Você está na página 1de 4

planocritico.

com

Crítica | Vereda Tropical -


Plano Crítico
Fernando JG

4–5 minutos

É impossível não ver nesta censurada obra proibida de


Joaquim Pedro de Andrade os ecos de Bataille (História
do Olho) e de Luís Buñuel quando roda os seus infames
Um Cão Andaluz (1929) e A Idade do Ouro (1930). As
descobertas freudianas do final do XIX inspiram
deliberadamente as artes dos anos seguintes, sobretudo
o cinema, que investiga, com atos de ação, as brechas
mais recônditas do inconsciente: absurdo, desejo,
perversão. Há uma materialização crua do desejo na sua
forma mais animalesca e irracional, como se o conceito
de pulsão tivesse sido traduzido e descortinado em
imagens que experimentam o ser-humano radical. Sim,
radical, no sentido primitivo, primevo.

Comer uma melancia é ato duplamente antropofágico:


comer, deglutir e também comprazer-se, deleitar-se.
Regozijar. Invadir o espaço do outro e torná-lo seu por
fusão. Se alimentar é se satisfazer, não é? Vereda
Tropical, inserida tardiamente em Contos Eróticos,
responde a nossa pergunta. Sem medo do regime
ditatorial em vigência no Brasil, Joaquim Pedro de
Andrade adapta o conto de Pedro Maia Soares de
maneira liricamente explícita, poética e voraz,
explorando possibilidades de fazer cinema sobre a
depravação e a luxúria.

A narrativa centra-se num professor (Cláudio


Cavalcanti) obcecado por melancias. Como pesquisador,
investiga a perspectiva de uma genitália em cada fruto.
Num dia qualquer, chega em casa às pressas com a fruta
nas mãos. Corre para banhá-la, secá-la e higienizá-la –
sempre numa atitude em devoção. Com muito carinho,
inicia uma conversação com o fruto, conversas sujas,
enquanto abre uma pequena cavidade no seu objeto.
Bom… não precisamos ir longe: ele gosta de tê-la, no
quarto, na sala, em pé, no sofá. Sua amiga (Cristina
Aché) escuta atenciosamente suas aventuras e, por falta
de vergonha, entra também no mundo das descobertas
frutossexuais.

Paranoia sexual num nível perspicaz e sem a


vulgaridade da forma. Sem julgamentos. Um mundo em
transe. Não um tarado inconsciente de si, mas um
daqueles que não tem medo de dizer: “inofensivamente,
gosto de melancias”. Uma feira transforma-se em uma
opção variadíssima de brinquedos sexuais. Em 20
minutos aproximadamente, o filme persegue um
homem na realização plena de sua paranoia. Uma
fantasia é um exercício de possibilidades. O filme
abandona moralismo gerais e glorifica o despudor, a
desvergonha, o desvario, a desrazão. Ou ainda mais
simples: um homem que não tem medo do seu infame
prazer. O erótico Vereda Tropical é uma
pornochanchada no estilo de Joaquim Pedro, que já
havia experimentado algo do estilo chanchadesco em
Homem do Pau-Brasil, mas aqui ele não preocupa-se
em amarras sociais, nem na paródia. Talvez uma
paródia dos bons costumes? De todo modo, o filme
encerra numa belíssima ode ao dionisíaco em
contraposição ao apolíneo (razão, harmonia). Bagunça
sexual que inspira à liberdade. Um conto tirado
diretamente das camadas mais recalcadas de um
inconsciente amarrado por decoros sociais e que, na
forma de arte, tem o seu pretexto para agir de maneira
desvelada, como num sonho em que não existem
barreiras entre o possível e o impossível, entre o moral e
o imoral.

Vereda Tropical (Brasil, 1977)


Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade, Pedro Maia
Soares
Elenco: Cláudio Cavalcanti, Cristina Aché, Carlos
Galhardo
Duração: 25 min.

Você também pode gostar