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INSTITUTO FEDERAL DO PARANÁ

TÉCNICO EM ARTE DRAMÁTICA

IAGO JOSÉ DOS REIS

NÃO ESTÁS ME OUVINDO?


Relatos de experiências de um estudante/ator

JACAREZINHO
2021
INSTITUTO FEDERAL DO PARANÁ
TÉCNICO EM ARTE DRAMÁTICA

IAGO JOSÉ DOS REIS

NÃO ESTÁS ME OUVINDO?


Relatos de experiências de um estudante/ator

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Instituto Federal do Paraná, Campus
Jacarezinho como requisito parcial para
obtenção de diploma de Técnico de Nível
Médio em Arte Dramática, modalidade
subsequente.

Orientadora: Prof.ª M.ª Larissa Miranda


Júlio.

JACAREZINHO
2021
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente à minha orientadora, Larissa, por não medir esforços ao me


ajudar nessa caminhada, posso dizer com toda certeza que sem ela não teria
chegado até aqui. Que foi muito mais que uma guia neste percurso. Foi uma amiga
que caminhou ao meu lado enquanto me dava todas as instruções necessárias para
seguir adiante.
À minha família, por me dar o apoio necessário para realizar o curso, e estarem
sempre lá, para me ouvir e acolher, quando precisava. Amo todos vocês.
Ao meu irmão, Matheus, que iniciou essa caminhada pelo teatro comigo. Nossa
amizade se fortaleceu, graças a esse encontro no teatro, e sou grato por todas os
momentos e reflexões que dividimos.
Às minhas amigas e colegas de curso, Ana Gabi e Helena, que sempre estiveram
comigo, em cada descoberta, crise e aprendizado que tive durante esse caminho.
Aos colegas que finalizaram o curso comigo: Ana Gabi, Ana Paula, Bela, Helena e
Matheus Martinez. Foram grandes as dificuldades, e serei eternamente grato por
todas as trocas.
Aos colegas que iniciaram o curso comigo, mas que por diversos motivos não
puderam finalizar. A presença de vocês reverbera em mim. Grato por todo carinho,
afeto e aprendizados que compartilhamos.
A todos os professores que estiveram presentes durante minha trajetória: Bárbara,
Larissa, Quaresma, Adrio, Antônio, Fernanda e Wagner. Foi graças a vocês que
aprendi, a me permitir ser moldado e me doar cada vez mais para a arte!
Ao campus IFPR, por abrir as portas para esse curso tão rico e transformador.
À minha psicóloga, que me ajudou durante um dos momentos mais difíceis da vida,
durante a pandemia, e me mostrou como respirar por meio da arte.
Ao meu namorado, Felipe, por ajudar a me ver com muito mais amor e carinho. Por
estar presente e me apoiar a refletir tantos momentos que vivi.
E a todos meus amigos, que sempre me apoiaram e acreditaram em mim, mesmo
quando eu mesmo não conseguia.
Is it cool that I said all that? Is it chill that you’re in my head?
‘Cause I know that it’s delicate
Taylor Swift

Está tudo bem eu ter dito tudo isso?


É normal que vocês estejam em minha cabeça? Porque eu sei que isso é delicado
(livre tradução)
RESUMO

O presente trabalho parte de minhas experiências anteriores ao curso de teatro,


perpassa minha trajetória e descoberta como artista. Relato, nele, as vivências a
partir de meu ingresso no campus IFPR/Jacarezinho. Apresento as descobertas
desde o início do Curso de Arte Dramática, onde aprendi sobre a realidade do teatro,
fui inserido numa comunidade teatral e vivi novas e modificadoras experiências.
Durante o andamento do curso, fomos atravessados pela pandemia do COVID-19,
que nos inseriu na realidade virtual. Vieram os medos e receios de prosseguir com o
curso à distância. Foram vários questionamentos sobre a viabilidade de se fazer
teatro por videochamadas: as primeiras experiências teatrais na modalidade on-line.
Por fim, trato da aceitação de encerrar o curso à distância, com a realização da
montagem teatral Amores Surdos, de Grace Passô, feita completamente online.

Palavras-chave:
Relatos; Experiência; Montagem teatral; Teatro na pandemia; Estudante/ator.
ÍNDICE DE FIGURAS

Figura 1 – Mapa de Cena ....................................................................................... 19


Figura 2 – Sra. Tépan ............................................................................................. 20
Figura 3 – Zepo ....................................................................................................... 21
Figura 4 – Sr. Tépan ............................................................................................... 21
Figura 5 – Zapo ....................................................................................................... 21
Figura 6 – Folder da I Mostra de Processos de Criação ..................................... 22
Figura 7 – Divisão final atores/personagens/cenas ............................................ 26
Figuras 8, 9 e 10 – Abertura da peça Amores Surdos ........................................ 30
Figura 11 – Trecho da Cena IV .............................................................................. 32
Figuras 12 e 13 – Trecho com a lama na Cena IV ................................................ 37
Figura 14 – Folder da II Semana de Arte e Cultura .............................................. 39
Figuras 15 e 16 – Apresentação na II Semana de Arte e Cultura ....................... 40
SUMÁRIO

TODAS AS HISTÓRIAS DO MUNDO JÁ FORAM CONTADAS .............................. 8

I. ELE É UM BICHO PERIGOSO ............................................................................. 11

II. DESCULPEM CORTAR O SONHO DE VOCÊS ................................................. 16


2.1 Calma, isso passa logo, é só ter paciência! .................................................. 17

III. NÃO SE FICA IMUNE DESSAS QUATRO PAREDES QUE NOS


CIRCUNDAM ........................................................................................................... 23

IV. APROVEITAR ENQUANTO PODE ANDAR DESCALÇO, COMO QUEM PISA


NA AREIA ................................................................................................................ 29

V. DO MESMO JEITO QUE A LAMA NAS FRESTAS DO CHÃO, QUE NÃO SE


RETIRA .................................................................................................................... 36

A GENTE VAI PREFERIR NÃO CASAR, MAS A GENTE VAI SER


FELIZ ........................................................................................................................ 41

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 43


8

TODAS AS HISTÓRIAS DO MUNDO JÁ FORAM CONTADAS

Essa pesquisa em Teatro passa por minha trajetória me decidindo e me


reconhecendo como artista, minha decisão de fazer o Curso Técnico em Arte
Dramática do IFPR/Jacarezinho, o percurso do curso e estudos de montagem. Sou
Iago José dos Reis, tenho 25 anos, nasci na cidade de São Paulo/SP, onde morei
até os 6 anos, atualmente moro em Bandeirantes/PR.
Meu olhar para as artes talvez tenha se iniciado ainda quando criança. Eu
assistia muitos filmes da Disney, era apaixonado por musicais, gostava muito de
acompanhar o ArtAtaque, que era um programa que apresentava muitos trabalhos
artesanais, e com materiais reciclados. Pegava os materiais que tinha em casa e
saia recriando.
Na escola, sempre que tinham apresentações eu participava e gostava muito.
Na época em que morava em São Paulo, eu tinha aulas com a minha mãe, e não
me lembro de ficar tímido em apresentações. Só quando vim para Bandeirantes que
comecei a sentir timidez e o medo. Porém, mesmo tímido, sempre que tinham
apresentações de teatro ou apresentações de trabalho, eu gostava de participar. As
peças de teatro não aconteciam com frequência porque a galera não gostava, mas
as poucas que tiveram eu participei, e quase sempre no papel principal, pois
costumava ser o único menino atuando.
Uma vez, na 5ª série nós apresentamos uma peça de teatro adaptada do
livro: Menina bonita do laço de fita. Em uma de minhas cenas, eu precisava cantar,
fiquei super nervoso, não me via como uma pessoa que cantasse, e na minha
família, também, não tinha ninguém que cantasse. Porém, fiz todos os ensaios e no
fim apresentei. Foi uma apresentação para a escola inteira. Mais para frente, na 8ª
série, minha professora de português, Sonia, chamou quem quisesse participar,
durante a parte da tarde, para fazer parte de umas pequenas cenas em duplas ou
trio. Eu e mais uma moça da minha turma fomos. Seria a história sobre uma
discussão de casal no banheiro. O processo de ensaio foi bem bacana. A professora
puxou bastante da gente para decorarmos o texto e ‘mastigarmos’ bem as palavras.
Como eram só dois personagens não foi muito difícil de entender a peça. Como a
cena se passava numa discussão no banheiro, o nosso figurino foram pijamas e foi
muito engraçado de fazer, mesmo apresentando na frente da escola e com toda a
timidez.
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Depois disso só fui trabalhar com teatro pelo grupo de jovens, na igreja.
Normalmente nos apresentávamos em missas ou em datas especiais como na
Semana Santa. Na maioria das vezes eu era Jesus, tanto por ser o único menino
quanto pelas minhas características físicas. Éramos dirigidos por uma moça que já
participava do grupo há muitos anos. Ela tinha como experiência, a participação de
alguns cursos livres, de teatro, além de ter sido membro de um antigo Ministério de
Jovens, com vários outros membros que estudavam dança e teatro.
Porém ela não ficou muito tempo e logo a responsabilidade de dirigir as
peças passou para mim, mesmo sem nunca ter tido nenhuma grande experiência na
área. Na maioria das vezes eu dirigia e atuava. Nós trabalhávamos com peças que
já existiam na internet, das quais adaptávamos para nossa realidade. Eu dirigi duas
peças da Paixão de Cristo, uma delas não possuía falas, e atuei como Jesus. A
outra, era com falas e várias personagens, então fui apenas personagens
secundárias. Nesta segunda, trabalhamos com vários efeitos práticos, entre eles um
dublê de Jesus na hora em que ele apanhava, neste momento também havia um
cara que estralava chicote atrás do palco, para efeito sonoro. No momento em que
Jesus carregava a cruz, nós abrimos espaço entre os espectadores e fizemos a
procissão de Jesus com a cruz, por entre a própria plateia. No fim, a peça ficou tão
impressionante que reclamaram com o padre e no ano seguinte não houve mais
apresentação, fomos censurados.
Também durante esse período comecei a fazer aulas de violão em grupo,
oferecidas pela igreja. As aulas duraram cerca de três meses, até eu ter que parar
pois havia ingressado no seminário, onde iria estudar para me tornar padre, em
Jacarezinho/PR. Lá eu prossegui praticando o violão e comecei a acompanhar
cantando. Morei no Seminário por cerca de quatro meses até perceber que não
queria nada daquilo.
Pouco tempo depois eu fui para a faculdade em Cornélio Procópio/PR,
cursar Análise de Sistemas. No ensino médio eu havia feito Técnico em Informática
e gostado muito e quis prosseguir, passei na faculdade, porém nunca me identifiquei
muito com o curso e acabei trancando depois de quase finalizá-lo.
Nunca tive muitos amigos no curso, e os poucos que tinha feito no primeiro
semestre, acabaram desistindo. Só fui fazer mais amigos quando comecei a estagiar
em uma empresa de software, a ForLogic. Lá eu fiz amizade com uma galera que
também gostava de música, até chegamos a montar uma banda para tocar em um
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show de talentos na faculdade, o Ouros da Casa. Foi uma experiência um pouco


traumática, fiquei super nervoso, e não tinha conhecimento de aquecimentos que me
ajudassem a relaxar.
Aos poucos fui percebendo que esses novos amigos tanto da empresa,
quanto do curso, gostavam muito da área de programação, já eu não estava
satisfeito com a área. Fiquei nesta empresa por aproximadamente um ano e meio.
Nos últimos quatro meses pedi para me transferirem para a área de atendimento ao
cliente, na qual me identifiquei mais.
Nesta época eu fiz aulas presenciais de canto por uns três meses, junto com
uma amiga que trabalhava comigo. Foi quando eu comecei a me enxergar mais
como uma pessoa que podia fazer algo pessoal com música. Comecei a compor
músicas, num primeiro momento apenas com as letras, e depois as melodias. Eu as
fazia apenas para mim, e depois pensava em ver se mudava algo, para ficar mais
compreensível para outras pessoas. Por fim, pedi demissão da empresa e voltei
para a Bandeirantes.
Neste entremeio encontrei um curso online que oferecia aulas de violão,
teclado, canto entre outros instrumentos, num valor acessível. Durante o ano que o
curso ficou disponível eu me desenvolvi muito, pois comecei a criar uma rotina
melhor. Com alguma frequência, eu acordava às cindo da manhã, fazia yoga e
depois uma hora de curso por dia, alternando entre canto, violão e teclado.
Depois que voltei para Bandeirantes, fiquei uns três meses parado e
comecei a ficar desesperado, até encontrar pela internet, o Curso de Técnico em
Arte Dramática de Jacarezinho/PR. Porém o período do vestibular já havia passado.
Li todo o edital e vi sobre as vagas, e acabei descobrindo que as vagas não eram
sempre preenchidas. Mandei um e-mail para a secretaria, perguntando se haveria
alguma maneira de entrar no curso. Responderam que ainda haveria um sorteio
público para que mais gente da comunidade pudesse ingressar e completar as
vagas. Aguardei até o dia do sorteio público e fui juntamente com o meu irmão.
Entramos no curso! E aí veio o choque...
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I. ELE É UM BICHO PERIGOSO

Eu tinha uma imagem de que um curso de arte dramática, seria tanto para
teatro quanto para produções cinematográficas, além de ter uma visão bem limitada
do que realmente era teatro. Tinha uma imagem do teatro como algo mais clássico,
grandes produções de histórias dramáticas e românticas, no estilo shakespeariano.
Durante o primeiro ano de curso vivi uma grande desconstrução em relação a isso e
comecei a gostar muito dessa nova visão, principalmente através das peças que
assistimos no primeiro ano do curso.
Assistir teatro foi uma importante experiência para a minha formação inicial
como ator, e continuará sendo, pois auxilia na construção desses novos
entendimentos sobre a arte teatral, como comprova Barbosa (2017, p.91.), ao dizer
que:
[...] a apreciação da obra cênica tem grande valor, também, nos
aspectos práticos do processo de ensino/aprendizagem em teatro,
pois o aluno ao desenvolver um exercício de improvisação, traria
para o jogo referências não apenas da vida e do cotidiano, mas
também do próprio signo teatral, ou seja, dos espetáculos que ele já
assistiu.

Uma peça em especial, que assisti com a turma logo no início do curso, se
chamava Dona Antônia. Era uma peça que contava a história de dona Antônia, mas
em três versões diferentes, cada uma dentro de uma realidade que ocorreria depois
dela ter tomado uma certa decisão durante sua juventude. Foi uma peça muito
incrível: tinha música, efeitos visuais, iluminação, um material sonoro muito vivo,
tudo de uma maneira que eu não havia visto até então, tinha até, café e bolo de
verdade! A peça foi realizada no Conjunto Amadores de Teatro, CAT, edifício teatral
da cidade, iniciando com parte do elenco e plateia sobre o palco italiano e depois
com todos se dirigindo para a arena, no inferior do mesmo teatro. Foi uma proposta
muito diferente, pois até então eu só havia visto peças como uma plateia mais
passiva e essa foi muito mais pessoal, mais próxima, e eu comecei a ver a
grandiosidade que uma peça teatral pode ter.
Uma das aulas do primeiro ano, que eu gostava muito, era a de Jogos
Teatrais com a professora Bárbara, ela tinha um ritmo muito dinâmico para teatro.
Ao mesmo tempo que eu gostava muito da aula ela me deixava com algumas crises.
Desde pequeno eu sempre me cobrei muito, principalmente quando precisava fazer
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algo na frente dos outros, e no teatro esse contato acontece a todo instante. Nessa
aula em especifico, éramos sempre provocados a nos experimentar, tentar coisas
novas. Foi e ainda é um processo complicado deixar o auto julgamento de lado e me
abrir, me experimentar e me deixar ser visto nesses momentos de maior
vulnerabilidade, momentos de criação.
Outra coisa que foi um aprendizado novo e difícil durante este primeiro ano,
foi enxergar os outros alunos e a mim mesmo em cada realidade e limitações. Como
antes eu sempre estudava com pessoas que não gostavam de teatro, ou que não
estavam interessadas, eu acabava sendo o único que participava, e fui criando uma
autoimagem, de que eu era alguém muito bom em teatro. O que era até um pouco
contraditório, já que eu me autocriticava muito, mas ainda assim me achava melhor.
Com as aulas eu fui desconstruindo esta imagem, e entendendo que muita coisa
poderia surgir por meio da troca com os outros, e que muitos dos meus
pensamentos estavam limitados. Teve muita coisa que eu fui entendendo durante
este primeiro ano e muitas coisas só fui entender depois que as aulas já não
estavam mais sendo presenciais, como, por exemplo, me enxergar como artista.
Para mim o artista era só aquele que tinha uma obra para poder expor, ou algum
reconhecimento externo.
Durante esse primeiro ano, tivemos aula com a professora Larissa, que
sempre nos trouxe referências de peças teatrais e contribuiu muito na minha visão
de teatro, de onde ele veio e para onde ele está indo. Lembro de termos lido
Lisístrata: a greve do sexo, durante as aulas, e a forma como ela nos instigou a fazer
a leitura, me deu uma visão totalmente diferente, da que eu teria criado caso tivesse
lido sozinho. O que me fez perceber que as interpretações de um mesmo texto são
diversas.
Ainda com a Larissa, durante algumas aulas de prática corporal, exploramos
o toque. Era comum nos revezarmos em duplas e trocar massagens. Um ato
aparentemente simples, mas que sempre nos causava as reações mais diversas,
desde risadas tímidas, até aproximações inesperadas. Acredito que esse foi um
grande fator para que nós, enquanto grupo, nos aproximássemos em pouco tempo.
As aulas também serviram para novas experiências e descobertas, sobre o
comportamento do corpo para o canto e a voz. Ao final do primeiro ano, participei do
projeto Corpo, complexidade e criação cênica: investigações sobre a integração voz-
movimento, com o professor Antônio. Tanto no projeto quanto nas aulas, nós
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trabalhávamos com a voz, mas não de maneira musical e sim de maneira mais
experimental. Fazíamos aquecimentos e exercícios bastante interessantes com a
voz, que sempre nos instigavam a explorar a voz no corpo, de forma não
convencional.
Tivemos, ainda, aulas com um professor de música, o Adrio, que trabalhava
muito com a nossa voz também. Sempre fazíamos aquecimentos, estudávamos
formas de projetar a voz, e vez ou outra pegávamos instrumentos na sala de música.
Formávamos uma espécie de orquestra improvisada, o que me abriu a mente, para
a ideia de que não precisava ser a pessoa mais experiente em algum instrumento,
para fazer música.
Durante o período em que estávamos tendo aulas presencialmente no IFPR,
eu participei de algumas apresentações com música. Teve uma durante o Balaio
Cultural, que eu havia me inscrito em duas apresentações. Em uma eu tocaria duas
músicas sozinho e, em outra, com o restante da turma, faríamos um exercício cênico
chamado Campo de Visão. Porém as apresentações anteriores a essas se
atrasaram, e enquanto eu estava tocando a primeira música, a minha turma entrou
de improviso e fez o Campo de Visão, exercício em que um estudante guia o
movimento dos demais, como detalha Lazzaratto (2001, p. 34-36):
Trata-se de um exercício de Improvisação Teatral no qual os
participantes só podem movimentar-se quando algum movimento
gerado por qualquer ator estiver ou entrar em seu campo de visão.
Os atores não podem olhar olho no olho. [...] Assim, de saída,
através dessa primeira e mais importante regra, o ator estimula
sobremaneira sua visão periférica para depois ampliar sua percepção
sensorial em 360°. Os atores são dispostos na forma de um U.
Assumem uma posição neutra, mas com seus corpos já devidamente
aquecidos e tonificados. [...]. A noção de indivíduo x coletivo é
constantemente colocada em xeque, pois é necessário o perfeito
entrosamento entre as necessidades subjetivas de cada ator e as
necessidades do todo atuante. O exercício propicia e força o ator a
saber impor sua vontade particular na mesma medida que impõe um
“abrir mão” dessa vontade em prol da vontade coletiva.

Foi uma experiência muito diferente, o nervoso de estar tocando e cantando


em público, se transformou em prazer e diversão de fazer parte da apresentação
cênica. Como experiência coletiva, me senti parte do todo, como abraçado pelos
colegas. Misturou minha paixão pela música, canto e cena.
Lembro de uma apresentação com o professor Antônio onde trabalhamos
com movimentos durante as aulas, gerados a partir de um aquecimento que exigia
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bastante da gente, algo um pouco semelhante com a exaustão, porém mais leve.
Segundo Ferracini (2012, p.95),
O trabalho de treinamento energético busca “quebrar” tudo o que é
conhecido e viciado no ator, para que ele possa descobrir suas
energias potenciais escondidas e guardadas. E como conseguir isso?
Luís Otávio Burnier, criador do LUME, embasado nas pesquisas de
Grotowski, acreditava que a exaustão física poderia ser uma porta de
entrada para essas energias potenciais, pois, em estado de limite de
exaustão, as defesas psíquicas tornam-se mais maleáveis.

Para a construção das cenas, nós iniciávamos com um alongamento em


grupo, seguido de um jogo de bastões. Todos ficavam dispostos em um círculo, era
lançado um bastão de madeira para um colega e este lançava para outro, que
lançava para outro e assim por diante, sempre fazendo contato visual prévio.
Conforme o exercício ia esquentando, o número de bastões ia aumentando em
paralelo, o que nos levava a trabalhar uma visão periférica e uma energia de grupo.
Em alguns momentos conseguíamos alcançar uma perfeita sincronia. Finalizado o
jogo de bastões, caminhávamos pelo espaço, caminhadas que se cruzavam,
novamente utilizávamos a visão periférica para evitar de nos esbarrarmos. Com a
orientação do professor, esta caminhada se transformava em movimentos livres,
explorando diferentes alturas e ritmos. Éramos sempre instigados a dar o máximo de
nossas energias. Com uma métrica que ia de um a cem porcento, o professor nos
conduzia na dosagem de energias. Ele gritava: cem porcento, e explodíamos pelo
espaço, nos movimentando da forma mais rápida que conseguíamos. Um porcento,
e fazíamos movimentos muito pequenos. Depois de um tempo alternando entra as
energias, ele nos direcionava para a cena, em que repetíamos nossas sequências
de forma separadas. Cada estudante tinha sua cena. Em alguns momentos ele
indicava interações entre colegas específicos, eram interações improvisadas na hora,
tendo como base nossos movimentos particulares. Depois retornávamos para as
sequências individuais de pequenas cenas com começo, meio e fim. Por fim, ele ia
indicando um a um, que fizesse sua sequência, mas dessa vez juntamente de textos
aleatórios escolhidos pelos estudantes. O restante permanecia congelado em cena
mantendo toda a energia condensada.
De um movimento inicial fomos construindo movimentos anteriores e
posteriores, criando uma lógica própria e imagética para dar sentido pessoal à cena.
A minha sequência se iniciava numa corrida por entre meus colegas, como quem
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estivesse fugindo de algo, até que eu me via amarrado por cordas. Não conseguia
mais mover meus braços e pernas, então caia no chão e começava a me debater,
como um peixe fora d’agua, agonizando sem ar. Com muito esforço eu me livrava
dessas amarras e me levantava. Olhava a minha volta e avistava um poço. Eu me
dirigia até o poço, juntamente com as cordas que haviam me prendido, as lançava
para dentro do poço e depois puxava. Fazia um tremendo esforço para puxar a
corda. Depois de algumas tentativas sem êxito, desistia da corda, com muito pesar.
Me dirigia até o alto de um prédio, onde, então, caminhava de forma lateral pela
borda, tateando uma parede atrás de mim. Meu corpo tremia com o medo da altura.
Dava pequenos passos, até que por fim, me lançava e caia lentamente ao chão.
Essa sequência sempre exigia muito de mim, manter a energia do começo
ao fim era um desafio. Sempre foi comum, em outras apresentações durante minha
vida, ficar muito nervoso e inseguro. Mas percebi nesse caso, que quando fazia a
sequência de aquecimentos, ficava num estado de euforia que afastava as
inseguranças. Queria muito poder ter explorado isso em outras apresentações, mas
logo veio a pandemia e não pude mais.
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II. DESCULPEM CORTAR O SONHO DE VOCÊS

Demos início ao segundo ano de forma presencial, porém logo tivemos que
parar devido a pandemia da COVID-19, também conhecida como pandemia do
coronavírus, uma doença respiratória causada pelo coronavírus da síndrome
respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2).
Inicialmente entramos em quarentena e a aulas foram pausadas. A
recomendação era que todos ficassem em suas casas. Havia uma esperança que
tudo passaria logo e poderíamos retornar em breve. Porém os casos só foram
aumentando e tivemos que permanecer em casa. As instituições de ensino, no geral,
começaram a migrar para a modalidade online. Havia até mesmo uma pressão da
comunidade externa, de que as coisas não poderiam ficar paradas. Por fim, as aulas
no IFPR também retornaram, mas as portarias internas e instâncias superiores não
tornaram obrigatórias as presenças dos estudantes, apenas era obrigatória a oferta
por parte dos professores. Devido à falta de recursos, principalmente por questões
econômicas e sociais dos estudantes, não seria possível realizar aulas síncronas.
Então as aulas e contagem de presença funcionavam através da entrega de
atividades e trabalhos online.
Para minha turma parecia uma ideia muito surreal, ter aulas de teatro online.
Havíamos acabado de completar nosso primeiro ano, estávamos com altas
expectativas para o segundo e último ano. O ano da montagem final. O trabalho de
encerramento de curso, em que teríamos a oportunidade de participar de um projeto
de montagem cênica e nos apresentarmos para uma plateia real!
Como seria continuar o curso sem ter contato físico? Depois de tudo que
vivemos enquanto grupo no ano anterior, estava cada vez mais claro que a arte do
teatro ocorre através da presença, através da troca de energia entre os colegas de
cena, entre o ator e a plateia. Havíamos aprendido que o teatro presume um árduo
trabalho com o corpo: repetitivo, exaustivo e presente. Como seria possível
continuar crescendo enquanto grupo estando todos separados? As intimidades
trocadas em aula, os momentos vividos durante as atividades, os afetos criados a
partir desses encontros que se mesclavam de forma única numa relação
estudante/ator/amigo. Que experiências eu carregaria da minha formação, para
possíveis trabalhos com teatro, caso só tivesse aulas online? Tudo isso passava
pela minha cabeça e de meus colegas em meio àquele período caótico.
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Apesar de todas as inseguranças e incertezas, nesse momento de escolha


individual para o retorno online, decidi experimentar. Ainda na esperança de que
seria apenas um período e poderíamos retornar depois de tudo, para finalizarmos
presencialmente.
Começamos as aulas online em meados de setembro. Como dito
anteriormente, não eram aulas obrigatórias, e ocorriam de forma assíncrona, através
de trabalhos e atividades encaminhados pelos professores. Esses trabalhos
contabilizavam as horas de aula. Porém, só atividades, sem nem ao menos um
encontro, não era o suficiente para compensar toda a prática que o teatro requer.
Então realizávamos videochamadas com um intervalo de 15 dias, em média, entre
eles. Esses encontros eram ministrados com os quatro professores presentes.
Larissa, Antônio, Adrio e Quaresma, sendo que, este último, tinha sido substituído
no ano anterior pela Bárbara, em virtude de seu Doutorado.

2.1 Calma, isso passa logo, é só ter paciência!


Para o Componente Curricular Laboratório de Montagem I, os professores
nos sugeriram a leitura de três textos: Piquenique no front, de Fernando Arrabal, A
cantora careca, de Eugène Ionesco, e Fim de partida, de Samuel Beckett. Textos
escolhidos justamente por beirarem o absurdo, o que nos remetia muito à situação
na qual o mundo todo se encontrava. A partir dessa leitura escolhemos,
individualmente, um trecho de um dos textos que nos chamasse a atenção. Eu
escolhi um trecho de Piquenique no Front (ARRABAL,1952). Decidimos trabalhar
com cenas individuais porque, devido as aulas não serem obrigatórias, não havia
frequência de boa parte dos estudantes nas aulas.
Seguimos trabalhando com nossos trechos, cada um construindo sua cena.
Apresentávamos nossas evoluções nos encontros com os professores e eles nos
davam alguns feedbacks, como por exemplo, organização do espaço, altura de voz,
corpo, objetos de cena, iluminação, tamanho do corpo e do espaço na tela, intenção,
subtexto, movimentação, etc.
A comunicação online era mais fragmentada, e também tínhamos o desafio
da nossa primeira montagem de cena. Nós ainda não havíamos trabalhado nada
nesse processo mais minucioso, que é a montagem. Em que apresentamos a
mesma cena repetidas vezes, sempre recebendo orientações que as alteravam nos
mais diversos sentidos. Eu me sentia constantemente pressionado, e por quatro
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visões diferentes, foi difícil encontrar “o ponto”. Foi um período que olhei muito para
dentro de mim. Desde o princípio os professores nos instigavam a trazer ideias para
a cena. A primeira ideia de cena partiu de nós, estudantes. Eu tive dificuldade em
conseguir visualizar o que poderia oferecer. Na minha cena eu interpretava quatro
personagens diferentes, lembro que os professores reclamavam que não era
possível ver muita diferença entre eles. Quais caminhos eu poderia seguir nesse
cenário?
Um dia, já frustrados com os apontamentos dos professores e com um
desejo de evoluir nas cenas, uma mudança aconteceu. Eu e uma colega, a Helena,
através de uma chamada de vídeo, começamos a trabalhar nossas personagens:
Quem eram? Quais as idades? Como seriam as vozes?...a partir daí ficou mais
visível para onde ir. De repente, eu via a cena ganhando forma, ganhando vida. Ela
exigia mais energia e eu precisava dar essa energia. Então pouco tempo antes de
iniciarmos as aulas eu passei a fazer um aquecimento sozinho, misturando alguns
exercícios apreendidos nas aulas presenciais, o que me ajudou muito, tanto em
condensar energia, quanto em me desligar de tudo e focar na cena. Comecei a
trabalhar mais em memorizar as falas e acrescentar algumas pequenas ações à
cena. Até então a cena era feita sentada e em forma de leitura. Passei a trabalhar na
cena em pé, demarquei espaços para cada personagem (quatro posições) e por
sugestão dos professores transitava entre eles com movimentos rápidos e curtos. A
ambientação da cena, pode ser verificada na Figura 1 que se segue.
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Figura 1 – Mapa de Cena

Escala 1:30

Eu iniciava minha apresentação dando o nome do autor e do texto,


referenciando tratar-se apenas de um fragmento da obra e, logo em seguida,
caminhava para próximo da câmera, representando a Sra. Tépan. Trabalhava com
meu corpo de forma a trazer a imagem de uma senhora de idade avançada: voz
rouca, costas encurvadas e vista cansada. O primeiro diálogo ocorria entre ela e
Zepo. Eu transitava entre os dois com movimentos rápidos e precisos, modificava as
feições, postura e intenção. Zepo era um jovem soldado de guerra, à primeira vista
inocente, e eu trazia essa imagem, com uma postura mais ereta e voz doce. Porém
após alguns questionamentos da Sra. Tépan, Zepo apresentava claros sinais de
traumas causados pela guerra, em que se mostrava uma pessoa mais agressiva.
Nessa transição de inocente para agressivo, eu demonstrava a confusão passando
a mão pelo rosto e cabelo com certo desespero. Primeiramente lento, e depois com
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mais ferocidade. A respiração ficava mais forte e a voz engrossava. Eu caminhava


levemente para o centro da cena. E enfim, revelava um soldado armado, mirando a
câmera. Após uma pequena pausa sustentada do soldado, desmanchava e voltava
ao Zepo inocente. Para essa imagem de desespero do Zepo, eu trazia a referência
interior de movimentos que já havia trabalhado anteriormente, na cena construída
em sala com o Antônio (e já descrita).
Zepo também dialogava com Sr. Tépan, que no texto original, é marido da
Sra. Tépan. No meu trecho isso ficava pouco evidente, tendo em vista que o Sr.
Tépan possuía uma única fala: O senhor achou uma boa solução (ARRABAL,1952,
s.p.). Então resolvi brincar com a palavra senhor, e trazer uma referência religiosa
para a personagem. Com movimentos que indicavam o céu e uma voz, de como
quem anuncia algo formidável, Sr. Tépan passava rapidamente pela cena.
A última personagem a aparecer era Zapo, que se tratava de um soldado,
inimigo de Zepo. Para denotar a rivalidade trouxe um ar de desdém e superioridade
para o mesmo, com uma postura mais rígida, menos movimentos nos membros
superiores e queixo um pouco mais erguido. Mas, no fim da cena, apresentava
movimentos semelhantes ao de Zepo confuso/agressivo. Abaixo, apresento uma
sequência de imagens dessas personagens em suas corporificações.

Figura 2 – Sra. Tépan


21

Figura 3 – Zepo

Figura 4 – Sr. Tépan

Figura 5 – Zapo
22

Por fim tínhamos três cenas, a minha e mais duas, de duas colegas, a
Helena e a Ana Paula. Infelizmente boa parte dos colegas acabaram não
participando mais das aulas por diversos motivos. Os professores sugeriram
apresentarmos essas cenas, juntamente com mais algumas do primeiro ano, e nós
aceitamos. Fizemos uma apresentação aberta, online, e foi um encerramento
excelente para todo o processo, trago abaixo o folder de convite para essa mostra
de trabalhos. Pelo menos no calendário, encerramos ali o ano de 2020.

Figura 6 – Folder da I Mostra de Processos de Criação


23

III. NÃO SE FICA IMUNE DESSAS QUATRO PAREDES QUE NOS CIRCUNDAM

O ano virou, porém, a pandemia prosseguia, continuávamos sem


esperanças de voltarmos para as aulas presenciais. Foi quando a gente percebeu
que a pandemia não ia passar tão facilmente. Então prosseguimos online, dessa vez
visando a possibilidade de mais duas montagens. Tivemos a oportunidade de
receber de volta alguns os colegas que não haviam conseguido prosseguir com a
gente no ano anterior. Agora, éramos oito estudantes.
Iniciamos o processo de montagem primeiramente definindo sobre qual obra
trabalharíamos. Nós, estudantes, tivemos a oportunidade de sugerir textos para o
trabalho. Após algumas sugestões decidimos ler dois, em grupo, nas aulas: Amores
Surdos e Por Elise, ambos de Grace Passô. Logo de cara nos apaixonamos e
decidimos trabalhar com os dois. Primeiro com Amores Surdos até o meio do ano, e
depois com Por Elise como projeto final. Porém durante o processo, nos envolvemos
bastante com Amores Surdos (PASSÔ, 2012), e decidimos prosseguir explorando o
este texto até o fim do ano. No site do grupo Espanca! (s.d.), podemos encontrar o
release do espetáculo:
Um pai ausente e uma mãe superprotetora criam seus filhos com
muito zelo. Pequeno tem problemas respiratórios, a adolescente se
refugia em seus fones de ouvido, Samuel tem dificuldades para sair
de casa, o mais velho é sonâmbulo e dá trabalho nas madrugadas,
Júnior mora longe e sempre liga para matar saudades. Uma família
comum convive em situações corriqueiras: toma café, briga entre si,
alguém adoece… enfim, vive seus problemas cotidianos. O
espetáculo fala da capacidade do homem de estar dormindo, mesmo
quando acordado; porque, mesmo quando acordados, os
personagens não se ouvem, não se enxergam, não se percebem, em
rituais do cotidiano que conduzem à alienação e à
incomunicabilidade. Tudo corre como o esperado, até que todos são
obrigados a reconhecer e conviver com as consequências desse
amor alimentado por todos, diariamente. Segunda peça do grupo,
trata de um silencioso acordo de amor que se chama intimidade. Por
isso, vem dela a força que consolidou o Espanca!. Em princípio uma
história normal, afinal, todas as histórias do mundo já foram contadas.

Num primeiro momento escolhemos trabalhar o texto como uma leitura


dramática, em que iríamos explorar, uma cena ou outra, de forma mais teatral.
Escolhemos isso pensando no tempo que teríamos de aulas, na realidade que nos
encontrávamos, de teatro online, e também pela frequência da turma. Havia um
medo de alguém faltar, ou ocorrer alguma falha na conexão, e não ter como
substituir. Chegamos até a tentar que todos trabalhassem com todas as
24

personagens. A escolha de personagens seria dada através de sorteio, segundos


antes de iniciarmos a cena, a cada troca de cena haveria um novo sorteio. Foi um
exercício bacana, tivemos a oportunidade de experimentar praticamente todas as
personagens. Porém, acabou sendo apenas um exercício mesmo. A quantidade de
personagens, tornava difícil que todos estudantes se aprofundassem em cada um
deles. Além disso os professores já nos cobravam a memorização de partes do texto,
para assim, termos mais liberdade de ação em algumas cenas. Por fim, decidimos
manter personagens fixos para cada ator, e assumir, que imprevistos assim,
poderiam ocorrer tanto na realidade presencial, quanto online. Agora não éramos
mais apenas estudantes, ao mesmo tempo em que ainda havia a relação
professor/estudante e estudante/colegas, fazíamos parte de algo maior, e passamos
a ser tratados como um grupo de teatro. Passamos a ser estudantes/atores e
professores/encenadores. Trago, a seguir, um relato pessoal1 sobre nossa
montagem, em que já começava a perceber essa mudança, e a tratar os colegas de
turma como atores.

2
Relato de aula – Dia 11/03/2021
Iniciamos a aula conversando sobre o que foi definido em relação às
sugestões dadas na aula passada. Falei sobre o encontro que tivemos no dia
anterior, só entre os alunos. Nesse encontro, nós testamos um método de sorteio,
onde cada ator recebe uma personagem a cada capítulo.
Relatei algumas percepções que tivemos durante o encontro e como
funcionava o sorteio. Tentei deixar mais aberto para outros colegas falarem, mas
ninguém mais se manifestava. As câmeras em sua maioria estavam desligadas, o
que parecia deixar tudo ainda mais distante do que já estava.
Decidimos reler o texto, com as câmeras abertas, desta vez usando o
método de sorteio e fazendo pausas para que os professores pudessem ir
pontuando melhorias na leitura.
Os professores nos encorajavam a ler com mais energia, firmeza e emoção!
Podendo até trazer essa leitura para o corpo. De certa forma nós experimentamos
suas sugestões, porém tudo muito desconexo, sem muito preparo, ou profundidade.

1
Os relatórios foram escritos durante ou após as aulas descritas neles. Entretanto, para a escrita aqui
neste trabalho, sofreram pequenas alterações, quando necessário, para melhor explicação e
compreensão da experiência vivida.
2
Trago, a partir daqui, meus relatos escritos em itálico, por serem registros pessoais.
25

Cada um estava por si. Foram poucos os momentos em que se haviam conexões
genuínas entre os atores ao interpretarem seus personagens. O sorteio contribuiu
para que tudo fosse ficando mais desconexo e sem sentido, pois, a cada cena,
interpretar uma nova personagem provou ser um grande desafio!
Também anotei3 a necessidade de estar fazendo tudo em pé, com mais
espaço para me locomover e explorar melhor as ações das personagens, além de
imprimir a peça.
Ao fim da aula os professores nos encorajaram a ler e absorver mais
conteúdos relacionados às propostas de trabalho e teatro no geral, para termos no
que nos apoiar nos próximos estudos. Inclusive, trouxeram muitas sugestões de
leituras!
No geral, foi um encontro conturbado e disperso, com vários pontos a serem
trabalhados. Me propus a estar mais preparado para o próximo encontro, e tentar
encorajar meus colegas a fazerem o mesmo!
Nos resta aguardar e trabalhar!

Amores surdos (PASSÔ, 2012) contém cinco personagens atuantes ao


longo da peça. Nós, estudantes/atores, estávamos em maior número, então
decidimos dividir as personagens por cena. Alguns atores participavam na primeira
cena, outros na segunda e assim por diante. Fizemos a divisão visando que todos
tivessem tempo na apresentação e por fim ficou um misto de personagens, com uma
mesma personagem sendo interpretada por mais de um ator e um mesmo ator
interpretando mais de uma personagem. Para elucidar melhor, apresento a figura
abaixo com a divisão final de atores/personagens/cenas.

3
Fiz uma anotação de tópicos em aula, e depois a desenvolvi neste relatório.
26

Figura 7 – Divisão final atores/personagens/cenas

Assim, prosseguimos com aulas ocorrendo uma vez por semana. Vez ou
outra fazíamos reuniões extras, sem os professores, para ensaios particulares e
decidirmos algumas questões, como por exemplo a divisão de personagens, citada
anteriormente. Sempre tivemos bastante abertura nas tomadas de decisões, o que
me traz um certo orgulho de pensar que a montagem é resultado de um esforço
coletivo.
Porém, nem sempre esse coletivo foi fácil. Ao contrário das cenas individuais
do ano anterior, nessa montagem, cada falta era sentida, precisávamos da presença
e empenho de todos para a evolução do trabalho. Em cada aula nos
aprofundávamos mais nas personagens e nas relações daquela família do texto, e
quem não estava presente, perdia essas novas informações. Era muito comum
termos pessoas específicas já preparadas para substituir quem faltasse, e esses
colegas ausentes, por sua vez, também costumavam ser os mesmos. Durante as
aulas/ensaios, os professores/encenadores davam instruções sobre a personagem
27

para o substituto, e, por mais que tentássemos repassar a informação, para a


pessoa que faltou, não era a mesma coisa. O que ficava cada vez mais evidente nos
ensaios em que todos estavam presentes. Em minhas anotações sobre a aula do dia
28/04/2021, trago observações em relação as presenças e ausências nas aulas:

Iniciamos a aula fazendo um aquecimento que exigiu bastante força e


agilidade. A cena saiu com muito mais energia.
Durante a aula alguns colegas chegaram atrasados e essa diferença do
aquecimento ficou bem mais evidente. Outra diferença que pude notar é como uma
falta na aula tira a sincronia da trupe toda, os colegas que têm faltado ficam
desconectados do restante da turma, seja porque perderam uma reflexão que
fizemos no ensaio passado, ou por simplesmente não terem praticado tantas vezes
as cenas como o restante.

Em contrapartida, os estudantes/atores que seguiam sempre presentes,


mostravam um crescimento interessante, no conhecimento do texto e de outras
indicações apontadas para as cenas. A repetição e as substituições inesperadas,
nos deram um domínio do texto, a ponto de identificarmos intenções e sentimentos
mais profundos das personagens. A intenção por trás de cada fala, tanto nossa,
quando a dos colegas, estavam cada vez mais evidentes. Mesmo estando em
espaços diferentes, começávamos a criar uma conexão, que atravessava as
barreiras da distância física. Como colocado pela própria Grace Passô (2020 apud
OLIVEIRA; MÉLO, 2021, p.53.):

“O teatro agora é uma frequência. Frequência que lembra do toque


(...) E se nunca mais pudermos nos abraçar, o teatro será para
sempre o abraço durante o adeus a distância” (PASSÔ, 2020). Grace
diz que no momento de adaptação que o teatro vem passando no
isolamento, a frequência que essa arte transformadora provoca
propaga ondas que transportam energias. No momento em que
nosso professor/diretor vinha nos propor através da plataforma
remota aquele exercício, percebemos ao nos aproximar da tela e
olhar para os olhos de cada um, que um momento de encontro em
cena era instaurado através das telas de vidro, por uma frequência
energética em forma de um abraço distante.
28

Veja bem, estávamos cada um, em sua própria casa, até mesmo em cidades
diferentes. Atuávamos e éramos dirigidos com toda essa distância. Era um desafio
criar uma conexão que atravessasse essas barreiras, porém, como citado acima,
havia uma energia que nos atravessava. Muitas vezes, durante a cena, tínhamos
que trabalhar apenas com o que ouvíamos do colega, uma vez que não era possível
ficar olhando para a tela o tempo todo, para ver quais eram as expressões, quais os
movimentos de corpo, ou para que lado estavam olhando. Foi preciso aprofundar o
estudo do texto, através de diferentes maneiras de fazer as leituras, algumas vezes
mais pausadas, com um objetivo de gerar uma interpretação mais minuciosa. E seria
só através desse trabalho, que conseguiríamos expandir essa energia, a ponto de
nos contagiar, e contagiar o público.
De modo a nos ajudar na montagem, os professores/encenadores nos
davam sugestões de conteúdo, que se relacionavam com a peça, para termos mais
referências de trabalho. Também deram sugestões de obras que trabalhassem com
o conceito de teatro no geral. E foi por meio dessa sugestão, que eu vim a assistir a
minissérie brasileira, dirigida por Fernando Meirelles, Som & Fúria, de 2009. A
minissérie tinha sua trama principal desenhada em volta de uma companhia teatral
paulista, explorando seu cotidiano de ensaios, visões divergentes entre diretores,
jovens atores tentando se encaixar nos seus primeiros papéis, atores de longa data
se reinventando, rotina de apresentações e dramas pessoais, que costuravam a
história. Mesmo não sendo uma experiência que vivi, presenciar essa realidade
através da série, me trouxe uma visão do teatro, em que, vários esforços individuais
se refletem no coletivo, e nos entregam um resultado formado a partir de várias
contribuições. Um resultado único, criado a partir do diverso. Assim como nossa
montagem, que, mesmo sendo feita de uma forma não convencional no meio teatral,
trazia com ela contribuições, que apenas essa realidade podia nos proporcionar.
29

IV. APROVEITAR ENQUANTO PODE ANDAR DESCALÇO, COMO QUEM PISA


NA AREIA

Na medida em que o trabalho ia avançando, sentíamos a necessidade de


explorar as cenas, para além da leitura. Particularmente, passei a trabalhar minha
cena em pé4, e, era comum durante a leitura, darmos o texto junto com algumas
pequenas ações, como correr, dançar, ou atender o telefone. Mesmo numa
realidade virtual, víamos a possibilidade sim, de fazer uma peça de forma teatral do
começo ao fim.
Um momento que traz essa mudança, com grande evidência, é a criação da
cena inicial. O início do texto Amores Surdos (PASSÔ, 2012) parte da leitura de uma
carta. Ela demonstra bastante das comunicações desencontradas que presenciamos
no decorrer da peça. Através de sugestões e direções dos professores/encenadores,
transformamos a leitura dessa carta em uma cena que demonstrava essa
comunicação atravessada. A cena inicial passou a ser feita da seguinte forma: com
todas as câmeras fechadas, era dado um sinal, demonstrando que a peça iria iniciar,
três toques intervalados. Entre esses toques, nós respirávamos fundo, próximo aos
microfones, de modo a trazer tanto a dificuldade de respiração de uma das
personagens, quanto, a realidade que enfrentávamos com a pandemia. Ao fim dos
três toques, ainda com a câmera fechada, um dos atores iniciava o texto, e, ao
chegar no final da segunda linha, um outro ator iniciava sua própria leitura, em
paralelo. Quando este chegava na segunda linha, um terceiro ator, em paralelo aos
dois primeiros, iniciava sua própria leitura da carta. E assim, líamos um seguido do
outro, numa ordem pré-estabelecida, em uma leitura que ficava toda atravessada,
todos lendo a carta ao mesmo tempo, porém em tempos diferentes. Após o último
ator encerrar o texto, realizávamos uma nova leitura, e, dessa vez, cada um tinha
seu trecho específico, onde dávamos o texto, um após o outro, seguindo a ordem de
frases da carta. Nessa segunda leitura, íamos abrindo as câmeras, juntamente com
o início do nosso trecho particular, olhávamos fixamente para a câmera, enquanto
discorríamos nossa parte. Ao finalizar seu trecho particular, o ator se dirigia para
próximo da câmera, de modo a ocupar toda sua tela com o rosto, e, lentamente ia
explorando partes do rosto frente a câmera. Por fim, quando o último ator encerrava

4
O desejo de trabalhar a cena em pé já estava presente desde o início, como podemos observar no
relato da aula do dia 11/03/2021
30

a carta e se juntava aos demais, nessa exploração junto da câmera, retomávamos a


respiração mais forte do início da cena, por um tempo breve, e íamos um a um,
desligando as câmeras. Encerrávamos ali, a cena de abertura da peça.

Figuras 8, 9 e 10 – Abertura da peça Amores Surdos


31

Ao vislumbramos essa cena, completa, percebemos que o teatro estava sim,


de certa forma, presente no virtual. E que aquela, era uma montagem teatral. Muniz
e Rocha (2016, p. 253), ao analisarem a relação entre teatro e internet, e o conceito
de teatro como arte que necessita, no mínimo, da relação presencial entre alguém
para contar uma história e alguém que a assista, conclui:
Não sabemos se o que surgirá dessa tensão ainda será chamado
teatro ou não, pois ao prescindir do convívio nas mesmas
coordenadas espaço/temporais, se aproxima de outras artes e se
descaracteriza como teatro. Ainda assim, essa tensão parece-nos
positiva, pois permite que o teatro repense seu lugar na
contemporaneidade e permaneça em crise, reinventando-se.

A partir daí, a peça teria movimentos do começo ao fim, com o texto


totalmente memorizado, personagens com gestos únicos, cenas esculpidas através
do trabalho árduo e repetitivo dos ensaios. O trabalho com o corpo passou a ser
muito mais exigido nas nossas aulas/ensaios como podemos ver no relato de aula
do dia 25/05/2021 abaixo:

Chegamos até metade do texto, hoje fiz algumas personagens que não
costumo fazer, como a mãe. Depois, sobre minha atuação da personagem Joaquim,
a professora deu alguns toques na cena, entre eles um que eu estava me
movimentando muito de um lado para o outro o que dispersava a cena. Tentei então
trabalhar com meus pés mais plantados ao chão, fazendo movimentos mais
pontuais, e trazendo para outros lugares o desespero que a cena pede, através da
respiração, olhares e expressões.

Foi necessário também, que adicionássemos alguns objetos para as


personagens. Devido as trocas de atores interpretando uma mesma personagem5,
havia alguns momentos, em que era difícil distinguir qual era a personagem em cena.
Como efeito prático de cena, trouxemos objetos particulares, para cada personagem.
A mãe andava sempre com um pano de prato, Joaquim possuía um gorro, Grazi
tinha seu headfone e Pequeno, um boné6. Estes objetos eram os mesmos,
independentemente do ator que estivesse interpretando a personagem naquele
momento.

5
Observar a Figura 7.
6
A personagem do Samuel não tinha um objeto para diferenciá-lo em cena, pois apenas um ator o
fazia, e este ator não fazia outras personagens.
32

Uma das coisas que causou certa dificuldade no começo, era o que fazer
enquanto estava em cena, porém sem falas. Para onde olhar? Quais movimentos
realizar? Quando eu precisava interpretar a Grazi, era mais fácil de visualizar isso, já
que ela quase sempre estava dançando ao fundo, com seu headfone. Esse objeto
de cena, junto à característica de adolescente sonhadora7, me trazia uma boa
referência sobre como trabalhar os movimentos da personagem. Contudo, nas
cenas do Joaquim, eu não tinha essa ação pré-determinada para realizar. Imagino
que no teatro presencial, não-online, desenvolveríamos um desenho de cena, e
ficaria mais fácil de visualizar o que fazer. Todavia, ali eu estava parado na frente de
uma tela, que me captava somente por um ângulo, e dentro do limite de corte da
câmera. No começo me causava até certo desconforto. E foi como forma de me
ajudar a sustentar a personagem em cena, que eu trouxe uma caneca para a Cena
IV. Eu entrava em cena segurando minha caneca, e quando não precisava interagir
com outras personagens, interagia com a caneca. Assoprava como quem estava
tomando um café, tomava um gole ou outro, e trazia em alguns momentos, uma sutil
inquietação que a personagem sentia nos diálogos, em pequenos movimentos com
a caneca. E no fim, funcionou, já que tive aprovação dos professores/encenadores
para manter o objeto em cena.

Figura 11 – Trecho da Cena IV

7
As rubricas da Grace Passô costumam ser mais subjetivas, entretanto, como a Grazi é descrita
como uma adolescente que imagina a vida como um clipe de música, e que está sempre com um
headfone no ouvido, parecia lógico que o seu movimento, muitas vezes, seria dançar.
33

Quando já nos aproximávamos do meio do ano, houve uma mudança nas


portarias regimentais do IFPR, e agora, teríamos uma semana de aulas síncronas,
ou seja, aulas online de segunda a sexta, durante uma semana a cada mês, em
média. Para minha turma, ficou decidido que durante essa semana teríamos um dia
de aula com todos os professores, e no restante da semana, um professor por
aula/dia. Nessas aulas ministradas por apenas um dos professores de cada vez,
tivemos a oportunidade de realizar trabalhos para além do texto. O que auxiliou
muito no nosso crescimento para as cenas. Trabalhos como os exercícios de vós e
articulação trava-línguas ministrados pela professora Larissa.

Relatos da aula do dia 25/05/2021


Fizemos um aquecimento com trava-línguas, em que exploramos ao
máximo a gesticulação, exagerando bastante nas expressões! Fizemos vários trava-
línguas ora com um lápis na boca, ora sem, e depois partimos para a leitura do texto.

Por ser online, e pelo espaço de enquadramento de câmera no lugar


disponível nas casas de cada estudante, esse tipo de exercício nos auxiliou a trazer
as interpretações das personagens mais para as expressões do rosto. Lembro de
outro exercício em particular, que minha turma gostou muito de fazer, em que
trabalhamos a cena toda como se fôssemos animais. Ao trazer características do
animal dentro da personagem, nós vislumbramos intenções e energias, que antes
nem sequer havíamos imaginado para as mesmas. Apresento abaixo o relato dessa
aula:

Relatos da aula do dia 22/06/2021


Fizemos uma leitura inteira correndo sem sair do lugar, depois mais uma
leitura, mas dessa vez como se fôssemos um animal. Cada personagem era um
animal diferente. Esse exercício em específico trouxe nuances interessantes às
personagens, mais energia, e até algumas intenções antes não exploradas.

Ao trabalharmos por algumas cenas, notamos que nem tudo que funcionaria
no palco, era viável na modalidade virtual. Como em um trecho na Cena III, em que
a mãe passava o telefone para Samuel, sem dizer nada. Não ficava evidente que
havia essa passagem, sem nem ao menos mencionar esta ação. Então, tivemos que
34

fazer algumas adaptações, para que houvesse uma melhor compreensão do


espetáculo.
Outra mudança que realizamos, foram alguns cortes no texto. Era uma peça
muito longa para ser apresentada na integra e online e não teríamos tanto tempo
para aperfeiçoar o trabalho se a fizéssemos por inteiro. Então decidimos adaptá-la
para uma versão menor, mas que preservasse o sentido principal do texto.
Além dos cortes, também fizemos algumas adaptações, trazendo falas que
estavam escritas em um português formal, para termos mais comuns do dia a dia,
pois estas falas não se comunicavam com a nossa ideia para a peça, uma peça
dentro da realidade de pandemia. Também alteramos pequenos detalhes, como na
Cena IV. No texto original, Samuel retorna a casa para pegar seu lenço, que havia
esquecido de levar ao sair. Em nossa adaptação, ao invés do lenço, ele esquece a
máscara, uma máscara cirúrgica descartável, o que novamente8 traz essa ligação
com a nossa realidade de pandemia, onde ninguém deveria sair às ruas sem
máscara.
E assim prosseguimos, ensaios e mais ensaios. Chego a perder a conta de
quantas vezes li aquele texto. Mas no final, teatro é isso. A arte da repetição, como o
professor/encenador Quaresma, sempre gostava de nos lembrar. Ele dizia: quando
eu revejo uma cena, quero ver ela exatamente como da vez anterior, os mesmos
movimentos, os mesmos olhares, a mesma intenção... E nessa intenção
trabalhávamos, de novo e de novo.
Porém, as ausências continuavam a atrapalhar a evolução do espetáculo.
Chegamos até mesmo a realizar uma reunião, com todos presentes,
professores/encenadores e estudantes/atores. Uma reunião com um certo apelo, na
qual tentamos encontrar uma solução para essas ausências. Havia abismos entre a
disposição e disciplina de alguns estudantes e outros, como ‘um hipopótamo
sentado na sala de tv’, que fingíamos não ver, mas não dava mais para ignorar. Com
uma conversa bastante íntima e informal, e, em alguns momentos, com os nervos à
flor da pele, tentávamos explicar a importância da participação e empenho de todos.
Porém, não percebíamos essa compreensão do lado oposto. Essa compreensão de
que, mesmo não estando em cena, o que acontece com os atores e personagens
que estão, reverberam em mim, ressoam na minha atuação.

8
Assim como ocorre na cena de abertura da peça, descrita anteriormente.
35

Finalizamos essa reunião na esperança de que houvesse uma melhora da


participação dos colegas. Entendíamos que a realidade de se fazer online era
complicada, todos tínhamos atravessamentos pessoais durante esse período de
montagens, que iam de problemas com a internet, a cuidados de familiares com
complicações ao contraírem o Coronavírus, de cachorros latindo no vizinho, ao filho
pequeno, que precisava estar presente junto da mãe durante os ensaios. Alguns
tinham mais atravessamentos, outros menos. Porém, dos que estavam presentes,
todos faziam o máximo para conseguir entregar um trabalho completo. Mesmo tendo
atravessamentos enormes. E acabava não sendo justo para com esses que o
processo prosseguisse dessa forma. Uma ruptura precisou acontecer.
Pela realidade que nos encontrávamos, de pandemia e aulas online,
participar da montagem não era a única maneira de se finalizar o curso. O mesmo
poderia ocorrer através da entrega de trabalhos e atividades virtuais. Então, para os
estudantes ausentes, foi dada essa segunda opção. E prosseguimos a montagem
com os demais. Agora visando a reta final, a apresentação.
36

V. DO MESMO JEITO QUE A LAMA NAS FRESTAS DO CHÃO, QUE NÃO SE


RETIRA

Estávamos começando a caminhar para a reta final da montagem. Isso


significava que precisávamos aparar algumas arestas, deixar o espetáculo completo.
Havia duas questões em especial que precisávamos trabalhar. A sonoplastia, e a
adição do elemento lama, a uma cena da peça.
Foram poucos os dias que faltei nos ensaios, posso dizer que tinha um certo
privilégio quanto a isso, não vivi muitos atravessamentos externos durante o
processo, apenas internos. Mas, no dia em que a lama foi trabalhada, eu precisei me
ausentar. Lembro da cobrança no dia seguinte a minha falta. Foi como se tivesse
faltado uma série de dias. Mas como a professora Larissa sempre nos falava a
ausência de quem é presente, é muito mais sentida, do que a de quem quase nunca
está lá. Precisei correr atrás do prejuízo e aprender todos os detalhes possíveis de
como iria funcionar a cena da lama. Minha colega Helena chegou a me mandar um
vídeo de como seriam os movimentos, e em qual momento ocorreria.
A lama acontecia dentro da Cena IV. Tudo se iniciava quando Joaquim,
interpretado por mim, reclamava do barulho dos vizinhos, juntamente à Mãe, Grazi e
Pequeno. Depois de um breve diálogo sobre os vizinhos, Pequeno gritava: Não
estás me ouvindo? Não estás me ouvindo? Por que ninguém me escuta nesse
recinto? (PASSÔ, 2012, p.42). Enquanto gritava, ele passava lama no próprio rosto,
uma pequena quantidade de lama, espalhada pelo rosto em movimentos lentos,
fortes e opostos. Durante esse trecho do Pequeno, o restante dos atores congelava
em cena. A lama, para nossa peça, materializava a ausência de comunicação da
família. Os problemas e dificuldades gerados a partir desses desencontros,
problemas que estavam sempre presentes, mas a família parecia não ver. Quando
Pequeno encerrava sua fala, nós voltávamos a nos movimentar, eu me aproximava
da câmera, demonstrando avistar algo de estranho. Então questionava o que era
essa sujeira em Pequeno, e o chamava para se limpar. A Mãe imediatamente
discordava, afirmando não ter sujeira nenhuma, e iniciávamos uma breve discussão,
que se interrompia rapidamente. Todos, exceto Pequeno9, olhavam para a câmera,

9
Como Samuel saiu de casa antes que as discussões sobre a lama acontecessem, ele não está em
cena nesse momento. Mais tarde, ele retorna para casa, dizendo que esqueceu sua máscara, e a que
é entregue a ele está, também, suja de lama.
37

tiravam seus adereços, headfone, gorro, pano de prato... e começávamos a passar


lama em nossos rostos, assim como Pequeno havia feito. Ao fundo, Pequeno gritava
novamente: Não estás me ouvindo? Não estás me ouvindo? Por que ninguém me
escuta nesse recinto? (PASSÔ, 2012, p.43-44). Quando ele finalizava a fala,
descíamos as mãos lentamente, até sermos interrompidos pela campainha, então,
retomávamos nossos adereços, e voltávamos para a cena, normalmente, como se
nada tivesse acontecido. O que mostrava novamente essa alienação da família para
consigo mesma.

Figuras 12 e 13 – Trecho com a lama na Cena IV

Na mesma semana que terminamos de montar a cena com a lama, faríamos


um ensaio aberto para a turma do primeiro ano, e mesmo se tratando de um ensaio,
era a primeira vez que iríamos exibir a peça para um público externo. Havia um
nervosismo de apresentar o trabalho, e no meu caso, em especial, o daquela cena
38

também. Enfim, o ensaio aberto aconteceu, e na cena com a lama, lembro de sentir
como se me faltasse apoio, como se eu buscasse uma memória, porém ela não
estava lá.
Retornando a rotina normal de ensaios, precisávamos lidar agora com a
sonoplastia. Já havíamos inserido alguns efeitos sonoros mais práticos para serem
executados em cena: um objeto que fazia muito barulho na apresentação de
Pequeno, que justificasse a Mãe e Samuel chamando atenção dele, o som de um
telefone, e o som de campainha. Contudo, foi durante uma semana de aulas
síncronas, que juntamente com o professor Adrio, discorremos sobre onde e quais
músicas iríamos adicionar ao trabalho. Já tínhamos alguma noção de quais seriam
os momentos que adicionaríamos a sonoplastia, devido a apontamentos realizados
durante os ensaios. A grande questão era: quais músicas? Mesmo tendo bastante
liberdade criativa durante o processo, havia algumas ideias que pareciam ser de
certa forma censuradas, com frases de como isso não funciona no teatro. O que é
totalmente compreensivo, havia coisas que realmente não funcionavam na cena.
Entretanto, havia coisas que simplesmente eram barradas. Que para alguns
professores/encenadores funcionava e para outros não. Tínhamos um certo receio
de que as músicas escolhidas para a peça pudessem ser barradas. Essa situação
foi descrita no relato da aula do dia 21/06/2021:

Aula com o professor Adrio. Trabalhamos com a sonoplastia das cenas.


Como os sons ambientes já estavam bem definidos, fomos para outros sons que
ajudassem a dar um tom para as cenas.
Seguimos ouvindo a sugestão de todos de forma bem democrática.
Ouvíamos a música e depois fazíamos uma breve passagem pela cena para ver se
combinava com a ideia da peça.
Ao fim deixamos tudo certo para realizar um ensaio geral com os demais
professores e ponderarmos se havia a necessidade de alterações.

Por fim, com as músicas escolhidas, em um ensaio com todos os


professores/encenadores presentes, fizemos uma apresentação, da peça inteira
com a sonoplastia, e para nossa surpresa, boa parte das sugestões foram aceitas!
Algumas precisaram ser cortadas, outras apenas modificar o momento em se
iniciava e que encerrava, mas no geral foi muito bem aceito. O que nos trouxe certo
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orgulho, desse trabalho apenas entre os estudantes/atores e o professor Adrio, que


não era um professor formado em teatro, mas sim em música.
Com a adição de sons, o ritmo de algumas cenas precisou ser alterado e
mais trabalhado. O tempo foi modificado e aprimorado e as músicas nos ajudaram a
entrar com as falas em momentos mais precisos, já que, por conta da conexão de
internet, algumas vezes nos ouvíamos com atrasos. Como era o caso da Cena VI,
que possuía um diálogo muito preciso, muito marcado. A sonoplastia auxiliava nessa
marcação, mas foram necessários vários ensaios para conseguirmos criar essa
sincronia, com todos que estavam presentes em cena, e replicá-la nas
apresentações seguintes. As músicas passaram a reger as cenas onde entravam.
Ao se aproximar das semanas finais do curso, foi marcada uma
apresentação da nossa peça na II Semana de Arte e Cultura, promovida pelo IFPR,
que nesse ano, trazia como tema a Produção artística em tempos de pandemia.
Agora, com a peça praticamente pronta, data de apresentação e finalização do curso,
parecia muito surreal pensar em todo caminho que trilhamos, para chegar até o final
dessa etapa da nossa formação.

Figura 14 – Folder da II Semana de Arte e Cultura


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Nossa expectativa era alta para a apresentação. Depois de praticamente um


ano trabalhando na montagem, quase dois anos trabalhando online, e três anos
estudando teatro, teríamos a oportunidade de apresentar tudo o que aprendemos.
Eu teria a oportunidade de experimentar novamente essa apresentação frente ao
público, mesmo que de forma online.

Figuras 15 e 16 – Apresentação na II Semana de Arte e Cultura


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A GENTE VAI PREFERIR NÃO CASAR, MAS A GENTE VAI SER FELIZ

A apresentação da montagem final representa o fim de um clico, o


fechamento de parte do nosso processo de aprendizado. Chegamos ao final de uma
caminhada, mas não ao fim do caminho. Muitas conclusões podem ser geradas a
partir desse encerramento, mas muitas só serão percebidas ao longo do tempo.
É impossível trazer aqui toda uma vida de experiências passadas, reflexões,
erros e acertos, de forma concluída, de forma encerrada. Trata-se de um
aprendizado em progresso. A cada dia, novas conclusões são adicionadas,
reformuladas ou ainda, retiradas. E é através dessas conclusões que já se formaram,
que encerrarei meu trabalho.
O dia da apresentação chegou, fizemos um último ensaio, tudo correu como
deveria: todos estavam presentes, a sonoplastia estava funcionando, o texto todo
memorizado, as intenções estavam bem colocadas. Porém, no meio de toda essa
expectativa e realização, tivemos um problema técnico bem durante a apresentação
pública. Devido à forte chuva que ocorria na cidade de Jacarezinho/PR, perdemos a
conexão com o professor que realizava a sonoplastia, já no início da peça. Respiro
fundo, e continuamos a peça sem música que, como dito anteriormente, dava ritmo
às cenas.
Apesar da falha, estávamos prosseguindo a cena normalmente. Até
entrarmos na Cena III, quando perdemos a conexão com a Helena. A orientação
dada previamente era a de que pausássemos a cena, caso houvesse algum erro
com a conexão da internet. Quando a conexão se reestabelecesse, iniciaríamos a
mesma cena novamente. E assim o fizemos. Três vezes. Mas a internet parecia não
cooperar com a gente, dificultando muito que a cena ocorresse. A Helena entrava, e
logo perdia a conexão, entrava e perdia a conexão. No meio de uma situação como
essa, alguns anos antes, eu teria travado. Com certeza teria esquecido grande parte
do texto. O nervoso teria tomado conta de mim, a ponto de não conseguir terminar
de forma alguma. Entretanto, depois de tudo que aprendemos, tudo que estudamos,
praticamos e ensaiamos, era possível sustentar a cena. Mesmo com parte da peça
saindo muito fora do esperado, percebi que conseguia me manter, conseguia parar,
respirar e reiniciar a cena. De novo, e de novo. Porque era exatamente isso que
havíamos feito esse tempo todo, tínhamos o preparo necessário para realizar a peça
quantas vezes forem necessárias.
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De repente, fazia sentido para mim, a necessidade da repetição do trabalho,


do aprofundamento das personagens, do exaustivo trabalho que os
professores/encenadores nos cobravam. Fazia sentido, porque eu ficava tão
nervoso anos antes em qualquer apresentação. Eu não tinha o preparo necessário
para sustentar minhas apresentações, ou para confiar que eu o conseguiria fazer.
Agora ficava claro os caminhos que precisava percorrer, a dedicação necessária
para alcançar o resultado almejado, a entrega que a arte me pedia, e agora, estava
consciente e disposto a dar.
Nem todos tivemos as mesmas reações durante essa apresentação final.
Alguns travaram, outros deram o texto errado, outros se mantiveram... Porém todos
deram o máximo que podiam naquele momento. Depois de três anos vivendo com
minha turma, minha visão do coletivo se modificou. Iniciamos como completos
desconhecidos, inseridos numa turma de teatro, em que muitos, assim como eu, mal
entendiam o que significava. Desconhecidos que vinham de diferentes realidades,
diferentes momentos de vida, visando o teatro, porém, com diferentes motivações.
Todos tinham algo a oferecer, mas nem todos se mostraram dispostos, ou estavam
prontos para oferecer naquele momento.
Independentemente de quem éramos, foi impossível passarmos uns pelos
outros sem gerarmos nenhum tipo de reação. Fosse durante os momentos
anteriores a aula, durante os intervalos, encontros particulares, festas, visitas ou
simples esbarradas ao acaso pela rua, a cada encontro, nos conhecíamos mais.
Porém, nada era comparado às intimidades trocadas em aula, que nos levaram a
contar uns com os outros para a cena. Tendo afinidades ou não, precisávamos um
do outro para o teatro. Sendo a pessoa mais vivida do meio teatral, ou a mais
iniciante no assunto, se estivéssemos ali, presentes e dispostos, o teatro podia
acontecer.
Passei por diferentes núcleos de pessoas, entre familiares, colegas de
escola, colegas de trabalho, amigos, namorados... E apenas na minha trupe,
encontrei as pessoas que tornaram meu caminho pela arte possível de ser traçado.
A arte até pode ser gerada individualmente, mas a transformação causada pelo
coletivo, nos leva a lugares inimagináveis, rompe barreiras e paradigmas que muitas
vezes nem tínhamos conhecimento.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Laurence. Acessado em: 16 setembro 2021. Disponível em:
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Lume 3, v. 1, n. 1. Campinas, São Paulo, 2012. p. 94-113. Acessado em: 10 de
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Dissertação de Mestrado do Instituto de Artes da Unicamp. Campinas: São Paulo,
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