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Segunda Guerra Mundial e o Movimento Paralímpico

Juliana Gragnani
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-58346138

Ivor Elmes, um ex-policial palestino ferido em 1947, em sua cadeira de rodas enquanto lança um dardo nos Jogos de
Stoke Mandeville, em 1953

O que a Segunda Guerra Mundial tem a ver com a Paralimpíada? Bem… Tudo.
Antes da Segunda Guerra Mundial, quando os soldados voltavam feridos da guerra, seu
destino era desventuroso. Pessoas com lesões na medula espinhal muitas vezes morriam dentro de
um ano após sofrerem os danos, sem terem tido a esperança de uma recuperação.
As pessoas eram colocadas num leito de hospital, atrás de cortinas fechadas e deixadas ali
para perecer. Os soldados com lesões na medula espinhal morriam por lesões por pressão que
levavam a choques sépticos ou falência dos rins - um reflexo do pouco conhecimento médico da
época. Além disso, antes da Primeira Guerra Mundial, o Reino Unido não estava preparado para a
quantidade de leitos de hospitais de que precisaria com um conflito daquele calibre. Com uma alta
mortalidade, médicos tampouco tinham oportunidade para aprender como tratar essas lesões.
Um médico britânico, no entanto, adquiriu experiência durante a Primeira Guerra Mundial. Ao
lado de outros médicos, o neurologista George Riddoch defendeu que soldados com lesões
ortopédicas ou na espinha deveriam receber tratamento especializado, em unidades especiais
criadas só para eles. A Segunda Guerra Mundial exerceu um enorme papel na criação dos Jogos
Paralímpicos. Mas, indiretamente, a Primeira Guerra Mundial também foi importante. Riddoch
identificou problemas no tratamento de pacientes durante a Primeira Guerra e não queria repeti-los
na Segunda.
Com o advento da Segunda Guerra Mundial, o mundo viu muitos soldados e civis feridos por
bala ou estilhaços de balas. Mas o conhecimento médico havia avançado um pouco. A descoberta
dos antibióticos sulfanilamida e penicilina deu sobrevida a quem, em outras ocasiões, teria morrido.
Além disso, desta vez, o Reino Unido tomou medidas para se preparar militarmente, mas também do
ponto de vista médico, liberando leitos para tratar os feridos. Enquanto isso, Riddoch tentava
estabelecer unidades especializadas. A ele é atribuída uma decisão que mudaria os rumos da
reabilitação dos pacientes com lesões na medula espinhal - e o subsequente nascimento da
Paralimpíada.
Stoke Mandeville
Em 1943, Riddoch indicou um experiente neurologista chamado Ludwig Guttmann para
chefiar um novo centro nacional para lesões espinhais no Reino Unido, o Hospital Stoke Mandeville,
na cidade de Aylesbury, a 100 km de Londres. Nascido na Alemanha em 1899, Guttmann havia
fugido da opressão nazista contra a comunidade judaica e emigrado para Oxford, no Reino Unido,
em 1939. Ali, ele trabalhou em uma enfermaria militar inglesa para ferimentos na cabeça. Guttmann
aceitou o convite, mas pediu que pudesse tocar o centro da maneira como ele quisesse. O hospital
começou como um local de tratamento para militares ingleses que retornavam da Segunda Guerra
Mundial com ferimentos.

A equipe britânica deixando o Aeroporto Heathrow de Londres para os Jogos Internacionais de Stoke Mandeville em Israel, em
1968. Ludwig Guttmann, presidente e fundador dos jogos, é retratado com Karen Hill, de Mansfield, de 18 anos

O neurologista primeiro implementou o procedimento de virar pacientes a cada duas horas


para que eles não tivessem mais lesões por pressão. Depois, introduziu a atividade física como um
caminho fundamental para a reabilitação dos pacientes. Ele tinha três argumentos para tanto: a
atividade física por meio do esporte era uma maneira natural para fortalecer o tronco e os membros
superiores de uma pessoa paraplégica, por exemplo, que precisaria estar forte para mover suas
cadeiras de roda. Em segundo lugar, o esporte era bom para o bem-estar físico e mental dos
pacientes. "Se não fosse divertido, não iria para frente". Por último, o esporte era um caminho para a
integração social.
O primeiro esporte eleito por Guttmann ilustra bem essa última ideia. Era tiro com arco. "Se
um paciente fosse para o Stoke Mandeville e praticasse tiro com arco, ele poderia voltar para casa e
se inscrever em um clube para pessoas sem deficiência, competindo da mesma distância que elas".
As pessoas foram encorajadas a experimentar também atividades como polo em cadeira de rodas e
basquete em cadeira de rodas.
Em 1948, Guttmann organizou uma competição para 16 homens e mulheres com algum tipo
de lesão. Foram os Jogos Stoke Mandeville para atletas em cadeiras de rodas. E a competição foi
organizada para coincidir com a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de 1948 em Londres. Na
época, o que o neurologista estava fazendo era lutar contra um establishment que não estava
interessado em deficiência. Até então, o esporte já tinha sido usado como forma de reabilitação em
pequenos bolsões. Na Primeira Guerra Mundial, um centro de reabilitação na Inglaterra focou no uso
da atividade física para veteranos deficientes visuais. Em 1932, nasceu também no Reino Unido a
Sociedade de Golfistas com Um Braço. Mas nenhuma dessas iniciativas eram um esforço
concentrado como o de Guttmann, que depois virou competições que viajaram para além de um só
local.

Legenda da foto, A equipe de basquete dos EUA marca contra a Holanda nos Jogos Internacionais de Stoke
Mandeville em 30 de julho de 1955

No segundo Jogos Stoke Mandeville, em 1949, o número de atletas cresceu para 37. Além
de tiro com arco, a competição incluiu também o netball, um jogo parecido com basquete. Naqueles
jogos, Guttmann disse que um dia haveria Jogos Olímpicos para pessoas com deficiência. É algo
incrível de se dizer quando só havia 37 pessoas competindo. Ele ressalta, no entanto, que nada
disso seria possível sem a personalidade dogmática e até ditatorial do médico.
E, claro, sem o engajamento, esforço e dedicação dos atletas. E também de uma mulher
bastante importante - Joan Scruton, que começou como assistente de Guttmann, mas se tornou seu
braço direito e, eventualmente, secretária-geral dos jogos entre 1975 e 1982.
A visão de Guttmann, como sabemos, foi concretizada. A cada ano, novos esportes eram
adicionados à competição. A primeira equipe de fora veio de um centro de reabilitação na Holanda,
em 1952, dando à competição um caráter internacional. O neurologista viajava pelo mundo para
treinar médicos como neurocirurgiões, e tentava divulgar suas atividades para onde ia. Também
desafiava os países a levarem suas próprias equipes de atletas com deficiência para os jogos em
Stoke Mandeville.
Em 1959, quando estava em uma conferência na Itália, conheceu o diretor de um centro de
reabilitação e o convenceu a sediar os jogos em Roma - onde os Jogos Olímpicos aconteceriam no
ano seguinte. E, assim, em 1960, os jogos para atletas com deficiência aconteceram junto da
Olimpíada de Roma. Mas houve problemas. A vila dos atletas não era totalmente acessível para
cadeiras de rodas, e militares tiveram de carregar atletas para cima e para baixo de escadas. À
medida que o movimento crescia, a acessibilidade também ia sendo melhorada.
De qualquer forma, aquele havia sido o início oficial da Paralimpíada - que, aliás, se
chamava assim como uma referência a "paraplégicos" e porque Guttmann constantemente fazia
referência aos Jogos Olímpicos. Em 1976, com a inclusão de outras deficiências, o prefixo "para"
passou a simbolizar "paralelos". Hoje, Paralimpíada significa jogos olímpicos paralelos. E não é a
primeira vez que são sediados no Japão.
Japão
Um cirurgião ortopédico japonês chamado Yutaka Nakamura viajou para o Reino Unido nos
anos 1950 para visitar Guttmann e os jogos de Stoke Mandeville. No Japão, o conceito de
reabilitação ainda não havia se firmado. Guttmann convenceu Nakamura que ele deveria tentar
sediar os jogos no Japão. De volta a seu país, Nakamura organizou seus próprios jogos, mas foi
recebido com críticas de quem achava ruim expor pessoas com deficiência.
Ele insistiu na ideia. Em 1962, Nakamura bancou uma viagem de dois atletas japoneses para
participar dos Jogos de Stoke Mandeville. A notícia de que participantes do Japão haviam viajado de
tão longe para participar dos jogos eletrizou a imprensa britânica e, eventualmente, a imprensa
global. Assim, graças a seus esforços, em 1964, os Jogos Paralímpicos foram realizados em Tóquio.

Legenda da foto, Petrucio Ferreira dos Santos conquista o ouro nos 100 metros rasos na Paralimpíada de
Tóquio em 2021; há 4,4 mil atletas competindo neste ano

A competição foi se expandindo nos próximos anos, com mais grupos de deficientes e até
Jogos de inverno, realizados pela primeira vez em 1976, na Suécia. Mas, em seus anos iniciais, a
Paralimpíada era muito "medicalizada". Os médicos decidiam quem ia participar e como seriam
classificados a partir das lesões dos pacientes. Com mais atletas participando nos anos 1970 e 1980,
há pressão por classificações menos médicas. Eles reivindicaram esportes classificados mais por
sua habilidade do que pelo seu nível de deficiência.
Em 1976, nos Jogos Paralímpicos em Toronto, no Canadá, deficiências físicas originadas de
amputações e atletas com deficiência visual participaram pela primeira vez - antes disso, os jogos
ainda eram para atletas que usavam cadeiras de rodas.
Mais de 1.500 atletas de 40 países participaram dos jogos. Foi neste campeonato que o
Brasil conquistou sua primeira medalha, uma prata na bocha na grama. Guttmann, que faleceu em
1980, continuou seu trabalho no hospital, mas seguiu sendo também uma figura chave para os
Jogos. Tornou-se presidente da Federação Internacional de Jogos Stoke Mandeville e, anos mais
tarde, foi condecorado cavaleiro pela Rainha.
Os jogos só foram crescendo, com mais atletas, mais modalidades e mais países
participando. Também cresceu o número de público nos locais de competição. E nesse ano, de volta
a Tóquio, foram 22 modalidades, com duas estreias: badminton e taekwondo, e 4,4 mil atletas.

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