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rua Sauerkraust, onde vivia há quatro anos.

Todos os meus antepassados, desde

tempos imemoriais, exerceram invariavelmente, como eu, a muito respeitável e

lucrativa profissão de construtores e ajustadores de foles. Porque, a dizer a

verdade, até estes últimos anos, em que a política aqueceu a cabeça a tanta

gente, nunca existiu indústria mais frutuosa que esta e nenhum cidadão de

Roterdão a exerceu tão dignamente como eu. Tinha crédito e não precisava nem

de dinheiro nem de boa vontade. Mas, desgraçadamente, como vou dizer,

depressa tínhamos que sentir o efeito da liberdade dos pomposos discursos do

radicalismo e de toda a classe de drogas do mesmo género.

« Começaram a escassear os fregueses; tinham bastante em que ocupar-se

aprendendo a marcha ideológica das inteligências no século presente. Se

precisavam de soprar o fogo, contentavam-se com abaná-lo com um jornal.

« À medida que o governo debilitava, eu ia adquirindo a convicção de que

o coiro e o ferro eram cada vez mais indestrutíveis. Bem depressa deixou de

haver em Roterdão um único fole que necessitasse de ser reparado. A situação

era insustentável. Fiquei mais pobre que os ratos e, como tinha mulher e filhos

que manter, e os gastos eram cada vez menos suportáveis, pus-me a refletir

acerca da maneira mais conveniente de sair dessa situação.

« Não me deixaram, no entanto, os credores tempo suficiente para

lamentações. Via literalmente assaltada a minha casa por eles, desde manhã até

à noite. Havia, sobretudo, três indivíduos que me atormentavam

insuportavelmente, sempre na frente da minha porta, e ameaçando-me com o

peso da lei. Tanto me molestaram que jurei a mim próprio vingar-me

cruelmente, se alguma vez tivesse a felicidade de os ter entre as minhas garras.

Foi provavelmente esta sedutora esperança que me impediu de pôr em execução


imediatamente o plano que tinha meditado para me suicidar. Pareceu-me mais

oportuno dissimular a raiva interior e entretê-los com promessas e boas palavras

até que o caprichoso acaso me pusesse em condições de me vingar deles.

« Estava nesse estado de espírito quando um dia em que me sentia mais

abatido do que nunca, depois de andar ao acaso por uma infinidade de ruas, fui

ter, sem saber como, a uma biblioteca pública. Desejoso de dissipar o meu mau

humor, agarrei no primeiro volume que tive à mão.

« Tratava-se de um livrinho sobre astronomia especulativa, escrito pelo

professor Encke, de Berlim, ou por um francês cujo nome se parece muito com

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