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NACIO

NACIONAL
Jane Souto de Oliveira*

Mutações
no mundo do
trabalho:
o (triste)
espetáculo da
informalização
Às transformações operadas na economia mundial, por força da globalização dos

mercados, da incorporação aos processos produtivos dos avanços tecnológicos nas

áreas de microeletrônica, biotecnologia e novos materiais e da generalização de po-

líticas de cunho neoliberal, associam-se profundas mutações no mundo do trabalho.

Entre essas, destacam-se:

6 DEMOCRACIA VIVA Nº 21
NAL
1. elevação das taxas de desemprego; Mudanças no estado do
2. aumento da inserção econômica feminina; Rio de Janeiro e no Brasil
3. declínio do setor secundário na absorção de No conjunto dos estados brasileiros, o Rio de
mão-de-obra e expansão do setor terciário; Janeiro exibe um perfil singular, marcado pela
4. retração do assalariamento formal; elevada concentração de população e ativida-
5. flexibilização das relações contratuais de des econômicas. Do total de 14.367.225 ha-
trabalho, redundando em perda ou subtra- bitantes, 96% vivem em cidades e vilas, 76%
ção de direitos do trabalho e menor grau na área metropolitana e 41% na capital,1 con-
de proteção social; figurando “uma macrocefalia urbana ímpar
6. mudanças nos requerimentos feitos ao tra- na federação brasileira” (Davidovich, 2000).
balhador sob a égide da “empregabilida- A polarização de atividades e recursos eco-
de”, que se traduzem por maior grau de nômicos se expressa no fato de que a área
escolarização formal e por uma crescente metropolitana e seu município-núcleo res-
exigência de atributos, tais como polivalên- pondem respectivamente por 73% e 57% do
cia, autonomia, iniciativa e competitividade; produto gerado em nível estadual.2 A desa-
7. informalização e precarização das relações gregação setorial dessas atividades, por sua
de trabalho; vez, aponta para o primado do comércio e
8. manutenção/agravamento das desigualda- dos serviços na geração das riquezas. Em
des de rendimento; 1999, as atividades agropecuárias eram res-
9. dilatação das margens de pobreza. ponsáveis por menos de 1% do PIB (Produto
* A autora agradece a Angela
Jorge e Vandeli dos Santos
Tais mutações por que passa o mundo Interno Bruto) estadual, as industriais por Guerra, da Coordenação de
Emprego e Rendimento da
do trabalho se atualizam em diferentes esca- cerca de 42% e as terciárias por 58%. 3 Diretoria de Pesquisas do IBGE
las – global, nacional e local –, estendendo- Essas duas características – elevado
(Instituto Brasileiro de Geo-
grafia e Estatística), os valio-
se, embora com intensidade e velocidade dis- grau de urbanização/metropolização e forte sos esclarecimentos sobre a
metodologia de investigação
tintas, a países e regiões situados tanto no peso do terciário no estado – remontam a um e sobre os indicadores de tra-
centro como na periferia capitalista. passado longínquo e não podem ser
balho e rendimento da Pes-
quisa Nacional por Amostra de
Este artigo enfoca algumas dessas mu- dissociadas da centralidade da cidade do Rio Domicílios (Pnad) e dos censos
demográficos de 1991 e 2000.
danças, tendo como referência espaço-tempo- como capital do país por quase dois séculos. E a Cesar Ajara, pela leitura
ral o estado do Rio de Janeiro ao longo da Mas elas refletem, também, os impasses, as
atenta e pelos comentários
estimulantes de sempre.
década de 1990. Ele se desdobra em duas par- vicissitudes e o baixo dinamismo das ativida- 1 Segundo dados do censo
tes: na primeira, é feito um cotejo entre a evo- des industriais que, há muitas décadas, ali- demográfico de 2000.
lução fluminense e a do país como um todo mentam o debate em torno do esvaziamento 2 Segundo dados da Funda-
ção Cide referentes a 1999.
durante a década de 1990. Na segunda, o foco ou da estagnação da economia fluminense e
se dirige a um dos vetores de mudança, mais encontram um agravante a mais nos índices
3 Segundo dados do IBGE –
Contas Regionais do Brasil
precisamente o que na literatura especializa- de criminalidade urbana da cidade do Rio e de 1985–1999. Já os dados da
Fundação Cide referentes a
da vem sendo chamado de processo de seu entorno. 2000 apontam para uma
informalização. Após uma breve contextuali- No contexto atual, em que a nova eta-
composição setorial diferen-
te, na qual são atribuídos os
zação do debate em torno do tema, busca-se pa de acumulação capitalista privilegia a eco- seguintes pesos: atividades
primárias: 0,4%; secundárias:
qualificar e mensurar esse processo para o es- nomia de serviços e faz dela seu principal ve- 37,5%; e terciárias: 62,1%.
tado do Rio de Janeiro, assumindo que, longe tor de dinamismo, as perguntas que se colocam 4 Esse é o tema central em
de constituir um caso isolado, a experiência são: pode o estado do Rio se beneficiar dessa torno do qual gravitam as
análises de diversos estudio-
fluminense possa servir como palco mudança de paradigma? Até que ponto se sos de economia e do territó-
r i o f l u m i n e n s e . Ver, p o r
paradigmático do (triste) espetáculo da abrem para ele possibilidades de um cresci- exemplo, os trabalhos de
informalização, encenado, de modo crescen- mento sustentado e menos assimétrico em Davidovich (2000), Ribeiro
(2002), Santos (2002) e Ajara
te, no Brasil urbano. termos espaciais e setoriais? 4 (2003).

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Respostas a essas questões suscitam cada vez mais, como economia de serviços,
cautela entre analistas. Por um lado, a con- deslocando as atividades industriais para o
centração de atividades e recursos no territó- interior do estado e favorecendo, com isso, a
rio fluminense (o estado do Rio é um dos me- consolidação de pólos regionais e o cresci-
nores da Federação), sua posição estratégica mento de cidades de porte médio. Nessa di-
no espaço nacional e o peso de sua capital reção, inscreve-se, por exemplo, o impulso
como sede de grandes empresas e institui- dado à região Norte Fluminense com a explo-
ções, centro de tecnologia e de serviços espe- ração de petróleo e gás natural na Bacia de
cializados passam a ter sua importância Campos (o petróleo teve sua produção
amplificada como fatores de atração de no- duplicada entre 1990 e 1999 e levou a pro-
vos investimentos privados. Por outro, acen- dução estadual a responder por 80% da pro-
tua-se a tendência de que a área metropoli- dução nacional). E, em escala mais reduzida,
tana do Rio de Janeiro venha a se configurar, o impulso dado à região Sul Fluminense, com

Quadro 1
Indicadores de mudança no mercado de trabalho
Brasil e Rio de Janeiro 1992/1999

Brasil (1) Rio de Janeiro


Indicadores
1992 1999 1992 1999

Taxa de desemprego 6,5 9,6 6,9 11,4


% de pessoas ocupadas com contribuição à Previdência Social 43,6 43,5 61,9 60,4
% de empregados com carteira no total de empregados (2)
64,0 61,3 74,7 73,0
% de trabalhadores domésticos com carteira
no total de trabalhadores domésticos 17,5 25,0 25,0 33,4
Taxa de atividade global 61,5 61,0 54,6 54,4
Taxa de atividade masculina 76,6 73,8 70,3 67,9
Taxa de atividade feminina 47,2 49,0 40,3 42,5
Taxa de atividade no grupo de 15 a 17 anos 54,3 44,6 33,0 25,2
Taxa de atividade no grupo de 18 a 24 anos 73,6 72,6 68,5 67,3
% de mulheres no total de pessoas ocupadas 38,8 40,3 38,1 40,1
% de mulheres no total de pessoas desocupadas 48,5 52,0 42,4 53,8
% de jovens (15 a 24 anos) no total de pessoas ocupadas 25,1 22,6 21,2 17,7
% de jovens (15 a 24 anos) no total de pessoas desocupadas 48,5 47,5 45,2 41,7
% de pessoas ocupadas no setor primário 28,3 24,2 5,4 3,4
% de pessoas ocupadas no setor secundário 20,4 19,3 21,0 19,8
% de pessoas ocupadas no setor terciário 51,3 56,5 73,6 76,8
% de pessoas ocupadas com menos de quatro anos de estudo 37,3 28,7 22,2 16,3
% de pessoas ocupadas com 15 ou mais anos de estudo 5,1 6,7 9,2 11,5
Anos médios de estudo das pessoas ocupadas 5,3 6,3 7,0 7,9
Rendimento médio dos 10% de maior rendimento
das pessoas ocupadas /Rendimento médio dos 40%
de menor rendimento 19,0 18,8 15,6 15,0
Parcela do rendimento apropriada pelo 1% de maior rendimento 13,1 13,1 12,2 12,1
Parcela do rendimento apropriada pelos 50% de menor rendimento 14,0 14,0 15,9 15,3
Índice de Gini da população ocupada 0,571 0,567 0,536 0,532

FONTES: PNAD 1992, PNAD 1999 – SÍNTESE DE INDICADORES E SÍNTESE DE INDICADORES SOCIAIS 2000
NOTAS: (1) EXCLUSIVE A POPULAÇÃO RURAL DO ACRE, AMAPÁ, AMAZONAS, PARÁ, RONDÔNIA E RORAIMA | (2) EXCLUSIVE MILITARES, FUNCIONÁRIOS
PÚBLICOS ESTATUTÁRIOS E TRABALHADORES DOMÉSTICOS

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MUTAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO: O (TRISTE) ESPETÁCULO DA INFORMALIZAÇÃO

a implantação de grandes montadoras como poderia, em grande medida, ser explicado pela
a Peugeot-Citröen, e à região das Baixadas, retenção deles na escola, embora aí também
pela proliferação de atividades de turismo , lazer entrem em jogo as maiores exigências feitas
e imobiliárias (segunda residência). hoje pelas empresas, a falta de experiência
Se esses são sinais que endossam a ex- profissional dos jovens e a acirrada concor-
pectativa de expansão econômica do estado, rência que entre eles se
não se pode perder de vista, porém, que os estabelece pelos postos
efeitos da crise da década de 1980, bem como de trabalho disponíveis.
os impactos da abertura da economia brasilei- A trajetória das
ra para o exterior na década de 1990, foram mulheres, por sua vez, A terceirização
particularmente duros para a economia aponta para a elevação
fluminense. Entre 1985 e 1999, o PIB estadu- contínua de sua participa- da década
al apresentou um incremento de 22,3%, en- ção no mercado de traba-
quanto o do PIB nacional foi da ordem de lho, dando continuidade de 1990 foi
40,6%. Exceção feita à extração mineral, todos a uma tendência que co-
os demais setores de atividade tiveram no es-
tado do Rio um crescimento proporcionalmen-
meça a ganhar nitidez na
década de 1970 e se ace-
impulsionada,
te menor do que o registrado em nível nacio-
nal. Como resultado, a participação do estado
lera nas duas últimas. Em
resultado, as mulheres
principalmente,
na geração nacional de riquezas declinou de passam a responder, em
13,3%, em 1985, para 11,8%, em 1999. 1999, por 40% da popu- pelos serviços
Ressalve-se, ainda, que, a par de varia- lação ocupada fluminense
ções positivas, mas de intensidade distinta, nos e da brasileira. de consumo
diversos setores do terciário, o modesto incre- Ao longo da déca-
mento do PIB fluminense (22,3%) no período da de 1990, acentua-se, individual,
1985–1999 foi fortemente influenciado por também, a hegemonia
dois movimentos contraditórios de sua pró- do setor terciário. Man- pelo comércio
pria indústria: a vigorosa expansão da extrativa tendo-se o cenário de ex-
mineral (258,6%) e o crescimento negativo
(-5,7%) da transformação.
pulsão da mão-de-obra
agrícola e tornando-se
e pelas
Tendo essas mudanças na estrutura
produtiva como pano de fundo, analisam-se,
menor e mais seletiva a
demanda de mão-de-
atividades sociais
a seguir, seus reflexos no mundo do traba- obra na indústria, como
lho, com base nos indicadores fornecidos pelo decorrência da perda de
Quadro 1. dinamismo e da reestru-
A leitura do quadro chama a atenção, turação produtiva do se-
em primeiro lugar, para o aumento da taxa de tor de transformação industrial, foi o terciário
desemprego aberto, que, situada em torno de o principal absorvedor da força de trabalho,
6,5% a 7,0% no início da década, teria alcan- responsabilizando-se, em 1999, por 76,8% da
çado, ao fim dela, os valores de 11,4% para o ocupação fluminense e 56,5% da brasileira. A
Rio de Janeiro e de 9,0% para o Brasil. Confir- exemplo do que já havia ocorrido na década
ma, também, o protagonismo de jovens entre de 1980, a terceirização da década de 1990
os que pressionam o mercado à procura de foi impulsionada, principalmente, pelos servi-
trabalho – em 1999, pessoas de 15 a 24 anos ços de consumo individual, pelo comércio –
respondiam por 41,7% do total de desempre- estabelecido e ambulante – e pelas atividades
gados no estado e por 47,5% no país – e reve- sociais e, secundariamente, pelos serviços ao
la que, nesse mesmo ano, a proporção de produtor. Em contraste, porém, com a década
mulheres no total de desempregados era su- de 1980, quando a redução do emprego pri-
perior à dos homens, representando 53,8% vado foi em certa medida atenuada pela ex-
no Rio e 52,0% no Brasil. pansão do emprego público, na década de
Se a condição de desemprego aproxi- 1990 o peso da administração pública na dis-
ma jovens e mulheres, as trajetórias percorri- tribuição setorial de população ocupada man-
das ao longo do período voltam a diferenciá- teve-se inalterado (correspondendo, nos dois
los. Entre 1992 e 1999, há um declínio das pontos de tempo considerados, a cerca de 6%
taxas de atividade de jovens, particularmente da população ocupada fluminense e a 4,6%
expressivo na faixa de 15 a 17 anos. Tal declínio da brasileira).

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No período, registrou-se um aumento essa razão, que corresponde a 19 vezes no


significativo do grau de escolaridade da força caso brasileiro e a 15 no estado do Rio de Ja-
de trabalho, que se reflete, entre outros, nos neiro, equivale a 11,7 no Chile, a 9,6 na Ar-
indicadores de analfabetismo funcional e de gentina e a 8,11 no México.
escolaridade superior. No caso do Rio de Ja-
neiro, uma das unidades federativas de me-
Tentativa de dimensionamento
lhor desempenho educacional do país, a pro-
porção de pessoas ocupadas com menos de O debate sociológico em torno das transfor-
quatro anos de instrução, que atingia 22,2% mações recentes no mundo do trabalho
do total em 1992, se reduz para 16,3%, em recolocou na ordem do dia o tema da infor-
1999, enquanto a de pessoas com 15 ou mais malidade, principalmente a partir do
anos de estudo passou de desbordamento da economia informal –
9,2% para 11,5%, elevan- como problema e categoria analítica – para
do-se a escolaridade mé- os países centrais.
O debate dia de 7 para 8 anos de
estudo. Evolução análoga
No Brasil, esse mesmo debate é retoma-
do na década de 1990 e apresenta três traços

sociológico se observou para a popu-


lação ocupada no Brasil:
distintivos em relação àquele que, em articula-
ção com as discussões sobre desenvolvimento
declínio na participação e pobreza nos países latino-americanos, cu-
em torno das de pessoas com menos de nhou o tema “informalidade” e mobilizou di-
quatro anos de instrução versos agentes do campo intelectual nas dé-
transformações (de 37,2% para 28,7%); cadas de 1960 e 1970.
aumento na de pessoas O primeiro traço distintivo é que a abor-
recentes com escolaridade superi- dagem da informalidade ganha novos conteú-
or (de 5,1% ao 6,7%) e dos e se torna mais complexa. Em poucas pa-
no mundo elevação da média de
anos de estudo das pes-
lavras, ela passa a incorporar tanto a noção de
um campo ou setor específico de atividades,
do trabalho soas ocupadas (de cinco
para seis anos).
tal como derivada dos estudos levados a efei-
to nas décadas de 1960 e 1970, nos países

recolocou O progresso edu-


cacional não foi suficien-
periféricos, e difundida por organismos inter-
nacionais como a Organização Internacional
te, contudo, para contra- do Trabalho (OIT), como a noção de processo
na ordem arrestar uma tendência de informalização, trazida pela reflexão sobre
que, detectada pela pri- a emergência da economia informal nos paí-
do dia o tema meira vez na década de ses centrais.
1980, voltou a se afirmar A primeira dessas noções – o campo
da informalidade na década de 1990: a do informal – remeteria a um conjunto de for-
retração do assalariamen- mas de produção não-capitalistas que se inse-
to formal. Essa tendência rem nas franjas ou nos interstícios do merca-
se reflete na proporção de do e atuam em espaços delimitados pela
empregados com carteira assinada, que, entre expansão do capital. Nessa acepção, o setor
1992 e 1999, se reduz de 64,0% para 61,3%, informal estaria ocupando os espaços não-
no Brasil, e de 74,3% para 73,0%, no estado preenchidos ou já abandonados pela produ-
do Rio de Janeiro. ção capitalista. Já a segunda – o processo de
5 Essa é, por exemplo, a pers- Por sua vez, a proporção de pessoas informalização – guardaria relação com o pro-
pectiva adotada por Souto de
Oliveira (1991) e Machado da
ocupadas contribuintes para a Previdência So- gressivo afastamento das relações de traba-
Silva e Chinelli (1997). Já cial diminui no Rio de Janeiro e permanece lho do modelo de emprego total e, sobretu-
Cacciamali (2001), ao definir
o processo de informalidade constante no Brasil. do, da órbita de regulamentação do estado, a
como “um processo de des-
truição, adaptação e redefini-
Finalmente, o perfil de concentração partir da reestruturação produtiva que teve
ção das relações de produção; de renda que caracteriza o estado e, de forma lugar nos países capitalistas centrais.
processos de trabalho; formas
de inserção de trabalho; rela- ainda mais perversa, o país se manteve prati- Diante das mudanças no mercado de
ções, contratos de trabalho; e
conteúdo das ocupações [que]
camente inalterado, como demonstra, entre trabalho no Brasil, fundem-se as duas pers-
implica construção ou adap- outros indicadores, a razão entre os rendi- pectivas de análise,5 buscando dar conta de
tação de formas consuetudi-
nárias e jurídicas”, estaria mentos médios dos 10% mais ricos e dos 40% um duplo movimento: de um lado, a amplia-
privilegiando o movimento que
se passa no interior de empre-
mais pobres do conjunto de pessoas ocupa- ção do espaço ou do campo do setor informal,
sas e instituições formais. das. Apenas como dimensão de contraste, que se traduz pela incorporação crescente de

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MUTAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO: O (TRISTE) ESPETÁCULO DA INFORMALIZAÇÃO

agentes econômicos em formas de produção relação a isso, afirma Zaluar (1994) que “a ati-
e relações de trabalho não-capitalistas, vidade de transgredir o legal ou o socialmente
exemplificadas pelo trabalho por conta pró- aceito se sobrepõe e participa de diversos
pria, pela pequena produção mercantil e por mundos ao mesmo tempo – o marginal e o
micro e pequenos empreendimentos; de ou- central, o desviante [...] e muitos agentes par-
tro, a aceleração de um processo de informali- ticipam simultaneamente das exigências do
zação que se dá dentro das próprias empresas mundo do trabalho e do crime”. Outros, como
capitalistas. Esse processo responderia a uma Lautier (1997), introduzem a dimensão políti-
estratégia de ajuste empresarial, materializan- ca da informalidade/ilegalidade e defendem
do-se em práticas de terceirização, flexibiliza- a tese de que a tolerância do Estado – quan-
ção, subcontratação, recurso ao trabalho em do não o conluio de seus agentes – com es-
domicílio, entre outras. sas práticas econômicas
Uma outra característica trazida pelo contribui para a deslegi-
debate da década de 1990 é a introdução de timação do Estado e para
uma nova e positiva interpretação para a in- um fracionamento da ci-
formalidade, a partir da afluência de segmen- dadania, ambos envol- O trabalho
tos de classe média ao trabalho por conta vendo sérios riscos para
própria ou de seu engajamento em micro e a democracia. autônomo visto,
pequenos negócios. No discurso de econo- A informalidade
mistas e de técnicos ligados à área de política é, portanto, terreno am- à época,
econômica – aliás, um discurso que ganha bíguo e controverso, de
forte repercussão na mídia –, atribui-se ao
informal, lido quase que exclusivamente pela
difícil conceituação e de-
marcação. Sua configu-
predominantemente
inserção de autônomos e microempresários
oriundos das camadas médias, um conteúdo
ração atual e o interesse
renovado pelo tema não
pelo negativo
eliminam as questões,
radicalmente oposto ao que lhe era atribuí-
do nas décadas de 1960 e 1970. O trabalho apenas colocam novos e passa a ser
autônomo – visto, à época, predominante- mais complexos desafios
mente pelo negativo (baixa produtividade, à análise. incensado por sua
falta de qualificação do trabalhador) – passa Esses desafios se
a ser incensado por sua capacidade de inicia- estendem à mensuração capacidade de
tiva, por seu caráter empreendedor. Por seu do fenômeno. Se há con-
turno, a economia informal – vista, à época, senso entre estudiosos e iniciativa,
como atraso – passa a ser exemplo da pesquisadores de que as
modernidade liberal.
Contrapondo-se a essa visão, autores
fronteiras do informal
vêm se dilatando, são re-
por seu caráter
como Machado da Silva e Chinelli (1997) cha-
mam a atenção para a heterogeneidade do
lativamente escassas as
tentativas no sentido de
empreendedor
informal e para a reduzida proporção repre- mensurar seu espectro e
sentada por aqueles segmentos médios no sua evolução recente.6
conjunto de trabalhadores informais. Discu- É nessa direção
tem, ainda, a partir do confronto entre empre- que se inscreve o exercí-
go regular e ocupação por conta própria, ques- cio, feito a seguir, tomando por base os dados
tões como qualidade dos postos de trabalho, referentes aos censos demográficos de 1991
proteções sociais e nível de rendimentos e con- e 2000 para o Rio de Janeiro. Desde logo, duas
cluem que, mesmo no que diz respeito às ca- observações são necessárias. A primeira é a de
madas médias, as mudanças nas chances de que, em se tratando de informações proveni-
trabalho parecem indicar, para a maioria, em- entes de dados oficiais, fica descartada toda a
pobrecimento e perda de segurança. gama de atividades econômicas ilegais. Ou
Um terceiro e último importante aspec- seja, a tentativa de mensuração se circunscre-
to deve ser destacado na reflexão contemporâ- ve aos agentes envolvidos em atividades le-
nea sobre a informalidade: o reconhecimento gais. A segunda é a de que o recorte aqui em-
crescente de que as fronteiras entre o formal, o preendido – e a seleção de categorias-tipo de
informal e o ilegal tornaram-se mais difíceis de trabalho que lhe está associada – é um dos 6 Ressalve-se, a propósito, a
ser delimitadas e que, portanto, essas próprias recortes possíveis para a determinação Pesquisa Economia Informal
Urbana, levada a efeito pelo
categorias de análise devem ser repensadas. Em empírica da informalidade. IBGE.

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N A C I O N A L

O ponto de partida para a mensuração seguintes categorias de trabalhadores: em-


da informalidade foi a distribuição das pes- pregadores com até cinco empregados, tra-
soas ocupadas, segundo sua forma de inser- balhadores por conta própria, trabalhadores
ção produtiva. Reconhecendo que a catego- domésticos, empregados sem carteira de tra-
ria de empregados encobre relações de balho (exclusive servidores públicos e milita-
trabalho e formas de produzir fortemente di- res) e não-remunerados. O resultado é mos-
ferenciadas entre si, optou-se por desagregá- trado no Quadro 2.
la em três grupos: servidores públicos (civis e Complementando essas informações,
militares); trabalhadores domésticos; empre- reproduz-se, no Quadro 3, o elenco de sete
gados encarregados da produção e distribui- grupos ocupacionais que, em conjunto, res-
ção de bens e serviços mercantis. Isso permi- ponderam por quase 60% do acréscimo de
te que a evolução do número de empregados pessoas ocupadas entre 1991 e 2000.
com carteira reflita com maior propriedade Os quadros dispensam mais comen-
os movimentos que, em sentido oposto, ocor- tários, revelando o grau de vulnerabilidade
rem na economia (aumento da proporção de que marca a inscrição dos agentes sociais na
trabalhadores domésticos com carteira e estrutura produtiva e a velocidade do pro-
retração da proporção de empregados com cesso de informalização na última década.
carteira no setor privado mercantil). No segundo pólo econômico do Brasil, me-
Por sua vez, os empregadores foram tade da população ocupada se incorpora,
separados em dois grupos, a partir do núme- hoje, à informalidade, tendo sido exata-
ro de empregados que trabalham em seu em- mente os trabalhados com menor grau de
preendimento, assumindo-se o corte de no má- proteção social e mais baixos níveis de re-
ximo cinco empregados para caracterizar muneração – empregados sem carteira, tra-
aqueles vinculados à economia informal. 7 balhadores por conta própria sem
Com base nesse reordenamento, se contribuição à Previdência e trabalhadores
construiu uma proxy para a dimensão da domésticos – os que apresentaram maior
informalidade, incluindo nesse conjunto as crescimento na década de 1990.

Quadro 2
Uma proxy para a informalidade
Estado do Rio de Janeiro 1991/2000

Anos 1991 2000

População ocupada total 100,0 100,0

Proxy para a informalidade 42,5 51,0

• Não remunerado 0,3 0,6

• Empregador com até cinco empregados 2,1 2,0

• Conta própria 18,8 22,1

• Trabalhador doméstico 8,7 9,3

• Empregado sem carteira assinada 12,6 17,0

FONTE: CENSOS DEMOGRÁFICOS DE 1991 E 2000

7 Embora seja esse um corte


arbitrário, encontra respaldo
nas recomendações da OIT e
em outros trabalhos produzi-
dos pelo IBGE para a demar-
cação do informal. Ver, a
respeito, Hussmanns (2001) e
Jorge e Valadão (2002).

12 DEMOCRACIA VIVA Nº 21
MUTAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO: O (TRISTE) ESPETÁCULO DA INFORMALIZAÇÃO

Quadro 3 *Jane Souto


de Oliveira
Acréscimo da população ocupada, segundo categorias ocupacionais selecionadas
Pesquisadora do
Estado do Rio de Janeiro 1991/2000
Programa de Mestrado
Acréscimo da em Estudos
população ocupada Populacionais e
Pesquisas Sociais da
Grupos ocupacionais Escola Nacional de
em valores em valores
absolutos relativos Ciências Estatísticas
(Ence)/IBGE
População ocupada total 551.810 100,0

População ocupada nos grupos ocupacionais selecionados 322.638 58,5

Trabalhadores do serviço doméstico em geral 64.901 11,8

Vigilantes, guardas e vigias 60.392 10,9

Vendedores em lojas e mercados 47.097 8,5

Garçons, barmen e copeiros 46.419 8,4

Vendedores ambulantes 40.131 7,3

Cozinheiros 32.321 5,9

Trabalhadores nos serviços de higiene e embelezamento 31.377 5,7


FONTE: CENSOS DEMOGRÁFICOS DE 1991 E 2000

Pelo ângulo das ocupações que mais REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


contribuíram para o incremento da popula- AJARA, Cesar. Dinâmica econômico-espacial contemporânea no Rio
ção ocupada no estado do Rio entre 1991 e de Janeiro. Rio de Janeiro: IBGE; Escola Nacional de Ciências
2000, o quadro é igualmente preocupante. Econômicas, 2003.
CACCIAMALI, Maria Cristina. Processo de informalidade,
Aí despontam, em primeiro lugar, as ocupa- flexibilização das relações de trabalho e proteção social na
ções domésticas – vestígio anacrônico da servi- América Latina: perdas na contribuição à seguridade social no
dão feudal em pleno terceiro milênio –; o agre- Brasil. Cadernos PUC Economia, vol.11, 2001.
DAVIDOVICH, Fany. Estado do Rio de Janeiro: singularidade de
gado de vigilantes, guardas e vigias, cuja um contexto territorial. Território, Rio de Janeiro, ano V, n. 9, jul./
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elements of a conceptual framework. ILO/Wiego Workshop on Informal
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ções ligadas à esfera da alimentação (garçons, sector and informal employment: an application for Brazil. Sixth
Meeting of the Expert Group on Informal Sector Statistics (Delhi
barmen, copeiros e cozinheiros) e as que reme- group). Rio de Janeiro, 16-18 set., 2002.
tem ao “culto ao corpo” (cabeleireiros, LAUTIER, Bruno. Os amores tumultuados entre o Estado e a
manicuros e pedicuros, entre outras). economia informal. Contemporaneidade e educação, Rio de Janeiro,
ano II, n. 1, 1997.
Em poucas palavras, informalização, MACHADO DA SILVA, Luis Antonio; CHINELLI, Filipina. Velhas e
inscrição em ocupações pouco qualificadas e novas questões sobre a informalização do trabalho no Brasil atual.
desemprego são o contraponto, no mundo do Contemporaneidade e educação, Rio de Janeiro, ano II, n. 1, 1997.
RIBEIRO, Miguel Angelo. Considerações sobre o espaço
trabalho, de uma década marcada pelo baixo fluminense: estrutura e transformações. In: MARAFON, Gláucio;
dinamismo econômico e pela modernidade li- RIBEIRO, Marta (Orgs.). Estudos de geografia fluminense. Rio de
beral. Enquanto se espera – e lá se vão mais de Janeiro: Infobook, 2002.
SANTOS, Angela M. S. Penalva. Economia fluminense:
20 anos – pelo espetáculo do crescimento, que superando a perda de dinamismo?. Faculdade de Ciências
o espetáculo da informalidade sirva de alerta Econômicas da Uerj, 2002.
para a natureza e os rumos do crescimento SOUTO DE OLIVEIRA, Jane. O espaço econômico das pequenas
unidades produtivas: uma tentativa de delimitação. Rio de Janeiro:
que se pretende imprimir ao país e a cada uma IBGE, 1991. (Textos para discussão, n. 27).
de suas regiões. ZALUAR, Alba. Condomínio do diabo. Rio de Janeiro: Revan,1994.

ABR 2004 / MAI 2004 13

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