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Mães e familiares de vítimas de violência do Estado na Baixada

Fluminense: a luta por memória e justiça1


Giulia Escuri de Souza (PPGCS/UFRRJ)

Resumo

O objetivo deste estudo é analisar o trabalho de luta pelo direito à memória e justiça
protagonizado por mães e familiares de vítimas de violência do Estado na Baixada Fluminense.
A questão territorial ocupa uma posição importante na configuração das estratégias mobilizadas
pelos parentes das vítimas na Baixada, visto que, ante a um espaço marcado por grupos de
extermínio e milícias, muitas vezes é necessário lutar pela validação das mortes. Desse modo,
a Rede de Mães e Familiares de Vítimas de Violência do Estado na Baixada Fluminense coloca-
se como importante interlocutora da pesquisa. O grupo é articulado por mulheres que são mães
e parentes de jovens que foram assassinados por agentes estatais e/ou integrantes de grupos de
extermínio/milícias. Sendo assim, por meio do meu trabalho de campo, pretendo perceber a
maneira que mães e familiares articulam a memória de seus filhos como forma de legitimar
suas mortes e buscar por justiça.

Palavras-chave: Baixada Fluminense; Mães e Familiares de vítima de violência do Estado;


Memória

Introdução:

Antes de refletirmos acerca das estratégias manejadas pela Rede de Mães e Familiares
de Vítimas de Violência do Estado da Baixada Fluminense, proponho uma breve
contextualização do território como forma de compreender mais adiante o surgimento e
fortalecimento da Rede. Existem muitas formas de considerar a delimitação espacial da Baixada
Fluminense. Diversos pesquisadores admitem alguns municípios e outros não, com base em
uma série de justificativas. De acordo com Ana Lúcia Enne (2002), a Baixada Fluminense é
construída por seus atores sociais em diferentes maneiras. Segundo a autora, as fronteiras e os
limites da região são negociados por meio de práticas e interações cotidianas, “sendo
reconstruídos na experiência diária de seus moradores, em situações de contato com outros
moradores ou com pessoas de fora e mesmo a partir do discurso oficial, da mídia e das

1
44º Encontro Anual da Anpocs. GT23: Memória Social e Sociedade: os desafios contemporâneos

1
manifestações culturais” (ENNE, 2002, p.49). Desse modo, Enne (2002) chega a listar oito
combinações diferentes na composição da região.

Apesar de apreender que as fronteiras são dinâmicas, tendo a considerar,


metodologicamente, a constituição da Baixada em 13 municípios. Essa definição também é de
ordem político-institucional, sendo utilizada pelo governo do Estado. Sendo assim, as cidades
que compõem a região são: Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Itaguaí, Japeri, Magé,
Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Paracambi, Queimados, Seropédica e São João de Meriti.
Esses municípios fazem parte da periferia do Rio de Janeiro, tendo alguns sido considerados
anteriormente como “cidades-dormitórios”.

A Baixada Fluminense é uma das regiões mais violentas do estado, de acordo com a
série histórica anual do Instituto de Segurança Pública (ISP), que foi lançada em março deste
ano e apurou dados relativos à letalidade violenta no estado do Rio de Janeiro e grandes regiões.
Segundo a pesquisa, que analisou a taxa de letalidade violenta2 (por 100 mil habitantes) entre
1991 e 2019, a Baixada Fluminense atingiu a média de 45,7 de mortes causadas pela categoria
em 2019, enquanto a cidade do Rio de Janeiro ficou em 28,5 no mesmo ano. Já a média do
estado alcançou 34,6. Além da Baixada atingir uma taxa maior em relação a do Rio de Janeiro,
ela também supera as estimativas nacionais. De acordo com o Instituto de Pesquisa Aplicada
(IPEA) e o Fórum Nacional de Segurança Pública, em 2016, Queimados obteve a maior
quantidade de letalidade violenta do país. Seguido por Queimados, Japeri ficou em 6º lugar
entre as cidades mais violentas do Brasil.

Além das altas taxas de letalidade violenta, a Baixada Fluminense sofre ao longo das
décadas com a ação de grupos de extermínio e, mais recentemente, com as milícias3. Segundo
Alves (1998), ao longo da formação histórica da Baixada, o apoio popular aos grupos políticos
locais vinculados a grupos de extermínio foi se mostrando como uma alternativa imposta e
construída pelas relações de poder que se estabeleceram na região. Desse modo, o autor
considera que, apesar de políticas de segurança serem adotadas, os elevados índices de
homicídio na Baixada tendem a permanecer estáveis, o que não confirma uma incapacidade ou

2
A taxa de letalidade violenta agrupa mortes causadas por intervenção policial, homicídio doloso, latrocínio e
lesão corporal seguida de óbito.
3
O sociólogo José Cláudio Alves discute essa questão de forma exemplar em seu livro: Dos Barões ao Extermínio:
uma história da violência na Baixada Fluminense (2003). No entanto não pretendo trazer nesse trabalho um estudo
sobre os grupos de extermínio e milícias. Essas categorias serão trabalhadas organicamente nas descrições
etnográficas.

2
ineficiência do Estado, mas sua permeabilidade a esse padrão que tem a violência como base
de sustentação.

Diante esse panorama de violência estatal que tem como alvo majoritariamente jovens
negros, surge a Rede de Mães e Familiares de Vítimas de Violência do Estado da Baixada
Fluminense. O coletivo foi formado em 2005, quando em 31 de março, cinco policiais militares
– que tinham envolvimento em grupos de extermínio da região – assassinaram 29 pessoas entre
os municípios de Nova Iguaçu e Queimados. A partir chacina da Baixada, como o episódio
ficou conhecido, um grupo de mães e familiares das vítimas se reuniram para lutar por justiça.
A Rede atualmente conta com especialistas parceiros que proporcionam amparo psicológico e
jurídico aos familiares, e ainda engloba coletivos e outras representações que fortalecem a
caminhada. A Rede busca “fazer valer o direito de ocupar os espaços públicos, em um embate
constante com esse Estado que tem por estratégia o apagamento da memória desses jovens
[assassinados] e a invisibilização dos familiares” (MAIA et al, 2020). Por meio da luta das mães
e parentes, houve a construção de memoriais físicos em praças, grafites com a imagem das
vítimas da chacina, além da caminhada anual que percorre o trajeto feito pelos policiais, naquela
noite de março, e a promulgação, em Nova Iguaçu, da lei municipal 4869/19, que cria a Semana
de Luta de Mães e Familiares Vítimas da Violência no fim do mês de março.

Como maneira de perceber a luta das mães e familiares pelo direito à memória e à
justiça, pretendo trabalhar em duas vertentes: a partir do episódio da chacina da Baixada,
proponho uma análise das entrevistas dadas por parentes das vítimas ao jornal O Globo no mês
de abril de 2005. Tive a oportunidade de aprofundar esse estudo em minha monografia e, desse
modo, busco trazer desse outro trabalho a percepção do movimento que os familiares
precisaram fazer para “provar” a inocência de seus mortos e legitimar suas mortes por meio da
memória. Em outro plano, trago uma descrição etnográfica da última caminhada que
“descomemorou” os 14 anos da Chacina, em 2019, como maneira de nos fazer pensar sobre a
manutenção da memória das vítimas da violência estatal na Baixada.

Chacina da Baixada: uma noite que mudou muitas vidas

Para que possamos pensar as análises propostas, acredito ser necessário aprofundar um
pouco o conhecimento sobre a chacina da Baixada. Era noite do dia 30 de março de 2005,
quando dois homens que estavam em um bar no Parque Araruama, em São João de Meriti,
foram sequestrados. Colocaram-nos dentro de um carro e os levaram até o 15° Batalhão de

3
Polícia Militar em Duque de Caxias. Uma câmera que estava em uma escola próxima ao
batalhão registrou, às 4h30 da madrugada, o momento em que sete homens uniformizados com
a farda da PM e um à paisana chegaram em dois Gols da polícia. Os policiais retiraram os reféns
do carro, os assassinaram e ainda arremessaram a cabeça de um deles para dentro do pátio do
batalhão. A justificativa dada para o crime foi que essa seria uma represália à linha dura imposta
pelo comando do batalhão. A operação Navalha na Carne, chefiada pelo comandante Paulo
César Lopes, tinha afastado 60 PMs por desvio de conduta, principalmente, pela participação
em grupos de extermínio na região.

O assassinato dos dois homens só foi o início. No dia 31 de março, cinco policiais
militares se reuniram em um bar no centro de Nova Iguaçu, na Rua Dom Valmor, onde
passaram quatro horas bebendo e, segundo relatos de familiares das vítimas, fazendo uso de
cocaína. Um dos policiais saiu mais cedo do bar e os outros quatro entraram em um Gol prata.
O carro seguiu até a Via Dutra, aproximadamente às 20 horas, sentido São Paulo, pelo bairro
Esplanada. A partir de então passaram a fazer suas vítimas. Ora dentro do carro, ora fora dele,
assassinaram 29 pessoas nos municípios de Nova Iguaçu e Queimados. A noite pareceu um
filme de terror, a vítima mais nova tinha apenas 13 anos e a mais velha, 644.

Dois meses após a chacina, 11 policiais militares foram denunciados pelo Ministério
Público do estado do Rio pela participação no crime. Esses policiais foram apontados pela
prática de outros 25 crimes, como sequestro, homicídio e até extorsões contra caminhoneiros.
Alguns, no entanto, foram absolvidos por falta de provas, contudo coube a condenação à
Marcos Siqueira, José Augusto Moreira Felipe, Carlos Jorge Carvalho e Julio Cesar Amaral
pelos homicídios e à Fabiano Gonçalves por formação de quadrilha: ele foi o policial que saiu
do bar antes dos amigos iniciarem o massacre. Todos eles eram membros de grupos de

4
Como forma de homenagear a memória das vítimas, segue a listagem com seus nomes. André Luís de Almeida,
28, e Anderson Ferreira Gomes, 27, foram assassinados em 30 de março de 2005. Em 31 de março,
policiais/integrantes de grupo de extermínio tiraram a vida de: Raphael da Silva Couto, 17, Willian Pereira dos
Santos, 20; Luiz Carlos da Silva, 23, José Gomes de Oliveira, 39, Alessandro Moura Vieira, 15; Elizabeth Soares
Oliveira, 43, Felipe Carlos Soares de Oliveira, 13, Bruno da Silva Souza, 15, Jonas de Lima Silva, 15, Robson
Albino, 25, Manoel Domingos Lima Pereira, 53, Jaílton Vieira, 27, José Augusto Pereira da Silva, 38, Douglas
Brasil de Paula, 14 e Kênia Modesto Dias, 27; Leonardo da Silva Moreira, 18; César de Souza Penha, 30, Renato
Azevedo dos Santos, 32, Luís Jorge Barbosa Rodrigues, 27, Wagner Oliveira da Silva, 25, Márcio Joaquim
Martins, 26, Fábio Vasconcelos, 29, Marcelo Junior do Nascimento, 16, Marcus Vinícius Cipriano Andrade, 15,
Francisco José da Silva Neto, 34, Marco Aurélio Alves, 37 e João da Costa Magalhães, 52, Leonardo Felipe da
Silva, 15, e Calupe Florindo Ferreira, 64.

4
extermínio na região5, inclusive Carlos Jorge Carvalho já tinha sido reconhecido por uma
testemunha pela participação em outra chacina, quando assassinou seis jovens em Belford Roxo
no ano de 20016. Atualmente, os quatro cumprem suas penas em regime fechado, enquanto
Fabiano cumpriu sua pena de sete anos em reclusão. Um dos policiais que seria julgado, Gilmar
Simão, foi assassinado em 2006, após prestar seu depoimento poucos dias antes do seu
julgamento por participação na chacina.

Mulheres no Globo: a disputa pela memória de seus mortos

No primeiro dia após a chacina da Baixada, a única notícia sobre o caso se encontrava na
segunda edição do jornal O Globo, na página 19, na sessão de obituários do jornal, ela ainda
substituía a matéria sobre o assassinato dos dois homens no dia anterior, que estava na primeira
publicação. A notícia só ganhou destaque no dia 2 de abril, após a verificação dos antecedentes
criminais de todas as vítimas e da repercussão na imprensa internacional, como o The New York
Times e o Al-Jazeera. Mas, ao contrário de tantas outras chacinas na Baixada Fluminense que
sequer são noticiadas, a chacina de 2005 passou a ocupar uma posição considerável no veículo,
apesar de não ter total destaque, tendo em vista a preferência do jornal em noticiar a morte do
Papa João Paulo II, ocorrida em uma data próxima. Desse modo, as narrativas produzidas a
partir do acontecimento produziram fluxos de criação de uma memória do evento. De acordo
com Danielle Brasiliense (2006), “o jornalista constrói a memória tanto pela via das
lembranças, quanto do esquecimento” (BRASILIENSE, 2006, p.7).

Portanto, no dia 2 de abril de 2005, a chacina da Baixada ganhou destaque na capa do jornal.
No texto da chamada da manchete, podemos ler: “a intenção do grupo foi provocar o terror: só
duas das vítimas tinham antecedentes criminais; as outras 28 eram crianças, estudantes,
comerciantes e trabalhadores” (O GLOBO, 02/04/2005, p.1)7. Ou seja, a partir do momento em
que o veículo investiga os antecedentes dessas pessoas e verificam a inexistência de processos
criminais contra elas, as suas mortes se tornam, de fato, tragédias. Outro ponto interessante para
notar por meio das narrativas do jornal sobre o acontecimento, é a produção da memória sobre

5
Segundo a matéria publicada em 2007 pelo G1. Disponível em:
<http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL16215-5606,00-
DOIS+ANOS+APOS+CHACINA+NA+BAIXADA+FLUMINENSE+ACUSADOS+ESTAO+PRESOS.html>.
Além disso, geralmente quando esse tema é tratado pela Rede, os policiais são associados a grupos de extermínio.
6
De acordo com a matéria publicada pelo O Globo, em: <
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/389228/noticia.htm?sequence=1&isAllowed=y>
7
Logo no início, a quantidade de vítimas não era clara. Em alguns momentos são noticiadas 30 e em outros 28.
Mas após uma apuração mais extensa, 29 tornou-se a quantidade oficial de mortos.

5
o caso através das lembranças que o jornalista/veículo tem da Baixada Fluminense. Tendo em
vista, uma publicização ao longo dos anos do território como “faroeste fluminense”, devido à
prática de matadores e conflitos urbanos, além da exaltação midiática à “limpeza” promovida
pelos grupos de extermínio na região8, a memória produzida pelo O Globo nas notícias da
chacina leva em conta não só esse histórico, mas também a estigmatização da Baixada enquanto
“terra sem lei” e de seus moradores a partir de uma sujeição criminal9 estabelecida através das
décadas.

Figura 1: Capa do O Globo em 2 de abril de 2005. Fonte: (ESCURI, 2018, p. 55)

De acordo com Danielle Brasiliense (2006), a memória faz a mediação de fatos passados e
presentes. Segundo a autora, com base em Pollak, a memória está relacionada à identidade,
sendo uma complemento da outra. Sendo assim, as representações dos fatos são constituídas
por meio das lembranças e esquecimentos. Desse modo, levando em conta a sujeição criminal,
que é proposta por Misse (2010) como sendo potencializada pela desigualdade social, pela
privatização de recursos e pela dominação da identidade degradada sobre os papéis sociais do

8
O tema da Baixada Fluminense na impressa é tratado de forma profunda por Ana Lucia Enne (2002; 2004;
2005).
9
Utilização do termo com base em Michel Misse (2010)

6
outro, que passa a ser rotulado como “bandido”, as mães e familiares precisam realizar um
movimento no qual se baseia em questionar a produção da memória que relaciona a identidade
de jovens negros (em maioria), moradores da Baixada, a “bandidos”.

Dessa maneira, a partir dessa guinada de foco da cobertura da chacina, o veículo passa a
apresentar narrativas mediadas por mulheres familiares das vítimas. Ao longo do mês de abril,
o Globo publicou apenas três capas com fotos sobre a chacina, duas dessas fotos destacam o
sofrimento de mulheres pelos seus mortos, a outra imagem mostra o carro utilizado pelos PMs
mas não recebe tanto destaque na página. De acordo com Das (2020), existe um trabalho
cultural do luto associado às mulheres. Ainda que fazendo uma adaptação do contexto indiano
no qual Veena Das fala, o tema da mulher que encontra voz a partir do luto é bastante
significativo.

Sendo assim, de acordo com Adriana Vianna e Juliana Farias (2011), os familiares são
aqueles que possuem prerrogativa moral de falar pelos mortos, tendo os laços de sangue como
meios emotivos e simbólicos eficazes. No entanto, a figura materna tem certa autoridade moral
para falar sobre a vítima. Dessa maneira, também percebi a presença marcante de mães e
familiares do gênero feminino das vítimas da chacina nas entrevistas dadas ao jornal.
Geralmente, elas contavam sobre as memórias que tinham de seus filhos, os sonhos que tinham
e a humildade da vida que levavam. De acordo com Brasiliense (2006), a memória é um
esquema de trabalho indivíduo-social, no qual a memória do indivíduo está entrelaçada à
memória social, cujo o instrumento de assimilação é a linguagem. Dessa forma, contar sobre as
memórias de seus filhos a partir da vida honesta e digna que levavam é uma forma de sobrepor-
se às memórias historicamente constituídas de atribuição da marginalidade aos moradores da
Baixada.

Em duas matérias que analisei em Escuri (2018), os recursos citados são facilmente
percebidos. No dia 10 de abril de 2005, no caderno “Baixada” do Globo, foram contadas as
histórias de quatro jovens pelas mães. “Ele estava montando uma bicicleta, fazia serviços na
rua para ter dinheiro e comprar as peças”, conta na entrevista Suzane Xavier, mãe do menino
Douglas Brasil, já as aspas da mãe do Felipe Carlos revela seu orgulho pelo filho: “meu filho
só me dava alegria, pedia sempre para ir para a escola. Quando os irmãos se atrasavam, saía
correndo para ir na frente (...)”. Outra mãe relata que o sonho do filho era se tornar militar
quando crescesse e a última, mãe de um homem de 37 anos, conta que seu filho era trabalhador.
O mesmo formato de entrevistas é publicado no dia 12 de abril no Megazine, que na época era

7
uma revista vinculada a algumas edições do jornal. Nessa matéria as falas são mais
heterogêneas, Leonardo foi representado pela esposa de seu tio, Marcelo por sua namorada e
sua mãe, Bruno e Marcos Vinícius por suas respectivas mães e Jonas por sua esposa. Desse
modo, a memória contada sobre os mortos por mulheres é um recurso fundamental utilizado
nesse caso, como forma de legitimar as mortes e cobrar por justiça.

A caminhada de mães e familiares pela manutenção da memória

Todos os anos, o dia 31 de março é marcado por uma caminhada realizada no trajeto da
chacina. Inicialmente, o percurso se estendia de Nova Iguaçu a Queimados. No entanto, com o
passar dos anos, ficou restrito apenas a Nova Iguaçu, sendo percorridos a pé, aproximadamente,
6 km. No ano passado, pude acompanhar a caminhada. Era um domingo ensolarado por volta
de 11 horas, quando me encontrei com o grupo em uma das ruas que foi um dos pontos mais
marcados pela chacina. No total, 10 pessoas foram assassinadas apenas na Rua Gama, muitas
estavam em um bar, no qual meninos se reuniam para brincarem com o fliperama.

O grupo, que avançava a rua, reunia mães e familiares de vítimas desta chacina e de outras10,
além de apoiadores dos movimentos sociais. As pessoas iam seguindo um carro de som que
tocava músicas conhecidas pela militância, como composições de Chico Buarque e de Emicida.
Logo atrás, mães iam abrindo o caminho com um banner ilustrado com fotos de vítimas da
violência estatal, onde podia-se ler: “Rede de Mães e Familiares da Baixada: do luto à luta”.
Muitas mulheres vestiam blusas com a foto de seus filhos ou com a logo da Rede e seguravam
placas que se assemelham àquelas com nome de rua11, na qual estava escrito: “Nossos Mortos
têm Voz. (31.03.2005). Homenagem às 29 pessoas assassinadas na chacina da Baixada
Fluminense e às Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado”. Na ponta extrema, jovens
portavam banners, alguns pediam pelo não armamento de agentes socioeducativos e outros

10
Apesar de ser um ato temático pela chacina da Baixada, observei que muitas mulheres presentes não tiveram
seus familiares assassinados nesse evento. De acordo com Farias e Vianna (2011), existe uma importância dentro
desses coletivos em comparecer a esses eventos que envolvem outras mães e familiares “(...) cartazes e faixas
que podem ser levados por não familiares em atos coletivos. Falam-nos dessa dupla tessitura, em que os
compromissos que já existiam levam à rua e os compromissos feitos na rua abrem as portas das casas (...)”
(FARIAS; VIANNA, 2011, p.85).
11
A placa é feita em referência à de Marielle Franco, que foi quebrada em 2018, pelos então candidatos à deputado
estadual e federal, respectivamente, Rodrigo Amorim (PSL) e Daniel Silveira (PSL) em uma atitude criminosa
durante um comício do candidato, na época, à governador do Estado Wilson Witzel (PSC).

8
continham frases de efeito, como: “nossos mortos têm voz” e “nossa juventude negra tem voz”.
Muitas pessoas levavam lírios brancos.

Em cada local onde uma vítima da chacina tinha sido assassinada, o ato parava, uma das
mães discursava ao microfone e, em seguida, falava o nome da vítima. Posicionada em frente
ao bar, na Rua Gama, ela falou sobre o absurdo das mortes ocasionadas pela chacina e gritou o
nome das oito vítimas que estavam no local. Chamou-me atenção que, atrás da mãe que falava,
as outras mães que estavam segurando o banner na parte da frente do ato se posicionaram para
que o cartaz ficasse visível, outras familiares também se colocaram próximas segurando lírios
e a placa azul que homenageava os 29 mortos. Também notei uma visível pichação no muro
posterior às mulheres, que dizia “saudades Diego”. Logo após a chamada dos nomes,
apoiadores soltaram fogos. A caminhada continuava do mesmo modo até outro ponto, onde
mais uma vez a listagem dos nomes, os fogos e os lírios deixados na calçada pelas mães se
repetia.

A colocação estratégica das mulheres atrás da mãe que discursava, com uma faixa cujas fotos
de seus filhos estavam impressas, remete ao uso da fotografia enquanto instrumento de
lembrança que recria, simboliza e recupera uma presença que cria nexos entre a vida e a morte,
o que é explicável do que não é, como Ludmila Catela (2001) analisa. As fotos utilizadas pela
Rede, nos cartazes e nas blusas que vestem, também assumem o papel de corporificar a
violência de Estado.

O protesto terminou cerca de 2km a frente. O fim do ato foi protagonizado por mais uma
fala das mães. Logo após, jovens do Levante Popular da Juventude cantaram, fizeram um jogral
a respeito da violência na Baixada e encenaram a abordagem policial a negros, que seguiu
contando a história da escravidão no Brasil. Após esse momento, uma das mães pediu que todas
se reunissem para cantar. Dessa forma, a manifestação terminou com mulheres cantando
cantigas conhecidas de manifestações, como “pisa ligeiro” e “companheira me ajude”.

A participação do grupo de jovens na caminhada, que nem deve ter lembranças significativas
da chacina, faz-me lembrar sobre a transmissão de memória dos familiares mais velhos aos
mais novos nos casos de desaparecimento político durante os anos da ditadura militar. De
acordo com Catela (2001), cada integrante da família coloca em prática, na marcha das abuelas
e madres da Plaza de Mayo em 24 de março, seu papel de “guardião da memória”, transmitindo
e projetando as “obrigações morais” para com essa memória. Além disso, segundo Brasiliense

9
(2006), essas mobilizações - no contexto da violência estatal como conhecemos atualmente -
são inscritas em dois tipos de tensões: “de um lado responde a uma preocupação de
sociabilidade, de construção ou de afirmação de uma identidade e outro é de natureza
pedagógica, cuja preocupação é transmitir, fazer conhecer e incitar” (BRASILIENSE, 2006,
p.63). Dessa forma, insere-se enquanto uma mistura de sociabilidade e pedagogia.

Proponho a leitura de uma das falas feitas por uma das mães, para que possamos
compreender a função da caminhada nos aniversários da chacina em relação à produção e
manutenção da memória.

“Essa chacina de 2005 não foi o primeiro caso, não foram as primeiras vítimas desse
território, desse lugar. Tantas e tantas famílias aqui choraram já pelos seus filhos
assassinados, quantas? Quantas e quantas mães, tias, primas, irmãs, avós, pai, mãe,
irmão sofreram por ter um ente querido aqui assassinado. Então, nós estamos aqui
hoje não só pelas 29 vítimas que morreram entre Nova Iguaçu e Queimados no dia 31
de março. A gente está aqui por conta de todas as vítimas de violência que estão
morrendo todos os dias na Baixada Fluminense. A gente está aqui por conta de todas
as mães, irmãs, pais e todas as famílias que estão hoje sofrendo com seus filhos
perdidos. Nós estamos aqui hoje por vocês que estão ainda vivos, por seus filhos, por
seus netos, seus primos, seus sobrinhos. Estamos aqui hoje por conta dessa juventude
e de homens e mulheres que estão morrendo. A gente está aqui para dizer basta de
violência, basta de mortes, ninguém tem direito de tirar a vida de ninguém, a não ser
o nosso Criador. E assim a gente vai fazendo todos os anos, 31 de março, caia sábado,
domingo, segunda... estaremos aqui sempre enquanto estivermos vivas para relembrar
o que aconteceu aqui, para continuar lutando”.

Portanto, realizar todos os anos o mesmo trajeto não tem apenas uma ligação com as
performances do luto, mas também funciona a partir de uma mobilização para que por meio da
memória dos mortos, busque-se por justiça e luta para tornar a Baixada menos violenta. De
acordo com Brasiliense (2006), que estudou a produção de memória da chacina da Candelária
pelo jornal O Globo, os aniversários constroem o acontecimento mais uma vez e também
instaura a sua valoração coletiva e pública, tendo, no meu caso, as mães e familiares como
detentores desse poder. Desse modo, conforme a pesquisadora, nossas memórias não são feitas
apenas pelo o que lembramos, mas também por meio da história sobre pessoas e acontecimentos
que podem não nos ser diretos.

Ainda de acordo com Brasiliense (2006), tendo em base a teoria de Halbwachs, a


memória é uma forma de reconfiguração do passado e um trabalho de enquadrar o que
aconteceu por meio das demandas do presente. Desse modo, lembranças são mudadas
constantemente por contextos sociais que acionam e selecionam o passado para preencher o
presente e configurar o futuro. Dessa maneira, o futuro “se dá a partir de enquadramentos de
memórias individuais, (...), que são forjados a partir da memória coletiva, que é modificada no

10
tempo de acordo com as relações, negociações e lutas sociais” (BRASILIENSE, 2006, p.52-
53). Sendo assim, a memória sobre a chacina da Baixada e os 29 mortos torna-se
constantemente modificada e disputada por meio dos discursos dos atores políticos.

Por causa da pandemia de Covid-19, esse ano a caminhada foi cancelada. Dessa forma,
o blog da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Social, publicou uma série de matérias e
entrevistas sobre o tema da violência de Estado na Baixada, tendo também em vista que a última
semana de março foi decretada como Semana de Luta de Mães e Familiares Vítimas da
Violência, em Nova Iguaçu. Uma das entrevistas conta com a participação da irmã de uma das
vítimas da chacina de 2005. A entrevistadora, Fernanda Nunes, pergunta o motivo dela se
manter na luta mesmo após tantos anos, em resposta, a familiar diz: “a lembrança, a importância
de não cair no esquecimento. (...). O mais importante não é nem que o próximo não se esqueça.
Mas, que eu possa realmente relembrar o dia 31 de março, pois esse dia marcou a minha vida”.

Desse modo, por meio da frase dita pela irmã, percebo, como proposto por Brasiliense
(2006), o lugar da memória enquanto individual e social. Ao mesmo tempo em que é mais
importante para ela que a sua própria lembrança se mantenha viva, existe uma vontade, mesmo
que menor, de que a morte do irmão não seja esquecida pelo coletivo. Há um entrelace entre a
memória individual e coletiva. Mesmo que eu não tenha conhecido o irmão dela, eu sei, pelas
conversas que já tivemos, que Renato era um familiar afetuoso e trabalhador. Portanto, quando
penso do episódio da chacina da Baixada, tenho a memória de que homens e mulheres que
levavam uma vida de muita luta foram assassinados. De acordo com Pollack (apud Brasiliense,
2006), existem dois tipos de memória: uma relacionada a acontecimentos vividos
individualmente e outra vivida pela coletividade.

Considerações finais

Este trabalho buscou debater o tema da memória social e coletiva por meio das
estratégias utilizadas por mães e familiares de vítimas de violência do Estado na Baixada
Fluminense. Por meio do evento chacina da Baixada e seus desdobramentos, pude analisar o
modo no qual as memórias são articuladas como maneira de legitimar as mortes e estabelecer
um movimento que pauta por justiça. Portanto, propus perceber como atores e grupos sociais
se mobilizam na busca e na reformulação de identidades e reconhecimento, tendo a memória
enquanto instrumento político.

11
Dessa maneira, apresentei a questão da memória relacionada à chacina da Baixada em
dois planos. O primeiro foi na articulação das memórias singulares sobre seus filhos, como
meio de legitimar as mortes das 29 vítimas. O trabalho das mães e familiares em disputar a
memória coletiva e midiática de que o território da Baixada Fluminense é intrínseco à sujeição
criminal, busca uma maneira de provar que seus filhos não eram “bandidos”. Dessa forma, de
acordo com Vianna e Farias (2011), elas tentam inserir os filhos no lugar daqueles que têm o
direito de serem protegidos pelo Estado.

Sendo assim, segundo Brasiliense (2006), “as relações de memória entre os acontecimentos
devem ser investigadas a partir das narrativas existentes sobre estes. Por isso, cabe-nos aqui
pensar também na violência naturalizada pelo senso comum” (BRASILIENSE, 2006, p.53).
Dessa forma, além da importância em perceber como um jornal narra um acontecimento
violento, cabe buscar o processo de atualização da memória. Portanto, se os primeiros dias após
a chacina foram marcados pela ausência de importância no jornal e a verificação dos
antecedentes criminais, nas datas subsequentes pudemos observar uma rearticulação dessa
configuração.

Já a segunda proposta, visou perceber como opera a manutenção da memória da chacina


durante a caminhada. Sendo assim, os recursos utilizados durante o ato, como a chamada dos
nomes das vítimas, o trajeto percorrido, as flores colocadas onde as pessoas foram assassinadas
e as fotografias levadas no banner e nas camisas, configuram um método de manter a memória
do evento e das vítimas viva. Além disso, também foi interessante analisar a detenção do poder
pelas mães e familiares em recriar o acontecimento e produzir uma valoração coletiva e pública,
como forma também de propor uma luta por justiça e redução da violência no contexto vivido,
através de uma pedagogia e sociabilidade pela memória.

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