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Prostituição urbana e os caminhos da história oral:

possibilidades de uma pesquisa

AMANDA DE MELLO CALABRIA*1

O artigo consiste na reflexão sobre o caso das prostitutas do Prédio da Caixa2,


tradicional área de meretrício da região central de Niterói, RJ, a partir do uso da história oral
para a construção da memória do evento de desocupação do Prédio e da movimentação
política daí derivada. Para dar conta da complexidade do evento, a metodologia da história
oral foi utilizada como um instrumento fundamental de ampliação da memória coletiva3,
construída com base nas narrativas das trabalhadoras sexuais ativistas, frente ao discurso
“oficial”4.
Em abril de 2014, cerca de quatrocentas prostitutas que moravam e trabalhavam no
“Prédio da Caixa” foram alvo de uma ação coordenada pela 76ª Delegacia Policial e a
Delegacia da Mulher5 (DEAM), em conjunto com outras delegacias do Estado do Rio de
Janeiro. Foi realizada a desocupação dos apartamentos em que as prostitutas moravam e
trabalhavam.
O que se apurou dessa operação, em 2016, a partir da pesquisa monográfica6 realizada
como requisito para a conclusão do curso de graduação em História na UFF, foi o uso
indevido de violência contra aquelas mulheres e a sua criminalização, por parte da polícia. A
ação policial envolveu casos de abuso sexual, estupro, roubo, intimidação e a detenção de oito
delas para o complexo penitenciário de Bangu (Bangu I).
As prostitutas, em resposta, organizaram-se em um movimento político a fim de
denunciar a violência da qual estavam sendo vítimas e reivindicar os direitos elementares de
proteção à vida e ao trabalho. Sofreram, por conta de tal iniciativa, frequentes ameaças, novos

1
Universidade Federal Fluminense. Bacharel e Licenciada em História.
2
Tradicional área de meretrício da região central de Niterói. Localizado na Avenida Hernani do Amaral Peixoto
em cima da Caixa Econômica Federal.
3 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo. Centauro, 2004.
4
Por discurso oficial caracterizo a fala midiática, sua autoridade e sua capacidade de produzir real e construir
verdades, a partir de "esquemas dominantes de significação e interpretação do mundo" (COIMBRA, 2001,
p.25)
5
Vale notar que tanto a 76ª DP como a DEAM se localizam no mesmo endereço. A DEAM fica em cima da
76ªDP na Av. Ernani do Amaral Peixoto, a mesma rua do Prédio da Caixa.
6
CALABRIA, Amanda. Violência e Criminalização: O movimento de resistência das prostitutas do “Prédio da
Caixa”. Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade Federal Fluminense, 2016.
2

ataques de violência física e seu local de trabalho passou a ser alvo constante de repressão,
traduzida em batidas policiais. O movimento, entretanto, esgotou-se rapidamente, dada à falta
de apoio político, ao silêncio da mídia, ao descaso jurídico e às intimidações e ameaças
sofridas pelas organizadoras. O conjunto de fatores elencados acabaram por calar as
protagonistas e dispersá-las, instaurando um silêncio a respeito.
Na interpretação das fontes, a operação de desocupação está relacionada a dois fatores:
a mudança de delegado da 76ª DP e, consequentemente, a elevação da taxa de arrego dirigida
ao meretrício, e a necessidade de conter a atividade sexual no prédio, por conta da construção
de um edifício da Justiça Federal ao lado do tradicional ponto7. Chama a atenção que a
operação tenha sido realizada logo depois de anunciada a grande intervenção urbanística, por
parte da prefeitura8. Relacionou-se a mesma à “requalificação” do espaço urbano, na cidade
de Niterói, que tem contado com um aumento do efetivo policial nas ruas, a construção de um
corredor do judiciário na Av. Amaral Peixoto9 e a política de “limpeza” direcionada a
segmentos considerados indesejáveis, as classes perigosas10, entraves para o projeto de
“requalificação” do espaço urbano.
No cotejamento das fontes, elucidou-se como frequentes as batidas policiais sob
alegações de proxenetismo, casa de prostituição, exploração sexual e de menores ou vínculo
ao tráfico11, ocorrências que podem criminalizar a prostituição. Como verificado, ao menos
nos casos pesquisados, não se registraram provas de nenhum dos eventos.

7
Ao lado do edifício “da Caixa”, localiza-se um terreno, hoje em construção, da Justiça Federal do Rio de
Janeiro, doado pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU) afim de edificar uma subseção do poder judiciário
na cidade.
8
Em 2013, foi aprovado o projeto de “revitalização” da área central de Niterói através de uma operação urbana
consorciada, realizada a partir da parceria público-privada. O intuito é modernizar a região, a referir os bairros:
Centro, São Domingos, Ponta D’Areia, São Lourenço, Morro do Estado, ingá e parte do Gragoatá e da Boa
Viagem. Para maiores informações acessar o Projeto de Lei n.193/2013.
9
A Avenida Ernani do Amaral Peixoto é a principal via do centro de Niterói. Além de concentrar grandes
prédios comerciais, conta com os prédios da Justiça do Estado e do Trabalho, a Câmara Municipal de Niterói e a
OAB.
10
COIMBRA, Cecília. OPERAÇÃO RIO. O mito das classes perigosas. Um estudo sobre a violência urbana, a
mídia impressa e os discursos de segurança pública. Intertexto, Niterói, RJ, 2001.
A autora utiliza a noção de classes perigosas para designar segmentos sociais historicamente marginalizados,
criminalizados. Considerados entrave a uma perspectiva de cidade moderna, civilizada. O uso do conceito, bem
como a sua extensão para “segmentos indesejados” se restringe ao entendimento de classes sociais no contexto
urbano.
11
No trabalho monográfico é desenvolvido o debate, levantado pelas ativistas profissionais do sexo, sobre a
comumente abordagem policial nos espaços de prostituição. Essas são realizadas no intuito de criminalizar o
meretrício. Alega-se “exploração sexual” e “casa de prostituição” ao se referir à atividade de exploração de
outrem, sendo a segunda realizada em uma determinada localidade. “Exploração sexual”, pela lei significa
induzir ou atrair alguém à prostituição ou forma de exploração sexual. Na prática, as trabalhadoras não tinham
3

2. A escuta e a construção de memória

Aproximei-me do campo enquanto ativista obstinada com a escuta das demandas das
prostitutas, no momento de ocupação, na Audiência Pública sobre Segurança Pública, em
Niterói, para denúncia da operação policial. Eu e outras mulheres oferecemos apoio ao
movimento através de gravações, filmagens e divulgação. Realizamos algumas entrevistas
com as meninas12 e um vídeo de divulgação do ato Puta Dei 13. Fizemos visitas frequentes ao
“Prédio” para acompanhar os passos do movimento. Entretanto, mesmo tendo construído uma
relação amistosa, o distanciamento social entre nós e elas, permeado por assimetrias (lugar
social, classista e racial), acompanhou nossos encontros.
De início, meu interesse restringia-se em apoiar o ativismo. Somente quando o
movimento foi silenciado, caindo numa “zona de sombra” e medo, que a contribuição
acadêmica foi pensada, em termos de uma alternativa para se falar a respeito. Em um primeiro
momento, dediquei-me à pesquisa pelo viés etnográfico, orientada pela observação
participante14, posto que dispusesse de tempo, diálogo e inserção para acompanhar as
dinâmicas e as mudanças de dinâmicas, inerentes a esse espaço tão multifacetado. Por entre
olhares, registros e uma escuta sensível fui tecendo as novas teias, em diálogo com as
meninas. Entretanto, só foi possível acompanhar o movimento e as práticas no “Prédio” até
certo ponto, dada à retirada para outros espaços daquelas prostitutas com quem eu havia
estabelecido diálogo e a chegada de outros atores, compondo um cenário diferente, em que
posições conflitantes passaram a disputar território no ambiente da pesquisa.
A partir de então, escolhi a história oral como uma possibilidade metodológica para a
catalisação das narrativas nas entrevistas, refletindo sobre a história do movimento recente e

cafetina ou cafetão e desempenhavam o ofício sem a indução ou exploração de outrem. O debate sobre
exploração sexual e exploração econômica também é apresentado no texto, diferenciando um do outro.
12
Termo utilizado por elas para se autodenominarem e também por moradores e apoiadores do movimento para
se referenciar às prostitutas do Prédio.
13
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pBrIvvBXxiM
14
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998.
4

forçosamente “esquecido”, e possibilitando a produção de uma memória coletiva que


atendesse a uma história publica do movimento15.
As dificuldades, entretanto, estavam evidenciadas na relação de distanciamento entre
pesquisadora e prostitutas, no silêncio ocasionado pelo medo da represália que sofreram com
as denúncias, em contraposição à necessidade de falar. Aos poucos fui contatando duas
meninas, Indianara e Isabel, uma moça que trabalhava no Prédio, Ana, e o síndico do
“Prédio”, Carlos Adriano. Foram esses os atores que construíram a memória, a partir de
significados individuais e coletivos, do evento de desocupação e de movimentação política.
A escrita foi realizada de modo a ampliar a voz das prostitutas, por entendê-las como
um segmento vulnerável, no contexto de violência urbana da região, que vivencia um
processo de gentrificação16. Nesse caso, a noção de vulnerabilidade é entendida através de um
duplo olhar: (i) no que se refere a um segmento que pertence a um ethos considerado
marginal, do “submundo”, e tratado com descaso e violência por parte do poder público –
sobretudo porque essa é a imagem publicizada do “Prédio da Caixa”; (ii) como uma categoria
considerada depravada, desviada, no que se refere à construção do papel da mulher na
sociedade (a prostituta como a mulher desviante, imoral). Sendo assim, a memória da
desocupação e da movimentação política pode ser compreendida a partir de sua inserção no
cenário da disputa por significados, na medida em que conflita com o discurso oficial, o qual
reitera a imagem da prostituta, a partir de um estigma.
As narrativas apresentaram-se em abordagens distintas, devido ao que considero ser o
medo da exposição e da denúncia. Para além da memória coletiva, pode-se depreender
também o caráter coletivo presente na memória individual, discutido por Halbwachs 17. Lucília
Delgado18 aponta que os depoimentos são memórias particulares de processos coletivos, de
modo que a subjetividade é inerente às narrativas dos entrevistados. A subjetividade
observada nas entrevistas traz ainda mais camadas para se pensar o caso da desocupação a
partir dos processos de perda, agressão e ímpeto de movimentação política. Sobretudo, por se

15
Ver: ALMEIDA, Juniele Rabêlo;ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (Orgs) Introdução à História Pública.
São Paulo. Letra e Voz, 2011.
16
GLASS, 1963 apud BIDOU-ZACHARIASEN, 2006. De volta à cidade: dos processos de gentrificação às
políticas de “revitalização” dos centros urbanos, 2006.
17
HAWLBACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.
18
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História oral: memória, tempo, identidade. Belo Horizonte: Autêntica,
2010, p. 15-31.
5

tratar de atores que vivenciaram consequências distintas no processo de silenciamento do


movimento.
As dificuldades estiveram também no caráter ideológico das narrativas, dado ao leque
complexo de entrevistados considerado na pesquisa. No processo de configuração de uma
narrativa, os percalços da memória são suscetíveis às estratégias de manipulação e
esquecimentos e, sendo assim, o caráter seletivo da narrativa passa pela problemática entre
identidade e memória, como alertado por Paul Ricoeur19.

Assim como é impossível lembrar-se de tudo, é impossível narrar tudo. [...] As


estratégias do esquecimento enxertam-se diretamente nesse trabalho de
configuração: pode-se sempre narrar de outro modo, suprimindo, deslocando as
ênfases, refigurando diferentemente os protagonistas da ação assim como os
contornos dela. Para quem atravessou todas as camadas de configuração e de
refiguração narrativa desde a constituição da identidade pessoal até a das
identidades comunitárias que estruturam nossos vínculos de pertencimento, o perigo
maior, no fim do percurso, está no manejo da história autorizada, imposta,
celebrada, comemorada – da história oficial. (RICOEUR, 2007. p.455)

Foram consideradas as armadilhas presentes nas narrativas canônicas20 e no conflito


com as memórias subterrâneas21, aparentes no processo de construção da memória da
desocupação das prostitutas do “Prédio da Caixa”, em 2014. Assim, tornam-se potencialmente
catalizadores no processo de percepção e constituição das identidades das prostitutas: ( i ) as
estratégias de manipulação; (ii) o elemento subjetivo intrínseco da fonte oral, discutido como
fator crítico para o pesquisador, com implicações de ordem seletiva para o caráter das
narrativas.
Os relatos e experiências possíveis de desencadeamento fomentam o processo de
construção de “narrativas de si”22. Essas transpareceram histórias próprias e sentidos
pessoalizados na apropriação do território em questão, não somente no que diz respeito ao
evento de desocupação e movimentação política, mas nos laços e nós entre as histórias de
vida e a história da região pesquisada.
A condição de agente histórico na construção de uma memória é possível na
reconstrução de uma memória, que na grande maioria das vezes, se dá baseada na

19
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: UNICAMP, 2007.
20
Idem.
21
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. CPDOC/FGV, 1989.
22
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da história. FGV Editora, 2004
6

continuidade lógica dos acontecimentos centrais23. O trabalho de reconstrução de si permeia a


construção de identidade, podendo servir como trampolim na significação de si em um dado
lugar social.
A história oral, desse modo, foi tocante para pesquisador e pesquisado, revelador para
ambos. Sobretudo, por se tratar de um grupo social cujos direitos e fala estão silenciados no
que tange as políticas públicas.

Aproximações e distanciamentos:

Ao escolher a história oral como procedimento, as preocupações éticas e


metodológicas demandaram atenção, em particular. Para além das questões levantadas por
Alessandro Portelli, bem como o estudo dos manuais de história oral, preocupações acerca do
papel e do lugar da pesquisadora e da pesquisada tornam-se prementes.
É relevante saber que tais preocupações, que designo como éticas, foram levantadas
pelas próprias prostitutas. Quando a aproximação com a prostituição do “Prédio da Caixa”
enlaçou o ativismo e a pesquisa num só nó, passei a não tão somente estudar a prostituição, a
partir de um viés histórico e um fenômeno urbano, pensando nos casos de desocupação nas
metrópoles, mas me dirigi aos eventos protagonizados por elas próprias. Conheci a existência
da Rede Brasileira de Prostitutas e a Associação das Mulheres Guerreiras, de São Paulo, e
pude ouvir um pouco as lideranças do movimento. Tais organizações atuam no ativismo, na
mobilização das prostitutas, além de prestar assistência no que diz respeito à situação
trabalhista e estimular o “empoderamento” na construção da identidade da prostituta,
enquanto mulher na sociedade.
No diálogo com as ativistas, foram apontadas assimetrias, indicando o distanciamento
social entre elas e a mulher “aceitável”, além da relação entre a pesquisadora da universidade
e a prostituta. Outra questão abordada foi acerca do uso da linguagem. Reivindicaram a não
higienização da fala da prostituta na transcrição das entrevistas e nas matérias de jornais,
fenômeno que elas consideram frequentes. Expressões como “profissional do sexo” e
“trabalhadoras sexuais” são quase recusáveis, melhor seria o uso dos termos “prostituta” e
“puta”.

23
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. CPDOC/FGV, 1989.
7

Tendo em vista tais preocupações, os estudos de Daphne Patai e Silvia Riviera


Cusicanqui forneceram contribuições para se pensar uma história oral feminista, ou uma
história oral sobre mulheres de diferentes lugares sociais, trazendo reflexões acerca do
pensamento sobre o grupo social abordado bem como a abordagem e escrita da pesquisa. A
questão que considero central é: de que lugar pesquisamos?
Patai chega ao Brasil buscando tratar do problema das “mulheres invisíveis”, como ela
descreve no início do livro “História oral, feminismo e política”24. Pesquisadora branca vindo
da Universidade de Massachusetts para estudar um segmento que ela denomina de invisível,
mas que se interessa por se assemelhar enquanto mulher e se considerar preocupada acerca
das questões sociais vivenciadas a partir do recorte de gênero.

Eu presumo, em particular, que a maioria das mulheres fazendo pesquisa sobre


mulheres são movidas por compromissos com as mulheres – e que questões sobre
nossas ações e suas implicações são, portanto, especialmente apropriadas. Presumo
ainda que algumas das contradições que aparecem conforme desenvolvemos nossos
projetos de pesquisa são precisamente resultantes de nossa atuação em dois papéis:
de um lado, como feministas comprometidas com grandes transformações; de outro,
como profissionais lidando com limitações institucionais e culturais comuns.
(PATAI, 2010,p.80)

A despeito de o termo “mulheres invisíveis” ter sido utilizado de maneira infeliz, uma
vez que não devemos considerar mulheres em situação de vulnerabilidade social como sendo
invisíveis, a fim de evitarmos reiterar o rótulo pejorativo, a pesquisa de Patai é extremamente
autocrítica e apurada quanto ao seu papel de mulher branca, pesquisadora e estrangeira.
Aponta para o equívoco da empatia em uma pesquisa entre mulheres, alertando que pode
existir uma falsa simetria por conta da proximidade de gênero e a errônea compreensão de
que, por serem mulheres, vivem problemas semelhantes. É importante ressaltar que a
aproximação não descarta diferenciações sociais outras, como classe e raça, bem como o
papel da colonizadora (figurado na imagem da estrangeira) e da estudiosa acadêmica.

[...] Mas depois vieram os outros problemas: a questão das desigualdades


materiais; da minha preocupação constante com muitas das mulheres que conheci e
que haviam se tornado importantes para mim, coisa que me deixava cada vez mais
insatisfeita com a discrepância entre o que, a longo prazo, eu viria a ganhar com a
pesquisa, em contraste com o que elas, que a tornaram possível, tinham ganho ou
jamais ganharia. (PATAI, 2010,p.70)

24
PATAI, Daphne. Historia Oral, Feminismo e Política. Letra e Voz. São Paulo, 2010.
8

As diferenciações sociais colocadas tratam da relação entre pesquisador e pesquisado.


Há que se apontar o papel de poder daquele que realiza o trabalho de pesquisa, num certo
lugar cômodo, esperando uma disponibilidade e uma exposição do outro, na esfera privada,
para assim, realizar o seu trabalho intelectual no contexto da esfera pública. As expectativas
do profissional e da comunidade pesquisada com o material produzido dialogicamente são
diversas e o retorno, material ou simbólico, também. Daphne Patai argumenta:

Sempre que as mulheres são usadas como meios para os fins dos outros [...] o
paradigma social dominante é afirmado em vez de contestado. A forma como
conduzimos nossos negócios – inclusive nosso negócio “profissional” de entrevistas
indivíduos – também está ou afirmando a ordem preexistente do mundo ou ajudando
a criar novos mundos. Se somos feministas e/ou socialistas, ou estamos
comprometidos com objetivos radicais e de longo alcance, devemos ter a máxima
seriedade ao lidar com a natureza dos valores implícitos que promulgamos ao ir
atrás de nossos variados objetivos. (PATAI, 2010,p.81)

As contribuições acima indicam que a colaboração do sujeito ou da comunidade para a


pesquisa deve ser feita através de uma prática reflexiva, que considerem as noções de mundo
do outro. A pesquisadora Cusicanqui, socióloga boliviana e fundadora da História Oral
Andina, problematiza a realização da pesquisa com indígenas e mestiços, a partir do lugar do
pesquisador acadêmico. Entretanto, ao compreendermos sua obra na totalidade, como quando
fala da questão de gênero e da questão social global, ampliamos seus apontamentos para a
necessidade de descolonizar as subjetividades. Com a discussão do pensamento descolonial
podemos repensar o lugar do pesquisador e do ambiente acadêmico no processo de pesquisa,
propondo o desenvolvimento de relações de honestidade e de uma escuta sensível com a
comunidade em questão, produzindo um outro pensamento epistêmico que não homogeneíza
os sujeitos, a partir do lugar da colonialidade, mas os reconhecem em sua diferença, levando
em conta suas necessidades de fala, escuta e divulgação.

La historia oral en este contexto es por eso mucho más que una metodología
participativa o de acción (donde el investigador es quién decide la orientación de la
acción y las modalidades de la participación): es un ejercicio colectivo de
desalienación, tanto para el investigador como para su interlocutor. Si en este
proceso se conjugan esfuerzos de interacción consciente entre distintos sectores: y
si la base del ejercicio es el mutuo reconocimiento y la honestidad en cuanto al
lugar que se ocupa en la cadena colonial, los resultados serán tanto más ricos en
este sentido. (CUSICANQUI, 2008,p. 171
9

O diálogo com as prostitutas levou-me à reflexão da diferença entre segmentos de


mulheres, tendo como referência a lógica comportamental e da ocupação trabalhista (para
além dos recortes transpassados de raça e classe). Tais diferenças acabam sendo concebidas
pela sociedade civil através da reprodução de um discurso oficial baseado no estigma, nos
mitos e nas subjugações sobre a mulher prostituta. Assim, descolonizar a subjetividade no
pensar e olhar para a prostituta é desvincular o pensamento europeu higienizador da imagem
dessa “outra” mulher, contrária à mulher “aceitável”. “Outra” porque as meninas se afirmam
na diferença, ainda que reivindiquem a diferença não através do estigma, mas da luta, do
trabalho corajoso, do esforço e da liberdade.

As abordagens legais e de senso comum acerca da prostituição são as que mais


contribuem para a prática permanecer guetificada, marginalizada e alvo de ações
violentas policiais. Combater o discurso criminalizador faz parte de um árduo
trabalho em diferentes frentes por parte de organizações de prostitutas, apoiadores,
pesquisadores e da sociedade civil. Pois, além de se lutar para interferir na
legislação e pelas conquistas de direitos civis e trabalhistas, é necessário um
processo de atacar o estigma construído sob o imaginário social coletivo por anos a
fio, deslocando a imagem da prostituta da noção do corpo doentio, sujo, perigoso;
ameaça social, utilizado indiretamente, ainda hoje, sempre que preciso, pelo poder
público e pelas mídias corporativas. (CALABRIA, 2016, p.61)

A pesquisa sobre as prostitutas do “Prédio da Caixa” provocou em mim, todo o tempo,


desconforto sobre o meu lugar social privilegiado e um certo “pedido de desculpas” por me
enveredar em uma temática tão ainda cheia de colonialidades sobre o corpo da “outra”. O
incômodo, penso eu, deve ser um mal necessário a todo pesquisador.

3. Desafios para a uma História Pública

Alguns movimentos sociais têm questionado a academia sobre não retornar à


comunidade onde uma pesquisa tenha se desenvolvido e tampouco oferecer contribuições
reais ao grupo social pesquisado. Muito o que se escuta nos fóruns populares é que estudar
negros, favelados, pessoas em situação de desocupação de moradia e nordestinos em
condições precárias no Sudeste está na moda.
De fato, parece que os segmentos vulneráveis são objetos dos grandes programas de
pesquisa universitário. Precisamos, portanto, questionar a metodologia e a finalidade dessas
pesquisas. Patai e Cusicanqui fornecem procedimentos reflexivos e práticos para discussão do
10

processo de uma pesquisa comprometida com a comunidade e com a temática, que inclua uma
revisão dos lugares sociais e da concepção de mundo. Entretanto, os autores tratam de
possibilidades de aplicação da pesquisa. Os modos e os fins são encontrados a partir de cada
pesquisa em particular.
Meu trabalho reflete, sobremaneira, o compromisso social que experenciei enquanto
ativista, tendo evoluído quando topei com o evento da desocupação e da movimentação
política das prostitutas, fatos que me impeliram a buscar alternativas para dar voz àquele
grupo. Na academia, pouco vi a respeito da prostituição urbana, que ainda aparece como um
tabu. Na história de Niterói, a oralidade a respeito do “Prédio da Caixa” é forte, os moradores
mais velhos falam com proximidade, afetividade e trazem sempre memórias vívidas, mas
enquanto contribuição de uma memória escrita pouco se tem. Estudar a prostituição foi mais
que um capricho, decorreu de uma necessidade de ouvir, de escrever e de falar das prostitutas
do “Prédio da Caixa” em uma conjuntura de desmantelamento, silêncio e esquecimento de um
evento com a dimensão de desocupação e violência com cerca de quatrocentas prostitutas.
Perguntou-me ainda hoje qual foi a minha contribuição nesse processo. Portelli, em
“História Oral como Arte da Escuta”, trata da “contribuição” que se pode dar à comunidade
de onde surgiu um estudo:
“A contribuição do historiador/ativista está na elaboração e na articulação dos
conhecimentos da comunidade e na disseminação desse conhecimento para além de sua
fronteira” (PORTELLI, 2016, p.23)
É importante ressaltar que o conhecimento articulado e divulgado não deve apenas
retificar o que a comunidade já sabe, mas ir além, por intermédio de um processo dialógico
entre pesquisador e comunidade pesquisada, ampliando o conhecimento em um “diálogo
cultural mais amplo”, alcançando outros ethos da esfera pública.
Sobre o meu processo, não tenho a pretensão de sugerir um melhor modo de fornecer
a “contribuição” aos colaboradores e à comunidade. A história oral em conjunto com a
história pública vem encontrando maneiras originais e engajadas de retornar o conhecimento
dialógico produzido à comunidade e, muitas das vezes, consegue romper a barreira acadêmica
e alcançar outros públicos, ampliando o campo da discussão e fornecendo as bases para
formulações de políticas públicas. A pesquisa representou para mim um despertar para o
alerta protagonizado pelos movimentos sociais e, em especial, pelo movimento das
11

prostitutas, o qual estabelece condições éticas para a pesquisa, empurrando o processo para
uma outra epistemologia, que não alicerçada nos discursos europeus sobre os corpos das
mulheres.
Penso ser ainda insuficiente os resultados alcançados até agora com o trabalho que
realizei e que se traduziram positivamente na construção da memória do evento do “Prédio da
Caixa”, com base nas narrativas das protagonistas que vivenciaram a violência policial, no
processo dialógico com o movimento de prostitutas e na escuta de ativistas de diferentes
regiões do Brasil, publicizando o acontecimento. A academia, ainda assim, traz efetivamente
pouca contribuição para o segmento estudado. É necessário pensar em possibilidades
concretas para as prostitutas da região histórica de meretrício em Niterói, sobretudo, pela
situação de instabilidade em que se encontram.
O fenômeno da gentrificação na cidade de Niterói vem afetando-as, deixando-as
vulneráveis no tapetão. O espaço “saudável e seguro” faz-se necessário para a construção da
Niterói mais moderna e sem violência. Hubbard25 defende que o espaço urbano, da metrópole,
é produzido para a dominação masculina, para o desfrute do homem contemporâneo. O autor,
assim, fala que o processo de gentrificação, em tantas as circunstâncias, implica na
generificação, que sugere “uma forte conexão entre classe, gênero e estratégias de
regeneração do espaço urbano que implicam nas necessidades das cidades central em se
livrarem do trabalho sexual” 26.
A figura da prostituta na sociedade existe há muito. Apesar das discordâncias acerca
do momento de sua existência na sociedade por conta da estrutura social econômica vigente
no dado tempo, a imagem da mulher “outra” ligada à depravação, à venda (ou troca) do sexo
já está consolidada na sociedade. É um “mal necessário” que se perpetua sob o manto de uma
política de tolerância, regulatória, normatizadora e/ou criminalizadora. A prostituta ainda vai
existir, mesmo que em circunstância de vulnerabilidade. Nesse sentido, longe está de se findar
a prostituição na zona central de Niteroi, mas sua existência converge para uma resistência em
condições cada vez mais precárias. Penso que meu trabalho, tanto na condição de
pesquisadora quanto na de ativista, essa zona limiar de negociação, ainda não finalizou e o

25
HUBBARD, Phill. Sex work, urban governance and the gendering of cities
https://www.academia.edu/8347232/Sex_work_urban_governance_and_the_gend ering_of_cities. Último
acesso: 06/10/2017

(Ver o link do texto na referência bibliográfica).


12

campo vem me impondo, cada vez mais, desafios para o estudo do tema. Tratar da
prostituição na cidade é tarefa premente, incluir a universidade na rua e a rua na universidade
é dever magistral para o bom andamento da pesquisa.

Considerações finais

A pesquisa, iniciada em 2014, parece perder de vista tão somente o interesse


universitário e se envereda para a esfera do ativismo. Esse é o ônus e o bônus de um
comprometimento com o campo através de uma relação de ativismo/pesquisa. A história
pública não é só uma possibilidade para a temática, mas uma etapa inerente do processo.
O desejo de construir uma história da tradicional área de prostituição na cidade de
Niterói, nos domínios de uma história pública, não se resume mais ao desejo do pesquisador,
mas às urgências de um campo pouco explorado que extrapola seus limites sociais, e de vez
em outra, transborda sobre os assombros das problemáticas das cidades. A universidade,
sendo assim, não pode ser tão somente o lócus da produção acadêmica, mas deve se voltar em
favor da categoria em questão, tendo como constância a reflexão do lugar de reconhecimento
das assimetrias e do viés colonizador no pensamento consolidado acerca da imagem da
prostituta.
A tentativa, protagonizada pelo Estado e legitimada pelo discurso médico, jurista e
policial, de silenciar e de apagar rastros de determinadas lutas e memórias, sé comum
historicamente, no que se refere às práticas sociais de segmentos populares e indesejados, o
que termina por gerar subjetividades que desconhecem as produções destes atores27. É de
grande importância discutir a prática da prostituição, deslocando-a do lugar de causa da
intervenção do poder público, no espaço da criminalidade, e inserindo-a, ainda que seja uma
atividade impactada pelo crime, no lugar das vozes, das memórias e das demandas das
protagonistas. Somente desse lugar é possível pensar nas possibilidades de atuação e
compreensão das prostitutas, com uma discussão de direito à cidade, na perspectiva de
gênero, sexualidade e trabalho.

Bibliografia:

27
COIMBRA, Cecília. Operação Rio. O mito das classes perigosas. 2001
13

ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2004
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