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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

LIANA BATISTA

PRECARIZAÇÃO NO HOME OFFICE: CONDIÇÕES DE TRABALHO EM UM


CALL CENTER NA REGIÃO METROPOLITANA DE NATAL-RN EM TEMPOS DE
PANDEMIA

NATAL – RN
2020
LIANA BATISTA

PRECARIZAÇÃO NO HOME OFFICE: CONDIÇÕES DE TRABALHO EM UM


CALL CENTER NA REGIÃO METROPOLITANA DE NATAL-RN EM TEMPOS DE
PANDEMIA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio grande do Norte
(PPGCS/UFRN), como requisito à obtenção do
grau de Mestre. Linha de pesquisa: Dinâmicas e
Práticas Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Anaxsuell Fernando da Silva

NATAL – RN
2020
LIANA BATISTA

PRECARIZAÇÃO NO HOME OFFICE: CONDIÇÕES DE TRABALHO EM UM


CALL CENTER NA REGIÃO METROPOLITANA DE NATAL-RN EM TEMPOS DE
PANDEMIA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio grande do Norte
(PPGCS/UFRN), como requisito à obtenção do
grau de Mestre. Linha de pesquisa: Dinâmicas e
Práticas Sociais.

BANCA EXAMINADORA

Apresentada em: ______/______/______

___________________________________________________________
Prof. Dr. Anaxsuell Fernando da Silva
(Unila / PPGCS-UFRN)

___________________________________________________________
Profª. Drª. Bárbara Geraldo de Castro
(Unicamp)

___________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Victor Leite Lopes
(PPGAS/UFRN)

___________________________________________________________
Profª. Dr. Jose Antônio Spineli Lindozo
(UFRN)
Ao amigo C.
que encontrei em uma viagem errante
e me deu de presente o caminho certo
AGRADECIMENTOS

Muito me orgulha demonstrar nessa sessão que o processo de construção do trabalho, por
si só, serve de antítese à retórica individualizante, falsamente meritocrática do neoliberalismo.
Essa pesquisa não é fruto apenas das horas intermináveis em que li, estudei, refleti e escrevi
sobre alguns dos impactos que o mundo do trabalho sofreu com o advento da pandemia de
covid-19. Ela é fruto direto das relações sociais em que estou inserida, dos laços de respeito
profissional, admiração e afeto que venho construindo desde a minha chegada na graduação
do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte no ano de 2015.
Essa pesquisa não teria sido desenvolvida sem a atenção, a disponibilidade, a colaboração e a
ajuda generosa de pessoas que reservaram algo do seu tempo e dos seus conhecimentos para
me iluminar em algum ponto ao longo de todo o caminho do mestrado. Penso que nisso se
traduz um dos antídotos para o neoliberalismo: ninguém é self made.
Agradeço, imensamente, a Mikelly Gomes da Silva e Ana Patrícia Dias Sales, pessoas
com quem travei as primeiras conversas sobre possibilidades para essa pesquisa, suas
observações preciosas sobre os caminhos metodológicos que eu precisaria percorrer foram
decisivas para o delineamento do trabalho.
A Cesar Sanson pelos longos e-mails com sugestões e indicações de leituras e, mais
ainda, por sua posterior participação na fase de qualificação dessa dissertação. O ponto de
vista mais preciso de um especialista da Sociologia do Trabalho foi importante para que eu
adotasse uma visão mais geral sobre os processos trabalhistas ocorridos desde a década de
1970, inclusive corrigindo erros e imprecisões do trabalho.
A Paulo Victor Leite Lopes, tão essencial em toda a trajetória dessa pesquisa, pelas
conversas e áudios trocados, sugestões de leituras, matérias enviadas, colocações na fase de
qualificação, nova participação na banca de defesa e por todas as trocas que não podem ser
mensuradas no campo circunscrito das palavras.
A todas as trabalhadoras e trabalhadores do call center que se dispuseram a compartilhar
experiências comigo, algumas vezes em tom de denúncia e tantas outras em tom de desabafo
e desespero sem eco. Uma angústia que revela o clamor por um outro tipo de vida, algo que
eu espero ter sido capaz de retratar nessa pesquisa.
Aos colegas de mestrado Jaildson Cavalcanti e Alusk Maciel que, de tão abertos e
acolhedores, ajudaram a suavizar as agruras que percorri no mestrado.
Ao meu orientador Prof. Dr. Anaxsuell Fernando da Silva que encontrei com o trabalho
já iniciado, mas que foi determinante na correção da rota ainda claudicante da pesquisa. Sua
paciência comigo e compromisso profissional foram, em grande medida, responsáveis por me
oferecer a segurança necessária ao desenvolvimento e conclusão desse estudo.
Esse trabalho não teria sido realizado sem o empenho e a generosidade da pessoa aqui
nomeada “Cazé”, responsável pela construção da ponte que me levou ao objeto maior desta
pesquisa. Pela parceria que me garantiu não só concluir o mestrado, mas também adentrar
uma nova etapa no meu processo de desenvolvimento intelectual e humano, profundamente
agradeço.
À Prof. Drª. Bárbara Geraldo de Castro e ao Profª. Dr. Jose Antônio Spineli Lindozo pela
pronta disponibilidade em aceitarem o convite para avaliar esta pesquisa na etapa final de
defesa da dissertação.
Finalmente, presto reconhecimento ao papel que a Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES) exerceu financiando esse estudo. Sem esse investimento,
eu não poderia ter me dedicado exclusivamente ao projeto. Ressalto a importância da
continuidade do financiamento de pesquisas em ciências humanas para que seja possível
conhecer as especificidades da realidade brasileira e, quem sabe, avançar na construção de um
outro projeto de país.
Por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo?
A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar.
Cair, cair, cair.
Então por que estamos grilados agora com a queda?
Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa
para construir paraquedas coloridos.
Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado,
mas como o cosmos onde a gente pode despencar
em paraquedas coloridos.

Ideias para adiar o fim do mundo


Ailton Krenak
RESUMO

A emergência da Covid-19 declarada pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS)


em março de 2020, alterou as dinâmicas sociais pelo mundo e, em especial, àquelas
relacionadas ao trabalho. A adoção do trabalho remoto (conhecido como home office no
Brasil) surgiu como uma saída para a crise, embora trate-se de um modelo de trabalho
construído a partir do ethos das classes dominantes. Na região metropolitana de Natal-RN,
funcionárias de uma empresa de call center passaram a trabalhar em casa, o que proporcionou
a proteção da sua saúde, mas também a entrada de sistemas de controle de produtividade e
vigilância da empregadora nos espaços íntimos das funcionárias. Esses sistemas são fundados
em bases tayloristas e panópticas, expressões da racionalidade neoliberal que pretende
colonizar as subjetividades das trabalhadoras. Pensada a partir da categoria precarização do
trabalho, a pesquisa se propõe a investigar as experiências das trabalhadoras frente às
disparidades dos ethos das classes envolvidas na construção imagética e adoção do home
office e a tentativa de colonização de suas subjetividades, desde a fase anterior à pandemia até
a implantação do home office. Trata-se de um estudo de caso feito com abordagem qualitativa,
realizado por meio de entrevistas semi estruturadas com 9 mulheres e 4 homens que
trabalham nesse call center. Esse processo será investigado com a interlocução teórica de
Ricardo Antunes e Ruy Braga (2009), Michel Foulcault (1987), Antonio Gramsci (1999, 2001,
2002, 2007a, 2007b), Ursula Huws (2017), Pierre Dardot e Christian Laval (2016), Suely
Rolnik (2018), Ailton Krenak (2019), Kethleen Millar (2017), Judith Butler (2018), Bárbara
Castro (2013), Veronica Gago (2018), María Alejandra Ciuffolini (2016), entre outros autores.

Palavras-chave: Precarização - home office - call center - pandemia - trabalho remoto -


Covid-19
ABSTRACT

The emergence of Covid-19, declared a pandemic by the World Health Organization (WHO)
in March 2020, has altered the social dynamics around the world and, in particular, those
related to labor. The implementation of remote working (known as “home office” in Brazil)
emerged as a way out of the crisis, although it is a labor model built on the ethos of the ruling
classes. In the metropolitan region of Natal-RN, employees of a call center company started
working from home, which provided the protection of their health, but also allowed the entry
of productivity and surveillance control systems from the employer in the intimate spaces of
the employees. These systems are founded on taylorist and panoptic bases, expression of the
neoliberal rationality that intends to colonize workers subjectivities. Designed from the
precarious work category, this research proposes to study workers experiences in the face of
ethos disparities of the classes involved in the “home office” imagery building and
implementation as well as the attempt to colonize their subjectivities, from the pre-pandemic
phase to remote working. This is a case study carried out with a qualitative approach,
performed through semi-structured interviews with 9 women and 4 men who work in this call
center. This process will be studied seeking a theoretical dialogue with Ricardo Antunes and
Ruy Braga (2009), Michel Foulcault (1987), Antonio Gramsci (1999, 2001, 2002, 2007a,
2007b), Ursula Huws (2017), Pierre Dardot e Christian Laval (2016), Suely Rolnik (2018),
Ailton Krenak (2019), Kethleen Millar (2017), Judith Butler (2018), Bárbara Castro (2013),
Veronica Gago (2018), María Alejandra Ciuffolini (2016), among other authors.

Keywords: Precariousness - home office - call center - pandemic - remote work - Covid-19
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................12
1 – A CONSTRUÇÃO DA PESQUISA .................................................................................. 22
2 – REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA, TECNOLOGIA E HOME OFFICE: A
PRECARIZAÇÃO A CAMINHO DE CASA. .........................................................................32
2.1 – O PANORAMA TEÓRICO DA PRECARIZAÇÃO ................................................32
2.2 – O HOME OFFICE NA PANDEMIA: A PRECARIZAÇÃO A CAMINHO DE
CASA. .......................................................................................................................................42
3 – O CENÁRIO LABORAL DO CALL CENTER: O ENCONTRO COM OS SUJEITOS .. 51
3.1 – A CENA LABORAL DO CALL CENTER ............................................................... 51
3.2 – SISTEMAS DE VIGILÂNCIA E CONTROLE DA PRODUÇÃO: OS
INSTRUMENTOS DE COLONIZAÇÃO DAS SUBJETIVIDADES .................................... 74
Sistemas de vigilância .............................................................................................. 74
Sistemas de controle da produção ............................................................................ 88
3.3 – AS REPERCUSSÕES DA PANDEMIA .................................................................. 93
4 – A CASA VIRA CENÁRIO: APONTAMENTOS SOBRE A EXPERIÊNCIA DO HOME
OFFICE E A TENTATIVA DE COLONIZAÇÃO DE SUBJETIVIDADES EM SISTEMAS
DE PRODUÇÃO E VIGILÂNCIA ........................................................................................105
4.1 – UM OUTRO ETHOS PARA O HOME OFFICE ................................................... 105
4.2 – HOME OFFICE COMO AVANÇO DE UMA NOVA ETAPA DE EXPLORAÇÃO
NEOLIBERAL ....................................................................................................................... 123
5 – A CENTRALIDADE DO PAPEL DA SUBJETIVIDADE NA DISPUTA POLÍTICA:
DESCOLONIZAR, RESSIGNIFICAR, RECONSTRUIR .................................................... 170
5. 1 – A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO É O SINTOMA DA VIDA
PRECÁRIA ............................................................................................................................ 170
5.2 – DESCOLONIZAR A SUBJETIVIDADE PARA CONSTRUIR A COMUNIDADE
POLÍTICA .............................................................................................................................. 180
Sentidos da subversão .............................................................................................185
Um outro fazer coletivo ..........................................................................................193
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 208
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: .................................................................................. 217

11
INTRODUÇÃO

O advento da pandemia de Covid-19 que foi decretada pela Organização Mundial de


saúde (OMS) no dia 11 de março e oficializada no Brasil em 20 de março de 2020, instaura
uma situação de calamidade de origem sanitária, que, gradativamente, vai revelando todos os
aspectos das brutais desigualdades sociais e econômicas fundantes da sociedade brasileira e
em que ainda vivem milhares de indivíduos.
Inicialmente encapsulada nos segmentos sociais economicamente elevados que se
infectaram em viagens internacionais, a Covid-19 logo se espalhou pelas cidades e acabou
por atingir todas as classes, sem distinção. Ato contínuo, a doença foi se alastrando até atingir
regiões em situação de maior vulnerabilidade, indefesas à exposição da doença porque
completamente desassistidas por políticas públicas: favelas, periferias, populações ribeirinhas,
comunidades quilombolas, populações em situação de rua, cidades interioranas e territórios
indígenas tem sido, desde então, desproporcionalmente atingidos pela pandemia.
Os maiores exemplos das fragilidades das populações subalternizadas e economicamente
vulneráveis expostas pela pandemia são a falta de saneamento básico dos lugares onde
moram, as restrições de acesso ao sistema de saúde, de serviços e de emprego aos quais estão
submetidas, as condições precárias de moradia e transporte e falta de acesso a produtos
básicos de higiene.
As famílias de trabalhadoras e trabalhadores assalariados ou na via da informalidade que
já sofriam com as agruras da luta diária pela sobrevivência têm conhecido novos níveis de
penúria e se defrontado com adversidades, até então inéditas, apresentadas de maneira
lancinante pela pandemia. Sem nenhuma proibição às demissões no período, muitas
trabalhadoras e trabalhadores perderam seus empregos em um momento de recessão em que
a oferta de vagas de trabalho é restrita.
Para agravar esse quadro, as pessoas demitidas durante a pandemia são privadas da
alternativa contingente do mercado de trabalho informal, haja vista o fechamento de centros
comerciais, bares, restaurantes e serviços não essenciais. E mesmo que se arrisquem
buscando trabalho no mercado informal, a própria diminuição de circulação de pessoas e de
renda provocou um recrudescimento do mercado consumidor de rua. Consequentemente, o
setor de serviços, que é o maior empregador do país, foi o mais afetado pela pandemia.
Aqueles que conseguiram manter seus empregos não se livraram do seu próprio quinhão
de atribulações. São trabalhadoras e trabalhadores que convivem com as costumeiras

12
inseguranças e incertezas da instabilidade profissional, mas que, com a pandemia, se
defrontam com uma maior probabilidade de perderem suas fontes de renda. Isso se deve ao
fato de que não somente postos de trabalho estão sendo encerrados, mas inúmeras empresas
estão sendo precocemente fechadas, além de setores inteiros estarem sendo golpeados pela
Covid-19, a exemplo do setor de turismo e aqueles ligados a atividades culturais.
Devido à natureza do setor em que trabalham ou da imprescindibilidade do tipo do serviço
que prestam, muitas trabalhadoras e trabalhadores não chegaram a ter seus empregos
ameaçados pela pandemia. Mesmo assim, não necessariamente se encontram em situação
confortável: se já era penoso e estressante enfrentar todos os dias a desagradável tarefa de
lidar com a demora, o desconforto, a aglomeração e o desgaste de pegar transporte público
para ir ao trabalho, em tempos de pandemia, esse dissabor transformou-se em risco real de
comprometimento da saúde.
Há, ainda, velhas aflições experimentadas no próprio local de trabalho que vem sendo
atualizadas e acumuladas com as angústias causadas pela pandemia. A insalubridade, a
periculosidade e as parcas condições sanitárias do ambiente de trabalho foram alçadas a um
outro patamar de perigo por empresas que não adotaram protocolos eficazes de biossegurança
e que não se comprometeram com a manutenção da saúde de suas funcionárias e
funcionários.
Neste cenário, o desafio à conservação da saúde física, bem como a da saúde mental das
trabalhadoras e trabalhadores está posto: ir ao trabalho e permanecer durante horas no mesmo
ambiente com outras funcionárias e funcionários, compartilhar equipamentos laborais que
não estão sendo devidamente esterilizados, além de conviver com colegas de trabalho
suspeitos de ter contraído o coronavírus.
Diante da escassez de testes que detectem a presença do vírus em questão, trabalhadoras e
trabalhadores têm sido obrigados a permanecer cumprindo a carga horária laboral em
empresas onde eles mesmos ou colegas de trabalho apresentam sintomas da doença, sem
saber se estão infectados ou não.
Sem dispensa imediata de suas funções após a aparição de sintomas, trabalhadoras e
trabalhadores desassistidos de planos de saúde passam a perambular, por conta própria, em
busca de um atestado médico que assegure o afastamento sem prejuízo de vencimentos.
Aqueles que não conseguem o atestado, são obrigados a continuar trabalhando ou pedir
demissão para assegurar os cuidados com a própria saúde.
É um campo aberto para o assédio moral, pressões desmedidas, perseguições e diligências
arbitrárias vividas por trabalhadoras e trabalhadores que já se deparavam com uma escalada

13
de dilapidação de direitos desde a Lei nº 13.467/2017 conhecida como Reforma Trabalhista.
Essa é a realidade atual da maioria das trabalhadoras e trabalhadores brasileiros. Sair para o
trabalho em tempos de Covid-19, transformou-se – mais que nunca –, num campo de
incertezas para a “classe-que-vive-do-trabalho” (ANTUNES, 2006), seja ela assalariada ou
na informalidade. Uma loteria em que se joga com a própria vida.
Nessas circunstâncias, uma alternativa surge como uma solução imediata para esses
sujeitos continuarem exercendo suas funções de forma mais asséptica, segura e humanizada:
o home office. Expressão equivalente ao regime de trabalho remoto ou teletrabalho
(distinções ainda em disputa) trata-se de uma modalidade de trabalho em que funcionárias e
funcionários realizam suas funções laborais em casa, sem a necessidade de cumprir
expediente no espaço físico da empresa em que trabalham.
O primeiro registro que se tem notícia de uma atividade laboral realizada à distância por
meio de sistemas de informação refere-se ao uso que J. Edgard Thompson fez do telégrafo
para monitorar as unidades remotas de sua empresa de estradas de ferro, a Pennsylvania
Railroad, inaugurada na década de 1830. Algumas décadas depois, já surgiam críticas ao
modelo de trabalho remoto que se seguiu, a primeira delas foi direcionada ao conto de ficção
científica escrito por Rudyard Kipling, With the Night Mail. A crítica é feita pelo matemático
conhecido como “pai da Cibernética”, Norbert Wiener, em seu livro The human use of human
beings – Cybernetics and society publicado em Londres, em 1950. Quarenta anos antes,
Kipling ficou fascinado pelas conquistas dos irmãos Wright e imaginou um futuro em que a
tecnologia de aviação teria transformado o Atlântico em um lago passível de ser atravessado
de ponta a ponta em uma só noite. O uso dessa tecnologia conectaria nações de todo o mundo,
tornando as guerras completamente obsoletas. Nessa realidade, o Conselho de Controle
Aéreo teria poder decisório sobre todas as questões importantes do mundo porque todas as
autoridades locais renunciariam a seus poderes em favor desse conselho.
Essa visão apologética da tecnologia é criticada duramente por Wiener (1989, p. 96), pois
ele identifica na história de Kipling uma ingenuidade quase infantil, que por se encantar pela
evolução do maquinário, vislumbra o transporte físico do homem, mas nunca de sua
linguagem e ideias. Segundo Wiener, Kipling “não parece perceber que, aonde a palavra do
homem vai e aonde o seu poder de percepção vai, até aquele ponto o seu controle e, num
certo sentido, a sua existência física é estendida.” (WIENER, 1989, p. 96, tradução nossa1).

1
“He does not seem to realize that where a man's word goes, and where his power of perception goes, to that
point his control and in a sense his physical existence is extended.”

14
A partir dessa convicção, Wiener nos propõe um exercício imaginativo para demonstrar a
ainda maior importância do transporte de informação de um lugar a outro quando comparada
ao mero transporte físico de alguém: um arquiteto na Europa supervisiona a construção de
um edifício nos Estados Unidos. Deixando claro que no canteiro de obras há todo o material,
assim como toda a equipe necessária para a construção do prédio, Wiener passa a argumentar
que o arquiteto terá um papel crucial na construção do edifício, ainda que não esteja
transmitindo ou recebendo nenhum tipo de material físico, a única coisa transmitida por ele é
o seu conhecimento. Para isso, ele fará uso do Ultrafax (Tecnologia da época que combinava
características da televisão e da fotografia, depois conhecida simplesmente como fax)
fotografias, telefone e também do teletipo. Ou seja, a presença física do arquiteto poderia ser
substituída pela transmissão eficiente dos seus conhecimentos. Isso garantiria a qualidade de
um trabalho que não deveria nada àquele feito sob a supervisão física do profissional. Mas ao
final do argumento, Norbert Wiener nos alerta: essa distinção entre o transporte material e o
transporte de uma mensagem não é permanente, nem tão pouco intransponível. Mais
importante: ela finda por impor um questionamento profundo sobre a individualidade
humana.
Esta pesquisa se debruça sobre o fenômeno do home office adotado em razão da pandemia
de Covid-19 possibilitada pelos avanços tecnológicos informacionais recentes, uma vez que
desconfia, assim como Norbert Wiener, que a transposição das atividades laborais de um
lugar para outro não implica no simples deslocamento frio da tecnologia que permite essa
execução remotamente. O momento de mudança do modelo de trabalho por razões sanitárias
pode, inadvertidamente, ter trazido implicações para a coletividade urbana, para o seio das
famílias e, finalmente, para a individualidade das próprias trabalhadoras e trabalhadores que
se deparam com uma etapa mais profunda da tentativa de colonização neoliberal dos seus
espaços privados.
Localizada na região metropolitana de Natal-RN, a empresa2 cujas funcionárias3 se
dispuseram a colaborar com este estudo, adotou o sistema de home office para algumas de

2
A empresa não terá sua razão social mencionada no trabalho para que as possibilidades de identificação das
interlocutoras do estudo sejam minimizadas, mas trata-se – de acordo com o Departamento Intersindical de
Estatística e Estudos Econômicos (DIEESE) – de empresa com um dos maiores índices de assédio moral do país.
A página do DIEESE em que consta essa informação não será mencionada pelos mesmos motivos.
3
Como demonstrado por Ruy Braga (2014, p. 37), o setor de call center tem “uma taxa de participação feminina
na força de trabalho gravitando em torno de 70%, além de uma alta ocorrência de afrodescendentes, é possível
dizer que o grupo brasileiro de teleoperadores é formado em sua maioria por jovens mulheres não brancas
recém- saídas da informalidade.”. Portanto, por se tratar de um setor marcadamente feminilizado e também
devido ao contigente dessa pesquisa ser composto por 9 mulheres e 4 homens, todas as generalizações do texto
que se referirem ao call center serão feitas no feminino. Com exceção dos cargos de comando que,
historicamente, são ocupados majoritariamente por homens.

15
suas trabalhadoras. A pesquisa Precarização no home office: condições de trabalho em um
call center na região metropolitana de Natal-RN em tempos de pandemia foi
impulsionada pela seguinte questão: “Como a introdução do regime de home office a partir da
pandemia de Covid-19 impacta a vida das trabalhadoras do setor de call center4 da região
metropolitana de Natal-RN?”.
Esta questão geral engloba outras questões motivadoras e acessórias: Por quais vivências
elas têm passado e que ainda não foram visibilizadas devido ao ineditismo desses eventos?
Como o trabalho em casa afetou a dinâmica da vida pessoal e familiar das trabalhadoras? /
Como essas trabalhadoras passaram a perceber a relação com o trabalho? Que estratégias
foram adotadas pelas empresas para manter a produção e o controle das trabalhadoras e o que
elas dizem sobre as novas possibilidades que se apresentam ao mundo do trabalho?
O estudo aqui desenvolvido, portanto, tem como objetivo geral investigar as implicações
sociais enfrentadas pelas trabalhadoras em razão da mudança do trabalho presencial para o
home office devido à pandemia de Covid-19 na região metropolitana de Natal. Ele foi assim
direcionado porque todo o processo desencadeado para a execução do trabalho em casa
resultou numa série de repercussões na esfera social e é relevante para entendermos esse
novo momento das atividades trabalhistas com o uso de um modelo de trabalho que já existia,
mas que só começou a ser massivamente implantado a partir da chegada da pandemia.
No que tange aos objetivos específicos, são eles: 1) Investigar o fenômeno home office à
luz da precarização do trabalho no contexto do avanço de uma agenda neoliberal; 2) Analisar
as dificuldades e vantagens oferecidas às trabalhadoras com a adoção do home office no
contexto da pandemia de Covid-19 em que foi implantado, identificando as singularidades,
assim como as experiências comuns de quem foi posto neste regime. Esses apontamentos
serão feitos sempre à luz das disparidades entre o ethos de classe do qual o conceito é
oriundo e aquele para o qual foi implantado; 3) Conhecer os mecanismos de controle de
produtividade e vigilância adotados pela empresa para monitorar essas trabalhadoras e a
forma como atuam sobre suas subjetividades.
A partir desses questionamentos, uma possível resposta foi formulada para nortear o
caminho para onde a pesquisa será dirigida: Hipótese: “A adoção do regime de home office
desde a pandemia de covid-19 em um call center na região metropolitana de Natal-RN
aprofundou a precarização do trabalho realizado no setor”.

4
Mesmo ciente das especificidades dos diferentes termos usados para o setor aqui referido como “call center”,
julguei que essa discussão seria improfícua para a pesquisa. A expressão, portanto, será usada como sinônimo de
teleatendimento, telesserviços, centrais de atendimento, telemarketing e contact center.

16
A pesquisa justifica-se, pois, a implantação do regime de trabalho em casa para
operadoras de empresas de call center na região metropolitana de Natal acabou por ter
consequências significativas. Apesar de a implantação do trabalho remoto ter atendido à
urgência de se proteger as profissionais da área, o trabalho em casa acabou por alterar, não só
a dinâmica de trabalho desses indivíduos, mas também resultou em impactos significativos
nas dinâmicas sociais em que estão envolvidos.
Além disso, novas fronteiras são borradas quando o trabalho invade o espaço doméstico.
O caráter emergencial em que a medida foi adotada, sem planejamento e discussões legais
prévias que determinassem as condições mínimas para que o trabalho fosse juridicamente
amparado abriu espaço para questionamentos sobre a atualização de regras que contemplem
essa nova realidade de atividade: como serão definidos os acidentes de trabalho a partir de
agora?; as câmeras instaladas por algumas empresas do setor para assegurar o cumprimento
das jornadas de trabalho serão legalizadas?; se o instrumento de trabalho da funcionária é o
próprio computador pessoal, quais os limites de interação entre o software patronal
necessário à atividade laboral com os dados pessoais da funcionária?; quem determina o tipo
de informação capturada pelo sistema de vigilância da empresa para monitorar as
funcionárias?; que consequências essas medidas trarão para as relações de trabalho no futuro?
Todas essas novas dinâmicas estão sendo geradas a partir do advento da Covid-19 e nos
instigam a pensar no que acontece quando o modelo de trabalho em home office é aplicado
em distintos segmentos das classes que vivem do trabalho. O home office e as consequentes
complicações do exercício de uma modalidade laboral relativamente nova em um momento
de instabilidade jurídica trabalhista são situações relevantes para entendermos esse novo
momento do mundo do trabalho. Estamos testemunhando, talvez, a implementação de uma
modalidade de trabalho que perdure além da pandemia, trazendo inúmeras implicações para
as dinâmicas sociais das quais participamos. Um novo campo sociológico para uma nova
sociedade em quarentena. Esta pesquisa espera contribuir para as discussões da Sociologia do
Trabalho na medida em que tenta interpretar a adoção de uma prática laboral que extrapola os
limites das instalações de uma empresa e acaba por reverberar nos espaços mais íntimos da
vida das trabalhadoras.
Em relação aos procedimentos, métodos, instrumentos e técnicas de pesquisa, trata-se de
uma pesquisa qualitativa realizada por meio de um estudo de caso, num esforço
interpretativo sobre a situação dos sujeitos que trabalham nesse call center em regime de
home office e o processo pelos quais eles vêm passando no contexto da Covid-19.

17
A opção por uma pesquisa qualitativa responde à tentativa de compreensão desse
fenômeno, ao modo como ele afeta a vida dos sujeitos e como estes interpretam essa
experiência. Este movimento compreensivo é fruto de um esforço científico defendido por
Norman K. Denzin e Yvonna S. Lincoln (2006, p. 23) quando definem do que se trata uma
pesquisa qualitativa:

Os pesquisadores qualitativos ressaltam a natureza socialmente construída da realidade,


a íntima relação entre o pesquisador e o que é estudado, e as limitações situacionais que
influenciam a investigação. Esses pesquisadores enfatizam a natureza repleta de valores
da investigação. Buscam soluções para as questões que realçam o modo como a
experiência social é criada e adquire significado.

Já a escolha pelo estudo de caso se deu em razão da excepcionalidade das circunstâncias


em que o home office passou a ser implantado: a partir da pandemia de Covid-19 em março
de 2020, além do fato de que as interlocutoras da pesquisa se vinculam à mesma empresa de
call center. As indagações que surgem acerca do fenômeno são as mesmas apontadas por
Robert K. Yin (2001, p. 28) como requisitos do método: “Faz-se uma questão do tipo ‘como’
ou ‘por que’ sobre um conjunto contemporâneo de acontecimentos sobre o qual o
pesquisador tem pouco ou nenhum controle.”. É um método de abordagem que permite
entender o contexto laboral durante toda a pandemia:

A essência de um estudo de caso, a principal tendência em todos os tipos de estudo de


caso, é que ela tenta esclarecer uma decisão ou um conjunto de decisões: o motivo pelo
qual foram tomadas, como foram implementadas e com quais resultados. (SCHRAMM
apud YIN, 2001, p. 31)

A coleta de dados foi desenvolvida em duas fases: a primeira de caráter exploratório foi
finalizada no mês de agosto de 2020 e consistiu no rastreamento do perfil socioeconômico
das interlocutoras por meio de um questionário enviado por aplicativos de mensagens. À luz
das questões da pesquisa e com estes dados em mãos, foram elaborados os roteiros gerais
para os três grupos de interlocutores e aqueles destinados a seus respectivos sujeitos
individualmente, segundo as orientações metodológicas de Verena Alberti (2004).
A segunda fase foi finalizada no mês de fevereiro de 2021 e consistiu de entrevistas
temáticas semi-estruturadas que serão tratadas como fonte oral desse trabalho. Ainda
segundo Alberti (2004, p. 37): “As entrevistas temáticas são aquelas que versam
prioritariamente sobre a participação do entrevistado no tema escolhido.”.
Devido às impossibilidades de entrevistas presenciais ante a necessidade de isolamento
social recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) na tentativa de conter a

18
propagação do vírus da Covid-19 e acolhido pelo governo do Rio Grande do Norte no
Decreto nº 29.742 de 04 de junho de 2020, todos os dados foram coletados por meio de 1
(uma) entrevista realizada pela plataforma Google Meets e gravada pelo programa OBS
Studio. Esses dados foram coletados nos termos de Sampieri, Collado e Lucio (2006) que
apontam a entrevista como modalidade de pesquisa que pode ser capturada por diversas
ferramentas, entre elas, gravações de áudio e vídeo.
Para tanto, foi construída a seguinte rede de interlocutores e corpus empírico da pesquisa:
a investigação selecionou 13 interlocutoras, sendo 9 mulheres e 4 homens que foram
divididas em dois grupos: o primeiro formado por pessoas que já trabalharam na empresa e
hoje já se encontram fora do setor de call centers e o segundo formado por aquelas que
continuam trabalhando na empresa. A configuração dos grupos de entrevistadas e as razões
para sua organização serão melhor detalhadas no capítulo 1.
Este estudo será feito por meio de uma perspectiva marxista centrada nos instrumentos
teórico metodológicos do materialismo histórico-dialético que entende as trabalhadoras e
trabalhadores como pertencentes à classe proletária situada em um mundo em que “As
classes sociais, o conflito de classes e a consciência de classe existem e desempenham um
papel na história.” (HOBSBAWM, p. 33, 2015). Além disso, a pesquisa também encara a
agenda neoliberal como derrogatória das condições mínimas para a sobrevivência digna da
“classe-que-vive-do-trabalho”, será usado o conceito de precarização do trabalho como
categoria de análise para a compreensão do fenômeno home office no setor de call center na
região metropolitana de Natal-RN.
Esse conceito chave percorrerá todo o estudo e será utilizado nos termos de Ricardo
Antunes (2011, p. 416) quando define um visível processo com base tayloriana/fordista de
precarização estrutural do trabalho: “...mais acentuadamente despótica, embora mais
regulamentada e contratualista. O trabalho é mais coisificado e reificado, maquinal, embora
provido de direitos e de regulamentação social. É uma modalidade de trabalho coisificado de
tipo regulamentado.”. Posteriormente, o conceito será ampliado para abarcar as
considerações de Judith Butler (2018) sobre precariedade como atributo de um tipo de
existência.
Esta discussão será distribuída em cinco capítulos que tentarão responder aos objetivos
específicos anteriormente expostos e que, devido aos questionamentos próprios de cada um
deles, dialogarão com diversos autores que ajudarão a compreender melhor as especificidades
do fenômeno.

19
No Capítulo 1: A construção da pesquisa e a descoberta dos sujeitos, são expostos o
percurso traçado em busca do objeto, as dificuldades e insucessos da construção
metodológica da pesquisa e os interlocutores dos grupos 1 e 2. Em seguida, no Capítulo 2,
intitulado Reestruturação produtiva, tecnologia e home office: a precarização a caminho de
casa, é feita uma discussão teórica sobre os conceitos de precarização, assim como os
conceitos de trabalho domiciliar, trabalho remoto e teletrabalho que são aglutinados na noção
de home office para estabelecer que sentidos dessas categorias de análise serão estabelecidas
na investigação. Fundamentarão esse caminho, os estudos de Karl Marx (1986), Eric
Hobsbawn (1995), David Harvey (2008), Ricardo Antunes e Ruy Braga (2009) e Ursula
Huws (2017), Daniela Oliveira (2017), Pierre Dardot e Christian Laval (2016), Giovanni
Alves (2006, 2011, 2013) entre outras autoras e autores. No Capítulo 3: O cenário laboral do
call center: o encontro com os sujeitos, serão apresentadas as vivências das trabalhadoras da
empresa, no intuito de estabelecer o que significa ser uma trabalhadora de call center e como
essa realidade foi afetada pela pandemia. Também será traçado um mapeamento dos
mecanismos de controle de vigilância e produtividade adotados pela empresa para monitorar
as trabalhadoras, examinando seus efeitos sobre suas subjetividades. Para isso, serão
acionadas as discussões de Michel Foulcault (1987) sobre o conceito de panóptico para
discutir a instrumentalização que a empresa faz do medo e da vigilância entre as funcionárias.
Fechando o capítulo, o cenário de chegada da pandemia e o modo como afetou as dinâmicas
laborais irão catapultar as discussões sobre home office. No Capítulo 4: A casa vira cenário:
apontamentos sobre a experiência do home office e a tentativa de colonização de
subjetividades em sistemas de produção e vigilância, serão expostos os diferentes ethos de
classe envolvidos na adoção do home office nos diferentes contextos pré e pós pandemia e a
forma como as imagens construídas em torno desse modelo de trabalho foram essenciais para
a aceitação inquestionada do modelo. Ao percorrer a experiência das trabalhadoras que
passaram a trabalhar em casa, serão investigadas as intensidades, permanências ou
descontinuidades das políticas da empresa em relação ao trabalho presencial. As políticas de
controle de produção e vigilância também serão consideradas, além das estratégias de
resistência dos sujeitos à invasão do trabalho em seus espaços íntimos. A interlocução teórica
será feita por Ursula Huws (2017), Antonio Gramsci (1999, 2001, 2002, 2007a, 2007b),
Pierre Dardot e Christian Laval (2016), Christian Dunker, Vladimir Safatle e Nelson da Silva
Júnior (2020). No Capítulo 5: A centralidade da subjetividade na disputa política:
descolonizar, ressignificar, reconstruir, o estudo tentará demonstrar a localidade da discussão
no momento atual da hegemonia neoliberal, apresentando experiências que podem dar fôlego

20
à busca de brechas capazes de fraturar o sistema. As discussões serão sustentadas com as
análises de Suely Rolnik (2018), Ailton Krenak (2019), Kethleen Millar (2017), Judith Butler
(2018), Bárbara Castro (2013), Veronica Gago (2018), María Alejandra Ciuffolini (2016),
entre outras autoras e autores.
Nas considerações finais, discutirei a análise dos dados, os percalços e limitações da
pesquisa, o apanhado da visão das interlocutoras sobre o trabalho em call center na
modalidade home office e, finalmente, as conclusões obtidas em relação aos objetivos iniciais
do estudo.
Como demonstrado, esta pesquisa se propõe a investigar os processos recentes que
modificaram o ambiente de trabalho do call center. Um setor completamente dependente do
uso e do avanço das tecnologias computacionais que acabaram por permitir a transferência
das tarefas das trabalhadoras às suas casas, onde podem melhor proteger-se das ameaças de
um vírus potencialmente letal. No entanto, o reconhecimento de que se trata de um setor com
práticas trabalhistas frequentemente abusivas, nos alerta a evitar a ingenuidade portentosa de
Rudyard Kipling e entrever, assim como Norbert Wiener, as implicações de se transpor a
mentalidade neoliberal de trabalho à individualidade dos lares de trabalhadoras já
precarizadas.

21
1 – A CONSTRUÇÃO DA PESQUISA

A pandemia de Covid-19 me obrigou a abandonar o objeto inicial de minha pesquisa de


mestrado, pois ela seria realizada em um hospital psiquiátrico. Ela também afetou a realidade
laboral das trabalhadoras de um call center da cidade de Natal-RN e por ter contato com um
grupo delas, passei a participar de conversas sobre o assunto em um aplicativo de mensagens.
À medida que a pandemia avançava, eu me informava sobre as novas dinâmicas de trabalho
às quais essas trabalhadoras estavam sendo submetidas e, finalmente, decidi estudar esse
processo em junho de 2020.
Depois de um período de sondagem acerca da viabilidade do projeto, passei a convidar as
pessoas que eu conhecia para serem minhas interlocutoras na pesquisa. Consolidada a
formalização desse grupo, um desses conhecidos, aqui chamado “Cazé”, construiu uma ponte
para as possíveis interlocutoras que eu não conhecia. Ele anunciou a pesquisa nos grupos
pessoais dos aplicativos de mensagens de diferentes equipes da empresa, coletando os
contatos das pessoas que se interessaram em participar. Em busca dos significados dessa
experiência, conseguimos chegar ao número de 13 interessadas, seus nomes serão protegidos
em pseudônimos:

Quadro 1: Rede de interlocutoras

22
Na tentativa de cercar melhor o objeto de pesquisa por se tratar de um universo
desconhecido para mim, separei as trabalhadoras entre aquelas que já saíram da empresa,
aquelas que, mesmo com a pandemia, continuam trabalhando em regime presencial e aquelas
que passaram a trabalhar em regime de home office.

Quadro 2: Grupos da pesquisa5

O diálogo com o primeiro grupo contribui para estabelecer o cenário laboral de antes da
pandemia. São trabalhadoras que abandonaram o setor por serem críticas do modelo de
trabalho ao qual estiveram submetidas, justamente devido à enorme pressão que sofriam.
Todas elas ainda mantêm contato com colegas que continuam a trabalhar na empresa. Estão,
consequentemente, muito bem informadas sobre as mudanças e permanências da realidade do
setor estabelecidas em face da Covid-19. Desse modo, se configuram como testemunhas
privilegiadas nos termos de Raymond Quivy e LucVan Campenhouldt (1998, p. 71):
“Pessoas que, pela sua posição, acção ou responsabilidades tem um bom conhecimento do
problema. Essas testemunhas podem pertencer ao público sobre que incide o estudo ou ser-
lhe exteriores, mas muito relacionado com esse público.”.
A importância de se estabelecer o estado de coisas de antes da pandemia acessando as
memórias desse grupo de pessoas coaduna com o que defende Antonio Cesar de Almeida
Santos (2000, p. 5): “As lembranças, além de oferecerem uma descrição de acontecimentos
vividos, trazem também uma análise daqueles mesmos acontecimentos, dada a distância em
que o entrevistado se encontra deles, e sua disposição em avaliar as transformações que
vivenciou.”. A distância espaço-temporal daquela experiência pode, portanto, fornecer
insights valiosos sobre a lógica que opera no call center.
5
As interlocutoras Laís e Karina enfrentaram o começo da pandemia trabalhando em regime presencial, até
serem transferidas para o regime de home office, por isso, suas experiências serão consideradas tanto em um caso
quanto no outro.

23
Embora o foco dessa pesquisa seja entender as experiências do fenômeno do home office
que só foi implantado a partir da pandemia, decidi entrevistar esse grupo de pessoas como
forma de amenizar o temor que as funcionárias ativas sentem de serem punidas por revelar
qualquer tipo de informação sobre suas atividades. Por lidarem com dados sensíveis de
clientes, as funcionárias assinam um “termo de confidencialidade” que as proíbe de tecer
comentários sobre suas condições de trabalho por até três anos depois de deixar a empresa.
Com esse grupo consegui acesso aos contratos de trabalho. Apenas ao entrevistar as ex-
funcionárias foi possível estabelecer melhor qual era o cenário laboral de antes da pandemia
para compreender o que mudou no setor.
O segundo grupo é composto por funcionárias ativas da empresa. No entanto, não
constitui um grupo homogêneo. Para estabelecer o cenário que se instaurou na empresa desde
a pandemia, nos oferece duas diferentes perspectivas: a de quem continuou exercendo a sua
função em regime presencial, ou seja, desde a pandemia continua trabalhando nos
estabelecimentos da empresa, deslocando-se diariamente para o trabalho, expostas a todos os
riscos de contágio e aquelas que foram beneficiadas com o trabalho remoto, podendo exercer
suas funções sem estar tão expostas ao vírus.
O grupo de trabalhadoras que continua trabalhando de forma presencial contribui para
estabelecer os processos desencadeados no setor pela pandemia, pois testemunharam todas as
dificuldades que aconteciam nos locais de trabalho. Funcionam assim, como um instrumento
de comparação com as funcionárias que foram postas em trabalho remoto, ilustrando as
diferenças entre as duas realidades de trabalho. O último grupo é composto por 8
interlocutoras que nos oferecem uma visão sobre o que significa o home office de um call
center na região metropolitana de Natal-RN. E configura o objeto maior dessa pesquisa.
Decidi considerar todo o percurso que levou os sujeitos ao trabalho em casa como
estratégia de cercamento do objeto de estudo e para investigar se, de fato, a mudança para o
trabalho remoto resultou numa espécie de “piora” mais objetiva em relação às condições de
trabalho, testando a hipótese dessa pesquisa. Assim, tento entender a precarização, antes de
tudo, como um processo para só então considerá-la à luz do que significa viver sob o sistema
neoliberal.
A primeira fase da pesquisa se deu com a coleta do perfil socioeconômico das
interlocutoras por meio de um aplicativo de mensagens. Com esses dados em mão, foram
construídos os roteiros das entrevistas. O passo a passo do delineamento do roteiro foi dado
pela metodologia estabelecida por Verena Alberti (2004, p. 83) que indica a produção de dois
tipos de roteiro: o geral e o específico.

24
O roteiro geral de entrevistas deve ser elaborado com base no projeto e na pesquisa
exaustiva sobre o tema. Sua função é dupla: promove a síntese das questões levantadas
durante a pesquisa em fontes primárias e secundárias e constituem instrumento
fundamental para orientar as atividades subsequentes, especialmente a elaboração dos
roteiros individuais. O momento de elaboração do roteiro geral encerra a oportunidade
de reunir e estruturar todos os pontos levantados durante a pesquisa, seguindo os
objetivos estabelecidos no projeto. Nesse sentido, trata-se de um esforço de sistematizar
os dados levantados até então e de articulá-los com as questões que impulsionam a
pesquisa.

Ainda segundo Alberti (2004, p. 84) é a estruturação do roteiro geral que servirá de base
para a elaboração dos roteiros individuais e servirá, em caráter comparativo, como um
instrumento de avaliação das conclusões da pesquisa:

Como sugere o nome, trata-se de um roteiro amplo e abrangente, que contém todos os
tópicos a serem considerados na realização de cada entrevista, garantindo a relativa
unidade do acervo produzido. É importante que nas entrevistas realizadas os
pesquisadores procurem abarcar as questões que foram definidas como gerais a todos os
entrevistados. [...] Suponhamos, por exemplo, que o roteiro geral não seja empregado
em determinada pesquisa. Nesse caso, é bem provável que as entrevistas versem sobre
assuntos desconexos entre si, difíceis de serem comparados. Determinado entrevistado
pode ser solicitado a discorrer apenas sobre certo aspecto do tema, mesmo que sua
experiência e sua atuação o autorizem a falar sobre os demais, enquanto outro
entrevistado, igualmente capaz, pode ser conduzido a tratar exclusivamente de outro
aspecto do tema. Dessa forma, ambas as entrevistas, seguindo direções diversas,
dificilmente poderão se prestar a uma análise comparativa, devido à ausência de
unidade em sua condução. A unidade dada pelo roteiro geral permite que se
identifiquem divergências, recorrências ou ainda concordâncias entre as diferentes
versões obtidas ao longo da pesquisa, aprofundando-se as possibilidades de análise do
acervo.

Estrutura dos roteiros gerais (grupo) e específicos (indivíduos) das entrevistas

Seguindo essas indicações, elaborei três tipos diferentes de roteiro para cada um dos
grupos a serem entrevistados. Eles partem de um roteiro geral para todas as trabalhadoras e
depois são segmentados para a realidade específica de cada grupo. Cada grupo tem um
roteiro geral que contempla suas especificidades e em cada segmento, a última etapa do
roteiro é um modelo individual para cada uma das trabalhadoras. O que consta no roteiro
individual é elaborado com base nas informações já coletadas na primeira fase e no que elas
já tinham compartilhado comigo anteriormente em conversas informais. Por esse motivo, só
desenvolvi algumas perguntas individuais para um único integrante do grupo em home office
pois era o único que eu conhecia.
Ainda seguindo Alberti, depois do levantamento dos problemas, as questões a serem
inquiridas são levantadas e só então são transformadas em perguntas. A versão final dos
roteiros segue abaixo.

25
Versão final dos roteiros gerais e individuais das entrevistas:

Roteiro Geral (para todas as trabalhadoras):


Contexto social:
Qual o seu histórico familiar?
Qual o contexto social em que viveu?
Trabalho:
Como se deu o começo da sua vida profissional?
Quais eram as suas expectativas?
Que papel o trabalho cumpriu na sua vida?
O que significou começar a trabalhar para você?
Call center:
Como você obteve o emprego no call center?
Como se deu o processo seletivo?
Qual era a sua função?
Como se deu o período de adaptação às funções? Fale um pouco sobre as suas
experiências no setor.
Como você avalia o ambiente de trabalho no call center?
Como você avalia as condições de trabalho na empresa?
Quais eram as suas expectativas ao entrar na empresa?
Elas foram confirmadas ou mudadas ao longo do tempo em que você trabalhou lá?
Você construiu relações pessoais no call center? Você acha que isso é possível?
Há alguma possibilidade de organização coletiva?
Você testemunhou iniciativas de organização coletiva para resolver algum problema?
Quais são os tipos de situações comuns em um call center?
Quais são os tipos de discursos produzidos pela empresa?
Que tipo de mecanismos de controle de produção a empresa determina?
Que tipo de mecanismos de vigilância das funcionárias a empresa estabelece?
As funcionárias acatam todas essas determinações?
Havia / Há estratégias para escapar/burlar esse sistema?
Como se dão os sistemas de avaliações de desempenho e cumprimento de metas?
Como você avalia o ritmo das mudanças de função?
Como você avalia os treinamentos e cursos de formação oferecidos?
Como se dava / dá a relação trabalho x vida pessoal?

26
Era / É possível organizar bem a vida?
Quais as maiores dificuldades e vantagens do trabalho no setor?
Como você avalia a sua saúde mental no período em que esteve na empresa?
Trace uma comparação entre o trabalho no call center e suas outras experiências
profissionais.
Há algo que considera importante ser informado que não foi abordado na entrevista?

Roteiro geral de entrevista para o Grupo 1


(trabalhadoras que já deixaram de atuar na empresa)
Por que você saiu da empresa/setor de call center?
Que avaliação você faz da sua saúde mental antes, durante e depois de sair da empresa?
Que avaliação você faz das experiências profissionais que se seguiram em comparação
com a experiência em call center?
Roteiros Individuais:
Entrevista 1 - Jonas (10-08-20)
Quais são as vantagens e desvantagens de se trabalhar no turno noturno?
Por que o trabalho no call center afetou o seu relacionamento?
Que estratégias você e os seus colegas criavam para aguentar o sono?
Por que você acha que todas as relações das funcionárias ficam resumidas àqueles que
participam do mesmo universo do call center?
Entrevista 2 - Glória (13-08-20)
Que reflexos o trabalho no call center teve em sua vida pessoal?
Ele afetou o seu casamento?
Por que você foi afastada das suas funções?
Como você foi vista na empresa por tirar licença médica?
Entrevista 3 - Hannah (17-08-20)
Como você compara as duas empresas de call center nas quais você trabalhou?
Você acha que uma se sobrepõe à outra em relação às condições de trabalho que
oferece?
Quais as melhores e piores coisas de uma em relação à outra?
Por que você atribui a piora da sua saúde diretamente ao trabalho no call center?
Entrevista 4 - Rute (20-08-20)
Qual foi o papel das relações que você travou no lugar?

27
De que forma elas contribuíram para a suas experiências no setor?
Por que você afirma que as trabalhadoras são manipuladas no setor?
Por que você considera que as promoções de cargo são “pura enganação”?

Roteiro geral de entrevista para todas as trabalhadoras que atuam na empresa


atualmente
Pandemia
Que tipo de mudanças ocorreram na empresa em decorrência da pandemia?
A pandemia afetou as demandas do trabalho?
Quais foram os processos desencadeados pela pandemia na empresa?
Que tipos de medidas a administração da empresa tomou com a decretação da
pandemia?
A configuração do local de trabalho sofreu alguma alteração?
O que foi feito dos equipamentos de trabalho?
Como você percebe a maneira que a Covid-19 atingiu as funcionárias da empresa?
Que tipo de discursos foram adotados pela empresa desde a pandemia?
Como a Covid-19 atingiu a sua vida e o seu trabalho?
Quais os sentimentos afloraram no período?
Esses sentimentos interferiram no seu trabalho?
Como você lidava com esses sentimentos e a execução de suas funções?
Como você avalia a sua saúde mental no período?

Roteiro geral de entrevista para o Grupo 2


(trabalhadoras em regime de trabalho presencial na pandemia)
Sobre o trabalho no contexto da pandemia:
Como ficaram as condições de trabalho nos estabelecimentos da empresa?
A decretação da pandemia mudou sua rotina de trabalho?
Como a chegada da Covid-19 afetou sua vida?
Como avalia a atuação da empresa em relação à pandemia?
Como as decisões da empresa neste período afetaram o seu trabalho?
Houve alguma alteração quanto aos equipamentos de trabalho?
Houve casos de funcionárias infectadas nas instalações da empresa?
Como elas foram tratadas pela empresa?
Quais foram as atitudes da empresa em relação à proteção das funcionárias?

28
Que razões determinaram a continuidade do trabalho presencial?
Por que algumas funcionárias continuaram a trabalhar presencialmente e outras foram
postas em trabalho remoto?
Que tipos de impacto a chegada da pandemia teve sobre as funcionárias da empresa?
Que efeitos o trabalho presencial no contexto da pandemia trouxe para você e seus
coabitantes?
Que tipos de discursos a empresa adotou em relação ao trabalho presencial durante o
período de pandemia?
Você testemunhou iniciativas de organização coletiva para resolver algum problema?
Como se dava o processo para sair para o trabalho e para voltar para casa?
Que avaliação você faz da sua saúde mental antes, durante e depois do expediente?
Quais eram os sentimentos antes da saída para o trabalho e após a chegada em casa?
Roteiros específicos
Entrevista 5 - Larissa (16-09-20)
Como o trabalho no call center afeta o seu relacionamento?
Por que você identifica que esse é o pior tipo de trabalho que você já teve?
Entrevista 6 - Laís (20-08-20)
Por que você considera ser esse um “trabalho provisório”?
Por que você acha que o call center é um laboratório para questões trabalhistas?

Roteiro geral de entrevista para trabalhadoras do Grupo 3 (em home office)


Como se deu o processo de passagem do trabalho presencial para o trabalho em casa?
Por que você passou a trabalhar em casa e não permaneceu no trabalho presencial?
Quais foram as condições necessárias que permitiram o seu trabalho em casa?
De quem são os instrumentos de trabalho que permitiram o trabalho em casa?
O que mudou na sua rotina desde que você começou a trabalhar em casa?
Você fez alguma alteração no ambiente em função do trabalho?
Qual é a sua visão do home office? Que avaliação você faz desse modelo de trabalho?
Que avaliação você faz dessa transferência do ponto de vista da atuação da empresa?
Que avaliação você faz dessa transferência do ponto de vista pessoal?
Como você lida com o trabalho em casa?
Você faz alguma diferenciação entre tempo para trabalhar e tempo para a vida pessoal?
Que estratégias a empresa adotou para controlar a produção das funcionárias e o
cumprimento de metas?

29
Que estratégias a empresa adotou para manter a vigilância das funcionárias? São as
mesmas estratégias adotadas no modelo presencial?
Você acata todas as determinações? O que você faz quando não concorda com certas
determinações?
Você percebe que outras funcionárias lidam com as mesmas questões que você tem
lidado com o trabalho remoto?
Você avalia que tem um ambiente ideal para exercer o trabalho remoto?
Em que espaço você trabalha?
Em que condições você trabalha?
Que medidas a empresa adotou em relação à segurança da informação de clientes?
Que avaliação você faz da sua saúde mental desde que passou ao trabalho remoto?
O que você considera que são pontos positivos e negativos de trabalhar em casa?
Se você pudesse escolher entre as duas formas de trabalho, qual escolheria?
Roteiros específicos
Entrevista 7 - Cazé (27-08-20)
Como você avalia a realização do trabalho em um ambiente compartilhado com
amigos?
Como você enxerga as expectativas que tinha em relação ao mundo / mercado do
trabalho e a realidade em que você se encontra agora?
Por que você começou a desenvolver atividades estranhas à sua rotina anterior com a
adoção do trabalho remoto?

Finalizados os roteiros, iniciei a realização das primeiras entrevistas no mês de agosto de


2020 e o processo foi encerrado em fevereiro de 2021. É necessário pontuar que concomitante
à elaboração dos roteiros, passei a tentar coletar documentos dos órgãos responsáveis por
questões trabalhistas como o Ministério Público do Trabalho, especificamente na
Procuradoria Geral do Trabalho e os sindicatos da categoria, tanto em âmbito estadual quanto
nacional. No caso do sindicato da categoria no estado – Sindicato dos Trabalhadores em
Telecomunicações (SINTTEL) –, depois de 31 dias consecutivos de ligações frustradas e
inúmeros e-mails não respondidos, apelei para os números pessoais de alguns membros da
diretoria executiva. A primeira tentativa de contato se deu com a presidenta do sindicato, Sra.
Iara Martins e, em seguida, com o diretor de administração e finanças Sr. Gilberto Pirajá
Martins Júnior na primeira semana de agosto. No primeiro caso, nenhuma resposta. No
segundo, após uma resposta momentânea, o contato não voltou a ser estabelecido.
30
Já o contato com a Procuradoria Geral do Trabalho foi mais profícuo e após contatos
telefônicos e ofícios enviados, eu recebi um Relatório Processual de Denúncias à Procuradoria
Regional do Trabalho. O documento atesta o número de 91 denúncias de violação de direitos
trabalhistas em empresas de call center no Rio Grande do Norte desde o início da pandemia,
até o dia 27 de julho, data do relatório. No entanto, diante das impossibilidades de coleta de
dados mais gerais sobre a situação do setor em nível nacional, decidi me centrar
exclusivamente nas experiências dos sujeitos da pesquisa.
O próximo capítulo recupera os antecedentes históricos que permitiram a hegemonia das
políticas neoliberais. Será apresentado o percurso de reestruturação produtiva do sistema
capitalista do pós-guerra, responsável por promover as inovações tecnológicas criadoras da
indústria do call center, ao mesmo tempo que impôs ao mundo do trabalho um crescente
processo de deterioração de garantias sociais definidas por diversos autores como
precarização do trabalho. Serão demonstradas a produção de alguns autores sobre o tema,
assim como os diversos conceitos que a categoria home office engloba nesse trabalho.

31
2 – REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA, TECNOLOGIA E HOME
OFFICE: A PRECARIZAÇÃO A CAMINHO DE CASA.

“Jesse – Sabe uma coisa que me deixa furioso?


Tem sempre alguém dizendo como a tecnologia é maravilhosa,
E como ela nos faz poupar tempo.
Mas de que adianta esse tempo poupado, se ninguém usufrui dele?
Ele só é utilizado para se trabalhar mais.
Quer dizer... Ninguém fala:
‘Com o tempo que ganhei usando o meu editor de texto,
eu vou para um monastério Zen e curtir’.
Você não ouve isso.
Celine – O tempo é um conceito abstrato.”

Antes do Amanhecer

2.1 – O PANORAMA TEÓRICO DA PRECARIZAÇÃO

A crença na potencialidade que as revoluções tecnológicas, o desenvolvimento de


maquinários cada vez mais complexos e os avanços científicos apresentam de melhorar a vida
das pessoas, alicerçando o caminho para que a humanidade se torne, finalmente, "senhora do
seu próprio tempo" é antiga e parece renovada a cada novo ciclo de adventos técnicos. O
encurtamento das distâncias possibilitado a partir do século XVIII com a chegada da
locomotiva, do automóvel, do metrô e do primeiro aeroplano, já no século XX, foi
complementado pela revolução digital do pós-segunda guerra que permitiu a conexão virtual
entre continentes com seus cabos submarinos, comunicação via-satélite e uma consequente
“compressão do espaço-tempo” no mundo capitalista nos termos de David Harvey (2008, p.
140):

Os horizontes temporais da tomada de decisões privada e pública se estreitaram,


enquanto a comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte possibilitaram
cada vez mais a difusão imediata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e
variegado. Esses poderes aumentados de flexibilidade e mobilidade permitem que os
empregadores exerçam pressões mais fortes de controle do trabalho sobre uma força de
trabalho de qualquer maneira enfraquecido por dois surtos selvagens de deflação.

32
À medida em que as tecnologias da informação, microeletrônica e telecomunicações foram
ampliando o seu raio de atuação e se tornando centrais para os mais variados setores
econômicos, para a vida de pessoas comuns e, em última instância, para o debate público,
foram surgindo numerosos entusiastas desses avanços que identificaram na Terceira
Revolução Industrial o germe de um novo zeitgeist.
A tecnoutopia de Douglas Rushkoff, expressa em Cyberia de 1994, traduz essa projeção de
um futuro promissor trazido pelo avanço tecnológico em que se casariam “as mais recentes
tecnologias computacionais com os sonhos mais íntimos e as mais antigas verdades
espirituais.” (RUSHKOFF, 1994, p. 4, tradução nossa6). O livro, segundo Rushkoff, retratava
“um momento muito especial na nossa história recente – um momento em que qualquer coisa
parecia possível”. A partir da chamada cybercultura do século XXI, surgiu a tecnoutopia do
conhecimento com a defesa do “livre fluxo de informação” e a possibilidade ilimitada de
compartilhamento de saberes e experiências via software livres, códigos abertos e redes
sociais.
A promessa de emancipação humana pela via tecnológica em que qualquer um pudesse ter
acesso a um mundo sem fronteiras, em que a evolução técnica seria posta a favor das
liberdades, da ciência e do bem-estar das pessoas vem sendo, entretanto, despeçada nas
últimas décadas. Uma decepção materializada no destino trágico de Aaron Swartz7; na captura
de produtos culturais e produção científica encapsulada em sites pagos; na indenização de 15
milhões de dólares em favor da empresa Elsevier que Alexandra Asanovna Elbakyan8 foi
condenada a pagar pela divulgação de artigos científicos de graça no site Sci-Hub; nos efeitos
nefastos da manipulação da opinião pública com as chamadas fake news divulgadas em redes
sociais e aplicativos de mensagens.
Essa espécie de "solucionismo" tecnológico já foi amplamente combatido por quem
entende que toda e qualquer tecnologia é fruto das relações sociais e políticas de um dado
espaço-tempo e, como tal, contém em si mesma tanto potências benéficas quanto deletérias.

6
“Cyberia is about a very special moment in our recent history -- a moment when anything seemed possible.
When an entire subculture – like a kid at a rave trying virtual reality for the first time – saw the wild potentials of
marrying the latest computer technologies with the most intimately held dreams and the most ancient spiritual
truths.”
7
Aaron Swartz foi um programador, escritor, ativista político, pesquisador e hackativista estadunidense que
militou por uma internet livre e acesso público a artigos científicos. Depois de hackear o repositório do Instituto
de Tecnologia do Massachusetts (MIT) e ser preso sob acusação de fraude, ter seus bens confiscados e enfrentar
um processo que, caso perdesse, o sujeitaria a multas de até 1 milhão de dólares e 35 anos de prisão, se matou
em 2013. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Aaron_Swartz>. Acessado em 15 de out, 2020.
8
Alexandra Asanovna Elbakyan é uma programadora de computadores do Cazaquistão e ativista do acesso
gratuito à pesquisas científicas. Em 2011 criou o site Sci-Hub que disponibiliza gratuitamente artigos científicos
pirateados da editora Elsevier. A revista Nature listou-a em 2016 como uma das dez pessoas mais relevantes para
a ciência. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Alexandra_Elbakyan>. Acessado em 15 de out, 2020.

33
Estudioso dessas implicações, Evgeny Morozov (2018, p. 13) relata que a chegada da TV a
cabo nos anos 1960 foi um desses momentos. Alguns grupos ativistas “equipados com
câmeras portáteis e entusiasmados com o potencial da TV a cabo” começaram a produzir
documentos fílmicos para “denunciar injustiças e contestar os poderes constituídos”. Essa
autonomia de conteúdo inédita é, segundo ele, vista como “revolucionária” por aquela
geração. No entanto, aponta:

Quem lê os artigos daquela época – nos Estados Unidos, muitos deles eram publicados
numa revista de contracultura, a Radical Software – fica assombrado com a ingenuidade
absoluta da crença então demonstrada na força política dessas tecnologias. Inspirados
nas obras de Marshall McLuhan e Buckminster Fuller, esses ávidos intelectuais do vídeo
imaginavam que a aldeia global pós-política e pós-capitalista estava prestes a ser
alcançada.

Essa dita “ingenuidade” denunciada por Morozov – a mesma de Rudyard Kipling – é


sintomática de uma certa tranquilidade fatalista que conta com a inevitabilidade do progresso,
como se a única possibilidade de mudança no estado de coisas fosse, irremediavelmente, para
melhor. Contudo, a despeito de todas as inovações técnicas estabelecidas a partir da segunda
metade do século XX, também testemunhamos, em razão inversamente proporcional, o
declínio dos direitos sociais de trabalhadoras e trabalhadores assalariados e, a partir disso,
surge a pergunta: a que propósitos servem todos os avanços tecnológicos quando são
produzidos dentro do sistema capitalista?
Fruto direto da Terceira Revolução Industrial, o setor de call center reflete o dinamismo
típico dos segmentos econômicos criados a partir do desenvolvimento de tecnologias
informacionais. Com a chegada da pandemia de Covid-19 essas características foram
facilitadoras da manutenção de suas atividades, especialmente, pela possibilidade da
realização via remota, algo impensável para áreas do setor produtivo primário e secundário.
A análise de Ruy Braga (2014, p. 26) de que a indústria do call center é um campo que
“sintetiza as principais transformações recentes do mundo do trabalho no Brasil, tornando- se
um ponto de observação privilegiado” se reflete neste estudo. Tal como ele o faz, o call center
é aqui encarado como uma espécie de epítome contemporânea da realidade do trabalho, de
onde podemos extrair uma questão central consequente para diversas outras áreas econômicas:
Qual o papel do trabalho na sociedade urbana informacional do século XXI?
Esse debate é demarcado a partir da Guerra do Yom-Kipur em 1973 e da decorrente crise
do primeiro choque do petróleo quando os membros da Organização dos Países Exportadores
de Petróleo (OPEP), maiores exportadores do mundo, partiram para uma ofensiva contra as

34
petroleiras concorrentes conhecidas como “sete irmãs”. A organização diminuiu a produção
para elevar o preço do barril, aumentou a taxação de royalties e embargou os países
apoiadores de Israel.
Outro fator decisivo para a crise, explica Eric Hobsbawm (1995, p. 190), foi a
transferência do “peso econômico” que, anteriormente ancorado nos EUA passa no pós-
guerra para Europa e Japão. A fuga de dólares que se intensifica na década de 1960, resultado
do déficit causado pelas empreitadas militares do país, enfraqueceu e desvalorizou a moeda.
Essa flutuação foi agravada pelo desequilíbrio da estabilidade da moeda garantida pelas
reservas de ouro do país que somavam à época 75% das reservas mundiais. Com o dólar
enfraquecido, os europeus preferiram a garantia do ouro, o que fez disparar o preço do metal.
Diante disso, o “sistema de pagamento internacional” acabou sendo transferido dos EUA para
os bancos centrais europeus. A pressão americana para que os europeus voltassem a comprar
dólares ao invés de ouro não surtiu efeito e a conversibilidade do dólar acabou, ocasionando o
fim da estabilidade do sistema de pagamentos internacional que saiu do controle americano.
Nenhuma outra nação ocupou esse espaço. Em vista disso, a “internacionalização” e
consequente descentralização do sistema foi consumada. A profunda recessão que se seguiu
acabou com a expansão econômica e a estabilidade conquistada pelo welfare state dos países
desenvolvidos do capitalismo industrial, assim caracterizados por Eric Hobsbawm (1995, p.
222):

Estados em que os gastos com a seguridade social — manutenção de renda, assistência,


educação — se tornaram a maior parte dos gastos públicos totais, e as pessoas
envolvidas em atividades de seguridade social formavam o maior corpo de todo o
funcionalismo público.

Ainda segundo Hobsbawm, todos os países avançados que compunham o centro do


sistema capitalista já eram “Estados de bem-estar” na década de 1970. Seis deles – Austrália,
Bélgica, França, Alemanha Ocidental, Itália e Países Baixos – gastavam mais de 60% de seus
orçamentos na seguridade social.
Depois do período chamado pelo historiador de “Era da Catástrofe” que compreende o
início da Primeira Guerra Mundial em 1914 e se estende até depois do final da Segunda
Guerra Mundial, houve “uma espécie de Era de Ouro” compreendida entre 1947-73, em que
“seguiram-se cerca de 25 ou trinta anos de extraordinário crescimento econômico e
transformação social, anos que provavelmente mudaram de maneira mais profunda a
sociedade humana que qualquer outro período de brevidade comparável.” (HOBSBAWN,
1995, p. 14). Um período cuja escala de impactos econômicos, sociais e culturais foram “a

35
maior, mais rápida e mais fundamental da história registrada” e em que, pela primeira vez, a
humanidade assistiu ao funcionamento de “uma economia mundial única, cada vez mais
integrada e universal, operando em grande medida por sobre as fronteiras de Estado
(‘transnacionalmente’)” (HOBSBAWN, 1995, p. 16).
A depressão geral causada pelo choque do petróleo de 1973 gerou uma onda de
desestabilização social e política tão significativas que inicia a derrocada do welfare state:

Em alguns países desavisados, a crise produziu um verdadeiro holocausto industrial. A


Grã-Bretanha perdeu 25% de sua indústria manufatureira em 1980-4. Entre 1973 e fins
da década de 1980, o número total de pessoas empregadas na manufatura nos seis velhos
países industriais da Europa caiu 7 milhões, ou cerca de um quarto, mais ou menos
metade dos quais entre 1979 e 1983. (HOBSBAWN, 1995, p. 238).

Já segundo David Harvey (2008), essa crise se constitui no golpe que solapa de vez o
fordismo e a sua “rigidez” característica, dando início a um período em que o sistema
predominante é o da acumulação flexível. As décadas de 70 e 80 são caracterizadas por
Harvey (2008, p. 140) como de delineamento e consolidação de “uma série de novas
experiências nos domínios da organização industrial e da vida social e política” intensamente
apoiada na “flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e
padrões de consumo”, assim como na permanência do desemprego estrutural e no retrocesso
do poder sindical. A ruptura com antigos processos e a inovação técnica são tão determinantes
que permitem o “surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de
fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente
identificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional”. Por um lado, o processo
solapa o engessamento fordista e, por outro, elimina as garantias mínimas que o
keynesianismo assegurava:

A profunda recessão de 1973, exacerbada pelo choque do petróleo, evidentemente


retirou o mundo capitalista do sufocante torpor da "estagflação” (estagnação da produção
de bens e alta inflação de preços) e pôs em movimento um conjunto de processos que
solaparam o compromisso fordista. Em conseqüência, as décadas de 70 e 80 foram um
conturbado período de reestruturação econômica e de reajustamento social e político. No
espaço social criado por todas essas oscilações e incertezas, uma série de novas
experiências nos domínios da organização industrial e da vida social e política começou
a tomar forma. Essas experiências podem representar os primeiros ímpetos da passagem
para um regime de acumulação inteiramente novo, associado com um sistema de
regulamentação política e social bem distinta. (HARVEY, 2008, p. 140)

A produção em massa do modelo fordista foi substituída pela produção por demanda “just-
in-time” diversificada em pequenos lotes do toyotismo, a preços menores, reposição de
produtos somente depois da venda dos lotes disponíveis, trabalhadores multifuncionais,

36
implantação de subcontratação e uma prática, ainda mais agressiva, de obsolescência
programada. Esse processo crescente de desindustrialização, aliado ao avanço da automação
de sistemas produtivos e a sequente redução de postos formais de trabalho causou a migração
de uma massa desempregada e desassalariada para o setor de serviços, o subemprego e a
informalidade.
A classe trabalhadora, definida por Ricardo Antunes (2006, p. 235) como aquela que
“compreende a totalidade dos assalariados, homens e mulheres que vivem da venda da sua
força de trabalho, a ‘classe-que-vive-do-trabalho’ e que são despossuídos dos meios de
produção.”, se encontrava desarticulada e experimentou uma crescente perda de força no jogo
decisório. Sua incapacidade de resposta à investida do capital é percebida por Eric Hobsbawm
(1995, p. 234), que atribui o fracasso da geração de maio de 1968 em estabelecer a
“Revolução Proletária”, ao fato de que “após vinte anos de melhoria sem paralelos para os
assalariados em economias de pleno emprego, revolução era a última coisa em que as massas
proletárias pensavam”. Por isso ele demarca o campo de influência desse movimento muito
mais na esfera cultural que política.
Apesar de se constituírem como duas racionalidades distintas, o toyotismo herda do
fordismo a intenção precursora de modelação de um sujeito moral. Uma preocupação que
passa a atravessar todo e qualquer esforço das políticas neoliberais:

O que havia de especial em Ford (e que, em última análise, distingue o fordismo do


taylorismo) era a sua visão, seu reconhecimento explícito de que produção de massa
significava consumo de massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho,
uma nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova
psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista
e populista. O líder comunista italiano Antonio Gramsci, jogado numa das prisões de
Mussolini umas duas décadas mais tarde, extraiu exatamente essa implicação. O
americanismo e o fordismo, observou ele em seus Cadernos do Cárcere, equivaliam ao
"maior esforço coletivo até para criar, com velocidade sem precedentes, e com uma
consciência de propósito sem igual na história, um novo tipo de trabalhador e um novo
tipo de homem”. Os novos métodos de trabalho" são inseparáveis de um modo
específico de viver e de pensar e sentir a vida”. Questões de sexualidade, de família, de
formas de coerção moral, de consumismo e de ação do Estado estavam vinculadas, ao
ver de Gramsci, ao esforço de forjar um tipo particular de trabalhador "adequado ao
novo tipo de trabalho e de processo produtivo". (HOBSBAWN, 1995, p. 121)

A imposição das racionalidades instrumentalizadas para a exploração da força de trabalho


aliada às implicações da reestruturação produtiva que resultam na acumulação flexível não
trouxe apenas consequências macroeconômicas e/ou materiais, trata-se de processos que
reverberam nas instâncias mais íntimas dos indivíduos:

37
A década de 1980 presenciou, nos países de capitalismo avançado, profundas
transformações no mundo do trabalho, nas suas formas de inserção na estrutura
produtiva, nas formas de representação sindical e política. Foram tão intensas as
modificações, que se pode mesmo afirmar que a classe-que-vive-do-trabalho sofreu a
mais aguda crise deste século, que atingiu não só a sua materialidade, mas teve
profundas repercussões na sua subjetividade e, no íntimo inter-relacionamento destes
níveis, afetou a sua forma de ser. (ANTUNES, 2006, p. 23)

Segundo Antunes, as vagas de emprego no setor secundário foram diminuindo a partir da


década de 1980, à medida que um processo de subproletarização ia acontecendo. O velho
proletariado protegido por direitos trabalhistas, delimitação de horas à disposição do
empregador, pagamento de horas extras, seguridade social e sindicatos fortes e combativos foi
sendo substituído por trabalhadores submetidos a contratos de trabalho flexíveis para vagas
temporárias, tempo parcial, até a adoção do trabalho intermitente atual. Essa classe é
denominada por ele como “subproletariado moderno”. Ela vem lidando, ao longo do tempo,
com uma crescente deterioração das condições de trabalho e, consequentemente, das suas
condições de vida.

Entre as distintas formas de flexibilização – em verdade, precarização – podemos


destacar, por exemplo, a salarial, de horário, funcional ou organizativa. A flexibilização
pode ser entendida como “liberdade da empresa” para desempregar trabalhadores; sem
penalidades, quando a produção e as vendas diminuem; liberdade, sempre para a
empresa, para reduzir o horário de trabalho ou de recorrer a mais horas de trabalho;
possibilidade de pagar salários reais mais baixos do que a paridade de trabalho exige;
possibilidade de subdividir a jornada de trabalho em dia e semana segundo as
conveniências das empresas, mudando os horários e as características do trabalho (por
turno, por escala, em tempo parcial, horário flexível etc.); dentre tantas outras formas de
precarização da força de trabalho. (ANTUNES, 2009, p. 234)

É a degradação das garantias trabalhistas e a consequente piora das condições de vida e de


trabalho do proletariado que a presente pesquisa entende como “precarização do trabalho”,
conceito que irá servir de eixo analítico para o estudo do fenômeno home office. Um processo
diagnosticado por Antunes (2001, p.36) como “paralelo à globalização produtiva” em que a
lógica da produção capitalista “vem convertendo a concorrência e a busca da produtividade
num processo destrutivo que tem gerado uma imensa sociedade dos excluídos e dos
precarizados”. A precarização é expressa na desregulamentação das leis trabalhistas,
flexibilização das condições de trabalho, desmantelamento dos direitos sociais,
institucionalização da insegurança, na crescente falta de garantia de emprego.
A análise das diferenças das condições de trabalho das funcionárias de call center antes e
depois da pandemia será feita para a testagem da hipótese de que o trabalho remoto pode ter
causado um aprofundamento das más condições de trabalho no setor. No caso da empresa

38
alvo dessa pesquisa, trata-se de uma corporação terceirizada que contrata funcionárias para a
prestação de serviços de outras empresas. O call center é um segmento amplamente
terceirizado e que pratica, no Brasil, um dos mais baixos salários do mundo, segundo Ruy
Braga (2014, p. 35):

Essa característica oligopolista somada à baixa qualificação da força de trabalho e à


relativa fragilidade dos sindicatos atuantes no setor ajudam a compreender por que,
apesar de a grande maioria dos teleoperadores brasileiros (70%) estar coberta pela
negociação coletiva, os salários brasileiros (3415 dólares anuais – coberto por
negociação coletiva – e 4484 dólares anuais – não coberto por negociação coletiva)
localizam- se entre os mais baixos do mundo no setor, superando apenas os salários dos
trabalhadores indianos.

Para a testagem da hipótese, serão analisadas as configurações de salários, jornadas de


trabalho, horários, escalas, mudanças entre as empresas contratantes da terceirizada a quem as
funcionárias prestam serviço e as “liberdades” de que fala Ricardo Antunes, concedidas à
empresa empregadora em razão da pandemia.
O conceito também é instrumental para a pesquisa porque a indústria de call center tem
funcionado como um gargalo para profissionais qualificados sem outras oportunidades de
trabalho. Uma parcela de jovens recém graduadas/os ou em processo de formação superior em
cursos de diversas áreas do conhecimento não tem encontrado nenhuma colocação no
mercado de trabalho e, sem muita opção, migram para os serviços de transporte individual,
para a informalidade e para o call center.
Esse contingente qualificado procura no setor uma colocação temporária que exige pouca
qualificação e não oferece nenhuma possibilidade de construção de uma “identidade” laboral,
nem daquilo que se pode chamar de “carreira” profissional. A rotatividade intensa é uma das
principais características do setor:

Os baixíssimos salários praticados no setor acompanham a pouca qualificação: após um


treinamento básico, o teleoperador – ainda não proficiente – é colocado na Posição de
Atendimento (PA), necessitando ficar atento aos procedimentos utilizados pelos colegas
mais experientes para alcançar suas metas de vendas ou de número de atendimentos. Em
nossa pesquisa de campo, pudemos registrar por meio de entrevistas que esse tipo de
situação acrescenta uma importante carga de estresse nos primeiros meses de trabalho do
teleoperador, até que ele se sinta habituado ao produto. Exatamente porque a indústria de
call center não necessita, em termos gerais, de uma força de trabalho qualificada, as
empresas beneficiam- se de um regime de relações de trabalho apoiado sobre elevadas
taxas de rotatividade. (BRAGA, 2014, p. 35):

As jovens que buscam uma vaga no setor depois de constatar que a conquista do diploma
em nível superior não se traduziu em garantia de melhoria das suas condições materiais,

39
experimentam o que Giovanni Alves (2013, p. 204) define como uma “erosão das promessas
de realização pessoal das individualidades de classe por meio da equação educação-como-
capital-humano, emprego-como-carreira-profissional e consumo-como-ethos-consumista”.
À vista disso, entende-se que a precarização pode se referir à piora individual que
trabalhadoras e trabalhadores passam a experimentar com a flexibilização da legislação
trabalhista que regem as leis de um país, experimentando condições cada vez piores em sua
caminhada profissional. No entanto, ela também pode ser entendida em relação ao marcador
geracional que faz com que as novas gerações adentrem o mercado de trabalho em condições
piores que a anterior.
É o que entende Robert Castel (2003, p. 303) quando discute a instituição do salário a
partir da Revolução Industrial. Segundo ele, a estabilidade da relação salarial promovida pelo
sistema fordista foi responsável por encerrar as práticas de remuneração pontual por uma
tarefa qualquer e passou a garantir direitos, acessos a benefícios fora do trabalho (auxílio-
doença, seguro contra acidentes e aposentadoria) e também proporcionou uma maior
participação na vida social por meio do consumo, habitação, educação e, a partir de 1936, até
mesmo do lazer.
Esse ciclo é interrompido por um processo de degradação da condição salarial a partir dos
anos 70 por causa de uma “aceitação sem mediações da hegemonia do mercado”. Nos anos 80,
ainda segundo ele, a realidade era que “a maior parte das próprias ações sociais são heranças
de uma época passada, quando compromissos sociais eram compatíveis com imperativos do
mercado”. Diante disso, seria um erro achar que a piora das condições estabelecidas pelo
sistema salarial seria algo atípico e superável:

A representação do desemprego como um fenômeno também ele atípico, em resumo


irracional e que se poderia erradicar à custa de um pouco de boa vontade e de
imaginação, todas as coisas permanecendo idênticas aliás, também é, sem dúvida, a
expressão de um otimismo superado. O desemprego não é uma bolha que se formou nas
relações de trabalho e que poderia ser reabsorvido. Começa a tornar-se claro que
precarização do emprego e do desemprego se inseriram na dinâmica atual da
modernização. São as consequências necessárias dos novos modos de estruturação do
emprego, a sombra lançada pelas reestruturações industriais e pela luta em favor da
competitividade – que, efetivamente, fazem sombra para muita gente. É a própria
estrutura da relação salarial que está ameaçada de ser novamente questionada. (CASTEL,
1998, p. 516 )

Uma outra visão sobre a precarização é oferecida por Giovanni Alves (2011, p.2) quando
tenta redefinir o significado do conceito de força de trabalho como mercadoria e trabalho vivo,
explicando que “As individualidades pessoais de classe, homens e mulheres que trabalham,
podem ser apreendidas tanto como mera (1) força de trabalho como mercadoria; ou como (2)
40
trabalho vivo no sentido de ser humano-genérico.”. É uma reflexão provocada pelo conceito
de “homem que trabalha” de György Lukács. Segundo Alves, essa noção é definidora da
“cisão histórico ontológica que constitui as individualidades pessoais de classe”, pois no
sistema capitalista o trabalhador assalariado é força de trabalho e mercadoria, ao mesmo
tempo, que é um “ser humano-genérico”. Esse ser humano genérico é denominado por Alves
como “trabalho vivo, na medida em que o homem, na perspectiva ontológica, é um animal
que se fez homem através do trabalho”. Consequentemente, Alves entende que a precarização
do trabalho atual não é apenas uma deterioração da força de trabalho como mercadoria, mas
uma verdadeira “precarização do homem que trabalha, no sentido de desefetivação do homem
como ser genérico”. Trata-se de um processo que teria como consequências novas maneiras
de (des)constituição do ser genérico do homem.
A compreensão de que a deterioração gradual das condições objetivas de trabalho
repercutem na esfera subjetiva de nossas individualidades com consequências para todo o
conjunto das nossas relações sociais vai auxiliar a interpretação das experiências singulares
das trabalhadoras com quem essa pesquisa dialoga, por entender como Alves (2011, p.3) que
“a precarização do trabalho e a precarização do homem que trabalha implicam a abertura de
uma tríplice crise da subjetividade humana: a crise da vida pessoal, a crise de sociabilidade e a
crise de auto-referência pessoal”.
Essa análise é consonante com aquela oferecida por Pierre Dardot e Christian Laval (2016,
p. 15) que entendem o neoliberalismo como um sistema com repercussões que vão muito
além daquelas mais facilmente identificadas na esfera econômica:

Há quase um terço de século, essa norma de vida rege as políticas públicas, comanda as
relações econômicas mundiais, transforma a sociedade, remodela a subjetividade. As
circunstâncias desse sucesso normativo foram descritas inúmeras vezes. Ora sob seu
aspecto político (a conquista do poder pelas forças neoliberais), ora sob seu aspecto
econômico (o rápido crescimento do capitalismo financeiro globalizado), ora sob seu
aspecto social (a individualização das relações sociais às expensas das solidariedades
coletivas, a polarização extrema entre ricos e pobres), ora sob seu aspecto subjetivo (o
surgimento de um novo sujeito, o desenvolvimento de novas patologias psíquicas). Tudo
isso são dimensões complementares da nova razão do mundo. Devemos entender, por
isso, que essa razão é global, nos dois sentidos que pode ter o termo: é “mundial”, no
sentido de que vale de imediato para o mundo todo; e, ademais, longe de limitar-se à
esfera econômica, tende à totalização, isto é, a “fazer o mundo” por seu poder de
integração de todas as dimensões da existência humana. Razão do mundo, mas ao
mesmo tempo uma “razão- mundo”.

Como indicam os autores, o neoliberalismo é entendido neste trabalho, portanto, como um


sistema político, econômico, social e subjetivo. Uma matriz de racionalidades para as quais
não há aspecto impassível de ser absorvido. É por tratar-se de um sistema, por essência,

41
totalizante que se busca, nessa pesquisa, o rastro de seus efeitos em diferentes aspectos: dos
sociais às esferas mais íntimas dos sujeitos.

2.2 – O HOME OFFICE NA PANDEMIA: A PRECARIZAÇÃO A CAMINHO


DE CASA.

Interessado numa realidade que, cada vez mais, desmobiliza trabalhadoras e trabalhadores
assalariados, destituindo-os de direitos trabalhistas conquistados ao longo de todo o século
XX, além de promover seu isolamento em experiências de trabalho uberizadas em que a ideia
de “ser empresário de si mesmo” tenta impedir a construção de qualquer consciência de classe,
neste ponto é preciso delimitar a categoria de trabalho que constitui o foco último desse
estudo: o teletrabalho.
Essa categoria laboral é definida pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em seu
artigo 75-B (2017, p.29), incluído pela Reforma Trabalhista de 2017: “Considera-se
teletrabalho a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do
empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua
natureza, não se constituam como trabalho externo.”. A única menção a categoria trabalho
remoto na CLT está no artigo Art. 75-D que trata da responsabilidade pelos equipamentos e
infraestrutura necessária a esse tipo de trabalho, o que nos permite concluir que a legislação
trabalhista trata as duas categorias como equivalentes.
Essa pesquisa, no entanto, não se volta ao tipo de teletrabalho em que a funcionária exerce
suas atividades em qualquer lugar fora das dependências da empresa empregadora, como os
ambientes de coworking, cafés, shoppings ou no campo de pesquisa, por exemplo. Ela se
refere ao teletrabalho exercido na individualidade dos lares das trabalhadoras que, diante da
ameaça da pandemia de Covid-19, tiveram suas atividades laborais transferidas para suas
residências, o regime comumente conhecido como home office.
Tecnicamente, o home office não existe como categoria laboral nas leis trabalhistas
brasileiras por ser uma corruptela da língua inglesa para a expressão “work-from-home” que
designa a realização do trabalho feito em casa. Para esclarecer o que este estudo entende por
home office passemos a delimitar o conceito.
O guia da Organização Internacional do Trabalho (International Labor Organization - ILO)
lançado em 5 de junho de 2020 com orientações para coleta de dados estatísticos no mundo
do trabalho em razão da Covid-19 traz o conceito de trabalho remoto e explica que não há

42
ainda consenso sobre sua definição. Por esse motivo, o termo ainda se encontra em disputa. A
organização, entretanto, passa a definí-lo como:

Situações onde (sic) o trabalho é integralmente ou parcialmente executado em um local


de trabalho alternativo diferente do lugar usual. O trabalho remoto pode ser realizado em
uma variedade de possíveis lugares, todos eles podendo ser vistos como uma alternativa
ao local onde se poderia esperar que o trabalho fosse realizado, levando em consideração
a profissão e o status empregatício. (ILO, 2020, p. 5. tradução nossa9)

Essa definição é abrangente e serve a empregadas e empregados em diversas situações de


trabalho fora da empresa: profissionais em trânsito quando a execução do seu trabalho é
condicionada a viagens constantes, autônomos, liberais, os chamados “PJs” (profissionais que
prestam serviço a empresas como pessoas jurídicas), freelancers. Também pode se referir a
diversas modalidades de vínculo: contratos por tempo determinado ou indeterminado,
flexíveis ou não, em regime parcial ou integral de jornada. As tarefas podem ser executadas
em modo on line ou off line e nem mesmo precisam ser atreladas a um lugar específico,
podendo ser realizadas em qualquer lugar.
A Organização Internacional do Trabalho também define o conceito de teletrabalho,
tratando-o como uma subcategoria do trabalho remoto. O que caracterizaria este tipo de
atividade é que ele depende do uso de aparelhos eletrônicos:

O uso de dispositivos eletrônicos pessoais como computadores, tablets ou telefones


(móveis ou fixos) para realizar o trabalho: o uso de dispositivos eletrônicos pessoais
precisa ser uma parte essencial na realização do trabalho. Os diferentes dispositivos ou
ferramentas podem ser usadas para a comunicação com colegas, clientes, entre outros,
assim como para realizar tarefas de trabalho específicas sem estar em contato direto com
outras pessoas. (ILO, 2020, p. 5. tradução nossa10)

Dado que as operadoras do call center em home office tanto trabalham fora das
dependências da empresa quanto necessitam desses dispositivos eletrônicos para a realização
do seu trabalho, esta pesquisa trata a categoria home office como teletrabalho realizado em
domicílio.
Outra categoria importante a ser incorporada no conceito home office é o de trabalho
domiciliar. Esse tipo de trabalho é mais associado a indivíduos que, ou estão no topo da
9
“Currently, there is no international statistical definition of remote work. However, remote work can be
described as situations where the work is fully or partly carried out on an alternative worksite other than the
default place of work. Remote work can be performed in a variety of possible locations, all of which can be
viewed as an alternative to the location where the work could typically be expected to be carried out, taking into
account the profession and the status in employment.”
10
“The use of personal electronic devices such as a computer, tablet or telephone (mobile or landline) to perform
the work: The use of personal electronic devices needs to be an essential part of carrying out the work. The
different devices or tools can be used for communicating with colleagues, clients and so on, as well for carrying
out specific job-related tasks without being directly in contact with other persons”.

43
pirâmide produtiva com maior controle das suas obrigações laborais, envolvidos em relações
profissionais mais horizontalizadas (algo que será explorado no próximo capítulo) ou fazem
parte da parcela da população que enfrenta diferentes tipos de exclusão social, realizando os
chamados “bicos”. Essas atividades não requerem qualificação especial e são geralmente
ligadas à informalidade do trabalho. No caso das operadoras que colaboram com este estudo,
porém, o trabalho domiciliar está atrelado às condições formais de trabalho regulamentadas
pela CLT. São empregadas que trabalham com carteira assinada, no regime de contrato
individual de trabalho de prazo indeterminado, além de realizar suas atividades em tempo
integral, cumprindo jornadas de 6h20.
Longe de ser uma novidade, o trabalho domiciliar é realizado desde tempos imemoriais,
nos moldes artesanais e no ritmo de produção que pequenos grupos de trabalhadoras e
trabalhadores impunham à tarefa, fossem eles moradores de uma mesma localidade, pessoas
que compartilhavam o mesmo ofício ou famílias. Com o advento da Modernidade, seu caráter
passa a ser reconfigurado, adotando as conformidades resultantes das crises estruturalmente
cíclicas do sistema capitalista, com reverberações que se desdobram até o home office, sua
versão contemporânea.
As imposições produtivas do capitalismo acarretam um duplo movimento em relação ao
trabalho domiciliar: inicialmente, ele expropria os meios de produção das trabalhadoras e
trabalhadores eliminando a típica forma de produção caseira artesanal e autônoma da pré-
modernidade. Desloca essa massa, agora assalariada, para os centros urbanos, se apropriando
dos seus conhecimentos no processo para, finalmente, reintroduzir nas residências um modo
de produzir subordinado, apartado da integral compreensão anterior sobre os processos
produtivos e insuficiente para garantir os meios de subsistência dessa classe. Desse modo, o
trabalho domiciliar é outra instância alcançada pelos tentáculos da reificação do trabalho
desencadeada pelo capitalismo.
Esse processo de reconfiguração do trabalho domiciliar foi investigado por Karl Marx
(1986, p. 90) ao tratar sobre “O revolucionamento da manufatura, do artesanato e do trabalho
domiciliar pela grande indústria”, discussão que ele pontua em três momentos: a “superação
da cooperação baseada no artesanato e na divisão do trabalho”, a “reação do sistema fabril
sobre a manufatura e o trabalho domiciliar” e “a manufatura moderna”.
No primeiro momento, Marx trata da inserção da automação nas indústrias e como isso
desmantela a cooperação baseada no artesanato, assim como a manufatura baseada na divisão
do trabalho artesanal. A partir do desenvolvimento do sistema fabril e da revolução agrícola,
diz ele, tanto a escala da produção se expande, quanto há uma mudança no seu caráter. Com o

44
avanço da maquinaria nas manufaturas, a fixidez que marcava a antiga organização do
trabalho é dissolvida, com isso instaura-se um estado de mudança permanente das condições
laborais:

Onde a natureza do processo não condicionava desde o início a produção em larga escala,
as novas indústrias surgidas nas últimas décadas, como fábricas de envelopes, de penas
de aço etc., percorriam, em regra, primeiro a empresa artesanal e depois a empresa
manufatureira como fases transitórias, de curta duração, até a empresa fabril. Essa
metamorfose continua a mais difícil onde a produção manufatureira da mercadoria não é
constituída por uma seqüência de processos de desenvolvimento, mas por uma
multiplicidade de processos díspares. (MARX, 1986, p. 91)

O período é demarcado pela inserção do que Marx, evocando os ingleses, chama de "cheap
labour" ou "trabalho barato" que revoluciona a composição do trabalho "pela base"
incorporando à indústria a mão-de-obra de mulheres, crianças de quaisquer idades e
trabalhadoras e trabalhadores não especializados. Um processo caracterizado por Marx como
de "antítese ao período da manufatura" que, entre outros efeitos colaterais, abriu a porta para
que o sistema adentrasse a casa das trabalhadoras e trabalhadores:

Isso vale não só para toda a produção combinada em larga escala, quer use maquinaria,
quer não, mas também para a assim chamada indústria domiciliar, seja ela exercida nas
moradias privadas dos trabalhadores ou em pequenas oficinas. Essa assim chamada
moderna indústria domiciliar nada tem em comum, exceto o nome, com a antiga, que
pressupõe artesanato urbano independente, economia camponesa autônoma e, antes de
tudo, uma casa da família trabalhadora. Ela está agora transformada no departamento
externo da fábrica, da manufatura ou da grande loja. Ao lado dos trabalhadores fabris,
dos trabalhadores manufatureiros e dos artesãos, que concentra espacialmente em
grandes massas e comanda diretamente, o capital movimenta, por fios invisíveis, outro
exército de trabalhadores domiciliares espalhados pelas grandes cidades e pela zona rural.
(MARX, 1986, p. 92)

Segundo Marx, esse movimento causa uma escalada de intensidade na exploração das
forças de trabalho, começando na fábrica “propriamente dita” passando pela manufatura
moderna que explora e expõe “da maneira mais inescrupulosa” o corpo de mulheres e
crianças a acidentes de trabalho, até tornar-se “ainda mais desavergonhada” quando,
finalmente, atinge toda a intensidade no trabalho domiciliar. Já neste contexto, o autor
identifica os danos que a desagregação trazida pelo trabalho em casa acarreta na classe
trabalhadora. Segundo ele, isso acontece porque isolados em suas casas “a capacidade de
resistência dos trabalhadores diminui com sua dispersão” e, além disso, o distanciamento
interpõe entre patrão e empregado a atuação de uma “série de parasitas”. Nessa análise, é
possível perceber os processos de degradação do trabalho típicos do sistema capitalista que,
de forma cíclica, vem desembocar na versão neoliberal do fenômeno, o home office:

45
O trabalho domiciliar luta em toda parte com empresas mecanizadas ou ao menos
manufatureiras no mesmo ramo da produção, a pobreza rouba do trabalhador as
condições mais necessárias ao trabalho, como espaço, luz, ventilação etc., cresce a
irregularidade do emprego e, finalmente, nesses últimos refúgios daqueles que a grande
indústria e a grande agricultura tornaram “supérfluos”, a concorrência entre os
trabalhadores alcança necessariamente seu máximo. A economia dos meios de produção,
desenvolvida sistematicamente apenas pela produção mecanizada, que de antemão e ao
mesmo tempo é o desperdício mais inescrupuloso de força de trabalho e roubo dos
pressupostos normais da função do trabalho, acentua agora tanto mais esse seu lado
antagônico e homicida quanto menos estiverem desenvolvidas num ramo da indústria a
força produtiva social do trabalho e a base técnica de processos combinados de trabalho.

Diante da expropriação de ferramentas e conhecimentos técnicos dos trabalhadores, a


mecanização dos processos produtivos impõem uma concorrência a tal ponto impiedosa, que
o assalariamento surge como alternativa única de sobrevivência. A concorrência, aliás, já
aparece como condição do jogo, tanto entre aqueles que o comandam quanto entre os que se
encontram na base da pirâmide sem qualquer poder decisório. Marx aponta as limitações
infraestruturais da casa dos trabalhadores, inferindo prejuízos a saúde dos indivíduos diante da
inadequação do espaço. E, finalmente, acusa as instabilidades das condições de emprego no
capitalismo, entrevendo a maneira como o sistema estabelece relações de produção que
aniquilam as dimensões fecundas do trabalho. Um processo que, na verdade, já estabelece a
degradação da vida como uma característica intrínseca do capitalismo.
De modo análogo, outro autor que também enxerga o trabalho em domicílio como uma
outra maneira de exploração capitalista é Ricardo Antunes (2009, p. 237). Ao delinear um
“conjunto de metamorfoses que alterou em alguma medida a forma de ser da classe
trabalhadora” frente à reestruturação produtiva das últimas décadas, algo que descreve como a
“nova morfologia do trabalho”, ele classifica esse tipo de atividade como uma das tendências
de precarização:

Outra tendência que gostaríamos de apontar é a da expansão do trabalho à domicílio,


permitida pela desconcentração do processo produtivo, pelo crescimento de pequenas e
médias unidades produtivas. Através da telemática e das tecnologias de informação
(além do avanço das formas de flexibilização e precarização do trabalho que estamos
indicando), com o avanço da horizontalização do capital produtivo, o trabalho produtivo
doméstico vem presenciando formas de expansão em várias partes do mundo. Desse
modo, o trabalho produtivo a domicílio mescla-se com o trabalho reprodutivo doméstico,
aumentando as formas de exploração do contingente feminino.

Observando o aprofundamento do fluxo de degradação do trabalho diante das políticas


neoliberais, Antunes atualiza o trabalho domiciliar para o contexto das transformações
causadas pelas tecnologias de informação. Além disso, aplica no contexto brasileiro,
juntamente com Ruy Braga e outros autores, a ideia de “infoproletários”, tomando como

46
marco o processo de desestatização das telecomunicações e privatização do sistema Telebrás
na década de 1990, responsáveis pela instalação da indústria do call center no país:

Infoproletários sustenta que, ao contrário daquilo que é, com frequência, advogado pelas
teses da “sociedade pós-industrial”, o trabalho no setor de telemarketing é rigidamente
condicionado pelas características desse processo de reprodução contraditória. Articula
tecnologias do século XXI com condições de trabalho do século XIX, mescla estratégias
de intensa e brutal emulação do teleoperador, ao modo da flexibilidade toyotizada, com
técnicas gerenciais tayloristas de controle sobre o trabalhador; associa o serviço em
grupo com a individualização das relações trabalhistas, estimula a cooperação ao mesmo
tempo que fortalece a concorrência entre os teleoperadores, dentre tantas outras
alterações, ampliando as formas mais complexificadas de estranhamento e alienação
contemporânea do trabalho. (ANTUNES; BRAGA, 2009, p. 10)

A análise de Antunes e Braga indicam que a pretensa era “pós-industrial” de avanços no


campo informacional abrigou a contradição de também conservar racionalidades herdadas das
configurações reservadas às indústrias. Fato também observado por Selma Venco (2006b, p.8)
ao considerar o call center como “a fábrica do século XIX nos serviços do século XXI” em
que “se desenvolve parte da combinação de elementos modernos, como a fusão da
informática e das telecomunicações – a telemática −, mas faz uso de formas tradicionais de
prescrição e controle do trabalho, inspiradas na “organização científica do trabalho” elaborada
por Frederich Taylor.”. O taylorismo não sucumbiu com a passagem para a sociedade pós-
industrial da economia de serviços, o call center é um setor que reflete sua subsistência.
Neste contexto, é a junção dos conceitos de teletrabalho, trabalho remoto e trabalho
domiciliar que compõem o que este estudo entende como home office, posto que está
condicionado às tecnologias informacionais para ser realizado e monitorado, ao mesmo tempo
em que é executado fora das dependências da empresa contratante. No entanto, as empregadas
não executam suas tarefas em qualquer lugar, apenas em seu ambiente doméstico.
A “nova morfologia” de que fala Antunes, causada por todas essas dinâmicas estabelecidas
a partir da década de 1970 engloba motoboys, assalariados do fast-food e hipermercados,
terceirizados, toda sorte de trabalhadoras e trabalhadores submetidos às versões precarizadas
de trabalho, entre eles “os novos proletários de serviços, de que são exemplos as trabalhadoras
de telemarketing e call center”. Essa categoria de trabalhadoras constitui o último nível da
cadeia de profissionais da informação anteriormente conhecidos como profissionais de
“colarinho branco”. Isto é, trabalhadoras e trabalhadores de escritório que, com a chegada da
informatização, são alçados a uma nova categoria profissional denominada por Ursula Huws
(2017, p. 14) como “cibertariado”:

Argumenta-se aqui que a introdução das tecnologias da informação e da comunicação


tem como objetivo não a abolição do trabalho, mas seu barateamento e disciplinamento.

47
Ela altera também a divisão técnica entre trabalho manual e intelectual criando novos
tipos rotinizados de trabalho de colarinho branco, enquanto torna algumas tarefas
manuais obsoletas. Os trabalhadores que realizam os novos tipos de trabalhos rotinizados
de processamento de informações, distribuídos em todo o mundo em cadeias de valor
dispersas, podem ser considerados uma nova subdivisão da classe trabalhadora - um
“cibertariado". Muitas das tarefas realizadas por esses trabalhadores substituem aquelas
que eram anteriormente realizadas cara a cara, por trabalhadores de serviços que
interagiam diretamente com o público. A digitalização de alguns aspectos do trabalho e o
uso de tecnologias de telecomunicação possibilitam não apenas a realocação do trabalho
independentemente da distância, mas também a transferência de algumas das tarefas do
trabalhador remunerado para o consumidor não remunerado, criando novos tipos de
"trabalho de consumo”.

Os primeiros estudos sobre o trabalho feito fora das dependências da empresa com o
suporte das tecnologias da comunicação, o “telecommuting”, datam do final da década de 70.
O estudo definitivo de Jack Nilles (et al, 1976), por exemplo, buscava propor alternativas para
diminuir os crescentes congestionamentos nas grandes cidades por meio do trabalho remoto.
Logo depois, começam a surgir pesquisas que analisavam as mudanças sociais que o trabalho
em casa poderia proporcionar a empregadores e empregadas. Dois estudos da década de 80 já
pensam o teletrabalho em casa em termos de vantagens e desvantagens do modelo, caso de
Joanne Pratt (1984), que via no modelo uma alternativa para a redução de custos para as
empresas e aumento de produtividade, melhor uso do tempo e até uma possibilidade de
trabalho para quem tinha que se dedicar ao cuidado da família; e o estudo de caso com
gestores e profissionais de programação de Gerardine Desanctis (1984) que buscava coletar o
nível de satisfação pessoal das/dos profissionais do setor de tecnologia que trabalhavam em
casa.
No Brasil, os estudos atuais sobre o home office se concentram nas áreas de Administração
de Empresas, voltados às análises sobre gestão de produção. Há poucos estudos sobre o tema
nas áreas das Ciências Sociais e, como constatam Julia Rafalski e Alexsandro Andrade (2015,
p. 434): “Os poucos estudos brasileiros disponíveis sobre esta temática se alocam em
dissertações, teses e trabalhos publicados em anais de eventos científicos.”.
Um desses trabalhos é a tese de doutoramento “Do fim do trabalho ao trabalho sem fim: o
trabalho e a vida dos trabalhadores digitais em Home Office” de Daniela Ribeiro de Oliveira.
Em sua tese, Oliveira (2017, p.58) reflete sobre os efeitos que essa modalidade laboral
acarreta na vida privada de trabalhadores do setor de tecnologia da informação, considerando
as mudanças recentes do mundo do trabalho:

É no contexto destas transformações que mobilizamos a relação entre trabalho e as


tecnologias informacionais e as possibilidades criadas para o trabalho remoto e
problematizamos o home office enquanto dispositivo não só de organização do trabalho
mas de organização e vida. A questão que está colocada é como os trabalhadores

48
articulam vida privada e o trabalho considerando que a realização do trabalho é ela
própria deslocalizada. As transformações do trabalho contemporâneo, as inovações e
expansão das tecnologias comunicacionais tem apontado como tendência o
embaçamento das fronteiras entre trabalho e vida.

São preocupações muito similares às encontradas nesta pesquisa, dado que Oliveira
também identifica um discurso que se cola à prática home office e busca entender as
construções do imaginário sobre essa categoria de trabalho em três blogs que discutiam o
tema. Focada nas experiências das/dos profissionais da área da tecnologia da informação, ela
voltou sua pesquisa para as vivências de seus interlocutores, suas estratégias de manejo do
tempo, as dissonâncias entre tempo de trabalho versus tempo da vida. Entretanto, o contraste
com a presente pesquisa refere-se ao fato de que Oliveira estudou uma categoria de
trabalhadores digitais desenvolvedores de softwares, profissionais que estão no outro lado da
cadeia produtiva dos quais participam as operadoras de call center, a da produção criativa.
Além disso, são trabalhadoras e trabalhadores remotos em contratos do tipo “CLT Flex” que
consiste na combinação entre formalização de contrato pela CLT com remuneração
parcialmente declarada.” (OLIVEIRA, 2017, p. 34) e que atuavam em um contexto pré-
pandemia. São dois fatores que permitiram às/aos participantes da pesquisa de Daniela
Oliveira acionar um nível de negociação com o modelo, fato completamente negado àquelas
com as quais este estudo dialoga.
As construções do imaginário sobre o home office investigado por Oliveira decorrem
diretamente do que Huws identifica como “senso comum”. Ao tratar de “uma nova ortodoxia”,
ela julga que as transformações causadas pela revolução tecnológica informacional
acarretaram uma paradoxal imagética recorrente no final do século XX, oferecida com a
emergência do cibertariado, o mito da economia sem peso:

Uma nova ortodoxia está sendo construída, uma ortodoxia na qual se toma como certo
que o "conhecimento” é a única fonte de valor, que o trabalho é contingente e
deslocalizável, que a globalizacão é um processo inevitável e inexorável, e que, por
implicação, resistir a ela é inútil e que qualquer asserção física, aqui e agora, sobre o
corpo humano está certamente fora de moda. As implicações da emergência desse "senso
comum” são imensas. Capazes de moldar temas tão diversos como tributação, legislação
trabalhista, volume de gastos com seguridade social, direitos de privacidade, políticas
ambientais, essas noções servem para legitimar uma nova agenda política e preparar o
terreno para uma nova fase de acumulação do capital. (HUWS, 2017, p. 166)

O salvacionismo tecnológico foi popularizado em expressões como "morte da distância",


"mundo sem peso", "economia baseada no conhecimento", "geografia sem distância",
"história sem tempo", "transações sem dinheiro". Por meio de um discurso legitimador “um
consenso parece estar emergindo”, avisa Huws, ele anuncia que o mundo estaria ficando

49
“desmaterializado”. Trata-se das mesmas estratégias que podem ser observadas na construção
de consenso em torno do home office. Um momento de crise cíclica do capitalismo na sua fase
pós-industrial financeira que na sua perseguição pela diminuição dos custos de produção, abre
um outro campo de exploração na agenda neoliberal.
Com o delineamento do objeto de estudo desse trabalho, no próximo capítulo serão
apresentadas as experiências das trabalhadoras dessa empresa de call center, assim como a
lógica de funcionamento das técnicas para estímulo à produção e vigilância das funcionárias,
seguido dos eventos desencadeados pela pandemia de Covid-19 que acabaram por implantar o
modelo de trabalho em home office.

50
3 – O CENÁRIO LABORAL DO CALL CENTER: O ENCONTRO COM
OS SUJEITOS

Neste capítulo, serão compartilhadas as impressões mais relevantes das interlocutoras


desse estudo sobre suas experiências de trabalho no call center, seguindo a estruturação dos
roteiros apresentados no Capítulo 1. Partindo do estado de coisas do setor desde o período pré
pandemia de Covid-19, passando por uma análise dos sistemas de vigilância e controle de
produção desenhados para adestrar a subjetividade das funcionárias e, finalmente, observando
o desencadeamento dos eventos causados pela pandemia pretende-se imprimir uma visão
processual ao estudo. Considerando esses dados, ao mergulharmos nas experiências vividas
pelos sujeitos que passaram a trabalhar em casa no Capítulo 4, poderemos estabelecer
comparações entre as diferentes perspectivas avaliando as perdas e ganhos da adoção do home
office.

3.1 – A CENA LABORAL DO CALL CENTER

Os significados do trabalho
A construção social que molda a percepção de que o trabalho será garantidor das
conquistas necessárias a uma vida digna, minimamente confortável e satisfatória tem sido
desafiada por um novo ciclo de crise econômica agravada pela pandemia de Covid-19. Nesta
pesquisa, os sujeitos demonstram a necessidade de enfrentar os contrastes entre aquilo que
esperavam alcançar e aquilo que realmente encontraram ao adentrar o mundo do trabalho:

Basicamente, eu queria ter um salário que eu conseguisse, inicialmente, pagar um


aluguel... Tipo... eu sempre quis morar sozinha. Então, eu queria ter um salário que eu
conseguisse pagar... morar sozinha e pagar minhas contas e conseguir guardar um
dinheiro para ter uma casa própria, para ter um carro ou uma moto. Alguma coisa assim...
Sempre quis viajar. Então, eu queria ter um nível de salário... um nível de trabalho, né?...
que eu conseguisse essas coisas. (Larissa, 25 / Entrevista concedida em 16 de setembro,
2020).
...

O lugar do trabalho tava muito relacionado com essa coisa da autonomia. Como algo que
te impulsiona, que te arremessa para algum lugar, que te realiza de alguma forma, que
transforma você de alguma maneira e a partir disso você faz alguma coisa que você goste.
Sei lá... viajar, comprar alguma coisa que você goste ou alguma comida diferente. Enfim,
alguma coisa que faça parte de quem você é, que transforme você, que te impulsione,
que te leve a algum lugar. É semelhante a essa transformação que eu tive quando eu saí
de casa. E se eu voltar um pouquinho mais, o trabalho atua num lugar mais espetacular
ainda, quando eu tava no ensino médio porque é sempre: “Eu vou conseguir um trabalho.
A partir disso, meu Deus! Eu vou transformar toda a minha vida.” (Cazé, 23 / Entrevista
concedida em 27 de agosto, 2020).

51
A maioria das participantes vem de situações socioeconômicas difíceis e, hoje, a renda
familiar média é de 3,4 salários-mínimos. Com idades que variam de 21 a 29 anos, suas
ambições em relação à vida profissional tinham a ver, de forma mais pronunciada, com a
necessidade de complementar a renda familiar e a urgência de “ajudar em casa”. Essa
determinação foi impulsionada pelo desejo de maior autonomia e liberdade que só poderiam
ser adquiridas com alguma estabilidade financeira. O emprego aparece, majoritariamente,
como forma de suprir as necessidades materiais de subsistência, mas também é visto como o
último pontapé que catapulta à vida adulta. Um dado aparentemente óbvio, mas revelador do
contingente que se encontra no call center: entre as participantes, há a ideia generalizada de
que só fica no setor “quem precisa mesmo”, fala recorrente nas entrevistas.
Nenhuma das 13 participantes dessa pesquisa tem filhos e com exceção de três mulheres
casadas, são todas solteiras. Há exemplos de contratantes que admitem funcionárias para 8h
de carga horária de trabalho, especialmente bancos e empresas de cobranças, mas, todas as
interlocutoras dessa pesquisa trabalham com jornada de 6:20h. Para elas, o call center surgiu
como uma alternativa conveniente em razão da jornada de trabalho reduzida, o que permite
conciliar o horário de trabalho com outras atividades. Trata-se de um grupo de trabalhadoras
estudantes que já concluíram ou estão em processo de conclusão da graduação. Para essas
pessoas, ter um turno livre que permitisse a continuação dos estudos foi decisivo na busca da
vaga.
O perfil desses sujeitos condensa aquele já identificado por Ruy Braga como típico do call
center. Ao sintetizar as tendências que a agenda neoliberal impôs ao mercado laboral no
Brasil a partir de meados dos anos 2000, ele define as características do setor: “[...]
formalização, baixos salários, terceirização, significativo aumento do assalariamento feminino,
incorporação de jovens não brancos, ampliação do emprego no setor de serviços, elevação da
taxa de rotatividade do trabalho, etc.” (2014, p. 30).
O setor de call center não é visto por esse perfil de interlocutoras como exigente, no que
diz respeito a qualificação exigida das funcionárias. O processo seletivo para entrada na
empresa é composto por duas provas objetivas com operações básicas de matemática,
raciocínio lógico e um ditado de palavras. Posteriormente, uma redação com temas sobre
comunicação e teleatendimento e um teste de digitação que avalia precisão e velocidade de
teclagem, uma dinâmica de grupo e uma entrevista da empresa contratante, outra com o
produto específico para o qual o serviço será prestado e exames médicos que tentam aferir
problemas de audição e visão. Por causa da alta rotatividade da empresa, aliada a um processo
de seleção considerado pelas interlocutoras como “simples”, há a percepção de que, para esse

52
público, é fácil conseguir uma vaga. Por isso mesmo, com exceção apenas da entrevistada
Hannah que já havia trabalhado em outra empresa de call center, esta se constitui como a
primeira experiência de emprego com carteira assinada de quase todas as participantes, uma
característica do público que procura o setor:

Resultado do amadurecimento de um novo regime de acumulação pós- fordista no país,


os call centers brasileiros alimentam- se desse vasto contingente de trabalhadores jovens,
especialmente mulheres e negros, em busca de uma primeira oportunidade no mercado
formal de trabalho. (BRAGA, 2014, p. 35)

As imagens construídas sobre o mundo do trabalho presentes em seus relatos parecem ter
sido submetidas a diferentes fases de contraste. Aquelas que tiveram experiências de trabalho
anteriores (sem carteira assinada e geralmente em empresas familiares) enxergavam na
entrada do setor de call center a possibilidade de uma formalização muito ligada a ideias de
organização, melhor gerenciamento do tempo, estabilidade de rendimentos, compromisso
com datas de pagamento e limites à exploração de sua força de trabalho. Benefícios que
viriam com a carteira assinada trazendo, como lembra Ruy Braga (2014, p. 37) uma “sensação
de progresso ocupacional” que “encontra- se fortemente associada à transição da
informalidade para a formalidade.”. Uma via de acesso a direitos:

Atraídas pelos novos postos formais de trabalho abertos no setor de serviços nos anos
2000, as filhas das empregadas domésticas entraram aos milhares na indústria do call
center. De fato, esse foi o setor que, na última década, mais acolheu trabalhadores, em
especial mulheres não brancas e jovens oriundos da economia informal, isto é, sem
proteção social, garantindo- lhes acesso aos direitos sociais, além de alguma qualificação
técnica. No Brasil, a indústria do call center formou- se apenas recentemente: na
realidade, 96% das centrais de teleatividades brasileiras foram criadas após 1990 e 76%
a partir de 1998, ano da privatização do sistema Telebrás e auge do neoliberalismo no
país. (BRAGA, 2014, p. 34)

A passagem para a formalidade foi significativa para todas as entrevistadas e decisiva para
que Glória procurasse a empresa:

No começo eu tava até animada porque eles fazem cursos. Eles dão um treinamento para
a gente, né? Então eu tava... tipo assim, a empresa, de modo geral, se fosse pegar as
outras empresas que eu trabalhei e a última experiência que eu tinha tido de trabalho...
Você começa correto com a sua carteira já assinada. Você não vai para o chão (começar
a atender efetivamente) sem estar certinho com toda a sua documentação acertada. Então
com relação à sua documentação, eles são muito corretos. Eles foram muito corretos
comigo. Então... comigo e com as pessoas que estavam junto comigo. Então, a gente
recebe tudo na data certa. Tudo organizado. (Glória, 27 / Entrevista concedida em 13 de
agosto, 2020).

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A infraestrutura laboral e o que as entrevistadas entendem como “condições de trabalho”,
ou seja, aquilo que a empresa terceirizada oferece para as tarefas serem realizadas são
reconhecidas como confortáveis e satisfatórias. As acomodações respondem às exigências
regradas pela lei trabalhista. As funcionárias trabalham em cadeiras ergonômicas com
distanciamento correto da tela do computador e apoios para os pulsos para evitar lesões por
esforço repetitivo. O estabelecimento em que funciona a empresa é visto como organizado e
bem estruturado. A empresa dispõe de sala de descanso com TV, refeitório e cozinha para que
as funcionárias guardem os alimentos trazidos de casa, além de setor médico. Algumas
empresas clientes tem espaços lúdicos com video games, sinuca, jogos (embora as únicas
funcionárias autorizadas a usarem esses espaços sejam as que lhes prestam serviço
diretamente). Todo esse aparato pareceu convidativo e promissor para entrevistadas que
nunca tinham trabalhado em uma “empresa grande”.

Os contrastes do atendimento
O primeiro contato com a empresa que se dá no processo seletivo, no entanto, é o
momento em que os contrastes entre as expectativas das entrevistadas e a realidade laboral
oferecida pela empresa começam a acontecer. A ideia de que a entrada no mercado formal de
trabalho vai dar início a uma fase de maior organização e limites à exploração das
funcionárias é testada:

Já no processo de seleção, já deu para ver um pouquinho como é que a empresa funciona.
Tipo... eu fui para a seleção a primeira vez... e aí, você fica numa sala grande com várias
cadeiras. E são muitas turmas ao mesmo tempo tentando entrar. Várias pessoas que
agendaram para aquele dia a seleção. E aí, eles vão chamando e tal. E você fica
aguardando. Então assim, eu entrei nesse processo... no que eu passei... eu acho que eu
levei... foi umas 10 horas, para tu ter noção. Eu fui de 8 da manhã e sai à noite. Saí era
umas 10h da noite. (Laís, 23/ Entrevista concedida em 20 de agosto, 2020).
...

O meu processo seletivo foi em (cidade vizinha). Eu cheguei de 5 horas da manhã e saí
de lá no fim da tarde. Em pé. Eles não tinham nenhum local para você ficar. Primeiro,
você ficava em pé no sol, com fome, tinha que levar o seu lanche e comer ali mesmo em
pé. E eles iam chamando de grupo em grupo. (Hannah, 27 / Entrevista concedida em 17
de agosto, 2020).

Embora os exemplos acima tratem de processos seletivos realizados em cidades diferentes,


o que eles trazem em comum é que a maioria das funcionárias tem a percepção de que se
trata de um processo desnecessariamente exaustivo, claramente desorganizado e mal
planejado. A grande quantidade de pessoas convocadas para o processo de seleção atropela o
agendamento por horário e faz com que as candidatas passem por um processo que dura um

54
dia inteiro. Além do mais, desconfia Larissa, parece ser calculado para testar a resistência das
candidatas: “É muito demorado. Parece que é para ser demorado mesmo. A sensação é que é
para ser desgastante mesmo.”.
A desorganização surpreende porque trata-se de uma empresa terceirizada que presta
serviços de atendimento a bancos, empresas multinacionais, cartões de crédito, serviços de
streaming11, empresas de serviços financeiros, start ups12, entre outras. Essa desorganização
se reflete até mesmo nas questões de planejamento de contratação e de atendimento fazendo
com que a funcionária seja treinada para uma função e atue em outra. É o que relata Igor,
contratado para prestar atendimento por voz, mas direcionado para responder e-mails
(chamados de tickets):

Igor – Olha, era um lugar bem estressante, bem estressante. Tinha muita gente. Acho
que mais do que poderia ter. Mesmo sem falar em pandemia. Era difícil você encontrar
um lugar na operação para sentar. Uma PA disponível.

Pesquisadora – Como assim? Se você não sentar, você não trabalha, não?

Igor – Justamente. Mas eu acho que era no período que a empresa tava crescendo e a
operação não tava acompanhando esse crescimento. Então, no meu primeiro dia,
inclusive, eu tive muita dificuldade em encontrar uma PA para trabalhar. E aí, tinha a
questão de computador quebrado... computador sem headset. Essas coisas que também
diminuíam o número de PAs. Aí, o que é que eles faziam? Quando a gente estava nessas
condições, eles colocavam a gente para uma outra operação. Para atender o que a gente
atende, mas numa outra operação. Ou perguntava se a gente queria hora extra ou
colocava a gente pra atender ticket. O que já aconteceu por não ter fone para atender voz,
a gente atendia ticket naquele dia específico. Às vezes, até sem treinamento. Eu atendi
ticket sem treinamento, acho que um ou dois dias. (Entrevista concedida em 25 de
janeiro, 2021)

As empresas que contratam os serviços da terceirizada são referenciadas pelas


entrevistadas como “empresas clientes” ou simplesmente “produtos”. As pessoas físicas que
entram em contato com as operadoras em busca da resolução de seus problemas são chamadas
de “consumidores”.
Na fase de treinamento, há um esforço da empresa para recepcionar os selecionados
introduzindo-os no que seria uma “empresa de grande porte” prestadora de serviço de outras
empresas inovadoras. Há um discurso de que a empresa é uma “família conectada em vários
11
“Streaming é uma forma de distribuição digital, em oposição à descarga de dados. A difusão de dados,
geralmente em uma rede através de pacotes, é frequentemente utilizada para distribuir conteúdo multimídia
através da Internet. Nesta forma, as informações não são armazenadas pelo usuário em seu próprio computador.
Assim não é ocupado espaço no disco rígido (HD), para reprodução posterior.”. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Streaming>. Acessado em: 25 de fev, 2021.
12
A expressão Start up é oriunda da língua inglesa e usada para designar os três primeiros estágios de
estruturação de "empresas emergentes" até que se tornem, de fato, empresas. Ela não se resume a empresas que
atuam no ramo das tecnologias digitais, mas são comumente assim referidas. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Startup>. Acessado em: 11 de set, 2020.

55
países do mundo”, outra frase recorrente nas entrevistas. Os selecionados assistem a vídeos de
apresentação sobre o lugar da empresa no mercado de teleatendimento global e as vantagens
oferecidas com a aquisição da vaga. Larissa e Glória, resumem a imagem transmitida para as
candidatas no período:

É a empresa que mais contrata mulheres no mundo. Que respeita a diversidade de gênero,
enfim... que não aceita discriminação. Que tem uma política de segurança muito forte.
Apresenta os programas... (de cidadania e proteção ao meio ambiente) que a empresa
financia e auxilia de alguma forma. Então é uma empresa que está se preocupando com a
diversidade, com as pessoas, com as mulheres, com o meio ambiente... que paga auxílio
creche às mulheres... às mulheres que trabalham e tem filho. Enfim, uma empresa
perfeita. Por que não trabalhar aqui? (Larissa, 25)
...

E aí, quando você chega na sala eles vão explicar para você quem é a empresa. Dizer
para você que a empresa é uma empresa multinacional que tem em tantos países... Aí,
vai crescendo os olhos. Eles vão vender a empresa para você. E eles começam a vender a
ideia de crescimento na empresa. Começam a vender a questão de profissionalização que
a empresa oferece, benefícios... E você vai ficando animado, querendo passar nas etapas
para você ter um emprego ali. (Glória, 27)

É um momento voltado para o discurso sobre “meritocracia”, com a mensagem de que


galgar melhores posições na empresa depende, exclusivamente, da performance individual de
cada candidata. O crescimento profissional dependeria de uma combinação de
desenvolvimento de habilidades pessoais, esforço e mérito próprios. As promessas chamaram
a atenção de Glória e Ricardo que começaram suas funções com o objetivo de ascender na
hierarquia por um processo seletivo interno. Ricardo explica: “Eu entrei pensando em subir
rápido, assim... vou focar para subir de cargo rápido porque o salário lá na época (2018) era
800 e pouco e, realmente... Isso aí, não dá para nada. Falei: ‘Não, vou focar aqui para subir de
cargo rápido até onde der ou até onde eu posso chegar.’”.
Para a maioria das interlocutoras, os benefícios oferecidos se mostraram atraentes: salário
base, Participação nos Lucros e Dividendos (PLR), plano de saúde, auxílio combustível,
auxílio creche, vale refeição, descontos em lojas parceiras, variados tipos de premiações (que
variam de produto a produto, mas podem incluir ingressos para shows, cinemas e restaurantes
ou assinaturas de serviços de streaming e até consultas com especialistas não cobertos pelo
plano de saúde).
No entanto, a fase de treinamento se constitui como uma segunda fase de contraste em
relação às expectativas de trabalhar em uma grande empresa. Ela surge nos relatos como
aquela que apresenta aos recém-chegados as dificuldades com as quais terão que lidar

56
diariamente. Embora não exatamente porque esclarece e prepara as funcionárias, mas porque
é um momento revelador das falhas e limitações da terceirizada.
O momento de capacitação é entendido como insuficiente para que as funcionárias
entendam os mecanismos de atendimento que deverão dominar para realizar bem suas
funções. Este acaba por ser um momento mais focado na construção do imaginário sobre o
que significa assumir uma função na empresa, do que preparar as trabalhadoras para a
resolução dos problemas com os quais terão que lidar dali para a frente:

Tudo era novidade. Assim... tanto essa coisa do ambiente corporativo, de ver como é que
era uma empresa. Assim, eu não fazia nem ideia de como era uma empresa de call center
por dentro. Nunca tinha visto uma imagem. E assim várias cabininhas, assim... Foi
surpreendente. O período de treinamento, eu via que eles faziam um esforço muito
grande de vender a ideia... mesmo de querer implantar essa ideia de paixão pelo trabalho
e motivação e tudo o mais... E aí, era meio piada (risos). No começo tinha uma
empolgação envolvida, sabe? Mas depois de um tempo a empolgação foi ficando difícil
porque o período de treinamento foi muito curto. Eu tive... acho que uma semana de
treinamento e a maior parte foi essa venda da ideia, de como era fantástica a empresa e
tudo o mais... falar da segurança dos dados que é super importante para eles. E aí, enfim...
teve pouco treinamento sobre a parte prática mesmo. O que a gente iria enfrentar com as
ferramentas, com as políticas que a gente ia seguir... E assim, na prática foi ver que você
vai ser jogado na boca do leão e: “Se vira!”. (Laís, 23)

A falta de preparo e treinamento adequado sobre as ferramentas de trabalho joga as


funcionárias para uma situação desconfortável. Elas serão obrigadas a aprender como lidar
com a execução das tarefas diárias, ao mesmo tempo em que prestam serviço. A falta de
familiaridade com as diretrizes dos produtos é mais um agravante. E não se trata de uma
adaptação que todo profissional enfrenta nos primeiros dias em uma nova função. Algumas
trabalhadoras não receberam nenhuma espécie de capacitação para começar os atendimentos.
Isto acontece, especialmente, quando contratadas para trabalhar com produtos recém-lançados
no mercado, cujas diretrizes não estão, ainda, consolidadas. É o que aponta Ricardo, quando
perguntado sobre a avaliação que faz dos treinamentos e cursos de formação oferecidos:

Não tem. Não existe. Tem, dependendo do produto. No meu, não existia. Eu entrei sem
treinamento de voz, sem treinamento de ligação. "Pega aí, atende! Liga para o cliente!".
Era desse jeito. E eu fiquei um ano sugerindo treinamento. Desse ano presencial lá...
todos os dias eu falava que a gente tinha que ter treinamento de ligação porque muita
gente tinha medo de ligar para o cliente. Porque quando você liga para o cliente, ele
irritado, já manda você tomar no cu e já manda se lascar, diz que vai lhe processar (risos).
E as pessoas lá por ter uma faixa etária nova... eles preferem pegar as pessoas novinhas,
justamente porque a pessoa é meio... assim... tá entrando nesse âmbito novo de "Ai, tô
com 18, 19, 20 anos! Meu primeiro emprego!". Então, eles tentam pegar pessoas assim
para domar, para domesticar. Eu sugeri treinamento de ligação, um ano. Surgiu a ideia
que eles fariam, mas nunca fizeram. E estamos lá até hoje, sem treinamento. Tem o
básico, mas como o produto muda muito... este produto que eu estou muda muito rápido,
a logistica dele, as coisas dele. Os treinamentos são conversas soltas. E você vai

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descobrindo coisas na internet. É esse o nosso treinamento. (Ricardo, 29 / Entrevista
concedida em 16 de fevereiro, 2021)

O principal confronto entre expectativas e realidade laboral é o de início efetivo do


trabalho. Com exceção das funcionárias que começaram seus atendimentos por contatos
escritos como chats, e-mails, gerenciamento de mídias sociais e sites de reclamação ou
preenchimento de documentos, a assunção das funções propriamente ditas foi, para a grande
maioria, um momento de choque e confusão:

O primeiro dia que eu desci para a operação era uma quarta-feira que era o dia que mais
tinha ligação na época. E aí, era uma atrás da outra, uma atrás da outra. E aí, a gente
chamando o suporte para ajudar a gente. E assim, tinha gente que chorava, que tinha
crise de choro no começo, no primeiro dia. A minha reação, ao invés de chorar, foi ter
uma crise de riso, assim... Eu quando encontrei com o pessoal no intervalo, a gente ficou:
“Gente, que loucura é essa? O que a gente está fazendo aqui?”. E aí, foi um pouco disso
minha adaptação, sabe? Foi perceber também que era muito no “Te vira!”. E que eles
meio que assim... se livravam dessa responsabilidade colocando assim: “Olha, nessa
operação que vocês vão trabalhar, você tem que estar aberto para o novo. As coisas, elas
vão mudar todo dia. Às vezes, uma coisa que você já está acostumada a fazer de uma
forma, no outro dia vai ser de outro e você tem que estar adaptado!”. E aí, era muito
assim. (Laís, 23)

O atendimento por voz é considerado o mais inclemente para as trabalhadoras. A não


familiaridade com os sistemas adotados e as políticas dos produtos, aliada ao volume de
atendimentos e a conhecida aspereza dos consumidores é considerada por elas como muito
opressiva. Além do mais, esse é o tipo de atendimento que mais exige as habilidades definidas
pela empresa como “soft skills”, competências socioemocionais demonstradas na capacidade
de articulação do discurso, senso de empatia e criatividade na resolução de problemas, algo
que ajuda a explicar porque razão o call center é um setor tão feminilizado.
Outra razão comum que dificulta a fase de adaptação às funções é que as funcionárias
contratadas pela terceirizada não possuem vínculos com nenhum produto para o qual prestam
serviço. Elas podem ser transferidas de um produto a outro a qualquer momento. Por essa
razão, há casos em que a funcionária é treinada para prestar serviço a um cliente, mas assume
a função de atendimento em outro produto, para o qual não recebeu nenhum treinamento.
Prestar serviços para produtos que operam com sistemas classificados pelas trabalhadoras
como “ruins” ou “péssimos”, somado à falta de funcionalidade das ferramentas
computacionais, só piora o problema. Em um dos produtos, o sistema precisa estar com 10, 14,
até 15 abas abertas para o trabalho poder ser realizado. Para completar o atendimento, a
funcionária deve registrar todos os dados do cliente que ligou, as razões de ter ligado, a
política usada para solucionar o problema e o passo a passo da sua execução. Tudo isso deve

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ser feito em alguns minutos porque o sistema se fecha, automaticamente, para permitir um
novo atendimento. Então, se o registro das informações não for rápido o suficiente, corre-se o
risco da anotação ficar em branco ou incompleta, o que fere os índices necessários ao
cumprimento das metas.
No caso de dúvidas sobre a resolução de algum problema, a funcionária deve ler as
diretrizes da empresa, pois todas as ações devem ser estritamente padronizadas: “Era a
resposta limpa e seca do jeito que tá lá, que a empresa queria. E a gente só copia e cola. Não
saía uma grama, uma vírgula do que eles colocavam lá” (Jonas, 22 / Entrevista concedida em
10 de agosto, 2020).
No caso de situações imprevistas pelas políticas, a saída é pedir ajuda de um supervisor. O
problema é que há dois tipos de supervisores na empresa: aqueles que ascenderam por meio
de processos seletivos internos (processo chamado de "jump") e os que são contratados
externos. No primeiro caso, mesmo trabalhando na empresa há algum tempo, o supervisor
pode ser oriundo de um outro produto. No segundo, a capacitação para a função replica o
cenário de insuficiência de treinamento já detalhado. Ou seja, nos dois casos listados, as
funcionárias argumentam que os seus supervisores, frequentemente, não conhecem as
ferramentas de trabalho utilizadas e muito menos têm conhecimento das tratativas de
determinado produto.
À vista disso, eles são muito mais acionados para estimular a produção e manter o controle
das funcionárias do que para facilitar e auxiliar o cotidiano laboral das subordinadas,
ajudando na resolução de problemas. Na prática, a chance de um supervisor auxiliar,
satisfatoriamente, uma funcionária que não consegue solucionar um problema é a de que ele
seja um antigo operador do mesmo produto para o qual foi promovido. Como essa
probabilidade nem sempre se consolida, a funcionária deve recorrer às suas habilidades
pessoais para lidar com a situação. O que significa dizer que estão sozinhas para resolver
situações para as quais não foram devidamente treinadas. É o que demonstra Glória quando
explica que o treinamento não foi suficiente para apreensão dos protocolos (tratativas)
necessários ao atendimento de entregadores de aplicativos de comida e que pedir ajuda aos
supervisores nem sempre funcionava:

Assim... tinha coisas que eu não tinha tratativa para resolver. Tinha uma coisa que eu não
vou saber como resolver, então não tinha como resolver. Umas coisas muito mal-feitas e
a gente não conseguia resolver. E aí, a gente tinha as pessoas que ficavam assim para nos
auxiliar. E assim... em várias vezes, eu fiquei com a mão levantada que a gente levanta a
mão para alguém ir lá socorrer a gente, né? E nada de ninguém aparecer e o tempo
correndo e o cliente desesperado na linha para você resolver o problema dele... porque é

59
uma questão de prazo curto, né? Porque entrega de comida o prazo é curto, né? Então, a
gente ficava meio desesperado.

O recado dos superiores, segundo a maioria das interlocutoras, é que elas têm que aprender
a “se virar”. A exigência de que elas tenham “soft skills” se soma à demanda de que elas
também sejam “multi skills”, quer dizer, capazes de adquirir e desenvolver diversos tipos de
habilidade a serem executadas ao mesmo tempo. O que se articula com a mensagem corrente
na empresa e demonstrada por Laís, anteriormente, de que o setor é “muito dinâmico”, “muito
rápido”. As funcionárias, portanto, precisam ter alta capacidade de adaptação e estarem
sempre aptas a encarar "novos desafios".
Mesmo os “líderes” responsáveis pela condução dos treinamentos das funcionárias são
avisados que não estão na empresa para “ensiná-las”, mas para atuar como “facilitadores” no
suporte do que elas solicitam. São dispositivos discursivos que concorrem para justificar a
intensificação da carga de trabalho a ser desempenhada em 6:20h. O tempo de trabalho é
menor, o ritmo mais intenso.
É um dado identificado e, posteriormente, comprovado na hipótese central do estudo de
Selma Venco (2006a, p.2) sobre o call center:

A indissociabilidade entre, de um lado, a permanência do tempo e, de outro, a


racionalização do trabalho e o controle dos trabalhadores. Essa hipótese se desdobra na
identificação da intensificação do trabalho como fator de degradação das condições de
trabalho nas centrais de atendimento à distância.

Esse discurso é traduzido pelas entrevistadas como uma manobra retórica para justificar a
instabilidade e a insegurança encontrada no call center. As funcionárias são contratadas de
uma empresa terceirizada e não são vinculadas a nenhum produto para o qual prestam serviço
ou mesmo a uma função específica. O que quer dizer que, a qualquer momento, podem ser
transferidas de produto, podem mudar de função, de equipe, supervisor ou ir para outro turno
de trabalho. Além disso, há produtos cujas tratativas não param de mudar. As funcionárias
aprendem a lidar com uma ferramenta, adotam novos procedimentos no atendimento, porém,
quando já estão assentadas e confortáveis com as suas tarefas, a empresa adota outras
políticas. Isso as obriga a estar num constante sobressalto com a possibilidade de tudo mudar
de um dia para o outro. Logo, a inconstância é entendida como algo da natureza do trabalho.
Cazé tem passado por um período muito difícil de adaptação porque, mesmo com pouco
tempo na empresa, foi trocado várias vezes de produtos para os quais presta serviço. Isso vem
gerando instabilidades e incômodos que o afetam sobremaneira:

60
O desgaste da própria natureza do trabalho é acentuado na troca de setor porque sempre
que a gente é mudado, a gente precisa passar por um novo treinamento e lidar com outra
atividade em que a gente não estava familiarizado. E com isso, bate muita insegurança,
muita ansiedade. Eu até já falei isso para você que a galera sonha, a galera fica surtando.
Eu mesmo sonho. Eu sonho muito antes de começar a desenvolver uma atividade nova.
Eu mesmo fico sonhando, fico surtando. Um amigo meu disse que, esses dias... ele falou
que sonhava, que voltava para (produto em que trabalhou anteriormente) e ele disse que
enlouquecia, que chorava tanto e gritava e ele acordou super mal. Quando eu mudei
para (produto em que trabalha atualmente), eu sonhei que um monte de ligação caía
quando eu ia atender o povo. E tem um negócio da "aderência" porque tem uns índices,
né? Que perturbam muito a gente. Então, quando eu falo da natureza do trabalho, vem
os índices: a maneira como a empresa cobra a gente. Vem o desgaste de estar escutando
o povo gritando todo dia. Enfim, quando eu entrei para (produto em que trabalha
atualmente), eu tava noiado com essa coisa da aderência que é muito interessante, né?
Porque a gente fala: "Não, eu não vou ligar para isso, não!". Mas é muito interessante
como isso penetra na gente. Aí, eu sonhava que eu perdia a hora... que às vezes eu tenho
uma coisa de dar um cochilinho antes. Você bota o despertador... Eu acordava doido
achando que eu tinha perdido a hora que eu terminava de trabalhar e ia dormir. Ficava
sonhando, sei lá numa situação louca no trabalho.

O bom desempenho das trabalhadoras passa pelo cumprimento de metas (que podem ou
não existir e tem critérios variáveis para cada produto), rígida obediência à duas pausas de dez
minutos e uma de vinte em horários pré-determinados, atenção ao número de faltas e
realização de atendimentos de boa qualidade de acordo com as tratativas do produto, sempre
buscando diminuir sua duração, expressa pelo índice TMA (Tempo Médio de Atendimento).
Embora o índice seja variável de produto para produto, o menor tempo médio de atendimento
em que um problema deveria ser resolvido pelas interlocutoras que atendem por voz foi de
três minutos.
As dificuldades percebidas não dizem respeito apenas às peculiaridades inerentes aos
diferentes tipos de atendimento para os quais elas serão direcionadas. Cada produto para o
qual a empresa terceirizada presta serviço tem diretrizes, procedimentos e mesmo estilos de
atendimento aos quais o comportamento das funcionárias deve ser adequado. Mas também há
políticas determinadas pela terceirizada que são direcionadas a todas as funcionárias,
independente de para qual empresa prestem seus serviços. Isto é, elas devem responder a
tratativas cobradas pelo produto e pela terceirizada concomitantemente. De modo frequente,
os procedimentos adotados por uma entram em choque com o manejo da outra. É o que
aconteceu com Glória:

Glória - Daí eu fui para o atendimento. No atendimento, o que que aconteceu comigo?
Para a gente poder trabalhar a gente tem que ter o acesso. A gente não pode usar o acesso
de outra pessoa por causa do sigilo da informação. Então, eu não tinha o meu login e a
minha senha. Então eu fiquei 45 dias só assistindo as outras pessoas trabalharem. Eu e
outras 12 ou quase 20 pessoas, 45 dias assim. A gente ficou um do lado do outro, só
assistindo as pessoas trabalharem por 45 dias. Então, quando eu fui atender mesmo, foi

61
tranquilo porque eu já tinha pego todos os macetes durante esses 45 dias. Só que é uma
situação, para mim, desagradável ficar só indo para lá, sem ter o que fazer.

Pesquisadora - Por que que vocês não receberam essa senha de acesso?

Glória - Porque depende do cliente que era a (empresa cliente). Então como ela tá no
mundo inteiro, eu acho que eles tiveram alguma dificuldade em criar os nossos acessos.
A gente tinha que abrir umas 14 páginas para a gente conseguir trabalhar. Umas 14 abas
lá na internet lá da empresa para gente conseguir trabalhar... porque senão... se faltasse
uma ferramenta, a gente não conseguia trabalhar. Só que aí, o que que acontece? A gente
tem aí, o interesse do cliente que é a (empresa cliente) e tinha o interesse da
(terceirizada). Então a gente tinha que lidar com o interesse de ambos. A (terceirizada)
que tinha que entregar resultado para a (empresa cliente) e a falta da (empresa cliente) de
entregar as ferramentas. Então o que que a gente tinha que fazer muitas vezes? A gente
ficava sem uma ferramenta da cliente mas a (terceirizada) obrigava a gente a atender e
dar os pulos da gente sem a ferramenta para entregar a quantidade de horas de
atendimento para a (empresa cliente). Teve dias de eu atender cento e poucas ligações ou
mais só para dizer: “Por gentileza, retorne a ligação.” Isso me deixou louca. E não só eu,
mas outras pessoas que também estavam sem acesso.

Esse tipo de incompatibilidade entre ferramentas de trabalho ou índices avaliativos, em


que um prejudica a realização de outro, faz com que a meta seja muito difícil de ser alcançada
em alguns produtos.
A rotina de trabalho pode ser mais leve no turno matutino devido ao pouco fluxo de
atendimento e aparece como “tranquila” para o gerenciamento de mídias sociais que se
resume a respostas de comentários sobre as empresas, atendimentos de solicitações dos
consumidores por e-mails e vai se intensificando para os chats em tempo real, cadastro de
documentação de carros, até o mais desgastante que é o atendimento por voz. Esses tipos de
atendimentos não resumem os oferecidos pela empresa, apenas aqueles efetuados pelo grupo
de interlocutoras da pesquisa.
Nas funções definidas pelas funcionárias como “tranquilas”, a disponibilidade de outros
canais para a resolução de problemas parece desafogar o atendimento pelas funcionárias e
possibilitar que haja espaço para algum tempo livre além das pausas. Neste caso, assim como
no das respostas aos e-mails, o que torna o trabalho mais ameno é o fato de não haver contato
com o consumidor em tempo real. Entretanto, o número de respostas necessárias para o
cumprimento das metas diárias e mensais é o elemento estressante. Mesmo caso do registro da
documentação dos carros cadastrados para empresas de transporte. O funcionário precisa
digitar no sistema da empresa informações como placa do carro, número do chassi, tipo de
combustível, a marca, o modelo, ano de fabricação, ano do modelo, cor, cadastro nacional de
habilitação, certificado de licenciamento do veículo, carteira de identidade, entre outras
informações.

62
A meta diária em fevereiro de 2021 era o cadastro de 390 formulários por dia. O que
significa dizer que, descontadas as pausas, é preciso digitar cada ficha em 1 minuto e 15
segundos para atingir a meta de 7.300 formulários por mês. Contudo, a possibilidade de os
veículos serem rejeitados, simplesmente, sem a necessidade de cadastro no sistema, faz com
que essa pressão possa ser um pouco menor.
Esse condicionamento físico é considerado por Ursula Huws (2017, p. 102) ao falar sobre
a saúde da mulher no trabalho. Ela explica que na maioria daquilo que chama de “guetos
ocupacionais” onde mulheres trabalham, sejam fábricas, escritórios ou lojas, há uma série de
“tensões adicionais” à condição feminina relacionadas a “restrição de movimentos
repetitivos”, “intensa concentracão visual”, “dedos que sapateiam sobre o teclado”, outro fator
é a velocidade exigida para a execução de tarefas. É o mesmo cenário do call center:

Um estresse adicional é criado pela pressão de trabalhar em uma determinada velocidade.


Em alguns casos, as trabalhadoras são monitoradas pelas máquinas, que registram coisas
como o número de toques por hora no teclado, o número de clientes atendidos, as taxas
de erro e a frequência dos intervalos. Em outros casos, a disciplina é fornecida pelo
sistema de pagamento por resultados. A combinação de manter alguns músculos em
posições rígidas e imutáveis enquanto outros são obrigados a se movimentar
repetidamente o máximo que conseguirem leva a sérias lesões – em alguns casos
irreversíveis.

À medida que a funcionária se familiariza e otimiza a execução da tarefa é possível bater e


ultrapassar a meta em cada vez menos tempo: “Você faz isso todo dia, todo dia, todo dia que
fica automático. No início, eu sofria muito, chorava, berrava. Mas agora é muito tranquilo.
Agora tem pouco, mas quando tava muito documento, eu tava chegando a 400 com uma hora
de antecedência.” (Cazé, 23). Como explicita Huws, bater a meta, sem surpresa, é seguido de
um custo físico para as trabalhadoras. Em poucas semanas na função, Cazé começou a ter
dores no punho, atestando que as lesões por esforço repetitivo13 são um dano comum no setor.
Quando perguntadas sobre o ambiente do call center, as palavras mais recorrentes foram
“tóxico”, “abusivo”, “nocivo” e, em especial, “estressante” porque as trabalhadoras entendem
que são encaradas como “máquinas”, “robôs”, instadas a realizar funções “repetitivas”,
“automaticamente” e de maneira “mecânica”. Um fator que aparece constantemente nos
relatos são as pressões e os efeitos que a função exerce no corpo das funcionárias. Como
13
Lesões por Esforço Repetitivo (LER) / Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT): termo
abrangente que se refere aos distúrbios ou doenças do sistema músculo-esquelético, principalmente de pescoço e
membros superiores, relacionados, comprovadamente ou não, ao trabalho. São um grupo heterogêneo de
distúrbios funcionais e/ou orgânicos que apresentam, entre outras, as seguintes características: indução por
fadiga neuromuscular causada por: trabalho realizado em posição fixa (trabalho estático) ou com movimentos
repetitivos, principalmente de membros superiores; falta de tempo de recuperação pós-contração e fadiga (falta
de flexibilidade de tempo, ritmo elevado de trabalho); quadro clínico variado incluindo queixas de dor,
formigamento, dormência, choque, peso e fadiga precoce. (BRASIL, 2001)

63
explica Laís: “Uma coisa que é típica, por exemplo, é segurar o xixi para a hora do seu
intervalo. Outra coisa que é típica é comer correndo para você não chegar muito atrasada no
seu horário de pausa.”. Hannah acredita que nem isso é possível. Funcionária anterior de outra
empresa de call center (aparece no relato como empresa 1), ela alega que as funções na
empresa dessa pesquisa (aparece no relato como empresa 2) trouxeram consequências que
perduraram por muito tempo depois de seu pedido de demissão:

Eu acho que todo mundo tem sentimento de... sei lá... de compartilhamento. Todo
mundo sabe a merda que é aquilo. E aí, é meio que fobia mesmo. A alimentação, por
exemplo. Você não tem tempo hábil para comer, principalmente para quem trabalha 6
horas. Tem uns lugares lá fora para comprar comida... mas na empresa mesmo ou você
come ou você trabalha. Ou você come ou você estoura a pausa. [...] E aí, no call center
da (empresa 1) eu consegui me adaptar... Na (empresa 2), desde o primeiro dia de
treinamento foi terrível. [...] É um ambiente péssimo, estressante. Todo mundo muito
ansioso, preocupado. No refeitório tem até o fumódromo. Inclusive, eu comecei a fumar
muito trabalhando em call center. Isso desde a (empresa 1) mas na (empresa 2), eu voltei.
Eu tinha parado de fumar e eu voltei a fumar diariamente na (empresa 2). E na (empresa
1), eu comecei a fumar na época das vendas no site. Muita gente que eu conheço
começou a fumar nas rodas do fumódromo do telemarketing porque era um momento
realmente que a gente conseguia desopilar. Na (empresa 2) em um mês, eu já tava
péssima mentalmente e fisicamente porque eu já tava há um mês comendo mal, né? Lá,
eu me alimentava muito mal. Eu não gostava muito de comer besteira: carboidrato e
industrializado. Mas lá, eu comi muito. Minha alimentação lá era isso. E, até hoje, eu não
consegui mais voltar, assim... voltar aos meus hábitos saudáveis, dei uma viciada, assim...
Tô cuidando disso, óbvio... que também não dá para... Mas foi uma mudança muito
brutal na minha alimentação e no meu sono porque eu fiquei bem perturbada e não
dormia bem. Aí, até hoje... eu ainda sinto as consequências.

Regular a ida ao banheiro "segurando o xixi", como descreve Laís, não acontece devido a
uma proibição direta da empresa. Segundo a empregadora, a funcionária pode ir ao banheiro
quantas vezes precisar. Porém, ao fazê-lo, o registro das pausas necessárias à interrupção do
trabalho é pontuado e suas métricas são afetadas negativamente.
Há determinados produtos em que as trabalhadoras têm mais liberdade para se expressar
de maneira espontânea, podendo abordar os clientes de maneira mais descontraída. Mas
mesmo que a função, em si, não seja naturalmente desumanizante é o próprio ritmo de
trabalho e o fluxo dos contatos o que termina por deixar o trabalho “repetitivo”, “exaustivo” e
mesmo “enlouquecedor”. É o que nos conta Luana, sobre o ritmo de trabalho em um serviço
de streaming conhecido por ser “o melhor” de se trabalhar, por deixar as funcionárias mais à
vontade para tratar as consumidoras e consumidores. Em períodos de pico de acesso, ela nos
conta que já foi obrigada a atender três consumidoras/es ao mesmo tempo.

Três chats abertos ao mesmo tempo. Clientes falando coisas diferentes. Você tem que se
virar. Você tem que se virar. Você tem que: "Só um momento. Aguarde só um
pouquinho." Aí, você vai lá no outro problema, vai procurar resolver o outro problema:

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"Só um momento. Aí, vai para o outro. É desse jeito.". Se você não conseguir raciocinar
rápido, minha filha. Você vai misturar os casos. (Luana, 26, entrevista concedida em 5
de fevereiro, 2021)

O mais intrigante é que, se por um lado, algumas funções são consideradas mais
"tranquilas" que outras, elas são percebidas como completamente inúteis e o sentimento em
relação ao trabalho é de que as interlocutoras se ocupam de tarefas completamente sem
propósito. É o caso dos já mencionados formulários de empresas de transporte, cuja função se
resume a transferência das informações dos veículos contratados e dados pessoais de seu
proprietário para um formulário no sistema operacional. Apesar da importância dos serviços
prestados pelo setor, especialmente em meio à uma pandemia, essa função específica se
encaixa na definição que o antropólogo David Graeber (2018, p. 24, tradução nossa) descreve
como bullshit jobs ou “trabalhos de merda” em tradução livre: “Isso é o que eu considero a
característica definidora de um trabalho de merda: é tão completamente sem sentido que
mesmo a pessoa que tem que executá-lo todos os dias não consegue se convencer de que
existe uma boa razão para fazê-lo.”14. E acrescenta: “Se a função fosse eliminada, não iria
fazer nenhuma diferença discernível no mundo.”15.
Por outro lado, na função percebida como mais desgastante que é o atendimento por voz, a
possibilidade de ajudar alguém a resolver um problema faz com que, para algumas, o trabalho
tenha sentido. O sucesso de uma ligação em que a pessoa se sentiu útil ajudando quem estava
do outro lado da linha pode salvar o dia de quem estava há horas lidando com xingamentos,
ofensas e reclamações. De alguma forma, o empenho de habilidades pessoais para a resolução
de problemas faz com que o trabalho passe por momentos compensadores.

Particularmente, para mim, eu gosto... eu tô começando a gostar de trabalhar com call


center porque eu gosto disso. Eu gosto de ensinar as pessoas mesmo que o meu TMA
não seja ótimo, o meu tempo médio de atendimento. Porque eu gosto de sentir que
quando a pessoa ligou para mim e ela tinha um problema... aquele: “Putz, moça com
você, eu consegui resolver!”. Cara, é muito bom. Quando tem uma ligação assim, vale o
dia todinho. Eu fico de boa o dia todinho. (Karina, 21 / Entrevista concedida em 15 de
setembro de 2020).

Gradativamente, aquelas que nutriam expectativas positivas em relação ao call center,


juntam-se àquelas que adequaram suas ambições à necessidade de ajudar em casa ou manter
suas próprias necessidades mais imediatas. Sem exceção, os sujeitos dessa pesquisa entendem

14
“This I consider the defining feature of a bullshit job: one so completely pointless that even the person who
has to perform it every day cannot convince himself there’s a good reason for him to be doing it.”
15
“If the position were eliminated, it would make no discernible difference in the world.”

65
o emprego no call center como “provisório”, “temporário”, algo que precisam suportar até
encontrarem “algo melhor”.
Aquelas que ambicionavam galgar degraus na empresa, logo percebem que nem todos
poderão ascender às funções de comando e que as vantagens oferecidas nem sempre se
concretizam. Ter todos os índices com variações de 95% a 100% de aproveitamento é um dos
requisitos para poder concorrer a uma vaga de comando e há a percepção que as métricas são
difíceis de serem perfeitamente atingidas. Isso se dá porque as variáveis de penalidades que
prejudicam as métricas são muitas: segundos de atrasos na entrada (log in) e saída (log out) do
sistema, na observação a alguma tratativa do produto, insatisfação dos clientes, entre outros
fatores. As trabalhadoras são punidas, até mesmo, por falhas dos sistemas operacionais dos
produtos.
Mesmo para aqueles que conseguem alcançar as metas estabelecidas, não há ganhos tão
significativos no fim do mês. Quando há algum ganho adicional, como no caso da PLR, que é
um ganho esporádico, a natureza do ganho é de bônus, assim como os brindes de empresas
parceiras da terceirizada. Um problema apontado por José Dari Krein (2018a, p. 62):

A PLR é considerada como um bônus e, portanto, o seu valor não é incorporado nos
salários. Logo, sobre essa verba indenizatória não integra a parcela sobre a qual incidem
encargos e os direitos previdenciários e trabalhistas. Ou seja, a remuneração variável
fragiliza as fontes de financiamento da seguridade social e de políticas sociais que são
vinculadas à folha de pagamento. Assim como apresenta efeitos negativos sobre a saúde
dos trabalhadores, dada a pressão por resultados, e tende a gerar concorrência entre os
trabalhadores e quebrar a solidariedade.

Desafios à coletividade
Em nenhuma das entrevistadas havia algum senso de realização ou qualquer tipo de
contentamento pessoal com o trabalho. Algo que Krein (2018b, p. 97) identifica como um
movimento que leva os jovens a uma tendência ao desalento:

Na atualidade, grande parte das atividades oferecidas são pouco edificantes e a crescente
desocupação aumenta a perda de significado do trabalho como realização pessoal. É um
mero meio para conseguir uma renda. Na maioria, são ocupações desprovidas de
conteúdo que dê sentido à vida. Como é crescente a ausência de emprego, há,
especialmente nos jovens, a tendência de avançar no desalento. Ao mesmo tempo,
avança-se na lógica de incutir nos trabalhadores a visão de empreendedorismo e
empregabilidade como saída para um mercado de trabalho hostil e escasso, o que
constitui um grande problema para a construção de identidade coletiva.

As participantes dessa pesquisa compõem um público ilustrativo do que fala Krein. Suas
dificuldades em muito refletem os percalços para a construção de uma identidade coletiva que
resulte na organização da “classe-que-vive-do-trabalho”. Assim como a desarticulação e falta

66
de comunicação entre trabalhadoras e sindicatos e do boicote que as empresas promovem a
qualquer tentativa de resistência aos avanços de sua exploração.
A maioria das entrevistadas entende qualquer tipo de agremiação com as colegas de
trabalho como impossível. Um dos fatores é o próprio espírito individualista cultivado nesse
ambiente. É o que defende Jonas, quando perguntado sobre a avaliação que fazia do ambiente
de trabalho: “Competição. individualismo. Então cada um é dono de si. Não tem uma
iniciativa conjunta, coletiva.”.
Impelidas a concorrerem umas com as outras e se enxergarem como competidoras na
busca de cargos ou no alcance individual das metas, o entrevistado explica que toda a
educação profissional integradora que recebeu em seu período de estágio numa multinacional
foi desmontada ao trabalhar no call center:

Porque como é lógica de produção, produção, produção, produção... as pessoas estão


interessadas em produzir o dela, né? E ela sabe que vai receber uma coisinha a mais no
final do mês. Então, ela tá interessada em produzir o dela. E tirar a atenção dela para tirar
a sua dúvida, ela deixa de tá respondendo ticket, né? Então, tipo assim: “Bicho, tá aí na
política!” (Risos). “Se vira, aí!. “Olha aí!”. E aí, eu fiquei com um trauma de perguntar
para as pessoas. Então toda aquela cultura que eu tinha estabelecido de perguntar sobre
problemas, de ir atrás, de interagir com as pessoas para procurar e tal... Eu perdi. Eu
perdi nesse processo de adaptação. Eu tive que deixar de lado porque ninguém tem saco
pra tá ajudando uma pessoa que tá começando, né?

Um aspecto essencial para esta pesquisa aparece nesta fala: o caráter eugênico promovido
pela competição desenfreada que resulta da individualização das trabalhadoras e o estímulo
para que enxerguem umas às outras como concorrência. A promessa de ascensão a cargos de
liderança na empresa é um dos mecanismos instrumentalizados para evitar que as
trabalhadoras se enxerguem como pertencentes à uma mesma classe. Algo que Pierre Dardot
e Christian Laval (2016, p. 50) identificam como resultado de um deslocamento promovido
por Herbert Spencer no “centro de gravidade do pensamento liberal, passando do modelo da
divisão do trabalho para o da concorrência como necessidade vital”:

Não se trata mais de uma lógica de promoção geral, mas de um processo de eliminação
seletiva. Esse modelo não faz mais da troca um meio de se fortalecer, de melhorar; ele
faz dela uma prova constante de confronto e sobrevivência. A concorrência não é
considerada, então, como na economia ortodoxa, clássica ou neoclássica, uma condição
para o bom funcionamento das trocas no mercado; ela é a lei implacável da vida e o
mecanismo do progresso por eliminação dos mais fracos. Profundamente marcado pela
“lei da população” de Malthus, o evolucionismo spenceriano conclui bruscamente que o
progresso da sociedade e, mais amplamente, da humanidade supõe a destruição de
alguns de seus componentes.

67
A empresa adota um sistema de representação das funcionárias para facilitar a
comunicação entre gerência e trabalhadoras. As representantes são escolhidas por votação.
Mas o fato de que essa informação foi trazida por apenas duas funcionárias e sequer
mencionada pelo restante, demonstra o descompasso da iniciativa. Além do mais, existe uma
percepção de que as trabalhadoras escolhidas obedecem a uma certa “tutela” da empresa e são
“domesticadas”. É o que pensa Laís, quando explica que essas trabalhadoras são instrumentais
porque, ao mesmo tempo, servem de exemplo de como é possível ascender profissionalmente
dentro da empresa e também para defender ideias alinhadas às visões da corporação. Uma
dessas ideias é a total oposição ao sindicato. As representantes minam a sindicalização das
trabalhadoras e qualquer organização coletiva é vista negativamente: “Tem risco de represália.
Porque eles sempre falam do sindicato... tipo: essa galera que não vai se sindicalizar,
obviamente... gerente e tal... como uma coisa que é importante, mas às vezes ele se mistura
com política: ‘Aí, não!’ Como assim produção, sabe?”.
Essas funcionárias fazem uma defesa do sindicato como garantidor do cumprimento das
políticas de Participação nos Lucros e Dividendos mesmo que, segundo Laís, “Aquilo ali e
nada é a mesma coisa” ou então apenas para cuidar da burocracia do processo demissional:
“Mas tipo... para organização política, para ler conjuntura, não! Para ler o macro... aí, já não
dá certo! E você escuta isso das pessoas que, teoricamente, cuidam de você, né? Pessoas que
estão ali por você, que estão ali para cuidar de você.”.
A falta de reconhecimento do sindicato como representante das reivindicações das
trabalhadoras e produtor de uma agenda combativa frente à redução de direitos reflete tanto a
percepção de que se trata de entidades cooptadas, quanto o próprio sucesso discursivo
neoliberal empenhado na “destruição do sindicalismo de classe e sua conversão num
sindicalismo dócil, de parceria (partnership), ou mesmo em um “sindicalismo de empresa”.
(ANTUNES, 1999, p. 55).
O sistema desloca a necessidade de agregação da “classe-que-vive-do-trabalho” para
experiências coletivas completamente esvaziadas de sentido político. Neste call center, por
exemplo, há inúmeras atividades que pretendem criar um sentimento de “pertencimento” nas
funcionárias: organização das equipes para campeonatos de futebol ou dias em que as
funcionárias podem ir ao trabalho caracterizadas como se estivessem indo a um “baile à
fantasia”.
Nas ocasiões em que tentam se unir, fazer frente a uma nova política e se opor a qualquer
diretriz implantada e entendida pelas trabalhadoras como abusiva, são rapidamente reprimidas.
Frequentemente delatadas pelas próprias colegas. Questionada se havia testemunhado alguma

68
iniciativa coletiva para a resolução de algum problema enfrentado pelas trabalhadoras em
entrevista concedida em 20 de agosto de 2020, Rute explica que um grupo das mais antigas
questionou o fato de que as que atendiam em outros idiomas não estavam recebendo um
adicional, supostamente, garantido pelo sindicato. Um outro problema era que o conjunto de
trabalhadoras recém promovidas não estava recebendo o adicional correspondente ao novo
cargo. A desconfiança era de que o produto para o qual prestavam serviço estivesse
repassando os valores para a empresa terceirizada que, por sua vez, não repassava o
pagamento para as trabalhadoras. O consenso vinha do fato de que o sistema indicava a
mudança de função, mas elas continuavam recebendo os valores referentes ao cargo anterior.
Ademais, a ascensão na hierarquia da empresa não se desdobra no registro existente na
carteira de trabalho. As trabalhadoras que ascendem, segundo o relato, continuam registradas
como se ainda estivessem na primeira função que exerciam:

Esse grupo específico de pessoas que trabalhavam há mais ou menos um ano... antes
quando eles começaram, as coisas eram muito mais fáceis e eles fizeram um recorte
temporal, juntos. Um recorte temporal coletivo de que as coisas não estavam tão fáceis
assim e que existia essa questão que era uma questão a ser trabalhada. E aí, a gente
chegou a fazer uma reunião e chamou as pessoas a ir para um lugar fora na empresa,
para casa de um amigo que morava lá perto. Então todo mundo foi para lá e a gente tirou
uma série de tarefas. Uma das tarefas era procurar a assessoria jurídica do sindicato para
entender essa questão e alguém dedurou. Alguém dedurou e tipo assim... até hoje... isso
faz o quê? Uns dois anos... até hoje tem gente que confabula assim: "Quem será que
dedurou? Você percebeu que depois que isso aconteceu fulaninha foi promovida? Você
percebeu que depois que isso aconteceu fulaninho ganhou essa e essa regalia?”. Sabe?
Então tipo... até hoje as pessoas se perguntam quem foi que falou porque as
consequências foram bizarras. [...] Antes disso (ir no sindicato) já tinha sido dedurado. A
nossa supervisora foi fazer uma reunião com a gente, aí o coordenador que é a pessoa
acima dela, no caso dois coordenadores porque só tem um coordenador, mas dois
coordenadores foram fazer uma conversa com a gente, [...] com dois gerentes que é
acima do coordenador e com o gerente geral desse produto no Brasil que é o dono de
tudo e de todos, entendeu? Então tipo... rolou isso tudo em 48 horas e todo mundo
cagado de medo.

As “consequências bizarras” às quais Rute se refere incluem a mudança de turno das


funcionárias envolvidas, a suspensão da lista de demissão (algo que aparece nos relatos como
um alívio para quem quer sair, mas não quer perder direitos trabalhistas) e o rebaixamento de
pessoas que tinham sido promovidas fazendo-as voltar aos atendimentos. Para esses últimos, a
frustração de serem obrigados a voltar ao trabalho considerado mais penoso fez com que
muitos pedissem demissão: “Depois que você para de atender é melhor você ser demitido do
que você voltar a atender.”, Rute complementa. Segundo ela, quem não pôde pedir demissão
por questões financeiras sofreu abalos em sua saúde mental: “Quem teve condições
financeiras de se demitir, pediu demissão. Quem não... foi crise de ansiedade em cima de crise

69
de ansiedade, remédio em cima de remédio, tentativa de suicídio em cima de tentativa de
suicídio. E é isso.”
O desconhecimento das leis trabalhistas e a pouca experiência são fatores facilitadores para
tornar eficientes as intimidações que as funcionárias recebem e garantir adesão a discursos
que tentam moldar comportamentos. Há uma crença de que qualquer deslize fundamente uma
demissão por justa causa porque os supervisores reforçam essa ideia para conseguir melhor
desempenho das funcionárias. Essas intimidações são recorrentes nas reuniões de monitoria
chamadas de feedback e detalhadas mais à frente.
Em relação aos elogios feitos por diversas trabalhadoras que descrevem a empresa como
"organizada", "correta" e "estruturada", é interessante notar que foram comentários feitos
quando as entrevistadas estavam comparando suas experiências profissionais anteriores que,
em sua maioria, se deram na informalidade. Por essa razão, ficou claro que a percepção de
melhoria nas condições de trabalho com a entrada no call center, muito se deu em razão da
precariedade à qual essas trabalhadoras estavam submetidas anteriormente. Os argumentos
para identificar a empresa com esses adjetivos foram sempre os mesmos: "pagar no quinto dia
útil do mês sem atraso", "ter horário certo para entrar e sair", "oferecer carteira assinada".
Algumas vantagens oferecidas como vale-alimentação, plano odontológico, plano de saúde,
entre outras já mencionadas, funcionam como atrativos potentes. Apesar de ser funcionária
pública, Hannah comenta que o acesso ao plano de saúde foi a maior razão para ter se
candidatado à vaga, já que também ganha um salário-mínimo na função que executa para o
Estado. Nos treinamentos, esses são recursos expostos como símbolo do cuidado da empresa
com suas empregadas, funcionam como um chamariz eficiente, embora nunca seja
mencionado o fato de que nenhum desses recursos tem natureza salarial e, portanto, nenhum
direito trabalhista incide sobre eles. Rebaixar o salário ao mínimo possível e oferecer essas
vantagens é uma forma de economia e intensificação de extração de mais-valia praticada pela
empresa.
A relação entre tempo de vida x tempo de trabalho é muito favorecida pela reduzida carga
horária, sempre apontada como a principal vantagem de um emprego no setor de call center.
A maioria das entrevistadas relata que, por isso, consegue organizar bem a vida e que,
teoricamente, é possível exercer atividades em outro turno. Embora apenas uma entrevistada
tivesse outro emprego formal no período em que trabalhou no call center, há algumas que
executam informalmente outro tipo de trabalho para complementar a renda. O que aparece
nos relatos como uma imbricação entre as duas áreas é de ordem mais subjetiva. A função

70
termina por interferir na vida pessoal desses sujeitos e isso se deve à exaustão das
funcionárias.
É o caso de Jonas, que teve uma experiência rápida na empresa – quase três meses – e saiu
por não suportar “toda a carga de pressão com as metas e as situações de trabalho”. Um fator
adicional é que atuava no turno noturno, o que comprometia todo o seu dia posterior ao
trabalho. Ele alega que não era possível conciliar nenhuma outra atividade, pois todos os
aspectos da vida eram drenados para a tarefa. Nos três meses que passou na empresa, viveu
completamente em função da atividade: “Eu só falava com pessoas do trabalho, eu só saía
com pessoas do trabalho, eu só conversava sobre o trabalho e em como produzir mais e
mais.”. Segundo ele, a dedicação necessária à função custou um relacionamento amoroso.
Por estudar à noite e trabalhar no turno noturno depois da faculdade, só descansando durante
o dia, toda a sua rotina foi alterada. Sua energia psíquica foi absorvida para o trabalho, seu
único assunto. O relacionamento não resistiu ao distanciamento, fato que alega ser comum
para quem trabalha no setor. A sensação de opressão no ambiente de trabalho é demonstrada
tanto nas condutas quanto na materialidade das doenças laborais que testemunhou. Ao
exemplificar as situações comuns do call center, ele atesta:

Muito estresse, faltas constantes. Então os agentes de atendimento faltam e colocam


atestado. E na maioria das vezes é problemas muito sérios. A gente não trabalhava com
voz, mas tinha muita gente que trabalhava com voz e faltava por problema de audição...
porque você fica com aquilo ali o tempo todinho. Na madrugada... muita ansiedade...
Então, tinha gente muito ansiosa, né? Eu nunca peguei, mas me falavam que, às vezes, o
pessoal usava droga para conseguir passar a noite, né? Nunca presenciei, mas me
relataram, né? Tem gente que usa droga para poder passar a noite. Arrebite, cocaína. O
que me falaram que era mais comum era cocaína. Inclusive, alguns amigos meus, eles
usavam. Eu nunca vi eles usando, mas eles usavam. Eu sabia que eles usavam. Alguns
diziam, outros encobriam. Assim, mas a gente sabia que eles usavam. (Jonas, 25)

Questão importante que também surge nos relatos é que se trata de um trabalho que coloca
em xeque a fidelidade aos próprios valores das funcionárias. Hannah e Laís relatam que
algumas políticas são feitas para “enganar os consumidores”:

Os gerentes de banco... eles, minha amiga, eles são criminosos. Eles fazem consórcios.
Os consórcios, às vezes, sem o cliente saber. Teve um cliente que me ligou: "Ai,
(inaudível) eu fui olhar agora o meu extrato do banco e vi que tem R$ 5.000,00 sendo
descontados todo mês da minha conta. E quando eu fui olhar, era um consórcio de casa
feito no banco X. Eu vou processar o banco e tal!”. E aí, essa pessoa vai ter o direito de
ter esse valor restituído na hora? Não! Se ela entrar na justiça, ela vai conseguir. Mas eu,
como operador, o que que eu poderia fazer? Eu vou cancelar o seu consórcio. "Sim, e o
dinheiro está quando na minha conta?". "Ah, o dinheiro... o senhor só vai receber quando
o seu grupo do consórcio encerrar.". "Mas como...?". "Então, senhor... é só quando o seu
grupo encerrar daqui a quatro anos! O senhor tem direito a uma porcentagem desse valor
que o senhor pagou. Não é tudo. O senhor tem direito a 60% do que já pagou.". E todo

71
cliente que chega lá, ele não sabe onde ele se meteu porque o banco sempre vende de
outra maneira: "Você vai conseguir resgatar o seu dinheiro. Se caso não queira mais,
você vai receber integralmente!". Diz que o cliente vai receber uma carta de crédito. Não
explica o que é uma carta de crédito. Ele pensa que vai receber uma carta na casa dele:
"Parabéns, você ganhou um carro, vá lá na loja e tire!". Então, eles chegam sempre
irados. Então é muito estressante. (Hannah, 27)
...
Eu percebo que eu aprendo muito sobre contato com outras pessoas. Assim,
principalmente pela questão de tá atendendo clientes o tempo inteiro. E aprendo muito
também até como consumidora, sabe?... porque para operação que eu trabalho, algumas
coisas são meio absurdas. Assim, no meu ponto de vista. E é isso que torna, para mim, o
trabalho também mais desgastante porque no começo... eu te falei né?... que eu tinha
essa perspectiva do trabalho assim... de uma forma bem idealizada, de fazer algo que
fosse relevante. E aí, como eu tentei visualizar o trabalho, né?... para fazer o mínimo de
sentido? Era: “Ah, pelo menos, eu posso ajudar alguém!”. A pessoa tá me ligando com
um problema, eu vou tentar solucionar o problema dela. E eu fui perceber que, muitas
vezes, eu não tenho como solucionar o problema dela porque as políticas, as coisas que a
gente tem, não são desenhadas exatamente para resolver o problema das pessoas. E
muita coisa acaba assim... meio para enganar assim... o consumidor, sabe? A gente é
muito limitada. A gente acaba sendo ponta de lança de uma empresa que tem certas
coisas veladas, assim... que não tem... sei lá... os termos de uso muito claros. E que acaba
enganando os consumidores, sabe? Por exemplo, eles não precisariam tanto de suporte se
as coisas do produto fossem mais claras. Então eu percebi muito isso também, sabe?
Como tem essa malícia muito forte nesse meio empresarial. E nessas certas mentiras,
assim... sabe? que são enganosas de algumas formas. E isso era uma coisa que me fazia
se sentir mal perceber que eu tava ali só para passar uma notícia ruim para a pessoa,
muitas vezes. Tinha algumas coisas que eu podia fazer, mas, no geral... acabava sendo
ponta de lança, sabe? (Laís, 23)

Para concluir rapidamente os atendimentos ou fechar vendas, por exemplo, as funcionárias


são orientadas a confirmar informações que não são verdadeiras. Como garantir que o cartão
do cliente será entregue em casa quando na verdade, elas não têm poder para garantir que
isso será cumprido. São conflitos éticos que, frequentemente, surgem como um outro
intensificador do estresse.
Outros conflitos surgem quando o sujeito percebe que do outro lado da linha há uma
trabalhadora ou trabalhador na mesma situação que a dele. Cazé relata o incômodo que sente
ao constatar que o produto para o qual trabalha se interpõe entre ele e entregadores de comida,
trabalhadores tão explorados quanto ele próprio: “Já peguei um entregador que não tinha
como chegar ao destino final porque o plano de internet dele havia acabado e ele não tinha
dinheiro para renovar. Tem que ter muito sangue frio.”.
Em razão de todo o jogo de cintura e as habilidades que devem ser desenvolvidas para o
manejo de todas essas variáveis, a maior vantagem que as entrevistadas enxergam em
trabalhar no setor é a capacidade adquirida de resolver problemas. As dificuldades são tão
pronunciadas e de todas as ordens que algumas trabalhadoras se acham prontas para trabalhar
em qualquer tipo de setor.

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A indústria do call center tem servido como um grande escoadouro para recém-
formadas/os que não conseguem se colocar no mercado de trabalho em suas devidas áreas de
formação. As dificuldades causadas por treinamentos insuficientes, ferramentas de trabalho
ineficazes, salários baixíssimos, aproveitamento do conhecimento e da qualificação das
trabalhadoras sem remuneração correspondente (caso daquelas que falam outros idiomas sem
nenhuma quantia acrescida aos seus salários, por exemplo), além de ascensão a cargos que
não se traduzem em ganhos significativos, indicam que a falta de investimentos na melhoria
das condições de trabalho dessa população é proposital. Seu objetivo é a extração máxima de
mais-valia no menor período possível, já que a dedicação mental exigida das trabalhadoras
exaure sua força produtiva em pouco tempo: “o teleoperador deixa de ‘dar o resultado’, sendo
então demitido e substituído por outro, que recomeçará o mesmo ciclo.” (BRAGA, 2014, p.
36).

Adoecimento mental
O que mais chama a atenção entre trabalhadoras tão jovens, em experiências de primeiro
emprego são os relatos sobre intenso sofrimento psíquico como decorrência do trabalho no
setor. Uma das interlocutoras dessa pesquisa foi afastada do trabalho durante o processo de
qualificação desta dissertação por apresentar um quadro de crises de pânico. Contactada para
o agendamento da entrevista, ela se recusou a participar da pesquisa porque não suportava “ter
que voltar a lembrar de todas as situações” que passou. No meio do contato, começou a chorar
explicando que depois do período coberto pelo atestado médico, imediatamente pediu
demissão porque tinha sido “uma das piores experiências” que tinha passado na vida.
Glória, por sua vez, foi afastada de suas funções por entrar em depressão logo após
conquistar uma vaga no call center. Ela passou a ter crises de ansiedade em razão das
adversas condições de trabalho que vivenciava:

Eu não sei se você sabe, mas eu fiquei afastada do trabalho por três meses porque eu
entrei numa depressão e numa ansiedade muito grande com lá. E assim que eu voltei a
trabalhar, quinze dias depois, eu pedi demissão porque eu não aguentava mais ficar lá. E
eu tenho vários colegas que relatam a mesma coisa. Eu tive crise de pânico. Eu não
conseguia nem passar da porta. Sério mesmo. Depois que eu consegui minha licença,
um monte de gente veio conversar comigo para ver como conseguia também. A gente
passou uma fase lá que eu saía na porta no corredor... que a gente estava numa fase...
que a gente tava na fase dos problemas... assim... mais pesados. Que ninguém tava
suportando a situação... que eu saía na porta tava todo mundo sentado no chão no lado
de fora arrasado, devastado com o que tava rolando... Eu não sei se você sabe, mas eu
trabalho desde os 13 anos, tipo: oito horas por dia e eu nunca, nunca, nunca na minha
vida...nunca passei por tudo o que eu passei na (empresa) em menos de 6 meses de
emprego. Depois que eu consegui minha licença, um monte de gente veio conversar
comigo para ver como conseguia também.

73
Pensar o sofrimento mental das interlocutoras é um ponto nodal desse trabalho porque
esses são relatos comuns e identificados pela maioria como o pior problema a ser enfrentado
por quem trabalha em call centers. Nas entrevistas, o adoecimento aparece como resultado de
uma sobreposição de três fatores: o tratamento dos consumidores (visto também como uma
resposta à falta de resolução de seus problemas pelos produtos), o controle de produção e o
controle da vigilância.
O setor compensa as insuficiências citadas, maximizando lucros e diminuindo custos,
utilizando-se das habilidades individuais das funcionárias. A deterioração da saúde mental
dessas trabalhadoras é decorrência das más condições de trabalho às quais são submetidas. O
sofrimento mental resulta, portanto, como um dos sintomas do avanço da ideologia neoliberal
transformada em técnica nos locais de trabalho.
No próximo tópico, serão destacados os dois mecanismos empresariais engendrados à
serviço do modelamento dos comportamentos e da intensificação do ritmo de execução de
tarefas: o controle de produção e o controle da vigilância. Entendendo o seu funcionamento e
a forma com que concorrem para o adoecimento mental das funcionárias, será demonstrado
de que modo o home office alterou esse quadro.

3.2 – SISTEMAS DE VIGILÂNCIA E CONTROLE DA PRODUÇÃO: OS


INSTRUMENTOS DE COLONIZAÇÃO DAS SUBJETIVIDADES

Sistemas de vigilância

A constante vigilância e a exigida disposição ilimitada das funcionárias em favor da


produção são exaustivas e maior razão para os pedidos de demissão de todas as integrantes
que não trabalham mais na empresa. Para todos esses sujeitos a única maneira de se restituir
frente a essa rotina foi abandonar o setor. É o que afirma Jonas numa fala que nos ajuda a
entender como esses dois mecanismos estão articulados:

Eles tratam você como se você fosse a qualquer momento prejudicar a empresa. Como
se a qualquer momento você fosse fazer uma merda lá, né? ...você fosse roubar a
empresa. Então, você não tem muita autonomia, né? Você tá o tempo todinho sob a
tutela do supervisor. Você está ali para sentar e produzir, é isso. Então tem câmera em
cima de você o tempo todinho. Eles tiram print da tela o tempo todo para ver o que é
que você tá fazendo. Você não tem acesso a internet. Você só tem acesso ao que a
empresa quer. O que tem lá aberto no computador é só a aba para você trabalhar. É só
isso. Você está lá para produzir. Você não pode ficar sem fazer nada. Não tem ticket
para você responder? Eles vão mudar a sua chave de e-mail e você vai responder outra
coisa que você nunca respondeu. Só para você ter o que fazer. Você está ali para

74
produzir e produza porque a empresa quer produção... a empresa quer produção... a
empresa quer produção. Então é nesse nível, assim... Eu me senti lá um objeto. E eu...
por isso que eu disse, né? O emprego ele descaracteriza você como pessoa, né?
Enquanto aquilo que você é. E era isso que eu me sentia, quando eu tava lá sentado na
frente do computador, respondendo e-mail. Eu estava descaracterizado daquilo que eu
era, da minha faculdade de ser humano, né? ...da minha faculdade de gente, de pessoa.
Ali, eu era um ser que produzia. Era esse sentimento que eu tinha.

Como demonstra Jonas, há uma desconfiança constante em relação às funcionárias e em


razão disso, há todo um sistema de vigilância forjado que opera dentro e fora da empresa para
modelar seus comportamentos. Os controles da produção das trabalhadoras são medidos em
índices e metas estabelecidos pelos softwares. Os sistemas se articulam e são indissociáveis,
produzindo uma inter-relação que visa colonizar as subjetividades das trabalhadoras, postas à
serviço de uma produção incessante, como observado por Selma Venco (2006b, p. 9): “O
software, desenvolvido para as centrais de atendimento, intensifica a monitoração dos
trabalhadores e visa limitar sua autonomia.”.
Os estudos sobre vigilância, poder disciplinar e o conceito de panóptico desenvolvido por
Jeremy Bentham e, neste trabalho, examinado segundo a visão de Michel Foucault (1987)
nos ajudam na compreensão desses sistemas de controle e vigilância. Trata-se de uma
ferramenta teórica para que se estabeleça a articulação e o alcance dos diferentes tipos de
estratégias de vigilância e captura da subjetividade das funcionárias, dado que são
dispositivos que acompanham as trabalhadoras desde o momento em que entraram na
empresa até passarem ao trabalho remoto.
É um mecanismo que configura desde a disposição espacial em que se encontram
trabalhadoras e administração, o uso de câmeras, os softwares utilizados para a realização das
atividades, o monitoramento dos supervisores, as cobranças e estímulos a um ambiente
delacional de trabalho. Um cenário que responde ao conceito definido pelo filósofo francês:

É um tipo de implantação dos corpos no espaço, de distribuição dos indivíduos em


relação mútua, de organização hierárquica, de disposição dos centros e dos canais de
poder, de definição de seus instrumentos e de modos de intervenção, que se podem
utilizar nos hospitais, nas oficinas, nas escolas, nas prisões. Cada vez que se tratar de
uma multiplicidade de indivíduos a que se deve impor uma tarefa ou um comportamento,
o esquema panóptico poderá ser utilizado. (FOULCAULT, 1987, p. 229)

Os sistemas de vigilância na referida empresa não se resumem ao uso de equipamentos


eletrônicos ou câmeras monitorando o comportamento das funcionárias, ele está impregnado
no próprio modelo organizacional da corporação. São métodos cujos efeitos são
significativos e devem, como diria Foucault (1987, p. 224): “induzir no detento um estado
consciente e permanente de visibilidade, que assegura o funcionamento automático do poder”.
75
Essa polícia interna ou mesmo autopolícia criada e estimulada pelas instâncias superiores e
pelo modo de funcionamento da empresa é absorvida pelas funcionárias e traduzida em
tensão. Este é um esforço de “Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos,
mesmo se é descontínua em sua ação. (FOUCAULT, 1987, p. 224)”, ou seja, esse sistema
gera uma efetividade tão potente, justamente porque não depende – sequer – da presença
física dos dirigentes da empresa no local ou da permanência do funcionário na empresa. Ela
acaba por alterar não só as relações, mas a própria maneira de pensar dos indivíduos:

Dispositivo importante, pois automatiza e desindividualiza o poder. Este tem seu


princípio não tanto numa pessoa quanto numa certa distribuição concertada dos corpos,
das superfícies, das luzes, dos olhares; numa aparelhagem cujos mecanismos internos
produzem a relação na qual se encontram presos os indivíduos. (FOUCAULT, 1987, p.
225)

A produção, neste caso, é condicionada a uma vigilância constante, como atesta Foucault
(FOUCAULT, 1987, p. 200): “A vigilância torna-se um operador econômico decisivo, na
medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma
engrenagem específica do poder disciplinar”. Na empresa alvo dessa pesquisa, os sistemas de
vigilância são distribuídos de tal forma que constituem um verdadeiro ecossistema panóptico:

Ecossistema panóptico

76
Esse ecossistema determina os esquemas de vigilância das funcionárias em seus diferentes
espaços. Ele transborda as dependências físicas da empresa e invade outros ambientes até que
– com a chegada da Covid-19 – alcance as residências das funcionárias:

À medida que o aparelho de produção se torna mais importante e mais complexo, à


medida que aumentam o número de operários e a divisão do trabalho, as tarefas de
controle se fazem mais necessárias e mais difíceis. Vigiar torna-se então uma função
definida, mas deve fazer parte integrante do processo de produção; deve duplicá-lo em
todo o seu comprimento. (FOUCAULT, 1987, p. 199)

Abaixo, um detalhamento do que seria esse ecossistema panóptico articulado pela


empresa para controle das trabalhadoras:

Controle estrutural (Disposição ambiental)


Ao formular sua tese sobre os “corpos dóceis” partindo da produção da “figura ideal do
soldado” do século XVII, Foucault explica que houve um esforço para transformar o corpo
camponês em um corpo submetido à disciplina militar (FOUCAULT, 1987, p. 225):

O soldado tornou-se algo que se fabrica; de uma massa informe, de um corpo inapto, fez-
se a máquina de que se precisa; corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente uma
coação calculada percorre cada parte do corpo, se assenhoreia dele, dobra o conjunto,
torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, no automatismo dos
hábitos; em resumo, foi “expulso o camponês” e lhe foi dada a “fisionomia de soldado”.

Segundo ele, foi na época clássica que houve “uma descoberta do corpo como objeto e
alvo de poder”, quando o corpo se torna uma instância “que se manipula, se modela, se treina,
que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam”. Uma instância
“técnico-política” responsável por constituir “um conjunto de regulamentos militares,
escolares, hospitalares e por processos empíricos e refletidos para controlar ou corrigir as
operações do corpo” foi articulada com uma outra “anátomo-metafísica” iniciada por
Descartes e seguida por médicos e filósofos. A articulação entre essas duas marcações,
defende o filósofo, constrói a figura do “homem-máquina” que por meio de uma “sujeição
constante de suas forças” produz a “docilidade-utilidade” dos corpos.
É um movimento que atravessa os séculos XVII e XVIII quando os processos disciplinares
que já existiam e que Foucault identifica nos conventos, nos exércitos e nas oficinas são
sistematizados em fórmulas gerais de dominação que ele chama de “disciplinas”. São técnicas
que transcendem as “limitações, obrigações e proibições” que sempre existiram em todas as
sociedades. Elas são forjadas para o controle, não mais de um corpo unitário, mas de um

77
corpo esquadrinhado em todos os seus detalhes. A “coerção sem folga” que tenta equipará-lo
a uma “máquina”, o monitora em todos os aspectos: “movimentos, gestos, atitude, rapidez”.
A disciplina cultivada nesses espaços “aumenta as forças do corpo (em termos econômicos
de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)”, causam
uma dissociação na relação entre “corpo” e “poder”, diminuindo sua “potência” e “energia”.
A disciplina, em última instância, seria “uma anatomia política do detalhe”.
Foucault identifica que, com o passar do tempo, essas técnicas são transformadas em um
“método geral” e sistematicamente espraiadas. No início, é utilizada em colégios, escolas
primárias e técnicas, espaços hospitalares, organizações militares e grandes oficinas, para
posteriormente serem aplicadas nas fábricas:

A fábrica parece claramente um convento, uma fortaleza, uma cidade fechada; o


guardião “só abrirá as portas à entrada dos operários, e depois que houver soado o sino
que anuncia o reinicio do trabalho”; quinze minutos depois, ninguém mais terá o direito
de entrar; no fim do dia, os chefes de oficina devem entregar as chaves ao guarda suíço
da fábrica que então abre as portas. É porque, à medida que se concentram as forças de
produção, o importante é tirar delas o máximo de vantagens e neutralizar seus
inconvenientes (roubos, interrupção do trabalho, agitações e “cabalas”); de proteger os
materiais e ferramentas e de dominar as forças de trabalho. (FOUCAULT, 1987, p. 168)

Visto que a disciplina é sinalizada, antes de tudo, na “distribuição dos indivíduos no


espaço”, Foucault aponta que são desenvolvidas variadas técnicas em prol da sua demarcação:
“a especificação de um local heterogêneo a todos os outros e fechado em si mesmo”, dentro
desses espaços, a observância de uma “localização imediata ou do quadriculamento”:

Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo. Evitar as distribuições por
grupos; decompor as implantações coletivas; analisar as pluralidades confusas, maciças
ou fugidias. O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quando corpos ou
elementos há a repartir. É preciso anular os efeitos das repartições indecisas, o
desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação
inutilizável e perigosa; tática de antideserção, de antivadiagem, de antiaglomeração.
Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os
indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante
vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os
méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza
um espaço analítico. (FOUCAULT, 1987, p. 169)

Toda essa configuração pode ser observada nas fábricas de que fala Foucault, nas
indústrias, linhas de montagem e nos galpões dos call centers, como mostra a imagem abaixo:

78
Estruturação ambiental típica do call center16

No caso concreto, podemos constatar que a própria estruturação do ambiente de trabalho


dentro dos estabelecimentos da empresa alvo dessa pesquisa é forjada para o
esquadrinhamento dos corpos das funcionárias. Desde como se configuram os espaços
administrativos, os posicionamentos das PAs (Pontos/Posição de Atendimento), o uso
ininterrupto de câmeras de monitoramento, até os comportamentos das trabalhadoras, tudo é
submetido a um enquadramento. O modelo das fábricas do século XVIII que Foucault
descreve se aplicam, sem prejuízo, à distribuição dos espaços destinados às empresas
contratantes nos galpões do call center da região metropolitana de Natal:

Nas fábricas que aparecem no fim do século XVIII, o princípio do quadriculamento


individualizante se complica. Importa distribuir os indivíduos num espaço onde se possa
isolá-los e localizá-los; mas também articular essa distribuição sobre um aparelho de
produção que tem suas exigências próprias. É preciso ligar a distribuição dos corpos, a
arrumação espacial do aparelho de produção e as diversas formas de atividade na
distribuição dos “postos”. A esse princípio obedece a manufatura de Oberkampf em Jouy.
Ela se compõe de uma série de oficinas especificadas segundo cada grande tipo de
operações: para os impressores, os encaixadores, os coloristas, as pinceladoras, os
gravadores, os tintureiros. (FOUCAULT, 1987, p. 171)

Correspondendo ao modelo das fábricas descritas por Foucault acima, as funcionárias são
agrupadas nos galpões de acordo com a função que exercem para o produto para o qual
prestam serviço e individualizadas no cercamento das PAs de madeira. As trabalhadoras são
posicionadas em grades nos postos de atendimento, enfileiradas umas ao lado das outras,

16
Imagem coletada da internet. Disponível em: <https://pplware.sapo.pt/wp-content/uploads/2015/11/call-
center_thumb.jpg>. Acessado em: 18 de maio, 2021.

79
encerradas em um quadrado que limita seus movimentos e facilita sua vigilância e controle
pelos superiores hierárquicos.

Toda uma problemática se desenvolve então: a de uma arquitetura que não é mais feita
simplesmente para ser vista (fausto dos palácios), ou para vigiar o espaço exterior
(geometria das fortalezas), mas para permitir um controle interior, articulado e detalhado
— para tornar visíveis os que nela se encontram; mais geralmente, a de uma arquitetura
que seria um operador para a transformação dos indivíduos: agir sobre aquele que abriga,
dar domínio sobre seu comportamento, reconduzir até eles os efeitos do poder, oferecê-
los a um conhecimento, modificá-los. (FOUCAULT, 1987, p. 197)

A PA é a nova cela de onde as trabalhadoras são vistas pelos supervisores, os novos


“vigias”. As divisões laterais são os novos “muros laterais” do panóptico que expõe ao olhar
externo, mas restringe movimentos e “impede o contato” com as colegas. A operadora, tal
qual o preso do modelo benthamiano, é vista, mas não vê. Constituindo-se num “objeto de
uma informação, nunca sujeito numa comunicação”.
Os escritórios da administração são feitos com “paredes” de vidro, encravados ao lado de
cada central de atendimento com gerentes e coordenadores mais próximos das funcionárias.
Trata-se de uma alteração significativa daquela organização típica dos escritórios da
administração de corporações privadas que separavam funcionárias e funcionários de
diferentes hierarquias radicalmente. Encapsular os superiores hierárquicos em locais
especificamente projetados para isolá-los, cria um certo ar de distanciamento que desconecta
as funcionárias e funcionários superiores e a base da pirâmide da empresa. Esse modelo,
tradicionalmente estruturado, é subvertido em nome de uma proximidade que não é forjada
para criar um motivo de conexão, aproximação, laços ou mesmo uma comunicação mais
eficiente com as trabalhadoras. É, na verdade, um artifício de adensamento dos sistemas de
controle e vigilância.
Os supervisores se posicionam em cadeiras mais altas que as funcionárias para conseguir
enxergar toda a operação seja para auxiliá-las ou para observar seus comportamentos. Embora
nem todas as funcionárias relatem um controle tão rígido em todos os produtos, Larissa
esclarece que no produto em que trabalha há uma modelação assertiva da disposição das
empregadas: “Na PA tem um computador na minha frente. Eu posso ficar de lado assim, mas
a gente tem que ficar de frente a PA. Eu não posso assim... ficar de lado conversando com
alguém porque nas câmeras pega e o supervisor já chama atenção, já chama atenção da
gente.”.
Foucault descreve a fábrica de manufatura de algodão de Philippe Oberkampf nos
arredores de Paris como exemplo da disposição desse modelo:

80
Percorrendo-se o corredor central da oficina, é possível realizar uma vigilância ao
mesmo tempo geral e individual; constatar a presença, a aplicação do operário, a
qualidade de seu trabalho; comparar os operários entre si, classificá-los segundo sua
habilidade e rapidez; acompanhar os sucessivos estágios da fabricação. Todas essas
seriações formam um quadriculado permanente: as confusões se desfazem; a produção se
divide e o processo de trabalho se articula por um lado segundo suas fases, estágios ou
operações elementares, e por outro, segundo os indivíduos que o efetuam, os corpos
singulares que a ele são aplicados: cada variável dessa força — vigor, rapidez, habilidade,
constância — pode ser observada, portanto caracterizada, apreciada, contabilizada e
transmitida a quem é o agente particular dela. Assim afixada de maneira perfeitamente
legível a toda série dos corpos singulares, a força de trabalho pode ser analisada em
unidades individuais. Sob a divisão do processo de produção ao mesmo tempo que ela,
encontramos, no nascimento da grande indústria, a decomposição individualizante da
força de trabalho; as repartições do espaço disciplinar muitas vezes efetuaram uma e
outra. (FOUCAULT, 1987, p. 171)

Transpondo essa realidade para os galpões do call center encontramos as mesmas


seriações e quadriculados, a divisão da produção e a individualização dos corpos dóceis
obedientes a uma disciplina que “individualiza os corpos por uma localização que não os
implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações”. Sua atualização consiste
no controle da força de trabalho, não só pelos supervisores e demais superiores hierárquicos
das operações, mas por dados que são caracterizados, contabilizados e transmitidos por meio
dos softwares dos produtos.

Controle Técnico (Computadores das funcionárias)


Foucault aponta que o controle dos horários das atividades dos colégios, oficinas e
hospitais tem origem nas ordens religiosas que sempre dominaram a arte da disciplina: “eram
os especialistas do tempo, grandes técnicos do ritmo e das atividades regulares”. Por fim,
essas instituições passaram a formular um controle tão rígido que, ao mesmo tempo que fatia
o tempo das atividades em “quartos de hora, minutos e segundos”, tenta “garantir a qualidade
do tempo empregado: controle ininterrupto, pressão dos fiscais, anulação de tudo o que possa
perturbar e distrair; trata-se de constituir um tempo integralmente útil” (FOUCAULT, 1987, p.
177). Ele também explica que no século XVII houve uma “elaboração temporal” das ações.
Ao descrever as maneiras que se passou a controlar a marcha de uma tropa cronometrando
cada gesto, ele antecipa um postulado para o call center: “O tempo penetra o corpo, e com ele
todos os controles minuciosos do poder.”.
O tempo é um elemento crucial no call center. Todas as métricas utilizadas para compor o
desempenho das funcionárias e o alcance das metas são feitas pelos softwares dos produtos
com controle rígido do tempo de todas as atividades. São monitorados os segundos exatos de
log in e log out no sistema, tanto no início e término da jornada de trabalho quanto nas três

81
pausas intrajornadas. Caso não cumpra os horários de saídas e entradas, os índices são
afetados.
Desde que chega na operação, a funcionária deve dedicar todos os minutos à produção,
mesma lógica das fábricas do século XIX descritas pelo filósofo: “O tempo medido e pago
deve ser também um tempo sem impureza nem defeito, um tempo de boa qualidade, e durante
todo o seu transcurso o corpo deve ficar aplicado a seu exercício. A exatidão e a aplicação são,
com a regularidade, as virtudes fundamentais do tempo disciplinar.”.
As funcionárias são avisadas que as telas de seus computadores são submetidas a prints
regulares para que a administração da empresa saiba em que tipo de atividades elas estão se
engajando durante o horário de trabalho. Também são monitorados os números de
atendimento diários e, no caso dos serviços por voz, a duração de cada chamada. Ao final de
cada chamada a nota de satisfação que o consumidor atribui à operadora também é adicionada
aos índices. Os sistemas operacionais de alguns produtos impelem as funcionárias a estar
produzindo incessantemente, algo definido por Foucault como “princípio da não-ociosidade”:

Lá eles tinham uma coisa bizarra. Se você passar, se não me engano, 30 segundos sem
mexer, ele bloqueia a tela. E quando bloqueia a tela pode chegar uma ligação para você.
Às vezes, nisso de chegar a ligação e a sua tela estar bloqueada, você pode demorar um
tempo, né? para ver o cadastro do cliente digitando a sua senha. Então, até isso, eles vão
tirar ponto de você. Se você tiver com a sua tela bloqueada e eles passarem, você vai
receber uma retenção. E, dependendo de quantas vezes isso acontecer, você vai ser
penalizado. Então, você tem que estar o tempo todo aqui. Mesmo que não chegue ligação
para você. Você tem que tá aqui mexendo, nem que seja só clicando no mouse para não
bloquear sua tela. Às vezes você tá em pausa e a sua tela tá bloqueada. Você tem que
chegar antes da sua pausa estourar para colocar sua senha para desbloquear. Então, às
vezes, você chega na hora, mas você não conseguiu desbloquear sua tela porque, sei lá,
você errou a sua senha. Não querem saber. Porque tudo lá é muito cronometrado assim...
Estourou um segundo já fica vermelho, você já é chamado a atenção. E se, por acaso,
você sair para ir ao banheiro, você tem que bloquear a sua tela. Se você pausar tudo e for
ao banheiro e esquecer de bloquear sua tela... que automaticamente em 30 segundos dá
bloqueio. Mas se você levantar para ir ao banheiro, pausar tudo e não (inaudível), mas o
líder vê que você não bloqueou a sua tela, você também é penalizado. Então, você não
relaxa naquele lugar. Eu não sei como o povo consegue ficar muito tempo ali, não.
(Hannah, 27)

A disciplina requerida no setor é organizadora do que Foucault (1987, p. 179) define como
“uma economia positiva”, pois necessita de uma “utilização teoricamente sempre crescente do
tempo”, visando “extrair do tempo sempre mais instantes disponíveis e de cada instante
sempre mais forças úteis”. Algo que exige uma intensificação direcionada a “um ponto ideal
em que o máximo de rapidez encontra o máximo de eficiência”.

82
O controle exercido pela máquina, responsável por estabelecer a necessidade de tornar os
atendimentos cada vez mais velozes, os gestos cada vez mais eficientes, disciplina os corpos
das trabalhadoras criando uma simbiose corpo-máquina:

Ora, através dessa técnica de sujeição, um novo objeto vai-se compondo e lentamente
substituindo o corpo mecânico — o corpo composto de sólidos e comandado por
movimentos, cuja imagem tanto povoara os sonhos dos que buscavam a perfeição
disciplinar. Esse novo objeto é o corpo natural, portador de forças e sede de algo durável;
é o corpo suscetível de operações especificadas, que têm sua ordem, seu tempo, suas
condições internas, seus elementos constituintes. O corpo, tornando-se alvo dos novos
mecanismos do poder, oferece-se a novas formas de saber. Corpo do exercício mais que
da física especulativa; corpo manipulado pela autoridade mais que atravessado pelos
espíritos animais; corpo do treinamento útil e não da mecânica racional, mas no qual por
essa mesma razão se anunciará um certo número de exigências de natureza e de
limitações funcionais.

Controle hierárquico (Supervisores)


Todos os contatos realizados com clientes são monitorados, gravados pelos softwares e
avaliados pelos supervisores (a chamada monitoria), servindo de base para uma reunião
individual periódica (o feedback). Os supervisores avaliam a qualidade do atendimento de
acordo com os critérios do produto e o desempenho da funcionária é discutido
individualmente nessa reunião. O objetivo dessas reuniões é discutir formas de melhorar o
serviço, detectar os pontos fracos do atendimento e formular sugestões para sua melhoria.
Há relatos frequentes nas entrevistas de que as práticas abusivas e atitudes persecutórias
vem, majoritariamente, do grupo que supervisiona as operadoras de mesa e o momento de
feedback também é usado para isso. É uma postura que não se aplica a todos os produtos, nem
a todas as profissionais. Contudo, há consenso de que o tom de ameaça em feedbacks ou
comunicados coletivos, o estímulo à delação de colegas que questionem as políticas da
empresa e mesmo episódios de monitoramento de redes sociais das trabalhadoras não são
repudiados pela terceirizada. Isso faz com que as trabalhadoras desconfiem que, mesmo que
essas posturas não sejam frutos da política institucional da empresa, há uma tolerância e
conivência que acaba por estimular a toxicidade do ambiente de trabalho:

Era uma sexta-feira, já ia dar 18 horas e o nosso horário era até 18:12h. E essa
supervisora chegou falando que a gente tinha um treinamento no sábado às 10 horas da
manhã, se eu não me engano...era 8 ou 10 da manhã. Mas enfim, era já no dia seguinte. E
isso com um tom de voz extremamente agressivo. Isso falando super alto e falando que:
"Então, gente... vocês sabem que trabalhar aqui é hoje, não é amanhã. Vocês sabem que
vocês precisam abrir mão de algumas coisas quando você tá no trabalho. E quem não
for... vocês podem até ter a escolha de não ir. Mas quem não for, não pode pedir suporte
na segunda-feira porque a gente não vai ajudar... porque você teve a escolha de aprender
e você não quis ir.”. Só que... tipo... num tom de voz... Ela poderia ter dito: "Ó, gente. Eu

83
sei que difícil. Eu sei que é uma sexta-feira. Eu sei que vocês têm compromisso marcado.
Mas também seria importante se vocês fossem. Vocês sabem que tem coisas que vem de
cima que a gente não consegue escolher. Mas que se vocês não puderem ir, eu vou
entender.”. Porque tipo... tem formas e formas de você falar. Assim, você não precisa
ameaçar a pessoa. (Larissa, 25)

Os supervisores são os mais próximos das operadoras na hierarquia da empresa que


também conta com líderes educadores, coordenadores e monitores. Eles trabalham
diretamente com as funcionárias no mesmo espaço físico em que elas se encontram e
concentram suas reclamações sobre comportamentos abusivos.
Posicionados dentro da operação, inclusive destacados em cadeiras mais altas, um
“encaixamento espacial das vigilâncias hierarquizadas” (FOUCALT, 1987, 197), eles têm
total controle do espaço em que estão as funcionárias. Juntamente com as câmeras e o
monitoramento dos computadores compõe o jogo de ver e ser visto presente na “vigilância
hierárquica” identificada por Foucault (1987, 196): “O exercício da disciplina supõe um
dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que permitem ver
induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis
aqueles sobre quem se aplicam.”

Controle social horizontal


A empresa estimula a vigilância dos pares e a competição para o cumprimento das metas
que são diárias, semanais, mensais ou por campanhas específicas para cada produto. Estas
metas devem ser alcançadas individualmente, pelas equipes dos produtos e também pelos
diferentes setores da instituição.
A divulgação do alcance ou não das metas em painéis ou planilhas permite que toda a
comunidade laboral tome conhecimento das equipes mais bem sucedidas e daquelas que
“fracassaram” em obter bons índices produtivos. É algo que acaba gerando uma cobrança
social pela melhoria dos índices das equipes com pior desempenho.
Além disso, a competição também é estimulada com o discurso sobre oportunidades de
crescimento que não se resume à disputa por cargos de comando, mas também à transferência
para outros produtos cobiçados pelas funcionárias por pagarem mais (todas as funcionárias
recebem um salário-mínimo que podem ser adicionados de variações entre R$ 100,00 e
R$ 200,00 a depender do produto) ou serem menos inclementes nas exigências de suas
funções. Em razão disso, os supervisores incentivam funcionárias a delatar as colegas que
adotam discursos e atitudes desfavoráveis à empresa, seja em conversas pessoais, redes
sociais ou mesmo em grupos de aplicativos de mensagens mantido pelas empregadas. Há

84
relatos de supervisores que, identificando a intenção de uma funcionária se candidatar ao
processo de jump, a estimula a delatar colegas que contrariam políticas da empresa para
assim ser vista com bons olhos pelos superiores:

Fonte: Print de mensagens trocadas entre as trabalhadoras em grupo de aplicativo de mensagens em 26/06/20

Ao chegar na base da hierarquia, conduzida pelas próprias colegas, a vigilância exercida


pelo poder disciplinar de que fala Foulcault torna-se um “sistema integrado” (1987, 201):

Organiza-se assim como um poder múltiplo, automático e anônimo; pois, se é verdade


que a vigilância repousa sobre indivíduos, seu funcionamento é de uma rede de relações
de alto a baixo, mas também até um certo ponto de baixo para cima e lateralmente; essa
rede “sustenta” o conjunto, e o perpassa de efeitos de poder que se apóiam uns sobre os
outros: fiscais perpetuamente fiscalizados.

Controle discursivo (Proibições)


As funcionárias são expressamente proibidas de mencionar o nome dos produtos para os
quais prestam serviço fora do ambiente de trabalho, inclusive não podem tecer qualquer tipo
de comentário sobre a natureza do trabalho que exercem ou mesmo de qualquer experiência
do seu cotidiano laboral. Não podem falar sobre essas questões com qualquer pessoa, em
qualquer tipo de conversa que tenham. Essa proibição faz com que mesmo aquelas pessoas
que já saíram da empresa há anos silenciem a respeito destas questões, se policiem e
obedeçam a essas diretrizes com medo de retaliações legais.
É uma proibição estabelecida por causa do manejo dos dados sensíveis dos clientes tais
como informações bancárias, endereço e rendimentos, mas que acaba por silenciar as
funcionárias sobre as suas condições de trabalho. A cláusula alerta que elas podem sofrer
sanções “civis, jurídicas e até criminais” se violarem o termo e revelarem detalhes sobre sua
função por até 3 anos depois de deixar a empresa:

85
“Termo de confidencialidade” do contrato de trabalho fornecido por trabalhadoras do grupo 1

Esse é um fator decisivo para que as relações interpessoais das interlocutoras se voltem
para o círculo social do trabalho. Proibidas de fazer comentários sobre o que acontece em seu
cotidiano laboral, elas se restringem a compartilhar suas experiências apenas com pessoas
que trabalham na mesma função, produto ou equipe. Elemento que contribui para o
encapsulamento nos círculos sociais da empresa e sufocamento relatado por Jonas.

Controle externo (Espaço fora do ambiente da empresa)


Essa proibição faz com que qualquer espaço fora da empresa seja um outro braço do
ambiente delacional estimulado pelos superiores. Mesmo fora das instalações do call center,
uma conversa ouvida por qualquer funcionária que se comporte como uma “espiã” pode
prejudicar a funcionária incauta que não seguiu as orientações de silenciar qualquer assunto
sobre o ambiente de trabalho. Nas entrevistas realizadas, houve relatos de pessoas que foram
prejudicadas dentro da empresa por conversas que tiveram em paradas de ônibus ou pelo
engajamento em atividades políticas que, apesar de não terem relação com a função, foram
consideradas inadequadas pelos superiores.
Diante da recusa da interlocutora Rute em compartilhar algumas informações sobre o
ambiente de trabalho, tentei tranquilizá-la argumentando que firmei um Termo de
Compromisso com ela, assegurando o sigilo dos dados. Ela explica o porquê do receio:

Rute - E aí, primeiro isso assim... Você tem que tomar cuidado nos lugares que você vai
falar as coisas, entendeu? Você está lá na mesinha (da Universidade), comendo ali,
tomando o seu cafezinho, comendo o seu salgado. Tá metendo o pau em alguém? Olha
para o lado. Meta o pau baixinho. Não cite nomes, entendeu? Por isso que você falou:
"Não, olha o Termo de Compromisso!". Mas eu não vou conseguir falar o nome. As
pessoas não vão falar o nome da porra do produto porque tipo assim... é um processo
muito doido, entendeu? As pessoas não falam, sabe? [...] Dependendo de como a gente
for meter o pau, a gente não mete o pau pelo WhatsApp ou por ferramentas que você
possa tirar um print... Porque o print pode aparecer para alguém, entendeu?

86
Pesquisadora - Mas, você tá falando aí que é um processo... porque você já saiu da
empresa há dois anos e você não está falando o nome das pessoas ou do produto. Você
está falando que é um processo mental, né? que entra, absorve...

Rute - É, total, total. Até porque.. tipo assim... Porque é isso...Como é que você tá... tá
você e seu amigo numa parada de ônibus conversando sobre alguma coisa e daqui a uma
semana, o pessoal da empresa sabe que você tava conversando com essa pessoa,
entendeu? É só o que acontece. Então, se você tem um amigo seu que ainda trabalha lá,
você não fala certas coisas.

Essa extensão da circunscrição da vigilância é tratada por Foucault (1987, 234) como uma
“ramificação dos mecanismos disciplinares”, causada pela tendência de desinstitucionalização
que acompanha a multiplicação de seus tentáculos. A efetividade da vigilância é conseguida à
medida que abandona “as fortalezas fechadas onde funcionavam” e circulam livremente
completamente incorporadas aos sujeitos.

Controle doméstico (Home office)


Os sistemas de vigilância correspondentes ao controle técnico encontrados anteriormente
no espaço físico da empresa foram transferidos para a casa das trabalhadoras com a
implantação do trabalho remoto. Em alguns produtos, houve análises por vídeo do ambiente
de casa/trabalho e consequentes modificações do espaço para que sua configuração atendesse
às exigências da empresa. Os produtos tentavam assegurar, por exemplo, que não houvesse
cadernos, canetas, livros, papéis e até mesmo o celular da funcionária no mesmo espaço em
que o trabalho era realizado, foi o que aconteceu com Laís:

Com relação à vigilância do espaço teve uma atividade que foi feita pela supervisora de
cada equipe, né? Na verdade, eu não sei das outras equipes, mas pelo menos na minha
equipe foi assim. A supervisora entrou em contato com cada uma das pessoas, tirou um
dia para ligar. E aí, era por chamada de vídeo. E aí, pedia para gente mostrar assim... o
ambiente que a gente usa para o trabalho, assim... Para ver se tinha algum livro perto, se
tinha algum caderno, se tinha... daí, ela perguntou: "Fica de frente para janela ou fica de
costas? Fica de costas para a porta? Coisas assim. E aí, pedia, basicamente, para a gente
mostrar como é que era, sabe?.

No ambiente doméstico, a fisicalidade necessária ao panóptico construído pela disposição


da central de atendimentos foi convertida para uma outra espécie de lógica que agora não
opera a partir de um lugar específico, mas de um instrumento de controle materializado no
software. A nova prática laboral transformou-se numa extensão de um mecanismo de poder e,
encapsulado nas casas das trabalhadoras, constitui o que Foucault chama de “uma figura de
tecnologia política que se pode e se deve destacar de qualquer uso específico” (1987, p. 228).

87
O que, em última instância, pode resultar em um maquinário de controle “levado à sua forma
ideal [...] abstraindo-se de qualquer obstáculo, resistência ou desgaste”.
Os efeitos e contrastes dessa transferência serão explorados no próximo capítulo desta
dissertação. Nele serão testados os efeitos do ecossistema estabelecido no regime presencial
em relação às novas configurações do trabalho remoto. Abaixo, observa-se o funcionamento
do sistema do controle de vigilância no regime presencial:

Ecossistema panóptico do regime presencial

Sistemas de controle da produção


O setor de call center ainda obedece à racionalidade das metodologias científicas
tayloristas de eliminação de qualquer desperdício de tempo por meio de um controle de
tarefas rigidamente cronometradas e estímulos ao alcance de metas. Algo definido por Ruy
Braga (2014) como “infotaylorismo” e já diagnosticado por Selma Venco em seus estudos
sobre as centrais de atendimento (2006b, p. 8):

A atividade que nelas se desenvolve parte da combinação de elementos modernos, como


a fusão da informática e das telecomunicações – a telemática −, mas faz uso de formas
tradicionais de prescrição e controle do trabalho, inspiradas na “organização científica
do trabalho” elaborada por Frederich Taylor.

88
A preocupação milimétrica com o controle do tempo, é um dos elementos mais opressivos
detectado nas entrevistas com as trabalhadoras. Não as permite relaxar e as induz a um
constante estado de alerta, como esclarece Rute ao falar das dificuldades de sua rotina no
trabalho:

Você não tem controle do seu tempo. Então tipo... teu horário é 4:30. Então, você chega
na hora. Você liga o computador. Você deixa tudo carregadinho para quando der 4 horas,
30 minutos e 0 segundos, você colocar no sistema que você está disponível para receber
ligação. E aí, é ligação, ligação, ligação, ligação... Aí, a sua primeira pausa é às 5:40.
Então, você tem que reorganizar a sua ligação, ou seja, fazer com que ela demore mais
ou que ela demore menos. Ás 5:40 e 0 segundos, você tem que colocar que você está em
intervalo porque às 5 horas, 40 minutos e 15 segundos, já conta o tempo para você. Já
desconta de um índice seu que precisa ser bom. E aí, depois disso, você tem 10 minutos
contadinho de relógio. Por exemplo, se você sair às 4 horas, 40 minutos e 15 segundos.
Você tem que voltar às 4 horas, 50 minutos e 15 segundos. [...] É 15, é 17, é 23, é 29,
entendeu? A orientação, inclusive, não é a gente ter relógio, é a gente ter cronômetro.

A disposição do setor para o controle total dos corpos de suas funcionárias é algo também
apontado por Ricardo Antunes e Ruy Braga (2009, p. 181)

O trabalho de atendente de call center é marcado por um forte controle do tempo das
ligações e das pausas, dos movimentos e gestos (vide o fio do fone que prende à PA) e
do próprio processo de trabalho (gravação das ligações, escuta e supervisão em tempo
real, auditorias, controle do volume de vendas em tempo real e indução a vender mais
para atingir as metas).

A análise dos autores corroborada pelo depoimento de Rute nos leva a concluir que o
objetivo final das políticas aplicadas no setor é o controle total da subjetividade das
funcionárias que devem ser direcionadas completamente para a produção e para os lucros da
empresa, ainda que o preço a ser pago pela conquista destes objetivos seja a corrosão do seu
equilíbrio mental.
O controle da vigilância/produção é efetuado por meio de três índices adotados pela
empresa terceirizada: aderência, ABS (absenteísmo) e qualidade. Esses índices constituem
um somatório dos comportamentos das funcionárias.
A “aderência” é aferida pelo próprio computador das trabalhadoras porque diz respeito a
dados objetivos da produção: assiduidade e cumprimento rígido das pausas programadas para
cada dia, cumprimento da escala e o “tempo médio de atendimento (TMA)” aos
consumidores. Esse último critério faz com que a funcionária persiga a diminuição do tempo
gasto em um único atendimento, já que uma das formas que a terceirizada fatura diz respeito
a quantidade de atendimentos que suas funcionárias realizam.

89
A “ABS”, relacionada ao “absenteísmo”, diz respeito à quantidade de faltas da funcionária,
sejam elas justificadas ou não. Caso falte, chegue atrasada, saia mais cedo ou fique doente,
mesmo fornecendo atestado médico, ela pontua o índice ABS. O índice começa em 0% e é
pontuado a cada uma dessas “falhas” da funcionária. Para participar do processo seletivo de
jump, a funcionária só pode ter o índice pontuado em torno de 5%. Essa porcentagem,
aparentemente, é atingida com apenas uma falta ao trabalho. Os dois índices estão
relacionados à maneira como a trabalhadora é vista pela empresa e pelos seus superiores,
consequentemente, como será cobrada para se tornar uma funcionária que produza mais em
menor tempo.
Já a “qualidade” avalia os conteúdos dos atendimentos prestados porque todos os contatos
com consumidores devem ser padronizados. Cada empresa contratante tem um critério
diferente para avaliar a "qualidade" desses contatos. Algumas pagam a terceirizada por
produtividade, outras por tempo que a funcionária permanece conectada ao sistema, por
exemplo.
Uma outra exigência que exemplifica o tipo de pressão a que estão submetidas essas
trabalhadoras é o tempo de resposta a uma ligação telefônica ou interação em um chat que é
de 3 segundos em alguns produtos. Há atendimentos em chats que a funcionária deve atingir
essa velocidade de resposta ainda que atenda dois ou mesmo três clientes ao mesmo tempo.
Ao contrário do absenteísmo que começa em 0% e vai sendo pontuado à medida que a
funcionária “falha”, por sua vez, a qualidade começa em 100% e é diminuída quando a
funcionária comete algum erro. Extrapolar os três segundos de resposta, iniciar um contato
sem mencionar a saudação padrão, desligar uma ligação sem que o problema tenha sido
resolvido são exemplos de erros da funcionária.
Em alguns dos produtos, a compensação por atingir esses índices vem em forma de adição
à remuneração, a RV (Remuneração Variável), um incentivo à produção e manutenção da
qualidade dos atendimentos. Cumprir à risca todos esses elementos é o que faz com que a
funcionária se torne "aderente", expressão utilizada para indicar que ela é considerada
eficiente com 100% de aproveitamento nas suas funções, como explica Cazé:

Para a gente ser "aderente", a gente tem que atender muito rápido e ser mais preciso nas
soluções. É isso que eles falam. Isso requer um conhecimento dos procedimentos e um
certo gingado ali para lidar com a pessoa. Então, quanto mais rápido a gente atende,
maior a probabilidade de a gente sair naquele horário. Então quando a gente tá
atendendo, a gente tem que dar uma agilizada quando tá perto do horário de sair para a
pausa. Então tem isso, né? A gente fica meio louco assim... meio surtado para atender
bem rápido, sem perder a qualidade porque senão vem outro índice também, né?... que é

90
a qualidade.... que se a monitoria pegar uma ligação que a gente tá ali apressado
querendo jogar o cliente... enfim... desligar a ligação... aí, zera.

Esses mecanismos de controle da produção elevam ao máximo o estado de atenção que


uma trabalhadora comum deve dedicar às suas funções, entender como eles operam nos
desnudam o poder de alcance de um sistema que tem conseguido – com sucesso – adestrar
subjetividades. É o que entende Pierre Dardot e Christian Laval (2016, p. 7) ao defenderem
que o neoliberalismo “não é apenas uma ideologia, um tipo de política econômica. É um
sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do
capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida.”.
O ideário neoliberal, portanto, segue em difusão e atingindo todas as camadas da
população, apesar de destruir direitos e garantias sociais. É o alerta que eles fazem
(DARDOT; LAVAL, 2016, p. 14) quando tentam explicar porque as políticas neoliberais
seguem se aprofundando sem resistências significativas:

A resposta não é e não pode ser limitada apenas aos aspectos “negativos” das políticas
neoliberais, isto é, à destruição programada das regulamentações e das instituições. O
neoliberalismo não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz
certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades. Em
outras palavras, com o neoliberalismo, o que está em jogo é nada mais nada menos que a
forma de nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos
relacionar com os outros e com nós mesmos.

O call center em questão representa esse esforço, pois institui na trabalhadora o modo
correto de exercer as suas funções e vai além, pois tece uma conformidade para o sujeito. Ao
explicar as exigências de alcance da “aderência” pelos superiores, Cazé deixa entrever como
se constroem certas moralidades: “Há quase que um certo julgamento moral. Assim... porque
tem muito a ver com a sua reputação e com o seu comportamento também, né? E isso afeta,
diretamente, na maneira como o seu supervisor vê você também dentro da empresa.”.
Na perspectiva de algumas das trabalhadoras que colaboram com essa pesquisa, todos
esses índices são praticamente impossíveis de serem atingidos. A obediência às pausas é um
dos exemplos: em 6:20h de trabalho diário, as funcionárias têm que cumprir duas pausas de
10 minutos e uma de 20. A obediência ao exato minuto determinado para o log in e log out
do sistema, requer uma precisão classificada pela interlocutora Glória como “sobre-humana”.
Além disso, a fixidez do horário determinado não leva em consideração se a funcionária está
no meio de uma ligação que não pode, simplesmente, ser interrompida para que ela cumpra o
horário da pausa. Mesmo porque desligar o atendimento no meio, priorizando o cumprimento

91
do horário da pausa, afetaria o índice de qualidade dado que o problema do consumidor não
foi resolvido.
No caso de atendimentos que não são feitos por voz, como resposta a e-mails, interações
por chats e preenchimento de documentos, algumas funcionárias usam as pausas obrigatórias
para conseguir concluir operações com protocolos pendentes, mas são vigiadas para não o
fazerem:

As condições de trabalho para mim eram muito negativas. No sentido de que era uma
sobrecarga muito grande. Era algo sobre-humano, na minha opinião. A gente era... para
mim, eles viam a gente como máquinas. Então, para mim, as condições de trabalho era
uma coisa bem sobre-humana, Então assim... as condições de trabalho eram péssimas
porque a gente não podia botar pausa. Quando a gente botava uma pausa porque tinha a
possibilidade de você botar uma pausa para ir no banheiro e ficar preenchendo as coisas.
Só que o supervisor já olhava se você tava no banheiro ou se você tava ali. Se você
tivesse ali, ele já reclamava com você. “O que você tá fazendo?”. “Não, tô preenchendo
aqui e tal.”. Mas não era possível de fazer. (Glória, 27)

A política de Remuneração Variável, aplicada em alguns produtos, também é entendida


como um incentivo enganoso. Já que ela só é concedida quando todos os índices são
atingidos e perseguir uns prejudica outros:

Eu vou botar uma meta propositalmente difícil. Eu não vou dizer impossível porque tem
gente que eu sei que vai bater. Por exemplo, tem gente que atende muitos contatos. E aí,
eu não sei exatamente a custo de quê, né? Se talvez a pessoa se estressa... Eu já me
estresso horrores, assim... Eu já termino o dia completamente esgotada. E eu tento dar o
meu máximo. Hoje eu atendi quase 30 chats, sabe? E assim, supostamente, 430 chats no
mês. Quando a supervisora veio informar como é que seria, ela falou: “Olha, vocês
fazendo 17 chats por dia, dá para bater essa meta no final do mês!”. E 17 chats não seria
grandes coisas, sabe? Até que daria. Mas não tá sendo assim porque tem vezes que eu
faço 25, 29, 27. Muitas vezes, eu passo desses 17 e eu ainda tô bastante distante desses
430. O mês está acabando e assim... é realmente para te manter sempre querendo
oferecer muito mais. E a lógica muda completamente, eu chamo de sórdido porque é
isso: se antes as pessoas não queriam trabalhar, né? Faziam seus esquemas ali para não
trabalhar tanto agora elas querem trabalhar muito mais. E por uma coisa que se você for
ver, é uma mixaria. Então, assim... é a melhor estratégia para o empregador, né? Para o
empregador malicioso que não se importa com o trabalhador porque tá punindo...
porque “Ah, não fique muito tempo no chat!” não é motivação suficiente. A motivação
sempre vai ser uma graninha a mais, né? Então você coloca uma mixaria ali que parece
que tá ao alcance da tua mão. E aí, você vai querer trabalhar. Você vai fazer o seu
melhor. (Laís, 23)

É por causa dessas racionalidades, muitas vezes contraditórias, que algumas funcionárias
enxergam os índices e as metas a serem alcançadas como instrumentos de dominação da
empresa, responsáveis por colocá-las em um estado de permanente tensão e ansiedade. A
necessidade de avaliações constantes expressa nas diferentes métricas que regulam o trabalho
diário das funcionárias é explicado por Dardot e Laval (2016, p. 222) como sendo efeito

92
direto da descentralidade da produção causada pelo processo de terceirização. Essas medidas
acabam se tornando "a chave da nova organização":

Esse novo modo de organização da empresa teve consequências importantes para o


trabalho e o emprego. Traduziu-se em intensificação do trabalho, diminuição dos prazos
e individualização dos salários. Esse último método, vinculando remuneração a
desempenho e competência, ampliou o poder da hierarquia e reduziu todas as formas
coletivas de solidariedade. Mas é coextensivo a uma nova prática de governo dos
assalariados baseada no “autocontrole”, que é pretensamente muito mais eficaz do que a
coerção externa. Essa “filosofia da gestão” foi formulada por Peter Drucker. Ele explica
que, na nova economia do saber, não se trata mais de gerir estruturas, mas, sim, de
“guiar” pessoas que têm saberes para que produzam o máximo possível. Gestão por
metas, avaliação de desempenhos e autocontrole dos resultados são os métodos
empregados por essa gestão dos indivíduos.

Apesar de ser vendido como resultado do reconhecimento pelo empenho, “competência” e


“autocontrole” apontado pelos autores, o jump adquire um outro significado para as
trabalhadoras. Ascender de cargo não é entendido simplesmente como uma forma de melhoria
do salário, de reconhecimento das capacidades individuais do sujeito, mas como um meio de
escapar da intensidade de trabalho exigida nos níveis inferiores. É uma solução para as
agruras do atendimento aos clientes, já que os superiores não lidam com a função.
A ascensão para uma posição hierarquicamente superior é estrategicamente estimulada
pela empresa e o desejo das trabalhadoras de participar da seleção para mudança de cargo é
instrumentalizado para que as funcionárias se dediquem com mais afinco à superação dos
índices. Ter todos os índices em dia, é pré-requisito para os processos seletivos.
Essa busca incessante por uma ascensão que amenize a crueza do trabalho é indicada pelas
funcionárias como uma causa adicional de produção de tensões, ansiedades e angústias das
trabalhadoras. Ademais, considerando que todas as seleções para o jump consideram os
últimos três meses de produção por funcionária, a pressão não é iniciada e encerrada mês a
mês, ela se estende por um período que não as permite relaxar de forma mais frequente. Sem
surpresas, esta é uma expectativa que gera disputas pela oportunidade de participação no
processo de jump, algo que prejudica a saúde mental e física das funcionárias, mas muito
benéfica para a empresa. Uma política que corresponde a estratégia neoliberal evidenciada por
Jorge Nóvoa ao prefaciar “A nova razão do mundo” dos já citados Dardot e Laval (2016, p. 3):
“Sua norma fundamental é a competição mortífera modelando tudo da vida social, introjetada
na subjetividade dos indivíduos pelo capital e seu mercado.”.

3.3 – AS REPERCUSSÕES DA PANDEMIA

93
As funcionárias Laís, Larissa e Karina continuaram trabalhando presencialmente nas
instalações da empresa durante todo o período inicial da pandemia. Laís e Karina foram
transferidas no final do ano de 2020 para o home office, Larissa continua em regime
presencial em 2021. As três funcionárias acompanharam todos os processos desencadeados
pela chegada do Coronavírus nesse call center. A singularidade de suas inquietações e seus
relatos nos ajudarão a compreender o estado de coisas atual da empresa e das funcionárias que,
assim como elas, não puderam escolher proteger a própria saúde ficando em casa.
Inicialmente, a chegada da pandemia não trouxe nenhuma mudança para as instalações em
que se encontravam as 9 interlocutoras que ainda trabalhavam na empresa em março de 2020,
ainda que as centrais de atendimento sejam perigosamente vulneráveis à propagação de um
vírus. As funcionárias trabalham agrupadas no mesmo espaço, separadas umas das outras por
baias de altura baixa e compartilham headsets, mesas e computadores com outras
funcionárias de diferentes turnos. A falta de esterilização desses componentes, assim como a
não alteração da disposição espacial das instalações e a não determinação imediata de
distanciamento foi percebida como descaso.
No mês de março de 2020, com as primeiras comprovações de contaminação, os
afastamentos iniciais e casos de funcionárias que continuaram trabalhando mesmo
apresentando sintomas, a empresa foi denunciada ao Ministério Público do Trabalho. Na
ocasião, cerca de 3.000 trabalhadoras cumpriam suas jornadas nos galpões.
Na primeira conversa que participei sobre o assunto foi possível perceber o clima de medo
que pairava nas instalações:

94
95
Fonte: Prints de grupo de aplicativo de mensagens que participo 26/06/20

A constatação de descumprimento das normas de segurança estabelecidas pelo Decreto


Estadual nº 29.583, de 1º de abril de 202017 feita por policiais da Polícia Militar e fiscais do
Ministério Público do Trabalho e da Vigilância Sanitária, além da consequente ameaça de
17
O Decreto Estadual nº 29.583, de 1º de abril de 2020 consolidou as medidas de saúde para o enfrentamento do
novo coronavírus A norma foi publicada logo após aprovação do estado de calamidade pública declarada pelo
Decreto Estadual Nº 29.534, de 19 de março de 2020.

96
multas diárias de R$ 50.000,00, provocou as primeiras mudanças na empresa. As denúncias
desencadearam o processo de seleção de funcionárias que trabalhariam em casa, movimento
que se inicia nas primeiras semanas do mês de maio. O funcionário Igor havia acabado de ser
contratado e acompanhou o processo:

Teve aquele período de muita aflição. Todo mundo tinha muito medo, né? E é para ter
medo mesmo, mas hoje as coisas se banalizaram e as pessoas perderam esse medo. Mas,
no início gerou aquele impacto, gerou aquele medo. E aí, a gente lá na empresa com
muitas incertezas... se a gente estava sendo exposto ou não porque nenhuma medida de
segurança foi tomada, a princípio. Então, os balcões eram lotados. A operação era
assim... absurdamente lotada. E as coisas foram acontecendo, acontecendo... os
estabelecimentos fechando e na operação nada mudava. Aí, depois passaram a pedir que
a gente usasse máscara, mas ainda passamos um tempo bem assim... soltos. E aí, bateu
uma fiscalização lá (na empresa). Eu não sei o que de fato aconteceu neste dia porque
eu estava de folga, no dia que essa fiscalização foi. Mas eles reduziram a operação,
então eles começaram a descontar do banco de horas dos agentes, né? Metade da
operação ia trabalhar e a outra metade ficava em casa descontando das horas extras que
a gente tinha e se não tivesse ia ficar negativado, devendo. Acho que isso durou umas
duas semanas esse esquema, até que eles se articulassem para realmente bolar um
esquema, uma estratégia para que a gente fosse para casa... boa parte da operação, né?

Entre as três funcionárias que continuaram trabalhando presencialmente, temos duas


perspectivas opostas: perguntadas se houve alguma providência tomada pela empresa, Laís
defende que muito pouco foi feito:

Foi muito negligente no começo. Precisou de uma mobilização grande, sabe? Para essas
mudanças acontecerem... Teve pessoas que realmente se mobilizaram. Assim, coisa que
eu nunca tinha visto antes, né? De pessoas falando: "Não, vamos parar e vamos todo
mundo para frente ali do... da frente da empresa porque não dá para gente ficar vindo
aqui trabalhar toda vida. Com medo do Corona e sem notícia de como a gente vai para
casa, sabe?" Nossos parentes preocupados e a gente sem saber. E aí, assim.. essas
mobilizações fizeram muita diferença, sabe? As pessoas que se colocavam também
nessas reuniões, que tinha nas equipes e falavam: "Olha, o mínimo que precisa é assim...
uma série de coisas. Desde... a porta que a gente entra para a operação... ela podia ficar
sempre aberta para que não fique todo mundo tendo que encostar na mesma maçaneta.
Coisas práticas assim. E aí, precisou de muita movimentação mesmo para essas
mudanças acontecerem. Eu acho que se movimentaram tardiamente. Se fosse logo no
começo quando ouve essa ameaça e tal. Eu acho que teria sido melhor para todo mundo.
Mas, é assim que eu vejo.

Depois das denúncias para as autoridades, Larissa explica que as mudanças não foram
significativas porque os espaços coletivos foram esvaziados, mas as funcionárias
continuavam trabalhando com apenas um braço de distância e ainda compartilhando os
instrumentos de trabalho. Perguntada sobre o que mudou na empresa no período, ela
responde:

Só o fato de colocar a galera para home office... porque para quem tá lá, só alterou que
precisa tá de máscara sempre nos espaços da empresa, né? Separaram as mesas e onde

97
vende a alimentação, eles não estão mais vendendo almoço porque... tinha a panelaria e
eles retiraram a panelaria, até o momento. Aí, tiraram os espaços de lazer que era a sala
de descanso, a sala de jogos... eles retiraram. Colocaram álcool gel em vários espaços da
empresa e agora as portas sempre são abertas para você não ficar pegando na maçaneta.

A interlocutora Karina que trabalhava à época no turno noturno, por sua vez, tem um ponto
de vista diferente. Na percepção da funcionária, a empresa fez tudo o que estava ao seu
alcance e as funcionárias é que não colaboraram com a construção de um ambiente seguro.
Ao responder que avaliação fazia sobre a resposta da empresa à pandemia, ela esclarece:

Cara, eu achei boa. Eu achei muito boa porque, por exemplo, mesmo que tenha pessoas
que não respeitam autoridade... A empresa, por exemplo, logo de entrada... assim que
você entrava na recepção, você tinha que medir a sua temperatura. Se não tivesse ok,
você não podia nem entrar na empresa. Tinha a questão das máscaras que se você... não
tinha desculpa de você não ter máscara, eles davam. E se você tivesse sem, você não
entrava. Nem no prédio principal você conseguiria entrar. Dentro tem monitoria direto e
até os próprios supervisores são encarregados disso... que a gente tinha que ficar de
máscara o tempo todo durante o atendimento. Então, se você tava com a máscara
abaixada, cobrindo só a boca, já chegava um supervisor do seu lado: "Bota a máscara!".
Então, isso era muito mais de boa. Dispenser de álcool gel tinha em todo prédio. Tipo...
você dava três passos tinha o dispenser de álcool gel lá. Todas as mesas foram vetadas
para no máximo duas pessoas. As partes de sofá que eram divididos que você podia
sentar mais em grupo, também foram vetadas. Não podia ir mais lá. A sala de descanso
também foi vetada. Ninguém podia entrar mais na sala de descanso. Então tipo... a
empresa de modo geral, eu acho que ela fez... ela cumpriu bem os pré-requisitos de
manter essa... de tentar manter tudo dentro do acordo. Mas, claro... tem as pessoas que
realmente... ia de caráter, né? Tem pessoas que realmente não ligavam e a empresa,
infelizmente... a * como empresa não tinha como obrigar a pessoa a ver que o
Coronavírus é perigoso para ela, para forçá-la a colocar máscara, por exemplo.

São duas percepções que divergem também em relação ao cuidado e higienização dos
instrumentos funcionais. Larissa e Laís relataram que um dos maiores receios dizia respeito
ao uso dos headsets, computadores e mesas de trabalho que são compartilhados pelas
trabalhadoras em três turnos de atendimento. O decreto estadual Nº 29.541 de 20/03/2020
proibiu o compartilhamento de materiais de trabalho no setor18, mas, segundo elas, o material
continuava sendo compartilhado, sem sequer passar por nenhuma esterilização. Já Karina
garante que o procedimento estava sendo feito na troca do turno da noite. Na troca dos dois
turnos do dia, as duas primeiras funcionárias alegaram nunca ter visto essa higienização.
De qualquer forma, apesar desse call center não ter adotado nenhum protocolo específico
para a pandemia, com o passar dos meses, firmas terceirizadas foram contratadas para
higienizar os instrumentos de trabalho. Houve disponibilização de álcool gel nas operações,

18
“Art. 12. Fica determinado as empresas de teleatendimento e call centers a observação da distância mínima de
dois metros entre as mesas de trabalho, bem como a impossibilidade de utilização compartilhada de objetos e
equipamentos de trabalho de uso pessoal, como headsets e microfones.”.

98
funcionárias foram obrigadas a trabalhar usando máscaras, as portas dos galpões passaram a
ficar abertas e as funcionárias passaram a atender em PAs alternadas, a mais ou menos um
metro de distância umas das outras. Também foram disponibilizadas duas ou três linhas de
ônibus para as funcionárias com destino a diferentes pontos da cidade.
Contudo, diante de um vírus que circula pelo ar, a contaminação de trabalhadoras foi
numerosa. Larissa confirma que algumas funcionárias foram infectadas e aquelas que não
conseguiram pagar por um exame (não cobertos pelo plano de saúde da empresa)
continuaram a exercer suas atividades normalmente. Algumas, segundo ela, chegaram a
trabalhar com febre:

Pesquisadora - Houve alguém infectado lá?

Larissa - Sim, confirmado... funcionários da sala antiga porque você tem que pagar
para fazer o exame porque a empresa não paga. Então tem várias pessoas que colocaram
atestado com suspeita e tiveram alguns que o exame deu positivo. Mas aí, parecia que
era o epicentro do Covid porque quando uma pessoa pegou, aí ficou pegando, assim… e
todo mundo um do lado do outro.

Pesquisadora - O que aconteceu com essas pessoas?

Larissa - Nada, assim… quem quis colocou atestado e ficou os 15 dias afastado, como
o médico quis… mas quem não quis colocar atestado, ficou indo trabalhar. Teve
pessoas que colocaram atestado, mas o atestado acabou e elas ainda estavam sentindo
os… ainda estavam doentes. E elas estavam doentes ainda, só que se você ficar mais de
15 dias de atestado você tem que entrar em contato com o INSS. E aí, quando as
pessoas sabiam desse tipo de informação, elas não colocavam mais um novo atestado.
Elas voltavam a trabalhar mesmo com os sintomas. Aí, poderiam passar para outras
pessoas que estavam ali no mesmo ambiente que você. E aí, na entrada tem a pessoa que
vai medir a sua temperatura... Aí, teve alguns dias que (um colega) teve que colocar
atestado e o exame dele deu inconclusivo, mas aí, seria Covid ou pneumonia. Ele se
curou muito rápido para ser pneumonia. Então, seria Covid mesmo. Ele foi trabalhar
com febre um dia. E o aparelhinho que mede a temperatura, não deu nada. Eu também
já fui trabalhar com febre e o aparelho que mediu a minha temperatura também não deu
nada. Aí, a gente perguntou para a moça lá… se já tinha apitado alguma vez falando que
a pessoa tava com febre. Aí, ela falou que em todo o período… isso a gente perguntou
não faz muito tempo, não… ela falou que em todo o período da pandemia só apitou uma
vez e foi 42 graus porque a pessoa tava vindo do sol. Mas aí, ela esperou um pouquinho
e mediu de novo e deu certo.

As duas funcionárias moram com pessoas do grupo de risco da Covid-19 e se locomovem


até a empresa por meio de transporte coletivo. Nos dois casos, o momento de ida e volta ao
trabalho se constitui como o momento do dia de maior tensão. É o que diz Karina: “Era o que
eu mais tinha medo, na verdade. Na empresa eu ficava mais ok. [...] Era muito mais
assustador para mim ir para lá no ônibus do que trabalhar na empresa em relação ao Covid
mesmo.”. Essa sensação de insegurança foi agravada pelo fato de que na região metropolitana
de Natal, as frotas de ônibus foram reduzidas durante o período da pandemia, chegando a

99
índices abaixo de 70% do período anterior19. Impacto que não foi tão sentido no início do
processo, devido a diminuição de pessoas circulando, mas contribuiu para a superlotação de
paradas e ônibus em horários de pico à medida que houve um relaxamento social e as pessoas
voltaram às ruas. No caso de Larissa e Karina, a obrigação de continuar trabalhando
presencialmente se deveu ao fato de prestarem serviços a instituições financeiras. Estas não
liberaram suas funcionárias para trabalhar em casa alegando que haveria riscos à segurança
dos dados de seus clientes.
Há motivos diversos para algumas funcionárias terem permanecido trabalhando
presencialmente. Iniciada a seleção daquelas que seriam transferidas para o home office,
algumas não possuíam os requisitos necessários para que a empresa as liberassem, pois não
têm em casa a estrutura necessária para a realização do trabalho:

A galera que tá de home-office é muito... é porque ela consegue. Tipo... ela tem um
computador dela. Ela tem uma internet que dê para ela trabalhar. Ela tem um espaço que
dê para ela trabalhar. E nem todo mundo tem isso. Quem não tem, precisa realmente
ficar indo para a empresa ainda. (Larissa, 25)

A pandemia não alterou a rotina de trabalho dessas funcionárias. Contudo, ela intensificou
o ritmo de trabalho porque houve um sensível aumento do consumo pelos serviços das
empresas para as quais prestam serviço, sem que o contingente de empregadas fosse alterado.
Para Larissa, houve um acirramento das tensões porque a pandemia intensificou o volume dos
atendimentos. devido a maior permanência dos consumidores em casa. Ao mesmo tempo,
acabou por restringir os escapes que ela, anteriormente, encontrava para amenizar as pressões
do trabalho. Ela explica de que forma a pandemia afetou sua vida:

Afetou no sentido de estresse do trabalho porque quando eu ficava estressada eu ia pro


bar, já saía direto: "Vou pro bar!" Vou fazer qualquer coisa!”. E final de semana ia pra a
praia, então, desesstressava. Eu tinha condições de ir para (outra cidade) também, né?
Antes eu conseguia pegar o ônibus na sexta e voltar na segunda de madrugada. E desde o
começo da pandemia que eu não vou mais para lá. Então eu também não vejo mais meus
amigos, eu não vou pra bar. Então é só o estresse do trabalho e voltar para casa,
basicamente.

Desde o início da pandemia no trabalho presencial, Larissa tem testemunhado situações de


risco em que as funcionárias foram colocadas, sendo obrigadas a trabalhar completamente
expostas ao coronavirus. Foi submetida a reuniões com superiores logo no começo desse

19
Dados fornecidos pelo Portal Dados Abertos da Prefeitura de Natal. Disponível em:
<https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiYjVkMjg1ZTEtZDRlMC00Y2ViLWEwZTktZWE2ZDFmMGM1N2I
xIiwidCI6ImQ3NjM5ZTc0LTEyMGItNGQzOS1iZjQ4LTdiYzQ3MGJlYmE0MCJ9>. Acessado em: 25 de fev,
2021.

100
processo e presenciou o tom agressivo e de ameaça na exortação das funcionárias ao trabalho.
Nesse momento inicial, constatou que as denúncias ao sindicato, à Polícia Militar e à
Vigilância Sanitária acabaram não se tornando efetivas na proteção dos direitos sociais das
trabalhadoras. Também considera que nem mesmo as denúncias publicadas em sites de
notícias do estado surtiram efeito: "Não deram em nada", segundo ela.
Na operação, ela tem presenciado os discursos produzidos que deixam claro que a
funcionária em regime presencial deve estar agradecida por continuar empregada, quase
como se a vaga fosse uma espécie de "favor" que a empresa oferece no contexto de
desemprego em que vivemos. Uma situação tipicamente instrumentalizada pelo discurso
neoliberal, segundo Selma Venco (2006b, p. 10):

Esses fatores expressam-se em relações de trabalho num contexto socioeconômico


neoliberal, resultando em desemprego e precarização do trabalho. Lembrando-se de que
o temor ao desemprego − que se torna parte das relações de trabalho, na medida em que
é usado para ressaltar a importância de se ter um trabalho − leva os trabalhadores a
adequarem-se às normas disciplinares e de produtividade.

Na entrevista que foi realizada no dia 16 de setembro de 2020, Larissa esclarece que o
temor do desemprego é algo acessado por esses discursos durante todo o período da
pandemia:

O assédio moral é algo recorrente, tanto por parte das pessoas a quem estamos
prestando atendimento, quanto por parte dos gestores da empresa. Sentir que o emprego
está em risco é um sentimento diário. Esse final de semana eu só chorei de sexta até
domingo. Home office é um direito à vida.

Nos dois casos, à medida que a pandemia foi se instalando definitivamente na vida das
entrevistadas, sem alternativa, ouve um gradual entorpecimento emocional que elas adotaram
para lidar com a situação:

No começo... todo mundo... eu também, né? Enfim... tinha mais cuidado, né? De ficar
mais com a máscara. De ter mais cuidado... potinho de álcool gel para passar na mão. E
com o tempo isso foi passando. Eu acho que eu nem tenho mais um potinho de álcool gel
na bolsa. Eu nem lembro mais se eu tenho. Chego na empresa, vou lavar a mão. Às vezes,
eu só coloco álcool. Às vezes, se eu tiver atrasada já, vou direto para sala. E nos ônibus,
também. No começo tava muito vazio né?... nos ônibus. O trânsito também quase não
tinha. Você via os carros passando bem pouquinho. Mas agora a pandemia acabou. É os
ônibus lotado, agora. Tipo... lotado. Às vezes, depende do motorista... que, às vezes, ele
diz: "Olha, só vai sentado!". E, às vezes, vai a galera em pé mesmo. Tem carro na rua
que parece que acabou a pandemia mesmo. E, em geral, tem gente se cuidando ainda.
Mas no geral, a maioria não se cuida muito, não. E tipo, nos lugares onde a gente fica
sem máscara que é nos lugares de alimentação, é os lugares onde tem mais gente. Então,
no lugar onde tá todo mundo sem máscara é o lugar que tem mais gente perto. E senta
tipo... quatro pessoas assim... numa mesa.

101
No caso de Karina, houve um desespero inicial: “O primeiro mês de pandemia, a gente
dava aquela surtada básica... Aquele: ‘Gente pelo amor de Deus! Eu moro com (pessoa do
grupo de risco da Covid-19). Então, vamos com calma aí!’", mas o apaziguamento que
permitiu uma rotina de trabalho tão normal quanto antes, se deu devido a percepção que a
empresa cumpriu todas as medidas necessárias para que o ambiente de trabalho estivesse
seguro e não havia mais nada que pudesse ser feito.
Ainda que haja uma opinião divergente é possível concluir que não houve estabelecimento
imediato de protocolos de biossegurança para o trato das trabalhadoras e medidas como a
distribuição de álcool em gel, afastamento de um metro entre as funcionárias e medição da
temperatura na entrada dos galpões não foram eficientes para barrar um vírus que se propaga
pelo ar. Constatação corroborada pela presidente do Sindicato dos Trabalhadores em
Telecomunicações do RN (Sinttel/RN), Iara Martins, em reportagem a um site de notícias do
estado20 em que denuncia os problemas que as funcionárias enfrentavam na empresa:

Desde o início da pandemia que tentamos, até hoje recebemos diariamente reclamações
de funcionários relatando que não tem álcool em gel suficiente, que tem mulheres
grávidas e pessoas com doenças crônicas ainda indo trabalhar. E no caso dos que foram
afastados, precisamos saber em quais condições, que documentos esse trabalhador teve
que assinar. Estamos sempre levando essas denúncias ao MPT e sabemos que as
medidas tomadas pela empresa até então são insuficientes.

A falta de estrutura em suas residências ou o fato de trabalharem com serviços em que a


segurança dos dados dos consumidores poderia estar em risco caso o home office fosse
adotado serviu como justificativa para a não adoção do trabalho remoto em certos produtos.
A permanência das funcionárias em regime presencial demonstra que os interesses da
empresa foram priorizados em detrimento da saúde das trabalhadoras. E para que fosse
possível continuar exercendo suas funções sem sucumbir ao medo do contágio, elas
desenvolveram uma espécie de mecanismo de defesa convencendo-se que era preciso abstrair-
se do problema por se tratar de algo fora de seu controle. Na disputa de prioridades, a
necessidade venceu e a pandemia foi secundarizada.
No decorrer do capítulo, foi possível constatar que as expectativas das entrevistadas sobre
o que conquistariam com o seu trabalho ao adentrar o mundo do call center teve que sofrer
uma adequação à medida em que as trabalhadoras se confrontavam com a realidade laboral do
setor. A oportunidade de trabalhar em uma empresa de grande porte e, para a maioria das
trabalhadoras, com acesso a benefícios trabalhistas oferecidos pela primeira vez, se mostrou

20
A reportagem não será referenciada no trabalho pois cita a razão social da empresa.

102
frustrante. As oportunidades de ascensão funcional que seriam garantidas por critérios
meritocráticos baseados, exclusivamente, nas performances individuais das trabalhadoras
dependem, na verdade, do sucesso de métricas pouco transparentes e não compreendidas
completamente pelas funcionárias. Ascender profissionalmente está, portanto, fora do seu
controle.
As garantias jurídicas que viriam com a formalização de um contrato trabalhista não foram
suficientes para pôr limites à exploração de sua força de trabalho. Ademais, o valor do salário
e as vantagens prometidas não compensaram a carga de estresse enfrentada na função.
A primeira impressão positiva sobre fazer parte de uma multinacional com discurso
voltado à diversidade e inclusão de minorias, além de estar presente em diversos países, foi
rapidamente desfeita com a constatação de que o modo de funcionamento da empresa é
precário. A falta de treinamentos que preparem devidamente as trabalhadoras para as
situações reais de atendimento com as quais terão que lidar diariamente devem ser
compensadas com habilidades pessoais multifacetadas. A permanência na função depende da
maleabilidade e capacidade de adaptação de uma profissional qualificada (no caso dessa
pesquisa) que oferece toda a sua capacidade criativa em troca da remuneração mais
legalmente baixa possível.
As frustrações decorrentes da impossibilidade de construção de uma vida
profissionalmente satisfatória, as dificuldades do agir coletivo, os sobressaltos de um setor
que não só opera na inconstância, mas por meio de um sistema rigidamente taylorista de
controle de produção e vigilância panóptica são as principais causas do sofrimento psíquico
experienciado e/ou testemunhado pelas trabalhadoras dessa pesquisa.
O surgimento da pandemia de Covid-19 agravou a pressão sobre as trabalhadoras pois, ao
mesmo tempo em que elas assistiam ao avanço do número de contaminações de colegas pelo
vírus, também lidaram com o aumento do volume de trabalho e a exposição em transportes
coletivos em um momento de preocupação com a proteção da própria vida e a dos seus entes
queridos.
As experiências no call center levaram esse grupo de trabalhadoras a enxergar a função
como algo transitório em que não poderiam permanecer mais que poucos anos. Para elas, a
saída do setor é vista como a única possível para a preservação de suas subjetividades,
garantidora de melhores perspectivas de futuro e um desejado equilíbrio financeiro e mental.
No próximo capítulo, será explorado o papel das imagéticas mencionadas por Daniela
Oliveira e Ursula Huws na construção de consenso sobre o home office. Em seguida,
mergulharemos no cenário que esse regime de trabalho estabeleceu para as funcionárias

103
autorizadas a trabalhar em casa, permitindo uma avaliação dessa experiência em relação às
relatadas no presente capítulo. O trabalho será encerrado com uma discussão sobre o quadro
geral em que se encontra o trabalho sob o domínio da racionalidade neoliberal.

104
4 – A CASA VIRA CENÁRIO: APONTAMENTOS SOBRE A
EXPERIÊNCIA DO HOME OFFICE E A TENTATIVA DE
COLONIZAÇÃO DE SUBJETIVIDADES EM SISTEMAS DE
PRODUÇÃO E VIGILÂNCIA

4.1 – UM OUTRO ETHOS PARA O HOME OFFICE

Originalmente, a expressão da língua inglesa home office descreve o espaço doméstico


conhecido em língua portuguesa falada no Brasil como escritório: o lugar da biblioteca, do
computador, da escrivaninha. Ela refere-se, portanto, a um espaço da casa reservado ao
trabalho, não uma ação. A corruptela que associou a expressão à modalidade laboral
conhecida no Brasil como trabalho remoto ou teletrabalho, acabou por conferir um novo
sentido ao termo, pois passou a descrever não um lugar apropriado para o trabalho em casa,
mas uma atividade que se faz em casa. Essa transmutação de um lugar apropriado para uma
atividade promove um apagamento do conceito de que deve existir um lugar preparado,
adequado para que a atividade laboral seja exercida no ambiente doméstico, tanto em termos
de espaço como de equipamentos de trabalho.
Quando nos debruçamos sobre o significado original da expressão constatamos que a
própria existência de um “escritório doméstico” em que as pessoas possam realizar suas
atividades revela o ethos ensejado por um habitus21 de classe, sentido completamente perdido
quando ela é transformada em atividade, ação, movimento. Isso acontece porque ela passa a
significar aquilo que se faz em qualquer casa e não a existência de um lugar apropriado com
recursos necessários disponíveis na casa para que o trabalho remoto seja possível.
O desenvolvimento das tecnologias da informação passa por disputas internacionais como
a corrida espacial da segunda metade do século XX, a produção para fins bélicos nas bases
militares até a chegada da computação na vida civil a partir de centros de ciência e tecnologia
e a revolução dos computadores pessoais introduzida pelas empresas Microsoft e Apple no
final dos anos 1970. Partiu-se da escala de trinta toneladas do ENIAC22 para que a produção

21
Aqui entendido como define Bourdieu (2007, p. 191): “Um sistema das disposições socialmente constituídas
que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das
práticas e das ideologias características de um grupo de agentes. Tais práticas e ideologias poderão atualizar-se
em ocasiões mais ou menos favoráveis que lhes propiciam uma posição e uma trajetória determinadas no interior
de um campo intelectual que, por sua vez, ocupa uma posição determinada na estrutura da classe dominante.”.
22
O ENIAC (Electronic Numerical Integrator and Computer) foi o primeiro computador digital eletrônico de
grande escala. Ele entrou em funcionamento em fevereiro de 1946 desenvolvido pelos cientistas norte-
americanos John Eckert e John Mauchly, da Electronic Control Company. A função do ENIAC era computar

105
de microprocessadores, interfaces gráficas, sistemas operacionais e softwares, entre outros
recursos, gradativamente diminuísse a escala dos equipamentos até chegar à casa e ao bolso
dos indivíduos com desktops, laptops e smartphones. Esse processo possibilita a chegada de
um home office ou "escritório em casa" nas residências, mas também impacta negativamente
algumas áreas profissionais.
Ursula Huws (2017, p. 14) percebeu o declínio das atividades de escritório e a gradual
transferência das tarefas desenvolvidas nesse ambiente para computadores à medida que as
tecnologias de informação eram desenvolvidas. Profissionais de escritório que ela chama de
profissionais de “colarinho branco” foram atrelados a essas ferramentas computacionais e
acabaram por constituir uma nova classe social:

Argumenta-se aqui que a introdução das tecnologias da informação e da comunicação


tem como objetivo não a abolição do trabalho, mas seu barateamento e disciplinamento.
Ela altera também a divisão técnica entre trabalho manual e intelectual criando novos
tipos rotinizados de trabalho de colarinho branco, enquanto torna algumas tarefas
manuais obsoletas. Os trabalhadores que realizam os novos tipos de trabalhos rotinizados
de processamento de informações, distribuídos em todo o mundo em cadeias de valor
dispersas, podem ser considerados uma nova subdivisão da classe trabalhadora - um
“cibertariado". Muitas das tarefas realizadas por esses trabalhadores substituem aquelas
que eram anteriormente realizadas cara a cara, por trabalhadores de serviços que
interagiam diretamente com o público. A digitalização de alguns aspectos do trabalho e o
uso de tecnologias de telecomunicação possibilitam não apenas a realocação do trabalho
independentemente da distância, mas também a transferência de algumas das tarefas do
trabalhador remunerado para o consumidor não remunerado, criando novos tipos de
"trabalho de consumo”.

Esse diagnóstico de Ursula Huws é importante para o presente trabalho porque ela
identifica dois movimentos no processo de declínio do ambiente do escritório: com as novas
tecnologias, tanto cria-se uma nova classe social delas dependente, quanto a descentralização
de seu trabalho. Os call centers e o trabalho remoto são resultado direto desse
desenvolvimento.

Há toda uma cadeia produtiva criada a partir da expropriação do conhecimento dos


profissionais qualificados de "colarinho branco" e posterior transferência de suas práticas para
softwares que rebaixam o seu trabalho permitindo que profissionais desqualificados
substituam essa força laboral, por exemplo, nos call centers. A descentralização do trabalho
provocada pelos desenvolvimentos no campo da informática criou possibilidades de novos
espaços de labor e um eventual retorno ao cenário de execução dessas tarefas nas casas das

trajetórias táticas militares que exigiam conhecimento matemático com mais rapidez. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/ENIAC>. Acessado em 29 de maio, 2021.

106
trabalhadoras. As possíveis vantagens de trazer o trabalho para casa ensejou projeções ricas
em otimismo, o que gerou, segundo Huws (2017, p. 108), a construção de uma imagética em
torno do teletrabalho:
As previsões em questão dizem respeito ao uso das tecnologias da informação para
permitir que pessoas trabalhem longe de seus empregadores, geralmente em suas casas.
Esse desenvolvimento ocupa um lugar tão central nas previsões sobre o futuro do
trabalho que é difícil não suspeitar que ele adquiriu uma importância simbólica um tanto
desproporcional a sua verdadeira prevalência. A imagem que o "teletrabalho” traz à tona
é poderosa. Aos arranha-céus de aço e aos vidros espelhados do centro da cidade,
contrapõe a cabana rural; à vida movimentada e ruidosa de um escritório lotado,
contrapõe a tranquilidade doméstica; ao cotidiano extenuante do transporte público na
hora do rush, contrapõe uma forma de comunicação desincorporada, abstrata, quase
etérea, que deixa os sentidos intactos. Implicitamente, promete o melhor de ambos os
mundos: a participação total no tráfego de ideias e informações e a reclusão no santuário
protetor do lar. [...] Parece que nos é oferecida a resolução para antigos conflitos entre as
necessidades de aventura e de segurança, de comunicação e de privacidade, da excitação
da cidade e da serenidade do campo. É a partir de coisas como essas que os símbolos são
feitos.

O ponto essencial para o presente trabalho na análise de Ursula Huws é que ela identifica a
construção de um conjunto de imagens e símbolos sobre o teletrabalho que precedem a
própria adoção do regime. Ela explica que, em meados dos anos 1970, alguns pesquisadores
produziram estimativas detalhadas acerca dos milhões de barris de petróleo que poderiam ser
economizados todos os anos nos E.U.A considerando cada porcentagem da força de trabalho
que passasse a cumprir suas tarefas de casa. Ela destaca duas dessas pesquisas: a tese de
doutoramento de Richard C. Harkness para a Universidade de Stanford em 1977 que
projetava os impactos do trabalho em casa para o trânsito das cidades e o estudo pioneiro que
serviu de primeira fonte de inspiração para o ex-militar consultor da National Aeronautics and
Space Administration (NASA) e hoje considerado “pai do teletrabalho” e já mencionado, Jack
Nilles, o primeiro a sistematizar teoricamente e propor o teletrabalho como modelo laboral.
Como explica Huws (2017, p. 112), a expressão de língua inglesa cunhada por ele,
telecommuter, retoma o termo commuter referente ao trabalhador que se desloca fisicamente
ao estabelecimento onde exerce suas funções. O acréscimo do elemento “tele” serve para
designar o trabalhador que, de casa, se comunica com seu empregador por meio das
telecomunicações, ao invés de se locomover fisicamente para o seu local de trabalho. A partir
dessa ideia, Huws desenvolve o que ela entende como a construção imagética desse tipo de
trabalhador:

Assume-se que outros fatores permanecem constantes, tais como a relação contratual
com o empregador, a natureza das tarefas realizadas e a localização da residência dos

107
trabalhadores. Assim, a imagem do tipo de pessoa que é um telecommuter reflete a do
típico commuter. As projeções populares do período quase invariavelmente assumiam
que essa pessoa era homem, trabalhando na gestão ou em alguma área qualificada,
adequando-se ao ethos das corporações e vivendo nos subúrbios. (HUWS, 2017, p. 112)

Há outros tipos de representações do telecommuter como aquelas oriundas da geração


libertária dos anos 1960 que, por sua vez, retomava as “críticas radicais” da geração Beat dos
anos 1950. Semelhante aos hippies, essa geração se opunha à sociedade industrial das grandes
corporações, à burocracia e às organizações de grande escala, “incluindo aí categorias que a
maioria consideraria como opostas umas às outras, como sindicatos, empresas multinacionais
e instituições governamentais.” (HUWS, 2017, p. 113). As ferramentas oferecidas pela
tecnologia da informação eram encaradas por essas duas gerações como um meio de
humanizar as corporações, favorecendo o convívio e impactando positivamente o ambiente:

Elas compartilhavam uma visão geralmente otimista de pequenos locais de trabalho


descentralizados comunicando-se por meio de tecnologias avançadas. Talvez refletindo
diretamente os autores dos livros mais influentes nesse gênero de futurologia popular, o
personagem principal desse cenário de trabalho descentralizado é também
implicitamente masculino, apesar de compartilhar mais as caracteristicas do estereótipo
do trabalhador “criativo” do que aquelas do commuter. Comparado com o telecommuter,
esse trabalhador remoto é mais individualista e menos convencional; e pode-se supor que
provavelmente ele seja autônomo. Especulando ainda mais, podemos imaginá-lo usando
jeans, e não um terno, e vivendo no campo ao invés de no subúrbio. Entretanto, as duas
visões compartilham muitos traços em comum: seus protagonistas são homens de classe
média; ambas estão baseadas na suposição de que o trabalhador tem a liberdade de
escolher onde, e se, quer trabalhar (o que, por sua vez, supõe um cenário de pleno
emprego); ambas supõem que a tecnologia seja benigna e capaz de ser controlada pelos
seus usuários individuais. (HUWS, 2017, p. 113).

Já no final da década, a imagética base do consenso popular que interpretava a tecnologia


como essencialmente benigna é impactada pelo desemprego generalizado causado pela grande
reestruturação industrial do momento. Os jornais alardeavam essa reestruturação como
centrada nos "chips de silício":

De repente, pelo menos na Grã-Bretanha, os jornais estavam cheios de manchetes que


diziam, por exemplo, “chips em tudo", e as telas dos televisores foram inundadas com
séries pretendendo explicar a "nova revolução industrial" em tons que eram uma curiosa
mistura de profecias apocalípticas e uma excitação típica de meninos. As primeiras
destacavam quase exclusivamente o desemprego ("Tecnologia pode deixar 5 milhões
sem trabalho", previa uma manchete típica do Guardian em setembro de 1978), enquanto
as últimas, entusiasmando-se com os preços incrivelmente baixos e o tamanho reduzido
dos microprocessadores, comparados com as válvulas e com os transístores, tendiam a se
concentrar na maravilhosa diversidade de atividades que podiam ser realizadas a partir
da própria sala”. Um procedimento comum era montar em um estúdio um "lar do futuro”,
no qual o paterfamilias (algumas vezes acompanhado pelos atenciosos esposa e filhos)
sentava, com um controle na mão, na frente de uma tela em uma confortável sala de estar,
espantado com a descoberta de que ele poderia usar o computador doméstico para checar
os preços de suas ações, reservar viagens, pagar as contas e acompanhar o placar do
críquete. Também seria possível, era dito ao usuário, acessar o banco, fazer compras e

108
até mesmo trabalhar dessa maneira. A tecnologia era apresentada essencialmente como
um brinquedo de executivos e, mais uma vez, supunha-se que seus usuários eram
homens de classe média. (HUWS, 2017, p. 114).

À essa altura, começavam os questionamentos sobre a tecnologia ser uma ameaça ou uma
promessa, ainda que o trabalho em casa continuasse sendo encarado de forma otimista, o que
segundo Huws “não duraria muito tempo”. O barateamento dos computadores pessoais e
processadores de textos causa uma invasão desses equipamentos nos escritórios da Inglaterra,
consequentemente, há uma outra mudança na visão do público sobre a tecnologia:

E as pessoas que se esperava que os usassem não eram os gerentes e profissionais


homens das imagens populares anteriores, mas mulheres que estavam até então em
trabalhos de escritório razoavelmente seguros, a despeito de subalternos. Uma nova
imagem do uso do computador estava em formação para acompanhar essa mudança. Em
vez de serem associados com técnicos de colarinho branco ou executivos seniores, que
eram apresentados como “dirigindo-os” ou controlando-os, os computadores começaram
a ser considerados instrumentos por meio dos quais suas passivas operadoras poderiam
ser elas mesmas controladas. Anúncios de processadores de textos enfatizavam como
secretárias eram pueris e inconstantes (a despeito de sexualmente atraentes) e
destacavam as maneiras pelas quais a tecnologia poderia aumentar a precisão e a
produtividade e tornar mais fácil para os gerentes monitorar sua força de trabalho no
escritório. Muito da mística anterior – incorporada em um jargão especializado de
programação em torno dos processos de computação - também foi removido. (HUWS,
2017, p. 115).

Os computadores, portanto, passam a ser encarados como algo simples de usar, podendo
ser manipulados por qualquer um e não somente pelos especialistas de colarinho branco. O
efeito dessa mudança de entendimento foi a eliminação da necessidade de qualificação para
execução das tarefas de escritório e o consequente rebaixamento dessa categoria profissional.
Essas ideias veiculadas pelos anúncios não passaram despercebidas pelas mulheres:

Entretanto, elas começaram a atrair a atenção de feministas, especialmente nesse período


que coincidia com a sindicalizacão de trabalhadoras de colarinho branco e com o inicio
de uma análise alternativa sobre o impacto das tecnologias da informação, baseada nas
próprias experiências das mulheres que trabalhavam com computadores, que divergia
fortemente de muitas das imagens da mídia. Essa análise também se apoiou em críticas
anteriores da sociedade industrial, especialmente naquela feita por Braverman, cuja
noção de "desqualificação” [deskilling] foi adaptada (não sem certa dificuldade, dada a
associação histórica da categoria "qualificado” com o trabalho “dos homens” na
indústria) para explicar a fragmentação, a rotinização e o aumento da pressão que
parecem ter acompanhado a informatização do trabalho de colarinho branco de baixo
nível. De acordo com essa análise, a única esperança dos trabalhadores de se protegerem
das condições exploradoras, semelhantes às da fábrica, produzidas pela automação dos
escritórios, estava na sindicalização e na negociação coletiva de condições mais humanas
de trabalho. Qualquer coisa que separasse os trabalhadores uns dos outros, portanto,
deveria ser combatida. E o trabalho domiciliar encaixava-se firmemente nessa categoria,
a despeito de ainda ser visto mais como uma possibilidade do que como uma realidade
imediata. (HUWS, 2017, p. 116).

109
Como analisa Ursula Huws, ao final desse processo já está instalada a desconfiança de
uma dissonância entre aquilo que se diz sobre o trabalho remoto e seus efeitos práticos. A
partir da subversão da linguagem demonstrada na tradução do termo home office, passando
pelas construções imagéticas deste modelo de trabalho levantados por Huws será acrescentada
a análise de uma matriz discursiva sobre o home office capaz de estabelecer o consenso
necessário à implantação de uma hegemonia classista durante a pandemia de Covid-19. O
conceito de hegemonia e o papel que a mídia assumiu nesse processo serão compreendidos
nos termos de Antonio Gramsci.

Ao indicar o percurso que deve ser tomado na busca da hegemonia proletária, Gramsci
aponta a importância da questão discursiva na “luta cultural” para a construção de uma
realidade, em especial a atenção que deve ser dada à “linguagem, as línguas, o senso comum”:

Posta a filosofia como concepção do mundo – e o trabalho filosófico sendo concebido


não mais apenas como elaboração “individual” de conceitos sistematicamente coerentes,
mas além disso, e sobretudo, como luta cultural para transformar a “mentalidade”
popular e difundir as inovações filosóficas que se revelem “historicamente verdadeiras”
na medida em que se tornem concretamente, isto é, histórica e socialmente, universais –,
a questão da linguagem e das línguas deve ser “tecnicamente” colocada em primeiro
plano. (GRAMSCI 1999, p. 398)

Em sua crítica às concepções de Giovanni Vailati e de outros pragmatistas que consideram


a questão dos “erros causados pela linguagem”, Gramsci demonstra a importância desse
elemento na construção da coletividade que reflete um “momento cultural”:

Parece que se possa dizer que “linguagem” é essencialmente um nome coletivo, que não
pressupõe uma coisa “única” nem no tempo nem no espaço. Linguagem significa
também cultura e filosofia (ainda que no nível do senso comum) e, portanto, o fato
“linguagem” é, na realidade, uma multiplicidade de fatos mais ou menos organicamente
coerentes e coordenados: no limite, pode-se dizer que todo ser falante tem uma
linguagem pessoal e própria, isto é, um modo pessoal de pensar e de sentir. A cultura,
em seus vários níveis, unifica uma maior ou menor quantidade de indivíduos em estratos
numerosos, mais ou menos em contato expressivo, que se entendem entre si em diversos
graus, etc. São estas diferenças e distinções histórico-sociais que se refletem na
linguagem comum, produzindo os “obstáculos” e as “causas de erro” de que os
pragmatistas trataram. Disto se deduz a importância que tem o “momento cultural”
também na atividade pratica (coletiva): todo ato histórico não pode deixar de ser
realizado pelo “homem coletivo”, isto é, pressupõe a conquista de uma unidade
“cultural-social” pela qual uma multiplicidade de vontades desagregadas, com fins
heterogêneos, solda-se conjuntamente na busca de um mesmo fim, com base numa
idêntica e comum concepção do mundo (geral e particular, transitoriamente operante –
por meio da emoção – ou permanente, de modo que a base intelectual esteja tão
enraizada, assimilada e vivida que possa se transformar em paixão). Já que assim ocorre,
revela-se a importância da questão linguística geral, isto é, da conquista coletiva de um
mesmo “clima” cultural. (GRAMSCI, 2019, p. 398)

110
Como constituintes do modo de pensar, as línguas e as linguagens são, portanto, matéria
essencial da construção da hegemonia porque são artífices das concepções de mundo dos
sujeitos. O construto que os faz participar de determinada cultura, elemento a ser gerido
como fator agregador da comunidade. É justamente devido ao seu papel de elaboração e
difusão das ideologias das classes dominantes que os meios de comunicação, escolas, igrejas,
partidos políticos e sindicatos (definidos por Gramsci como “aparelhos privados de
hegemonia”) incorrem na interferência e modificação da linguagem atuando no apagamento,
modificação e construção de significados consequentes para a coletividade. São esses
instrumentos que produzem a chamada “opinião pública”:

O que se chama de “opinião pública” está estreitamente ligado à hegemonia política, ou


seja, é o ponto de contato entre a “sociedade civil” e a “sociedade política”, entre o
consenso e a força. O Estado, quando quer iniciar uma ação pouco popular, cria
preventivamente a opinião pública adequada, ou seja, organiza e centraliza certos
elementos da sociedade civil. História da “opinião pública”: naturalmente, elementos de
opinião pública sempre existiram, mesmo nas satrapias asiáticas; mas a opinião pública
como hoje se entende nasceu às vésperas da queda dos Estados absolutistas, isto é, no
período de luta da nova classe burguesa pela hegemonia política e pela conquista do
poder. À opinião pública é o conteúdo político da vontade política pública, que poderia
ser discordante: por isto, existe luta pelo monopólio dos órgãos da opinião pública —
jornais, partidos, Parlamento —, de modo que uma só força modele a opinião e, portanto,
a vontade política nacional, desagregando os que discordam numa nuvem de poeira
individual e inorgânica. (GRAMSCI, 2007a, p. 265)

Outro exemplo do papel dos aparelhos privados na consolidação de uma hegemonia está
no segmento em que Gramsci critica o repúdio que o sistema eleitoral de voto paritário recebe
quando seus detratores equiparam a "opinião de um imbecil qualquer que saiba escrever (e
mesmo de um analfabeto, em determinados países)” com as “melhores forças" de uma nação,
fazendo dos números uma espécie de “lei suprema”. Ao recusar o argumento, Gramsci
fornece elementos para a compreensão desse processo:

O fato, porém, é que não é verdade, de modo algum, que o número seja a "lei suprema"
nem que o peso da opinião de cada eleitor seja "exatamente" igual. Os números, mesmo
neste caso, são um simples valor instrumental, que dão uma medida e uma relação, e
nada mais. E, de resto, o que é que se mede? Mede-se exatamente a eficácia e a
capacidade de expansão e de persuasão das opiniões de poucos, das minorias ativas, das
elites, das vanguardas, etc., etc., isto é, sua racionalidade ou historicidade ou
funcionalidade concreta. Isto quer dizer que não é verdade que o peso das opiniões de
cada um seja "exatamente" igual. Se este pretenso grupo de excelências, apesar das
infindáveis forças materiais que possui, não obtém o consenso da maioria, deve ser
julgado ou inepto ou não representante dos interesses "nacionais", que não podem deixar
de prevalecer quando se trata de induzir a vontade nacional num sentido e não noutro.
"Desgraçadamente", cada um é levado a confundir seu próprio "particular" com o
interesse nacional, e, portanto, a considerar "horrível", etc., que a decisão caiba à "lei do
número"; o melhor é se tornar elite por decreto. Não se trata, portanto, de que os que
"têm muito" intelectualmente se sintam reduzidos ao nível do último analfabeto, mas de

111
que alguns presumam ter muito e pretendam tirar do homem "comum" até mesmo aquela
fração infinitesimal de poder que ele possui para decidir sobre o curso da vida estatal.
(GRAMSCI, 2007a, p. 81)

Nessa perspectiva, é possível concluir que, em tempos de abolição do voto censitário, é


pelo domínio das consciências que se garante o domínio dos números. Como parte da
sociedade civil, os aparelhos privados de hegemonia “possibilitam suscitar
extemporaneamente explosões de pânico ou de entusiasmo fictício, que permitem o alcance
de objetivos determinados” (GRAMSCI, 2007a, p. 270), tendo por função garantir a
modelagem necessária para o estabelecimento do consenso.
Para o autor, o Estado é composto pela “sociedade política” (responsável pela coerção) e
pela “sociedade civil” (responsável pelo consenso), o consenso tem caráter ético-moral,
portanto, é dado “voluntariamente” e sua função primordial é garantir que as classes
dominantes cheguem ao poder sem que a coerção seja necessária e o pacto social rompido.
Gramsci descreve esse processo ao criticar o fato curioso de que Benedetto Groce inicia suas
análises sobre a História da Europa no séc. XIX a partir de 1815 e de 1871, sem referir-se à
Revolução Francesa ou às Guerras Napoleônicas, da mesma forma que não trata das “lutas do
Risorgimento” na Itália moderna. Gramsci levanta a hipótese que o pensador italiano assim
não o faz por questões puramente ideológicas, apagando o elemento radical do jacobinismo
propositalmente: “conseguindo-se assim salvar a posição política e econômica das velhas
classes feudais”. Ele conclui que Groce acaba por oferecer indiretamente uma “justificação
mental” para o fascismo italiano, definindo o movimento como “revolução passiva”, de
cunho essencialmente contrarrevolucionário:

A hipótese ideológica poderia ser apresentada nestes termos: ter-se-ia uma revolução
passiva no fato de que, por intermédio da intervenção legislativa do Estado e através da
organização corporativa, teriam sido introduzidas na estrutura econômica do país
modificações mais ou menos profundas para acentuar o elemento “plano de produção”,
isto é, teria sido acentuada a socialização e cooperação da produção, sem com isso tocar
(ou limitando-se apenas a regular e controlar) a apropriação individual e grupal do lucro.
(GRAMSCI, 1999, p. 299)

A “revolução passiva” é garantida pelo exercício da hegemonia, entendida, por sua vez,
como a capacidade de impor culturalmente uma agenda:

“A supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos, como ‘domínio’ e como


‘direção intelectual e moral’. Um grupo social domina os grupos adversários, que visa a
‘liquidar’ ou a submeter inclusive com a força armada, e dirige os grupos afins e
aliados.” (GRAMSCI, 2002, p. 62)

112
Embora a sociedade política atue pela coerção e, como defende o autor, inclusive, fazendo
uso de seu poderio bélico, a hegemonia cultural é executada otimamente quando justificada
por meio de um ideário que legitime a dominação de uma dada classe social, evitando o uso
desse recurso. Logo, os aparelhos privados de hegemonia agem moldando a opinião pública
para que esse ideário seja aceito.
Deste ponto, passamos a observar a forma com que os aparelhos privados de hegemonia
atuam na construção dessa estratégia no contexto da implementação do home office. Mesmo
sendo adotado por uma parcela ínfima da população antes da pandemia, o home office
apresentava uma tendência de crescimento nos últimos anos, como aponta a matéria do Nexo
Jornal relatando o aumento da adesão:

O Brasil seguiu a tendência: segundo levantamento do IBGE, em 2018, 5,2% dos


trabalhadores ocupados do país trabalhavam em regime de home office, excluindo da
conta funcionários do setor público e trabalhadores domésticos. Ao todo, a porcentagem
equivalia a cerca de 3,8 milhões de pessoas. O número é um aumento de 44,2% se
comparado ao número de pessoas que trabalhavam em casa no ano de 2012.
(SILVEIRA, 2019)

A emergência sanitária causada pela pandemia de Covid-19 mudou esse cenário,


acelerando de vez o processo e revelando que havia um potencial ainda não explorado no
mercado. O número mais que dobrou com a crise, saltando para 7,9 milhões de pessoas
trabalhando em casa em setembro de 202023. Essa mudança causou um súbito interesse pelo
tema, claramente demonstrado nos gráficos abaixo que indicam a tendência de procura pelo
termo home office desde 1º de janeiro até o dia 1º de agosto de 2020, com uma explosão de
procura após a decretação da pandemia pela Organização Mundial de saúde (OMS):

23
DESOCUPAÇÃO, renda, afastamentos, trabalho remoto e outros efeitos da pandemia no trabalho. Disponível
em: <https://covid19.ibge.gov.br/pnad-covid/trabalho.php>. Acessado em 17 de maio, 2021.

113
Busca para a expressão home office em todo o mundo
Fonte: Google Trends

Busca para a expressão home office no Brasil


Fonte: Google Trends

Desde então, o termo se incorporou ao nosso vocabulário e é sempre mencionado nos


discursos veiculados pelos meios de comunicação, na imprensa falada e escrita e nas redes
sociais. Algo que a mencionada tese de Daniela Oliveira (2017, p. 61) analisa como “A
construção social do home office” no contexto dos trabalhadores digitais.
Um bom exemplo de como a mídia tem abordado o tema home office são as dicas para
profissionais que, neste regime, se veem obrigados a expor a própria casa em reuniões com
colegas e chefes, ministrando aulas, aparecendo em lives, reportagens. No dia 17 de julho de
2020, o jornal local de Porto Alegre – Bom Dia Rio Grande – apresentou uma conversa
matinal com dicas para deixar o ambiente exposto nas recorrentes lives mais apresentável.
Segundo a apresentadora Daniela Ungaretti e a repórter Giulia Perachi é preciso “pensar fora
da caixa” e ter cuidado com a “iluminação”, para não arriscar cometer uma gafe de se deixar
entrever uma “vassoura” ou “a porta de um banheiro”. A apresentadora enfatiza a
importância de se ter um cuidado com o que entra no quadro da câmera: “O que aparece atrás
pode ficar feio demais, pode acabar com a nossa imagem!”: a casa vira cenário.

114
Fonte: Globoplay

A jornalista Márcia Breda é apresentada pelo programa como uma “especialista em home
office” e foi convidada para dar dicas aos espectadores. A profissional trabalha em casa há
cinco anos e criou a marca “Adoro Home Office”. As páginas da marca divulgam dicas sobre
“as melhores maneiras de montar um home office para chamar de seu e produzir em casa”. A
dica do dia 23 de julho de 2020 para um ambiente de trabalho confortável era a cadeira
gamer produzida numa parceria entre a empresa americana de móveis e equipamentos de
escritório Herman Miller e uma das líderes no mercado de periféricos Logitech. O tweet que
anunciava o lançamento da cadeira comentava: “Temos um novo sonho de consumo no
cenário ‘cadeiras’”. A cadeira custava R$ 10.710:

115
Fonte: Conta de Márcia Breda @adorohomeoffice na rede social Twitter

A peça publicitária produzida em parceria entre a Tok Stok e Márcia Breda ilustra bem o
ethos para quem esse modelo de trabalho sempre foi direcionado. Ela lançou um vídeo
promocional com “dicas para a instalação de um espaço de trabalho em casa tão
racionalizado que, segundo ela, nos permite separar o home do office: “Muitos estudos
apontam que ter um espaço reservado pro trabalho em casa, ajuda muito você a conseguir
separar o que é home e o que é office.”. Nessas dicas, Breda enumera uma lista de ítens para
melhorar o ambiente e demarcar o espaço de trabalho: tapete, máquina de café, chaleira
elétrica, luminária com braço móvel, plantas. Os espaços utilizados podem ser a “varanda, se
ela for fechada, o closet ou a área de serviço”. Para a decoração desse ambiente ela sugere
“quadros com frases de inspiração”, “porta-retratos com fotos de família” e “pequenas
lembranças de viagem”.
O vídeo da jornalista Márcia Breda é ilustrativo da imagética construída sobre a categoria
home office. A produção de um ethos de classe está sempre presente naquilo que se diz sobre
esse modelo de trabalho. Adotá-lo está inevitavelmente ligado a identificação com um modo
de vida. As vantagens e a comodidade que ele oferece são valores construídos em todos esses
discursos como algo oferecido exclusivamente a uma determinada classe social. Uma parcela
da população muito identificada com um sentido VIP24 de existência. Encapsulado na lógica
do ethos de classe para quem o modelo se direciona, o home office é vendido, acriticamente,
como um ideal de ambiente para um ideal de trabalho, construto de uma vida ideal. É para o
público do recorte social a quem Breda se direciona que o home office foi pensado. Um

24
A sigla VIP são as iniciais da expressão da língua inglesa “Very Important Person” ou uma "pessoa muito
importante". Usada para referir-se a “pessoas importantes, influentes, ou altos funcionários com privilégios
especiais”. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/VIP>. Acessado em 10 de jan, 2021.

116
questionamento que aparece no podcast Mupoca (2020) com o episódio “Home Office para
quem?” que pergunta na sua chamada: “E quem não pode montar um ‘escritório em casa’ no
jardim de inverno de frente para a piscina?”.
A parcialidade do ponto de vista sobre o home office retratado em veículos de mídia tem
sido majoritariamente daqueles que atuam em posições de comando, como pontuado por
Ursula Huws. Algo que pode ser atestado em matéria da Folha de São Paulo sobre o fato de
que 60% das funcionárias e funcionários em trabalho remoto não tiveram qualquer tipo de
suporte das empresas em que trabalham. Curiosamente, para essa averiguação, uma empresa
de tecnologia entrevistou 1.300 executivos de companhias em 19 países. Para o vice-
presidente da empresa responsável pela pesquisa, Jefferson Anselmo, os resultados indicam
que “as empresas ainda estão se preparando para as mudanças”. Ele avalia que no momento
em que a pesquisa foi realizada, agosto de 2020, elas “estavam em um esforço para tornar o
trabalho remoto possível. Agora, começam as preocupações em melhorar as condições.”. No
entanto, suas observações claramente demonstram as beneficiárias do tipo de melhorias às
quais ele se refere:

Uma dessas melhorias estaria no desenvolvimento de novas ferramentas para


produtividade e comunicação – caso de 36% das empresas no Brasil e 43,3%, no mundo
– e no aumento de recursos de segurança de informação para manter funcionários e
organizações seguras, opção adotada por 48% das companhias que atuam no Brasil (a
média global é de 46,4%). (BRIGATTI, 2020)

A pesquisa que trata da falta de suporte das empresas às suas funcionárias e funcionários
que passaram a trabalhar de casa, aponta que os próximos passos para melhorar as condições
de trabalho são investimentos que beneficiem a produtividade, comunicação e garantam a
proteção de dados. Nenhuma dessas melhorias se direciona às trabalhadoras e trabalhadores.
Ao final da reportagem, o jornal aponta “Dicas para manter a produtividade em casa”.
O trabalho remoto é uma prática adotada por grandes empresas multinacionais de
tecnologia como IBM, Yahoo, Dell, Xerox, Microsoft, Mozilla, Adobe e é ostentada como
símbolo da satisfação, conforto, qualidade de vida e bem-estar que estas empresas
proporcionam às suas funcionárias e funcionários. Uma vez que condicionam resultados à
produtividade e não somente à carga horária fixa, elas permitem que suas empregadas e
empregados adaptem os horários de trabalho às próprias necessidades pessoais e não o
contrário.
A imagem construída em torno do conceito de trabalho remoto é o de que a empresa
valoriza os aspectos humanos das funcionárias e funcionários a tal ponto que seu conforto

117
passa a ser uma prioridade. Deste modo, o trabalho em casa traduz a preocupação da empresa
de que elas/eles possam desfrutar melhor do tempo livre, passar mais tempo com a família,
dedicar-se a paixões pessoais, cultivar hobbies e controlar o próprio expediente com
autonomia para gerenciar completamente a sua rotina de trabalho.
Trata-se da produção de uma subjetividade que agrega trabalho e prazer, obrigações e
contentamento. Neste discurso, a riqueza das experiências vividas são valores que estão acima
do cálculo frio sobre a capacidade de produzir lucros. As pessoas não trabalham apenas para
suprir as necessidades básicas de suas existências, mas – principalmente – para atingir os
patamares mais elevados das suas aspirações intelectuais. Assim, a proatividade e o espírito
empreendedor são elementos centrais de um modelo organizacional que busca se diferenciar e
superar os entraves de práticas consideradas carcomidas e contrárias ao progresso. Um ethos
muito específico possibilitado por uma muito determinada condição social.
Nas organizações que adotam esse regime de trabalho é veiculado (de modo explícito ou
não) o entendimento comum de que funcionárias e funcionários satisfeitos sempre produzirão
mais e melhor quando a sua capacidade criativa não for cerceada pela rigidez do modelo
tradicional e obsoleto de trabalho. A adoção do trabalho remoto, portanto, coaduna
perfeitamente com os discursos dos quais todas essas organizações são tributárias: inovação,
diversidade, pluralidade, centralidade da criação, criatividade nos processos produtivos e
vanguardismo nas tendências de mercado.
Entretanto, o trabalho remoto passa longe de ser uma unanimidade no setor. Antes da
pandemia, apesar de todo o aparato tecnológico desenvolvido ao longo das últimas décadas
que já possibilitavam, em algum grau, sua realização – computadores, softwares, internet de
alta velocidade, redes wi-fi, smartphones, tablets, inteligência artificial, tecnologias para
compartilhamento de arquivos, serviços de comunicação por vídeo e voz –, vivia-se ainda
uma forte “cultura de escritório”. Algumas organizações se recusavam a adotar esse modelo, a
despeito de haver em seus quadros setores e funções cujo trabalho poderia ser realizado à
distância. Mesmo empresas de tecnologia de ponta, responsáveis pela criação e pioneiras no
desenvolvimento de muitas dessas ferramentas, preferiam exigir o comparecimento das
funcionárias e funcionários nos escritórios, fazendo com que trabalhassem, exclusivamente,
no formato presencial.
Algumas gigantes do maior polo de empresas de tecnologia do mundo, o Vale do Silício,
por exemplo, sempre foram adeptas do modelo presencial de trabalho. Empresas como
Google, Facebook, Apple e Amazon montaram grandes instalações para abrigar suas equipes
e sempre rejeitaram o trabalho remoto. Uma resistência que pode se dar por questões

118
contratuais de confidencialidade – caso da Apple – ou por refletir o posicionamento da
empresa que entende o trabalho presencial como indispensável aos processos criativos dos
quais seus negócios dependem. As interações e colaborações olho-a-olho das funcionárias e
funcionários são vistas como essenciais para o sucesso dessas empresas. O trabalho remoto,
por sua vez, é visto com desconfiança pelo possível declínio de produtividade que dada
flexibilidade e perda de controle de resultados poderia causar.
Por causa dessa política, as organizações do Vale do Silício são famosas por montarem
estruturas bastante atrativas para garantir que as funcionárias e funcionários possam se sentir
o mais à vontade possível nos locais onde trabalham. Criar um ambiente “sem cara de
escritório” que torne o dia-a-dia do funcionário mais “animado” e confortável é a estratégia
adotada, não só para estimular a criatividade e garantir a satisfação das empregadas e
empregados, mas, também para que as/os profissionais permaneçam mais tempo trabalhando
nestes espaços. Por isso, essas organizações são equipadas de cafeterias gratuitas, lavanderias,
refeições gourmet, cervejarias, e diferentes espaços de lazer. É uma iniciativa que atende à
demanda das candidatas e candidatos às vagas dessas empresas, pois um ambiente bem
estruturado é algo considerado decisivo para esse público:

Um levantamento de 2018 feito pela Continental Office, empresa americana de


consultoria de mercado, concluiu que 23% dos trabalhadores de escritório dos EUA
enxergavam o espaço físico das empresas como fator decisivo na hora de aceitar ou não
uma oferta de emprego. (GAGLIONI, 2020).

A Google25 foi uma das primeiras empresas a se tornar famosa por seus escritórios
“divertidos” com espaços lúdicos multicoloridos com puffs, jogos, video games, fliperamas,
mesas de bilhar, pebolim, tênis de mesa, quadras de esportes, parede para escalada, minigolfe,
piscinas, sala de música com djs, salas de massagem, locais para dormir e até mesmo salas de
trabalho em cenários de cavernas. Um ambiente que povoou o imaginário de quem sonhava
com um local de trabalho menos opressivo e mais propício ao desenvolvimento da
criatividade, estímulo e manutenção do bem-estar das funcionárias e funcionários.
Atropelando essas diretrizes, a urgência da Covid-19 transformou o trabalho remoto para
trabalhadoras e trabalhadores que estão em funções passíveis de serem executadas em casa
em uma medida de proteção à vida. Algo que obrigou essas empresas a repensarem suas
políticas compulsórias de comparecimento ao local de trabalho.

25
IHODL. 26 fotos que mostram que a Google tem os escritórios mais “cool” do mundo. IHODL. Publicado
em: 11 de jul, 2017. Disponível em <https://pt-br.ihodl.com/lifestyle/2017-07-11/26-fotos-que-mostram-que-
google-tem-os-escritorios-mais-cool-do-mundo/>. Acessado em: 07 de jul, 2020.

119
Com a explosão da pandemia, não demorou muito até que as organizações ajustassem
suas políticas internas à gravidade da situação e passassem a aderir ao trabalho remoto na
medida em que a doença atingia suas cidades e decretos governamentais foram restringindo a
circulação de pessoas ao redor do mundo. Colocou-se no debate público a necessidade de
adesão ao trabalho remoto onde fosse possível. A emergência do chamado e a inevitabilidade
da mudança frente à nova realidade produziram efeitos concretos, causando transformações
significativas no mundo do trabalho, se temporárias ou permanentes, ainda não sabemos.
Grandes empresas como Twitter, XP, Coca-Cola e até a Petrobrás26 colocaram suas
funcionárias e funcionários para trabalhar em casa. O Facebook27 planeja colocar metade de
seu staff em home office em cinco ou dez anos. A medida tem sido direcionada a funcionárias
e funcionários com funções compatíveis com o formato – no caso de empresas como a
Petrobrás – e, em alguns casos, quando o modelo de negócios torna todos os setores
compatíveis – como a empresa de fundos de investimento XP28 – todas as funcionárias e
funcionários foram colocados em trabalho remoto de forma permanente.
O segmento alvo da experiência home office é aquele que, culturalmente, teve a
oportunidade de produzir racionalidades ligadas à organização do tempo, ao planejamento
das suas atividades e à projeção de um futuro que, muitas vezes, foi pensado desde a mais
tenra idade. São pessoas que pensam a experiência do trabalho em termos de “carreira”,
tracejando um caminho coerente à serviço de um projeto de vida. O segmento contingente da
emergência home office causada pela Covid-19 é aquele em que a gambiarra, o improviso e a
resiliência necessárias à execução da atividade laboral em casa está à serviço da
sobrevivência. A pandemia arrastou para o trabalho em casa um público que não teve a
oportunidade de se dedicar à realização de projetos e planejamentos sobre o que viria a ser o
futuro, pois a amplidão do horizonte que vislumbra é reduzida a um dia de cada vez.
Entre as diferentes categorias profissionais cujo perfil da atividade que exercem permite a
execução do trabalho em casa estão as trabalhadoras de call centers. Na base da pirâmide do
setor de tecnologia em que se encontram as gigantes do Vale do Sicílio, esse segmento herda
toda a construção imagética das empresas do topo. O discurso difundido às candidatas sobre
26
REDAÇÃO. Petrobrás deve manter 10 mil trabalhadores em home office pós pandemia. Veja. Publicado
em: 17 de jun, 2020. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/economia/petrobras-deve-manter-10-mil-
trabalhadores-em-home-office-pos-pandemia/>. Acessado em: 07 de jul, 2020.
27
KORAN, Mario. Facebook expects half of employees to work remotely over next five to 10 years. The
Guardian. Publicado em: 21 de maio, 2020. Disponível em:
<https://www.theguardian.com/technology/2020/may/21/facebook-coronavirus-remote-working-policy-
extended-years>. Acessado em: 07 de jul, 2020.
28
XP vai adotar trabalho remoto permanente e anuncia nova sede 'campestre'. O Globo. Publicado em 11
de jun, 2020. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/economia/xp-vai-adotar-trabalho-remoto-permanente-
anuncia-nova-sede-campestre-24474932 Acessado em: 13 jul, 2020.

120
o que significa trabalhar no setor é adequado para a jovialidade do público que compõe seus
quadros, como explica Rute: “Lá existe um negócio assim: ‘Você vai trabalhar na melhor
empresa do ramo!’. E o treinamento sempre se baseia na sua função ser divertida. O seu
trabalho é um trabalho divertido. É um lugar onde você se diverte. E tem sala de descanso
com TV, essas coisas.”. Ao oferecer espaços “divertidos” às suas funcionárias, as empresas
de call center emulam as estruturas convidativas dos espaços construídos pelas big techs e
tentam estimular as mesmas subjetividades sem, contudo, oferecer as mesmas condições de
trabalho e qualidade de vida.
Desse modo, o discurso que produz o modelo de trabalho em home office como ideal é o
mesmo desenvolvido na empresa de call center porque também está comprometido com a
produção de um determinado tipo de sujeito ideal. O objetivo da trabalhadora nesse setor
deve ser ascender a uma posição melhor dentro da hierarquia, já que há sempre “muitas
oportunidades” oferecidas pela empresa. O sucesso, portanto, é algo a ser perseguido todos os
dias na forma de cumprimento das metas. A competição, a busca pela ascensão, a tendência à
individualidade são expressões da subjetividade estimulada pelo sistema neoliberal tanto para
os diretores executivos das grandes empresas quanto para aqueles que se encontram na base
da pirâmide social como as trabalhadoras dessa pesquisa.
O perfil dos postos de trabalho em call centers repete-se na periferia do capitalismo: como
anteriormente citado, são empregos de baixa remuneração, precarizados, com alta
rotatividade que resulta em não-profissionalização e baixa adesão sindical, exercido
majoritariamente por mulheres e que atraem, em sua maioria, pessoas jovens, frequentemente
tendo nesse setor sua primeira experiência profissional. Um perfil completamente deslocado
do ethos daquele cujo trabalho remoto serve ao bem-estar, à autonomia e ao estímulo às
realizações pessoais das suas funcionárias e funcionários.
Diante da pandemia, o apagamento dessas contradições pelos aparelhos midiáticos
geradores de consenso constitui-se como expressão da hegemonia referida por Antonio
Gramsci e, no caso dessa pesquisa, refere-se a articulação lograda por uma elite econômica
para impor um modelo de trabalho pensado para ela própria. Na crise pandêmica, essa elite
econômica encontrou a oportunidade ideal de terceirizar custos de produção às trabalhadoras,
ao mesmo tempo que foi capaz de eclipsar a parcialidade de sua visão de mundo.
O consenso que, segundo o autor, é o ponto de coesão entre sociedade civil e sociedade
política pode ser ilustrado na imagem abaixo. A campanha publicitária da Caixa Econômica

121
Federal29, uma empresa pública, oferece financiamento para a montagem do home office com
o uso do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, um instrumento de proteção ao
trabalhador demitido sem justa causa:

Anúncio da Caixa Econômica Federal veiculado no Twitter

Todos esses discursos demonstram que estamos diante de uma nova versão do
fenômeno analisado por Gramsci na experiência do americanismo-fordismo do início do séc.
XX, um sistema que não desejava apenas implementar uma outra forma de trabalho:

Na América, a raciona1ização do trabalho e o proibicionismo estão indubitavelmente


ligados: as investigações dos industriais sobre a vida intima dos operários, os serviços de
inspeção criados por algumas empresas para controlar a “moralidade" dos operários são
necessidades do novo método de trabalho. Quem ironizasse estas iniciativas (mesmo
fracassadas) e visse nelas apenas uma manifestação hipócrita de ‘puritanismo’ estaria se
negando qualquer possibilidade de compreender a importância, o significado e o alcance
objetivo do fenômeno americano, que é também o maior esforço coletivo até agora
realizado para criar, com rapidez inaudita e com uma consciência do objetivo jamais
vista na história, um tipo novo de trabalhador e de homem. (GRAMSCI, 2007b, p. 266)

29
CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. “Montar o seu home office novinho está na sua lista de planos? Então
antecipe com a CAIXA. Com o Crédito Antecipação Saque Aniversário FGTS, você tem a melhor taxa, sem
burocracia e sem parcelas mensais, pra você usar pro que precisar. Simule e contrate.”. 1 de dez, 2020. 6:21 PM.
Tweet. Disponível em: <https://twitter.com/caixa/status/1333884010565693440>. Acessado em: 10 de jan, 2021.

122
No contexto brasileiro, os meios de comunicação exerceram um papel semelhante ao que
Gramsci entende como aquele adotado pelo Rotary Club na divulgação e construção de
consenso acerca de “um novo espírito capitalista”: a imagética construída em torno do home
office segue a trilha de um entendimento individualizante de gestão empresarial da vida e do
trabalho, típica do neoliberalismo. Consequentemente, este estudo entende que o consenso
vem sendo construído desde muito antes da crise da pandemia. A tensão descrita por Gramsci
entre consenso e força pôde ser observada nos discursos veiculados pelos meios de
comunicação sobre as vantagens da flexibilização do trabalho para “modernizar” e
“dinamizar” a produção brasileira, gerando mais postos de trabalho.
O consenso assentado pavimentou o caminho para que o poder coercitivo do Estado fosse
consolidado na Reforma Trabalhista de 2017, sem que a classe trabalhadora conseguisse
articular uma resistência capaz de barrar a dilapidação de seus direitos. Nessa conjuntura, a
pandemia de Covid-19 se comporta como uma nova oportunidade para o aprofundamento
dessas dinâmicas. Longe de ser um evento completamente alheio ao processo de
desmantelamento dos direitos trabalhistas, o home office se configurou como um catalisador
do avanço neoliberal sobre o trabalho. Deve ser entendido, portanto, como um outro momento
de reformulação das forças produtivas, uma brecha para a intensificação da exploração da
força de trabalho.
Com as análises de Ursula Huws sobre as imagéticas e simbologias construídas a respeito
do teletrabalho que eram geralmente otimistas e precederam a própria adoção desse regime de
trabalho, articulada com as noções de Antonio Gramsci sobre a importância da formação de
consenso no processo de estabelecimento da hegemonia, no próximo tópico, serão analisadas
as experiências concretas dos sujeitos da pesquisa com o home office.

4.2 – HOME OFFICE COMO AVANÇO DE UMA NOVA ETAPA DE


EXPLORAÇÃO NEOLIBERAL

Home office seria um sonho. Home office é um direito à vida.


Larissa
Período de transição
No contexto da pandemia, ter a oportunidade de vir trabalhar em casa foi um grande alívio
para as trabalhadoras entrevistadas, algo encarado com compreensível otimismo. Após as
denúncias feitas aos órgãos competentes e a necessidade de esvaziamento dos balcões lotados,

123
a empresa iniciou o processo de seleção das funcionárias que executariam as funções em suas
residências.
O processo se deu por meio de entrevistas realizadas pelos supervisores em abril de 2020.
Eles procuravam aferir se a funcionária dispunha de toda a estrutura exigida para que pudesse
assumir o trabalho remoto. Para isso, ela deveria ter computador próprio, com menos de cinco
anos de uso, internet cabeada e não por wi fi com no mínimo cem megabytes de download e
dez de upload, um programa de antivírus instalado (item exigido por alguns produtos apenas),
além de um smartphone para baixar os aplicativos de segurança que autorizam o acesso
remoto pelo computador da funcionária.
Como já exposto, também havia exigências quanto ao espaço apropriado para o trabalho:
deveria ser calmo, silencioso, com privacidade (onde outros moradores não permanecessem
durante toda a jornada da funcionária) por questões de confidencialidade de dados e sem
janelas de onde fosse possível visualizar o computador. No ambiente não poderia haver livros,
cadernos ou papéis em que os dados dos clientes pudessem ser anotados. O celular da
funcionária não poderia ficar no mesmo cômodo enquanto o trabalho era realizado.
Depois de conferido se esses requisitos eram preenchidos, as funcionárias assinaram um
termo de compromisso de que a declaração era verdadeira. O termo incluía um aviso de que a
empresa não seria responsabilizada por nenhum gasto. Algo que se constituiu, na prática,
como instrumento para isenção de qualquer responsabilidade em relação ao fornecimento dos
serviços e dos instrumentos necessários à realização da atividade. Ursula Huws (2017, p.109)
explica que a experiência do trabalho remoto está condicionada ao tipo de sujeitos que a ela
adere:

Meu argumento é que o "trabalhador domiciliar eletrônico" tornou-se um símbolo, que


para muitas pessoas incorpora suas esperanças e seus temores sobre o futuro do trabalho.
Entretanto, os significados que carrega não são constantes. Não apenas mudaram ao
longo do tempo; eles também variaram de acordo com a maneira que seus detentores são
colocados em relação à tecnologia, ao seu trabalho e aos seus lares: se eles são, por
exemplo, homens ou mulheres, empregados ou empregadores, vivendo só ou cuidando
de outros, com boas ou más moradias, jovens ou velhos, atraídos pelas tecnologias da
informação ou repelidos por elas. Se esses diferentes significados não são desvendados,
a imagem, por todo o seu poder, continua difícil de apreender, presa no centro de um
emaranhado de atitudes opostas.

Para identificar as dissonâncias e conformidades sobre o que se projeta sobre o trabalho


remoto, essa pesquisa conta com trabalhadoras cujos perfis estão longe daqueles dos
profissionais homens de classe média de colarinho branco identificados por Huws, assim
como dos profissionais das cadeias criativas das big techs. Este estudo será guiado pelas

124
impressões de oito funcionárias que trabalham com diferentes produtos e modalidades de
atendimento: Karina e Joyce (voz), Laís, Rosa e Igor (e-mail), Luana (voz/chat), Cazé
(formulários) e Ricardo (mídias sociais).

Equipamentos
A seleção provocou uma corrida das funcionárias para conseguir os equipamentos exigidos
e adequar os espaços em que iriam trabalhar. Na ânsia de conseguir ir para casa, algumas
mentiram sobre os recursos que tinham disponíveis. Na entrevista afirmaram que possuíam
ambiente adequado e instrumentos de trabalho, mas só depois de aprovadas na seleção
passaram a providenciar os referidos equipamentos:

Eu conheço gente que comprou computador para poder ir trabalhar em casa. Do próprio
bolso porque tinha medo de ir para a (empresa). Aí, compraram, assinaram um termo
sem nem ter computador em casa. Assinou o termo e no outro dia foi comprar um
computador. Não que a empresa tenha dito assim: “Compre!”. Mas porque realmente...
tipo... pesou, né? Pesou a situação. (Joyce, 22 / Entrevista concedida em 15 de setembro,
2020).

Feita às pressas por causa das denúncias de inação da empresa, a transição do trabalho
presencial para o trabalho em casa foi conturbada, não havendo nenhum padrão de conduta
para todos os produtos. Alguns deles, como bancos e empresas de cobranças e seguros,
exigiram que suas funcionárias continuassem no modelo presencial devido a segurança de
sigilo da informação. Outros colocaram todas as funcionárias em home office. Se elas não
dispunham dos requisitos para ir para casa, eram remanejadas de produto ou induzidas a pedir
demissão.
A transferência se deu de forma escalonada por tipo de atendimento. As trabalhadoras que
atendem por voz foram as últimas da fila devido à complexidade de readaptação dos sistemas
operacionais para os computadores domésticos. Pessoas do grupo de risco de contágio, com
comorbidades foram priorizadas e o processo demorou de duas semanas a pouco mais de um
mês.
Alguns produtos emprestaram computadores e/ou headsets para a realização do trabalho,
outros não forneceram absolutamente nenhum equipamento para as funcionárias. Segundo o
interlocutor Igor, as funcionárias contratadas para atender por voz depois do início da
pandemia, já foram obrigadas a comprar os próprios headsets que usariam em casa. A
indefinição dessas tratativas fez com que algumas trabalhadoras se adiantassem e comprassem
computadores para que pudessem trabalhar de casa e se proteger da pandemia o mais rápido

125
possível, para logo depois ter o equipamento fornecido pelo produto para o qual prestavam
serviço.
O processo seletivo para o home office foi completamente simplificado em relação ao
desgastante processo presencial. Com a pandemia, consiste de apenas uma entrevista online
em grupo, provas de português e matemática e teste de digitação. As primeiras medidas
tomadas pela empresa para escoar as funcionárias para o trabalho remoto incluíram
adiantamento de férias e uso do banco de horas antecipando folgas, enquanto as trabalhadoras
aguardavam em casa o início dos atendimentos. Os turnos de trabalho e jornada laboral não
foram modificados. Todas as entrevistadas trabalham por 6:20h nos turnos diurnos.

Espaços
Nenhuma das trabalhadoras possui em casa um espaço exclusivo para o trabalho. Todas
executam suas funções no mesmo quarto onde dormem, Igor e Joyce também trabalham na
cozinha. Joyce, Igor e Laís só puderam ir para casa porque conseguiram computadores
emprestados de familiares. Joyce teve que trabalhar, inicialmente, na casa da sogra. Rosa
trabalha durante seis horas na cama onde dorme, pois não possui mesa de apoio para o
computador. Quase todas as trabalhadoras tiveram algum tipo de gasto com a adequação dos
espaços, o que incluiu compra de mesas, cadeiras, computadores, mouses, teclados e
contratação e instalação de serviços de internet, além dos cabos para a conexão no roteador.
Com a exceção do funcionário Igor que mora sozinho, todas as outras funcionárias
dividem seus ambientes com outras pessoas: Karina mora com um parente, Rosa e Joyce com
seus companheiros, Cazé com quatro amigos, Laís, Luana e Ricardo moram com os pais, no
caso de Ricardo são seis pessoas na mesma casa.
O conforto necessário para o trabalho é improvisado com travesseiros postos nos assentos
de cadeiras de plásticos, livros elevando laptops. Perguntadas se consideravam ter em casa um
espaço adequado para o trabalho, nenhuma delas respondeu assertivamente:

Não. A mesa não é adequada. A mesa tem que ser diferente, tem que ser toda aquela
mesa adaptada...de teclado... de tela mais alta porque o meu computador é um notebook,
não é um computador. Não é computador, computador, é notebook. Então acaba que a
adaptação é diferente porque a tela tem que ser mais alta, entendeu? O teclado tem que
ser em uma altura específica. A cadeira tem que ser uma cadeira mais confortável, mais
específica, entendeu? Essas adaptações... A iluminação é diferente porque a gente sabe
que quem trabalha em computador tem que ter uma iluminação mais forte. Acaba que
aqui em casa a iluminação é normal. Então, essas coisas aí, vão variando. São coisas
pequenas, mas que, a longo prazo, tem um efeito grande, entendeu? (Joyce, 22)
...

126
Tem toda a situação, né? Eu precisei estruturar um lugar pra trabalhar, precisei de uma
cadeira mais confortável. Eu não... a minha mesinha de estudo tinha quebrado, então...
Eu comecei trabalhando na mesa da cozinha, só que era muito desconfortável. Todo um
processo né? Todo um processo. A minha internet não é... ela supre a minha necessidade
de estudante, mas, ela não é uma das melhores para atendimento principalmente quando
se trata de voz, então... a ligação falhava muito. (Igor, 24)

Os dois maiores impactos iniciais foram a inviabilidade do respeito aos critérios de


ergonomia na adequação do ambiente ao trabalho remoto e o comprometimento do orçamento
das funcionárias com a compra de instrumentos de trabalho. Ao contrário do que pensou
Joyce, a falta de observância dos critérios ergonômicos trouxe consequências imediatas à
saúde de um funcionário.
Cazé divide a casa com mais quatro residentes, trabalha no quarto em que dorme com uma
amiga. As dificuldades iniciais que enfrentou exemplificam alguns dos problemas de
adaptação e possíveis consequências do trabalho remoto. Com problemas de coluna, ele
começou trabalhando em uma mesa e cadeira de plástico, alternando com a cama para
conseguir mais conforto, eventualmente apoiando o pescoço em travesseiros. Contudo, não
conseguiu evitar que as dores o levassem ao hospital.
Para resolver o problema e melhorar as condições em que trabalha, fez investimentos que
acabaram por comprometer o orçamento: comprou mesa, cadeira ergonômica, mouse e
teclado, além de consertar o computador para adequá-lo às exigências do trabalho. Empilhou
livros embaixo do laptop para conseguir a altura ideal no seu campo de visão:

Quando eu começei a trabalhar em casa eu iniciei na (empresa de streaming). E o que eu


tinha era uma mesinha de plástico dessas que tem em bar. Mas ela tá aqui, não é de bar,
não. É só o modelo, né? E uma cadeira de plástico que eu colocava no meu quarto
mesmo, né? que eu dividia, inclusive, né? o meu quarto. Então era a cama, a minha cama
pequena. A cama enorme de (amiga) de casal e a mesinha. Então, você imagina aí. Que
eu acho que eu cheguei a mostrar a você algum vídeo de como ficava. Aí, tinha o mouse
e o computador e o headset que era cedido pela empresa. Esse computador... ele ficava
apoiado na própria mesa. O que... no que isso resultou? O meu pescoço ficou doendo
muito, muito, muito, muito. E eu passei um mês inteiro com muita dor no pescoço,
assim... muita dor que eu não conseguia dormir porque eu sentia muita, muita, muita dor,
assim na cervical. Muita dor assim, muita dor que não adiantava a posição que eu ficasse.
Até que calejou, calejou e eu melhorei. Depois que eu mudei para os formulários que
formulários é uma operação extremamente física. Trabalha extremamente o físico, a mão,
a digitação, o braço, o punho, a coluna, a postura. A gente trabalha muito isso em
formulários. Aí, nesse caso aqui último, eu percebi que eu ia precisar de uma cadeira.
Então, comprei uma cadeira, a mesa mudou. Tive que apoiar... eu fui adaptando, né?
Tive que subir o computador com os livros. Comprei mouse, comprei outro teclado. Aí,
o que é que aconteceu? Ao longo do tempo, né? Eu fiquei com dores no corpo inteiro
que eu não conseguia espirrar, não conseguia vestir a roupa. Para ir ao banheiro era
difícil, abaixar para levantar a tampa do sanitário. Eu fiquei assim um tempão, um
tempão. Isso culminou na minha ida ao hospital. Aí, foi isso que aconteceu, entendeu?
Tudo isso resultou nessa crise que eu fiquei paralisado, paralisado.

127
Embora a ida ao hospital tenha garantido um atestado médico para o necessário descanso e
recuperação, o funcionário preferiu não usá-lo com receio de ser prejudicado na empresa. Já
em relação ao comprometimento do orçamento, o caso do funcionário Igor que era recém-
contratado no começo da pandemia é emblemático:

Aí, comecei a atender (empresa de streaming) em casa com o computador da minha irmã
porque o meu não atendia às necessidades da empresa né? Eles até... para quem já tava lá,
eles até ofereciam um computador da empresa, mas era um processo muito demorado. Se
eu tivesse optado pelo computador da empresa, eu não teria vindo para casa. Então...
porque ia demorar, né? Eu ia ficar mais tempo na operação. Inclusive, esses colegas (que
não tinham computadores em casa) nem foram para (empresa de streaming), foram para
uma outra operação pior. E estão no atendimento presencial até hoje porque eles vieram
para casa, mas logo depois a operação chamou de volta. Então, foi muito curto esse
período que eles ficaram em casa. Então, por receio, eu falei que eu tinha um
computador e peguei o da minha irmã. E foi a atitude mais... mais esperta, né? porque
senão, eu estaria na operação. Aí, peguei o computador da minha irmã e depois tive que
fazer um investimento porque eu precisei comprar um computador que atendesse às
demandas. No período da pandemia, computador ficou extremamente caro. Então, eu
paguei mais de R$ 3.000,00 pelo meu computador... para ganhar R$ 1.000,00 que é o
meu salário.

Todo esse improviso relatado é a marca da experiência que pode ser generalizada às outras
trabalhadoras e reflete o próprio improviso com que a empresa atuou no período. Houve casos
de trabalhadoras que atuavam em um produto presencialmente, mas assumiram funções em
outro ao ir para casa. Casos em que funcionárias realizavam um tipo de atendimento na
empresa – voz, tickets, formulários – e foram transferidas para outro quando no modelo
remoto. Algumas começaram a atender de casa sem treinamento para o tipo de função que
assumiram. Equipes inteiras começaram os atendimentos em home office e, depois de
semanas, foram chamadas de volta ao atendimento presencial. Todas essas mudanças foram
um fator adicional ao estresse causado pela crise sanitária.
As funcionárias têm passado por inspeções periódicas e sem aviso para a verificação da
adequação do ambiente. Há produtos que exigem fotos do cômodo em que o trabalho é
executado e outros em que os supervisores visualizam o ambiente por chamadas de vídeos em
tempo real:

Como eu trabalho com informações sensíveis, né? CPF de clientes, número de cartão de
crédito, todas essas coisas... A gente não pode estar perto de outras pessoas ou tá perto
de uma janela, por exemplo. Que alguém possa ver as informações. Na verdade, não vê,
né? Porque quase eu não vejo no computador, imagina alguém de longe... Mas eles têm
essas regrinhas. E aí, todo mês eles têm o clean desk para avaliar o nosso ambiente de
trabalho. Uma vez por mês, em um dia aleatório, eles pedem uma foto do nosso
ambiente de trabalho. (Igor, 24)

128
Algumas exigências da empresa não podem ser cumpridas pelas próprias limitações do
espaço físico onde moram as trabalhadoras. A privacidade exigida em nome da segurança dos
dados dos clientes é dificilmente assegurada para aqueles que moram com outros residentes.
No caso da funcionária Joyce que trabalha no mesmo quarto que divide com o marido, manter
o pacto confidencial exigido pela empregadora é uma completa impossibilidade: “Ele fica na
dele no celular. Na cama, de boas. Em total silêncio. E eu fico atendendo normal. Ele fica
ouvindo tudo.”. Essa falta de demarcação entre trabalho e casa faz com que Joyce mencione a
estranha sensação de estar em casa, sem estar em casa:

Joyce – Rapaz é aquela coisa: é muito difícil você separar trabalho e casa.
Principalmente quando você não tem esse espaço separado porque quem geralmente
trabalha de home office tem o seu escritoriozinho separado que você entra naquele
momento. Sai, fecha a porta e acabou-se. Não. Aqui eu tive que adaptar o meu espaço
ao trabalho. Isso foi o mais complicado.

Pesquisadora – Que tipo de adaptação você precisou fazer?

Joyce – Assim, eu falo mais da adaptação mental, né? Não foi tanto o físico porque eu
já tinha uma mesinha, eu já tinha uma cadeira, eu já tinha computador. Foi mais aquela
adaptação mental de entender que naquele momento eu estava trabalhando e não estava
em casa. É difícil você separar até porque você tá trabalhando, mas todas as outras
pessoas da sua casa estão funcionando como se tivesse em casa normal.

Com a transferência dos sistemas operacionais dos produtos para os computadores


pessoais das trabalhadoras, todos os problemas ocorridos no sistema presencial relacionados à
precariedade dos softwares também foram transferidos e começaram a se repetir no trabalho
remoto:

Quando eu cheguei em casa, eu fiquei duas semanas paradas esperando a liberação de


acesso. Porque como foi tudo muito rápido, acabou que muitas coisas não foram
liberadas para o computador pessoal. Quando foi liberado, era um sistema muito lento.
Eu estava em um processo de mudança. Então, eu tive que instalar internet às pressas.
No início, eu ia para casa da minha sogra para usar a internet lá, para poder acessar
porque em casa, eu ainda tava esperando a Brisa vir instalar, certo? Então, eu passei mais
ou menos uns cinco dias porque agendei com a Brisa e fiquei esperando a Brisa liberar e
vir instalar. Enquanto ela não vinha, eu tinha que ficar todo dia me deslocando até a casa
da minha sogra para não ter que ir para a (empresa), certo? Mais ou menos uma semana...
eu ia para lá, eu meio que não trabalhava. Eu ficava tentando acessar. Era seis horas só
tentando acessar. (Joyce, 22)

Neste caso, a funcionária não conseguiu trabalhar por não conseguir acesso ao sistema da
empresa. Essas falhas causadas por problemas dos softwares patronais acarretaram variados
problemas. Há funcionárias que ficaram dias sem trabalhar por não conseguir entrar no
sistema, outras que completaram duas semanas sem acesso. Casos em que a funcionária

129
conseguiu fazer o log in e cumprir a carga horária normalmente, mas o ponto não foi
registrado no sistema e outros em que o registro do ponto só foi feito três ou quatro horas
depois de iniciada a jornada de trabalho. Em todos esses casos, as horas paradas são
descontadas das horas extras já acumuladas no banco de horas das funcionárias e, caso não
haja acúmulo de horas, elas passam a “dever” horas de trabalho a serem pagas posteriormente.
Isto é, as horas passam a ser acumuladas em um “banco de horas negativo”.
Uma vez adquiridos ou comprados os equipamentos, contratados ou adequados os serviços
de internet e adaptada a estrutura física para o trabalho, problemas de outra ordem surgiram.
Mesmo que as funcionárias tenham internet cabeada em suas casas com a velocidade
requerida, a depender da região, o simples fornecimento não garante a conexão e velocidade
máxima em todos os horários. A rede também está exposta a oscilações, especialmente se
tratando de uma rede doméstica. Quando essas falhas acontecem, elas são obrigadas a ligar
para as prestadoras de serviços de telefonia e internet ou mesmo para a Companhia Energética
do Rio Grande do Norte (Cosern) solicitando o número de protocolo do incidente que
comprove a interrupção do fornecimento, justificando as horas não trabalhadas. Sem essa
justificativa, são aplicados os descontos. Depois de elencar os pontos positivos do home office,
apresentados mais à frente, Igor explica que se sente prejudicado por esse tipo de política:

Igor – Mas também existem os pontos negativos, claro, né? Se minha internet cair, a
responsabilidade é minha. Como aconteceu há umas duas semanas, caiu um fio aqui de
alta tensão no meu prédio. Eu fiquei sem energia, sem internet. E foi descontado do meu
banco de horas, né? É um imprevisto que eu não tenho como controlar e eu me prejudico.

Pesquisadora – E aí, você vai ter que trabalhar a mais depois para compensar isso?

Igor – Se eu não tiver horas positivas no meu banco, sim. E tem que ligar para a Cosern
pegar número de protocolo porque você tem que provar que realmente isso aconteceu, né?

Igor explica como essas falhas de conexão causam um efeito cascata, pois tanto
compromete o banco de horas das funcionárias, quanto prejudica os próprios índices
necessários ao alcance das métricas:

Existia um índice na (empresa de streaming) que era o recontato que contava


negativamente. Por exemplo, se você me ligasse, a ligação caísse e você me retornasse,
contava como se não tivesse resolvido o seu problema. Isso gerava um índice negativo
para mim. Então, eu sofri muito com isso da questão da qualidade da conexão. Só que aí,
eu evitava reclamar porque senão teria que voltar pra empresa. Aconteceu de colegas ter
que voltar: "Ah, então sua internet não presta? Então, volte pra empresa!". E não era o
que eu queria no momento. Não é o que eu quero ainda, inclusive. E aí, eu fui lidando,
né? com esses problemas. Fui passando pelas dificuldades. Não foi fácil.

130
O home office
Acompanhando Joyce que teve que fazer uma “adaptação mental” para o trabalho remoto,
tentando entender que estava trabalhando e “não estava em casa”, Laís também teve muitas
dificuldades para estabelecer as fronteiras entre tempo de vida x tempo de trabalho. Após um
período experimentando a liberdade de estar em casa, ela pondera:

Ao mesmo tempo que isso no começo foi muito positivo, eu percebo... depois de vários
meses, já trabalhando nesse contexto, os poréns, né? que assim... o meu quarto se tornou
o espaço que eu habito pra tudo. Assim... o lugar que eu vou dormir, que eu trabalho,
lazer. Então, é meio difícil. Assim, você perceber a fronteira... sabe? de uma coisa e da
outra. É... às vezes, por exemplo, eu acordo bem mais tarde. Em cima da hora. E aí, tipo...
parece que eu só levanto da cama e vou trabalhar, sabe? A fronteira fica meio nebulosa.
Eu acho que o que me mantém assim... as coisas que me sustenta mais é... outras coisas
que também são uma obrigação na minha rotina. Por exemplo, aula agora, né? que tem
um horário, um dia específico ou, sei lá, quando tinha algum evento virtual, né? Sei lá,
uma palestra em tal dia, tal hora ou, sei lá, a yoga que eu tava fazendo três vezes na
semana. Então, por exemplo, tem certas coisas, certas rotinas do dia que eu acho que me
traziam mais para as minhas coisas também, sabe? De: "Não, tá bom. Agora acabou o
trabalho! Agora eu tenho outras obrigações!". Mas... eu confesso que muitos dias...
especialmente quando eu não tenho, exatamente, alguma coisa para fazer depois, é meio
desgastante... assim. Porque termina o dia... o expediente, no caso, né? E aí, vem todo
aquele cansaço. E aí, eu só deito na cama que tá do lado. E aí, fico: "Tá, e agora? O que é
que eu faço?". E aí, quando eu fico naquele ciclo, né? Aquele vício, às vezes, de... sei lá...
computador ou celular, é pior ainda porque eu já tava ali na frente de uma tela por muito
tempo, né? por mais de seis horas. E aí, permanecer por mais tempo na frente de uma
tela cansa muito. O corpo, a vista. Esse eu acho que é um dos piores... maiores desafios,
na verdade, assim... Não posso te falar, por exemplo, que descobri, ainda, como lidar
com essa fronteira porque é uma coisa que me pega assim... sabe? Porque eu acho que só
isso de você se deslocar para fora de casa, de você se arrumar, botar uma roupa diferente
e tirar essa roupa quando você chega em casa, eu acho que já te coloca... já te condiciona
pra determinado... é... sensação. Para aquele determinado contexto. E aí, quando você
não faz isso, é difícil.

Um problema significativo que prejudicou a marcação dessas fronteiras é que alguns


produtos modificaram completamente o sistema de escalas e folgas. Embora as funcionárias
devessem cumprir em casa a mesma carga horária de seis horas que cumpriam na empresa, no
mesmo turno de trabalho, no período inicial de home office as escalas mudaram, passando a
não ser mais divulgadas previamente. Não era dado às trabalhadoras sequer a oportunidade de
planejar o próprio dia. Elas foram obrigadas a viver diariamente em uma espécie de
“suspensão do tempo”. Isso acontecia porque precisavam aguardar as resoluções da empresa e
dos produtos, sempre esperando as determinações de quando e como deveriam exercer suas
atividades. Às 07:51h da manhã, esta funcionária ainda não sabia se ia trabalhar ou não
naquele dia:

131
Print de mensagens trocadas entre as interlocutoras em aplicativos de mensagens

As escalas, que no regime presencial eram divulgadas no começo do mês, deveriam ser
divulgadas aos domingos no trabalho remoto, mas não eram definidas nem semana a semana.
O que fazia com que as trabalhadoras acordassem sem ter a mínima ideia se iriam trabalhar ou
não naquele dia.
Nessa indefinição, o tempo das funcionárias foi completamente disponibilizado para os
interesses da empresa. Em virtude do aumento da demanda dos produtos, folgas semanais
combinadas com folgas decorrentes de acúmulo de horas extras que, anteriormente, poderiam
ser desfrutadas em dias seguidos, foram abolidas. As mudanças em relação às regras tanto de
acúmulo como de dívidas de horas extras foram feitas sem negociação com as funcionárias e
sem supervisão do sindicato, cuja atuação não foi identificada pelas funcionárias em nenhum
momento da pandemia. Quando os produtos finalmente se organizaram e a rotina se
estabilizou, começaram os esforços para a demarcação dos limites do trabalho em casa.
Um outro fator importante foi o aumento no volume de atendimento de determinados
produtos devido a permanência dos consumidores em casa. Mesmo sendo transferida para um
produto de entretenimento, considerado por todas as funcionárias como “o mais humanizado
da empresa”, Luana considera que o ritmo de trabalho foi o que tornou a experiência
angustiante:

Foi bem difícil. Assim, é... eu vou falar porque quando começou a pandemia em março
aqui em Natal, eu entrei de férias. Então, eu passei o mês de março de férias. E começou
a pandemia com tudo, né? A (empresa) começou a mandar o pessoal para casa. E eu em
casa sem saber o que ia acontecer comigo. Então, o que foi que aconteceu comigo
quando eu cheguei? Eu voltei em abril e passei uma semana trabalhando lá, duas

132
semanas... E eles estavam remanejando as pessoas para outros produtos. Eu estava muito
aflita de sair do meu produto que eu gosto para ir pra outro. E foi o que aconteceu. Me
colocaram na (empresa de streaming) e em uma célula de voz. Eu já tava muito
desesperada. Eu falei com uma amiga que tava lá, mas ela tava absorvendo coisas
positivas: "Olha, tenta porque é legal. Você vai conseguir se adaptar. Você vai se dar
bem com as pessoas. Então vai ser legal.". Mas assim, foi bem difícil, sabe? Em abril, aí
eu fui para a (empresa de streaming). Passei por esse treinamento. Passei o quê? cinco
meses na (empresa de streaming) trabalhando de casa, né? Em voz. Uma coisa assim
bem restrita: porta fechada, eu não conseguia fazer nada. Não conseguia ir no banheiro,
tinha que botar a pausa. Uma pandemia... todo mundo assistindo a (empresa de
streaming) ao mesmo tempo. Menina, olhe foi um terror. Mas assim... não um terror pelo
trabalho que eu tava exercendo, mas assim por tantas ligações. Uma atrás da outra. Eu
tava enlouquecendo. Mas os clientes da (empresa de streaming) são clientes assim... de
boa. Não tem muita gente ignorante, sabe? Muita gente assim... leiga, né? Porque
(empresa de streaming), você sabe, né? tem que mexer na televisão, tem que mexer no
celular. Então, era mais difícil assim. Tinha que ter muita, muita paciência. Mas assim, o
fato de eu não conseguir sair da cadeira. Minhas costas... Era tudo cronometrado.

Luana entende que esse fluxo poderia ter sido menos penoso, caso a empresa também
tivesse aumentado o número de funcionárias realizando novas contratações, mas não foi o que
aconteceu.
Trabalhar em casa no meio de uma pandemia significa enfrentar uma rotina inalterável,
sem os rituais de saída e chegada do trabalho para demarcar as bordas entre o espaço em que
se trabalha daquele onde se descansa. Entretanto, essa confusão não foi sentida por todas as
entrevistadas. Para Rosa, a instabilidade que julga ser a característica mais frustrante de se
trabalhar no setor, acabou por beneficiá-la no trabalho remoto. Durante a pandemia ela foi
transferida de produtos por três vezes e atuou em três modalidades diferentes de atendimento.
Em entrevista concedida em 17 de setembro de 2021, ela explica que estava trabalhando no
atendimento por voz, mas quando foi transferida para o home office passou a trabalhar com
tickets. No final das contas, a mudança garantiu que a experiência dela fosse a mais tranquila
de todas as entrevistadas. Para Rosa, não houve dificuldades de estabelecer limites entre a
vida em casa e o tempo dedicado ao trabalho:

Rosa – Pronto. Assim, não se mistura tanto no meu caso. O trabalho, ele acaba sendo
algo bem... bem separado, né? Ainda mais agora que eu tô em casa e sendo ticket. Às
vezes, parece que eu não tô nem trabalhando (risos). De tanto que eu fico é... assim
voando, né? Assim, nem trabalho direito (risos). Mas... porque para mim é uma coisa
que passa muito rápido, entendeu? Eu trabalho... eu tô trabalhando agora de 1h até às
7:20h e não tem interferido tanto assim no meu tempo. Não é algo que eu penso muito
porque não tá sendo mais estressante. Agora quando tava sendo estressante, eu
compartilhava com as minhas amigas da faculdade, compartilhava com meu esposo. E
eles davam umas opiniões, não sei quê... se eu deveria sair. Mas agora eu quase nem falo
porque tá tão tranquilo que não tenho nem o que falar.

Pesquisadora – Então, na verdade, foi a mudança de produto que te deu essa


tranquilidade? Julguei certo?

133
Rosa – Exatamente. Isso. E a modalidade também, né? De atender ticket em vez de voz
porque voz é muito estressante, muito estressante mesmo. É o pior. É o pior. O pessoal
sempre fala que é o pior.

Algumas trabalhadoras não acusam mudanças drásticas na rotina, mas apontam elementos
específicos que o trabalho em casa acabou trazendo para o dia a dia. São detalhes que
perceptivelmente ajudaram a aliviar a carga de estresse experimentado no ambiente da
corporação. Perguntado sobre o que tinha mudado em sua rotina desde que começou a
trabalhar em casa, Ricardo alega que nada mudou, mas, logo depois, dá pistas de como estar
em casa permitiu um certo relaxamento das obrigações que não poderia ser reproduzido na
empresa:

Para mim é a mesma coisa. A única coisa boa é que agora eu consigo comer na frente do
computador. É... digamos assim... se, às vezes, eu não quero produzir, eu não produzo.
Eu pego o celular, olho meme, alguma coisa e volto... tô conversando com outra pessoa...
Não deixo de fazer, claro. Não fico dez minutos sem mexer, essas coisas. Eu não fico
mais de dez minutos mexendo em alguma coisa fora do meu expediente, nem nada do
tipo. É... Às vezes, que eu precisar me levantar, eu me levanto para ir no banheiro, para
resolver alguma coisa... que eu moro com os meus (parentes idosos), que os meus
(parentes idosos) vieram morar com a gente também. E, às vezes, eu tenho que fazer
alguma coisa para eles. Eu vou... me levanto sem precisar ficar botando pausa que isso ia
me prejudicar lá dentro. E sem eles ficarem me caningando. Então, eu me levanto e faço
o que eu tenho que fazer na hora que eu quiser. Se eu quiser levantar para esticar as
pernas e tomar um sol na área, eu vou e pronto.

Destacando todas as atividades que não poderiam ser feitas na empresa e passaram a ser
possíveis no trabalho remoto, é possível contrariar a fala de Ricardo e perceber que muita
coisa mudou:

1 - “Comer na frente do computador.”


2 - “Se eu não quero produzir, eu não produzo.”
3 - “Eu pego o celular, olho meme, alguma coisa e volto... tô conversando com outra
pessoa...”
4 - “Se eu precisar me levantar, eu me levanto para ir no banheiro, para resolver alguma
coisa...”
5 - “Eu moro com os meus (parentes idosos). Às vezes, eu tenho que fazer alguma coisa para
eles.”
6 - “Me levanto sem precisar ficar botando pausa que isso ia me prejudicar lá dentro.”
7 - “E sem eles ficarem me caningando.”
8 - “Então, eu me levanto e faço o que eu tenho que fazer na hora que eu quiser.”
9 - “Se eu quiser levantar para esticar as pernas e tomar um sol na área, eu vou e pronto.”

Esses são os elementos que resumem, de maneira geral, a experiência do home office para
os sujeitos da pesquisa e que contrapõe a piora objetiva das condições de trabalho em relação
à transferência de custos, à inadequação do espaço e comprometimento de banco de horas e
outras questões que estão sendo exploradas ao longo do texto.

134
O home office trouxe (1) mais tempo para as trabalhadoras comerem; em alguns casos, (2)
permitiu uma certa autonomia que desafogasse o ritmo incessante de trabalho; (3) trouxe
momentos de distrações durante o expediente que ajudam a aliviar as tensões; (4, 8, 9)
desmantelou o controle estrutural da empresa dando espaço para um maior controle de
movimentos e cuidados com o corpo; (5) proporcionou maior convívio com familiares; (6)
possibilitou o uso de artifícios para que as funcionárias burlem as regras sem serem
prejudicadas pelas métricas; e, finalmente, (7) afrouxou a vigilância hierárquica.

Sistemas de controle de produção e vigilância


No que se refere aos esquemas de colonização das subjetividades das trabalhadoras,
identificados nessa pesquisa como sistema de controle de produção e sistema de vigilância, a
dinâmica do home office acabou causando um relaxamento discursivo inicial do primeiro e,
como demonstra Ricardo, um significativo afrouxamento do segundo.
No caso do controle de produção, houve um período de ajuste dos sistemas operacionais
da empresa para funcionarem nos computadores domésticos. Em casa, as funcionárias abrem
em seu computador pessoal um outro computador virtual para trabalhar semelhante ao do
regime presencial. Contudo, ao contrário do que acontecia na empresa, este computador
virtual pode ser minimizado como uma outra janela, sendo possível alternar entre as duas
interfaces. Isso permite que a funcionária continue tendo acesso aos dados do seu computador
pessoal.
Os procedimentos foram vinculados aos smartphones das funcionárias para aumentar o
nível de segurança das operações. Porém, nem sempre eles estavam em sincronia com o
sistema do computador virtual. Esse descompasso levou alguns produtos a serem
ligeiramente maleáveis na cobrança de resultados, tanto em relação às metas quanto a um
certo abrandamento das abordagens dos supervisores, ponto melhor explicitado nas
considerações sobre vigilância. Isso não significa dizer que as metas foram diminuídas, na
verdade, elas continuaram as mesmas do regime presencial, mas a pressão pelo seu
cumprimento foi, de certa forma, aplacada. Todo o controle das métricas foi mantido,
realizado pelos sistemas operacionais da empresa e produtos:

Assim é a mesma coisa na (empresa) porque assim... o computador, como eu lhe falei,
ele era um computador virtual. Então tinha como acompanhar tudo, certo? E o horário
disponível. Quando você entra, você já coloca que tá disponível, entendeu? Você abre lá
tem um espaçozinho onde você coloca: “disponível”, “pausa”, “almoço”, entendeu?
Então a gente ia marcando lá. Tando disponível não tinha nem como colocar
“disponível” e sair porque lá tá dando disponível e chega as ligações. Então é pelo

135
horário que você tá disponível, entendeu? Da hora que você entrou à hora que você saiu.
E bater o ponto. (Joyce, 22)

As variações ocorridas dizem respeito às mudanças no perfil de consumo causado pela


permanência da população em casa. Os serviços de entretenimento, mídias sociais e entregas
de comida aumentaram, enquanto os de transporte individual, por exemplo, diminuíram. Em
razão disso, em maio de 2021 se discutia a diminuição de metas para alguns produtos que
perderam consumidores. Para aqueles que receberam um incremento na solicitação de
serviços restou às funcionárias lidarem com a sobrecarga de trabalho.
Em maio de 2021, depois de um ano de trabalho remoto, solicitei às trabalhadoras que me
atualizassem sobre suas experiências em casa, tentando detectar quaisquer mudanças
ocorridas depois de encerrado o ciclo de entrevistas, realizado em fevereiro do mesmo ano.
Existem distinções pronunciadas na experiência desses sujeitos que podem considerar o
trabalho mais ou menos opressivo, dependendo do produto para o qual prestam serviço e do
tipo de atendimento que executam. Ainda assim, pode-se afirmar que a falta de padronização
dos procedimentos e a desorganização típica do setor foi aprofundada com o atendimento em
casa. A lentidão da adequação dos softwares contribuiu para os problemas. É o que defende
Ricardo:

Na verdade tá tudo uma bagunça. Então, assim... não permanece igual, tá sempre
mudando. Inclusive, o nosso atendimento também mudou. Então, a gente tá fazendo
tarefas que não são nossas, tudo errado. Inclusive, nem as coisas oficiais da empresa
estão funcionando mais. A piora foi em relação ao nível de funcionamento da empresa
mesmo. Em relação a feedback, monitorias, atualização de processos... que tá tudo uma
bagunça. mas continua a mesma coisa (em relação às metas). Só a empresa... o
atendimento da empresa que piorou e muito.

Ricardo alega que em março de 2021 foi promovido de função, não recebeu treinamento,
nem instruções e está trabalhando completamente sem supervisão. Além disso, apesar de ter
sido promovido, ele continua realizando as funções do seu cargo anterior e também tem que
cumprir outras obrigações que entende não serem da competência dele, como desenvolver
protocolos de atendimento para o produto que é novo no mercado. Segundo ele, a quantia
adicional que deveria receber há dois meses pela promoção ainda não foi paga. O caso de
Ricardo, promovido sem treinamento, não é regra, nem pode ser generalizado para todos os
produtos, mas atende à lógica esperada de desenvolvimento de estratégias individuais de
adaptação às mudanças repentinas da corporação.
Um amigo da funcionária Larissa está passando por treinamento para ser supervisor e uma
das orientações que ele recebeu foi que, ao assumir a função, não estaria lá “para ensinar

136
ninguém”. Como referido, segundo os líderes e supervisores não há "professores" nos quadros
da empresa, mas "facilitadores", não há trabalhadoras, mas “colaboradoras”, portanto, são elas
mesmas que devem desenvolver os próprios caminhos para realizar o trabalho.
Este é outro exemplo de como o discurso neoliberal é aplicado no call center, "ser
empreendedor de si mesmo" no setor significa adotar estratégias eficazes para a execução do
trabalho, ainda que as ferramentas necessárias não tenham sido devidamente disponibilizadas
pelo empregador. Disfarçado discursivamente de estímulo à autonomia, à auto gerência e ao
desenvolvimento de novas habilidades, a inoperância da empresa é traduzida em uma das
frases mais presentes nos relatos das trabalhadoras sobre a essência do que é trabalhar nesse
ramo: "Tem que aprender a se virar!". A capacidade de adaptação ao sistema é um requisito
para a moral neoliberal:

Mais ainda, a política neoliberal deve mudar o próprio homem. Numa economia em
constante movimento, a adaptação é uma tarefa sempre atual para que se possa recriar
uma harmonia entre a maneira como ele vive e pensa e as condicionantes econômicas às
quais deve se submeter. Nascido num estado antigo, herdeiro de hábitos, modos de
consciência e condicionamentos inscritos no passado, o homem é um inadaptado crônico
que deve ser objeto de políticas específicas de readaptação e modernização. E essas
políticas devem chegar ao ponto de mudar a própria maneira como o homem concebe
sua vida e seu destino a fim de evitar os sofrimentos morais e os conflitos inter ou
intraindividuais. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 87)

O discurso sobre a importância de ser “multi skill”, “raciocinar rapidamente”, “estar


sempre pronta para mudanças”, além do necessário “profissionalismo” encobre o fato de que
essas são estratégias forjadas para que a empresa não capacite adequadamente suas
funcionárias. Dessa forma, espera que elas elaborem, sozinhas, maneiras de oferecer um bom
atendimento aos consumidores, se utilizando das habilidades e capacidades intelectuais
desenvolvidas pelas trabalhadoras sem nenhum ônus para a empregadora. Esses mecanismos
são apontados por Dardot e Laval (2016, p. 223) ao explicar o conceito de "filosofia da
Liberdade" de Peter Drucker, abordado mais à frente:

Assim, o gestor tenta captar as energias individuais, não de acordo com uma lógica
“artista” ou “hedonista”, mas segundo um regime de autodisciplina que manipula as
instâncias psíquicas de desejo e culpa. Trata-se de mobilizar a aspiração à “realização
pessoal” a serviço da empresa, transferindo exclusivamente para o indivíduo, contudo, a
responsabilidade pelo cumprimento dos objetivos. O que, evidentemente, tem um alto
custo psíquico para os indivíduos.

Os frutos obtidos nesse aprendizado são extraídos sem que a corporação precise investir na
formação de suas empregadas. O escoamento de graduados para o call center comprova esse
movimento. O setor está recebendo um contingente de trabalhadoras altamente qualificadas,

137
oferece treinamentos de baixa qualidade e extrai desse público o máximo possível de seus
conhecimentos, até que elas encontrem lugar no mercado de trabalho em suas áreas de
formação e decidam sair do setor. As profissionais que abandonam o call center, saem do
setor sem ter desenvolvido qualificações especiais e não se tornam especialistas em nenhum
conhecimento específico.
Por isso, o diagnóstico de alguns autores de que o call center é um ambiente de "baixa
qualificação", no momento atual, deve ser lido como aquilo que é oferecido às trabalhadoras
que ingressam no setor. Apesar de o requisito para trabalhar na empresa ser apenas ter ensino
médio completo, as exigências para a vaga não permitem classificar essas trabalhadoras como
profissionais de baixa qualificação. Elas precisam ter um bom nível de letramento digital, isto
é, precisam ser familiarizadas com computadores, internet e redes sociais, além de demonstrar
bom domínio da língua portuguesa e um bom nível de comunicação.
Ricardo é um dos exemplos de profissional qualificado que vem passando por diferentes
funções contando apenas com a própria capacidade de aprendizado e adaptação,
desenvolvendo protocolos de atendimentos sem causar maiores custos à empresa. Ele ilustra o
processo descrito por Ursula Huws (2017, p. 314) de apropriação dos conhecimentos das/dos
profissionais de escritório que, ao vender sua força de trabalho para empresas de tecnologia,
viram seus conhecimentos transferidos para softwares. Estes, por sua vez, eliminaram os
postos de trabalho das/dos profissionais: “O conhecimento mercadorizado dos trabalhadores
fornece, assim, a matéria-prima para a expansão do capital.”, conclui a autora.
A lentidão na adequação dos sistemas descritas por Ricardo teve um revés relatado por
Cazé ao me atualizar sobre suas condições de trabalho em maio de 2021. Ele conta que houve
um esforço de desenvolvimento técnico da área de tecnologia da informação da empresa para
sanar os problemas de software, desenvolver ferramentas mais precisas e eliminar a
dependência do smartphone. Essas ações estão sendo articuladas para que a empresa possa
voltar ao mesmo nível de exigências anterior à pandemia. Em outras palavras, o investimento
que vem sendo feito para a melhoria dos serviços, visa a eficiência e aumento da
produtividade e do controle das empregadas, não das condições de trabalho.
Não havendo modificação na captura e processamento da produção, o relaxamento inicial
das cobranças por produtividade se deu, especialmente, devido a adaptação dos sistemas
operacionais que nem sempre funcionavam corretamente e isso se refletiu nas atitudes de
alguns supervisores. Os problemas técnicos estão sendo gradualmente resolvidos até que, um
ano depois do início da pandemia, a empresa já começa a aplicar a mesma rigidez de
cobranças do sistema presencial.

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Se houve um ritmo mais frenético de trabalho para as empregadas que estão alocadas em
produtos cuja demanda aumentou com o isolamento social, com o ajuste dos softwares
responsáveis pelas métricas, podemos igualmente prever o aumento do estresse. Os produtos
que perdem consumidores não conservam funcionárias ociosas. Se o volume de atendimentos
cai, o que costuma acontecer é que a empresa diminua o número de operadoras nesse produto
e as remaneje para aqueles que tiveram um aumento de demanda. Portanto, a queda no
número de consumidores não significa, necessariamente, a diminuição do ritmo de trabalho. O
que acontece, na prática, é a concentração desse atendimento reduzido em um número
também reduzido de agentes e realocação das excedentes.
O sistema que mais apresentou mudanças foi o de vigilância. O ecossistema panóptico
engendrado para vigiar as funcionárias teve que ser reconfigurado com a adoção do trabalho
remoto. Houve a tentativa de transferência do controle estrutural presente na empresa para o
home office, mas ela foi ineficiente. A obediência das funcionárias às exigências em relação à
disposição ambiental de suas casas, a vigilância da checagem periódica sobre os objetos que
se encontram no mesmo espaço e a proibição da presença de terceiros no mesmo ambiente
enquanto o trabalho está sendo executado são puramente fictícias. As adaptações feitas pelas
funcionárias favoreceram apenas a melhoria do ambiente para o seu conforto e cumprimento
das funções. Laís atesta que houve uma sensação maior de liberdade:

Quando eu finalmente vim para casa, no começo, assim... era uma maravilha! Tipo... eu
até ficava brincando com as colegas da equipe que “Ah, nossa! Eu vou ficar atendendo
de biquíni! (Risos). E aí... Porque tava esse medo. Assim... de que: “Ai, será que a gente
vai ficar com a câmera ligada? Que vão ter que ficar vigiando a gente o tempo todo? E aí,
depois se soube que não, que a gente não ficaria com a câmera ligada e tal. Eu, com
medo até colocava um adesivo cobrindo (Risos). Mas, isso já era uma liberdade assim...
essas primeiras liberdades foram impensadas, assim... porque como eu tinha te falado, o
ambiente lá é muito rígido, né? A gente não podia entrar com nada na operação e tal. E
aí, tipo... você na sua casa, você tem acesso a tudo, né? Então, assim... muita coisa que
eu faço, inclusive, que outros colegas fazem também. Eu sei porque alguns me contam.
E outras coisas que a gente não conta, mas que sabe que faz também. Enfim, coisas que a
gente faz no home office que supostamente não poderia, entendeu? Tipo... a gente não
poderia ficar com o celular, mas a gente fica. É assim, se não tá chegando o contato, fica
com o celular. Isso é uma coisa que não poderia na época da operação.

Como exemplificado por Laís, a distância da sede da empresa, dos supervisores e entre as
próprias funcionárias promoveu uma fragmentação que enfraqueceu todo o sistema de
vigilância. O compartilhamento do ambiente com outros residentes afetou o controle
discursivo e suas proibições acerca de comentários sobre a realidade do trabalho ou sobre os
produtos para os quais os serviços são prestados. Não há muito como esconder a rotina de

139
trabalho, ocultar o nome dos produtos e preservar o sigilo dos atendimentos quando se divide
o mesmo cômodo em que se trabalha.
Os contatos que as funcionárias mantêm com as colegas se resumem a treinamentos e
reuniões coletivas com supervisores ou líderes e, para quem construiu um círculo de
amizades, grupos de aplicativos de mensagens pessoais, sem a participação de supervisores.
Esses grupos aparecem nas entrevistas como elementos agregadores da experiência em que
desabafos, frustrações e companheirismo são compartilhados. No regime presencial, o traço
mais importante estimulado pela empresa na relação entre as trabalhadoras era a competição,
ainda que esse estímulo fosse limitado pela criação de laços afetivos entre elas:

Por exemplo, atualmente é um componente-padrão de qualquer pacote de softwares


utilizado para entrada de dados o monitoramento rigoroso da performance de seu
operador, por meio da contagem do número de toques por minuto no teclado, da taxa de
erro, do número de ítens com os quais se trabalhou, da duração e da frequência das
pausas, ou de qualquer outra variável útil ao empregador. Isso pode ser utilizado para
policiar os trabalhadores tão eficazmente quanto muitos dos métodos tradicionais de
supervisão. Algumas companhias refinaram ainda mais tais métodos de controle,
explorando a solidariedade entre os trabalhadores para impulsionar a produtividade.
(HUWS, 2017, p. 58)

A despeito de ter um papel importante (como será visto mais à frente), no trabalho remoto,
esse contato não é suficiente para estabelecer o mesmo nível de vigilância dos pares e
estímulo à produção coletiva como acontecia com o trabalho presencial. O estímulo à
competição e a “exploração da solidariedade” de que fala Huws acima, demonstrou ter seus
limites. Não houve relatos sobre denúncias de colegas que, por exemplo, não estivessem
cumprindo determinações da empresa como foi comum nos relatos do Capítulo 3, embora se
trate de uma corporação que estimule esse tipo de prática.
A pandemia, por si só, atuou sobre o controle externo e a fragmentação causada pelo
trabalho remoto comprometeu o controle social horizontal e o controle hierárquico. Nos dois
últimos casos, a distância física do ambiente anteriormente compartilhado foi determinante.
Obviamente, os supervisores continuam sendo um elemento importante da vigilância porque
são a ponte direta entre trabalhadoras e corporação. Eles estão em constante contato com suas
subordinadas, monitorando o cumprimento ou não de metas e a execução do trabalho.
Todavia, a eliminação do controle visual onipresente, a alteração das dinâmicas de feedback e
das monitorias que podiam ser percebidas e enxergadas por todos na operação presencial,
diminuiu o peso dessa vigilância consideravelmente.
Ademais, a maioria das entrevistadas relata que o nível de cobranças arrefeceu em razão
da pandemia e que seus supervisores se tornaram mais compreensivos com suas dificuldades.

140
Ao explicar que há maneiras de burlar a rigidez das métricas, por exemplo, Luana ilustra a
mudança na relação com o supervisor:

A pausa tá lá no nosso sistema pra ser tirada. Mas assim... hoje, em regime de home
office, a gente não tem nenhum...assim... sistema de botar a pausa. A pausa aparece
para mim: “Ó, você tem que botar pausa de 10:10h da manhã, até 10:20. Mas eu não
sou obrigada a tirar nesse horário. Eu não estou sendo controlada, entende? Eu consigo
fazer minhas pausas. Eu estou entregando a minha meta, a minha produção. Eu sei... eu
sei que eu tenho que produzir para poder tirar a minha comissão. Então, só depende de
mim. E eu acho que assim... se alguém me falar que tá no mesmo regime que eu, na
mesma célula de (formulários), disser assim "Eu tiro minhas pausas certas.". Não. Para
mim, isso é mentira porque você tem... você tendo uma flexibilidade de tá aqui... Eu tô
no meu ritmo: “Ah, chegou minha pausa. Não vou tirar agora, não. Vou tirar daqui a
pouco!". É tanto que o meu supervisor falou: "Luana, se você quiser tirar as três pausas
juntas, tirar trinta minutos de descanso, você tira!". Ou seja, quando ele me disse isso,
eu: "Oxe! Então eu consigo tirar as minhas pausas como eu quero!”. Quando eu tiver
melhor, quanto tiver mais cansada, eu tiro os meus dez minutos ou tiro meus vinte,
entende? Assim, eu consigo na minha função hoje, eu consigo ter essa flexibilidade de
tirar as pausas no momento que eu achar melhor para mim. E o meu supervisor nunca
falou: "Ah, tem que ter as pausas no momento correto!”. Nunca tive essa cobrança
depois que eu tô em home office. Você consegue trabalhar mais tranquilo. Não tem
muito estresse de supervisor no seu pé.

A transferência da produção para o controle doméstico e a consequente concentração de


todo o sistema panóptico de vigilância no controle técnico e supervisores iniciou um período
de adaptação de ferramentas, o que acabou ocasionando um esmorecimento sensível dos
efeitos da hierarquia. Logo, o elemento mais forte da vigilância panóptica no home office se
dá no controle técnico. Com todas essas dinâmicas, consequentemente, o ecossistema
panóptico do regime presencial sofreu uma reconfiguração no home office e agora se
apresenta concentrado em dois elementos:

141
Ecossistema panóptico do trabalho remoto

O enfraquecimento de certos elementos do ecossistema não deve, porém, ser encarado


como um sinal de enfraquecimento completo da vigilância. A fala de Luana: “Eu estou
entregando a minha meta, a minha produção.”, “Eu sei que eu tenho que produzir para poder
tirar a minha comissão.” e “Então, só depende de mim.” comprova que a adoção do home
office não afetou os índices de produtividade e só foi possível justamente porque a vigilância
estabelecida no regime presencial já foi eficientemente internalizada.
Dardot e Laval também destacam as discussões de Michel Foucault sobre a racionalidade
panóptica neoliberal expressa na noção de “governamentalidade”, ou seja, no “autogoverno
do indivíduo” que traduz o esforço de “produzir certo tipo de relação deste consigo mesmo.”.
São noções que dialogam com a ideia de “filosofia da gestão” formulada por Peter Drucker
(Apud DARDOT; LAVAL, 2016, p. 222) e que os autores explicam ser baseada na ideia de
“autocontrole”. Drucker defende que esse mecanismo promove uma “nova prática de governo
dos assalariados” com um poder de eficácia muito maior do que qualquer tipo de coerção
externa. Com o “autogoverno”, há uma substituição do "controle feito de fora pelo controle
feito de dentro, muito mais estrito, exigente e eficaz". O indivíduo não age por uma resposta a
qualquer tipo de comando externo, mas pela necessidade de realização da própria tarefa que
executa. Segundo Drucker, essa internalização leva o indivíduo a cumprir a tarefa por decisão

142
própria "em outras palavras, ele agirá como um homem livre.". A “filosofia” da gestão
formulada por Drucker resume a bem-sucedida estratégia neoliberal para que o seu ideário
seja absorvido pela linguagem, apropriado pelo psiquismo e percebido como um traço de
personalidade: “Essa ‘filosofia da liberdade’, que tem aplicação universal, ‘assegura o
desempenho, transformando necessidades objetivas em objetivos pessoais. Essa é a própria
definição da liberdade – a liberdade no quadro da lei.’”.
No final do mês de maio de 2021 já era perceptível o esforço da empresa para eliminar os
problemas operacionais do sistema. Novos softwares começavam a ser incorporados visando
reproduzir no trabalho remoto o mesmo nível de rigidez obtido anteriormente à pandemia
tanto em termos de produção, quanto em termos de vigilância. No início do trabalho remoto o
número de protocolo de atendimento, juntamente com o número da ocorrência que gerou
interrupção do fornecimento de energia ou da conexão de internet bastava para justificar horas
de trabalho paradas. Com esses comprovantes a funcionária não sofria descontos ou horas a
ser pagas incluídas no seu banco de horas. Porém, em maio de 2021 já havia uma escalada nas
exigências de comprovação da interrupção dos serviços, pois a justificativa só era aceita se
acompanhada por uma cópia do laudo técnico da empresa responsável. É o que atesta Cazé:

Desde que eu comecei a trabalhar em casa que eu fui percebendo uma transição muito
grande né? Quando a gente começou, era de uma certa maneira... é... muito mais solta,
né? O pessoal tava aprendendo ainda como é que... como é que era trabalhar em casa,
como é que é esse home office. Mas, à medida que o tempo vai passando, vão surgindo
softwares, vão surgindo ferramentas, né? E o que acontecia... a dinâmica que acontecia
dentro da empresa, ela começa a ser reproduzida em casa também, né? E que dinâmica é
essa? A própria vigilância... por exemplo, o próprio controle. Eles têm desenvolvido
ferramentas, né? cada vez mais semelhantes às que a gente usava lá na operação, no piso,
né? na empresa presencialmente. Então, o que é que acontece? Hoje eu não tava... eu não
tava logado não, quando isso aconteceu. Mas, hoje o pessoal recebeu uma notícia que
todo mundo vai ser obrigado a instalar um software no computador, além do que a gente
já instalou para poder logar, né? E esse software ele bloqueia a tela. Ele bloqueia o seu
computador para ficar travado apenas e somente... é... na máquina virtual que a gente
utiliza para trabalhar. Então, você não consegue minimizar a máquina (virtual) e abrir
coisas do seu computador. Fica travado durante todo o período que você tiver
trabalhando. Aí, falaram também que vão utilizar outra ferramenta lá, vão baixar outra
ferramenta. Não agora, né? Que acho que é Sentinel30, alguma coisa assim... que é um

30
Em vídeo de apresentação do programa Azure Sentinel no canal Microsoft Mechanics, o apresentador explica
que este é um programa capaz de monitorar todas as atividades do usuário do computador dispostos em uma
timeline. Os dados revelam, entre outras coisas, todos os sites visitados, todas interações feitas entre o usuário e
diferentes hosts, inclusive, revelando os IPs envolvidos nessas conexões. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=XXZp6LQZSJU>. Acessado em 29 de maio, 2021. O programa Azure
Sentinel é descrito no site oficial da Microsoft como “uma solução escalonável e nativa de nuvem para
gerenciamento de eventos e informações de segurança (SIEM) e resposta automatizada de orquestração de
segurança (SOAR) . O Azure Sentinel oferece análise inteligente de segurança e inteligência contra ameaças em
toda a empresa, fornecendo uma única solução para detecção de alertas, visibilidade de ameaças, procura
proativa e resposta a ameaças. O Azure Sentinel é sua exibição geral da empresa, amenizando o estresse de
ataques cada vez mais sofisticados, volumes crescentes de alertas e longos períodos de resolução. Colete dados
na escala de nuvem de todos os usuários, dispositivos, aplicativos e infraestrutura, local e em múltiplas nuvens.

143
programa também muito famoso para coletar informações. E aí, esse programa pode
acessar o computador, ativar a câmera, ativar microfone. Tá uma parada assim: surreal!
Então, hoje foi um caos, um caos, um caos, um caos. Eu não sei todas as informações
porque eu não tava hoje, né? Mas hoje foi um caos por causa dessas ferramentas. Então,
basicamente, o seu computador, pelo menos durante o seu horário de trabalho, vai ser
dedicado exclusivamente à (empresa). E depois que você terminar, as ferramentas vão
continuar lá. Então, sabe-se lá que tipo de informações elas podem extrair do nosso
computador. Então, se presencialmente a gente utilizava a máquina da (empresa),
completamente controlada pela (empresa), com 30 milhões de câmeras direcionadas na
nossa cara, um supervisor no final da espinha numa cadeira alta para observar a gente e
outros superiores dentro da sala de vidro olhando para gente de longe. A gente tem
agora... A gente tem a mesma coisa agora em casa, né? A gente tem um computador
cheio de ferramenta lá que pega tudo que é dado nosso, né? que observa todas as nossas
atividades e direciona tudo, tudo, tudo, tudo, tudo o que a gente tá fazendo pra (empresa).
Então é isso. Então, quando eu falo pra você que você pegou um tempo legal para pensar
home office é porque teve uma transição absurda, absurda, absurda. Então é isso, né? Tá
ficando cada vez mais parecido com o que era presencialmente. Assim, né? tá muito
mais rígido. É... controlado pela empresa. (Cazé, 23)

A fala de Cazé se alinha ao explicitado por Hannah quando ela menciona que a tela do
computador nas operações é bloqueada em poucos segundos de inatividade, o que obriga a
funcionária a estar sempre movimentando o mouse ou manipulando o teclado. O bloqueio da
tela deixa a trabalhadora “inaderente”, prejudicando suas métricas. Ou seja, ela é obrigada a
produzir ininterruptamente.
Em casa, o tempo entre um atendimento e outro pode servir para que as funcionárias
minimizem o computador virtual da empresa, acessando o próprio computador. Os segundos
de inatividade podem, agora, permitir momentos de "fugas" do trabalho para as funcionárias.
Os softwares de que fala Cazé taylorizam de vez a experiência do home office. Alcançam o
fim último da racionalidade neoliberal, agora aplicada no ambiente doméstico: fabricar uma
consciência 100% logada na produção, submetida ao máximo da atuação dos sistemas de
vigilância. Uma perspectiva que se alinha à análise de Júlio Cesar Machado (2000, p. 69) em
seu estudo intitulado “A ampliação do poder de vigilância sobre o trabalhador no regime de
teletrabalho”:

Detecte ameaças que ainda não foram descobertas e minimize falsos positivos usando a análise e a inteligência
contra ameaças incomparáveis da Microsoft. Investigue ameaças com inteligência artificial e busque por
atividades suspeitas em escala, acessando anos de trabalho sobre segurança cibernética na Microsoft. Responda a
incidentes de forma rápida com orquestração interna e automação de tarefas comuns. Aproveitando a gama
completa de serviços existentes do Azure, o Azure Sentinel incorpora nativamente bases comprovadas, como
Log Analytics e Aplicativos Lógicos. O Azure Sentinel enriquece a investigação e a detecção com IA, além de
oferecer o fluxo de inteligência da Microsoft contra ameaças e permitir que você use sua própria inteligência
contra ameaças. [...] Desenvolvida com base nos Aplicativos Lógicos do Azure, a solução de automação e
orquestração do Azure Sentinel oferece uma arquitetura altamente extensível que possibilita a automação
escalonável à medida que surgem novas tecnologias e ameaças. MICROSOFT. O que é o Azure Sentinel?.
Publicado em 16 de set, 2020. Disponível em: <https://docs.microsoft.com/pt-br/azure/sentinel/overview>.
Acessado em 29 de maio, 2021.

144
[...] Portanto, estar-se-ia, em princípio, em face de duas conclusões conflitantes: de um
lado, admite-se que o afastamento físico e a ampliação do teor intelectual – elementos
presentes no teletrabalho – reduzam a subordinação de empregado ao empregador; de
outro, conclui-se que, inversamente, a própria tecnologia telemática dispõe de
mecanismos que permitem um maior grau de vigilância, fiscalização ou controle sobre o
empregado, fato do qual, decorreria um incremento na intensidade da subordinação na
mencionada relação de emprego.

A novidade compartilhada por Cazé sobre a instalação de programas de segurança


cibernética que aumentam o nível do controle das funcionárias, pode vir a ser concretizada em
pouco tempo. Ela demonstra que a fala de Laís sobre o temor inicial que as funcionárias
sentiram de serem obrigadas a trabalhar com câmeras ligadas o tempo todo, não era de todo
infundada. Mais ainda, comprova que, mesmo que o trabalho remoto já tenha sido
regulamentado pelo artigo 75-A, 75-B, 75-C, 75-D e 75-E da Consolidação das Leis de
Trabalho (CLT), esta se trata de uma lei em descompasso com o desenvolvimento das
ferramentas computacionais de controle e vigilância. Logo, insuficientemente abrangente para
garantir a proteção dos direitos inalienáveis das trabalhadoras, tais como o direito à
privacidade.
No livro “Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico” há uma discussão voltada
para a análise dos efeitos das políticas neoliberais, tanto no psiquismo dos indivíduos quanto
nas próprias gramáticas das áreas psi. A linha que separa pessoas “normais” daquelas com
comprometimentos de ordem psíquica é dada por uma gramática colonizada pela ideia de
produtividade. Dentro das bordas da normalidade estão incluídos apenas aqueles adaptados a
esse sistema: os indivíduos produtivos. A patologização é o que resta para os inadaptados, ou
seja, os improdutivos.
Os autores apontam que as políticas do fordismo na primeira metade do século XX
reconheciam o sofrimento psíquico dos trabalhadores como causa de improdutividade e,
consequentemente, tentavam combatê-lo. Para isso, ofereciam aos seus trabalhadores uma
estrutura de garantias mínimas, até mesmo, forjando uma política moral que os disciplinasse
com maior engajamento familiar e comunitário. Sempre atenta à retidão de príncipios e
valores morais que assegurassem o equilíbrio necessário para a dedicação do trabalhador à
fábrica, à produção, ao capital. Na contramão desse entendimento, o neoliberalismo enxerga
a potencialidade do sofrimento que pode ser explorado em favor da produtividade. Trata-se
de um sistema que, cada vez mais, tem escalado a intensidade da produção causando o
comprometimento, sem precedentes, da saúde mental daqueles obrigados a vender sua força
de trabalho.

145
O nível de exigência de produtividade na pandemia narrado por Luana como “um terror”
causado pelo volume de ligações que recebia, aparta a experiência do trabalho da sua
condição humana. O processo de “robotização” acusado tantas vezes nos relatos, se expressa
na fala da interlocutora nas impossibilidades de, mesmo em casa, não conseguir “fazer nada”
e sequer “ir ao banheiro”. Estar “enlouquecendo” no trabalho por causa da cobrança por uma
produtividade incessante não é exclusividade nem de Luana nesse universo de trabalhadoras,
nem mesmo das trabalhadoras do call center como um todo. Segundo os professores
Christian Dunker, Vladimir Safatle e Nelson da Silva Júnior, coordenadores da pesquisa que
resultou no livro, o sofrimento psíquico é a condição geral para quem vive nessa versão do
capitalismo. O resultado desse processo é uma espécie de burn out31 coletivo, concretizado
nas epidemias de depressão do início do século XXI.
O livro faz parte de uma série de estudos do Laboratório de Pesquisas em Teoria Social,
Filosofia e Psicanálise (Latesfip) da Universidade de São Paulo (USP) e investiga a
colonização e produção de subjetividades alinhadas ao gerenciamento empresarial da vida
imposta pelo neoliberalismo. O sistema neoliberal, segundo os autores, inaugura a prática de
propor uma gestão do sofrimento psíquico que ele mesmo produz. Um sistema para o qual
sofrimento é uma commodity extraída da necessidade de aumento incessante da capacidade
de performance. Algo também observado por Byung-Chul Han que vê a suplantação da
sociedade disciplinar de Michel Foucault por uma centrada no “desempenho” em seu “A
Sociedade do Cansaço” de 2015.
No capítulo anterior, a funcionária Hannah ilustra essa ideia defendida pelos autores. Ela
menciona que, apesar de ter outro emprego, decidiu trabalhar no call center
concomitantemente pela oportunidade de ter acesso a um plano de saúde pela primeira vez na
vida. Entretanto, foi no call center que começou a fumar, piorou sua alimentação e passou a
ter dificuldades para dormir. São problemas que, segundo ela, tem consequências mesmo
depois de ter saído do setor. Na entrevista, ela endereça a ironia: “Mulher, eu fui pro call
center para ter um plano de saúde que tratasse dos problemas de saúde causados pelo call
center (risos)!”.
A compreensão neoliberal do mundo é o que articula a imagética construída para as/os
profissionais de colarinho branco, assim como aquela que produz o consenso sobre uma
visão classista desse modelo de trabalho, oferecendo à vida social uma gramática cada vez

31
A síndrome de burnout (esgotamento profissional) é um distúrbio psíquico caracterizado pelo estado de tensão
emocional e estresse provocados por condições de trabalho desgastantes. Disponível em
<https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/sindrome-de-burnout-esgotamento-profissional/>.
Acessado em: 29 de maio, 21.

146
mais encapsulada no indivíduo: ele é gerente de si mesmo, com metas a cumprir nos planos
profissional e pessoal, seu sucesso não depende de mais ninguém porque, acima de tudo, ele
é self made.
Ao explicar as razões estratégicas para a aliança entre Democracia Liberal e Regimes
autoritários, Vladimir Safatle argumenta que a defesa da necessidade de uma ditadura
provisória que garanta a implementação de políticas neoliberais por teóricos como Frederick
Hayek não poderia prescindir de uma dada política para o “desenho de pessoas”:

Na verdade, tanto em um caso como em outro os fundamentos da racionalização liberal,


com sua noção de agentes econômicos maximizadores de interesses individuais,
permanecia como a estrutura da vida social e dos modos de subjetivação, justificando
toda forma de intervenção violenta contra tendências contrárias. [...] Mas isso nunca
funcionaria se não houvesse outra dimensão dos processos de intervenção social.
Dimensão na qual podemos encontrar um profundo trabalho de design psicológico, ou
seja, de internalização de predisposições psicológicas visando à produção de um tipo de
relação a si, aos outros e ao mundo guiada através da generalização de princípios
empresariais de performance, de investimento, de rentabilidade, de posicionamento,
para todos os meandros da vida. Dessa forma, a empresa poderia nascer no coração e na
mente dos indivíduos. (SAFATLE; SILVA JUNIOR; DUNKER; 2020, p. 28)

O diagnóstico dos professores do Latesfip é facilmente reconhecível no call center: nas


políticas de estímulos à competição e ao individualismo, na construção de moralidades
submetidas às exigências do trabalho, na gramática individualizante e autogerencial traduzida
no "Se vira!" dos relatos das empregadas.
No período de transição, algumas funcionárias presenciaram falas de supervisores sobre a
necessidade de comprometimento das trabalhadoras em dar o seu melhor, mesmo com a
pandemia. Como aparece nos prints de aplicativos no capítulo anterior, no começo da crise, as
trabalhadoras presenciaram supervisores defendendo que ir à empresa diariamente era sinal de
dedicação ao trabalho e prova de “profissionalismo”. Cumprir com essa obrigação deveria ser
prioridade porque “pessoas morrem de várias causas diferentes”. As funcionárias deveriam se
sentir gratas de continuarem empregadas em um momento em que milhares de brasileiros
perdem suas fontes de renda. Um comportamento que espelha o conceito de “bullying
despersonalizado” mencionado por Ursula Huws (2017, p. 284):

Premilla D'Cruz e Ernesto Noronha descrevem um caso em um call center indiano em


que metas rigorosas são estabelecidas por organizações clientes através de Acordos de
Nível de Serviço (ANS). A gerência local, a despeito de exercer um controle estrito que
os autores consideram como um "bullying despersonalizado”, consegue, não obstante,
escapar das consequências disso, pelo menos na forma de qualquer resistência direta da
força de trabalho. Ao culparem os clientes externos, apelando para a lealdade dos
trabalhadores à indústria nacional dos serviços de retaguarda de escritório, e inculcando
a ideia de “profissionalismo” à equipe dos call centers, esses gerentes conseguiram
demonizar os sindicatos, desviando-se das hostilidades direcionadas a eles, e

147
persuadindo a força de trabalho a internalizar muitos dos mecanismos de controle que os
empurram para o cumprimento das metas.

Os mesmos discursos moralizantes utilizados quando a pandemia chegou a Natal foram


acionados na ocasião. Com a necessidade de implantação do trabalho remoto, o discurso foi
redirecionado para a preocupação da empresa com a saúde e bem-estar das empregadas.
Essas moralidades, mais uma vez, se alinham àquelas partilhadas por quem se encontra no
topo do setor. Os responsáveis por posições de comando das empresas e sindicatos patronais
adotaram o discurso de inovação e vanguarda do setor de tecnologia anunciando as possíveis
vantagens para as trabalhadoras. É o que afirma John Anthony von Christian, presidente da
Associação Brasileira de Telesserviço (ABT)32:

A dificuldade faz criar coisas novas. É o caso do home office no atendimento. A


dificuldade faz a gente criar produtos novos. Se isso acontecer, penso que teremos mais
espaço nas sedes e iremos repensar o atual modelo de empresas com grandes edifícios ou
sedes. Empresas do nosso setor serão mais horizontais e isso muda muito a rotina das
companhias, inclusive na oferta de benefícios. Se uma pessoa trabalha em casa, logo
diminui o custo da companhia para o vale transporte. Ao mesmo tempo, podemos trocar
esse valor para algo mais benéfico para o trabalho em casa. Talvez ela até ganhe mais.

O call center faz parte da base da pirâmide neoliberal que se empenha em colonizar as
subjetividades das trabalhadoras, apropriando-se do seu conhecimento, ao mesmo tempo que
tenta moldar sujeitos maleáveis à submissão e capazes de produzir de modo incessante.
Giovanni Alves (2006, p. 89) também faz esse diagnóstico. Ao falar do “novo complexo de
reestruturação produtiva” que inaugurou o toyotismo sistêmico, ele explica que o intuito era
muito mais que atingir apenas a dimensão objetiva da “classe do trabalho”, seu fim último era
“uma captura da subjetividade operária pela lógica do capital”.
A tentativa de modelação dos sujeitos é um ponto que o autor alega ficar de fora das
análises de uma série de sociólogos e economistas sobre o fenômeno da precarização do
trabalho. Segundo ele, essas análises tendem a enfatizar “a deterioração dos estatutos
salariais”, mas deixam de reconhecer o que ele chama de “intensificação dos mecanismos
sistêmicos voltados para a subsunção da subjetividade do trabalho à lógica do capital, sua
captura complexa e contraditória pelos dispositivos organizacionais do capital.”. Pierre
Dardot e Christian Laval (2016, p. 28) entendem que o alcance desses dispositivos ultrapassa
a esfera econômica estimulando nos indivíduos uma "subjetividade contábil e financeira",
uma “forma mais bem-acabada da subjetivação capitalista”.

32
VENTURA, Ivan. O que mudou no call center com o Covid-19?. O consumerista. Publicado em: 11 de maio,
2020. Disponível em: <https://www.oconsumerista.com.br/2020/05/mudou-call-center-covid/>. Acessado em:
24 de maio, 2021.

148
O neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, é em primeiro
lugar e fundamentalmente uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar
não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados. A
racionalidade neoliberal tem como característica principal a generalização da
concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação.
(DARDOT; LAVAL, 2016, p. 15)

Alves (2006, p. 90) também atenta para a produção dessa subjetividade específica que
pode ser entendida como “o sujeito ideal” do neoliberalismo, destrinchando as implicações
subjetivas propagadas pelo ideário neoliberal na esfera do trabalho, tema central desse estudo:

Neste momento, iremos salientar que o eixo central de seus dispositivos organizacionais
(e institucionais) é a captura da subjetividade do trabalho. Colocamos captura em
itálico para destacar seu caráter ideacional, ou seja, ela não ocorre de fato, de modo
perene, sem resistências, simulações e contradições. O que significa que o processo de
captura é complexo e sinuoso, articulando mecanismos de coerção/consentimento, de
manipulação em suas múltiplas dimensões, não apenas no local de trabalho, mas na
esfera do cotidiano social. Além disso, é intrinsecamente contraditório, dilacerando não
apenas a dimensão física da corporalidade viva da força de trabalho, mas sua dimensão
psíquica e espiritual que se manifesta através de sintomas psicossomáticos.

Como defende Alves, a racionalidade neoliberal não encontra apenas indivíduos apáticos,
dispostos a corresponder plenamente às exigências de um sistema que os debilita. No entanto,
o fato é que ela oferece uma experiência de trabalho empobrecida, esvaziada da dimensão
pujante e impulsionadora de uma maior qualidade de vida com a qual sonhavam esses
sujeitos no começo de suas vidas profissionais.

Precarização
Os descontos computados no banco de horas das trabalhadoras em razão de interrupções
na conexão de internet ou mesmo de quedas de energia é um dos problemas relatados que
comprovam que o home office precarizou as condições de trabalho das funcionárias desse call
center de forma objetiva. Nas instalações da empresa qualquer problema no sistema ou, por
exemplo, no fornecimento de energia era de responsabilidade exclusiva da empregadora. As
funcionárias aguardavam a resolução do impasse, sem que as horas paradas fossem
contabilizadas e elas tivessem que dever ou ter descontadas horas de trabalho. Já no home
office, as horas trabalhadas só passam a contar a partir do log in no sistema. Qualquer
dificuldade de acesso que impeça o início dos atendimentos ou cause interrupção no trabalho,
ainda que causada por razões fora do controle das funcionárias, é contabilizada no banco de
horas. Ter as horas que seriam disponibilizadas em folgas usadas para compensar aquelas
ociosas atesta a piora das condições de trabalho no home office.

149
Essa piora pode ser constatada na progressão da flexibilização da legislação trabalhista
em relação ao banco de horas. O banco de horas é um dispositivo criado pela Lei Nº 9.601, de
21 de janeiro de 1998 (BRASIL, 1998) que eliminou a obrigação de pagamento de horas
extras, permitindo que as horas trabalhadas a mais fossem compensadas semanalmente e, caso
acumuladas, no período de até um ano mediante Acordo de Convenção Coletiva. A Reforma
Trabalhista de 2017 introduziu no art. 59, § 5 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) a
possibilidade de compensação das horas extras trabalhadas por acordo individual, sem a
mediação obrigatória de um Acordo de Convenção Coletiva desde que fossem compensadas
em até seis meses. A Medida Provisória 927, de 22 de março de 2020 (BRASIL, 2020c) que
ficou vigente entre 22 de março e 19 de julho, regula o trabalho remoto na pandemia e
permite a antecipação de férias no período, amplia o número de categorias laborais que podem
aderir a esse regime de trabalho, além de flexibilizar, ainda mais, o instituto do banco de horas
ampliando por até 18 meses o período de compensação e inaugurando o “banco de horas
negativo”.
Essa manipulação do banco de horas não prejudica as funcionárias apenas em relação à
quantidade de horas a mais que elas terão que trabalhar. Alguns produtos pagam a
Remuneração Variável (RV) que é uma comissão pela produção adicional depois de
cumpridas as metas. Uma compensação financeira sem natureza salarial. Dependendo do
produto, esse adicional pode variar de R$ 50,00 a R$ 200,00, aproximadamente. O
comprometimento das métricas, em função desses imprevistos, atinge diretamente os
rendimentos das trabalhadoras. O que demonstra, como defende Igor, que a maior beneficiária
do trabalho remoto é a empresa:

Dizer a você que o período foi fácil e a maneira como a gente foi imposto ao home office
foi fácil, não foi. Foi muito difícil. Foi muito se vire, né? E o home office traz benefícios
para empresa como eles não tem que lidar com manutenção de computador. Eles não
precisam pagar a conta de energia. Eles não nos pagam vale-transporte porque a gente tá
em casa. Eles não dão nenhum vale custo pra a gente arcar com a nossa energia, com
manutenção, com nada, né? Então, pra empresa é muito vantajoso. Poupa a questão de
acidente de trabalho porque se a gente não tá indo para empresa, a gente não corre esse
risco de... Até se enquadram algumas situações em acidente de trabalho, mas no percurso,
por exemplo. A empresa ela se beneficia de várias maneiras. Porém o que eu acho que
falta é uma efetividade de responsabilidade da empresa para algumas coisas.

A flexibilização do regime de trabalho presencial para o remoto foi permitida visando a


proteção da vida das trabalhadoras e de seus co-residentes, mas o processo foi alinhado à
deterioração promovida pelas reformas trabalhistas da Lei nº 13.467/2017, conceito entendido
nos termos de José Dari Krein (2015, p.48) como um dos sintomas da precarização: “Por

150
flexibilização, compreende-se o aumento da liberdade de o empregador definir unilateral e
discricionariamente a contratação, o uso e a remuneração do trabalho.”.
Na prática, essa total liberdade foi expressa na transferência de custos de equipamentos
laborais, no manejo das condições de trabalho pela empregadora, como a condução arbitrária
do banco de horas e as mudanças nas escalas de trabalho no início do período, mas também
alcançou dimensões mais sutis que comprometem outras áreas da vida das trabalhadoras:

Então, pessoalmente para mim foi bom. Eu gostei. Mas eu acredito que essa avaliação
deve ser por uma perspectiva geral. Eu acredito que não teve quase nenhuma capacitação,
quase nenhuma. Teve pouca. Eu acredito que a empresa deveria ter dado um suporte
maior ao funcionário. Foi meio assim: “Quer trabalhar? Precisa de dinheiro? Então, se
vire!”. Entendeu? A empresa ela tinha que ter dado suporte. Tinha que ter dado uma
renda extra para arcar com todas as despesas porque ela saiu no lucro, né? Ela não pagou
água, ela não pagou luz, nem muito menos internet. Foi uma despesa maior que a gente
teve, né? Então foi umas coisas maior de ter que arcar com energia que dobrou, né?
Porque o computador tinha que tá ligado durante seis horas seguidas. Um prejuízo para
quem... para o computador também não era bom porque o sistema era pesado. Então
acabava que prejudica, né? Uma ferramenta que é sua... você tá aí... prejudicado porque
você precisa de um... precisa trabalhar porque você precisa de dinheiro. Aí, você tem que
instalar um arquivo, tem que instalar um programa pesado que fica travando seu
computador. E quando você precisa utilizar... por exemplo, eu que uso o computador o
dia todo porque estudo. Então, eu tinha que... o meu computador quando era para minhas
coisas pessoais, ele ficava travando. Ficava lento por causa que os programas eram
pesados, entendeu? Então, isso é um prejuízo para mim enquanto pessoa. Eu não tava
tendo nenhum benefício. Enquanto, digamos que... na minha vida pessoal. Por mais que
eu gostei, eu me adaptei, né? Se fosse para continuar trabalhando em casa e na empresa,
eu continuaria trabalhando em casa, tranquilo. Mas numa perspectiva geral, não foi algo
muito bom, não. A forma que foi feito. Se tivesse sido, se programado direitinho, teria
dado certo, tranquilo. Se a empresa tivesse dado aí...tivesse dado o suporte necessário.
(Joyce, 22)

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) trata da responsabilização pelos instrumentos


de trabalho em seu artigo 75-D, dado pela Reforma Trabalhista de 2017. O texto determina
que a “aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da
infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho remoto, bem como ao reembolso
de despesas arcadas pelo empregado, serão previstas em contrato escrito.” (CLT, 2017, p. 29).
A responsabilidade da empresa empregadora em arcar com os custos de transferência
também foi assegurado pela Medida Provisória 927 (BRASIL, 2020c). Em seu art. 3º, a
medida determina que a aquisição, a manutenção ou o fornecimento dos equipamentos
tecnológicos e de infraestrutura necessária e adequada à prestação do teletrabalho, trabalho
remoto ou trabalho a distância, assim como o reembolso de despesas arcadas pelo empregado
deveriam ser previstas em contrato escrito, firmado previamente ou no prazo de trinta dias,
contado da data da mudança do regime de trabalho. Em seu art. 4º a lei também esclarece que,
caso o empregado não possua tais equipamentos e a infraestrutura necessária e adequada a

151
empresa empregadora poderá fornecer os equipamentos em regime de comodato e pagar por
serviços de infraestrutura, que não caracterizarão verba de natureza salarial. Se não puder
oferecer o comodato “o período da jornada normal de trabalho será computado como tempo
de trabalho à disposição do empregador”.
As condições que deveriam ser especificadas em contrato causaram interpretações
alinhadas com a máxima de que o negociado deveria prevalecer sobre o legislado, permitindo
às empresas atuar com maior discricionariedade no período, apenas explicitando as condições
no contrato. Em artigo publicado em 23 de julho de 202033, os juízes do Tribunal Regional do
Trabalho (TRT) da 5ª Região, Fabiano de Aragão Veiga e Danilo Gonçalves Gaspar discutem
a controvérsia que a redação do artigo dado pela Reforma Trabalhista ocasionou:

Acerca da interpretação do referido art. 75-D, CLT, há, essencialmente, duas correntes
de entendimento. De um lado, há quem defenda que a lei deixou em aberto a
possibilidade de fixação da responsabilidade pelo custo e manutenção dos instrumentos
necessários a realização do teletrabalho, podendo o contrato escrito atribuí-lo ao
trabalhador. Possível, assim, o empregado arcar com algumas despesas relativas à
prestação de serviço remoto, exigindo-se, apenas, que isso conste de contrato escrito. De
outro lado, há corrente, com a qual compartilhamos, no sentido de que, em se tratando de
ferramenta de trabalho, o custo é do empregador, incidindo, no particular, o princípio da
alteridade, de acordo com o qual os riscos e custos do negócio correm por conta do
empregador (art. 2º, CLT). Ou seja, corre sob a exclusiva responsabilidade do
empregador os riscos do empreendimento, da atividade e do contrato de trabalho
celebrado com seus empregados. Assim é que a norma prevista no art. 75-D, CLT, deve
ser lida em consonância com as demais normas do Direito do Trabalho, de modo que
deve, obrigatoriamente, passar pelo “filtro” do princípio da alteridade, visto
anteriormente, que coloca sob o ônus do empregador os custos inerentes ao trabalho.
Assim, não há falar em relativização ao princípio da alteridade. A Lei apenas exigiu
contrato escrito quanto ao aspecto dos custos dos instrumentos do trabalho, bem assim
quanto à possibilidade do empregado adiantar eventuais despesas, com posterior
reembolso pelo empregador. Desse modo, a correta interpretação do art. 75-D, CLT, é no
sentido de que a previsão de “reembolso de despesas arcadas pelo empregado” não é
uma faculdade das partes, mas uma imposição da legislação (caso os custos para
aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da
infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho remoto sejam “adiantados”
pelo empregado).

De acordo com o entendimento dos juízes, portanto, a empresa não só tinha obrigação de
fornecer os instrumentos de trabalho, como também de reembolsar as funcionárias por todos
os custos adicionais que foram obrigadas a assumir na adequação de seus cômodos às
exigências da empregadora. Outro fato importante é que esse reembolso não diz respeito
apenas aos custos aplicados na aquisição de novos instrumentos de trabalho, segundo a
Súmula 91 da jurisprudência consolidada do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região

33
VEIGA, Fabiano de Aragão; GASPAR, Danilo Gonçalves. A responsabilidade pelos custos dos
instrumentos de trabalho no regime de teletrabalho. Publicado em 23 de jul, 2020. Disponível em:
<http://trabalhoemdebate.com.br/artigo/detalhe/a-responsabilidade-pelos-custos-dos-instrumentos-de-trabalho-
no-regime-de-teletrabalho>. Acessado em: 13 jul, 2020.

152
(TRT) e Tribunal Superior do Trabalho (TST) que trata de “Equipamentos-ferramentas-
instrumentos-fornecimento”, havia outras obrigações:

Assegura-se a obrigação das empresas fornecerem, em perfeitas condições de uso e sem


qualquer ônus para o empregado, os instrumentos de trabalho necessários ao
desempenho das respectivas funções. Na hipótese de ser exigido do empregado que
utilize instrumento de trabalho próprio, terá ele direito ao recebimento de parcela
remuneratória adicional, compatível com o desgaste e as despesas normais decorrentes
da utilização, não podendo a parcela ser inferior a 10% (dez por cento) da remuneração
paga pelo trabalho. (BRASIL, 2020e, p. 51)

A empregadora não se responsabiliza por fornecer todos os equipamentos necessários à


realização do trabalho, transfere custos de água, energia, manutenção e reposição de
equipamentos, maneja arbitrariamente o banco de horas em seu favor, não garante a
observância dos critérios ergonômicos mantenedores da saúde das empregadas, além de ter
eliminado o pagamento de vale-transporte. Para além disso, a observação da funcionária
Joyce sobre a deterioração de equipamentos pessoais que se desgastam em favor da empresa é
contemplada pela legislação dos tribunais superiores. De acordo com a Súmula 91 do
Tribunal Superior do Trabalho, as determinações legais não foram cumpridas nesse caso. O
termo de compromisso assinado pelas trabalhadoras eximindo a empresa de qualquer
responsabilidade com os gastos assumidos no home office é, portanto, nulo. Uma
demonstração que o período de transição do trabalho presencial para o trabalho remoto foi
feito à revelia da lei, sem que o Estado interferisse no processo, algo definido por Pierre
Dardot e Christian Laval (2016, p. 13) como “intervencionismo negativo” do Estado:

Se admitirmos que sempre há “intervenção”, esta é unicamente no sentido de uma ação


pela qual o Estado mina os alicerces de sua própria existência, enfraquecendo a missão
do serviço público previamente confiada a ele. “Intervencionismo” exclusivamente
negativo, poderíamos dizer, que nada mais é que a face política ativa da preparação da
retirada do Estado por ele próprio, portanto, de um anti-intervencionismo como princípio.

Podemos concluir, portanto, que o home office precarizou as condições de trabalho, ainda
que esse processo de piora não esteja relacionado à mudança de estatuto dos contratos de
trabalho, da configuração de jornadas ou dos institutos legais que asseguram um valor mínimo
ao salário das trabalhadoras, por exemplo. Citando apenas a piora objetiva dessas disposições,
ela foi observada na transferência de custos de produção para as trabalhadoras, na
reconfiguração do banco de horas, na falta de observância aos critérios ergonômicos
mantenedores da saúde das empregadas.
Como Gramsci nos ajudou a entender, este não se trata de um caminho imprevisto, ele vem
sendo pavimentado pelo discurso autogerencial típico do neoliberalismo para que além dos

153
custos de reprodução, a “classe-que-vive-do-trabalho” também comece a ser responsabilizada
pelos de produção. Algo diagnosticado por Ursula Huws (2017, p. 58) no processo de
formação do “cibertariado”:

Sejam quais forem a exata escala de tempo desses desenvolvimentos e a resultante


fragmentação global da divisão do trabalho de escritório, parece claro que há uma
tendência irresistível em direção à casualização do emprego e à reconstituição do lar
como um espaço de trabalho. Somado às tendências delineadas no início deste capítulo,
isso representa uma transferência massiva dos custos do capital para os trabalhadores,
que devem agora suportar não apenas os custos do que pode ser chamado de meios de
reprodução, mas também aqueles dos meios de produção.

A crise da Covid-19 e a emergência de esvaziamento das operações proporcionou o vácuo


necessário para que o trabalho remoto se transformasse em mais uma conquista no cenário de
avanço de políticas neoliberais e desmonte de direitos sociais. Como demonstrado por Pierre
Dardot e Christian Laval (2016, p. 7), as crises são absorvidas no sistema neoliberal não como
fatores de recrudescimento, elas servem para que, depois de um rearranjo, o sistema se
aprofunde ainda mais. É o que eles pontuam ao explicar as razões de propor uma análise sobre
o neoliberalismo em plena crise de 2008, depois do precipitado otimismo que previa o fim do
sistema ante a falência do banco Lehman Brothers:

A convicção que tínhamos ao escrevê-la possuía fundamento: a crise não foi suficiente
para fazer o neoliberalismo desaparecer. Muito pelo contrário, a crise apareceu para as
classes dominantes como uma oportunidade inesperada. Melhor, como um modo de
governo. Ficou demonstrado que o neoliberalismo, apesar dos desastres que engendra,
possui uma notável capacidade de autofortalecimento. Ele fez surgir um sistema de
normas e instituições que comprime as sociedades como um nó de forca. As crises não
são para ele uma ocasião para limitar-se, como aconteceu em meados do século XX, mas
um meio de prosseguir cada vez com mais vigor sua trajetória de ilimitação. O
capitalismo, com ele, não parece mais capaz de encontrar compensações, contrapartidas,
compromissos.

Embora as supostas “compensações, contrapartidas” e “compromissos” para as medidas


que seguem as crises continuem aparecendo nos discursos, o sistema assume com o home
office e a pandemia o caráter de “ilimitação” defendido pelos autores. O consenso se
estabelece para ser seguido de instrumentos legislativos liberalizantes como foi a Reforma
Trabalhista de 2017. O argumento que a flexibilização das garantias trabalhistas assegura um
aumento do ganho monetário individual nunca se confirma e a repartição do bolo para as
classes subalternas nunca acontece. Ao contrário do que defendeu o presidente da Associação
Brasileira de Telesserviço, John Anthony von Christian, até o momento, as economias feitas
pela empresa com a adoção do home office não causaram aumento dos ganhos salariais das

154
trabalhadoras, apenas uma intensificação da extração de mais-valia por elas produzida e o
consequente aumento do lucro das empresas.
Depois de todo esse caminho percorrido, essas constatações nos lançam à pergunta
proposta no início do trabalho: a que propósitos servem todos os avanços tecnológicos
quando são produzidos dentro do sistema capitalista? As experiências das funcionárias desse
call center e os discursos colhidos por representantes de entidades patronais confirmam que o
desenvolvimento técnico no sistema capitalista desde a sua fase comercial, passando pelo
modelo industrial até a fase pós-industrial/financeira serve à criação de novos setores de
produção e de consumo, à intensificação da produção, ao adensamento da vigilância, tudo em
nome da maximização dos lucros à custa do trabalho alheio e ao corte de investimentos,
ainda que isso signifique piora na qualidade de serviços.
Uma informação importante fornecida nas atualizações enviadas pelas funcionárias em
maio de 2021 é que houve uma reunião entre a empresa e as trabalhadoras alguns meses antes
para regulamentar o trabalho remoto. Foi acordado que a empresa passaria a pagar uma
espécie de cota mensal para ajudar nos custos que as funcionárias assumiram. No mês de
maio foram pagos R$ 50,00 e, em junho, essa quantia seria fixada em R$ 90,00. O acordo
não prevê pagamentos retroativos.

Resistências
O call center como um setor de racionalidade taylorista, visto pelas funcionárias como
“desumanizante” com atividades que as obrigam a se tornarem "robóticas", segundo Ursula
Huws (2017, p. 182), geralmente desencadeia o ciclo da síndrome do esgotamento conhecido
como burn out entre doze e vinte meses no emprego. Nestas circunstâncias, criar estratégias
de resistência à invasão e deterioração de suas subjetividades é uma questão de sobrevivência
para as trabalhadoras.
No regime presencial, essas estratégias podiam seguir caminhos habituais de outras
experiências de trabalho: funcionárias que saem para as pausas e não voltam no horário
estipulado, que não perseguem metas para cavar a própria demissão, funcionárias que no
turno noturno dormem ou consomem entorpecentes no banheiro, por exemplo. Mas elas
também podem ser diretamente responsivas às tecnologias e sistemas com que os sujeitos
lidam diariamente.
Nos produtos que não funcionam por voz, automatizar completamente a digitação do
teclado ao ponto de ser possível conversar com a colega ao lado, sem prejuízo da função,
permite deslocar o pensamento para algo prazeroso. Ainda que a conversa só possa acontecer

155
nos intervalos em que o supervisor não está atento. Essa estratégia emergiu nas entrevistas de
Cazé e Luana que, no momento, trabalham com formulários. Essa automatização já tinha sido
analisada por Antonio Gramsci como a prova da resistência que o trabalhador impunha ao
sistema taylorista, recusando-se a ser transformado em um “gorila amestrado”:

O tipógrafo deve ser muito rápido, deve ter as mãos e os olhos em contínuo movimento,
o que torna mais fácil sua mecanização. Mas, se pensarmos bem, o esforço que estes
trabalhadores devem fazer para isolar do conteúdo intelectual do texto, por vezes muito
apaixonante (e então, de fato, trabalha-se menos e pior), sua simbolização gráfica, e para
dedicar-se somente a esta, talvez seja o maior esforço que se requer de uma profissão.
Mas ele é feito e não destrói espiritualmente o homem. Quando o processo de adaptação
se completou, verifica-se na realidade que o cérebro do operário, em vez de mumificar-
se, alcançou um estado de completa liberdade. Mecanizou-se completamente apenas o
gesto fisico; a memória do oficio, reduzido a gestos simples repetidos com ritmo intenso,
"aninhou-se” nos feixes musculares e nervosos e deixou o cérebro livre e desimpedido
para outras ocupações. Do mesmo modo como caminhamos sem necessidade de refletir
sobre todos os movimentos necessários para mover sincronizadamente todas as partes do
corpo, de acordo com aquele determinado modo que é necessário para caminhar, assim
também ocorreu e continuará a ocorrer na indústria com relação aos gestos fundamentais
do ofício; caminhamos automaticamente e, ao mesmo tempo, podemos pensar em tudo o
que quisermos. Os industriais norte-americanos compreenderam muito bem esta dialética
presente nos novos métodos industriais. Compreenderam que "gorila amestrado" é uma
frase, que o operário "infelizmente” continua homem e até mesmo que, durante o
trabalho, pensa mais ou, pelo menos, tem muito mais possibilidade de pensar, pelo
menos quando superou a crise de adaptação e não foi eliminado: e não só pensa, mas o
fato de que o trabalho não lhe dá satisfações imediatas, e que ele compreenda que se quer
reduzi-lo a gorila amestrado, pode levá-lo a um curso de pensamentos pouco
conformistas. (GRAMSCI, 2007b, p. 271)

Também foram relatadas como comuns no regime presencial, as sabotagens ao próprio


sistema. Quando sobrecarregadas, xingadas por clientes ou, simplesmente, quando se
encontram sem ânimo para o trabalho, as trabalhadoras podem "derrubar ligações"
propositadamente; reportar atendimentos como resolvidos quando, na verdade, só o
encerraram porque o próximo contato do cliente será atendido por outra agente; discretamente
desconectar algum cabo para que as ligações não possam ser realizadas. São atitudes tomadas
em dias de estresse muito elevado porque todas essas medidas são capturadas pelo sistema e
afetam as métricas, prejudicando as funcionárias. O relato mais contundente sobre essas
sabotagens refere-se a manipulação do sistema por meio de fraudes:

Glória – E assim, quem entra nos primeiros meses, nos três meses, entra com contrato
assim... de experiência. Então, a pessoa quer dar o melhor dela nesses três primeiros
meses para poder passar do período de experiência e não sair da empresa, senão é
demitido. E aí, depois que a pessoa passa esse período de experiência, a pessoa se satura.
Quer sair e a empresa não dá, não demite. Ela não demite. Agora teve um corte grande
na (empresa de transporte individual), de demissão porque tava tendo fraude, né? Dos
próprios funcionários. Por quê? Eles faltavam... na cabeça deles porque a empresa tava
fodendo eles. Então eles vão foder a empresa também.

156
Pesquisadora – Que tipo de fraude eles cometeram?

Glória – Rapaz, tem uma pessoa que... assim... a gente mexe com as contas dos clientes.
E a gente tem a possibilidade de colocar créditos de... pra você consumir de (empresa de
transporte individual) de carro ou de comida que você pode usar de crédito. Então, você
não vai pagar em dinheiro. Esse crédito é um dinheiro invisível, né? Vai sair da empresa.
Então, teve gente que chegou a colocar 7k, R$ 7.000,00 de crédito na própria conta.
Tinha gente que fazia pedidos e que o tipo de entrega, era o cliente que tinha que
finalizar. Então, antes de eles finalizarem que foi entregue, eles voltavam para operação,
cancelavam o pedido pagando o restaurante, sem cobrar o cliente, entendeu?

Pesquisadora – Quer dizer, é roubo. Mas não é roubo do cliente, entendi?

Glória – Não é roubo do restaurante, mas é roubo da (empresa de transporte individual).

Pesquisadora – Então, na verdade, eu como consumidor... o roubo foi feito, mas não foi
tirado dinheiro de mim.

Glória – Isso.

Existe uma espécie de pedagogia solidária entre as funcionárias: depois de desenvolvidas


essas artimanhas, elas passam a trocar as informações umas com as outras, identificando
maneiras de burlar o ecossistema panóptico e as exigências mais sufocantes de produtividade.
Glória relata que os primeiros truques que aprendeu para burlar o sistema de controle de
produção foram ensinados por um funcionário que ela não conhecia, mas que estava de saída
da empresa. Em seu primeiro dia de trabalho, ela foi abordada pelo rapaz da P.A. ao lado que
ensinou dois ou três truques para desconectar ligações quando a funcionária “não estivesse
aguentando mais”. No home office, esse compartilhamento se dá nos grupos dos aplicativos
de mensagens.
São estratégias também identificadas por Ursula Huws ao tratar de algumas pesquisas
desenvolvidas pelo projeto Works (Work Restructuring in the Knowledge Society) na Europa
entre 2005 e 2009. Os estudos de casos do projeto investigavam os impactos da reestruturação
da cadeia de valor sobre a organização do trabalho e também sobre a qualidade de vida no
trabalho em um conjunto de indústrias e grupos ocupacionais em diferentes países. Ao
apresentar alguns resultados das pesquisas, Huws (2017, p. 283) também detecta esses atos de
resistência explicando que o “acúmulo de pressão é tão extremo que os trabalhadores têm de
recorrer a atos ocasionais de sabotagem como uma maneira de aliviar suas frustrações”:

Quando diferentes formas de controle existem, uma ao lado da outra, as pressões


contraditórias sobre os trabalhadores parecem ser tão grandes que frequentemente eles se
sentem desempoderados para adotar qualquer forma efetiva de resistência. Em vez disso,
a resposta pode ser apenas adoecer física ou mentalmente, descarregando a tensão sobre
suas famílias (ou se abstendo de qualquer forma de convivência familiar), sofrendo de
burn-out, abandonando qualquer perspectiva de futuro, assumindo uma postura de
cinismo anômico, engajando-se em atos isolados de sabotagem ou para descarregar suas

157
frustrações, ou adotando uma atitude cruel do tipo “cada um por si”, que pode fazer com
que passem por cima dos interesses de seus colegas de trabalho. Obviamente,
desenvolver novas formas de organização coletiva e de resistência é uma opção
alternativa; todavia, encontramos pouquíssimas evidências dela na pesquisa do Projeto
Works.

Depois de um tempo ajustadas em uma nova função, começa a se desenvolver um esforço,


seja consciente ou inconsciente, para bloquear as tentativas de invasão das subjetividades das
funcionárias. Mesmo que atos transgressivos sejam frequentes na empresa e tenham sido
testemunhados por algumas entrevistadas, o mais comum de acontecer, inclusive entre elas, é
a transformação das diretrizes passíveis de serem ajustadas a um modo mais brando de
execução das obrigações.

Uma vez em casa, a produção dessa racionalização de resistências se deu de várias


formas. Nos primeiros meses, a imposição de uma rotina de trabalho exercida dentro do
ambiente doméstico acabou por fazer com que as fronteiras entre tempo da vida privada e
tempo do trabalho fossem completamente diluídas para algumas entrevistadas. No caso de
Cazé, o começo do trabalho remoto foi tão invasivo que resultou até em sonhos recorrentes e
pesadelos que envolviam atrasos para treinamentos e jornada de trabalho. Não se trata de uma
raridade: o mesmo aconteceu com alguns de seus colegas. Um deles, inclusive, retrata
pesadelos em que grita e chora em situações que emulam o cotidiano atual no emprego.
Nos primeiros dias trabalhando em casa, Cazé observou uma extrema dificuldade de
separar essas duas instâncias da vida. Embora existisse um momento preciso para sentar em
frente ao computador e seis horas depois sair, ele era consumido pelas questões do trabalho
antes durante e depois do cumprimento da carga horária. Segundo ele, a mente “não
desligava”. Mesmo aquilo que poderia ajudá-lo a demarcar os momentos em que deveria
dedicar-se somente ao trabalho e aqueles em que poderia ser livre para realizar outros tipos de
atividades, era roubado pela suspensão da autonomia de manejo do próprio tempo.
A regularidade de uma rotina de trabalho que comece sempre à mesma hora e termine do
mesmo modo é, reconhecidamente, uma medida efetiva para fazer com que o sujeito entenda
que o trabalho em casa está restrito aquele determinado horário. No entanto, essa autonomia
não pôde ser exercida durante os primeiros meses por causa da incapacidade de mínimo
planejamento do tempo frente à indeterminação da escala de trabalho.
A estratégia que Cazé desenvolveu para salvaguardar a própria subjetividade foi
desenvolver trabalhos manuais como uma atividade de lazer. Em resposta ao automatismo da
digitação sem sentido dos registros de formulários de carros, criou um momento para si todos

158
os dias após o expediente, permitindo que suas mãos e pensamento produzissem arte, único
momento do dia em que ele era inundado de cores.
No capítulo “Constituir o lar: um espaço de resistência” do livro “Anseios: raça, gênero e
políticas culturais”, bell hooks explora a dimensão do lar como um lugar construído pelas
mulheres negras no contexto da opressão racista estadunidense e no próprio sistema de
Apartheid da África do Sul. A casa, neste contexto, é o ambiente que garante proteção a essa
população historicamente privada de um espaço público seguro e acolhedor. Acessando as
memórias da infância, hooks alega que as mulheres negras constroem seus lares “como
espaços de acolhimento e cuidado” transformando suas casas em espaços políticos:

Ao longo da história, as pessoas afro-americanas têm mostrado acreditar que a


construção de uma casa, ainda que frágil e simples (a cabana de escravizados, o barraco
de madeira), tem uma dimensão política radical. Apesar da brutal realidade do apartheid
racial, da dominação, o lar de uma pessoa era o único lugar onde ela podia enfrentar
livremente a questão da humanização, onde ela podia resistir. As mulheres negras
resistiram constituindo lares onde todos os negros pudessem se empenhar em ser sujeitos,
não objetos; onde pudéssemos encontrar conforto para nossos pensamentos e nosso
coração apesar da pobreza, das dificuldades e privações; onde pudéssemos restaurar a
dignidade negada a nós do lado de fora, no mundo público.

Depois das opressões do espaço público ou da servidão na casa das famílias brancas onde
trabalhavam, ao fim do dia, as mulheres negras se refugiavam no único espaço em que eram
soberanas. Sem lugar no mundo externo, a casa era seu domínio. bell hooks fala sobre o
“valor subversivo do lar” para a população negra, um lugar de forte produção de
reconhecimento e manutenção da humanidade dessas pessoas: “o espaço doméstico tem sido
um local fundamental de organização, de formação da solidariedade política. O lar tem sido
um local de resistência.”. Garantindo a salvaguarda da identidade da população negra, a casa é
elemento central na formação de um contrapoder:

Quero ressaltar a importância do lar em meio à opressão e à dominação, do lar como um


espaço de resistência e de luta pela libertação. Ao falar de "resistência", particularmente
de resistência à guerra do Vietnã, o monge budista vietnamita Thich Nhat Hanh diz:
[...] a resistência, em sua raiz, deve significar mais que resistência contra a guerra. É uma
resistência contra todos os tipos de coisas que lembram a guerra. [...] Resistência, então,
talvez signifique se opor a ser invadido, ocupado, agredido e destruído pelo sistema. O
propósito da resistência, aqui, é buscar a cura de si para poder enxergar claramente. [...]
Eu acredito que as comunidades de resistência devem ser espaços em que as pessoas
possam voltar a si mesmas mais facilmente, cujas condições permitam que elas possam
se curar e recuperar a integridade. (HOOKS, 2019, p. 107)

159
De modo análogo, as interlocutoras dessa pesquisa têm procurado pavimentar caminhos
de resistência em suas casas, transformando, como podem, as horas de trabalho em versões
suavizadas do cenário pré pandemia. Ainda que se trate de um modo de resistir particular a
cada indivíduo, esvaziado da dimensão coletiva da política e insuficiente na contestação da
ordem que imprime ao trabalho uma forma precarizada de vida, o abrigo da casa adquire um
papel definidor da experiência. Como um escudo, a casa rejeita a atmosfera totalizante do
ecossistema panóptico e atua como lugar de afirmação e desafogo, tornando-se um lugar de
realização do possível.

Desafios à coletividade
Como observou Laís, o trabalho remoto traz consequências de ordem subjetiva tanto
libertadoras quanto de encapsulamento. Esse movimento torna-se relevante tanto na
dimensão subjetiva do indivíduo traduzido em ganhos e perdas em termos de saúde mental,
quanto naquela referente à coletividade. A opinião dela sobre o home office corrobora o
diagnóstico de que, em termos de organização política, o modelo compromete a dimensão
coletiva do trabalho:

Eu acho preocupante, Liana. Eu acho preocupante. Pra gente que estuda essas questões
assim... de trabalho, né? É meio... eu esqueci a palavra, mas tem dois lados da história,
sabe? Eu, como trabalhadora, eu vejo todas essas coisas positivas de... dessa certa
liberdade, né? Dessa certa... eu tô mais no controle, né? Eu decido mais sobre várias
coisas, né? Só que é complicado porque se você for pensar nisso a longo prazo, sabe? É
um caminho difícil porque é muito individualizante, né? Então, como é que a gente tem
uma noção, sabe? Como é que a gente pode, por exemplo, colocar questões que são
relativas a todos os trabalhadores, se a gente também não tá em coletividade, sabe?
Como é que as pessoas podem colocar essas demandas, se a gente só se fala em reuniões
de 10, 15 minutos virtualmente, sabe? Só por chamada? Então, eu acho mais... mais
complicado se você for pensar no que isso significa de direitos trabalhistas mesmo. De
perda a longo prazo. Mas a curto prazo, eu vejo benefícios.

Há, por isso, uma compreensível dificuldade adicional de articulações políticas entre as
pessoas no home office, iniciativas que já comprovamos não serem costumeiras neste call
center. O trabalho remoto, desse modo, serve ao poder destrutivo da individualização
neoliberal potencializado pela lógica da concorrência:

Além dos fatores sociológicos e políticos, os próprios móbeis subjetivos da mobilização


são enfraquecidos pelo sistema neoliberal: a ação coletiva se tornou mais difícil, porque
os indivíduos são submetidos a um regime de concorrência em todos os níveis. As
formas de gestão na empresa, o desemprego e a precariedade, a dívida e a avaliação, são
poderosas alavancas de concorrência interindividual e definem novos modos de
subjetivação. A polarização entre os que desistem e os que são bem-sucedidos mina a
solidariedade e a cidadania. Abstenção eleitoral, dessindicalização, racismo, tudo parece

160
conduzir à destruição das condições do coletivo e, por consequência, ao enfraquecimento
da capacidade de agir contra o neoliberalismo. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 7)

Neste contexto, o único contraponto arquitetado nestas vivências é a construção de espaços


de acolhimento que humanizem os sujeitos. As experiências de Cazé e Laís, também comuns
às colegas de trabalho, podem encontrar refúgio nos grupos de aplicativos de mensagens, por
exemplo. Apesar de esvaziados do sentido político, sem que o fim último do encontro seja
direcionado à manutenção da cidadania, estes são espaços de troca e apoio mútuos. Para quem
conseguiu construir laços afetivos na operação, este é o único lugar onde há resquícios de
coletividade relacionadas ao trabalho na pandemia e, não por acaso, é também usado como
espaço de micro resistências.
Nesses grupos são compartilhadas dores, angústias, as especificidades de suas realidades.
As jocosidades das colegas aparecem nos relatos como uma ajuda bem-vinda. Assim como no
atendimento presencial, os afetos são determinantes na construção de uma resiliência
suficientemente robusta para que as dificuldades materiais, infraestruturais, familiares e
afetivas, assim como o comprometimento da saúde mental desses sujeitos, não arrisque a
manutenção de seus empregos.
Depois de passar todo o período inicial da pandemia em regime presencial, Karina foi
transferida para o home office no final de 2020. Na entrevista que me concedeu em fevereiro
de 2021, poucos meses depois de ir para casa, ela me pareceu ser uma das duas pessoas que
melhor se adaptaram ao trabalho remoto. Assim como Rosa, estava muito tranquila com a
própria rotina. Revelou incômodo apenas com o fato de que estar em casa todo o tempo fazia
com que cedesse à tentação de adentrar as madrugadas jogando video games. Isso a fazia
"ficar sonolenta" durante o dia. Bem-humorada, explicou que em um destes dias, participou
de um treinamento coletivo e foi muito tentador "desligar a câmera e só encostar na cama e
dormir.", me disse isso entre risos. Ao final da entrevista, eu pedi que ela me desse uma
opinião sobre o trabalho remoto e como avaliava a própria saúde mental naquele momento:

Cara, eu tenho duas: para pessoas introvertidas ou muito disciplinadas e para pessoas
extrovertidas. Pra pessoas que são introvertidas ou disciplinadas o home office é uma
mão na roda. Você poder ficar em casa. Você trabalha ali de boas. Por exemplo, meu
horário é até às 8:40, de 8:42 você já pode estar jantando. Você já pode estar fazendo
outra coisa. Já pode estar na sua aula. Então isso é muito bom. O difícil é, por exemplo
para o segundo grupo. Pra pessoas mais extrovertidas. Por que? Por que ela gosta de
falar? Por que a personalidade dela é assim? Não. É porque ela tem necessidade de ver
pessoas. Então, você... quando a gente tá num call center... Por exemplo, o que me
segurou muito na minha segunda empresa (produto) foram os meus amigos. Foi eu poder
durante o meio de uma ligação virar para o lado e ter alguém fazendo uma piadinha
comigo. Foi eu poder ver aquele amigo: "Amiga, segura a onda! Vai dar certo! Não sei o
quê...”. Então ter esse apoio de outras pessoas que estavam na mesma situação que eu.

161
Então, isso me ajudou muito a continuar. Tipo: "Isso é só uma ligação ruim. Quando o
cara desligar, vai acabar. E vai começar outra novamente.”. Então isso ajudava muito. E
é uma dificuldade muito grande pras pessoas que tem essa necessidade de ter alguém por
perto. Eu tô muito no meio desses dois. Por exemplo, eu fico de boa por determinado
período. Eu tô... Eu tô bem. Por exemplo, já faz duas semanas, já. Não, duas semanas
não. Eu acho que foi segunda, segunda passada. Eu precisei ir na empresa porque tinha
que ajeitar um negócio de VT. E quando eu fui para a empresa, eu vi alguns desses
colegas. Então foi como se me reanimasse de novo. E depois que eu vi eles, eu tô pronta
para aguentar um mês, digamos assim. Então é como se eu tivesse um limite de quanto
que eu consigo ficar sozinha. O quanto eu consigo ficar bem sozinha. Quando começa a
passar determinado período, eu preciso fazer alguma coisa porque senão eu vou surtar.
Eu tenho que ver alguém. Eu tenho que ver a rua. Eu tenho necessidade de ver alguém.

No final de maio de 2021, Karina foi uma das pessoas que respondeu à minha solicitação
de atualização das condições de trabalho. Com o seu relato, pude constatar que a solidão do
isolamento, finalmente, cobrou seu preço:

No meu caso, eu.. se eu pudesse, eu não estaria em home office, né? Tem seus lados
positivos. Mas, particularmente, para mim, eu preferia ainda estar no presencial, né?
Teve um momento em que, particularmente, o home office tinha me... chegado a me
deixar totalmente maça... sendo totalmente maçante. Então, eu não conseguia pensar. Eu
me sentia muito mal só ter que acordar para trabalhar por ser de home office. Atender
sozinha, tudo mais. Então, para o tipo de trabalho como atendente no home office, a
pessoa sozinha... (parece embargar a voz) por um momento tinha chegado a ser horrível
para mim. Mas, depois... ali, eu tive umas conversas com os meus superiores, com os
meus colegas de equipe. Aí, depois disso, eu voltei, né? a ter metas produtivas. [...]
Desde a entrevista... quando a gente começou a entrevista, eu tinha acabado mais ou
menos ali de vir pro home office. Então, não tinha tanta experiência assim, né? Então, de
lá para cá, teve um aumento ali da questão da... da piora, realmente. Tinha chegado a
diminuir (o alcance das metas) por causa do meu emocional mesmo, né? que a questão
do home office... ficar sozinho por semanas. Tinha chegado a me dar um baque muito
grande. E que agora tá melhorando porque a nossa relação da equipe melhorou também e
tudo mais. Deu uma melhorada por causa dessa convivência. Mas, sim... Tinha chegado
a piorar bastante. Tinha chegado, por exemplo, antes de acordar, mesmo eu tendo... tido
folga durante a semana. Teve uma semana que eu tive três folgas seguidas. Foi terça,
quarta e quinta. E quando eu voltei para atender na sexta, mesmo tendo esses três dias de
folga, eu quase que eu me... eu queria chorar. Não queria acordar para trabalhar, mas
enfim... né? Mas depois de determinado episódio que a gente conversou com os
supervisores, deu tudo certo. E agora, a gente tá ok. Eu, né? no caso. Tô aqui para
acordar, trabalhar de novo, dar o meu melhor. E seguir, né? Cada um... cada dia, o seu
dia.

A menção "a gente" de Karina parece sugerir que a conversa com os supervisores fosse
para tratar de um problema que não se referia só a ela. A reunião coletiva coordenada pelo
supervisor é um exemplo da suavização das cobranças no trabalho remoto diante da pandemia.
Para além das vantagens objetivas do modelo que vão da redução de consumo de petróleo
a nível mundial com menos carros nas ruas, ao conforto dignificante de conseguir comer
sentado à própria mesa dez minutos depois de desligado o computador, o efeito colateral
imediato do home office é o esmorecimento da dimensão social do trabalho.

162
A afirmação de Karina de que os amigos a ajudam a permanecer na função também é
recorrente. Para todas elas, a construção de laços pessoais é um dos fatores mais importantes
para sobreviver no call center. É o que atesta a fala de Rute que deixou a empresa há quase
dois anos:

As relações seguram todo mundo. Tipo... isso é uma coisa que é... tipo, sabe? Todo
mundo que você for conversar sobre vai ser: "Rapaz, esse trabalho é uma merda, mas as
pessoas são ótimas!". Porque é muito isso mesmo. E aí, também não me pergunte
como... tipo: porque são só seis horas e vinte por dia... Não sei se é porque as pessoas...
sei lá: só trabalham, né? No caso das pessoas que só trabalham ou alguma coisa assim...
E é as únicas pessoas que você interage... "as únicas, né?" (Imita o gesto de aspas no ar
com os dedos). Mas tipo: você cria relações muito rápido, sabe? Então... tipo: não é
difícil você ver... sei lá... duas pessoas que começaram a namorar... duas pessoas que
trabalham lá, começaram a namorar e três meses depois elas começaram a morar juntas.
Ou então duas pessoas que são amigas e aí elas dividem aluguel, etc... e o quarto de uma
delas vagou e tipo: elas se conhecem há três meses, mas elas vão e moram juntas, sabe?
Tipo: não é difícil. Rola muito isso e é uma coisa que segura muito as pontas.

Nos casos de queixas sobre qualquer tipo de comprometimento da saúde mental desse
contingente de sujeitos no período, não parece ser algo explicável porque houve no home
office alguma demanda especial do trabalho que não fazia parte das atribuições anteriores
dessas pessoas. Há o acúmulo do temor de se viver em uma pandemia e, neste contexto, ficar
sem emprego devido a instabilidade de uma empresa que demite periodicamente setores
inteiros, além do aumento no volume de atendimento de alguns produtos, há um detectável
nível de desgaste compartilhado pela maioria das pessoas entrevistadas. Contudo, o fato
determinante para o agravamento dessas tensões e trazido à tona nas entrevistas de maneira
mais relevante é que, no home office, elas enfrentam todas essas dificuldades sozinhas:

É o que dá força para gente. Assim, as amizades que a gente faz dentro do call center é
o que nos mantém lá dentro. É o que nos faz querer assim... ir trabalhar. Eu tava ontem
conversando com a minha amiga. Então, tem pessoas que eu gosto muito que eu acho
que eu vou levar assim... sabe? Claro que o contato diminui. Mas, é uma pessoa assim
que quebrava a nossa rotina... que a gente chegava do lado assim na P.A. e conversava
sobre o que aconteceu. Então, hoje com o home office isso tá quebrado, né? Isso
quebrou. Isso foi... Então, eu tava até falando numa reunião que a gente teve que o home
office ele veio... é muito bom trabalhar em home office. Eu não quero nem voltar para lá.
Mas quebrou isso. Quebrou de eu tá conversando com meu amigo a tarde inteira falando
sobre o Big Brother, falando sobre qualquer coisa, sabe? O meu amigo dar a opinião
dele sobre alguma coisa que tá passando na minha vida, né? Qualquer coisa. Mas eu
acho que é importante pra gente conseguir ir. Sinceramente, assim... para mim, é pra
conseguir tá todos os dias... eu tava indo para lá todos os dias. Eu acho que é muito
importante. Não tem outra coisa assim... as amizades é o que faz a gente se fortalecer e
querer ir. Assim... todos os dias. Aí, eu vou trabalhar porque eu já sei que a resenha vai
ser boa. Então, como a minha função não era com voz, a gente tinha essa liberdade de tá
conversando. Digitando, mas tá conversando aqui, sabe? É tão robótico que a gente
consegue conversar digitando. Então, ah... uma pausa. Vai todo mundo junto pra pausa.
Será que vai dar? A gente ia para pausa. Tentava dar a pausa lá, nos mesmos horários.

163
Então isso muda, entendeu? Eu acho que isso faz com que você queira ficar um
pouquinho ali. Isso quebra essa coisa do trabalho, entende? (Luana, 26)

Durante as entrevistas, ficou evidente que esses laços são tão importantes que
transbordam o espaço designado como ambiente de trabalho. E, como relatado por Jonas no
capítulo anterior, muitas vezes, este se torna o círculo de amizades mais frequentado e mais
importante.
A dimensão objetiva da necessidade financeira que levou essas pessoas ao call center
precisa ser complementada pela dimensão subjetiva do laço construído com a colega do lado
para que estas mulheres e homens consigam permanecer na função. O afeto no call center
também é resistência. Em seu estudo de caso sobre um call center da indústria paulista, Ruy
Braga (2014, p. 36) faz o mesmo diagnóstico:

[...] Logo, o funcionamento do sistema de metas tende a reforçar a solidariedade no


interior do grupo de trabalho, emulando o trabalhador. Além disso, tendo em vista a
grande concentração de jovens e mulheres no telemarketing, é muito comum a formação
do que se costuma designar por “panelinhas”, pequenos grupos de jovens que se
conhecem no trabalho, mas que também se encontram nas folgas, compartilhando
hábitos de lazer e de consumo. Relatos de viagens e de passeios com colegas de trabalho
são frequentes. Durante as entrevistas com teleoperadoras, ficou patente a importância
desses vínculos de amizade tanto para o sucesso das metas quanto para o desejo de
permanecer na empresa ou na mesma operação.

No atendimento presencial, quando dentro da operação, as funcionárias procuravam o


apoio umas das outras trocando frases de consolo quando percebiam que um atendimento
consternou a colega ao lado, se distraindo com conversas entre um atendimento e outro,
manipulando as pausas para desfrutarem juntas o intervalo. Quando fora da operação,
organizavam saídas em grupos, se reuniam nos finais de semana, frequentavam bares, saiam
direto do trabalho para comer em algum lugar. No home office a ausência dessas relações pesa
muito.
O que restou para driblar o isolamento são os grupos formados nos aplicativos de
mensagens usados para compartilhar informações e trocar experiências, mas também para que
essas pessoas se apoiem, se ajudem com humor e criem ferramentas para tornar o trabalho no
isolamento mais suportável. Para quem não criou tais laços antes da pandemia ou mesmo para
quem é recém-contratada da corporação é possível presumir uma rotina ainda mais
individualizante.

Impressões sobre o home office

164
As dificuldades, portanto, foram de toda ordem e se algumas trabalhadoras não
enfrentaram problemas em uma área, enfrentaram em outra. Quem não tinha os equipamentos,
precisou adquiri-los, fosse pegando emprestado ou comprometendo meses de salário com a
compra de um novo. Quem já tinha os instrumentos, teve problemas de adaptação do
ambiente ou em relação à requerida privacidade. Quanto à execução do trabalho em si, os
problemas foram causados pelo próprio sistema da empresa, por falhas de conexão,
interrupção dos serviços de internet e até quedas de energia.
Diante de todo esse panorama, podemos concluir que a experiência do home office traz a
complexidade de ser ao mesmo tempo libertadora e individualizante; protetora, mas invasiva.
A grande maioria dos sujeitos desse estudo declara que não pretende voltar ao atendimento
presencial, mesmo se extinta a pandemia. Com exceção de Karina, todas aprovam o home
office, ainda que identifiquem os problemas desse regime de trabalho e a negligência com que
foram e são tratadas pela empresa. Há alguns elementos centrais para essa aprovação: as
pessoas entendem que houve ganhos significativos em termos de qualidade de vida com o
trabalho remoto, em especial, uma certa autonomia adquirida de gerência do próprio tempo:

Luana – Eu acho ótimo sabe, sério... trabalhar em home office (risos). Eu acho assim
que eu não quero voltar nunca mais (risos).

Pesquisadora – Sério? Se te derem a opção... acabou a pandemia. E aí, você volta ou


não?

Luana – "Luana, você quer ficar em casa ou você quer voltar?". "Eu quero ficar em
casa!". É muito bom, pelo amor de Deus! Tem um amigo meu assim... que tá doido por
causa da convivência com os amigos, né? Mas mudou em tudo. Porque eu consigo
trabalhar tranquila. Eu consigo trabalhar do jeito que eu quero. Não perco mais meu
tempo em ônibus, em carro, em trânsito, sol quente. Não, gente... risco de ser assaltada,
risco de ser morta, de ser estuprada. Tudo que você imaginar. Assim... fora que tira o quê?
uma hora e meia... três horas... Sei lá, eu levava uma hora quando eu ia de ônibus, uma
hora para ir, uma hora para vir. Então, tudo... sabe? Tudo. Eu só vejo vantagem. Eu
consigo praticar minhas atividades físicas de manhã. Chegar em casa de 8:30h, tomar
meu banho, bater meu ponto de 9 horas, gente! Da onde que eu ia conseguir fazer isso?
Entendeu? Mas assim... a princípio, eu só vejo vantagem.

...

Mas, enfim... É bem mais positivo por essas liberdades, sabe? Eu não preciso, por
exemplo, ficar segurando xixi para esperar a hora do meu intervalo. É... sei lá... se não tá
contato nenhum. Eu, às vezes, vou rapidinho, assim... no banheiro e volto, sabe? Ou, por
exemplo, o almoço que eu te falei né? que é muito rápido, que fica o tempo para comer.
Tanto eu almoço melhor porque aqui eu moro com a minha família. Aí, enfim.. eu como
uma comida melhor, né? Não é só comida que eu preparava para levar que eu levava
pouco, já considerando que era pouco tempo. E aí, muitas vezes, não dá tempo de
terminar né? na hora do almoço. Aí, eu venho com o prato para cá e como. Beleza que eu
geralmente termino o prato frio, com a comida fria porque eu chego e na hora do almoço
tem muito contato. Aí, fico respondendo contato um atrás do outro, um atrás do outro.

165
Quando eu tenho uma pausa, eu termino o meu almoço que eu deixei o prato do lado.
Bebo mais água. Bebo outras coisas também que na operação não podia, né? Bebo café e
tal. (Laís, 23)
...

Olha, mudou muita coisa. E eu vejo muitas delas como algo positivo. Por exemplo, eu
consigo viajar. Eu consigo ir para o interior e trabalhar de lá. Desde que haja internet, eu
posso trabalhar de qualquer lugar. Eu aproveito mais o tempo porque eu retiro esse
tempo de deslocamento, né? Então, se eu trabalho às 3:40h, eu preciso ligar o
computador às 3:20h, 3:30h. Só para dar o tempo de ligar os sistemas, né? Eu tenho todo
esse.. 10 horas acaba o expediente? Desliga o computador de 10:00h. De 10:05h, eu já tô
tomando banho para comer e dormir. É diferente de quando eu já tava na empresa. Então,
eu vejo isso como pontos positivos. Hoje como eu tô adaptado, eu não gostaria de voltar
para operação. Hoje, se eu disser a você que eu não gosto de home office eu vou estar
mentindo. Eu me adaptei ao home office. Inclusive, prefiro o home office. Eu acho... eu
vejo como um futuro promissor. Eu acho que cada vez menos a gente precisa tá nas
empresas para desenvolver trabalho. Eu acho que é positivo tanto para a empresa quanto
para gente. Em alguns aspectos, né? Porque poupa nosso tempo. Eu posso trabalhar... por
exemplo, se aparecer alguma proposta de emprego para mim no interior, eu posso
trabalhar sem pedir demissão, desde que seja só de manhã porque eu vou ter internet no
interior para trabalhar à tarde. Então abre possibilidades para mim. Eu fico no meu
conforto. Posso beber a minha água. Posso comer a minha comida. Posso ir ao banheiro
no momento em que eu quiser, sem ter que tá batendo cartão de ponto para sair da
operação. E também tem a questão da diminuição dos custos da empresa que eu acho
que eles devem achar isso benefíco. Só que eu acho que também não deveria ser tanto.
Eu acho que a empresa deveria dar um suporte a mais, né? (Igor, 24)

A segurança, a liberdade, um sentido maior de autonomia, assim como a possibilidade de


se trabalhar de outro lugar que não seja a própria casa foram citados na maioria dos relatos
como pontos favoráveis do trabalho remoto. Vindo do interior, Igor menciona que não estar
fixado nos estabelecimentos da empresa, dependendo apenas do acesso à internet para
executar suas funções, permite que ele viaje nos finais de semana para ver os pais, moradores
de outra cidade.

Depois da confusão do período inicial, rapidamente foram identificados os elementos mais


opressivos da função e as funcionárias passaram a elaborar estratégias de resistência a essa
pressão. São articulações que funcionam como um mecanismo de defesa que as ajudam a
sobreviver no meio ambiente comum dos call centers. Não se trata de uma resposta específica
à mudança no modelo laboral trazido pela pandemia, mas são estratégias que também se
desenvolvem na intimidade dos seus lares e, por isso dispõem de mais recursos para serem
bem-sucedidas.

Como pontuado por Antonio Gramsci, no automatismo existe a busca da perfeição dos
gestos para que a atividade possa ser deslocada da atenção da trabalhadora para o plano
secundário. Ele é alcançado ao custo da própria saúde, contudo, para quem consegue alcançar
esse nível de concentração, se estabelece uma separação muito clara entre a execução da

166
tarefa e a dimensão intelectual que a funcionária blinda para proteger. Pode-se buscar essa
preservação em conversas com colegas, no trautear de uma música ou na simples abstração
que permite a imaginação passear por resgates de memórias, monólogos internos, planos para
o futuro: a liberdade de que fala Gramsci. O atendimento por voz é considerado mais
impiedoso, justamente porque é o mais invasivo da dimensão intelectual dos sujeitos. Ainda
assim, mesmo nessa modalidade, o home office permitiu um alcance maior dessa liberdade.

Em casa, o automatismo de algumas funções que já acontecia no regime presencial passa a


ser acompanhado pelo relaxamento de ouvir uma música durante o trabalho, acender um
insenso no quarto, dedicar algum tempo à leitura, acompanhar as redes sociais, assistir a um
filme ou a série preferida na televisão posicionada atrás do computador. O devaneio de que
fala Bachelard:

Nessas condições, se nos perguntassem qual o benefício mais precioso da casa, diríamos:
a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa nos permite sonhar em paz.
Somente os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos. Ao devaneio
pertencem os valores que marcam o homem em sua profundidade. O devaneio tem
mesmo um privilégio de autovalorização. Ele desfruta diretamente seu ser. Então, os
lugares… onde se vê o devaneio se reconstituem por si mesmos num novo devaneio. É
justamente porque as lembranças das antigas moradias são revividas como devaneios que
as moradias do passado são em nós imperecíveis. (BACHELARD, 1978, p. 201)

Com a possibilidade de manejo das pausas ou simplesmente aproveitando um momento de


menor fluxo de atendimento, as pessoas conseguem usar o banheiro quando precisam sem
prejudicar as próprias métricas ativando a pausa do sistema, tomar um pouco de sol ou até
um banho rápido no meio do expediente. Podem se permitir trabalhar acompanhadas de uma
xícara de chá ou café, batendo papo no celular ou apreciar a companhia do gato de estimação.
As horas de deslocamento poupadas se refletem no aumento das horas de sono, na maior
dedicação ao preparo e apreciação dos alimentos, no cuidado de si e da casa, na maior
convivência com familiares e co-residentes. Isso as dignifica.
Foram essas implicações do home office que impactaram a rotina de trabalho de modo a
suavizar as características da experiência presencial no call center. O espaço em que o
trabalho está sendo executado não evoca as pressões do modelo anterior, como quer Gaston
Bachelard (1978, p. 201): “É necessário mostrar que a casa é um dos maiores poderes de
integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos [...]”.
A ideia de gerência do próprio tempo difundido pelas classes privilegiadas com o home
office, ainda condiciona a ida para casa ao cumprimento de metas. Todavia, funcionárias e
funcionários das big techs que trabalham de casa podem definir a sua escala de trabalho

167
livremente, contanto que cumpram os prazos e os acordos selados com suas empregadoras.
Podem escolher trabalhar exaustivamente em um dia para descansar no outro ou escolher um
turno do dia, por exemplo. No caso do call center, as funcionárias ainda estão atreladas a
uma jornada de trabalho rígida, com apenas uma folga por semana determinada
unilateralmente pela empresa. Para além disto, estão atreladas a um ritmo frenético de
trabalho que tenta eliminar momentos improdutivos de ociosidade. Isto é, trata-se de uma
condição tão opressiva que o mínimo controle do próprio tempo conseguido com o trabalho
remoto se constituiu como um momento determinante para a melhoria da qualidade de vida
dessas pessoas:

A ideia de soberania sobre o próprio tempo desempenha um papel crucial na maioria das
noções sobre o que constitui a qualidade de vida. Estudos sobre a vida no trabalho
mostraram que a autonomia e o controle sobre o desenvolvimento das próprias
atividades são fundamentais para o sentimento de bem-estar e satisfação no emprego,
enquanto a falta deles contribui grandemente para doenças relacionadas ao estresse.
Negociações entre empregadores e trabalhadores, ao longo dos séculos, têm se centrado
na questão do tempo: a imposição do "tempo do relógio” sobre os ritmos mais variados e
aprazíveis da era pré-industrial; os embates sobre a extensão do dia de trabalho ou da
semana, ou a concessão de feriados; e os conflitos contínuos sobre a velocidade do
trabalho, com ondas sucessivas de tecnologia dando aos empregadores cada vez mais
precisão em seu controle sobre o ritmo do trabalho, enquanto também dão aos
trabalhadores meios mais engenhosos de resistência. (HUWS, 2017, p. 241)

Ursula Huws apresenta o tempo como um alvo de disputas entre patrão e empregadas e
empregados constituído de dois elementos: o quantitativo, referente à quantidade de tempo
cedido ao patrão e o qualitativo, referente ao controle do tempo pelo sujeito. No trabalho
remoto, o primeiro se manteve, embora seja possível prever que, depois da readequação
completa das ferramentas operacionais, haja um novo ciclo de intensificação do trabalho. O
call center, como uma espécie de epítome da racionalidade taylorista de controle,
adestramento e submissão das subjetividades à fisicalidade, já dá sinais do aprofundamento da
exploração do trabalho imposta pelo modelo produtivo desumanizante do sistema neoliberal.
Ainda assim, vemos que o afrouxamento da vigilância do ecossistema panóptico,
inadvertidamente, reconfigurou as relações, aumentando o tempo qualitativo de que fala
Huws.
Separar a dimensão home do office, como aconselha a jornalista Márcia Breda, é o que
garantiria a demarcação desses dois espaços, evitando uma confusão prejudicial à
produtividade. No entanto, o mosaico da experiência desses sujeitos parece indicar que alguns
momentos de superposição da dimensão home da equação foi essencial para a preservação da
dimensão subjetiva dessas pessoas. Houve uma sensação de maior liberdade com a

168
possibilidade de um pouco mais de controle sobre o tempo proporcionada pelo aconchego do
lar:

Pois a casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz frequentemente, nosso primeiro
universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo. Até a mais
modesta habitação, vista intimamente, é bela. Os escritores de “aposentos simples”
evocam com frequência esse elemento da poética do espaço. Mas essa evocação é
sucinta demais. Tendo pouco a descrever no aposento modesto, tais escritores quase não
se detêm nele. Caracterizam o aposento simples em sua atualidade, sem viver na verdade
a sua primitividade, uma primitividade que pertence a todos, ricos e pobres, se aceitarem
sonhar. (BACHELARD, 1978, p. 201)

Para essas pessoas, voltar à casa adquire o simbolismo de "volta a si mesmo" de que fala
Thich Nhat Hanh, a resistência está na humanização e na recuperação da integridade que o
monge defende. Em casa, esses indivíduos "são sujeitos, não objetos", são mais que simples
trabalhadoras, empregadas e funcionárias. A casa "restaura a dignidade negada" pelo call
center, nela são filhos e filhas, irmãos e irmãs, parentes ou esposas, amigos de alguém.
Apoderando-se mais do próprio tempo a característica onipresente do trabalho pôde ser
redimensionada e ressignificada. Não se trata de uma autonomia soberana, dado que a
natureza opressiva do trabalho não mudou, mas de uma posse que atua nas brechas, nas
frestas da imposição das obrigações. É celebrada na distração da TV, na caneca de café no
meio do expediente, na música que acompanha o ritmo das teclas, no cheiro de insenso, na
troca de algumas palavras com os co-habitantes, na busca pela cor ao final do dia.
A resistência proporcionada por “meios mais engenhosos” criou o espaço para onde as
subjetividades dessas mulheres e homens pudessem se expandir e se tornar mais capazes de
estabelecer o bloqueio necessário à proteção de suas identidades. Contudo, essa resistência
desenvolvida nos laços pessoais, na proteção encontrada nos lugares de abrigo pertencem,
ainda, ao território dos afetos pré-políticos. No próximo capítulo, serão exploradas as
possibilidades de encadeamento deste rastilho com uma proposta de expansão do nosso
horizonte político.

169
5 – A CENTRALIDADE DO PAPEL DA SUBJETIVIDADE NA DISPUTA
POLÍTICA: DESCOLONIZAR, RESSIGNIFICAR, RECONSTRUIR

A racionalidade neoliberal promove a ambiguidade de centrar o sentido da existência dos


sujeitos no predicado de uma produtividade esvaziada de sentido, ao mesmo tempo, em que é
responsável por destituí-los da capacidade de se apossarem do trabalho como uma força
criadora, transformadora não só da realidade do indivíduo como da sua família e da
comunidade a qual pertence. Depois de identificar esses elementos na experiência concreta
dos sujeitos do call center, identificando a forma com que as normativas do sistema atrelam a
existência dos indivíduos diretamente à sua capacidade produtiva, aos símbolos ligados ao
status e à sua capacidade de consumo, empobrecendo os sentidos do trabalho e degradando o
significado dessa experiência, retornamos à pergunta inicial proposta por esse estudo: “Qual o
papel do trabalho na sociedade urbana informacional do século XXI?”.
Ainda que o modelo de trabalho tenha sido reconfigurado pelos avanços das tecnologias
informacionais, pelo aumento da importância do setor de serviços no atual modelo produtivo,
o esvaziamento do campo e expansão das metrópoles, pelos efeitos da globalização e, mais
recentemente, pela pandemia, ele atende ao mesmo princípio que o caracterizava na sociedade
industrial: o estímulo ao consumo para trabalhadoras e trabalhadores com o objetivo de
expandir o capital dos donos de meio de produção é a finalidade última das relações de
trabalho.
Seja experimentado em termos de emprego ou em relações de informalidade, o trabalho no
sistema capitalista serve à criação incessante de nichos de consumo. Por não comportar os
mesmos padrões de consumo para todas as classes sociais, dependendo do aprofundamento do
fosso entre os que se encontram nos polos verticais do sistema, passemos a considerar
possíveis efeitos de todo esse processo.

5. 1 – A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO É O SINTOMA DA VIDA


PRECÁRIA

A forma precária de contratação das empresas terceirizadas causam uma gradação na piora
das condições de trabalho: quanto mais distante o contrato se encontra das atividades-fim de
uma empresa ou atividade, mais vulneráveis estão os seus trabalhadores e maiores os riscos
ocupacionais aos quais estão expostos. A análise da cena laboral do setor amplamente
terceirizado do call center e de todos os processos desencadeados pela crise sanitária nos

170
permitiram concluir que, tal qual o fenômeno da “quarteirização” e da “uberização” do
trabalho, o home office é mais um elemento que aprofunda o fenômeno da precarização.
Em uma economia centrada na especulação financeira, nas transações da bolsa de valores,
frequentemente definida como pós-industrial e concentrada no setor de serviços, as
modificações acarretadas pela Reforma Trabalhista de 2017 seguem os ditames emanados do
centro do sistema capitalista. A legislação atende à tendência global e abre o caminho para
uma nova etapa de reestruturação das relações de trabalho, a saber: a ampliação de elementos
discricionários dos contratos, favorecendo as negociações entre patrões e empregados em
detrimento da letra da lei, algo referido como “primazia do negociado sobre o legislado”;
autorização da terceirização de atividades-fim das corporações; legalização da chamada
“pejotização” do trabalho que permite a contratação de profissionais como pessoas jurídicas,
regime de contrato que isenta a empregadora do pagamento de direitos trabalhistas.
Todas essas mudanças aliadas à transferência dos custos patronais conseguida na pandemia,
sinaliza que a próxima investida neoliberal no Brasil pode ser o da abolição da mediação da
Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) nas relações laborais. Em outra frente, se
iniciam as tentativas de eliminação do instituto da estabilidade dos cargos públicos com a
Proposta de Emenda Constitucional 32 de 2020 de autoria do Poder Executivo (BRASIL,
2020d). A proposta tramita na Câmara dos Deputados e deve ser votada ainda em 2021.
Os experimentos do trabalho sem vínculo de start ups como Rappi e Uber estão no
horizonte dessa investida. Depois da espécie de “laboratório” que a crise sanitária
proporcionou com o home office, as transferências de custos observadas no processo podem
ser institucionalizadas com uma total “uberização” de diferentes atividades laborais, com
todas as trabalhadoras e trabalhadores sendo contratados como freelancers. Seu status, neste
caso, passaria daquele consolidado no art 3ª da Consolidação das Leis do Trabalho (2017, p.
18) que define como empregado “toda pessoa física que prestar serviços de natureza não
eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário” para o definido por
Ludmila Abílio (2019, p. 2) em seu conceito de uberização: “Um autogerente subordinado
que arca com os riscos e custos de sua própria produção, sendo utilizado na exata medida das
demandas do mercado.”.
Embora essa imagem não reflita, ainda, a realidade brasileira, ela vem sendo testemunhada
tanto em países que adotaram as políticas de bem-estar no início do século XX e conheceram
seu declínio a partir da crise do petróleo, quanto nos Estados Unidos, país que esteve mais
próximo do Estado de bem-estar com a implementação do New Deal de Franklin D.

171
Roosevelt na década de 1930, radicalizando a retirada do Estado da vida social com Ronald
Reagan na década de 1980.
Um atento observador dos efeitos do fim das políticas de bem-estar e da crescente
uberização do trabalho na Grã-Bretanha é o cineasta Ken Loach. Juntamente com seu
parceiro de toda a carreira, o roteirista Paul Laverty, Loach oferece com sua filmografia uma
verdadeira crônica dos danos sociais provocados pelo regime neoliberal. Dois de seus mais
recentes trabalhos se ocupam dos processos de precarização acarretados desde o tatcherismo.
Eu, Daniel Blake (2016), retrata as consequências da dilapidação das garantias de
seguridade social para aqueles indivíduos que não mais servem à produção. A deterioração da
saúde por causa do trabalho, o desemprego, assim como o envelhecimento da população não
encontram proteção nos regimes de previdência frente ao desmonte do Estado.
Já Você Não Estava Aqui (2019) investiga os custos sociais e pessoais da generalização da
uberização do trabalho. Ao acompanhar Ricky Turner, um chefe de família de meia idade que
ingressa no mercado de delivery fazendo entregas sem vínculo empregatício com a
contratadora do serviço, Loach discute a exploração do modelo de negócios do setor de
serviços capitaneado por grandes empresas multinacionais como a Amazon. Uma experiência
de trabalho que drena de tal forma as horas, a força física e a energia psíquica dos sujeitos que
não deixa espaço para o mais básico da conexão humana: as vivências familiares.
À época do lançamento do filme, Paul Laverty explicou as intenções da obra: “Nosso
filme é uma tentativa de olhar para o caos da vida moderna, dominada pela tecnologia, que,
muitas vezes, promete nos libertar, mas nos escraviza. É sobre essa falsa ilusão de liberdade”,
diz ele. Ken Loach é mais cético sobre os efeitos nocivos da tecnologia e recusa a menção ao
termo “escravidão moderna” por julgar que a palavra pertence a outro contexto e pondera:
"Não é um problema da ciência, mas sim de quem controla essa ciência, dos proprietários da
tecnologia”. (OLIVEIRA, 2020). A ficcionalização de Você Não Estava Aqui investiga os
efeitos reais da recente “uberização da vida” e que também podem ser observadas no interior
de Pernambuco.
O documentário Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar amarra as
discussões trazidas por Você Não Estava Aqui, pois apresenta esses mesmos efeitos de que
trata Ken Loach no Nordeste brasileiro e vai além: adiciona o papel da subjetividade na
naturalização da gestão empresarial da vida. A frase dita pelo empregador de Ricky Turner
quando esclarece ao entregador nos seus primeiros dias de serviço: “Você não trabalha para
nós, você trabalha conosco” é a mesma razão que opera a indústria de fabricação de roupas na
cidade de Toritama, em Pernambuco.

172
O município conhecido como “capital nacional do jeans” reúne uma concentração de
trabalhadoras e trabalhadores do ramo de confecção que celebram a autoexploração na recusa
em trabalhar para alguém. Com ganhos pagos por produção de peças, jornadas de trabalho
que atingem 14, 15, 16 horas diárias e rotinas de costura que, por exemplo, podem chegar a
colocação em peças de roupa de mil bolsos ou zíperes por dia, pagos a dez centavos cada. Um
ritmo de trabalho tão frenético e incessante que fez o diretor Marcelo Gomes lançar mão de
uma trilha sonora incidental para encobrir o som das máquinas devido ao desconforto que
sentiu em uma cena. Gomes definiu a sensação como “angústia da repetição”. A fala de um
dos trabalhadores autônomos da cidade exemplifica o cálculo feito na naturalização desse
ritmo de produção. Ao ser perguntado por Marcelo Gomes sobre algum sonho que gostaria de
realizar, ele responde: "Ficar rico. Como tantos outros.". Todas as energias e o sentido mesmo
da existência drenados para o exercício pleno da sua capacidade de consumo.
As trabalhadoras e trabalhadores das confecções se enxergam como indivíduos livres e,
como elucida Gomes: “orgulhosos de serem donos de seu próprio tempo”. Todo esse
empenho é compensado quando as economias acumuladas durante o ano ou mesmo aquelas
adquiridas com a venda de produtos comprados no período permitem que a comunidade de
Toritama desfrute a semana de carnaval nas praias do Estado, deixando a cidade praticamente
vazia. Nessa espécie de “Potlatch”34 contemporâneo, as/os habitantes de cidade esbanjam os
frutos do trabalho de um ano inteiro nas praias para voltar às pequenas fábricas de jeans de
“fundo de quintal” no período de cinzas e iniciar o ciclo outra vez.
O papel que a cooptação das subjetividades da “classe-que-vive-do-trabalho” exerce na
aceitação de redução de direitos e na defesa do discurso empreendedor demonstrado no filme
também aparece na tese de doutoramento de Bárbara Castro (2013). A tese discute os
impactos que a flexibilização dos contratos de trabalho trouxe às/aos profissionais da área de
tecnologia da informação (TI), já que sua contratação é feita pelo formato “CLT-flex”. Isto é,
uma parte do salário é registrada na carteira de trabalho e o restante é recebido “por fora” sem
que a empresa arque com encargos trabalhistas. Embora o recorte temporal da tese trate de
uma realidade anterior à Reforma Trabalhista, entre outras coisas, ela discute a relação de
fraude da “pejotização” que não foi, oficialmente, legalizada com a lei de 2017. Mas foi

34
Potlatch é um festejo religioso de homenagem, geralmente envolvendo um banquete de carne de foca ou
salmão, seguido por uma renúncia a todos os bens materiais acumulados pelo homenageado – bens que devem
ser entregues a parentes e amigos. A própria palavra potlatch significa dar, caracterizando o ritual como de
oferta de bens e de redistribuição da riqueza. A expectativa do homenageado é receber presentes também
daqueles para os quais deu seus bens, quando for a hora do potlatch destes. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Potlatch>. Acessado em: 05 de jul, 2021.

173
facilitada com a admissão de contratação de profissionais autônomos com cadastro de pessoa
jurídica.
Além das discussões que a autora trava sobre o ethos de classe dos profissionais de TI e
sobre o home office, um dos pontos chave da pesquisa de Bárbara Castro, consequente para
esse estudo, diz respeito à maneira como as/os profissionais de TI se enxergam ante ao
contrato “CLT-flex”. Suas “percepções subjetivas” em relação às suas “relações de trabalho,
em especial sobre seus contratos, direitos e condições de trabalho” (CASTRO, 2013, p. 5) são
determinantes para que elas/eles traduzam a situação de precarização e diminuição de direitos
como “liberdade de escolha”. A opção por esse tipo de contrato parte das/dos próprias/os
profissionais que alegam possuir mais autonomia e “poder de negociação individual” com as
empresas contratantes, demonstrando os efeitos práticos da subjetivação gerencial da
categoria:

Os depoimentos colhidos para esta tese descortinam o processo de institucionalização da


instabilidade. Pretendo deixar claro que a despeito do discurso da escolha de vida de
serem empreendedores de si, há momentos dessas trajetórias profissionais e de vida em
que a condição de ausência de direitos trabalhistas torna-se um elemento fora do alcance
de qualquer controle, negociação ou manipulação possível por parte dos trabalhadores.
Quando alguns marcadores sociais da diferença são acionados em suas trajetórias, como
o gênero e as etapas da vida, no caso do que foi identificado por essa tese, a condição de
subordinação e constrangimento social ganham vida. (CASTRO, 2013, p. 56)

As conclusões de Castro amarram a discussão que propus no início do capítulo acerca da


circulação de uma imagética sobre o home office oriunda do topo da pirâmide dos setores de
tecnologia. A mesma mística sobre autonomia, liberdade e tomada de controle que se derrama
do topo da cadeia produtiva informacional, atinge as/os profissionais de TI, até alcançar as
trabalhadoras da base da pirâmide no call center. Um imaginário que camufla os danos da
precarização:

A ideia de que falta mão-de-obra qualificada no setor é secundada pela de que os poucos
profissionais qualificados podem negociar suas condições de trabalho e emprego. Esse
ideário combina com a retórica presente na flexibilização da legislação trabalhista: a da
negociação cada vez mais individualizada dos direitos trabalhistas. A atribuição de uma
vantagem de poder no jogo entre capital e trabalho contida na especialização de um
grupo de profissionais transborda em uma mística que se mostra perigosa para a
segurança social e emocional desse mesmo grupo. Como veremos, nem sempre o
imaginário do poder se traduz em vantagens reais ou em uma efetiva capacidade de optar
por diferentes tipos de contratos – flexíveis ou não. No entanto, esse ethos profissional,
amparado também pela retórica do empreendedorismo, estimulada por políticas
governamentais, serve para configurar uma ordem que torna justificável o uso de
contratos flexíveis no setor. (CASTRO, 2013, p. 188)

174
O documentário Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar e a tese de
Bárbara Castro traduzem as dificuldades de se buscar um retorno ao cenário anterior à
Reforma Trabalhista de 2017. As reivindicações que enxergam na simples revogação da lei a
solução para a perda de direitos que com ela se seguiu, parecem não considerar que essa busca
causa uma dissonância decisiva. Ter assegurados a estabilidade e segurança do emprego
deixou de ser prioritário para uma gama de trabalhadoras e trabalhadores que não querem
mais voltar à posição de empregadas/empregados subordinados por se enxergarem mais livres
sem as amarras de uma “carteira assinada”.
A cooptação demonstrada no documentário e na tese de Bárbara Castro sinaliza que
subverter o sistema ambicionando apenas a reinvenção das macroestruturas econômicas é algo
insuficiente porque esse movimento não ataca a razão mesma que lhe dá sustentação: a
identificação dos próprios sujeitos com o sistema.
Se o anacronismo do termo “escravidão moderna”, rejeitado por Ken loach, permite pensar
que foi no capitalismo que o trabalho livre assalariado surgiu, eliminando a escravidão do
modo de produção asiático, a escravidão clássica, a servidão medieval e a escravidão moderna
como coluna de sustentação da economia, ela também nos permite pensar que o capitalismo é
o sistema que inaugura a defesa do modelo de produção pelos mesmos sujeitos que explora.
Nele, elimina-se o exercício isolado do poder de coerção escravagista e suaviza-se a
exploração com o consentimento gerado por essa identificação. Como demonstrado por meio
da experiência das trabalhadoras do call center, a produção não acontece sem um
entrelaçamento com a vigilância. No neoliberalismo, os instrumentos de vigilância são
descentralizados e corporificados. Os sistemas autocráticos são substituídos pela instalação
gradual de um permanente Estado policial, aceito pela população em nome da segurança. É a
simbiose entre poder coercitivo e poder de convencimento, nos termos de Antonio Gramsci,
que garantem o sucesso da hegemonia do sistema.
A cooptação dessas subjetividades pelo ideário neoliberal não permite que as condições
dos velhos contratos sejam vistas como ideais para quem se enxerga como “patrão de si
mesmo”, ainda que as suas condições de vida ou não tenham melhorado objetivamente ou
tenham melhorado às custas da autoexploração. Essa contradição atesta o caráter de
“ilimitação” do capitalismo financeiro pós-industrial que “comprime as sociedades como um
nó de forca”, como apontam Dardot e Laval (2016). Ao atuar nas instâncias mais subjetivas
dos indivíduos, buscando sua captura e instrumentalização o sistema tenta “moldar” o sujeito
ideal da Grã-Bretanha à Toritama. O indivíduo absorvido joga contra si mesmo,
convencendo-se do ganho conseguido com a “liberdade” de um empreendedorismo rebaixado.

175
Fora da lógica de emprego, ele reflete as outras ambições de um sistema que não pretende
apenas a extração da mais-valia na exploração do trabalho, mas também que esses indivíduos
apresentem uma mentalidade consumidora, não mais buscando segurança na formalidade,
mas nos ganhos conseguidos devido à competição dos mercados dos quais participam
autonomamente:

Na prática, as pressões coletivas exercidas pelo Estado ou por outras instituições


(religiosas, políticas, sindicais, patronais e culturais), aliadas ao exercício do poder de
domínio do mercado pelas grandes corporações e outras instituições poderosas, afetam
de modo vital a dinâmica do capitalismo. Essas pressões podem ser diretas (como a
imposição de controles de salários e preços) ou indiretas (como a propaganda subliminar
que nos persuade a incorporar novos conceitos sobre as nossas necessidades e desejos
básicos na vida), mas o efeito líquido é moldar a trajetória e a forma do desenvolvimento
capitalista de modos cuja compreensão vai além da análise das transações de mercado.
Além disso, as propensões sociais e psicológicas, como o individualismo e o impulso de
realização pessoal por meio da auto-expressão, a busca de segurança e identidade
coletiva, a necessidade de adquirir respeito próprio, posição ou alguma outra marca de
identidade individual, têm um papel na plasmação de modos de consumo e estilos de
vida. Basta considerar todo o complexo de forças implicadas na proliferação da produção,
da propriedade e do uso em massa do automóvel para reconhecer a vasta gama de
significados sociais, psicológicos, políticos, bem como mais propriamente econômicos,
que estão associados a um dos principais setores de crescimento do capitalismo do
século XX. A virtude do pensamento da “escola da regulamentação” está no fato de
insistir que levemos em conta o conjunto total de relações e arranjos que contribuem
para a estabilização do crescimento do produto e da distribuição agregada de renda e de
consumo num período histórico e num lugar particulares. (HARVEY, 2008, p. 118)

Para a compreensão de um sistema que opera de maneira totalizante, a pesquisa propôs


buscar os efeitos objetivos e práticos de suas políticas, como também suas “propensões
sociais e psicológicas” de que nos lembra Harvey acima. A partir dessas relações, conclui-se
que o home office não é apenas uma forma de precarização das relações de trabalho, ele se
constitui como uma outra expressão da precarização existencial que é viver sob o regime
capitalista. A precariedade é a condição natural da vida no capitalismo:

Porque se, de acordo com os que valorizam a destruição dos serviços sociais, somos
responsáveis apenas por nós mesmos e certamente não pelos outros, e se a
responsabilidade é em primeiro lugar e acima de tudo uma responsabilidade de se tornar
economicamente autossuficiente em condições que minam todas as perspectivas de
autossuficiência, então estamos nos confrontando com uma contradição que pode
facilmente levar uma pessoa à loucura: somos moralmente pressionados a nos tornar
precisamente o tipo de indivíduo que está estruturalmente impedido de concretizar essa
norma. A racionalidade neoliberal exige a autossuficiência como uma ideia moral, ao
mesmo tempo que as formas neoliberais de poder trabalham para destruir essa
possibilidade no nível econômico, estabelecendo todos os membros da população como
potencial ou realmente precários, usando até mesmo a ameaça sempre presente da
precariedade para justificar sua acentuada regulação do espaço público e a sua
desregulação da expansão do mercado. (BUTLER, 2018, p. 19)

176
Em um movimento semelhante ao que aponta as análises apresentadas no livro
Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico sobre esse sistema propor uma “gestão
do sofrimento psíquico que ele mesmo produz”, Judith Butler indica que, da mesma forma, o
neoliberalismo causa a precariedade que será instrumentalizada discursivamente em ameaças,
com o intuito de que os sujeitos temam sua generalização: “A precariedade implica um
aumento da sensação de ser dispensável ou de ser descartado que não é distribuída por igual
na sociedade.” (BUTLER, 2018, p.20)
Sob esse ângulo, o período de “cerca de 25 ou trinta anos de extraordinário crescimento
econômico e transformação social” referido por Eric Hobsbawn (1995) como “uma espécie de
Era de Ouro” não pode ser lido como um momento de “pausa” das condições que o sistema
produz para a “classe-que-vive-do-trabalho”. A recente circulação do termo precarização
pode dar a entender que houve uma época em que o trabalho na era capitalista experimentou
condições fora da lógica de exploração. Isso nunca ocorreu.
As conquistas de direitos sociais no século XX, tanto nos países em que o Estado de Bem-
Estar Social foi implantado ou no Brasil com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
não significam que a realidade anterior das trabalhadoras e trabalhadores não fosse, em si,
precária. Aliás, esse é e sempre foi o estado de coisas constitutivo das disposições laborais das
trabalhadoras e dos trabalhadores brasileiros, assim como de todos aqueles que nasceram e
vivem nos degraus mais baixos do trabalho sob o sistema neoliberal.
A percepção de melhoria obtida com essas conquistas, pode obnubilar o estado de
precariedade que certas populações sempre sofreram. Por esse motivo, Kethleen Millar tece
uma crítica ao termo “precarização”. Millar encontrou um texto produzido em 1952 intitulado
"Pobreza e precariedade”35 escrito pela fundadora de uma instituição católica de caridade,
Dorothy Day. No artigo, Day trata da pobreza que observa ao seu redor, nas famílias de
brancos pobres, negros e imigrantes latinos que, ainda que se encontrassem empregados,
experimentavam diferentes níveis de dificuldades de sobrevivência relacionados à falta de
moradia, despejos, salários insuficientes para as necessidades diárias, desamparo em relação
aos problemas de saúde e até mesmo à insegurança alimentar. Uma condição que ela define
como de "destituição". Millar inicia sua crítica à noção de “precariedade” mencionando o
artigo de Dorothy Day porque, segundo ela, este é um conceito ou mesmo uma preocupação
relativamente nova, quase um "sintoma do momento histórico contemporâneo":

DAY,
35
Dorothy. Poverty and Precarity. Disponível em: <https://wp.lasalle.edu/cel/wp-
content/uploads/sites/6/2015/05/Poverty-and-Precarity.pdf>. Acessado em: 12 de jun, 2021

177
Eu menciono o artigo de Day por causa da sua contrariedade ao modo como a
precariedade é compreendida hoje, ironicamente, ele lança luz aos debates atuais sobre
esse conceito. O primeiro deles é a própria definição de precariedade. Quão recente é a
precariedade? Ou talvez seja melhor perguntar: "Para quem a precariedade é recente?".
Ademais, ao que a precariedade se refere especificamente? A uma condição laboral? A
uma identidade de classe? A uma experiência ontológica da existência humana? Ao
generalizado estado do mundo atual? (MILLAR, 2017, p. 2, tradução nossa36)

A leitura de que a pretensa estabilidade do keynesianismo-fordismo seria uma espécie de


“antítese da precariedade”, forja um antagonismo entre esse conceito e o de segurança com
repercussões para além das questões conceituais. Segundo Millar, o reconhecimento dessa
antítese poderia contribuir para a reprodução de exclusões sociais e a sustentação de modos
normativos de vida, uma posição conservadora de preservação do status quo. A forma de se
definir a precariedade não é, portanto, apenas uma questão analítica, mas também política,
alerta Millar. Ela segue sua análise direcionando a crítica à imprecisão analítica dada pela
abrangência do termo precariedade, contudo, mais interessa a esse estudo refletir sobre a
discussão que ela levanta sobre a ideia de “manutenção do status quo”.
A denúncia sobre a precarização do trabalho parece desejar o retorno das garantias
anteriores sob o signo da "segurança", sem propriamente realçar o estado de “destituição” em
que a “classe-que-vive-do-trabalho” sempre se encontrou no sistema capitalista. Retornar ao
estado de coisas anterior à Reforma Trabalhista de 2017, por exemplo, é retornar ao estado de
exploração do trabalho permitido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Isto é, não é
o sequestro dos sentidos do trabalho e a degradação de sua natureza pela deturpação
neoliberal que são endereçados nas nossas reivindicações e condenações da
desregulamentação, mas simplesmente, sua intensidade.
No Brasil, a centralidade do papel do trabalho na construção de uma sociedade que preze
por justiça social, a Nova República, é tão evidente que está consagrado na Constituição
Federal em seu art. 1º (BRASIL, 2016, p. 11) que preconiza “os valores sociais do trabalho”
como um dos princípios fundamentais que alicerçam o pacto federativo de 1988. Precedido
pelo inciso que também determina “a dignidade da pessoa humana” como valor a ser
perseguido, constatamos que o trabalho é o meio pelo qual a existência digna dos brasileiros é
assegurada. Desde lá, no entanto, assistimos ao desmantelamento das garantias trabalhistas
por políticas neoliberais, auxiliado pela completa desarticulação entre as bases sociais,
movimentos organizados, partidos políticos comprometidos com os valores do trabalho e
36
“I mention Day's article because its contrariness to the ways precarity is understood today, ironically, sheds
light on current debates around this concept. The first of these is the very definition of precarity. How new is
precarity? Or perhaps the better question is “for whom is precarity new?” Moreover, what does precarity
specifically reference? A labor condition, a class identity, an ontological experience of human existence, a
generalized state of the world today?”

178
sindicatos que os representem. Essa inação minou a capacidade de resposta coletiva ao
processo, também refletindo a descrença da maioria da população na organização política.
Um fenômeno observado por Ursula Huws (2017, p. 163) também na Grã-Bretanha quando
reflete sobre o conflito entre individualismo e coletivismo:

Retrospectivamente, parece-me agora que, dentre todas essas mudanças que ocorreram
nas últimas duas décadas, talvez a mais importante tenha sido a erosão de qualquer
crença no poder da ação coletiva, e a lenta constatação, em cada uma de nós, da
depressiva situação de que, se não fizermos por nós mesmas, as chances são de que
ninguém mais o fará. Parece-me que isso não levou apenas à desmoralização das pessoas
que tinham o comprometimento político de tentar tornar a vida melhor para as mulheres
trabalhadoras; também levou muitos milhares de trabalhadores individuais a fazer
escolhas para suas vidas (que talvez não fariam em épocas menos temerosas) que,
conjuntamente, transformaram a natureza do emprego e de outros aspectos de suas vidas
no trabalho. Ao perderem a fé na possibilidade de instituições públicas serem boas
locadoras, eles compraram seus apartamentos que eram anteriormente alugados. Ao
perderem a fé na possibilidade de ter seus filhos cuidados decentemente em creches
públicas, eles escolheram trabalhar em casa e cuidar eles mesmos. Ao perderem a fé na
possibilidade de seus sindicatos poderem assegurar seu futuro, eles escolheram colocar
seu dinheiro em fundos de pensão privados. A soma de todas essas decisões individuais
tem sido um colapso quase completo da infraestrutura pública, na qual novas
coletividades podem ser tecidas.

Diante do colapso das crenças políticas coletivas, o sistema volta a se fortalecer porque o
caminho para se garantir uma vida digna é encapsulada nas conquistas individuais.
No Brasil, sem fordismo ao qual retornar, as reivindicações pela retomada das garantias
legais perdidas na Reforma Trabalhista de 2017 oferece uma perspectiva de recuperação do
direito ao pagamento de horas extras sem compensação; das horas in itinere que computavam
na jornada o tempo de deslocamento até o local de trabalho no caso de locais de difícil acesso
ou que não eram servidos por meios de transporte público; do cômputo na jornada do tempo
reservado à alimentação, colocação do uniforme ou higiene pessoal; diminuição do intervalo
intrajornada reservado à alimentação; homologação obrigatória da rescisão dos contratos de
trabalho nos sindicatos, entre outros direitos perdidos. O que se almeja, portanto, é o retorno
ao status de exploração mais regulada do trabalho, como se fosse suficiente impor limites à
ferocidade do neoliberalismo, ao invés de suplantá-lo.
Como alertou Robert Castel, o desemprego não é uma característica que pode ser
suplantada com “um pouco de boa vontade”, tampouco é “uma bolha que poderia ser
absorvida”, a precarização é uma característica das dinâmicas da modernização, típicas das
reestruturações industriais operadas pela lógica da competitividade. O caso recente de
compras de vacinas contra a covid-19 pela startup de entregas Rappi para premiar com a
imunização apenas os entregadores com maior número de entregas, atesta que o estímulo

179
neoliberal à competição adquire contornos literais na eliminação dos mais fracos37. Os
empregados com salário-mínimo, os desempregados, os fenômenos dos quais a terceirização,
a quarteirização e o home office são exemplos, expressam graduações de penúria. A
precariedade, portanto, não é um atributo adicionado ao sistema, ela é a verdadeira condição
de funcionamento do neoliberalismo.
A resiliência mandatória de manutenção da vida só se explica porque os corpos precisam
se manter vivos para continuar produzindo. Sob esta perspectiva, este estudo passa a refletir
sobre que tipos de estratégias de contrapoder podem ser articuladas com a apropriação dos
mesmos elementos que o sistema captura.

5.2 – DESCOLONIZAR A SUBJETIVIDADE PARA CONSTRUIR A


COMUNIDADE POLÍTICA

A despeito dos horrores causados pela crise sanitária, as dinâmicas sociais impactadas pela
chegada da Covid-19 colocou no debate público discussões sobre a permanência de seus
efeitos. A crise desafogou os centros urbanos; diminuiu os índices de poluição; permitiu que
famílias estivessem juntas durante mais tempo; diminuiu o tempo perdido com deslocamentos;
abriu discussões sobre o impacto futuro que a descentralização das grandes empresas pode
causar nas dinâmicas imobiliárias, com possibilidades concretas de reconfiguração dos
processos de gentrificação nas cidades; finalmente, ao contrário do que temiam as grandes
corporações, não só não afetou os índices de produtividade como contribuíram para o seu
crescimento.
O cenário de risco de desemprego e perda de renda para uns, significou aumento de lucros
em razão do aumento de produtividade para outros: “Pesquisa realizada pela ISE Business
School mostra que, superadas as dificuldades iniciais, o home office aumentou a
produtividade de 60% dos entrevistados e ainda fortaleceu os laços familiares de 90% deles.”
(MENEZES, 2020). É o que constata Nathan Schultz, executivo senior da empresa de
educação tecnológica Chegg, apontando alguns motivos para esse sucesso: “Sem longos
trajetos para o trabalho, conversa fiada com os colegas e demorados cafezinhos na sala de
descanso, muitos trabalhadores — especialmente aqueles que não têm de se preocupar com o

37
REDAÇÃO Hypeness. Rappi propôs vacinação contra covid apenas em entregadores que mais
trabalham. Hypeness. Publicado em: 05 de jul, 2021. Disponível em:
<https://www.hypeness.com.br/2021/07/rappi-propos-vacinacao-contra-covid-apenas-em-entregadores-que-
mais-trabalham/>. Acessado em: 06 de jul, 2021.

180
cuidado dos filhos — estão produzindo mais.” (GELLES, 2020, tradução nossa)38. Esse
aumento de produtividade durante a pandemia se traduziu concretamente em lucros para as
empresas: “Os 20 indivíduos mais ricos do mundo acumularam 1,77 trilhão de dólares no
final de 2020, 24% a mais que um ano antes.”39. Deu-se mais um momento em que o
capitalismo socializou os riscos e individualizou os lucros.
Obviamente, sendo o capitalismo um sistema sem compromisso com a melhoria das
questões humanitárias e sociais, o aumento da produtividade e a corrida pelos postos mais
altos na lista de bilionários se deu ao custo da exploração da força de trabalho da classe que
não tem lugar no jogo decisório. Como sustentado nesse estudo, a crise sanitária abriu
caminhos para a implantação de políticas neoliberais em espaços reconfigurados pelos
avanços das tecnologias informacionais. As crises cíclicas do capitalismo sempre criam
espaços possíveis para seu aprofundamento.
É o que demonstra David Harvey, ao explicar que a implantação do fordismo na Europa
quando já se encontrava altamente disseminado nos Estados Unidos substituindo de vez a
indústria artesanal automobilística, enfrentou dois principais impedimentos nos anos entre
guerras. O primeiro fator diz respeito à oposição que os trabalhadores impuseram à rotina de
um trabalho que exigia longas horas de dedicação e pouco das habilidades manuais
tradicionais às quais eles se dedicavam e o segundo aos “modos e mecanismos de intervenção
estatal”:

Foi necessário conceber um novo modo de regulamentação para atender aos requisitos
da produção fordista; e foi preciso o choque da depressão selvagem e do quase-colapso
do capitalismo na década de 30 para que as sociedades capitalistas chegassem a alguma
nova concepção da forma e do uso dos poderes do Estado. A crise manifestou-se
fundamentalmente como falta de demanda efetiva por produtos, sendo nesses termos que
a busca de soluções começou. (HARVEY, p. 124 )

A análise de David Harvey encontra eco naquela oferecida por Pierre Dardot e Christian
Laval que entendem a crise de 2008 “como uma oportunidade inesperada” para as classes
dominantes, contribuindo para a sua “capacidade de autofortalecimento”, algo que só revelou
o “nó de forca” da “ilimitação” do sistema. Não obstante, mesmo que o poderio do sistema
seja capaz de tensionar as crises sempre a seu favor, ainda assim, conseguimos enxergar a
ressignificação dos efeitos da implantação do home office nas estratégias de enfrentamento ao

38
“Without long commutes, small talk with colleagues and leisurely coffees in the break room, many workers –
especially those who don’t have to worry about child care – are getting more done.”
39
ARANDA, José Luis. Pandemia faz as maiores fortunas do planeta dispararem. Publicado em: 01 de jan,
2021. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/economia/2021-01-01/pandemia-faz-as-maiores-fortunas-do-
planeta-dispararem.html>. Acessado em: 16 de jun, 2021.

181
caráter opressivo da experiência. As crises no capitalismo também possibilitam a capacidade
de inovação de estratégias de resistência ao sistema. Consequentemente, permite-se concluir
que a crise sanitária também pode fazer surgir brechas de oportunidades de contrapoder.
Um fato que aponta para essa possibilidade é o abandono das políticas de austeridade
frente ao caos social que só se aprofunda com o prolongamento da pandemia de covid-19. A
mudança de posicionamento do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da Organização para
a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em relação ao episódio vão de
encontro a tudo que sempre foi preconizado em favor do equilíbrio rígido das contas públicas
e o corte de gastos. A recomendação de observância da “disciplina fiscal” também foi
consolidada pelo evento que ficou conhecido como “Consenso de Washington” de 198940 e
foi acionada como uma espécie de receituário nas crises econômicas que se seguiram, desde
então.
Em relatório divulgado em outubro de 202041, o FMI surpreendeu ao recomendar aos
governos políticas de curto e médio prazo que priorizem a implantação de medidas que
assegurem a "proteção dos vulneráveis" com investimentos em saúde e educação. Além disso,
reconhece a necessidade de medidas que mitiguem os efeitos das mudanças climáticas e
recomenda investimentos em pesquisas que facilitem a inovação e o uso da tecnologia e em
projetos de infraestrutura sustentável com altas taxas de retorno, mas que estejam
comprometidos com a diminuição da dependência de carbono. Também indica que os
governos atuem no aumento da progressividade da cobrança de impostos fazendo com que as
corporações arquem com sua “fair share”, isto é, a “justa parte” da devida contribuição dos
lucros. Os ganhos, segundo o Fundo, devem ser compartilhados com “equidade” para que o
crescimento seja participativo e “beneficie a todos”.
Ainda que questionemos os efeitos concretos dessas recomendações e levantemos dúvidas
sobre sua longevidade frente ao eventual fim da pandemia, diante de décadas de uma defesa
incontestável das políticas de ajuste fiscal, equilíbrio das contas públicas, vigilância
incondicional aos riscos de endividamento e imposição de medidas de austeridade, a simples
recomendação para os governos adotarem medidas de transferência de renda é uma mudança
40
O Consenso de Washington é uma conjugação de grandes medidas — que se compõe de dez regras básicas —
formulada em novembro de 1989 por economistas de instituições financeiras situadas em Washington D.C.,
como o FMI, o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, fundamentadas num texto do
economista John Williamson, do International Institute for Economy, e que se tornou a política oficial do Fundo
Monetário Internacional em 1990, quando passou a ser "receitado" para promover o "ajustamento
macroeconômico" dos países em desenvolvimento que passavam por dificuldades. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Consenso_de_Washington>. Acessado em 16 de junho, 2021.
41
INTERNATIONAL Monetary Fund. World Economic Outlook: A Long and Difficult Ascent. Washington,
DC, 2020. Disponível em: <https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2020/09/30/world-economic-
outlook-october-2020>. Acessado em 13 de jun, 2021.

182
de curso significativa. Pode contribuir para a adoção de uma agenda que atue no
estabelecimento de um outro consenso.
Caso as forças contestatórias da ordem neoliberal tenham capacidade de articulação
suficientemente fortes para estabelecer uma espécie de consenso contra hegemônico, a crise
pode ser um momento frutífero para a reversão da aceitação das políticas de austeridade.
Como demonstra a promulgação da Lei Nº 13.982, de 2 de abril de 2020 (BRASIL, 2020b)
que concedeu o “auxílio emergencial” no valor de R$ 600, 00 durante o período inicial da
pandemia, sem enfrentar a mesma resistência social que a Lei Nº 10.836, de 9 de janeiro de
2004 (BRASIL, 2004) que instituiu o Programa Bolsa Família. O programa de segurança
alimentar foi ferozmente combatido pela mídia42 e referido pelo próprio Presidente da
República Jair Messias Bolsonaro como “bolsa vagabundo”43.
Seguindo a resolução do Supremo Tribunal Federal (STF) que determinou o pagamento da
renda básica universal em 202244, o cenário de crise sanitária pode favorecer a impulsão das
discussões sobre a necessidade de instituição da renda básica universal, por exemplo. Pode
dar a chance de renovação da percepção pública sobre essa política, tão central nas lutas
progressistas. A crise também pode abrir espaço para que as subjetividades neoliberais sejam
disputadas.
Tal qual Gramsci que reconheceu no fenômeno do americanismo-fordismo os métodos de
trabalho como "inseparáveis de um modo específico de viver e de pensar e sentir a vida”, a
pesquisa tentou demonstrar os desdobramentos dessa racionalidade na contemporaneidade,
assim como o papel que a produção de subjetividades gerenciais exercem na manutenção do
sistema. Por essa razão, também entendemos as subjetividades como o necessário elemento
central de disputas que pode transformar o campo político. A conclusão que se chega nesse
estudo é que será preciso descolonizar as subjetividades de seu molde neoliberal para, a partir
disso, descolonizar o trabalho e, por fim, reformular seus sentidos:

42
AZEVEDO, Reinaldo. O Bolsa Família e os “vagabundos” de Lula, que não plantavam mais macaxeira.
Disponível em: <https://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/o-bolsa-familia-e-os-vagabundos-de-lula-que-nao-
plantavam-mais-macaxeira/>. Acessado em 16 de jun, 2021.
43
MELLO, Igor. Antes de ampliar Bolsa Família, Bolsonaro defendeu fim do benefício. UOL. Publicado em:
17 de out, 2019. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/10/17/antes-de-
ampliar-bolsa-familia-bolsonaro-defendeu-fim-do-beneficio.htm>. Acessado em 16 de jun, 2021.
44
A Defensoria Pública da União (DPU) impetrou um mandado de injunção em razão da não observância da Lei
10.835/2004 que promulgou a renda básica de cidadania para brasileiros em situação de extrema pobreza com
renda per capita inferior a R$ 89 e R$ 178.O mandado foi apreciado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em
junho de 2021 que determinou a implementação da lei pelo Poder Executivo Federal a partir de 2022. Disponível
em<http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=464858&ori=1>. Acessado em 22 de jun,
2021.

183
Uma vida cheia de sentido, capaz de possibilitar o afloramento de uma subjetividade
autêntica, é uma luta contra esse sistema de metabolismo social, é ação de classe do
trabalho contra o capital. A mesma condição que molda as distintas formas de
estranhamento, para uma vida desprovida de sentido no trabalho, oferece as condições
para o afloramento de uma subjetividade autêntica e capaz de construir uma vida dotada
de sentido. (ANTUNES, 2009, p.110)

Lembrando que, segundo Pierre Dardot e Christian Laval (2016), o neoliberalismo é um


sistema normativo que conseguiu estender a lógica do capital “a todas as esferas da vida.”,
para suplantá-lo, portanto, é necessário que as estratégias de resistência e propostas de
subversão do sistema sejam igualmente abrangentes, capazes de responder ao seu caráter
totalizante.
A subversão dessa lógica deve ter um caráter "imanente" de aproveitamento de suas
próprias contradições, como defende María Alejandra Ciuffolini (2016, p. 88, tradução
nossa45):
Mas, além de sua crítica imanente, também é verdade que o neoliberalismo vem se
firmando como um novo substrato para demandas por democratização: uma série de
lutas que vem dando lugar a importantes conquistas. Visto desta forma, desde a sua
paradoxal positividade ou eficácia real, o neoliberalismo nos levanta o desafio de pensar
contra ele, mas sem cair em linguagens restauradoras de uma ordem obsoleta, no lugar-
comum da despolitização: a denúncia moral. [...] Portanto, submeter esta nova forma de
governamentalidade a uma crítica radical exige pensar desde o que o neoliberalismo já
produziu e produz. Isso significa reconhecer sua incidência incluindo a configuração dos
conflitos e das lutas que viabilizou para aqueles que se organizaram para resisti-lo,
abrindo-se a novas liberdades.

Segundo Ciuffolini, o neoliberalismo atua por meio de uma estratégia de deslocamento:


desloca a dimensão política dos conflitos e demandas sociais para o campo jurídico; baseia a
existência do indivíduo em signos de interesse e utilidade, o que desloca a primazia do sujeito
de direito político para o sujeito do interesse privado, estabelecendo uma nova modalidade de
subjetividade e relação entre os indivíduos; desloca as formas de dominação do Estado que
não se “retira” ou “renuncia” à intervenção, mas causa um "intervencionismo negativo", já
que “prepara e organiza as condições de sua retirada, deixando o solo fertilizado para o
desenvolvimento do capital”; finalmente, para cada expressão do “esquema soberania-
legitimidade”, o neoliberalismo aciona um dispositivo de repressão - captura - recodificação.

45
“Pero más allá de su crítica inmanente, también es cierto que el neoliberalismo se ha ido fijando como un
nuevo sustrato para demandas de democratización: una serie de luchas que han dado lugar a importantes
conquistas. Visto así, desde su paradójica positividad o eficacia real, el neoliberalismo nos plantea el desafío de
pensar contra él pero sin caer en lenguajes restauradores de un orden perimido, en el lugar común de la
despolitización: la denuncia moral. [...] Por lo tanto, someter a una crítica radical esta nueva forma de
gubernamentalidad exige pensar desde lo que el neoliberalismo ya ha producido y produce. Esto significa
reconocer su incidencia incluso en la configuración de los conflictos y en las luchas que habilitó en aquellos que
se organizaron para resistirlo, con la apertura hacia nuevas libertades.”.

184
Seguindo a proposta de Ciuffolini que vê a racionalidade neoliberal como “uma ideia
dotada de fertilidade paradoxal”, responsável por redefinir todas as relações de poder e
estruturar “uma nova linguagem da razão”, além de ser constitutiva das nossas percepções e
ações é preciso fazer com que os caminhos para suplantar o sistema “sejam pensados e
percorridos nas contradições que a própria arquitetura desta ordem abre”:

Precisamos imaginar caminhos teóricos que explorem trânsitos de desregulação da vida e,


assim, talvez possam ser desconstruídas as relações de sujeição e suas dinâmicas na
constituição das subjetividades. [...] Nos perguntarmos como a racionalidade neoliberal
opera é o primeiro passo para uma ruptura. Desentranhar sua lógica, talvez seja uma via
para fundar uma prática teórica de resistência, luta e transformação que não apela à
retórica do passado. Um nova linguagem é imprescindível e só será subversiva desta
ordem se for implantada a partir de dentro, de suas próprias contradições. (CIUFFOLINI,
2016, p. 99, tradução nossa46):

Todos os caminhos percorridos por essa pesquisa tentaram "desentranhar" a lógica de


funcionamento da empresa neoliberal, focalizando o papel do esquema de “repressão - captura
- recodificação” na atuação das subjetividades que esse sistema tenta sujeitar. Com o ensejo
lançado por Ciuffolini, ela será concluída com o que entende como caminhos para uma prática
de “resistência, luta e transformação” de que fala a autora. Essa forças serão pensadas a partir
de um outro esquema responsivo/propositivo: “descolonizar, ressignificar, reconstruir”.

Sentidos da subversão

Se identificamos a captura das subjetividades como elemento central na manutenção das


normativas neoliberais, não poderíamos partir de outro caminho para pensar a subversão desse
sistema. A primeira tarefa que se deve impor é perceber em si o quanto já se foi capturado,
descolonizar o inconsciente, desafiando a própria subjetividade para, assim, reinventá-la.
Suely Rolnik pensa esse caminho ao identificar um “inconsciente colonial-cafetinístico”
introduzido pelo capitalismo financeirizado e neoliberal. Um sistema que promove o
sequestro da instância subjetiva “no próprio nascedouro de seu impulso germinador de
mundos”, inaugurando o que Toni Negri e Michael Hardt definem como “capitalismo
cognitivo”. Ao propor a pergunta sobre que estratégias são necessárias para “driblar” essa
cooptação e em que consistiria o tal “protesto dos inconscientes”, Rolnik (2018, p. 18) nos
propõe deslocamentos que consigam desarmar as configurações do poder:

46
“Necesitamos imaginar carreteras teóricas que exploren tránsitos de desingularización de la vida y así talvez
podrán deconstruirse las relaciones de sujeción y su dinámica en la constitución de subjetividades. [...] Para
nosotros interrogarnos respecto de cómo la racionalidad neoliberal opera es el primer paso de una ruptura.
Desentrañar su lógica, quizá sea una vía para fundar una práctica teórica de la resistencia, la lucha y la
transformación que no apele a las retóricas pasadas. Un nuevo lenguaje es imprescindible y solo será subversivo
de este orden si se despliega desde dentro, desde sus propias contradicciones.”.

185
Assim sendo, o trabalho necessário para responder a esta pergunta nos exige que, junto
com o deslocamento da política de produção da subjetividade e do desejo dominante na
nova versão da cultura moderna ocidental colonial-capitalística, desloquemos igualmente
a política de produção do pensamento própria a essa cultura, ativando sua medula vital e
sua habilidade para desarmar as configurações do poder. Sem isso, nossa intenção morre
na praia. Da perspectiva desses deslocamentos, pensar e insurgir-se tornam-se uma só e
mesma prática; uma não avança sem a outra. Corrobora com essa indissociabilidade o
fato de que, embora tal prática só possa realizar-se, por princípio, no âmbito de cada
existência, ela não se dá isoladamente. Primeiro porque seu próprio motor não começa
nem termina no indivíduo, já que sua origem são os efeitos das forças do mundo que
habitam cada um dos corpos que o compõem e seu produto são formas de expressão
dessas forças – processos de singularização em cada um deles, que se esculpem num
terreno comum a todos e o transfiguram. Nada a ver com autorreflexividade,
interioridade ou assuntos privados. A segunda razão, inseparável da primeira, é que tal
prática alimenta-se de ressonâncias de outros esforços na mesma direção e da força
coletiva que elas promovem – não só por seu poder de polinização, mas também e
sobretudo pela sinergia que produzem.

Desse modo, o processo de descolonização subjetiva passa pela reformulação do


pensamento, o qual deve ser reinventado pela via da apreensão das formas e forças do mundo
(a realidade), pois a capacidade de decifrá-las é o que nos permite existir socialmente. Essa
apreensão se dá pela percepção (a experiência sensível) e pelo sentimento (a experiência da
emoção psicológica), portanto, trata-se de um movimento que já nasce associado a “códigos e
representações” dispostas socialmente, essa projeção nos permite atribuir-lhe sentido. Rolnik
nomeia essa capacidade de “pessoal-sensorial-sentimental-cognitiva” e o problema reside no
fato que sob o jugo do regime colonial “capitalístico”, essa função é hiperbolizada a ponto de
suplantar qualquer outra, reduzindo o espectro das nossas experiências.
A autora nos propõe a contraposição do que ela chama de “saber-do-corpo” ou “saber-do-
vivo” e, ainda, “saber eco-etológico” que se trata de uma capacidade “extrapessoal-
extrassensorial-extrapsicológica-extrassentimental-extracognitiva”, relacionadas aos sentidos
do verbo afetar, a saber: “tocar, perturbar, abalar, atingir”. É uma “emoção vital” fruto de um
“saber intensivo, distinto dos conhecimentos sensível e racional próprios do sujeito.”.
A subjetividade se vê tensionada entre o familiar, que deseja a “conservação das formas
em que a vida se encontra materializada” e o estranho, que deseja a “conservação da vida em
sua potência de germinação”, o ponto de interrogação que pergunta que caminho seguir, é
chamado por Rolnik de “inconsciente pulsional”. Esse mecanismo se constitui no motor dos
processos de subjetivação, acionando o desejo a agir. Sua interferência recobra um equilíbrio
vital, existencial e emocional.
A partir da análise da obra de Lygia Clark, Caminhando, de 1963, Rolnik sugere que a
subjetividade não deve negar o paradoxo entre o familiar e o estranho, mas sustentar-se nele,
“na tensão entre as forças que delas emanam”:

186
O que orientará o desejo em seus cortes, nesse caso, é a busca de uma resposta ao ponto
de interrogação que se colocou para a subjetividade ao se ver destituída de seus
parâmetros habituais. Em suas ações, ele se conectará com pontos inabituais da
superfície para fazer seu corte, buscando vias de passagem para a germinação e o
nascimento do referido embrião de mundo que habita silenciosamente o corpo. A
atualização desse mundo em estado virtual que seu gérmen anuncia se efetuará por meio
da invenção de algo – uma ideia, uma imagem, um gesto, uma obra de arte, entre outros;
mas também um novo modo de existência, de sexualidade, de alimentação, uma nova
maneira de relacionar-se com o outro, com o trabalho, com o Estado ou com qualquer
outro elemento do entorno. Seja qual for esse algo, o que conta é que ele carregue
consigo a pulsação intensiva dos novos modos de ver e de sentir – que se produziram na
teia de relações entre os corpos e que habitam cada um deles singularmente –, de modo a
torná-los sensíveis. Em outras palavras, o que importa é transduzir o afeto ou emoção
vital, com suas respectivas qualidades intensivas, em uma experiência sensível – seja
pela via do gesto, da palavra etc.–, e que esta se inscreva na superfície do mundo,
gerando desvios em sua arquitetura atual. (ROLNIK, 2018, p. 34)

É na ampliação da percepção, na retomada do desejo, ou seja, no ambiente da


micropolítica ativa que os atos de criação se constituem e “se inscrevem nos territórios
existenciais estabelecidos e suas respectivas cartografias, rompendo a cena pacata do
instituído”. Mover o motor do desejo, para Rolnik, é atuar sobre a vontade de conservação da
própria vida, ele cumpre “uma função ética de agente ativo da criação de mundos, próprio de
uma subjetividade que busca colocar-se à altura do que lhe acontece”. Buscando a arte como
fábrica para uma consciência repleta de poderes imaginativos, ela indica ser esta a
“micropolítica de uma vida, individual ou coletiva, que logra reapropriar-se de sua potência e,
com ela, driblar o poder do inconsciente colonial-capitalístico que a expropria”.
Rolnik prevê que o momento de tensão de aparecimento do ponto de interrogação causará
mal-estar àqueles que acreditam que a dissolução do mundo que conhecem signifique seu
próprio aniquilamento. Fruto da normativa capitalística, o sujeito enxerga o mundo pela lente
individualizante do encapsulamento e do consumo, o desmoronamento do “um mundo” que
conhece é interpretado como fim “do mundo”. Isso gera uma interpretação que vê a
desestabilização com mal-estar, o que Rolnik chama de “angústia do sujeito”. Ele enfrenta o
desconforto com evitamento e direciona sua subjetividade para o campo da moral procurando
culpados, o resultado é o cultivo de ódio e ressentimentos:

E esse outro demonizado pode ser uma pessoa, um povo, uma cor de pele, uma classe
social, um tipo de sexualidade, uma ideologia, um partido, um chefe de estado etc. São
as xenofobias, as islamofobias, as homofobias, as transfobias e outras tantas fobias,
assim como os racismos, os machismos, os chauvinismos, os nacionalismos e outros
ismos. (ROLNIK, 2018, p. 43)

Podemos observar o papel desse evitamento causado pelo desconforto de que fala Rolnik,
por exemplo, quando no espaço público, identificamos sujeitos de percepção “pessoal-

187
sensorial-sentimental-cognitiva” colonizada pelo regime “capitalístico” direcionando seus
sentidos para a vigilância e controle de outros sujeitos, monitorando os corpos, um defensor
do status quo.
Ou seja, se adotarmos uma micropolítica reativa de submissão que responde apenas às
tentativas de captura do nosso desejo para o consumo e reprodução dos sistemas de
familiaridade, resvalamos no domínio de uma bússola moral: o “lugar-comum da
despolitização” sobre o qual já nos alertava María Alejandra Ciuffolini. Descolonizar o
inconsciente requer que sustentemos o estranhamento e o desconforto da instabilidade do
familiar para que um novo equilíbrio se estabeleça. Para isso, defende Suely Rolnik (2018, p.
44), a micropolítica deve ser ativa e fundante, “um ato de criação que transmuta a realidade
com sua força instituinte” de tão modo transformadora que quebre “o feitiço do poder
tsunâmico da micropolítica reativa do capitalismo globalitário”. Sendo assim, concluímos que
é do embate entre as políticas do desejo que se constitui o campo de batalha na esfera
micropolítica.
Quando conclama que o cultivo da tensão advinda do desconforto que o choque entre o
familiar e o estranho causam nos leve a criar “uma expressão para aquilo que pede passagem,
de modo que ganhe um corpo concreto”, Rolnik centra a reconquista da linguagem como
tarefa constitutiva de um ideal de transformação:

Para os guaranis, tais necessidades são óbvias, como nos faz ver sua própria língua. Eles
chamam a garganta de ahy’o , mas também de ñe’e raity , que significa literalmente
“ninho das palavras-alma”. É porque eles sabem que embriões de palavras emergem da
fecundação do ar do tempo em nossos corpos em sua condição de viventes e que, nesse
caso, e só nele, as palavras têm alma, a alma dos mundos atuais ou em gérmen que nos
habitam nesta nossa condição. Que as palavras tenham alma e a alma encontre suas
palavras é tão fundamental para eles que consideram que a doença, seja ela orgânica ou
mental, vem quando estas se separam – tanto que o termo ñe’e , que eles usam para
designar “palavra”, “linguagem”, e o termo anga, que usam para designar “alma”,
significam ambos “palavra-alma”. Eles sabem igualmente que há um tempo próprio para
sua germinação e que, para que esta vingue, o ninho tem que ser cuidado. Estar à altura
desse tempo e desse cuidado para dizer o mais precisamente possível o que sufoca e
produz um nó na garganta e, sobretudo, o que está aflorando diante disso para que a vida
recobre um equilíbrio – não será esse o trabalho do pensamento propriamente dito? Não
estará exatamente nisso sua potência micropolítica? Não será isso o que define e garante
sua ética? E, mais amplamente, não será nisso afinal que consiste o trabalho de uma vida?
(ROLNIK, 2018, p. 13)

Assim como sabem os Guaranis, cuidar do “ninho de onde surgem as palavras” é a


condição de reestruturação do pensamento, única maneira de lançar à linguagem o impulso
criador de um outro destino. Descolonizar o que Rolnik entende como a “matriz da resistência
micropolítica” que é o inconsciente, portanto, passa pela transformação do pensamento, da

188
linguagem e do desejo. Uma transformação que não ocorre sem a substituição da bússola
moral pela bússola ética.
Um exemplo do efeito da desatenção a esse elemento é demonstrado na denúncia que faz
Ailton Krenak sobre a empresa colonial mal disfarçada na ideia de humanidade. Em seu
Ideias para Adiar o Fim do Mundo, Krenak (2019, p. 8) revela que, para criar uma reserva da
biosfera em uma região do Brasil, foi necessário tecer uma justificativa para a Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) explicando que “era
importante que o planeta não fosse devorado pela mineração”. Para essa instituição, explica
Krenak, “é como se bastasse manter apenas alguns lugares como amostra grátis da Terra.”. O
autor nos lembra que os sentidos do “chamado à civilização” com a justificativa de uma
pretensa inclusão na ideia de humanidade, estabeleceu “um jeito de estar aqui na Terra, uma
certa verdade, ou uma concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em
diferentes períodos da história.”. Esse ideal representado nas agências e instituições como a
UNESCO foram, segundo ele, configuradas e mantidas como estruturas dessa humanidade:
“E nós legitimamos sua perpetuação, aceitamos suas decisões, que muitas vezes são ruins e
nos causam perdas, porque estão a serviço da humanidade que pensamos ser.”:

As andanças que fiz por diferentes culturas e lugares do mundo me permitiram avaliar as
garantias dadas ao integrar esse clube da humanidade. E fiquei pensando: “Por que
insistimos tanto e durante tanto tempo em participar desse clube, que na maioria das
vezes só limita a nossa capacidade de invenção, criação, existência e liberdade?”. Será
que não estamos sempre atualizando aquela nossa velha disposição para a servidão
voluntária? Quando a gente vai entender que os Estados nacionais já se desmancharam,
que a velha ideia dessas agências já estava falida na origem? Em vez disso, seguimos
arrumando um jeito de projetar outras iguais a elas, que também poderiam manter a
nossa coesão como humanidade. (KRENAK, 2019, p. 8)

O molde colonial que a ideia de humanidade traz, além de excluir “todas as outras e todos
os outros seres”, encobre o fato de que a maioria está alienada do “mínimo exercício de ser”,
do mesmo modo o “mito da sustentabilidade” lançado por essas corporações, justificam “o
assalto que fazem à nossa ideia de natureza”. O que as nações indígenas entendem por
natureza é ilustrado quando o autor explica que o rio Doce, é chamado pelos Krenak de
“Watu” ou “avô”, trata-se de “uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas”.
Quando explica como se deu a resistência indígena ao longo de mais de 500 anos, Krenak
(2019, p. 15) nos ajuda a enxergar possibilidades no caminho: “A gente resistiu expandindo a
nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais. Ainda existem
aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras no Brasil, que falam
mais de 150 línguas e dialetos.”. Essa outra noção de natureza que reconhece a família nas

189
águas não perenes de um rio, aliada à expansão da subjetividade de que fala Krenak, é o que
lhes permite chamar os filhos de outras nações indígenas de “parentes”, ainda que essa
expansão tenha sido fundada sob o signo da diferença.
Essas alianças feitas a partir dos atributos e vivências do corpo, das particularidades das
identidades negadas e do esforço para uma subjetividade reformada surgem nas propostas de
Suely Rolnik em termos de “ressonância” ou mesmo quando ela busca suplantar a ideia de
“contágio” por “polinização”47. As alianças em torno da identidade e do que María Alejandra
Ciuffolini chama de “exploração dos trânsitos de desregulação da vida” são pontos de partida
que podem encadear o rastilho de revoltas micropolíticas na direção de ambições
macropolíticas.
Dos ecos atávicos do bar Stonewall Inn em Nova York em 1969 – marco da luta por
direitos de pessoas LGBTQIA+ – ao levante do Ferro’s Bar em São Paulo em 1983, sua
versão brasileira; do movimento Black Lives Matter que denuncia a violência policial nos
E.U.A. ao movimento #EleNão que protestou contra o então candidato à presidência Jair
Messias Bolsonaro em 2018 pode-se extrair propostas de contrapoder e expandir seus
significados para alianças forjadas por compromissos éticos de ampliação dos sentidos de
pertencimento. É uma proposta semelhante àquela evocada pelo termo Queer da sigla
LGBTQIA+ que, segundo Judith Butler (2018, p. 73) “não designa identidade, mas aliança, e
é um bom termo para ser invocado quando fazemos alianças difíceis e imprevisíveis na luta
por justiça social, política e econômica.”.
Esses compromissos éticos podem ser percebidos nas "assembleias" apontadas por Butler
como lugares políticos dos corpos que se aliam. Ao focar sua análise na importância das
manifestações públicas como chamado ao direito de reconhecimento, a autora devolve à
performatividade do corpo seu caráter político. Os “corpos em aliança” tanto buscam espaços
de legitimação para o exercício de identidades criminalizadas, quanto a agremiação das
diferenças por uma “vida vivível” ou uma “vida que importe”:

Do meu ponto de vista mais limitado, quero sugerir somente que quando corpos se
juntam na rua, na praça ou em outras formas de espaço público (incluindo os virtuais),
eles estão exercitando um direito plural e performativo de aparecer, um direito que
afirma e instaura o corpo no meio do campo político e que, em sua função expressiva e
significativa, transmite uma exigência corpórea por um conjunto mais suportável de
condições econômicas, sociais e políticas, não mais afetadas pelas formas induzidas de
condição precária. (BUTLER, 2018, p. 16)

47
Suely Rolnik foi alertada de que o termo que ela usava em suas análises para se referir aos processos de
alianças, "contágio", é um termo médico, por isso ela substituiu o conceito por "polinização", menos
patologizante.

190
Butler explica que desde a aparição de uma multidão na maior praça pública no centro de
Cairo no Egito, a Praça Tahrir, durante o inverno de 2010, o interesse sobre a potência política
das assembleias públicas tanto por estudiosos quanto por ativistas se renovou. A reunião
repentina desses grupos é importante porque podem servir como fonte de esperança para o
ativismo, mas também pode acionar o medo em relação ao poder da multidão.
A aliança dos corpos em assembleia, ainda que espontânea e expandida para além de seu
caráter identitário, mas com o profundo compromisso ético que as autoras propõem pôde ser
observado no episódio que ficou conhecido como Kenmure Street protests48, na Escócia. Na
manhã de 13 de maio de 2021, dois imigrantes indianos foram presos pelas forças anti
imigração do país e aguardavam para ser transferidos do local no veículo da polícia em frente
ao apartamento onde moravam na rua Kenmure em Glasgow. Enquanto a transferência não
acontecia, testemunhas do episódio ativaram uma rede de informações, convocando pessoas
ao local para se opor à deportação dos dois homens.
Ao longo de oito horas, uma multidão cercou o veículo policial aos gritos de “Imigrantes
são bem-vindos aqui!”, ao final do dia o chefe de polícia Mark Sutherland anunciou a
libertação dos indianos em nome da “segurança de todos” que estavam no local. No dia
seguinte, no muro da casa onde moravam os dois homens pousava uma faixa com os dizeres:
“Ninguém é ilegal!”.
As questões levantadas até o momento indicam acionamentos para a resistência
micropolítica de descolonização do inconsciente: para a individualização neoliberal, a
expansão da subjetividade; para o imperativo do consumo, o exercício do que se é; para a
nostalgia do “resgate”, o inédito da “reinvenção”; para a apropriação do trabalho, a
reapropriação da vida; para a pressão por resultados, o prazer dos processos; para a justificava
de esgotamento da natureza por ser “recurso”, a amplificação da noção de família; para a
condenação moral, as escolhas éticas.
A análise de Rolnik nos leva a pensar nas insuficiências de uma insurreição que parta da
transformação das relações macroeconômicas simplesmente: lançada na vertical luta de
classes, ela precisa ser adensada por movimentos contestadores de ordens mais profundas.

Em suma, há uma diferença fundamental entre os combates macro e micropolítico em


suas respectivas abordagens das relações de poder: se a operação de resistência
macropolítica visa redistribuir os lugares no interior das relações de poder, a operação de
insubordinação própria da esfera micropolítica visa, diferentemente, desmanchar tais

48
CAMPBELL, Glenn. Police release men from immigration van blocking Glasgow street. BBC News.
Publicado em: 13 de maio, 2021. https://www.bbc.com/news/uk-scotland-glasgow-west-57100259>. Acessado
em: 26 de jun, 2021.

191
relações, dissolvendo seus personagens, seus respectivos papéis e a própria cena.
(ROLNIK, 2018, p. 77)

Como denuncia a autora, ao não incorporar a esfera da micropolítica ao combate, os


sujeitos podem buscar libertação na superação das estruturas macroeconômicas vigentes e
serem capturados por traços de subjetividade que não se descolonizaram automaticamente no
processo.
Muitas estruturas apoiadas em relações assimétricas de gênero, sexualidade, religião,
territorialidade e alguns dos marcadores de diferenças vistos socialmente como nódoas são
anteriores ao advento do capitalismo. Trata-se de marcadores sócio-culturais potentes que
esse sistema reproduz e solidifica, mas nos desvios gerados pelas suas contradições, abre
brechas para as lutas individuais que permitiram as pautas hoje chamadas de “identitárias”.
Contudo, visto que pouco ou nada escapa do seu esquema de “repressão - captura -
recodificação”, ele só permite insurgências controladas em logradouros que as esvaziem
politicamente. Acomodadas para não questionarem a ordem, o destino de toda contestação
cativada é, sem surpresa, o consumo: o feminismo dos comésticos “empoderadores” e o
vestuário de inspiração punk nos shopping centers são bons exemplos desse movimento.
Em sua versão mais grotesca, corpos subalternizados em subjetividades colonizadas
podem recodificar o mecanismo de empoderamento em aventuras protofascistas. Por exemplo,
naquelas definidas pelo “homonacionalismo” de Jasbir Puar – termo que define o movimento
de adesão de pessoas LGBTQIA+ a ideais racistas/xenófobos capturadas por uma exaltação
patriótica, naquelas presentes no pink washing49 em defesa do sionismo israelense pelos
mesmos sujeitos, ou no apoio que setores feministas estadunidenses lançaram à invasão do
Afeganistão pelos E.U.A após os ataques de 11 de setembro de 2001, à pretexto da
“libertação” das mulheres muçulmanas.
À luz dessas experiências, destacamos a importância do exercício da micropolítica
condicionado à compreensão dos fenômenos pela chave da interseccionalidade50,

49
Pinkwashing (lavagem rosa ou lavagem de imagem rosa) é um empréstimo linguístico (do inglês pink, rosa, e
whitewash, branquear ou encobrir) para referir-se, no contexto dos direitos LGBT, à variedade de estratégias
políticas e de marketing dirigidas à promoção de instituições, países, pessoas, produtos ou empresas apelando a
sua condição de simpatizante LGBT. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Pinkwashing>. Acessado em:
24 de jun, 2021.
50
Segundo Kimberlé Crenshaw (2002, p. 177), a questão da interseccionalidade se refere a “uma conceituação
do problema que busca capturar as conseqüências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos
da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e
outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres,
raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas
geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do
desempoderamento.”.

192
compreendendo as implicações dos marcadores que atravessam nossos corpos. Dessa forma,
não nos tornamos vítimas da decantação subjetiva que empodera um elemento da identidade e
captura outro. Sem a preocupação de ampliação do nosso repertório com as perspetivas da
análise das opressões pelo prisma interseccional de gênero, por exemplo, não seremos capazes
de endereçar propriamente o papel que o acionamento dos signos de masculinidade e
virilidade cumpriram na chegada da extrema-direita ao poder no Brasil em 2018, capitaneada
pela figura de Jair Messias Bolsonaro. Sem o reconhecimento dos marcadores que
atravessaram o corpo da vereadora Mariele Franco, jamais compreenderemos os significados
de seu assassinato em 14 de março de 2018, no Rio de Janeiro.
Dado que, sob o capitalismo, os sujeitos são expropriados da sua força de trabalho, da
pujança sem amarras de suas subjetividades e do próprio direito de existir com suas nódoas
vitais é necessário que se adote uma articulação entre as esferas macro e micropolítica. São
dimensões da emergência política que estão longe de serem incompatíveis, na verdade, são
complementares. Vistas pelo prisma da interseccionalidade podem ampliar o seu poder de
alcance atingindo o máximo de sua potência.

Um outro fazer coletivo

Depois da descolonização das subjetividades, partimos para as alianças que as


subalternidades podem encadear promovendo uma capacidade articulada de enfrentamento.
No intuito de evitar a nostalgia do “resgate” de experiências de insurgências passadas, assim
como nos estender sobre a circunscrição de suas determinações históricas e, mais ainda, para
trazer ao trabalho uma perspectiva processual que demarque a atualidade das discussões aqui
propostas, este trabalho passa a retratar duas experiências contemporâneas que nos revestem
de certezas sobre possibilidades na construção de enfrentamento ao neoliberalismo. Trata-se
de experiências aqui entendidas como “fatos sociais totais” nos termos de Marcel Mauss51,
ampliando o caminho iniciado pelas subjetividades descolonizadas.

51
Marcel Mauss (2003, p. 187) cunha o termo para descrever o fenômeno do “potlatch” nas nações indígenas da
América do norte e explica suas origens: “Este trabalho é um fragmento de estudos mais vastos. Há anos nossa
atenção dirige-se ao mesmo tempo para o regime do direito contratual e para o sistema das prestações
econômicas entre as diversas seções ou subgrupos de que se compõem as sociedades ditas primitivas, e também
as que poderíamos chamar arcaicas. Existe aí um enorme conjunto de fatos. E fatos que são muito complexos.
Neles, tudo se mistura, tudo o que constitui a vida propriamente social das sociedades que precederam as nossas
- até as da proto-história. Nesses fenômenos sociais "totais", como nos propomos chamá-los, exprimem-se, de
uma só vez, as mais diversas instituições: religiosas, jurídicas e morais - estas sendo políticas e familiares ao
mesmo tempo econômicas -; estas supondo formas particulares da produção e do consumo, ou melhor, do
fornecimento e da distribuição -; sem contar os fenômenos estéticos em que resultam esses fatos e os fenômenos
morfológicos que essas instituições manifestam.”

193
Essa ampliação é investigada no fenômeno social que negocia as racionalidades
neoliberais nas economias barrocas da Feira La Salada em Buenos Aires, na Argentina e na
experiência política revolucionária vivida em Rojava, no Curdistão Sírio, Uma experiência em
que o trabalho se volta não apenas para a subsistência, mas para a construção de uma outra
sociedade, essencialmente anticapitalista. Com este trajeto pretende-se indicar uma progressão
lógica entre a construção de uma subjetividade descolonizada para uma experiência sócio-
cultural repleta de altivez autoafirmativa com destino a uma proposta política revolucionária
pleno de observâncias ao campo interseccional.

La Salada

A crise econômica do começo dos anos 2000 causou uma forte desmonetarização na
Argentina, golpeou a indústria têxtil nacional com importações em massa e acabou
impulsionando as feiras populares no país. Passado o período de turbulência, a indústria
conseguiu se reestruturar com a terceirização de confecções de corte e costura em oficinas
conhecidas como “clandestinas” cuja mão de obra é formada largamente por imigrantes
bolivianos. Enquanto isso, as feiras acabaram por causar uma multiplicação de cédulas no país
por operarem, em grande medida, por negociações de escambo. Todas essas dinâmicas
proporcionaram o surgimento da maior feira ilegal da América Latina, a La Salada.
Mesmo funcionando em apenas dois dias por semana, a feira movimentou mais que os
shopping centers argentinos em 2009. À época, o faturamento da feira foi de cerca de 15
bilhões de pesos contra 8,5 bilhões daqueles centros comerciais. La Salada é centrada no setor
têxtil e é dividida em três setores-galpões: Punta Mogote, Ocean e La Ribera. La Ribera é um
setor de vendas a céu aberto, mais precário que os dois primeiros, além de sofrer maior
pressão dos órgãos estatais por ser o limite mais informal e conflituoso da feira. Por esse
motivo, a Gendarmería Nacional Argentina, uma força de segurança de natureza militar, foi
transferida para a região.
Completamente fora da lógica do emprego formal e sempre em expansão, La Salada se
constitui como um verdadeiro conglomerado comercial responsável por difundir, segundo
Veronica Gago, uma “série de instituições econômicas inovadoras” apartadas das mediações
da formalidade: poupança, intercâmbio, empréstimo e consumo. Ela funciona sob os signos da
clandestinidade, da informalidade, da criação, da mestiçagem, do contrabando e é sustentada
pela capacidade inventiva dos sujeitos. É a mistura entre “estratégias de sobrevivência com
novas formas de empresariado popular e formas brutais de exploração” que fazem da feira

194
“um laboratório de economias populares”, o que leva Verônica Gago (2018, p. 28) a encará-la
como um “fato social total”:

A feira La Salada é um espaço de cruzamento e trânsito, no limite entre a cidade de


Buenos Aires e os partidos [municípios] bonaerenses de Lomas de Zamora e La Matanza.
Em seus vinte hectares acumulam-se numerosas e agitadas transações: compra e venda
de comida, roupa e lingerie, tecnologia, artigos de couro, sapatos, música e filmes. Em
seus primórdios, o comércio acontecia sempre de noite, entre quinta e sexta-feira e entre
domingo e segunda. Localizada em um prédio que foi balneário popular durante a
década de 1950, a feira o transformou em um lugar de compras transnacional e
multitudinario. Desembarcam ali cada vez mais micro-ônibus, vans e carros de todo o
país, assim como do Uruguai, da Bolívia, do Paraguai e do Chile.

Há um circuito intersetorial que engloba La Salada: a produção na oficina têxtil, o


comércio na feira, a villa e as festas. Estes são espaços de “permanentes reenvios, de
complementaridades e contradições” que, segundo a autora, se conectam e se inserem uns nos
outros. A villa, que na Argentina designa um conjunto de moradias precárias em espaços de
quase nenhuma urbanização, é onde a população migrante reside. Neste espaço, percebe-se
relações trabalhistas das mais variadas: da autoempresarialidade à pequena empresa, do
trabalho doméstico e comunitário até a oficina têxtil clandestina. A feira também é tomada
por um calendário de festas religiosas e dançantes que se somam ao festejo sindical de
celebração do Dia do Feirante. As festas tanto servem à divulgação dos produtos da feira e
conquista de consumidores, quanto à legitimação de seu funcionamento por meio da
divulgação midiática que demonstra sua riqueza cultural. São celebrações que,
contraditoriamente, fortalecem os valores da comunidade, ao mesmo tempo em que produzem
espaços para enunciados chauvinistas. A dinâmica da festa é, ao mesmo tempo, celebratória e
ritual, acionando porções das energias, recursos e aspirações que articulam a oficina, a feira e
a villa.
A autora explica que La Salada é um espaço de “conexão transnacional com outras
cidades”, as mercadorias são vendidas para compradores que abrem novas rotas de
distribuição e comercialização rumo a seus países de origem e terminam promovendo
inúmeras “formas de produção, circulação e organização de suas dinâmicas coletivas”, um
fenômeno que resume “a transformação mais ampla do mundo do trabalho depois da crise
argentina de 2001”.
Nos anos 1990, eram os migrantes coreanos que comandavam as oficinas têxteis,
empregando migrantes bolivianos. Entretanto, Gago explica que houve uma mudança
significativa à medida que os próprios bolivianos também passaram a comandar os
estabelecimentos. Isso se deve ao fato de que esse crescimento se deu sobre a base de um

195
“capital comunitário”. É uma mudança decisiva porque os bolivianos recrutam mão de obra a
partir de laços de parentesco baseados em confiança e senso de pertencimento ligado ao
território. Desse modo, eles agregam não só uma maneira particular de trabalho, mas também
de viver, algo condicionado aos valores de suas comunidades. Renegam, portanto, as
investidas neoliberais de desagregação, individualização e desamparo no autogerenciamento.
A autora chama as economias presentes em La Salada de “microeconomias proletárias”,
com isso, ela pretende focar uma “nova paisagem do proletariado para além de sua acepção
fordista”, propondo uma discussão sobre a “desproletarização do mundo popular”. Gago
retrata um contingente populacional que, depois de uma situação profunda de desemprego,
estabelece uma “dinâmica produtiva própria”, fazendo usos inéditos do dinheiro e do tempo.
Gago se nega a oferecer uma interpretação negativa sobre a informalidade, sua análise é
despida da criminalização ou do moralismo condenatório que ela acusa serem comuns nos
estudos sobre ambientes de trabalho precário, os analistas confinam essas experiências numa
“unidimensionalização da informalidade”. Ao invés disso, a autora trata esse aspecto como
algo positivo, a feira é um lugar de inovação, criatividade e “possibilidade de vida”,
características que ela considera como expressões de uma “dimensão de práxis que busca
novas formas”.
A hipótese lançada pela autora é de que há em La Salada uma globalização popular “de
baixo para cima" respondendo à dinâmicas particulares de subordinação e exploração típicas
da fase pós-moderna do capitalismo e, de tal forma misturadas e heterogêneas, que ela as
caracteriza como “barrocas”. Tratam-se das experiências dos que estão “embaixo”, mas se
constituem como lugares onde a hegemonia neoliberal não se consolida porque os sujeitos a
antagonizam, ainda que não possuam um programa “anticapitalista”:

A hipótese que aqui desenvolveremos é que a diferença de subjetivação que dinamiza


essas economias barrocas radica em uma vontade de progresso que mistura a definição
foucaultiana do migrante como investidor de si mesmo e um capital comunitário
colocado em xeque. Trata-se de um impulso vital que desenvolve um cálculo em que se
sobrepõe uma racionalidade neoliberal a um repertório de práticas comunitárias,
produzindo como efeito o que chamamos “neoliberalismo de baixo para cima”. Nessa
defasagem que, no entanto, se produz de maneira conjunta –, vemos o germe de uma
nova interpretação da pragmática vitalista. (GAGO, 2018, p. 24)

O que Veronica Gago entende por “neoliberalismo de baixo para cima” é o conjunto de
elementos que, independente de sua legitimidade, escapam às determinações de um governo,
sendo apropriadas e transformadas por uma rede de saberes e práticas que acionam o cálculo
como “matriz subjetiva primordial”. Todos esses processos se configuram como motor do que
a autora chama de “uma poderosa economia popular” que mistura e ressignifica o

196
empreendorismo com valores comunitários de autogestão, transformando a individualização
neoliberal em uma “autoempresarialidade de massas”.
A “pragmática vitalista” à qual se refere a autora, aponta a energia dessas microeconomias,
que acabam por resultar na eficácia de sua capacidade de “construir, conquistar, liberar e
também defender o espaço”. Desse modo, La Salada apresenta experimentações com novas
formas de produção, consumo e construção de redes de saberes, distribuição e
comercialização, fortemente baseadas em sabotagens às formas mercantis legalizadas, o que a
caracteriza como “um canteiro de um novo tipo de emprego”. É uma análise que Veronica
Gago (2018, p. 6) oferece para “Discutir a própria noção de neoliberalismo, o modo de
historicizá-lo na América Latina e aprofundar debates teóricos e traçar genealogias a partir
das lutas.”.

Democracia sem Estado: a revolução jineológica da experiência curda em Rojava

O Curdistão abrange uma área política que ultrapassa as fronteiras geográficas de Irã, Síria,
Iraque e Turquia. Considerada “a maior nação sem Estado do mundo” é uma zona em que
vivem cerca de 20.000.000 de curdos organizados em nações das mais variadas etnias,
nacionalidades, religiões e línguas. Rojava, como é conhecido o Curdistão Sírio, vivencia uma
das mais interessantes experiências político-sociais contemporâneas, ainda que no meio de
uma zona de guerra, sobre a qual ainda há muito pouca literatura produzida, traduzida e
discutida nos ambientes acadêmicos52.
Depois da “Revolução de 19 de Julho de 2012” desencadeada pela Primavera Árabe,
Rojava tem se estabelecido como uma região de experimentos socialistas/anarquistas
baseadas no “confederalismo democrático” instituído através das ideias de Abdullah Öcalan,
líder do PKK (Partido dos Trabalhadores Curdos).53 Trata-se de um poder popular formado
por uma confederação de cidades (cantões), cada uma controlada por assembleias de bairro e
que baseia sua gestão nos princípios de autogoverno, autodefesa, anti-capitalismo, anti-

52
Há ainda pouca produção acadêmica sobre a experiência revolucionária de Rojava no Brasil, por isso, a
maioria das informações relatadas nessa pesquisa são retiradas de artigos da internet, como da Agência de
Notícias sobre Rojava (AFN), disponível em: <https://anfenglish.com/latest-news>, o The Kurdish Project,
disponível em: <https://thekurdishproject.org/history-and-culture/kurdish-democracy/rojava-democracy/>, as
pesquisas do antropólogo David Graeber, disponíveis em: <https://davidgraeber.org/books/revolution-in-
rojava/> e o trabalho pioneiro no Brasil da cientista política Florencia Guarch na divulgação do tema, disponível
em: <https://twitter.com/MalaJine>.
53
ÖCALAN, Abdullah. In: Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível em:.
<https://en.wikipedia.org/wiki/Abdullah_%C3%96calan#Democratic_confederalism>. Acessado em: 25 de jun,
2021.

197
estatismo, internacionalismo, comunitarismo, na inclusão democrática das comunidades e, em
especial, na “jineologia” – o “feminismo” ocidental.
A jineologia ou “ciência das mulheres” é responsável não só pela base ideológica do
movimento, mas também pelo sistema de co-presidência que determina que os cargos
políticos e administrativos sejam sempre comandados por uma mulher e um homem. Como
explica Carne Ross (2017, tradução nossa)54, ex-diplomata inglês que – desiludido com a
democracia ocidental – quis testemunhar o que acontecia em Rojava:

O coração político de Rojava reside nas assembleias das comunas locais, em que os
moradores tomam decisões por si mesmos sobre tudo que os interessa: saúde, empregos,
poluição. [...] A homens e mulheres são dadas escrupulosamente a mesma voz. Mulheres
co-presidem cada reunião e cada assembleia. Às minorias não curdas, majoritariamente
árabes, assim como siríacos, turcomanos e assírios também são dadas prioridade na lista
de fala; nas reuniões que presenciei, intérpretes foram fornecidos. Isso é autogoverno,
onde decisões para a aldeia são tomadas na própria aldeia ou região. Se as decisões não
podem ser tomadas somente em nível local, representantes participam de assembleias
municipais ou regionais, mas esses representantes continuam sendo responsáveis no
nível das comunas e só devem oferecer visões que são aprovadas localmente. É uma
tentativa muito deliberada de manter a tomada de decisão tão local quanto possível —
uma rejeição ao estado de autoridade de cima para baixo.

As impressões sobre Rojava fez com que Ross definisse o fenômeno como “A Revolução
mais feminista que o mundo jamais testemunhou”. É uma experiência radical de democracia
direta em que a comunidade é quem toma as decisões sobre seu próprio funcionamento. O que
está se formando em Rojava é um outro tipo de cidadania que vai além da identificação com o
território, nacionalidade, religião ou idioma de origem, ela é identificada com a ideia de
pertencimento a uma comunidade política forjada multietnicamente. Trata-se de uma
experiência promotora de práticas que expõe um novo modelo de Democracia e Cidadania
nos moldes de uma cidadania diferenciada que, como descrito por Paulo Henrique Martins
(2009, p. 55), foi pensada por autores como Will Kymlicka e Charles Taylor em torno do
marco da diversidade cultural, assim definida:

Forma de superação do velho fator nacional e de adoção de uma perspectiva


multicultural. Essa tese seria comprovada por fatos novos, como a série de lutas em

54
“The political heart of the Rojava project is in the local communal assemblies, in which local people take
decisions for themselves about everything that concerns them: healthcare, jobs, pollution. [...] Women and men
are scrupulously given an equal voice. Women co-chair every meeting and every assembly. Non-Kurdish
minorities, mostly Arabs but also Syriacs, Turkmen and Assyrians, are also given priority on the speaking list; at
meetings I witnessed, interpreters were provided. This is self-government, where decisions for the village are
taken by the village or region. If decisions cannot be made solely at the local level, representatives attend town
or regional assemblies, but these representatives remain accountable to the communal level and may only offer
views that are approved locally. It is a very deliberate attempt to keep decision-making as local as possible – a
rejection of the top-down authority of the state.”

198
torno de direitos linguísticos, de autonomia regional, de imigrações e naturalizações, de
reinvindicações territoriais e de diferenças religiosas, entre outros. (MARTINS, 2009, p.
57)

Bashar Al-Assad está no poder da Síria desde os anos 2000 e sucede ao pai – Hafez Al-
Assad – que, por sua vez, esteve no comando do país por 30 anos, os dois implicados em
reiteradas violações de diversas normas de Direitos Humanos, entre elas o sistemático
massacre de curdos. O “regime dos Assad” pretende varrer a cultura curda do país e para isso,
por quatro décadas, tem proibido os curdos de falar seu próprio idioma em lugares públicos,
tornando o árabe obrigatório em todo o território, também os proibiu de registrarem seus
filhos com nomes curdos, substituiu nomes de lugares curdos por árabes, entre outras
violações. Em reação à essa tentativa de limpeza étnica e eliminação da cultura dos seus
povos, Rojava instituiu em todos os níveis de sua administração e, em especial, em seu
sistema educacional um esforço de convivência pacífica entre suas diferentes etnias baseando
suas práticas em um sistema multicultural e multiétnico. Os professores recebem um intenso
treinamento sobre a irmandade entre etnias para que suas práticas educacionais reflitam os
ideais da Revolução:

As crianças árabes, curdas e assírias no Norte da Siria recebem educação em seus


próprios idiomas do 1º ao 3º ano. Do 4º ao 6º, as crianças aprendem os idiomas dos
outros povos com quem convivem. Os comitês de educação do norte da Síria estão
implementando o mesmo sistema nas escolas de ensino médio assim como nas
universidades. Em muitos centros nas cidades, crianças árabes, curdas e siríacas estão
aprendendo os idiomas e as culturas umas das outras. (AFN, 2018, tradução nossa55)

Em dezembro de 2014 foi inaugurada a primeira Academia Mesopotâmica de Ciências


Sociais em Qamishili, capital do Curdistão Sírio (BIEHL, 2015). O currículo abrange
Medicina, Engenharia, Artes e Humanidades, mas também oferece programas de ensino
primário e literatura curda. Nas Humanidades, o foco se dá em História e Sociologia
especialmente, mas ainda não possui extensa bibliografia em curdo já que, na Síria, os livros
são obrigatoriamente escritos em árabe e as traduções estão ainda em seu início56.
Foi implantado um sistema educacional baseado em uma concepção de educação que,
segundo Marcel Cartier – cantor independente de hip-hop e jornalista americano que visitou a

55
“The Arab, Kurdish and Syriac children in Northern Syria receive education in their own languages through
the grades 1 to 3. In 4th to 6th grades, children learn the languages of other peoples that they live together with.
Northern Syria Education Committees are implementing the same system in high schools and universities as well.
In many centers in the city, Arab, Kurdish and Syriac children are learning each other’s language and culture.”
56
Mais informações sobre o sistema de ensino em Rojava ver: MIHEMED, Rubar. Education in Rojava.
Publicado em 28 de fev de 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=jbzhRflfvlw>. Acessado
em: 24 de jun, 2021.

199
Academia Shehid Yekta Herekol na cidade de Tirbespiye em 2017 – lembra as “ideias
apresentadas na Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire” (CARTIER, 2017). A relação entre
estudantes e professores não é centrada na subordinação, nem na hierarquia, o relacionamento
é baseado no conceito de hevalti (camaradagem). A academia tem um reverberi, (algo como
“líder”), mas sua presença não é intimidante: existe um tekmil semanal (uma sessão de críticas
e autocrítica) em que os alunos e professores refletem juntos sobre o que poderiam ter feito
mais efetivamente, trocando sugestões e os alunos podem fazer críticas ao reverberi
livremente. Todos são encarados como “estudantes e professores”, uma vez por mês, cada
aluno é responsável por criar uma lição e facilitá-la para o resto da turma. Não há distinção de
grau ou ano. Os jovens de 13 anos se reúnem nas mesmas lições com os colegas que são até
sete anos mais velhos que eles. O dia a dia da academia não é apenas feito pelos alunos, mas
planejado por eles de forma coletiva. Além do trabalho na cozinha, a logística e a limpeza do
centro são feitas de forma comunal. Este é um centro em que os alunos não só aprendem
durante o dia, mas também dormem, por isso, a todos é confiada a responsabilidade de cuidar
do ambiente de aprendizagem e de vida.
É possível perceber, portanto, que o ideal de integração entre os povos se estende a todos
os níveis de educação em Rojava, na tentativa de compartilhamento da língua, do
conhecimento e respeito às culturas das diferentes etnias em convívio e isso acontece num
lugar que há poucos anos era aterrorizado pelo Daesh – o autoproclamado Estado Islâmico –
que perseguia e massacrava populações de minorias religiosas. Não por acaso, membros das
minorias religiosas sírias, como os cristãos e muçulmanos xiitas e sufis, se refugiam em
Rojava.
Aspecto central na composição das políticas em Rojava, a jineologia, formulada nas ideias
de Abdullah Öcalan tem produzido sérios impactos entre a população curda como demonstra
Ruken Isik (2016) “estando na linha de frente da luta”. As mulheres participam de todos os
processos de decisão. Existem 22 ministérios em cada um dos governos locais de cantões – e,
em todos eles, há um ministério de mulheres. Cada cantão tem um conselho de ministros, que
é organizado por um co-líder homem e uma co-líder mulher, com três delegados, escolhidos
para representar a diversidade local. Cada cantão tem seu sistema de defesa próprio, as
mulheres têm uma organização militar separada: as unidades do Yekîneyên Parastina Jin
(YPJ), sigla para Unidades de Proteção Feminina.

200
Combatentes curdas do YPJ57.

As assembleias de mulheres têm poder de veto sobre todas as decisões que afetam as
mulheres. No sistema cantonal, casamentos infantis são proibidos e uma cota de gênero de
40% é implementada em todas instituições e administrações. Desde a implantação dessas
políticas, há mulheres fiscais de trânsito, parando motoristas homens e olhando seus
documentos; mulheres juízas que também cuidam de casos judiciais relacionados às mulheres;
em cada cidade de Rojava existem abrigos onde mulheres que sofreram quaisquer espécies de
violência – seja política, social, ou doméstica – podem se refugiar e contar com a assistência

57
Fonte: Kurdishstruggle-Flickr. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/kurdishstruggle/>. Acessado
em: 24 de jun, 2021.

201
jurídica de outras mulheres advogadas; existem centros chamados Mala Jinan (Casa de
mulheres) que começaram a ser criados em 2011, onde mulheres buscam ajuda quando
encontram problemas. Violência contra mulheres é o principal assunto que essas casas lidam.
Elas também funcionam como centros de mediação ou centros de resolução de disputas – se
os problemas não são resolvidos nessas casas, somente então serão levados às cortes. As
mulheres foram as primeiras mártires de Rojava e foram essenciais na expulsão do Daesh de
Kobane em 2014, libertando a cidade depois de quatro meses de luta.
Considerando apenas essas três frentes da experiência: educação, unidades político-
administrativas e protagonismo feminino, constatamos que acontece em Rojava uma
experiência genuína de um outro fazer democrático e um novo modelo de exercício de
participação política que visa – literalmente, já que numa zona de guerra – construir uma nova
sociedade e reconstruir o sentido da vida em comunidade em meio a tantas diferenças. Em sua
proposta anticapitalista, Rojava responde a ideais de inclusão, sem que isso signifique
participação nas relações de consumo, mas baseando-se em uma profunda compreensão sobre
a necessidade da dimensão social da existência, integrando os sujeitos na vida de uma
comunidade política.
Todos esses fenômenos são arranjos que a pesquisa propõe ser lidos em termos de
entrelaçamentos, trajetos, costuras. No caminho construído desde as experiências com o
telégrafo na Pennsylvania Railroad de J. Edgard Thompson até a Revolução em Rojava (a
primeira responsável por criar mais uma ferramenta tecnológica para conduzir os
trabalhadores à produção e a segunda propondo uma experiência libertária anticapitalista),
não há intenção de imprimir às sucessões analisadas um caráter de progresso.
Por ser um trabalho que não entende a luta política apartada da apropriação da linguagem e
da descolonização da subjetividade, para a leitura desses fenômenos propõe-se a substituição
da noção de “progresso” (ligada ao avanço para a frente), pela noção de “ampliação” (ligada
ao alargamento de dimensões). Desse modo, evitamos delegar ao futuro a responsabilidade de
cura ou salvação, buscando enxergar nos nossos jogos de reconhecimento, assim como nas
frestas da “arquitetura da ordem”, a ampliação de perspectivas para viver a “vida vivível”,
para entender as vivências dos outros e, finalmente, para viver com os outros.
A descolonização das subjetividades, as alianças forjadas a partir das singularidades do
corpo, do desejo de navegar um corpo que é espelho, da pulsão de vida que funda uma
República no meio da guerra são pontos de partida para pensar essa ampliação. As lutas
subjetivas de minorias políticas, frequentemente descartadas como “pautas identitárias”, não
são secundárias nesse processo.

202
Para quem traz no corpo os marcadores de sustentação das opressões mantidas ou criadas
pelo sistema capitalista, a afirmação da própria identidade não é coadjuvante, ela é a figura de
proa que guia a existência, portanto, possui pertinência política. Ao explicar a passagem que o
seu trabalho teórico fez das problematizações sobre gênero para um alargamento do seu
horizonte de análises, Judith Butler (2018, p. 32) dá pistas sobre a necessidade desse
movimento:

Agora estou trabalhando a questão das alianças entre várias minorias ou populações
consideradas descartáveis; mais especifificamente, estou preocupada com a maneira pela
qual a precariedade – esse termo médio e, de algumas formas, esse termo mediador –
pode operar, ou está operando, como um lugar de aliança entre grupos de pessoas que de
outro modo não teriam muito em comum e entre os quais algumas vezes existe até
mesmo desconfiança e antagonismo. É provável que uma questão política tenha
permanecido praticamente a mesma, ainda que o meu foco tenha mudado, e essa questão
é que a política de identidade não é capaz de fornecer uma concepção mais ampla do que
significa, politicamente, viver junto, em contato com as diferenças, algumas vezes em
modos de proximidade não escolhida, especialmente quando viver juntos, por mais
difícil que possa ser, permanece um imperativo ético e político.

Judith Butler não se refere à precariedade, neste caso, como um atributo condicionado às
relações de trabalho, mas à uma condição relacionada à vulnerabilidade a que certas
populações estão expostas porque são “vidas não passíveis de luto”, portanto, não
reconhecíveis nas molduras do que se considera humano. A autora desenvolve uma discussão
mais densa sobre as diferenças entre as noções de “precarious”, “precariousness” e
“precarity” que este estudo não focaliza por uma questão de recorte, mas que ainda assim, é
mencionada porque o entendimento de Butler sobre o termo “precarity” está mais alinhado à
ideia de “precariedade como condição natural da vida no capitalismo”. Suas reflexões sobre a
centralidade das políticas de identidade na contestação da ordem vigente parecem responder a
muitas das insuficiências enxergadas pelas minorias políticas ao se agremiarem, por exemplo,
em partidos políticos capazes de refletir apenas sobre questões macroeconômicas.
Ao discutir a frustração das esperanças socialistas na década de 1960, Eric Hobsbawm
(2015, p. 405) já revela a necessidade de se aliar a crítica ao capitalismo ao que pensamos que
é desejável buscar em um novo modelo de sociedade:

A descoberta de que a crítica do capitalismo não descreve automaticamente o socialismo


foi certamente traumática. E agora claro que a "expropriação dos expropriadores", por si
só, pode produzir uma sociedade não-capitalista, mas não necessariamente uma
sociedade desejável. E também claro que a evolução do capitalismo veio a prover muito
do que os socialistas mais velhos consideravam impossível, e que este antegozo da
utopia também não é muito apetecível. Nós agora usufruímos do que um congresso
anarquista espanhol de 1898 previu como o glorioso futuro do homem após a revolução,
a saber, um mundo de arranha-céus cheios de elevadores, eletricidade, e coleta

203
automática de lixo, habitado por supervisores de equipamentos automatizados. Isto,
como sabemos, está tão longe da utopia quanto a abolição da distinção entre cidade e
campo por meio do rádio, televisão e do motor de combustão interna. Entretanto, se a
esquerda pode ser forçada a pensar sobre a nova sociedade com mais seriedade, isto não
torna a nova sociedade menos atraente ou necessária, nem a argumentação contra a
sociedade atual menos importante.

As alianças com atores não priorizados em lutas passadas e a necessidade de depuração da


ideia de “resgate/retorno” a dias mais gloriosos concorrem para a tomada de uma consciência
que não se paralise diante das incertezas do futuro, mas que identifique possibilidades de ação
nesse borramento. As contradições e insuficiências das críticas ao capitalismo demonstradas
por Hobsbawm acima, assim como a frustração das previsões que superdimensionaram o
poder revolucionário da tecnologia não constituem um beco sem saída.
As experiências aqui percorridas nos conduzem de volta ao presente e nos sugerem que é
possível transformar a partir de um impulso interno, muito desafiado pelo apelo de Wolfgang
Streeck (2014, p.49): “Eu sugiro que nos acostumemos a pensar sobre o fim do capitalismo
sem assumir a responsabilidade de responder à pergunta sobre o que propomos que se coloque
em seu lugar.”. O autor sugere, ainda, que se pense na destruição do sistema como um
processo e não algo que se concretiza num evento. O que também implica oportunidade para
que a apropriação e processamento das contingências em nome do fortalecimento das alianças
e da potencialização da imaginação também nos transforme no caminho. Ainda que a
tecnologia não tenha o poder de nos emancipar, ela – sem dúvida – pode ser apropriada e
transformada em instrumento de justiça social. O caso da adolescente Darnella Frazier de 18
anos que, na tarde 25 de maio de 2020, apontou a câmera do seu celular, mantendo-o firme
durante os mais de 9 minutos em que gravava o assassinato de George Floyd por um policial
em Minneapolis58 e a convocação de escoceses contrários à deportação dos dois imigrantes
indianos são exemplos de como a tecnologia pode servir ao contrapoder.
Se o materialismo histórico-dialético para quem “A história de todas as sociedades que já
existiram é a história da luta de classes.” (MARX; ENGELS, 2011, p. 8) convoca a “classe-
que-vive-do-trabalho”, na posição mais baixa da disputa, para fazer uma Revolução que
libertará a humanidade do jugo capitalista é necessário pensar em um sistema de alianças
passíveis de serem feitas nessa posição do tabuleiro.
As possibilidades inventivas demonstradas por Verônica Gago pensando fluxos de
resistência “de baixo para cima”, articulam-se com a denúncia de Judith Butler de que há

58
O assassinato de George Floyd deu início a vários protestos que percorreram os E.U.A. e a condenação do
policial que o assassinou tem sido visto como um marco na luta contra a violência racial praticada pela policia.
Disponível em<https://pt.wikipedia.org/wiki/Assassinato_de_George_Floyd>. Acessado em: 25 de jun, 2021.

204
sujeitos não merecedores de luto. Essas análises sugerem que as ressonâncias construídas
nessas alianças precisam responder aos clamores dos indivíduos sujeitos à vulnerabilidades
dadas por marcadores do corpo, da territorialidade, das vocações religiosas. As pontes
lançadas entre essas diferenças buscando a somatória de forças são condições da insurgência,
não insights que automaticamente acontecerão com o movimento.
Por esse motivo, do mesmo modo que não se pode esperar que os beneficiados pelo
sistema capitalista renunciem às suas posições de poder, a lente interseccional nos indica que
não podemos esperar, igualmente, que os sustentáculos socioculturais do sistema sejam
contestados por quem deles se beneficia. Isto é, não se pode esperar que o sistema patriarcal
seja eliminado pelos homens, que o racismo seja eliminado pelos brancos, que a
heterossexualidade compulsória seja eliminada pela heterofamília tradicional. Não se pode
esperar do patriota a eliminação de fronteiras imaginárias, mesmo quando elas têm o poder de
destituir os sujeitos que as cruzam de suas atribuições humanas.
O neoliberalismo promove um deslocamento do trabalho, descolando-o dos condicionantes
do emprego e das proteções sociais para lançar a “classe-que-vive-do-trabalho” no jogo do
"cada um por si". Entretanto, a precariedade que o sistema produz é causada por uma série de
cruzamentos que os atingidos por ela não decodificam apenas pela chave economicista. Por
essa razão, é preciso causar um deslocamento responsivo que descole o trabalho da captura
neoliberal condicionada ao lucro, alçando-o às suas dimensões ontológicas e, ao mesmo
tempo, forjar alianças entre as camadas mais rebaixadas do sistema para potencializar seu
poder de contestação. Em um sistema que massacra populações “de cima para baixo” é
necessário enxergar potência no que se manifesta “de baixo para cima”. Um movimento que
se proponha a contemplar as reinvindicações que dignificam as relações de trabalho, mas
também afirmam o direito à existência e à expressão de variados modos de viver.
Se a negação do capitalismo só pode surgir dos sujeitos por ele massacrados e se o sistema
tem se sustentado na exploração da força de trabalho, mas também nos corpos mortos de
indígenas, negras e negros, mulheres, imigrantes, pessoas LGBTQIA+ entre outros, conclui-
se, portanto, que não há Revolução que não transforme os sentidos do trabalho, mas que
também não venha das vivências arbóreas59 experimentadas nos corpos vivos desses mesmos

59
Proponho o termo “Vivências arbóreas”, pois ele engloba a proposta de Verônica Gago de pensar o
neoliberalismo "de baixo para cima", numa junção com a noção ecológica de “polinização” de Suely Rolnik., ao
mesmo tempo em que responde ao meu chamado de substituição da ideia de "progresso" (um estado inevitável
de melhoria que nos tratá o futuro, delegando potências) pela de "ampliação" (uma expansão para todos os lados,
ainda no presente). Além disso, o termo retoma a noção de “aliança dos corpos” de Judith Butler, referindo-se
aos sujeitos das existências precárias que são comprimidos no nível mais baixo do sistema. Transformar a
subjetividade e travar essas alianças no solo fértil das identidades significaria buscar em solo profundo (ética,

205
sujeitos. Não há Revolução que não seja negra, feminista, gayzista, iemenita, tibetana, yazidi,
Palestina.
Respondendo ao chamado de Suely Rolnik para ancorar na arte a fonte de uma consciência
politizada e imaginativa, convido a um esforço de reconhecimento das experiências já
possíveis. Na peça teatral O percevejo escrita entre 1928-1929, o poeta comunista Vladimir
Mayakovsky (MIKHAILOV, 2008) já pensava em uma Revolução que transformava, mas não
se concretizava na experiência desejável que sonhavam as consciências russas. O personagem
Pierre Prissípkin é congelado por acidente e reavivado cinco décadas depois em 1979. Ao
encontrar o mundo mergulhado em uma experiência socialista corrompida e decadente,
Prissípkin rejeita aquele modo de vida, clamando por algo que venha “das entranhas”. O livro
reflete a decepção "do poeta da Revolução" com o stalinismo. O futurismo expresso no poema
“O Amor”, em que Pierre Prissípkin reinvindica uma ressuscitação transformadora,
imprevisivelmente, nos traz reverberações que alcançam o confinamento das trabalhadoras do
call center em home office e o nosso próprio em meio a uma pandemia. O Amor, segundo ele,
deveria se espraiar pelo universo inteiro, seus efeitos transformando tudo:

Para viver
Livre dos nichos das casas.
Para que doravante
a família seja
o pai,
pelo menos o Universo,
a mãe,
pelo menos a Terra.

A família transformada que não se configura como apenas uma extensão do indivíduo
sonhada por Mayakovsky no início do século XX é a mesma em que já vive os Krenak e
todos os seus parentes. Integrados a todos os elementos. eles já vivem o que sonhava o poeta.
Na nossa versão de futurismo “tupiniquim” – palavra frequentemente usada como adjetivo
para rebaixar e desclassificar os fenômenos brasileiros –, outro poeta, Caetano Veloso, canta a
chegada de um índio numa estrela colorida: “Mais avançado que a mais avançada das mais

ancestralidades, identidades, espiritualidades, referenciais teóricos) fincar raízes que brotam, crescem para cima,
frutificando destinos ao se expandirem, isto é, reverberando suas intenções ilimitadamente .

206
avançadas das tecnologias”. Em um jogo semântico, Veloso evoca a certeza dessa vinda pelo
testemunho do passado, o índio virá porque ele já o viu.
Na interiorização para a construção de uma subjetividade transfigurada que retoma o
controle nos nossos espaços de abrigo; nas alianças forjadas pelos nossos compromissos
éticos; na certeza da queda de todo e qualquer regime em qualquer espectro político que
atente contra a dignidade humana; na maior greve geral da História protagonizada por
agricultores indianos no final de 202060; no testemunho do que vimos na – não citada –, mas
nunca esquecida, Comuna de Paris; em Palmares; nos Chiapas; nos paraquedas coloridos de
Krenak; no que vemos em Rojava buscamos recuperar o ar, tantas vezes perdido. Que ele nos
inunde suficientemente e que, entre um fôlego e outro, a dúvida e a sombra de um niilismo
incapacitante nos abandone para que, como Caetano Veloso, a plenos pulmões, possamos
dizer: "Virá, que eu vi!".

60
A greve geral dos agricultores indianos que paralisou o país em novembro de 2020, já é considerada a maior
da História. A paralisação de aproximadamente 250.000,000 agricultores se deu em protesto contra a nova
legislação do governo do primeiro-ministro Narenda Modi. As leis aprovadas mudam profundamente as relações
que regiam o setor há décadas, autorizando a entrada de grandes corporações no setor, ao mesmo tempo que
desregulamentam o mercado e eliminam medidas de proteção destinadas aos agricultores. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=iHpZV7ro7lU>. Acessado em: 28 de jun, 2021.

207
CONSIDERAÇÕES FINAIS

“You are not the work you do,


you are the person you are.”

Toni Morrison

Depois de percorrer as percepções e experiências desses sujeitos tentando entender os


sentidos que o trabalho assume para as trabalhadoras do call center, acompanhando-as desde
o regime presencial até o home office, podemos concluir tratar-se de um emprego que não é
pensado em termos de carreira ou vocação. A função assumida no setor atende à urgência das
necessidades da sobrevivência e nunca às de realização pessoal. Não se trata de uma
experiência que leva o indivíduo a descobrir e desenvolver habilidades e expandir o seu
horizonte de atuação com a entrada definitiva na vida adulta. A percepção das pessoas
envolvidas na pesquisa é de que qualquer senso de satisfação e contentamento deve ser
buscado nos espaços fora do local onde se trabalha. As horas dedicadas ao trabalho são
encaradas como uma etapa a ser vencida ao longo do dia, as tarefas vistas como algo do qual
as trabalhadoras têm que “se livrar” para, enfim, se dedicarem a coisas mais importantes e
interessantes.
A falta de uma identidade laboral coletiva e agremiação política com colegas de profissão
também limita as possibilidades de modificação dessa realidade, condicionada a ciclos
intermináveis de levas de trabalhadoras que entram e saem do setor sem modificações
significativas nas condições de trabalho. Consequentemente, as perspectivas de melhoria
dessas condições são relegadas apenas para a esfera individual. Abandonar o setor é a única
saída para a uma vida mais satisfatória e plena em que trabalho não signifique apenas
exaustão e rebaixamento das ambições antes sonhadas.
Em relação ao objetivo geral desta pesquisa, a investigação sobre as implicações sociais
enfrentadas pelas trabalhadoras em razão da mudança do trabalho presencial para o home
office devido à pandemia de Covid-19 na região metropolitana de Natal, a primeira constação
é de que o home office foi decisivo para a proteção da saúde das trabalhadoras. Durante todo o
percurso dessa pesquisa, entre março de 2020 e maio de 2021 (data em que solicitei
atualizações sobre suas condições de trabalho depois de encerrado o ciclo de entrevistas),
nenhuma delas foi contaminada pelo vírus da covid-19. O trabalho em casa cumpriu seu papel

208
mais urgente, preservando não só as vidas das trabalhadoras, mas também a de seus familiares
e coabitantes.
Para esse grupo específico de pessoas, trabalhar em casa não causou grandes mudanças ou
mesmo transtornos às dinâmicas familiares. Ao contrário, houve relatos de benefícios para as
funcionárias que coabitam com familiares, podendo estar mais próximos nas horas da refeição,
trocando palavras entre um atendimento e outro. Isso foi importante para quem vive com
parentes idosos, por exemplo, pois havia a satisfação de ter mais disponibilidade para prestar-
lhes auxílio, mesmo durante o expediente.
A economia de tempo com o fim do deslocamento ao trabalho permitiu que as
trabalhadoras em processo de conclusão da graduação se concentrassem melhor nos estudos.
Proporcionou um maior cuidado com a casa, com a higiene pessoal e a preparação dos
alimentos. As funcionárias se esforçaram para cultivar um momento de lazer na busca de
alívio para o trabalho.
Um dos fatores que mais foram percebidos como aspecto negativo do home office, diz
respeito ao esvaziamento da dimensão social do trabalho. O ponto maior de sustentação
desses sujeitos em condições de trabalho tão opressivas são os afetos construídos nos olhares,
nas brincadeiras, na certeza de apoio nos momentos difíceis, na saída do trabalho para um bar,
nas curtas conversas do intervalo, na caminhada em direção à parada de ônibus. Tudo isso foi
perdido com o home office.
Esses sujeitos estão mais desamparados porque a aproximação com a família ou
coabitantes não significa que as agruras do trabalho podem ser com eles compartilhadas.
Muito comum nos relatos, as trabalhadoras alegam sentir falta de maior proximidade com as
colegas. Isso não acontece apenas pela observância das exigências do termo de
confidencialidade, mas também porque as características de suas tarefas são muito específicas.
Elas se sentem melhor compreendidas ao compartilhar experiências com pessoas que
entendam exatamente do que elas falam.
Considerando seus objetivos específicos, os dados empíricos demonstram que 1) A
investigação do fenômeno home office à luz da precarização do trabalho no contexto do
avanço de uma agenda neoliberal comprova que houve pioras objetivas nas condições de
trabalho do call center. Isso não se deveu à mudanças contratuais ou de configuração oficial
das jornadas de trabalho ou salário porque todos esses elementos continuaram os mesmos. A
piora se deu com a confirmação de que a transferência de custos acompanhou a da execução
do trabalho; o banco de horas foi reconfigurado para condições piores em relação ao regime
presencial; se, por um lado, a saúde das empregadas foi protegida do vírus da covid-19, por

209
outro, ela ficou mais exposta em casa porque os espaços não cumprem requisitos mínimos de
ergonomia como cumpriam no regime presencial. 2) Houve inúmeras dificuldades nessa
transferência. A maioria das trabalhadoras julga o processo de ida para casa como turbulento,
dizendo tratar-se de um momento em que a usual desorganização encontrada no regime
presencial foi reproduzida e amplificada no home office. Isso não demonstra demora ou
despreparo frente ao ineditismo contingencial de uma pandemia, simplesmente. A turbulência
do período é um dos sintomas dos efeitos nocivos da estratégia neoliberal de expandir setores
perseguindo a redução de despesa à custa do elemento humano da produção. Há uma nítida
falta de investimentos na qualificação das funcionárias e supervisores, os quais assumem suas
funções sem treinamentos robustos que preparem bem esses profissionais para as situações
que enfrentarão no atendimento. Os sistemas operacionais também apresentam problemas
constantes, descritos nos relatos como “lentos” ou “problemáticos”. E a exigência para que as
funcionárias desenvolvam habilidades alinhadas com competências multi skill e soft skill
encobrem o fato de que a empresa delega a responsabilidade por um bom atendimento
exclusivamente a elas. O que oferece outro comentário sobre o discurso neoliberal de
automática eficácia de serviços privatizados. O sistema se sustenta com o discurso da
competência, eficiência e meritocracia, mas reduz custos cortando investimentos, leva a
“classe-que-vive-do-trabalho” à exaustão impossibilitando a execução do melhor atendimento
possível, responsabilizando as trabalhadoras pelo próprio esgotamento. Somada a esses
fatores, a corrida para criar condições de ir para casa, assim como para trabalhar da maneira
mais adequada possível, incluiu o comprometimento do orçamento com compras de
instrumentos de trabalho, adequações muito limitadas do ambiente e instalações de serviços
de internet. Mesmo a curto prazo, já houve episódios de problemas de saúde enfrentado por
sujeitos do grupo e não será inesperado que mais problemas do tipo possam surgir a longo
prazo. Quanto ao tema principal da pesquisa, todas essas situações demonstradas pelos dados
empíricos atestam que houve uma dissonância entre o modelo idealizado de home office
propagandeado pela mídia (expressão de um ethos classista, exclusivista, elitista) e a realidade
das pessoas de classes sociais rebaixadas que, por causa da pandemia, adotaram esse modelo
de trabalho. A falta de reconhecimento dessas diferenças e a emergência sanitária abriram
caminho para que o home office fosse implantado com a empresa transferindo os riscos do
negócio para as trabalhadoras, contrariando a legislação trabalhista. Os efeitos foram sentidos
em termos de uma garantia legal formal que não alcançou as particularidades desse call center,
nem protegeu suas funcionárias de abusos.

210
A oportunidade de incorporar elementos que ajudaram no desafogo da opressão das tarefas
à sua rotina de trabalho foi uma das vantagens conseguidas com o trabalho em casa. Além
daquelas já citadas acima, a mais significativa diz respeito à expansão da subjetividade das
trabalhadores em casa, o que garantiu a produção de uma resistência íntima plantada na
familiaridade com o espaço e em pequenos prazeres cultivados durante o expediente, assim
como na mudança nas relações de controle de produção e vigilância. 3) Os mecanismos de
controle de produtividade e vigilância adotados pela empresa para monitorar as trabalhadoras
foram conhecidos e mapeados. Pelos relatos que tratavam do regime presencial, pode-se
constatar que são elementos centrais nas mecânicas de intensificação do trabalho, atuando na
deterioração da estabilidade psíquica das funcionárias. São pouco transparentes e o fato de
não serem completamente compreendidos pelas trabalhadoras, deixa margens para a condução
errática das suas operações pela empresa. Isso afeta os rendimentos e impacta os direitos
garantidos por lei, como o evitamento do uso de atestados para justificar faltas ao trabalho
porque todo o trabalho é controlado pela lógica das métricas. As dinâmicas dos dois controles
foram significativamente modificadas com o trabalho em casa. No caso dos controles de
produção, os problemas apresentados pelos sistemas operacionais no período de adaptação e a
consequente impossibilidade de uma cobrança por produção nos mesmos níveis do regime
presencial frearam a exigência de cumprimento de metas, o que se refletiu no discurso dos
supervisores. Seja por esses motivos ou por reflexos da própria compreensão sobre a
excepcionalidade da crise sanitária, a mudança na atuação dos superiores foi reconhecida nas
entrevistas. Entretanto, mesmo esse relaxamento não causou abalos nos níveis de
produtividade em razão da eficácia da “governamentalidade”, eficientemente introjetada no
regime presencial. A manutenção dos índices de produção são reflexos da mais significativa e
consequente mudança ocasionada com o trabalho remoto: a reconfiguração do ecossistema
panóptico de vigilância. A redução do seu campo de atuação centrados no controle técnico e
hierárquico foram decisivos para que os sujeitos da pesquisa tivessem maior liberdade,
autonomia e controle sobre suas subjetividades. Por todas as outras vantagens mencionadas e
pela redução da sensação de vigilância, o home office foi visto como uma experiência positiva.
Ainda que tenham adotado uma postura crítica sobre a atuação da empresa no processo e
reconhecido a precarização resultante, algumas funcionárias não desistiriam de trabalhar em
casa nem com um eventual fim da pandemia.
Depois de analisados todos esses elementos, podemos responder – com segurança – a
nossa hipótese de partida: “A adoção do regime de home office desde a pandemia de covid-19
em um call center na região metropolitana de Natal-RN aprofundou a precarização do

211
trabalho realizado no setor”. Não só foi possível comprovar o estado de piora das condições
de trabalho, confirmando a hipótese de precarização, mas também identificamos que esse
agravamento se deu silenciosamente, com a manutenção dos estatutos dos contratos de
trabalho. O que significa dizer que, cada vez mais, a cartilha neoliberal consegue deteriorar o
labor, ainda que as relações formais sejam mantidas. Trata-se de uma estratégia eficiente para
dilapidar as nossas referências sobre o razoável porque muda, inclusive, o patamar de
reivindicações da “classe-que-vive-do-trabalho”. Somos forçados a lutar para manter aquilo
que já ficou pior.
A versão mais escancarada da eliminação de responsabilidades trabalhistas conseguidas
com a “uberização” cria um degrau abaixo na esfera da precariedade. Um lugar a ser temido
no cenário da precarização. Esse medo que vulnerabiliza e adoece física e mentalmente é
instrumental para o sistema porque nos conforma em funções precárias formalizadas devido a
sensação de que o grau de vulnerabilidade poderia ser maior.
Outra constatação que todo o processo de transferência do regime presencial para o
trabalho remoto nos trouxe é que as moralidades acionadas pelo discurso neoliberal exercem
um papel instrumental no abrandamento das contestações. A responsabilização individual pela
boa execução do trabalho, a busca pela eficiência como expressão do valor pessoal, os
sentimentos de culpa em relação aos desempregados, a gratidão e reconhecimento que se deve
ter pela empregadora reforçam a necessidade de aceitar a versão sempre piorada de qualquer
mudança trabalhista.
Nesse ponto da pesquisa é importante endereçar as especificidades dos sujeitos que com
ela contribuem: trata-se de trabalhadoras jovens, escolarizadas, sem filhos, sem
responsabilidades com cuidado de parentes, nenhuma delas mora em bairros violentos,
nenhuma das mullheres assume sozinha o cuidado com a casa61 ou sofre com violência
doméstica62. A escolha por um recorte tão específico deve-se a três motivos: o primeiro deles

61
Em pesquisa realizada pelas demógrafas Jordana Cristina de Jesus e Luana Junqueira Dias Myrrha acerca do
do trabalho doméstico na pandemia de Covid-19 foi constatada uma sobrecarga de 52% nos afazeres domésticos
para as mulheres. JESUS, Jordana C.; MYRRHA, Luana J. D. Os afazeres domésticos antes e depois da
pandemia: desigualdades sociais e de gênero. Publicado em 16 de jul, 2020. Disponível em:
<https://demografiaufrn.net/2020/07/16/afazeres-domesticos-antes-e-depois/>. Acessado em 29 de maio, 2021.
62
“Segundo um levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBPS), o número de
ocorrências de violência contra a mulher aumentou em seis estados (São Paulo, Acre, Rio Grande do Norte, Rio
Grande do Sul, Mato Grosso e Pará) em comparação ao mesmo período de 2019. No Estado de São Paulo onde a
quarentena foi adotada no dia 24 de março, a Polícia Militar registrou um aumento de 44,9% no atendimento a
mulheres vítimas de violência, o total de socorros prestados passou de 7.775 para 9.817. Casos de feminicídios
também subiram, de 13 para 19 ( 46,2%). INSTITUTO Maria da Penha Alerta sobre violência doméstica em
quarentena. UOL. Publicado em 12 de maio, 2020. Disponível em:
<https://economia.uol.com.br/videos/2020/05/12/instituto-maria-da-penha-alerta-sobre-violencia-domestica-em-
quarentena.htm>. Acessado em 29 de maio, 2021.

212
está relacionado com a própria pandemia, o segundo às características dos produtos para
quem os sujeitos da pesquisa trabalham e o terceiro aos objetivos propostos pelo estudo.
O primeiro esboço que escrevi para esse estudo foi iniciado na última semana de junho de
2020 quando abandonei, em definitivo, o objeto inicial da minha pesquisa de mestrado, com o
qual já estava envolvida há um ano e meio. A impossibilidade de ter um hospital como campo
de pesquisa em meio a uma pandemia, me fizeram buscar um outro objeto a poucos meses da
etapa de qualificação. A estratégia foi reduzir o escopo do fenômeno a ser pesquisado e,
diante da solicitude encontrada nas minhas redes de contatos, me agarrar ao possível.
Conversei com quem aceitou conversar comigo. Recebi a primeira orientação a dois meses do
prazo da qualificação. Não havia tempo para complexificações, além das percebidas
inicialmente.
O segundo motivo está relacionado ao perfil dos produtos percorridos por Cazé na busca
de interessadas. Alguns desses produtos são ligados ao ramo de entretenimento e há uma
visível preferência por contratações entre o público jovem. Este é visto como mais
familiarizado e desenvolto ao falar sobre o que está sendo oferecido porque ele também se
configura como consumidor desses serviços. Mesmo configurando um contingente específico,
o caminho teórico construído na pesquisa indica que esse perfil é representativo da totalidade
que trabalha no call center, um setor dependente do letramento digital necessário à realização
das funções, característica mais encontrada nessa faixa etária.
O terceiro e último motivo se deve ao fato de que na rede de contatos que eu mesma criei
nos primeiros meses da pandemia, o que ficou mais evidente na relação empresa-funcionárias
era o nível de estresse em que se encontravam as pessoas com quem eu conversava. Percebi
que havia um nível de sofrimento que não podia ser explicado apenas pelos efeitos da
pandemia. Ele estava muito relacionado ao nível de produção exigido pela empregadora e à
percepção de submissão a um onipresente policiamento entre as funcionárias.
Portanto, o caminho perseguido por essa pesquisa, parte de questões macroeconômicas
(que não percorri com uma referência bibliográfica exaustiva por uma questão de tempo)
sempre buscando afunilar a discussão forçando-a para baixo, até que o estudo resvalasse na
micropolítica da resistência subjetiva. Esse movimento encontra no ponto mais rebaixado o
impulso para, por sua vez, fazer o caminho contrário: nas experiências de quem cria respostas
nas suas vivências arbóreas: brotando do chão para cima e se expandindo para todos os lados.
Com isso, não tenho a intenção de insinuar que os atributos do corpo não teriam sido
relevantes para esse estudo. Tenho certeza que são características que mudariam as
experiências dos sujeitos, alterando suas interpretações sobre as coisas, produzindo outras

213
subjetividades e estratégias para a vida. Alterariam completamente os trajetos desta pesquisa.
Porém, entendo que qualquer estudo que se proponha a discutir questões de gênero,
identidade de gênero, sexualidades, determinações de raça/etnia, entre outros atributos, deve
tomar essas questões como constitutivas do trabalho, desde a construção do objeto de
pesquisa. Esses não são elementos a serem adicionados como algo extrínseco depois de todo
um caminho percorrido em direção ao campo, como um apêndice.
Entre as várias riquezas encontradas na experiência dessas pessoas, as que ficaram de fora
das minhas considerações por essa necessidade de recorte, as que compõem lacunas que não
me propus investigar, apontam possibilidades para novos estudos. Há muitas variáveis a
serem exploradas nesse campo.
Os estudos das demógrafas Jordana Cristina de Jesus e Luana Junqueira Dias Myrrha e a
matéria sobre o alerta do Instituto Maria da Penha apontados acima, demonstram que as
discussões do campo teórico da interseccionalidade são indispensáveis para pensar não só o
universo do trabalho, mas as especificidades do campo informacional, do call center, do home
office. A violência doméstica, o trabalho emocional de cuidado e a tripla jornada são
elementos de gênero determinantes para a experiência do trabalho remoto. Sendo o call center
um setor estatisticamente feminilizado, com um grande contingente de pessoas LGBTQIA+
e/ou racializadas, analisá-lo a partir de discussões que contemplem os marcadores
atravessadores do corpo, considerando a urgência de se entender as implicações políticas do
sofrimento psíquico, tanto no regime presencial quanto em home office, nos sugerem muitos
objetos de pesquisa a serem explorados.
Os impactos do home office também podem ser pensados a partir das questões de
territorialidade, já que o esvaziamento de prédios causados pela transferência de equipes
inteiras para o trabalho remoto descentralizou o trabalho para a periferia, alterando as
dinâmicas de deslocamento, assim como as imobiliárias.
No meu argumento final, com o auxílio das análises de Veronica Gago e Judith Butler,
sustento que é em nome do reconhecimento das diferenças que alianças podem ser construídas.
Corpos precários diversos podem se encontrar no grau mais baixo do neoliberalismo, podem
fazer do trabalho uma ferramenta política resignificando seus sentidos para que raízes sejam
fincadas na diferença, sua força germine e o presente se expanda.
A certeza que a radicalização política pode vir das faltas, das insuficiências, da falta de
consolo para as necessidades materiais da “classe-que-vive-do-trabalho”, dos condenados a
uma vida inteira no degrau mais baixo sempre me acompanhou. Ela muito tem a ver, por um
lado, com uma certa desconfiança sobre uma elite intelectual missionária que, com sua eterna

214
vocação tutorial, está sempre disposta a conduzir as massas. Por outro, é uma inclinação a que
me obrigo para não perder de vista, mesmo consciente dos perigos da crença no
espontaneísmo, que a vivência política pode ser anterior à teorização.
Em uma aula nos períodos iniciais do mestrado, reagi visceralmente à provocação de um
debate sobre a destruição do modelo capitalista de produção. A conversa parecia levar ao
niilismo que mencionei há pouco: “Há potência na fome!”, foi minha resposta. Semanas
depois, ao me deparar com uma entrevista do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em que
ele dizia algo como: "A fome não forma revolucionários, mas pedintes.”. A frase sanguínea
que proferi, me pareceu infame e insensível. Perseguiu-me por meses.
Durante muito tempo não consegui conciliar a necessidade de atribuir agência a alguém
que, mesmo em necessidade, preserva o sopro necessário para voltar à vida com o absurdo de
parecer ter exigido respostas a alguém faminto. Eu deixei entrever algo que não queria dizer e,
ainda assim, acreditava no que havia dito.
Mais de um ano depois, um outro acaso me levou a folhear um livro com uma anotação
antiga: “Certo número de anos sem dinheiro basta para criar toda uma sensibilidade.”,
finalmente eu entendia o que eu quis dizer. Abaixo da minha anotação um lembrete: “Albert
Camus escreveu isso no diário dele aos 22 anos.”. Camus, um filósofo que brotou nas
necessidades profundas da pobreza. O incômodo com a minha impensada insensibilidade
estava pacificado.
Talvez um dos maiores danos causados pelo neoliberalismo seja a capacidade de aniquilar
a nossa habilidade imaginativa, a nossa capacidade criativa de pensar outros mundos ou
“outra razão do mundo”, o “direito ao delírio” reivindicado por Eduardo Galeano. Uma das
respostas possíveis ao desafio ao qual nos chama Mark Fisher (2020) e seu “Realismo
capitalista” nos incitando com a pergunta: “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que
imaginar o fim do capitalismo?” seja a recusa ao empobrecimento das nossas subjetividades, à
incapacidade imaginativa, assim como à visão determinista de que a miséria das privações e a
agonia material são suficientes para sufocar a radicalidade da consciência política. Muitos se
radicalizaram na miséria.
Os lugares de resistência às opressões da racionalidade neoliberal passam pelos afetos,
como já sabem as trabalhadoras do call center. São cultivados nos lares, subvertem sua lógica.
Polinizados na micropolítica, se enraízam nas alianças, cobrem os muros, crescem para cima.
Na noite em que finalizo esta escrita, 28 de junho de 2020, o Brasil somava quase
515.000,00 mortos pelo vírus da covid-19 e também pelo caráter de “ilimitação” do projeto
neoliberal em seus fluxos de contágio eterno com governos de extrema direita. Lembro das

215
minhas intenções ao falar da fome: que mesmo ela não nos imobilize. Não se desiste da vida
enquanto ainda se ouve mesmo que um único suspiro embaixo dos escombros. Ainda
respiramos.

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coronavírus (Covid-19) responsável pelo surto de 2019, a que se refere a Lei nº 13.979, de 6

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