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CAMPINAS
2022
INAYÁ ANANIAS WEIJENBORG
CAMPINAS
2022
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca da Faculdade de Ciências Médicas
Ana Paula de Morais e Oliveira - CRB 8/8985
Título em outro idioma: Perceptions about violence against women : study with workers
from a CREAS and a women´s collective
Palavras-chave em inglês:
Community health
Violence against women
Mental health
COVID-19
Área de concentração: Política, Gestão e Planejamento
Titulação: Mestra em Saúde Coletiva: Políticas e Gestão em Saúde
Banca examinadora:
Rosana Teresa Onocko-Campos
Lilian Miranda
Carlos Alberto Pegolo da Gama
Data de defesa: 09-08-2022
Programa de Pós-Graduação: Saúde Coletiva: Políticas e Gestão em Saúde
MEMBROS TITULARES
Esta pesquisa é sobre violência contra mulher pela perspectiva de uma equipe
de CREAS e um coletivo de mulheres, com intuito de entender quais são as
percepções desses dois grupos sobre o tema. A violência é entendida como uma
questão de Saúde Coletiva, com raízes históricas e culturais, e sua ocorrência traz
significativos prejuízos à saúde mental. Vale-se de uma intersecção com as políticas
do SUAS e uma organização da sociedade civil para fazer caminhar diferentes tipos
de conhecimentos, apresentados através de grupos focais narrativos, método
qualitativo de pesquisa que contém um momento hermenêutico com efeitos da
narratividade; é, ao mesmo tempo, uma construção e intervenção. As duas
narrativas construídas tiveram aproximações entre si – como entender a violência
como fenômeno social – e alguns distanciamentos, sendo a narrativa do CREAS
mais técnica e teórica e a narrativa do coletivo mais instintiva e poética. Juntas,
compõem um cenário de diversos recursos e entendimentos sobre o fenômeno da
violência contra a mulher. Essa junção é expressa no produto técnico, que é um guia
virtual educativo para profissionais dos serviços públicos de cidade de pequeno
porte versando sobre a temática, disponível em sítio eletrônico. Houve um
atravessamento da pandemia de Covid-19 na pesquisa, que influenciou as
narrativas construídas coletivamente e trouxe a perspectiva do aumento de violência
doméstica contra a mulher durante o período de distanciamento social. Conclui-se
que o tema é de grande relevância e atualidade, e para o enfrentamento à violência
contra a mulher é necessário um corpo coletivo, uma vez que violência é
responsabilidade de todos os serviços públicos.
This research is about violence against women from the perspective of a CREAS
team and a women's collective, in order to understand the perceptions of these two
groups on the subject. Violence is understood as a Public Health issue, with historical
and cultural roots, and its occurrence brings significant damage to mental health. It
makes use of an intersection with the policies of the SUAS and a civil society
organization to promote different types of knowledge, presented through narrative
focus groups, a qualitative research method that contains a hermeneutic moment
with narrative effects; it is, at the same time, a construction and intervention. The two
constructed narratives were close to each other – how to understand violence as a
social phenomenon – and some distances, with the CREAS narrative being more
technical and theoretical and the collective narrative more instinctive and poetic.
Together, they make up a scenario of different resources and understandings about
the phenomenon of violence against women. This junction is expressed in the
technical product, which is a virtual educational guide for professionals in the public
services of small towns dealing with the theme, available on an electronic site. There
was a crossing of the Covid-19 pandemic in the research, which influenced the
collectively constructed narratives and brought the perspective of the increase in
domestic violence against women during the period of social distance. It is concluded
that the topic is of great relevance and current, and in order to face violence against
women, a collective body is necessary, since violence is the responsibility of all
public services.
Introdução ………………………………………………………………….……………… 11
Saúde Coletiva ………………………………………………….. 11
Violência contra a mulher: SUS e SUAS …………………..… 14
Violência contra a mulher na pandemia de Covid-19 …….... 24
Objetivos …………………………………………………………………………………... 28
Objetivo geral ………………………………………………..….. 28
Objetivos específicos ……………………………………….….. 28
Metodologia ……………………………………………………………………………….. 28
Violência contra a mulher: CREAS de Ilha Solteira ……...…. 28
Abordagem qualitativa ……………………………………….… 37
Grupos focais ………………………………………………...…. 38
A escolha de incluir o Coletivo ISAMulher na metodologia ... 43
Resultados ……………………………………………………………………………….... 45
Discussão geral ……………………………………………………………………….….. 67
Conclusão …………………………………………………………………………….…… 79
Referências ……………………………………………………………………………….. 83
Apêndices …………………………………………………………………………….…… 87
Produto técnico …………………………………………………. 87
Anexos ………………………………………………………………………..…………… 90
Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa………………….… 90
Autorização do setor responsável da prefeitura ………....…. 97
Machistômetro ………………………………………………….. 98
Narrativa ampliada CREAS ……………………….…..…..…. 100
Narrativa ampliada Coletivo ISAMulher ……………….….… 114
11
1. INTRODUÇÃO
1 Disponível em <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/impacto_violencia.pdf>,
18
3 Disponível em
<https://www.icict.fiocruz.br/sites/www.icict.fiocruz.br/files/boletim_bibliocovid_-
_edicao_marco_2021.pdf>, acesso em 18 de abril de 2022.
26
2. OBJETIVOS
3. METODOLOGIA
Quadro 1: Dados de violência contra a mulher em Ilha Solteira segundo a DDM - 2019
2019 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
Clúnia 1 1 1 2 2 1 1 1 1
/difam
ação/i
njúria
Amea 4 4 7 6 6 3 5 4 2 3 7 2
ça
Vias 2 2 1 3 2
de
32
fato
Lesão 4 1 1 2 1 1 3 1 4 4 1 2
corpor
al
dolos
a
Outro 3 1 1
s
crime
s
Violaç 2 1
ão de
domic
ílio
Outro 2
s
crime
s
contra
a
pesso
a
Outra 2 4 1 2 2 3
s
contra
vençõ
es
TOTA 15 8 15 16 8 10 10 5 9 10 12 5
L
Quadro 2: Dados de violência contra a mulher em Ilha Solteira segundo a DDM - 2020
2020 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
Clúnia 3 1 1 2 1 1 1
/difam
ação/i
njúria
Amea 11 1 3 1 1 3 2 2 4 2 7 4
ça
Vias 4 2 3 1 1 1 1 2 6 1
de
fato
33
Lesão 3 2 5 1 5 3 1 2 1 2
corpor
al
dolos
a
Outro 1 1 1
s
crime
s
Violaç 3 1
ão de
domic
ílio
Outro
s
crime
s
contra
a
pesso
a
Tentat 1
iva de
homic
ídio
Outra 1 1 1 1 4 1 1 1
s
contra
vençõ
es
Esteli 1
onato
Outro 1
s
crime
s
contra
o
patrim
ônio
Perig 1
o de
vida
ou à
34
saúde
de
outre
m
TOTA 18 10 14 5 9 6 9 10 6 8 15 10
L
Quadro 3: Dados de violência contra a mulher em Ilha Solteira segundo a DDM - 2021
2021 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
Clúnia 4 1 4 2 - - - 2 - - 2 -
/difam
ação/i
njúria
Amea 4 1 5 4 3 3 4 6 5 4 7 4
ça
Vias 1 - - - - 2 - 3 2 2 1 2
de
fato
Lesão - 1 2 1 2 1 - 3 3 3 1 -
corpor
al
dolos
a
Outro - - - - 1 1 - 1 - 1 - 2
s
crime
s
Violaç - - - - - 1 - 1 - - - 1
ão de
domic
ílio
Outro - - - - - 2 - - 2 1 - -
s
crime
s
contra
a
pesso
a
35
TOTA 9 3 11 7 6 10 4 16 12 11 11 9
L
Nota-se que uma mesma pessoa pode registrar mais de uma ocorrência
na DDM. Número é de ocorrências, e não de pessoas, como é no CREAS.
Além disso, nem toda mulher atendida na DDM é atendida também no CREAS
e vice-versa. E o número contabilizado de mulheres atendidas no CREAS pode
ser de violências que ocorreram em 2020, 2019 ou até antes do período
selecionado na DDM, e este é um dado impreciso para ser descrito.
Grupo focal > N1 > Grupo hermenêutico > Narrativa ampliada > Grade de
interpretação > Extração de núcleos argumentais > Elaboração de produto
técnico e dissertação.
O Coletivo ISAMulher sempre se definiu como uma voz coletiva que não
se restringe ao nome de alguma participante. Portanto, para defini-lo, utilizar-
se-á a definição que o próprio coletivo fez de si mesmo, no ano de 2017, ao
enviar uma proposta de intervenção a uma agência de fomento. A descrição,
feita coletivamente, é a seguinte:
44
5 Em anexo
45
4. RESULTADOS
A violência é sistêmica.
Identificaçã A pessoa não consegue, muitas vezes, [Sobre o quão comum são mulheres que
o da identificar a violência porque é a sofreram violência na infância e não se deram
violência cultura, como a cultura de espancar conta à época] Um exemplo claro é dessa
contra a mulher porque o pai espancou, então é menininha que engravidou de outra criança, e aí a
mulher normal a mulher ser espancada porque gente pensa: “cara, a menina tem 10, ela tava
a mãe foi espancada. E a gente sendo violentada desde os 6 anos de idade, e só
trabalhar com isso, romper essa cultura descobriu porque engravidou?” É essa a
do que tá normalizado, é bem questão? Então só vão olhar pra essas violências
complicado. se algo mais violento acontecer? E se a mulher
não consegue enxergar aquilo enquanto
Em relação a uma especificidade no violência, as coisas vão se agravando. A mulher
atendimento às mulheres que sofreram não foi ensinada a reconhecer quais são as
violência, tem uma dificuldade de violências.
quando é violência psicológica. A
mulher não entende por que ela tá
aqui, foi um serviço que encaminhou.
Um exemplo: o caso está lá na Saúde,
atendendo, identificou que tá sofrendo
violência psicológica – “ah, cê tem que
ir lá no CREAS”. Muitas vezes ela nem
chega com essa demanda. “Ai, eu
estava lá na saúde, né, aí o pessoal
falou que eu tinha que vir aqui no
CREAS”. Da violência física é mais
fácil fazer a abordagem, porque ela
tem ali o hematoma, tem ali toda
aquela situação. Da violência
psicológica, patrimonial, também tem
aquela questão “ah, porque eu trabalho
e dou todo meu dinheiro pro meu
marido, ele que administra”, mas cê vê
que não é uma conversa entre os dois,
um acordo – cê vai buscar ali, no
atendimento, é mais uma questão
histórica – “ah, sempre foi assim”,
desde quando casou – então esses
mais subjetivos, com não tantas coisas
concretas, eu acho que é mais difícil de
trabalhar, de você trazer pra ela
também enxergar.
Atendiment Quanto mais a gente foca e entra em Estudamos isso [violência] em grupo, com
o às questões objetivas da violência, é o Coletivo, e fomos nos entendendo dentro desse
mulheres mais fácil de lidar com ela, porque essa contexto. A gente foi se entendendo durante o
em outra violência maior, que talvez gere processo, e entendendo as várias violências que
situação de um incômodo maior, essa a gente sofreu. E quando percebemos isso, nos
violência; superestrutura que vai além do tornamos outras pessoas.
formas de CREAS (que é feita para não dar
enfrentame direito à mulher historicamente, Então, a falta do conhecimento, de tudo:
nto deixá-la dependente financeiramente de violência, dos seus direitos… Tem uma lei
da família ou marido, por exemplo), federal que garante à mulher, à parturiente, a
é onde talvez a gente não dê conta. E expressar-se durante o parto. É um absurdo. Tem
a gente não dá conta porque não que ter uma lei que garanta nosso direito de gritar
temos a organização toda pra isso. e de sofrer, pra ter nossos filhos. As mulheres
não sabem disso, porque o conhecimento liberta.
O CREAS não vai resolver essa A partir do momento que as mulheres conhecem
injustiça social, mas tem um os seus direitos e o que são as violências e quais
compromisso com essa violência que é são as violências, elas podem interromper essas
maior. É um desafio, não sentimos barreiras. Assim como as crianças aprenderem o
muito isso na prática, mas temos que é o corpo, quem pode tocar nele; nós não
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âmbitos sociais, num âmbito maior. num vespeiro, no patriarcado, fundado por igreja.
Então por mais que a gente não vá A gente teve que afrontar igreja, dizendo: olha,
resolver as injustiças e a aqui a gente tá fazendo tudo com amor porque a
desigualdade social, só o fato da gente é amor. Quantas vezes a gente não foi
gente trabalhar essa identificação já é panfletar falando isso para as pessoas? E hoje o
um fator reflexivo e de superação da contexto se mostra o que era ódio, o que é o ódio,
violência. e as consequências do ódio. Porque a gente tá
O CREAS pode sair do equipamento passando por uma pandemia, mas a gente podia
e falar de um âmbito geral da violência, tá passando melhor se a gente tivesse acolhido
fazer grupos em postos de saúde com mais amor as coisas. Mas não foi a escolha
falando de violência, indo nas escolas do coletivo e diante do coletivo a gente fica junto.
falando de violência, indo nas rádios A gente fica junto. E a gente permanece junto e a
pensando nesse público maior que gente permanece dizendo pras pessoas: olha,
acaba não tendo acesso. aquilo ali que a gente apontou como solução lá
atrás continua sendo. Agora, é um processo. É
Essa reflexão sobre essa violência que um processo e cada um tem seu tempo.
é macro, que é maior que a gente, As nossas vivências como Coletivo se
talvez não seja só o nosso ponto de estendem e não têm volta. É permanente, agora.
chegada, mas talvez seja o nosso As pessoas vêm conversar conosco para
ponto de partida, o nosso fundamento, acolhimento, com a confiança que depositam nas
isso fundamenta nossa prática aqui no nossas palavras, na maneira da abordagem. Isso
CREAS. Se a gente não identificar a é pra sempre.
violência aqui, no CREAS, não tem por Houve um caso de uma mulher que sofreu
que continuar aqui o caso, mesmo que assédio sexual dentro de uma empresa, e ela
tenha sofrimento – todo mundo tem procurou uma de nós pra saber como é que
sofrimento. procedia. E aí ela foi orientada e conseguiu ter
forças; o cara foi afastado. E não era só ela.
Vemos pouca participação do homem Depois dela, várias outras denunciaram assédio
nesse processo de reflexão, de dele. Foi dito a ela que tem que ter uma pessoa
discussão. É como se de alguma que faça isso. E é preciso coragem pra fechar
maneira isso acontecesse de um lado com esse ciclo. E não é por você, é pelas outras
historicamente nessa relação de poder também, é por tudo, é por todas as mulheres, por
que demonstra mais fragilidades, toda a história, pelas que passaram e pelas que
talvez, ou que é julgado com mais vão passar se não fizer nada.
fragilidades, e aí aponta nela a única Então essas coisas que a gente acha que é
fonte de saída. Então é a mulher que pequeno, do comichão que dá na gente e a gente
acaba tendo que buscar o não se cala, em alguns momentos, ou que a
atendimento, muitas vezes, ali no gente se retira pra não dar uma merda maior, isso
conflito familiar ou relação, e de tem consequência, isso gera algumas coisas. A
alguma maneira aponta também como gente precisa tá ancorado nisso sempre. Nenhum
se fosse só dela a saída. passo atrás. E a gente tem que tá pronto porque
a gente vai tomar conta desse futuro.
É muito mais fácil a mulher ter medida Fizemos muita coisa. A gente acolheu
protetiva pela violência física que pela muita gente, a gente ajudou muita gente, às
psicológica. Só se chegar na delegacia vezes, sem perceber. Tem uma história, quando a
por uma ameaça, com prova material, gente tava naquele enrosco de ir parando, cada
uma conversa de whatsapp, um objeto. um seguindo, de quando a gente foi convidado
Será que só há medida protetiva pra fazer uma intervenção, uma palestra no dia
quando há violência física ou será que da mulher na OAB. Naquele dia, uma pessoa,
nós, mulheres – pensando como quando tava tocando a música… Vimos o rosto
mulher – que só denuncia ou vai numa dela se transformando. Como se fosse uma
delegacia quando ocorre a violência iluminação, assim. E aí ela veio falar depois,
física? Pode acontecer que já vem particular, e pediu: “deixa eu levar essa letra de
acontecendo violência moral, música?”. O papel. Pouco tempo depois ela
psicológica, mas não denuncia. estava separada. Então, é uma coisa que a gente
provocou, a libertação dela. Hoje nas redes
Por mais que a gente tenha o CREAS, sociais ela se mostra muito mais fortalecida como
55
o Conselho Tutelar, delegacia, fórum, pessoa, como profissional, do que ela era. Até o
esse sentimento de impunidade ou o jeito dela falar mudou. Foi dado voz a ela, perdeu
sentimento de que tá sendo julgado, o medo. A voz… Ela tinha uma voz murchinha,
que aquela situação não vai se abafadinha, muito delicadinha... e ela mudou, o
resolver ou que não vai ter a proteção jeito dela falar mudou. Isso é uma das coisas
devida, acontece. Tem essa questão grandes que a gente fez. Porque, olha,
de “pra que que eu vou falar da minha transformar uma pessoa... ajudar a libertar uma
violência se, às vezes, se eu falar, vai pessoa é de uma grandiosidade tão imensa que
voltar aquilo pra mim de uma maneira valeu tudo que a gente fez.
maior, mais violento”. Consideramos que a gente despertou e
ajudou a despertar. Fazer ter coragem de falar, e
Quando a gente vai falar do tema que se reconhecer. Nós demos voz. A tudo que as
é empatia, a gente vê que elas vêm mulheres queriam ouvir e falar, e houve
procurar “porque o outro tem que acolhimento.
mudar”, “o meu marido tinha que tá Nós fomos em vários lugares. Fomos em
aqui pra ouvir isso”, porque a culpa é uma comunidade que trata HIV/AIDS, na praça,
do outro. Então, a gente vai trabalhar na UNESP, na OAB, fomos até pra outro Estado.
essa autorresponsabilização também, Pegamos todo tipo de público, todas as faixas
porque ninguém vai mudar o outro, não etárias, todo tipo de mulheres, toda a composição
vai mudar de tudo. Mas ela vai mudar. de uma cadeia de trabalhadoras, de mulheres do
A partir dela vai mudar um lar… casadas, solteiras. Na primeira intervenção
comportamento, uma forma de se nossa, a gente pegou muitos homens, a gente
comunicar em casa, com o marido ou parava os meninos na porta da UNESP pra
com os filhos, e aí, sim, pode haver entregar o machistômetro pra eles. Um monte de
alguma mudança. Trabalhamos a menino levou um susto: “mas eu faço isso!”.
autorresponsabilização no sentido de Vimos uma postagem no Facebook da Manuela D
que você tem alguma coisa a ser feita. ´Ávila, mandamos uma mensagem no
Não é só a questão do poder dele, mas Messenger, a equipe dela respondeu e
ela se empoderar, também, empoderar disponibilizou pra gente, transcrevemos,
a mulher. imprimimos, cortamos…
Achamos que o maior trabalho é tentar Quando uma de nós tava pra defender o
empoderar pra romper com esse ciclo doutorado, houve uma situação de estar sob
[de ameaças do marido], pra ela fazer coorientação de um homem abusivo. O Coletivo
as escolhas dela. ajudou no processo inteiro de mudança de
orientação, defesa da tese, acolhimento – sem o
Entendemos que empoderar significa qual não se sabe o que poderia ter acontecido.
mostrar que sempre tem alternativa. Se esse doutorado aconteceu, foi por força do
Tem uma questão cultural, que é muito Coletivo. Soubemos agora que a esposa desse
anterior, tem uma história das relações, professor abusivo se separou dele, conseguiu ter
a gente não vai mudar isso, e voz pra sair fora. Ficamos felizes por ela porque é
empoderamento seria conseguir mudar muito difícil se livrar de relações abusivas, e a
isso, porque aí resolve na base, mas relação dela era muito complicada, porque não
talvez tenha esse empoderamento no era só conjugal, era acadêmica também. Eles
sentido de perceber que tem mais uma tinham muita coisa juntos, então era muito difícil
escolha aí. pra ela dar o passo que ela deu.
maioria, houve uma agressão, um não compreenderam que elas precisam ocupar os
boletim de ocorrência, e às vezes o espaços de poder e decisão… Elas precisam
agressor já vem encaminhado também conseguir estudar, fazer vestibular, e ocupar
pelo TJ [Tribunal de Justiça], e a vítima esses espaços. Ser juíza, ser promotora, ser
não quer vir porque acha que o médica… Ser vereadora, ser prefeita, ser
agressor que tem que vir, apenas, pois governadora... Porque enquanto num ocuparem
ele que infringiu, violou. esses lugares, elas vão depender dos homens
pra tomar decisão pra elas. E eles não vão tomar.
O trabalho do CREAS também envolve Às vezes esses homens se protegem.
tentar requisitar uma liberdade possível
no caso do atendimento às mulheres. Para fazer o que fizemos, no Coletivo, o primeiro
Tem um pouco de restabelecer ou de material que a gente teve foi a vontade. Nem só
fazer perceber, criar, construir uma vontade, era uma ânsia, uma fremência. A gente
liberdade que já é possível, mesmo tinha uma urgência. Essa urgência foi anterior ao
que seja pequena. despertar total. A gente tinha urgência de
despertar.
No grupo de homens, no qual a maioria A gente começou pensando em fazer
são agressores, teve essa fala, a alguma coisa para os outros, e a gente usou… a
expressão de certa expectativa de que gente usou nós. Nossos corpos, nossas vozes, e
eles viriam para serem atendidos, quanto a coisas materiais, foi o mínimo possível.
rebaixados, maltratados, que viriam A gente usou papel, imaginação… e nós, a nossa
aqui pra assistir aula junto com outros voz. A nossa voz, e a nossa vontade e o nosso
homens, e não, nunca imaginou que desejo de fazer. E aí a gente começou
fosse ser desse jeito. É a chamando, esse desejo foi se multiplicando e foi
desmistificação até do próprio contaminando.
atendimento, colocar os homens pra As pessoas ficavam curiosas pra saber o
refletir, e que tem a ver com a história que era e acabavam perguntando. E aí quem
deles também, procurando um jeito perguntava foi querendo saber mais e, assim, foi
que dá sentido pra eles. entrando. Rede social ajudou muito, porque era
algo que não tinha custo pra nós enquanto
Isso de ser dito como agressor, e nem voluntárias desse Coletivo.
sempre é, não gostamos de intitular o A gente não pode desprezar, né, o bolo
grupo como agressor, são grupos de de chocolate que tinha em todas as reuniões da
homens e têm esse direito de fala. gente! E o chazinho!
Uma vez, eles contaram como são Foi importante também os apoios pelo
abordados. Falaram que é feito o caminho, as portas que as instituições e eventos
boletim de ocorrência, aí chega lá e abriram pra gente. Isso trouxe pra gente outros
eles não têm direito à fala. No grupo, é momentos. Esses momentos multiplicaram-se em
um momento onde eles podem falar o outros. Depois, cada uma de nós, na nossa
que que tá acontecendo. O nome do atuação profissional, foi falando do Coletivo em
grupo ficou Convivência e alguns lugares. Essa sementinha foi plantada em
Comunicação. vários lugares e em vários momentos da vida de
pessoas. O financeiro foi o mínimo de coisas
Muito provavelmente na prisão não foi porque foi o nosso trabalho braçal, e antes de
feito um trabalho com ele. Diferente, às ajudar as pessoas, a gente se ajudou. Então
vezes, quando vem pro grupo, onde é enquanto Coletivo a gente se abriu, uma pra
feito esse trabalho. outra, contou as nossas coisas, cada uma foi
falando a respeito dos assédios… A partir
também do machistômetro passamos a conhecer
as diferentes violências, passamos a estudar um
pouco mais a respeito, sobre as histórias
africanas, a abayomi, fizemos danças folclóricas...
Então não foi só um processo da questão de
violência. Foi um acolher. Se pensarmos em
como foi, fizemos piquenique, coisas que
remetem à infância. Então mesmo na dor, a gente
conseguiu esse alento em piquenique, rodas,
57
músicas.
Os instrumentos principais do Isa Mulher
são os imateriais: a palavra, o abraço, o
acolhimento, o olhar, a mão estendida. Foi uma
coisa muito intuitiva. Assim... Que a gente se
sentia... Movido pra fazer e... Fluía
essa família – já se pensa: “meu Deus, pequenininhas, de uma mão em lugares que não
essa criança, nessa casa, o que vai ser deveria estar, de pessoas que não deveriam
dessa criança?”, já se pensa até na colocar a mão em nós. Então, a primeira coisa é
possibilidade de guarda… que a violência contra a mulher é uma coisa que
nos marca. Seja ela física, ou psicológica, ou
outra.
falando que a pessoa tá te agredindo, única candidata que foi votada e eleita, digamos
ou tá fazendo violência psicológica, tá que não tem uma representatividade como
negligenciando, é fácil, porque você feminino. Na verdade, ela é sujeita ao
pode mentir. E aí, a gente intervém de patriarcado, sempre. Cheia de boas intenções,
que forma? Aí é a dificuldade de mas ela é sujeita ao patriarcado, não tem
identificar realmente em alguns casos algumas noções, nem dos direitos da mulher.
a violência, mesmo que psicológica, e Então, isso é muito maluco. O tanto que a gente
diferenciar do conflito. Às vezes, a tinha de mulheres de todos os tipos de
pessoa mente por benefício. pensamento, de várias vertentes, de vários
partidos – então, as mulheres não votam nas
Na história das relações isso mulheres. Elas não sabem que a gente pode e
acontece muito, daquela violência às deve ocupar lugares de poder.
vezes ser colocada de uma maneira a
culpabilizar o outro, a responsabilizar,
e não ter essa empatia da relação Houve um caso de uma candidata prefeita
humana. Achamos que isso interfere que foi atacada pelo adversário com as mesmas
nas notificações, na relação com as opressões machistas de 2018.
instituições que dá pra fazer esse tipo
de atendimento.
5. DISCUSSÃO GERAL
trecho “As pontes que a gente construiu são nossas e ninguém vai tirar da
gente. É sobre saber construir caminhos também de afastamento, que é pra
gente poder ajudar inteiro, porque se a gente se aproximar demais, a gente
não consegue ajudar ninguém, nem a gente mesmo.”
Na narrativa do CREAS, aparece como função do serviço
desnaturalizar a banalização/trivialização da violência. A estratégia de
compartimentalizar a violência, dividindo-a em tipo, é uma divisão didática e
funciona se não perder de vista o funcionamento sistêmico e histórico da
humanidade. Essa é uma operacionalização importante no atendimento e
entendimento da violência, pois dá lugar a diferentes dimensões do fenômeno
e é necessariamente propositivo. Existe uma operacionalização bem delineada
da estratégia de enfrentamento à violência contra a mulher. Talvez não por
acaso a narrativa do Coletivo teve bem menos menções às formas de
identificação de violência contra a mulher. Outra importante estratégia de
enfrentamento à violência é o atendimento coletivo no serviço através de
(grupos de mulheres, grupos de homens), nos quais são discutidas situações
em que uma pessoa se identifica com a fala da outra, percebendo que o que
lhe acometeu foi violência (no caso dos homens, às vezes se dão conta de
ações que nunca refletiram sobre serem violências).
A questão sobre diferença entre conflito e violência também não é
interessante de ser utilizada no produto técnico. No município do CREAS
estudado, existe a herança de um funcionamento mais próximo ao
relacionamento de clientela/consumidor que de cidadania. Assim, ainda
acontece com alguma frequência o encaminhamento de situações que não são
objeto de trabalho do CREAS. Uma briga de vizinhos por conta de som alto,
por exemplo, sem envolver relação desigual de poder ou relação de gênero, já
foi objeto comum ao CREAS com a demanda de resolver o entendimento pelos
vizinhos, e não com eles ou, melhor ainda, que se resolvessem no exercício
das relações comunitárias. Utilizar um desagrado na convivência comunitária é
trivializar o conceito de violência e existe um trabalho institucional de defender
para e com os munícipes as funções do CREAS.
Minayo (2007) traz melhor essa discussão, referindo que após longos
debates o Ministério da Saúde em 2001 “ofereceu uma definição de violência
com a qual pudéssemos operar a política e promover planos de ação nos três
níveis de gestão (p. 24)”. Operacionalidade, elemento importante para
planejamento, política e gestão. Para ciência, essa manifestação do Ministério
da Saúde trata-se da Portaria nº 737/2001 – Política Nacional de Redução de
Morbimortalidade por Acidentes e Violência, documento que, se forma
resumida:
[...]
- propõe uma filosofia e uma prática intersetoriais e
articuladas com a sociedade civil;
- elabora orientações para acompanhamento e
monitoramento das ações, ao mesmo tempo que elas
vão sendo implantadas (p 24-25).
6. CONCLUSÃO
Por fim, destaca-se que essa foi uma pesquisa social com
(re)construção das políticas públicas e rede de apoio comunitário em um
processo reflexivo que nem sempre é vivenciado no funcionalismo público ou
no contato geral dos cidadãos entre si. A operacionalização dessa investigação
é um exemplo de intervenção possível para dar prosseguimento ao trabalho de
combate à violência de gênero.
83
7. REFERÊNCIAS
PAIM, J. S. Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos. Ciência & Saúde
Coletiva, 2018.
BRASIL. Lei nº 8.742. Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS). Brasília: DF,
84
07 de dezembro de 1993.
BRASIL. Lei 12.435 de 6 de julho de 2011. Altera a Lei 8.742 que dispõe sobre
a organização da Assistência Social. 2011.
8. APÊNDICES
PRODUTO TÉCNICO
É possível utilizar essa mídia como um guia para o SUS e para o SUAS
no atendimento a mulheres vítimas de violência, que os gestores poderão
utilizar na educação permanente dos profissionais da rede e qualificação dos
serviços. É um material dirigido a profissionais de serviço público que pode
instrumentalizar o atendimento a mulheres em situação de violência. Além
disso, pode fortalecer a pactuação do Protocolo de Fluxo de Atendimento
Intersetorial à Mulher em Situação de Violência, ferramenta produzida pelo
município de Ilha Solteira que acompanha a Ficha de Notificação de Violência e
descreve responsabilidades de cada setor do serviço público, destacando que
não é atribuição apenas do CREAS realizar esses atendimentos e requer
preparo de todos os atores da rede.
Grupo hermenêutico:
Data: 16/12/2021. Local: Sala de técnicas no CREAS.
Disposição dos assentos:
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incomoda, e o outro que você chama faz a mesma coisa. A família não entra
em consenso e não se resolvem entre si, e acham que a gente tá aqui pra isso.
Quando temos a possibilidade de colocar os dois juntos para conversar, pode
ser que isso se resolva, e isso é bom.
A violência é difícil de ser conceituada porque ela acontece em âmbitos
muito maiores que num universo institucionalizado como o que a gente vive
aqui, dentro de uma família. A violência é uma relação de poder que envolve
história, lados, sofrimento e às vezes tem uma questão cultural associada;
papéis estabelecidos, expectativas... Como esse universo é muito grande, aqui
no CREAS identificamos a violência a partir de uma setorização: separamos
em violência física, psicológica… Damos conta de diferenciar até uma parte,
porque tem questões muito maiores que a gente, como violência urbana,
violência política-econômica. Nessas estruturas maiores a gente acaba tendo
menos eficiência e menos poder. É uma coisa a ser construída a muito longo
prazo.
Tem uma diferença entre violência e violação.
Nós pensamos na violência de forma segmentada – física, psicológica –
mas ela também é cultural. A pessoa não consegue, muitas vezes, identificar a
violência porque é a cultura, como a cultura de espancar mulher porque o pai
espancou, então é normal a mulher ser espancada porque a mãe foi
espancada. E a gente trabalhar com isso, romper essa cultura do que tá
normalizado, é bem complicado.
A violência é uma coisa muito complexa, tem enraizamento cultural e
histórico, e às vezes temos dificuldade em visualizar por conta dessa história
e cultura que naturaliza e banaliza a violência, e o papel do CREAS é
questionar e desnaturalizar esse processo de banalização. Para isso, nós
separamos as violências por tipos para facilitar a identificação, tendo como
plano de fundo essa violência estrutural e cultural que é o mais
desafiador para o CREAS lidar.
Quanto mais a gente foca e entra em questões objetivas da violência,
é mais fácil de lidar com ela, porque essa outra violência maior, que talvez gere
um incômodo maior, essa superestrutura que vai além do CREAS (que é
feita para não dar direito à mulher historicamente, deixá-la dependente
financeiramente da família ou marido, por exemplo), é onde talvez a gente
não dê conta. E a gente não dá conta porque não temos a organização
toda pra isso.
Violência tem a ver com conflito, mas nem todo conflito é violência. A
violência tem uma relação de poder, uma hierarquia, uma desigualdade na
relação, que talvez no conflito não tenha, seja mais horizontal. O CREAS não
vai resolver essa injustiça social, mas tem um compromisso com essa
violência que é maior. É um desafio, não sentimos muito isso na prática,
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num grupo e, de alguma maneira, sair do grupo pra família, pros amigos e
trazer esse tipo de reflexão, é um efeito multiplicador, um potencial que o
CREAS tem. A gente precisava discutir essa questão de igualdade, dessa
relação de gênero, a questão de igualdade nas representações políticas, essa
questão de igualdade diante de uma relação familiar. Se a gente não trouxer
nas nossas discussões, seja com os serviços, seja com os atendidos, que a
gente precisa igualizar as pessoas, igualar no sentido de afirmar em nossas
práticas que todos nós somos iguais e temos direitos – à vida, a comer, a beber
– e a gente se relaciona de uma maneira livre, é um pouco nessa linha, assim.
Que aí, vai pra uma linha mais filosófica, uma linha, talvez, até mais romântica,
mas é por esse caminho.
Essa reflexão sobre essa violência que é macro, que é maior que a
gente, talvez não seja só o nosso ponto de chegada, mas talvez seja o nosso
ponto de partida, o nosso fundamento, isso fundamenta nossa prática aqui no
CREAS. Se a gente não identificar a violência aqui, no CREAS, não tem por
que continuar aqui o caso, mesmo que tenha sofrimento – todo mundo tem
sofrimento.
Em relação a uma especificidade no atendimento às mulheres que
sofreram violência, tem uma dificuldade de quando é violência psicológica. A
mulher não entende por que ela tá aqui, foi um serviço que encaminhou. Um
exemplo: o caso está lá na Saúde, atendendo, identificou que tá sofrendo
violência psicológica – “ah, cê tem que ir lá no CREAS”. Muitas vezes ela nem
chega com essa demanda. “Ai, eu estava lá na saúde, né, aí o pessoal falou
que eu tinha que vir aqui no CREAS”. Da violência física é mais fácil fazer a
abordagem, porque ela tem ali o hematoma, tem ali toda aquela situação. Da
violência psicológica, patrimonial, também tem aquela questão “ah, porque eu
trabalho e dou todo meu dinheiro pro meu marido, ele que administra”, mas cê
vê que não é uma conversa entre os dois, um acordo – cê vai buscar ali, no
atendimento, é mais uma questão histórica – “ah, sempre foi assim”, desde
quando casou – então esses mais subjetivos, com não tantas coisas concretas,
eu acho que é mais difícil de trabalhar, de você trazer pra ela também
enxergar. O físico, a violência física, acho que é mais fácil de fazer uma
reflexão que a violência psicológica, patrimonial… ou alienação em relação aos
filhos, porque tem muito isso, não só em relação aos pais separados, mas
dentro de casa, o pai que fala “não, a sua mãe não fez a comida direito, não
lavou a roupa direito”, então trabalhar isso, que o pai tá fazendo uma violência
em relação aos filhos contra a mãe, também.
Vemos pouca participação do homem nesse processo de reflexão, de
discussão. É como se de alguma maneira isso acontecesse de um lado
historicamente nessa relação de poder que demonstra mais fragilidades, talvez,
ou que é julgado com mais fragilidades, e aí aponta nela a única fonte de
saída. Então é a mulher que acaba tendo que buscar o atendimento, muitas
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Quando a gente vai falar do tema que é empatia, a gente vê que elas
vêm procurar “porque o outro tem que mudar”, “o meu marido tinha que tá aqui
pra ouvir isso”, porque a culpa é do outro. Então, a gente vai trabalhar essa
autorresponsabilização também, porque ninguém vai mudar o outro, não vai
mudar de tudo. Mas ela vai mudar. A partir dela vai mudar um comportamento,
uma forma de se comunicar em casa, com o marido ou com os filhos, e aí, sim,
pode haver alguma mudança. Trabalhamos a autorresponsabilização no
sentido de que você tem alguma coisa a ser feita. Não é só a questão do poder
dele, mas ela se empoderar, também, empoderar a mulher.
Tem um caso de violência contra a mulher, muito forte, em que uma
senhora foi esfaqueada pelo marido. Ele foi preso, depois que saiu, saiu com
medida, ele não podia ficar perto, então ele ficou em outro município até
terminar a medida. A hora que terminou a medida ele entrou de novo na casa,
ela ficava em pânico, ela e a filha dormia no mesmo quarto, na hora de dormir
colocava uma cama na porta, porque tinha medo dele entrar. Se elas
quisessem fazer xixi de madrugada, ficavam com vontade, porque tinham
medo. A única alternativa que tinha de empoderar foi “ó, qual que é a certeza
que você tem? Que não tá vivendo, né?”, e ela morria de medo de denunciar,
porque ele ameaçava de matar ela, de matar familiares, porque sabia onde a
mãe dela morava, sabia onde os irmãos moravam e o trabalho foi nesse
sentido: “tá, cê tem certeza que ele já fez uma ameaça, mas você não tá
vivendo; e aí, vamos escolher o que?”. Fazendo as reflexões ela escolheu
assim: “ah, eu escolho que eu quero viver, independente de se ele vier
concretizar o que ele falou, eu quero viver”. Aí ela foi, fez boletim de ocorrência,
ele foi preso de novo, aí ela conseguiu estudar, um dia chegou super feliz
porque tava tirando carta, porque ela foi se empoderando, né. Achamos que o
maior trabalho é tentar empoderar pra romper com esse ciclo, pra ela fazer as
escolhas dela. A vítima que tem que ligar pra polícia, falar que o cara tá perto,
porque não tem polícia 24h atrás dele, então até esse tempo ele já fez o que
tinha que fazer. Uma coisa trabalhada nesse caso em específico foi o quanto
ela não conseguia permitir que ele não voltasse. Então a gente foi trabalhando
estratégias: se ele entrou, como entrou? Vamos trocar a fechadura do portão,
por cadeado? Se tá dentro de casa, aciona a polícia, esses detalhezinhos de
mostrar pra pessoa também o quanto ela acaba não permitindo que ele volte.
Entendemos que empoderar significa mostrar que sempre tem
alternativa. Tem uma questão cultural, que é muito anterior, tem uma história
das relações, a gente não vai mudar isso, e empoderamento seria conseguir
mudar isso, porque aí resolve na base, mas talvez tenha esse empoderamento
no sentido de perceber que tem mais uma escolha aí.
Tem exemplos da violência financeira, que o marido não dá o dinheiro
pra mulher, e ela culpabiliza nesse sentido: “não pude estudar porque ele não
deixou, não pude trabalhar porque eu tinha que cuidar dos filhos, então eu não
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tenho condições de comprar alguma coisa que eu quero, então é dele que vem
esses recursos”. E aí ele fica prendendo, fica controlando. Mas o que que
impede, hoje, que não tem mais isso, que não tem mais filho pra cuidar, o que
impede de procurar alguma coisa pra fazer, uma profissão? Então isso é muito
da cultura da mulher, também. Então tem que ficar em casa? Não? “Cê pode
fazer alguma coisa, o que cê gosta de fazer? Vamos conhecer, vamos buscar
algumas alternativas pra suprir isso?”, porque tá nela, também. Tem uma
responsabilidade, e não culpar, tem uma liberdade que se não dá pra enxergar
fica preso nessa questão de violência. Remete a mudança de comportamento e
não tirar sua responsabilidade disso.
Na maioria das vezes, a mudança é na vítima, buscar outras formas de
se romper com a violência. Na grande maioria, houve uma agressão, um
boletim de ocorrência, e às vezes o agressor já vem encaminhado também
pelo TJ [Tribunal de Justiça], e a vítima não quer vir porque acha que o
agressor que tem que vir, apenas, pois ele que infringiu, violou.
O nosso serviço existe, assim como existem outros que vão trabalhar a
questão do fortalecimento, mas tem esse exemplo do outro lado. Pra quem viu
que “depois vou voltar pra casa, mesmo”, pode servir de exemplo negativo pra
não encorajar as outras pessoas a solicitar a medida protetiva. Muito
provavelmente na prisão não foi feito um trabalho com ele. Diferente, às vezes,
quando vem pro grupo, onde é feito esse trabalho.
O trabalho do CREAS também envolve tentar requisitar uma liberdade
possível no caso do atendimento às mulheres. Tem um pouco de restabelecer
ou de fazer perceber, criar, construir uma liberdade que já é possível, mesmo
que seja pequena.
Na área rural, além do acesso daqui na cidade – o CREAS fica na
cidade –, a violência é mais velada, é cultural. Uma das estratégias são os
vizinhos, se você dá um grito, todos vão ouvir. As crianças são mais assistidas
porque elas vão pra escola, então elas têm esse acesso comunitário. Então
esse fortalecimento comunitário na zona rural é mais difícil, porque uma criança
que foi com hematoma na escola, todo mundo vai ver; a mulher não, ela fica lá,
se não tiver que sair, vai até sumir os hematomas.
Nós não consideramos raça/cor nos prontuários, e não sabemos o que
pensar disso. Em relação a classe social, como o atendimento do CREAS não
é pautado em benefícios, em critério de renda, acaba não sendo uma questão
importante porque não é uma coisa que vai definir o atendimento. A não ser
que a gente veja que é uma família que já verbaliza, já mostra que é mais
carente, a gente sabe que pode incluir em algum programa, aí a gente tem que
ter certeza da renda pra fazer o encaminhamento.
Consideramos que precisamos de uma avaliação do instrumento que a
gente utiliza. Não só dados estatísticos, mas o prontuário que a gente utiliza,
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mas os números não parecem reais, parece que, em geral, a violência contra a
mulher é maior. E essas questões de raça e classe social é importante porque
também tem essa questão cultural na relação principalmente com as outras
instituições. E o CREAS precisa exercer essa relação educativa, relação talvez
até política junto com as instituições com a qual a gente se relaciona. Às vezes,
a violência vem como uma espécie de julgamento em que a classe social é
diferenciada. Se chega aqui uma situação de violência contra uma mulher ou
criança de uma família que tem uma condição financeira, uma situação na
sociedade diferenciada, não vai se tirar a guarda dessa criança, não vai se tirar
da família. Quando é uma família pobre, quando é uma família que, talvez, já é
conhecida no município, o olhar pra essa família – já se pensa: “meu Deus,
essa criança, nessa casa, o que vai ser dessa criança?”, já se pensa até na
possibilidade de guarda… Então, a violência, embora a gente saiba que
violência contra a mulher não é só pra classes inferiores, que tenha
dificuldades financeiras, a gente olha de uma maneira diferente, as
informações, talvez, que a gente aponta dessa família na relação com o
Conselho Tutelar, com a delegacia, com o próprio Ministério Público ou o Poder
Judiciário, pode ter interferência disso também. Então é uma coisa que a gente
precisa apontar, porque a família pobre é aquela família fracassada, a violência
é uma coisa naturalizada, um estigma, a gente já acha que essa criança não
vai tá protegida. Na família rica, talvez não; ela tem acesso a escola, tem
acesso a isso… e a gente julga de uma maneira diferente. Então são questões
que a gente precisa rever nosso instrumento e até a nossa análise nessa
relação com classe social, gênero, raça. Se a gente pensar que tem um
tratamento diferente, um entendimento diferente, até a forma de se articular, se
a gente for pensar que dependendo da classe social a taxa de raça/cor é
diferente, então quão racista a gente não tá sendo no nosso entendimento? Se
trouxer isso pra uma vigilância socioassistencial você já vai ter um dado falho,
diferente. Não quer dizer que o CREAS faça esse tipo de apontamento a uma
família diferente, mas num âmbito maior é um grande risco de acontecer. São
dados que podem chamar a atenção da gestão e da vigilância
[socioassistencial]. É para além do número, mas para ver se temos atitudes
diferenciadas com quem tem uma condição inferior.
Entra um pouco a questão de ser um município pequeno, de poucos
habitantes, onde muitos profissionais inseridos na rede, incluindo nos
órgãos de defesa de direitos, por nascerem e conviverem aqui pode ter
muitas coisas abafadas nesse sentido, e um tratamento diferenciado entre
as famílias, dependendo de como for, da classe social. Dessa questão de
uma elite às vezes fazer uma denúncia e “ah, mas não vamos encaminhar pro
CREAS, não vamos fazer mais nada pra não expor a família”. Talvez haja
esse filtro da violência ser encaminhada pro CREAS quando é caso
relacionado à pobreza. O que é uma corrupção, que é uma violência
também. A desigualdade já é violenta.
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não tem força nem pra falar, pra pedir um socorro, nem pra dar esse grito pro
vizinho ouvir. Ela tá sufocada, então ela precisa desse suporte. Agora, um
exemplo de um casal brigando, quebrando tudo, os dois arranhados, daí os
vizinhos chamam a polícia, eles tinham acabado de ter uma relação sexual. O
cara tudo nos amores. “Não, que isso? Imagina”. Tem umas coisas assim,
patológico. Mas, não tem como entender que foge do nosso conceito, nosso
padrão e tudo mais. Então, nós vemos que tem situações que são uma reação.
Nada justifica uma violência física, mas, talvez, a junção desse casal aí já é
uma projeção de infância, que talvez essa mulher é uma mãe castradora, que
fere a masculinidade do homem, no sentido “me bate se você for homem”.
Masculinidade do machismo, a gente vive numa cultura machista e tem vezes
que muitas mulheres castradoras são machistas também, pra ir lá na ferida.
Em brincadeiras de crianças tem a fala “se você não fizer isso, você não é
homem”, se sai chorando, “você é mulherzinha”. Então a mulher, às vezes, usa
o próprio movimento machista pra ferir o homem. Então, essa frase, não
achamos que é de uma mulher totalmente vítima, “bate se você for homem”.
Não estamos falando que ela pediu pra apanhar, mas assim, hoje em dia tem
mudado algumas coisas – ela sabe muito bem as armas do emocional, agora,
o homem não tem muito essa habilidade, então acaba sabendo só da força
física e tudo mais. Num ambiente cultural, o homem foi educado a ter o falo, e
às vezes o homem, pra se sentir no poder, ele expõe seu poder. Num ambiente
de trabalho, um homem assim violento, ele humilha na frente pra todo mundo e
não vê. Agora, a mulher é muito sutil. Às vezes, ela vai fazendo algo que só a
pessoa percebe e, na hora que a pessoa espana, ninguém sabe. Outra parte
do CREAS discorda desse ponto de vista, que se assemelha ao momento
da discordância em um parágrafo anterior.
Culturalmente falando, as pessoas não veem que há situações gatilho,
só vê a vítima e as pessoas não aceita o atendimento com os homens. Vamos
fazer uma comparação: o alcoolismo. É cultural muitas vezes o homem bebum.
Tipo assim… que cai. E é muito vergonhoso pra mulher. Às vezes ela tem até
um pouco de resistência do atendimento porque tá assumindo que ela bebe.
Esses dias, uma pessoa próxima, mulher, bebeu, caiu na calçada e ficou lá,
toda drogada. E às vezes pro homem isso acontece e as pessoas vão até
ajudar. Mas, nesse caso, tiraram foto e começou a jogar, mostrando a mulher,
porque é feio pra mulher assumir algo nesse sentido. E na violência também,
às vezes, é cultural a mulher ser a vítima, mas é vergonhoso pro homem falar
que ele sofre violência. Essa é uma comparação um pouco meio cultural: é
vergonhoso pra mulher assumir uma dependência e é vergonhoso pro homem
assumir que ele tem violência. Tem muita coisa velada aí.
Quando fala sobre a Maria da Penha, eles falam “mas tem que ter a Lei
do Zé da Penha”. Só que eles não têm o entendimento e a gente tem que
trabalhar isso com eles, que o homem também tem o direito de registrar um
boletim de ocorrência, mas eles não fazem. O machismo provoca violência,
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tanto que a gente atende muitos casos por violência doméstica, mas ele
também funciona porque esses homens são muito frágeis.
Todo funcionamento agressivo tem as vítimas diretas e indiretas,
por exemplo, as crianças que tem que ver seu pai não cuidador e mais
agressivo com a mãe. Aí a criança vai reproduzir a violência. Por mais que
a violência não atinja diretamente as crianças, tá sendo a referência.
Mas existe a violência de gênero. Tem um caso em que a familiar
fala assim: “olha o irmão dela. Eles viveram no mesmo ambiente, teve o
mesmo tratamento, e olha como que ele tá. Ele trabalha, se esforça, ele
não faz nada errado e ela faz”. Só que, sim, eles viveram no mesmo
ambiente, só que ela não foi tratada do mesmo jeito. Ela tinha todo um
funcionamento que a mãe foi embora e projetou nela, dela ser a mulher
inútil, de ela não prestar, de ela ter que limpar a casa, dela ter que cuidar
dos irmãos… Então existe uma diferença enorme, gritante de gênero. É
lógico que o irmão também deve ter sofrido violência, mas ele tá numa
posição privilegiada por ser homem. Tem um certo privilégio de coisas
que ela sofre e que ele, por ser homem, não sofreu.
A violência é sistêmica.
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gente não precisaria de médico. A gente poderia ter nossos filhos em casa, e
os médicos não ganhariam dinheiro.
Então, a falta do conhecimento, de tudo: de violência, dos seus
direitos… Tem uma lei federal que garante à mulher, à parturiente, a expressar-
se durante o parto. É um absurdo. Tem que ter uma lei que garanta nosso
direito de gritar e de sofrer, pra ter nossos filhos. As mulheres não sabem
disso, porque o conhecimento liberta. A partir do momento que as mulheres
conhecem os seus direitos e o que são as violências e quais são as violências,
elas podem interromper essas barreiras. Assim como as crianças aprenderem
o que é o corpo, quem pode tocar nele; nós não teríamos tantas crianças
violentadas. Quando voltamos pro conhecimento, paramos de sofrer por aquilo.
No caso da criança, a questão nem é só o conhecimento, a criança não
tem o poder, não tem força, é um adulto contra ela – uma das características
da violência é uma relação de desigualdade. Alguém que tem muito poder se
impõe sobre você. E a criança, que poder que ela tem? De falar não pra um
adulto? Nenhuma. Mas talvez se ela tivesse tido a orientação de se algo
acontecer de diferente a quem, quais lugares pedir ajuda... O patriarcado não
quer, em seu sistema, que tenhamos conhecimento. A hora que a gente tiver
conhecimento, a gente como corpo coletivo feminino, o patriarcado cai.
Mulheres, por exemplo, são humilhadas perante juízes. Ou precisam de
uma lei, uma política pública, precisa criar uma lei. As mulheres não
compreenderam que elas precisam ocupar os espaços de poder e decisão…
Elas precisam conseguir estudar, fazer vestibular, e ocupar esses espaços. Ser
juíza, ser promotora, ser médica… Ser vereadora, ser prefeita, ser
governadora... Porque enquanto num ocuparem esses lugares, elas vão
depender dos homens pra tomar decisão pra elas. E eles não vão tomar. Às
vezes esses homens se protegem.
Olha como que é sintomático o tanto que nossa cidade é machista,
patriarcal: nós nunca tivemos tantas candidatas como nesse pleito, e foram tão
pouco votadas. Algumas de nós fizemos uma campanha extensa pra que a
gente votasse em mulheres. Isso é muito maluco, porque as mulheres não
votam nas mulheres! A única candidata que foi votada e eleita, digamos que
não tem uma representatividade como feminino. Na verdade, ela é sujeita ao
patriarcado, sempre. Cheia de boas intenções, mas ela é sujeita ao
patriarcado, não tem algumas noções, nem dos direitos da mulher. Então, isso
é muito maluco. O tanto que a gente tinha de mulheres de todos os tipos de
pensamento, de várias vertentes, de vários partidos – então, as mulheres não
votam nas mulheres. Elas não sabem que a gente pode e deve ocupar lugares
de poder.
Enquanto conversamos, vamos pensando e o que falamos, nos
atravessa, também nos identificamos com algumas coisas. É fato, não
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Então essas coisas que a gente acha que é pequeno, do comichão que
dá na gente e a gente não se cala, em alguns momentos, ou que a gente se
retira pra não dar uma merda maior, isso tem consequência, isso gera algumas
coisas. A gente precisa tá ancorado nisso sempre. Nenhum passo atrás. E a
gente tem que tá pronto porque a gente vai tomar conta desse futuro.
Fizemos muita coisa. A gente acolheu muita gente, a gente ajudou muita
gente, às vezes, sem perceber. Tem uma história, quando a gente tava
naquele enrosco de ir parando, cada um seguindo, de quando a gente foi
convidado pra fazer uma intervenção, uma palestra no dia da mulher na OAB.
Naquele dia, uma pessoa, quando tava tocando a música… Vimos o rosto dela
se transformando. Como se fosse uma iluminação, assim. E aí ela veio falar
depois, particular, e pediu: “deixa eu levar essa letra de música?”. O papel.
Pouco tempo depois ela estava separada. Então, é uma coisa que a gente
provocou, a libertação dela. Hoje nas redes sociais ela se mostra muito mais
fortalecida como pessoa, como profissional, do que ela era. Até o jeito dela
falar mudou. Foi dado voz a ela, perdeu o medo. A voz… Ela tinha uma voz
murchinha, abafadinha, muito delicadinha... e ela mudou, o jeito dela falar
mudou. Isso é uma das coisas grandes que a gente fez. Porque, olha,
transformar uma pessoa... ajudar a libertar uma pessoa é de uma
grandiosidade tão imensa que valeu tudo que a gente fez.
Consideramos que a gente despertou e ajudou a despertar. Fazer ter
coragem de falar, e se reconhecer. Nós demos voz. A tudo que as mulheres
queriam ouvir e falar, e houve acolhimento.
Nós fomos em vários lugares. Fomos em uma comunidade que trata
HIV/AIDS, na praça, na UNESP, na OAB, fomos até pra outro Estado.
Pegamos todo tipo de público, todas as faixas etárias, todo tipo de mulheres,
toda a composição de uma cadeia de trabalhadoras, de mulheres do lar…
casadas, solteiras. Na primeira intervenção nossa, a gente pegou muitos
homens, a gente parava os meninos na porta da UNESP pra entregar o
machistômetro pra eles. Um monte de menino levou um susto: “mas eu faço
isso!”. Vimos uma postagem no Facebook da Manuela D´Ávila, mandamos uma
mensagem no Messenger, a equipe dela respondeu e disponibilizou pra gente,
transcrevemos, imprimimos, cortamos…
Participar do Coletivo nos ajudou muito a despertar pra algumas
questões que a gente não tava tão sensível, e isso ajudou no nosso campo
profissional, em atendimentos com mulheres. Temos mulheres que têm
depressão, pânico, tudo quanto é coisa dentro de saúde mental, e podemos
dizer que 90% sofreu algum tipo de abuso, algum tipo de violência. Ficamos
mais sensíveis, até pra mostrar pra elas: “você percebe o que você passou,
que isso é violência?”. Ajudou a perceber quando eram coisas sutis, é um
aprendizado valoroso.
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Quando uma de nós tava pra defender o doutorado, houve uma situação
de estar sob coorientação de um homem abusivo. O Coletivo ajudou no
processo inteiro de mudança de orientação, defesa da tese, acolhimento – sem
o qual não se sabe o que poderia ter acontecido. Se esse doutorado
aconteceu, foi por força do Coletivo. Soubemos agora que a esposa desse
professor abusivo se separou dele, conseguiu ter voz pra sair fora. Ficamos
felizes por ela porque é muito difícil se livrar de relações abusivas, e a relação
dela era muito complicada, porque não era só conjugal, era acadêmica
também. Eles tinham muita coisa juntos, então era muito difícil pra ela dar o
passo que ela deu.
Para fazer o que fizemos, no Coletivo, o primeiro material que a gente
teve foi a vontade. Nem só vontade, era uma ânsia, uma fremência. A gente
tinha uma urgência. Essa urgência foi anterior ao despertar total. A gente tinha
urgência de despertar.
A gente começou pensando em fazer alguma coisa para os outros, e a
gente usou… a gente usou nós. Nossos corpos, nossas vozes, e quanto a
coisas materiais, foi o mínimo possível. A gente usou papel, imaginação… e
nós, a nossa voz. A nossa voz, e a nossa vontade e o nosso desejo de fazer. E
aí a gente começou chamando, esse desejo foi se multiplicando e foi
contaminando.
As pessoas ficavam curiosas pra saber o que era e acabavam
perguntando. E aí quem perguntava foi querendo saber mais e, assim, foi
entrando. Rede social ajudou muito, porque era algo que não tinha custo pra
nós enquanto voluntárias desse Coletivo.
A gente não pode desprezar, né, o bolo de chocolate que tinha em todas
as reuniões da gente! E o chazinho!
Foi importante também os apoios pelo caminho, as portas que as
instituições e eventos abriram pra gente. Isso trouxe pra gente outros
momentos. Esses momentos multiplicaram-se em outros. Depois, cada uma de
nós, na nossa atuação profissional, foi falando do Coletivo em alguns lugares.
Essa sementinha foi plantada em vários lugares e em vários momentos da vida
de pessoas. O financeiro foi o mínimo de coisas porque foi o nosso trabalho
braçal, e antes de ajudar as pessoas, a gente se ajudou. Então enquanto
Coletivo a gente se abriu, uma pra outra, contou as nossas coisas, cada uma
foi falando a respeito dos assédios… A partir também do machistômetro
passamos a conhecer as diferentes violências, passamos a estudar um pouco
mais a respeito, sobre as histórias africanas, a abayomi, fizemos danças
folclóricas... Então não foi só um processo da questão de violência. Foi um
acolher. Se pensarmos em como foi, fizemos piquenique, coisas que remetem
à infância. Então mesmo na dor, a gente conseguiu esse alento em piquenique,
rodas, músicas.
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