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36º Encontro Anual da Anpocs

GT33 - Sobre periferias: novos conflitos no espaço público


Coordenadores: Neiva Vieira da Cunha (UERJ), Gabriel de Santis
Feltran (UFSCar).

Título do trabalho: Os jovens e a "pacificação" dos territórios:


representações de jovens moradores de favelas sobre a implantação das
Unidades de Polícia Pacificadoras – UPP na cidade do Rio de Janeiro.

Nome(s) do autor e co-autores:

Fatima Cecchetto (ENSP/IOC/FIOCRUZ)


Juliana Silva Corrêa (ENSP/FIOCRUZ)
Patrícia Farias (ESS/UFRJ)
Wânia Amélia Belchior Mesquita (UENF)
Introdução

Este texto é parte da pesquisa em curso “Juventude, Desigualdades e o Futuro do


Rio de Janeiro”.1 Nele, abordamos os resultados preliminares da pesquisa etnográfica
com jovens moradores do Complexo do Alemão (RJ), área que em novembro de 2010
foi ocupada pelas chamadas “forças de pacificação” do Exército e da Polícia2. Na
pesquisa em questão optou-se por trabalhar com diversas técnicas de coleta de dados
com o objetivo de conhecer as percepções dos jovens em relação à ocupação de suas
localidades, processo denominado pelo governo como a “pacificação dos territórios”.
A hipótese geral a se investigar é a que sustenta a existência de uma tensão que
perpassa as relações entre os jovens e a polícia nas mais diversas sociedades e suas
diferenças históricas, políticas e sociais, assim como diferenças culturais entre os jovens
(Matza,1969; Wacquant, 2001; Norman 2009). O principal argumento seria a afirmação
de que os homens jovens são o alvo de vigilância ostensiva e violências da polícia. Esta
tensão muitas vezes colabora para uma postura desafiante dos jovens com relação à
autoridade policial dentro ou fora de suas localidades. Além disso, tais conflitos com a
polícia podem se constituir em um fator de risco para indivíduos do sexo masculino,
contribuindo para uma maior vulnerabilidade deste grupo (Norman, 2009).
No caso do Rio de Janeiro pesquisadores apontam que os jovens, sobretudo das
áreas pobres, são tomados por “elementos suspeitos”, o que justificaria uma abordagem
mais represssiva junto a eles pela Polícia (Zaluar, 1996; Ramos e Musumeci, 2005).
A maioria dos homens jovens por nós ouvidos no Complexo do Alemão já
enfrentou ameaças ou sofreu violência física advindas da Polícia Militar e mais
recentemente do Exército. Eles relatam vários incidentes nos quais são humilhados ou

1
Pesquisa desenvolvida pelo IESP que conta com a parceria de cinco instituições sediadas no
Rio de Janeiro (IUPERJ, UERJ, UFF-Campos, UENF e UFRJ). Trata-se de um estudo
multidimensional e de longo prazo que pretende oferecer um balanço sobre a situação dos
jovens no Estado do Rio de Janeiro, avaliar as perspectivas para o futuro e acompanhar os
processos de construção da identidade, anseios e projetos de vida da população jovem.
2
A Força de Pacificação foi criada para o atendimento à Diretriz Ministerial Nr 15 / 2010, de 4
de dezembro de 2010, visando promover a preservação a garantia da lei e da ordem pública nas
favelas do Complexo da Penha e do Complexo do Alemão, na Cidade do Rio de Janeiro.
revistados de modo violento por ambos. Esta configuração permanentemente tensa pode
estar influenciando a percepção dos jovens sobre a politica de segurança voltada para a
retomada de territórios dominados por grupos criminosos. Além disso, observamos que
as percepções sobre a atuação do Exército e Policia Militar são diferentes, como
veremos adiante.
Durante o trabalho de campo, chamou atenção que os jovens (de ambos os
sexos) e outros interlocutores não mencionassem a diminuição dos confrontos violentos
como um resultado positivo da ocupação, embora o tema tenha sido explorado pela
mídia. O que no sugere pensar na vigência da chamada “lei do silêncio” imposta pelo
tráfico como um elemento que fomenta discursos negativos sobre a atuação da Polícia
(Novaes,2003). Em outras palavras, não positivar as praticas da polícia, pode fazer parte
de uma estratégia de não envolvimento em situações de risco – ou seja, no silêncio não
há risco de delação. O que não significa considerar que seja uma atitude de passividade,
antes pode ser vista como uma estratégia de defesa e enfrentamento (Machado da Silva,
2008).
Outro aspecto que deve ser levado em consideração é a questão de gênero
Alguns homens jovens tendem a aderir modelos de masculinidade representados pelas
quadrilhas ou comandos, sendo ou não integrantes delas. Os comandos (grupos de
homens armados) atraem homens de bairros pobres para versões de masculinidade que
usam a violência contra as facções rivais e a polícia. Eles detêm poder, dinheiro e armas
e consumo; são valorizados como parceiros sexuais e servem de referência para muitos
rapazes que se percebem sem prestígio. A atração a esta versão de masculinidade,
configura-se, possivelmente, como uma fonte de conflitos na constituição das
identidades juvenis nessas localidades, levando-os a oscilarem entre estilos masculinos
violentos e outros não-violentos. Assim, uma das interrogações deste artigo diz respeito
às maneiras pelas quais construções específicas de gênero e de masculinidade
influenciam as visões dos jovens sobre o Exército, a Polícia e os comandos.

Metodologia
Para analisar os discursos, elegemos, a partir de uma rede previamente
mobilizada por uma pesquisadora da equipe, jovens de diferentes localidades do
Complexo do Alemão. O contato com estes jovens foi mediado dois interlocutores,
moradores “nascidos e criados” na área3. Ambos guardam na memória os momentos
mais explosivos das guerras entre facções criminosas, vivenciando as inúmeras trocas
dos chamados “comandos” e as várias ocupações da Polícia e do Exército na localidade.
O que se segue tem como base as entrevistas individuais e grupos focais, além
de contatos informais com 10 jovens moradores do Complexo do Alemão entre 17 e 23
anos (6 rapazes e 4 moças). Durante o período de abril de 2011 a abril de 2012, a
equipe realizou várias idas a campo, incluindo um treinamento com os jovens para a
utilização de Netbooks, recurso selecionado para servir de elo entre os pesquisadores de
campo e os jovens na investigação proposta4. Antes de iniciar a análise dos depoimentos
dos jovens, é importante esboçar alguns comentários sobre o Complexo do Alemão para
introduzir a complexidade do quadro com que estamos lidando.
O Complexo do Alemão
O Complexo do Alemão está situado na zona Norte do Rio de Janeiro. Ainda que
seja classificado como um bairro desde o ano de 1993, o Complexo é socialmente
representado e experimentado como um conjunto de favelas ou comunidades,
conhecidas e reconhecidas como diferentes entre si pelos próprios habitantes.
Desde o final dos anos 1980, o Complexo do Alemão, como outras favelas do
Rio de Janeiro, tem vivido em contato direto com o tráfico de cocaína, maconha e com
confrontos armados entre os chamados comandos que disputam territórios. O Comando
Vermelho e o Terceiro Comando eram os dois principais grupos rivais até a chegada da
facção do ADA, (amigos dos amigos), que passou a integrar a disputa pelo mercado
varejo da distribuição de drogas.
Nessa configuração o agente principal seriam os traficantes, figuras que usam a
favela como espaço para morar, esconderem-se da polícia, recrutar aliados e conceder
benesses para alguns, como por exemplo, distribuindo dinheiro, bens de consumo,
patrocinando festas, churrascos e bailes funk. Os integrantes dos comandos são quase
todos das favelas e exercem o domínio territorial, impondo, segundo alguns

3
Um dos mediadores é um antigo frequentador de bailes funks e integrante de galeras, que
acumulou experiência como um “jovem de projeto”, ou seja, como partícipe de projetos sociais.
Este ( doravante denominado MC) encontra-se na faixa dos quarenta anos. Outro interlocutor,
com o qual mantivemos contato ao longo do trabalho, (doravante denominado G), atualmente
integra uma ONG na favela.
4
A tarefa básica exigida era que os jovens registrassem em seus netbooks, a rotina da semana,
seguindo um roteiro (em anexo), focalizando, principalmente suas atividades de lazer,
momentos com a família e amigos, basicamente. Esses registros eram encaminhados
semanalmente para os pesquisadores, passando antes pelo interlocutor que nos encaminhava 2
versões dos relatos.
pesquisadores, uma sociabilidade violenta nestes territórios (Machado da Silva, 2008).
Os jovens com quem mantivemos contato tendem a ver os comandos com um
misto de medo e respeito. Por serem quase todos provenientes do seu círculo social, eles
alegam que alguns se colocam ao lado do “pessoal do tráfico” quando começam os
confrontos entre as facções rivais ou com a polícia. Isso não significa se associar ou
desenvolver as práticas dos traficantes. No entanto, para os jovens ouvidos, o comando
parece ser percebido como um grupo que possibilita certa ordem na localidade, capaz de
proteger a favela de comandos inimigos que tentam sempre invadir o território. Nessa
linha, é ressaltada a sua atuação como uma espécie de interventor onipresente no caso
de conflitos interpessoais envolvendo brigas de vizinhos ou violência doméstica. Além
disso, muitos se pronunciaram quanto à centralidade dos comandos no lazer local. Eles
ressaltam o valor dos bailes funks, pagodes e festas na favela que são promovidos pelo
tráfico.

Alemão 2010: a chegada do Exército

O que ocorreu no mês de novembro de 2010 no Complexo com a invasão do


Bope espelha a força que adquiriu a ideia de retomada do controle territorial, central na
concepção das UPP. Já havia doze Unidades de Polícia Pacificadora na cidade do Rio
de Janeiro, quando começaram a acontecer alguns episódios violentos, caracterizados
por assaltos a veículos e a queima dos mesmos em diversos pontos da cidade
(majoritariamente na Zona Norte) que foram associados a ações comandadas por
facções criminosas em represália à instalação das UPP5.
Nesse momento, instalou-se um discurso sobre caos que culminou numa
operação especial da Polícia Militar do Rio de Janeiro com o apoio da Marinha do
Brasil A justificativa dada para a operação considerava que a região era um dos redutos
do tráfico na cidade e refúgio dos grandes traficantes de favelas vizinhas, nas quais
foram instaladas UPP.
Toda a operação foi televisionada por diversas emissoras que sugeriam que toda
a cidade estaria vivenciando um clima de tensão. O episódio foi apelidado de Tropa de
Elite III em referência aos filmes “Tropa de elite I” e “Tropa de elite II”. Uma cena
marcante, documentada por uma emissora que filmava a “operação”, foi a de um bando

5
Jornal O Globo “Dia D da guerra ao tráfico”- Publicado em 26/11/2010. No dia 25 de
novembro, segundo informações do jornal foram incendiados mais de 44 veículos na cidade.
de aproximadamente 200 traficantes armados fugindo da favela Vila Cruzeiro em
direção ao Complexo do Alemão por uma estrada de terra que liga as duas favelas. Esta
cena permaneceu no noticiário televisivo e impresso e foi repetidamente veiculada,
inclusive pelos principais jornais internacionais.
Nos últimos dias de Novembro de 2010, houve uma ação conjunta entre a
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, a Polícia Federal, a Polícia Civil e as
Forças Armadas que novamente buscavam “tirar o controle do tráfico nesta região”
A notícia de que haveria uma operação no Complexo do Alemão e a exigência
de rendição à Polícia foram estratégias utilizadas para ganhar o apoio público e
midiático, seguidas do reforço da ideia de que não haveria confronto direto em razão do
número de pessoas que moram na localidade e que poderiam se ferir. Esse apoio foi
concedido pelas emissoras de TV e pelos jornais que veicularam manchetes com os
títulos: “A Fortaleza era de papel”, “A Reconquista da Vila Cruzeiro”, “População
Aplaude a Passagem da Tropa” (Jornal o Globo, Caderno especial A Guerra do Rio); “O
Rio contra-ataca” (Jornal o dia- Capa).
Num final de semana, houve a efetiva ocupação da área com o hasteamento das
bandeiras do Brasil e do Estado do Rio de Janeiro simbolizando o controle do território.
A previsão era de que o Exército permanecesse por mais um ano e meio na região, até
que fosse instalada uma Unidade de Polícia Pacificadora- UPP, em 2012.

Visões dos jovens sobre as forças de pacificação

Para os jovens pesquisados, boa parte dos problemas relativos à presença da


força de pacificação composta pelo Exército e pela Polícia decorre de alterações em
seus padrões de sociabilidade, particularmente o lazer das festas e dos bailes e o
convívio com pares. Eles passaram a frequentar outros espaços no entorno onde ainda
ocorrem os bailes e pagodes. Estes espaços tornaram-se os pontos de encontro fora do
Complexo. Pode-se dizer que os bailes nas favelas até então não pacificadas passaram a
ser mais atrativos, considerando a não interferência da Polícia ou do Exército em
relação ao horário, venda e uso de drogas e circulação de homens armados. Em relação
ao perigo de frequentar estes espaços, quase todos os entrevistados mencionam que não
se sentem ameaçados. No entanto, sabe-se que os tiroteios com a polícia e a tentativa de
invasão de outras facções são relativamente constantes nas favelas, demandando o
abandono forçado do local nessas circunstâncias. Falas como “conheço todo mundo” e
“o ambiente é tranquilo”, pontuam os relatos, principalmente os masculinos. Eles
parecem não atribuir a esses episódios um grau elevado de risco ou perigo. Contudo
pode-se pensar no processo de naturalização de um modelo de sociabilidade violenta,
em que a arriscar-se ou tornar-se vítima de violência é, em parte, algo a ser cogitado.
Além disso, pode estar em jogo uma valorização de aspectos de uma masculinidade
tradicional, normalmente articulada ao uso da força física.
No grupo em foco, não foram poucos os relatos em que contrastavam a atuação
dos traficantes com as do Exército e da Polícia que ocupa o “Complexo”, valorizando os
eventos onde havia recorrentemente a distribuição farta de presentes, alimentos e
dinheiro na favela. Com a ocupação, as datas festivas e alguns eventos passaram a
contar apenas com as iniciativas da Força Tarefa, descritas pelos jovens como “muito
inferiores” e incomparáveis com as que eram promovidas anteriormente. Tal
constatação é tida como uma espécie de prova de fraqueza da instituição em tentar
mimetizar o que é considerado como uma generosidade do tráfico. Todos os jovens
relataram que, em épocas anteriores, quando o tráfico era ativo na comunidade, os
traficantes financiavam as ceias de Natal e montavam uma mesa para os mais pobres da
favela, além de distribuírem presentes. Eles ressaltaram repetidas vezes que os produtos
distribuídos não eram roubados e sim comprados e possuíam nota fiscal das lojas.
As facções criminosas muitas vezes são chamadas a intercederem nos conflitos
familiares e interpessoais. Uma fala que mostra esta representação do tráfico como uma
espécie de interventor partiu de uma moradora sobre uma briga de casal no contexto da
ocupação. No episódio relatado, uma mulher, acusada de traição pelo marido, foi
espancada em público na presença de vizinhos que se omitiram. Segundo a mesma
informante, a situação seria diferente num contexto anterior, sob o domínio das “leis do
tráfico”, avesso a conflitos que possam atrair a polícia para o local. No entanto, seu
relato pareceu valorizar a atitude do marido violento, ao mesmo tempo em que
considerou que a confusão ocasionada pela briga contribuiu para tornar a vida no local
mais dinâmica: (...) sem o tráfico armado as pessoas agora estão inventando coisas pra
fazer e toda hora tem briga no beco... meu beco neste fim de semana estava fervoroso” (
D, moradora do Adeus, 23 anos).
Falas como “a favela tá muito chata” e “sem nada para fazer”, reproduzem essa
visão sobre a atual conjuntura local percebida como desinteressante, sem as festas e
bailes rotineiros do período anterior, celebrados como espaços de diversão e encontro
entre amigos, vizinhos e parentes. No contexto da ocupação, as regras impostas pelas
forças de pacificação suspenderam os bailes e a circulação ruas nos fins de semana e a
noite, proibindo o som alto em festas e bares e o consumo aberto de drogas. O
descontentamento está presente na fala de R ( morador da Grota, 18 anos) :
O Exército proibiu tudo, não tem baile e nem pagode e que
tem que sair da comunidade para poder fazer alguma coisa. A
única coisa legal que tem para fazer é brincar de guerrinha.

Os relatos descrevem a brincadeira da guerrinha como uma espécie de jogo no


qual são formados dois grupos de rapazes que moram em áreas distintas do Complexo.
A brincadeira consiste em um grupo jogar frutas no outro; o ganhador é o grupo menos
atingido pelas frutas e que conseguiu invadir o espaço do outro. O que é importante
destacar desta brincadeira é a divisão de grupos por territórios e a utilização de uma
linguagem de confronto que se aproxima do modus operandi das facções. Segue uma
descrição feita por um dos nossos entrevistados sobre a dinâmica da “guerrinha”, no
momento anterior à proibição pelo Exército:

Eles (os oponentes) vieram aqui no morro atrás de nós, rolou


troca-troca com eles, e eles correram pra Penha, fomos atrás
deles, eles estavam com maior bondão, quando estávamos
chegando eles viram a gente e desceram pro troca-troca, então
nós corremos, pegamos e subimos pra mata, quando chegamos
na Central o Exército prendeu 5 amigos que estavam na
guerrinha. O bonde que eu estava era mais de 60 pessoas. Houve
a maior confusão com o Exército, bateram nos moleques,
jogamos neles ovos, fruta, tudo, e deu maior confusão. Eles
deram tiro pro alto, jogaram spray de pimenta, o povo
reclamando com o Exército, porque eles não podiam fazer isso,
então eles chamaram reforços e jogamos mais ovos neles e
descemos correndo. Chegamos ao Ponto Certo na Central, tinha
um caminhão deles parado, e jogamos ovos neles também,
saímos correndo e eles ficaram atrás da gente. Os cinco
moleques presos foram liberados quando a mãe chegou... Depois
fui pra casa tomei banho e fui pra rua.

O que fica deste relato foi o acirramento das tensões entre os jovens e o
Exército, que tentou dispersar os grupos e foi atacado. Estabeleceu-se um confronto que
culminou com a detenção de cinco rapazes menores de idade, integrantes do jogo, mas
posteriormente liberados pelos pais. Em encontro posterior com os jovens, ficamos
sabendo que a brincadeira havia sido proibida tanto pelo Exército quanto pelos
traficantes que circulam desarmados pela favela. Observamos que os jovens, ainda que
queixosos a respeito da proibição dessa atividade - para eles um lazer - apresentaram
tom jocoso com relação à postura do Exército e da Polícia, que os reprimiu com prisões
e tiros para o alto.
O episódio serve também para ilustrar um tema que é recorrentemente repetido
pelos nossos interlocutores: a persistência do domínio exercido pelo tráfico nestes
locais, embora com algumas mudanças na forma com que se apresenta socialmente. A
venda de drogas na favela agora não é mais feita em pontos fixos, ou “bocas”, sendo
denominada, de modo geral, como o “tráfico formiguinha” que parece ter modificado a
estrutura hierárquica tradicional, eliminando, por exemplo, os “gerentes”, espécies de
“chefe da boca”. Na atual conjuntura, as atividades tendem a apresentar uma
característica menos centralizada, fato que necessita ser mais explorado.
Um dos nossos interlocutores, avaliando a presença da força de pacificação,
afirma que o “local onde mora melhorou, pois não ocorrem mais tiroteios”. No entanto,
acredita que daqui a cinco anos “estará tudo quebrado” e o “tráfico irá voltar”. A força
de pacificação é descrita como um misto de desconforto e desdém. Podemos indicar que
o desconforto refere-se ao fato de se sentirem permanentemente desrespeitados vigiados
e terem sua liberdade na favela cerceada, cujo ápice foi a proibição dos bailes funk,
como já foi dito. O desdém parece estar baseado na constatação de que as atividades do
tráfico não foram de todo eliminadas pela presença do Exército e da Polícia.
É importante dizer que tivemos contato com outros jovens que participam de
projetos sociais, com visões de mundo e ações coletivas que se destacam no ativismo
político; integrantes de grupos culturais (fotografia, música e redes sociais na internet)
como forma de trabalhar os problemas vividos na e da favela, assim como para alguns
uma forma de concretização de suas aspirações políticas e sociais como moradores.

Considerações finais

Não foi o objetivo fazer uma descrição fiel ao estado de coisas, sobretudo por
conta de que os fenômenos são muito recentes, dificultando o distanciamento
necessário, mas refletir sobre as perspectivas em curso. É sobre esse quadro plural e
ainda em construção que nos debruçaremos em reflexões posteriores. É possível
perceber que o que Michel Misse (2011) aponta: uma tendência a reforçar uma
mentalidade territorial a partir das unidades pacificadas, parece estar ocorrendo. Além
disso, a ideia da desconstrução da tensão entre jovens e policiais, ou a identificação dos
primeiros com os últimos, por enquanto permanecem como ideias. Esta postura diante
do cenário abarca tanto aqueles mais ligados ao modelo masculino do traficante
poderoso como aqueles grupos de jovens que fazem parte de projetos sociais e/ou
culturais.
De mãos dadas com todas essas questões, encontram-se configurações
tradicionais e rígidas de virilidade e masculinidade. O dever de provar publicamente a
própria masculinidade é um elemento comum a quase todas as análises sobre as
identidades masculinas, o que foi ressaltado no trabalho de campo que realizamos.
Embora seja preciso uma investigação mais complexa que permita analisar as
consequências para homens e mulheres dessas formas rígidas de gênero, o que se pode
dizer no momento é que há pelo menos duas versões de masculinidade no contexto da
ocupação. Uma delas é representada pela masculinidade guerreira e forte; esta se
expressa com força no modelo associado aos traficantes e a Polícia Militar. A outra se
apoia em um tipo de masculinidade considerada hierarquicamente mais fraca, a do
Exército, menos temida e menos respeitada.
Como dissemos acima, os comandos atraem homens jovens de bairros pobres
para um tipo de construção da identidade masculina cuja representação está associada à
demonstração da força e coragem para o confronto, frequentemente violento.
Pesquisadores observam que nesse processo estaria em jogo uma norma de gênero
orientada segundo um ethos guerreiro (Zaluar,1996; Cecchetto,2004). As quadrilhas
competem não apenas por territórios, mas também pela lealdade dos homens jovens que
têm disposição (exibindo esse ethos) para lutar contra os outros comandos e a polícia.
Aqui está se discutindo os desafios e as situações adversas com os quais os
homens jovens em suas trajetórias se veem confrontados para atender as exigências
sociais ligadas à masculinidade em um contexto onde tem que enfrentar problemas
relacionados ao desemprego, a falta de escolaridade, saúde e segurança pública. Não
está se falando de uma associação direta entre pobreza e violência, ou seja, a pobreza
não provoca a violência interpessoal, mas o quadro de violência estrutural molda e
sustenta de modo subjacente a violência interpessoal que vitimiza em maior proporção
os homens jovens e pobres.

Bibliografia

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