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“O ano em que nos tornamos ciborgues”, notas de leitura

Imara Bemfica Mineiro (UFPE)

“O ano em que nos tornamos ciborgues começou como o lampejo de um futuro glorioso, em
que não haveria mais conflito ou injustiça. Um futuro em que seríamos irmãos, sob a luz clara e
transparente de uma causa. Um novo tempo em que nos daríamos as mãos e nos encararíamos nos
olhos, despidos de vergonha e preconceito.” (Amaral, 2017; 69)
Assim se incia o conto de Olavo Amaral, publicado na coletânea Dicionário de Línguas
Imaginárias, de 2017. O prenúncio dos ciborgues é, pois, expresso na linguagem da utopia, no
desejo de um porvir de convivência harmônica, de irmandade e justiça. A trama se desenvolve
quando esse desejo por um “novo tempo” torna-se uma aposta cara, requerendo o esforço de um
coletivo para fazer frente ao Estado mantenedor do status quo: “quando as primeiras balas da
polícia em resposta a esse futuro nos trouxeram para as ruas, todos tivemos certeza de que não havia
opção senão abrir caminho para que ele chegasse.” (69)
Até então, esse “nós” que nos tornaríamos ciborgues naquele ano ainda eram,
aparentemente, humanos, mas gradativamente submergem em uma experiência híbrida, conjugada
entre distintas condições e identidades, necessárias à sobrevivência do grupo:
“Foi nessa época que deixamos as aulas para ir às assembleias, e as assembleias para ir às
passeatas, e as passeatas para ir às reuniões secretas, depois que os membros da polícia começaram
a se infiltrar nos atos públicos. Revelar nossas intenções passou a ser um risco, e aos poucos fomos
criando uma vida dupla, divididos entre a rotina e a revolução. Uma linha tênue em que nossos
papéis cotidianos eram cada vez mais uma fachada para o que realmente éramos e queríamos, mas
que só podia ser dito no momento oportuno” (69)
A “linha tênue” entre os diferentes papéis traz a tona a questão das fronteiras das identidades
e estremece a ideia da conformação de subjetividades bem delineadas. Assim, a militância e a
clandestinidade inserem elementos que serão associados à ideia de uma consciência ciborgue. Entre
eles, a promiscuidade entre distintos traços identitários, o embaçamento da zona lindante entre o
público e o privado e entre o individual e o coletivo. No Manifesto Ciborgue (1985), Donna
Haraway leva a noção a uma região radical, que condiciona o que é próprio do humano enquanto
conjunção de artefato, natureza, cultura, ciência etc: “O ciborgue é nossa ontologia, ele determina
nossa política”, afirma Haraway. O ciborgue determina a política na medida em que comporta uma
dimensão do artifício de constituir-se a si mesmo. E isso implica, por um lado, colocar em xeque a
noção de um determinante natural dos sujeitos – Donna Haraway fala desde o feminismo e portanto
mina a noção de mulher como algo naturalmente determinado – e, por outro lado, implica a
assunção de uma responsabilidade na construção de si e do coletivo.
Pois bem, no conto de Olavo Amaral, a duplicidade da experiência dos que entraram na
clandestinidade exigia o desenvolvimento de uma linguagem cifrada, que articulasse o coletivo em
meio aos demais habitantes da cidade, inclusive àqueles que eram expoentes adversários de seus
ideais: “inventamos códigos para nos reconhecermos em um mundo tão complicado, em que só o
que havia de certo era a identidade do inimigo. Três batidas ritmadas na mesa eram um sinal de
atenção, uma senha discreta para ver se algum dos nossos levantava a cabeça, olhava ao redor,
ajeitava discretamente o cabelo entre as orelhas. Se o reconhecimento ocorresse, alguns minutos
depois um encontro rápido à meia-luz definiria as ações dos próximos dias, assegurando uma ação
coesa entre as células do movimento.” (p.69)
Conscientes da busca pela utopia, o grupo ocupava os espaços da cidade, quebravam
vidraças de bancos e escreviam nos muros “palavras bonitas”, “sempre pedindo o impossível.
Porque o impossível era o óbvio, e todo o resto seria possível depois que ele chegasse” (p.70). O
cenário é, pois, urbano. Os inimigos, clássicos, o Estado e o Mercado. O “movimento”, de tão
clandestino, quase se desarticula, até que o anúncio de desalojamentos no centro da cidade dispara
a rearticulação de suas forças. O momento pedia uma ação mais radical: “explosivos foram
distribuídos pela célula de artilharia química, com seu funcionamento explicado em detalhes, para
que não houvesse erros.” (p.71).
O objetivo era impedir a retirada das famílias que moravam em um lugar central da cidade,
onde obras de modernização seriam iniciadas. E a opção pelos explosivos era o prenúncio e de uma
transformação definitiva pela qual passariam: “Ainda que nenhum de nós tivesse a exata dimensão
das consequências, dessa vez estávamos todos unidos em nossas intenções. Mesmo que absortos e
silenciosos, mais graves do que de hábito, concentrados na antecipação de um dia em que
amanheceríamos para sempre diferentes” (p.72).
Os membros do “movimento”, antes do nascer do sol, haviam se espalhado pelas casas para
ajudar na resistência. Sem negociações, a força policial avança sobre as barricadas que as famílias
ameaçadas de despejo armaram na rua. Estava tudo combinado para impedir a ação das
escavadeiras em nome de um suposto progresso: alguém daria o sinal. No entanto, quando esse
alguém acendeu o primeiro sinalizador, no exato momento em que “o exército cruzou a rua que
dava acesso ao morro”, nada saiu como planejado.
“Em meio à confusão da entrada dos soldados, o sinalizador detonado acabaria apontado
contra a janela de uma das casas que serviam como depósito de armamento. Com a primeira caixa
de explosivos detonada pelo impacto, o incêndio logo começaria, e o aumento da temperatura faria
com que as próximas levas explodissem espontaneamente nas casas vizinhas. Às pressas, dezenas
de nós saíam correndo dos esconderijos, buscando as ruas com nossos rostos cobertos pelas
máscaras de fumaça”.
É, então, nesse cenário pirotécnico e trágico que tem início a mutação física: “acuados pela
sequência de explosões, os homens do governo começaram a atirar, enquanto corríamos sem
direção pelas ruas da comunidade” (73):
“Enquanto você corria, alvejada na perna, deve ter percebido que ao seu lado eu tentava
conter o pânico geral, olhando estarrecido para o movimento em cascata e me recusando a
acompanhar a multidão […] Até que a rajada de ar comprimido fosse disparada contra mim,
detonando os explosivos que eu carregava e partindo minha mão direita em dezenas de pedaços, em
um estouro que me levaria do apogeu do ruído ao silêncio absoluto.” (p.73)
“Você” e “eu” são personagens que alinhavam o conto em uma latente história de amor.
Preocupados com causas maiores, não havia tempo nem oportunidade para que se encontrassem de
fato, embora estivessem sempre compartilhando os cenários de atuação do movimento. A partir
desse momento, na trajetória de ambos, a clandestinidade dá lugar a frios corredores de hospitais,
jalecos brancos e jornalistas. A tragédia das explosões e a violência das mutilações que poderiam
dar lugar a um destino heroico de martírio para os revolucionários são, contudo, cooptadas pelo
Estado, pela mídia e pela ciência “em nome da trégua” e da suposta ideia de progresso contra a qual
se levantavam naquela manhã incendiária, a qual sabiam que mudaria suas vidas para sempre.
“… enquanto o universo revolvia em torno da minha cama no hospital, eu já não tinha olhos
para meu entorno nem para a multidão que me acompanhava. Pois toda minha atenção estava
concentrada no espaço vazio onde antes havia meu braço direito, cuja falta meu ser embebido em
morfina contemplava com indiferença. Foi nesse estado de semi-inconsciência que nos ofereceram
as próteses.” (74)
A transformação dos corpos toma curso ao mesmo tempo em que a utopia dá lugar a uma
distópica experiência de conciliação: “De uma hora para a outra não havia mais conflito: por parte
da imprensa, dos médicos e dos vigilantes do hospital, tudo eram apenas sorrisos, e éramos tratados
como símbolo de um novo país. Tudo o que havíamos sonhado, no fim das contas, só que
exatamente ao contrário” (75)
As próteses que lhes foram oferecidas pelo estado e pela ciência pareciam confirmar que
eles eram parte de um jogo maior. Viam pela TV os líderes do movimento aceitando cargos no
Ministério dos Direitos Humanos enquanto suas próprias imagens eram exemplarmente veiculadas
como signo de uma nova sociedade. “Tudo isso me causava asco e raiva de mim mesmo por ter me
tornado um garoto-propaganda daquilo que mais odiava” (76), diz o narrador.
Numa atmosfera de impotência e resignação, passam por cirurgias, ajustes de configuração e
são apresentados às suas novas partes: “Depois dos flashes, dos discursos, das explicações dos
médicos […] eles foram todos embora e ficamos nós dois na sala. Eu e um amontoado de
engrenagens sobre a mesa de cabeceira, […] que parecia um braço-robô desprovido de dono, um
apetrecho roubado de um androide incauto. Um monte de metal que não era eu, entregue como um
presente magnânimo do governo para reparar de forma tosca o que os tiros me haviam arrancado”
(p.77)
O processo de integração do corpo ao braço robô foi marcado por rejeições e adequações.
Foi menos rápido e menos doloroso do que esperava. Até que um dia, “ao deixar cair por acidente
um livro sobre o braço mecânico, eu gritei. Não entendi por quê, já que não sentia dor. Mas gritei,
de toda forma, e logo me envergonhei de confundir os limites do meu corpo com um resquício de
androide que não deveria ser eu.” (p.79) O paciente narrador teve alta no dia seguinte, sua
reabilitação estava concluída. Havia se adaptado a sua nova composição, à conexão com aquele
outro corpo, que era ele mesmo, ou que incansavelmente convivia com ele. Agora restava encontrar
seu lugar no novo mundo que o esperava fora do hospital: “Tendo me tornado um pária por opção
em meu antigo mundo, e um pária por força das circunstâncias no mundo que escolhi, já não existe
lugar óbvio para me acolher.” (p.79)
Anda pela cidade – agora desprovida de sentido – deixando-se guiar por seus ruídos
amplificados pelo implante auditivo. Caminha em direção ao bar que frequentava no passado. A
luza baixa e amarelada lhe dá a impressão de não reconhecer ninguém ali. O movimento das
pessoas lhe parece pouco natural e atribui isso aos meses de reclusão no hospital. “É como se
qualquer coisa houvesse mudado em seus gestos” (p.80). Ele entra cauteloso: “Ao me aproximar da
porta, mantenho o braço mecânico escondido sob a camisa, receoso de que alguém me tome por
uma celebridade, um ex-revolucionário, ou simplesmente um aleijão” (p.80) Mas sua presença não
chama nenhuma atenção. Encontra um ambiente festivo mas pacífico, impossível outrora. A
variedade de cachaças e licores com seus preços exorbitantes atestam o triunfo do capitalismo.
Senta-se e pede uma dose. Agradece pela bebida servida, ao que o garçom responde,
colocando o indicador sobre um inesperado orifício no pescoço, e emitindo uma voz metálica e
inumana, “não tem de quê”. Surpreso pela descoberta, o narrador olha ao seu redor e repara nas
pessoas em volta do balcão: agora eram todos ciborgues. “Todos mutilados, derrotados sabe-se lá
em que batalha” (81). Então fica mais à vontade com seu braço mecânico.
Até que em um momento escuta os passos metálicos que batem contra o piso: “Você
atravessa o bar e, sem que por um instante eu duvide do seu percurso, chega até o balcão e senta ao
meu lado, fitando meu rosto com as duas retinas desiguais: a do olho verde, que eu tenho a
impressão de conhecer há tempos, e a do sensor de luz multicolorido que preenche a órbita
esquerda. E sem que nada precise ser dito, eu sei que encontrei quem havia procurado durante
aqueles longos meses.” (82)
Nesse reencontro amoroso, a incongruência dos corpos com as memórias que tinham de sua
integridade é patente. No entanto, são tão suas as partes que lhes faltam, como as que agora lhes
restam. Já não existe uma coisa sem a outra.
E assim se encerra o conto “O ano em que nos tornamos ciborgues”. Em uma narrativa que
combina a resistência dos movimentos sociais urbanos frente ao projeto de modernização
excludente das cidades; a impiedosa capacidade de absorção capitalista de quaisquer elementos,
mesmo que de origem antagônica; e uma história de amor que se articula às transformações físicas
das mulheres e homens em ciborgues.
No entanto, o signo ciborgue vem sendo pensado desde fins do século passado como
condição que extrapola a taxonomia do visível meio homem- meio máquina. É nesse sentido que
Chela Sandoval vai identificar nos trabalhadores de linhas de montagens, indústrias têxteis,
empresas de eletrônicos, a condição ciborgue: “Esses trabalhadores conhecem a dor da união da
máquina e o tecido corporal” (Sandoval, 1987: 82). Nesse sentido, discute uma consciência
ciborgue a fim de ressignificar a noção de agência humana. Pensa em uma política ciborgue como
algo que antecede o desenvolvimento da tecnologia eletrônica na medida em que se define a partir
da consciência opositiva a formas prévias de dominação. Dessa perspectiva, a consciência ciborgue
está relacionada ao que Donna Haraway apresenta como os eixos fundamentais para a constituição
de uma identidade ciborgue: responsabilidade e criatividade.
Sandoval propõe um conjunto de tecnologias que sirvam como estratégias de sobrevivência
e resistência sob as condições culturais transnacionais do mundo globalizado. Essas tecnologias –
que denomina Metodologia das oprimidas – visam gerar formas de agência e consciência para criar
modos efetivos de resistência na pós-modernidade, e as nomeia formas ciborgue de resistência.
Nesse contexto, a ideia de uma consciência ciborgue abre-se a diversas possibilidades e se
relaciona ao agenciamento de identidades e perspectivas de futuro, enfatizando seu caráter flexível e
de movimento, pois nenhuma construção é total.
“O ciborgue é oposicionista, utópico e nada inocente. Não se estrutura pela polaridade do
público e do privado. Ele baseia-se no prazer em confundir as fronteiras, e na responsabilidade em
sua construção”, afirma Haraway.
Nos termos da concepção de identidades, o ciborgue está marcado pelo híbrido, pelos
limites imprecisos de suas partes constituintes, e pela qualidade de desafiar o que parece estar dado
e pré-determinado.
É disso que se nutre sua potência política: na possibilidade de desarmar e rearticular a
relação do eu e do outro, do individual e do coletivo, abrindo-se a formas de apreensão do mundo
capazes de minar a epistemologia etnocêntrica iluminista.
Não obstante, essa condição e consciência ciborgues não necessariamente são visíveis a olho
nu. Tampouco a microscópios ou telescópios. Trata-se de uma condição e consciência propriamente
humana, histórica, geográfica e socialmente situadas. Trata-se de uma posição de mente, de uma
perspectiva de atuação no mundo e de relação com o mundo.
Nesse sentido, se os ciborgues do conto de Olavo Amaral são gestados no processo de
cooptação pelo Estado e pelo Mercado, em meio a posturas de impotência e resignação, as noções
de identidade e consciência ciborgue trazida por autoras como Chela Sandoval, Gloria Aldalzúa e
Donna Haraway estão permeadas pelo desejo, pela necessidade e pela potência de resistir e
transformar. O que, sim, têm em comum os ciborgues do conto e as noções que formulam uma
consciência ciborgue são a aposta no amor como tecnologia política, de sobrevivência e resistência.

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