registada sobretudo na viragem do séc XIX para o séc
XX, a qual seria marcada pela incontornável influência da linha férrea do Tua,
marco na história oitocentista dos caminhos-de-ferro portugueses, bem como
pelo seu profundo impacto na vida e na história das populações locais desta
região, sobretudo durante todo o século passado.
Define-se então neste capítulo o espaço social historicamente construído
nesse ambiente físico e natural. Para isso faz-se a caracterização sociodemo-
gráfica de um universo populacional representativo dessa contextualidade es-

22
Maria Otilia Pereira Lage

pácio-temporal, constituído por: 48 indivíduos, idade média de 80 anos, sele-


cionados e entrevistados nesse âmbito. Esboça-se a seguir um painel histórico
sociológico significativo de alguns desses “agentes eficientes”011 (individuali-
dades sociais com atributos e atribuições), graficamente representados no seu
conjunto e da sua correspondente “superfície social” 012 (isto é, a quadrícula
dinâmica de movimentos e posições individuais e sociais), com o qual se ilus-
tra, documenta e analisa a qualidade desse universo.

Importa, porém, explicitar previamente a necessária prevenção sociológica


sobre a chamada “ilusão biográfica”, a evitar quando se trabalha com histórias
de vida como aqui acontece, a qual nos orienta na interpretação dinâmica quer
das trajetórias de vida e acontecimentos biográficos narrados pelos agentes
eficientes, quer da superfície social que as suas posições e movimentos per-
mitem delinear.
“Os acontecimentos biográficos definem-se como colocações e desloca-
mentos no espaço social, isto é, mais precisamente nos diferentes estados su-
cessivos da estrutura de distribuição das diferentes espécies de capital que
estão em jogo no campo considerado. O sentido dos movimentos que con-
duzem de uma posição a outra (…) evidentemente se definem na relação ob-
jetiva entre o sentido e o valor dessas posições num espaço orientado. O que
equivale a dizer que não podemos compreender uma trajetória (…) sem que
tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela
se desenvolveu e, logo, o conjunto das relações objetivas que uniram o agente
considerado (…) ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo
e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis. Essa construção prévia
também é a condição de qualquer avaliação rigorosa do que podemos cha-
mar de superfície social, (…) isto é, o conjunto das posições simultaneamente
ocupadas num dado momento por uma individualidade biológica socialmente
instituída e que age como suporte de um conjunto de atributos e atribuições
que lhe permitem intervir como agente eficiente em determinados campos.
(…) [Sendo] o individuo, a pessoa, o “eu”, “o mais insubstituível dos seres”…
para o qual nos conduz irresistivelmente uma pulsão narcísica socialmente
reforçada (…)”013

011 Conceito teórico desenvolvido pelo reputado sociólogo francês Pierre Bourdieu
012 Ibidem.
013 BOURDIEU, Pierre – “A ilusão biográfica”. In Usos e Abusos da Historia Oral, p. 190-191.-

23
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Atendendo a esta perspetiva sociológica que alerta para a necessidade de


contornar a ilusão biográfica, consideram-se, esquematicamente, como “agen-
tes eficientes” e correspondente “superfície social” os informantes privilegia-
dos que entrevistámos e as respetivas narrativas orais produzidas no quadro
da pesquisa de campo efetuada sobre história e memórias do vale e da linha
do Tua e em interação com os investigadores sociais com os quais colaboram
no processo de construção do conhecimento do objeto em estudo. Os seus
testemunhos e depoimentos constituem um importante capital de informação
e conhecimento num amplo espaço de possíveis inteligibilidades, compondo,
ao mesmo tempo, uma galeria humana social e cultural de singular expressivi-
dade simultaneamente do espaço socioambiental e das ambiências biográficas
e socioprofissionais. Nessa medida são sucintamente apresentados no seguinte
painel (quadro nº1) que contempla variáveis biográficas e de género, temáti-
cas e cronológicas, relevando nestas últimas os principais períodos ou arcos
temporais do sec XX a que fundamentalmente se reportam as suas narrativas.

2.1. Universo populacional do Vale do Tua

A tabela e gráficos seguintes construídos a partir da agregação de elementos


dispersos e diversos mas globalmenre caraterizadores, possibilitam uma visão
de conjunto dos agentes eficientes e suas trajetórias e da superfície social que
configuram indicadores de orientação para a reconstituição sócio-histórica do
vale, rio, linha e comboio do Tua que assim se empreende.

Quadro nº1 – Galeria de informantes: “ agentes eficientes” e “superfície social”


Nºentrevº / Nome Naturalidade /
Notas biográficas Género Palavras -chave
/ idade Residência

1 / A.O. 80 anos Fiolhal- C.A Professora aposentada, Feminino Volfrâmio; II Guerra


.(Carrazeda de Ensino Primário, Mundial; vinha com
Ansiães) proprietária rural e benefício
dona de quinta na Anos 1940-2009
encosta do Tua
2 / A.S.S. 83 anos Foz Tua- C.A. Pequeno proprietário e Masculino Contrabando de volfrâmio
ex ferroviário / Comboio do Tua.
Anos 1940-1970.

24
Maria Otilia Pereira Lage

Nºentrevº / Nome Naturalidade Notas biográficas Género Palavras -chave


/ idade / Residência
3 / A.J.A. 77 anos Foz Tua- C.A. Ex-ferroviário Masculino linha do Tua / Ferroviários
aposentado, filho de / Acidentes. Anos 1930-
antigo maquinista. 1975
4 / J.A.T. 77 anos Sentrilha – Agricultor, ex-pastor Masculino Vale do Tua; linha do Tua
C.A. e ex-emigrante na / Volfrâmio / Emigração.
Alemanha Anos 1940-1980.

5 / M.F.L.82 anos Pombal - C.A. Pequena proprietária Feminino Comboio do Tua; Termas
e comerciante, viúva S. Lourenço / transporte
de ex-emigrante na carros bois / Emigração.
Alemanha Anos1940-1980.

6 / A.J.S. 63 anos Porto Veterinário, proprietário Masculino linha do Tua- Construção /


de antiga família de empreiteiro / Barragem do
C.A., ex-presidente da Tua. Anos 1900-1990
Câmara C.A., bisneto
do empreiteiro da linha
do Tua, João da Cruz
7 / M.A.F.M.C.C. Castanheiro do Farmaceútica Feminino linha do Tua – Construção
82 anos Norte, C.A. aposentada, filha de / Comboio do Tua /
antigo engenheiro da apeadeiro Castanheiro.
linha do Tua Anos 1890-1940

8 / F.Q. 66anos Amieiro, Alijó. Ferroviário e chefe de Masculino linha do Tua / S. Tomé e
estação da linha do Tua, Príncipe / África / serviço
aposentado presidente militar. Anos 1970-1990.
da Junta de Freguesia
de Amieiro- Alijó

9 / N.C.77anos Mirandela Alfarrabista, bibliófilo, Masculino Comboio do Tua /


dono da centenária Mirandela / Inauguração
Livraria Académica do linha do Tua.
Porto. Anos 1940-1970.
10 / M. S. 93 Leça da Viúva e curadora da Feminino linha do Tua / Ponte de
anos Palmeira obra do escritor Jorge Abreiro / Comboio do Tua.
-Matosinhos de Sena, reside em Anos 1940-1950
Santa Barbara, USA
11 / ACCA 62 Barca de Alva Viúva de ex-ferroviário Feminino Ferroviários / guarda de
anos da linha do Tua, linha / estação de Frechas
descendente de / estação de Mirandela
ferroviários, foi guarda / linha do Tua / fado /
de linha e residiu na religião popular
estação do Caminho de / mobilidade social
Ferro de Mirandela Anos 1950-80

25
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Nºentrevº / Nome Naturalidade Notas biográficas Género Palavras -chave


/ idade / Residência
12 / M. J. 90anos Mirandela Ex-ferroviario da linha Masculino linha do Tua / condições
do Tua –trabalhador da de trabalho ferroviário /
via e chefe de distrito II Guerra Mundial / Fome
/ Companhia Nacional
Anos 1940-60
13 / P. A. 80anos Mirandela Ex-ferroviario da linha Masculino linha do Tua / ferroviários
do Tua – assentador / 25 Abril. Anos 1950-80
de travessas, revisor e
inspector
14 / M.L. 104 Areias-C.A. Proprietária agrícola Feminino Construção da linha
anos do Tua / ferreiros /
ferramentas / almocreves
Anos 1880-1960
15 / .A.M.77anos Areias-C.A. Enfermeira reformada Feminino Moçambique / Porto /
Escola Primária / Termas
S. Lourenço Anos 1960-80

16 / J.R. 64 anos Coleja-C.A. Ferroviário reformado, Masculino Pesca / Agricultura /


ex-chefe de estação do África / Mobilidade social.
Tua. Anos 1950-90.
17 / M.LLS 91 Jerusalém Professora Ensino Feminino Sociedade Clemente
anos do Romeu Primário Meneres / Feitor / Romeu /
-Mirandela Macedo / Bragança
Anos 1930-80
18 / J.C.OM80 Leça da Engenheiro, bisneto Masculino Família Clemente
anos Palmeira / do fundador da Casa Menéres / Romeu / Porto
Matosinhos- Clemente Meneres, / Matosinhos / Brasil /
Porto técnico superior das Agricultura transmontana.
Indústrias Jomar e Anos 1910-1990
gerente da Empresa
Menéres.
19 / V.A.P.71 Salsas – Ferroviário reformado Masculino Material circulante /
anos Bragança. da CP. em estações da espólio museológico /
linha do Tua e noutras locomotivas antigas. Anos
vias férreas e guarda 1900-1990
da Secção Museológica
Ferroviária de
Bragança.
20 / Mirandela Operário, serralheiro Masculino História da CUF-
C.A.G.71anos efetivo da CUF Mirandela / fábrica /
(Companhia União operário / indústria em
Fabril) em Mirandela Trás-os-Montes.
desde 1963 e Anos 1960-1980
encarregado geral
da conservação e do
fabrico, de 1970 a 1987.

26
Maria Otilia Pereira Lage

Nºentrevº / Nome Naturalidade Notas biográficas Género Palavras -chave


/ idade / Residência
21 / A.F.S. Mirandela Jornalista imprensa Masculino Família de ferroviários
82anos regional de Mirandela, e agricultores / CUF-
funcionário do MAP, Mirandela / História do
dirigente desportivo e Cachão / 25 de Abril /
dos BVM e Presidente Camilo Mendonça / Trigo
Centro de Gestão da Negreiros / complexo
Empresa Agrícola do fabril / empreendimento
Vale do Tua. agro-industrial / notáveis
locais pioneiros do
Comboio do Tua
Anos 1930-1980

22 / Tomar Técnico de eletro - Masculino História da CUF /


H.R.N.79anos Mirandela mecânica da CUF Quimigal
no Montijo, Lisboa e Anos 1950-1960
Mirandela.
23 / N.P.54anos Mirandela Engenheiro e Masculino História da CUF-
funcionário da empresa Mirandela. Anos 1970-80
CUF-Mirandela, desde
1979.
24 / A. J. R.70 Mirandela Ex-ferroviário da linha Masculino Oficinas da Estação de
anos do Tua, electricista da Mirandela / mobilidade
CP desde 1960. sócio-profissional.
Anos 1960-1980
25 / J. E. Codeçais Ex-ferroviário da linha Masculino Oficinas da Estação de
G.70anos Moncorvo do Tua, servente e Mirandela / mobilidade
chefe de eletricistas das sócio-profissional.
Oficinas, desde 1980. Anos 1960-1980
26 / A. D. J.63 Moncorvo Ex-ferroviário da linha Masculino Oficinas da Estação de
anos Barreiro do Tua, operário da CP Mirandela / Família
desde finais dos anos Ferroviária. Anos 1970-80
1960.
27 / B. S.C.65 Grijó – Ex-ferroviário da linha Masculino Estação de Bragança / CP
anos Macedo de do Tua, funcionário da / mobilidade social.
Cavaleiros CP desde 1975, como Anos 1970-1990
auxiliar de estação em
Bragança e ajudante de
condutor.
28 / L.Q.F.T. 65 Mirandela Ex-ferroviário da linha Masculino Carreira de ferroviário /
anos do Tua, entrou para CP / Centenário da linha
a CP em 1975, como do Tua / Cachão / Romeu
assentador e chegou a / Transporte ferroviário
Supervisor. mercadorias / mobilidade
social. Anos 1970-90

27
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Nºentrevº / Nome Naturalidade Notas biográficas Género Palavras -chave


/ idade / Residência
29 / R. R.Q. Lousa Ex-ferroviário da linha Masculino Carreira de ferroviário
71anos (Moncorvo) / do Tua, começou como / melhoria de condições
Mirandela fogueiro e em finais dos de vida e trabalho / 25 de
anos 1970 passou a Abril / mobilidade social.
maquinista. Anos 1960-80
30 / A.S.65 anos Codeçais-C.A. Ex-operário da CP, Masculino Serviço militar em Africa
ex-emigrante no / Guerra Colonial /
Luxemburgo, reformado emigração / mobilidade
e agricultor. sócio-profissional / Caldas
de S. Lourenço.
Anos 1960-80

31 / L.A.73anos Brunheda-CA. Ex-ferroviário da CP, Masculino Acidentes ferroviários


maquinista na Linha / horários do comboio
da Póvoa, reformado, / guardas de linha /
agricultor. tradições / Caldas de
S.Lourenço. Anos 1960-80

32 / L.G. Codeçais-C.A. Ex-ferroviário da CP, Masculino linha do Tua / ferroviário


79 anos durante 34 anos, nas / Mobilidade sócio-
estações e revisor nos profissional / agricultor
comboios das Linhas do / Protestos contra
Douro e do Tua. encerramento da linha do
Tua. Anos 1950-1990

33 / M.J.M.L.C. Angola Filha do Dr. João Lopes Feminino Família João da Cruz,
A. M. da Cruz Júnior, médico Empreiteiro da linha do
81 anos natural do concelho de Tua / Falência / linha do
Carrazeda de Ansiães, Tua - Construção (1900-
neta de João da Cruz, 1905). Anos 1905-1950
empreiteiro da linha
do Tua.
34 / M.J.L.C Angola Neta de João da Cruz, Feminino ibidem
82 anos empreiteiro da linha
do Tua, filha Dr. João
Lopes da Cruz Júnior,
médico natural do
conc.de Carrazeda de
Ansiães.
35 / M.FL Angola ibidem Feminino ibidem
C83anos

28
Maria Otilia Pereira Lage

Nºentrevº / Nome Naturalidade Notas biográficas Género Palavras -chave


/ idade / Residência
36 / J.M.L C 80 Angola Neto de João da Cruz, Masculino ibidem
anos empreiteiro da linha
do Tua, filho Dr. João
Lopes da Cruz Júnior,
médico natural do
conc.de Carrazeda de
Ansiães.
37 / M.C.66anos Setúbal / Trás- Professor universitário, Masculino Festival da Canção (1979)
os-Montes / ex-jornalista e autor / Canção O Comboio do
Lisboa da letra da canção Tua / Trás-os-Montes.
O Comboio do Tua”. Anos 1970-1980.
Viúvo de transmontana
continua ligado a Trás-
os-Montes por laços
familiares.

38 / Porto / Brasil Cantora e fadista Feminino Canção Comboio do Tua


F.MCV63anos portuguesa, com uma / Ferroviários do Tua /
carreira musical em Emigração para o Brasil /
Portugal e Brasil, Música ligeira / Fado.
com numerosos discos Anos 1960 / 1980
gravados de música
ligeira e tendo atuado
com Amália Rodrigues,
na Televisão, e em
festivais. Intérprete da
canção “O comboio
do Tua” - 4º lugar no
Festival da Canção
de 1979 com êxito
nacional.
39 / MJS 91 anos Pinhal do Proprietária agrícola, Feminino Vale do Tua / Vida rural
Norte – C.A. filha de agricultores / Agricultura / Comboio
do Vale do Tua e mãe do Tua / Termas de S.
de dois comerciantes Lourenço / Volfrâmio /
de Mirandela e de uma contrabando de minério
professora de ensino / Eleições Humberto
primário Delgado (1958) / II
Guerra Mundial / Fome /
Racionamento / Vinho do
Porto / Poesia popular /
mobilidades / emigração /
Guerra Colonial / Regedor
/ Eleições no Estado Novo
Anos 1940-1980

29
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Nºentrevº / Nome Naturalidade Notas biográficas Género Palavras -chave


/ idade / Residência
40 / F.A.78anos Carrapatosa Ex-ferroviário, entrou Masculino Maquinista / Material
/ Lavandeira, para a CP em 1957, circulante / comboio a
C.A. trabalhou em vários vapor / Máquinas Diesel /
serviços e linhas linha do Tua / Mobilidade
férreas, foi depois social / Formação
fogueiro e maquinista profissional / Sindicato
da linha do Tua desde / 25 de Abril. / Viagem
1967 até se reformar histórica / horários / CP
em 1995. Conduziu / locomotivas antigas
locomotivas a vapor e / Barragem do Tua /
a Diesel, honra-se de transporte ferroviário /
ter conduzido na linha Desenvolvimento
do Tua, na década de Anos 1950-1990
1980 o então presidente
da República, Mário
Soares.
41 / M.C. Beira Grande Descendente dos Feminino Comboio do Tua /
M85anos C.A. / Penafiel fidalgos das Casas Canções populares / Casa
Solarengas de Selores brasonada de Selores
e Alganhafres, / Casa brasonada de
estudou em Bragança Alganhafres / aristocracia
e Lamego, filha de rural / Falências /
trabalhador de quintas Carrazeda de Ansiães /
do Douro, foi regente João da Cruz / empreiteiro
escolar e professora da linha do Tua / Regente
de ensino prmário, Escolar / Ensino Primário
em várias localidades / Emigração / transportes.
transmontanas e no / Desenvolvimento
distrito do Porto. Anos 1940 a 1970
Quando estudante em
Bragança fez diversas
viagens no Comboio
do Tua.
42 / Porto / Técnica tributária dos Feminino linha do Tua / Estação da
M.PMV57anos Ribeirinha V.F. Serviços de Finanças Ribeirinha / Comboio do
/ Lavandeira- no Porto, licenciada Tua / rio Tua / Cachão /
C.A. em História, tem casa Festa da Srª da Assunção /
e raízes familiares em Marechal Carmona / Tifo /
Trás-os-Montes, região Galegos / Apelidos.
do Vale do Tua. Anos 1970 -1990

30
Maria Otilia Pereira Lage

Nºentrevº / Nome Naturalidade Notas biográficas Género Palavras -chave


/ idade / Residência
43 / A.FLS. Monte Meões, Engenheiro desde 1950, Masculino Casa Clemente Menéres
88anos aldeia do trabalhou na construção / Romeu / linha do
Romeu – c. de várias barragens do Tua / Comboio do
Mirandela / país, no Metropolitano Tua – estações e
Porto. de Lisboa e, a partir apeadeiros / Engenheiro
de 1958, na EDP, até / Barragens EDP / Paiva
se reformar. Passou a Couceiro / conspirador
infância em Jerusalém monárquico / Ferroviário
do Romeu, neto de / Capataz / Professora
administrador da Casa Ensino Primário /
Clemente Menéres do Empreendimento agro-
Romeu e filho de ex- industrial
ferroviário da linha do Anos 1920-1970
Tua.
44 / E.M.65anos Mirandela Engenheiro aposentado Masculino Empresa do Metro
da Câmara de de Mirandela /
Mirandela, é desde Mobilidades / Transportes
então responsável urbanos / linha do
do Metropolitano Tua (encerramento) /
ligeiro de Mirandela, acidentes ferroviários /
empresa criada pela Acessibilidade / Câmara
Câmara Municipal de Mirandela / CP. /
para transporte Desenvolvimento
coletivo de passageiros
em meio ferroviário Anos 1990-2010
ligeiro de superfície,
sendo a sociedade
constituída por Câmara
Municipal de Mirandela
(90%) e CP (10%). A
partir de 1995, a nova
empresa começou a
explorar o troço entre
Mirandela e Carvalhais
e passou a assegurar,
desde Out.  2001, o
serviço no restante
troço activo da linha
do Tua (de Tua a
Mirandela). A ligação
ao Tua foi suspensa
em 2008, na sequência
de 2 acidentes graves
na linha do Tua,
é desmantelada a
automotora e só
assegurada a ligação
Carvalhais – Cachão.

31
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Nºentrevº / Nome Naturalidade Notas biográficas Género Palavras -chave


/ idade / Residência
45 / Angola- Neta de João Lopes Feminino I Guerra Mundial /
MFLCA79anos Luanda da Cruz, empreiteiro Campanhas militares
da linha do Tua portuguesas Africa /
(troço de Mirandela a Linha Tua-construção
Bragança) casado com / Toponímia Carrazeda
uma senhora natural Ansiães / Luanda /
de Ribalonga, aldeia Clube Transmontano /
de Carrazeda, e filha Família Lopes da Cruz
do médico militar, dr. / Emigração-África e
João Lopes da Cruz Brasil.
Júnior, assinalado na Anos1900-1950
toponímia de Carrazeda
de Ansiães.
46 / Bragança / Lx Descendente de antiga Masculino Família do conselheiro
VMFBP80anos família transmontana de Abílio Beça [Vinhais,
ascendência espanhola, 1856 - Salsas, 1910] /
residente em Lisboa, Ascendência espanhola
filho de juíz que / Governador Civil de
exerceu em Bragança, Bragança / político
cidade onde viveu transmontano / Presidente
a infância e bisneto da Câmara de Bragança /
por linha materna do Deputado pelo distrito de
Conselheiro Abílio Bragança / promotor da
Augusto de Madureira linha do Tua (Mirandela-
Beça, político promotor Bragança) / escolas
da construção do 2º primárias / Historia de
troço da linha do Tua, família / Desenvolvimento
Mirandela-Bragança e Anos: 1900-1950
empreendedor durante
os cargos políticos que
teve na cidade e no
distrito de Bragança.
47 / Lisboa Bisneto de Tristão Masculino História de família /
EPMGQ75anos Guedes Correia de Conde da Foz / Caminhos
Queirós, 2.º Conde de Ferro Portugueses
da Foz (1849-1917), / Investimentos nos
grande colecionador caminhos de ferro /
de obras de arte e ex- Financiamento / linha do
proprietário do Palácio Tua-construção.
Foz (Restauradores, Anos: 1880-1910
Lisboa) onde deu festas
tornadas célebres
na alta sociedade
lisboeta. O seu nome
ficou na história dos
caminhos- de- ferro,
pelo financiamento
da construção das
primeiras linhas férreas
em Portugal.

32
Maria Otilia Pereira Lage

Os gráficos que se seguem foram elaborados tendo em conta quatro variá-


veis selecionadas para categorizar a diversidade de elementos constantes do
quadro anterior: escalões etários, género, naturalidade e profissão dos entre-
vistados. Neles se configura o perfil social dos indivíduos considerados que
permite saber a partir de que posição social falam esses informantes privile-
giados. Observados separadamente e no conjunto proporcionam uma leitura
mais imediata e explícita da representatividade do universo populacional e
possibilitam ainda evidenciar características gerais dominantes das trajetórias
e histórias de vida dos autores das narrativas orais, “ agentes eficazes” que co-
laboraram na investigação de que também foram objeto e que, por sua vez, en-
tretecem uma singular “superfície social” e história quotidiana do vale do Tua.

Gráfico nº1 – Distribuição por escalões etários


20
entrevistados

14 15
11
10
5
2
0
“+90” 90 - 80 80 - 70 70 - 60 60 - 50
anos

Fonte - Quadro nº1 –Galeria de informantes. MOPL, 2015.

40+60
Grafico nº2 - Distribuição por Género

Feminino 17
Masculino 30

Fonte: Quadro nº1 –Galeria de informantes. MOPL, 2015.

33
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Gráfico nº3 – Distribuição por Profissões

36+4+9112613
Ferroviários 36%
Operários 4%
Engenheiros 9%
Agricultores 11%
Professor / as 9%
Farmacêutica 2%
Enfermeira 2%
Veterinário 2%
Livros / Imprensa 6%
Cantora 2%
Técnicos 4%
Profissão desconhecida 13%

Fonte: Quadro nº1 –Galeria de informantes. MOPL, 2015.

Gráfico nº 4 –Distribuição por naturalidade


Naturalidade
Lisboa 3
Porto 5
Angola 5
Douro 3
Macedo de Cavaleiros 1
Moncorvo 3
Romeu 2
Bragança 2
Vale do Tua 23

Entrevistados

Fonte: Quadro nº1 –Galeria de informantes. MOPL, 2015.

2.2. Painel de trajetórias biográficas representativas

A precedente apresentação gráfica da caracterização do universo de atores e


agentes sociais nossos aliados de investigação é agora desenvolvida e parce-
larmente ilustrada pela transcrição seletiva de alguns fragmentos de narrativas
orais em que se descrevem trajetos de vida e trajetórias profissionais desses
agentes.
Com esta galeria de protagonistas locais e suas vozes únicas se compõe
um autóctone grupo coral que, completando e enriquecendo o traçado painel
de informantes, contribui para um conhecimento concreto densificado e mais

34
Maria Otilia Pereira Lage

próximo das histórias de vida que, por sua vez, constituem a ancoragem da
história vivida do Tua.
Pode intuir-se, com base na perspetiva sociológica abordada, que o traçado
seletivo desta galeria de “agentes eficientes” e suas trajetórias concorrem ativa
e explicitamente para a definição dos contornos nítidos de uma dinâmica e
diacrónica “superfície social” característica das populações desta sub-região
transmontana do vale do Tua.
A sua linha férrea e o comboio constituem o eixo organizador do conjunto
de narrativas de vida e de trabalho que a seguir se transcrevem parcialmente,
estruturadas em dois sub - núcleos: Trajetos de vida no vale do Tua; Trajetórias
de trabalho na linha e comboio do Tua. Os Ferroviários.

2.2.1. Fragmentos de narrativas e trajetos de vida


Viver no vale do Tua nos últimos cem anos significa ser marcado incontor-
navelmente pela entrada inaugural do caminho-de-ferro e pela cadência de
chegadas e partidas dos comboios num território até então quase isolado pela
falta de acessos e de transportes.
Como se poderá ver, são de assinalar, entre muitos outros aspetos conforma-
dores e típicos da vida quotidiana das populações ribeirinhas do Tua merecedores
de todo o interesse e atenção, fenómenos constantes e sucessivos que afetaram
profundamente a história e a vida das popluções locais como designadamente as
contantes migrações internas e os sucessivos surtos e ciclos de emigração.

● Agricultor de aldeia ribeirinha do Tua


“…Sou analfabeto… só frequentei a escola durante 2 ou 3 meses, que nessa
altura funcionava na aldeia de Pinhal do Norte, a aldeia mais próxima… fui
rapidamente guardar gado (ovelhas) o que fiz até aos 20 anos de idade. Como
comecei a guardar gado muito novo e não podia fazê-lo, fui preso… Havia um
guarda na Carrazeda, o Redondo, que era muito mau e não me podia ver com
as ovelhas. Um dia, multou-me e como não paguei a multa, estive preso, na
Carrazeda, durante 10 dias...
…O meu pai tinha as ovelhas para fazer queijo que se vendia bem em
Carlão, Candedo e Porrais, terras do lado de lá do rio Tua, que as mulheres
atravessavam a pé, com a canastra dos queijos à cabeça. Como estas terras
tinham pouco gado, os queijos vendiam-se muito bem…

35
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

…Com 20 anos casei - me com uma mulher da Santrilha que já tinha 35


anos. Isto foi em 1952. Ela vivia com a mãe que tinha enviuvado e eu passei a
ser o homem da casa e o guardião das duas... Nessa altura também tive bois
para trabalhar no campo. Normalmente, ia comprá-los à feira a Candedo.
Criava-os, trabalhavam e depois, passados anos, vendia uma junta de bois
por 4 ou 5 contos...
…Mais ou menos em 1968, emigrei para França para arranjar melhores
condições de vida e poder dar estudos aos filhos. Fui a salto, com um grupo
de 3 ou 4… Paguei à volta de 600 escudos a um passador que orientava a
passagem na fronteira de Chaves. …Até Mirandela fomos de comboio e daqui
a Chaves fomos de camioneta. …Vesti duas andadas de roupa e não levei mais
nada... para termos as mãos livres…. Não estava permanentemente em Fran-
ça…. fazia trabalho sazonal numa quinta, onde trabalhavam 20 portugueses
na agricultura…. Mas lá não era preciso andar a cavar: havia máquinas para
tudo… Regressei de vez em 1976 e agora vivo com a reforma de cá e com a
de lá…
…Os três filhos que tive foram estudar para o liceu de Mirandela. A mais
velha fez o Magistério Primário em Bragança… ia de comboio e demorava
mais ou menos 6 horas para lá chegar...
…Quando me casei, para ir a Carrazeda, demorava mais ou menos 2 ho-
ras. A cavalo, não chegava a 1 hora. Íamos à feira, às Finanças, à Conserva-
tória para registarmos os filhos...e outras coisas mais...
…O meu Pai ainda andou na 1ª Grande Guerra… Também me falava sobre
a construção da linha do Tua, onde andou muita gente daqui e de longe. Até
vieram para cá muitos Galegos, os quais viviam mal. Trabalhavam na linha
e nas vinhas. Na construção da linha morreu muita gente: os galegos enter-
ravam-nos por lá, onde calhava!...[Informante 4 –duas entrevistas em 2010 e
2011]

***

• Proprietária rural, farmacêutica aposentada e neta de engenheiro ligado


à linha do Tua
“…A linha do Tua é fabulosa mas mete um bocado de respeito… uma vez fiz a
viagem de comboio até Mirandela… fui só mesmo para ver… tive medo… era
de respeito… naquela descida do Castanheiro para o rio Tua é que as minhas

36
Maria Otilia Pereira Lage

tias ainda têm uma propriedade com cortiça, laranjas, azeite… iam lá regar
as laranjas mas nunca me deixaram ir porque era muito longe… é na encosta
do rio Tua que vai ser alagada pelas obras da barragem…
…Sou a mais nova dos netos de Manuel Maria Lopes Monteiro, enge-
nheiro civil, nascido em 1855 e falecido em 1923. Licenciou-se em 1883 / 84.
Vivia na aldeia do Castanheiro. Formou-se no Porto, ainda não existia a linha
do Douro em toda a sua extensão. Assim, viajava de barco até à estação da
Ermida, fazendo o restante trajeto de comboio. Quando começou a trabalhar,
ganhava “5 escudos em ouro por mês” sempre ouvi dizer isto na família....
Viveu em Bragança, onde foi engenheiro das obras públicas. Também esteve
a exercer as mesmas funções em Mirandela e em Vila Real.… teve um papel
importante na construção da linha do Tua: isso estava bem documentado em
vários livros de família que estarão nas mãos de um alfarrabista, uma vez que
foram vendidos. Foi diretor das obras públicas em Bragança. Antes de falecer,
fez as partilhas: a casa do Castanheiro ficou para 4 dos filhos; a casa de Arnal
coube a 2 dos filhos e a casa da Fontelonga ficou para os restantes 3 filhos.
A casa da Fontelonga, muito posteriormente, foi doada pela tia à igreja e
funciona lá atualmente o lar de idosos. Também, na aldeia do Castanheiro, foi
doada uma propriedade pela minha tia Isaura para ser construída a Escola
Primária que ainda hoje lá está. Parte da casa do Castanheiro, a frontaria, a
certa altura foi vendida a um sujeito que veio de África e eu fiquei com a parte
de trás da casa, que é a mais antiga, a original, onde existe ainda um enorme
lagar, a pia de pisar o vinho, uma trave enorme onde se fazia a prensa e tem
ainda aquelas lojas todas...
Na aldeia do Castanheiro havia três grandes famílias: os Monteiros, os
Frias / Filipes e os Freitas… no Verão, a nossa família frequentava muito as
termas de S. Lourenço…. íamos de burro e cavalo e atalhávamos pela aldeia
do Pombal.
Como se vivia no Castanheiro no tempo da minha juventude? De acordo
com o que observava, as pessoas viviam muito mal… tinham vidas muito sa-
crificadas e trabalhavam, muitas vezes, em condições difíceis. Por exemplo:
para lavarem a roupa, deslocavam-se a pé até ao rio Tua, onde faziam as
barrelas com cinza e estendiam lá a roupa. De regresso, subiam com tudo à
cabeça e sempre a subir até à aldeia. Posteriormente, na quinta da Lavandei-
ra, que tinha uma mina de água belíssima, construíram um lavadouro público,
em pedra, o que facilitou a vida das mulheres. As crianças andavam sempre

37
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

descalças e com as roupas bastante esfarrapadas. As pessoas alimentavam-


se mal. Lembro-me de ter assistido a refeições feitas em casa dos caseiros,
as quais consistiam num prato de batatas cozidas que cada um ia molhando,
à vez, em azeite e acompanhava com pão centeio…. o centeio era negro, ne-
gro… Quando comiam pão de trigo, era uma festa... o peixe do rio aparecia
mas tinha muitas espinhas… Para se aquecerem, as mulheres, que eram umas
heroínas, iam à lenha, traziam molhos enormes de agulhetas que recolhiam
no monte. Cultivavam o azeite, as laranjas e a cortiça…. mas víamos as es-
trelas…
…As pessoas utilizavam o comboio para se deslocarem até Bragança.
Apanhavam o comboio no apeadeiro do Castanheiro do Norte que tinha lá um
funcionário... Quando tinham de se deslocar ao Porto, iam a pé até Foz-Tua
apanhar o comboio…” [Informante 7, duas entrevistas em 2011 e 2012]

***

• Proprietária agrícola e pequena comerciante de aldeia ribeirinha do Tua


Nasci a 10 de Abril de 1931, na aldeia do Pombal de Ansiães, Rua do Cal-
vário. Casei aos 27 anos com um homem da Régua que era sapateiro de pro-
fissão. Tive 4 filhos: 2 raparigas e 2 rapazes. Quando chegou a altura de os
filhos estudarem, o meu marido foi obrigado a emigrar para a Alemanha... A
casa onde morávamos também era pequena e era preciso arranjar uma maior.
Emigrou mais ou menos por volta de 1966 e foi trabalhar para uma fábrica
de ferro em Hamburgo. Esteve lá 15 anos. Emigrou através de um mediador.
Até à sua saída, foi o único sapateiro da terra. Tinha muita freguesia e fazia
calçado para gente de Carrazeda, do Amieiro, etc. …Eu fiquei a explorar um
pequeno comércio aqui no Pombal e a educar os filhos. Desta aldeia foram
várias pessoas para a Alemanha e para a França. Na França ainda lá vivem
algumas famílias.
Os meus filhos fizeram o liceu em Bragança. Deslocavam-se para esta ci-
dade pela linha do Tua, de comboio, que apanhavam na estação de S. Louren-
ço para onde iam a pé ou a cavalo… a cavalo demoravam à volta de 1 hora...
Eu ia com alguma frequência a Bragança e sempre de comboio. Só passei a
viajar de comboio para o Porto quando os filhos para lá foram estudar, os que
seguiram o ensino superior... Eu só tive uma irmã que faleceu quando fez 51
anos, com um cancro na garganta. …quando eramos mais novas discutíamos

38
Maria Otilia Pereira Lage

às vezes por causa do tamanho das nossas orelhas, uma porque as tinha muito
grandes e a outra porque as tinha muito pequenas. A nossa mãe, para pôr fim
à discussão dizia: ”orelhas grandes, vida longa; orelhas pequenas, vida cur-
ta...”. E, na verdade, a que tinha as orelhas pequenas, partiu aos 51 anos de
idade e a outra irmã ainda está viva para contar estas histórias...
…Fiz a 4ª classe na escola do Pombal. Gostava muito de ler e os da família
Lima que tinham muitos livros emprestavam-mos. Por exemplo, o engenheiro
Lima pôs-me à disposição os livros do seu escritório. Lembro-me que trouxe
de lá um livro que me marcou para o resto da vida. Chamava-se “Saúde e
Amor na vida sexual” e era de um escritor italiano. Havia, no Pombal, ou-
tra família importante, a família dos Lebres que eram morgados. Esta terra
“produziu” 3 governadores civis: o Dr. António Luís Freitas, que foi gover-
nador civil de Bragança. Os outros dois foram o Eng. Raúl Lima e o Dr. João
Noronha…
…No meu tempo não havia muita gente do Pombal a trabalhar na estação
de S. Lourenço. No entanto, um homem do Pombal, de nome Manuel Pinto,
esteve muitos anos a trabalhar na estação, mas a gente que lá trabalhava
vinha mais do Amieiro. Daqui também houve um maquinista que já morreu…
…ia-se por esta linha fora para Mirandela. A viagem de ida e volta era fei-
ta no mesmo dia. Também se ia a Bragança, mas aí já era preciso lá dormir…
Na altura também se ia à feira a Candedo quando era necessário comprar ou
vender animais…
…Naquele tempo havia muitos casamentos de raparigas com 12 anos de
idade. Faziam-se para juntar fortunas de família… uma irmã do meu bisavô
casou com 12 anos e teve 12 filhos…
...Quando eu andava na escola primária, as pessoas passavam mal: havia
muitas necessidades… Nós, graças a Deus não… tínhamos os produtos da ter-
ra… e o meu Pai caçava. Usava um “enchoeiro” (armadilha) para apanhar
perdizes. Servia-se de uns pauzinhos (“aboízes”), onde espetava uma haste
de um sombreiro já velho, com um feijão pequeno para atrair a perdiz… Por
aqui nunca vi lobos, mas havia-os: iam aos currais e matavam muita ovelha.
As raposas matavam muitas galinhas….
…Ainda me lembro bem da forma como se atravessava o rio, na Brunheda,
antes de haver a ponte: era a pé, por cima das poldras, ou de barco… [Infor-
mante 5, duas entrevistas em 2011]

39
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

***
• Proprietária agrícola natural de aldeia das encostas do Tua / ex-profes-
sora de ensino primário
…Nasci aqui no Fiolhal que, em tempos, foi um baldio. Era um feudo. Tem
casas ainda do século XVI. Foi dado a umas famílias, os Figueiredos, que vie-
ram dos lados de Viseu e se tinham tornado conhecidos por feitos praticados
na Índia… A minha bisavó, natural do Castanheiro do Norte, era filha única
com muitos haveres. Casou com um rapaz de Castanheira de Pêra que tinha
estudos e era irmão do Padre de lá. Dedicava-se aos negócios de lanifícios. O
seu trabalho obrigava-o a deslocações de comboio até ao Pinhão e, daí até ao
Tua, de mala-posta. Quando vinha, ficava instalado em casa dos pais da mi-
nha bisavó. Ele tinha 26 anos, era bonito, estudado e de boa família. Ela tinha
apenas 13 anos e casaram-se. Ela dizia: “eu não me casei, casaram-me…”.
Tiveram 20 filhos. Só num ano teve 3 filhos: um, em Janeiro e dois gémeos
em Dezembro. Nunca amamentou os filhos pois tinha sempre uma ama de
leite. Naquele tempo (séc. XIX), todo o homem de estatuto tinha uma amante,
a quem a mulher fechava os olhos desde que o marido desse bom viver em
casa. E isso acontecia. Sempre que tinha mais um filho, “enquanto estivesse a
guardar o mês”, comia frango ao longo da semana e comia cabrito assado ao
fim-de-semana… faleceu aos 85 anos… A minha mãe era do Fiolhal e era filha
de um brasileiro. Sou a pessoa mais velha da família Costa Santos… Muitos
jovens desta região partiram por causa da filoxera. Só em 1880 se iniciou
o debelar desta doença da vinha com a introdução das cepas americanas.
Independentemente desta doença, o pequeno lavrador passou sempre muitas
vicissitudes: por exemplo, tinha que dar 950kgs de uvas para uma pipa de 550
litros de vinho do Porto…. então pôr filhos a estudar era dificílimo…
…No Brasil, o meu avô começou a trabalhar num armazém de secos e mo-
lhados, armazém de vinho, vinagre, petróleo, arroz, feijão, grão, etc.. Como
era muito sério e muito trabalhador, ganhou a confiança dos patrões que, ao
fim de alguns anos, lhe propuseram sociedade… Depois de vários anos de
trabalho no Brasil, regressou ao Fiolhal, em 1890, onde comprou um casal
que estava à venda (propriedades dispersas que podem até não se situar na
mesma aldeia). …uma curiosidade: trouxe do Brasil um cordão de ouro e um
xaile de merino preto para cada uma das irmãs e um capote alentejano para
cada um dos irmãos. Regressado do Brasil, não trabalhava porque recebia
uma reforma. Tinha um Procurador. Quando regressou do Brasil, já havia a

40
Maria Otilia Pereira Lage

linha do caminho-de-ferro de Mirandela até Foz-Tua, a qual fora inaugurada


em 1887. Começou a ser construída em 1884… Entretanto encetou o namoro
com a senhora mestra do Fiolhal (em 1890 só havia escola no Castanheiro) e
casou com ela. Tiveram uma filha apenas, a qual nunca seguiu estudos porque
os pais não queriam separar-se dela …nessa altura ainda não havia o cami-
nho- de -ferro de Mirandela para Bragança… O meu pai fez a 4ª classe na
escola do Castanheiro e a minha mãe frequentou o Colégio de Tralhariz, que
era particular e tinha internato. Naquele tempo, anos de 1800 e tal… paga-
vam 18 libras por ano e os exames da 4ª classe iam fazer-se a Moncorvo… Eu
frequentei a escola primária em Foz-Tua a partir de 1938. Vivia no Fiolhal. Ia
a pé para a escola e demorava mais ou menos 20 minutos. Descia pelo meio
dos vinhedos e atravessava a linha do comboio pela parte debaixo da Quinta
dos Smiths. A escola tinha 40 alunos, da 1ª à 4ª classe. O Fiolhal não tinha
escola; no entanto, na casa da minha avó, funcionava a escola com o ensino
feito por ela para aquelas crianças que não queriam ou não podiam ir para
Foz-Tua ou para Tralhariz.
…Estive no Tua até à 4ª classe mas, em Maio adoeci com uma hepatite...
Estive muito doente e, só aos 13 anos fui para Bragança acabar a instrução
primária para a escola de uma tia minha, em Formil, muito perto da igreja de
Castro de Avelãs. Ia de comboio para Bragança. A viagem demorava 6horas.
Lá, estava em casa da minha tia que era casada com o chefe da estação de
Bragança, político ferrenho, “do reviralho”… contra a situação. Foi com este
tio que me iniciei na política. Fiz a 4ª classe, fiquei distinta, mas os meus pais
não me deixaram fazer o exame de admissão ao liceu. O meu pai era muito
conservador e queria que a filha fosse dona de casa. Durante 7 anos aprendi
a bordar, a cozinhar, etc. Aos 20 anos voltei para Bragança para estudar no
liceu. Depois tive bolsa de estudo na Escola do Magistério Primário, em Bra-
gança, onde tirei o curso de Professora de Ensino Primário…
…nesses terrenos das encostas do Tua onde tenho uma quintinha que ainda
se salvou de ser alagada pelas obras da barragem… aí antes era preciso “fa-
zer o circo”, como o povo dizia, isto é, raspar toda a erva seca, o “faneco”…
vem de feno… para que os incêndios que pegavam com as faúlhas do comboio
se não propagassem”[Informante nº1, duas entrevistas, 2011 e 2012]

***

41
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

• Livreiro antiquário e bibliófilo, natural de Mirandela


“….Fiz a minha primeira viagem de comboio, primeiro na linha do Tua e,
depois, na linha do Douro, viajando sempre em terceira classe… em 1948 /
49… Nesse dia, fiz três coisas pela 1ª vez na minha vida: andei de comboio,
calcei sapatos e vesti um fato completo, de riscado, do mais barato que havia
no mercado… De vale de Juncal, minha aldeia natal, até à estação de Miran-
dela, vim com o Pai e outra pessoa numa carrocita puxada por um macho. O
meu Pai fez-me companhia na viagem, embora me recorde de uma pequena /
grande peripécia acontecida nessa minha 1ª viagem. Apanhámos o comboio
em Mirandela e viajámos até Foz-Tua. Aí mudamos para a linha do Douro
a fim de seguir viagem até ao Porto, fazendo uma paragem acentuada na
Régua. Aqui, o meu Pai saiu do comboio para ir ao bar da estação. Quando
a máquina deu sinal de partida, como era deficiente físico, e não conseguia
andar sem muletas, o meu pai não chegou a tempo ao comboio e viu-o partir,
percebendo que o filho passaria a fazer o resto da viagem sozinho. Decidiu,
então, ir falar com o chefe da estação, pedindo-lhe que transmitisse ao revi-
sor o recado segundo o qual havia um rapazinho que viajava sózinho pela 1ª
vez. O meu Pai viajou no comboio seguinte e eu esperava-o, com a mala, na
estação de S. Bento. Como um azar nunca vem só, detetei que tinha perdido o
chapéu do meu Pai. Sabendo que o meu progenitor era amigo, mas bastante
severo, estava tremendamente receoso com a chegada dele, que, para meu
grande espanto, foi então extremamente compreensivo… Nota importante:
nessa altura, no comboio, viajava muita gente.
…Quatro dias depois de ter chegado ao Porto, vi um anúncio no jornal que
pedia um marçano para a livraria Académica. Concorri ao lugar, fui admitido
e arranjei emprego para a vida inteira. Fui subindo no meu posto de trabalho
até que me tornei no dono da livraria… Durante toda a adolescência, viajava
para a minha terra, no Natal e no mês de Setembro, quando a livraria fechava
para férias. Como fazia a viajem nestas datas, o comboio ia sempre lotado…
íamos como a sardinha na canastra…
…Já bem mais tarde, uma vez houve uma reunião de escritores em Vila
Real, no Solar de Mateus, onde se discutiu que seria interessante criar um Cen-
tro de Documentação Transmontana. Eu afirmei nessa reunião: “ terei muito
gosto em criar em Mirandela um centro para onde mandarei livros”. Isso já foi
feito depois do 25 de Abril. Mandei para Mirandela livros sobre Trás-os-Mon-

42
Maria Otilia Pereira Lage

tes e fazia uma ficha sobre aquilo que mandava. De momento, haverá nesse
centro, na Biblioteca Municipal, à volta de 2.000 títulos sobre Trás-os-Montes.
Vou lançar agora o 5º volume sobre bibliografia transmontana…
…mas já antes e quando juntei algum” dinheirito” comprei um “caixote”
KodaK e, nas férias, entre os anos 1949 – 1952, fotografava as pessoas da
minha aldeia. Decorridos 50 anos, resolvi fazer uma surpresa às pessoas, am-
pliando as fotografias e oferecendo-as a quem de direito. Constatei que muitas
pessoas não possuíam uma única fotografia dos familiares e ” ficaram mais
contentes com aquilo do que um gato com um chocalho”, como se costuma
dizer… “Há pequenos nadas que podem fazer a felicidade das pessoas”. Em
vale de Juncal foi criada uma associação cultural com o nome do meu Pai.
Este local tem livros, reúne pessoas que arranjam algum dinheiro para fazer
melhorias quer na aldeia, quer na própria associação. Estão agora lá também
muitas das fotografias que eu tirei com o meu “caixote”.
... O fundador desta casa [Livraria Académica fundada em 1912] convi-
dou-me a ficar com ela pois eu sempre trabalhei com livros… Por isso tencio-
no comemorar os cem anos da minha Livraria… e fazer uma exposição sobre
A Renascença Portuguesa014 que tem os mesmos anos da livraria...[Informan-
te nº9, uma entrevista em 2012]
Como podemos concluir destes excertos de fontes orais que documentam
a diversidade de trajetórias de vida das populações ribeirinhas do vale do Tua,
viver e trabalhar neste meio rural sempre foi tão difícil que os que tinham
ou podiam ter outras ambições cedo abalavam do seu lugar de pertença; no
entanto,ligados ao torrão natal por afeições e memórias, a ele regressavam
sempre. Constantes migrações internas e emigração crescente, como única via
de procura de uma vida melhor para si e seus filhos, foram aqui movimen-
tos populacionais dominantes, mormente desde que passaram a ser facilitados
pelo caminho-de-ferro.

2.2.2. Trajetórias de trabalho na linha e comboio do Tua. Os ferroviários


Trabalhar nesta região interior transmontana-duriense foi durante largos anos no

014 Movimento cultural português com um ideal nacionalista, surgido em 1912, no Porto, onde esteve ativo alguns
anos. Foram seus principais mentores, Jaime Cortesão, Teixeira de Pascoais e Leonardo Coimbra. A Revista
Águia, publicada no Porto entre 1910 e 1932, e em que colaboraram Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro,
era o seu órgão oficial.

43
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

imaginário ferroviário traduzido por esta expressão émica “Ou Tua ou rua ou
praias do Pinhão” que poderá interpretar-se como sinónimo de ameaça ou de úl-
tima oportunidade em matéria de colocação no exercício de funções profissionais.
A este título, são significativas as seguintes histórias de vida de ex-ferroviá-
rios da linha do Tua selecionadas num conjunto de 17 entrevistas feitas a pessoal
ferroviário que permitem questionar tal asserção que se tornaria lugar-comum.
É de destacar a sua relevância, designadamente ao nível do que demons-
tram sobre vinculação à profissão ferroviária, considerada acima de tudo “uma
família”, a consciência social de pertença à sua terra natal, as condições favo-
ráveis nos caminhos- -de-ferro à reprodução social e mobilidade sócio-profis-
sional cujas manifestações diversas e diferentes etapas permeiam todos estes
fragmentos de suas narrativas orais.

• Pessoal Ferroviário - Vida profissional (via e estação): Carreiras / catego-


rias
“…Havia várias etapas na vida profissional de um ferroviário… pessoal tra-
balhador e chefes de distrito…O trabalhador da via – fazia a renovação, a
manutenção e a limpeza da via (arrancava as ervas, por exemplo, dado que
ainda não havia herbicidas). Na altura, as travessas de madeira estavam as-
sentes na terra, não tinham brita, o que dava muito mais trabalho…A maioria
das travessas eram feitas em pinho, mas também as havia feitas com madeira
de carvalho e eucalipto….
O Chefe de Distrito (era o chefe de brigada).Os Chefe de Lanço …são
atualmente os supervisores de via…julgo que é assim que lhes chamam….os
distritos eram unidades mais pequenas do que os lanços. Por exemplo: toda
a linha do Tua era um lanço e as sub-divisões eram os distritos / troços de
Mirandela a Bragança. …isto foi feito à semelhança de Inglaterra, no tempo
da Margaret Taecher… A CP deu lugar à Refer e actualmente todas as infra-
estruturas são da Refer… a CP só tem os comboios…
…nos anos 1980 fez-se a separação das infraestruturas e do comercial…
…o pessoal dos comboios eram os maquinistas, os condutores, responsá-
veis pela circulação, os revisores, os fogueiros, estes só quando havia máqui-
nas a vapor…
…no pessoal da estação havia os praticantes de fator, os fatores, os carre-
gadores, os operadores de manobra, os fiéis de estação e os encarregados de
apeadeiro…

44
Maria Otilia Pereira Lage

…o Fator era o chefe das estações pequenas. Havia Fator de 3ª, de 2ª e


de 1ª. Depois passou a ser designado por letras. Também havia o praticante
de fator.
…as vagonetas eram usadas para transportar os carris, travessas…
…ainda no tempo da Companhia Nacional houve uma reformulação das
carreiras e das categorias e alterações ao regulamento da carreira…
…Os chefes de lanço e os chefes de distrito tinham todos direito a casa.
Por esse motivo é que havia ao longo das linhas de caminho-de-ferro várias
casas que hoje ainda existem, mas vão ficando em ruínas.
…Havia avaliações anuais do pessoal para efeito de mudança de escalão.
Para se ser avaliado era necessário fazer formação profissional… para se
fazer avaliações havia cursos de formação…
…Eu cheguei a ser avaliador na linha do Tua enquanto era avaliado pelo
Inspector que, por sua vez, era avaliado pelo Engenheiro da Região. …ainda
cheguei a trabalhar na Estação de Santa Luzia a fazer uns jeitos… por exem-
plo, a um cunhado meu que às vezes tinha outros serviços a fazer…
…havia um ferroviário que era de S. Mamede e que se formou em Filoso-
fia… está no Pinhão… a estação agora só abre 3 vezes por semana… o pai
dele foi carregador… eu consegui que ele fosse a fiel de estação… escreveu-
me no facebook porque quer fazer um trabalho sobre o Jornal “ A Voz do
Amieiro”… Nos ferroviários, havia a tradição de a profissão passar de pais
para filhos… também sempre que morre um ferroviário a gente vai ao fune-
ral… há solidariedade…” [Informante nº 8, duas entrevistas 2013]

***

• Capataz, encarregado e fator na chefia de pequenas estações


“(…) o meu pai foi sempre maquinista na linha do Tua… antes era da Com-
panhia Nacional e só depois é que foi para a CP… isso foi aí em 1930 e tal…
1936 / 37 / 38… Nesse acidente, o meu pai partiu 2 costelas mas o fogueiro…
mete carvão na máquina… não sofreu nada… o maquinista é que bateu na
manivela da alavanca…
…Comecei a trabalhar nos caminhos-de-ferro com 22 anos e meio, depois
que saí da tropa… corri tudo, Lisboa, Ovar, Gaia, Santa Luzia na linha do
Tua…, desde servente até fator que fazia o serviço de circulação e contabili-
dade… (…) comecei como servente… era o vassoura da estação… Na ânsia

45
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

de subir na carreira, fui para Alfarelos, onde fiz o curso de Agulheiro. Fui
promovido a Agulheiro e fui de novo para Foz-Tua. Entretanto, concorri para
Capataz de Manobra e fui para a estação de Vila Nova de Gaia, onde esti-
ve durante 2 anos… coordenava o trabalho dos serventes… Concorri, então,
para Encarregado de Apeadeiro… chefiava estações de pouco movimento… e
fui colocado em Chanceleiros, estação na linha do Douro, a seguir ao Pinhão.
Depois, fui para a Régua, de novo para Foz-Tua e, de seguida, para a estação
de Santa Luzia da linha do Tua. Entretanto, abandonei por algum tempo os
caminhos-de-ferro devido a uma transferência que considerei injusta e à não
atribuição da casa a que tinha direito e fui para Foz-Tua trabalhar na empre-
sa Cockburns. Foi então que aconteceu a revolução de 25 de Abril. Mas a pai-
xão pelos caminhos-de-ferro era mais forte do que eu e concorri novamente,
tendo sido colocado em Santa Luzia [Setembro de 1974]… Durante o tempo
em que estive em Santa Luzia, tinha uma motorizada que ficava em S. Lou-
renço, enquanto percorria a pé o caminho até ao local de trabalho, pois não
havia estrada… Saí de Santa Luzia a fim de ir frequentar, no Entroncamento,
o curso de Fator. Fui depois colocado em Ferradosa, a chefiar a estação.
Daí, voltei para Foz-Tua, pois o apelo da minha terra era sempre muito forte.
Aqui, trabalhei como Fator… No Tua [1980-1993] tive casa como agulheiro,
no bairro que lá existe para famílias dos ferroviários… era da CP… agora é
da Câmara… Depois de ter trabalhado em Foz-Tua, pedi a reforma [1993]. …
Trabalhei sempre muito, a uma média de 12h por dia. Havia falta de pessoal
para trabalhar… Mas também ganhava… além disso tinha direito ao modelo
X44 que permitia viagens gratuitas aos funcionários. Quando havia casa dis-
ponível, também podia viver nela. No caso de não haver, arrendava casa, mas
pagava sempre uma renda pequena… Sempre gostei dos comboios… tinha as
regalias dos caminhos de ferro… tinha passe livre do meu falecido pai… nun-
ca quis ser polícia…” [Informante nº 3; 2 entrevistas em 2012 e 2013]

***

• Maquinista
…Nasci na Carrapatosa. Aos 18 anos, comecei a trabalhar nos caminhos-
de-ferro. Há 52 anos que vivo na Lavandeira (Carrazeda de Ansiães), onde
casei. Frequentei a escola primária em Linhares. Da Carrapatosa a Linhares,
demorava mais ou menos 40 minutos “a andar a pé e descalço”, “ quando ía-

46
Maria Otilia Pereira Lage

mos a brincar uns com os outros, demorávamos duas horas”. Fiz a 4ª classe:
“naquele tempo, quem é que tinha estudos? Alguns ainda faziam a admissão,
mas muito poucos…
Quando comecei a trabalhar, depois de casar, fui para Cotas, por cima do
Pinhão. Mais ou menos no ano de 1967 vim para o Tua, onde estive vários
anos, mas sempre a trabalhar na linha. Depois, pedi a transferência para a
tração: fui para Cernada do Vouga, um ano para Aveiro até que me matriculei
na escola de Campanhã para poder ascender a fogueiro. Fui, então, para a
Boavista (Porto) e depois para a Régua, mas já como fogueiro. Depois da
Régua, fui frequentar a escola de Campanhã para poder ser Maquinista. Para
se ser Fogueiro, a formação era de 2 ou 3 meses, mas para se ser Maquinis-
ta, era maior. Em ambos os casos tinha que se passar numa Junta Médica e
no Psicotécnico. Havia maquinistas que tinham que ir todos os anos à Junta
Médica, a Lisboa, ou porque tinham tensão alta ou porque se suspeitava de
algum problema de coração. Por vezes ficavam impedidos de exercer durante
algum tempo. Eram muito rigorosos com isso. Quando havia mudança para
novas locomotivas, tinham sempre que ir à Junta Médica e ao Psicotécnico. …
eu fui diversas vezes… E, sempre que mudavam de locomotiva tínhamos for-
mação e avaliação... Tínhamos que ir à Escola de formação em Campanhã.
Tínhamos formação em função das máquinas que conduzíamos e fazíamos
provas escritas e provas orais. Quando tínhamos que conduzir locomotivas
novas, voltávamos à Junta Médica e ao Psicotécnico. Tínhamos formação
escrita quando mudávamos de locomotiva. Fazíamos provas escritas e orais…
…quando mudei para o vapor, fui conduzir as Allans, que eram automoto-
ras de cor azul no início e, depois, vermelhas. …Eram um rico material, com
grande estabilidade; só eram problemáticas no Verão, por causa do calor. Por
vezes deitavam a água fora; de Mirandela até ao alto de Rossas era preciso
saber lidar com elas... A propósito disto, lembro-me de um maquinista que de-
morou uma hora e quarenta minutos de Mirandela a Bragança precisamente
porque não soube lidar bem com as dificuldades que lhe surgiram por causa
do calor. No dia seguinte, eu, com a mesma máquina e o mesmo calor, demorei
trinta minutos. Nas subidas, era preciso abrir um bocadinho aos vasos, mas
aos poucochinhos. Fomos indo assim até que no alto do Azibo abrimos os
vasos todos e pusemos-lhe a água fresca da ribeira do Azibo…
…as máquinas Diesel …foi das coisas boas que vieram para a linha do
Tua; bastava ser cuidadoso na condução porque avarias elas não tinham...

47
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Depois vieram as Chepas (máquinas jugoslavas)… essas eram uma desgraça.


Eram pior do que as Allan cem vezes. Era material péssimo; aqueciam dema-
siado, fugia a carga às baterias, eram um problema…. Foram os ferroviários
que lhes deram o nome por causa da telenovela brasileira D. Chepa, que era
transmitida na altura e por causa de elas se embalarem muito… Ainda são
as que andam no metro de Mirandela. Os engenheiros não achavam graça
nenhuma ao nome….
…Enquanto trabalhei na linha, fiz de tudo. Andei a meter travessas na
linha, trabalho duro... mas eu tinha ambição... E foi esta ambição que me fez
progredir na carreira: da linha fui para a Tração e daqui para Fogueiro…
Deixei de ser eventual mais ou menos em 1960. Fui nomeado para o qua-
dro para o Entroncamento… Depois casei-me e vim trabalhar para o Tua, já
com casa para onde levei a mulher. Como tinha boas informações junto dos
superiores, pedi transferência para a Tração…. Em Mirandela, fui nomeado
maquinista em 70 ou 72 e aqui permaneci até me reformar. Depois, ainda fui
durante meio ano destacado para a Régua porque havia lá muita formação
para dar a maquinistas… Pagavam-me as deslocações, por fora. Mas, lá as
máquinas andavam-se a desfazer, eu é que já as conhecia. Ainda fiz exame
para Inspector, mas fiquei mal. Mas, ainda bem.... trabalhei com as máquinas
a vapor, com as Diesel, com as Allans e com as Chepas… Conhecia as peças
todas destas máquinas… embora tivesse formação mecânica, a prática diária
ensinava-me muita coisa… era muito duro… diversas vezes, deitávamo-nos e
passado pouco tempo já estavam a chamar a gente...
…o maquinista a vapor era mais bem visto pelo público; este, respeitava
mais a pessoa do maquinista a vapor. Depois, no tempo da Diesel, parece que
já não prestavam a mesma atenção ao maquinista… Como era difícil lidar
com o vapor, valorizava-se mais quem era bom maquinista e chegava à tabe-
la. Os utentes já sabiam quem se preocupava mais e era melhor maquinista
e preocupavam-se em saber quem era a pessoa que ia conduzi-los. É que
naquela altura enchiam-se 3 ou 4 carruagens de pessoas que iam de Macedo
trabalhar para Bragança e queriam e precisavam de chegar a horas. Por isso,
estavam interessados em que o maquinista fosse bom profissional… Durante
a época escolar iam muitos alunos no comboio e era preciso chegar à tabela
por causa das horas deles; no entanto, nem todos os maquinistas pensavam
do mesmo modo e havia aqueles que não se preocupavam tanto com o rigor
horário… Por falar em ser rigoroso… o Zé Alvarenga (já falecido) conduzia a

48
Maria Otilia Pereira Lage

máquina 81, que era a mais fraquinha que lá havia e andava sempre atrasado.
Eu conduzia a 111, que era a melhor máquina que lá havia. Depois, eu passei
para a 81 e ele para a 111. Eu comecei a conhecer a máquina, o meu ajudante
também era bom rapazinho e, ambos, lá nos íamos desenrascando, sobretudo
na etapa entre Mirandela e os Cortiços, onde se patinava mais e o que é certo
é que chegávamos à tabela. O Zé Alvarenga, com a 111, chegava sempre atra-
sado... A 111 era a melhor máquina a vapor que havia na linha do Tua… A 81
era a máquina mais antiga e a mais fraquinha que lá havia. Andava sempre
atrasada… A 84 era uma maravilha. O percurso entre o Romeu e os Cortiços
demorava quase sempre 20 minutos. No Verão, atrasava-se por causa da folha
do sobreiro que caía nos carris e por causa da humidade… Quando vieram
as Chepas, havia um comboio que chegava à meia-noite… até Rossas, era a
subir e dava o sono. Eu, como maquinista, para não ter sono, ralhava comigo
próprio e dizia coisas como estas: ó seu burro, tu não vês que vais a conduzir
uma automotora?!... então, é a dormir que se conduz um automóvel?!...”.
Normalmente, fazia o percurso Tua – Bragança…
…As locomotivas Mallet [tipo de locomotiva a vapor articulada] …só exis-
tiam no Tua e no Pocinho…
…a parte da linha que custava mais a fazer era desde a ponte de Carva-
lhais até Rossas, sempre a subir… Tive o descarrilamento de uma Chepa, na
ponte de Rebordãos, mas vinha a 25Km de velocidade. Saíu dos carris sem
que se tivesse percebido a razão.
…Eu fui escolhido para fazer o comboio em que veio Mário Soares. Para
mim foi um dia de fome. Vinha um inspetor atrás de mim, que não percebia
nada de condução, mas queria tudo à moda dele; era muito mesquinho; vie-
mos com o café desde Bragança até ao Cachão...
…uma vez, eu já trazia 16 horas de condução, vínhamos de noite e, quando
cheguei a Bragança, não quis ir ao ramal particular levar o adubo à CUF.
Participaram de mim: tinha de pagar 500 escudos de multa. Só que como já
levava 16h. de serviço, a participação não valia de nada porque tinha horas
a mais... seria ilegal fazer a participação…. [acha que era mais importante:]
…ser cuidadoso, ter atenção a quem vai à nossa retaguarda, cumprir o mais
possível os regulamentos, colaborar com toda a gente, respeitar toda a gente
sermos exigentes connosco próprios...”[Informante nº 40, duas entrevistas em
2014]

49
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

***

• Revisor (de agricultor a ferroviário e de novo a agricultor)


(…) Nasci e cresci aqui em Codeçais, frequentei a escola primária da aldeia,
fui fazer as passagens da 1ª para a 2ª, da 2ª para a 3ª e da 3ª para a 4ª classe
à aldeia de Pinhal do Norte numa capela que estava junto do Terreiro e que
na altura era a escola do Pinhal e o exame da 4ª classe à vila de Carrazeda,
em Junho de 1947. Os meus pais eram agricultores e eu trabalhei no campo
quando ainda andava na escola… antes de ir para as aulas ia cedo com o
meu pai para o campo, regar batatas, no mês de maio e andava lá muitas
vezes com a barriga a dar horas... Fui fazer a tropa para a Escola Prática de
Artilharia em Vendas Novas, em 7 de abril de 1956; a sua especialidade era
Transmissões. No fim da recruta, um amigo da aldeia da Sobreira conseguiu-
me lá um impedimento e passei a ser o cozinheiro da Mess de Sargentos…
Vim-me embora da tropa em 7 de Julho de 1957… Casei em 16 de Dezembro
de 1959…
…Ainda era solteiro quando fui trabalhar para o caminho-de-ferro. Fui
contratado para fazer a limpeza ao longo da linha. Os que faziam isto eram
chamados os eventuais… quando chegava ao Natal, éramos despedidos por
causa das concessões… Em Janeiro, tornavam-nos a chamar, mas o tempo
para trás já não contava… Quando fizeram a renovação da linha do Tua,
desde Foz-Tua até à Brunheda, comecei a trabalhar já a renovação vinha
depois de Santa Luzia. Por isso, trabalhei lá durante o mês de Janeiro e, em
Fevereiro, mandaram-me para Salsas trabalhar como assentador (meter tra-
vessas na linha).
…Entretanto, “foram as eleições de Américo Tomás” e chamaram-me de
novo para a tropa. Só que afinal tinha sido um engano mas que me impediu
de voltar para Salsas. Fui para as obras para o Pocinho “chegar massa aos
pedreiros e a quem calhava”. Em seguida voltei a trabalhar na via em Almen-
dra, onde continuava como eventual. Depois fui à Junta para o serviço de
Movimento para ser Carregador das estações e assentei praça no Pocinho,
no dia 14 de Agosto de 1959, com o lugar de Carregador… Em Dezembro de
1959, depois do casamento, fui mandado para o Tua trabalhar como Carre-
gador. Aí estive 5 anos. A seguir estive 4 anos em Abreiro. Passei ainda pelas
estações de Covelinhas, Gouvinhas; Ferradosa e Vesúvio (Linha do Douro);
Moncorvo (Linha do Sabor) e Freixo de Espada à Cinta.

50
Maria Otilia Pereira Lage

…Finalmente ingressei no serviço da revisão de bilhetes após ter frequen-


tado o curso para ser revisor. Fiquei em 1º lugar entre 13 candidatos. O Curso
foi em Lisboa (Rossio) e no Porto (Campanhã). Depois de ter passado 12 anos
a trabalhar nas estações, comecei a exercer as funções de Revisor, em 1972 e
terminei no dia 6 de Dezembro de 1993, quando me reformei. Como revisor,
andei entre Tua e Bragança; mais tarde, entre Bragança – Mirandela – Tua
(linha do Tua) e Porto (S. Bento); Régua – Chaves e Pocinho – Duas Igrejas
(Linha do Douro)….
…começava o turno em Mirandela por volta das 11h, fazia Mirandela-Tua,
de onde saía por volta do meio-dia, chegava ao Porto (S. Bento) às 15h, ia
acompanhar uma marcha a Contumil, ia novamente para o Porto, mas agora
sem serviço, dormia lá e à meia-noite e vinte do outro dia, ia em serviço desde
Campanhã até Mirandela. Depois ia para o descanso... …A pior linha para
ser Revisor era a da Régua para baixo: tinha muito movimento... normalmen-
te, antes de chegar às estações, botava a cabeça de fora por uma janela e via
um, dois, três ou quatro e, da janela, via para que carruagem eles entravam;
alguns entravam aqui no topo e iam parar ao outro topo, mas como eu já
sabia a manha de muitos, ia-os perseguindo até ao topo do comboio… os da
Linha de Mirandela, mais na zona do Cachão, sobretudo na altura em que
abriram as fábricas eram um problema… havia muito mânfio a procurar a
melhor maneira de fugir ao pagamento e depois discutiam com o revisor, só
que comigo, eles não levavam a melhor...
…Os passageiros frequentes podiam fazer três tipos de assinaturas: men-
sal, trimestral ou semestral. Essa assinatura tinha que ser renovada quando
terminava o prazo de validade. Apesar disso, alguns esqueciam-se… eu já
conhecia os vezeiros; um deles era dos homens mais ricos de Frechas, mas an-
dava sempre a fugir ao revisor!... Na altura da feira de Mirandela havia sem-
pre muito movimento e era muito mais complicado o trabalho… Na época pós
25 de Abril, o movimento era enorme por causa dos militares… essa bichara-
da a quem davam um quarto de bilhete… ainda trabalhei com as máquinas a
vapor… às vezes os clientes chegavam a Mirandela cheios de carvão…. Tra-
balhei também com as automotoras Diesel (as Allain) e, mais tarde, com as
carruagens tipo Suíço. As Allain faziam 60km / hora de Mirandela ao Tua…
…Era adolescente quando aconteceu a 2ªguerra mundial, mas lembro-me
bem: passou-se muita fome. Eu também passei. A seguir à guerra foi um ano
de muita seca. Então é que houve fome de todo o tamanho!

51
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

…Não, não andei a trabalhar no minério [volfrâmio] porque era muito


novo. As minas eram no Ribeiro das Bogas, entre a Brunheda e Codeçais, mas
mais perto da estação de Codeçais…
…Mirandela tinha uma comunidade ferroviária muito forte. Em Codeçais,
também: quando lá andei, éramos para aí uns doze, de várias categorias.
Desta aldeia trabalhava muita gente no Cachão. O transporte utilizado era
o comboio… Fazia-se mais vida em Mirandela do que na Carrazeda devido
ao comboio que também transportava os animais e tudo… quando era do
transporte dos adubos (entre 1960 e 1965) havia muito comboio a circular…
No Tua, era tudo carregado a braços: o adubo, o carvão, as pipas de vinho,
a cortiça, as travessas da linha… só daqui de Codeçais, em 1955, passaram-
me 800 arrobas de cortiça pelas costas; juntava-a para o cavalo carregar…
ganhava 20$00 de sol a sol… nunca emigrei… trabalhava no caminho-de-
ferro… e já era do quadro…, tinha mulher e já um filho e achei que não devia
deixá-los...
…Em Codeçais, sentiu-se muito o fecho da linha porque a aldeia ficou
muito mais isolada… às terças e quintas é que há transporte para a Carraze-
da, mas só temos duas horas e meia para estarmos na vila; se vamos ao centro
de saúde e a consulta é demorada, temos que vir de táxi...
…quando era novo, não frequentava as termas… só ia para o S. Lourenço
quando era destacado para lá trabalhar. Não fazia lá termas, também porque
só a partir dos anos 70 é que comecei a poder gozar férias, depois de Marce-
lo Caetano ter dado essa regalia. Antes disso, só podíamos gozar 10 dias de
uma vez mais dez dias alternados… na altura, a CP era uma família; havia
gosto no trabalho, pontualidade, disciplina. Depois estragaram tudo…. Tive
a oportunidade de ir para a GNR e para a Guarda Fiscal, mas preferi ser
ferroviário… “[Informante nº 32, uma entrevista 2014]

***

• Chefes de estação
…Esta estação de Santa Luzia, aqui em frente, inicialmente era chamada do
Amieiro mas, como havia lá para o sul, perto de Pombal, a estação de Amiei-
ra, o que originava confusões e troca de mercadorias, decidiram mudar-lhe o
nome e batizá-la com o nome da santa padroeira da aldeia, que era e é Santa
Luzia.

52
Maria Otilia Pereira Lage

…Fiz o curso de rádio-telegrafista no Porto e fui escolhido para a Trafa-


ria… fui como operador de informação, 1º cabo, para São Tomé… eram ao
todo 30 homens neste trabalho, considerados os trinta melhores do curso e,
por isso, escolhidos… Quando fui para o Ultramar tinha feito a 4ª class, mas
lá frequentei o liceu e terminei o 2º ano…. Quando trabalhava em Foz-Tua,
vivia no Amieiro, mas também tinha casa no bairro da CP, junto da estação.
Como tinha carro próprio, percorria facilmente os 15Km que separavam Foz-
Tua do Amieiro e deslocava-me assim de 2 em 2 dias. …Fui para ferroviário
como muitos dos homens do Amieiro: era o 1º emprego que procuravam. O ca-
minho-de ferro-era a única via de ligação à freguesia… uns iam para a via…
outros para a estação …outros para revisores… O comboio, nestas terras, era
algo de muito importante para o transporte de pessoas, para o escoamento da
cortiça, da azeitona, da baga do azeite e das laranjas. Utilizava-se muito o
comboio para ir às feiras a Mirandela comprar e vender produtos ou para ir
ao Tua. Para ir à Alijó não havia transporte, nem estrada...ou se ia a pé ou a
cavalo... Naquele tempo, o chefe de estação ou mesmo o fator, era uma pessoa
considerada importante porque tinha um bom conhecimento das pessoas e da
região. Era muito estimado e convidado pelas pessoas para confraternizar
com elas. Era a pessoa que tinham mais próxima para qualquer informação
mais esclarecedora. …O dia-a-dia do chefe de estação: com a redução do
pessoal, o chefe começou a fazer quase tudo… telefone, bilheteira, chefia… eu
próprio fiz bilheteira durante muito tempo... Antes da redução, chegou a haver
mais ou menos 20 homens a trabalhar na estação do Tua… [Informante nº 8,
duas entrevistas em 2013]

***

…Na minha criancice vivi muito entre o Porto e Coleja. Porquê? Porque
um irmão do meu pai a quem nós chamávamos o” tio rico”, levou-me para
o Porto para eu poder estudar. Ele saiu daqui para ir fazer a tropa e nunca
mais voltou. O meu tio tinha mais posses que os outros porque era amante
de uma senhora, com dinheiro, que me recebeu muito bem. Só que quando
eu frequentava o 4º ano do liceu Rodrigues de Freitas, ela faleceu. O meu tio
foi viver para o hotel da Boavista, na Foz, e eu vim para Coleja para casa do
meu pai, tinha eu 14 ou 15 anos. Passei a ter que ir com ele aos peixes… O
meu pai pescava de noite, 3 ou 4 kg. de peixe que vendia na sua aldeia e em

53
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

aldeias vizinhas. Ganhava 20 escudos que lhe davam para uma semana. Não
tinha ambição nenhuma e enquanto lhe durasse o dinheiro, não fazia mais
nada. Nessa altura havia pouco peixe: deitavam tiros de dinamite no rio para
matarem os peixes… Nesta aldeia havia mais alguns pescadores… Depois ele
entusiasmou-se e comprou uma rede maior em 2ª mão, na foz do Sabor, um
“tresmalho” que tirava 15 ou 20 kg. de peixe. Fazíamos pescarias de noite.
Depois, eu ia vender o peixe pelas aldeias.
…Fui o 3º ferroviário que saiu desta aldeia… Era uma vida difícil… iniciei
o meu trabalho no Pocinho como fator de 3ª e de 2ª. Interrompi o trabalho
para fazer tropa em Moçambique. Quando regressei, fui para Vargelas, onde
estive durante treze anos e meio. De 1986 a 1994 estive em Foz-Tua como
chefe de estação. Depois, a meu pedido, fui para Leça do Balio e, de lá, me
reformei.
Andei na linha do Tua quando fui fator de 2ª: estive destacado em Santa
Luzia e em Codeçais… mas nestes sítios estive só para dar apoio, quando ha-
via falha de pessoal... Quando trabalhei na estação de Foz-Tua, ainda “apa-
nhei o tempo do comboio a vapor”. …Deixei de trabalhar como ferroviário
no ano de 2001 porque a linha fechou. Vim-me embora por rescisão amigável.
Reformado, só estou desde 2005. Vim viver definitivamente para Coleja, onde
tinha comprado propriedades com as economias que fui fazendo. Com o re-
gresso à minha aldeia natal, realizei o sonho da minha vida… Eu gostava de
ter sido agricultor, de ter batatas, vinho e azeite para todo o ano e um porco
morto, que é sustento para o ano todo. E realizei esse sonho: depois do 25 de
Abril comprei por 530 contos as propriedades que tenho. Nesta data, o meu
vencimento também aumentou para quatro contos e quatrocentos. …Já depois
de adulto, fiz o 12º ano no liceu Rodrigues de Freitas, a estudar à noite…
…O Tua era uma grande estação, muito trabalhosa e com muita gente; a
propósito até havia um dito entre os trabalhadores: ou Tua ou Rua, já que nin-
guém pedia para ir para o Tua… A maior parte do trabalho devia-se ao facto
de ser uma estação de transbordo; o maior trabalho era o do pessoal braçal…
o comboio transportava tudo ou quase tudo. Para o Tua, iam comboios reple-
tos de adubo, quando iam para cima e repletos de trigo quando vinham para
baixo. Havia também vagões completos de urnas que vinham de Amarante.
Não me recordo de lá passarem vagões de cortiça.
…Os comboios que vinham da via estreita, de Bragança para o Tua, com
três e quatro carruagens, vinham sempre cheios. Aos fins de semana até ti-

54
Maria Otilia Pereira Lage

nham quatro e cinco carruagens. E cabia sempre mais gente porque as pes-
soas também viajavam de pé…
…Na sala de espera da estação de Foz-Tua, há um mini museu que fui eu
que comecei a fazer… tinha lá um livro de reclamações muito interessantes,
muito bem escritas, com uma caligrafia lindíssima, normalmente feitas por
viajantes, no tempo em que havia o gosto pela escrita, o que não é o caso
de hoje… Não tive lá grandes problemas. Vivia por cima da estação. Acho
mesmo que fui um privilegiado dentro dos caminhos-de-ferro, dado que tive
sempre direito a casa nas diferentes estações onde trabalhei. Tinha viagens
pagas para a minha mulher e para as filhas, enquanto solteiras, ou os filhos
até aos 21 anos de idade. Hoje, essa regalia já acabou. Havia também as
tainadas nas estações: em Vargelas chegava a assar 15Kg de peixes do rio!
Mas, aqui fazíamos uma vida muito económica; também não havia café nem
onde gastar o dinheiro. Além disso, a partir de 1973, com a instalação da
quinta dos Taylors, com quem mantinha muito boas relações, passei a ter
água e luz que não pagava, graças a eles. Também tinha sempre carne de
porco e bacalhau que eles mandavam para o chefe da estação (os chefes de
estação, mesmo que fossem fatores, eram muito respeitados porque sempre
sabiam ler e até escreviam cartas… os trabalhos com as mulheres guardas de
passagens de nível foram os mais custosos que tive. Era mesmo o maior re-
ceio que eu tinha. Em Vargelas, tinha duas que andavam sempre à porrada…
para arranjarem problemas, todas elas estavam por aí… no Tua, além das
duas das passagens de nível, também tinha duas para os dormitórios… Nes-
tas aldeias por aqui nestas redondezas houve sempre gente a trabalhar nos
caminhos de ferro; uns chamavam outros. Aldeias onde me lembra de haver
ferroviários: Castanheiro, Ribalonga, S. Mamede, Alijó, Parambos, Pombal,
Codeçais, Brunheda, Tralhariz, Pereiros, Amieiro, Abreiro, etc… [Informante
nº 16, duas entrevistas]

• Guarda de linha / passagem de nível


“…Quando vivia em Ligares, na minha infância, passava muitos serões com a
minha mãe enquanto o meu pai dormia no campo com as ovelhas porque era
pastor. Foi durante estes longos serões que ouvi e decorei muitas ladaínhas
e cantigas que a minha mãe me recitava e cantava… era a nossa televisão…
ainda me lembro de algumas… Com a idade de 14 anos fui passar umas férias
à praia, no Porto, com uns primos. Nessa altura, os meus irmãos já tinham

55
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

emigrado. Naquele tempo, ir passar férias ao Porto e à praia, era um des-


lumbramento. Mas, apesar disso, eu estava triste, chorava e quis regressar à
minha terra... Voltei de comboio. Os meus primos levaram-me à estação de
Campanhã e entregaram-me ao revisor. Mas… na carruagem em que entrei, vi
um jovem a cantar e a tocar guitarra: “ele olhou para mim e eu olhei para ele
e, nessa altura, é que eu vi o deslumbramento da vida. Trocámos olhares, fo-
tografias e papeizinhos”. Depois, ele saiu em Freixo de Numão e eu continuei
para Ligares. Ao fim de oito dias, recebi a primeira carta dele na mercearia
onde se telefonava e onde se recebia o correio. Namorámos durante meio ano
mas, neste curto espaço de tempo, só nos vimos quatro vezes. Ele ia à minha
aldeia. …Apesar de ter feito com sucesso o exame de admissão ao liceu, em
Bragança, não prossegui estudos porque casei com 14 anos. Ele tinha 21 anos
e era de Mós do Douro, concelho de Vila Nova de Foz-Côa. …Tive o primeiro
filho aos 15 anos, o segundo aos 17 e o terceiro aos 20 anos… O meu marido
começou a trabalhar aos 14 anos, na estação de Santarém, como fator, porque
o pai era ferroviário e tinha mais três irmãos também ferroviários. Vivemos
o primeiro ano de casados na terra dele. Ao fim desse ano ele pediu a trans-
ferência. Viemos para Mirandela quando eu tinha 20 anos, em 1970. O meu
marido trabalhou em Mirandela durante 18 anos. Era Fator de 1ª.Viemos do
Barreiro A, de uma zona industrial, para Mirandela… Para alguns seria um
choque. Para mim, que não gostava do Barreiro, foi uma felicidade… Aquela
vilazinha em miniatura era o bem-estar de uma família, era um sossego, eu
sentia-me bem no Nordeste Transmontano porque era aqui que eu sentia que
ia criar os meus filhos de outra maneira e que seria mais feliz. Fui eu que
pedi ao meu marido que pedisse a transferência para Mirandela… Na sua
profissão de ferroviário em Mirandela, andava muitas vezes destacado do Tua
a Bragança, mas vivíamos na Estação de Mirandela. Viviam aqui 16 famí-
lias de ferroviários no meio de um ótimo ambiente. Dávamo-nos imensamente
bem. Parecíamos uma só família. Uma estação era um ponto de encontro e de
desencontros. Encontro, por exemplo, de estudantes que vinham estudar para
Mirandela. Era também um lugar onde se via muita gente chorar, mas também
se viam muitas alegrias. A única tragédia de que me lembro, foi a da morte de
um ferroviário, num descarrilamento em Santa Luzia...
…O meu marido faleceu em 1985 num acidente de automóvel quando me
ia buscar à estação de Frechas, onde eu trabalhei durante meio ano a fazer
uma passagem de nível. Eu era a guarda da passagem um pouco à revelia da

56
Maria Otilia Pereira Lage

vontade do meu marido. Mas tínhamos três filhos para educar e eu queria o
melhor para eles. Apesar de o meu marido ter chegado a Fator de 1ª e ga-
nhar bem, eu achava que devia ajudá-lo. Depois de o marido ter falecido, vivi
ainda durante mais seis anos na Estação.…” [Informante nº 11 - Encontro de
Ferroviários do Tua, 25 de Abril, 2013]

***

• Guarda da secção museológica ferroviária de Bragança
“(…) O meu pai era ferreiro. A mãe era doméstica e cultivava os produtos
de uma lavoura de subsistência. Tenho duas irmãs. Uma delas é guarda de
passagem de nível e trabalha em S. Romão do Coronado.… Depois de fazer o
exame da 4ª classe fui trabalhar com o meu pai para a oficina. Mas não era
ferreiro que eu queria ser. O meu sonho era outro: ser ferroviário. Eu quando
via um amigo meu que trabalhava na C.P. com aquele boné na cabeça, só
pensava que também havia de ter um boné assim... O Belmiro Aragão, chefe
de estação e tio de um amigo meu, meteu lá o sobrinho como praticante de
Fator. Mas, o rapaz não era sério e metia a mão na gaveta. Um dia, quando
ouvi dizer que precisavam de pessoal para trabalhar na via, falei com esse
Chefe que, de início, achou que eu tinha pouco físico. Mas… eu lá fui... para o
Tua, onde comecei a trabalhar, no dia 27 de setembro de 1961, como eventual
de dia. No dia 14 de novembro do mesmo ano, fui transferido para Cachariz
e Albergaria dos Doze. Sempre como eventual de dia, fui mandado sucessiva-
mente para Lamarosa, Entroncamento, Praia de Ribatejo, Santa Margarida,
Barquinha, Tramagal. Daqui, novamente para o Entroncamento. Depois para
Alcântara Mar, como servente de 3ª classe. Aqui, trabalhei até ao dia 1 de
dezembro de 1966. Seguidamente, fui transferido para a estação de Salsas,
onde trabalhei desde 4 de dezembro de 66 até novembro de 1991, altura em
que fechou a estação. Fui, então, para Paços de Brandão, Arrifana, Pocinho,
Mogadouro, onde estive destacado apenas 5 dias. Daqui, pedi transferência
para a estação de Bragança, isto em 1984. Fiquei nesta estação e fazia Bra-
gança – Mirandela e Mirandela – Bragança.
Um dia tive um acidente de trabalho em Macedo de Cavaleiros… Foi o dia
mais triste da minha vida porque fiquei impossibilitado de trabalhar na via.
Estive de baixa, fui submetido a uma Junta Médica e a C. P. queria-me refor-
mar…. No entanto, não aceitei a reforma porque sabia que tinham serviço

57
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

compatível para mim, no meu novo estado. Eu queria mesmo trabalhar por-
que “nunca fui homem de tabernas”. …Desde 1991 até 2005 exerci funções
de guarda da Secção Museológica de Bragança. Zelei por todo o material
que aqui se encontrava e que ainda se encontra em ótimo estado de conserva-
ção… eu ainda hoje tenho saudades do caminho-de-ferro e se a C. P. abrisse
uma secção do Núcleo Museológico, eu ainda era capaz de ir trabalhar…
há lá uma carruagem verde, de 2ª classe, que foi restaurada nas oficinas do
Pocinho e que transportou o ex-presidente da República, Dr. Mário Soares,
desde o Tua até Bragança, quando ele visitou esta cidade. Fui eu um dos que
fizeram o acompanhamento presidencial desde Bragança até ao Cachão…
Quando em 27 de setembro de 1906, foi feita a fusão, a Companhia Nacional
deixou de o ser e passou a ser C.P. (Companhia dos Caminhos-de-ferro Por-
tugueses – empresa pública), essa carruagem foi para o Núcleo Museológico.
…eu é que fazia a manutenção de todas as locomotivas, tinha-as sempre a
brilhar... a locomotiva 114 ainda trabalhava; aliás elas estão todas em bom
estado de conservação, mas o facto de não serem usadas, faz com que depois
não trabalhem…
Uma das vezes em que o Eng. Giestal Machado visitou o Núcleo, foi ver a
placa giratória, que eu tinha sempre muito bem oleada, o que o levou a fazer
o seguinte comentário: “o Senhor está de parabéns, mas nós também. Eu não
posso exigir mais do Senhor!...”. Havia sempre visitas de estudo de alunos
com as respetivas professoras, que também me davam os parabéns pela boa
organização e funcionamento do Núcleo. Estão lá placas com a fotografia das
máquinas, as suas características, etc. Há lá máquinas que eram da oficina,
tais como o torno ou a limadora. Também lá está a carruagem em que viajou
el-rei D. Carlos. Em 91, ela já não estava ao serviço porque já havia as au-
tomotoras “Schepas”, as quais só andavam bem no tempo fresco. No tempo
quente precisavam logo de água. Eram jugoslavas. No entanto, tiveram que
deixar de funcionar porque não aguentavam. No ano de 91, já trabalhavam
as Diesel…
…Em 27 de setembro de 1906, a locomotiva nº 1 foi o 1º comboio que che-
gou a Bragança… Ainda me lembra de a ver trabalhar… Também lá estão os
quadriciclos, os quais tinham a seguinte funcionalidade: quando o chefe de
lanço queria passar uma vistoria ao seu próprio lanço, servia-se do quadrici-
clo, assim como os engenheiros para fazerem a inspeção à linha. É um veículo
manual. Quando era preciso utilizar os quadriciclos, a linha ficava interdita

58
Maria Otilia Pereira Lage

no espaço de tempo em que e onde eles circulavam, a fim de evitar acidentes…


…por volta do ano 2000, o Núcleo Museológico de Bragança fa-
zia uma receita mensal de 80 a 90 contos. O dinheiro era para a C.P.,
depositado diariamente por mim na Caixa Geral de Depósitos. Ha-
via muitos visitantes estrangeiros. Ainda guardo fotografias dessas vi-
sitas, fotografias essas que eles depois me mandavam. No início do fun-
cionamento do Núcleo, não se pagava nada. …Reformei-me da C.P. no
dia 1 de Agosto de 2005.” [Informante nº 19, uma entrevista em 2012]

***

• Coletivo de ferroviários
[RQ] …Comecei a minha carreira como fogueiro, em Mirandela… a seguir,
ingressei na escola de maquinistas em 1971... Efetivei-me como maquinista
em Mirandela, onde estive de 1977 até 2009, altura em que me reformei…
[F A] …Comecei o meu trabalho na C P como servente de tracção, em
1957, com a 4ªclasse e com a idade de 18 anos… A CP era o que havia de mais
rentável naquela altura!.... Depois fui fogueiro e comecei a trabalhar como
maquinista em 1971…. Efetivei em Mirandela, onde trabalhei até à idade da
reforma. …Fiz muitas vezes a viagem de Foz-Tua a Mirandela no comboio a
vapor: o sucesso da viagem dependia muito de como a máquina se portava e
da habilidade do fogueiro…
[JR] …eu passei a transição do vapor para o Diesel, quando era che-
fe de estação em Foz-Tua. A máquina a Diesel podia com 400 toneladas…
a de vapor só podia com 200… começámos a fazer comboios até às 400
toneladas. Bastava-nos pedir autorização ao posto regulador e ela era-
nos concedida através de um telegrama… Eu iniciei a minha vida na CP
como chefe, fator, em 1969, no Pocinho. Fiz a tropa e quando regressei fui
para Vargelas, onde estive 13 anos e meio, até ser chefe de estação… ti-
nha então 37 anos. Fui depois para o Tua, onde estive, como chefe de 1986
até 1994.
[MJ] …entrei para a CP em 1941. Em 1951 fui para Torres Vedras (Oes-
te), onde estive até 1954. Depois fui para Caminha, onde permaneci 8 anos.
Concorri a subchefe e fui para Arcozelo das Maias, no Vouga, onde estive
dois anos. Entretanto, a meu pedido, fui 2 anos para Viana do Castelo. Depois
concorri a chefe de distrito e fui para o Romeu, em 1964. Estive lá 8 anos.

59
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Seguidamente fui para o Tua, como chefe de lanço, durante dois anos. Daqui
fui para Bragança onde permaneci 15 anos e, por último, vim 2 anos para
Mirandela, de onde me reformei. Ser chefe de lanço era trabalhar entre Bra-
gança e Tua. O pessoal da via, aqueles que trabalhavam na manutenção da
linha, não me tornavam a vida fácil: tinha que os orientar e tinha que fazer a
escrita dessa gente toda. Ainda tinha a meu cargo os guardas das passagens
de nível. Antes de entrar para a CP trabalhei na Companhia Nacional (Linha
do Sabor, Linha de Chaves, linha do Tua a Bragança e Linha do Dão). Tra-
balhar para uma empresa ou para a outra era exatamente a mesma coisa… A
única diferença é que tinha um vencimento maior na Companhia Nacional…
Lembro-me muito bem do ano de 1941 – o ano da fome –… fui muitas vezes
a pé de Vilar de Rei, no Sabor, a Mariz, saber de pão e chegava a casa sem
nada. Fui muitas vezes a Sendim saber de pão e, de pão, nada!... E éramos
12 pessoas em casa… Conheci muito bem o tempo da guerra… Trabalhei nos
comboios durante 48 anos!....
[P. A] …comecei por assentar travessas… depois passei a revisor de bi-
lhetes, tendo trabalhado nas linhas do Douro, do Tua, da Beira Baixa… do
Tejo para o Norte, onde passa o comboio, trabalhei em todas as estações...
Fiz trabalho de revisor entre os anos de 1968 e 1982. De 1982 a 86, trabalhei
como inspetor, com sede no Porto, …mas corria o Norte todo... foram os anos
da pré-reforma… Como inspetor, tenho histórias boas e histórias ruins para
contar. No que respeita às últimas, falo da quase certeza de passar o Natal
com a família e acabar por passá-lo na estação de Santarém, na companhia
do maquinista e do revisor… Consoámos sozinhos daquilo que levávamos,
pois se quiséssemos uma pinga de água, nem tínhamos onde a ir beber… E
assim passámos os três a noite toda… E também, qualquer um de nós não
tinha direito a receber horas extraordinárias, embora fizéssemos muitas!…
[todos] …“Antes do 25 de Abril éramos uns mártires, éramos multados
por tudo e por nada!... …tínhamos 13, 14 e 15 horas de serviço …muitas ho-
ras extraordinárias sem ganhar… como serventes era do primeiro ao último
comboio, mas sem horas extraordinárias… das 8h da manhã ás 11h da noite…
na folga entrava-se às 3h… havia também a folha de trânsito. Se tivéssemos
atrasos no horário, o que acontecia às vezes e por motivos alheios à nossa
vontade, tínhamos que justificar a razão do atraso. No entanto, a parte boa da
questão, é que era sempre possível arranjar-se uma avaria que nos livrava de
pagar a multa que nos seria descontada no vencimento…

60
Maria Otilia Pereira Lage

[F.A. acrescenta]… a nossa profissão de ferroviários, antes do 25 de Abril,


era mísera. Ganhávamos muito pouco e trabalhávamos muito. Foi Vasco Gon-
çalves, que era filho de ferroviários, que nos beneficiou após esta data. Quando
entrei para a CP ganhava 700$00… em 1957, 750 escudos por mês”.
[outro concretiza] …em 1966 ganhava “um conto e duzentos” e em 1976,
1.800 escudos como fogueiro de primeira… em 1963, quando fui nomeado
para o quadro, ganhava 900$00, mas antes… quando perguntavam a um fer-
roviário quanto ganhava no início da carreira, ele respondia: “ ganho 20
escudos e uma caixa de fósforos”… isto porque uma caixa de fósforos custava
então três tostões…
[Todos consideram] …a vida de um ferroviário era melhor do que a de
um agricultor… era uma vida limpa e uma posição que dava para namoris-
car raparigas de outra posição, mais cultas… tínhamos outra apresentação,
usávamos uma farda decente… quando não tínhamos farda sujávamo-nos no
carvão… e tínhamos o vencimento certinho ao fim do mês...” [Informantes nºs
12, 13, 16 e 19, entrevista coletiva –Encontro de confraternização dos ferro-
viários do Tua, Mirandela, 25 de Abril de 2012]
Os fragmentos de narrativas e de histórias de vida passadas no vale e linha
do Tua, que acabaram de ser apresentados, compõem não só um relevante
repertório de fontes orais de história, mas ainda um pano de fundo vivencial-
mente muito rico.
Para além disso, entretecem com outras que se lhe irão seguir enquanto
reveladoras de dimensões diversas, um manancial de materiais de memória
individual e social densa que exigem e possibilitam fazer a sua cartografia,
temática e cronologicamente.
Por sua vez, esta permitirá esboçar o contexto socio-histórico mais signifi-
cativo da vida e ambiente das populações locais entre dois marcos importantes
de transformação técnica e tecnológica do território natural desta região: o iní-
cio oitocentista da construção da sua linha férrea e a edificação contemporânea
da barragem do Tua.

61
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Linha do Tua- ponte da Presa, 1972


(Foto - Raízes disponibilizada no Blogue “Amigos de Pensar Ansiães”)

3. CONTEXTO Socio-histórico:
Cartografia de materiais de memória

Vários e sucessivos factos da história nacional e global, para além dos mais
variados episódios que marcaram a vida das populações locais no vale e linha
do Tua, se fizeram sentir na história local e regional do vale do Tua, desde, por
exemplo, a I Guerra Mundial (1914-1918) e II Guerra Mundial (1939-1945),
a exploração do volfrâmio durante o Estado Novo (1939-1955), a Guerra Co-
lonial portuguesa em África (1961-1974), até às mudanças surgidas com o 25
de Abril de 1974 e o início do processo de democratização.
Os efeitos e as mudanças induzidas de tais acontecimentos político-econó-

62
Maria Otilia Pereira Lage

micos e sócioculturais afetaram também profundamente a realidade e o ima-


ginário destas populações locais que deles guardam memórias ainda nítidas e
vivências sofridas que pontuam as suas narrativas.
Esta é mais uma razão que explica a cartografia desses materiais que aqui
se faz, privilegiando uma perspetiva diacrónica e dialógica de organização
dos excertos, a seguir transcritos, de histórias de vida a este propósito mais
significativas.
Os materiais de memória histórica e social identificados e compilados nos
registos escritos e audiovisuais das entrevistas e narrativas seletivamente mo-
bilizadas foram objeto de uma análise de conteúdo feita a dois níveis (Minayo,
1992) com vista a:
a) esboçar a conjuntura socioeconómica e política e o contexto socio-histórico
geral;
b) identificar observações de comportamento de cada indivíduo na interpela-
ção com diversas etapas do processo histórico social e cultural.
Fez-se também desses materiais uma cartografia temática e um mapeamen-
to cronológico do arco temporal abrangido [1887-2010] entre a construção da
antiga linha férrea do rio Tua e a da sua recente barragem, os quais são ilus-
trados respetivamente pelo seguinte diagrama de nuvem e subsequente gráfico
de temporalidades.

Diagrama de temas focados

Fonte: Quadro nº1 –Galeria de informantes. MOPL, 2015.

Como se pode observar, evidenciam-se no diagrama alguns núcleos temá-

63
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

ticos principais abordados nas narrativas e os quais constituem outros tantos


aspetos e momentos da história do Tua:
a) Construção da linha do Tua: troços de Foz Tua- Mirandela- Bragança (sa-
beres leigos e técnicos – ferreiros, empreiteiros, engenheiros).
b) Ferroviários e especificidades de funcionamento da linha do Tua (trajetó-
rias sociais e profissionais, profissões, salários, horários de trabalho, con-
dições e mudança de vida e relações com a comunidade).
c) linha e comboio do Tua e respetivo impacto no desenvolvimento trasmon-
tano.
d) Memórias e vivências dos modos de vida das populações ribeirinhas: im-
pactos, representações e lógicas de perceção acerca da linha e comboio do
Tua (diversidade de contextos socio-históricos, evolução, regalias sociais,
melhores vencimentos, polémicas e denúncia do encerramento da linha).
e) Narrativas diversas de fenómenos marcantes da evolução da história local
e regional que se foram sucedendo desde finais do séc XIX e ao longo do
séc XX, (fluxos migratórios, movimentos de passageiros e mercadorias,
mobilidades e mobilidade social, exploração do volfrâmio - recurso mi-
neralógico das encostas do vale do Tua e leito do rio -, empreendimentos
agro-industriais em ligação com a linha do Tua,etc.).
f) Acontecimentos da história nacional e mundial em que se destacam a afir-
mação oitocentista dos transportes ferroviários, a participação de Portugal
na I Guerra Mundial (1914-1918) com as campanhas militares em África,
as dificuldades do racionamento e da fome por ocasião da II Guerra Mun-
dial (1940-1944), a Guerra Colonial em África (1969-1974), a melhoria
das condições de vida com o 25 de Abril de 1974 e seus impactos locais
interpenetram-se com as dinâmicas locais e regionais, permitindo uma in-
teleção da história do Tua, multi-escalar e pluri-perspetivada.
Como se ilustra no gráfico seguinte de ocorrência de temporalidades re-
ferente a acontecimentos e fenómenos verificados num arco cronológico
dilatado, entre finais dos sécs XIX e XX e dominantemente narrados pelos
informantes, enfocam-se mais exaustivamente os períodos correspondentes,
respetivamente, às fases de construção, funcionamento e declínio da linha e
comboio do Tua, com destaque para as décadas de 1900-1950 e 1940-1980, e
referência frequente aos períodos da I e II Guerras Mundiais e Guerra Colonial
portuguesa em África.

64
Maria Otilia Pereira Lage

Gráfico nº5 – Incidência cronológica das narrativas


18
20
entrevistados

10
10 7
3 4 4 1
0
1890-1940 1900-1950 1920-1970 1940-1980 1950-1990 1970-1990 1990-2010
anos

Fonte: Quadro nº1 –Galeria de informantes. MOPL, 2015.

Nos materiais assim graficamente trabalhados, poder-se-á seguidamente,


de um ponto de vista sociológico e antropológico observar condutas, com-
portamentos, costumes, tradições e comunicações de cada indivíduo, entre si
e com o coletivo social e cultural a que pertencem. Já do ponto de vista histó-
rico, este arquivo importante de fontes orais revela facetas inéditas e variadas
componentes da História Vivida do Tua que é possível agrupar em torno dos
seguintes vetores ou coordenadas: vale, rio, linha férrea e comboio, empreen-
dimentos agro-industriais e mobilidades, outros aspetos da vida quotidiana
rural e urbana da região, sobre que não abundam ou quase inexistem outras
fontes orais ou escritas. Trata-se então de um conhecimento histórico de temas
locais e regionais específicos que só a reconstituição / construção destas fontes
orais aqui mobilizadas é de fundamental interesse para o avanço da história
local e regional.
Os fragmentos de fontes orais que adiante se apresentam são demonstrati-
vos quer de traços característicos das conjunturas socio-económicas regionais
e do contexto sóciocultural e seus impactos sobre as populações do Tua, quer
de observações e comportamentos típicos dos indivíduos e grupos sociais lo-
cais na sua inter-relação com diversas etapas do processo histórico-social e
político geral.
Organizam-se assim em dois grandes grupos abordados nas seguintes ru-
bricas:
3.1. – Contextos e conjunturas da linha e comboio do Tua;
3.2.– Processo histórico social e político geral.

65
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

3.1. Contextos e conjunturas sócioeconómicas locais e regionais

Através do que se descreve e conta nas narrativas que se seguem e do muito


mais que as mesmas sugerem, podemos viajar ao longo dos últimos 120 anos
pelas transformações que a linha e o comboio do Tua influíram em diferentes
espaços, contextos e conjunturas do interior do mundo rural do nordeste trans-
montano.

• Sob o impacto da linha do Tua. Comboio, mobilidades e sociabilidades


“…o meu pai era ferreiro e tinha a forja no “cimo do povo”… aquelas casas lá
herdei-as depois eu mas dei-as a quem não tinha casa… Também tinha um ne-
gociozinho de madeiras. A minha mãe cozia pão e vendia-o para o Tua (era na
altura da construção da linha férrea Tua – Bragança). Como o meu pai mor-
reu cedo, a minha mãe passou a comprar e a vender nas feiras… de Vila Flor
e Carrazeda. Para isso tinha a ajuda do filho mais velho, que era meu padri-
nho… Iam, por exemplo, a pé para a feira de Vila Flor, onde vendiam ovelhas,
porquinhos… Lá, comprava cereal… para moer a farinha para o pão que cozia
e vendia… tinha duas mulheres a ajudar no forno… iam vender muito ao Tua
porque na altura havia aí muita gente a trabalhar nas obras da linha… as mu-
lheres levavam-no… recebiam10 pães por 100 vendidos… a minha mãe tinha
aí um negociozinho… montou uma tabernita onde vendia pão, azeite, sal que
iam buscar ao Tua… davam uma tigela de grão de centeio por duas de sal…
Os almocreves do Mogo [aldeia do planalto do concelho de Carrazeda] iam
a cavalo buscar o cereal que ela tinha comprado. Traziam-no até à moagem,
onde os moleiros o iam buscar… Na altura por aqui só havia moinhos de
água. No Frarigo [nome de lugar próximo] havia vários moleiros porque o
ribeiro, mais caudaloso, permitia a construção e o trabalho dos moinhos…
Os Rebelos de Parambos, depois ainda quiseram fazer um moinho a gás, mas
não dava boa farinha….só mais tarde é que vieram os moinhos a motor para
Carrazeda…
…sim conheci muitas pessoas que andaram nas obras da linha do Tua; até
lhes chamavam os baluartes… eles vinham muito às Areias arranjar os uten-
sílios de trabalho na forja do meu pai… mas a minha mãe é que nos contava
muitas coisas… até fizeram lá uma grande festa quando foi da inauguração
do comboio… e as pessoas iam muitas vezes para a linha ver passar o tal
comboio…

66
Maria Otilia Pereira Lage

…a primeira vez que andei de comboio foi para irmos à aldeia de Code-
çais… uma professora que era de cá casou lá e ficou lá a viver com o chefe da
estação de Codeçais… também fui a Mirandela ao médico… íamos apanhar o
comboio à estação de S. Lourenço… era mais perto daqui… Andei novamente
neste meio de transporte para ir a Bragança, mas já mais tarde… tinha lá
pessoas conhecidas…
…Do Tua vinham muitos peixeiros vender peixe pelas aldeias. Conhe-
ci bem uma vendedora, a Percevelha, que vendia sardinhas… as peixeiras
quando anoitecia ficavam na Lama Grande… o sr Cândido que vendia muita
madeira tinha lá uma casa e dava-lhes dormida e uma comidinha… era boa
pessoa e a mulher também… faziam isso por caridade” [Informante nº 14]

***

“…O meu avô esteve ligado à construção da linha… A minha família,


quando viajava, utilizava o comboio, mas para ir até à estação de caminho-
de-ferro, servia-se de burros que levavam as pessoas e as malas… Sou a mais
nova dos netos de Manuel Maria Lopes Monteiro, engenheiro civil, nascido
em 1855 e falecido em 1923. Licenciou-se em 1883 / 84. Vivia na aldeia do
Castanheiro. Formou-se no Porto, ainda não existia a linha do Douro em toda
a sua extensão… Quando começou a trabalhar, ganhava “5 escudos em ouro
por mês” sempre ouvi dizer isto na família.... Viveu em Bragança, onde foi
engenheiro das obras públicas. Também esteve a exercer as mesmas funções
em Mirandela e em Vila Real. …teve um papel importante na construção da
linha do Tua. Foi diretor das obras públicas em Bragança. …As pessoas do
Castanheiro utilizavam o comboio para se deslocarem até Bragança. Apa-
nhavam o comboio no apeadeiro do Castanheiro do Norte que tinha lá sempre
um funcionário... Quando precisavam de se deslocar ao Porto, iam a pé até
Foz-Tua e aí apanhavam o comboio…”[Informante nº 7]


***

“…Sobre o meu avô, só sei aquilo que o meu pai contava, tinha eu 13
anos… era um homem muito trabalhador e inteligente que tinha feito a for-
tuna à sua custa; tinha muitas quintas, tinha Vinho do Porto; era muito res-

67
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

peitado… por exemplo, quando viajava na mala-posta e eram assaltados, se


soubessem que ele ia lá dentro, já não faziam nada… era muito generoso…
Fiquei com a ideia de que se meteu na aventura da construção da linha porque
se preocupava com o desenvolvimento daquelas terras transmontanas que, se
ainda agora estão um bocado abandonadas, na altura, ainda era pior… Sei
que o meu avô enfrentou dificuldades na construção da linha. Ele tinha uma
empreitada com prazo fixo para entrega e a construção atrasou-se porque se
depararam com terrenos graníticos onde surgiram imprevistos de que não es-
tavam à espera. Em consequência disso, não lhe terão pago, o que o obrigou
a hipotecar ou a vender a maior parte das quintas que possuía. Terá morrido
na sequência do desgosto que teve… A. C. terá sido um dos responsáveis pela
falência de Lopes da Cruz, já que não terá defendido os interesses do seu
cliente, mas os do Estado…” [Informante nº 34, neta de joão Lopes da Cruz,
empreiteiro da linha do Tua no troço de Mirandela a Bragança]

“…O facto de haver comboio facilitava a emigração, a saída. Nessa al-


tura passavam, por dia, dois ou três comboios de carga no intervalo dos de
passageiros, da gente que ia trabalhar para Mirandela e para o Cachão. Iam
sempre cheios de passageiros…
…Nesta aldeia ouvia-se bem o apito do comboio. Agora já não se ouve
nada... o combóio nunca devia ter acabado....
…Na Brunheda havia 2 barqueiros: passavam vinho e pessoas (2 ou 3
escudos cada passagem)… A ponte da Brunheda foi construída em 1986…”
[Informante nº 4]

***

“…Em Foz-Tua a azáfama e a movimentação das pessoas era grande, so-


bretudo para aquelas que ainda continuavam viagem, tendo que mudar de
comboio… Destas viagens recordo-me bem do fumo da máquina a vapor que
sujava as pessoas, sobretudo aquelas que gostavam de ir para a janela… Com
o andar dos anos, fui-me apercebendo da beleza desta viagem, sobretudo do
belo horrível e da paisagem dantesca da linha do Tua. Via as pessoas que
trabalhavam aquelas encostas com um esforço titânico, sobretudo em frente

68
Maria Otilia Pereira Lage

ao Tralhão, a S. Lourenço e a Santa Luzia e, em jeito de desabafo, confiden-


cio que a gente de Trás- os Montes foi sempre muito marginalizada, sem o
merecer… Mas tenho outras recordações destas viagens: por exemplo, a da
merenda partilhada. Todos viajavam com a sua merenda, a qual consistia em
frango envolto em ovo (quando havia dinheiro para comprar o frango…),
bolos de bacalhau, pão de centeio guardado num saco de pano e, vinho. Tudo
isto era levado num cabaz próprio… A merenda era motivo de união e de con-
fraternização entre as pessoas… Ainda hoje vou mas de carro e, quando che-
go por alturas de Vila-Real, tenho a ideia de que entro num outro mundo, num
“reino maravilhoso”… A cidade de Mirandela mudou muito e para melhor…
É verdade que a cidade também tem uma situação estratégica: é o encontro
de várias estradas. …Falando agora da Linha Mirandela-Bragança e da sua
importância: permitia ir à capital do distrito para tratar dos assuntos mais
importantes…” [Informante nº 9]

***

“…Fui para ferroviário como muitos dos homens do Amieiro: era o 1º


emprego que procuravam. O caminho de ferro era a única via de ligação à
freguesia….uns iam para a via… outros para a estação… outros para reviso-
res… O comboio, nestas terras, era algo de muito importante para o transpor-
te de pessoas, para o escoamento da cortiça, da azeitona, da baga do azeite
e das laranjas. Utilizava-se muito o comboio para ir às feiras a Mirandela
comprar e vender produtos ou para ir ao Tua. Para ir para a Alijó não havia
transporte, nem estrada...ou se ia a pé ou a cavalo...
…A morte da linha e alguns episódios um tanto tristes relativos ao ano de
1991 (quando se deu o fecho da linha do Pocinho para a Barca de Alva) : “as
pessoas reclamaram, mas sabe que o transmontano, assim que vê os seus bens
fugirem, tal como estão a fugir outros, hoje também, trata de demonstrar o seu
desagrado”. Aconteceu isso nessa altura. Mas as empresas de camionagem
começaram a fazer o mesmo trajeto do comboio e a ir às povoações.
A linha Tua – Bragança acabou em 1991… A linha era segura e o cami-
nho-de-ferro tinha muito movimento. Com o IP4, deu-se o declínio do cami-
nho-de-ferro. Os militares, mesmo assim, ainda continuaram a frequentar o
comboio, mas as empresas de camionagem acabaram por lhes dar as mesmas
vantagens e eles começaram também a frequentar o transporte que elas for-

69
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

neciam. E a linha do Tua morreu muito por culpa das pessoas que deixaram
de frequentar o comboio... Lembro-me de um desprendimento entre Brunhe-
da e S. Lourenço (perto do Tralhão): houve um descarrilamento, a máquina
vinha carregada de trigo e o maquinista faleceu. Outro, entre a Brunheda e
Foz-Tua, em que o maquinista ficou sem uma perna... Estes acidentes acon-
teceram ainda no tempo da máquina a carvão… Quando o eng. V. afirmou
que não podia garantir a segurança da linha, não pensou que as máquinas
continuaram a andar de Mirandela para o Tua e havia segurança… houve
depois mais descarrilamentos com as novas automotoras do que havia nesses
tempos.... Pela linha do Tua vinham muitas mercadorias – havia vagões para
os pequenos volumes. Com o IP4, deixou de haver transporte de mercadorias
(pequena e grande velocidade)… acabaram os vagões completos e acabaram
as mercadorias rápidas que só subsistiram alguns anos… A linha deixou de
ser a vapor nos anos 80. Antes da construção do IP4, a linha tinha muito
movimento. Havia 5 ou 6 composições diárias… Muita gente daqui que traba-
lhava no Cachão ia e vinha de comboio todos os fins de semana e outros, todos
os dias… quase metade da nossa povoação… homens, mulheres, rapazes…
trabalhava lá… o comboio daqui lá demorava cerca de 1 hora… O complexo
do Cachão também utilizou muito a linha para fazer o escoamento de cereais,
adubos, postes para os telefones e as próprias travessas da linha… No Amiei-
ro, o único transporte que havia era o comboio... quando acabou a ponte a
aldeia ficou isolada… só no verão se podia passar a pé numas cascalheiras
que há ali abaixo… Para atravessarem o rio, havia o barco e o teleférico….”
[Informante nº 8]

3.2.– Processo histórico-social e político em geral

A linha e o comboio do Tua não só interferiram nas vidas anónimas de indi-


víduos e grupos sociais das comunidades transmontanas como contribuíram
para as desenvolver e para envolver os locais e a região nos grandes acon-
tecimentos do séc XX que marcaram o Mundo e Portugal. Deste processo
complexo e denso nos falam as seguintes transcrições de fontes orais que nos
aproximam dos momentos históricos coletivos pela singularidade dos que de-
les participaram direta ou indiretamente.

70
Maria Otilia Pereira Lage

• I Guerra Mundial
“…da I Guerra Mundial… lembro-me… o Zé Pinto… fidalgo… do cimo do
povo... andou lá e o Zé Carlos Almeida que casou com a Berta e morreu pouco
depois, tuberculoso… ouvi contar que fugiram da guerra de cavalo…
…”.[Informante nº 14.]

***

“…Tenho ideia de ouvir dizer que o meu pai tinha nove filhos legítimos
e mais do que isso ilegítimos… O meu pai era médico militar; reformou-se
como coronel-médico. Estudou no Porto nos primeiros anos do curso, mas
quando o pai morreu e perdeu as quintas, ele teve que emigrar para o Brasil,
onde fez imensas coisas para sobreviver, até que percebeu que tinha mas é
que continuar a estudar. Pediu dinheiro emprestado à lavadeira que era por-
tuguesa e veio para Portugal continuar os estudos, mas em Lisboa… Aqui,
agarrou-se aos livros a sério e formou-se... Depois foi para África (Angola).
Como médico militar, andou nas campanhas de África da 1ª Guerra Mundial,
onde tínhamos problemas com os Alemães…
…Uma das formas que o meu pai teve de ganhar dinheiro no Brasil, foi a
fazer versos, pois tinha muita facilidade para isso. Fazia versos para os na-
morados oferecerem às namoradas; e fazia discursos políticos que ele apro-
veitava de uns para os outros; só tinha que mudar umas tantas palavras e
adequava-se a todas as fações políticas. Fez muitas outras coisas. Trabalhou
na estiva; foi empregado de um talho… aqui, um dia, aconteceu-lhe algo que
o fez perceber que precisava de regressar a Portugal e dar um rumo à sua
vida… Um dia entrou nesse talho um antigo colega da Escola Médica do Por-
to que ficou muito admirado quando o viu ali…. Ele sentiu-se tão mal, tão mal,
que jurou que havia de voltar para Portugal para se formar. Voltou, começou
a levar a vida a sério e formou-se mesmo... Parece que enquanto estudou no
Porto, andava sempre na paródia, mas quando foi estudar de novo, agora
para Lisboa, decidiu que tinha mesmo que se formar. Com medo de se tentar
e de não estudar o suficiente para se poder formar, pôs uma pistola em cima
da secretária e disse: “João Lopes da Cruz, no dia em que perceberes que não
te formas, dás um tiro na cabeça”. Tinha passado por tanta coisa que tinha
percebido que aquele era o melhor caminho para ele.… O meu pai tem em
Carrazeda de Ansiães uma rua com o seu nome João Lopes da Cruz (filho)…

71
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Tal como o pai, era muito generoso e tinha bom coração. Quando estava em
Luanda e via os doentes, se as pessoas fossem mesmo carenciadas, não só
não lhes levava dinheiro pela consulta, como ainda lhes deixava algum em
cima da mesa para a galinha e para a canja. Tinha uma casa só para receber
os Trasmontanos que emigravam para lá, enquanto eles não começavam a
ganhar a vida em África… Quando regressou a Portugal, a grande preocu-
pação dele foi desipotecar duas quintas em Trás-os-Montes que o meu avô
perdeu quando faliu com as obras da linha do Tua. Uma delas era a quinta
do Zimbro, que tinha um vinho do Porto muito bom. Mas, como era muito boa
pessoa, acabou por dar as quintas a uma irmã que vivia lá e que tomava conta
da mãe …” [Informante nº 34]

• II Guerra Mundial
“…Da II Guerra não tenho grandes lembranças… o volfrâmio… sim… nessa
altura houve muito dinheiro porque se vendia o minério, muito caro, para
Espanha… as raparigas que andavam a ele, metiam aquelas “chinas” nas
meias, vendiam-no… era caro… e faziam bom dinheiro… compravam boas
saias e vestidos… ficaram mais vaidosas… eu nunca andei… o meu trabalho
sempre foi em casa e nas propriedades… os homens compraram casas… Os
compradores vinham buscá-lo. Passavam-no, de noite, de uns sítios para os
outros… era clandestino… Para o Tua, nunca vi que fosse… para a Alijó,
talvez…”. [Informante nº 14]
***

“…As minhas memórias da 2ª Guerra…: em 1939, frequentava a 2ª classe,


quando passou em frente à casa dos meus pais uma padeira, que vinha do Tua
e disse: “rebentou a guerra mundial”. Soubera da notícia, através dos cami-
nhos-de-ferro e da estação dos correios. No Fiolhal não havia nenhum rádio.
Lia-se o jornal que chegava pelas 15.30 horas da tarde para quem o assinava.
Os meus pais faziam-no. Quando o jornal chegava, era uma alegria. Havia
na aldeia dois irmãos, Celestino Luís e Luís Celestino, que liam para todos
aqueles que se juntavam à volta deles. Os poucos que assinavam o jornal, em-
prestavam-no… Eu sentia a guerra distante, mas lembro-me bem do mapa que
a minha mãe tinha na cozinha e onde ia pondo um alfinetinho, conforme as
tropas iam avançando, tanto dos alemães como dos aliados. …Não fui afecta-
da pelo racionamento porque os meus pais eram abastados. Mas, as famílias

72
Maria Otilia Pereira Lage

numerosas tinham muitas dificuldades na aquisição de alimentos. E acabaram


por ser as mais afectadas pelo racionamento. …Aprendi a fazer sabão com
borras de azeite e soda cáustica quando Salazar deu ordens para se produzir
e para se poupar. Havia mesmo um aforismo popular naquela época: “produ-
zir e poupar, manda Salazar”. Salazar dizia” das camisas velhas dos vossos
maridos, fazei camisas novas para os vossos filhos mais velhos e das camisas
velhas dos vossos filhos mais velhos, fazei camisas novas para os vossos filhos
mais novos”. …Também me lembro de que havia contrabando de café para
Espanha. …e a farinha era racionada. …Lembro-me que em casa dos meus
pais se fez um buraco enorme no quintal para esconder as latas do azeite.
Havia gente com fome que ia aos quintais das pessoas abastadas e tentava
roubar para comer… [Informante nº1]

***

“…Estamos a falar dos anos 40 do tempo da fome por causa da 2ª guerra.


O povo vivia mal: comia uma malga de caldo de couves, não havia azeite, nem
batatas, nem pão...O racionamento durou um ano inteiro. Íamos aos “sótos”
ao Pinhal e à Brunheda, mas era tudo muito racionado... Havia muito contra-
bando de azeite… Fazia-se o sabão com as borras do azeite, com cinza e soda
Depois punha-se a secar ao sol…. O carvão também começou a falhar muito
e as mulheres iam a pé, com molhos de lenha à cabeça, levá-los à estação da
Brunheda, de onde seguiam para o Tua e para Mirandela. …Nesta altura ha-
via muito movimento na linha. Era pelo comboio que vinham as mercadorias,
o cereal, o peixe, o carvão e...o correio. Para se deslocarem a Mirandela, só
tinham o combóio. Também se ia a cavalo, mas demoravam-se bem 4 horas...
Quando se ia a Mirandela comprar ou vender ovelhas, ia-se a pé, mas saía-se
ao fim da tarde e chegava-se lá no dia seguinte de manhã…” [Informante nº4]

***

“…1945, ficou conhecido pelo Ano da Fome, em que tudo era racionado.
Faziam-se trocas: por exemplo, trocava-se um litro de azeite por um quilo de
açúcar. Lembro-me de uma senhora da Ribeirinha da linha do Tua, que tinha
muito açúcar e que fazia este tipo de troca… Quando não havia pão, faziam-
se talassas: faziam-se na sertã, com farinha muito rarinha e açúcar por cima.

73
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Tomava-se com elas o café, todos os dias… Um pão centeio chegou a custar
50 escudos. Começou a não haver mercearia nos “sótos”… Aquilo que se po-
dia arranjar era através de senhas que se iam buscar à Câmara de Carrazeda.
Era tudo racionado. E havia muitas famílias com 6, 8 e 12 filhos...Só com um
filho, eram muito poucos…” [Informante nº 5]

***

• Guerra Colonial Portuguesa em África. Emigração para a Europa


“…Fiz o curso de radio-telegrafista no Porto e fui escolhido para a Trafaria…
fui como operador de informação, 1º cabo, para São Tomé… eram ao todo
30 homens neste trabalho, considerados os trinta melhores do curso e, por
isso, escolhidos. Reportavam ao capitão Jales Moreira. Tinham muito boas
relações com o Comandante. O meu número mecanográfico era o 00063866.
Aqueles que possuíam os números mais baixos foram os primeiros a ser mobi-
lizados. Quando fui para o Ultramar tinha feito a 4ª classe, mas lá frequentei
o liceu e terminei o 2º ano.
…O dia-a-dia em S. Tomé: controlava informações de guerra e dos movi-
mentos independentistas… na base dos aviões da Cruz Vermelha e outros…
no local de trabalho, estavam sempre 3 homens de serviço que tinham tarefas
diferentes; um, gravava emissões em bobines, da Rádio Portugal Livre, da Rá-
dio Kinshasa, por exemplo; outro, gravava novas emissões que aparecessem
de Cabinda, Congo ou de Kinshasa, colónias espanholas e Guiné Equatorial;
finalmente, o terceiro gravava tudo em Morse e eu era um deles…pertencia
aos serviços secretos, convidados para a Pide e correios… Foi na altura da
crise no Biafra e da guerra em Angola… Tinha a oportunidade de ter muita
informação. Por exemplo, lembro-me de que uma vez apanhámos uma men-
sagem que informava acerca de uma emboscada que iam fazer às tropas por-
tuguesas. Imediatamente enviámos uma mensagem relâmpago (mensagem
prioritária em Morse) para Lisboa. Sobre a guerra apanhávamos mensagens
importantes assim como notícias prévias de ataques, tudo através do códi-
go Morse. As mensagens eram transmitidas para Lisboa. Fui convidado pela
PIDE para ficar nesta ilha, mas não aceitei… Um colega meu foi para a ilha
do Príncipe, mas era uma vida de ilha sempre limitada… Também não me
dava com o clima que era muito quente e muito húmido. Emagreci lá 13 ki-
los e fiquei sem o cabelo. Quanto ao resto, a vida em S. Tomé “era a vida de

74
Maria Otilia Pereira Lage

uma ilha: passávamos meses inteiros a alimentar-nos de arroz porque muitas


vezes falhava o barco e batatas não as havia”. Era a vida muito limitada... a
chegada de certos géneros alimentares estava sujeita à chegada do barco. O
camarão era barato e podíamos mesmo apanhá-lo. Tinhamos fogão e fazía-
mos a nossa própria comida. Também conheci bem a vida das roças. Conheci
lá gente como, por exemplo, um senhor que era da CUF e um outro que era
de Pombal de Ansiães, da família dos Malheiros. Este, foi para lá muito novo
e lá casou com uma senhora que era dona de várias roças de café, de cacau e
de côco. Ele era irmão do Sr. Albino Malheiro e cunhado da Srª. Conceição,
do Pombal….” [Informante nº 8]

***

“…A CP era o lugar que nos dava mais segurança naquela altura… estive
como eventual, na CP, até 1970. Em Janeiro desse ano fui assentar praça em
Vila Real e comecei a fazer tropa em Abrantes, onde fiz a especialidade de in-
fantaria. Depois fui para Moçambique. Fiquei na pior zona de guerra: Cabo
Delgado. Estava já perto da Tanzânia. Só para chegar de Lourenço Marques
até à Companhia para onde fui, demorou 3 meses… fui em rendição indivi-
dual: o cabo que fui render, era de Braga, tinha levado um tiro nas costas, na
sequência do qual morreu. O batalhão a que eu pertencia foi para Cabinda,
mas na altura, os que tinham mais pontuação, por estranho que pareça, não
eram os que eram mais depressa mobilizados e os do meu batalhão queriam
que eu trocasse com um soldado casado, mas ele entendeu que se não tinha
sido mobilizado, também não tinha que trocar. Então, vim para Lisboa, onde
estive um mês, seguindo depois para o quartel de Chaves para ir substituir
aquele cabo que morrera. …A vida no batalhão não era fácil, sobretudo por-
que eu ia sempre para os Adidos e passava o tempo a mudar de sítio: Louren-
ço Marques, Nampula, Moeda, Sagal, Palma, Porto Amélia… Estava sempre
sob fogo mas o maior medo ainda era o das minas. Tive dois acidentes nas
minas anti-pessoais, vi morrer muitos colegas, vi outros que ficaram cegos,
outros sem pernas e muitos horrores…
…Um pelotão de combate tinha 25 homens. Tinha 2 Cabos e 1 Furriel.
Depois, ainda se dividia em 4 equipas. Eu tinha a minha equipa. Quando
transportavam os camiões, as equipas tinham que picar o caminho (aquilo
não era estrada nem era nada…). Só depois é que passava o camião a que

75
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

chamavam o rebenta minas que era uma Berlier sem portas, nem tejadilho,
nem nada e ia carregada de sacos de areia. Dos lados havia tipo de uma bala
e os que iam atrás, tinham os sacos no chão e, no centro, uma metralhado-
ra, chamada A Breda, onde ia sempre um 1º Cabo e um Soldado que era o
municiador que puxava as balas. …Foi aqui que fui duas vezes ao ar, nas
minas... Nestas minas, ficava-se desorientado, abalado… Quando se ia para
um daqueles lugares onde estivessem aqueles a quem os soldados chamavam
“turras”, iam sempre paraquedistas ou os Comandos para ajudarem; faziam
o reconhecimento e depois instalavam-se à volta para eles descerem. Quando
iam para o mato, iam mais confiantes… Só mais para o fim é que regressei à
zona de Inhambane, onde já era melhor (quase não se ouvia falar de guerra).
Ainda estive um mês destacado com o pelotão a que pertencia, num lugar
chamado Malvérnia que era a antiga Rodésia. Mas, o pior ainda estava para
vir: o pelotão a que pertencia foi destacado par a o Norte, já mais perto da
Beira. No Norte tivemos um grande ataque quando seguiamos por uma es-
trada. Vi morrer colegas e muitos africanos e aí é que fiquei mesmo abalado.
Nesta zona tive uma vida um bocado atribulada. Ao todo, fiz 34 meses de tro-
pa. …Quando regressei, em 1972, não conseguia falar sobre a guerra. Andei
a tratar-me em Mirandela e no Quartel Militar do Porto… Quando fui para
Moçambique, embarquei no navio Pátria que demorou 22 dias. Para cá já vim
de avião. Embarquei na Beira…
…Em 1973, emigrei para o Luxemburgo. Aí também ainda tive acompa-
nhamento médico… acho que nunca mais fui a mesma pessoa. Para ir para
o Luxemburgo, tive que pagar a quem conseguiu que eu fosse, mas já fui com
documentação. Fui trabalhar para uma linha de caminhos-de-ferro, chama-
da “Companhia do Seco”. Tinha que andar a reforçar as pontes antigas, de
ferro, mas o trabalho era penoso. Apanhava-se muito pó e não era um tra-
balho nada saudável; apesar de ter um chefe que gostava do meu trabalho,
acabei por desistir e ir trabalhar para o Aeroporto, na parte da aerogare, na
assistência para carregar, descarregar e limpar o avião…. Aí fui incentivado
a candidatar-me para a Delegação dos Trabalhadores (mais ou menos em
1980). Fiquei logo como Delegado à Segurança e depois como Secretário, de-
pois Vice e, finalmente, Presidente. Mas fui-me apercebendo de que as pessoas
de lá não gostavam muito dos Portugueses; igualavam-nos aos Marroquinos
e aos Argelinos; não éramos bem vistos. Eram contra nós pelo facto de ainda
termos as colónias. Ora, se nós tínhamos feito aquela guerra contrariados

76
Maria Otilia Pereira Lage

e tínhamos sofrido na pele com todo aquele horror, nós achávamos que eles
assim estavam a bater à porta errada. Vinham comboios cheios de skinheads
(os da cabeça rapada), manifestar-se contra os portugueses. Teve que vir o
Duque falar à televisão …ele ainda tem uma costela aqui de Bragança… para
acalmar os ânimos. …É que estes jovens emigrantes que tinham feito a guerra
do Ultramar não tinham ainda família constituída e estavam lá sozinhos, bem
treinados na luta e, então, os hospitais enchiam-se naqueles dias das mani-
festações… partíamos-lhes as costelas com os cartazes que eles traziam; eu
estive envolvido nisto, pelo menos umas três vezes... Quando me aposentei,
regressei a Codeçais, aonde vivo com a minha família. Agora que estou re-
formado apenas me dedico a cultivar as minhas hortas… [Informante nº 30]

• 25 de Abril de 1974
…quando foi do 25 de Abril, uma vez, ao chegar a Salsas, o fator Pimentão
estava a dizer que havia uma revolução e o Jorge tinha lá um cartão a dizer
VIVA A LIBERDADE… Pusemos logo o cartão na frente da máquina e lá
fomos assim até ao Tua… Antes do 25 de abril, já havia o sindicato dos fer-
roviários, mas era quase só para os compadres e afilhados. Não funcionava
nada. Depois do 25 de Abril formou-se o sindicato dos maquinistas e as coisas
avançaram um bocadinho… já ganhávamos mais uns tostõezitos e tínhamos
mais direitos... Em 1991, em Mirandela, tirava quase 300 contos... Foi nessa
altura que fiz a minha casita na Lavandeira. Mas, quantas vezes comíamos em
andamento! Saíamos de Mirandela às 5 da tarde para chegar a Bragança por
volta das 8 ou 10h para comermos, mas quantas vezes estávamos a comer e a
neve passava de um lado para o outro! Era complicado... [informante nº 40]

***

“…Lembro-me bem de ter passado a data do 25 de Abril na estação. Senti


um bocadinho a liberdade e comparei o que via com o meu marido a ouvir
a Rádio Moscovo debaixo dos lençóis… E foi bom este dia, até porque os
ferroviários passaram a ganhar mais um bocadinho… Havia 4 comboios de
passageiros ao longo do dia: 4 para Bragança e 4 para o Tua. …Recordo com
tristeza o acabar da linha entre Mirandela e Bragança. A viagem demorava
por volta de hora e meia, mas valia a pena fazê-la só pela paisagem que era
maravilhosa, tal como a viagem para Foz-Tua. Enquanto houve comboios,

77
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

quer de passageiros, quer de mercadorias, houve sempre muito movimento


na estação. As pessoas vinham sobretudo para Foz-Tua. Na altura da guerra
colonial, havia alguns comboios só para militares… Entre 1970 e 1985 ainda
funcionava muito o comboio a vapor: era usado pelas pessoas das aldeias da
região, por pessoas que vinham do Porto, de Lisboa e de outras proveniên-
cias. Já existia o autocarro, o qual acabou por prevalecer porque o dinheiro
compra tudo…” [Informante nº 11].
Numa análise retrospetiva dos registos transcritos, vemos cruzarem-se ci-
clos de tempos e lugares densificados de acontecimentos com impactos diver-
sos e em diversas escalas: local, regional, nacional e global.
Podem observar-se, nessas conjunturas e contextos económico-sociais, as-
petos culturais dominantes de um crescente dinamismo da história local que
gravita em torno do vale, linha e comboio do Tua, cujos agentes sociais e seus
comportamentos simultaneamente influenciaram. São, como se viu, narrados e
comentados pelos indivíduos que respetivamente os situam nas diferentes eta-
pas do processo histórico nacional e internacional em que ocorreram, tendo-os
vivido direta ou indiretamente.
Registaram-se como vetores predominantes da História os grandes confli-
tos bélicos que marcaram inexoravelmente o séc XX no plano nacional e in-
ternacional, e que tiveram o seu impacto, à escala regional de Trás-os-Montes
e ao nível local, afetando também as vidas das populações da sub-região do
Tua cuja interioridade e isolamento se foram reduzindo por força de um maior
movimento económico e mobilidades sociais geradas pelo longo e regular
funcionamento do caminho-de-ferro. Deixaram-se assim também esboçados
alguns traços marcantes de uma história local “não ensimesmada” em busca
de seu estatuto próprio.
O significado do local na pesquisa histórica, uma espécie de depósito ar-
queológico de épocas e locais diferenciados, situou-se a um “nível de cons-
trução / investigação da realidade em que as coisas adquirem uma dimensão
distinta, um “tempo específico” o “tempo dos lugares”, próprio “de cada es-
pacialidade” (Jesus Arpal). Podemos intuir a diversidade e homogeneidade
dos espaços, apreender o tempo vivido pelas localidades, composto de uma
amálgama de experiências diferentes dos “pólos hegemónicos”, o que permite
também problematizar a relação tempo-história, evitar o reducionismo históri-
co, apresentar o concreto da dinâmica social e do quotidiano das populações e
dos indivíduos, devolvendo-lhes a sua historicidade.

78
Maria Otilia Pereira Lage

Em síntese, ficou bem visível no caso do vale do Tua, que se à história local
interessa, sobretudo, a apreensão do “tempo dos lugares”, um tempo realmente
vivido pelas populações das e nas localidades, composto por uma amálgama
de experiências distintas, a história nacional e internacional “generalizante”
trabalha um tempo uniforme, o chamado “tempo do mundo” que “não é, nem
deve ser, a totalidade da história dos homens” (F.BRAUDEL: 1996, 8-18). 015
Daí, também, o interesse acrescido do presente capítulo em que se relevaram
ecos e impactos locais de acontecimentos históricos nacionais e internacionais
do séc XX que se fizeram sentir na região do vale do Tua, bem como se deu
ênfase aos modos como foram apreendidos e vividos coletivamente pelos seus
indivíduos, naturais e residentes.

015 LAGE, Maria Otilia Pereira – “O tempo dos lugares: Carrazeda de Ansiães e Torre de Moncorvo na I
República. “ Revista CEPHIS, n2, 2012, p.337-363.

79
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Terminus da linha do Tua em Bragança- Chegada do 1º Comboio, 1906


(Foto Raizes disponibilizada no Blogue” Amigos de Pensar Ansiães”)

4.HISTÓRIA VIVIDA.
A arte de contar e fazer contar no Vale do Tua

“A Vida não é a que uma pessoa viveu, mas sim a que ela recorda e
como a recorda para contá-la. “
(Gabriel Garcia Marques)

Continuando a mobilizar fragmentos de histórias de vida, aborda-se agora,


de modo mais específico, a história vivida.
A epígrafe anterior sinaliza a precaução literária016 em relação à escrita da
história que tal como na literatura só pode narrar os restos ou rastros do acon-

016 Gabriel Garcia Marques, escritor colombiano, Prémio Nobel da Literatura em 1982.

80
Maria Otilia Pereira Lage

tecido, uma vez que tem de suportar-se em fontes e registos em que os tempos
idos se traduzem já transformados pelas recordações e memórias dos homens.
E podemos,a partir de agora, operacionalizar esses rastros do acontecido
ampliando com maior solidez e vivacidade o conhecimento socio-histórico
desta sub-região transmontana e da linha férrea do Tua.
As análises feitas ao material das entrevistas realizadas, exemplo dessas
fontes orais e rastros ou restos, permitem observar, como se viu, múltiplos
temas que por elas perpassam suscetíveis de serem traduzidos em palavras-
chave que representam os conteúdos essenciais das narrativas dos entrevista-
dos e os acontecimentos que mais os marcaram. Recuperam-se os conteúdos
mais significativos do conjunto das entrevistas: dados, informações e assuntos
recorrentemente abordados bem como o que neles perpassa, subliminarmente,
e o que se subentende nos discursos e memórias dos atores.
Identificam-se cinco vetores transversais que atravessam e organizam os
conteúdos – o vale e o rio, a linha férrea e o comboio, a envolvente natural e
a exploração termal e agro-industrial (Termas de S. Lourenço, Sociedade Cle-
mente Menéres no Romeu, CUF-Mirandela e Cachão).
Traduzem-se e interpretam-se os principais e mais expressivos resultados
do trabalho de campo que lhes subjaz, baseado em metodologias da história
oral, através da compilação, ordenação e transcrição dos excertos mais repre-
sentativos das narrativas entendidas como fontes orais essenciais à construção
da História Contemporânea das populações locais do vale do Tua.
Estabelece-se com os atores sociais uma relação simétrica entrevistador
-entrevistado e os seus depoimentos e testemunhos são tidos como os de au-
toridade no assunto, pois se parte do princípio que os dados e informações
não precisam de ser verificados nem referenciados às trajetórias dos próprios
indivíduos que os forneceram podendo ser cruzados entre si e com outros do-
cumentos.
Uma das contribuições da história oral foi a da ampliação da conceção de
fontes históricas e testemunhos verbais autorizados, inclusive de indivíduos e
populações anónimas, até na medida em que, como refere o historiador Paul
Thompson “ o gravador tem permitido que a fala da gente comum – sua habi-
lidade narrativa, por exemplo, - seja, pela primeira vez, seriamente compreen-
dida” (Thompson, 1992: 41).
Cada depoimento é tratado como uma versão sobre o acontecido e o vivido,
sem minimizar o facto de que “a ‘entrevista de memórias’ comporta possibi-

81
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

lidades de reconstrução de rotinas e modos de vida quotidianos que, de outro


modo, teriam que se considerar historicamente perdidos por falta de transmis-
são” (Niethammer, Luz, 1989:12). Não se pode então separar nos relatos, o
“real” da impressão pessoal pois que o processo de memória também depende
do interesse individual do informante que, por vezes, tem ainda intenções cla-
ras quanto ao registo do acontecido e do vivido.
Porém, esta dimensão de subjetividade é uma questão que exige reflexão
mediatizada na medida em que “recordar e contar é já interpretar (…) excluir
ou exorcizar a subjectividade como se fosse somente a fastidiosa interferência
na objetividade factual do testemunho, quer dizer em última instância, torcer
o significado próprio dos factos narrados” (Portelli, Alessandro, 1996:60-61)
A credibilidade das fontes orais é uma credibilidade diferente. Se na pers-
petiva dos entrevistados a importância dos relatos orais reside no processo
de construção simbólica do acontecido realizado no testemunho, na ótica do
investigador, a história não é apenas sobre as estruturas, os eventos, ou com-
portamentos, mas ainda sobre os modos como são vivenciados e lembrados
na imaginação. Faz parte da história não só o que os indivíduos pensam que
aconteceu mas também o que acreditam que poderia ter acontecido… sua ima-
ginação de um passado e de um presente alternativos pode ser tão fundamental
quanto o que de facto aconteceu. (Thompson, 1992: 41).
As narrativas de história oral “têm valor documental e sua interpretação
tem a função de descobrir o que documentam” (Alberti, Verena, 2004:19) e a
história oral privilegia a recuperação do vivido, segundo a conceção de quem
o viveu, a partir das formas interpretativas e da reconstrução da memória de
quem o viveu. Aliás, esse fascínio do vivido é, hoje, um dos principais fatores
do sucesso académico da história oral.
Devedor de idêntico fascínio é ainda o documentário vídeo, material acom-
panhante deste livro, o qual foi construído a partir dos registos de som e ima-
gem de histórias de vida segundo roteiro ou moldura organizativa que adiante
se apresenta.
As sub-rubricas que se lhe seguem expandem-se em narrativas orais que
documentam minuciosa e extensivamente temas alusivos aos principais re-
cursos naturais e materiais do vale e linha do Tua referenciados e sua história
recente, sendo implícitos os modos como foram vivenciados e são lembrados.

82
Maria Otilia Pereira Lage

4.1. Roteiro de um documentário histórico e sentimental

Seguiremos, daqui em diante, uma espécie de Roteiro de vidas no Vale do


Tua, memórias da linha e do comboio de Foz- Tua a Bragança, cuja es-
trutura, o documentário vídeo ajudará a traçar os contornos que definem a
micro-história do vale, rio, linha e comboio do Tua e suas envolventes natural,
económica, social e cultural captando na medida do possível, o processo da
sua evolução ao longo de mais de 120 anos e a história vivida das populações
que se pode apreender nas histórias de vida.
A temática abordada de história social contemporânea – modos de vida
das populações do vale, memórias, vivências, tradições, mobilidades e moder-
nidades em torno da via férrea e do comboio - foi em certa medida suscitada
por dois acontecimentos recentes ocorridos já no presente século: o encerra-
mento da linha férrea e a suspensão do funcionamento do comboio, fraturante
do viver, pensar e sentir das populações ribeirinhas e a polémica em torno da
construção da barragem do Tua. É tratada sob o ponto de vista estético e an-
tropológico de um narrador, observador crítico e participante do meio físico e
das pessoas que o habitam e / ou habitaram e que pretende, a partir de factos
infinitamente pequenos e imponderáveis da vida quotidiana, conseguir chegar
a generalizações convincentes (Malinowski).
Visa-se deixar intuir aspetos do trabalho empírico de investigação desen-
volvido num processo intensivo de pesquisa em contacto com as populações,
durante mais de três anos, que se traduziu na acumulação de um espólio signi-
ficativo de histórias de vida e fontes orais que permitem reconstruir e divulgar
a História Local e Regional, memórias, vivências e representações do vale, rio,
linha e comboio do Tua, tema presente na sociedade portuguesa, com parti-
cular enfoque no último século de história desta periferia interior do Nordeste
Transmontano.
Paralelamente, pretendeu-se também contribuir para documentar e divul-
gar a riqueza cultural, visual, ambiental e paisagística desta micro-região.
As principais sequências contempladas organizam-se num eixo espácio-
temporal que acompanha o processo histórico da linha férrea do Tua desde a
sua construção / inauguração até ao seu encerramento progressivo desde os
anos 1990 e construção da barragem do Tua, a partir de 2008, passando pelas
fases de seu desenvolvimento, auge e declínio.
As estratégias de abordagem, definição de estrutura e estilo de tratamento

83
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

do assunto, que se pretendem muito simples, visam a flexibilidade do roteiro,


conciso e objetivo, aqui esboçado como apoio ao desenvolvimento do presente
capítulo que apresenta por sua vez uma forte componente de arquivo oral vivo
o qual implica também que seja resultado de um processo criativo marcado
por várias etapas de seleção que orientam uma série de recortes, entre a conce-
ção da ideia e a edição final que marcam a apropriação do real por um discurso
de natureza histórico-social.
Sublinham-se, como contexto englobante, à partida, registos marcantes do
evento de inauguração oitocentista da linha férrea do Tua, animada pelo apito
das máquinas a carvão e a diesel, e o trepidar da passagem do comboio ron-
ceiro nos carris, ilustrados por fotos do álbum da linha do Tua de Emílio Biel
e imagens da banda desenhada de Rafael Bordalo Pinheiro. Termina-se com
a evocação de objetos do património ferroviário da linha que integram o im-
portante espólio museológico de máquinas / carruagens desativadas e material
circulante à guarda do Museu Ferroviário de Bragança, sob o fundo sonoro da
canção, outrora em voga, de Mário Contumélias “Olha o comboio que sobe o
Tua…”, premiada no Festival Televisivo da Canção em 1979, a que se suce-
dem imagens atuais da construção da barragem do Tua.
A perspetiva de desenvolvimento centra-se, imaginativamente, no fluir di-
nâmico do rio Tua desde a nascente - junção dos rios Tuela e Rabaçal - até
à Foz no Douro – margens e leito fervilhantes de vida de espécies animais e
vegetais e reconstrói-se com fragmentos de entrevistas e histórias de vida – ex-
certos videográficos e textuais narrados na 1ª pessoa (material impresso e ma-
terial de arquivo – filmes de encontros de ferroviários, fotos antigas, arquivos
de som e pesquisa de campo nas locações de filmagem) selecionados a partir
dos mais informativos, dramáticos ou não, atraentes e sugestivos.
O argumento esboça então a história contemporânea dos últimos 120 anos
desta microrregião transmontana, essencialmente rural, mas pontuada por em-
preendimentos agro-industriais (Romeu, CUF-Mirandela, Cachão) e alguns
aglomerados urbanos (cidades de Mirandela e Bragança e vilas de Alijó, Mur-
ça, Carrazeda, Vila Flor, Macedo de Cavaleiros) – região revolucionada pela
ferrovia e que abrange o recém-criado Parque Natural Regional do Tua.
Apresenta-se a Linha Ferroviária do Tua nos troços Tua-Mirandela e Mi-
randela-Bragança, numa perspetiva histórica da sua construção nos finais do
séc XIX e funcionamento ao longo do séc XX, enfatizando a importância da
conservação do património natural e ferroviário com vista a um futuro de-

84
Maria Otilia Pereira Lage

senvolvimento turístico. Dá-se relevo ao património paisagístico do vale do


Tua, ribeirinho e planáltico, e ao património construído (pontes, estações,
apeadeiros, termas, azenhas, moinhos, casas, empresas e empreendimentos
agro-industriais…). Privilegia-se, simbolicamente, a área de incidência direta
do espelho de água incluindo a área submersa / desmontada por impacto da
construção da barragem do Tua. Sugerem-se algumas breves reflexões sobre o
efeito da construção da barragem do Tua no património construído, da perspe-
tivação de novas oportunidades económicas e sociais que poderão ser abertas
para a região transmontana, e reflete-se sobre a importância da conservação do
património construído, tendo em vista o desenvolvimento do turismo cultural.
O contraste entre o passado e o presente do caminho-de-ferro, que com as
suas transformações, serviu a população do Nordeste Transmontano durante
um século, é relevado, sem visões saudosistas, neste “repositório histórico”
sobre o caminho-de-ferro que, outrora, trouxe desenvolvimento e progresso
para a região e que hoje se espera seja transformado em património que deve
ser recuperado para continuar a servir as populações locais, numa perspetiva
eficaz de desenvolvimento localmente rentável, sustentado e gerador de uma
forte dinâmica de equilíbrio tradição / modernidade.
Por isso se releva o património histórico, o património material, o imaterial
e o construído, o património vernacular ferroviário.
“Todo o esforço titânico daqueles homens que, muitas vezes, estavam um
dia inteiro pendurados numas cordas a destruir rochas tinha que ser homena-
geado, tal como o eng. Dinis da Mota que conduziu a locomotiva real de inau-
guração da linha, o empreiteiro João da Cruz que construiu o troço da linha
de Mirandela a Bragança, acabando na bancarrota e Abílio Beça, o político
que representou Bragança em Lisboa e defendeu Bragança até à sua morte, na
estação de comboio de Salsas”.
A estabilidade das pontes, estações e apeadeiros e outro património mate-
rial e imaterial, numa abordagem algo geométrica, cruza-se com a recriação
de um processo rápido e simples por meio de uma sucessão de curtas viagens
da automotora e metro atual de Mirandela ao Cachão, encarada de forma me-
ramente indicativa de mobilidades urbanas remanescentes.
O argumento do documentário vídeo constrói-se com materiais editados
dos 50 depoimentos videográficos, de forma a ajustar as realidades vividas,
recordadas e narradas, em observação ao formato discursivo de um imaginado
documentário fílmico.

85
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

A sua estrutura aproxima-se de um caleidoscópio de memórias individuais


masculinas e femininas (trabalhadores e residentes de várias localidades do
vale e passageiros do comboio) e coletivas (encontros de ferroviários no 25
de Abril), sempre narradas na primeira pessoa e desenvolve-se em três atos
centrais de contornos espácio-temporais.

O fazer e o desfazer desta epopeia podem ser representados cenicamente


como se propõe no guião-roteiro que consta do Apêndice Documental que se
inclui no fim do livro.
A apresentação e o desenvolvimento sequencial das cenas principais faz-
se em planos justapostos do passado / presente e em diacronia de sequências
cronológicas do recente ao passado histórico e dos mais antigos para os mais
jovens informantes privilegiados, cruzados num eixo geográfico descendente,
da Nascente para a foz do rio Tua (Bragança, Romeu, Mirandela / CUF, Ca-
chão, Vila Flor, Murça, Alijó, Carrazeda, Tua).
A linha férrea é sempre evocada e recriada como a espinha dorsal de Trás-os-
Montes, entre ruralidade e modernidade, tradição e inovação, com relevo para
a mobilidade das populações, escoamento e fluxos de mercadorias importadas /
exportadas, através da composição e análise de diversificados conteúdos e frag-
mentos das trajetórias biográficas e histórias de vida” mais significativas segun-
do critérios de representatividade, de qualidade e de saturação informativa.

4.2. Recursos naturais, patrimoniais, materiais e técnicos.

A diversidade de recursos próprios e as raras potencialidades naturais e ma-


teriais desta zona da região transmontana são frequentemente referidas nas
narrativas e trajetos de vida e de trabalho dos informantes. Estes salientam as
belíssimas condições naturais, as culturas agrícolas, silvícolas e pecuárias, a
fauna e flora local, a existência de um património histórico edificado, do mais
antigo, como o arqueológico e religioso, ao mais recente, em que destacam
o balneário termal de S.Lourenço e empreendimentos agro- industriais con-
cretos de maior vulto, que influíram no desenvolvimento económico e social
transmontano do séc XX, e se desenvolveram à sombra da linha e do comboio
do Tua, entretanto hoje, como estes, já desativados e encerrados.

86
Maria Otilia Pereira Lage

Numa perspetiva atual e de futuro, cujo interesse é igualmente relevado


pelas populações locais, trata-se de um conjunto significativo de condições
e meios potenciadores de desenvolvimento do turismo rural e natural que, a
par da ausência de problemas ambientais, pelo menos, até recentemente, e da
reativação da linha e do comboio do Tua como meio de desenvolvimento de
turismo integrado e sustentado, é subliminarmente desejado pelos informantes
entrevistados e visto como futuro económico, social e cultural, local e regional.
A região é também reconhecida pela existência de numerosos cursos de
água, que correm geralmente em vales apertados e sinuosos, como é típico dos
rios “jovens” de montanha, recurso hídrico que contrasta com um solo em ge-
ral árido e seco. Notam-se os contrastes dos vales profundos e encaixados em
vertentes íngremes e abruptas com intervenção humana remota. O homem foi
mudando a paisagem natural que tem vindo a ser transformada pelo agricultor,
substituindo as mais antigas por novas espécies como os sobreiros, os medro-
nheiros, as estevas, etc. Ao longo das estações do ano mudam-se os ambientes
e as cores: tonalidades escuras esverdeadas e fulvas no outono e inverno frios
e húmidos, contrastam com o colorido de amarelos e verdes na Primavera
e Verão, mais soalheiros, mantendo-se a componente comum dominante dos
rios Douro e Tua.

Esta zona transmontana caracteriza-se por uma vegetação rica e diversa e


por grandes contrastes a que correspondem distintos cobertos vegetais e di-
ferentes usos do solo condicionados pelas variadas e extremadas condições
geográficas (relevo do terreno) e climáticas entre a Terra Quente, a Terra Fria
e uma zona de transição.
Na Terra Quente, onde corre o rio Tua, de invernos amenos e temperaturas
elevadas no Verão, as culturas mais comuns são a hortícola e frutícola, sendo
frequentes, para além da batata e cereais (trigo, centeio, aveia), a vinha, a
oliveira, a amendoeira, a figueira, a laranjeira, o sobreiro, o pinheiro manso
e várias espécies de ervas medicinais. Já mais próximo da região duriense,
sobressaem os socalcos e patamares de vinhedos. Em algumas zonas existe
um “matagal” mediterrânico, em estado virgem, formado por bastante vege-
tação herbácea e arbustiva tradicional e típica do ecossistema mediterrânico.
Este tipo de vegetação natural encontra-se nas zonas de baldios, nos vales que
acompanham as linhas de água, até ao Tua. Quanto à atividade pecuária pre-
dominam as ovelhas e as cabras.

87
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Na Terra Fria, com invernos longos e frios e geadas regulares, são fre-
quentes os lameiros de regadio, o trigo e a batata, os carvalhos, sendo também
comum a criação de gado. Os montes e serras são um equilíbrio da sustenta-
bilidade, com ecossistemas agrários-sociais, com grande extensão de culturas
cerealíferas (trigo, centeio, cevada, e milho miúdo), e ainda algumas impor-
tantes espécies arbustivas produtoras de lenha e de frutos como a castanha, a
azeitona e a amêndoa.
Distingue-se ainda uma zona de transição, com características intermédias
entre a Terra Fria e a Quente. Os valores de precipitação os mais elevados
surgem a poente e vão decrescendo para nascente e para sul; este clima muito
particular permite não só um bom cultivo da vinha e oliveira mas também a
fruticultura.
Todas estas características fazem da paisagem um património único de Trás
-os-Montes a preservar e uma das suas grandes atrações, com a presença hu-
mana, apesar de atualmente cada vez mais rarefeita, devido ao envelhecimento
populacional e desertificação crescente, ainda a fazer-se sentir, nas práticas
agrícolas e hortofrutícolas em regra de economia familiar que lhe conferem
um carácter único e distinto, como é o caso da vinha e dos pomares de amen-
doeiras, oliveiras, laranjeiras e outras árvores de fruto.

Uma perceção comum de todos estes recursos desprende-se da generalida-


de dos relatos e histórias de vida espácio-temporalmente enraizadas na história
centenária da ferrovia do vale do Tua, conforme se ilustra na seguinte narrati-
va que traça um quadro impressivo da vida quotidiana nas aldeias ribeirinhas
do Tua quando ainda eram servidas e dinamizadas pela linha férrea.
“…a linha do Tua… aí na estação da Brunheda, nesse tempo furavam uma
trincheira muito forte e ficou muito minério espalhado por ali… era um pedre-
gulho grande… havia um filão que passava por debaixo da linha …deixavam
passar o comboio… e andavam por lá na trincheira a apanhar o minério…
apareceu lá um filão que dava umas “chinas” boas… era só chegar lá, meter
os guilhos e tirar… mas cá no alto também andaram muitos ao minério… os
compradores vinham saber dele de noite, carregavam os sacos em burros e
levavam-no por esses caminhos para onde calhava… andava muita gente en-
volvida e havia muito quem o comprasse… naqueles anos do minério não se
fabricava nada… andavam só a apanhar, a comprar e a vender minério…eu
não andei que era pequeno… o meu pai sim também andou ao minério… ia

88
Maria Otilia Pereira Lage

para a Carrazeda a pé… a Mirandela e ao Tua iam de comboio que agora só


há do Cachão a Mirandela… aqui vem um táxi que faz os transportes… dizem
que a EDP vai compor a linha… bem é, que andava sempre a automotora
cheia… na Sentrilha havia 12 casais, com mais de 7 filhos cada e que tinham
7 juntas de bois e gado caprino e ovino… vendia-se daqui muito vinho, algum
para queimar e fazer aguardente vínica; muita ia para o Castanheiro fazer o
vinho tratado… eu teria os meus 12 ou 13 anos… lembra-me mais porque eu
andava por lá com as ovelhas nas terras da Brunheda e bem os via arranca-
rem muito minério… do outro lado do rio também havia… andava muita gente
com um sacho, faziam uns poços… andava muita gente atrás dele… o meu
primo que está em Mirandela comprou um pouco… no Pombal, nas Areais, na
encosta do Pinhal, em Zedes, no Amedo… aí em Carrazeda era o minério da
companhia alemã… ainda há lá e em muitos sítios por aí, poços bem fundos…
muitos, os caçadores sabem onde estão…
…sim… acho que sim, o minério podia ir muito pela linha do Tua mas não
se sabia o que lá ia… preparavam as embalagens camufladas… muito desse
minério era do contrabando… só a companhia podia vender, mas aí tinham as
camionetas e os carros que transportavam… vinha cá muita gente do Cachão
comprar minério… na Pranheira do Amedo havia lá muito… tinham lá uma
casas boas… dos fiscais e dos engenheiros… muita dinamite para rebentar
aquelas pedras grandes e abrir as frentes e havia lá muitas carretas para
ir ao fundo das minas… depois desapareceu tudo numa noite… lembro-me
bem de andarem lá a trabalhar muito tempo… lavavam o minério numa vala
de água que escorria pelo caminho abaixo… lembra-me muita coisa… havia
muito movimento nessa altura… carravam tudo para o Porto… azeite, ce-
reais, vinhos que iam direto dos lagares em bidões de 30 almudes… daqui até
à estação da Brunheda iam em carros de bois pelos caminhos que ainda não
havia estrada… para cima, carravam adubo… os comboios passavam todos
os dias, vários… ao meio dia passava um para baixo para o Tua e às três outro
para cima, para Mirandela e Bragança… era o comboio… comboio normal
era só um; à noite era o misto que arrebanhava o pessoal e as mercadorias…
…cada estação tinha um chefe e um carregador… os do Amieiro, Codeçais
e Franzilhal, encostado ao Cachão, eram todos a trabalhar lá, sábados e
domingos… os do Pinhal trabalhavam mais nos prédios, a fabricar a terra…
no caminho de ferro eram mais das aldeias ribeirinhas… os de Abreiro eram
mais chefes e revisores… no Amieiro tinha pessoal para tudo…

89
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

…os comboios eram a carvão… na altura da guerra cortaram por aí mui-


tos pinheiros, sobreiros e eucaliptos… a torga era para os ferreiros… para
fazer carvão para o comboio… levavam aqueles toros às costas… da Fraga
do Lobo levavam às costas para a Gricha para a azenha da Sobreira… era
uma fila de mulheres a tirar aquela lenha e a carregá-la… ganhavam pouco
dinheiro mas faziam todo o trabalho que era preciso… vinham os vagões à Li-
nha carregar aqueles toros e muita lenha… havia também os comboios só de
mercadoria… eram grandes … cerca de 10 carruagens… no verão era difícil
andarem… do Porto traziam vagões de farinha…
…havia os fatores que vigiavam as carruagens… eram responsáveis por
tudo… havia uma carruagem no meio onde iam 2 ou 3 que às vezes ficavam
na estação até vir o outro comboio…
…Daqui dá para olhar lá para o fundo e já não o ver passar… nem ouvir
o apitar por ali fora… dá soidades aquilo… pela ideia dos de Codeçais não o
tiravam… acabou o comboio por ser o pessoal menos… em Bragança quando
parou veio uma companhia espanhola carregou aquilo tudo e levou de noite…
as carruagens foram para Lisboa e Porto… pensavam que a linha não tinha
dono… foram os donos das terras onde passava o comboio que quando parou
mandaram tirar a linha… sim, as travessas originais foram feitas de castanho
mas depois já eram de eucalipto…
…os declives eram rochosos, mas aquilo andava nas invernadas bem vi-
giado… do Tua para o Amieiro os trabalhadores andavam sempre a vigiar…
para fazer a estrada, é que esborraçaram tudo… tiraram as fragas e pedras
todas, moeram tudo…
…da Sentrilha não trabalhavam no comboio, mas da Brunheda e do Pinhal
trabalhavam e da Felgueira é que trabalhavam lá muitos… agora só lá vive
o Ramires…
…usavam muito o comboio, para ir ao Tua e a Mirandela, para irem à
Régua, à Casa do Douro e para irem a Bragança… para irem a Carrazeda
iam a pé ou a cavalo…
…começaram a tirar comboios, a tirar pessoas… povo que não tinha que
fazer… mas a emigração não foi a causa que matou o comboio… e ainda
trouxeram muito dinheiro que ganharam fora e puseram aí muito casario…
…acidentes graves lembro-me de morrerem duas ou três pessoas aqui per-
to, no Tralhão, no Pinhal… houve um descarrilamento, morreram um guar-
da-freios que vinha na cabina em cima do comboio onde havia uma manivela

90
Maria Otilia Pereira Lage

para reduzir a velocidade… o comboio vinha carregado de trigo e o homem


caiu ao rio e morreu… foi para aí há 40 anos… [anos 1970]… e outra vez
um que vinha carregado de enxofre, aqui e m cima, por baixo da ponte da
Brunheda… numa distância mais ou menos 100 metros, um do outro… daqui
para o Tua era muito acidentada a linha… mas o melhor era tirarem aquela
pedra abaladiça, melhorarem a linha e manterem o comboio… já há muitos
anos que se fala da barragem… já o Sousa lá ia fazer medições… para aí nos
anos 1960… a linha foi e era fundamental para a economia destas terras…
depois a camionagem veio dar-lhe um golpe… as camionetas, os carregado-
res da CP mudaram para a empresa de camionagem EGT – Empresa Geral
de Transportes… aí por volta dos anos 1970… os adubos e o carregamento
agora é todo feito no Pocinho e não no Tua… antes os carregamentos vinham
para Brunheda, Codeçais e por aí fora noutras estações… depois ficaram a
despacho no Tua e agora o adubo vai para o Pocinho e vem de Espanha que
é mais barato… agora são os camiões que descarregam os sacos de adubo…
no Nuno Carvalho, do Planalto Rural, em Carrazeda e os da Fontelonga…
o Meireles… ainda se lembra do Júlio Lucrécio (alcunha)?era negociante
forte…
…os tempos do minério… ainda andaram para aí 10 anos… em Codeçais
havia um gajo, o Bernardino, que tinha umas terras com muito minério e ele
fumava cigarros feitos com notas porque não havia papel… muitos içaram
bem com o minério, souberam aproveitar…
[interveio entretanto um genro do sr. Zé, emigrante sazonal na Suíça, que
fora padeiro no Cachão]
…a linha do Tua era o único meio de escoamento do que aqui se produ-
zia… fazíamos as guias… para as caldas do S. Lourenço vinha muita gente de
Bragança e de outros sítios… o comboio demorava ali na estação cerca de 15
m… vinham de manhã para lá para os banhos e à noite voltavam para casa…
sempre de comboio… quando íamos aos peixes, dávamos com uma marra nas
pedras nos sítios onde havia cardumes e, com a vibração, os peixes ficavam
atordoados e era só apanha-los… então íamos dali para o Tua com os canas-
tros de peixes, vendê-los… também íamos para Abreiro e o pequeno almoço
era muitas vezes 2 peixinhos grelhados… com vinho que era a água do rio…
na linha do Tua em Codeçais e em Rossas, as pessoas saiam do comboio, iam
à fruta ou fazer outras coisas e depois tornavam a entrar mais adiante [Infor-
mante nº4, 1ª entrevista, 2011]

91
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Vale e rio do Tua encaixados entre serras. Aldeias de Castanheiro e Tralhariz, apeadeiros
da linha do Tua.
Foto aérea de Henri Richard

4.2.1. O Vale e o rio Tua

“infunde, ó rio, a líquida dedada,


a marca enorme do que passa devagar
no sal e no fermento do destino
terrestre de quem vive
e morre ribeirinho”

(A.M. Pires Cabral).

Nesta invocação poética do rio Tua capta-se a ambiência singular deste lu-
gar que sempre deixou nas pessoas que com ele conviveram ou convivem, um

92
Maria Otilia Pereira Lage

sentimento de pertença bem vincado sobretudo nos entrevistados com mais


estreita relação com a zona do baixo Tua.

A paisagem do rio Tua, com as suas grandes falésias, é selvagem, distante,


agreste e tem como característica principal uma natureza bravia ainda bordada
de pequenos mantos de floresta virgem sendo aparentemente abandonada, à
exceção das pequenas povoações ribeirinhas (ver fig. itinerário), pelas popula-
ções que se concentram nas aldeias, antigas unidades antropológicas que pon-
tuam o alto das fragas. O rio com o seu leito em geral estreito, de águas cris-
talinas e tranquilas, corre apertado entre encostas rochosas, inserido num vale
cheio de vida e cor, tranquilidade e silêncio perdido na lonjura dos montes.
Com a presença do rio Tua e inúmeras ribeiras, muitas das quais vão aí
desaguar, a rede hidrográfica desta zona é vasta e abundante.
O rio Tua, que em parte do seu percurso desliza por um vale encaixado,
percorre zonas mais planas, fertilizando essas áreas, graças às inundações que
ocorrem em períodos de maior pluviosidade tornando-as, com o depósito de
nutrientes, muito férteis na cultura de hortícolas e fruticultura junto ao rio; são
os famosos lameiros onde crescem, por exemplo, as muito tenras hortaliças e
repolhudas couves transmontanas.
O rio Tua e a sua bacia hidrográfica dispõem, entre outros recursos, de pos-
sibilidades materiais importantes, como o seu aproveitamento hidroelétrico e
algumas condições de navegabilidade que poderão vir a ser aumentadas com a
albufeira criada pela construção da barragem de Foz-Tua. As suas caracterís-
ticas fluviais serão beneficiadas por uma ligação mais funcional entre os rios
Tua e Douro, suscetível, por sua vez, de potenciar um futuro plano de desen-
volvimento económico-social e turístico.

Associada ao valor patrimonial e cultural expresso em grande parte das


narrativas, encontram-se muitas vezes evocados os recursos naturais e as cul-
turas agrícolas do vale e sua envolvente próxima do rio Tua. Tal como se pôde
já ver e emerge ainda no seguinte extrato que assinala também a persistência
e singularidade histórica do seu aproveitamento humano, inclusive, através de
meios artesanais de produção.

“(…) Falando sobre o rio e o vale do Tua, temos quatro situações a


considerar:

93
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

1ª – o aproveitamento hidráulico do Tua já se fazia no século XIX por meio


de moinhos metidos no leito do rio. Muitos deles foram arrasados, eventual-
mente por uma cheia, mas as condutas de uma antiga azenha com caracte-
rísticas industriais ainda permanecem no apeadeiro do caminho-de-ferro de
Castanheiro, numa extensão de 70 ou 80 metros.
2ª – a existência da Quinta da Ribeira que possui um núcleo romano, cujo
património não está a ser estudado nem protegido. Pertence a Tralhariz.
3ª – a importância que teve a cultura do tabaco na zona da foz do Tua, nos
dois lados da encosta, na zona do Fiolhal e na zona de S.Mamede Riba-Tua.
Acabou com a proteção aos tabacos que vinham de África. Nas casas senho-
riais das zonas referidas, ainda há vestígios das salas de secagem, sobretudo
na casa dos Carmos e na casa dos Figueiredos. A cultura do tabaco aparece
também em Frechas… desde Vilarinho das Azenhas até Frechas.
4ª – O vale do Tua tinha um património interessante em termos agrícolas
que consistia na produção da laranja na baía de S. Mamede. Não foi possível
reproduzir as características desta laranja noutros locais com características
idênticas como é, por exemplo, a Ribeira do Mosteiro em Freixo de Espada
à Cinta. É interessante que esta laranja só se dá do lado de S. Mamede, em
frente ao apeadeiro de Tralhariz e na encosta onde vai ser feito o encosto da
barragem, do lado do Fiolhal.
A Quinta da Ribeira tem laranjeiras, mas não têm nada a ver com a laran-
ja de S. Mamede.
Como curiosidade, também vou referir que na Senhora da Ribeira havia
uma leprosaria, na Quinta da Gafaria, que pertencia ao meu pai. Fica perto
de umas termas denominadas Águas Santas.” [Informante 6]

Apesar da variedade endógena de recursos e potencialidades anteriormente


descrita, a zona do vale do Tua tem sido e é ainda considerada, numa pers-
petiva macro, uma região pobre que se debate, atualmente, com crescentes
problemas de perda de população e uma população rural bastante envelhecida,
indicador socioeconómico e variável demográfica corroborados em informa-
ção das entrevistas e a que há menção (in)direta em algumas narrativas orais.

Na seguinte história de vida de nonagenária de aldeia do Pinhal do Norte


(Carrazeda de Ansiães), é esboçado um cenário peculiar entretecido em espá-
cio-temporalidades onde se destacam quadros da vida rural e atividade agríco-

94
Maria Otilia Pereira Lage

la, recordações do comboio do Tua e de quotidianos felizes, alusão à emigra-


ção e mobilidades, lembranças ainda vivas dos impactos locais da II Guerra
(exploração de volfrâmio, contrabando de minério, racionamento e fome), da
Guerra Colonial portuguesa em África e da candidatura de oposição de Hum-
berto Delgado às eleições presidenciais do Estado Novo, em 1958.
(…) “vivíamos além, no Arrobaldo [nome do lugar], logo ao sair para a
Brunheda [aldeia vizinha do Pinhal do Norte]... alguns dos meus irmãos fize-
ram a 4ª classe e outros, só a 3ª… a irmã mais nova, com uma diferença de 16
ou 17 anos, já tirou o curso de Enfermeira. Foi trabalhar para o Hospital de
S. João e depois foi trabalhar para o Brasil, chamada por uma irmã que já lá
estava… eu nem a 3ª classe fiz… E quer saber porquê? Olhe, tínhamos bois.
A D. Susana [professora] até era boa pessoa, mas também tinha lá as suas
coisas… Vieram as férias da Páscoa e eu, a mando do meu pai, ia sempre com
os bois e, por isso, não fiz os deveres de férias, nem eu nem outra rapariga.
Então, a professora, a D. Suzana, mandou-nos embora da escola… Casei-me
com 19 anos com José Augusto Araújo, um conterrâneo meu que tinha 20.
Ele tinha feito a 4ª classe “bem feita, ficou distinto”. Conhecemo-nos nos
bancos da escola. Tivemos quatro filhos, uma rapariga e três rapazes. Agora
vivo aqui com a minha filha, mas conservo a minha casa, no centro do Pinhal,
onde vou às vezes. Os outros filhos vivem em Mirandela. Um deles foi estudar
e formou-se; o outro tirou o curso de mecânico e trabalhava na Ripal. Quando
se casou, passou a ser o proprietário da padaria Seramota, em Mirandela. O
João Batista é o dono do Café Mira. Tirou o curso de Música em Bragança e
“esse é que é o músico”. Dois dos meus filhos fizeram a guerra em Moçambi-
que: “o meu Zé Maria esteve lá primeiro e ainda sofreu por causa da guerra.
Era condutor. O meu Batista esteve lá já na desfeita [por volta de 1973] e foi
lá um fidalgo, só tocava, foi lá muito bem tratado”.
[Primeiro com os pais, depois com o marido, D. J. trabalhou sempre na
agricultura] “…. vinho, azeite, figos, amêndoa, tínhamos muito de tudo, era
uma casa farta, graças a Deus…”.
(…) Comecei a namorar na escola, namorei toda a vida, casei-me e pron-
to… O meu marido teve muitas namoradas, mas eu nunca tive nenhum, nem
uma hora… mas ele era uma jóia… muito inteligente… fez a 4ª classe e ficou
distinto… tocava muito bem violino… se o vissem até se admiravam… ele ia
para os bailes todos, não o largavam. Tinha uma tuna e faziam muitas sere-
natas: uns tocavam banjo, outros violão, outros bandolim… só não tocou no

95
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

nosso casamento, mas veio tocar o Sr. Alfredo Pereira, da Vila e o Zé António
das Areias, o irmão do Luís, veio ajudar…”.
[Casou-se no fim da 2ª Guerra Mundial. Lembra-se de tudo o que se passa-
va nessa altura porque o marido lia sempre o jornal e, enquanto ela fazia meias
para os filhos, ele transmitia-lhe o que lia sobre a guerra.]
(…) Eu sabia a guerra todinha… e, na altura, houve para aqui uma grande
fome. Vinham os do Governo tirar o azeite à gente… olhe que chegávamos a
esconder os bidões debaixo da palha da cria; as mulheres enchiam as bexigas
dos porcos de azeite e punham-nas à cinta para fingirem que estavam grávi-
das. Vinham homens, de noite, com os odres, enchiam-nos e iam-nos passar ao
Canal, por baixo da ponte da Brunheda, para irem para Carlão. Compravam
azeite e minério… os de Carlão sempre foram muito negociantes... lembro-me
bem da “fome de 41” quando o pão chegou a custar 50$00 o alqueire. Iam
buscá-lo às costas além do rio e traziam-no até ao barco, tudo feito em segre-
do. Eram Os Pimpões de Candedo que vendiam o pão em segredo. …Nessa
altura, eu dei muito azeite e “abadas” de figos a gente das Areias e de Zedes
porque havia muita pobreza...
(…) Enquanto fui solteira, nunca viajei para o Porto. Ia à Régua, mas a
maior parte das vezes, ia a Mirandela ao médico e a tudo o que era preciso…
quando íamos à festa, iam grupos de mocidade…. Depois de casada fui algu-
mas vezes ao Porto “para gozar e depois fui lá muita vez porque tive lá o meu
marido doente... Apanhava o comboio na estação da Brunheda para onde ia a
pé: saía ainda de noite, de lampião na mão, e chegava já de noite…
[Antes de casar, andou a trabalhar na extração do minério de volfrâmio].
(…) Nessa altura, andava tudo ao minério. Foi enquanto a guerra durou.
O minério ficou mais caro porque os Americanos davam mais dinheiro do que
os Alemães e quanto mais se picavam uns aos outros, mais o minério aumen-
tava. O kilo era a 50$00 e a 55$00. O nosso tinha volfrâmio e estanho. Aquele
que tinha só volfrâmio era mais caro: a 700$00 o kilo. Trabalhei durante 4
anos no minério, três como efetiva e um ano sem o ser. Trabalhava perto da
aldeia, na cota da Ribeira, junto à Quinta do Tralhão e à Quinta dos Veigas.
Também havia uma mina nas Areias, no terreno que era do Sr. José Joaquim
e outra na Pranheira, mas nunca fui para lá trabalhar… [Segundo a sua opi-
nião] … os ricos iam fazer concessão de minério aos pobres e a toda a gente.
O Sampaio da Carrazeda também foi à Ribeira e queria fazer uma concessão,
mas o meu pai impediu-o e disse-lhe que tinha o terreno registado em seu

96
Maria Otilia Pereira Lage

nome. Mas, já nas Areias, o Barbosa fez uma concessão no terreno do José
Joaquim e o dono ficou sem ele…
(…) O meu trabalho no minério?...consistia em britar as pedras com um
martelo; saíam placas misturadas com pedra, britava-se para tirar a pedra e
depois ia para a lavandaria e lavava-se tudo. Não havia máquinas. Era tudo
feito manualmente…. Sim, eu ainda apanhei muitas “chinas” (pedras muito
mineralizadas)… O minério estava nas rochas… Nós não fizemos poços, mas
o Fonseca de Paradela tinha um sobreiral com muito minério e fazia-os. Ti-
rou de lá muita quantidade. Depois vendia-se a negociantes de Carlão. Os de
Carlão diziam às raparigas: - apanhai também a “pirita” (pirite)… era de cor
preta… que nós pagamos a 20$00 o kilo. E nós assim fazíamos…. Chama-
vam-lhe a “candonguice”… Também se apanhava o cornelho (de cor preta)
pois vendia-se bem e diziam que era para fazer penicilina. Era segregado pela
espiga do centeio. Quando chovia, o pão ganhava cornelho.
…nem eu nem o meu marido nunca emigramos… Não podíamos pois ti-
nhamos muito trabalho com os nossos campos que cultivávamos. Mas um dos
nossos filhos emigrou para França e trabalhou lá durante 10 anos, na região
do Loire. …Uma vez veio cá e levou-me para passar lá algum tempo. Até gos-
tei da França, mas não para lá ficar. Tinha cá a minha vida e muito que fazer.
Vim de boleia com uns vizinhos. Fui e vim de carro. Nunca andei de avião….
[O genro explica que o marido da D. J., José Augusto Araújo, proprietário
agrícola, tocava música, era leitor assíduo do jornal diário, gostava de ler e lia
muito, escrevia bem e foi durante vários anos o Regedor da aldeia e faleceu no
exercício do cargo, no dia 23 de abril de 1974. Tinha 49 anos. Ela não gostava
que ele tivesse este cargo, sobretudo devido aos pastores que eram muito confli-
tuosos por causa dos locais de pasto.] … “engaleavam-se” uns com os outros…
(…) O meu marido faleceu 2 dias antes do 25 de abril, ele que teria gosta-
do tanto de assistir à queda da ditadura! [Era um homem de esquerda que não
gostava de Salazar, comenta a filha]. …“O meu marido não era da oposição,
mas quando Humberto Delgado morreu, ele até botou luto; andava com uma
gravata preta”. Quando havia eleições vinham a esta aldeia “descarregar
o voto” os das seguintes aldeias: Codeçais, Pereiros, Felgueira, Brunheda
e Sentrilha. Entre os de Codeçais havia muitos ferroviários e esses eram to-
dos contrários, eram da oposição. …Uma ocasião, um rapaz de lá, quando
descarregou o voto, deu vivas à liberdade e disse bem alto que daria a forca
pela liberdade e prenderam-no, mas não sei em que eleições foi... A urna que

97
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

continha os votos era uma talha das do azeite e toda a gente votava, os que
estavam em casa doentes, os que já tinham morrido, era uma farsa.
(…) Não… nunca tirei a carta, nem mesmo a de trator. Para o serviço
da lavoura tinha trator e tinha um cavalo e um burro. Quando precisava de
cavar e de lavrar as terras, “metia” 3 e 4 burras para esse serviço. Também
contratava homens para trabalharem com o atomizador quando era preciso
sulfatar… o meu atomizador foi o primeiro que cá houve, comprei-o ao Sr.
Carvalho do Grémio (Carrazeda)… Enquanto o meu marido foi vivo era ele
quem se ocupava com a parte financeira; depois de ele morrer, passei eu a
fazer as contas e a tratar de tudo….
Vendia aquilo que produzia. O azeite vendia-o muitas vezes ainda no la-
gar onde o ia fazer… o lagar do Eng. Lima… [no Pombal, aldeia vizinha
do Pinhal]. Também vendia muito aos da Frieira, aos de Carrazeda, aos das
Areias, aos de Zedes e a outros que mo compravam... Produzia vinho de dois
tipos: o de consumo e o tratado. Ainda no tempo do meu pai, ele enchia os
tonéis com o vinho de consumo e vendia o “vinho tratado” aos Ingleses (os
Smiths) que pagavam muito bem. Depois, já no meu tempo, eu vendia o vinho
tratado para os Ingleses, para os Agrelos de S. Mamede… era o filho do Gar-
cia que o “carrava”…, para a Casa do Douro… “fez muita, muita falta ter
acabado”… e para a Cockburns (Quinta das Carvalhas), que também era um
grande comprador e, mais tarde para a atual Syminghton… também cheguei
a vender vinho para o Pinhão… o vinho de consumo vendia-o em tonéis para
a Carrazeda para o Sr Alfredo Pereira e para o Sr. Carlos Malhado…
…Depois da morte do meu marido ia muito mais vezes à Carrazeda: à
feira, ao Grémio da Lavoura e a outros sítios tratar da vida…. Primeiro ia a
cavalo, depois começou a haver uma carrinha e eu ia nela… também ia de
comboio à Régua receber o dinheiro do vinho…
…não tenho fotografia do meu casamento… e quem as tinha?... nem do
batizado dos filhos, naquele tempo não havia… era preciso ir à Carrazeda…
por acaso tínhamos cá um rapaz muito habilidoso que lá comprou uma ma-
quinita e tirava algumas por aí… até tirava muitas à canalha… era o Santei-
ro, o que fazia as esculturas em madeira…”
[o genro, que assistiu à entrevista, mostrou algumas peças, religiosas e pro-
fanas, desse artista popular. A entrevistada cantou então uma canção que o
marido fez, e que já quase moribundo cantou aos filhos, em jeito de testamento
de valores]:

98
Maria Otilia Pereira Lage

“Tenho três filhinhos, três amores


Dizia um pai que vivia alegremente
São quatro jóias, são quatro flores
São cobiçados por toda a gente.
Enquanto eu puder trabalharei
Para esses quatro anjos de candura
Só com eles eu repartirei
O santo pão amargo da desventura.
Só me resta uma coisa
Que é que ele seja imortal
Quero-vos ver a todos reunidos
À lareira numa noite de Natal”.
[Informante nº 39]

Uma outra narrativa feminina duma octogenária da aldeia vizinha do Pom-


bal, dá conta de diferentes vivências e hábitos tradicionais de caça no vale do
Tua, de recordações do funcionamento e serventia para as populações locais
da linha e do comboio, intercaladas de lembranças vivas de figuras típicas e
episódios quotidianos, tradições e impacto local de acontecimentos históricos
nacionais ou internacionais.
“…ia-se por esta linha, rentinha ao rio Tua para Mirandela. A viagem de
ida e volta era feita no mesmo dia. Também se ia a Bragança, mas aí já era
preciso lá dormir.
Na altura também se ia à feira a Candedo quando era necessário comprar
ou vender animais.
Acerca de desastres na linha, lembro-me de ouvir falar de um comboio
que caiu ao rio, perto da estação de S. Lourenço. Neste acidente morreu o
fogueiro. Há alguns anos atrás, houve um acidente na Brunheda. Nas grandes
cheias de 1911, o rio chegou até à linha do comboio.
Naquele tempo havia muitos casamentos de raparigas com 12 anos de
idade. Faziam-se para juntar fortunas de família… uma irmã do meu bisavô
casou com 12 anos e teve 12 filhos…
…Quando era nova, o Padre do Pombal chamava-se Leandro, mas só aqui
esteve sete meses. Depois esteve o Padre Luís que veio do Minho, o Padre
Veiga da Carrazeda e um padre de quem não me lembra o nome, mas que era
o Sr. Reitor que teve vários filhos...

99
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

…1941 foi o Ano da Fome, em que tudo era racionado. Faziam-se trocas:
por exemplo, trocava-se um litro de azeite por um quilo de açúcar. Lembro-me
de uma senhora da Ribeirinha da linha do Tua, que tinha muito açúcar e que
fazia este tipo de troca.
Quando não havia pão, faziam-se talassas: faziam-se na sertã, com farinha
muito rarinha e açúcar por cima. Tomava-se com elas o café, todos os dias.
…Um pão centeio chegou a custar 50 escudos. Começou a não haver mer-
cearia nos “sótos”…
…Aquilo que se podia arranjar era através de senhas que se iam buscar à
Câmara de Carrazeda. Era tudo racionado. E havia muitas famílias com 6, 8
e 12 filhos...Só com um filho, eram muito poucos...
Quando andava na escola primária, as pessoas passavam mal: havia mui-
tas necessidades…
…uns iam pescar peixes no rio… o meu pai caçava… ali perto do rio usava
um “enchoeiro” (armadilha) para apanhar perdizes. Servia-se de uns pauzi-
nhos (“aboízes”), onde espetava uma haste de um sombreiro já velho, com um
feijão pequeno para atrair a perdiz…
…Por aqui nunca vi lobos, mas havia-os: iam aos currais e matavam muita
ovelha. As raposas matavam muitas galinhas….
…Ainda me lembro bem da forma como se atravessava o rio, na Brunheda,
antes de haver a ponte: era a pé, por cima das poldras, ou de barco… depois
ainda houve o funicular que funcionou alguns anos entre a estação de Santa
Luzia e a aldeia do Amieiro do lado de lá do rio… [Informante nº 3]

Rio e linha do Tua junto a Brunheda (Carrazeda de Ansiães).


Foto de M J Fernandes Lopes

100
Maria Otilia Pereira Lage

4.2.2. linha e comboio do Tua

“Agreste a travessia dos vales ao longo do Tua (…) São paisagens únicas, des-
lumbrantes, algumas delas apenas acessíveis ao comboio.” (Francisco Manuel
Viegas)017
Ao longo do rio Tua, um dos poucos rios selvagens do país, corre ainda hoje,
embora desativada, a linha do Tua, obra centenária da engenharia portuguesa e
uma das mais espetaculares linhas de comboio do país e da Europa, o primeiro
e único troço de caminho-de-ferro em Trás-os-Montes que ficará a breve tre-
cho parcialmente submerso pela albufeira da barragem do Tua, recentemente
construída.018
…A linha do Tua é fabulosa mas mete um bocado de respeito… uma vez fiz
a viagem de comboio até Mirandela… fui só mesmo para ver… tive medo…
era de respeito… [Informante 7]
A paisagem da linha do Tua, em particular no baixo Tua é, em geral, ca-
racterizada por traços e fatores agrestes e inóspitos, de carácter seco, desu-
manizado, onde o sol e o calor são intensos, durante os estios, perdurando os
nevoeiros no inverno, que cedem lugar a fortes nevadas nas terras altas e pla-
nálticas a partir de Rossas até Bragança. De grande riqueza natural, o cenário
é de contrastes entre o rio, as rochas e as encostas de cores e texturas variadas.
“…uma vez, em Bragança, às seis e tal da manhã havia muita gente na
gare e sabem porquê?... é que tinha caído uma grande nevada e, por cima,
caíu uma grande geada. Não se podia circular de carro: se isso acontecesse
hoje na A4 ou no IP4, ou essa porcaria toda, eu queria ver como era... eles
haviam de ter de ficar encerrados em Bragança... eu sou contra o fecho da
linha, sou contra a barragem do Tua, sou contra isso tudo... as Nações foram
desenvolvidas pelos comboios, não foi pela camionagem!... Eu viajava sempre
de comboio e ainda viajo! “ [Informante 40 -2ª entrevista]

017 Autor do livro - Comboios Portugueses: um guia sentimental. Com Fotografias de Maurício. Abreu. Lisboa:
Circulo de Leitores, 1988.
018 No projeto da EDP em fase final de construção em 2016, a albufeira criada pela barragem ficará em princípio
a uma cota de 195 metros de altura o que submergirá os últimos 15km da via férrea do lado da foz do Tua.
A EDP será a empresa a explorar por 75 anos este investimento hidroeléctrico com uma capacidade de 324
megawatts de potência proveniente da energia criada pela barragem, uma parcela de energia elétrica pouco
relevante no conjunto da produção energética nacional em boa medida concentrada no Vale do rio Douro e
seus afluentes, como o Tua.

101
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Disponível em http://ml.ci.uc.pt/mhonarchive/histport/msg02106.html

A linha do Tua é abrangida por três unidades de paisagem distintas: as da


Terra Quente, do Baixo Tua e Ansiães, que pertencem ao grupo de paisagem
da região de Trás-os-Montes, e as do Alto Douro Vinhateiro, já do grupo da
região do Douro. Mais especificamente, a zona do vale do Tua, o Baixo Tua, é
considerada uma unidade de paisagem ecológica e cénica impressionante, um
verdadeiro “ecossistema único sem preço”019 que, embora não integre a Rede
Natura 2000, se caracteriza por uma notável raridade e forte identidade.

A consciência profunda de ligação identitária a este microcosmo ambien-


tal de excecional raridade pressente-se no imaginário cultural que perpassa
muitas das histórias de vida analisadas, como na deste ferroviário, natural e
residente no vale do Tua, filho e neto de ferroviários, cuja narrativa ilustra, de
modo significativo, quer as peripécias vulgares da carreira ferroviária, quer a
extensão e diversidade do itinerário da linha entre Foz Tua e Bragança:

“Nasci em Foz-Tua. Aos três anos de idade, fui para Mirandela e morava
por cima da estação do caminho-de-ferro porque o meu pai era maquinista na
via estreita da linha do Tua, entre Bragança e Tua. Fiz a 1ª classe em Miran-
dela, mas devido à morte prematura do meu pai, regressei a Foz-Tua, onde
frequentei a escola até fazer a 4ªclasse. A morte do meu pai deveu-se a uma
tuberculose óssea contraída em serviço, num inverno de muita neve, quando
019 Base de dados do IPPAR.

102
Maria Otilia Pereira Lage

conduzia o comboio e, no Alto de Roças, teve que sair para desimpedir a via e
varrer a neve dos carris. Molhou-se todo, não mudou de roupa e com o calor
da máquina, constipou-se devido à grande diferença de temperatura. Tinha
trabalhado na linha do Tua durante 18 anos, faleceu aos 33, tendo deixado o
filho órfão de 3 anos e a viúva com uma pensão de 174 escudos / mês. O meu
avô também tinha trabalhado nos caminhos-de-ferro… era assentador na linha
de Minho e Douro.
Fiz a tropa em Lisboa (6 meses como recruta no Entroncamento). Na tro-
pa, fui para o Batalhão de caminhos-de-ferro. Aí, tirei a especialidade de
condutor de comboios.
Com saudades da minha terra natal, concorri e fui colocado na estação de
Roças, em 1962, onde permaneci 6 meses. Concorri para Foz-Tua, onde tra-
balhei como Servente. Na altura, a estação tinha bastante movimento, eram
mais ou menos 50 pessoas a laborar no local.
Na ânsia de subir na carreira, fui para Alfarelos, onde fiz o curso de agu-
lheiro. Fui promovido a agulheiro e fui de novo para Foz-Tua… Entretanto,
concorri para Capataz de Manobras e fui para a estação de Vila Nova de
Gaia, onde estive durante 2 anos… Concorri, então, para Encarregado de
Apeadeiro e fui colocado em Chanceleiros, estação na linha do Douro, a se-
guir ao Pinhão. Depois, fui para a Régua, de novo para Foz-Tua e, de segui-
da, para Santa Luzia… Antes disso, abandonei por algum tempo os caminhos
de ferro devido a uma transferência que considerei injusta e à não atribuição
da casa a que tinha direito e fui para Foz-Tua trabalhar na empresa Cockbur-
ns. Foi então que aconteceu a revolução de 25 de Abril.
Mas a paixão pelos caminhos-de-ferro era mais forte do que eu e concorri
novamente, tendo sido colocado em Santa Luzia. Aqui, havia bastante movi-
mento de passageiros, aos fins-de-semana, para o Cachão. Mas, durante a
semana, o movimento era pouco com gente do Amieiro, de Pombal, do Fran-
zilhal, etc… As pessoas do Amieiro atravessavam o rio Tua, de barco,para vi-
rem apanhar o comboio. Quando o rio tinha demasiada corrente, serviam-se
do funicular. A ponte caiu numa altura em que o rio teve uma grande cheia. Os
passageiros de Pombal e do Franzilhal vinham de burro. Os de Pombal iam
pelo Barrabás que só tinha caminho para burros. Nessa altura, a estação de
S. Lourenço estava fechada. Durante o tempo em que estive em Santa Luzia,
tinha uma motorizada que ficava em S. Lourenço, enquanto percorria a pé o
caminho até ao local de trabalho, pois não havia estrada. É curioso que a

103
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

estação de Santa Luzia passou a ter este nome depois de ter sido inicialmente
chamada de estação do Amieiro (isso já não é do meu tempo…). Mas a expli-
cação da mudança de nome deve-se ao facto de haver, na linha do oeste, perto
de Alfarelos, uma estação com o nome de Amieira. Isto confundia os funcio-
nários e havia bastantes vezes troca de mercadorias, que depois tinham que ir
para leilão por não serem reclamadas por quem de direito.
Como já referi, o movimento em Santa Luzia permitia-me ter tempo para
ler os regulamentos dos comboios, que eram muitos.
Saí de Santa Luzia a fim de ir frequentar, no Entroncamento, o curso de Fa-
tor. Fui depois colocado em Ferradosa, a chefiar a estação. Daí, voltei para
Foz-Tua, pois o apelo da minha terra era sempre muito forte. Aqui, trabalhei
como Fator: fazia circulação de comboios, fazia a bilheteira e fazia despa-
chos de mercadorias, tais como adubos e cereais (de referir que esta linha
transportou muitas barricas de ouro, na altura da 2º Guerra).
O tráfego da linha do Tua só reduziu depois de terem cortado Mirandela e
Bragança. De uma cidade à outra demoravam-se 4horas. Do Tua a Bragan-
ça, eram 6 horas. Foi necessário reduzir a velocidade de 60Km para 30Km
devido ao facto de a linha ser perigosa. Mas, depois de passar a estação de
Mirandela já não havia necessidade de reduzir a velocidade.
Depois de ter trabalhado em Foz-Tua, pedi a reforma. Trabalhei sempre
muito, a uma média de 12h por dia. Havia falta de pessoal para trabalhar…
Mas também ganhava… além disso tinha direito ao modelo X44 que permitia
viagens gratuitas aos funcionários. Quando havia casa disponível, também
podia viver nela. No caso de não haver, arrendava casa, mas pagava sempre
uma renda pequena…”[Informante nº 3]

Itinerário da linha do Tua

104
Maria Otilia Pereira Lage

A seguinte narrativa coletiva020, de acentuado dialogismo e expressividade,


em complemento de anteriores histórias de vida, permite não só ilustrar a es-
pecificidade do que era trabalhar e manter a linha do Tua - traço marcante de
muitas destas trajetórias singulares da história vivida do Tua -, mas possibilita
ainda percecionar o que era a vida e a profissão de ferroviário em Portugal
durante a segunda metade do séc XX.
[F. dos A] “…Fiz muitas vezes a viagem de Foz-Tua a Mirandela no com-
boio a vapor: o sucesso da viagem dependia muito de como a máquina se
portava e da habilidade do fogueiro: “quando a máquina andava bem olea-
da, tudo corria melhor; de outro modo, parava-se várias vezes para pôr, por
exemplo, mais água para poder produzir mais vapor, mas a viagem era mais
cansativa. A tática passava muito por saber trabalhar com o carvão e nunca
deixar diminuir o fogo. Nem todas as máquinas queimavam o carvão do mes-
mo modo. Parava-se em plena via e fazia-se o que fosse preciso… A descer,
não havia problemas, elas andavam que se fartavam, agora a subir, isso não
havia pai para elas…”. As máquinas nem sempre estavam na sua melhor for-
ma porque elas andavam por muitas mãos. Havia colegas de trabalho que
não se importavam de as entregar em más condições. Isto, quando deixou de
haver distribuição das máquinas sempre ao mesmo maquinista, pois quando
havia a responsabilidade pela máquina que era entregue, o maquinista tinha
que responder pelo tempo perdido na viagem devido ao seu mau funciona-
mento. Quando faziam as viagens de Mirandela para Bragança, muitas vezes
transportavam 145 toneladas de carga e quando nevava, principalmente des-
de Macedo até ao Alto de Roças, a neve entrava e tinha que se aguentar. O
trabalho era muito e pesado. De Mirandela a Bragança, havia pontos em que
a linha subia 2% por metro… “eu cá, preferia ir 10 vezes ao Tua e nem uma
vez a Bragança…”.
[R. Q.] “…uma ocasião, em Tralhariz, encontrámos um ramo grande que
tapava um enorme calhau na via; pedimos socorro e esperámos toda a noi-
te.”. Como não havia meios para pedir socorro, faziam 5 ou 6 km a pé até à
estação. Os telemóveis só vieram nos anos 90 e, mesmo assim, da Brunheda

020 Transcrição parcial de entrevista de grupo realizada em Mirandela, a 25 de Abril de 2012, no fim do
almoço de confraternização dos ferroviários da linha do Tua, com 5 ex-trabalhadores da CP, desde os anos
1950 a 2009, e atualmente reformados de diversas carreiras: R.Q. natural da aldeia da Lousa e residente
em Mirandela; M.J. da aldeia de Carrapatosa (Linhares de Ansiães), sogro de R.Q.; F.A. da mesma aldeia,
residente em Lavandeira(Carrazeda de Ansiães); J.R., natural da aldeia de Coleja, freguesia de Seixo de
Ansiães; e P. de Mirandela.

105
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

para baixo, só havia rede entre o Castanheiro e Santa Luzia. Daqui até ao
Tua, voltava a não haver rede. Se era durante a noite, nas máquinas a vapor
tinham uma luz produzida a partir do óleo de purgueira, que alimentava uma
candeia, a qual não alumiava praticamente nada.
Os sítios mais difíceis da linha no tempo da máquina a vapor eram de Fo-
z-Tua até Santa Luzia porque havia subidas muito íngremes. Depois fazia-se
bem. Mas, entretanto surgia a subida de Frechas e… depois dos Carvalhais
até Roças, era sempre a subir, durante80Km…”
[E concretiza, sobre a anunciada perigosidade da linha entre Mirandela e
Bragança em que é quase unânime a afirmação de que ela não era perigosa]
“…como maquinista e como praticante das Allans, com motor AEC, du-
rante todo o ano de 1973, a nossa marcha era sempre na casa dos 50 / 60 Km
/ h, isto com carris de 8 metros. Com as renovações, vieram os carris de12 e
de 18 metros e, então, em vez de irmos a essa velocidade, passámos a ir a 30
/ 40Km”. E continua: “ uma vez tive uma conversa com o Inspetor acerca dos
péssimos horários dos comboios de que os utentes se queixavam e ele respon-
deu-me: “nós temos ordens para fazer os piores horários, que é justamente
para acabar com a linha”… A linha não era perigosa, mas os responsáveis
acharam que sim… O engenheiro V. C. disse que não se podia responsabilizar
pela segurança da linha, mas “o problema é que ele não percebia nada destes
assuntos”… o que é certo é que apesar dos maus horários e de outras tenta-
tivas de fechar a linha, as automotoras entre Bragança e Foz-Tua, andavam
repletas.”
[M. de J.] “…Ser chefe de lanço era trabalhar entre Bragança e Tua. O
pessoal da via, aqueles que trabalhavam na manutenção da linha, não lhe tor-
nava a vida fácil: tinha que os orientar e tinha que fazer a escrita dessa gente
toda. Ainda tinha a seu cargo os guardas das passagens de nível… eram tra-
balhadores muito difíceis de gerir. Será porque eram quase sempre mulheres?
Trabalhavam sempre duas: uma guarda e uma substituta. Normalmente gera-
vam-se conflitos entre elas. Muitas delas eram familiares de ferroviários…”
Também recordam muitas das boas histórias que viveram no Comboio do
Tua. Por exemplo, a dos cozidos que faziam nas panelas a vapor. Diz R. Q.:
“ainda lá tenho a minha: nem a dou, nem a vendo, nem a empresto …Na
casa da máquina, onde a gente guiava o comboio, havia um tubo próprio que
dava para ligar à panela, o que a tornava uma autêntica panela de pressão
onde se fazia um cozido que era uma autêntica sopa de pedra. Também cozía-

106
Maria Otilia Pereira Lage

mos lá o feijão mesmo sem o deitar de molho. Nessa altura, comíamos todos
do mesmo prato, que era um grande prato de barro vermelho. Muitas vezes só
tínhamos dez minutos para comer, mas aquilo sabia-nos pela vida!”.
Apesar de tudo, todos estes trabalhadores consideram que a vida de um fer-
roviário era muito melhor do que, por exemplo, a de um agricultor: “tínhamos
outra apresentação, usávamos uma farda decente e tínhamos o vencimento
certinho ao fim do mês”. [Entrevista colectiva nº 11, Mirandela, Encontro de
ferroviários da linha do Tua no dia 25 Abril, 2012]
Naturalmente, os ferroviários são os que melhor conhecem a linha do Tua,
sobretudo os que nela trabalharam e diariamente vivenciaram, durante longas
trajetórias biográficas e carreiras profissionais diversificadas. Daí que conti-
nuemos a recorrer às suas vozes e experiências que decorrem agora das narra-
tivas orais de um outro coletivo de ferroviários que descrevem com minúcia
alguns episódios e factos concretos próprios do movimento, evolução e declí-
nio da linha do Tua, situando-os na história da região.
[ADJ, operário da CP desde 1967, nas Oficinas Gerais da Linha em Miran-
dela] …Nessa altura havia as automotoras Allans...máquinas holandesas…
Mirandela tinha três distribuídas por três operários e António Diamantino
tinha uma a seu cargo. O Carvalho tinha outra e o Pinto tinha a terceira…
[AJR, elecricista e JEG, chefe de eletricistas das O.G.:] …as Oficinas em
Mirandela eram o local onde arranjávamos todo o material da linha do Tua, e
olhe que não era pouco… era o material motorizado, o do vapor e o circulante
todo; mas, o grande centro de reparações era em Campanhã. Apesar de ser a
altura do vapor, a iluminação das carruagens era elétrica. Era feita por um
gerador. Tinha uma poli no rodado e uma correia que fazia girar um dínamo.
Esse dínamo, que era montado no chassis, girava e ia para um enrolador de
tensão, onde se regulava a corrente para carregar as baterias. Funcionava
como o alternador de um carro. A locomotiva era iluminada a carboneto e
Pur“ As máquinas mais fiáveis em manutenção e em despesa eram as Diesel.
Claro que quando se passou para o elétrico ainda foi melhor!... O local onde
funcionavam as Oficinas era composto por duas secções: a secção do moto-
rizado e a secção do vapor; havia o cais descoberto e o cais coberto; havia a
secção do motorizado (das automotoras Allan); havia uma secção denomina-
da “As forjas”, onde faziam ou reconstruíam as molas para as carruagens;
mais para o lado da CUF, havia a secção do vapor. Seguia-se a secção dos
tornos e depois a secção do material rebocado; em frente, estava a secção do

107
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

vapor, onde se colocavam as máquinas; para o lado esquerdo, ficava a secção


do carvão e o local onde estava a placa giratória, onde viravam as máqui-
nas. As carruagens eram de madeira e o carpinteiro, nesta altura, era o Sr.
Adriano Augusto Serra. As últimas locomotivas da linha do Tua (as verdes e
brancas) eram jugoslavas. Em 1969, em Mirandela, ainda havia muita loco-
motiva a vapor e, quando havia alguma avaria numa automotora “Allan”, ela
era substituída por uma a vapor. As locomotivas a Diesel foram introduzidas
em 1967 / 68. …As máquinas mais fiáveis em manutenção e em despesa eram
as Diesel. Claro que quando se passou para o elétrico ainda foi melhor! E,
quanto ao facto de haver mais incêndios na altura do vapor, isso não é ver-
dade; isso eram tudo boatos!.... Quando entrávamos como aprendizes para a
Oficina, estudávamos mais disciplinas teóricas no 1º ano. No 2º ano já tínha-
mos mais parte prática, conforme a escolha que fazíamos: eletricista, vapor,
estofador, etc.”…
…No pós 25 de abril, a nossa vida melhorou um bocadinho. Passámos a
ganhar melhor, a ter melhores condições de trabalho e passou a haver mais
poder reivindicativo. Passámos a ter um refeitório ou uma cozinha para pre-
parar as refeições, etc. …isto é, dantes não se podia exigir nada e depois já
se podia pedir e… pedindo muito, conseguia-se!”. A comunidade (família)
ferroviária era bastante unida.
[Em relação ao início do fecho da linha do Tua e ao muito falado desvio
das locomotivas da estação de Bragança depois do encerramento do troço da
linha Mirandela–Bragança, as opiniões e respostas são vagas, com diferentes
versões e maior ou menor pormenor e convicção]… o que é que nós sabe-
mos?... sabemos que estiveram lá as máquinas paradas. Também estava uma
em Macedo. De vezes em quando, mandavam-nos lá carregar as baterias e
elas estiveram lá enquanto eles entenderam. Depois decidiram trazê-las nuns
chariots pela estrada de macadame até Mirandela. Foi tudo feito em segredo,
clandestinamente, pela calada da noite…. Depois de terem estado em Miran-
dela, levaram-nas para o Tua para as venderem para a Argentina ou lá para
onde é que eles quiseram…. [surge outra versão opinativa e crítica]… quem
sabia mais sobre estes acontecimentos era o Sr. Casimiro, o chefe das oficinas
de Mirandela já falecido…. cheguei a ser inquirido pelo Eng.º Dias Torres
sobre o desaparecimento das máquinas, mas eu nada lhe disse uma vez que
achei que o engenheiro perguntava aquilo que já sabia e não quis meter-me
em sarilhos… De Bragança e de Macedo lá vieram as máquinas e correu tudo

108
Maria Otilia Pereira Lage

normalmente… mas a linha faz falta não só para nós como para o público
em geral. Havia muito pessoal que trabalhava lá: via, movimento, oficinas…
A linha fechou, não foi por desleixo, mas porque a quiseram fechar. Ainda
fizeram uma renovação de Macedo a Sendas, mas depois fecharam mesmo a
linha de Bragança a Mirandela… [R.R.Q. conta também a sua versão do que
se terá passado com o desvio das locomotivas na estação de Bragança]… As
locomotivas foram lá buscá-las, de noite, e trouxeram-nas em dois camiões
TIR para Mirandela. Dizem que cortaram as comunicações todas para virem
em silêncio, a fim de ninguém saber. Não havia comunicações com ninguém
para não telefonarem para este ou para aquele. Em relação à que estava
retida em Macedo, foi a mesma coisa. Foi lá um inspetor buscá-la. A GNR
guardou todas as passagens de nível e, no dia seguinte de manhã, já estava
em Mirandela. Não se sabia de nada, nem mesmo o chefe da estação… Não
houve ali reação nenhuma das pessoas... Eu só soube nesse dia de manhã. Eu
entrei ao serviço às 6:30 h, de manobras, o chefe de estação que estava lá ao
serviço, telefonou-me pouco antes a dizer: «Ó Queijo, a que horas entras ao
serviço?». «Às seis e meia da manhã» -respondi. «Então, vê se estás cá a ho-
ras, porque se passa isto assim-assim». Eu até fiquei um bocado surpreendido.
Ora eu que estava a acabar de me preparar, arranquei para a estação.E qual
não foi o meu espanto, quando chego à estação e me dirijo ao inspetor que
lá estava, que eu conhecia, vi dois sujeitos da polícia judiciária logo atrás de
mim. Como eu conhecia o inspetor, cumprimentei-o e ele perguntou-me se eu
estava de serviço. Respondi que sim e ele mandou-me ir buscar uma máquina
para descarregar as que estavam nos dois camiões TIR, as de Bragança, mas
a de Macedo que também já lá estava (terá sido carregada pelas 4 a 5 da
manhã). Dizem que foi o próprio inspetor que a foi lá buscar. Depois, andei
ali toda a manhã. Descarregaram-se as máquinas, arrumei tudo no depósito,
arrumou-se tudo na oficina e eles lá seguiram a sua vida. E, a partir daí, não
soube mais nada…
[Sobre os descarrilamentos verificados na linha num curto período dos
anos 1970] …numa semana saímos para um descarrilamento e só regressá-
mos, salvo erro, na semana a seguir. Começámos lá para cima, nos Cortiços,
no Quadraçal, ou lá onde é que foi; depois houve outro, aquele em que antes
das Fragas Más, no Castanheiro, a máquina ficou a cair para o rio. Isto foi em
78. Naquele tempo havia descarrilamentos por causa dos temporais, devido
às pedras que caíam e por falta de manutenção das trincheiras…

109
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

[LQFT, sucessivamente assentador, chefe de brigada. supervisor e chefe de


distrito na linha do Tua, desde os anos 1970 até esta fechar lembra a vida na
estação de Mirandela e a solidariedade da comunidade local para com os fer-
roviários] … Todas as cargas de cortiça, naquele tempo, saíam do Romeu em
comboios de mercadorias; da fábrica do Cachão saía muita coisa para Lisboa e
para o Porto. Tudo o que era carregado desde Bragança, era passado à mão no
Tua (quer da via larga para a via estreita, quer da via estreita para a via larga.
Eram assim os nossos trabalhos… Vivi alguns anos na estação de Mirandela.
Os meus filhos nasceram e criaram-se lá. Aquilo, mais do que um emprego, era
uma família. Os garotos brincavam ali sem risco nenhum. A própria estação
tinha uma parte para dormitórios de maquinistas e pessoal circulante e outra
parte para residência de ferroviários. Havia outras casas junto da estação para
habitação de funcionários. Havia o cafezito da Tia Glória, onde era obrigató-
rio entrar e tomar o café… A Tia Glória também arranjava as marmitas para
muitos de nós. Ela era a “Mãe” dos ferroviários… Havia muita solidarieda-
de entre todos. Muitas vezes o pessoal circulante não trazia nada de comer
e aquilo que inicialmente era para quatro chegava para seis… Os próprios
habitantes eram solidários com as nossas necessidades. As hortas que eles fa-
bricavam podiam ser frequentadas pelos ferroviários, se delas precisassem…
não havia problema nenhum… Estávamos muito bem integrados também com
os habitantes de Mirandela. Não éramos de modo nenhum uma comunidade à
parte...
[e identifica o que considera duas dificuldades principais na linha do Tua,
salientando ainda a sua importância turística]: …primeira… à saída da linha,
no Tua, havia ali um cotovelo que fazia com que a frente da máquina não
reconhecesse bem o itinerário a jusante…. Para não falar da zona da Bru-
nheda ao Tua que era a mais acidentada. Era um túnel aberto, como diziam
os turistas que por lá passavam. Era a zona que metia mais respeito, mas
também era a que mais encantava quem por lá passava…. segunda… depois,
o Romeu era um ponto turístico com a Maria Rita. Toda a zona do Quadraçal
era um local espetacular. Aliás, os nossos governantes, a nível do turismo,
não sabem aproveitar as potencialidades que temos. É uma pena que o metro
não vá, pelo menos, até Abreiro ou até ao Romeu. Vilarinho e Ribeirinha não
têm qualquer transporte… o Romeu era um ponto turístico muito importante.
Foi muita pena que o comboio não fizesse o seu terminal naquele lugar. Nem
sequer havia qualquer tipo de transporte para lá. Uma ocasião, dois casais

110
Maria Otilia Pereira Lage

pediram-me que os levasse ao Romeu. Deixei de almoçar para os levar. Fica-


ram encantados com tudo o que viram….
[outros ex-operários qualificados das Oficinas Gerais de Mirandela, desde
o início dos anos 1960]… éramos uma comunidade ferroviária, com aceitação
por parte da população mirandelense e isso de haver pessoas a viver na linha
e imediações da estação… a viver na linha era mais pessoal do movimento.
Agora das oficinas, não. Família ferroviária diz-nos sempre algo porque pas-
sávamos por qualquer lado, ou ia aqui, ou ia ali e quer fosse do movimento,
quer fosse da oficina, quer fosse fogueiro, era tudo ferroviário e fazia tudo
parte da família…
[Sendo dito que as oficinas de Mirandela assistiam e reparavam a maquinaria
e material circulante de outros ramais de via reduzida, como a linha do Sabor, a
Linha do Corgo, etc. foi explicado que:]… isso só acontecia em casos extremos…
Aliás, o grande centro de reparações era em Campanhã. Quando havia grandes
reparações, era tudo em Campanhã. Em Mirandela, era feita a manutenção,
substituição de rodados, substituição de motores, mas já vinham reparados…
Ultimamente havia já as automotoras verdes e brancas, as jugoslavas, estiveram
muitos anos no Tua. Foram lá para Campanhã para ser modificadas, Mas essas
locomotivas deram-nos muito trabalho enquanto não foram modificadas.
[Localizam e descrevem em pormenor as Oficinas Gerais na Estação de
Mirandela em que todos trabalharam:]
…É fácil de reconstituir… Conforme há aquele desnível da estação, havia
ali o cais descoberto, depois havia o cais coberto. Junto da parede do cais,
havia duas residências; depois havia a secção do motorizado (das automo-
toras Allan), isto no mesmo sentido. Depois, para o outro lado, havia uma
secção denominada “As forjas”, onde faziam ou reconstruíam as molas para
as carruagens; mais para o lado da CUF, havia a secção do vapor. Seguia-se
a secção dos tornos e depois a secção do material rebocado; isto tudo para o
lado direito. Em frente, estava a secção do vapor, onde se colocavam as má-
quinas. Era o depósito das máquinas; para o lado esquerdo, ficava a secção
do carvão e o local onde estava a placa giratória, onde viravam as máqui-
nas. As carruagens eram de madeira e o carpinteiro, nesta altura, era o Sr.
Adriano Augusto Serra. As últimas locomotivas da linha do Tua (as verdes e
brancas) eram jugoslavas.
Havia um ramal para carregar e descarregar vagões com produtos para a
fábrica da CUF.

111
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

[atalha J.E.G.:] …nas Oficinas trabalhava-se em tudo. Arranjava-se todo


o material da linha do Tua e era muito. Era composta por duas secções: a
secção do motorizado e a secção do vapor e ainda havia a secção do material
circulante (os vagões, …). Na altura do vapor, não havia energia elétrica,
mas para a iluminação das carruagens e do comboio era produzida energia
elétrica por um gerador que tinha uma correia ligada ao rodado e havia um
dínamo que gerava a corrente.
[atalha outro entrevistado para explicar como se produzia essa corrente
eléctrica]:
…Tinha uma poli no rodado e uma correia que fazia girar um dínamo.
Esse dínamo, que era montado no chassis da carruagem, girava e ia para um
regulador de tensão, onde se regulava a corrente para carregar as baterias.
Funcionava como o alternador de um carro. A locomotiva era iluminada a
petróleo, a carboneto e a purgueira. …As máquinas mais fiáveis em manuten-
ção e em despesa eram as Diesel. Claro que quando se passou para o elétrico
ainda foi melhor! E, quanto ao facto de haver mais incêndios na altura do
vapor, isso não é verdade; isso eram tudo boatos!...
…Em 1969, em Mirandela, ainda havia muita locomotiva a vapor e, quan-
do havia alguma avaria numa automotora “Allan”, ela era substituída por
uma a vapor. As locomotivas a Diesel foram introduzidas em 1967 / 68 e na do
Tua foram introduzidas mais tarde…
[Quanto à formação necessária para trabalhar nas Oficinas Gerais
explicam]
…Quando entrávamos como aprendizes para a Oficina, estudávamos mais
disciplinas teóricas no 1º ano: Português, Matemática / Álgebra, Máquinas,
e outras. No 2º ano já tínhamos mais parte prática, conforme a escolha que
fazíamos: eletricista, vapor, estofador, etc.”… E foi nessa altura que foram
introduzidas as locomotivas 1400 no Douro…
[referem-se às mudanças na profissão dos ferroviários e melhorias de con-
dições de vida e de trabalho com o movimento de democratização do 25 de
Abril de 1974]
…No pós-25 de abril, a nossa vida melhorou um bocadinho. Passámos a
ganhar melhor, pois antes do 25 de Abril ganhávamos à volta dos 700 escu-
dos, mais precisamente 624 escudos. Aumentaram os salários, passamos a ter
melhores condições de trabalho e passou a haver mais poder reivindicativo.
Passámos a ter um refeitório ou uma cozinha para preparar as refeições, etc.

112
Maria Otilia Pereira Lage

… isto é, dantes não se podia exigir nada e depois já se podia pedir e… pe-
dindo muito, conseguia-se!”. A comunidade (família) ferroviária era bastante
unida.
[Sobre as desvantagens da via estreita para o transporte de mercadorias de
e para o Romeu / Sociedade Clemente Menéres, Lda. e para o Complexo Agro
-Industrial do Cachão, a partir de 1964, explicam BSC, ajudante de condutor
e de maquinista em Bragança e Macedo de Cavaleiros e LQFT, supervisor na
linha do Tua de Mirandela ao Cachão]
…Todas as cargas de cortiça, naquele tempo, saíam do Romeu em com-
boios de mercadorias e eram grandes cargas; da fábrica do Cachão eram
escoados e despachados muitos produtos daquela estação para Lisboa e para
o Porto e outros locais. Um movimento impressionante que, a pouco e pouco,
se foi degradando: ou porque as estações não se iam abrindo, ou por causa
dos camiões, ou por falta da aposta por parte das entidades que pudessem ter
apostado mais no caminho-de-ferro. E vinham muitos passageiros do Tua até
estas estações. Tudo o que era carregado desde Bragança, que havia com-
boios de mercadoria com fartura, tudo era passado à mão no Tua (quer da via
larga para a via estreita, quer da via estreita para a via larga). Na altura, não
havia empilhadores, era tudo passado às costas dos trabalhadores do Tua,
onde havia o cais de transbordo e que dia e noite faziam o transbordo de todo
o material, até altas horas. E eram assim os nossos trabalhos…
[Estação de Mirandela e comunidade local envolvente] …Vivi alguns anos
na estação de Mirandela. Os meus filhos nasceram e criaram-se lá. Um já
tem 25 anos e outro 30 e foram nascidos e criados ali. Naquele tempo, não
era só o emprego que nós tínhamos na CP, pois mais do que um emprego, era
uma família que nós tínhamos. Se nos faltasse alguma coisa, íamos a fulano a
buscar e retribuíamos, quando fosse necessário. E mais que um emprego, era
como que uma família que ali tínhamos. Os garotos brincavam ali e andavam
pelos comboios sem risco nenhum. Os manobradores tinham sempre aquele
cuidado e reparavam se havia qualquer garoto por ali a brincar. E, no fundo,
o que ali tínhamos era como que uma família. O que era muito interessante.
Havia a estação e algumas casas em volta. A própria estação tinha habita-
ções de ferroviários com uma outra parte para dormitórios de maquinistas e
pessoal circulante e outra parte para residência do pessoal da estação. Havia
casas junto da estação para habitação de funcionários que viviam ali. Havia
o cafezito da Tia Glória, onde era obrigatório entrar e tomar o café… A Tia

113
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Glória também arranjava as marmitas para muitos de nós. Telefonávamos


para lá e dizíamos-lhe: «D. Glória, tenha-me aí a marmita pronta para o
comboio das tantas horas. Ela era a “Mãe” dos ferroviários… como que um
pronto-socorro. Ela não desconfiava das pessoas. A pessoa levava e, depois, é
que pagava. Por vezes, ficava ela sem as batatas cozidas para dar a quem ali
ia buscar essas refeições…
…Na estação havia um ambiente de família. Onde estão agora as casas
de banho e aquele edifício onde se vê o programa de Turismo da Câmara,
era a casa do chefe da estação. Do lado esquerdo da linha, moravam o chefe
das obras e o chefe de lanço e, em cima, em frente, onde hoje é a estação de
camionagem, era o chefe de distrito, naquela casa abandonada que agora lá
está. Na estação viviam dois fatores, um chefe de telecomunicações, um assen-
tador e funcionava um restaurante. Na parte do Cais, viviam dois serventes da
estação. Havia, depois, as Oficinas onde funcionava a parte do Diesel, a parte
do vapor e a da tração. Depois havia as cocheiras, onde se metiam as unida-
des motoras. Eram grandes e lembro-me delas a funcionarem a 100 por cen-
to. Eram umas oficinas médias. Mas as do Pocinho eram quase tão grandes
como estas, mas com menos pessoal. Em Campanhã, ou em Contumil, eram
maiores. As da Régua eram pequenas, nem um terço das de Mirandela. As
da Régua eram parecidas com a do posto diesel de Mirandela, onde metiam
as automotoras para manutenção. Na parte do vapor, havia forjas, tornos…
Naquela altura, nas oficinas de Mirandela trabalhavam 20 a 30 pessoas, ou
mais, talvez. Porque trabalhavam ali torneiros, serralheiros, soldadores, pi-
cheleiros, carpinteiros, estofadores, etc… e, depois, havia a parte dos serven-
tes da tração: uma média de 9 ou 10 serventes. Nós chegamos a ser ali 21
maquinistas e quase o mesmo número de fogueiros, enquanto houve o vapor.
Foram uns anos bastante agitados.
[Vivencias próprias e experiências comuns deste pessoal ferroviário]
…Por norma, antigamente, a própria empresa tinha casa para os ferroviá-
rios deslocados, conciliando essa atribuição com a categoria ou com a colo-
cação que a gente fazia para um determinado sítio. Por norma, quase que ha-
via sempre casa de habitação para a pessoa que fosse deslocada. Eu trabalhei
em Bragança, estive lá uns anos e trabalhei como condutor de uma Dresina
(veículo ferroviário utilizado para transporte, trabalhos e inspeção das vias
férreas). Tinha o meu filho acabado de nascer. Aprendeu a dar os primeiros
passos na estação do Pocinho, pois também fui para ali deslocado como con-

114
Maria Otilia Pereira Lage

dutor de Dresina. Às vezes, íamos destacados por uma semana e essa semana
passava a anos. A empresa arranjava-nos as condições mínimas para ali po-
der estar: arranjava uma casita para ali poder estar. Ia a mulher e levava-se
o indispensável para ali poder estar. E, no fim-de-semana, vinha-se à aldeia e
segunda-feira, de manhã, regressávamos para retomarmos o serviço.
[a solidariedade e a perfeita integração na comunidade, do pessoal ferro-
viário, é salientada por B C, outro ferroviário de Mirandela] …havia muitas
situações entre o pessoal circulante, porque entre o pessoal da via estavam
mais familiarizados. Quando éramos destacados, como a mulher ficava em
casa, às vezes cozíamos umas batatas e se precisávamos de uma cebola íamos
ao pessoal que ali vivia e dele nos socorríamos. Vivíamos as situações dramá-
ticas dos nossos colegas. Havia muita solidariedade entre todos. Muitas vezes
o pessoal circulante não trazia nada de comer e aquilo que inicialmente era
para quatro chegava para seis… Estávamos perfeitamente integrados na co-
munidade local de Mirandela. Não éramos de modo nenhum uma comunidade
à parte... Os próprios habitantes eram solidários com as nossas necessidades.
Íamos tomar café à D. Glória ou ao café Cabora Bassa e a outro que havia
por ali. Aquelas hortinhas, em frente à estação, era tudo fabricado. E havia
ali sempre qualquer coisa, quando se necessitava… [L. Q. explicou ainda a
funcionalidade das pequenas hortas de que dispunham] …Essas hortas funcio-
navam assim: aqueles que estavam ali destacados e que vinham alguns dias
até ali não iam trazer coisas. E aquilo era para a comunidade dos ferroviá-
rios. Quem delas precisasse, fosse de quem fosse, o ferroviário podia ir buscar
e não havia problema nenhum… [Informantes nºs 24 a 29, entrevista nº 18, 2ª
entrevista de grupo realizada no encontro de Ferroviários da linha do Tua, no
Azibo, em 25 de Abril de 2014]

Termas de S.Lourenço- povoação e estação


(Foto aérea de Henri Richard)

115
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

4.2.3. Ambiência natural e empreendimentos agro-industriais


Destacam-se na ambiência natural do vale e na história da linha do Tua, o tra-
dicional complexo termal das Caldas de S. Lourenço, localizado na pequena
e alcantilada povoação, com apeadeiro do mesmo nome na linha do Tua, hoje
abandonado, mas que registou na primeira metade do séc. XX (anos 1940)
uma vida quotidiana intensa e animada. Isso é mencionado em várias narrativas
orais que referem estas termas como estância de lazer muito procurada, não só
localmente, mas também por pessoas de diferentes perfis sociais de todo o país
e mesmo do estrangeiro, para tratamento de doenças de pele, ossos e vias res-
piratórias. Encontram-se aí, ainda em funcionamento, um balneário centenário,
património edificado a carecer de obras de recuperação e restauro, mas em vias
de desativação pela Câmara Municipal de Carrazeda de Ansiães, a qual man-
tém atualmente, em instalações pré-fabricadas construídas para o efeito, um
novo e bem equipado balneário, tendo em projeto a construção de um grande e
mais desenvolvido empreendimento balnear com valência turística.
Convoca-se o seguinte testemunho feminino de autóctone local, octogená-
ria, residente na aldeia vizinha de Pombal de Ansiães, que descreve razoavel-
mente o lugar, o empreendimento termal antigo e atual, a sua capacidade de
atração e ambiente plurifuncional concreto
“..Nessa altura, o S. Lourenço era muito frequentado por gente que vinha
a banhos, à procura de alívio para males de pele, de reumatismo e outros,
através das suas águas sulfurosas. Havia gente que chegava em padiolas e,
passados alguns dias, começavam a andar. Tomava-se banho no tanque gran-
de, banho colectivo: chegavam a tomar 20 pessoas ao mesmo tempo, durante
mais ou menos meia hora (evidentemente que os banhos eram só femininos
ou só masculinos). Não podia ser mais tempo porque tinham que dar lugar a
outros que estavam sempre à espera. Também se bebia daquelas águas sulfu-
rosas que lavavam o organismo por dentro e curavam certas doenças. Havia
também 2 ou 3 banheiras contíguas ao tanque grande. Para as pessoas se
instalarem havia algumas pensões, onde se alugava um quarto e onde havia
uma cozinha comum. Tinha que se levar roupa de cama e louça para cozinhar
e comer.
A pensão maior que lá havia era do Sr. Luís Areias do Pombal. À noite
havia bailes na casa dos Malheiros que tinham grafonolas.
Do Pombal, iam os Baltasares “que eram todos fadistas e tocavam muito
bem”. Eram serões muito animados e com muita gente.

116
Maria Otilia Pereira Lage

Estas águas tinham tal fama curativa, que o próprio diretor das águas de
Chaves, afirmava que as de S. Lourenço eram melhores.
Vinha muita gente de Bragança, do Porto e até de Espanha. Também vi-
nham de todas as aldeias mais ou menos próximas, sendo que os habitantes
do Amieiro vinham a pé pela linha. A época balnear ia desde Junho até aos
Santos (início de Novembro). As pessoas do Pombal só iam no fim das colhei-
tas para aproveitarem o facto de já haver menos afluência de gente.
No entanto, não havia médico. Só este ano de 2011 é que estas termas co-
meçaram a ser exploradas de maneira diferente e passaram a ter um médico
para ver as pessoas antes destas iniciaram qualquer tratamento. No entanto,
o tanque primitivo continua disponível para aqueles que o querem utilizar.
No tempo que referíamos anteriormente, em que as pessoas que lá se ins-
talavam tinham que cozinhar, havia “chicheiros” que vinham vender a carne,
havia peixes do rio e todo o outro peixe que vinha no comboio. Também havia
“um comércio” para os produtos de mercearia. Também se vendia louça que
dizia “Recordação de S. Lourenço”.
No meu tempo não havia muita gente do Pombal a trabalhar na estação
de S. Lourenço. No entanto, um homem do Pombal, de nome Manuel Pinto,
esteve muitos anos a trabalhar na estação, mas a gente que lá trabalhava vi-
nha mais do Amieiro. Daqui também houve um maquinista que já morreu…”
[Informante nº 3]
A forte vivência destas termas pelas populações locais é visível nas memó-
rias muito vivas desta nonagenária, proprietária agrícola do Pinhal do Norte,
aldeia próxima das Caldas de S. Lourenço, onde começou a ir desde criança
em companhia dos pais.
(…) Iamos sempre no fim da vindima… era quando ia quase toda a gente
de por aqui perto… Juntava-me lá com as minhas primas das Areias, com
as filhas do Sr. Cândido, ferreiro, também das Areias, íamos aos bailes que
lá se organizavam e pernoitávamos lá, dormindo no chão. Na casa do Ma-
lheiro havia sempre bailarico. Tomávamos banho no tanque e como éramos
só raparigas e não tínhamos fato de banho, tomávamos em cuecas apenas…
Instalávamo-nos no mesmo quartel, a casa da curva, que agora está a cair…
também íamos para cima para os da Barbosa, para os do Sr. Pinto ou para
o da Acácia... Costumávamos almoçar lá com a família e comíamos o que
levávamos de casa: chouriços, salpicões, um frango ou um coelho, aquilo que
tínhamos…. Naquela altura, para ir para o S. Lourenço, ainda não havia o

117
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

caminho que há agora. Ia-se pelo alto do monte… Nessa altura o S. Lourenço
era muito movimentado, mas não havia lá onde comprar nada… O comboio
trazia gente da Régua, do Porto, de Soutelo, de Nagozelo, etc. e havia mulhe-
res do Pombal que ganhavam dinheiro a carregar as coisas que as pessoas
precisavam de trazer para as termas. Passavam lá 10 ou 15 dias. Tomavam
banho, os homens jogavam as cartas, as mulheres faziam a meia, faziam ren-
da. Conversavam uns com os outros. À noite havia os bailes e eu até tive um
tio enfermeiro que arranjou lá casamento. Ela era de Soutelo, da família dos
Soverais, uma gente muito rica. Casaram e foram para Angola…. [Informante
nº39]
As Caldas de S. Lourenço, a cujas propriedades medicinais e sanitárias as
populações locais desde cedo e de há muito se habituaram, serviram ainda ao
longo dos anos outros interesses e necessidades quotidianas em especial dos
que viviam nas aldeias ribeirinhas e estações da linha do Tua, e que as adota-
ram quase como parte da sua identidade cultural:

L.A.- …sim, claro… também frequentei os bailes de S. Lourenço no tempo


em que ainda não havia estrada para lá. Às vezes íamos pela linha do com-
boio… costumávamos ir a partir do mês de Junho até ao fim das vindimas.
Dançávamos ao som de um gira-discos que levávamos. Dançávamos na casa
do baile e onde houvesse corrente para ligar o gira-discos. O mais importante
mesmo era a dança e a diversão… [Informante nº31]
A.S. – “…também fui lá às Caldas tomar banho quando foi para ir à ins-
peção para a tropa porque era inverno e a água era quentinha…” [Informante
nº30]
A grande maioria dos informantes privilegiados insistiu na utilidade da li-
nha para o transporte de mercadorias e para a criação de dinâmicas várias ao
comércio local, com o movimento ascendente de adubos, carvão, cimento e
ferro para a construção civil, e o movimento descendente de cereais, azeite,
cortiça, fruta, fumeiro e muitos outros produtos locais e regionais…
Referiu-se ainda ao considerável desenvolvimento proporcionado pela li-
nha e comboios do Tua em certos núcleos da região, em consequência de pro-
jetos e empreendimentos agro-industriais: no Cachão (CAICA), no Romeu
(Casa Menéres), em Mirandela (CUF, oficinas da CP…), ao longo de grande
parte do séc XX. A dinâmica económica e social conseguida designadamente
em Macedo de Cavaleiros, Bragança, Carrazeda de Ansiães, Alijó, Murça e

118
Maria Otilia Pereira Lage

Vila Flor esteve ainda ligada à regular e intensa receção de matérias-primas


e equipamentos agrícolas que acabaram por induzir uma certa modernização
da agricultura, atividade principal da região, proporcionar o incremento e es-
coamento de produtos agrícolas e transformados (fruta; vinho; azeite, cereais,
farinhas…) e contribuir para intensificar a criação de gado e a exploração dos
produtos derivados (leite, queijo, peles).

Como se pode observar, algumas das histórias de vida documentam com


expressividade aspetos importantes da história recente dos principais em-
preendimentos agro-industriais referidos.

É o caso da seguinte narrativa do Eng. JCOM de 80 anos, bisneto do fun-


dador da Casa Clemente Menéres, ex-técnico superior das Indústrias Jomar
e ainda colaborador da gerência da empresa Menéres, referente à criação e
incremento da Sociedade Clemente Menéres em Romeu de Jerusalém e suas
estreitas ligações industriais e financeiras à cidade do Porto:
“.…Desde pequenino, habituei-me a passar férias no Romeu. Aí, tive o
prazer de conhecer o Sr. Lopes Seixas [feitor] e a Srª D. Rosinha [esposa], que
fazia umas alheiras maravilhosas. Nessa altura, o gerente era José da Fonse-
ca Menéres, pai de Clemente Menéres.
…A família Menéres passava férias no Romeu. As pessoas iam conforme
havia lugar na residência. A casa original ardeu num grande incêndio provo-
cado por uma lareira. Depois do incêndio, construiu-se uma nova casa, em
1941. Quem ia muito para o Romeu era o António Menéres de Araújo. A fa-
mília de Lisboa ia menos, devido à distância. A vida do dia-a-dia das pessoas
que iam, acompanhava sempre a atividade agrícola: vindimas, extração da
cortiça, etc… Havia sempre muito pessoal; um, local, outro que era contrata-
do para certos trabalhos como, por exemplo, a extrcção da cortiça, para onde
vinham trabalhadores do Alentejo. O pessoal de fora ficava alojado em Vila
Verdinho…
…Ainda me lembro de haver verões muito quentes e de ver o pessoal a
assar sardinhas nos carris do comboio… em 1947, por exemplo….
[Quando se lhe pergunta se o Romeu ainda é hoje importante na família,
responde afirmativamente e diz que sempre houve uma ligação muito forte,
sobretudo resultante do facto de o bisavô ter criado um pacto social que esti-
pula que os sócios serão sempre da família.]

119
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

…Depois dos anos 50, construíram o açude e começou a cultura da fruta


em grande escala: a maçã, a pêra e o famoso pêssego, superior ao de Al-
cobaça. Foi Manuel Menéres que introduziu a cultura da maçã golden em
Portugal, com o apoio do Prof. Vieira Natividade, de Alcobaça. Também ha-
via a produção do azeite, e a atividade do lagar, que era no inverno, para se
produzir o famoso azeite do Romeu…
[Interrogado sobre qual terá sido a implicação de Clemente Menéres, o
patriarca da família, sobre a forma como, no início, provocou a movimentação
dos povos transmontanos para que se construísse a linha do Tua, diz:]
...o meu bisavô, Clemente Menéres, escolheu Trás-os-Montes para a sua
atividade agrícola. Precisava de cortiça para a fábrica de rolhas, do Porto,
construída em 1901 / 1902, e teve conhecimento de que havia um núcleo de
sobreiral fantástico na zona do Quadraçal. Apesar de os sobreiros estarem
implantados numa zona rochosa, mesmo assim ele ficou tão entusiasmado que
começou a comprar sobreirais. Ele era de terras próximas da Vila da Feira e
já estava familiarizado com a feitura de coisas com cortiça. Também começou
com a cultura da vinha, que tinha já sido muito estragada pela filoxera...
[A propósito, citou os dizeres da placa que está, no Porto, em frente ao Hospital
de Sto António:” Clemente Menéres, paladino da agricultura transmontana”. E
prossegue:]
…Mas Trás-os-Montes estava muito isolado. Era imperioso, por causa da
fábrica das rolhas, fazer o transporte das coisas e nada melhor do que o ca-
minho-de-ferro para fazer o transporte e o escoamento…
Como se sabe, as ligações rodoviárias eram muito deficientes; também
havia o rio, mas era para quem estivesse situado perto das suas margens.
Ora, como o negócio de Clemente Menéres era criar a matéria prima para a
fábrica de rolhas, começou por ter fábricas locais em Mirandela e no Romeu
e, mais tarde, criou a fábrica no Porto. Como a grande dificuldade era o
transporte da matéria-prima para o Porto, daí veio a tentativa da criação da
linha ferroviária…
…É em 1902 que é criada a Sociedade Clemente Menéres, L.da. Antes des-
ta houve a sociedade Menéres & Companhia, e ainda antes houve a Sociedade
Clemente Menéres & Filhos. O negócio era essencialmente feito a partir dos
vinhos e do azeite.
…Depois de ter comprado muitas propriedades, Clemente Menéres enten-
deu que devia atrair gente do Norte, que ele conhecia. Um bom exemplo disto

120
Maria Otilia Pereira Lage

é a família Nogueira Pinto, de Leça da Palmeira, que está na origem da com-


pra da Quinta dos Carvalhais. Foi assim que vários capitalistas foram para
aquela zona. Por exemplo, o Marquês da Foz que foi um grande acionista de
caminhos-de-ferro. Mais tarde, um Eduardo Pinto da Silva, um Conselheiro
Azevedo… e mais alguns. Estas pessoas criaram um lobbie, angariando assi-
naturas para se conseguir o caminho-de-ferro mais depressa. Hintze Ribeiro
foi quem deu o grande impulso.
…Em 1915, a introdução do camião revolucionou a vida do Romeu. Evita-
va que a cortiça ficasse nos campos, por exemplo. Uma pequena camioneta, a
primeira, foi utilizada para transporte de cortiça para a estação do Romeu…
…Quando era miúdo, ia para Trás-os-Montes de comboio. Saía às 9 horas
da manhã de S. Bento e chegava ao Romeu às 17h. Só nos princípios dos anos
50 comecei a ir de carro. A viagem do Porto a Mirandela demorava 7 horas. O
tio José da Fonseca Menéres ia num Ford, modelo T, e demorava 10 horas…
…Falando ainda de transportes e de tecnologia, existia já lá a máquina a
vapor para acionar um volante que movia o lagar. Daí havia a derivação para
as várias máquinas, tudo através de correias. Como era necessária alguma
corrente elétrica, havia um dínamo que carregava uma série de baterias, tipo
Leclanché, que forneciam a iluminação para o lagar e para a residência. O
fornecimento era de baixa potência e só dava mesmo para a iluminação. Por
isso, o primeiro frigorífico tinha que ser alimentado a petróleo…
Sempre tiveram no Romeu pessoal especializado muito interessante. Hou-
ve um mecânico extraordinário que era o Manuel Maneta, assim chamado
porque de facto trabalhava só com um braço e com o antebraço e fazia coisas
fantásticas. Não sei se era mesmo do Romeu, mas estava lá radicado. Havia
também o carpinteiro que se tornou, mais tarde, o mecânico de automóveis.
E havia o Parente que fazia tudo o que era preciso… era serralheiro, era
mecânico… etc.
…O pai do primeiro Clemente Menéres aconselhou-o a ir ao Brasil, onde
ele tinha um tio e onde casou. Quando regressou ao Porto, começou com a
atividade comercial. Foi um homem com uma visão comercial extraordinária.
Foi o primeiro vendedor da casa do pai no Brasil. Mas também enviou produ-
tos para as colónias e para alguns países da Europa. Há até nesta sala uma
fotografia com o embaixador Venceslau de Morais e umas latas de azeite da
sociedade Clemente Menéres…
…Clemente Menéres esteve mais do que uma vez em situações económi-

121
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

cas difíceis, sobretudo no período que antecedeu a 1ª Grande Guerra, o qual


tornou as coisas muito difíceis e veio fragilizar o mercado da exportação.
Aliás, Clemente Menéres, antes de morrer, chegou a ter tudo hipotecado, mas
conseguiu vencer a crise e desipotecar tudo. Dos três filhos do primeiro ma-
trimónio, Alfredo Menéres, José da Fonseca Menéres e Agostinho Menéres
(o meu avô), este último foi o escolhido para os negócios com o estrangeiro
porque falava bem alemão, inglês e francês. Chegou mesmo a ter um escritó-
rio em Hamburgo. Há até um episódio muito curioso, talvez no ano de 1913,
em que já se notava a rivalidade que ia haver entre os alemães e os ingleses.
Agostinho Meneres dizia ao pai, numa carta, sobre a exportação do vinho do
Porto: “mande para a Dinamarca, não diga que é para a Alemanha, porque
se os Ingleses sabem, nunca mais nos compram vinho….”.
[Acerca do negócio dos vinhos, J. C. disse que, a determinada altura, houve
uma proibição do negócio dos vinhos aqui no Porto.]
…Foi quando o meu avô, Agostinho Meneres, com os filhos, criou a firma
Menéres & Companhia, em Matosinhos. Numa zona de lavradio, nasceu um
pólo industrial fantástico, que foi muito importante para o mercado da expor-
tação. Os produtos eram comprados em Trás-os-Montes não só ao Clemente
Menéres, mas também a outros, e exportados em grande escala para o Brasil
e para outros sítios. …Ainda hoje existem, em Matosinhos, as ruínas desta
fábrica.
…Na cortiça continuava a haver exportação para os países que a adqui-
riam e para onde era exportada em prancha; nessa altura, as rolhas que se
produziam em Mirandela eram aproveitadas para a fábrica de Matosinhos.
…A primeira fábrica de rolhas nasceu no Romeu. Mais tarde, passou para
Mirandela. Mas, aqui, passou a haver dificuldades de mão-de-obra porque
havia concorrência na zona de Zamora, onde existia também uma fábrica de
rolhas. O meu bisavô geria a fábrica de Mirandela, onde um dos principais
encarregados era espanhol, de nome Cortes. Um dia, por causa da falta de
mão-de-obra, irritou-se e criou então a fábrica no Porto, precisamente no
edifício onde estamos agora… Todo este edifício tem um carácter de arqui-
tectura fabril.
…Quem estudou o perfil deste homem, como lavrador e industrial, diz que
ele tinha muita iniciativa, era muito organizado, era o gerente, o homem do
marketing, o homem dos recursos humanos e geria toda a parte de conta-
bilidade porque, no Brasil, tinha aprendido toda a técnica de trabalho com

122
Maria Otilia Pereira Lage

dupla entrada, o método das partidas dobradas… já era aquilo que seria um
TOC (Técnico Oficial de Contas) dos nossos tempos. Ele criou leis laborais
na fábrica de rolhas em Mirandela, tais como as que tinham a ver com o
despedimento dos trabalhadores: se estes quisessem abandonar o trabalho
tinham que avisar com 15 dias de antecedência, mas o mesmo era válido para
o patrão se quisesse despedir o trabalhador…
Outro aspeto: Clemente Menéres nunca teve sócios a não ser os primeiros,
onde até houve uma situação desagradável; a firma era Pais & Menéres. Mas,
a partir daí, as sociedades foram sempre com os filhos. Inicialmente ele era o
único dono do Romeu, nunca o misturou com as outras empresas…
…Real Companhia Vinícola: inicialmente, a fábrica era Menéres & Com-
panhia e mais tarde, quando decresceu a importância comercial da firma,
houve alguém que comprou parte das quotas e criou a Real Companhia Viní-
cola Portuguesa. Aí já os meus tios e o meu avô não ficaram sócios, mas ficou
o mais novo, José da Fonseca Menéres, e Alfredo Menéres passou a pertencer
só ao Conselho Fiscal. Aí esvaziou-se a importância da fábrica… E era uma
verdadeira fábrica porque reunia todas as potencialidades próprias: tinha a
serração própria, a tanoaria; fabricava as próprias caixas de madeira para
exportar o vinho; tinha já uma instalação elétrica própria para produzir ener-
gia; tinha uma vagoneta que facilitava o escoamento dos produtos todos pelo
porto de Leixões…
…O modo como Clemente Meneres desenvolveu o negócio foi com o crédi-
to bancário. Ele tinha muito crédito pessoal, não tinha propriamente fortuna
pessoal. Era também muito amigo do fundador do Banco Espírito Santo e
tinha facilidade em lidar com a Banca…
…Desde 1902 até 1916, data da sua morte, apostou fortemente na par-
te agrícola e conseguiu recuperar da crise financeira que tinha acontecido.
Deixou à família, em testamento, as quotas muito bem distribuídas e deixou
muitos bens… Houve, durante a 2ª guerra, em 1941 / 42, uns alemães que
passaram pelo Romeu e ofereceram 20 mil contos pela Sociedade…
São de Clemente Menéres estas frases: “Gerir sem livros, é gerir às ce-
gas” e ainda “Ter casa o suficiente e terra até que não a vejas”. Eram alguns
dos seus princípios. Ele era um homem que estava sempre a querer inovar e
não era por acaso que ia muito ao estrangeiro. Dedicou-se aos três setores:
Agrícola, Comercial e Transformador. A sua primeira iniciativa, no Porto,
como industrial, foi a criação da fábrica de conservas. Aqui, havia uma par-

123
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

ticularidade interessante: como a lata da conserva era feita de folha de Flan-


dres, quando se abria, ela explodia. Clemente Menéres informou-se junto de
um técnico e criou um sistema que consistia em aquecer ligeiramente a lata,
esta já descomprimia porque aumentava o volume e já se conseguia abrir sem
que o azeite saltasse…
…A ideia da produção da fruta do Romeu era para a fábrica de
Matosinhos….
Ele foi pioneiro em muitas situações: - a energia elétrica local; - a introdu-
ção de todos os mecanismos apropriados nas fábricas; - na parte agrícola, o
combate à filoxera e as pesquisas no campo da agronomia. Aqui, teve o apoio
do neto mais velho, António, que estudou em Leipzig, formando-se em agri-
cultura. Fixou-se em Mirandela e trabalhava para a Sociedade, ganhando
um ordenado como o de qualquer trabalhador. Alfredo da Fonseca Menéres
casou com uma senhora da família Nogueira Pinto e ele também tinha forma-
ção agrícola…
…Com a existência do feitor, estava-se perante o que se pode chamar uma
gestão à distância. Com ele colaboravam os capatazes (criados); os jeireiros ;
os compradores e os guardas que eram muitos pois as propriedades abrangiam
54 freguesias, ou seja, 8 concelhos de Trás os Montes. No Porto estava centra-
do o gerente. Os guardas eram fundamentais porque havia sempre roubos…
Para a articulação entre o Gerente e o Feitor, tudo era transmitido por es-
crito. O original ficava no escritório do Romeu e, no Porto, ficavam as cópias.
Existe todo esse material nos copiadores…
…Havia grande relação de confiança entre o feitor e Clemente Menéres.
Ainda conheci o feitor Lopes Seixas, que era um homem afável, muito simpá-
tico e a esposa também. Mas já não convivi muito com ele porque ele deixou
a Sociedade em 1941 e esteve ausente entre 1937 / 38.
…O 1º feitor, o Bernardo, sendo analfabeto, foi um homem notável e muito
conhecedor. Aliás, recordo um episódio passado entre ele e o meu bisavô, no
Romeu. “ Como sabem, o transmontano é calmo por natureza e este homem
era-o até excessivamente. Uma noite, ao serão conversavam feitor e gerente,
na companhia do cão da casa. Quando Clemente Menéres pergunta ao Ber-
nardo se ele dava o suficiente de comer ao animal, ele responde com toda a
bonomia: “ Claro que dou o suficiente, mas também para o que ele faz!...”.
Este feitor tinha uma ecónoma que era a mulher, a Srª D. Maria. Era ela que
tinha a caixa do dinheiro, a qual geria…

124
Maria Otilia Pereira Lage

[Sobre as causas do encerramento da fábrica da cortiça em Mirandela, julga


que foi muito fruto da primeira Grande Guerra, mas também da diminuição
da procura da cortiça; ela tinha até mais valor se exportada em prancha do que
fabricada em rolhas.]
…A dinâmica empresarial de Clemente Menéres, a sua ação, o seu dina-
mismo, está bem patente na frase que já foi citada nesta entrevista: “Clemente
Menéres, paladino da agricultura portuguesa” …Foi um homem dinâmico,
inteligente e com muita iniciativa, o qual sabia rodear-se de bons colabora-
dores e escolher sempre bons técnicos. Criou as primeiras fábricas do Norte
do País. Foi um pioneiro na maior parte das suas atividades e aquela em que
apostou sempre mais foi a atividade agrícola, a qual teve sempre continuidade
e ainda hoje existe. Conseguiu manter a sociedade sempre unida na família.
Em 1902, fez-se em Portugal a primeira sociedade agrícola e é das poucas
que ainda hoje existe. Ao longo dos anos pensou-se em transformar esta so-
ciedade em Sociedade Anónima, mas como havia um grupo sempre com um
maior poder de quotas, achou-se que isto ficaria mais seguro se continuasse
como uma sociedade por quotas. José da Fonseca Menéres foi o primeiro
gerente, e os seguidores nunca precisaram do dividendo da sociedade para
sobreviver. Sempre se investiram os dividendos. É um caso muito particular.
Daí isto se manter. Mas esta empresa funciona também muito com a carolice,
o que tem o seu valor. Em 2002, ao completar 100 anos, o pacto social foi
modificado, neste momento já é uma sociedade aberta, mas a quota continua
a não poder ser vendida senão à família, não é aberta nesse aspeto. E se o
familiar morrer sem descendência, a sociedade toma conta da quota.
…No Brasil, Clemente Menéres tinha uma rede de correspondentes. Na-
quele tempo, havia casas no Porto, cujas famílias mantinham negócios re-
gulares com Clemente Menéres; com a influência das duas grandes guerras,
houve intervalos muito grandes e esses laços todos se perderam…
…A crise de 40 verificou-se por todo o país, mas em Trás-os-Montes houve
sempre uma atividade de subsistência, as pessoas tinham as suas culturas e
criavam os animais de que precisavam. Assim, a crise sentia-se muito menos
do que no litoral, por exemplo… mas desenvolveu - se também a Obra Social
Clemente Meneres, em que se chegava a dar terra a todos aqueles que dela
necessitassem para construir as suas casas.” [Entrevistado nº 18]
Complementa e diversifica a anterior história de vida de acentuado cunho
familiar e genealógico, este outro relato biográfico de uma professora de en-

125
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

sino primário, aposentada, com 91 anos, filha e neta de antigos e conhecidos


feitores no Romeu, que aqui, onde a mãe foi governanta, nasceu e viveu com a
família, com um nível de vida bem superior ao generalizado na região.
[Romeu e família Menéres]... Conheci bem os Menéres. “Conheci-os a
todos, por dentro e por fora, com todos os seus defeitos e virtudes…
Lembro-me do mais velho, que arranjou a fortuna no Brasil, onde se casou
com uma mulher de nome Carlota. A certa altura regressou e veio viver para
o Romeu.
Quando chegou ao Romeu, ele lá vinha com as ideias dele, e queria com-
prar sobreiros. Dizia que nos sobreiros é que ganhava a vida e então comprou
quantos sobreiros lhe apareceram - comprou o Quadraçal todo, aquela zona
só de sobreiros que começa no Romeu e acaba nos Cortiços. Como não podia
lá estar sempre, porque tinha a vida dele, mas como era desses homens cheios
de vontade de subir na vida, precisava de levar um homem de confiança para
o Romeu, a quem pudesse deixar entregues as compras que tinha feito e os
negócios que lá arranjou…
…Ele não vivia lá, no Romeu, mas tinha um amigo que tinha uma fábrica
de fechaduras, acho que no Porto ou em Gaia, a quem pediu se lhe arranjava
lá na fábrica um homem de confiança que fosse para Trás-os-Montes. Ele
arranjou-lhe o meu avô, Joaquim Barbas, que foi ao Romeu inteirar-se dos
assuntos – e nunca mais de lá voltou. A minha avó começou a achar que o
marido se demorava por lá e como era uma mulher muito despachada e expe-
dita, fez questão em ir ter com o marido, saber onde ele estava e como estava.
Como eles sabiam a raça de que ela era, “de antes quebrar que torcer”,
arranjaram-lhe a ida. Era o tempo da mala-posta: naquela altura era muito
difícil viajar de e para o Porto, porque de Mirandela para cima só se ia de
carro de cavalos. “A mala-posta já não é do meu tempo, mas ainda é do meu
tempo a velhota que tinha uma taberna muito grande, junto da estrada - era
ali o lugar de mudança de cavalos. Chegavam ali e deixavam os cavalos nessa
casa, onde os tratavam até ao dia seguinte, e levavam os que lá estavam, já
tratados, para irem até Bragança; era apenas uma mudança de cavalos. A
mala-posta era no Romeu.
…A minha avó foi lá ter com ele e ficou a viver no Romeu de Cima (onde
está agora o restaurante), até arranjarem, no Romeu de Baixo, a casa onde
depois nós vivemos.
…Tiveram por lá uma soalheira de filhos. O meu avô dizia: “eu vim aqui

126
Maria Otilia Pereira Lage

parar, mas não quero que os meus filhos fiquem aqui, quero que vão lá para
baixo ganhar a vida” e por isso os meus tios espalharam-se cá por baixo
(zona envolvente da cidade do Porto)… Um deles morava em Ovar…
…Um dos meus avós é de uma aldeia adiante de Fiães, e outro é de Vilar
de Paraíso. A minha mãe dizia assim muitas vezes “eu tenho muita família em
Vilar do Paraíso, mas não conheço lá ninguém”…
…Eu já não conheci o meu avô, Joaquim Barbas, porque ele já tinha mor-
rido quando nasci”.
…“Os Menéres que eu conheci bem já morreram todos. O primeiro deles,
a quem nós chamávamos o Menéres Velho, trabalhava numa casa de fechadu-
ras, no Porto. Depois emigrou para o Brasil... Quando regressou, foi para o
Romeu… Constituiu uma sociedade com mais de cinquenta sócios, com regras
rígidas. Por exemplo, ninguém podia deixar de ser sócio enquanto vivesse,
nem podia desfazer a sociedade. Era um homem cheio de vontade de subir
na vida: era menino para lavar a própria camisa, à noite, e no dia seguinte,
vesti-la e sair para a rua a parecer um lorde…
O Menéres Velho teve dois filhos: o José Menéres e o Manuel Menéres.
Tanto o José como o Manuel eram casados. O José era da idade da minha
mãe, o Manuel era muito mais novo. O José tinha duas filhas: chamavam-se
Josefina e Maria Beatriz. Mas tinha mais filhos. Uma delas até casou em Ma-
cedo de Cavaleiros com um ricaço, lá viveu e lá morreu. O Manuel teve um
filho, o Clemente…
…Os Menéres não estavam lá permanentemente, mas passavam lá sempre
o mês de Maio e a época das vindimas. Durante o resto do ano também iam lá.
O Manuel ia mais vezes, às duas por três, estava lá caído. O José podia não ir
tanto, mas preocupava-se mais…
…Com o comboio, acabou a mala-posta. Mas isso do comboio é outra his-
tória, porque o comboio não era para passar ali, o comboio era para ir não
sei por onde, mas os Menéres tinham todo o interesse em que ele fosse por ali.
Foi tudo feito com a influência deles, senão não teria sido assim.
…Quando eu lá estava nas férias, íamos à estação buscar o correio. Quan-
do sentíamos o comboio a vir de Mirandela para cima ainda dava mais do
que tempo para ir à estação. …Depois aquilo tornou-se muito bonito e muito
movimentado, mas foi mais tarde…
[Trajetória biográfica, profissional e famíliar] …O meu pai morreu nas
Areias, em 1952. Já tinha 90 anos…

127
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

…Quando o meu pai estava no Romeu, eu fiz o liceu em Bragança. Tenho


mais de quantas fotografias da cidade. Nessa altura eu ia do Romeu para
Bragança, e de Bragança para o Romeu, sempre de automóvel, porque o meu
pai tinha um carro para o movimento dele na vila e, quando precisava, tinha
outro para andar nos montes. Quando deixou de trabalhar para os Menéres,
foi viver para a casa dele em Areias.
Quando ele morreu eu estava a trabalhar em Vale da Sancha, perto de
Mirandela. E antes de estar em Vale da Sancha, ainda estive na Torre de
Dona Chama, que é uma aldeia muito boa no concelho de Mirandela. Come-
cei a trabalhar ainda novita, tinha para aí 21 ou 22 anos. Depois de Vale da
Sancha, fui para Seixo de Ansiães, e do Seixo é que vim para as Areias, e das
Areias vim para Rebordosa, e depois fui para Sobrado, depois de Sobrado fui
para Valongo, e depois para Canelas, Vila Nova de Gaia. Quando dei aulas
nas Areias, o meu pai ainda não tinha morrido. Ele fazia anos em Fevereiro, e
semeava sempre batatas novas no quintal, e depois mandou fazer aquele por-
tãozinho no fundo do quintal para eu ir para escola, para me livrar da rua que
era muito molhada. Eram dele estas palavras: “a rapariga afoga-se aqui”. A
escola era onde ainda está. Até tenho uma fotografia em frente daquela olivei-
ra em frente ao edifício da escola, era eu uma rapariga nova. …Nas Areias
vivia uma irmã do meu pai que era a minha tia Quitéria, cujo marido se dava
mal com toda a gente. Ela passava lá os dias connosco, lá comia, e portava-se
muito bem com a minha mãe. Ela não teve sorte com o casamento. A única
pessoa que tinha cabeça como devia ser era o meu pai, que sustentava metade
daquela tropa...
…O meu pai chamava-se Francisco Lopes de Carvalho, mas depois pas-
sou a chamar-se Francisco Lopes Seixas. A minha mãe era Rosa Domingues
Barbas. O pai da minha mãe era o Joaquim Barbas, o qual, como já disse,
foi feitor dos Menéres. O meu pai tinha ido trabalhar para a casa Menéres
e, nessa altura, conheceu a minha mãe e casaram-se. Eu fui a primeira filha.
Depois nasceu o meu irmão Francisco.
A Maria Luísa Lopes de Carvalho era minha irmã, mas era filha do primei-
ro matrimónio do meu pai. A mãe dessa Maria Luísa era de Candoso, ou por
ali assim. A Maria Luísa veio para um colégio interno no Porto, por ordem
do meu pai, e com consentimento dos Menéres. Foi professora do ensino pri-
mário. Chegou a estar presa por razões políticas ligadas ao anti-clericalismo.
Foi condenada por ensinar religião na igreja e por ir à missa todos os dias

128
Maria Otilia Pereira Lage

- ela tinha sido educada num colégio católico, e era muito religiosa. Vivia em
Codeçais, onde era a maior influente da igreja, e por causa disso acusaram-
na de ir dinamitar a ponte de Abreiro. Naquela altura a ponte de Abreiro foi
dinamitada e ela foi uma das acusadas… porque o homem era dos caminhos-
de-ferro e ativista monárquico…
O meu pai ficou furioso porque diz que aquilo não lembrava a todos. Ela
esteve presa em Braga, não propriamente na cadeia, mas numa casa - impro-
visavam cadeias em casas, e metiam lá as pessoas. Ela chorava muito. O meu
pai, com pena dela, pagou a uma mulher que mandou para lá para lhe fazer
companhia dia e noite. É que a minha irmã levava aquilo muito a sério porque
estava muito sentida. Depois, a minha mãe foi para lá uma temporada para
lhe fazer companhia. A minha mãe contava coisas muito engraçadas relacio-
nadas com essa estadia.
Depois voltou para Codeçais, porque foi julgada e acabou a pena. Aquele
que veio a ser meu cunhado, o Amador, era chefe da estação de Codeçais. Foi
nesta aldeia que se conheceram e se casaram. Primeiro, ela estava na aldeia
e ele ia lá todos os dias. Depois, começou a ter muito serviço na estação e
precisava de estar lá e ela também gostava mais de estar lá com ele do que
de ficar na aldeia. Eu ainda lá estive a viver algum tempo com a minha irmã.
Eu andava na escola e, por causa disso, é que estava lá com ela. Tinha 7 ou 8
anos, era da idade do meu sobrinho, do filho mais velho da minha irmã.
…O meu pai não gostava de ver o meu cunhado no Romeu e arranjou-lhe,
com a ajuda dos Menéres, trabalho num armazém de azeites no Porto. Ele
veio para esta cidade e vivia aqui. Ele e a minha irmã estiveram aqui instala-
dos porque o meu pai lhes montou uma casa, onde viviam muito bem, mas o
meu cunhado atirou com tudo ao ar em pouco tempo. Só sabia estar a mandar,
não tinha habilidade para aquilo. Depois foi para África, para os caminhos-
de-ferro, em Moçambique, e esteve lá uma temporada. A minha irmã ficou cá
sozinha. Depois ele queria que ela fosse lá ter. A minha irmã ainda chegou
a arranjar a mala para ir para lá. Nessa altura tinha três filhos, o Alberto, o
José Augusto e a Elisa.
…A minha mãe e a minha irmã eram muito amigas e andavam sempre jun-
tas, davam-se muito bem. A minha mãe era muita amiga do meu pai, sempre
foram o casal ideal, e a minha irmã também era amiga do pai. No Porto, a
minha irmã continuou a ensinar, numa instituição para onde iam os filhos dos
professores.

129
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

A minha mãe era um bocado mais nova do que o meu pai. Não era muito
instruída, mas tinha a 4ª classe.
Eu era 30 anos mais nova do que a minha irmã. Era da idade dos filhos
dela, éramos todos da mesma idade, tios e sobrinhos, era tudo a mesma coisa…
…Vivi no Romeu até ir estudar para Bragança. Era novita quando me ma-
tricularam no Liceu, tinha para aí 10 ou 12 anos. O comboio era o meio de
transporte que nós usávamos para ir a qualquer parte. Nessa altura já tinha
vindo várias vezes ao Porto. Ficávamos em casa da minha irmã, que vivia
nesta cidade.
Eu fiz a Escola do Magistério no Porto, depois de ter acabado os estudos
no liceu de Bragança. Fazia todas as viagens de comboio. Demorava um dia
inteiro. Vinha do Romeu ao Tua, onde mudava de comboio. Até chegar ao
Porto era um dia de pândega.
Quando era miúda ia todos os anos, com os meus pais, passar as férias a
qualquer parte. Muitas vezes íamos para as termas de Moledo do Douro e de
Aregos. Nós, eu e o meu irmão, viajávamos com eles no comboio…
…O meu pai tinha um carro e um motorista para tudo quanto precisava.
Tinha telefone na cabeceira da cama; naquele tempo, já era como agora.
Ele ia pagar as contribuições a todas as sedes do concelho onde os Menéres
tinham propriedades. Em cada zona tinha um guardador dos sobreiros e es-
ses homens iam de vezes em quando ao Romeu. O meu pai, quando chegava
a casa, dizia para a empregada: “olha, está ai o corticeiro para almoçar”
(chamavam-lhe os corticeiros). Algumas vezes iam lá receber, outras vezes
iam levar as contas. O meu pai também corria o concelho todo, era ali um rei
pequeno, ele é que mandava em tudo e em todos…
…A mãe da minha irmã era de uma gente tão completa e tão boa que a
minha mãe dizia que “ tudo o que vinha da mão dela parecia de uma senho-
ra”. Ainda lá tenho numa caixa, nas Areias, uns pompons vermelhos, com um
colchete na ponta, que serviam para embelezar a cama, quando ela estava
feita. Para a minha tia Quitéria, isso era tudo chinês…
[A vida diária no Romeu]: …A minha mãe tratava da cozinha, gerindo 7 ou
8 criadas; a minha mãe era a governanta da casa: passava tudo pela mão dela;
era quem punha e dispunha e decidia tudo. Por exemplo, quando iam os ho-
mens tratar das vinhas, vindos do Douro, era a minha mãe que lhes calculava
aquilo que eles precisavam de comer, era ela quem, todos os dias, dava à em-
pregada que vinha com eles, aquilo que eles haviam de comer no dia seguinte…

130
Maria Otilia Pereira Lage

Ela dispunha de tudo quanto era preciso e não se podia queixar porque
ela tinha quantas empregadas eram precisas. Se ela dissesse que precisava
de mais mulheres para trabalhar na cozinha, o José Menéres dava-lhe carta
branca para chamar as que ela quisesse. Até havia sempre 3 ou 4 operárias da
jeira que eram certas quando havia falta de pessoal. Como tínhamos telefone
para todos os lados, a minha mãe telefonava para lá e dizia assim: “Ó Sr.
Francisco Domingos, mande-me a Leonídia, a Beatriz, esta e aquela, preciso
cá delas por serem sempre as mesmas e já estarem habituadas”. A minha mãe
não fazia nada diretamente; as mãos dela andavam muito tratadinhas porque
ela tinha pessoal para tudo. Também tinha uma cabecinha como poucos, lá
isso era verdade…
…Passando ao meu pai… era a mesma coisa. Depois de jantar, ia todas
as noites para o escritório, onde recebia todo o pessoal: iam os da quinta do
Monte Meões que é aquela, cá em baixo, onde está a estrada e onde há dois
pinheiros mansos muito grandes, um em de cada lado, onde estava um caseiro
todo o ano a tomar conta. Tinha lá um telefone, que servia para o meu pai
tratar dos assuntos quando não podia lá ir. Às vezes, metia-se no carro e ia
lá num instante e outras vezes vinha o caseiro ao Romeu. Mas ainda havia
mais duas quintas que ficavam à beira de casa: a da Raposa e a do Olival
das Vinhas. Havia muitas mais, mas ficavam mais longe, algumas já junto de
Macedo; dessas não sei dizer os nomes. Eu não ia muito a Macedo: ficava-
nos fora de mão. A vida fazia-se toda para Mirandela. O meu pai não ia lá
todos os dias, mas pouco menos… Umas vezes ia de carro, outras vezes ia de
comboio. A viagem demorava uns dez ou 15 minutos…
…O meu pai, às vezes, estava no escritório, de repente surgia algo que
era preciso e ele só, ia logo: “eu vou a Mirandela num instante e já venho”.
Pegava no casaco ou em qualquer coisa, ia para a estação e dizia assim, “di-
zei à minha mulher que eu vou a Mirandela e venho já” outras vezes tinha o
motorista à mão e só dizia: “ó fulano, leva-me a Mirandela”
…Nessa altura, a estrada era de terra batida, mas era muito movimentada;
tinha sempre muita gente para cá e para lá. Mirandela sempre foi um meio
bastante desenvolvido: tinha feiras de mais de quantas coisas e o meu pai
tinha lá aquelas relações todas e resolvia as coisas todas num instante...
…Nós utilizávamos diariamente o telefone para Mirandela: a minha mãe,
à noite, pensava em tudo o que era preciso para o dia seguinte. Telefonava
para lá a encomendar tantos kl de carne, tantos kl de peixe, mande-me isto,

131
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

mande-me aquilo… e o Jaime (um dos empregados permanentes, casado com


a Senhorinha, que também trabalhava na casa) ia lá buscar as coisas todas
que metia em saquinhas de pano, pois ainda não havia as de plástico…
…Aquela vida era já muito desenvolvida e muito movimentada. Eu criei-
me naquele ambiente e, talvez por isso, saí assim mexida e habituada a um
nível de vida muito bom…
…Conheci bem o José Menéres e o Manuel Menéres, que era o dono dos
automóveis Ford; diziam que era com esse negócio que ele ganhava o dinhei-
ro. Também diziam que o filho do Manuel seria o seu continuador, mas ele não
percebia nada daquilo…
…O José Menéres era o que trabalhava no Romeu, esse é que era o “ver-
dadeiro lavrador”, o que percebia daquilo… Tinha uma filha chamada Jo-
sefina que se casou com um tal de apelido Manso, que era também dono de
uma quinta. A gente até lhe chamava o Menéres Manso. Ele era um ricaço de
Macedo muito bem parecido. O Meneres pai viu naquele casamento uma boa
oportunidade para a filha. Mas… em Macedo vivia uma viúva de um oficial
que era tio dele. Entretanto, chegou a Macedo um médico que, ao ver aquela
viúva rica, com aquele palacete, enganchou-a e casou com ela. Foi uma ver-
gonha: uma velha carcaça casada com um rapaz novo…. E o Manso, sendo
tio dessa velha, herdaria o que era dela que, entretanto passou para o médico
que se encheu ali e o sobrinho ficou a ver navios e a Josefina ficou sem aquela
riqueza que o pai lhe tinha arranjado, só porque a velha se apaixonou. Está
a perceber? Não?... Eu explico melhor: Em Macedo de Cavaleiros havia uma
senhora que vivia numa casa brasonada e que era mulher de um oficial. Ela
era tia desse Manso. Como ela não tinha filhos, ele e uma irmã dele chamada
Rosinha eram os herdeiros e, por isso, traziam-na nas palminhas. Quando ela
ia ao Romeu, só faltava levarem-na de charola porque era rica. Depois, um
desses médicos novos que vinham para a província, espreitou o furo ao ver
aquela velha rica com aquele casarão e enganchou-a. Ela, ao pé dele, pare-
ciam a avó e o neto. Mas, entusiasmada, fez-lhe tudo o que tinha e deixou os
sobrinhos sem nada. De maneira que lá ficou o Manso sem receber a parte
que lhe caberia por morte da tia…
…Eu não ia muito a Macedo. Mas ia sempre lá quando se começavam a
limpar os sobreirais. Porquê? Eu explico: quando se tirava a cortiça, era pre-
ciso empilhá-la para que os compradores pudessem ir vê-la. Era necessário
transportá-la. Então, o meu pai ia pessoalmente a Macedo e a Mirandela,

132
Maria Otilia Pereira Lage

andava pelas feiras a comprar os cavalos necessários para o transporte da


cortiça. Comprava aí uns vinte ou trinta animais. Depois de todo o trabalho
feito, ia vender os animais que tinha comprado. Vinham homens do Alentejo
para comprar toda aquela cortiça. Lembro-me bem do Sr. Pires (alentejano)
que era o que chefiava estes homens que se hospedavam no Romeu mais ou
menos durante um mês. Havia uma casa grande com muitos quartos onde
cabia muita gente. Vinham na altura de tirar a cortiça. Na primavera come-
çavam-se a despir os sobreiros…
[Percurso escolar e importância do comboio] …Fiz a escola primária no
Romeu, mas estive um ano em Codeçais. Por uma questão política, a professo-
ra do Romeu teve de deixar a casa e ir para outro sítio. Ela estava numa casa
que pertencia aos Menéres e houve ali motivos que eu não entendi, mas o que
é certo é que a escola ficou sem casa para a professora e os alunos passaram
a ter aulas em Vale de Couço (a aldeiazinha do lado de lá do ribeiro). O meu
pai não quis ver-me naquelas confusões e mandou-me para casa da minha
irmã que, na altura, vivia em Codeçais e era lá professora. O filho mais velho
dela, o meu sobrinho José Augusto também era aluno dela…
…Quando fiz o exame da 4ª classe, os meus pais matricularam-me no liceu
de Bragança. Andei lá sete anos. Estava interna num colégio de freiras e ia
ter aulas ao liceu. Só vinha a casa nas férias. O meu pai mandava o motoris-
ta buscar-me. Naquele tempo, andar de carro era um privilégio que poucos
tinham… Uma vez em que o meu pai esteve muito doente com uma infeção,
foi o Sr. Francisco Domingues da quinta de Monte Meões quem me foi buscar.
…Quando acabei o sétimo ano do liceu, como não havia Escola Normal
em Bragança, vim estudar para o Porto. Fiquei hospedada em casa da mãe da
D. C. que veio a casar com o meu sobrinho J A. Nesta casa estavam mais de
quantos estudantes hospedados. Se foi aqui que eu conheci aquele que veio a
ser meu marido? …Eu já o conhecia há muito tempo… até porque ele esteve a
trabalhar, no Porto, com o meu cunhado, o Amador, num armazém de azeites,
emprego arranjado pelos Menéres para o Amador. Quando o meu cunhado
deu o pontapé na fotrica toda, quem esteve sempre ao lado dele foi o meu ma-
rido que era muito bom e disse que não o deixava só numa altura daquelas…
…O valor que tinha o comboio no Romeu era grande: além do transporte
de passageiros, era ele que levava o correio, as revistas, etc.…. O que vi-
nha do Porto tinha muito movimento, o de Bragança tinha pouquinho. E em
Bragança o que é que havia? Havia o liceu e havia a tropa, que era o 31 e o

133
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

10, que eram os quartéis. Se não fosse o 31 e o 10, Bragança não tinha vida
nenhuma…
…A gente do exército, os mais graduados, eram os explicadores dos alunos
que precisavam de apoios extra. Eu ainda tive explicações de Matemática com
um desses homens (eu era mais fraquita a Matemática)…
…A primeira vez que fui a Lisboa, foi quando comprei a minha casa.
Fiquei instalada num hotel na Praça da Figueira e fui comer ao “João do
Grão”. Fui lá por causa da papelada da compra da casa, já que eu estava
inscrita na Caixa Nacional de Pensões e me saiu uma posição. Era preciso
tratar do assunto com rapidez e o meu marido não estava com pressa nenhu-
ma. Também lhe disse que ou se despachava e vinha comigo ou eu tratava do
assunto sozinha… Eu fazia mesmo questão em não perder a oportunidade que
me tinha sido dada…
…A casa do Romeu era do meu pai. Ele não vivia lá…. A casa era em
Vale de Couço e ele vivia em Jerusalém do Romeu. Ele comprou-a porque a
minha mãe fazia questão de ter uma casa na terra dela. Ele tinha a intenção
de lá fazer obras, mas como não a habitava, nunca chegou a fazê-las. Depois,
passados muitos anos, quem vendeu a casa foi o meu irmão. Vendeu-a a um
emigrante…” [Informante nº17]

Julgou-se ainda útil, para completar a panorâmica multi-perspetivada tra-


çada deste conhecido empreendimento no Romeu, selecionar uma terceira e
última história de vida que ilustra outras dimensões da história da Sociedade
Clemente Menéres e se cruza em vários aspetos com as duas anteriores. O seu
protagonista, AFLS, de 88 anos, sobrinho da anterior entrevistada e filho de
transmontanos com trajetórias biográficas ligadas à linha do Tua, é engenheiro
aposentado com uma carreira profissional sempre ligada à construção de vá-
rias barragens e túneis do país.
(…) Quando nasci a minha mãe já tinha quase 40 anos e o parto era con-
siderado de risco. Embora ela vivesse em Codeçais (Carrazeda de Ansiães),
como era muito amiga do Sr. José Menéres e da D. Josefina, estes aconselha-
ram-na a ir para Monte Meões, pois podia precisar de um médico. Codeçais
nem estrada tinha na altura. A minha mãe casou em 1914 e eu era o 3º filho…
Eu não sei bem qual foi a origem da minha mãe, ela parece que ficou órfã com
12 anos, era filha do 1º casamento do meu avô, creio que a minha avó era de
Viseu e tenho quase a certeza que eram da família do Sr. Teixeira de Sousa,

134
Maria Otilia Pereira Lage

que foi o último Primeiro-ministro da Monarquia, no reinado de D. Manuel


II… Mas não sei mais nada… Só sei que o meu avô não queria separar-se da
minha mãe e ela já estava formada; naquela altura, ser professora primária
era um caso muito complicado e ela concorria para ser colocada e nunca o
era. Um dia falou sobre isto com o Sr. Menéres, dizendo-lhe que já há quatro
ou cinco anos que não recebiam resposta nenhuma dos concursos que fazia.
Este deslocou-se a Bragança para saber o que se passava e constatou que
nunca lá tinha chegado nenhum requerimento dela. É que o meu avô, que era
o encarregado do correio no Romeu apanhava-lhe os requerimentos e não os
mandava para Bragança... O Sr. Menéres então entregou um documento em
mão e ela foi logo colocada… e foi para Codeçais… isso irritou o Pai que não
queria separar-se dela. Além disso, Codeçais era uma aldeia mesmo muito
pobre. “Aquilo eram só fragas”, dizia ele. Assim, pai e filha zangaram-se. Ela
ainda era solteira. Mas, aquele que havia de ser seu marido, era de Codeçais
e era revisor da linha do Tua a Bragança. Ele era revisor, ela era a senhora
professora, começaram a namorar e casaram. “O meu avô foi aos arames,
não sei se tinha para ela outros projetos e, pura e simplesmente, cortou re-
lações com a minha mãe. Só fizeram as pazes quando eu nasci. Entretanto,
nasceu o meu irmão, nasceu a minha tia Leonor, nasceu o tio Chico e a minha
irmã… como entretanto fizeram as pazes, o meu avô foi meu padrinho e, por
isso, me chamo também Francisco...
…O meu pai, quando casou, passou a ser chefe de estação em Codeçais.
A mulher era professora na mesma aldeia, viviam na estação e ela ia todos os
dias de burrico para a escola que ficava mais ou menos a 2km. Os dois filhos
mais velhos ainda viveram na estação, mas quando o mais velho dos três fez
a 4ª classe, teve que ir para o liceu. O meu pai montou casa no Porto, onde
vivia com o filho mais velho e a minha mãe vivia com os outros dois filhos
em Codeçais. O meu pai pediu a demissão da estação e tinha um negócio de
azeites no Porto. Só que apanhou a crise de 1929 e a vida começou a correr
muito mal; viviamos apenas do ordenado da minha mãe que já era professora
primária no Porto. O meu pai teve que emigrar. Foi para Angola e, como ti-
nha prática do trabalho nos caminhos-de-ferro, arranjou um belíssimo lugar
nos caminhos-de-ferro de Luanda a Malange. Estava a viver razoavelmente
e já tinha tudo preparado para receber a mulher e os filhos lá em Luanda.
Estavam feitas as malas para embarcar e fomos para o Romeu no fim do ano
letivo, isto em 1935. Eu tinha feita a 1ª classe no Porto, no Carvalhido, com

135
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

a minha mãe como professora e fui para a escola do Romeu; o irmão andava
no 7º ano e a minha irmã estava com a tia Leonor num colégio em Bragança.
Estava tudo pronto para irmos quando a minha mãe adoeceu e nunca mais se
levantou. Isto foi em maio ou junho e ela morreu em Novembro. O meu pai,
quando recebeu a notícia, veio logo no primeiro barco. Passámos a viver os
três juntos, mas o meu pai continuava a querer que fossemos para Luanda,
pois estava lá tudo pronto para isso. Fizemos de novo as malas. Mas punha-se
um problema: o meu irmão mais velho já não podia acompanhar-nos porque
ia entrar na Universidade. O meu pai decidiu que era melhor ficarmos juntos.
Conseguiu arranjar um emprego “muito fraquito” na Junta Nacional dos Vi-
nhos. Não teve ninguém que o ajudasse, nem em Codeçais, nem no Romeu e
passou uns anos muito mal. Foram alguns amigos que emprestaram dinheiro
até que conseguiu arranjar uma transferência para Gaia, para a Junta Nacio-
nal do Vinho e “começou a respirar mais fundo embora tivesse muitas dívidas,
na altura. Omeu irmão já estava no FQN (preparatórias de medicina), dava
explicações e ajudava muito o pai. A minha irmã tratava da casa e eu, o filho
mais novo, ia para o liceu. No Porto, vivemos na Travessa dos Clérigos. De-
pois surgiu a oportunidade de alugar, por um preço muito baixo, uma quinta
em V. N: de Gaia, entre as Devesas e a Calçada das Freiras, mais concreta-
mente no lugar do Marco – Quinta de Valverde. A quinta, além da casa, tinha
lagares, tinha vinhas, estava muito bem apetrechada.O meu pai alugou-a por
três anos e, como sabia muito de agricultura, aquela quinta pagou-lhe as
dívidas. No fim dos três anos, a senhoria, como viu que a quinta era rendosa,
pediu uma exorbitância pela renovação do contrato. Fomos então viver para
o Porto, para a rua da Boavista, mesmo em frente ao depósito de fardamentos,
já eu andava no 5º ano do liceu. Vivemos aí até que acabei o curso, em 1950.
(…) Agora, o que eu gostava de afirmar era o seguinte: o esforço do meu
pai deu como fruto, dos três filhos que teve, 11 netos, 6 meus e 5 do meu irmão;
a minha irmã foi professora primária, casou, não teve descendência e viveu em
Avanca; foi diretora da Casa Museu Egas Moniz durante alguns anos e o meu
cunhado era contabilista no Amoníaco Português, em Estarreja... Nessa altu-
ra, o meu pai já estava muito mais sossegado, já não devia nada a ninguém e
já vivia uma vida relativamente feliz… O meu pai até dizia com muita graça:”
os meus filhos são muito meus amigos… para me ajudarem, escolheram os dois
cursos mais compridos da faculdade, medicina e engenharia…”. (Na altura,
engenharia também tinha 6 anos)… Desses 11 netos, há já 20 bisnetos...

136
Maria Otilia Pereira Lage

(…) Sim, a minha mãe foi presa quando morava em Codeçais, onde namo-
rava com o meu pai, Amador dos Santos, que havia de ser seu marido e que
era um conspirador monárquico, acusado de favorecer a entrada das tropas
de Paiva Couceiro em Bragança. A mãe foi acusada de ensinar doutrina cristã
na Escola, mas ela defendeu-se dizendo que não era na escola, mas sim na
Igreja, para onde ia com as crianças depois do horário letivo. Isto passou-se
entre 1910 e 1914. Estiveram ambos presos em Braga… A minha mãe estava
lá acompanhada pela mãe da Tia Leonor… Esteve lá três meses e foi jul-
gada… Amador dos Santos, como era revisor do caminho-de-ferro, levava as
mensagens que tinham sido entregues no Porto, do Tua para Bragança e, em
Bragança, ia de noite levá-las a Espanha. Ele foi sempre monárquico até à
morte de D. Manuel II… ele não aceitava o D. Duarte Nuno…
[Sobre o episódio de dinamitar a Ponte do Diabo, Lopes dos Santos sabe,
como diz, o que o pai lhe contou] …havia um comboio de tropas que ia sair
do Tua para Bragança para ir combater tropas republicanas. E o meu pai deu
ordens, já que ele era chefe da célula monárquica de Codeçais, para o meu tio
Manuel, que era o irmão mais velho, dinamitar a ponte de caminho-de-ferro
de Abreiro, para o comboio não passar com as tropas. Ainda por cima, o meu
pai era revisor desse comboio. Ao chegar perto da ponte, o meu pai pôs-se na
última carruagem para dar o salto e ficou muito chateado porque a ponte não
foi dinamitada porque o meu tio Manuel era mais velho e tinha juízo…
... A ponte de Abreiro foi construída pouco antes da ponte da Arrábida, nos
anos 50… “Lembro-me bem; eu já era engenheiro e estava na Hidro Elétrica
do Cávado que depois veio a dar a EDP.
A Ponte do Diabo era uma ponte rodoviária que foi levada pela cheia de
1909. Está lá agora uma ponte nova feita pela Junta Autónoma de Estradas
(Eng. Correia de Araújo) …sim, o Eng. Jorge de Sena fez parte da equipa que
fez os pareceres técnicos e a ponte foi construída nos anos 50 do séc. XX.
[Voltando ao Romeu] …Passei lá parte da minha infância; conhecia lá
tudo e toda a gente. Depois da minha mãe morrer e do meu pai já cá estar
no Porto, fui algumas vezes passar um mês, nas férias grandes, com a Tia
Leonor. Eu conhecia melhor o Romeu do que Codeçais. O Romeu tinha uma
qualidade de vida muito superior – tínhamos os automóveis, tínhamos as es-
tradas, tínhamos tudo… Vivíamos em casa do meu avô que usufruía das coisas
da família Menéres... Muito mais tarde, em 1954 ou 55 o Sr. José Menéres já
tinha morrido e quem estava à frente da casa era o irmão, Manuel Menéres

137
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

que tinha feito umas obras sociais tremendas, o melhoramento das aldeias…
[Sobre a vida dos Menéres, nessa altura, no Romeu]: …eles eram uma fa-
mília muito grande e, nas férias, juntavam-se lá muitos elementos da família.
Conheci bastantes e, entre eles, o Manuel Menéres – eu já estava casado e a
trabalhar na OPCA quando surgiu a oportunidade de ir trabalhar para Lis-
boa, para as obras do Metropolitano, quando ele perguntou ao meu patrão se
conhecia algum engenheiro que pudesse ir ao Romeu para orientar as obras
das duas barragens que ele quis fazer no Quadraçal para ter água para regar
as oliveiras… então fui eu para lá... O Manuel Menéres quando me viu ficou
delirante. Levei um encarregado, orientei os trabalhos todos, estive lá durante
uma semana, mas nunca mais lá fui... A construção das barragens foi no ano
de 1955…
…A Casa Menéres tinha muitos trabalhadores e vários feitores. Havia o
Olival das Vinhas, o Moinho do Gato, a Canameira, Monte Meões e outros
sítios… O meu avô era o administrador daquilo tudo... Ele costumava andar
no Ford, modelo TM505, guiado pelo Cardoso que era do Porto e, depois,
pelo Zé Prado que era transmontano. O Ford modelo A era o dos patrões…
Tinham, pelo menos, duas camionetas que vinham trazer cortiça ao Porto… A
cortiça vinha pela camioneta mas também vinha pelo comboio. O transporte
pelo comboio ficava mais caro porque tinha que fazer transbordo no Tua… Eu
viajava sempre de comboio para o Romeu: saía de S. Bento às 10h. e chegava
ao Romeu por volta das 6h. da tarde.
[Sobre a sua vida profissional] …O primeiro emprego que tive “a sério”
foi na barragem da Caniçada, numa empresa luso-italiana, a ETEL, onde
estive quatro ou cinco anos. Foi nessa altura que casei… Já andava mortinho
por casar, já namorávamos há sete anos e não havia dinheiro… e foi depois
que me nasceu o primeiro filho… Entretanto, recebi um convite para ir para
o Picote para a OPCA, que tinha adjudicado o desvio provisório e não tinha
nenhum engenheiro com experiência de túneis… então, por indicação de uma
pessoa minha amiga, convidaram-me e eu que estava a ganhar quatro contos
e quinhentos, fui ganhar oito…. Estive dois anos e alguns meses no Picote...
Depois fui para Lisboa para o Metropolitano e em 1958 entrei para a EDP.
Ainda não tinha acabado a construção da barragem de Paradela… fui para
a construção da barragem do Alto Rabagão, onde estive desde o primeiro dia
até ao último. Só vim com a família para o Porto, quando o filho mais velho,
o Zé Nuno, teve que ir para o liceu. Nessa altura, montámos casa na Foz e ia

138
Maria Otilia Pereira Lage

para lá durante a semana, mas só me aconteceu isso de Outubro a Junho…


Em Junho, fui transferido para o Porto, onde fiquei sempre. A ICA só acabou
em 1969. Foi Marcelo Caetano quem fez a fusão das cinco maiores empresas
elétricas portuguesas: a Ica, a Douro, o Zêzere, a Termoelétrica, a Tapada de
Outeiro e a Companhia Nacional de Eletricidade, que fazia a distribuição da
energia. Mais tarde, com o 25 de abril, uniram tudo e, a partir de 76, ficou a
EDP, à semelhança da França que era a EDF. Na EDP estive sempre ligado
às barragens e túneis; estava no Departamento de Produção Hidráulica…
…Já a habitar no Porto, para onde tinha vindo em 65, trabalhei no projeto
da barragem da Valeira, onde foi preciso fazer um túnel e construir a ponte
da Ferradosa. O caminho-de-ferro já passava de uma margem para a outra,
perto da Valeira, mas essa ponte estava numa cota tal que ficou inundada. Foi
preciso fazer outra mais alta e aí trabalhou o Correia de Araújo… o Edgar
Cardoso fez a ponte de Mosteirô… Havia uma questão muito antiga, já do
tempo da Venda-Nova entre a ICA e uma povoação porque as pessoas conse-
guiam passar de uma margem para a outra através de uma pedras, mas com
a barragem da Venda-Nova, isso ficou inundado e a ICA pôs lá um barqueiro
permanente que fazia a travessia gratuita, mas a população queria uma pon-
te. A ICA mandou fazer essa ponte… Na altura, eu estava no Alto Rabagão…
Essa ponte foi feita pelo Edgar Cardoso – é a Ponte de Sanfins, que foi fiscali-
zada por mim. É uma ponte relativamente curta, aí com uns cinquenta metros.
Edgar Cardoso ia lá de vezes em quando. Então, ele dizia: “este é o arco mais
abatido do mundo!”. E eu replicava: “não, senhor engenheiro, esta é a viga
mais torta do mundo!... ele zangava-se comigo…”… O Carrapatelo ainda
foi feita pela Douro e Vilarinho das Furnas pela CPE. Também trabalhei no
projeto da barragem do Pocinho. Hoje, sou reformado da EDP.
[Voltando a Codeçais] …ao longo da vida fui lá muitas vezes. O meu pai
morreu lá. Tinha ido para lá num dia de muito calor, contra a minha vontade,
e foi ver uma vinha que tinha muito longe; como tinha problemas pulmonares,
ficou muito aflito, telefonaram-nos e eu, o meu irmão e o meu sogro viajámos
de noite para Codeçais, mas quando chegámos, ele tinha acabado de morrer.
Depois passei a ir lá tratar das coisas. Agora já há muitos anos que não vou
lá… não vou lá desde 95… já não conheço lá ninguém… só lá tenho um pri-
mo… o Luciano,[ex-ferroviário da linha do Tua]… Eu já era engenheiro e esse
meu primo tinha acabado de fazer a 4ª classe quando a Câmara de Carrazeda
quis fazer um projeto de uma estrada para Codeçais, projeto esse que me foi

139
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

encomendado e eu então fui para lá com um colega e o Luciano foi o meu


porta-mira… tinha os seus 14 anos… A estrada ia do alto da Sentrilha até
Codeçais e foi projetada por mim… Estava quase a acabar esta obra quando
fui chamado para a ETEL.
…Fui muitas vezes à feira a Mirandela, mas nunca à de Carrazeda… por-
que enquanto para ir a Carrazeda eram 2h. a pé, para Mirandela era meia
hora de comboio e era barato...
…Sim tenho muitas fotografias do nosso casamento, realizado na Capeli-
nha das Aparições, em Fátima… Encontrei pela primeira vez a minha mulher,
a minha Candidinha, na Faculdade, numa aula de Desenho Rigoroso. Ela
chamava-se Maria Cândida Gomes Borregana. Quando o livro de ponto pas-
sava por mim, eu via aquele nome, Borregana, e não sei porquê associava-o a
uma rapariga que lá estava também e que era muito feia, até lhe chamávamos
o grão-de-bico… e, um dia, a Maria Cândida estava à minha frente e eu vi-a
a assinar M. Cândida G. Borregana… olhei para ela e disse: ai, afinal esta é
bonita… e, olhe, fiquei logo arrumado… passado um ano, pedi-lhe namoro,
ela aceitou e depois esperamos sete anos para casar. Ela licenciou-se em Ma-
temáticas em quatro anos. Ela acabou em 48 e eu ainda tive mais dois anos...
[Voltando ao Romeu] …o comboio ia pelo Quadraçal. Todos os dias, o
pessoal da casa Meneres (não havia bombeiros) ia apagar o fogo que o com-
boio fazia com as fagulhas que deitava. Eram fogos fáceis de apagar porque
durante o inverno era tudo muito bem limpo. Algumas das trincheiras do Qua-
draçal eram enormes e altíssimas.
[rememora o itinerário completo do Comboio do Tua e enumera com rapi-
dez o nome das estações todas da linha do Tua desde Foz Tua até Macedo: Tua,
Tralhariz, Castanheiro, Amieiro, S. Lourenço, Brunheda, Codeçais, Abreiro,
Ribeirinha, Vilarinho, Cachão, Frechas, Latadas, Mirandela, Carvalhais, Vi-
lar de Ledra, Avantos, Romeu, Cortiços, Grijó, Macedo, Bragança]
…As relações do avô Lopes Seixas com os Menéres eram de patrão para
empregado... O meu avô gostava muito de oliveiras e o Menéres (o fundador)
só queria cortiça; mas o meu avô ia plantando oliveiras. Por causa disso, dis-
cutiu com o meu avô, zangaram-se e o Menéres despediu-o. Mas foi buscá-lo
às Areias dali a três meses, pediu-lhe que voltasse e que plantasse as oliveiras
que quisesse... O meu avô tinha sido capataz na construção da linha do Tua e
foi lá que os Menéres o foram buscar – era o que eu ouvia dizer mais tarde...
…Os Menéres também tinham vinho, além da cortiça. Aliás, o endereço

140
Maria Otilia Pereira Lage

telegráfico deles era LIÈGE – VIN. Os principais armazéns e lagares eram


em Monte Meões, a dois km abaixo do Romeu, no caminho de Mirandela…
[Informante nº 43]
Um segundo grande empreendimento agro-industrial que se desenvolveu
na região, igualmente servido pela linha do Tua, foi o estabelecimento fabril
da emblemática Companhia União Fabril (CUF) que tendo começado com o
negócio de azeites veio mais tarde a alargar-se aos hospitais, tendo chegado
nos anos 1950 a ser um império nacional. A sua fábrica em Mirandela, em
atividade desde os anos 1920 até 1987, tornou-se na região um marco de in-
dustrialização e desenvolvimento económico, social e cultural ao longo do séc
XX, dando emprego a muita mão-de-obra local que assim pôde evitar a emi-
gração, fenómeno marcante da história recente da população transmontana.
É-nos apresentada com os pormenores da sua evolução e dinâmica quotidiana
imbrincados na história local, quer numa impressiva e diacrónica descrição de
um ex-jornalista da imprensa regional, quer através de um relato técnico de-
talhado e vivido muito de perto por antigo operário especializado da empresa,
que respetivamente se transcrevem:

(…) Comecei a ir para a escola quando rebentou a 2ª Guerra. Andei lá de


39 a 43 e a minha vida passava-se entre o caminho-de-ferro e a CUF…
A CUF era um espetáculo para uma criança: tinha o guindaste, tinha a
descarga… vivia-se a CUF… Havia 2 núcleos fortes de operários em Miran-
dela: o caminho-de-ferro e a CUF… eu suponho que o D. Manuel de Mello
[antigo grande empresário português neto de Alfredo da Silva cuja herança
industrial consolidou] seria oriundo de uma família que vendeu tudo e saiu
daqui. Era tudo deles desde a estação do caminho-de-ferro até à Serra de
Bornes, suponho, não tenho a certeza….
…então apareceu a CUF pela mão de Alfredo da Silva [industrial portu-
guês que viveu entre 1871-1942 e foi dos mais empreendedores na sua época
e fundador de empresas emblemáticas como a Tabaqueira, a CUF, etc.], em
26, e era a infra-estrutura mais importante da região, era única… Era uma
unidade de 1º plano e criou uma rede de comissários. Estes homens, nem
todos foram honestos (tal como acontece hoje…) e parte das compras que
eram feitas através deles, em vez de serem rentáveis para a CUF, algumas não
eram porque a azeitona era paga a diferentes preços. Eu sei de um comissário
que comprava a azeitona na aldeia dos Avantos e vendia-a como se ela fosse

141
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

de Mascarenhas ou de Mirandela e depois o rendimento não era o mesmo…


Então, a CUF criou cá um pequeno laboratório e já comprava azeitona com
amostra laboratorial; depois a CUF fornecia o subproduto para toda a re-
gião. Aqui, o aquecimento fez-se durante anos e anos a partir do subproduto
da CUF. O bagaço queimado era vendido para as lareiras e dava um borralho
de primeiro plano. A CUF tornou-se, na época, uma infra-estrutura de apoio
social a nível de aquecimento. Isto, nos anos 40 e 50, tanto na altura da guer-
ra como no pós-guerra… Aqui, a fome foi muito sentida, sobretudo nas classes
mais humildes. Sendo uma zona agrícola muito boa, foi criada a inspeção
dos abastecimentos por causa do mercado negro e havia senhas para tudo. O
agricultor não podia vender. Tinha que entregar.
Daqui, alguns comboios iam para a Alemanha, outros iam para os Aliados
e vinham os junkers da Alijó, buscar o minério e o azeite. As padarias vendiam
o pão, chamado o charrão, que era já só farelo…
Voltando à CUF: conheci o Encarregado dos Escritórios, o Sr. Costa dos
Avidagos, o qual tinha o lugar mais bem remunerado de Mirandela, no tempo
do diretor Monteiro. Depois sucedeu-lhe o Eng. Meneses. A seguir a este veio
o Carvalho, o regente agrícola; depois, o Resende que abriu uma ourivesaria
e foi para África.
O escritório da CUF trazia para si toda a rede de camionagem. Todos os
empregados da camionagem viviam agregados à CUF, a qual tinha a Compa-
nhia de Seguros Império e os seguros eram todos feitos nesta Companhia; Isto
depois era um monopólio. Em Mirandela havia 3 ou 4 empresas de camiona-
gem. Também havia a de Chaves e havia a carreira para o Porto, mas com
pouca frequência porque o comboio absorvia tudo. Os seguros e a camiona-
gem viviam 80 / % à volta da CUF. A CUF comandava a atividade comercial
da vila e até da região. Em 58, eu já era diretor da Bola e o Dr. Manuel Pires,
médico da CUF, comprou um terreno à Condessa de Ares, por 100 contos, mas,
fino, quando veio cá o D. Manuel de Melo, mandou dar 100 contos à Bola:
Clube de Futebol de Mirandela. E a sede da Bola… sim do futebol…acabou
de se fazer com o dinheiro da CUF e do Dr. Trigo de Negreiros. Não tinha 10
tostões e ficou a 1ª sede do país… Está lá, no Parque do Império. Em 39, foi fei-
to aquele muro de suporte, em cimento. Três camiões basculantes que vieram
do Barreiro aterraram toda a parte do Auditório quando fizeram os pavilhões
que limparam tudo o que havia na CUF: Acabou de se aterrar tudo em 1950.
Estou a falar do sítio onde existiam as bombas da CUF. A Câmara é que ficou

142
Maria Otilia Pereira Lage

com as instalações. Suponho que o D. Manuel de Melo era da família Cid Melo
e Castro que era uma família muito rica. Cid Melo e Castro ainda chegou a
ser ministro de Salazar. Não era brasonado e, no tempo do rei, quem não era
brasonado, ia de vela… Os terrenos onde foi construída a CUF, seriam da fa-
mília Cid Melo e Castro. O D. Manuel de Melo passou a pertencer à família ao
casar-se com a filha de Melo e Castro. [Informante nº 21]
A história de vida que se segue, ilustrativa da situação dos operários em
Mirandela, vila e hoje única cidade do vale do Tua, em grande medida devido
à influencia histórica da linha do Tua, traça um quadro muito expressivo da ati-
vidade fabril intensa e pouco frequente na região, com suas práticas e saberes
técnicos especializados e leigos. Evidencia ainda a inserção e impactos posi-
tivos no desenvolvimento local e regional desta unidade empresarial da CUF,
que descreve em articulação com outros estabelecimentos da mesma empresa
espalhados pelo país, demonstrando assim conhecer bem a história da mesma.
“…O meu pai trabalhou mais de 40 anos na Cerâmica de Vila Nova, onde
era amassador de barro, o qual, na altura, era amassado a cutelo. Esta fábri-
ca foi construída por Armindo Carvalho, Alfredo Neto, Aníbal Rocha e David
Pires, em 1930. Trabalhava com barro vermelho que vinha de um lugar perto
da cidade de Mirandela, onde está agora construído um bairro. Fabricava
sobretudo telha e tijolo. Chegou, no entanto, a fazer imagens de santos. O pro-
cesso era todo manual. Laborou à volta de 50 anos, pois fechou nos anos 80.
A minha mãe era doméstica, tomava conta dos filhos que chegaram a ser
11, mas cinco deles morreram com o garrotilho (o mesmo que difteria), doen-
ça da época.
Na idade normal, frequentei a escola de Carvalhais de onde saí com 11
anos. O meu sonho era ser serralheiro mas, como” não tinha altura bastante”,
ninguém me dava esse trabalho. Assim, trabalhei, durante um ano, numa sa-
pataria. Entretanto, saí e, no mesmo dia, arranjei emprego numa serralharia,
onde estive até ir para a tropa, em 1963. Na tropa, tive um acidente quando
tive que transportar um colega às costas: parti um joelho. Fui parar ao Hospi-
tal da Estrela, onde estive internado durante 88 dias, até que fui considerado
incapaz para o serviço militar. Os meus superiores queriam que eu declarasse
que parti o joelho devido a uma brincadeira, mas eu recusei-me a fazê-lo e
exigi que ficasse declarado que tive o acidente ao ser obrigado a transportar
um colega às costas. Nessa altura, já era casado e já tinha 2 filhos. Vim para
casa. Passado algum tempo fui chamado para a CUF, isto ainda em 1963.

143
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Na serralharia ganhava 30$00 / dia; na CUF, passei a ganhar 47$00 / dia e


recebia de 15 em 15 dias. Este ordenado representou uma grande melhoria na
minha vida. Exercia as funções de chefe de turno e de serralheiro, na altura
em que a extração foi remodelada. Decorridos dois meses de trabalho, passei
a ganhar 64$00 / dia. Ao fim de mais ou menos um ano, passaram-me para os
quadros efetivos da empresa.
Entretanto, assistia-se ao grande surto de emigração para a França e Ale-
manha e estive tentado a emigrar para a Alemanha para ganhar mais dinhei-
ro. Mas um diretor comercial aconselhou-me a ficar na empresa, dizendo-me
que tinha futuro profissional garantido: o Sr. Mário Sá ia reformar-se e eu
passaria para o seu lugar.
E assim aconteceu. Fui nomeado encarregado geral da conservação e do
fabrico, deram-me casa, água e luz, no bairro da CUF, mesmo à beira da
estrada, isto por volta de 1970. Nesta altura, quem chefiava a CUF de Mi-
randela era o Eng. Meneses Barbosa de Ribalonga, aldeia de Carrazeda de
Ansiães. A esposa era de Belver, outra aldeia do mesmo concelho… a D. Fer-
nanda… Ele era o diretor da zona centro que incluía também as fábricas de
Alferrarede, Barreiro, Soure, Lavradio e Canas de Senhorim. O projeto da
fábrica de Mirandela era o mesmo destas fábricas, onde também estive. Em
Alferrarede, até estiva a viver aí uns 6 ou 7 meses. Em todas elas eu trabalha-
va na manutenção. Mas, a primeira fábrica da CUF nasceu em Abrantes, para
extração de óleo, pela mão do Sr. Alfredo da Silva.
…Em 1970, a fábrica já não era como a primitiva, montada por Alfredo
da Silva. A extração de óleos foi remodelada em 1963. O funcionamento da
fábrica, propriamente dito era o mesmo, mas o subproduto, o bagaço, já dava
óleo alimentar, enquanto anteriormente só era útil para sabão. O produto
usado para a lavagem do bagaço era o sulfureto, o que não era bom para
a alimentação. Havia 8 extratores fixos; a capacidade de cada um deles se-
ria de 4 toneladas; eram todos forrados a tijolo. A partir de 1963, o tijolo
foi todo retirado, foi posta uma boca de carga própria e a boca de descar-
ga era também uma boca própria. Enquanto antes, o subproduto, depois de
lavado, era descarregado à pá, agora passou a ser descarregado a vapor.
Passou-se do sulfureto de carbono para a hexana, benzina, gasolina dos
aviões.
…A separação do óleo fazia-se na destilaria. Havia 2 colunas para a 1ª
fase e a segunda fase. Aquilo funcionava por calor e água – vapor. Chegava

144
Maria Otilia Pereira Lage

ao destilador, a hexana vaporizava facilmente e o óleo seguia para os depó-


sitos da refinaria, no Barreiro. Os extratores tinham uma carga de 6.000KG
cada um e em 2 / 3 segundos, descarregava-se o produto do extrator…
…Os adubos só se faziam no Barreiro. Cá havia um posto de distribuição
que era apoiado por um ramal ferroviário com um guindaste que suportava
2.500KG de carga. Este ramal ligava à linha do Tua pela estação de Miran-
dela (o sítio era onde está agora a estação de camionagem). O adubo vinha
e ia ensacado. Nesse ramal também existia uma nora e, parte da estrutura
ainda lá está, junto ao Hospital. A nora era para elevar também o subproduto
do bagaço que vinha em vagões. Os adubos começaram quando a fábrica foi
montada (1926). Acabou em 94. Quando a fábrica foi montada, logo no edifí-
cio do lagar, lia-se: “CUF – fabrica os melhores adubos”.
…Aqui havia o lagar onde se fazia azeite, mas vinha bagaço de todo o lado. Os
grandes vendedores existiam por todo o Nordeste, Freixo de Numão, Moncorvo
e, até, Castelo Branco. Parte desse produto era transportado por camionetas
que vinham de propósito do Barreiro. Mais tarde eram” os comissários” que o
angariavam.
…O azeite era feito aqui no lagar que tinha 26 prensas que trabalhavam
em contínuo. O trabalho com as 26 prensas já não é do meu tempo…
…Várias razões levavam as pessoas a fazer o azeite na CUF. Em primeiro
lugar, a empresa pagava logo; em segundo, a CUF comprava a azeitona aos
comissários e, depois, fazia o azeite; o bagaço, comprava-o também aos co-
missários e fazia o óleo…
…O azeite era mandado para o Barreiro em bidões de 200 litros, através
do caminho-de-ferro. O guindaste era para carregar os bidões.
…Quando eu trabalhava na CUF, em 1963, éramos 40 efetivos e trabalha-
vam mais 40, sazonais, todo o ano (sazonais, neste contexto, significa que não
eram efetivos do quadro, mas governavam-se lá todo o ano. Nesta altura, o
gestor era o Eng. Meneses. Como a fábrica estava modernizada, funcionava
todo o ano e estava equipada para fazer de tudo. Até chegou a fazer farinha
com o excedente da batata…
…A extração funcionava 24horas / dia todo o ano com o bagaço da azei-
tona, com a grainha da uva, que também dava cerca de 12 / % de óleo para
a alimentação., com a copra e o coquenote (vinham de África milhares e mi-
lhares de toneladas), com o gérmen de milho e com a azeitona. Nós recebía-
mos 5.000 toneladas de grainha de uva, que dava trabalho para 2 meses: era

145
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

preciso secá-la, peneirá-la para lhe tirar a polpa e o cango e, por fim, moê-la
para depois ir para a extração para ser lavada.
…Durante um ano… 6 meses eram para trabalhar o bagaço da azeitona
…; 3 meses para o coquenote e a copra… era meio – meio…; 2 meses eram
para a grainha da uva e o resto, um mês, para reparações.
…Quando foi construída, a fábrica tinha 11.000m2 de área coberta e tinha
uma área total de 38.000m2…
…Aquilo que me dava mais dores de cabeça eram as avarias: às vezes
punha-me a pé às 3 e 4 da manhã para fazer reparações. Era também o sen-
tido da responsabilidade. Nós, depois, já tínhamos muitos equipamentos. Por
exemplo, para trabalhar a copra e o coquenote, aquilo tinha que ser moído
com um moinho de martelos e o granulado tinha que sair mais ou menos
certo; aquilo depois ia a uns brutos moinhos, com 5 rolos, de 1.000 KG cada
rolo, uns em cima dos outros e o produto depois saía em flancos que era para
ir à extração para não empapar… Trabalhei em Alferrarede com um lavador,
mas era já… tapete: entrava o produto num lado e estava sempre o chuveiro
a cair em cima…
…A partir de 1970, eu era encarregado da conservação e do fabrico. Re-
portava ao Eng. Meneses. Ele tinha abaixo dele o Marques Dias que tinha vin-
do do Barreiro, com o curso da Escola Industrial; era boa pessoa e também
vivia no Bairro como eu.
…Na altura do 25 de Abril, o Eng. Meneses convocou todo o pessoal da
fábrica para comunicar que, a partir dali, eu era o Encarregado, tendo pedido
a colaboração de todos….
…Nessa altura, todo o pessoal já sabia ler e escrever…
…Nessa altura, o pai do Eng. Normando era Diretor Comercial. Quando
faleceu, Marques Dias ocupou o cargo dele. Entretanto, este também saiu
para montar a sua própria empresa. Queria a toda a força levar-me com ele
para S. Miguel de Acha que distava 25km de Penamacor e 25Km de Castelo
Branco. Mas eu não quis ir porque já tinha os quatro filhos a estudar na Es-
cola Secundária, aqui mesmo à beira de casa…
…Sobre a Central Eléctrica – quando a fábrica começou, os motores eram
poucos e a maior parte eram a vapor. Tinham o nome de burrinhos. Eram
motores de pistão. A base principal que fazia movimentar toda a fábrica era
constituída pelas caldeiras – duas – que trabalhavam com a pressão de 12Kg /
cm2; tinham 8m de comprimento por 1,5m de altura, 100 tubos cheios de água

146
Maria Otilia Pereira Lage

para aquecer. Duas caldeiras que trabalhavam todo o dia faziam trabalhar
toda a fábrica: a extração, os secadores em caso de necessidade, o lagar e a
central. Na altura, a central funcionava a vapor. A partir de 63 já era melhor
ter uma central de eletricidade. Tinha um transformador e recebia a eletri-
cidade da rede. Nos anos 60, a CUF tinha completa autonomia para tudo.
Tinha a melhor oficina de Mirandela. Éramos completamente autónomos. Já
tínhamos um torno que torneava um veio com 30 metros, se fosse preciso. A
caldeira trabalhava muito tempo a lenha que era transportada pelo caminho-
de-ferro e era rachada ali: todos os dias havia mais de 10 homens a rachar
lenha; o meu pai ainda trabalhou neste serviço. A lenha vinha de Roças e de
outros sítios onde houvesse linha de caminho-de-ferro para poder transportar
os troncos. Depois passou a trabalhar com o subproduto do bagaço. Dava
para alimentar as duas caldeiras e ainda se vendiam milhares de toneladas
para as cerâmicas. Também se consumia muita casca de amêndoa…
…A CUF era das empresas portuguesas que tinha melhores condições
para os trabalhadores, mesmo aqui em Mirandela. Tínhamos o Hospital da
CUF que era só para os trabalhadores da empresa e tínhamos também uma
boa Caixa de Previdência. Os nossos filhos eram subsidiados nos estudos e
recebiam sempre roupa e brinquedos pelo Natal…
…A CUF fechou em 1987 e eu ainda estive lá sozinho, a tomar conta da-
quilo, mais sete anos. Reformei-me aos 57 anos de idade. Quando saí da em-
presa, fui indemnizado…
…O volume de negócios da empresa era quase todo escoado pela CP. Mais
tarde, em 63, 70, era tudo transportado por camionetas para Mirandela. Mais
tarde ainda, mais ou menos nos anos 70, ainda montamos um senfim de carga,
no Tua, para carregar as camionetas. O senfim era um parafuso que empurra-
va as coisas e funcionava como elevador…
…Quem podia habitar o Bairro da CUF: o serralheiro, o eletricista, o
encarregado e o pessoal do escritório. As casas eram muito boas e já tinham
aquecimento. Situavam-se perto da atual Escola Secundária. Os armazéns do
subproduto estavam no espaço em que funciona agora o Instituto Piaget.
…Quanto a poluição originada pela fábrica, devo dizer que ela era míni-
ma porque todo o subproduto e a carga eram manuais, isto no tempo em que
a fábrica foi construída. A partir de 63, quando começou o vapor, então já
se formava uma nuvem. Mas também é preciso lembrar que em 63 não havia
uma única casa na rua D. Afonso III nem no Bairro do Fomento; aquilo eram

147
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

tudo terrenos de cultivo. Quem deu cabo daquilo tudo foi quem quis ali os
bairros. Ainda se fez uma câmara de descarga ao longo de 30 metros com
umas janelas de abrir e fechar, o que eliminou bastante a poluição.
Tínhamos 2 bombas no rio que estavam 24h. a puxar água para 2 tanques
que levavam 300mil litros cada um, mas mesmo assim tinha que haver recu-
peração de água, através de bombas de recuperação, uns tanques. Também
havia recuperação de hexano através de um depósito, uma cisterna que estava
a um metro de profundidade. Apesar dos cuidados existentes, deve ter havido
fuga porque uma vez aconteceu um acidente junto da casa do ferroviário, cujo
filho morreu porque, ao brincar, “chispou” com um pau nalguma pedra, e
houve uma descarga que incendiou o local.
…Apesar de tudo, a CUF foi de extrema importância para a região. E foi
essencial na história de Mirandela: garantiu postos de trabalho, deu mão-
de-obra durante 70 anos e consumia os produtos da região; uns vendiam e
outros compravam…
…Quando o Sr. Alfredo da Silva montou o lagar, os magnates de Mirandela
não receberam bem a ideia. Um deles foi o Dr. Manuel Maria Pires que era o
médico avençado da CUF. Mas havia outro: o Dr. Aires Lima, o Conde de Fei-
jó, o Capitão Elídio Esteves, o Zé Lima, O Hermenegildo, o Dr. Amândio… Al-
guns deles só trabalhavam a própria azeitona, pois tinham os seus lagares....
…Recentemente, logo a seguir a Frechas há uma unidade de óleo alimen-
tar. Quem a construiu foi Aníbal Pires, em sociedade com alguém. No entanto,
o negócio não correu bem. O atual dono da empresa vive em Lisboa…
…Pergunta-me a razão pela qual o Sr. Alfredo da Silva veio construir esta
empresa em Mirandela. Repare que ele só construía onde houvesse linha de
caminho-de-ferro e matéria-prima. Ele próprio, para se deslocar, só utilizava
o comboio. Quando lhe perguntavam para onde ia, respondia invariavelmen-
te: “vou para Calcanhares do Mundo”…
[E prossegue acrescentando outras curiosidades] …Alfredo da Silva tinha
em todas as fábricas um boi que trabalhava como um funcionário: andava
permanentemente para trás e para a frente, puxando um cilindro de porpia-
nho que calcava o subproduto para que não fermentasse. Assim, em todas as
fábricas havia a casa do boi…
…A fábrica tinha óptimas instalações. Estava equipada com todo o mate-
rial necessário para fazer face a um incêndio...
…Na caldeira havia uma buzina que funcionava a vapor: chamavam-lhe a

148
Maria Otilia Pereira Lage

buzina da CUF e ouvia-se a 20km de distância. Regulava as horas de entrada


e de saída do pessoal…
…Dentro da fábrica, o subproduto era transportado em vagonetas ma-
nuais, numa linha que existia ao longo de toda a fábrica. Mais tarde vieram
os dumpers e as máquinas carregadeiras…
…Também tínhamos uns secadores verticais para secar o subproduto. Este
percorria vários andares até que caía seco. Funcionava a lenha ou a vapor. O
transporte do subproduto para a extracção era feito por uma conduta subter-
rânea de 100metros de comprimento por metro e meio de largura e 2 metros
de altura. Na extracção, o carregamento do extractor fazia-se através de um
tapete que transportava o bagaço para o exterior, o qual tinha um tegão que
funcionava em cima de carris.
[sobre as datas de registo e de construção da casa da antiga gerência da
CUF, concretiza:] …é de 1926 e a data do registo da 1ª fábrica, de 1929…
Foi tudo construído ao mesmo tempo. A explicação é simples: os lagares pre-
cisavam de alvará para serem construídos. Esse alvará era expedido pela cir-
cunscrição industrial de Vila Real. A fábrica começava a trabalhar e, depois,
o alvará havia de vir…
[quanto a ter fotografias antigas da fábrica, explica:] …Na CUF de Mi-
randela havia, ao longo do ano, algumas festas comemorativas, sobretudo no
Natal, a festa das crianças. Mas as fotografias que documentavam tudo isso
iam para a revista da CUF no Barreiro. Não havia o hábito de as enviar para
os jornais de Mirandela… [Informante nº 20]

A linha e comboio do Tua no Cachão


(Foto disponibilizada in Blogue “Amigos de Pensar Ansiães”)

149
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Nos anos 1960 surge no Cachão, outra aldeia e estação da linha do Tua,
próxima de Mirandela, o Complexo Agro-Industrial do Cachão (CAICA), o
maior empreendimento agro-industrial surgido de raíz em Trás-os-Montes,
de iniciativa pública liderada pelo engenheiro Camilo de Mendonça. Da sua
história, breve mas de impacto desenvolvimentista na região, principais redes
políticas, sociais e pessoais de funcionamento e de destacados protagonistas
individuais, nos dá conta, num retrato pormenorizado, o seguinte excerto de
entrevista do jornalista octogenário da imprensa regional de Mirandela, cuja
narrativa oral, crítica mas empenhada nos acontecimentos narrados, é repleta
de informação, factos e dados concretos.

“…Conheci a esposa dele [Camilo de Mendonça], a D. Anita que pertencia


aos Barrosos de Travanca e que morreu há 4 ou 5 anos. Quando Camilo de
Mendonça se formou, foi trabalhar como secretário do tio que era o Joaquim
Trigo de Negreiros, tio por afinidade. Depois é que engrenou como deputa-
do. O Camilo andou muito à sombra do tio. Quando apareceu cá em cima,
em 1958 / 60, foi por empurrão do tio. Ele era muito trabalhador e trazia na
bagagem criar uma grande unidade. Nos anos do Cachão, ele mal dormia
em casa. Eu nem sei como é que ele fez os filhos… Dormia quase sempre no
carro. Foi um louco de trabalho. Ele aparece aqui já depois de ser diretor da
televisão. Vem para cá e cria a Federação dos Grémios da Lavoura. Havia
grémios da lavoura em todos os concelhos. Nós tínhamos 24, mais 8 gré-
mios de vinicultores, tutelados pelos meus serviços. Já havia a Corporação
da Lavoura, na vigência do ministro da Economia que era da intimidade dele.
Nesta mesma altura, o Mota Campos foi o homem que idealizou criar centros
rurais, tal como Manuel Menéres com as aldeias melhoradas. Eles pensaram
criar núcleos urbanos e neles cabia um complexo. Ele estudou a localização
do Cachão. Não foi por acaso que o colocou num cruzamento que era um
entreposto comercial antigo, com o caminho-de-ferro, com Vila Flor… Nesses
núcleos cabia um complexo. Ele queria criar os serviços administrativos do
Complexo em Mirandela, mas não o consumou. Depois, criar nas Latadas, até
ao Cachão, fábricas, montagem de tratores, fábricas de atrelados, enfim, um
centro oficinal do fabrico destas coisas.
O Cachão nasceu com muito dinheiro, muito dele vindo da Junta de Colo-
nização Interna. A ideia de Camilo de Mendonça era a de colocar no Cachão
todos os naturais e todos aqueles que quisessem trabalhar lá, fossem bons ou

150
Maria Otilia Pereira Lage

não. Já tinha mil, duzentos e tal trabalhadores quando era um complexo que
podia viver com 200 ou 300… Foi um dos erros do Camilo. É que para ele
não havia” apartheids”… Ele queria fazer a sede administrativa do Cachão
em Mirandela. A 1º reunião que fez foi na sede do Sport Clube e fê-la com o
objetivo de criar um lagar tipo cooperativo para o azeite. Ora, aqui, os impor-
tantes e os que tinham capital tinham todos lagar… A reunião foi um fracasso
e o Camilo foi escorraçado. Isto passou-se ainda quando a CUF estava em
plena laboração.
Também houve muitas atividades de emparcelamento promovidas pelo Ca-
chão. Entretanto, o povo começou a dificultar a venda de terrenos. O Cachão
não se sustentava porque tudo funcionava com muitos funcionários. Quando
aconteceu o 25 de abril, o projeto do Cachão já tinha 14 anos, mas o Estado
estava sempre a injetar dinheiro para lá. O Camilo era íntimo do 1º Ministro…
Marcelo Caetano veio a Mirandela em 68 / 69. Foi uma grande e verda-
deira explosão popular. Em 68 tinha vindo o ministro Veiga Simão. Foi nessa
altura que Mirandela teve direito ao liceu. Mirandela, o que tem, vem do
Camilo, do Trigo de Negreiros e, agora, um bocadinho do Vara… O Dr. Trigo
de Negreiros, depois de deixar o lugar de ministro, foi presidente do Supremo
Administrativo e continuou a apoiar o Cachão. Aliás, esta empresa funcionou
enquanto houve dinheiro. Pós 25 de Abril, foi para lá um capitão que perce-
bia tanto daquilo como eu percebo de têxteis. Só para lá foram analfabetos!...
Também lá esteve o Gomes de Castro (este casou com uma prima do Durão
Barroso) que, com o apoio do Pires Veloso ainda fez alguma coisa. Com o 25
de abril, a CUF também fechou. O Cachão teve uma grande diferença em re-
lação à CUF: é que recebia os produtos dos agricultores e pagava tarde, mal
e a más horas. No entanto, no tempo do Eng. Camilo, este não ganhava nada
com o Cachão. O que lhe valia é que, como administrador da Sogás, recebia
30 contos e tinha direito a carro. Mas, o que ele dissesse era uma escritura. O
comerciante por largo não queria o Cachão; agora o agricultor minimamente
inteligente só podia querer o Cachão. Havia uma proximidade funcional entre
os serviços do estado e os serviços de agricultura, os quais estavam larga-
mente ao serviço dos projetos do Cachão. Esta empresa era um alfobre de So-
cialistas que, na realidade não o eram, andavam a enganar Cristo… Quando
Gomes de Castro veio para o Cachão, eu fiz-lhe a radiografia do comando do
pessoal e alertei-o para o facto de ele ter caído num mundo que não conhe-
cia e que eu conhecia demasiado bem. Disse-lhe, entre muitas outras coisas,

151
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

o seguinte: na 1ª reunião vão levantar-lhe os problemas, na segunda, vão


contrariá-lo e, na terceira, vão insultá-lo. De facto, no fim desta, foi parar ao
hospital. Depois, telefonou-me e quis conversar comigo. Claro que deixou o
Cachão e, atrás dele muitos outros: o Araújo, o Afonso, o Francisco Manuel,
o Amândio, o Zé Lopes de Bragança, o veterinário… etc…. Isto era o Cachão
pós 25 de abril. As pessoas começaram a sair e a vir para o MAP [Ministério
da Agricultura] que recebeu o pessoal do fomento agrário (não havia dinheiro
para lhes pagar…).
Mas, ao longo desses 14 ou 15 anos, o Cachão foi útil sobretudo porque se
desenvolveu um bocado a parte frutícola: a maçã, na Carrazeda; o morango,
na Vilariça e a cereja em Alfândega. Houve um enquadramento regional das
várias potencialidades, que não havia até ali. A parte dos laticínios também
funcionou: em relação ao fabrico do queijo, houve pessoal que se foi especia-
lizar para Alcaíns que era um posto experimental de queijo da serra, que era
do MAP. Houve experiências piloto em Carrazeda e noutros locais, como em
Macedo, o leite pasteurizado e o empacotamento, etc.… O grande problema
do Cachão foi o crescer demais em pessoal.
Acerca dos “concursos” para fornecimento no Cachão, que de concursos
não tinham nada, mas funcionavam na base de amizades pessoais: o gestor
comercial era o Manuel Amílcar Morais que entrou para os serviços comer-
ciais porque a esposa era de Codeçais e ele esteve muitos anos em Vilarinho
e conheciam o cunhado do Eng. Camilo. Este Manuel Amílcar Morais tinha
sido fator do caminho-de-ferro. Lá, era chefe dos serviços comerciais e era
fino demais para arrecadar algum, segundo diziam. Depois trouxe o Morais,
que estava no Grémio de Vila Flor, outro sabido. E quem fazia os concursos e
comprava eram estes dois indivíduos. Depois quem fez lá fortuna foi o Basílio
Pires, analfabeto, meio pastor, veio de Rebordaínhos pela mão do Hermínio
Galhardo que era o agrónomo, vice-presidente com o Camilo e o tesoureiro
era o Faria. Eram três agrónomos que se davam como três irmãos… Quem
mandava era o Camilo; quem assinava as letras eram eles os três. E, depois,
às vezes para pagar as letras no Borges e Irmão e no Banco Ultramarino, era
um problema… Até que ponto o Eng. Camilo teria consciência disto? Eu pas-
sei horas e horas a conversar com o Camilo sobre os problemas do Cachão.
Não há qualquer dúvida de que quem mandava era o Camilo e de que ele
tinha uma visão espetacular da região, mas não tinha gente para o acompa-
nhar. Também ninguém o contrariava, até porque lhe tinham medo. Quando

152
Maria Otilia Pereira Lage

começou a ver que era extremamente difícil manter aquilo, começou por que-
rer correr com o Dr. Correia de Barros, o que tinha o jornal Além Douro e a
Revista Nordeste. E queria que fosse eu a substitui-lo. A páginas tantas, como
eu estava no MAP e não queria sair de lá, ele já me queria dar o emprego sem
eu lá ir. Ora eu não podia aceitar tal proposta! Mas ela continuava com aque-
la ideia de querer dar emprego a todo o licenciado do distrito de Bragança e
a todos os que lá quisessem trabalhar, ideia com a qual eu não podia estar de
acordo. Mas este sistema só funcionou até ao 25 de abril durante o tempo em
que o dinheiro vinha sempre. Quando vinham aquelas bateladas, acertavam
contas. Com o 25 de abril, é fácil perceber o que se passou. Após esta data,
fugiu para França e depois para o Brasil. Teria mais ou menos 60 anos de
idade. No Brasil, mais concretamente no Nordeste, onde o Eng. Manso o foi
visitar, ele chegou a uma altura em que não tinha dinheiro nem para tabaco…
Foi lá Professor e Assessor de uma secretaria de estado da agricultura. Ga-
nhava pouco. Não queria vir para Portugal porque se sentia envergonhado.
Só regressou ao seu país quando já estava doente e em cadeira de rodas.
Foi para uma clínica para a Parede (Lisboa), mas morreu num corredor da
clínica quando ia fazer uma TAC. Na revista do Nordeste foi publicado o seu
elogio fúnebre… a estrutura da família do Eng. Camilo era de Alfândega,
Vilarelhos, não de Carrazeda. Ele era sobrinho da D. Maria Olímpia, casada
com o Dr. Trigo de Negreiros e ela era de Vilarelhos… pertencia aos Mendon-
ças. [Informante nº 21]
Retomando, a propósito, a história do movimento intenso de mercadorias na
linha do Tua, a que esteve ligada a laboração dos três empreendimentos agroin-
dustriais de maior capacidade produtiva nesta região transmontana, atrás docu-
mentados (CUF, Sociedade Clemente Menéres, Lda. e CAICA), importa referir
que a dada altura, entre os anos 1950 e 1970, o intenso transbordo de produtos
e mercadorias na estação de Foz Tua, acabou por suscitar dificuldades ao escoa-
mento regular da produção e à captação de matérias-primas, designadamente a
essas empresas mas também aos maiores comerciantes e agricultores regionais,
aos silos e às cooperativas de Mirandela, Macedo de Cavaleiros, Mogadouro,
Vila Flor, Carrazeda de Ansiães, Murça, Alijó e Bragança...
A CUF tentou mesmo uma solução com a instalação no Tua de um sem-fim,
de um monta-cargas, acabando por vir mais tarde a transportar a sua produção
e as matérias-primas em camiões da empresa; também o CAICA passou a
utilizar um serviço de camionagem próprio, alternativo ao comboio, e desviou

153
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

o transporte de adubos para o Pocinho, construindo um armazém na Vilariça


para sua posterior distribuição pela região; a Sociedade Clemente Menéres
tentou vigiar o aumento das tarifas, observar as exigências da CP, em relação
às quantidades transportadas, à carga de espécies e aos preços praticados, e
pediu vagões ajustados ao transporte da cortiça, essencialmente. A linha man-
teve a bitola reduzida, não sendo dada razão às empresas que queriam o seu
alargamento, com ajuste à linha do Douro e necessidades supervenientes…

4.2.4. Populações – Património, cultura popular e identidade.


Para uma compreensão mais abrangente e concreta do universo populacional
aqui considerado, convem lembrar alguns indicadores socioeconómicos e de-
mográficos específicos em comparação com o todo nacional.
A população nos cinco concelhos transmontanos do vale do Tua tem vindo
a baixar desde 1991, ano em que contabilizava 66970 habitantes; a partir de
então desceu para 62446 em 2001, ficando reduzida a 54814 em 2011.021 Neste
ano, a percentagem de pessoas com mais de 65 anos em relação ao total da
população estava perto de 27.5% quando os indicadores eram para a região do
Nordeste de 17.1% e para Portugal de 19%.022
O setor primário representava ainda em 2011, cerca de 18% do emprego to-
tal, no que contrasta expressivamente com a percentagem nacional e da região
Nordeste com cerca de 3%, em ambos os casos.023
Também o poder de compra per capita destas populações em quatro dos
concelhos abrangidos pelo vale do Tua, excetuando Mirandela, era apenas de
metade da média nacional (2009)024
É, porém, fundamental do ponto de vista do conhecimento recorrer de novo
aos testemunhos locais, que respondem ao entendimento atual de que “todas
as medidas são e permanecem ligadas a redes locais e de que os efeitos globais
são adições – sobreadições, em regra, de medidas locais.” (H.J Rheinberger,
2013)
Assim, como aqui temos tentado fazer, alicerçando-nos nas vozes plurais
das populações anónimas, podemos e devemos observar este universo popu-

021 Censos 2011: Instituto Nacional de Estatística www.ine.pt.


022 Censos 2011: INE www.ine.pt
023 Censos 2011: INE www.ine.pt
024 INE, www.ine.pt

154
Maria Otilia Pereira Lage

lacional numa escala diacrónica e local, o que nos permite compreendê-lo, na


sua diversidade, de um ponto de vista mais próximo da sua própria história
quotidiana vivida.
Esta, como se pode concluir pelos numerosos e representativos relatos de
vida que temos vindo a mobilizar para uma abordagem abrangente mas minu-
ciosa e intensa da história do vale do Tua entretecida em expressivos materiais
de memória das suas populações, ganha na narrativa seguinte, outros contor-
nos de uma dinâmica e especificidade rural, base económica e social da região
e de um colorido tradicional que adensam e enriquecem a nossa compreensão:
…Na Sousa Velha, lá no alto, tiraram lá muito minério… era no monte
para o lado do S. Lourenço…morreu lá um mineiro de S. Mamede de Riba
Tua… e ao pé do Penedo Furado da Maia Esteves, à entrada do Pombal quem
vem do Pinhal… eram minas a céu aberto… lá no morro havia nascentes e
lavavam lá o minério… vendiam-no ao sr. Mário Lima, aqui do Pombal…
aqui era o povo mais remediado que ia para o negócio do minério… se ia pela
linha do Tua?...concerteza, acontecia-lhe como às outras coisas, vinho, etc. ia
tudo para o S. Lourenço para ir pelo comboio… iam de madrugada… faziam
várias carradas… quase todas as casas tinham carros de bois… nessa altura
havia aí no Pombal 8 ou 9 juntas de bois… do Mário Felgueiras, do Acácio e
outros… ainda não havia estrada, mas um caminho largo… a estrada foi feita
por cima… alargaram… a calçada romana era por onde iam para Paradela,
Castanheiro… tinha uma ponte pequena que ampliaram… aí pelos anos 1920
/ 1930…
…a linha do Tua sempre foi muito importante… por ali escoava-se o vinho,
o azeite, a cortiça… muito… havia aí um sobreiro que dava 60 arrobas de
cortiça / 900 kg… eram precisas 4 pessoas para o abarcarem… andou para ai
uma semana a arder… pelo comboio também vinham as mercearias para os
“sótos”… não se ia muito a Carrazeda comprá-las… só íamos a pé à vila de
10 em 10 dias, nas feiras para trazer a carne do Antoninho Xixeiro… o com-
boio usávamos para ir para o Porto, para ir à feira a Mirandela…
…no ano de 1945, por causa da carestia não tínhamos nada para comer…
era o racionamento… havia umas poucas de azenhas pelo rio acima… e aque-
la Isabel forneira ia a Vilarinho das Azenhas e trazia pão do Cachão para
vender e comer por aí e aqui… custava um centeiozinho já muito dinheiro…
não se comprava… davam tantos quilos de farinha por pessoa… com essa
“ração” fazíamos bolinhos de ovos fritos, tipo panquecas, para comer com o

155
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

leite de cabra e o café… o açúcar também era por ração… uma das senhoras
da Ribeirinha na linha do Tua, com muitos filhos, tinha muito açúcar… então
trocávamos 1 litro de azeite por 1kg de açúcar… a população daqui tinha
muitas ligações com as povoações da Linha de Mirandela para baixo… nessa
altura havia tanta gentinha…! havia 3 comboios de passageiros e outros de
mercadorias, transporte de adubos e outras coisas… ganhavam uma comis-
são… havia o mercado negro… iam pelo comboio e traziam 3 ou 6 alqueires
de trigo escondido que aquilo era contrabando…
…para aqui vinha gente do Pinhal, de Zedes, das Areias, do Amedo, apa-
nhar a azeitona, cavar as vinhas, fazer as vindimas… eram rebanhos de ho-
mens… vinha tudo de comboio… só daqui perto é que vinham de burro… as
estradas por ai são só de 1947 e depois…
…no Pombal, na altura da guerra havia 800 pessoas… agora ainda há
para aí umas 200…
…para além da estação de S. Lourenço havia também a estação do Amiei-
ro, donde se vinha e ia de barco para o outro lado a povoação de Amieiro…
e a estação da Brunheda que servia o pessoal do Pinhal, Sentrilha, Paradela-
…o Castanheiro tinha apeadeiro… as aldeias todas deste lado do rio tinham
acesso ao comboio da linha do Tua…
…no verão, vinha muita gente de todo o lado, de comboio para o S. Lou-
renço, para as termas… contava a minha mãe que chegavam de padiolas e
saiam de cá curados… vinham e iam de comboio… chegou a haver lá uma
pensão muito grande onde ficava gente muito rica e doutores… o dono era
daqui do Pombal… chegou a vir para lá para o S. Lourenço gente de Espa-
nha e de Lisboa e de todo o lado para curar moléstias de pele.. nós íamos lá
todos os domingos tomar banho e só depois das vindimas é que íamos para
as termas … lembro-me de uma vez vir lá um geólogo e o director das águas
termais de Chaves que disse que as águas do S. Lourenço eram melhores que
as de Chaves….
…desastres na linha? …lembro-me de ouvir falar de um comboio que caiu
ao rio por baixo do S. Lourenço e que morreu o fogueiro e há uns anos, outro
desastre na Brunheda… e também de quando o rio chegou à linha, nas cheias
grandes de 1911…
…homens daqui que trabalharam na linha do Tua…? Havia um maquinis-
ta daqui que já morreu… em Mirandela também havia outro, o filho da Am-
brosina… havia chefes de estação… o Luís Azevedo que casou lá em cima em

156
Maria Otilia Pereira Lage

Roças, a estação mais alta… o Manuel Pinto da idade dos meus pais também
foi lá chefe da estação…
…também havia muita gente daqui que ia ao rio e vendiam… o peixe tam-
bém vinha pelo comboio e também as peixeiras que o traziam do Castanheiro
e do Tua…
…uma mulher do Tua arranjou cá uma casinha e do Tua mandava vir o
peixe ou ia lá ela buscar e vendia-o aí… remediava-se a gente como podia…
…traziam e levavam no comboio, lenha que vinham aqui fazer, vinho e sal,
e mais coisas… tudo ia e vinha pelo comboio… [Informante nº 3]
Nesta minuciosa narrativa oral podemos intuir como se foi forjando na his-
tória recente das populações do vale do Tua um valioso património histórico
representado pela linha e comboio do Tua, uma cultura popular ainda intrin-
secamente ligada à natureza e uma profunda identidade rural de fortes raízes
ambientais.

157
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

4.2.5. Barragem do Tua e controvérsia pública


No mesmo período em que ocorreu a desativação total da linha do Tua025 teve
lugar o anúncio da aprovação do e início da construção da barragem do Tua,
facto que viria a traduzir-se numa forte alteração desta zona da região do Nor-
deste Transmontano cuja história, recentemente vivida, se tem vindo a cons-
truir. A nova situação, entretanto criada, abre um outro horizonte de (im)possi-
bilidades e questões que não podem deixar de nos interpelar.
Ecos da controvérsia vinda a público em torno da construção da barra-
gem fizeram-se naturalmente sentir no trabalho de campo que realizámos bem
como em algumas das 50 narrativas dos atores entrevistados de todos os ti-
pos sociais: proprietários, agricultores, ferroviários, engenheiros, funcionários
e quadros públicos, outros trabalhadores, familiares descendentes de figuras
históricas da linha do Tua, agentes económicos locais e mesmo um pequeno
número de participantes locais em movimentos de defesa da linha.
Alguns informantes, especialmente os ferroviários e as populações das al-
deias ribeirinhas que o encerramento da linha do Tua deixou mais isoladas e
onde a construção da barragem faz mais diretamente repercutir os seus impac-
tos, manifestaram posições críticas, com idênticos ou diferentes argumentos
da denúncia pública que contestou a política de avançar com este empreendi-
mento hidroelétrico.
Vozes, como a deste ex-maquinista da linha do Tua, natural e residente em
Lavandeira, aldeia do concelho de Carrazeda, continuam a defender a manu-
tenção do funcionamento da linha e do comboio, enredada a memória ainda
viva no seu passado dinâmico de meio de transporte fundamental em Trás
-os-Montes e de identidade enraizada num património histórico material cuja
preservação se reclama.
…Segundo a minha opinião, o futuro melhor para a linha do Tua, era dei-
xarem de fazer a barragem, abrirem a linha, tomarem precauções para mi-
norar os acidentes, porque o comboio era necessário para o transporte das
pessoas e das mercadorias...” [Informante11 - Encontro de Ferroviários do
Tua, 25 de Abril, 2013]
Em idêntico sentido se pronuncia também este outro ex-ferroviário da linha
onde foi, durante anos, revisor. É natural e residente na aldeia de Codeçais:
“…Mirandela tinha uma comunidade ferroviária muito forte. Em Code-

025 Com uma extensão de mais de 133 quilómetros. O troço entre Mirandela e Bragança já havia sido encerrado
em 1991-1992, tendo mais tarde, em 2008, sido suspensa a circulação no 1º troço entre Foz Tua-Mirandela.

158
Maria Otilia Pereira Lage

çais, também: quando lá andei, éramos para aí uns doze, de várias categorias.
Desta aldeia trabalhava muita gente no Cachão. O transporte utilizado era
o comboio… Fazia-se mais vida em Mirandela do que na Carrazeda devido
ao comboio que também transportava os animais e tudo… quando era do
transporte dos adubos (entre 1960 e 1965) havia muito comboio a circular…
No Tua, era tudo carregado a braços: o adubo, o carvão, as pipas de vinho,
a cortiça, as travessas da linha… só daqui de Codeçais, em 1955, passaram-
me 800 arrobas de cortiça pelas costas; juntava-a para o cavalo carregar…
ganhava 20$00 de sol a sol….
…nunca emigrei porque trabalhava no caminho-de-ferro e era do qua-
dro… tinha mulher e já um filho e achei que não devia deixá-los... [Informante
nº 32]
Acerca dos protestos aquando do fecho do troço da linha do Tua, Mirandela
-Bragança, criticou o desaparecimento das locomotivas pela calada da noite e
o corte das comunicações e recorda ter ido, com mais gente dali, a uma mani-
festação em Lisboa e a outra em Espanha, onde havia um movimento idêntico.
…Em Codeçais, sentiu-se muito o fecho da linha porque a aldeia ficou
muito mais isolada… às terças e quintas é que há transporte para a Carraze-
da, mas só temos duas horas e meia para estarmos na vila; se vamos ao centro
de saúde e a consulta é demorada, temos que vir de táxi... e sem poder fazer
mais nada… [Informante nº 32]
Nesta sequência, importa então revisitar a história recente do projeto de
construção da barragem no rio Tua que afeta parte do território do noroeste
português nos cinco municípios do vale do Tua já referidos, bem como a con-
trovérsia pública surgida026 mais especificamente em torno do encerramento
da histórica linha férrea.
O projeto de construção da barragem de Foz Tua027 suscitou crises e crité-
rios conflituantes nos processos de consulta e decisão pública, valores dissi-
dentes e negociações várias tendo envolvido estudos de avaliação de impactos
negativos e positivos com escolhas metodológicas controversas e propostas de

026 Laura Centemeri, José Maria Castro Caldas. A escolha apesar da (in)comensurabilidade: Controvérsias e
tomada de decisão pública acerca do desenvolvimento territorial sustentável. 2013. p.101-125 <hal-01054935 >
HAL Id: hal-1054935 https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-1054935.
027 Previsto no Plano Energético Nacional (1989) e no Plano de Bacia Hidrográfica do Rio Douro (1999),
viria a ser integrado e considerado prioritário no Programa Nacional de Barragens com Elevado Potencial
Hidroelétrico, lançado pelo governo português em 2007, em conjunto com mais 10 novas instalações hidro-
eléctricas, localizadas maioritariamente na bacia do Rio Douro, mas cuja construção não chegou a avançar.

159
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

compensação,028 para além de missões e pareceres da Unesco já que a barra-


gem se situa a cerca de 1 km da foz do rio Tua, na fronteira da região do Alto
Douro Vinhateiro (ADV) declarada Património da Humanidade.
O procedimento de consulta pública sobre o projeto da barragem de Foz
Tua realizou-se durante dois meses (entre dezembro de 2008 e fevereiro de
2009), tendo sido rececionadas 115 opiniões escritas, das quais, 97 de cida-
dãos (88 contestando o projeto) e as restantes de administrações locais, ONG
e associações de produção de vinho (sendo seis contra). Os argumentos con-
trários à construção da barragem invocaram sobretudo o desmantelamento da
linha do Tua, a submersão de terras do vale do Tua (vinha e oliveira em parti-
cular) e a degradação da qualidade da água.
Uma avaliação também negativa, embora negligenciada, partiu da Direção
Regional de Cultura do Norte e do Instituto de Gestão do Património Arquite-
tónico e Arqueológico (IGESPAR), considerando os impactos negativos rele-
vantes que poderiam ser causados no património, inclusive no Douro Patrimó-
nio Mundial e no património da linha do Tua.
Os opositores do projeto da barragem de Foz-Tua esperavam conseguir
travá-lo, tendo particularmente em conta o precedente histórico verificado em
1995, com o projeto de construção da barragem de Foz Côa que acabou por
não se efetivar, em grande parte devido ao movimento social de preservação
das gravuras rupestres pré-históricas, cujo conjunto viria mais tarde a ser de-
clarado pela UNESCO Património da Humanidade.029
O balanço final da decisão política foi favorável à construção da barragem
de Foz-Tua baseado na lógica do “interesse nacional” que considerou parcial-
mente o plano global como estratégico (com impactos positivos de melhor
integração na rede elétrica nacional, e de redução da dependência de importa-
ções de energia), argumentando que a sua exclusão poderia pôr em causa todo
o plano, não devendo pois ser rejeitado devido aos impactos negativos deste
projeto particular.
A avaliação dos impactos negativos feita pelo Estudo de Impacto Ambien-
tal (EIA, 2008), para a cota mais baixa de construção da barragem030, seriam:
028 Após a realização de um Estudo de Impacto Ambiental (EIA), em 2008 e de subsequente Declaração
de Impacto Ambiental (DIA) em 2009, favoráveis à barragem do rio Tua, condicionada a um nível de
armazenamento mínimo, a EDP iniciou as obras de construção em 2011, tornando-se esta instalação
hidroelétrica, até ao momento, a única do Plano Nacional a ser construída.
029 Laura Centemeri, Jose Maria Castro Caldas. Ob cit.
030 A cota aprovada foi de 170, o que se traduz na submersão de uma área de vinha de 12 ha.

160
Maria Otilia Pereira Lage

perdas de ecossistemas terrestres e aquáticos, de valor paisagístico e de pa-


trimónio, aspetos sociais e económicos adversos devido sobretudo à submer-
são de parte da linha do Tua e perda de atividade económica local, submersão
de terras e degradação da qualidade da água. A consequente Declaração de
Impacto Ambiental (DIA, 2009) que como o EIA considerava os aspetos ne-
gativos da barragem superiores aos positivos, acentuava o caso da perda de
mobilidade devido ao alagmento parcial da linha, com perda da sua ligação
à linha do Douro, que poderia ser atenuada através da oferta de transportes
públicos alternativos à população local, por autocarro ou comboio numa nova
linha a ser construída a uma cota mais alta.
O EIA também defendia que as perdas ecológicas e paisagísticas resul-
tantes da submersão parcial do vale do Tua poderiam ser compensadas pela
criação de quatro núcleos temáticos e / ou museus em memória do vale, o que
parece ter ficado reduzido atualmente à construção de um Centro Interpretati-
vo do Parque Natural Regional do vale do Tua, no Baixo Tua, que foi regula-
mentado em 2013 e abrange cerca de 25.000 ha de terrenos e quatro grandes
grupos de biótopos: urbanos, agrícolas, florestais e fluviais.
Adicionalmente, a perda de valores naturais e da sua preservação seria
compensada por contribuições monetárias anuais para o Fundo de Conserva-
ção da Natureza e da Biodiversidade e também para a atual Agência de De-
senvolvimento Regional do Vale do Tua (ADRVT) criada em associação com
autoridades locais e regionais dos cinco municípios afetados - Alijó, Carraze-
da, Mirandela, Murça e Vila Flor e autora da proposta de criação do Parque
Natural do Tua.
Ultimamente, têm vindo a verificar-se, mediada por protocolos entre as
cinco autarquias do vale do Tua e a Direção Regional de Cultura do Norte, a
atribuição de medidas de financiamento da EDP, destinadas à reabilitação de
património cultural e religioso dos concelhos locais, no âmbito das medidas de
compensação da construção da barragem de Foz Tua.
Julga-se, por fim, poder entroncar ainda em processos de compensação
previstos pela EDP, no âmbito da construção da barragem do Tua, o apoio
financeiro ao desenvolvimento do projeto de investigação transdisciplinar e
internacional FOZ TUA, do MIT(Portugal) e Universidade do Minho, reali-
zado entre 2011 e 2014, com importante inserção local, várias componentes,
relevantes atividades, diversos eventos internacionais, bastantes resultados e
publicações, para todos os tipos de público, em que se conta também este

161
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

livro, entre outros, sobre a História e memórias do vale e da linha do Tua.


Este projeto denominado “Railroads in historical context Construction, costs
and consequences Foz Tua, Tua Valley, Alto Douro”,031 teve continuidade no
subprojeto MemTUA 2 – Escolas, com extensão, em 2014-2015, aos agru-
pamentos e estabelecimentos escolares de ensino secundário dos cinco mu-
nicípios do vale do Tua. Foi seu objetivo principal o desenvolvimento de um
conjunto diversificado de ações e estudos de investigação científica e aplicada,
suscetíveis de permitir, entre outras valências, a projeção e implementação de
um núcleo museológico da memória do vale e da linha do Tua.

Vista aérea da barragem e do Vale do Tua


(Foto LFL,Jun.2014)032

031 Foi realizado por uma equipa multidisciplinar de investigadores (áreas de Engenharia, História, Geografia,
Arquitetura, Antropologia e Museologia) apoiada por técnicos de comunicação audiovisual com coordenação
geral de : Eduardo Beira (School of Engineering-UM and MIT Portugal Program); Anne McCants (History
Dpt., MIT, USA), José Manuel Cordeiro (ICS-UM and CITCEM), Paulo Lourenço (School of Engineering-
UM).
032 Agradece-se a cortesia desta fotografia à sua autora, Luisa Fernanda Lima Porto,Assistente Administrativa do
Metropolitano Ligeiro de Mirandela.

162
Maria Otilia Pereira Lage

4.3. Enquadrando e desenredando externalidades. Barragem do Tua

Reconstituir memórias e reconstruir materiais de memória implica um manan-


cial de práticas sociais e um largo espetro de procedimentos de investigação.
Para que se possa compreender a formatação das condições justificativas é
preciso recorrer a premissas concetuais de ordem metodológica e teórica.
Abordaremos nesta secção, de modo abreviado, o campo teórico de base
que lhe subjaz, o do seu enquadramento (framing) de partida, ou seja, neste
caso, o do cálculo de origem que justificou a construção da barragem do Tua
– as suas internalidades. Estas enquadram o que será tomado em conta (no sen-
tido literal do termo) numa interação que nunca é em si própria uma relação
de troca. Tal framing engloba o processo de práticas calculadas como regras,
regulamentos, acordos, contratos, transações, entre outros. (M.Callon, 1998).
Tudo o que transborda este quadro, e que os economistas reconhecem fa-
cilmente ser indefinido, consiste no que os mesmos começaram por chamar de
externalidade (overflowing), que abrange tudo aquilo que é externo às práticas
calculistas, ou seja, o que talvez possa vir a pesar, mais tarde, na interação
calculada mas que não poderia ser integrada, ao tempo, naquele cálculo das
internalidades, designadamente, as chamadas externalidades negativas, isto é,
o que fora eliminado depressa de mais e que vem assombrar do exterior, sob a
forma de consequências inesperadas, o cálculo demasiado rápido e simplifica-
do. (M.Callon,1999:17).033
Todos esses elementos indefinidos são tomados como externalidades que
não contam no mesmo momento, nem na mesma temporalidade do que é in-
cluído no cálculo. É esta diferença entre o interior e o exterior, entre o que
conta e o que não conta, entre o que é comensurável e o que é incomensurável,
entre o que é calculável e o que é incalculável, entre o que é presente agora e o
que se apresentará talvez mais tarde, que vai permitir a alguns, considerarem-
se quites de qualquer dívida seja com quem for. (M.Callon,1999:31).
Nesta perspetiva de análise sociológica, cujo desenvolvimento transborda
do alcance deste livro, foram identificadas no processo de investigação que lhe
subjaz um conjunto de práticas sociais que interagem entre si : 1) práticas de
troca: reposicionamentos por meio de estratégias individuais de comunicação,
prezando valores defendidos pela cultura local; 2) práticas representacionais:

033 CALLON, Michel et al. – Sociologie des agencements marchands. Textes choisis. Paris:Presses de Mines -
Transvalor, 2013.

163
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

espetacularização da realidade por meio de imagens e narrativas estimulantes


que representam como é, foi e deve ser a vida no vale do Tua na sua relação
histórica com a linha férrea e a barragem do Tua; 3) práticas normativas; atua-
ção no poder público para garantir os interesses de grupo. Cada uma destas
práticas, separadamente, influencia a outra.
A sua interpretação pode contribuir para a compreensão do jogo de formatação
e enquadramento das internalidades e da complementaridade das externalida-
des (Callon, 1998) geradas pelo novo empreendimento hidroelétrico no rio Tua.
Algumas externalidades negativas foram assinaladas por vários atores so-
ciais entrevistados, designadamente: 1) o problema da perda de mobilidades
gerada pela desativação da linha do Tua e dos comboios, cujo processo de
internalização foi objeto de ponderação mas que acabou por ser contratuali-
zado e diferido para terceiros; 2); a perda de património histórico, ecológico,
paisagístico e ambiental, parcialmente internalizado através da contratualiza-
çao de projeto arquitetónico de intervenção qualificada; 3) os efeitos locais de
desapossamento e omissão de consulta direta da imposição do poder central
político e económico e a falta de “enforcement” do poder público quanto à
criação e desenvolvimento integrado e sustentado do Parque Natural do Vale
do Tua, proposta pelo poder autárquico local; 4) a ainda a incomensurável
questão das linhas de alta e muito alta tensão (LATTES) de travessia projetada
para o espaço aéreo do Alto Douro Vinhateiro, Património da Humanidade.
É neste âmbito sociológico de análise mais fina das variáveis económicas,
sociais e políticas enunciadas, que valerá a pena fazerem-se futuramente ou-
tros estudos034 deste “case study” que na economia e natureza deste livro aqui
apenas se poderia esboçar.

034 Ver, por exemplo, o seguinte trabalho sobre a barragem do Tua que se aproxima desta linha de análise: Laura
Centemeri, Jose Maria Castro Caldas - A escolha apesar da (in)comensurabilidade: Controvérsias e tomada de
decisão pública acerca do desenvolvimento territorial sustentável. 2013. p.101-125 <hal-01054935 > HAL Id:
hal-1054935 https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-1054935.

164
Maria Otilia Pereira Lage

linha do Tua – Aproximação do comboio à estação de Foz Tua


Foto de Filipe Esperança

165
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Foto da fase final de construção da barragem do Tua junto à Foz do rio Tua
Foto de José Assunção

5. A METODOLOGIA: “HISTÓRIAS DE VIDA” e MÉTODO BIOGRÁFICO

Importa, por fim, apresentar a metodologia usada no desenvolvimento da in-


vestigação que serve de base à escrita deste livro sobre o vale e linha do Tua
em que se procura transmitir a memória cultural das suas populações, a qual se
pode definir como uma “actividade que ocorre no presente, em que o passado
é continuamente modificado e reescrito, moldando assim o futuro”(Bal, 1999;
vii).
A metodologia interdisciplinar adotada articula procedimentos da micro
-história e da história oral com uma linha de interpretação que se apoia na
corrente sociológica e antropológica do interacionismo simbólico (Escola de
Chicago) que concebe a comunicação como a produção de sentido num uni-
verso simbólico determinado e permite analisar o sentido da ação social na
perspetiva dos participantes do universo considerado. Desenvolve-se a partir

166
Maria Otilia Pereira Lage

dessa investigação etnográfica e sociológica o método de análise biográfico


que se baseia nas histórias de vida035 que seguimos na exploração e interpreta-
ção dos depoimentos orais recolhidos em situação de entrevista com os infor-
mantes privilegiados.
Cruza-se com o repertório de histórias de vida e trajetórias sócio-profis-
sionais mobilizadas como meio eficaz de aproximação à realidade social, o
trabalho de produção das fontes orais e a atitude do historiador frente a elas,
afirmando a importância da história oral como instrumento eficaz para o estu-
do de processos históricos imersos no Tempo Presente.

5.1. Histórias de vida e história oral

A história oral, modalidade descritiva e narrativa que permite perpetuar acon-


tecimentos, conhecimentos, saberes e práticas humanas, reproduz uma esfera
importante das culturas coetâneas dos informantes em cuja dimensão simbó-
lica e interpretativa se reflete a visão e a versão dos fenómenos produzidos,
pelos próprios atores sociais.
Por isso, tanto a história oral como as histórias de vida - “espaços de con-
tacto e influência interdisciplinar (…) que permitem através da oralidade in-
terpretações qualitativas de processos e fenómenos histórico-sociais”- são téc-
nicas transdisciplinares à história, antropologia, sociologia e psicologia social,
podendo ser usadas por todas estas áreas das ciências sociais. A informação
baseia-se em materiais autobiográficos, documentos pessoais e familiares (fo-
tografias antigas, correspondência, artefactos e outros), realçando-se a atitude
e definição pelo ator e relevando-se a enfâse nos aspetos interpretativos.036
Estas metodologias têm vindo a suscitar o interesse dos investigadores que
se afastam de perspetivas unidirecionais mais ortodoxas e supõem antes uma

035 Este método foi aplicado pela primeira vez no departamento de sociología da Universidade de Chicago, que
se tornou o centro da disciplina nos Estados Unidos durante muitos anos, fundando uma linha de pensamento
sociológica, designada “Escola de Chicago” que teve grande apogeu nos anos 1920 e que deu origem à teoria
conhecida como “interaccionismo simbólico”. Thomas e Znaniecki, membros desse departamento, publicaram
em 1918 a obra – O campesinato polaco nos Estados Unidos e na Europa, cuja novidade era essa metodologia
usada durante anos em que durou a sua investigação.
036 ARJONA GARRIDO, CHECA OLMOS, Juan Carlos- “Las historias de vida como método de acercamiento
à realidade social.” Gazeta de Antropologia. Nº14, 1998. Disponível em: http://hdl.handle.net/10481/7548
[consulta em 2 Maio 2015]

167
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

comunicação entre distintas disciplinas académicas. Converteram-se num


complemento muito frutuoso de investigação científica, já que a incorporação
do ponto de vista do sujeito que lhe subjaz foi em grande medida determi-
nada por características das sociedades atuais como a globalização mundial,
o consumo e as mudanças sócioeconómicas vertiginosas que suscitam uma
revalorização do subjetivo.
Convem, porém, precisar melhor o significado do conceito “história de
vida”. Por “história” entende-se aqui o reflexo de vidas simples de popula-
ções anónimas, sem fama nem glória apregoadas. No que se refere ao termo
“vida”, devem entender-se os relatos contados na primeira pessoa, por qual-
quer protagonista expressos com relativa fluidez e memória sólida e credível;
diferenciam-se pois das biografias de gente famosa e das memórias de pessoas
consideradas socialmente notáveis.
Importa distinguir entre história de vida e relato de vida. Este pode ser
considerado um sub-género da história da vida, menos amplo e completo, já
que incorpora apenas aspetos de maior interesse para o investigador. Para que
uma narrativa seja completa e possa ser considerada como “história de vida”,
requer ser acompanhada de material complementar: fotografias, documentos
e outras manifestações materiais que credibilizem e validem o fio condutor
argumentativo exposto.
Poder-se-á então definir “história de vida” como “um relato autobiográfi-
co, obtido pelo investigador através de entrevistas sucessivas cujo objetivo é
mostrar o testemunho subjetivo de uma pessoa em que se recolham quer os
acontecimentos quer as valorações que o indivíduo faz da sua própria existên-
cia (Pujadas 1992:47).
As histórias de vida, que são um método científico de aproximação à reali-
dade social, podem definir-se ainda como uma técnica etnográfica de investi-
gação. O trabalho inicia-se por uma fase de preparação teórica para definir os
objetivos principais da investigação e desenhar o processo de estudo a desen-
volver. Seguidamente, deverão selecionar-se os melhores informantes privile-
giados, servindo-se, se possível, de narrativas autobiográficas, documentos e
contactos pessoais a que possa ter acesso. A realização das entrevistas de acor-
do com os critérios teóricos e objetivos previstos, mantendo um ambiente de
comunicação entre entrevistador e entrevistado, cordial, aberto, de confiança e
cumplicidade interativa, estimulando o desejo de falar do entrevistado e falan-
do o entrevistador apenas o suficiente, implica uma postura de distanciamento

168
Maria Otilia Pereira Lage

crítico para evitar que a informação e os dados a obter possam degenerar em


relatos fantasiosos, fictícios ou pouco pertinentes.
A gravação videográfica que capta também a expressão corporal ou comu-
nicação não verbal é a forma de registo recomendada, porque mais completa,
mas não dispensa anotações complementares do investigador em diário de
campo e a posterior transcrição escrita das narrativas orais que atenderá à li-
terariedade do que foi recolhido, mantendo expressões, léxico e linguagem
émica usados pelos informantes.

A boa investigação, com o uso desta técnica, procura obter narrativas que
não sejam exclusivas da vida do informante mas que introduzam também o
contexto espácio-temporal descritivo de lugares, outros protagonistas e perso-
nagens, factos históricos, etc. tal como os informantes os perceberam em seus
momentos próprios. Visa alcançar a fiabilidade e veracidade do que os infor-
mantes contam pelo que analisa os seus discursos e a coerência interna dos
relatos, a sua forma de estruturação e a congruência dos resultados finais. Con-
trasta ocorrências paralelas e lacunas de informações, dados, acontecimentos
significativos, memórias e histórias paralelas ou relatos de acompanhantes do
informante. Esta análise contrastiva pode suscitar novas pistas e dados sobre
o narrado, facilita e melhora o tratamento do material recolhido (narrativo,
documental e histórico) com técnicas de triangulação da informação que per-
mitem fazer a validação dos relatos.
A maior dificuldade e exigência desta técnica verifica-se na fase de análise
e interpretação dos conteúdos em que é preciso realizar dois tipos de análise:
uma “vertical” de cada narrativa e outra “horizontal” do conjunto das entre-
vistas e relatos. Cruzando ambas as análises e recorrendo à “saturação da in-
formação por repetição” obtém-se então um núcleo central de toda a história.
A análise de conteúdo permite trabalhar com a informação intrínseca e ex-
trínseca para aceder não só ao que é explícito mas ainda ao que se encontra
implícito ou subentendido no que os informantes não disseram expressamente
mas têm presente, o que se revela muito útil na captação de contextos mais ge-
rais quer do informante quer do seu mundo. Através da descrição e da narrati-
va, os sujeitos constroem-se, no âmbito de estratégias discursivas que acionam
um jogo de interações, não com intenção exclusiva e unívoca, mas utilizando
mensagens em geral, comunicação simbólica, etc. em que se podem entrever
ideologias, valores e outros elementos, para além do que o informante preten-

169
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

de expressar conscientemente. Esta análise não está isenta de uma socio-se-


miótica do discurso cuja finalidade consiste em determinar as manifestações
dos sujeitos num discurso social biográfico que permite um outro nível de
visibilidade do indivíduo e sua envolvência.
As histórias de vida apresentam uma série de vantagens e inconvenientes
que são intrínsecas à própria técnica. Ou seja, embora este tipo de entrevista
permita uma abordagem às relações primárias, derivado não só do que aconte-
ceu com a vida de uma pessoa, mas também do modo como influenciaram os
processos de evolução e mudança social, não se pode esquecer que esta técnica
também regista algumas limitações como a impaciência do investigador (que
tem como objetivo recolher todas as informações necessárias em algumas reu-
niões), a dificuldade de acesso a um informante com memórias longas, a sua
vontade de colaborar, etc.
Todavia a maior controvérsia que as histórias de vida suscitam entre os
cientistas sociais não decorre da implementação desta técnica mas sim do seu
uso enquanto método e respetivo grau de eficácia e representatividade, ou seja,
poder-se concluir se a amostra e informação obtida possibilitam generaliza-
ções, o que se revela difícil pois as histórias de vida não permitem juízos
universais ou conclusões generalizáveis. Deve, no entanto, ter-se presente que
esta técnica etnográfica, constitutiva da investigação etnológica e sociológica,
permite a obtenção de dados sobre fenómenos sociais que dependem de va-
riáveis espácio-temporais a investigar e que são difíceis de conseguir através
de outras técnicas (Szczepanski 1978). Assim, podendo não ser de natureza
universal, as suas contribuições são de toda a validade designadamente para a
construção e análise de narrativas biográficas, fontes orais de história e histó-
ria do vivido.

5.2. Reconstituição de memórias e vivências do Vale do Tua

Na linha do entendimento concetual e metodológico exposto que privilegia o


método biográfico e de histórias de vida, devolve-se a palavra aos que viveram
e vivem a história do vale, da linha e do comboio do Tua tentando, pela rela-
ção dialógica entre entrevistador e entrevistado, fazer emergir “uma visão do
mundo experimentada pelo que a exprime”.

170
Maria Otilia Pereira Lage

E é também através dessas diversas narrativas orais entretecidas numa tes-


situra de vivências e lembranças que assistimos ao desenrolar de uma aparente
banalidade do quotidiano, surgindo-nos, de imprevisto, palavras emocionantes
e memórias relevantes, não desprovidas de uma função catártica.
Na perspetiva da história, além desta revisão sobre um passado local e rela-
tivamente recente, a presença de um “historiador” entrevistando testemunhas
de um período / acontecimento implica demarcar um momento particular do
campo historiográfico. Nos anos 1970, a investigação histórica recuperou a
importância das experiências individuais e das situações singulares, privile-
giando ao mesmo tempo a dimensão do vivido. Estas mudanças de perspetiva,
se geraram discussões sobre o uso de novas fontes e de novas metodologias
históricas, contribuíram também para um renovado impulso no campo da his-
tória, designadamente da história cultural.
Desde o início do século XX que certas correntes da sociologia e da an-
tropologia, mormente o interacionismo simbólico, passaram a recorrer no seu
trabalho científico ao uso de relatos orais, uso que se generalizou no campo
mais vasto das ciências sociais no mundo académico. Todavia, no caso da His-
tória, foi tão só com o aparecimento da “Nova História” que as fontes orais se
começaram a afirmar apesar das resistências de alguns historiadores.
Se nos deixássemos guiar apenas pelas narrativas individuais e coletivas
atravessadas pela singularidade e complexidade de memórias e subjetividades,
ainda que sujeitas a um imprescindível tratamento técnico e analítico, fica-
ríamos com uma visão particular e de algum modo idealizada ou reinventada
da história centenária da linha e comboio do Tua em seus ambientes naturais
(vale e rio) e socioculturais envolventes em diversas temporalidades, das mais
antigas às mais recentes.
As visões e conceções dos indivíduos sobre os assuntos e acontecimentos
abordados são parciais e limitadas àquilo que seus olhos viram, seus ouvidos es-
cutaram, suas perceções ditaram e suas memórias traduziram e / ou reinventaram.
São os seus autores, atores sociais, agentes eficientes ou informantes pri-
vilegiados, homens e mulheres entrevistados de diferentes idades, origens so-
ciais e trajetórias que, “tomados a sério”, em última análise definem quem e
quais os acontecimentos que devem delas participar, conseguindo, de per si ou
no conjunto, pôr-nos a “pensar e sentir do lado de lá”, em espaços-tempos que
progressivamente se nos abrem em múltiplas vivências, memórias e experiên-
cias de vida.

171
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

O que foi sendo vivenciado (real ou imaginariamente) por cada um deles,


quando contrastado entre si ou na versão acumulada e unitária do conjunto,
permite identificar, conhecer ou reconhecer eventos e personagens reais, ima-
ginários e representações sociais das populações transmontanas sobre fenóme-
nos decisivos do seu próprio passado e história contemporânea: a intercomuni-
cabilidade e mobilidades possibilitadas pela ferrovia do Tua.
Nas narrativas individuais e coletivas, reportórios significativos de inte-
resse comum, sobressaem descrições minuciosas de vidas, paisagens e micro-
cosmos essencialmente rurais, práticas, saberes leigos e técnicos do mundo
ferroviário, sensibilidades, crenças, valores e comportamentos, sempre em
estreita relação com o objeto e a natureza que são os aspetos primordiais, pelo
que assim se torna possível ultrapassar relativismos e ir além das explicações
comuns e dimensões micro-analíticas.
A exigência de reconstituição histórica, a partir sobretudo de fontes orais,
dados qualitativos, assuntos e matérias de caraterísticas subjetivas e sensíveis,
obriga, por fim, a refletir sobre algumas questões relacionadas com história
e memória, objetividade e subjetividade, que se colocam neste processo de
investigação concreta.
Primeiro, é preciso ter presente que a história, representação do passado, é
uma reconstrução sempre problemática e incompleta do que deixou de existir
(Pierre Nora). Já a memória é um fenómeno sempre atual, um elo vivido no
eterno presente.
Segundo, existe “uma diferença essencial entre a realidade física e a reali-
dade social, pois ao passo que o efeito de um fenómeno físico depende exclu-
sivamente da natureza objetiva desse fenómeno e pode ser calculado com base
no conteúdo empírico deste, o efeito de um fenómeno social depende, além
disso, do ponto de vista subjetivo assumido pelo indivíduo ou pelo grupo face
a esse fenómeno e só pode ser calculado se conhecermos não só o conteúdo
objetivo da causa presumida, mas também o significado que possui num deter-
minado momento para certos seres conscientes.”037
Esta observação torna evidente que uma causa social, como a que aqui se
tenta estudar, não é simples, mas composta e compósita e, nessa medida, tem
que incluir elementos objetivos e subjetivos que foi possível reconstituir atra-
vés dos diferentes usos do método biográfico que ensaiamos.

037 THOMAS, W.I., ZNANIECKI, Florian (1958) - The Polish Peasant in Europe and America I. New York, Dover
Publications, p.38 (autor clássico das histórias de vida)

172
Maria Otilia Pereira Lage

As histórias de vida do vale e da linha do Tua revelam-se ricas de afetos


profundos de pessoas de várias gerações e diversas condições sociais que vi-
venciam uma estreita, próxima e intensa relação com o espaço local e regional
envolvente, o qual sempre exerceu sobre elas enorme influência e uma fortís-
sima pertença identitária. A linha férrea e o comboio do Tua foram a coluna
dorsal desta zona transmontana, tendo exercido na sua longa vida influência
inegável em inúmeras vidas do vale do Tua, como salientam todos os infor-
mantes, acentuando-lhes, a alguns deles, a sua natureza atual de património
cultural coletivo e museu vivo, valor social e histórico que se encontra inscri-
to na memória social das populações. Todas estas dimensões atravessam as
múltiplas histórias de vida recolhidas, outros tantos materiais de memória a
preservar, valorizar e divulgar nas suas multifacetadas vertentes que emergem
através de uma oralidade muito expressiva e viva de grande densidade etno-
sociológica e histórica, património imaterial da região do Tua que também
assim se procurou recuperar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente livro, produzido a partir de uma recolha e compilação de expressi-


vas narrativas orais de um conjunto significativo e representativo de pessoas
naturais e ou residentes no vale do Tua, mobiliza e dá visibilidade a um acervo
considerável de vivências, memórias e materiais de memória. Nele se alicerça
a história vivida pelas populações locais em múltiplas espaciotemporalidades
a que é transversal a histórica linha férrea do Tua que, paralela ao curso sinuo-
so do rio Tua, um dos últimos rios selvagens de Portugal, atravessou durante
mais de cem anos uma paisagem de beleza rara e cuja construção constitui um
marco da história da engenharia nacional do séc. XIX.
Tentando não ficar aquém dos desafios dessa grandeza e raridade evocadas
e descritas com acuidade e minúcia, ao longo do livro, este procura na sua
escrita, reinventar, de forma singular e polifónica, um hino de louvor à micro
-história da população anónima do vale do Tua. Procura dar voz a numerosas
e fiéis testemunhas, muitas delas desiludidas com o encerramento da linha do
Tua e consequente desativação do comboio do Tua, elemento fundamental de
sua consciência identitária, para assim recuperar e manter viva a memória des-

173
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

ta sub-região transmontana e narrar a sua história em que se continua a alicer-


çar numa crença / querência038 num desenvolvimento integrado e sustentado
desta região, ainda hoje uma das mais pobres e isoladas do país.
A história vivida das populações do vale do Tua que aqui se narra com
múltiplas e plurais histórias de vida expressa a sua arte de contar e fazer contar
através de um roteiro de documentário histórico e sentimental que, em registo
videográfico, acompanha e ilustra esta obra de particular densidade cultural e
émica, com imagens, sons e vozes de pessoas, ambientes e patrimónios locais.
A sua compreensão e escrita que influirá naturalmente nas leituras deste
livro foi feita em vários planos e interseções a que importa, por fim, fazer men-
ção expressa: os quatro planos considerados - “historias de vida”, “narrativas
de vivências e memórias”, “ambiente natural e tecnológico” e “ desenvolvi-
mento regional e populações locais” - foram descritos e analisados através de
três vetores de focagem principais - método biográfico, fontes orais e história
local / regional.

038 Significando lugar onde se nasceu, criou e habituou a viver e ao qual sempre se quer voltar, como
frequentemente acontece em muitas das aldeias do vale do Tua, às quais os seus emigrantes sempre retornam,
depois de viajarem pelo mundo e terem sido mesmo bem sucedidos.

174
Maria Otilia Pereira Lage

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBERTI, V., FERNANDES, TM., e FERREIRA, MM., orgs (2000). História oral: desafios
para o século XXI [online]. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2000. 204p. ISBN 85-85676-
84-1. Disponivel em SciELO Books <http://books.scielo.org>.
ATKINSON, R. (2002).The life story interview. In Gubrium, E. & Holsten, J.Handbook of
interview research. Context & method. (pp. 121-140)United States of America: Sage
Publications.
BAL, Mieke; Crewe, Jonathan; Spitzer, Leo (Eds.) (1999), Acts of Memory: Cultural Recall in
the Present, Hanover: N. H.: University Press of New England
BECKER, Howard S. (1986), “Biographie et mosaïque scientifique”, Actes de la Recherche
en Sciences Sociales, n.º 62 / 63, pp. 105-110
BERTAUX, Daniel (1997), Les récits de vie: Perspective ethnosociologique, Paris, Editions
Nathan
BERTAUX, Daniel (1986), “Fonctions diverses des récits de vie dans le processus de
recherche”, in Danielle Desmarais & Paul Grell (eds.), Les récits de vie: Théorie, méthode
et trajetoires types, Montreal, Editions Saint-Martin, pp. 21-34
BOURDIEU, Pierre (1989), O Poder Simbólico, Lisboa, Difel
CALLON, M. (1998). ‘An essay on framing and overflowing: economic externalities
revisited by sociology’. Em : Callon, Michel (ed.). The laws of the market. Oxford: Basil
Blackwell.
CALLON, M. (1998). Introduction: the embeddedness of economic markets. Em: Callon,
Michel (ed.). The laws of the market. Oxford: Basil Blackwell, 1998.
CALLON, Michel et al. (2013)– Sociologie des agencements marchands. Textes choisis.
Paris:Presses de Mines - Transvalor.

175
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

CENTEMERI, Laura, CALDAS, Jose Maria Castro (2013). A escolha apesar da (in)
comensurabilidade: Controvérsias e tomada de decisão pública acerca do desenvolvimento
territorial sustentável. p.101-125 <hal-01054935 > HAL Id: hal-1054935 https://hal.
archives-ouvertes.fr/hal-1054935.
DENZIN, Norman K. (1989), Interpretive Biography, Newbury Park, Sage
DIGNEFFE, Françoise, BECKERS, Myriam, (1997), “Do individual ao social: A abordagem
biográfica”, in Luc Albarello, François e Digneffe, Jean-Pierre Hiernaux, Christina Maroy,
Danielle Ruquoy & Pierre de Saint-Georges, Práticas e Métodos de Investigação em
Ciências Sociais, Lisboa, Gradiva, pp. 203-245
FERRAROTTI, Franco (1983), Histoire et Histoires de Vie: La méthode biographique dans
les sciences sociales, Paris, Librairie des Méridiens
GONÇALVES, André Saro (2012), Turismo Desenvolvimento Local e Arquitectura
linha do Tua, Covilhã, Universidade da Beira Interior. (Dissertação de Mestrado). https://
ubibliorum.ubi.pt/bitstream/10400.6 /2361/2/PARTE%20ESCRITA.pdf.
GRELL, Paul (1986), “Une méthodologie pour dépasser les realités partielles”, in Danielle
Desmarais & Paul Grell (eds.), Les récits de vie: Théorie, méthode et trajetoires types,
Montreal, Editions Saint-Martin, pp. 151-176
HOULE, Gilles (1986), “Histoires et récits de vie: la redécouverte obligée du sens commun”,
in Danielle Desmarais & Paul Grell (eds.), Les récits de vie: Théorie, méthode et
trajetoires types, Montreal, Editions Saint-Martin, pp. 35-51
PINTO, Louis (1990), “Expérience vécue et exigence scientifique d’objectivité », in Patrick
Champagne, Rémi Lenoir, Dominique Merllié & Louis Pinto, Initiation à la Pratique
Sociologique, Paris, Dunod, pp. 7-50
STRAUSS, Anselm L. (2002), Mirrors and Masks: The search for identity, New Brunswick,
Transaction Publishers
STRAUSS, Anselm, CORBIN, Juliet (1990), Basics of Qualitative Research: Grounded
Theory procedures and techniques, Newbury Park, Sage
THOMAS, W.I., ZNANIECKI, Florian (1958), The Polish Peasant in Europe and America I,
New York, Dover Publications
TOURAINE, Alain (1982), Pela Sociologia, Lisboa, D. Quixote
HALBWACHS, Maurice (1925), Les cadres sociaux de la mémoire. Paris: Felix Alcan.
HALBWACHS, Maurice; Alexandre, J.H. (1950), La mémoire collective. Ouvrage posthume
publié. Paris: PUF.
NORA, Pierre (1984), Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard.

176
Maria Otilia Pereira Lage

POLLAK, Michael (1989), “Memória, esquecimento e silêncio”, Estudos Históricos


PORTELLI, Alessandro (1996), “O Massacre de Civitella Val di Chiara (Toscana, 29 de junho
de 1944): mito e política, luta e senso comum”, in Marieta de Moares Ferreira;
AMADO, Janaína, et.al. (orgs.), Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora
Fundação Getúlio Vargas,
RICŒUR, Paul (2000), La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Seuil.
THOMPSON, Paul (1992), A voz do passado. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
WHITE, Hayden (1987), The Content of the Form: Narrative Discourse and Historical
Representation. Baltimore: Johns Hopkins UP.

177
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

APÊNDICE DOCUMENTAL
Corpus de fontes orais e guião-roteiro do Documentário

Este apêndice permite percorrer e evocar a história do tua (vale, rio, linha e
comboio) narrada em discurso direto, através das memórias de populações
anónimas.
O corpus contemplado compõe-se de uma diversidade polifacetada de es-
tórias, narrativas, testemunhos e memórias recolhidas e transcritas simulta-
neamente em suporte escrito e audiovisual, constituindo um arquivo de fontes
orais, património documental que se contruiu e assim se vê preservado.
Todas estas entrevistas são inéditas e apresentam o (s) nome(s) do (s) entre-
vistado(s) e do(s) entrevistador(es). As entrevistas não excedem as 5.000 pala-
vras e são indexadas com as palavras-chave correspondentes, posteriormente
organizadas em índice temático e tratadas em diagrama “cloud” ou diagrama
nuvem incluído no corpo do texto do presente livro. São antecedidas de uma
apresentação com ficha técnica e dados biográficos do informante de, no máxi-
mo entre 500 e 1000 palavras. Os seus conteúdos essenciais foram descritos,
organizados e mobilizados na produção deste livro.
Na sua maioria são complementadas pelos respetivos registos audio-video-
gráficos, também eles objeto de tratamento para edição, constituindo um im-
pressivo arquivo audiovisual relevante que deu origem a uma base de dados
multimédia disponível por consulta na web.
Apresentam-se ordenadas por informante e cronologia da sua realização, da
data mais antiga para a mais recente. Um subconjunto de sete entrevistas pre-
viamente realizadas, sem registo audiovisual, numa etapa inicial e preparatória
da realização deste trabalho de campo, constitui informação prévia de novas
entrevistas com os mesmos informantes, os primeiros sete entrevistados, e
encontram-se, por isso, acopladas a cada um destes, na qualidade de primeira
entrevista.
As respetivas realização e divulgação têm a autorização do(s) entrevistado(s)
que concordam com os objetivos e a edição deste trabalho destinado a consti-
tuir um acervo documental e audiovisual de memórias sobre a história e vivên-
cia da linha férrea e comboio do Tua, em funcionamento entre 1887 (inaugura-
ção do troço Tua –Mirandela), 1992 (encerramento entre Carvalhais-Bragança)
e 2012 (Tua-Mirandela).
Produzido no âmbito do projeto internacional e multidisciplinar FOZTUA, pa-
trocinado pelo MIT, Universidade do Minho e EDP, este acervo de entrevistas
destinado a ser incorporado num núcleo de memória do vale e da linha do Tua,
a disponibilizar em sede de Centro Interpretativo do Vale do Tua, integra o mo-
vimento de acesso livre à informação.
Estão disponíveis 50 entrevistas realizadas com 47 entrevistados durante qua-

178
Maria Otilia Pereira Lage

tro anos, entre 2011 e 2014, que abrangem os seguintes temas constituintes
dos tópicos principais dos guiões de entrevista:
• O quotidiano nas povoações ribeirinhas do Tua
• Os anos da fome (anos 1940)
• Escassez e racionamento de bens alimentares e produtos ener-
géticos na II Guerra Mundial
• Exploração e comercialização de volfrâmio durante a I e II Guer-
ras Mundiais
• A vida e o trabalho nos caminhos-de-ferro
• Ferroviários: carreiras, trajetórias profissionais e condições de
trabalho
• Transporte de passageiros e mercadorias
• Acidentes ferroviários
• A construção da linha do Tua
• Os galegos
• A importância local da linha e comboio do Tua
• Perceções do encerramento da linha e da construção da barra-
gem do Tua
• Histórias de vida
• Emigração
• Mobilidades
• Trânsitos
• Termas de S. Lourenço
• Empreendimentos agro-industriais no Nordeste Transmontano,
junto à linha do Tua: o da SCM no Romeu, o da CUF em Mirandela e
o do Cachão.
Para servir de fio condutor e guião a uma proposta de roteiro para produção
do documentário vídeo, elaborou-se, a partir de conteúdos informativos e lite-
rários, o seguinte esquema:

GUIÃO- ROTEIRO
1º Ato – Origens / fim da Monarquia (vistas panorâmicas e paisagísticas do
vale e do rio, espécies animais e vegetais, atividades piscatórias / venatórias
e envolventes)

2º Ato – Evolução / Estado Novo - Super narrativa na 1ª pessoa (caleidoscópio


de depoimentos e patrimónios)

3º Ato – Interfaces ruralidade / modernidade / 25 de Abril e pós… (construção


da linha férrea e construção da barragem - dois momentos históricos decisivos
em dois planos)

179
“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

1º ATO - ORIGENS
Cena 1 – Dinamite. Braços abertos às montanhas
Cena 2 – A máquina era o fascínio daquele comboio.
Baforadas de fumo e rolos de vapor
“Fragas Más”: Pontes, túneis, estações e apeadeiros
Cena 3 – “Ribeirinha” : Sobreviver em meio agreste
Cena 4 – O comboio arrastador, estouvado saltimbanco

2º ATO - EVOLUÇÃO - SUPER NARRATIVA


Cena 5 - Nostalgia da terra-mãe livre e rebelde
Cena 6 – Gentes de 1ª, 2ª e 3ª classe
Cena 7 – Turbilhão de memórias dormentes
Cena 8 – Paisagens fugitivas
Cena 9 – As merendas… sociabilidades
Cena 10 - Saudações e despedidas

3º ATO – INTERFACES
(entre o que fui e o que sou… encontros de ferroviários)
Cena 11 – Contemplação do rio Tua (imagens e textos literários), cenário cultu-
ral e humano que se sente fluir percorrendo-o de canoa… e não só através dos
mapas, quadros, caudais, hidrogramas e cotas.
Cena 12 – O vale do Tua, integrado na sua paisagem ecológica, com o traçado
da via férrea histórica e singular que acompanha o rio, com as suas culturas em
terraços, enquanto património de memória e identidade de Portugal e patrimó-
nio natural e cultural da Europa.
Um conjunto significativo do acervo de entrevistas selecionado para este efeito,
com base em critérios de qualidade, diversidade e representatividade foi objeto
da respetiva edição de imagem e som pelo staff de tecnologia audiovisual de
apoio ao projeto FOZTUA que produziu o documentário vídeo que complemen-
ta este livro.
Para tal produção, contribui como referência de base, o roteiro e guião ex-
plicitados na rubrica quatro desta obra, da qual este video é parte integrante
enquanto material acompanhante.

180

Você também pode gostar