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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS

INAYÁ ANANIAS WEIJENBORG

PERCEPÇÕES SOBRE VIOLÊNCIA CONTRA MULHER:


ESTUDO COM TRABALHADORES DE UM CREAS E UM COLETIVO DE
MULHERES

CAMPINAS
2022
INAYÁ ANANIAS WEIJENBORG

PERCEPÇÕES SOBRE VIOLÊNCIA CONTRA MULHER:


ESTUDO COM TRABALHADORES DE UM CREAS E UM COLETIVO DE
MULHERES

Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Médicas da


Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos
exigidos para a obtenção do título de Mestra em Saúde Coletiva:
Políticas e Gestão em Saúde, na área de Política, Gestão e
Planejamento.

ORIENTADORA: PROFESSORA DOUTORA ROSANA TERESA ONOCKO-


CAMPOS

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO


FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA
INAYÁ ANANIAS WEIJENBORG E ORIENTADA PELA
PROFª DRª ROSANA TERESA ONOCKO-CAMPOS.

CAMPINAS

2022
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca da Faculdade de Ciências Médicas
Ana Paula de Morais e Oliveira - CRB 8/8985

Weijenborg, Inayá Ananias, 1991-


W429p WeiPercepções sobre violência contra mulher : estudo com trabalhadores de
um CREAS e um coletivo de mulheres / Inayá Ananias Weijenborg. –
Campinas, SP : [s.n.], 2022.

WeiOrientador: Rosana Teresa Onocko Campos.


WeiDissertação (mestrado profissional) – Universidade Estadual de Campinas,
Faculdade de Ciências Médicas.

Wei1. Saúde coletiva. 2. Violência contra a mulher. 3. Saúde Mental. 4.


COVID-19. I. Campos, Rosana Teresa Onocko, 1962-. II. Universidade
Estadual de Campinas. Faculdade de Ciências Médicas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Perceptions about violence against women : study with workers
from a CREAS and a women´s collective
Palavras-chave em inglês:
Community health
Violence against women
Mental health
COVID-19
Área de concentração: Política, Gestão e Planejamento
Titulação: Mestra em Saúde Coletiva: Políticas e Gestão em Saúde
Banca examinadora:
Rosana Teresa Onocko-Campos
Lilian Miranda
Carlos Alberto Pegolo da Gama
Data de defesa: 09-08-2022
Programa de Pós-Graduação: Saúde Coletiva: Políticas e Gestão em Saúde

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)


- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0001-8222-4523
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/7981711915448843

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)


COMISSÃO EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO
INAYÁ ANANIAS WEIJENBORG

ORIENTADORA: PROFª DRª ROSANA TERESA ONOCKO-CAMPOS

MEMBROS TITULARES

1. PROFª DRª ROSANA TERESA ONOCKO-CAMPOS


PRESIDENTE
FCM/ UNICAMP/ CAMPINAS

2. PROFª DRª LILIAN MIRANDA


TITULAR
ENSP – ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA – SÉRGIO AROUCA – FIOCRUZ/ RIO
DE JANEIRO

3. PROF. DR. CARLOS ALBERTO PEGOLO DA GAMA


TITULAR
FCM/ UNICAMP/ CAMPINAS

Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva: Políticas, Planejamento e


Gestão, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de
Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no


SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da FCM.

Data de Defesa: 09/08/2022


À vó Teresa, mama, oma e a todas as atendidas que confiaram suas histórias a
mim. Espero que sintam-se ouvidas.
AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha família que me deu a chance de estudar e


escolher meus caminhos. Dank je wel! Nunca foi fácil, mas 600km não são nada
para aqueles que cruzaram continentes.

Agradeço à banca examinadora; foram generosos nas


colocações da qualificação e deram sentido às interrogações da pesquisa durante a
pandemia.

Agradeço à minha orientadora, Profª Drª Rosana Teresa


Onocko-Campos, que acolheu as angústias sem deixar de ancorar nosso trabalho.

Agradeço ao coletivo Interfaces e seu GT Violência pelas


discussões, principalmente Alice pela imensa ajuda na submissão do projeto.

Agradeço ao coletivo IsaMulher pelo envolvimento poético na


pesquisa, e agradeço às “meninas do CREAS” que se envolveram na proposta.

Agradeço à minha amiga e procuradora Pétala, amiga


sanitarista Márcia, amiga literata Mi e às psicólogas que mais admiro, Marta e Dri,
que apoiaram meu desejo de pesquisar.

Agradeço aos meus colegas de sala, que tanto ensinaram,


brindaram e compartilharam afetos e ideias sobre o cotidiano das políticas públicas.
Quero ser atendida no SUS por vocês!
(E ainda se escuta)
A roupa era curta
Ela merecia
O batom vermelho
Porte de vadia
Provoca o decote
Fere fundo o forte
Morte lenta ao ventre forte

(Amanda Pacífico / Cacau de Sá)


RESUMO

Esta pesquisa é sobre violência contra mulher pela perspectiva de uma equipe
de CREAS e um coletivo de mulheres, com intuito de entender quais são as
percepções desses dois grupos sobre o tema. A violência é entendida como uma
questão de Saúde Coletiva, com raízes históricas e culturais, e sua ocorrência traz
significativos prejuízos à saúde mental. Vale-se de uma intersecção com as políticas
do SUAS e uma organização da sociedade civil para fazer caminhar diferentes tipos
de conhecimentos, apresentados através de grupos focais narrativos, método
qualitativo de pesquisa que contém um momento hermenêutico com efeitos da
narratividade; é, ao mesmo tempo, uma construção e intervenção. As duas
narrativas construídas tiveram aproximações entre si – como entender a violência
como fenômeno social – e alguns distanciamentos, sendo a narrativa do CREAS
mais técnica e teórica e a narrativa do coletivo mais instintiva e poética. Juntas,
compõem um cenário de diversos recursos e entendimentos sobre o fenômeno da
violência contra a mulher. Essa junção é expressa no produto técnico, que é um guia
virtual educativo para profissionais dos serviços públicos de cidade de pequeno
porte versando sobre a temática, disponível em sítio eletrônico. Houve um
atravessamento da pandemia de Covid-19 na pesquisa, que influenciou as
narrativas construídas coletivamente e trouxe a perspectiva do aumento de violência
doméstica contra a mulher durante o período de distanciamento social. Conclui-se
que o tema é de grande relevância e atualidade, e para o enfrentamento à violência
contra a mulher é necessário um corpo coletivo, uma vez que violência é
responsabilidade de todos os serviços públicos.

Palavras-chave: Saúde Coletiva; Violência contra a Mulher; Saúde Mental; COVID-


19.
ABSTRACT

This research is about violence against women from the perspective of a CREAS
team and a women's collective, in order to understand the perceptions of these two
groups on the subject. Violence is understood as a Public Health issue, with historical
and cultural roots, and its occurrence brings significant damage to mental health. It
makes use of an intersection with the policies of the SUAS and a civil society
organization to promote different types of knowledge, presented through narrative
focus groups, a qualitative research method that contains a hermeneutic moment
with narrative effects; it is, at the same time, a construction and intervention. The two
constructed narratives were close to each other – how to understand violence as a
social phenomenon – and some distances, with the CREAS narrative being more
technical and theoretical and the collective narrative more instinctive and poetic.
Together, they make up a scenario of different resources and understandings about
the phenomenon of violence against women. This junction is expressed in the
technical product, which is a virtual educational guide for professionals in the public
services of small towns dealing with the theme, available on an electronic site. There
was a crossing of the Covid-19 pandemic in the research, which influenced the
collectively constructed narratives and brought the perspective of the increase in
domestic violence against women during the period of social distance. It is concluded
that the topic is of great relevance and current, and in order to face violence against
women, a collective body is necessary, since violence is the responsibility of all
public services.

Keywords: Community Health, Violence Against Women; Mental Health; COVID-19.


SUMÁRIO

Introdução ………………………………………………………………….……………… 11
Saúde Coletiva ………………………………………………….. 11
Violência contra a mulher: SUS e SUAS …………………..… 14
Violência contra a mulher na pandemia de Covid-19 …….... 24

Objetivos …………………………………………………………………………………... 28
Objetivo geral ………………………………………………..….. 28
Objetivos específicos ……………………………………….….. 28
Metodologia ……………………………………………………………………………….. 28
Violência contra a mulher: CREAS de Ilha Solteira ……...…. 28
Abordagem qualitativa ……………………………………….… 37
Grupos focais ………………………………………………...…. 38
A escolha de incluir o Coletivo ISAMulher na metodologia ... 43
Resultados ……………………………………………………………………………….... 45
Discussão geral ……………………………………………………………………….….. 67
Conclusão …………………………………………………………………………….…… 79
Referências ……………………………………………………………………………….. 83
Apêndices …………………………………………………………………………….…… 87
Produto técnico …………………………………………………. 87
Anexos ………………………………………………………………………..…………… 90
Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa………………….… 90
Autorização do setor responsável da prefeitura ………....…. 97
Machistômetro ………………………………………………….. 98
Narrativa ampliada CREAS ……………………….…..…..…. 100
Narrativa ampliada Coletivo ISAMulher ……………….….… 114
11

1. INTRODUÇÃO

1.1 Saúde Coletiva

A Saúde Coletiva é um campo de conhecimento estabelecido há poucas


décadas, e que se refere ao trabalho com a saúde de comunidades enfatizando
as áreas de Epidemiologia, Administração/Planejamento e Ciências Sociais da
Saúde (SCARCELLI & ALENCAR, 2009). O conceito de saúde é entendido de
forma ampliada, como descreve o relatório final da 8ª Conferência Nacional da
Saúde de 1986:

“Em seu sentido mais abrangente, a saúde é a resultante


das condições de alimentação, habitação, educação,
renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego,
lazer, liberdade, acesso e posse de terra e acesso a
serviços de saúde. É, assim, antes de tudo, o resultado
das formas de organização social da produção, as quais
podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida.
A saúde não é um conceito abstrato. Define-se no
contexto histórico de determinada sociedade e num dado
momento de seu desenvolvimento, devendo ser
conquistada pela população em suas lutas cotidianas”
(1987, p. 382).

O relatório final da 8ª Conferência Nacional de Saúde é um marco do


movimento sanitário que tomou força no Brasil na década de 1980, e fez parte
do processo de redemocratização contraposto à política de Estado da Ditadura
Civil-Militar brasileira. Esse relatório inspirou a formulação do Sistema Único de
Saúde, criado em 1988 na Constituição Federal Brasileira e formalizado em
1990 através da Lei Orgânica de Saúde 8.080 de 19 de setembro e da Lei
8.142 de 28 dezembro do mesmo ano. A implementação do SUS ainda está
em processo.

“[…] A Reforma Sanitária não se definia como programa


de governo ou como política social do Estado. Constituía
um projeto político-cultural, nascido da sociedade civil,
no interior dos movimentos sociais pela democratização
da saúde, cujo corpo doutrinário sedimentou-se na 8ª
CNS” (PAIM, 1988 apud PAIM, 2008).
12

A Reforma Sanitária é orientada para adentrar o cotidiano dos cidadãos


através do controle social das políticas públicas, não se reduzindo à legislação
e a planejamentos institucionais (PAIM, 2008). Um dos chamamentos
conhecidos do movimento sanitário é “saúde é democracia e democracia é
saúde”.

Depois de pouco mais de 30 anos de SUS, Jairnilson Paim (2018) traça


algumas reflexões sobre esse caminho. Os princípios sanitaristas encontram-
se nas bases legais do SUS e em normas técnicas e administrativas. A
formação sanitarista encontra espaço no ensino e pesquisa de institutos,
universidades e escolas de saúde pública, dando continuidade institucional ao
movimento sanitarista. Outras entidades sustentam a militância no Movimento
da Reforma Sanitária Brasileira como o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde
(Cebes) e Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), nomes
importantes com conhecimento de décadas.

Existe uma materialidade importante construída de

[…] avanços no sistema de vigilância em saúde, na vigilância


sanitária, na assistência farmacêutica, nos transplantes, no
SAMU e no controle do tabagismo, do HIV/AIDS e da qualidade
do sangue. O Programa Nacional de Imunizações é o maior do
mundo, induzindo a autossuficiência de imunobiológicos.
Merece destaque a atenção primária em saúde, vinculando
cerca de 60% da população brasileira às equipes de Saúde da
Família.
O país avançou no desenvolvimento de sistemas de
informação em saúde, a exemplo dos referentes à mortalidade,
às internações hospitalares e aos agravos de notificação,
importantes para o monitoramento e avaliação de políticas,
planos e programas.
Cabe, ainda, destacar o reconhecimento formal do direito à
saúde que tem possibilitado a difusão dessa conquista na
sociedade, seja nas manifestações da cidadania e na mídia,
seja nos processos de judicialização relevantes do ponto de
vista cultural, pois podem evoluir para uma consciência
sanitária crítica (PAIM, 2018, p. 1724-1725).

No entanto, o pacto social do final da ditadura que visava à transição


democrática foi aviltado por um golpe de meados de 2010 unido à mídia,
segmentos da classe média, parlamento e Judiciário. Existe um rastro de
13

ameaças e obstáculos ao SUS, como seu subfinanciamento, falta de prioridade


nas agendas governamentais, insuficiência de infraestrutura pública, impasses
nas mudanças dos modelos de atenção, falta de planejamento ascendente e
dificuldade de implementação das redes regionalizadas de serviços.

Associado a crises econômicas, esses ataques sistemáticos aos


princípios de equidade, integralidade e universalidade do cuidado caracterizam
um boicote ao SUS, na tentativa de justificar as privatizações e aumento do
campo de operadoras de saúde e da indústria farmacêutica. E esse cenário
tampouco significa o fim do SUS como política pública; interesses de classes
dominantes que adentram o próprio Estado utilizam de um SUS fragilizado para
acumulação, circulação e expansão do capital.

Esse panorama, para Jairnilson Paim, convoca à formulação de novas


estratégias e novas formas organizativas para continuar a defesa do direito à
saúde. O SUS avançou em muitos aspectos, mas não está exatamente
consolidado, precisa reunir forças no momento atual desfavorável para
continuar sua implementação. Conclui que “se o Estado sabota o SUS, resta à
sociedade civil lutar pela RSB e por um sistema de saúde universal, público, de
qualidade e efetivo, cabendo ao movimento sanitário contribuir para imprimir
um caráter mais progressista à revolução passiva brasileira. (2018, p. 1728,
grifos do autor).

ONOCKO-CAMPOS (2014) escreve em seu livro Psicanálise Saúde


Coletiva: Interfaces que a saúde coletiva brasileira “deu ênfase nos
determinantes sociais nos quais quer apoiar-se firmemente (p. 11)”, investindo,
nos últimos 30 anos, na interdisciplinaridade. Dessa forma, defende que existe
uma interface entre Psicanálise e Saúde Coletiva e uma “postura ético-política
pela e na psicanálise (p. 14)” que traz reflexões importantes sobre o trabalho
sanitarista, acompanhando o movimento de criação de serviços substitutivos ao
modelo manicomial de saúde mental. Para isso, deve-se recusar a concepção
de psicanálise como campo da interioridade, isolado do meio social. A
psicanálise é entendida, aqui, como ferramenta para estudar os laços sociais
que criam cultura – laços que também são, em alguma medida, criados por ela,
sempre comportando especificidades das múltiplas formas de enlaçamento. E
é a partir dessa intersecção entre Saúde Coletiva e Psicanálise que
14

abordaremos a questão do fenômeno da violência.

1.2 Violência contra a mulher: SUS e SUAS

De novo a pátria puta me traiu


E eu sirvo de cadela no cio
(Amanda Pacífico / Cacau de
Sá)

Minayo (2007) escreve que, Segundo a Organização Mundial de Saúde,


em seu Relatório Mundial Sobre Violência e Saúde, violência é

uso intencional da força física ou do poder real ou em


ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra
um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha
qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte, dano
psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação
(KRUG et al., 2002, p. 5).
Muitas outras definições existem, algumas
coincidentes, algumas divergentes. Por ser um fenômeno
complexo e multicausal que atinge todas as pessoas e
as afeta emocionalmente, a violência foge a qualquer
conceituação precisa e cabal (p. 22).

A autora prossegue seu raciocínio diferenciando agressividade de


violência, diferenciação importante para a Psicanálise e que, portanto, aqui nos
interessa:

podemos dizer, segundo Freud (1980), que a


agressividade é um impulso nato, essencial à
sobrevivência, à defesa e à adaptação dos seres
humanos. Constitui-se como elemento protetor que
possibilita a construção do espaço interior do indivíduo,
promovendo a diferenciação entre o EU e o OUTRO.
Portanto, a agressividade, ao contrário da violência,
inscreve-se no próprio processo de constituição da
subjetividade. A transformação da agressividade em
violência é um processo ao mesmo tempo social e
psicossocial para o qual contribuem as
circunstâncias sociais, o ambiente cultural, as
formas de relações primárias e comunitárias e,
também, as idiossincrasias dos sujeitos (p. 23, grifo
meu).
15

Coerentemente à sua descrição da pesquisa social, Minayo traz na


definição de violência as dimensões social e histórica. A violência é social e
humana porque “ela consiste no uso da força, do poder e de privilégios para
dominar, submeter e provocar danos a outros: indivíduos, grupos e
coletividades (p. 23)”, e é histórica porque ela se apresenta sob formas
diferentes dependendo da sociedade e da época. Além disso, há violências que
persistem no tempo e se manifestam em diversas sociedades, como a violência
de gênero (sobretudo a violência do homem contra a mulher) e de raça (como
dos brancos contra negros). “Essas modalidades de expressão
permanecem ‘naturalizadas’: é como se, ao cometê-las, as pessoas
julgassem que estão fazendo algo normal (p.23, grifo meu)”.

Minayo prossegue a conceituação de violência, nessa publicação,


enveredando-se pela diferenciação entre violência e acidente – presente em
notações de políticas públicas de saúde, mas que aqui não interessa muito –, e
menciona outros tipos de violência que, aqui, vale destaque a violência
estrutural, a violência institucional, violência cultural (onde estão a
violência de gênero e a violência racial) e violência intrafamiliar. A natureza
das violências é colocada como física, psicológica, sexual, abuso financeiro e
negligência, abandono ou privação de cuidados. Essas categorias são aqui
mencionadas en passant para enriquecer a discussão da pesquisa de campo,
sem a necessidade de minuciar como uma pesquisa estritamente bibliográfica.

Para Júnior e Besset (2010), “é possível definir a violência como sendo o


exercício de um poder ou de uma força sobre um outro, contra sua vontade e
sem seu consentimento (p. 324)”, em termos gerais. Uma vez que a psicanálise
de Freud na atualidade se ocupa de reflexões sobre as novas formas de
sintoma e do mal-estar na civilização, pode-se entender que

[…] partindo da suposição de que a violência seria um


excesso pulsional ocasionando a ruptura dos laços
sociais constituídos no interior da cultura, nos
perguntamos qual seria o estatuto da violência no
contemporâneo. Nele, parece haver uma exibição do
excesso, na qual a persistência do emprego da força e
da crueldade surgiria como uma consequência da
submissão do sujeito a um tipo de discurso que não
reconhece seu avesso (IDEM, p. 325).
16

Para eles, a violência como fenômeno é indissociável da subjetividade


da época, ocupando a violência lugar central na dinâmica cultural. Ou seja, a
violência, componente da cultura desde tempos imemoriais, teria sentido,
função e motivações diferentes se comparadas suas manifestações na
Antiguidade e na Atualidade. Para Weijenborg & Campos (2019), a violência é
a manifestação vinculada a valores sociais da agressividade, agressividade
essa característica da pulsão; é uma manifestação de uma realização parcial
da pulsão. A agressividade pulsional, que precisa se vestir com interditos para
ser aceita no social, é constituinte da subjetividade. O sujeito é inaugurado ao
dar algum destino à sua pulsão e possui uma tênue linha: ao mesmo tempo
que a realização total da pulsão seria um possível aniquilamento do sujeito, a
sua realização parcial e insatisfatória inaugura esse sujeito, que é o que
permite o laço social. À pesquisa, aqui, interessa entender essa imbricação
entre manifestações de violência e a produção da cultura, relação íntima que
apresenta diferentes roupagens em diferentes épocas.
Segundo o Conselho Federal de Psicologia – CFP, em documento sobre
orientação à atuação de psicólogos com crianças em situação de violência,

“A violência deve ser compreendida como produto de um


sistema complexo, de relações historicamente
construídas e multideterminadas, que envolve diferentes
realidades de uma sociedade, assentadas em uma
cultura, permeadas por valores e representações
(AMORIM, 2005). Essa multideterminação implica,
portanto, que voltemos nosso olhar para as diferentes
realidades – familiar, social, econômica, política, jurídica
– que estão assentadas em uma cultura e organizadas
em uma rede dinâmica de produção de violência. (CFP,
2009, p. 34)”.

Dentro da trama de tensões, violências e iniquidades sociais, a presente


pesquisa escolheu ficar às voltas especificamente com a violência contra a
mulher. Para isso, acrescentamos à discussão sobre violência a questão de
gênero.

Por gênero, entendemos a modelação por meio de


atributos culturais associados ao sexo e às suas
peculiaridades biológicas. Em outras palavras, definimos
como gênero os modelos socialmente construídos
17

acerca do que vem a ser homem e mulher (ZUMA,


MENDES, CAVALCANTI & GOMES, 2007, p. 150).

Portanto, violência contra a mulher, nessa pesquisa, é considerada a


violência dirigida a mulheres enquanto categoria de gênero socialmente
construída em torno de características fisiológicas sexuais dicotômicas. O
intuito não é dar conta da discussão da pluralidade de gênero, identidades e
expressões afetivas, mas considerar que a violência contra a mulher é uma
categoria de análise viável e que funciona com base na díade homem-mulher
interferindo inclusive na vida de pessoas que não se encontram nesse modelo
binário. Para não arborizar demasiadamente a pesquisa de campo, não
estritamente bibliográfica, mas sem deixar de mencionar questões relevantes,
indica-se consultar essa discussão no texto “Violência contra a mulher: uma
questão transnacional e transcultural das relações de gênero”, capítulo de
Gomes, Minayo e Silva no livro “Impacto da violência na saúde dos brasileiros”,
de 2005, do Ministério da Saúde1, e o livro “Questões sobre gênero: novos
paradigmas e horizontes”, da Gradus Editora, de 2021, cujos organizadores
são a queridíssima BORTOLOZZI, A. C.; RIBEIRO, P. R. M.; TEIXEIRA, F.;
CHAGAS, I.; VILAÇA, T.; MENDES, P. de O. S. P.; MELO, S. M. M.; ROSSI, C.
R.; MARTINS, I.

Para a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a


Violência Contra a Mulher, violência contra a mulher é “qualquer ato ou
conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico,
sexual ou psicológico à Mulher, tanto na esfera pública como na esfera
privada” (1994). Para a Lei Maria da Penha (Lei Federal 11.340/06), “configura-
se violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão
baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou
psicológico e dano moral ou patrimonial”.

Segundo o Atlas da Violência de 2018, em 2016, 4.645 mulheres foram


assassinadas no país, o que representa uma taxa de 4,5 homicídios para cada
100 mil brasileiras. Em dez anos, observa-se um aumento de 6,4%. Vale
ressaltar que a mulher que se torna uma vítima fatal, foi anteriormente vítima
de outras violências de gênero, como por exemplo a violência psicológica,

1 Disponível em <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/impacto_violencia.pdf>,
18

patrimonial, física ou sexual. Ou seja, muitas mortes poderiam ser evitadas,


impedindo o desfecho fatal, caso as mulheres tivessem tido opções concretas e
apoio para conseguir sair de um ciclo de violência.
Ainda de acordo o mesmo Atlas da Violência,

As categorias de gênero e raça são fundamentais para


entender a violência letal contra a mulher, que é, em
última instância, resultado da produção e reprodução da
iniquidade que permeia a sociedade brasileira.
Desagregando-se a população feminina pela variável
raça/cor, confirma-se um fenômeno já amplamente
conhecido: considerando-se os dados de 2016, a taxa de
homicídios é maior entre as mulheres negras (5,3) que
entre as não negras (3,1) – a diferença é de 71%. Em
relação aos dez anos da série, a taxa de homicídios para
cada 100 mil mulheres negras aumentou 15,4%,
enquanto que entre as não negras houve queda de 8%
(2018, p. 51)

Ou seja, racializar as pesquisas acadêmicas é um posicionamento ético


necessário, levando em conta que raça/cor implica divisão em classes sociais e
que a população que se autodeclara negra, no Brasil, é de quase 50% da
população de todo o território, assim como a proporção de mulheres é também
de quase 50% no país.
Outro dado alarmante é o crescimento no número de casos de violência
doméstica registrados no Brasil em 2017. No total, foram relacionados
1.273.398 processos em tramitação nas justiças estaduais em todo o país,
sendo 388.263 destes novos casos são de violência doméstica e familiar contra
a mulher, um aumento de 16% em relação ao ano anterior. Até o final de 2017,
havia um processo judicial de violência doméstica para cada 100 mulheres
brasileiras; de acordo com dados do Departamento de Pesquisas Judiciárias do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Como a presente pesquisa atravessou a pandemia e levou quase o
tempo de um doutorado, é importante recorrer, além do Atlas da Violência de
2018 (contexto para a proposta desta pesquisa), ao Atlas da Violência mais
atualizado, de 2021.
Segundo o Atlas da Violência de 2021, em 2019, 3.737 mulheres foram
assassinadas no Brasil (3,5 vítimas para cada 100mil habitantes), uma redução
considerável de 17,3% em relação aos 4.519 homicídios femininos registrados
19

em 2018 (4,3 vítimas para cada 100mil habitantes), e acompanha a tendência


do indicador geral de homicídios (tanto de homens quanto mulheres) que
reduziu 21,5% em relação ao ano anterior. Esse total de mortes de mulheres
inclui tanto por violência de gênero quanto por outros motivos, como violência
urbana.
Ainda de acordo com o Atlas da Violência de 2021,

Em 2019, 66% das mulheres assassinadas no Brasil


eram negras18. Em termos relativos, enquanto a taxa de
homicídios de mulheres não negras foi de 2,5, a mesma
taxa para as mulheres negras foi de 4,1. Isso quer dizer
que o risco relativo19 de uma mulher negra ser vítima de
homicídio é 1,7 vezes maior do que o de uma mulher não
negra[…]
Essa tendência vem sendo verificada há vários anos,
mas o que a análise dos últimos onze anos indica é que
a redução da violência letal não se traduziu na redução
da desigualdade racial. A evolução da taxa de homicídios
femininos por raça/cor no Gráfico 5.4 mostra que, em
2009, a taxa de mortalidade entre mulheres negras era
de 4,9 por 100 mil, ao passo que entre não negras a taxa
era de 3,3 por 100 mil. Pouco mais de uma década
depois, em 2019, a taxa de mortalidade de mulheres
negras caiu para 4,1 por 100 mil, redução de 15,7%, e
entre não negras para 2,5 por 100 mil, redução de
24,5%. Se considerarmos a diferença entre as duas
taxas verificamos que, em 2009, a taxa de mortalidade
de mulheres negras era 48,5% superior à de
mulheres não negras, e onze anos depois a taxa de
mortalidade de mulheres negras é 65,8% superior à
de não negras. (p. 38, grifos do autor)

Observa-se que a classificação utilizada é a do IBGE que considera


“negras” a soma das pessoas pretas e pardas, e “não negras” a soma das
pessoas brancas, amarelas e indígenas. A diluição da pauta indígena
mereceria destaque em pesquisa própria.

A análise dos últimos onze anos indica que, enquanto


os homicídios de mulheres nas residências
cresceram 10,6% entre 2009 e 2019, os assassinatos
fora das residências apresentaram redução de 20,6%
no mesmo período, indicando um provável crescimento
da violência doméstica. (p. 41, grifos do autor)
20

Ou seja, violência contra mulher e violência doméstica ainda são


conceitos intimamente ligados e devem compor o planejamento de políticas
públicas, assim como um olhar expressivo para o racismo e genocídio da
população indígena.

A violência doméstica está relacionada de forma direta com a violência


psicológica. De acordo com pesquisa organizada pelo Instituto Datasenado, de
2017, realizada com 1.116 mulheres de todo o país, 47% das mulheres
afirmaram ter sofrido algum tipo de violência psicológica.
Um estudo publicado na Revista Panamericana de Salud Pública (v.
354, n. 4, 2014), aponta que mulheres que sofrem com a violência podem
apresentar depressão, abuso de substâncias psicoativas e problemas de saúde
como cefaleias, distúrbios gastrintestinais e sofrimento psíquico. Além disso, a
violência impacta também na saúde reprodutiva, como no caso de gravidez
indesejada, dor pélvica crônica, doença inflamatória pélvica e doenças
sexualmente transmissíveis. A violência também pode ocasionar a ocorrência
tardia de morbidades como artrite, problemas cardíacos e hipertensão. Ou seja,
a violência tem impacto direto na saúde.
Kathie Njaine, Simone de Assis e Patricia Constantino são
organizadoras da publicação Impactos da Violência na Saúde (2007), pela
Editora Fiocruz. Nessa publicação, Maria Cecília Minayo escreve o primeiro
capítulo trazendo que
Violência não é um problema médico típico, é,
fundamentalmente, um problema social que acompanha
toda a história e as transformações da humanidade. No
entanto, a violência afeta muito a saúde:
- ela provoca morte, lesões e traumas físicos e um sem-
número de agravos mentais, emocionais e espirituais;
- diminui a qualidade de vida das pessoas e das
coletividades;
- mostra a inadequação da organização tradicional dos
serviços de saúde;
- coloca novos problemas para o atendimento médico; e
- evidencia a necessidade de uma atuação muito mais
específica, interdisciplinar, multiprofissional, intersetorial
e engajada do setor, visando às necessidades dos
cidadãos. (p. 22)

Além disso, a violência pode perpassar gerações, o que é chamado de


violência transgeracional. Em outras palavras, as pessoas que sofrem
21

violência, podem vir a praticar atos violentos e/ou de negligência contra os


filhos, irmãos ou pessoas que compõem sua rede de relações (ONOCKO-
CAMPOS, 2018). Dessa forma, a violência é perpetuada de forma cíclica
podendo gerar agravos à saúde de gerações de famílias caso não haja
intervenção e prevenção.

É preciso interromper o ciclo de reprodução da violência.


Ela pode atravessar muitas gerações, considerando a
aprendizagem social e a repetição de situações não
resolvidas entre avós-pais-filhos. Além disso,
estudos mostram haver conexão entre a violência física
contra criança e adolescente e a concomitante violência
entre o casal. Na realidade, é rara a prática de apenas
um tipo de violência. (CAVALCANTE & SCHENKER,
2007, p.213).

O SUS possui documentos, como a Portaria nº. 2.406/04/GM do


Ministério da Saúde, que institui serviço de notificação compulsória de
violência contra a mulher, a Portaria Interministerial nº 288, de 25 de Março
de 2015, que estabelece orientações para a organização e integração do
atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança
pública e pelos profissionais de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS)
quanto à humanização do atendimento e ao registro de informações e coleta de
vestígios; a Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013, que dispõe sobre o
atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual;
o Decreto nº 7.958, de 13 de março de 2013, que estabelece diretrizes para o
atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança
pública e da rede de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS); a Portaria
nº 485/GM/MS, de 1º de abril de 2014, que redefine o funcionamento do
Serviço de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Sexual no âmbito do
SUS – legislação que fornece certos parâmetros para atendimento a pessoas
em situação de violência.

Outros parâmetros do SUS podem ser encontrados em cadernos do


Ministério da Saúde, como a Violência Intrafamiliar: Orientações para Prática
em Serviço (2001), e da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres,
com a Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra Mulheres (2011).
Já na cartilha Manual para Atendimentos às Vítimas de Violência na Rede de
22

Saúde Pública do DF, são catalogados os tipos de violência: contra criança e


adolescente, contra a mulher, contra o idoso, violência de gênero, intrafamiliar,
física, institucional, moral, patrimonial, psicológica, sexual, Síndrome de
Munchausen por procuração, negligência, assédio moral e
autoextermínio/suicídio. Além desses, existem outras publicações e
experiências de políticas públicas de saúde a favor das mulheres. Ou seja,
existem parâmetros no SUS sobre atuação com vítimas de violência que
podem ser explorados e compartilhados.

A violência tem constituído um grande ônus para as políticas públicas,


seja na Saúde ou outras, como a Assistência Social. A demanda é crescente e
há necessidade de estratégias efetivas para a prevenção de seus efeitos
deletérios (em termos de saúde física e mental, tempo de trabalho perdido,
etc.). Assim, também tem se assistido, quase que de maneira impotente, a
repetição do ciclo da violência, geração após geração, criando um círculo de
difícil solução.

A Assistência Social é entendida como um direito do cidadão e dever do


Estado desde a Constituição Federal de 1988, encarregada para atuar em
situação de risco social como mendicância, abandono, negligência, violências e
em outras situações de violação de direitos básicos do ser humano. Em 1993 é
publicada a lei nº 8742, a Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS, estando
a Assistência Social ao lado da Saúde e da Previdência Social como o bloco de
Seguridade Social. Em 2005 que é instituído o Sistema Único de Assistência
Social, o SUAS, cujos objetivos são a proteção social, vigilância
socioassistencial e defesa de direitos dos brasileiros, ratificado em 2011 com a
lei nº 12.435. Ou seja, o SUAS é uma política social mais recente que o SUS, e
também está em constante implementação.

O SUAS organiza suas ações em dois tipos de proteção social: a


Proteção Social Básica e a Proteção Social Especial. A Proteção Social Básica
tem enfoque na prevenção de riscos e de violações de direitos de pessoas e
famílias em situação de vulnerabilidade social, enquanto a Proteção Social
Especial é destinada a famílias e indivíduos que já se encontram em situação
de violação de direitos ou de risco. As duas modalidades incluem atendimento
à necessidade de benefícios de transferência de renda para restabelecer a
23

autonomia e cidadania de indivíduos e famílias.

Dentro da Proteção Social Especial, segundo a resolução nº 109/2009


que aprova a Tipificação Nacional dos Serviços Assistenciais, existem dois
tipos: o de Média e o de Alta Complexidade. O serviço de Proteção Social
Especial de Alta Complexidade se encarrega dos acolhimentos (institucional,
em república, em família acolhedora) e da proteção em situações de
calamidades públicas e emergências. A presente pesquisa será feita no âmbito
da Proteção Social Especial de Média Complexidade do SUAS, no qual se
encontra o Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e
Indivíduos (PAEFI), realizado pelo CREAS (Centro de Referência
Especializado de Assistência Social).

No universo das políticas públicas que atendem a mulher em situação


de violência, onde há intersecção entre SUAS e Saúde Coletiva, pergunta-se:
quais as percepções dos trabalhadores de um CREAS sobre a violência contra
a mulher? Quais os desafios e possibilidades enxergados por trabalhadores de
CREAS, usuárias de serviço e comunidade organizada no enfrentamento à
violência contra as mulheres? Como instrumentalizar com recursos concretos,
comunitários e vivenciais o atendimento à violência contra a mulher?
A violência é um fenômeno com múltiplas variáveis e determinações
constitutivas do alicerce cultural da nossa sociedade. O CFP com os Conselhos
Regionais de Psicologia formulam uma orientação de que:

[…] 4) É necessário aprofundar a discussão sobre os


conceitos de violência, de abuso sexual e sobre os
cuidados com os encaminhamentos envolvendo todos os
atores da rede e do próprio Sistema de Garantia de
Direitos.
5) Os governos devem investir nas iniciativas de
fortalecimento das redes de proteção e do Sistema
Garantia de Direitos [...] (CFP, 2010, p. 120 e 121).

Dessa forma, a presente pesquisa investigou percepções sobre a


violência contra a mulher no CREAS de Ilha Solteira-SP a partir da ótica da
equipe profissional do CREAS e de um coletivo de mulheres que atua e estuda
esse tema. Esta pesquisa faz parte da pesquisa chamada “Pesquisa de
implementação de um ambulatório para pessoas expostas à situação de
24

violência em um hospital universitário”, cuja pesquisadora principal é a Profª


Drª Rosana Teresa Onocko-Campos, realizada no Departamento de Saúde
Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de
Campinas, Secretaria de Saúde de Campinas, Secretaria de Assistência de
Campinas e Hospital Universitário da Universidade Estadual de Campinas,
patrocinada pela Chamada MCTIC/CNPq Nº 28/2018 - Universal/Faixa C - De
R$ 0,00 a R$ 120.000,00 - Processo (426778/2018-9), devidamente
apresentada no artigo Implementação de um Ambulatório Psicossocial Para
Pessoas Expostas a Situação de Violência em um Hospital Universitário,
publicado na revista Nesme em 2021 (p. 42-52), pelas autoras Alice Andrade
Silva, Carolina Con Andrades Luiz, Rosana teresa Onocko-Campos, Erotildes
Maria Leal, Giovana Pellatti D Lopes e Juliana Américo Dainezi.
O tema de violência contra a mulher foi escolhido dentre todo o público
que a pesquisa de implementação envolve por afinidade com o tema, além de
tratar de uma pesquisa de nível de mestrado que tem um tempo menor de
trabalho em comparação a um doutorado.
Observa-se que eu participei do Coletivo mencionado e da equipe de
CREAS. No final do mestrado, depois das narrativas prontas, houve uma
mudança do CREAS para a Alta Complexidade da Assistência Social, então
durante o início da pesquisa e toda a construção das narrativas estive na
equipe do CREAS. No CREAS, trabalhei no PAEFI atuando principalmente
com crianças/adolescentes e mulheres vítimas de violência. Desde anos antes
do mestrado e o trabalho, a pesquisa de Iniciação Científica e participação em
movimento social foi no tema violência de gênero. É um tema de interesse
menos intencional do que parece, pois essa atuação foi permeada por felizes
acasos que, associados à análise pessoal, dão sentido ao chamamento que
parece vir das temáticas Violência e Saúde Mental. Esse enquadre da
implicação é importante de ser citado, principalmente por conta do momento da
análise da pesquisa. Para se ter ideia da extensão dessa implicação, para além
de uma breve citação, espera-se ser suficiente o estilo de escrita que, como
mencionado gentilmente pela banca de defesa, “expressa apropriação e
envolvimento com o tema”.

1.3 Violência contra a mulher na pandemia de Covid-19


25

Esta pesquisa foi iniciada no final de 2019, e, em 11 de março de 2020


foi marcada por um atravessamento importante: a declaração pela Organização
Mundial de Saúde de pandemia de Covid-19, doença causada pelo novo
coronavírus (Sars-Cov-2). Como a pesquisa se deu até início de 2022 e,
durante a construção de seus dados, a pandemia foi citada como questão
essencial sobre violência contra a mulher, é necessário fazer este adendo.
O Portal Fiocruz, sítio eletrônico, manteve-se atualizado trazendo
informações importantes sobre a pandemia: seus impactos na saúde mental,
na violência doméstica, orientações a profissionais da saúde e diversos outros
materiais. Na seção “impactos sociais da pandemia” do Observatório Covid-19,
existe o tópico “Gênero e Covid-192” e sua apresentação é a seguinte:

A pandemia de Covid-19 impacta de forma heterogênea


pessoas de diferentes gêneros. O aumento da violência
doméstica contra mulheres e pessoas trans, os altos
índices de mortalidade materna, a sobrecarga feminina
de trabalhos domésticos e ligados ao cuidado, a
preponderância de mulheres e minorias de gênero nos
setores mais afetados pela crise econômica e a maior
mortalidade entre homens são exemplos de efeitos
diversos da pandemia sobre os gêneros. Através de uma
lente de gênero é possível analisar os efeitos da
pandemia da Covid-19 de forma a captar e demonstrar
as desigualdades, iniquidades e vulnerabilidades que
marcam o espaço social. Neste sentido, estudos de
gênero são fundamentais para produzir reflexões e
proposições sobre as relações entre saúde e cuidado,
bem como entre as normas culturais que fazem parte da
estrutura social, engendrando subjetividades em
homens, mulheres e pessoas que não se identificam de
maneira binária.

A partir dessa página de apresentação, é possível acessar diversos


materiais, como o Boletim BiblioCovid v.2 n.3 de março de 2021 3, que trata da
Covid-19 e Saúde da Mulher, e links de acesso a páginas como da Revista
Galileu e do Think Olga. A página da Revista Galileu traz uma reportagem
mencionando que
2 Disponível em <https://portal.fiocruz.br/genero-e-covid-19>, acesso em 18 de abril de 2022.

3 Disponível em
<https://www.icict.fiocruz.br/sites/www.icict.fiocruz.br/files/boletim_bibliocovid_-
_edicao_marco_2021.pdf>, acesso em 18 de abril de 2022.
26

Em abril de 2020, um mês após a declaração da


Organização Mundial da Saúde (OMS) de que o mundo
enfrentava uma nova pandemia, a Organização das
Nações Unidas (ONU) emitiu um documento já prevendo
os impactos para as mulheres e traçando orientações de
políticas que poderiam ser adotadas para mitigá-los. “O
ano de 2020, que marca o 25º aniversário da Plataforma
de Pequim para Ação, era para ser um divisor de águas
na igualdade de gênero. Em vez disso, com a pandemia
de Covid-19, até os ganhos limitados conquistados nas
últimas décadas estão sob o risco de retrocederem”, diz
o texto do documento. “Em todas as esferas, da saúde à
economia, segurança à seguridade social, os impactos
da Covid-19 são exacerbados para mulheres e meninas
simplesmente por causa de seu sexo.”
[…]
“No Brasil, a gente já vive em uma sociedade opressora
para as mulheres, e a pandemia fez isso crescer
exponencialmente”, analisa a antropóloga Denise
Pimenta, pesquisadora do Instituto René Rachou
(Fiocruz Minas) e do projeto Gender&Covid-19, um grupo
que reúne estudiosos do mundo todo para investigar os
impactos da pandemia nas mulheres (MARASCIULO,
mar/2021 atualizado em mar/2022).

São citados alguns desafios colocados às mulheres no cenário


pandêmico: dificuldade no cuidado com os filhos, pobreza, violência doméstica,
fez muitas mulheres conviverem mais tempo com agressores dentro de casa e
tiveram sua saúde mental devastada. O marcador raça também exprime essa
discrepância: levantamento do Instituto Polis na cidade de São Paulo mostrou
que mulheres negras morreram mais de Covid-19 do que mulheres brancas (a
cada 100 mil habitantes, 140 mortes de negras contra 85 mortes de brancas);
serviços informais como faxina, estética e vendas ambulantes (exercidas
majoritariamente por mulheres negras) tiveram que ser interrompidas pela
necessidade de distanciamento social. “As mulheres se viram de repente sem
trabalho e sem renda”, pontua a economista Marilane Teixeira, doutora em
desenvolvimento econômico pela Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) e pesquisadora na mesma instituição (IDEM). Taxa de desemprego,
informalidade e subocupação de mulheres aumentaram desastrosamente na
pandemia. Mesmo as mulheres em cargos formais dispenderam bem mais
tempo com atividades domésticas e cuidados com filhos do que homens
igualmente com filhos, mesmo em países ricos como EUA.
27

Ainda é difícil prever os efeitos que tamanha


desigualdade pode ter na economia a longo prazo, mas
as perspectivas não são boas. “Nós temos um contexto
sombrio e muito crítico para as mulheres, principalmente
no mercado informal, onde muitas ocupações podem até
acabar extintas”, diz a pesquisadora da Unicamp. “Mas a
sociedade não pode prescindir do trabalho das
mulheres.” O cenário de regressão na igualdade de
gênero devido à pandemia, sem que nada seja feito para
tentar revertê-lo, pode impedir o Produto Mundial Bruto
de crescer US$ 1 trilhão em 2030, de acordo com a
estimativa da McKinsey. Em contrapartida, agir agora
para melhorar as oportunidades entre os sexos
acrescentaria US$ 13 trilhões à economia global
(IBIDEM).

O artigo traz também que a pasta da Mulher, da Família e dos Direitos


Humanos recebeu 35% a mais de registros de denúncias de agressão em abril
de 2020 comparado a abril de 2019. O registro de violência doméstica
intensificou-se na pandemia, e também podemos dizer que esse tema acabou
recebendo maior visibilidade. A saúde emocional das mulheres mostrou dados
preocupantes de sintomas de depressão, ansiedade e estresse. Pode ser que
a subnotificação seja acentuada, pois a necessidade de isolamento e
distanciamento social diminuiu a mobilidade social e o acesso a serviços de
saúde, assistência social e segurança pública, além da maior vigilância das
mulheres por companheiros violentos que controlam seus telefones, corpos e
contatos sociais. A saúde reprodutiva percebeu queda preocupante de
acompanhamento ginecológico de rotina e a mudança de hábitos alimentares e
de exercícios trouxe impactos para a saúde geral.
A autora traz citação de Teixeira sobre uma crise que está se
prolongando por conta da intervenção do governo federal. Ou seja, podemos
observar que as políticas sociais que levem em conta mulheres e pessoas
negras na pandemia são tão necessárias que sua ausência impacta
gravemente essa população e a economia geral.
O outro portal eletrônico citado, Think Olga, traz um artigo 4 lembra que a
grande maioria das profissões de cuidado são exercidas por mulheres;
mulheres são destaque em cargos da linha de frente do cuidado na pandemia

4 Disponível em <https://lab.thinkolga.com/saude-das-mulheres/>, acesso em 18 de abril de


2022.
28

(como enfermeiras) e minoria em cargos de liderança. As mulheres cuidam de


mulheres com base em decisões e estratégias criadas por homens, no país
que, segundo o Instituto Lowy, foi o pior país do mundo no combate à
pandemia.

2. OBJETIVOS

2.1 Objetivo geral

Estudar as percepções de violência contra a mulher a partir de


trabalhadores do CREAS de um município paulista de pequeno porte e um
coletivo de mulheres que nasceu nesse mesmo município (e se estende, agora,
a outros estados) para enriquecer a discussão sobre o atendimento do SUS e
do SUAS às mulheres vítimas de violência.

2.2 Objetivos específicos

 Entender a concepção e percepções sobre violência a partir de atores


das políticas públicas municipais voltadas especificamente para o
atendimento às pessoas que sofreram violência;
 Compreender a concepção e percepções sobre violência a partir de um
coletivo de mulheres que trabalha com a questão da violência de gênero
desvinculado de organizações governamentais;
 Construir um produto técnico sobre atendimento às pessoas que
sofreram violência para ser compartilhado com a rede de políticas
públicas de Ilha Solteira-SP.

3. METODOLOGIA

3.1 Violência contra a mulher: CREAS de Ilha Solteira-SP

O CREAS de Ilha Solteira-SP existe desde 2005 e conta com equipe


multiprofissional com coordenação, psicólogas, assistentes sociais, agente
29

administrativo, serviços gerais e legionário mirim (jovem aprendiz) para realizar


atendimento de proteção social às famílias e indivíduos, favorecendo a
reparação da situação de risco e violência. Entre a coordenação do CREAS e a
gestão municipal da Assistência existe um cargo de Chefe de Divisão de
Proteção Social Especial. Ilha Solteira-SP é uma cidade turística de pequeno
porte do interior paulista, que forma divisa com o estado de Mato Groso do Sul.
Ilha Solteira foi fundada em 15 de outubro de 1968 e emancipada em 30 de
dezembro de 1991, construída com a Usina Hidrelétrica de Ilha Solteira. A
usina fica no rio Paraná, entre os municípios de Ilha Solteira/SP e Selvíria/MS,
sendo inicialmente da CESP (Cia Energética de São Paulo) e hoje da empresa
CTG Brasil, parte da China Three Gorges Corporation. É a maior usina
hidrelétrica do Estado e sexta maior do país. A cidade foi projetada e se
manteve mesmo depois da construção da barragem, tendo relevância os 3
campi da UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
implantados no município. A cidade recebeu esse nome por conta de uma
pequena ilha que existia perto do local onde foi construída sua usina
hidrelétrica. No início, Ilha Solteira era estratificada em níveis, de 1 a 6, que
designavam o tipo de casa e a região onde os estratos sociais habitavam – de
barrageiros a engenheiros. A cidade ainda mantém um dos níveis mais altos de
IDH do país e tem mais de 99% de alfabetização infantil (IBGE). Algumas das
características sociodemográficas e geopolíticas do município de Ilha Solteira
encontram-se no sítio eletrônico do IBGE, no qual conta que a população
estimada é de 26.540 pessoas [2017] – destas, 9.559 mulheres com 20 anos
ou mais e 3.306 meninas de até 19 anos –, seu Índice de Desenvolvimento
Humano Municipal (IDHM) é de 0,812 [2010] e PIB per capita é de R$
20.015,96 [2015].
O CREAS faz atendimentos individuais, grupais, compartilhados e
domiciliares, buscando outros setores quando necessário. A rede de serviços é
bastante completa para o porte do município: na Saúde, 10 ESFs, 1 NASF-AB,
1 CER, 1 CAPS, 1 Hospital Regional, 2 UBS (especialidades), 1 Centro
Odontológico, 1 CEREST. Na Assistência Social: 1 CRAS, 1 CREAS, 3
instituições parceiras de acolhimento institucional (crianças e adolescentes,
pessoas com deficiência e idosos), 1 instituição parceira Centro Dia (que
também recebe verba da Saúde), visitadores sociais do Cadastro Único e
30

Conselho Tutelar. A Educação municipal pública conta com Centros de


Educação Infantil, escolas de Educação Infantil, escolar de Ensino
Fundamental I e Ensino de Jovens e Adultos. O Ensino Fundamental II e
Ensino médio são oferecidos por três escolas estaduais, uma ETEC e um
Instituto Federal, além de contar com a UNESP, universidade com cursos
voltados à área de engenharias e ciências agrárias. A área de segurança
pública é constituída por Guarda Municipal, Polícia Civil, Polícia Militar, uma
Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) e Corpo de Bombeiros.
A maioria desses serviços consta no Protocolo de Fluxo de Atendimento
Intersetorial à Mulher em Situação de Violência do município e sua respectiva
Ficha de Notificação, ferramentas criadas e aprovadas por comissões
intersetoriais em busca da integralidade do atendimento a vítimas de violência.
Esse Protocolo, em anexo, responsabiliza e descreve o trabalho de cada um
dos setores no atendimento à violência e estabelece um fluxo baseado na
complexidade do caso. A Ficha de Notificação é utilizada para identificar,
descrever e encaminhar pessoas que sofreram violência para atendimento no
CREAS, utilizada também para os Protocolos de Fluxo de Atendimento
Intersetorial a Idosos e a Crianças e Adolescentes em Situação de Violência.
Mesmo havendo estes Protocolos, não significa que o fluxo acontece
perfeitamente ou sem resistências. Existe uma dificuldade em acolher pessoas
em situação de violência em espaços que não sejam o CREAS, dispositivo
estratégico no atendimento à violência, e também dificuldade em identificar
violências sofridas refletida no preenchimento incorreto da Ficha de
Notificação. Pela observação dessas Fichas, percebe-se que geralmente é um
setor específico que costuma encaminhar ou, geralmente, um mesmo
profissional. Há encaminhamentos de casos que não foram atendidos por
outros serviços competentes, como Proteção Social Básica e Atenção Primária
em Saúde, ou então pessoas foram atendidas mas não foi abordada a questão
de violência.
O pequeno município tem uma herança cultural de uma instituição
(CESP) que tutelava os moradores. A cidade era, antes, uma empresa que
fornecia acomodação, reparos domésticos, água, energia e toda assistência
individualizada imaginada. Como município, carrega o resquício de priorizar
interesses individuais em detrimento do coletivo, e haver pouco envolvimento
31

de munícipes no controle social de políticas, como se fossem clientes, e não


cidadãos. Dessa forma, a implementação das políticas como política social
ainda está em andamento.
Antes do início da pesquisa de fato, foi realizado um levantamento dos
prontuários do CREAS de mulheres atendidas por terem sofrido violência. O
sistema de informação não é preciso, não existe um banco de dados
sistematizado em uso, mas planilhas preenchidas por cada técnico sem
uniformização dos indicadores e características. Os dados existentes eram que
no início de 2020 haviam 220 casos ativos, destes, 79 eram de mulheres
adultas, sendo 65 da área urbana e 14 da rural. Não há nos prontuários espaço
reservado para autodeclaração de raça/cor, e os dados de declaração de renda
e escolaridade existem mas nem sempre são preenchidos. Sobre o tipo de
violência sofrida pelas mulheres, foram identificadas 30 como violência
doméstica, 6 violência sexual, 6 violência psicológica, 1 violência física, 1
violência física e psicológica, 14 não informados e os demais eram imprecisos
(ex: conflito familiar, violação de direitos, violência intrafamiliar etc).
Em consulta às estatísticas da Delegacia de Defesa da Mulher de Ilha
Solteira no início de abril de 2022, autorizada pela instituição, foram coletados
os dados de violência contra a mulher de 2019, 2020 e 2021, período de
construção das narrativas da pesquisa. A DDM tem ferramenta própria para
registrar suas estatísticas, e o item selecionado foi “total de crimes contra a
mulher”, dados de mês a mês, que é a soma dos registros de “Lei Maria da
Penha” de acordo com a “modalidade delituosa”. Foram realçados os meses
correspondentes à pandemia. Os dados obtidos foram:

Quadro 1: Dados de violência contra a mulher em Ilha Solteira segundo a DDM - 2019
2019 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez

Clúnia 1 1 1 2 2 1 1 1 1
/difam
ação/i
njúria

Amea 4 4 7 6 6 3 5 4 2 3 7 2
ça

Vias 2 2 1 3 2
de
32

fato

Lesão 4 1 1 2 1 1 3 1 4 4 1 2
corpor
al
dolos
a

Outro 3 1 1
s
crime
s

Violaç 2 1
ão de
domic
ílio

Outro 2
s
crime
s
contra
a
pesso
a

Outra 2 4 1 2 2 3
s
contra
vençõ
es

TOTA 15 8 15 16 8 10 10 5 9 10 12 5
L

Quadro 2: Dados de violência contra a mulher em Ilha Solteira segundo a DDM - 2020
2020 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez

Clúnia 3 1 1 2 1 1 1
/difam
ação/i
njúria

Amea 11 1 3 1 1 3 2 2 4 2 7 4
ça

Vias 4 2 3 1 1 1 1 2 6 1
de
fato
33

Lesão 3 2 5 1 5 3 1 2 1 2
corpor
al
dolos
a

Outro 1 1 1
s
crime
s

Violaç 3 1
ão de
domic
ílio

Outro
s
crime
s
contra
a
pesso
a

Tentat 1
iva de
homic
ídio

Outra 1 1 1 1 4 1 1 1
s
contra
vençõ
es

Esteli 1
onato

Outro 1
s
crime
s
contra
o
patrim
ônio

Perig 1
o de
vida
ou à
34

saúde
de
outre
m

TOTA 18 10 14 5 9 6 9 10 6 8 15 10
L

Quadro 3: Dados de violência contra a mulher em Ilha Solteira segundo a DDM - 2021
2021 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez

Clúnia 4 1 4 2 - - - 2 - - 2 -
/difam
ação/i
njúria

Amea 4 1 5 4 3 3 4 6 5 4 7 4
ça

Vias 1 - - - - 2 - 3 2 2 1 2
de
fato

Lesão - 1 2 1 2 1 - 3 3 3 1 -
corpor
al
dolos
a

Outro - - - - 1 1 - 1 - 1 - 2
s
crime
s

Violaç - - - - - 1 - 1 - - - 1
ão de
domic
ílio

Outro - - - - - 2 - - 2 1 - -
s
crime
s
contra
a
pesso
a
35

TOTA 9 3 11 7 6 10 4 16 12 11 11 9
L

A modalidade delituosa (tratada nas narrativas como os “tipos de


violência”) corresponde à linguagem criminal utilizada no serviço de segurança
pública, e suas categorias são definidas pela seccional do serviço; a DDM
completa de acordo com as categorias que aparecem em seu sistema, e, às
vezes, vem com algumas alterações. Observa-se que a categoria violência
psicológica, que tornou-se crime em meados de 2021, não aparece como
modalidade delituosa no ano, mas talvez apareça no ano corrente de 2022.
Além disso, a notação é bem diferente da notação do CREAS. Violência sexual
contra mulher aparece como “importunação sexual”, “estupro”, “assédio sexual”
ou “outros crimes contra a dignidade sexual”, e não houve nenhum registro
nesses três anos – diferente dos registros do CREAS. “Outros crimes” são, por
exemplo, violação de medida protetiva. Injúria, calúnia e difamação são
violência moral.

Nota-se que uma mesma pessoa pode registrar mais de uma ocorrência
na DDM. Número é de ocorrências, e não de pessoas, como é no CREAS.
Além disso, nem toda mulher atendida na DDM é atendida também no CREAS
e vice-versa. E o número contabilizado de mulheres atendidas no CREAS pode
ser de violências que ocorreram em 2020, 2019 ou até antes do período
selecionado na DDM, e este é um dado impreciso para ser descrito.

Outro aspecto interessante é que para saber a modalidade delituosa de


violência contra a mulher é preciso atentar à coluna “Lei Maria da Penha”, ou
seja, a ênfase é que a violência contra a mulher (contra o gênero mulher)
ocorre no ambiente doméstico, sendo que a violência conceitualmente é
enraizada em todas as relações sociais. As outras opções além de Lei Maria da
Penha são: “Menores”; “Inquéritos policiais instaurados”; “Flagrante”; “Não-
flagrante”; “Precatórias Recebidas”; “Precatórias Expedidas”… Ou seja, o dado
que melhor comunica a violência contra a mulher é de violência doméstica.

O relato de profissionais da DDM é de que têm a percepção que a


violência contra a mulher aumentou durante a pandemia, assim como são os
dados de outras pesquisas realizadas pelo mundo. No entanto, os dados
36

coletados na delegacia mostram uma certa estabilidade no total de casos do


ano: 2019, 123 casos; 2020, 120 casos, sendo que, desses, 92 foram durante a
pandemia; 2021, 109 casos. Não foram coletados dados de 2022 porque não
corresponde ao momento de construção dos dados da pesquisa.

Podemos pensar que nesse levantamento não é possível comparar o


número de violência contra a mulher antes e durante a pandemia, pois o
período antes da pandemia analisado é bem menor que o da pandemia. Por
isso, recorremos à outra pesquisa realizada também em Ilha Solteira sobre
violência contra a mulher, de autoria de um escrivão da própria DDM, que traz
dados de 2017 a agosto de 2020:

[…] no ano de 2017 foram registrados 96 crimes de


violência contra a mulher e foram encaminhadas a juízo
59 medidas protetivas de urgência. No ano de 2018
foram registrados 155 crimes de violência contra a
mulher e foram encaminhadas a juízo 84 medidas
protetivas de urgência.
Já no ano de 2019 foram registrados 123 crimes
de violência contra a mulher e foram encaminhadas a
juízo 99 medidas protetivas de urgência e no ano de
2020 foram registrados 95 crimes de violência contra a
mulher e foram encaminhadas a juízo 84 medidas
protetivas de urgência.
O registro destes crimes de violência contra a
mulher envolve agressões físicas, ameaças, injurias,
calunia e difamação cometidas em sua maioria pelos
companheiros ou ex-companheiros das vítimas, bem
como crimes de violência sexual, psicológica, moral e
patrimonial (MARTINEZ, p. 31-32, 2020).

Segundo esse levantamento, que inclui encaminhamentos das medidas


protetivas de urgência, 2017 apresentou número menor de ocorrências,
aumentou consideravelmente em 2018, reduziu um pouco em 2019 e, até
2021, houve discreta redução de ocorrências. Essa diminuição do número
absoluto de registros de violência contra a mulher acompanha a diminuição do
número absoluto dos Atlas da Violência de 2018 e 2021, no entanto, na
metodologia do Atlas é possível analisar melhor as variáveis raça/cor, tipo de
arma utilizada e outros dados que não temos em nível municipal. Além disso,
os dados do Atlas incluem violência contra a mulher não apenas em âmbito
doméstico, no entanto, sem indicar exatamente quantos são os casos de
violência de gênero. De maneira geral, pode-se entender que a violência
37

doméstica em Ilha Solteira durante a pandemia registrou um número


considerável de ocorrências, é difícil relacionar os dados da DDM com os
dados do CREAS e o atravessamento da pandemia nesta pesquisa é apenas
um dos aspectos da violência contra a mulher, não sendo sua principal
discussão.

3.2 Abordagem qualitativa

Dado o caráter dinâmico e histórico do objeto de investigação, entende-


se que a pesquisa social responde a esse panorama, uma vez que Minayo
(2010) escreve que

O objeto das Ciências Sociais é histórico. Isto significa


que as sociedades humanas existem num determinado
espaço cuja formação social e configuração são
específicas. Vivem o presente marcado pelo passado e
projetado para o futuro, num embate constante entre o
que está dado e o que está sendo construído (p. 13, grifo
da autora).

Ao discursar sobre a cientificidade da pesquisa social, Minayo (2010)


coloca a historicidade como uma das características desse tipo de pesquisa.
Outra característica é que

[…] o objeto das Ciências Sociais é essencialmente


qualitativo. A realidade social é o próprio dinamismo da
vida individual e coletiva com toda a riqueza de
significados dela transbordante. Essa mesma realidade é
mais rica que qualquer teoria, qualquer pensamento e
qualquer discurso que possamos elaborar sobre ela (p.
15, grifos da autora).

Gondim (2003), outra autora que discute cientificidade e pesquisa social,


traz duas grandes abordagens: a nomotética ou quantitativa e a idiográfica,
hermenêutica ou qualitativa. Sobre essas duas abordagens,

Conforme assevera Smith (1994), a perspectiva


hermenêutica dá conta de que a experiência humana
está atrelada ao contexto sócio-cultural e que é difícil
conceber uma linguagem nas ciências sociais que exclua
38

este contexto, quer seja pelos valores do pesquisador,


quer pelos do grupo estudado. Se na abordagem
nomotética há convicção de que o pesquisador é
desinteressado e crítico, na idiográfica, ao contrário, a
convicção é a de que o pesquisador assume uma posição
crítica, mas não consegue se desvencilhar do fato de que
está implicado no processo de investigação. Sua maneira
de olhar e interpretar o fenômeno é contextualizada
individual, social, cultural e historicamente (p. 150).

Dessa forma, considerando esse escopo literário e o contexto da


proposta de pesquisa, o método escolhido para a presente investigação é o
qualitativo, efetivando a coleta de dados através de grupos focais.

3.3 Grupos focais

Segundo Gondim (2003),

Morgan (1997) define grupos focais como uma técnica de


pesquisa que coleta dados por meio das interações
grupais ao se discutir um tópico especial sugerido pelo
pesquisador. Como técnica, ocupa uma posição
intermediária entre a observação participante e as
entrevistas em profundidade. Pode ser caracterizada
também como um recurso para compreender o processo
de construção das percepções, atitudes e representações
sociais de grupos humanos (Veiga & Gondim, 2001) (p.
151).

Ainda sobre grupos focais,


Segundo Westphal (1992), essa técnica permite verificar
de que modo as pessoas avaliam uma experiência, como
definem um problema e como suas opiniões,
sentimentos e representações encontram-se associados
a determinado fenômeno. Além de possibilitar a
apreensão não somente “do que” pensam os
participantes, mas também de “por que” eles pensam de
determinada forma, a interação grupal proporciona que o
pesquisador possa observar como a controvérsia vem à
tona e como os problemas são resolvidos (Westphal,
Bógus & Faria, 1996), evidenciando os diferentes graus
de consensos e dissensões existentes (Furtado, 2001).
Nesse sentido, os grupos focais colocam as pessoas em
situações próximas à situação real de vida, oferecendo
ao pesqui-ador a possibilidade de apreender a dinâmica
social e analisar a forma que adquirem as relações
interpessoais no contato com o tema em discussão
(Westphal, 1992) (MIRANDA, FIGUEIREDO, FERRER,
39

ONOCKO CAMPOS, 2008)

O grupo focal, para Gondim (2003), tem diferença em relação a uma


entrevista grupal pois “sua ênfase está nos processos psicossociais que
emergem, ou seja, no jogo de interinfluências da formação de opiniões sobre
um determinado tema” (p. 151). Gondim (2003) ainda escreve que há mais de
uma modalidade de grupo focal. Para a presente pesquisa, foi escolhido grupo
focal exploratório, sendo que

Os grupos exploratórios estão centrados na produção de


conteúdos; a sua orientação teórica está voltada para a
geração de hipóteses, o desenvolvimento de modelos e
teorias, enquanto que a prática tem como alvo a
produção de novas idéias, a identificação das
necessidades e expectativas e a descoberta de outros
usos para um produto específico. Sua ênfase reside no
plano intersubjetivo, ou melhor, naquilo que permite
identificar aspectos comuns de um grupo alvo (p. 152).

Grupos focais também são usados em pesquisas exploratórias para


gerar hipóteses, construir medidas ou complementar as conclusões de estudos
quantitativos, e para dar voz a grupos muitas vezes silenciados. Grupos focais
não são apenas unir pessoas para trocar ideias, mas requerem certos
objetivos, habilidades gerenciais, diretrizes, organização e procedimentos para
funcionar (ONOCKO-CAMPOS et al., 2017 p. 02).
Dentro da concepção de grupo focal exploratório, especifica-se que o
modelo adotado será o grupo focal narrativo. Grupo focal narrativo, segundo
MIRANDA, FIGUEIREDO, FERRER & ONOCKO CAMPOS (2008), foi o nome
dado à configuração sui generis que se desenvolveu no decorrer de uma
pesquisa avaliativa dos Centros de Atenção Psicossocial de Campinas-SP. A
pesquisa envolveu grupos focais, também à luz de Gondim, e ocorreu com
certas adaptações, por exemplo, a construção de narrativas a partir do que era
dito nos encontros dos grupos. As narrativas eram levadas, posteriormente, ao
mesmo grupo, para serem analisadas, transformadas e validadas.

Tendo em vista essas adaptações da técnica e os


produtos dela oriundos, concluímos que os grupos
desenvolvidos na nossa pesquisa requerem também
uma nova nomeação. Optamos por denominá-los grupos
focais narrativos, uma vez que entendemos que eles se
40

constituíram como narrativas e não descrições dos


processos de trabalho dos Caps. Sendo narrativos,
permitiram que o vivido se transformasse em discurso,
pudesse distanciar-se e produzir novas ressonâncias.
Serviram de mediação entre a memória e a ação política,
tal como propõe Kristeva (2002). Analisando a segunda
rodada dos grupos focais narrativos, torna-se evidente o
movimento hermenêutico que procuramos seguir como
linha metodológica desta pesquisa. Diante da
possibilidade de escutarem as narrativas que eles
próprios construíram, os participantes dos grupos
voltaram-se para uma espécie de meta-análise.
Confirmaram as argumentações, aprofundaram as
discussões, manifestaram mudanças em relação à
situação inicial, reviram falas, surpreenderam-se e
incomodaram-se consigo mesmos (pp. 55-56).

O movimento hermenêutico apontado na citação constitui um grande


diferencial nessa metodologia. Depois de audiogravar e transcrever o primeiro
encontro do grupo focal, dá-se ao texto a característica de narrativa e
apresentamos a outro pesquisador do grupo para validar, comparando essa
primeira narrativa com a transcrição.

As narrativas, assim construídas, são


apresentadas em um segundo encontro [...] para
discussão. […] Chamamos esse segundo encontro de
grupo (ou momento) hermenêutico e ele tem o papel de
validar os dados, mas também de produzir efeitos de
intervenção– à maneira de uma construção em Freud
(1975[1937]).
[…]
Hanna Arendt, na biografia que dela faz Júlia
Kristeva (2002), sustenta que a vida é uma narrativa. A
vida seria especificamente humana com a condição de
que possa ser representada por uma narrativa e
partilhada com outros homens.
[…]
A atividade narrativa permite ao sujeito a
restituição de sua verdade histórica, o que dá acesso a
ressignificações, ou seja, a autoria da própria história. A
narrativa solda, assim, as relações entre vida e política,
pois a vida na pólis é sempre mediada pela palavra.
(ONOCKO-CAMPOS, 2011, p. 1273-1274)

Para os autores da última citação, o aprofundamento dessas narrativas


no momento hermenêutico que não puderam ser tão exploradas no primeiro
encontro é chamado de “efeitos de narratividade”. Essas narrativas são
verdadeiras produções coletivas e, por isso, entende-se que não são “dados”
41

da pesquisa, no sentido específico de que as informações já estavam ali


prontas e o pesquisador teve o trabalho apenas de “coletá-las”. O trabalho
criativo é uma premissa desse método.

O sentido não é nunca dado, ele tem de ser


achado, descoberto, compartilhado em uma cadeia de
significação que nos junta a outros humanos.
Para podermos trabalhar com a construção narrativa da
forma como o fizemos, nosso pressuposto tem sido o de
que, em princípio, os nossos “sujeitos de pesquisa” não
mentem. Ou, pelo menos não mentem deliberadamente
para nós. Isso não é ingenuidade, é um posicionamento
ético-político! Assumindo que existe sempre uma
violência da interpretação (AULAGNIER, 2001),
sustentamos que não há porque aumentá-la
desnecessariamente. Assim, não temos buscado revelar
significações por trás do texto, senão procurado colocar
um mundo na frente dele, como aconselha Ricoeur
(1997).
[…] Rejeitamos, pois, uma abordagem na qual a
tarefa é tomada – quase sempre – como a de extrair
certo conteúdo latente de um conteúdo manifesto: “Eles
disseram isto e/ou aquilo, mas – na verdade – quiseram
dizer aquilo outro”, pelo contrário, compartilhamos com
nossos sujeitos de pesquisa a vinda ao mundo de um
texto. Valorizando mais a possibilidade de dizer, de
tomar a palavra, do que uma suspeita sobre o dito.
(IDEM, p. 1276)

Os grupos focais narrativos nessa pesquisa qualitativa foram realizados


com equipe técnica do CREAS e um coletivo de mulheres. Os critérios de
inclusão para o grupo focal com a equipe técnica do CREAS foram: é ser
trabalhador com curso superior da Proteção Social Especial do município, ou
seja, as psicólogas, assistentes sociais e coordenador do CREAS e a diretora
da Proteção Social Especial, desde que queiram participar da pesquisa. Os
critérios de inclusão para participar do grupo focal do Coletivo ISAMulher foram
é ter em algum momento participado das suas ações, desde que se queira
participar da pesquisa.

O percurso metodológico da pesquisa, em resumo, se dá através dessas


etapas:

1. Grupo focal com equipe técnica do CREAS;


42

2. Grupo focal com o Coletivo ISAMulher;


3. Grupo hermenêutico com equipe técnica do CREAS;
4. Grupo hermenêutico com Coletivo ISAMulher;
5. Grade de interpretação com núcleos argumentais das narrativas ampliadas
da equipe técnica e do Coletivo ISAMulher;
6. Elaboração de produto técnico;
7. Elaboração da dissertação;
8. Apresentação e divulgação do produto técnico aos participantes e
comunidade.
Após o primeiro grupo focal com cada grupo, é realizada a transcrição e
transformação em uma primeira narrativa (N1). Essa narrativa foi validada por
outro participante do grupo de pesquisa e, após adequações segundo a
validação, foi lida no segundo grupo focal com cada grupo, chamado de
momento hermenêutico. Esse segundo momento também foi transcrito e foram
realizadas as mudanças na primeira narrativa decididas no momento
hermenêutico. Como essa nova narrativa possui a N1 e as
adequações/modificações acontecidas no momento hermenêutico, é chamada
narrativa ampliada.

Com a narrativa ampliada de cada um dos dois grupos (trabalhadores e


coletivo), será aplicada a grade de interpretação e extraídos núcleos
argumentais, que incluem dissensos e consensos sobre temáticas:

Um núcleo argumental é um conjunto de


frases que não somente se referem a um
tema, também tenta atribuir a ele algum
tipo de explicação. Explicação no sentido
de um porquê, de um para quê e de um
como. Os núcleos argumentais não são os
temas levantados, porém a “tessitura da
intriga” sobre esses temas. (IBIDEM, p.
1278)
O passeio metodológico para os grupos focais é o seguinte:

Grupo focal > N1 > Grupo hermenêutico > Narrativa ampliada > Grade de
interpretação > Extração de núcleos argumentais > Elaboração de produto
técnico e dissertação.

A pesquisa é participativa na execução das etapas 1 a 4. A pesquisa


43

não foi participativa na escolha do tema de pesquisa e nem na escolha do tipo


de produto técnico, no entanto, responde a questões da equipe do CREAS
como utilização de material didático para os atendimentos, necessidade de
identificação de situações de violência na comunidade para ampliar os
atendimentos e prevenção da violência e necessidade de conscientização dos
serviços sobre o fluxo de atendimento e fichas de notificação em casos de
violência.
Ressalta-se que Marcos Martinez (2020), escrivão da DDM e autor da
pesquisa supramencionada, escreveu detalhadamente sobre o protocolo de
fluxo de atendimento a mulheres em situação de violência e a importância
desse fluxo, entendido como rede de apoio, para a efetivação dos direitos das
mulheres e rompimento dos ciclos de violência.
Todo o material dos grupos focais foi audiogravado, transcrito e
analisado por meio da abordagem hermenêutica-crítica (ONOCKO-CAMPOS &
FURTADO, 2008; ONOCKO-CAMPOS et al, 2010 e ONOCKO-CAMPOS,
2011), que produz narrativas escritas não com intuito de descobrir segredos
entre as linhas, mas de explicitar o que já está ali, como uma postura ética-
política.

3.4. A escolha de incluir o Coletivo ISAMulher na metodologia


[...]
Duas fortes mulheres
Na sua dura hora.
Que me tomes sem pena
Mas voluptuosa, eterna
Como as fêmeas da Terra.
[...]
(Hilda Hilst)

O Coletivo ISAMulher sempre se definiu como uma voz coletiva que não
se restringe ao nome de alguma participante. Portanto, para defini-lo, utilizar-
se-á a definição que o próprio coletivo fez de si mesmo, no ano de 2017, ao
enviar uma proposta de intervenção a uma agência de fomento. A descrição,
feita coletivamente, é a seguinte:
44

“O ISAMulher se identifica como Coletivo por ser


constituído por sujeitos que se reconhecem como
participantes de uma realidade social fraturada pelo
discurso patriarcal e que procuram resistir coletivamente
sem o auxílio imediato de entidades
político/governamentais. Trata-se de um grupo de
mulheres que promove ações positivas para a
construção de uma consciência coletiva feminina.
O ISAMulher é um coletivo feminino que se
propõe a discutir representatividade e empoderamento
feminino na cidade de Ilha Solteira. Ele nasceu através
das iniciativas de servidoras públicas que sentiram
necessidade de dar vazão ao tema “Violência contra
mulher” nos seus ambientes de trabalho. Elas fizeram
isso através de intervenções (cartazes, abertura de
diálogo e orientação sobre aspectos legais) que
permitiram com que o tema fosse abordado em um
ambiente cuja predominância era de homens (300
homens para sete mulheres).
As inquietações surgidas durante as
intervenções montadas pelas servidoras foram tão
significativas que, depois de dois anos de atividades
voltadas ao público de seus ambientes de trabalho, elas
sentiram a necessidade de montar um coletivo feminino
composto por cidadãs dispostas a colaborar com as
ações e discussões em torno da representatividade e
empoderamento feminino em Ilha Solteira.
Foi diante dessas demandas que o Coletivo
começou a ganhar corpo e, no dia 25 de novembro de
2016, iniciou suas atividades de ação na cidade através
da panfletagem do folder “Machsitômetro5”, um material
disponibilizado pela Deputada Manuela D’Ávila que
procura conscientizar a população para as ações que
configuram a gradação que existe entre as violências
simbólicas e as físicas. Além desse material que foi
adaptado pelas integrantes do grupo, fotocopiado e
recortado para a panfletagem ocorrida na frente do
campus central da UNESP, foram expostos também
cartazes que tratavam do tema central da intervenção e
que hoje estão em exposição itinerante pelos espaços da
cidade. Na semana seguinte à intervenção tivemos uma
roda de conversa no Cine Paiaguás que contou com a
presença de algumas cidadãs ilhenses que se sentiram
tocadas com o tema. Durante a mesma semana também
foram encaminhados debates nas rádios da cidade.”
(ISAMULHER, 2017).

5 Em anexo
45

A partir desse marco, seguiram-se vários eventos, reuniões, ações e


criações em um movimento orgânico.
É importante que um movimento social orgânico, que não representa o
Estado, participe de pesquisas sobre assistência à violência, pois

[...] a literatura indica a pertinência de não restringir o


projeto terapêutico às possibilidades internas dos
serviços e incluir atividades fora dos serviços de
referência, e nos bairros de origem para promover
experiências de suporte mútuo (WETZEL et al, 2011).

O Coletivo ISAMulher traz a dimensão afetiva do apoio mútuo de


mulheres e relações democráticas de poder, atingindo mulheres que sofreram
violência e que não foram atendidas em nenhum serviço de garantia de direitos
e nem no CREAS, aumentando a extensão dos participantes da pesquisa,
assim como aumenta-se a extensão da apreensão do fenômeno da violência,
pois inclui-se a discussão sobre violências de muito tempo atrás que não
justificam um atendimento na rede de serviços hoje – afinal, os casos atendidos
no CREAS são de violências que ocorreram há, no máximo, 5 anos, tempo de
implantação do serviço.

4. RESULTADOS

Para descrever os resultados, é necessário apresentar as mudanças


ocorridas na pesquisa por conta da pandemia de Covid-19.
No início, em dez/2019, a pesquisa envolvia realizar grupos focais com
equipe CREAS e mulheres atendidas em grupo nesse mesmo CREAS, e
haveria uma oficina de consenso a ser realizada com o Coletivo IsaMulher que
convoca participação de quaisquer interessadas. Foi realizado grupo focal com
a equipe, e, com a declaração de pandemia pela OMS em março/2020, não era
viável realizar grupo focal com as mulheres atendidas pela necessidade de
distanciamento social como prevenção de transmissão da doença. Houve uma
pausa de alguns meses, não estavam ocorrendo atividades na UNICAMP, não
46

era viável realizar a oficina de consenso, os serviços não-essenciais foram


suspensos ou realizados home-office, foram suspensos atendimentos grupais e
diminuído fluxo de pessoas nos estabelecimentos, não havia mais reuniões
(nem de equipe) e havia incertezas quanto a todas atividades cotidianas. Em
dez/20, as reuniões de equipe já haviam retornado e foi realizado o momento
hermenêutico com a equipe CREAS. Nota-se que houve espaço de um ano
entre o primeiro e segundo encontros, e, no primeiro, ainda não imaginava-se
qualquer ocorrência de uma pandemia.
Houve prorrogação de integralização dos cursos acadêmicos, e as
universidades estavam se adaptando ao ensino remoto/online. Como ainda não
se vislumbrava nem o futuro próximo por conta da situação sanitária, foi
decidido não haver mais a oficina de consenso da pequisa e utilizar o Coletivo
IsaMulher como um grupo focal. Tanto o Coletivo quanto o CREAS eram
grupos já existentes, não foram criados exclusivamente para a pesquisa,
diferente do grupo de usuárias de CREAS que estava iniciando no serviço.
Dada a organicidade do Coletivo, decidiu-se realizar o grupo focal (incluindo
momento hermenêutico) por videochamada, construindo-se duas narrativas
ampliadas e o produto técnico não seria mais participativo em todo seu
processo, mas uma construção a partir dos dados criados nos grupos focais. O
grupo focal com o Coletivo ocorreu em janeiro e fevereiro de 2020, por meio
virtual, os dois encontros já durante a pandemia – diferente do CREAS, que
foram dois encontros presenciais com distância de um ano entre o primeiro e o
segundo, e apenas o segundo na pandemia.
O primeiro encontro com a equipe CREAS iniciou com longos silêncios
e, aos poucos, cada um colocava seu entendimento ao grupo. Eram cinco
mulheres, uma com um cargo hierarquicamente acima de todos, um homem
com um cargo entre esse e as demais técnicas, além da pesquisadora e da
observadora. Todos os presentes são funcionários públicos, com ensino
superior, a maioria com pós-graduação, a profissional do cargo mais alto e uma
técnica pardas e os demais brancos. Todos com mais de 30 anos de idade e já
tendo trabalhado em outros serviços.
O roteiro semiestruturado de perguntas foi: 1) Qual o conceito de
violência para vocês?; 2) E o conceito de violência contra a mulher?; 3) Quais
os tipos de violência contra a mulher?; 4) Como identificar as violências contra
47

a mulher?; 5) Como é o trabalho de atendimento a mulheres vítimas de


violência/ de enfrentamento da violência contra a mulher?; 6) Quais
consequências da violência contra a mulher?. As frases em negrito são
modificações construídas no momento hermenêutico, e as frases sem negrito
são originais do primeiro encontro de grupo focal.
Depois que uma técnica iniciou suas colocações, outra técnica
complementava e a de cargo mais alto também. Havia concordâncias e
dissonâncias entre as falas, mas o clima era de cooperação. Duas técnicas
estavam mais em silêncio, e foram convidadas a falar. Todos os participantes
estavam, então, envolvidos, e as dissonâncias eram menores que as
concordâncias. Quando foi sinalizado que o encontro estava quase chegando a
seu fim, o homem do grupo solicitou a fala e seu discurso foi bastante diferente
do construído até então. As técnicas manifestaram suas discordâncias de
forma espirituosa, mas talvez estivessem um pouco incomodadas. Através de
brincadeiras, falavam para “cortar essa parte”, ou “vamos encerrar, já está
bom” ou algo nesse sentido. Aparentemente, não se levou muito a sério as
colocações do único homem do grupo, que falou sobre mulheres que provocam
a reação violenta no homem, que existe muita mulher que ataca a
masculinidade do homem, que é feio mulher que bebe etc. No momento
hermenêutico, houve manifestações de “nossa, nem lembro mais o que
conversamos” (havia passado um ano), e as discordâncias foram melhor
sinalizadas. No momento hermenêutico, havia duas pessoas do primeiro
encontro que não estavam e uma técnica que não estava no primeiro dia, mas
já fazia parte do CREAS há anos.
Já no grupo focal com o Coletivo, o roteiro de perguntas foi o mesmo e
as participantes eram mulheres com mais de 40 anos, a maioria com curso de
nível superior, uma professora doutora, uma artesã, uma professora de ensino
fundamental, uma comerciante, uma psicóloga, uma guarda municipal. Duas
pardas, e as demais todas brancas. O momento hermenêutico contou com
quase as mesmas pessoas, e esse é o movimento natural desse coletivo, que
considera do coletivo qualquer uma que tenha interesse em participar. O
envolvimento foi maior que do CREAS, apareceram muitas manifestações
emotivas, algumas choraram, praticamente todas se colocaram em discussão –
experiências pessoais –, diferente da equipe CREAS que falava quase sempre
48

de “outras” mulheres, na terceira pessoa do plural. Não foi preciso convidar


ninguém a falar, pois todas se colocavam e regulavam a vez de fala de forma
mais democrática. Os encontros que o Coletivo já fez anteriormente foram
mencionados, e sempre falava-se na primeira pessoa do plural: nós. Esse nós
representava as pessoas do Coletivo (presentes ou participantes ausentes no
momento) mas também mulheres outras que sequer conheciam. O tom era
bastante poético e descrevia afetações. Interessante notar que o momento
hermenêutico com o Coletivo foi consensual com a narrativa como estava;
preferiram não modificar nada da narrativa 1. A narrativa ampliada é igual à
narrativa 1, por isso não há frases em negrito. Havia pausas com perguntas de
“alguma colocação? Se alguém quiser modificar, pode falar...”, mas elas
apenas diziam para prosseguir a leitura da narrativa 1.
O primeiro encontro com o Coletivo já sinalizou a pandemia e a violência
doméstica na pandemia, e essa questão também esteve no segundo encontro
porque a narrativa foi a mesma. Ao concluir a leitura, todas diziam que
concordavam com a narrativa como estava, algumas comentaram que no
primeiro encontro não se viam exatamente na fala de cada uma, mas passaram
a se enxergar em todo o texto lido que nem sabiam quem teria falado o que.
Ou seja, os grupos hermenêuticos colaboram com um sentimento de “nós”, de
grupalidade.
O fato da pesquisadora ser anteriormente parte de cada um dos dois
grupos facilitou na transcrição, e havia a preocupação de atravessamentos
pessoais na condução da narrativa. No entanto, o método hermenêutico, a
validação da narrativa 1 e transcrição pelos pares do grupo de pesquisa, a
validação da narrativa ampliada pelo próprio grupo focal são ferramentas tão
democráticas que diminuiu essa preocupação. Tanto que nas transcrições dos
grupos (e não foi necessário alguém para sinalizar quem falou o que, pois
conhecia todas as vozes), houve uma surpresa ao perceber que a direção tanto
era a narrativa coletiva que não se deu conta na hora que não concordava
pessoalmente com certas colocações.
A partir do roteiro semiestruturado, a narrativa ampliada de cada grupo
focal foi colocada na grade de interpretação, identificando os núcleos
argumentais. Os núcleos argumentais foram, primordialmente, as perguntas
realizadas através do roteiro. A grade de interpretação construída é a seguinte:
49

GRADE DE INTERPRETAÇÃO DAS NARRATIVAS AMPLIADAS DO CREAS E


DO COLETIVO DE MULHERES

Núcleos Equipe CREAS Coletivo


argumentai
s
Conceito de Vai muito da interpretação de quem Nós, do Coletivo Isa Mulher, entendemos que
violência acolhe; às vezes, o caso entra como violência é tudo que dói. E são muitas as
violência, mas é conflito. Ocorre violências, desde as mais sutis. Quando se fala
também de aparecer como conflito mas em violência, pensa em agressão física, violência
depois vermos que é, na verdade, que consegue ver. Mas as violências contra a
violência. Temos alguma dificuldade de mulher são também muito sutis e acontecem o
identificar a diferença entre conflito e tempo todo. Acontecem na rua, acontece na hora
violência, mas pode ter a ver com o que você tá fazendo compra. A violência contra a
fato de que a violência tem dois lados, mulher é algo tão entranhado na sociedade, que
o lado de quem violenta e o lado de permeia tudo.
quem é violentado, e o conflito é
quando um fica jogando o que o outro Violência é, principalmente, tudo que nos
faz; às vezes a pessoa vem no intuito desqualifica, de alguma forma.
de falar o que a outra pessoa faz que
incomoda, e o outro que você chama A violência está inserida em tudo: na
faz a mesma coisa. A família não entra escola, na sociedade, no trabalho, nas ruas, em
em consenso e não se resolvem entre todo lugar. No Coletivo, começamos a observar
si, e acham que a gente tá aqui pra bem mais, a ficar muito mais atentas sobre as
isso. Quando temos a possibilidade de formas de violência em tom de brincadeira,
colocar os dois juntos para conversar, piadinha, até roda de amigos.
pode ser que isso se resolva, e isso é Os homens se sentem à vontade de achar
bom. que a gente tem que ouvir esse tipo de coisa, e
Violência tem a ver com conflito, mas acha que a mulher tem que ter medo e tem que
nem todo conflito é violência. A ficar quieta. Aí quando a gente fala alguma coisa,
violência tem uma relação de poder, eles se assustam muito. A violência é uma forma
uma hierarquia, uma desigualdade na de intimidar, de tirar a voz. Achamos que a gente
relação, que talvez no conflito não tem que falar mais, apesar de que muitas vezes,
tenha, seja mais horizontal. a gente não consegue falar, e dependendo do
lugar, também, nem dá.
Em relação ao conceito de violência, Quando a gente se sente agredida,
pensamos que a lei diz que todos quando a gente se sente violada, quando a gente
somos iguais perante a lei, mas temos se sente humilhada, quando tiram a voz da gente,
diferenças culturais, raciais e de quando a gente se sente culpada só pela gente
gênero e sofremos violência por elas. ser a gente, só pela gente ser quem a gente é –
São violências, de modo geral, a isso tudo violenta.
desigualdade, o preconceito,
discriminação, nepotismo profissional e A gente ampliou esse conceito de
nepotismo religioso, e qualquer forma violência; ela é simbólica, psicológica, sistêmica,
de se beneficiar. Existem categorias de histórica. Ela é uma construção. E a gente luta
violência: física, psicológica, todos os dias pra desconstruir as várias violências
negligência, abuso. que a gente sofreu ao longo da civilização, da
história da civilização.
A violência é difícil de ser conceituada
porque ela acontece em âmbitos muito
maiores que num universo
institucionalizado como o que a gente
vive aqui, dentro de uma família. A
violência é uma relação de poder que
50

envolve história, lados, sofrimento e às


vezes tem uma questão cultural
associada; papéis estabelecidos,
expectativas... Como esse universo é
muito grande, aqui no CREAS
identificamos a violência a partir de
uma setorização: separamos em
violência física, psicológica… Damos
conta de diferenciar até uma parte,
porque tem questões muito maiores
que a gente, como violência urbana,
violência política-econômica. Nessas
estruturas maiores a gente acaba
tendo menos eficiência e menos poder.
É uma coisa a ser construída a muito
longo prazo.

A violência é uma coisa muito


complexa, tem enraizamento cultural e
histórico, e às vezes temos
dificuldade em visualizar por conta
dessa história e cultura que naturaliza
e banaliza a violência, e o papel do
CREAS é questionar e desnaturalizar
esse processo de banalização. Para
isso, nós separamos as violências por
tipos para facilitar a identificação,
tendo como plano de fundo essa
violência estrutural e cultural que é
o mais desafiador para o CREAS
lidar.

[…] às vezes a gente vai discutir caso


nos serviços e vemos que o serviço só
atendeu a mulher, não atendeu o
marido e não atendeu os filhos. Tem
uma violência dos próprios
equipamentos ao ponto de não ampliar
isso, uma violência institucional.
Porque mulher é mais fácil de
conversar, e o homem não quer.

O machismo provoca violência, tanto


que a gente atende muitos casos por
violência doméstica, mas ele também
funciona porque esses homens são
muito frágeis.

Todo funcionamento agressivo tem


as vítimas diretas e indiretas, por
exemplo, as crianças que tem que
ver seu pai não cuidador e mais
agressivo com a mãe. Aí a criança
vai reproduzir a violência. Por mais
que a violência não atinja
diretamente as crianças, tá sendo a
referência.
51

A violência é sistêmica.

Identificaçã A pessoa não consegue, muitas vezes, [Sobre o quão comum são mulheres que
o da identificar a violência porque é a sofreram violência na infância e não se deram
violência cultura, como a cultura de espancar conta à época] Um exemplo claro é dessa
contra a mulher porque o pai espancou, então é menininha que engravidou de outra criança, e aí a
mulher normal a mulher ser espancada porque gente pensa: “cara, a menina tem 10, ela tava
a mãe foi espancada. E a gente sendo violentada desde os 6 anos de idade, e só
trabalhar com isso, romper essa cultura descobriu porque engravidou?” É essa a
do que tá normalizado, é bem questão? Então só vão olhar pra essas violências
complicado. se algo mais violento acontecer? E se a mulher
não consegue enxergar aquilo enquanto
Em relação a uma especificidade no violência, as coisas vão se agravando. A mulher
atendimento às mulheres que sofreram não foi ensinada a reconhecer quais são as
violência, tem uma dificuldade de violências.
quando é violência psicológica. A
mulher não entende por que ela tá
aqui, foi um serviço que encaminhou.
Um exemplo: o caso está lá na Saúde,
atendendo, identificou que tá sofrendo
violência psicológica – “ah, cê tem que
ir lá no CREAS”. Muitas vezes ela nem
chega com essa demanda. “Ai, eu
estava lá na saúde, né, aí o pessoal
falou que eu tinha que vir aqui no
CREAS”. Da violência física é mais
fácil fazer a abordagem, porque ela
tem ali o hematoma, tem ali toda
aquela situação. Da violência
psicológica, patrimonial, também tem
aquela questão “ah, porque eu trabalho
e dou todo meu dinheiro pro meu
marido, ele que administra”, mas cê vê
que não é uma conversa entre os dois,
um acordo – cê vai buscar ali, no
atendimento, é mais uma questão
histórica – “ah, sempre foi assim”,
desde quando casou – então esses
mais subjetivos, com não tantas coisas
concretas, eu acho que é mais difícil de
trabalhar, de você trazer pra ela
também enxergar.

O que é mais concreto é mais visível.


Essa questão da violência física, às
vezes a própria mulher fala “ah, mas
ele não me bateu ainda”, sempre essa
frase. Ou algum setor [...] entra em
contato e diz “ó, eu tô atendendo mas
ele não bateu ainda”. Então já vem
com uma violência por minimizar, por
dizer que a violência que a mulher
sofreu não foi concretizada, não existe.
Essa violência psicológica,
inconscientemente, fica velada.
52

Na área rural, além do acesso daqui


na cidade – o CREAS fica na cidade –,
a violência é mais velada, é cultural.
Uma das estratégias são os vizinhos,
se você dá um grito, todos vão ouvir.
As crianças são mais assistidas porque
elas vão pra escola, então elas têm
esse acesso comunitário. Então esse
fortalecimento comunitário na zona
rural é mais difícil, porque uma criança
que foi com hematoma na escola, todo
mundo vai ver; a mulher não, ela fica
lá, se não tiver que sair, vai até sumir
os hematomas.

Entra um pouco a questão de ser um


município pequeno, de poucos
habitantes, onde muitos
profissionais inseridos na rede,
incluindo nos órgãos de defesa de
direitos, por nascerem e conviverem
aqui pode ter muitas coisas abafadas
nesse sentido, e um tratamento
diferenciado entre as famílias,
dependendo de como for, da classe
social. Dessa questão de uma elite às
vezes fazer uma denúncia e “ah, mas
não vamos encaminhar pro CREAS,
não vamos fazer mais nada pra não
expor a família”. Talvez haja esse filtro
da violência ser encaminhada pro
CREAS quando é caso relacionado à
pobreza. O que é uma corrupção,
que é uma violência também. A
desigualdade já é violenta.

Atendiment Quanto mais a gente foca e entra em Estudamos isso [violência] em grupo, com
o às questões objetivas da violência, é o Coletivo, e fomos nos entendendo dentro desse
mulheres mais fácil de lidar com ela, porque essa contexto. A gente foi se entendendo durante o
em outra violência maior, que talvez gere processo, e entendendo as várias violências que
situação de um incômodo maior, essa a gente sofreu. E quando percebemos isso, nos
violência; superestrutura que vai além do tornamos outras pessoas.
formas de CREAS (que é feita para não dar
enfrentame direito à mulher historicamente, Então, a falta do conhecimento, de tudo:
nto deixá-la dependente financeiramente de violência, dos seus direitos… Tem uma lei
da família ou marido, por exemplo), federal que garante à mulher, à parturiente, a
é onde talvez a gente não dê conta. E expressar-se durante o parto. É um absurdo. Tem
a gente não dá conta porque não que ter uma lei que garanta nosso direito de gritar
temos a organização toda pra isso. e de sofrer, pra ter nossos filhos. As mulheres
não sabem disso, porque o conhecimento liberta.
O CREAS não vai resolver essa A partir do momento que as mulheres conhecem
injustiça social, mas tem um os seus direitos e o que são as violências e quais
compromisso com essa violência que é são as violências, elas podem interromper essas
maior. É um desafio, não sentimos barreiras. Assim como as crianças aprenderem o
muito isso na prática, mas temos que é o corpo, quem pode tocar nele; nós não
53

esse compromisso. Se a gente se teríamos tantas crianças violentadas. Quando


organizasse de outra forma, tivesse voltamos pro conhecimento, paramos de sofrer
uma organização política maior, a por aquilo.
gente conseguiria atuar. A
identidade do CREAS está sendo O patriarcado não quer, em seu sistema,
construída ainda. que tenhamos conhecimento. A hora que a gente
tiver conhecimento, a gente como corpo coletivo
A partir do momento em que o feminino, o patriarcado cai.
usuário chega no CREAS, a gente vai
usando essas definições de violência […] a gente sabia, quando a gente se juntou no
pra identificar, e eles chegam porque final de 2016, que o ovo da serpente tava sendo
aconteceu alguma coisa. Nosso papel chocado ali. Ali. A gente já sabia que a gente
é refletir com eles, no dia a dia, nesse precisava fazer alguma coisa no âmbito social, no
acompanhamento, nos grupos, âmbito educacional, pra gente se acolher,
trazendo eles pra identificarem os tipos enquanto mulher, pra gente estudar e entender
de violência, e aí eles vão por que que aquilo tava acontecendo e como que
identificando que estão vivendo e se a gente fazia pra ajudar. O caminho do Isa Mulher
surpreendem. De estar trazendo o foi todo esse. A gente se juntou e percebeu que
que é violência e violação de direitos, e deu merda, e a merda tinha possibilidade de
aí a gente vai percebendo que entre crescer. Quando olhamos pra trás, sabemos que
elas (no caso de mulheres), elas vão conseguimos fazer, e não foi sozinhas. Foi junto
identificando o que que elas tão com cada uma que está aqui. O poder que isso
vivenciando, e aí tem surpresas, é... Foi significativo pra vida de muitas mulheres.
insights, como identificar só depois A gente tá vivendo uma merda da porra e a gente
como violência o fato de colocar precisa olhar pra isso aí também, mas queremos
uma roupa e o marido não deixar, ter olhar pro outro lado, porque a gente precisa ser
“ciúmes”, reter algum documento ou forte. O outro lado que nos fortalece. Reconhecer
alguma coisa e jogar fora, pegar o umas às outras nos fortalece. Ver cada uma de
celular... Identificar diferentes tipos de nós crescendo nos fortalece. Isso é o que a gente
violência é uma forma de comunicar e precisa continuar investindo. Porque a violência tá
conseguir identificar coisas que a gente aí. Tá foda. Tá pior. Mas a gente precisa se
não conseguiria ver, talvez, fortalecer pra de, alguma forma, pensar em
cotidianamente, que tá muito além algumas ações, em algumas soluções, e não nos
daquilo que chega pra nós. Nos grupos abandonar, no sentido de continuar acreditando
de mulheres e de homens teve várias que tudo aquilo que a gente investiu, todo aquele
identificações, porque chega aqui no amor que a gente investiu, que a gente investe,
CREAS aquela violência física, e teve tem consequências positivas. Se a gente tem o
um caso em que ela falou assim: “eu nível de consciência que a gente tem hoje… Hoje
não sabia que eu era violentada conseguimos olhar pra trás e respirar, sentir a
psicologicamente”. “A vida inteira eu dor, mas transformar em força, transformar até
escutei isso e aquilo”, palavras, em poema.
violência verbal, e ela não identificava A gente começou a ler Segundo Sexo, de
como violência. Essa reflexão a gente Simone de Beauvoir pra construir o projeto, a
traz para os grupos. É cultural, então, gente fazia aquelas reuniões e que alguém
“ah, a vida inteira eu fui assim, então a sugeria “poxa, vamo ler Mulheres que Correm
vida inteira que eu apanhei dos meus com Lobos”, a gente lia alguma coisa, aí uma de
pais, então eu vou bater nos meus nós ia participar em um sarau, aí traz uma música
filhos, né”. No grupo a gente reflete de Luedji Luna, aí Luedji Luna traz Tatiana
sobre isso, sobre os tipos de violência, Nascimento, que é uma mulher preta, poeta,
é um momento muito rico para fortíssima… Isso é muito poderoso. É uma rede,
conhecer e principalmente identificar o que nunca para e nunca parou de existir.
que acontece no individual ou na
família, no coletivo. Na hora que a O Coletivo Isa Mulher nos marcou de
pessoa identifica nela própria um tipo diversas formas. O evento que a gente fez na
de violência, o que pode ser feito, o praça no “EleNão”, nos marcou no sentido de que
que pode ser trabalhado pra parar com se a gente não tivesse uma rede de apoio, teria
esse ciclo, ela estende para os outros sucumbido. A gente mexeu em muita energia,
54

âmbitos sociais, num âmbito maior. num vespeiro, no patriarcado, fundado por igreja.
Então por mais que a gente não vá A gente teve que afrontar igreja, dizendo: olha,
resolver as injustiças e a aqui a gente tá fazendo tudo com amor porque a
desigualdade social, só o fato da gente é amor. Quantas vezes a gente não foi
gente trabalhar essa identificação já é panfletar falando isso para as pessoas? E hoje o
um fator reflexivo e de superação da contexto se mostra o que era ódio, o que é o ódio,
violência. e as consequências do ódio. Porque a gente tá
O CREAS pode sair do equipamento passando por uma pandemia, mas a gente podia
e falar de um âmbito geral da violência, tá passando melhor se a gente tivesse acolhido
fazer grupos em postos de saúde com mais amor as coisas. Mas não foi a escolha
falando de violência, indo nas escolas do coletivo e diante do coletivo a gente fica junto.
falando de violência, indo nas rádios A gente fica junto. E a gente permanece junto e a
pensando nesse público maior que gente permanece dizendo pras pessoas: olha,
acaba não tendo acesso. aquilo ali que a gente apontou como solução lá
atrás continua sendo. Agora, é um processo. É
Essa reflexão sobre essa violência que um processo e cada um tem seu tempo.
é macro, que é maior que a gente, As nossas vivências como Coletivo se
talvez não seja só o nosso ponto de estendem e não têm volta. É permanente, agora.
chegada, mas talvez seja o nosso As pessoas vêm conversar conosco para
ponto de partida, o nosso fundamento, acolhimento, com a confiança que depositam nas
isso fundamenta nossa prática aqui no nossas palavras, na maneira da abordagem. Isso
CREAS. Se a gente não identificar a é pra sempre.
violência aqui, no CREAS, não tem por Houve um caso de uma mulher que sofreu
que continuar aqui o caso, mesmo que assédio sexual dentro de uma empresa, e ela
tenha sofrimento – todo mundo tem procurou uma de nós pra saber como é que
sofrimento. procedia. E aí ela foi orientada e conseguiu ter
forças; o cara foi afastado. E não era só ela.
Vemos pouca participação do homem Depois dela, várias outras denunciaram assédio
nesse processo de reflexão, de dele. Foi dito a ela que tem que ter uma pessoa
discussão. É como se de alguma que faça isso. E é preciso coragem pra fechar
maneira isso acontecesse de um lado com esse ciclo. E não é por você, é pelas outras
historicamente nessa relação de poder também, é por tudo, é por todas as mulheres, por
que demonstra mais fragilidades, toda a história, pelas que passaram e pelas que
talvez, ou que é julgado com mais vão passar se não fizer nada.
fragilidades, e aí aponta nela a única Então essas coisas que a gente acha que é
fonte de saída. Então é a mulher que pequeno, do comichão que dá na gente e a gente
acaba tendo que buscar o não se cala, em alguns momentos, ou que a
atendimento, muitas vezes, ali no gente se retira pra não dar uma merda maior, isso
conflito familiar ou relação, e de tem consequência, isso gera algumas coisas. A
alguma maneira aponta também como gente precisa tá ancorado nisso sempre. Nenhum
se fosse só dela a saída. passo atrás. E a gente tem que tá pronto porque
a gente vai tomar conta desse futuro.
É muito mais fácil a mulher ter medida Fizemos muita coisa. A gente acolheu
protetiva pela violência física que pela muita gente, a gente ajudou muita gente, às
psicológica. Só se chegar na delegacia vezes, sem perceber. Tem uma história, quando a
por uma ameaça, com prova material, gente tava naquele enrosco de ir parando, cada
uma conversa de whatsapp, um objeto. um seguindo, de quando a gente foi convidado
Será que só há medida protetiva pra fazer uma intervenção, uma palestra no dia
quando há violência física ou será que da mulher na OAB. Naquele dia, uma pessoa,
nós, mulheres – pensando como quando tava tocando a música… Vimos o rosto
mulher – que só denuncia ou vai numa dela se transformando. Como se fosse uma
delegacia quando ocorre a violência iluminação, assim. E aí ela veio falar depois,
física? Pode acontecer que já vem particular, e pediu: “deixa eu levar essa letra de
acontecendo violência moral, música?”. O papel. Pouco tempo depois ela
psicológica, mas não denuncia. estava separada. Então, é uma coisa que a gente
provocou, a libertação dela. Hoje nas redes
Por mais que a gente tenha o CREAS, sociais ela se mostra muito mais fortalecida como
55

o Conselho Tutelar, delegacia, fórum, pessoa, como profissional, do que ela era. Até o
esse sentimento de impunidade ou o jeito dela falar mudou. Foi dado voz a ela, perdeu
sentimento de que tá sendo julgado, o medo. A voz… Ela tinha uma voz murchinha,
que aquela situação não vai se abafadinha, muito delicadinha... e ela mudou, o
resolver ou que não vai ter a proteção jeito dela falar mudou. Isso é uma das coisas
devida, acontece. Tem essa questão grandes que a gente fez. Porque, olha,
de “pra que que eu vou falar da minha transformar uma pessoa... ajudar a libertar uma
violência se, às vezes, se eu falar, vai pessoa é de uma grandiosidade tão imensa que
voltar aquilo pra mim de uma maneira valeu tudo que a gente fez.
maior, mais violento”. Consideramos que a gente despertou e
ajudou a despertar. Fazer ter coragem de falar, e
Quando a gente vai falar do tema que se reconhecer. Nós demos voz. A tudo que as
é empatia, a gente vê que elas vêm mulheres queriam ouvir e falar, e houve
procurar “porque o outro tem que acolhimento.
mudar”, “o meu marido tinha que tá Nós fomos em vários lugares. Fomos em
aqui pra ouvir isso”, porque a culpa é uma comunidade que trata HIV/AIDS, na praça,
do outro. Então, a gente vai trabalhar na UNESP, na OAB, fomos até pra outro Estado.
essa autorresponsabilização também, Pegamos todo tipo de público, todas as faixas
porque ninguém vai mudar o outro, não etárias, todo tipo de mulheres, toda a composição
vai mudar de tudo. Mas ela vai mudar. de uma cadeia de trabalhadoras, de mulheres do
A partir dela vai mudar um lar… casadas, solteiras. Na primeira intervenção
comportamento, uma forma de se nossa, a gente pegou muitos homens, a gente
comunicar em casa, com o marido ou parava os meninos na porta da UNESP pra
com os filhos, e aí, sim, pode haver entregar o machistômetro pra eles. Um monte de
alguma mudança. Trabalhamos a menino levou um susto: “mas eu faço isso!”.
autorresponsabilização no sentido de Vimos uma postagem no Facebook da Manuela D
que você tem alguma coisa a ser feita. ´Ávila, mandamos uma mensagem no
Não é só a questão do poder dele, mas Messenger, a equipe dela respondeu e
ela se empoderar, também, empoderar disponibilizou pra gente, transcrevemos,
a mulher. imprimimos, cortamos…

Achamos que o maior trabalho é tentar Quando uma de nós tava pra defender o
empoderar pra romper com esse ciclo doutorado, houve uma situação de estar sob
[de ameaças do marido], pra ela fazer coorientação de um homem abusivo. O Coletivo
as escolhas dela. ajudou no processo inteiro de mudança de
orientação, defesa da tese, acolhimento – sem o
Entendemos que empoderar significa qual não se sabe o que poderia ter acontecido.
mostrar que sempre tem alternativa. Se esse doutorado aconteceu, foi por força do
Tem uma questão cultural, que é muito Coletivo. Soubemos agora que a esposa desse
anterior, tem uma história das relações, professor abusivo se separou dele, conseguiu ter
a gente não vai mudar isso, e voz pra sair fora. Ficamos felizes por ela porque é
empoderamento seria conseguir mudar muito difícil se livrar de relações abusivas, e a
isso, porque aí resolve na base, mas relação dela era muito complicada, porque não
talvez tenha esse empoderamento no era só conjugal, era acadêmica também. Eles
sentido de perceber que tem mais uma tinham muita coisa juntos, então era muito difícil
escolha aí. pra ela dar o passo que ela deu.

Tem uma responsabilidade, e não Se a gente fosse ensinada no pré-natal


culpar, tem uma liberdade que se não sobre o que vai acontecer no parto, se a gente
dá pra enxergar fica preso nessa tivesse acesso a outras orientações, a gente não
questão de violência. Remete a precisaria de médico. A gente poderia ter nossos
mudança de comportamento e não tirar filhos em casa, e os médicos não ganhariam
sua responsabilidade disso. dinheiro.

Na maioria das vezes, a mudança é na Mulheres, por exemplo, são humilhadas


vítima, buscar outras formas de se perante juízes. Ou precisam de uma lei, uma
romper com a violência. Na grande política pública, precisa criar uma lei. As mulheres
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maioria, houve uma agressão, um não compreenderam que elas precisam ocupar os
boletim de ocorrência, e às vezes o espaços de poder e decisão… Elas precisam
agressor já vem encaminhado também conseguir estudar, fazer vestibular, e ocupar
pelo TJ [Tribunal de Justiça], e a vítima esses espaços. Ser juíza, ser promotora, ser
não quer vir porque acha que o médica… Ser vereadora, ser prefeita, ser
agressor que tem que vir, apenas, pois governadora... Porque enquanto num ocuparem
ele que infringiu, violou. esses lugares, elas vão depender dos homens
pra tomar decisão pra elas. E eles não vão tomar.
O trabalho do CREAS também envolve Às vezes esses homens se protegem.
tentar requisitar uma liberdade possível
no caso do atendimento às mulheres. Para fazer o que fizemos, no Coletivo, o primeiro
Tem um pouco de restabelecer ou de material que a gente teve foi a vontade. Nem só
fazer perceber, criar, construir uma vontade, era uma ânsia, uma fremência. A gente
liberdade que já é possível, mesmo tinha uma urgência. Essa urgência foi anterior ao
que seja pequena. despertar total. A gente tinha urgência de
despertar.
No grupo de homens, no qual a maioria A gente começou pensando em fazer
são agressores, teve essa fala, a alguma coisa para os outros, e a gente usou… a
expressão de certa expectativa de que gente usou nós. Nossos corpos, nossas vozes, e
eles viriam para serem atendidos, quanto a coisas materiais, foi o mínimo possível.
rebaixados, maltratados, que viriam A gente usou papel, imaginação… e nós, a nossa
aqui pra assistir aula junto com outros voz. A nossa voz, e a nossa vontade e o nosso
homens, e não, nunca imaginou que desejo de fazer. E aí a gente começou
fosse ser desse jeito. É a chamando, esse desejo foi se multiplicando e foi
desmistificação até do próprio contaminando.
atendimento, colocar os homens pra As pessoas ficavam curiosas pra saber o
refletir, e que tem a ver com a história que era e acabavam perguntando. E aí quem
deles também, procurando um jeito perguntava foi querendo saber mais e, assim, foi
que dá sentido pra eles. entrando. Rede social ajudou muito, porque era
algo que não tinha custo pra nós enquanto
Isso de ser dito como agressor, e nem voluntárias desse Coletivo.
sempre é, não gostamos de intitular o A gente não pode desprezar, né, o bolo
grupo como agressor, são grupos de de chocolate que tinha em todas as reuniões da
homens e têm esse direito de fala. gente! E o chazinho!
Uma vez, eles contaram como são Foi importante também os apoios pelo
abordados. Falaram que é feito o caminho, as portas que as instituições e eventos
boletim de ocorrência, aí chega lá e abriram pra gente. Isso trouxe pra gente outros
eles não têm direito à fala. No grupo, é momentos. Esses momentos multiplicaram-se em
um momento onde eles podem falar o outros. Depois, cada uma de nós, na nossa
que que tá acontecendo. O nome do atuação profissional, foi falando do Coletivo em
grupo ficou Convivência e alguns lugares. Essa sementinha foi plantada em
Comunicação. vários lugares e em vários momentos da vida de
pessoas. O financeiro foi o mínimo de coisas
Muito provavelmente na prisão não foi porque foi o nosso trabalho braçal, e antes de
feito um trabalho com ele. Diferente, às ajudar as pessoas, a gente se ajudou. Então
vezes, quando vem pro grupo, onde é enquanto Coletivo a gente se abriu, uma pra
feito esse trabalho. outra, contou as nossas coisas, cada uma foi
falando a respeito dos assédios… A partir
também do machistômetro passamos a conhecer
as diferentes violências, passamos a estudar um
pouco mais a respeito, sobre as histórias
africanas, a abayomi, fizemos danças folclóricas...
Então não foi só um processo da questão de
violência. Foi um acolher. Se pensarmos em
como foi, fizemos piquenique, coisas que
remetem à infância. Então mesmo na dor, a gente
conseguiu esse alento em piquenique, rodas,
57

músicas.
Os instrumentos principais do Isa Mulher
são os imateriais: a palavra, o abraço, o
acolhimento, o olhar, a mão estendida. Foi uma
coisa muito intuitiva. Assim... Que a gente se
sentia... Movido pra fazer e... Fluía

O Isa foi muito de fluxo, água mesmo. Tem coisa


mais feminina que água? Que ocupa, que
acalanta, que acolhe... É o nosso primeiro lar, é a
água. E o Isa é isso, esse fluxo, porque ele ainda
jorra na gente. Ajudar algumas mulheres a
enfrentar situações de violência fez lembrar de
coisas que vivemos, e ajudou a voltarmos em
alguns contextos, visitar, entender, elaborar, e
voltar pra cá, pra hoje, voltar pro que somos. E
construir esse distanciamento. As pontes que a
gente construiu são nossas e ninguém vai tirar da
gente. É sobre saber construir caminhos também
de afastamento, que é pra gente poder ajudar
inteiro, porque se a gente se aproximar demais, a
gente não consegue ajudar ninguém, nem a
gente mesmo.
Por conta de tudo isso, destacamos os
dispositivos afetivos que construímos, que são
muito importantes pra gente ter força e agir, e fluir
como a gente fluiu. Laços foram construídos. A
gente foi fluindo e acreditando nesse fluxo, e o
fluxo trouxe a gente aqui. Vamos continuar no
fluxo, na correnteza. Na água, como tudo
começou.
Violência A pandemia, com questões de depressão
contra a e ansiedade, multiplicou essa situação de uma
mulher na forma que não pudemos nem fazer leituras de
pandemia -------------------- acontecimentos por conterem gatilhos. Estamos
em uma sensibilidade tamanha que não
conseguimos mais ler, atender, visualizar. Aqui,
entre nós, nos sentimos em grupo, em família, em
um nicho em que podemos confiar. Mas a
pandemia despertou fatos anteriores. Lemos
reportagens que vão somatizando pras coisas
que já temos dentro de nós. É difícil lidar ao
pensar que tem mulheres dentro de casa
sofrendo violência e não podemos fazer nada,
então somatizamos como se fôssemos nós.
Então não temos feito mais leituras assim.
Imaginamos situações em que as mulheres estão
correndo risco o tempo todo e não podemos fazer
nada porque elas estão trancadas dentro de casa,
e isso piora a situação dentro de nós.

Quando a gente conhece o que é a


violência, ao mesmo tempo em que liberta,
também é pior. Pior porque é como pecar sem
conhecer a Bíblia – “o pior pecador é aquele que
conhece Deus”. Quando se conhece, sabe o que
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são as violências e não podemos fazer nada,


piora. Esse sofrimento de dentro de nós vai
demorar pra sair. A gente comemora a vacina,
porque essas mulheres poderão sair de dentro de
casa. Mesmo sem saber se estão sofrendo
violência, elas vão poder sair.

A pandemia potencializou muito [a


violência contra mulher], e essa violência é nossa
também, porque a gente é mulher como coletivo
no mundo. A gente não é coletivo só aqui, a gente
é no mundo. Talvez não sintamos com a mesma
intensidade, mas todas sofremos com essa
impotência de não conseguir fazer nada por
essas mulheres que estão sofrendo violência
dentro de casa. Estamos vendo as violências
físicas, as violências mais brutais contra a mulher.
Percebemos o quanto a gente é suscetível às
violências, o quanto que a gente é refém de
determinadas coisas, e que a gente não
consegue mudar o mundo como a gente gostaria.
Isso dói pra caramba, mesmo, dói muito.

E é muito importante a gente ter essa


consciência, e que tudo isso que a gente tá
passando agora, principalmente nesse processo
de confinamento da pandemia agravou, agravou
o patriarcado, assim, no sentido de que se as
mulheres já estavam em situação de
vulnerabilidade antes, com o confinamento, mais!

Foi um processo de olhar pra dentro, que


a gente já fazia e a pandemia nos ensinou mais.
A gente teve que mergulhar não só na gente, mas
no contexto do que tá ao redor. Solidificar
algumas coisas e deixar algumas outras coisas
irem embora. 2018 foi um ano pesado, mas, ao
mesmo tempo, de fazer ação. A gente fez
bastante.
Desigualda Nós não consideramos raça/cor nos Tem a questão da menstruação, que é um
de classe e prontuários, e não sabemos o que tabu. Temos acompanhado um trabalho de uma
raça pensar disso. Em relação a classe fisioterapeuta pélvica numa cidade aqui do
social, como o atendimento do CREASinterior, em que ela faz um trabalho de
não é pautado em benefícios, em arrecadação de absorvente na cidade dela. Ao
critério de renda, acaba não sendo estudar, estamos todas empolgadas no início,
uma questão importante porque não émas depois ficamos pior, porque meninas já
uma coisa que vai definir o faltam na escola por conta do período menstrual.
atendimento. A não ser que a gente Meninas carentes, em que a família não vai
veja que é uma família que já deixar de comprar alimento pra comprar
verbaliza, já mostra que é mais absorvente. Essa fisioterapeuta fala da questão
carente, a gente sabe que pode incluir
da saúde, da intimidade feminina, tanto do útero,
em algum programa, aí a gente tem a vagina em si, bexiga, e fala de infecções
que ter certeza da renda pra fazer o
repetidas no período menstrual que é por falta de
encaminhamento. higiene. As mulheres encarceradas também,
porque viram moeda de troca, enquanto homens
E essas questões de raça e classe têm visita íntima. É um absurdo! Então
59

social é importante porque também começamos a estudar e percebemos que


tem essa questão cultural na relação mulheres conseguem menos galgar uma carreira
principalmente com as outras profissional porque não conseguem estudar,
instituições. E o CREAS precisa porque falta na escola por conta do absorvente e
exercer essa relação educativa, reprova de ano, não conseguem prestar o
relação talvez até política junto com as vestibular, vão ficando pra trás, além de todas as
instituições com a qual a gente se mazelas – porque, se engravida, acabou a vida
relaciona. Às vezes, a violência vem da menina de periferia. Se é uma menina negra,
como uma espécie de julgamento em piorou. É uma opressão constante, e que a gente
que a classe social é diferenciada. às vezes não enxerga a menos que passe a
estudar, porque algumas mulheres não
Então é uma coisa que a gente precisa conseguem enxergar que vivem aquela situação.
apontar, porque a família pobre é
aquela família fracassada, a violência é Em relação aos tipos de violência, existe a
uma coisa naturalizada, um estigma, a violência obstétrica, e dentro da própria questão
gente já acha que essa criança não vai do feminino tem a questão também da raça. As
tá protegida. Na família rica, talvez mulheres negras são as que mais sofrem os tipos
não; ela tem acesso a escola, tem de violência obstétrica. Elas não têm muito
acesso a isso… e a gente julga de uma acesso a anestesia, por exemplo, na hora do
maneira diferente. Então são questões parto, porque tem esse mito: “ah, elas num
que a gente precisa rever nosso precisam, elas são fortes, elas aguentam mais”.
instrumento e até a nossa análise Colocam anestesia em menor quantidade que o
nessa relação com classe social, normal. Elas são mulheres, e, além de tudo, por
gênero, raça. Se a gente pensar que serem negras são as que mais… À medida que
tem um tratamento diferente, um vamos lendo, vamos ficando cada vez mais
entendimento diferente, até a forma de chocadas.
se articular, se a gente for pensar que
dependendo da classe social a taxa de
raça/cor é diferente, então quão racista
a gente não tá sendo no nosso
entendimento? Se trouxer isso pra uma
vigilância socioassistencial você já vai
ter um dado falho, diferente. Não quer
dizer que o CREAS faça esse tipo de
apontamento a uma família diferente,
mas num âmbito maior é um grande
risco de acontecer. São dados que
podem chamar a atenção da gestão e
da vigilância [socioassistencial]. É para
além do número, mas para ver se
temos atitudes diferenciadas com
quem tem uma condição inferior.

A gente precisa entender essa relação


institucionalizada. Sempre há relação
de classes, então, quais são as
diferenças que as instituições ou os
órgãos que fazem os atendimentos?
Como estão lidando com isso? Se o
nosso instrumento não tá apontando
pra isso, a gente precisa, talvez, ter
uma estratégia para raça, pra relações
de classe, porque são questões
intrínsecas à relação de poder. Se é
cultural a violência, essa estrutura,
como é que a gente foi educado pra
enxergar? Esse debate precisa entrar
60

na discussão no CREAS para além da


violência física e psicológica.

Percebemos que o pessoal da classe


menos favorecida são mais abertos e
vê no CREAS uma confiança, solução,
um suporte, apoio. O pessoal da classe
mais alta são mais enrijecidos, de não
aceitar intervenção. Eles têm vários
recursos de advogado, teve o caso de
violência contra a mulher que
conseguiu uma transferência provisória
pra outra cidade pela empresa que
trabalha, e levou os filhos, a medida
protetiva não tinha saído ainda… Então
eles têm outros recursos.

[…] acontece [da classe mais alta] de


conhecer a equipe do CREAS, aí
depois vem o pai e a mãe querendo
manipular, persuasivos, a não mexer
com o sistema, com o conflito ali. Às
vezes pode haver uma intimidação por
parte do profissional, porque isso
também é uma violência, essa forma
como você quer manipular ou ser
enrijecido diante do atendido.

E o pessoal que é mais favorecido


financeiramente tem outros recursos
para lidar com a violência, mas
também para fazer com que ela não
apareça. Eles usam advogado,
influências.
Violência O físico, a violência física, acho que é No caso da criança, a questão nem é só o
contra mais fácil de fazer uma reflexão que a conhecimento, a criança não tem o poder, não
criança violência psicológica, patrimonial… ou tem força, é um adulto contra ela – uma das
alienação em relação aos filhos, características da violência é uma relação de
porque tem muito isso, não só em desigualdade. Alguém que tem muito poder se
relação aos pais separados, mas impõe sobre você. E a criança, que poder que ela
dentro de casa, o pai que fala “não, a tem? De falar não pra um adulto? Nenhuma. Mas
sua mãe não fez a comida direito, não talvez se ela tivesse tido a orientação de se algo
lavou a roupa direito”, então trabalhar acontecer de diferente a quem, quais lugares
isso, que o pai tá fazendo uma pedir ajuda...
violência em relação aos filhos contra a
mãe, também. Temos certeza que todas nós sofremos
algum tipo de violência contra a mulher na
Se chega aqui uma situação de infância e juventude mesmo sem saber que era, e
violência contra uma mulher ou criança mesmo que a gente não reconheça, ficou
de uma família que tem uma condição marcado, como já conversamos várias vezes.
financeira, uma situação na sociedade Depois que a gente começa a estudar, a gente
diferenciada, não vai se tirar a guarda traz à tona essas histórias que a gente tinha
dessa criança, não vai se tirar da dentro da gente mas que a gente não entendia
família. Quando é uma família pobre, como uma violência tão horrorosa. A gente sabe
quando é uma família que, talvez, já é que passou por aquilo mas não entendia o que
conhecida no município, o olhar pra era. Lembramos de flashes, de coisas
61

essa família – já se pensa: “meu Deus, pequenininhas, de uma mão em lugares que não
essa criança, nessa casa, o que vai ser deveria estar, de pessoas que não deveriam
dessa criança?”, já se pensa até na colocar a mão em nós. Então, a primeira coisa é
possibilidade de guarda… que a violência contra a mulher é uma coisa que
nos marca. Seja ela física, ou psicológica, ou
outra.

É fato, não conhecemos nenhuma menina


da nossa geração que não tenha sofrido na
infância e na adolescência alguma violência. A
gente vem dessa violência e dessa
vulnerabilidade, sendo utilizada como espaço de
opressão. São as nossas vulnerabilidades sendo
utilizadas como espaço de opressão. E isso vai
em vários âmbitos: vai nas pequenas coisas, por
exemplo, o fato da gente menstruar e muitas
meninas não terem acesso a absorvente e isso
ser uma consequência social, cultural… Até às
grandes coisas, como assassinato de Marielle,
como o impeachment de Dilma. Assim como não
termos mulheres eleitas na nossa cidade.
Consequên Participar do Coletivo nos ajudou muito a
cias da despertar pra algumas questões que a gente não
violência tava tão sensível, e isso ajudou no nosso campo
contra a ------------ profissional, em atendimentos com mulheres.
mulher Temos mulheres que têm depressão, pânico, tudo
quanto é coisa dentro de saúde mental, e
podemos dizer que 90% sofreu algum tipo de
abuso, algum tipo de violência. Ficamos mais
sensíveis, até pra mostrar pra elas: “você percebe
o que você passou, que isso é violência?”. Ajudou
a perceber quando eram coisas sutis, é um
aprendizado valoroso.
E as que denunciam e sofrem toda a
exposição pior do que a violência que ela sofreu
durante vários anos e não acontece nada com o
agressor? No caso dela, não foi fácil; ela teve que
fazer terapia, foi perseguida, foi todo um
processo, e só rolou porque tinha mulheres lá
dentro com coragem suficiente pra fazer isso. É
essa a questão. Quando cada uma de nós, aqui,
fala da importância de ocupar espaços de poder é
por isso. Porque a gente precisa de fato fazer
desses espaços articulação de acolhimento. E
isso é desdobramento do Isa. Não teríamos
acolhido mulheres, elas não saberiam de nós, se
nós não tivéssemos olhado pra elas algumas
vezes e falado algumas coisas, e se elas não
tivessem visto como a gente se acolhia.
Contradiçõ Sobre a questão cultural, tem a Olha como que é sintomático o tanto que
es normalidade, “isso, pra mim, sempre foi nossa cidade é machista, patriarcal: nós nunca
normal”, talvez pelo fato de sempre tivemos tantas candidatas como nesse pleito, e
viver e ver outras pessoas vivendo. foram tão pouco votadas. Algumas de nós
Com base num caso que atendemos, fizemos uma campanha extensa pra que a gente
pensando: onde entra mentira em tudo votasse em mulheres. Isso é muito maluco,
isso? Fazer um boletim de ocorrência porque as mulheres não votam nas mulheres! A
62

falando que a pessoa tá te agredindo, única candidata que foi votada e eleita, digamos
ou tá fazendo violência psicológica, tá que não tem uma representatividade como
negligenciando, é fácil, porque você feminino. Na verdade, ela é sujeita ao
pode mentir. E aí, a gente intervém de patriarcado, sempre. Cheia de boas intenções,
que forma? Aí é a dificuldade de mas ela é sujeita ao patriarcado, não tem
identificar realmente em alguns casos algumas noções, nem dos direitos da mulher.
a violência, mesmo que psicológica, e Então, isso é muito maluco. O tanto que a gente
diferenciar do conflito. Às vezes, a tinha de mulheres de todos os tipos de
pessoa mente por benefício. pensamento, de várias vertentes, de vários
partidos – então, as mulheres não votam nas
Na história das relações isso mulheres. Elas não sabem que a gente pode e
acontece muito, daquela violência às deve ocupar lugares de poder.
vezes ser colocada de uma maneira a
culpabilizar o outro, a responsabilizar,
e não ter essa empatia da relação Houve um caso de uma candidata prefeita
humana. Achamos que isso interfere que foi atacada pelo adversário com as mesmas
nas notificações, na relação com as opressões machistas de 2018.
instituições que dá pra fazer esse tipo
de atendimento.

Temos outro ponto em que a visão


do CREAS se divide. Uma parte
entende que a vítima,
independentemente de ser mulher, tem
vergonha das suas dores e das suas
marcas. A pessoa que é vítima talvez
tenha uma porcentagem de vítima,
100% vítima, 50%, 10%… Mas a
pessoa que é vítima não tem força nem
pra falar, pra pedir um socorro, nem
pra dar esse grito pro vizinho ouvir. Ela
tá sufocada, então ela precisa desse
suporte. Agora, um exemplo de um
casal brigando, quebrando tudo, os
dois arranhados, daí os vizinhos
chamam a polícia, eles tinham
acabado de ter uma relação sexual. O
cara tudo nos amores. “Não, que isso?
Imagina”. Tem umas coisas assim,
patológico. Mas, não tem como
entender que foge do nosso conceito,
nosso padrão e tudo mais. Então, nós
vemos que tem situações que são uma
reação. Nada justifica uma violência
física, mas, talvez, a junção desse
casal aí já é uma projeção de infância,
que talvez essa mulher é uma mãe
castradora, que fere a masculinidade
do homem, no sentido “me bate se
você for homem”. Masculinidade do
machismo, a gente vive numa cultura
machista e tem vezes que muitas
mulheres castradoras são machistas
também, pra ir lá na ferida. Em
brincadeiras de crianças tem a fala “se
você não fizer isso, você não é
homem”, se sai chorando, “você é
63

mulherzinha”. Então a mulher, às


vezes, usa o próprio movimento
machista pra ferir o homem. Então,
essa frase, não achamos que é de uma
mulher totalmente vítima, “bate se você
for homem”. Não estamos falando que
ela pediu pra apanhar, mas assim, hoje
em dia tem mudado algumas coisas –
ela sabe muito bem as armas do
emocional, agora, o homem não tem
muito essa habilidade, então acaba
sabendo só da força física e tudo mais.
Num ambiente cultural, o homem foi
educado a ter o falo, e às vezes o
homem, pra se sentir no poder, ele
expõe seu poder. Num ambiente de
trabalho, um homem assim violento,
ele humilha na frente pra todo mundo e
não vê. Agora, a mulher é muito sutil.
Às vezes, ela vai fazendo algo que só
a pessoa percebe e, na hora que a
pessoa espana, ninguém sabe. Outra
parte do CREAS discorda desse
ponto de vista, que se assemelha ao
momento da discordância em um
parágrafo anterior.

E na violência também, às vezes, é


cultural a mulher ser a vítima, mas é
vergonhoso pro homem falar que ele
sofre violência. Essa é uma
comparação um pouco meio cultural: é
vergonhoso pra mulher assumir uma
dependência e é vergonhoso pro
homem assumir que ele tem violência.
Tem muita coisa velada aí.

[…] existe uma diferença


enorme, gritante de gênero. É lógico
que o irmão também deve ter sofrido
violência, mas ele tá numa posição
privilegiada por ser homem. Tem um
certo privilégio de coisas que ela
sofre e que ele, por ser homem, não
sofreu.

Uma coisa que também associa a


outras questões, com efeito
multiplicador, é que a violência que
acontece comigo precisa ser uma
violência que toca outras pessoas, que
incomode as outras pessoas ao ponto
da gente refletir até onde que isso
continua ou como que a gente poderia
lidar de uma maneira mais coletiva.
Quando a gente se vê num grupo,
quando a gente vê que a violência
64

contra a mulher se dá porque é uma


relação de poder, é uma relação
histórica, é uma relação em que muitas
vezes o homem exerce um domínio e
ela de alguma maneira se coloca a ser
dominada, e ela refletir isso num grupo
e, de alguma maneira, sair do grupo
pra família, pros amigos e trazer esse
tipo de reflexão, é um efeito
multiplicador, um potencial que o
CREAS tem. A gente precisava discutir
essa questão de igualdade, dessa
relação de gênero, a questão de
igualdade nas representações
políticas, essa questão de igualdade
diante de uma relação familiar. Se a
gente não trouxer nas nossas
discussões, seja com os serviços, seja
com os atendidos, que a gente precisa
igualizar as pessoas, igualar no sentido
de afirmar em nossas práticas que
todos nós somos iguais e temos
direitos – à vida, a comer, a beber – e
a gente se relaciona de uma maneira
livre, é um pouco nessa linha, assim.
Que aí, vai pra uma linha mais
filosófica, uma linha, talvez, até mais
romântica, mas é por esse caminho.

A grande maioria das profissionais que


trabalham na rede socioassistencial
são mulheres. Às vezes é uma
projeção, identificação de vítima, e a
mulher às vezes não sabe se colocar
diante de um outro agressor. Tanto é
que aqui mesmo quando se é falado
que atende o agressor, o pessoal acha
um absurdo. Tem que atender só a
vítima, tem que empoderar só a vítima.
Teve esse caso em uma capacitação e
o CREAS se posicionou, um
coordenador falou que ele não
conseguia entender, que o CREAS tem
que atender agressor, aí a gente falou
que a gente já fazia esse trabalho e ele
ficou abismado. Na rede municipal o
pessoal também acha um absurdo e
questiona por que que vai atender o
agressor.

Aqui no CREAS temos duas visões


diferentes sobre um assunto: uma
parte entende que a gente consegue
identificar que muitas vezes é a mulher
que agride. Ela vem como vítima e na
hora que a gente vai atendendo, vê o
rolo que tá, tem isso também, que
65

existem relações tóxicas com


violência das duas partes. No grupo
que a gente tava, teve um senhor
que quem tomava conta do
patrimônio, do financeiro, era a
mulher; ele se sentia muito
agredido, então a forma que ele
tinha de se defender desse conflito
era bebendo e nisso chegava a ficar
agressivo por conta do álcool, mas
o conflito iniciava com o
comportamento dela. Ela era
agressiva com ele, ela que tomava
conta de tudo… ele era um nada. A
maioria dos homens enchia a cara
por conta do conflito e aí tinha a
consequência, lógico, por conta da
bebida, o comportamento mudava,
mas iniciou porque a mulher fez
alguma coisa: tomou a frente, fez
alguma ameaça pra ele,
inferiorizou… Tem umas formas de
provocar a violência. Esse “bate se
você for homem” tem um plano de
fundo de violência psicológica,
castradora, de desmasculinizar o
homem também. Muitas situações
chegam aqui no CREAS registrado a
violência do homem, mas o homem
acaba perdendo sua razão por
alguma atitude da mulher, que
provoca um descontrole nesse
homem. Essa violência é geracional,
um reflexo de mães castradoras, de
mulheres que são agressivas
emocionalmente, de diminuir a
figura do homem, aí o cara vai se
relacionar com uma pessoa que
diminua ele. Outra parte discorda,
entende que não é muitas das vezes,
são casos raros, e se a mulher
agride pode ser uma reação à
posição de inferior que ela é
colocada, ela vem de uma estrutura
em que ela tem que aceitar tudo, o
plano de fundo do machismo. O
“bate se você for homem” tá por
trás toda uma história que a mulher
aprendeu que é assim, a mulher é
machista no sentido em que o
homem que bate, que agride, o
homem que tem a força. É um
machismo de “o homem não pode
ser fraco”, ele tem que ser forte. Ele
não pode ir se cuidar, lidar com as
emoções? Ele tem que beber e
bater? Quem sofre com todo esse
66

plano de fundo é 99% mulher, que


morrem, aí, todos os dias. Elas são
as mais prejudicadas. Por isso,
parte do CREAS não concorda que
“muitas das vezes é a mulher que
agride”, porque tem todo esse plano
de fundo.

[…] tem a questão da


impunidade, do sentimento de injustiça.
“Eu vou lá pra quê?”, “pra acontecer o
que?”. Antes, tem a questão: o que me
move para fazer a denúncia?”. Pode
até ser o interesse de alguma atenção,
ou de alguma coisa que beneficie mais
pra frente, mas não pensamos que
seja num primeiro momento isso. A
gente tem um sentimento de que
“aquele serviço não vai fazer nada por
mim”, “vou lá pra falar da minha vida,
pra me expor?”.

Observa-se que os núcleos argumentais da grade são: conceito de


violência; identificação da violência contra a mulher; atendimento às mulheres
em situação de violência – formas de enfrentamento; violência contra a mulher
na pandemia; desigualdade de raça e classe; violência contra criança;
consequências da violência contra a mulher; contradições.
A partir desta grade, há um momento de elaboração posterior a ela no
formato de produto técnico audiovisual. O intuito é criar um guia virtual
utilizando dados da grade de interpretação que funcionem de forma
estratégica, uma vez que a íntegra dos dados não necessariamente criariam
espaços de elaboração de uma temática tão complexa que é a violência. Para
que seja possível uma elaboração dessa ordem, é necessário um interdito que
nos insira no campo simbólico da linguagem:

Diante da falta de mecanismos de regulação social que


impeçam a violência, ela acaba sendo praticada porque
pode ser praticada. Por isso, no tratamento
é preciso deixar claro à pessoa que pratica a violência
familiar que ela “não pode tomar tal atitude”, é preciso
“cancelar a sua licença para fazê-lo”, como diz Gelles
(1983). Não se trata de rotular essa pessoa de
“abusador” ou “agressor”, o que teria um efeito nocivo,
mas de fazê-la entender que é responsável pelo ato
abusivo (CAVALCANTE & SCHENKER, 2007, p. 213).
67

Por mais que o excerto seja de um texto que trata especificamente a


violência familiar, ajuda a desenhar o panorama: uma vez que violência de
gênero é cultural e se imbrica em relações sociais de forma naturalizada, há
reprodução institucional de violências que precisam ser questionadas em
qualquer instância, mesmo que na interpretação das narrativas com o coletivo
de avaliadores da pesquisa. Dar vazão a reproduções que abrem caminho para
a violência contra as mulheres é contraditório aos pressupostos todos descritos
por aqui e o trato às narrativas produzidas deve ter também postura ético-
política tal qual na sua produção. Na construção das narrativas, o método cria
um interdito para que o gozo da pesquisadora não tome conta; na elaboração
do produto técnico, a discussão com a comissão avaliadora cria um interdito
para que o gozo da violência não tome conta no produto técnico, dado sua
natureza educativa.

5. DISCUSSÃO GERAL

O tema “violência” é bastante atual e comporta grande complexidade,


geralmente mobilizando afetos e angústias difíceis de simbolizar. Destaca-se o
fato da pesquisa ter ocorrido em cidade de pequeno porte, longe de centros de
pesquisa em Saúde. Há pesquisadores que chamam essas localidades de
“Brasil profundo”, mas é possível entender que representa a grande maioria do
território do país formado primordialmente por municípios pequenos. Ou seja, o
SUS mais próximo ao real é o SUS que acontece em regiões “muito distantes” -
distantes de grandes centros urbanos, que tomam a si mesmos como
referência de centralidade. E, por mais que municípios pequenos sejam a
característica predominante do país, ainda há poucos estudos nessas
localidades. Além disso, pesquisar um município/serviço que é também local de
trabalho traz impactos mais diretos do processo de estudo. Por ser Ilha Solteira
um município sem grandes problemas estruturais (IDH alto, vários profissionais
concursados etc) é possível analisar o material empírico sem tantos
atravessamentos relacionados a precariedades dessa ordem.
Os dados numéricos (registros de violência contra a mulher no Brasil,
em Ilha Solteira pela DDM e pelo CREAS) foram apresentados no intuito de
introdução ao tema. No entanto, observa-se que, em vez dos dados municipais
68

comporem um cenário parecido com o nacional, abriram um leque de


raciocínios não antes do levantamento cogitados. Esses dados merecem um
tratamento mais aprofundado e que dialogue com a literatura. Inclusive, sobre a
pandemia de Covid-19 – literatura que aumenta a cada mês que nos afastamos
do susto inicial de declaração de calamidade pública. Para não tornar
verborrágica uma pesquisa de campo, opta-se por não dar esse devido
tratamento aos números nessa dissertação, sem desconsiderar a possibilidade
de uma ação futura.
A pandemia, crise sanitária permeada por crise política e moral, implicou
mudanças até pouco antes inesperadas no cotidiano do mundo inteiro. A
princípio, o sentimento era de que a pesquisa teria sofrido muitas perdas.
Afinal, perdeu parte significativa da extensão do seu caráter participativo, tanto
nas narrativas – que não contemplou usuárias do CREAS – quanto no produto
técnico, pedra angular da pesquisa. No entanto, houve um ganho da
participação em profundidade, pois, se o Coletivo inicialmente coordenaria uma
oficina de consenso, como voz de uma narrativa trouxe elementos que não
seriam ouvidos no primeiro modelo. E, por fim, o produto técnico permaneceu
no seu estatuto de grande importância transferindo a criatividade do coletivo
para a criatividade da pesquisadora.
A distância temporal dos encontros com o CREAS, bem menor em
relação aos encontros com o Coletivo, e o fato do primeiro encontro com
CREAS ser o único dos três, ao todo, que não respirava nenhum sinal de
pandemia, também causou preocupação metodológica. Houve forte impacto
nas narrativas, pois a relação entre violência contra a mulher e a pandemia
apareceu no grupo focal com Coletivo e não apareceu no CREAS. No entanto,
de forma inesperada, a pandemia acabou trazendo o tema da violência à tona,
principalmente violência doméstica, atrelada ao distanciamento social e
necessidade de recolhimento ao ambiente domiciliar. Aliado aos estressores de
dificuldade financeira, medo de morrer ou perder pessoas amadas, medo de
adoecimento, necessidade de renda sem segurança social adequada,
insegurança quanto ao futuro e tantos outros que acometeram (e ainda
acometem) a população mundial, a convivência familiar contou com aumento
significativo de denúncias de violência doméstica. Esse indicador é
relativamente novo e precisa ser melhor estudado para trazer mais reflexões
69

sobre a dinâmica de violência intrafamiliar e o tipo de relações que estão sendo


construídas.
A experiência de realizar grupo focal narrativo por meio virtual causou
estranhamento, no início. Existiram os ajustes com gravação, interferência de
áudio, familiaridade com plataformas de videochamada, que neste momento,
depois de dois anos de pandemia declarada, parecem dificuldades tão mais
distantes. No entanto, esse ajuste inicial se deu de forma rápida e logo a
fruição era bem semelhante a um grupo focal narrativo em formato presencial.
Provavelmente, essa organicidade se deveu também ao fato de que o Coletivo
era um grupo formado há anos com uma dinâmica orgânica já instalada. Aliás,
o formato virtual permitiu a participação de uma das integrantes do Coletivo,
que retornou a seu estado natal e a saudade que inspirava no grupo todo foi
acalentada pelo contato mesmo que virtual. É como se, mesmo com os
percalços e várias mudanças metodológicas, a pesquisa tenha ocorrido da
melhor forma possível.
Os atravessamentos da pandemia de Covid-19 são bastante relevantes,
não apenas em relação às mudanças de plano apresentadas mas também aos
prejuízos trazidos à pesquisadora: adoecimento fisiológico, lentificação do
pensamento com dificuldade na escrita, demandas da ordem da sobrevivência
que custava toda a disponibilidade emocional. Interessante o fato de que a
carga de trabalho também aumentou; como psicóloga do CREAS que atendia
situações de violência doméstica/contra a mulher, o número de casos novos e
de maior gravidade parece ter aumentado significativamente durante a
pandemia. Dessa forma, sendo o produto técnico uma ferramenta esperada no
início da pesquisa, acabou se tornando ainda mais relevante pela qualificação
e responsabilização dos serviços no atendimento às situações de violência.
Ainda sobre a discussão metodológica, é relevante mencionar que o
método hermenêutico é uma posição ética relevante não apenas no âmbito
político-conceitual, mas também por viabilizar a condução de grupos focais
narrativos por uma pessoa que faz parte desses dois grupos, ao mesmo tempo.
A análise de textos escritos e da análise pelo próprio grupo evitou que a
pesquisadora colocasse suas impressões pessoais acima da narrativa dos
grupos.
Em relação ao conteúdo das narrativas, observa-se que a narrativa do
70

CREAS trouxe mais elementos burocráticos do atendimento às violências e


uma implicação voltada ao lado profissional de cada participante. Na narrativa
do Coletivo, as participantes ocupam profissões e funções diferentes, e esse
aspecto laboral acaba sendo uma das ênfases da narrativa, mas não só; o
envolvimento subjetivo na temática é mais aparente, a dimensão afetiva é
inescapável e a vinculação é imprescindível às premissas. Essa organicidade
traz a sensação de que, enquanto o CREAS falava sobre “aquelas mulheres”, o
coletivo falava sobre “todas nós, mulheres, corpo social indivisível”. Em termos
de abordagens científicas tradicionais, esse dado traz um deslocamento para
um lugar onde quem trabalha no enfrentamento à violência contra a mulher é
convocado a partir de um lugar diferente. No entanto, há que se pensar que
essa externalidade com que os profissionais do CREAS se referiram às
mulheres (“aquelas mulheres”) tem relação também com o tipo de perguntas
disparadoras que foram feitas. O roteiro de perguntas foi baseado no roteiro da
pesquisa de Implementação do Ambulatório, no qual os pesquisadores não
conheciam pessoalmente a população estudada, no geral. As questões eram
mais relacionadas a quebrar o gelo e criar uma sensação de grupalidade, que
já existiam na pesquisa aqui descrita. Por isso, provavelmente pelo lugar da
pesquisadora de também trabalhadora do CREAS, as perguntas foram
generalizantes, que facilitam a adoção de respostas menos implicadas. Por
mais que as perguntas foram as mesmas para o Coletivo e as respostas
totalmente diferentes, é interessante pensar, para pesquisas futuras com
participantes que são profissionais e gestores (atores mais acostumados à
necessidade de exteriorização e generalizações), perguntas que busquem
experiências mais implicadas e significativas (por exemplo, um caso que
mobilizou, o porquê etc).
Esse envolvimento “por completo” tem uma função que não pode ser
cumprida no CREAS, mas também não comporta todas as funções que o
CREAS exerce. Por exemplo, entender que violência “é tudo que dói” pode
trivializar e trazer uma dimensão pouco operacionalizada do que é o fenômeno,
podendo implicar uma indistinção da dinâmica relacional e reafirmar o ciclo de
violência em vez de indicar saídas. Esse seria um conteúdo que não comporia
o produto técnico, entendendo o lugar estratégico que o produto deve ocupar.
Uma sinalização dessa problemática consta na própria narrativa do Coletivo, no
71

trecho “As pontes que a gente construiu são nossas e ninguém vai tirar da
gente. É sobre saber construir caminhos também de afastamento, que é pra
gente poder ajudar inteiro, porque se a gente se aproximar demais, a gente
não consegue ajudar ninguém, nem a gente mesmo.”
Na narrativa do CREAS, aparece como função do serviço
desnaturalizar a banalização/trivialização da violência. A estratégia de
compartimentalizar a violência, dividindo-a em tipo, é uma divisão didática e
funciona se não perder de vista o funcionamento sistêmico e histórico da
humanidade. Essa é uma operacionalização importante no atendimento e
entendimento da violência, pois dá lugar a diferentes dimensões do fenômeno
e é necessariamente propositivo. Existe uma operacionalização bem delineada
da estratégia de enfrentamento à violência contra a mulher. Talvez não por
acaso a narrativa do Coletivo teve bem menos menções às formas de
identificação de violência contra a mulher. Outra importante estratégia de
enfrentamento à violência é o atendimento coletivo no serviço através de
(grupos de mulheres, grupos de homens), nos quais são discutidas situações
em que uma pessoa se identifica com a fala da outra, percebendo que o que
lhe acometeu foi violência (no caso dos homens, às vezes se dão conta de
ações que nunca refletiram sobre serem violências).
A questão sobre diferença entre conflito e violência também não é
interessante de ser utilizada no produto técnico. No município do CREAS
estudado, existe a herança de um funcionamento mais próximo ao
relacionamento de clientela/consumidor que de cidadania. Assim, ainda
acontece com alguma frequência o encaminhamento de situações que não são
objeto de trabalho do CREAS. Uma briga de vizinhos por conta de som alto,
por exemplo, sem envolver relação desigual de poder ou relação de gênero, já
foi objeto comum ao CREAS com a demanda de resolver o entendimento pelos
vizinhos, e não com eles ou, melhor ainda, que se resolvessem no exercício
das relações comunitárias. Utilizar um desagrado na convivência comunitária é
trivializar o conceito de violência e existe um trabalho institucional de defender
para e com os munícipes as funções do CREAS.

Interessante mencionar a questão que aparece na narrativa do CREAS


sobre dificuldade de visualizar a violência, tamanho enraizamento cultural que
72

ela possui, dificuldade que aparece também no atendimento profissional a


vítimas. Nesse sentido, percebe-se essencial a educação continuada de todo
profissional do serviço público que atenda população, pois todos estão aptos a
depararem-se com situações de violência. Reproduzir violência atendendo
vítimas de violência não pode ser uma opção.

As duas narrativas apresentam a violência como um acontecimento


sistêmico e cultural que se reproduz de relação em relação, geração em
geração. O objeto de estudo da pesquisa maior de Implementação de
Ambulatório a Pessoas Expostas a Situações de Violência aparece na narrativa
do CREAS, de forma não programada, ao trazer que “todo funcionamento
agressivo tem as vítimas diretas e indiretas, por exemplo, as crianças que tem
que ver seu pai não cuidador e mais agressivo com a mãe. Aí a criança vai
reproduzir a violência. Por mais que a violência não atinja diretamente as
crianças, tá sendo a referência.” A exposição a situações de violência, por
essa perspectiva, não só traz prejuízos às vítimas indiretas como
participa da reprodução cultural da violência (grifo meu).

O tema da violência na infância aparece mais vezes, como na narrativa


do Coletivo ao mencionar a dificuldade de perceber sinais de violência como
tais ao se dar conta na vida adulta que sofreu diversas violências na infância
sem perceber de imediato. A pesquisa pôs em foco a violência contra a mulher,
mas é preciso mencionar que as mulheres adultas já foram um dia crianças,
adolescentes, quiçá serão idosas, e mulheres adultas convivem com crianças,
até cuidam e educam crianças.

Ainda sobre identificação de violências vividas, o CREAS chama


atenção para a dificuldade em perceber a violência psicológica e a patrimonial.
Destaque para o trecho: “às vezes a própria mulher fala “ah, mas ele não me
bateu ainda”, sempre essa frase. Ou algum setor [...] entra em contato e diz “ó,
eu tô atendendo mas ele não bateu ainda”. Então já vem com uma violência
por minimizar, por dizer que a violência que a mulher sofreu não foi
concretizada, não existe. Essa violência psicológica, inconscientemente, fica
velada.” A violência psicológica já é uma violência, e depois o CREAS cita a
dificuldade em conseguir medida protetiva de afastamento no caso de violência
73

psicológica. Há vários casos encaminhados ao CREAS pela Delegacia de


Defesa da Mulher de mulheres que foram espancadas, hospitalizadas,
perseguidas por ex-companheiros que “não aceitam” o término do
relacionamento (como se fosse passível de autorização) e registram Boletim de
Ocorrência dando direito à medida protetiva de afastamento do agressor,
aquela na qual o indivíduo não pode se aproximar da mulher a tantos metros,
deve se retirar de estabelecimentos onde ela já esteja e outros detalhes. Essa
questão é tão atual, que foi incluído no Código Penal há menos de um ano o
crime de violência psicológica contra a mulher, por meio da Lei 14.188. Para
além de questões legais e burocráticas, é interessante notar o reconhecimento
e nomeação do que é violência psicológica contra a mulher, segundo a referida
lei: “dano emocional que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou
que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e
decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou
qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e
autodeterminação”. O reconhecimento legal da violência psicológica como um
crime e seus danos à saúde, incluindo o aspecto psicológico que compõe a
saúde, é um acontecimento que merece nota.

O Coletivo traz importância ao estudo sobre violência. Menciona que foi


através do estudo em grupo e compartilhamento de experiências que muitas
violências foram percebidas, situação próxima ao relato de atendimento grupal
no CREAS. O Coletivo menciona que esse reconhecimento no espaço de
construção coletiva fortalece cada uma das participantes. Fortalecendo as
participantes entre si, cada uma multiplicou essa força de enfrentamento a
outros espaços. Há um trecho que diz “consideramos que a gente despertou e
ajudou a despertar. Fazer ter coragem de falar, e se reconhecer. Nós demos
voz. A tudo que as mulheres queriam ouvir e falar, e houve acolhimento.” Esse
movimento intra e interpessoal é apresentado na fala do CREAS mais na
terceira pessoa do plural, ao citar que as mulheres que se libertaram de
situações de violência criam efeito multiplicador de promoção de vida e de
repertório às demais convivas.
74

O Coletivo traz como estratégia de enfrentamento à violência contra a


mulher, além do estudo de material bibliográfico, letras de música, acolhimento
dentro do próprio grupo para depois acolher outras mulheres, leitura de
poemas, reuniões com bolo de chocolate, dança folclórica, piquenique, rodas,
eventos em praça pública, panfletagem, idas a locais como comunidade que
trata HIV/AIDS, OAB, universidade pública, menção a mulheres ocuparem
espaços de poder e decisão (“Ser juíza, ser promotora, ser médica… Ser
vereadora, ser prefeita, ser governadora... Porque enquanto num ocuparem
esses lugares, elas vão depender dos homens pra tomar decisão pra elas”),
que são recursos mais comunitários e relacionais de atuação. Como
instrumento, o Coletivo identifica que “Para fazer o que fizemos, no Coletivo, o
primeiro material que a gente teve foi a vontade. Nem só vontade, era uma
ânsia, uma fremência. A gente tinha uma urgência. Essa urgência foi anterior
ao despertar total. A gente tinha urgência de despertar. A gente começou
pensando em fazer alguma coisa para os outros, e a gente usou… a gente
usou nós. Nossos corpos, nossas vozes, e quanto a coisas materiais, foi o
mínimo possível. A gente usou papel, imaginação… e nós, a nossa voz. A
nossa voz, e a nossa vontade e o nosso desejo de fazer. E aí a gente começou
chamando, esse desejo foi se multiplicando e foi contaminando.” É interessante
pensar a permeabilidade e alcance de ações de enfrentamento à violência
contra a mulher baseadas em laços sociais e agenciamentos de recursos
essencialmente comunitários e não tão burocráticos. Talvez isso que tenha
dado o tom de organicidade ao movimento, bem descrito no trecho que dizem
“O Isa foi muito de fluxo, água mesmo. Tem coisa mais feminina que água?
Que ocupa, que acalanta, que acolhe... É o nosso primeiro lar, é a água. E o
Isa é isso, esse fluxo, porque ele ainda jorra na gente.”

CREAS menciona possibilidade de falar sobre o tema violência nas


rádios e escolas e em grupos em postos de saúde, espaços mais burocráticos
de atuação. É interessante o trecho em que o CREAS cita que “Trabalhamos a
autorresponsabilização no sentido de que você tem alguma coisa a ser feita.
Não é só a questão do poder dele, mas ela se empoderar, também, empoderar
a mulher. Achamos que o maior trabalho é tentar empoderar pra romper com
esse ciclo [de ameaças do marido], pra ela fazer as escolhas dela.
75

Entendemos que empoderar significa mostrar que sempre tem alternativa


(grifo meu).” Sendo assim, “O trabalho do CREAS também envolve tentar
requisitar uma liberdade possível no caso do atendimento às mulheres.
Tem um pouco de restabelecer ou de fazer perceber, criar, construir uma
liberdade que já é possível, mesmo que seja pequena (grifo meu).” Essa
definição de empoderamento segue a linha propositiva e operacionalizada da
equipe do CREAS, mesmo sem a centralidade da criação de vínculos afetivos
e de afinidade.

As violências relacionadas à questão racial e de classe econômica


apareceram nas duas narrativas. O CREAS questionou o próprio instrumento
que utiliza em cada prontuário, chamado de ficha de acolhida (será que acolhe
tanto quanto poderia?), e o quanto o olhar da própria equipe não estaria
enviesado dado o caráter estrutural da violência. O CREAS menciona que a
desigualdade social já é uma violência, essa violência estrutural que é ponto de
chegada mas, principalmente, de partida para as intervenções do serviços. O
Coletivo também abordou a violência racializada ao exemplificar a violência
obstétrica: as mulheres negras são as que mais sofrem violência relacionado
ao parto, por exemplo, tendo bem menos acesso a anestesia ao parir. Também
abordou a questão de pobreza menstrual e as perdas na dignidade e
oportunidades relacionadas a isso.

Sobre as consequências da violência contra a mulher, apenas o Coletivo


abordou de forma direta e mencionou relação da violência vivida pela mulher
com desenvolvimento de depressão, transtorno do pânico, problemas de saúde
mental e necessidade de terapia. Mesmo com curtas menções, essa parte é
fundamental na pesquisa, diretamente relacionada à pesquisa de
Implementação de Ambulatório para Pessoas Expostas à Violência e indica a
relevância da discussão sobre violência para a Saúde Coletiva.
Por fim, o núcleo argumental nomeado “contradições” se refere a
dimensões diferentes para cada narrativa: na do CREAS, a contradição está
dentro do discurso elaborado, e, na do Coletivo, a contradição é apontada no
machismo e patriarcado que acomete também mulheres prejudicando-as sem
que percebam. As contradições no CREAS estão na menção da possibilidade
da mulher mentir sobre violência sofrida e registrar boletim de ocorrência para
76

benefício secundário, associar necessidade de empatia em situações de


violência equiparando-as a situações de mero conflito intrapessoal, e mesmo
sinalização de dissensos dentro da equipe. Por exemplo, ao comentar que
parte do CREAS entende que a violência cometida contra a mulher pode ser
uma reação a um comportamento castrador da mulher, que fere a
masculinidade do homem. Antecede esse trecho uma fala de que nada
justificaria violência contra a mulher, mas o que se segue parece tentativa de
justificar essa violência, dizendo que a mulher utilizaria o próprio advento do
machismo para ferir o homem, utilizando um conhecimento de armas
emocionais que o homem não conheceria então lhe restaria, apenas, a força
física. Importante ressaltar que essas falas partiram do único homem do grupo,
e o resto do grupo manifestou discordância. Essa foi a parte em que no
primeiro encontro as demais técnicas manifestaram brincadeiras em tom um
pouco desconfortável mas jocoso, como se não levassem a sério essas falas,
mencionando cortar essa parte da transcrição. No momento hermenêutico,
uma técnica que não estava no primeiro encontro insistiu na discordância
desse ponto, mencionado que era reprodução de machismo e violência de
gênero, e as demais técnicas concordaram. Esse ambiente de desconforto
disfarçado de brincadeira leva a pensar: será essa uma reação possível frente
a violência? Seria uma tentativa de evitar confrontos? Muitas vezes, a forma
com que se reage à violência diz sobre relações desiguais de poder a que se
está submetido, possibilidade de coerção, e a própria violência de gênero das
relações profissionais.
É contraditório também a fala de que, sendo a maioria dos profissionais
da Assistência Social mulheres, existiria às vezes uma identificação como
vítima e projeção e essa mulher profissional não saberia se colocar diante de
um agressor atendido. Esse trecho foi mencionado pelo único homem do grupo
ao defender o atendimento grupal de homens, agressores que outros CREAS
de outros municípios teriam discordado desse atendimento. Outra passagem
significativa sobre o tema é a fala de que muitas vezes é a mulher que agride,
haveriam violência das duas partes, relações tóxicas, citando que “No grupo
que a gente tava, teve um senhor que quem tomava conta do patrimônio,
do financeiro, era a mulher; ele se sentia muito agredido, então a forma
que ele tinha de se defender desse conflito era bebendo e nisso chegava
77

a ficar agressivo por conta do álcool, mas o conflito iniciava com o


comportamento dela. Ela era agressiva com ele, ela que tomava conta de
tudo… ele era um nada. A maioria dos homens enchia a cara por conta do
conflito e aí tinha a consequência, lógico, por conta da bebida, o
comportamento mudava, mas iniciou porque a mulher fez alguma coisa:
tomou a frente, fez alguma ameaça pra ele, inferiorizou… Tem umas
formas de provocar a violência. Esse “bate se você for homem” tem um
plano de fundo de violência psicológica, castradora, de desmasculinizar o
homem também. Muitas situações chegam aqui no CREAS registrado a
violência do homem, mas o homem acaba perdendo sua razão por
alguma atitude da mulher, que provoca um descontrole nesse homem.
Essa violência é geracional, um reflexo de mães castradoras, de mulheres
que são agressivas emocionalmente […]; a mulher é machista no sentido
em que o homem que bate, que agride, o homem que tem a força. É um
machismo de “o homem não pode ser fraco”, ele tem que ser forte. Ele
não pode ir se cuidar, lidar com as emoções? Ele tem que beber e bater?
Quem sofre com todo esse plano de fundo é 99% mulher, que morrem, aí,
todos os dias. Elas são as mais prejudicadas. Por isso, parte do CREAS
não concorda que “muitas das vezes é a mulher que agride”, porque tem
todo esse plano de fundo” (grifos do próprio grupo focal de modificação da
narrativa 1). Essa longa citação também partiu do único homem do grupo, que
encontrou ressonância em uma ou duas técnicas no momento hermenêutico,
com discordância das demais.

A contradição interna mencionada chama a atenção para tentativas de


justificar a violência de gênero dizendo que não são tentativas de justificá-la.
Esse ponto é importante para chamar atenção novamente ao fato de que
violência não é qualquer coisa, não podemos trivializá-la, e, por isso, a escolha
de não colocar exatamente um resumo das narrativas no produto técnico. As
contradições dentro do próprio discurso são interessantes objeto de estudo e
reflexões, mas o objetivo do produto técnico é trazer elaborações sobre as
narrativas que não violentem os grupos focais. A pesquisa na íntegra estará
disponível a quaisquer interessados, mas um produto de tecnologia educativa,
instrumentalização de atendimentos não pode dar margem à invalidação de
78

fenômenos que são o próprio funcionamento da violência contra a mulher. Não


seria necessária uma lei validando a violência psicológica contra a mulher se o
discurso das mulheres não fosse justamente descredibilizado por ser mulher, o
que o Coletivo trouxe de forma mais coesa. Portanto, o produto técnico é
pensado como uma intervenção que integre diferentes estratégias e conversem
com movimentos e serviços diversos, assim como a dissertação procura não
dar margem a qualquer interpretação sobre o que é violência.

Minayo (2007) traz melhor essa discussão, referindo que após longos
debates o Ministério da Saúde em 2001 “ofereceu uma definição de violência
com a qual pudéssemos operar a política e promover planos de ação nos três
níveis de gestão (p. 24)”. Operacionalidade, elemento importante para
planejamento, política e gestão. Para ciência, essa manifestação do Ministério
da Saúde trata-se da Portaria nº 737/2001 – Política Nacional de Redução de
Morbimortalidade por Acidentes e Violência, documento que, se forma
resumida:

- insere o tema da violência no marco da promoção da


saúde no marco da promoção da saúde, entendendo que
o setor precisa contribuir para a universalização da
cidadania e buscar atuar proativamente diante dos
problemas que tornam a sociedade e os grupos
específicos mais vulneráveis;
- mostra que é preciso investir na compreensão do
fenômeno, para diagnosticá-lo, notificá-lo melhor e para
buscar formas específicas de atuação;
- analisa a precariedade das informações sobre o tema e
a excessiva subnotificação, entendendo-as como parte
do reducionismo com que o modelo biomédico vinha
trabalhando o tema ou, ainda, como fruto do
desconhecimento, da negação, da negligência, da falta
de preparação dos profissionais e das instituições;
- reconhece que é preciso intervir na formação e na sua
atuação institucional, pois frequentemente os serviços e
seus profissionais são vítimas, mas, principalmente,
também são atores de violência e precisam ter
consciência de que contribuem com sua cota para a
crueldade de que é vítima a população. Isso ocorre,
sobretudo, nas relações com os mais pobres que
recorrem ao Sistema Único de Saúde (SUS), quando
tratam mal e burocraticamente, são insensíveis,
discriminam e negligenciam cuidados;
79

[...]
- propõe uma filosofia e uma prática intersetoriais e
articuladas com a sociedade civil;
- elabora orientações para acompanhamento e
monitoramento das ações, ao mesmo tempo que elas
vão sendo implantadas (p 24-25).

Dessa forma, retoma-se e justifica-se novamente elementos importantes


na discussão traçada.

6. CONCLUSÃO

Renasci foi das cinzas das guerreiras


Pela mesma missão que me desfez
vê meu corpo no chão mais uma vez
Reforçando o poder da terra santa
Pois quem queima em seu solo depois planta
(Amanda Pacífico/Cacau de Sá)

As narrativas construídas desenham o aspecto cultural e social descrito


academicamente na introdução ao tema. Mesmo sem essa intenção, a
narrativa dos trabalhadores do CREAS e a das mulheres do Coletivo apóiam-
se em suas – por falta de palavra melhor – fragilidades, criando, juntas, um
discurso forte e robusto. As controvérsias da narrativa do CREAS merecem
destaque, principalmente por fazerem da exceção a regra: a violência está
inscrita historicamente em todas as relações sociais, e aparece no cotidiano
travestida de machismo independente de sua percepção como tal.
A pesquisa trouxe dados importantes considerando o porte do município,
que representa a quase totalidade da extensão territorial nacional. Interessante
notar que os dispositivos de políticas públicas de Ilha Solteira contam com uma
rede completa de serviços (SUS, SUAS, Educação etc), trazendo alguma
possibilidade de continuidade de trabalhar o tema estudado. A psicanálise
como método/postura ético-política auxilia a entender situações que podem
ficar estagnadas, pensando em conceitos como, por exemplo, inconsciente e
transferência. Esse caminhar do pensamento é essencial ao tratar tema que
traz afetos, por vezes, angustiantes e paralisantes.
80

De alguma maneira, foram indicadas formas de se trabalhar e acolher


essa demanda que se apresenta tão crucial e delicada. O tema de violência
contra a mulher merece ainda bastante investigação; é um tema que encontra
não-ditos, vácuos da dureza do real do corpo e momentos de supressão da
palavra que são até mesmo o mecanismo de funcionamento da própria
violência cultural.
A dimensão emocional, afetiva, essa característica subjetiva do
adoecimento e recuperação da saúde nas relações humanas não pode ser
ignorada em nenhuma discussão sobre saúde coletiva, inclusive o tema
violência de gênero. No entanto, é uma questão ética apresentar elementos
propositivos, saídas para questões profissionais e opções de elaboração
simbólica para fazer o assunto caminhar em vez de se tornar uma angústia
paralisante. Ou seja, na melhor das hipóteses, entende-se que a pesquisa está
dizendo: olha, esse tema é sensível, mas é possível olhar pra ele com
segurança e produzir vida a partir daí. O principal veículo dessa mensagem
provavelmente é o produto técnico, apresentado em momento oportuno.
A ideia de que é possível enfrentar a violência de gênero é endossada
na escrita de Minayo que traz que

Para mudar essa naturalização da violência é preciso


atuar, intervir e, inclusive, denunciar e punir quando for o
caso. As conquistas dos movimentos feministas, dos
movimentos em prol da cidadania das crianças e dos
adolescentes, dos movimentos dos negros e dos
homossexuais estão aí para provar que é possível
“desnaturalizar” as formas de reprodução da dominação,
de submissão e os agravos provenientes desses
fenômenos.
[…]
Geralmente achamos que violento é o outro. Mas
estudos filosóficos e psicanalíticos mostram que a não-
violência é uma construção social e pessoal. Do ponto de
vista social, o antídoto da violência é a capacidade que a
sociedade tem de incluir, ampliar e universalizar os
direitos e os deveres de cidadania. No que tange ao
âmbito pessoal, a não-violência pressupõe o
reconhecimento da humanidade e da cidadania do outro,
o desenvolvimento de valores de paz, de solidariedade,
de convivência, de tolerância, de capacidade de
negociação e de solução de conflitos pela discussão e
pelo diálogo. (2007, p. 24)
81

Entender o aspecto cultural da violência de gênero pode trazer a


sensação de que é algo inalcançável, incontrolável, mas categorizar essa
violência em tipos pode ser um meio propositivo de identificar para discutir,
refletir e fazer justamente o movimento de construção consciente de outras
formas de subjetivação.

Minayo, pela literatura trazida no início da apresentação da pesquisa,


escreve de violência e pesquisa social como questões históricas e
sociais/humanas. Se ela tem acontecido de um jeito, é possível reunir esforços
para diminuir e melhorar o que vem ocorrendo. É possível implantar e
implementar estratégias de vigilância em saúde (SUS) e vigilância
socioassistencial (SUAS) que incluam indicadores de violência que tragam
informações balizadoras de planejamento e avaliação de políticas públicas.

Espera-se que com a construção de ideias aqui apresentada seja


possível permitir que perpassem alguns questionamentos, como: dentro das
políticas de SUS e SUAS, quais subjetividades têm sido produzidas, quais
estão sendo silenciadas e quais podem ser criadas? Quais outros destinos
possíveis à agressividade, constituinte da subjetividade? Se o processo de
pensar violência não é ilibado – a violência é nossa, enquanto indivíduos e
coletividades – COMO podemos atuar pela erradicação da violência de
gênero? Quais outras expressões de violência – e, sobretudo, expressões de
VIDA existem em sociedades diversas que podem inspirar os valores culturais
de nossas políticas sociais?

Apresenta-se um apreço pela metodologia da pesquisa, uma vez que


grupos focais narrativos trazem em sua composição um processo de escuta da
fala coletiva numa possibilidade de outrar-se, mas também de se apoderar
daquela fala; isso que falamos é nosso, não é da pesquisadora, é nosso
pensamento e nos responsabilizamos por isso. Um forma de lutar contra a
violência é discutir sobre ela, torná-la objeto de discussão dos profissionais,
objeto de diálogo entre equipes, e o grupo focal mostrou-se uma prática
possível para fazer circular a palavra, tirando alguns interditos (tabus) que
82

precisam ser tirados e com a possibilidade de reiterar interdições simbólicas


importantes de ações que não podem passar por brincadeiras.

Por fim, destaca-se que essa foi uma pesquisa social com
(re)construção das políticas públicas e rede de apoio comunitário em um
processo reflexivo que nem sempre é vivenciado no funcionalismo público ou
no contato geral dos cidadãos entre si. A operacionalização dessa investigação
é um exemplo de intervenção possível para dar prosseguimento ao trabalho de
combate à violência de gênero.
83

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BRASIL. Lei 12.435 de 6 de julho de 2011. Altera a Lei 8.742 que dispõe sobre
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Florianópolis: UFSC, v.01, nº 01, jan-abr 2009.
87

8. APÊNDICES
PRODUTO TÉCNICO

Como requisito de conclusão do Mestrado Profissional em Saúde


Coletiva: Políticas e Gestão em Saúde, a pesquisa precisa gerar um produto
técnico, produção tecnológica formalizada pelo Grupo de Trabalho da CAPES
instituído pela Portaria 171/2018. De acordo com o relatório do GT de
Produção Técnica (2019), o produto técnico proposto na presente pesquisa
encontra-se no Eixo 1- Produtos e Processos, na modalidade “8 - Material
didático e instrucional”, e, dentro dos produtos relevantes para as 49 áreas de
avaliação, corresponde ao produto nº 6: Material Didático, de subtipo
audiovisual/novas mídias. É um guia virtual com dados da grade interpretativa
das narrativas ampliadas de forma gráfica e dinâmico, cujo público-alvo são os
profissionais da rede de serviços públicos do município de Ilha Solteira/SP,
com intuito de mediar o processo ensino-aprendizagem em diferentes
contextos educacionais. Ele é acessível por este site: <https://guia-
virtual.herokuapp.com/>.

Para maior facilidade ao acessar o site, foi criado um QR Code e um


cabeçalho simples para imprimir e divulgar o guia virtual:
88

É possível utilizar essa mídia como um guia para o SUS e para o SUAS
no atendimento a mulheres vítimas de violência, que os gestores poderão
utilizar na educação permanente dos profissionais da rede e qualificação dos
serviços. É um material dirigido a profissionais de serviço público que pode
instrumentalizar o atendimento a mulheres em situação de violência. Além
disso, pode fortalecer a pactuação do Protocolo de Fluxo de Atendimento
Intersetorial à Mulher em Situação de Violência, ferramenta produzida pelo
município de Ilha Solteira que acompanha a Ficha de Notificação de Violência e
descreve responsabilidades de cada setor do serviço público, destacando que
não é atribuição apenas do CREAS realizar esses atendimentos e requer
preparo de todos os atores da rede.

O produto técnico pode contribuir para instrumentalização do trabalho


com violência contra a mulher, sinalizando saídas e possibilidades para além
de espaços institucionalizados, dando um corpo prático e replicável sobre as
discussões nas outras etapas da pesquisa. Pode haver uma aceitabilidade
considerável porque parte do público-alvo terá contribuído previamente com o
conteúdo do produto, além de sinalizarem (incluindo a gestão) interesse nesse
material. Espera-se que haja sustentabilidade também considerável por ajudar
a instrumentalizar o trabalho com um tema tão delicado como é a violência. A
penetração em outros serviços além do CREAS pode ocorrer se houver um
movimento entre gestão de fazer-se cumprir os protocolos de fluxo de
atendimento às situações de violência. O produto técnico não terá custos e é
viável. Por conta dessas características e pelo protagonismo de trabalhadores
e mulheres organizadas na construção, entende-se que o produto técnico pode
ser atrativo para a gestão e os trabalhadores.

É importante destacar que o produto técnico não é exatamente um


resumo das narrativas ampliadas, um resumo dos dados da pesquisa. Ele é
uma elaboração a mais dos dados, pois utiliza como norte a premissa de
construir estratégias para mobilizar questionamentos e reflexões em favor da
discussão sobre violência. Ele precisa cumprir esse papel estratégico
utilizando-se de uma interdição, quer dizer, violência não é qualquer coisa e
não pode se falar de qualquer jeito sobre ela. Sendo um material informativo,
89

não é espaço para suscitar indagações que banalizem ou reproduzam


violências e representações sociais do agressor e vítima.

Por isso, o conteúdo escolhido para constar no produto segue a seguinte


linha de raciocínio: apresentar conceito de violência, os tipos de violência
contra a mulher, formas de identificação dessas violências e estratégias de
enfrentamento à violência. Assim, dará destaque ao empoderamento de
mulheres ao sinalizar que é possível perceber algumas escolhas diante dessas
situações e mencionar a importância de estudar o tema, fazer circular afetos e
criar laços sociais protetivos.

O produto técnico produzido será acessível a todos os serviços públicos


de Ilha Solteira, através de meio virtual, além de ser anexado à página
eletrônica do grupo Interfaces da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP
e ser disponibilizado para ser anexado à página eletrônica da Prefeitura
Municipal de Ilha Solteira.
90

9. ANEXOS 9.1 ANEXO 1 – PARECER DO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA


91
92
93
94
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96
97

9.2 – ANEXO 2 – AUTORIZAÇÃO DO SETOR RESPONSÁVEL DA PREFEITURA


98

9.3 – ANEXO 3 – MACHISTÔMETRO


99
100

9.4 – ANEXO 4 – NARRATIVA AMPLIADA CREAS

Grupo focal e hermenêutico com trabalhadores do CREAS

Formato: os grupos foram presenciais, mas o momento hermenêutico foi


com distanciamento social, máscara e demais protocolos sanitários por conta
da pandemia de Covid-19. Como a pesquisadora conhece a voz de todo
mundo, não foi preciso ter um redator fazendo anotações das falas. Na
narrativa, o que está em negrito é o que foi modificado no grupo hermenêutico
e o que não está em negrito é a N1.
Grupo focal:
Data: 04/03/2020. Local: sala de reunião do CREAS.
Disposição dos assentos:

Grupo hermenêutico:
Data: 16/12/2021. Local: Sala de técnicas no CREAS.
Disposição dos assentos:
101

Narrativa Ampliada dos Trabalhadores do CREAS

Nós achamos que o número de mulheres que sofreram violência e são


atendidas no CREAS não é real. O número de mulheres da área rural também
é pequeno. Os dados não são completos, nem sempre dá para saber se a
mulher é idosa ou não, por exemplo, mas o que temos é que, segundo nossos
registros, a grande maioria das mulheres atendidas no CREAS por violência
sofreu violência doméstica e mora na área urbana.
Em relação ao conceito de violência, pensamos que a lei diz que todos
somos iguais perante a lei, mas temos diferenças culturais, raciais e de gênero
e sofremos violência por elas. São violências, de modo geral, a desigualdade, o
preconceito, discriminação, nepotismo profissional e nepotismo religioso, e
qualquer forma de se beneficiar. Existem categorias de violência: física,
psicológica, negligência, abuso. Vai muito da interpretação de quem acolhe; às
vezes, o caso entra como violência, mas é conflito. Ocorre também de aparecer
como conflito mas depois vermos que é, na verdade, violência. Temos alguma
dificuldade de identificar a diferença entre conflito e violência, mas pode ter a
ver com o fato de que a violência tem dois lados, o lado de quem violenta e o
lado de quem é violentado, e o conflito é quando um fica jogando o que o outro
faz; às vezes a pessoa vem no intuito de falar o que a outra pessoa faz que
102

incomoda, e o outro que você chama faz a mesma coisa. A família não entra
em consenso e não se resolvem entre si, e acham que a gente tá aqui pra isso.
Quando temos a possibilidade de colocar os dois juntos para conversar, pode
ser que isso se resolva, e isso é bom.
A violência é difícil de ser conceituada porque ela acontece em âmbitos
muito maiores que num universo institucionalizado como o que a gente vive
aqui, dentro de uma família. A violência é uma relação de poder que envolve
história, lados, sofrimento e às vezes tem uma questão cultural associada;
papéis estabelecidos, expectativas... Como esse universo é muito grande, aqui
no CREAS identificamos a violência a partir de uma setorização: separamos
em violência física, psicológica… Damos conta de diferenciar até uma parte,
porque tem questões muito maiores que a gente, como violência urbana,
violência política-econômica. Nessas estruturas maiores a gente acaba tendo
menos eficiência e menos poder. É uma coisa a ser construída a muito longo
prazo.
Tem uma diferença entre violência e violação.
Nós pensamos na violência de forma segmentada – física, psicológica –
mas ela também é cultural. A pessoa não consegue, muitas vezes, identificar a
violência porque é a cultura, como a cultura de espancar mulher porque o pai
espancou, então é normal a mulher ser espancada porque a mãe foi
espancada. E a gente trabalhar com isso, romper essa cultura do que tá
normalizado, é bem complicado.
A violência é uma coisa muito complexa, tem enraizamento cultural e
histórico, e às vezes temos dificuldade em visualizar por conta dessa história
e cultura que naturaliza e banaliza a violência, e o papel do CREAS é
questionar e desnaturalizar esse processo de banalização. Para isso, nós
separamos as violências por tipos para facilitar a identificação, tendo como
plano de fundo essa violência estrutural e cultural que é o mais
desafiador para o CREAS lidar.
Quanto mais a gente foca e entra em questões objetivas da violência,
é mais fácil de lidar com ela, porque essa outra violência maior, que talvez gere
um incômodo maior, essa superestrutura que vai além do CREAS (que é
feita para não dar direito à mulher historicamente, deixá-la dependente
financeiramente da família ou marido, por exemplo), é onde talvez a gente
não dê conta. E a gente não dá conta porque não temos a organização
toda pra isso.
Violência tem a ver com conflito, mas nem todo conflito é violência. A
violência tem uma relação de poder, uma hierarquia, uma desigualdade na
relação, que talvez no conflito não tenha, seja mais horizontal. O CREAS não
vai resolver essa injustiça social, mas tem um compromisso com essa
violência que é maior. É um desafio, não sentimos muito isso na prática,
103

mas temos esse compromisso. Se a gente se organizasse de outra forma,


tivesse uma organização política maior, a gente conseguiria atuar. A
identidade do CREAS está sendo construída ainda.
A partir do momento em que o usuário chega no CREAS, a gente vai
usando essas definições de violência pra identificar, e eles chegam porque
aconteceu alguma coisa. Nosso papel é refletir com eles, no dia a dia, nesse
acompanhamento, nos grupos, trazendo eles pra identificarem os tipos de
violência, e aí eles vão identificando que estão vivendo e se surpreendem.
De estar trazendo o que é violência e violação de direitos, e aí a gente vai
percebendo que entre elas (no caso de mulheres), elas vão identificando o que
que elas tão vivenciando, e aí tem surpresas, insights, como identificar só
depois como violência o fato de colocar uma roupa e o marido não deixar,
ter “ciúmes”, reter algum documento ou alguma coisa e jogar fora, pegar
o celular... Identificar diferentes tipos de violência é uma forma de comunicar e
conseguir identificar coisas que a gente não conseguiria ver, talvez,
cotidianamente, que tá muito além daquilo que chega pra nós. Nos grupos de
mulheres e de homens teve várias identificações, porque chega aqui no
CREAS aquela violência física, e teve um caso em que ela falou assim: “eu não
sabia que eu era violentada psicologicamente”. “A vida inteira eu escutei isso e
aquilo”, palavras, violência verbal, e ela não identificava como violência. Essa
reflexão a gente traz para os grupos. É cultural, então, “ah, a vida inteira eu fui
assim, então a vida inteira que eu apanhei dos meus pais, então eu vou bater
nos meus filhos, né”. No grupo a gente reflete sobre isso, sobre os tipos de
violência, é um momento muito rico para conhecer e principalmente identificar o
que acontece no individual ou na família, no coletivo. Na hora que a pessoa
identifica nela própria um tipo de violência, o que pode ser feito, o que pode ser
trabalhado pra parar com esse ciclo, ela estende para os outros âmbitos
sociais, num âmbito maior. Então por mais que a gente não vá resolver as
injustiças e a desigualdade social, só o fato da gente trabalhar essa
identificação já é um fator reflexivo e de superação da violência.
O CREAS pode sair do equipamento e falar de um âmbito geral da
violência, fazer grupos em postos de saúde falando de violência, indo nas
escolas falando de violência, indo nas rádios pensando nesse público maior
que acaba não tendo acesso.
Uma coisa que também associa a outras questões, com efeito
multiplicador, é que a violência que acontece comigo precisa ser uma violência
que toca outras pessoas, que incomode as outras pessoas ao ponto da gente
refletir até onde que isso continua ou como que a gente poderia lidar de uma
maneira mais coletiva. Quando a gente se vê num grupo, quando a gente vê
que a violência contra a mulher se dá porque é uma relação de poder, é uma
relação histórica, é uma relação em que muitas vezes o homem exerce um
domínio e ela de alguma maneira se coloca a ser dominada, e ela refletir isso
104

num grupo e, de alguma maneira, sair do grupo pra família, pros amigos e
trazer esse tipo de reflexão, é um efeito multiplicador, um potencial que o
CREAS tem. A gente precisava discutir essa questão de igualdade, dessa
relação de gênero, a questão de igualdade nas representações políticas, essa
questão de igualdade diante de uma relação familiar. Se a gente não trouxer
nas nossas discussões, seja com os serviços, seja com os atendidos, que a
gente precisa igualizar as pessoas, igualar no sentido de afirmar em nossas
práticas que todos nós somos iguais e temos direitos – à vida, a comer, a beber
– e a gente se relaciona de uma maneira livre, é um pouco nessa linha, assim.
Que aí, vai pra uma linha mais filosófica, uma linha, talvez, até mais romântica,
mas é por esse caminho.
Essa reflexão sobre essa violência que é macro, que é maior que a
gente, talvez não seja só o nosso ponto de chegada, mas talvez seja o nosso
ponto de partida, o nosso fundamento, isso fundamenta nossa prática aqui no
CREAS. Se a gente não identificar a violência aqui, no CREAS, não tem por
que continuar aqui o caso, mesmo que tenha sofrimento – todo mundo tem
sofrimento.
Em relação a uma especificidade no atendimento às mulheres que
sofreram violência, tem uma dificuldade de quando é violência psicológica. A
mulher não entende por que ela tá aqui, foi um serviço que encaminhou. Um
exemplo: o caso está lá na Saúde, atendendo, identificou que tá sofrendo
violência psicológica – “ah, cê tem que ir lá no CREAS”. Muitas vezes ela nem
chega com essa demanda. “Ai, eu estava lá na saúde, né, aí o pessoal falou
que eu tinha que vir aqui no CREAS”. Da violência física é mais fácil fazer a
abordagem, porque ela tem ali o hematoma, tem ali toda aquela situação. Da
violência psicológica, patrimonial, também tem aquela questão “ah, porque eu
trabalho e dou todo meu dinheiro pro meu marido, ele que administra”, mas cê
vê que não é uma conversa entre os dois, um acordo – cê vai buscar ali, no
atendimento, é mais uma questão histórica – “ah, sempre foi assim”, desde
quando casou – então esses mais subjetivos, com não tantas coisas concretas,
eu acho que é mais difícil de trabalhar, de você trazer pra ela também
enxergar. O físico, a violência física, acho que é mais fácil de fazer uma
reflexão que a violência psicológica, patrimonial… ou alienação em relação aos
filhos, porque tem muito isso, não só em relação aos pais separados, mas
dentro de casa, o pai que fala “não, a sua mãe não fez a comida direito, não
lavou a roupa direito”, então trabalhar isso, que o pai tá fazendo uma violência
em relação aos filhos contra a mãe, também.
Vemos pouca participação do homem nesse processo de reflexão, de
discussão. É como se de alguma maneira isso acontecesse de um lado
historicamente nessa relação de poder que demonstra mais fragilidades, talvez,
ou que é julgado com mais fragilidades, e aí aponta nela a única fonte de
saída. Então é a mulher que acaba tendo que buscar o atendimento, muitas
105

vezes, ali no conflito familiar ou relação, e de alguma maneira aponta também


como se fosse só dela a saída. Nos serviços também: às vezes a gente vai
discutir caso nos serviços e vemos que o serviço só atendeu a mulher, não
atendeu o marido e não atendeu os filhos. Tem uma violência dos próprios
equipamentos ao ponto de não ampliar isso, uma violência institucional. Porque
mulher é mais fácil de conversar, e o homem não quer.
Outra dificuldade que vemos é a medida protetiva pra violência
psicológica ou pras outras violências. É muito mais fácil a mulher ter medida
protetiva pela violência física que pela psicológica. Só se chegar na delegacia
por uma ameaça, com prova material, uma conversa de whatsapp, um objeto.
Será que só há medida protetiva quando há violência física ou será que nós,
mulheres – pensando como mulher – que só denuncia ou vai numa delegacia
quando ocorre a violência física? Pode acontecer que já vem acontecendo
violência moral, psicológica, mas não denuncia.
O que é mais concreto é mais visível. Essa questão da violência física,
às vezes a própria mulher fala “ah, mas ele não me bateu ainda”, sempre essa
frase. Ou algum setor, ou a Delegacia da Mulher entra em contato e diz “ó, eu
tô atendendo mas ele não bateu ainda”. Então já vem com uma violência por
minimizar, por dizer que a violência que a mulher sofreu não foi concretizada,
não existe. Essa violência psicológica, inconscientemente, fica velada.
A grande maioria das profissionais que trabalham na rede
socioassistencial são mulheres. Às vezes é uma projeção, identificação de
vítima, e a mulher às vezes não sabe se colocar diante de um outro agressor.
Tanto é que aqui mesmo quando se é falado que atende o agressor, o pessoal
acha um absurdo. Tem que atender só a vítima, tem que empoderar só a
vítima. Teve esse caso em uma capacitação e o CREAS se posicionou, um
coordenador falou que ele não conseguia entender, que o CREAS tem que
atender agressor, aí a gente falou que a gente já fazia esse trabalho e ele ficou
abismado. Na rede municipal o pessoal também acha um absurdo e questiona
por que que vai atender o agressor.
No grupo de homens, no qual a maioria são agressores, teve essa fala,
a expressão de certa expectativa de que eles viriam para serem atendidos,
rebaixados, maltratados, que viriam aqui pra assistir aula junto com outros
homens, e não, nunca imaginou que fosse ser desse jeito. É a desmistificação
até do próprio atendimento, colocar os homens pra refletir, e que tem a ver com
a história deles também, procurando um jeito que dá sentido pra eles. Quando
falamos sobre violência, eles também identificaram que o ato em si, como a
força física utilizada para concretizar a violência, foi feita depois de muitos anos
de violência verbal. E tem mulheres no grupo que falam “meu marido nunca
relou a mão em mim, eu que bato nele”. As falas nos grupos são bem
diversificadas, às vezes destoa daquele padrão. Ou, então, o que vemos aqui é
um padrão maior, aqui a gente consegue ter esse olhar pros dois.
106

Aqui no CREAS temos duas visões diferentes sobre um assunto:


uma parte entende que a gente consegue identificar que muitas vezes é a
mulher que agride. Ela vem como vítima e na hora que a gente vai atendendo,
vê o rolo que tá, tem isso também, que existem relações tóxicas com
violência das duas partes. No grupo que a gente tava, teve um senhor que
quem tomava conta do patrimônio, do financeiro, era a mulher; ele se
sentia muito agredido, então a forma que ele tinha de se defender desse
conflito era bebendo e nisso chegava a ficar agressivo por conta do
álcool, mas o conflito iniciava com o comportamento dela. Ela era
agressiva com ele, ela que tomava conta de tudo… ele era um nada. A
maioria dos homens enchia a cara por conta do conflito e aí tinha a
consequência, lógico, por conta da bebida, o comportamento mudava,
mas iniciou porque a mulher fez alguma coisa: tomou a frente, fez alguma
ameaça pra ele, inferiorizou… Tem umas formas de provocar a violência.
Esse “bate se você for homem” tem um plano de fundo de violência
psicológica, castradora, de desmasculinizar o homem também. Muitas
situações chegam aqui no CREAS registrado a violência do homem, mas
o homem acaba perdendo sua razão por alguma atitude da mulher, que
provoca um descontrole nesse homem. Essa violência é geracional, um
reflexo de mães castradoras, de mulheres que são agressivas
emocionalmente, de diminuir a figura do homem, aí o cara vai se
relacionar com uma pessoa que diminua ele. Outra parte discorda,
entende que não é muitas das vezes, são casos raros, e se a mulher
agride pode ser uma reação à posição de inferior que ela é colocada, ela
vem de uma estrutura em que ela tem que aceitar tudo, o plano de fundo
do machismo. O “bate se você for homem” tá por trás toda uma história
que a mulher aprendeu que é assim, a mulher é machista no sentido em
que o homem que bate, que agride, o homem que tem a força. É um
machismo de “o homem não pode ser fraco”, ele tem que ser forte. Ele
não pode ir se cuidar, lidar com as emoções? Ele tem que beber e bater?
Quem sofre com todo esse plano de fundo é 99% mulher, que morrem, aí,
todos os dias. Elas são as mais prejudicadas. Por isso, parte do CREAS
não concorda que “muitas das vezes é a mulher que agride”, porque tem
todo esse plano de fundo.
Isso de ser dito como agressor, e nem sempre é, não gostamos de
intitular o grupo como agressor, são grupos de homens e têm esse direito de
fala. Uma vez, eles contaram como são abordados. Falaram que é feito o
boletim de ocorrência, aí chega lá e eles não têm direito à fala. No grupo, é um
momento onde eles podem falar o que que tá acontecendo. O nome do grupo
ficou Convivência e Comunicação.
Sobre a questão cultural, tem a normalidade, “isso, pra mim, sempre foi
normal”, talvez pelo fato de sempre viver e ver outras pessoas vivendo. Com
base num caso que atendemos, pensando: onde entra mentira em tudo isso?
107

Fazer um boletim de ocorrência falando que a pessoa tá te agredindo, ou tá


fazendo violência psicológica, tá negligenciando, é fácil, porque você pode
mentir. E aí, a gente intervém de que forma? Aí é a dificuldade de identificar
realmente em alguns casos a violência, mesmo que psicológica, e diferenciar
do conflito. Às vezes, a pessoa mente por benefício.
A gente enquanto ser humano ou não vai acreditando naquilo ou espera
algumas coisas acontecerem de uma maneira da gente tomar uma atitude.
Então mesmo que talvez a gente esteja incomodado, aquilo não
necessariamente é um ponto de partida pra gente dizer “vou fazer alguma
coisa”. A gente talvez espere chegar num patamar mais complicado. Só que
antes de tudo isso, pensando até nessa questão histórica, tem a questão da
impunidade, do sentimento de injustiça. “Eu vou lá pra quê?”, “pra acontecer o
que?”. Antes, tem a questão: o que me move para fazer a denúncia?”. Pode até
ser o interesse de alguma atenção, ou de alguma coisa que beneficie mais pra
frente, mas não pensamos que seja num primeiro momento isso. A gente tem
um sentimento de que “aquele serviço não vai fazer nada por mim”, “vou lá pra
falar da minha vida, pra me expor?”. Fora que esses serviços também podem
ser instâncias julgadoras. E esse medo de fazer faz com que a relação de
poder fique cada vez pior. Os serviços de maior acolhimento e de cuidados são
de mulheres pra mulheres, mas na maior parte o julgamento não é de mulher
pra mulher: é um delegado, um advogado. E tem outras questões corporativas.
Em um processo em que a mulher sofreu violência psicológica e mudou
de cidade. Ela foi na cidade em que ela tá, fez boletim de ocorrência e pediu
medida protetiva, mas o juiz falou que não pode conceder, que ela tem que
fazer no local que ocorreu a violência. Qual é a lógica? Ela sai do município
como uma forma de proteção, mas ainda se sente ameaçada, só que o serviço
de lá não pode aplicar uma proteção porque ela tem que voltar pra cá pra fazer
o pedido aqui, se colocar em risco. A gente ficou abismado. Varia de juiz pra
juiz isso. É um problema, a gente fica refém do profissional que vai julgar.
Por mais que a gente tenha o CREAS, o Conselho Tutelar, delegacia,
fórum, esse sentimento de impunidade ou o sentimento de que tá sendo
julgado, que aquela situação não vai se resolver ou que não vai ter a proteção
devida, acontece. Tem essa questão de “pra que que eu vou falar da minha
violência se, às vezes, se eu falar, vai voltar aquilo pra mim de uma maneira
maior, mais violento”, o que acontece muito no bullying também.
Como realmente a gente conseguir com as instituições ou se colocar
numa relação com o outro de modo a ser realmente empático, protetivo,
fortalecedor – e não minar aqui? Na história das relações isso acontece muito,
daquela violência às vezes ser colocada de uma maneira a culpabilizar o outro,
a responsabilizar, e não ter essa empatia da relação humana. Achamos que
isso interfere nas notificações, na relação com as instituições que dá pra fazer
esse tipo de atendimento.
108

Quando a gente vai falar do tema que é empatia, a gente vê que elas
vêm procurar “porque o outro tem que mudar”, “o meu marido tinha que tá aqui
pra ouvir isso”, porque a culpa é do outro. Então, a gente vai trabalhar essa
autorresponsabilização também, porque ninguém vai mudar o outro, não vai
mudar de tudo. Mas ela vai mudar. A partir dela vai mudar um comportamento,
uma forma de se comunicar em casa, com o marido ou com os filhos, e aí, sim,
pode haver alguma mudança. Trabalhamos a autorresponsabilização no
sentido de que você tem alguma coisa a ser feita. Não é só a questão do poder
dele, mas ela se empoderar, também, empoderar a mulher.
Tem um caso de violência contra a mulher, muito forte, em que uma
senhora foi esfaqueada pelo marido. Ele foi preso, depois que saiu, saiu com
medida, ele não podia ficar perto, então ele ficou em outro município até
terminar a medida. A hora que terminou a medida ele entrou de novo na casa,
ela ficava em pânico, ela e a filha dormia no mesmo quarto, na hora de dormir
colocava uma cama na porta, porque tinha medo dele entrar. Se elas
quisessem fazer xixi de madrugada, ficavam com vontade, porque tinham
medo. A única alternativa que tinha de empoderar foi “ó, qual que é a certeza
que você tem? Que não tá vivendo, né?”, e ela morria de medo de denunciar,
porque ele ameaçava de matar ela, de matar familiares, porque sabia onde a
mãe dela morava, sabia onde os irmãos moravam e o trabalho foi nesse
sentido: “tá, cê tem certeza que ele já fez uma ameaça, mas você não tá
vivendo; e aí, vamos escolher o que?”. Fazendo as reflexões ela escolheu
assim: “ah, eu escolho que eu quero viver, independente de se ele vier
concretizar o que ele falou, eu quero viver”. Aí ela foi, fez boletim de ocorrência,
ele foi preso de novo, aí ela conseguiu estudar, um dia chegou super feliz
porque tava tirando carta, porque ela foi se empoderando, né. Achamos que o
maior trabalho é tentar empoderar pra romper com esse ciclo, pra ela fazer as
escolhas dela. A vítima que tem que ligar pra polícia, falar que o cara tá perto,
porque não tem polícia 24h atrás dele, então até esse tempo ele já fez o que
tinha que fazer. Uma coisa trabalhada nesse caso em específico foi o quanto
ela não conseguia permitir que ele não voltasse. Então a gente foi trabalhando
estratégias: se ele entrou, como entrou? Vamos trocar a fechadura do portão,
por cadeado? Se tá dentro de casa, aciona a polícia, esses detalhezinhos de
mostrar pra pessoa também o quanto ela acaba não permitindo que ele volte.
Entendemos que empoderar significa mostrar que sempre tem
alternativa. Tem uma questão cultural, que é muito anterior, tem uma história
das relações, a gente não vai mudar isso, e empoderamento seria conseguir
mudar isso, porque aí resolve na base, mas talvez tenha esse empoderamento
no sentido de perceber que tem mais uma escolha aí.
Tem exemplos da violência financeira, que o marido não dá o dinheiro
pra mulher, e ela culpabiliza nesse sentido: “não pude estudar porque ele não
deixou, não pude trabalhar porque eu tinha que cuidar dos filhos, então eu não
109

tenho condições de comprar alguma coisa que eu quero, então é dele que vem
esses recursos”. E aí ele fica prendendo, fica controlando. Mas o que que
impede, hoje, que não tem mais isso, que não tem mais filho pra cuidar, o que
impede de procurar alguma coisa pra fazer, uma profissão? Então isso é muito
da cultura da mulher, também. Então tem que ficar em casa? Não? “Cê pode
fazer alguma coisa, o que cê gosta de fazer? Vamos conhecer, vamos buscar
algumas alternativas pra suprir isso?”, porque tá nela, também. Tem uma
responsabilidade, e não culpar, tem uma liberdade que se não dá pra enxergar
fica preso nessa questão de violência. Remete a mudança de comportamento e
não tirar sua responsabilidade disso.
Na maioria das vezes, a mudança é na vítima, buscar outras formas de
se romper com a violência. Na grande maioria, houve uma agressão, um
boletim de ocorrência, e às vezes o agressor já vem encaminhado também
pelo TJ [Tribunal de Justiça], e a vítima não quer vir porque acha que o
agressor que tem que vir, apenas, pois ele que infringiu, violou.
O nosso serviço existe, assim como existem outros que vão trabalhar a
questão do fortalecimento, mas tem esse exemplo do outro lado. Pra quem viu
que “depois vou voltar pra casa, mesmo”, pode servir de exemplo negativo pra
não encorajar as outras pessoas a solicitar a medida protetiva. Muito
provavelmente na prisão não foi feito um trabalho com ele. Diferente, às vezes,
quando vem pro grupo, onde é feito esse trabalho.
O trabalho do CREAS também envolve tentar requisitar uma liberdade
possível no caso do atendimento às mulheres. Tem um pouco de restabelecer
ou de fazer perceber, criar, construir uma liberdade que já é possível, mesmo
que seja pequena.
Na área rural, além do acesso daqui na cidade – o CREAS fica na
cidade –, a violência é mais velada, é cultural. Uma das estratégias são os
vizinhos, se você dá um grito, todos vão ouvir. As crianças são mais assistidas
porque elas vão pra escola, então elas têm esse acesso comunitário. Então
esse fortalecimento comunitário na zona rural é mais difícil, porque uma criança
que foi com hematoma na escola, todo mundo vai ver; a mulher não, ela fica lá,
se não tiver que sair, vai até sumir os hematomas.
Nós não consideramos raça/cor nos prontuários, e não sabemos o que
pensar disso. Em relação a classe social, como o atendimento do CREAS não
é pautado em benefícios, em critério de renda, acaba não sendo uma questão
importante porque não é uma coisa que vai definir o atendimento. A não ser
que a gente veja que é uma família que já verbaliza, já mostra que é mais
carente, a gente sabe que pode incluir em algum programa, aí a gente tem que
ter certeza da renda pra fazer o encaminhamento.
Consideramos que precisamos de uma avaliação do instrumento que a
gente utiliza. Não só dados estatísticos, mas o prontuário que a gente utiliza,
110

mas os números não parecem reais, parece que, em geral, a violência contra a
mulher é maior. E essas questões de raça e classe social é importante porque
também tem essa questão cultural na relação principalmente com as outras
instituições. E o CREAS precisa exercer essa relação educativa, relação talvez
até política junto com as instituições com a qual a gente se relaciona. Às vezes,
a violência vem como uma espécie de julgamento em que a classe social é
diferenciada. Se chega aqui uma situação de violência contra uma mulher ou
criança de uma família que tem uma condição financeira, uma situação na
sociedade diferenciada, não vai se tirar a guarda dessa criança, não vai se tirar
da família. Quando é uma família pobre, quando é uma família que, talvez, já é
conhecida no município, o olhar pra essa família – já se pensa: “meu Deus,
essa criança, nessa casa, o que vai ser dessa criança?”, já se pensa até na
possibilidade de guarda… Então, a violência, embora a gente saiba que
violência contra a mulher não é só pra classes inferiores, que tenha
dificuldades financeiras, a gente olha de uma maneira diferente, as
informações, talvez, que a gente aponta dessa família na relação com o
Conselho Tutelar, com a delegacia, com o próprio Ministério Público ou o Poder
Judiciário, pode ter interferência disso também. Então é uma coisa que a gente
precisa apontar, porque a família pobre é aquela família fracassada, a violência
é uma coisa naturalizada, um estigma, a gente já acha que essa criança não
vai tá protegida. Na família rica, talvez não; ela tem acesso a escola, tem
acesso a isso… e a gente julga de uma maneira diferente. Então são questões
que a gente precisa rever nosso instrumento e até a nossa análise nessa
relação com classe social, gênero, raça. Se a gente pensar que tem um
tratamento diferente, um entendimento diferente, até a forma de se articular, se
a gente for pensar que dependendo da classe social a taxa de raça/cor é
diferente, então quão racista a gente não tá sendo no nosso entendimento? Se
trouxer isso pra uma vigilância socioassistencial você já vai ter um dado falho,
diferente. Não quer dizer que o CREAS faça esse tipo de apontamento a uma
família diferente, mas num âmbito maior é um grande risco de acontecer. São
dados que podem chamar a atenção da gestão e da vigilância
[socioassistencial]. É para além do número, mas para ver se temos atitudes
diferenciadas com quem tem uma condição inferior.
Entra um pouco a questão de ser um município pequeno, de poucos
habitantes, onde muitos profissionais inseridos na rede, incluindo nos
órgãos de defesa de direitos, por nascerem e conviverem aqui pode ter
muitas coisas abafadas nesse sentido, e um tratamento diferenciado entre
as famílias, dependendo de como for, da classe social. Dessa questão de
uma elite às vezes fazer uma denúncia e “ah, mas não vamos encaminhar pro
CREAS, não vamos fazer mais nada pra não expor a família”. Talvez haja
esse filtro da violência ser encaminhada pro CREAS quando é caso
relacionado à pobreza. O que é uma corrupção, que é uma violência
também. A desigualdade já é violenta.
111

A gente precisa entender essa relação institucionalizada. Sempre há


relação de classes, então, quais são as diferenças que as instituições ou os
órgãos que fazem os atendimentos? Como estão lidando com isso? Se o nosso
instrumento não tá apontando pra isso, a gente precisa, talvez, ter uma
estratégia para raça, pra relações de classe, porque são questões intrínsecas à
relação de poder.
Se é cultural a violência, essa estrutura, como é que a gente foi educado
pra enxergar? Esse debate precisa entrar na discussão no CREAS para além
da violência física e psicológica.
Percebemos que o pessoal da classe menos favorecida são mais
abertos e vê no CREAS uma confiança, solução, um suporte, apoio. O pessoal
da classe mais alta são mais enrijecidos, de não aceitar intervenção. Eles têm
vários recursos de advogado, teve o caso de violência contra a mulher que
conseguiu uma transferência provisória pra outra cidade pela empresa que
trabalha, e levou os filhos, a medida protetiva não tinha saído ainda… Então
eles têm outros recursos. Às vezes tem casos que era judicial, como uma
alienação parental, que era uma violência de mulher e de homem, mas você vê
que a mulher era a mais agressiva ali. A pessoa vinha totalmente enrijecida, e
acontece de conhecer a equipe do CREAS, aí depois vem o pai e a mãe
querendo manipular, persuasivos, a não mexer com o sistema, com o conflito
ali. Às vezes pode haver uma intimidação por parte do profissional, porque isso
também é uma violência, essa forma como você quer manipular ou ser
enrijecido diante do atendido. Já aconteceu de até alterar a voz. E tem uma
outra pontinha aí que a gente às vezes se pega em alguns casos: a pessoa às
vezes quer usar o serviço para gerar provas. A pessoa não vem para se
fortalecer, mas para o serviço mostrar que ela tá certa na sua ação. A pessoa
tem recurso de manipulação, de nos usar. Aí, a pessoa se frustra porque a
gente não vai dar a prova material, e aí ela já não quer.
Geralmente o procedimento que ela tem como profissional aqui é o
funcionamento psíquico que ela tem dentro de casa. Às vezes a gente vê aqui
que muitas mulheres são agressivas, da forma como elas lidam aqui. E o
pessoal que é mais favorecido financeiramente tem outros recursos para lidar
com a violência, mas também para fazer com que ela não apareça. Eles usam
advogado, influências. Às vezes vem caso, por exemplo, de violência do filho
contra a mãe idosa, tipo amor e ódio. Aí tem isso de “ou eu mato ou ele vai me
matar”, aí depois que você começa a fazer as intervenções “ai, não mexe com
meu filho”, e entra na ambivalência. Quando vai mexer com a estrutura familiar,
aí eles não querem que apareça.
Temos outro ponto em que a visão do CREAS se divide. Uma parte
entende que a vítima, independentemente de ser mulher, tem vergonha das
suas dores e das suas marcas. A pessoa que é vítima talvez tenha uma
porcentagem de vítima, 100% vítima, 50%, 10%… Mas a pessoa que é vítima
112

não tem força nem pra falar, pra pedir um socorro, nem pra dar esse grito pro
vizinho ouvir. Ela tá sufocada, então ela precisa desse suporte. Agora, um
exemplo de um casal brigando, quebrando tudo, os dois arranhados, daí os
vizinhos chamam a polícia, eles tinham acabado de ter uma relação sexual. O
cara tudo nos amores. “Não, que isso? Imagina”. Tem umas coisas assim,
patológico. Mas, não tem como entender que foge do nosso conceito, nosso
padrão e tudo mais. Então, nós vemos que tem situações que são uma reação.
Nada justifica uma violência física, mas, talvez, a junção desse casal aí já é
uma projeção de infância, que talvez essa mulher é uma mãe castradora, que
fere a masculinidade do homem, no sentido “me bate se você for homem”.
Masculinidade do machismo, a gente vive numa cultura machista e tem vezes
que muitas mulheres castradoras são machistas também, pra ir lá na ferida.
Em brincadeiras de crianças tem a fala “se você não fizer isso, você não é
homem”, se sai chorando, “você é mulherzinha”. Então a mulher, às vezes, usa
o próprio movimento machista pra ferir o homem. Então, essa frase, não
achamos que é de uma mulher totalmente vítima, “bate se você for homem”.
Não estamos falando que ela pediu pra apanhar, mas assim, hoje em dia tem
mudado algumas coisas – ela sabe muito bem as armas do emocional, agora,
o homem não tem muito essa habilidade, então acaba sabendo só da força
física e tudo mais. Num ambiente cultural, o homem foi educado a ter o falo, e
às vezes o homem, pra se sentir no poder, ele expõe seu poder. Num ambiente
de trabalho, um homem assim violento, ele humilha na frente pra todo mundo e
não vê. Agora, a mulher é muito sutil. Às vezes, ela vai fazendo algo que só a
pessoa percebe e, na hora que a pessoa espana, ninguém sabe. Outra parte
do CREAS discorda desse ponto de vista, que se assemelha ao momento
da discordância em um parágrafo anterior.
Culturalmente falando, as pessoas não veem que há situações gatilho,
só vê a vítima e as pessoas não aceita o atendimento com os homens. Vamos
fazer uma comparação: o alcoolismo. É cultural muitas vezes o homem bebum.
Tipo assim… que cai. E é muito vergonhoso pra mulher. Às vezes ela tem até
um pouco de resistência do atendimento porque tá assumindo que ela bebe.
Esses dias, uma pessoa próxima, mulher, bebeu, caiu na calçada e ficou lá,
toda drogada. E às vezes pro homem isso acontece e as pessoas vão até
ajudar. Mas, nesse caso, tiraram foto e começou a jogar, mostrando a mulher,
porque é feio pra mulher assumir algo nesse sentido. E na violência também,
às vezes, é cultural a mulher ser a vítima, mas é vergonhoso pro homem falar
que ele sofre violência. Essa é uma comparação um pouco meio cultural: é
vergonhoso pra mulher assumir uma dependência e é vergonhoso pro homem
assumir que ele tem violência. Tem muita coisa velada aí.
Quando fala sobre a Maria da Penha, eles falam “mas tem que ter a Lei
do Zé da Penha”. Só que eles não têm o entendimento e a gente tem que
trabalhar isso com eles, que o homem também tem o direito de registrar um
boletim de ocorrência, mas eles não fazem. O machismo provoca violência,
113

tanto que a gente atende muitos casos por violência doméstica, mas ele
também funciona porque esses homens são muito frágeis.
Todo funcionamento agressivo tem as vítimas diretas e indiretas,
por exemplo, as crianças que tem que ver seu pai não cuidador e mais
agressivo com a mãe. Aí a criança vai reproduzir a violência. Por mais que
a violência não atinja diretamente as crianças, tá sendo a referência.
Mas existe a violência de gênero. Tem um caso em que a familiar
fala assim: “olha o irmão dela. Eles viveram no mesmo ambiente, teve o
mesmo tratamento, e olha como que ele tá. Ele trabalha, se esforça, ele
não faz nada errado e ela faz”. Só que, sim, eles viveram no mesmo
ambiente, só que ela não foi tratada do mesmo jeito. Ela tinha todo um
funcionamento que a mãe foi embora e projetou nela, dela ser a mulher
inútil, de ela não prestar, de ela ter que limpar a casa, dela ter que cuidar
dos irmãos… Então existe uma diferença enorme, gritante de gênero. É
lógico que o irmão também deve ter sofrido violência, mas ele tá numa
posição privilegiada por ser homem. Tem um certo privilégio de coisas
que ela sofre e que ele, por ser homem, não sofreu.
A violência é sistêmica.
114

9.5 – ANEXO 5 – NARRATIVA AMPLIADA COLETIVO ISAMULHER

Grupo focal e hermenêutico com Coletivo IsaMulher


A narrativa ampliada ficou igual à N1; no momento hermenêutico, o
grupo decidiu não modificar a narrativa porque sentiram-se contempladas, por
isso não há passagens em negrito.
Formato: reunião online pelo Google Meet. Tanto o grupo focal
(26/01/21) quanto o grupo hermenêutico (data: 23/02/21) foram virtuais por
conta da pandemia de Covid-19). Por ser encontro virtual, não há desenho da
disposição dos assentos. Como a pesquisadora conhece a voz de todo mundo,
não foi preciso ter um redator fazendo anotações das falas.
Presentes no grupo focal: Inayá (pesquisadora), M. K. W., M. R. P., C.
F., A. L. A., M. R. R., J. L. F., P. W. L..
Presentes no momento hermenêutico: Inayá (pesquisadora), M. R. R., E.
G. S.C., M. R. P., C. F, P W. L.

Narrativa Ampliada Coletivo Isa Mulher


Nós, do Coletivo Isa Mulher, entendemos que violência é tudo que dói. E
são muitas as violências, desde as mais sutis. Quando se fala em violência,
pensa em agressão física, violência que consegue ver. Mas as violências
contra a mulher são também muito sutis e acontecem o tempo todo.
Acontecem na rua, acontece na hora que você tá fazendo compra. A violência
contra a mulher é algo tão entranhado na sociedade, que permeia tudo.
Estando conosco, aqui, do grupo, o que que a gente viveu, nos fez ver o
tanto na nossa vida que sofremos violência por ser mulher. É muito difícil definir
o que é violência. Violência é, principalmente, tudo que nos desqualifica, de
alguma forma.
A violência está inserida em tudo: na escola, na sociedade, no trabalho,
nas ruas, em todo lugar. No Coletivo, começamos a observar bem mais, a ficar
muito mais atentas sobre as formas de violência em tom de brincadeira,
piadinha, até roda de amigos.
Os homens se sentem à vontade de achar que a gente tem que ouvir
esse tipo de coisa, e acha que a mulher tem que ter medo e tem que ficar
quieta. Aí quando a gente fala alguma coisa, eles se assustam muito. A
violência é uma forma de intimidar, de tirar a voz. Achamos que a gente tem
que falar mais, apesar de que muitas vezes, a gente não consegue falar, e
dependendo do lugar, também, nem dá.
115

Quando a gente se sente agredida, quando a gente se sente violada,


quando a gente se sente humilhada, quando tiram a voz da gente, quando a
gente se sente culpada só pela gente ser a gente, só pela gente ser quem a
gente é – isso tudo violenta.
Estudamos isso em grupo, com o Coletivo, e fomos nos entendendo
dentro desse contexto. A gente foi se entendendo durante o processo, e
entendendo as várias violências que a gente sofreu. E quando percebemos
isso, nos tornamos outras pessoas.
A gente ampliou esse conceito de violência; ela é simbólica, psicológica,
sistêmica, histórica. Ela é uma construção. E a gente luta todos os dias pra
desconstruir as várias violências que a gente sofreu ao longo da civilização, da
história da civilização.
Temos certeza que todas nós sofremos algum tipo de violência contra a
mulher na infância e juventude mesmo sem saber que era, e mesmo que a
gente não reconheça, ficou marcado, como já conversamos várias vezes.
Depois que a gente começa a estudar, a gente traz à tona essas histórias que
a gente tinha dentro da gente mas que a gente não entendia como uma
violência tão horrorosa. A gente sabe que passou por aquilo mas não entendia
o que era. Lembramos de flashes, de coisas pequenininhas, de uma mão em
lugares que não deveria estar, de pessoas que não deveriam colocar a mão em
nós. Então, a primeira coisa é que a violência contra a mulher é uma coisa que
nos marca. Seja ela física, ou psicológica, ou outra.
A pandemia, com questões de depressão e ansiedade, multiplicou essa
situação de uma forma que não pudemos nem fazer leituras de acontecimentos
por conterem gatilhos. Estamos em uma sensibilidade tamanha que não
conseguimos mais ler, atender, visualizar. Aqui, entre nós, nos sentimos em
grupo, em família, em um nicho em que podemos confiar. Mas a pandemia
despertou fatos anteriores. Lemos reportagens que vão somatizando pras
coisas que já temos dentro de nós. É difícil lidar ao pensar que tem mulheres
dentro de casa sofrendo violência e não podemos fazer nada, então
somatizamos como se fôssemos nós. Então não temos feito mais leituras
assim. Imaginamos situações em que as mulheres estão correndo risco o
tempo todo e não podemos fazer nada porque elas estão trancadas dentro de
casa, e isso piora a situação dentro de nós.
Quando a gente conhece o que é a violência, ao mesmo tempo em que
liberta, também é pior. Pior porque é como pecar sem conhecer a Bíblia – “o
pior pecador é aquele que conhece Deus”. Quando se conhece, sabe o que
são as violências e não podemos fazer nada, piora. Esse sofrimento de dentro
de nós vai demorar pra sair. A gente comemora a vacina, porque essas
mulheres poderão sair de dentro de casa. Mesmo sem saber se estão sofrendo
violência, elas vão poder sair.
116

A pandemia potencializou muito, e essa violência é nossa também,


porque a gente é mulher como coletivo no mundo. A gente não é coletivo só
aqui, a gente é no mundo. Talvez não sintamos com a mesma intensidade,
mas todas sofremos com essa impotência de não conseguir fazer nada por
essas mulheres que estão sofrendo violência dentro de casa. Estamos vendo
as violências físicas, as violências mais brutais contra a mulher. Percebemos o
quanto a gente é suscetível às violências, o quanto que a gente é refém de
determinadas coisas, e que a gente não consegue mudar o mundo como a
gente gostaria. Isso dói pra caramba, mesmo, dói muito. Um exemplo claro é
dessa menininha que engravidou de outra criança, e aí a gente pensa: “cara, a
menina tem 10, ela tava sendo violentada desde os 6 anos de idade, e só
descobriu porque engravidou?” É essa a questão? Então só vão olhar pra
essas violências se algo mais violento acontecer? E se a mulher não consegue
enxergar aquilo enquanto violência, as coisas vão se agravando. A mulher não
foi ensinada a reconhecer quais são as violências.
Tem a questão da menstruação, que é um tabu. Temos acompanhado
um trabalho de uma fisioterapeuta pélvica numa cidade aqui do interior, em que
ela faz um trabalho de arrecadação de absorvente na cidade dela. Ao estudar,
estamos todas empolgadas no início, mas depois ficamos pior, porque meninas
já faltam na escola por conta do período menstrual. Meninas carentes, em que
a família não vai deixar de comprar alimento pra comprar absorvente. Essa
fisioterapeuta fala da questão da saúde, da intimidade feminina, tanto do útero,
a vagina em si, bexiga, e fala de infecções repetidas no período menstrual que
é por falta de higiene. As mulheres encarceradas também, porque viram moeda
de troca, enquanto homens têm visita íntima. É um absurdo! Então começamos
a estudar e percebemos que mulheres conseguem menos galgar uma carreira
profissional porque não conseguem estudar, porque falta na escola por conta
do absorvente e reprova de ano, não conseguem prestar o vestibular, vão
ficando pra trás, além de todas as mazelas – porque, se engravida, acabou a
vida da menina de periferia. Se é uma menina negra, piorou. É uma opressão
constante, e que a gente às vezes não enxerga a menos que passe a estudar,
porque algumas mulheres não conseguem enxergar que vivem aquela
situação.
Em relação aos tipos de violência, existe a violência obstétrica, e dentro
da própria questão do feminino tem a questão também da raça. As mulheres
negras são as que mais sofrem os tipos de violência obstétrica. Elas não têm
muito acesso a anestesia, por exemplo, na hora do parto, porque tem esse
mito: “ah, elas num precisam, elas são fortes, elas aguentam mais”. Colocam
anestesia em menor quantidade que o normal. Elas são mulheres, e, além de
tudo, por serem negras são as que mais… À medida que vamos lendo, vamos
ficando cada vez mais chocadas. Se a gente fosse ensinada no pré-natal sobre
o que vai acontecer no parto, se a gente tivesse acesso a outras orientações, a
117

gente não precisaria de médico. A gente poderia ter nossos filhos em casa, e
os médicos não ganhariam dinheiro.
Então, a falta do conhecimento, de tudo: de violência, dos seus
direitos… Tem uma lei federal que garante à mulher, à parturiente, a expressar-
se durante o parto. É um absurdo. Tem que ter uma lei que garanta nosso
direito de gritar e de sofrer, pra ter nossos filhos. As mulheres não sabem
disso, porque o conhecimento liberta. A partir do momento que as mulheres
conhecem os seus direitos e o que são as violências e quais são as violências,
elas podem interromper essas barreiras. Assim como as crianças aprenderem
o que é o corpo, quem pode tocar nele; nós não teríamos tantas crianças
violentadas. Quando voltamos pro conhecimento, paramos de sofrer por aquilo.
No caso da criança, a questão nem é só o conhecimento, a criança não
tem o poder, não tem força, é um adulto contra ela – uma das características
da violência é uma relação de desigualdade. Alguém que tem muito poder se
impõe sobre você. E a criança, que poder que ela tem? De falar não pra um
adulto? Nenhuma. Mas talvez se ela tivesse tido a orientação de se algo
acontecer de diferente a quem, quais lugares pedir ajuda... O patriarcado não
quer, em seu sistema, que tenhamos conhecimento. A hora que a gente tiver
conhecimento, a gente como corpo coletivo feminino, o patriarcado cai.
Mulheres, por exemplo, são humilhadas perante juízes. Ou precisam de
uma lei, uma política pública, precisa criar uma lei. As mulheres não
compreenderam que elas precisam ocupar os espaços de poder e decisão…
Elas precisam conseguir estudar, fazer vestibular, e ocupar esses espaços. Ser
juíza, ser promotora, ser médica… Ser vereadora, ser prefeita, ser
governadora... Porque enquanto num ocuparem esses lugares, elas vão
depender dos homens pra tomar decisão pra elas. E eles não vão tomar. Às
vezes esses homens se protegem.
Olha como que é sintomático o tanto que nossa cidade é machista,
patriarcal: nós nunca tivemos tantas candidatas como nesse pleito, e foram tão
pouco votadas. Algumas de nós fizemos uma campanha extensa pra que a
gente votasse em mulheres. Isso é muito maluco, porque as mulheres não
votam nas mulheres! A única candidata que foi votada e eleita, digamos que
não tem uma representatividade como feminino. Na verdade, ela é sujeita ao
patriarcado, sempre. Cheia de boas intenções, mas ela é sujeita ao
patriarcado, não tem algumas noções, nem dos direitos da mulher. Então, isso
é muito maluco. O tanto que a gente tinha de mulheres de todos os tipos de
pensamento, de várias vertentes, de vários partidos – então, as mulheres não
votam nas mulheres. Elas não sabem que a gente pode e deve ocupar lugares
de poder.
Enquanto conversamos, vamos pensando e o que falamos, nos
atravessa, também nos identificamos com algumas coisas. É fato, não
118

conhecemos nenhuma menina da nossa geração que não tenha sofrido na


infância e na adolescência alguma violência. A gente vem dessa violência e
dessa vulnerabilidade, sendo utilizada como espaço de opressão. São as
nossas vulnerabilidades sendo utilizadas como espaço de opressão. E isso vai
em vários âmbitos: vai nas pequenas coisas, por exemplo, o fato da gente
menstruar e muitas meninas não terem acesso a absorvente e isso ser uma
consequência social, cultural… Até às grandes coisas, como assassinato de
Marielle, como o impeachment de Dilma. Assim como não termos mulheres
eleitas na nossa cidade. Então são coisas que estão relacionadas. Elas não
estão distantes. E é muito importante a gente ter essa consciência, e que tudo
isso que a gente tá passando agora, principalmente nesse processo de
confinamento da pandemia agravou, agravou o patriarcado, assim, no sentido
de que se as mulheres já estavam em situação de vulnerabilidade antes, com o
confinamento, mais! Então, isso também teve uma consequência no pleito.
Houve um caso de uma candidata prefeita que foi atacada pelo adversário com
as mesmas opressões machistas de 2018. Então a gente sabia, quando a
gente se juntou no final de 2016, que o ovo da serpente tava sendo chocado
ali. Ali. A gente já sabia que a gente precisava fazer alguma coisa no âmbito
social, no âmbito educacional, pra gente se acolher, enquanto mulher, pra
gente estudar e entender por que que aquilo tava acontecendo e como que a
gente fazia pra ajudar. O caminho do Isa Mulher foi todo esse. A gente se
juntou e percebeu que deu merda, e a merda tinha possibilidade de crescer.
Quando olhamos pra trás, sabemos que conseguimos fazer, e não foi sozinhas.
Foi junto com cada uma que está aqui. O poder que isso é... Foi significativo
pra vida de muitas mulheres. A gente tá vivendo uma merda da porra e a gente
precisa olhar pra isso aí também, mas queremos olhar pro outro lado, porque a
gente precisa ser forte. O outro lado que nos fortalece. Reconhecer umas às
outras nos fortalece. Ver cada uma de nós crescendo nos fortalece. Isso é o
que a gente precisa continuar investindo. Porque a violência tá aí. Tá foda. Tá
pior. Mas a gente precisa se fortalecer pra de, alguma forma, pensar em
algumas ações, em algumas soluções, e não nos abandonar, no sentido de
continuar acreditando que tudo aquilo que a gente investiu, todo aquele amor
que a gente investiu, que a gente investe, tem consequências positivas. Se a
gente tem o nível de consciência que a gente tem hoje… Hoje conseguimos
olhar pra trás e respirar, sentir a dor, mas transformar em força, transformar até
em poema.
A gente começou a ler Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir pra
construir o projeto, a gente fazia aquelas reuniões e que alguém sugeria “poxa,
vamo ler Mulheres que Correm com Lobos”, a gente lia alguma coisa, aí uma
de nós ia participar em um sarau, aí traz uma música de Luedji Luna, aí Luedji
Luna traz Tatiana Nascimento, que é uma mulher preta, poeta, fortíssima…
Isso é muito poderoso. É uma rede, que nunca para e nunca parou de existir.
119

Foi um processo de olhar pra dentro, que a gente já fazia e a pandemia


nos ensinou mais. A gente teve que mergulhar não só na gente, mas no
contexto do que tá ao redor. Solidificar algumas coisas e deixar algumas outras
coisas irem embora. 2018 foi um ano pesado, mas, ao mesmo tempo, de fazer
ação. A gente fez bastante.
O Coletivo Isa Mulher nos marcou de diversas formas. O evento que a
gente fez na praça no “EleNão”, nos marcou no sentido de que se a gente não
tivesse uma rede de apoio, teria sucumbido. A gente mexeu em muita energia,
num vespeiro, no patriarcado, fundado por igreja. A gente teve que afrontar
igreja, dizendo: olha, aqui a gente tá fazendo tudo com amor porque a gente é
amor. Quantas vezes a gente não foi panfletar falando isso para as pessoas? E
hoje o contexto se mostra o que era ódio, o que é o ódio, e as consequências
do ódio. Porque a gente tá passando por uma pandemia, mas a gente podia tá
passando melhor se a gente tivesse acolhido com mais amor as coisas. Mas
não foi a escolha do coletivo e diante do coletivo a gente fica junto. A gente fica
junto. E a gente permanece junto e a gente permanece dizendo pras pessoas:
olha, aquilo ali que a gente apontou como solução lá atrás continua sendo.
Agora, é um processo. É um processo e cada um tem seu tempo.
As nossas vivências como Coletivo se estendem e não têm volta. É
permanente, agora. As pessoas vêm conversar conosco para acolhimento, com
a confiança que depositam nas nossas palavras, na maneira da abordagem.
Isso é pra sempre.
Houve um caso de uma mulher que sofreu assédio sexual dentro de
uma empresa, e ela procurou uma de nós pra saber como é que procedia. E aí
ela foi orientada e conseguiu ter forças; o cara foi afastado. E não era só ela.
Depois dela, várias outras denunciaram assédio dele. Foi dito a ela que tem
que ter uma pessoa que faça isso. E é preciso coragem pra fechar com esse
ciclo. E não é por você, é pelas outras também, é por tudo, é por todas as
mulheres, por toda a história, pelas que passaram e pelas que vão passar se
não fizer nada.
No caso dela, ela denunciou e foi acolhida. E as que denunciam e
sofrem toda a exposição pior do que a violência que ela sofreu durante vários
anos e não acontece nada com o agressor? No caso dela, não foi fácil; ela teve
que fazer terapia, foi perseguida, foi todo um processo, e só rolou porque tinha
mulheres lá dentro com coragem suficiente pra fazer isso. É essa a questão.
Quando cada uma de nós, aqui, fala da importância de ocupar espaços de
poder é por isso. Porque a gente precisa de fato fazer desses espaços
articulação de acolhimento. E isso é desdobramento do Isa. Não teríamos
acolhido mulheres, elas não saberiam de nós, se nós não tivéssemos olhado
pra elas algumas vezes e falado algumas coisas, e se elas não tivessem visto
como a gente se acolhia.
120

Então essas coisas que a gente acha que é pequeno, do comichão que
dá na gente e a gente não se cala, em alguns momentos, ou que a gente se
retira pra não dar uma merda maior, isso tem consequência, isso gera algumas
coisas. A gente precisa tá ancorado nisso sempre. Nenhum passo atrás. E a
gente tem que tá pronto porque a gente vai tomar conta desse futuro.
Fizemos muita coisa. A gente acolheu muita gente, a gente ajudou muita
gente, às vezes, sem perceber. Tem uma história, quando a gente tava
naquele enrosco de ir parando, cada um seguindo, de quando a gente foi
convidado pra fazer uma intervenção, uma palestra no dia da mulher na OAB.
Naquele dia, uma pessoa, quando tava tocando a música… Vimos o rosto dela
se transformando. Como se fosse uma iluminação, assim. E aí ela veio falar
depois, particular, e pediu: “deixa eu levar essa letra de música?”. O papel.
Pouco tempo depois ela estava separada. Então, é uma coisa que a gente
provocou, a libertação dela. Hoje nas redes sociais ela se mostra muito mais
fortalecida como pessoa, como profissional, do que ela era. Até o jeito dela
falar mudou. Foi dado voz a ela, perdeu o medo. A voz… Ela tinha uma voz
murchinha, abafadinha, muito delicadinha... e ela mudou, o jeito dela falar
mudou. Isso é uma das coisas grandes que a gente fez. Porque, olha,
transformar uma pessoa... ajudar a libertar uma pessoa é de uma
grandiosidade tão imensa que valeu tudo que a gente fez.
Consideramos que a gente despertou e ajudou a despertar. Fazer ter
coragem de falar, e se reconhecer. Nós demos voz. A tudo que as mulheres
queriam ouvir e falar, e houve acolhimento.
Nós fomos em vários lugares. Fomos em uma comunidade que trata
HIV/AIDS, na praça, na UNESP, na OAB, fomos até pra outro Estado.
Pegamos todo tipo de público, todas as faixas etárias, todo tipo de mulheres,
toda a composição de uma cadeia de trabalhadoras, de mulheres do lar…
casadas, solteiras. Na primeira intervenção nossa, a gente pegou muitos
homens, a gente parava os meninos na porta da UNESP pra entregar o
machistômetro pra eles. Um monte de menino levou um susto: “mas eu faço
isso!”. Vimos uma postagem no Facebook da Manuela D´Ávila, mandamos uma
mensagem no Messenger, a equipe dela respondeu e disponibilizou pra gente,
transcrevemos, imprimimos, cortamos…
Participar do Coletivo nos ajudou muito a despertar pra algumas
questões que a gente não tava tão sensível, e isso ajudou no nosso campo
profissional, em atendimentos com mulheres. Temos mulheres que têm
depressão, pânico, tudo quanto é coisa dentro de saúde mental, e podemos
dizer que 90% sofreu algum tipo de abuso, algum tipo de violência. Ficamos
mais sensíveis, até pra mostrar pra elas: “você percebe o que você passou,
que isso é violência?”. Ajudou a perceber quando eram coisas sutis, é um
aprendizado valoroso.
121

Quando uma de nós tava pra defender o doutorado, houve uma situação
de estar sob coorientação de um homem abusivo. O Coletivo ajudou no
processo inteiro de mudança de orientação, defesa da tese, acolhimento – sem
o qual não se sabe o que poderia ter acontecido. Se esse doutorado
aconteceu, foi por força do Coletivo. Soubemos agora que a esposa desse
professor abusivo se separou dele, conseguiu ter voz pra sair fora. Ficamos
felizes por ela porque é muito difícil se livrar de relações abusivas, e a relação
dela era muito complicada, porque não era só conjugal, era acadêmica
também. Eles tinham muita coisa juntos, então era muito difícil pra ela dar o
passo que ela deu.
Para fazer o que fizemos, no Coletivo, o primeiro material que a gente
teve foi a vontade. Nem só vontade, era uma ânsia, uma fremência. A gente
tinha uma urgência. Essa urgência foi anterior ao despertar total. A gente tinha
urgência de despertar.
A gente começou pensando em fazer alguma coisa para os outros, e a
gente usou… a gente usou nós. Nossos corpos, nossas vozes, e quanto a
coisas materiais, foi o mínimo possível. A gente usou papel, imaginação… e
nós, a nossa voz. A nossa voz, e a nossa vontade e o nosso desejo de fazer. E
aí a gente começou chamando, esse desejo foi se multiplicando e foi
contaminando.
As pessoas ficavam curiosas pra saber o que era e acabavam
perguntando. E aí quem perguntava foi querendo saber mais e, assim, foi
entrando. Rede social ajudou muito, porque era algo que não tinha custo pra
nós enquanto voluntárias desse Coletivo.
A gente não pode desprezar, né, o bolo de chocolate que tinha em todas
as reuniões da gente! E o chazinho!
Foi importante também os apoios pelo caminho, as portas que as
instituições e eventos abriram pra gente. Isso trouxe pra gente outros
momentos. Esses momentos multiplicaram-se em outros. Depois, cada uma de
nós, na nossa atuação profissional, foi falando do Coletivo em alguns lugares.
Essa sementinha foi plantada em vários lugares e em vários momentos da vida
de pessoas. O financeiro foi o mínimo de coisas porque foi o nosso trabalho
braçal, e antes de ajudar as pessoas, a gente se ajudou. Então enquanto
Coletivo a gente se abriu, uma pra outra, contou as nossas coisas, cada uma
foi falando a respeito dos assédios… A partir também do machistômetro
passamos a conhecer as diferentes violências, passamos a estudar um pouco
mais a respeito, sobre as histórias africanas, a abayomi, fizemos danças
folclóricas... Então não foi só um processo da questão de violência. Foi um
acolher. Se pensarmos em como foi, fizemos piquenique, coisas que remetem
à infância. Então mesmo na dor, a gente conseguiu esse alento em piquenique,
rodas, músicas.
122

Os instrumentos principais do Isa Mulher são os imateriais: a palavra, o


abraço, o acolhimento, o olhar, a mão estendida. Foi uma coisa muito intuitiva.
Assim... Que a gente se sentia... Movido pra fazer e... Fluía. O Isa foi muito de
fluxo, água mesmo. Tem coisa mais feminina que água? Que ocupa, que
acalanta, que acolhe... É o nosso primeiro lar, é a água. E o Isa é isso, esse
fluxo, porque ele ainda jorra na gente. Ajudar algumas mulheres a enfrentar
situações de violência fez lembrar de coisas que vivemos, e ajudou a voltarmos
em alguns contextos, visitar, entender, elaborar, e voltar pra cá, pra hoje, voltar
pro que somos. E construir esse distanciamento. As pontes que a gente
construiu são nossas e ninguém vai tirar da gente. É sobre saber construir
caminhos também de afastamento, que é pra gente poder ajudar inteiro,
porque se a gente se aproximar demais, a gente não consegue ajudar
ninguém, nem a gente mesmo.
Por conta de tudo isso, destacamos os dispositivos afetivos que
construímos, que são muito importantes pra gente ter força e agir, e fluir como
a gente fluiu. Laços foram construídos. A gente foi fluindo e acreditando nesse
fluxo, e o fluxo trouxe a gente aqui. Vamos continuar no fluxo, na correnteza.
Na água, como tudo começou.

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