Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
Pesquisa desenvolvida pelo IESP que conta com a parceria de cinco instituições sediadas no
Rio de Janeiro (IUPERJ, UERJ, UFF-Campos, UENF e UFRJ). Trata-se de um estudo
multidimensional e de longo prazo que pretende oferecer um balanço sobre a situação dos
jovens no Estado do Rio de Janeiro, avaliar as perspectivas para o futuro e acompanhar os
processos de construção da identidade, anseios e projetos de vida da população jovem.
2
A Força de Pacificação foi criada para o atendimento à Diretriz Ministerial Nr 15 / 2010, de 4
de dezembro de 2010, visando promover a preservação a garantia da lei e da ordem pública nas
favelas do Complexo da Penha e do Complexo do Alemão, na Cidade do Rio de Janeiro.
revistados de modo violento por ambos. Esta configuração permanentemente tensa pode
estar influenciando a percepção dos jovens sobre a politica de segurança voltada para a
retomada de territórios dominados por grupos criminosos. Além disso, observamos que
as percepções sobre a atuação do Exército e Policia Militar são diferentes, como
veremos adiante.
Durante o trabalho de campo, chamou atenção que os jovens (de ambos os
sexos) e outros interlocutores não mencionassem a diminuição dos confrontos violentos
como um resultado positivo da ocupação, embora o tema tenha sido explorado pela
mídia. O que no sugere pensar na vigência da chamada “lei do silêncio” imposta pelo
tráfico como um elemento que fomenta discursos negativos sobre a atuação da Polícia
(Novaes,2003). Em outras palavras, não positivar as praticas da polícia, pode fazer parte
de uma estratégia de não envolvimento em situações de risco – ou seja, no silêncio não
há risco de delação. O que não significa considerar que seja uma atitude de passividade,
antes pode ser vista como uma estratégia de defesa e enfrentamento (Machado da Silva,
2008).
Outro aspecto que deve ser levado em consideração é a questão de gênero
Alguns homens jovens tendem a aderir modelos de masculinidade representados pelas
quadrilhas ou comandos, sendo ou não integrantes delas. Os comandos (grupos de
homens armados) atraem homens de bairros pobres para versões de masculinidade que
usam a violência contra as facções rivais e a polícia. Eles detêm poder, dinheiro e armas
e consumo; são valorizados como parceiros sexuais e servem de referência para muitos
rapazes que se percebem sem prestígio. A atração a esta versão de masculinidade,
configura-se, possivelmente, como uma fonte de conflitos na constituição das
identidades juvenis nessas localidades, levando-os a oscilarem entre estilos masculinos
violentos e outros não-violentos. Assim, uma das interrogações deste artigo diz respeito
às maneiras pelas quais construções específicas de gênero e de masculinidade
influenciam as visões dos jovens sobre o Exército, a Polícia e os comandos.
Metodologia
Para analisar os discursos, elegemos, a partir de uma rede previamente
mobilizada por uma pesquisadora da equipe, jovens de diferentes localidades do
Complexo do Alemão. O contato com estes jovens foi mediado dois interlocutores,
moradores “nascidos e criados” na área3. Ambos guardam na memória os momentos
mais explosivos das guerras entre facções criminosas, vivenciando as inúmeras trocas
dos chamados “comandos” e as várias ocupações da Polícia e do Exército na localidade.
O que se segue tem como base as entrevistas individuais e grupos focais, além
de contatos informais com 10 jovens moradores do Complexo do Alemão entre 17 e 23
anos (6 rapazes e 4 moças). Durante o período de abril de 2011 a abril de 2012, a
equipe realizou várias idas a campo, incluindo um treinamento com os jovens para a
utilização de Netbooks, recurso selecionado para servir de elo entre os pesquisadores de
campo e os jovens na investigação proposta4. Antes de iniciar a análise dos depoimentos
dos jovens, é importante esboçar alguns comentários sobre o Complexo do Alemão para
introduzir a complexidade do quadro com que estamos lidando.
O Complexo do Alemão
O Complexo do Alemão está situado na zona Norte do Rio de Janeiro. Ainda que
seja classificado como um bairro desde o ano de 1993, o Complexo é socialmente
representado e experimentado como um conjunto de favelas ou comunidades,
conhecidas e reconhecidas como diferentes entre si pelos próprios habitantes.
Desde o final dos anos 1980, o Complexo do Alemão, como outras favelas do
Rio de Janeiro, tem vivido em contato direto com o tráfico de cocaína, maconha e com
confrontos armados entre os chamados comandos que disputam territórios. O Comando
Vermelho e o Terceiro Comando eram os dois principais grupos rivais até a chegada da
facção do ADA, (amigos dos amigos), que passou a integrar a disputa pelo mercado
varejo da distribuição de drogas.
Nessa configuração o agente principal seriam os traficantes, figuras que usam a
favela como espaço para morar, esconderem-se da polícia, recrutar aliados e conceder
benesses para alguns, como por exemplo, distribuindo dinheiro, bens de consumo,
patrocinando festas, churrascos e bailes funk. Os integrantes dos comandos são quase
todos das favelas e exercem o domínio territorial, impondo, segundo alguns
3
Um dos mediadores é um antigo frequentador de bailes funks e integrante de galeras, que
acumulou experiência como um “jovem de projeto”, ou seja, como partícipe de projetos sociais.
Este ( doravante denominado MC) encontra-se na faixa dos quarenta anos. Outro interlocutor,
com o qual mantivemos contato ao longo do trabalho, (doravante denominado G), atualmente
integra uma ONG na favela.
4
A tarefa básica exigida era que os jovens registrassem em seus netbooks, a rotina da semana,
seguindo um roteiro (em anexo), focalizando, principalmente suas atividades de lazer,
momentos com a família e amigos, basicamente. Esses registros eram encaminhados
semanalmente para os pesquisadores, passando antes pelo interlocutor que nos encaminhava 2
versões dos relatos.
pesquisadores, uma sociabilidade violenta nestes territórios (Machado da Silva, 2008).
Os jovens com quem mantivemos contato tendem a ver os comandos com um
misto de medo e respeito. Por serem quase todos provenientes do seu círculo social, eles
alegam que alguns se colocam ao lado do “pessoal do tráfico” quando começam os
confrontos entre as facções rivais ou com a polícia. Isso não significa se associar ou
desenvolver as práticas dos traficantes. No entanto, para os jovens ouvidos, o comando
parece ser percebido como um grupo que possibilita certa ordem na localidade, capaz de
proteger a favela de comandos inimigos que tentam sempre invadir o território. Nessa
linha, é ressaltada a sua atuação como uma espécie de interventor onipresente no caso
de conflitos interpessoais envolvendo brigas de vizinhos ou violência doméstica. Além
disso, muitos se pronunciaram quanto à centralidade dos comandos no lazer local. Eles
ressaltam o valor dos bailes funks, pagodes e festas na favela que são promovidos pelo
tráfico.
5
Jornal O Globo “Dia D da guerra ao tráfico”- Publicado em 26/11/2010. No dia 25 de
novembro, segundo informações do jornal foram incendiados mais de 44 veículos na cidade.
de aproximadamente 200 traficantes armados fugindo da favela Vila Cruzeiro em
direção ao Complexo do Alemão por uma estrada de terra que liga as duas favelas. Esta
cena permaneceu no noticiário televisivo e impresso e foi repetidamente veiculada,
inclusive pelos principais jornais internacionais.
Nos últimos dias de Novembro de 2010, houve uma ação conjunta entre a
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, a Polícia Federal, a Polícia Civil e as
Forças Armadas que novamente buscavam “tirar o controle do tráfico nesta região”
A notícia de que haveria uma operação no Complexo do Alemão e a exigência
de rendição à Polícia foram estratégias utilizadas para ganhar o apoio público e
midiático, seguidas do reforço da ideia de que não haveria confronto direto em razão do
número de pessoas que moram na localidade e que poderiam se ferir. Esse apoio foi
concedido pelas emissoras de TV e pelos jornais que veicularam manchetes com os
títulos: “A Fortaleza era de papel”, “A Reconquista da Vila Cruzeiro”, “População
Aplaude a Passagem da Tropa” (Jornal o Globo, Caderno especial A Guerra do Rio); “O
Rio contra-ataca” (Jornal o dia- Capa).
Num final de semana, houve a efetiva ocupação da área com o hasteamento das
bandeiras do Brasil e do Estado do Rio de Janeiro simbolizando o controle do território.
A previsão era de que o Exército permanecesse por mais um ano e meio na região, até
que fosse instalada uma Unidade de Polícia Pacificadora- UPP, em 2012.
O que fica deste relato foi o acirramento das tensões entre os jovens e o
Exército, que tentou dispersar os grupos e foi atacado. Estabeleceu-se um confronto que
culminou com a detenção de cinco rapazes menores de idade, integrantes do jogo, mas
posteriormente liberados pelos pais. Em encontro posterior com os jovens, ficamos
sabendo que a brincadeira havia sido proibida tanto pelo Exército quanto pelos
traficantes que circulam desarmados pela favela. Observamos que os jovens, ainda que
queixosos a respeito da proibição dessa atividade - para eles um lazer - apresentaram
tom jocoso com relação à postura do Exército e da Polícia, que os reprimiu com prisões
e tiros para o alto.
O episódio serve também para ilustrar um tema que é recorrentemente repetido
pelos nossos interlocutores: a persistência do domínio exercido pelo tráfico nestes
locais, embora com algumas mudanças na forma com que se apresenta socialmente. A
venda de drogas na favela agora não é mais feita em pontos fixos, ou “bocas”, sendo
denominada, de modo geral, como o “tráfico formiguinha” que parece ter modificado a
estrutura hierárquica tradicional, eliminando, por exemplo, os “gerentes”, espécies de
“chefe da boca”. Na atual conjuntura, as atividades tendem a apresentar uma
característica menos centralizada, fato que necessita ser mais explorado.
Um dos nossos interlocutores, avaliando a presença da força de pacificação,
afirma que o “local onde mora melhorou, pois não ocorrem mais tiroteios”. No entanto,
acredita que daqui a cinco anos “estará tudo quebrado” e o “tráfico irá voltar”. A força
de pacificação é descrita como um misto de desconforto e desdém. Podemos indicar que
o desconforto refere-se ao fato de se sentirem permanentemente desrespeitados vigiados
e terem sua liberdade na favela cerceada, cujo ápice foi a proibição dos bailes funk,
como já foi dito. O desdém parece estar baseado na constatação de que as atividades do
tráfico não foram de todo eliminadas pela presença do Exército e da Polícia.
É importante dizer que tivemos contato com outros jovens que participam de
projetos sociais, com visões de mundo e ações coletivas que se destacam no ativismo
político; integrantes de grupos culturais (fotografia, música e redes sociais na internet)
como forma de trabalhar os problemas vividos na e da favela, assim como para alguns
uma forma de concretização de suas aspirações políticas e sociais como moradores.
Considerações finais
Não foi o objetivo fazer uma descrição fiel ao estado de coisas, sobretudo por
conta de que os fenômenos são muito recentes, dificultando o distanciamento
necessário, mas refletir sobre as perspectivas em curso. É sobre esse quadro plural e
ainda em construção que nos debruçaremos em reflexões posteriores. É possível
perceber que o que Michel Misse (2011) aponta: uma tendência a reforçar uma
mentalidade territorial a partir das unidades pacificadas, parece estar ocorrendo. Além
disso, a ideia da desconstrução da tensão entre jovens e policiais, ou a identificação dos
primeiros com os últimos, por enquanto permanecem como ideias. Esta postura diante
do cenário abarca tanto aqueles mais ligados ao modelo masculino do traficante
poderoso como aqueles grupos de jovens que fazem parte de projetos sociais e/ou
culturais.
De mãos dadas com todas essas questões, encontram-se configurações
tradicionais e rígidas de virilidade e masculinidade. O dever de provar publicamente a
própria masculinidade é um elemento comum a quase todas as análises sobre as
identidades masculinas, o que foi ressaltado no trabalho de campo que realizamos.
Embora seja preciso uma investigação mais complexa que permita analisar as
consequências para homens e mulheres dessas formas rígidas de gênero, o que se pode
dizer no momento é que há pelo menos duas versões de masculinidade no contexto da
ocupação. Uma delas é representada pela masculinidade guerreira e forte; esta se
expressa com força no modelo associado aos traficantes e a Polícia Militar. A outra se
apoia em um tipo de masculinidade considerada hierarquicamente mais fraca, a do
Exército, menos temida e menos respeitada.
Como dissemos acima, os comandos atraem homens jovens de bairros pobres
para um tipo de construção da identidade masculina cuja representação está associada à
demonstração da força e coragem para o confronto, frequentemente violento.
Pesquisadores observam que nesse processo estaria em jogo uma norma de gênero
orientada segundo um ethos guerreiro (Zaluar,1996; Cecchetto,2004). As quadrilhas
competem não apenas por territórios, mas também pela lealdade dos homens jovens que
têm disposição (exibindo esse ethos) para lutar contra os outros comandos e a polícia.
Aqui está se discutindo os desafios e as situações adversas com os quais os
homens jovens em suas trajetórias se veem confrontados para atender as exigências
sociais ligadas à masculinidade em um contexto onde tem que enfrentar problemas
relacionados ao desemprego, a falta de escolaridade, saúde e segurança pública. Não
está se falando de uma associação direta entre pobreza e violência, ou seja, a pobreza
não provoca a violência interpessoal, mas o quadro de violência estrutural molda e
sustenta de modo subjacente a violência interpessoal que vitimiza em maior proporção
os homens jovens e pobres.
Bibliografia
MACHADO DA SILVA, L. A.(org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do
Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 2008.
NORMAN, J. Seen and Not Heard: Young People’s Perceptions of the Police. Policing.
Oxford University Press. V. 3, n 4, PP. 364-372. October, 2009.
NOVAES, R.R & CUNHA, M. (Coord). O Galo e o Pavão. Rio de Janeiro: Iser/ Faperj,
2003.