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Morella

Título original: Morella

Publicado em 1835

O mesmo, por si mesmo, consigo

mesmo, homogéneo, eterno.

— Platão

Senti um estranho e profundo afeto pela minha amiga Morella.

Conhecemo-nos casualmente há muitos anos. A minha alma, desde o primeiro

momento, incendiou-se com um fogo desconhecido — mas não o fogo de Eros.

O meu espírito foi desde logo atormentado pela convicção crescente de

que nunca poderia definir o singular caráter de Morella, nem dominar a sua

intensidade errante. O destino uniu-nos perante o altar. Nunca falei de paixão,

nunca pensei em amor. Ela fugia dos outros e, consagrando-se a mim, fez-me

feliz. A surpresa já é uma felicidade; não o será também o sonho?

A erudição de Morella era profunda. Vou demonstrar que o seu talento não

era secundário e que o poder do seu espírito alcançava proporções gigantescas.

Fui seu discípulo em muitas ocasiões.

Cedo me apercebi de que Morella, por virtude da sua educação feita em

Presburgo, preferia os escritos místicos, considerados geralmente como a

essência da melhor literatura germânica. Estes livros constituíam a sua obsessão

constante e predileta. Com o tempo também o foram para mim, mas fui

indubitavelmente sugestionado pelo exemplo e pelo hábito.

A razão não intervinha em coisa alguma destas. As minhas convicções não

se basearam nunca num ideal, e, por mais que aprofundasse, nunca as minhas

leituras, os meus atos ou os meus pensamentos tiveram a menor inclinação


mística. Convencido disso, abandonei-me cegamente à direção de minha mulher,

e entrei, com o coração tranquilo, no labirinto dos seus estudos.

Quando, ao mergulhar nas páginas malditas, sentia que um espírito maligno

se ia introduzindo em mim, Morella aproximava-se e, colocando a sua mão iria

sobre a minha, expulsava as cinzas de uma filosofia morta, com graves e

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