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PUTA LIVRO
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COLETIVO

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Studies/Centre for Feminist

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Research - York University
LaPeSPI - NEPP-DH/UFRJ
Observatório da Prostituição -
LeMetro/IFCS e IPPUR/UFRJ

PUTA LIVRO
Poplab - UNIRIO

FINANCIAMENTO
FAPERJ
Pesquisa: Os impactos dos megaeventos
esportivos nos mercados do sexo no Rio
de Janeiro (E-26/2010.137/2016)
Pesquisadora responsável:
Soraya Silveira Simões

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


(CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Puta livro [livro eletrônico] / (orgs.) Angela


Donini...[et al.]. -- Rio de Janeiro :
Ed. da Autora, 2022.
PDF
Vários autores.
Outros organizadores: Laura Murray, Naara Maritza,
Natânia Lopes, Patrícia Rosa.
Bibliografia.
ISBN 978-65-00-57281-0
1. Artigos - Coletâneas 2. Coletivo Puta Davida
3. Feminismo - Brasil 4. Gênero e sexualidade
5. Imagens 6. Organização social e política
7. Prostituição 8. Textos - Coletâneas
I. Donini, Angela. II. Murray, Laura. III. Maritza,
Naara. IV. Lopes, Natânia. V. Rosa, Patrícia.

22-136669 CDD-B869.8

Índices para catálogo sistemático:


1. Miscelânea : Literatura brasileira B869.8 Henrique
Ribeiro Soares - Bibliotecário - CRB-8/9314

Coletivo Puta Davida


Instagram: @coletivoputadavida
coletivoputadavida@gmail.com
JOÃO SOARES PENA

332
“JOGA PEDRA NA

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GENI”: política,
intervenção urbana
e percepção da
prostituição em
Amsterdã

Notas iniciais

A prostituição tem sido, há bastante


tempo, um dos elementos mais marcantes de
Amsterdã. Sua importância tem relação não
apenas com a reputação que a cidade possui
no contexto internacional, mas também
com questões que marcam a dinâmica da
cidade e, mais amplamente, com discussões
políticas na Holanda. Embora a prostituição
ocorra de distintas formas, a mais famosa
e característica da cidade é a que ocorre
no Red Light District, onde prostitutas se
posicionam em vitrines para atrair e atender
seus clientes (Figura 1). Esse aspecto confere
a Amsterdã um lugar de destaque entre as
capitais da Europa Ocidental.

Figura 1: Vitrines no Red Light District


Fonte: Acervo do autor, 2018
333
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O Red Light District está localizado no

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centro histórico da cidade, perto da área
portuária e da Amsterdam Centraal, principal
estação de transporte intermodal da cidade.
Essa é uma área bastante diversa, contando
com as vitrines de prostituição, sexshops,
coffeeshops, bares, boates, teatros de sexo
ao vivo, residências, instituições de educação
etc. É, por isso, um dos locais mais visitados
pelos turistas, mas também tem sido palco de
conflitos ao longo do tempo, pois a presença
da prostituição não é um ponto pacífico.
O lugar da prostituição nessa cidade
sempre esteve em disputa. Durante o
medievo, houve momentos em que essa
atividade foi localizada fora dos muros
da cidade, onde se poderia trabalhar
sem grandes problemas. Mas ao longo
do tempo, a prostituição se estabeleceu
nas proximidades do porto, onde se
concentravam os marinheiros e viajantes.
Recentemente, alguns projetos têm sido
implementados no sentido de remover as
vitrines de prostituição do Red Light District,
mesmo sendo esse um trabalho devidamente
regulamentado em todo o país desde o ano
2000 (PENA, 2019; 2020).
Neste texto discutimos a prostituição
em Amsterdã a partir das políticas de
prostituição implementadas para regular a
atividade, bem como as críticas e os limites
da regulamentação em vigor desde 2000. Em
seguida analisamos as mudanças na geografia
da prostituição no Red Light District no

334
bojo de um projeto de “renovação urbana”
chamado Plano 1012. Além disso, discutimos
a forma como essa atividade tem sido
percebida no debate público, variando entre
criminalização, reconhecimento enquanto

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trabalho e causa dos problemas urbanos.

Políticas de prostituição e seus limites

A regulamentação da prostituição em
2000 na Holanda foi um acontecimento
muito emblemático, passando a ser uma
referência no movimento de trabalhadoras

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sexuais. Entretanto, antes de detalharmos
essa regulamentação, é importante assinalar
outras abordagens adotadas anteriormente
tanto em âmbito local quanto nacional. As
distintas formas de regulação e controle
das prostitutas decorrem das formas como
a prostituição foi percebida ao longo dos
séculos, mas é preciso dizer que essa
trajetória não é linear ou evolutiva, ao
contrário, é marcada por avanços, rupturas,
contradições e retrocessos.
Em 1413 a prostituição foi inserida na
legislação de Amsterdã, reconhecendo-a
como uma atividade importante para a
dinâmica da cidade e a economia local. Esta
perspectiva era pautada pela ideia de que
a prostituição era um “mal necessário”,
sendo tolerada pela Igreja. Era uma forma
de proteger as jovens virgens e puras dos
desejos dos homens, que podiam satisfazê-
los com as prostitutas, consideradas impuras,
“mulheres da vida”. Nesse período, as
autoridades tentaram mantê-las fora dos
muros da cidade, sendo esta uma forma de
evitar sua visibilidade cotidiana. Mais tarde,
com a Reforma Protestante e o avanço do
Calvinismo, a atividade foi considerada ilegal,
mas não foi possível bani-la. Então, entre os
séculos XVI e XVIII as autoridades buscaram
delimitar espacialmente a prostituição e
controlar de forma rigorosa o funcionamento
dos bordéis.
Na célebre canção “Geni e o Zepelim”,

335
de Chico Buarque1, apesar de muitos fazerem
uso dos serviços sexuais de Geni, ela é
motivo de execração pública na cidade. O
fato de que “ela dá para qualquer um” e
satisfaz os desejos sexuais dos errantes,

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cegos, retirantes, detentos, lazarentos
e moleques do internato a torna alvo da
violência de uma sociedade moralista. Esta
mesma cidade não hesita em lhe pedir que
se entregue ao comandante do Zepelim
para salvar a todos da destruição. Mesmo
assim, a cidade continua a cantoria: “Joga
pedra na Geni! Joga bosta na Geni! Ela

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é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!”.
Essa é a perspectiva de que a prostituição
seria um “mal necessário”, uma vez que é
utilizada por muitos e desempenha um papel
econômico importante, mas ainda assim
sofre perseguição, repressão, restrição de
localização no espaço urbano e cerceamento
de direitos.
Durante o século XIX, a Holanda
sofreu uma ocupação pela França, refletindo
na gestão da prostituição. Pela primeira vez
no país, a prostituição foi regulamentada
seguindo o modelo definido pelo higienista
francês Alexandre Parent-Duchâtelet. Nesse
sentido, todas as prostitutas eram obrigadas
a fazer exames médicos regularmente, mas a
preocupação era com a saúde dos soldados
franceses, ou seja, era uma medida para
evitar que a força armada adquirisse alguma
infecção sexualmente transmissível (IST). Com
o fim da ocupação francesa, Amsterdã deixou
de exigir os exames médicos.
A partir de meados do século XIX
surgiram movimentos contra a prostituição,
culminando no fechamento dos bordéis de
Amsterdã no final desse mesmo século e,

1
Cf.: Canção “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque,
disponível em: <https://www.letras.mus.br/chico-
buarque/77259/>. Acesso em: 20 abr. 2021.
em 1911, na proibição de seu funcionamento

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em todo o país. Nessa perspectiva
abolicionista, as prostitutas eram vistas
como vítimas, já os donos de bordéis,
ou quem facilitasse a prostituição, eram
considerados criminosos. Contudo, essa

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proibição não significou efetivamente o fim
dos bordéis, mas um regime de “tolerância
regulada”, em outras palavras, uma gestão
das ilegalidades (FOUCAULT, 1999). Isto
significa que o município fazia vistas grossas
ao funcionamento dos bordéis, desde que
eles não causassem transtornos. Entretanto,
o município não deixava de efetuar um

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controle, inclusive buscando concentrar essa
atividade em áreas específicas (PENA, 2019).
Durante todo o século XX, a “tolerância
regulada” foi a forma de gestão pública da
prostituição. Contudo, a partir dos anos 1970
uma discussão sobre a regulamentação foi
iniciada, sendo esta uma reivindicação não
apenas das prostitutas, mas também dos
municípios holandeses. Havia, portanto, um
entendimento e uma nítida distinção entre
a exploração sexual (quando há coerção,
por exemplo) e a prostituição, exercida de
forma voluntária, esta última devendo ser
considerada um trabalho como qualquer
outro, assegurando-se direitos sociais
e trabalhistas às profissionais do sexo.
Esse movimento contou com o apoio da
Associação dos Municípios Holandeses
(Vereniging van Nederlandse Gemeenten –
VNG) e de grupos como o movimento em
defesa dos direitos das prostitutas, De Rode
Draad (Fio Vermelho, em tradução livre), e
a Fundação contra o Tráfico de Mulheres
(Stichting tegen Vrouwenhandel), os quais
foram as principais forças no lobby feminista
(OUTSHOORN, 2012).
O movimento feminista, como qualquer
outro, não é homogêneo, então apenas
uma parte dele era aliada do movimento
de prostitutas. Na véspera do Primeiro
Congresso Mundial de Prostitutas, em
1985, um grupo de feministas criou o De
Roze Draad (Fio Rosa, em tradução livre),

337
como uma ponte entre o movimento de
prostitutas e o de mulheres (não prostitutas).
Uma de suas fundadoras foi a professora,
pesquisadora e ativista Gail Pheterson, que
criou grupos aliados de mulheres tanto

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nos Estados Unidos quanto na Holanda.
Esse grupo buscava dar suporte ao De
Rode Draad, fomentar discussões sobre
a prostituição entre as feministas e atuar
no monitoramento de políticas municipais,
além de escrever cartas e artigos em jornais.
Dessa maneira, o grupo levava a um público
amplo discussões sobre questões caras

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a todas as mulheres, prostitutas ou não,
como a autodeterminação, a independência
financeira e a proteção contra abusos sexuais
(SAX, 1987).
Contando com o apoio de grupos
feministas a favor da prostituição, o debate
ganhou força na arena política nos anos 1990.
Nesta década, houve um intenso debate com
grupos conservadores de um lado, contra
a regulamentação, e grupos progressistas
de outro, defendendo o reconhecimento
da prostituição como trabalho (PENA,
2019; 2020). Com a mudança da conjuntura
política, em 1997 foi proposta uma lei que
regulamentaria a prostituição e permitiria o
funcionamento dos bordéis. O projeto de
lei contou com o apoio de mais de 70% da
população, sendo aprovada em 1999, com
efeito a partir do ano 2000 (OUTSHOORN,
2012).
A nova lei reorganizou completamente
o setor da prostituição, com exigências a
serem cumpridas tanto pelos bordéis quanto
pelas prostitutas. As empresas passaram a
necessitar de uma licença de funcionamento
concedida pelo município enquanto as
prostitutas precisaram ter que se registrar
na Câmara do Comércio para atuarem nas
vitrines. Elas trabalham como profissionais
autônomas, o que significa que os bordéis
apenas alugam as vitrines, mas não mantém
qualquer relação trabalhista com as mesmas.
Cabe aos municípios estabelecer as zonas

338
onde a prostituição pode ser exercida, mas a
legislação também permite que um município
possa proibir o funcionamento de bordéis
em seu território (OUTSHOORN, 2012).
Esta prerrogativa dá margem à proibição

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da atividade em determinada cidade em
razão de questões morais, evidenciando um
tratamento distinto em comparação com
outros setores e profissionais.
Embora seja um marco importante
e ainda uma referência, a política de
prostituição holandesa tem sido alvo de
críticas de trabalhadoras sexuais e de

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ativistas que questionam a forma como essa
política foi desenhada e implementada. Uma
ativista e trabalhadora sexual relatou que
nos anos 1990 essa era a alternativa que
elas vislumbravam, mas hoje em dia acredita
que a descriminalização, como ocorreu
na Nova Zelândia, poderia ser muito mais
benéfica para o setor (PENA, 2020). Embora
a regulamentação tenha reconhecido a
prostituição enquanto trabalho e garantido
às trabalhadoras sexuais um lugar no sistema
formal, a maneira como são tratadas e
as exigências impostas evidenciam que a
prostituição não é um trabalho como outro
qualquer. Só podem exercer a prostituição,
por exemplo, pessoas oriundas de países
da União Europeia (UE), uma barreira que
não existe para profissionais estrangeiros de
outros setores que atuam de maneira formal
no país.
A negativa para trabalhadoras sexuais
oriundas de fora da UE tem relação com um
uma ideia que retira das mulheres a agência
sobre suas vidas e seus corpos. Assim,
considera-se que elas, necessariamente,
seriam vítimas de tráfico de pessoas. A
impossibilidade de atuar formalmente, aliada
ao estigma que ronda a prostituição, coloca
muitas trabalhadoras sexuais em situação de
vulnerabilidade, uma vez que só lhes resta a
ilegalidade. A precariedade em que muitas
delas ainda se encontram fica flagrante
nos dias atuais em que o mundo enfrenta

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a pandemia da Covid-19, além de que as
medidas tomadas pelo governo tem afetado
diretamente a situação das trabalhadoras
sexuais.
No Red Light District de Amsterdã as

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vitrines foram fechadas e o governo ordenou
que as trabalhadoras sexuais e outros
tantos profissionais parassem de trabalhar.
Aquelas que atuam sob um contrato de
trabalho podem estar na mesma situação
que outros trabalhadores: em isolamento
social e possuir algumas garantias; aquelas
que são registradas como autônomas

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poderiam ter um suporte financeiro
prometido pelo governo holandês de até
cerca de um salário mínimo (€ 1.500) por três
meses, independentemente de que tenha
regularmente uma renda maior. Já quem
está na informalidade não tem acesso a essa
assistência e, conforme tem sido noticiado,
tem atendido seus clientes em casa para ter
alguma renda2 (CRISP, 2020; NETHERLANDS,
2020; SCHAPS, 2020).
No caso dos profissionais autônomos,
o auxílio acima referido deve ser solicitado
à municipalidade onde residem, desde
que atendam a vários critérios, entre eles
possuírem a nacionalidade holandesa
(NETHERLANDS, s.d.). Isto significa
dizer que as prostitutas que atuam nas
vitrines de forma autônoma e que não são
holandesas não podem ter acesso a esse
suporte financeiro, além das que estão na
informalidade (DUTCH NEWS, 2020). Desse
modo, embora atuem formalmente e paguem
os devidos impostos, há uma assimetria

2
Foi também criado o Fundo Holandês de Emergência
(Dutch Emergency Fund), por iniciativa da trabalhadora
sexual e ativista Hella Dee, para ajudar financeiramente
aquelas trabalhadoras sexuais que não tenham renda fixa.
Trata-se de uma campanha de financiamento coletivo em
um site na internet onde cada pessoa pode fazer uma
doação a partir de € 10. Disponível em: <https://www.
dutchemergencyfund.nl/>. Acesso em: 04 abr. 2020.
em termos de acesso a essa assistência em

340
razão da nacionalidade. Isto também aponta
os limites da regulamentação, que deixa as
trabalhadoras sexuais não holandesas em
situação de vulnerabilidade caso não possam
trabalhar por certo período em razão de uma

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doença ou outro impedimento.

O lugar da prostituição na cidade:


mudanças recentes no Red Light District

Alguns anos após a legalização dos


bordéis e a regulamentação da prostituição,
a situação das prostitutas na cidade de

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Amsterdã foi colocada em cheque. Em
meados dos anos 2000 emergiu um debate
sobre tráfico de pessoas, exploração sexual e
a criminalidade no Red Light District. A mídia
passou a disseminar um discurso em que as
prostitutas eram vítimas de organizações
criminosas, abordagem distinta daquela que
marcou os anos 1990, quando o debate era
centrado na legitimidade do trabalho sexual.
Então, houve uma mudança na percepção
sobre a prostituição e, consequentemente,
sobre as prostitutas. Esse discurso esteve em
voga nos anos 1980, quando a prostituição
foi considerada a responsável pelos males do
bairro, sobretudo em relação à presença de
heroína.
Com a criminalização do entorno dessa
atividade, criou-se um ambiente favorável
para a proposição de uma limpeza do bairro,
uma tentativa de reconquistar o Red Light
District e devolvê-lo aos moradores da
cidade. A intenção era expulsar Geni. Assim,
em 2007 foi lançado o Plano 1012 sob a
justificativa do combate à criminalidade, com
ênfase no tráfico de mulheres (AALBERS,
2016). Esse plano alterou sobremaneira
não só a geografia da prostituição, mas a
dinâmica de toda a indústria do sexo e do
bairro em si. O plano visava reposicionar
Amsterdã no mercado internacional de
turismo, diminuindo a importância da
prostituição para a imagem da cidade
(PENA, 2021). Apesar de alegar o combate à

341
criminalidade, os objetivos do plano visavam
muito mais a melhoria das qualidades do
bairro e dos serviços oferecidos, bem como a
atração de investidores (PENA, 2020).
Para Aalbers (2016), esse projeto

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evidencia uma mudança na percepção local
acerca da prostituição, cuja regulamentação
fora considerada emancipatória, liberal e
progressista. Então, o trabalho sexual passou
a ser visto como imoral, orientado para o
mercado, relacionado à criminalidade e,
portanto, indesejado. Geni voltou a ser vista
como abjeta. Recentemente foi lançada uma

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campanha chamada “Eu não tenho um preço”
(Ik ben onbetaalbaar) (HOLLIGAN, 2019),
que, segundo o site da iniciativa, já conta com
mais de 50.000 assinaturas.3 A campanha,
lançada por um movimento de jovens
chamado Exxpose, visa à adoção do modelo
nórdico, ou modelo sueco, que criminaliza
clientes e terceiros, enquanto a prostituição
em si continua sendo legal (ÖSTERGREN,
2018). Nesta perspectiva, a prostituta é vista
como uma vítima, negando-lhe a agência
sobre sua vida e seu corpo.
O turismo, tão presente no Red Light
District, também era um dos focos do plano,
mas buscava-se a mudança do perfil de
visitantes: em vez daqueles que buscavam
“sexo, drogas e rock ’n’ roll”, o Plano 1012
objetivava atrair visitantes mais abastados.
Para tanto, foi proposto o fechamento de
vitrines de prostituição e sua substituição por
galerias, loja, cafés, restaurantes etc.: o típico
modelo de gentrificação. O fechamento das
vitrines também foi apontado como solução
para o suposto tráfico de mulheres, mas a
simples retirada das vitrines não constitui
uma medida séria e efetiva para enfrentar
esse problema. Assim, o que balizava essa
proposta era o interesse em proporcionar
um ambiente favorável para investimentos

3
Cf.: Campanha “Eu não tenho um preço”. Disponível em:
<https://ikbenonbetaalbaar.nl/>. Acesso em: 19 abr. 2021.
privados, além de uma mudança na paisagem

342
urbana.
Esse plano enfrentou a resistência das
trabalhadoras sexuais que diversas vezes
protestaram contra o fechamento das
vitrines. Apesar de o Plano 1012 ter sido,

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supostamente, participativo, não foram
ouvidos integrantes da indústria do sexo,
como os donos de bordéis e as trabalhadoras
sexuais, os quais foram os mais afetados
pelas intervenções. Já próximo ao fim da
implementação do Plano 1012, foi realizado
um grande protesto em 09 de abril de 2015
contra o fechamento das vitrines. Centenas

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de trabalhadoras sexuais saíram às ruas para
denunciar a perda de seus locais de trabalho
e questionaram ao então prefeito Eberhard
Edzard van der Laan sobre o destino
daquelas que não teriam onde trabalhar.
Apesar de não terem sido ouvidas
quando da elaboração do Plano 1012, isto
não significa que as trabalhadoras sexuais
aceitaram passivamente a redução do número
de vitrines. Desde 2014 a trabalhadora
sexual e ativista Felicia Anna tem relatado
em seu blog “Behind The Red Light District”4
o que tem sido feito no bairro em termos
de intervenções e políticas públicas, mas
também sobre o debate público de questões
vinculadas ao trabalho sexual no país.
Como resposta às reivindicações de 2015,
o prefeito resolveu apoiar a abertura de
um bordel autogerido por trabalhadoras
sexuais chamado My Red Light. Localizado
no principal canal do bairro, o referido bordel
está em operação desde 2017 (VAN DER
ZEE, 2017).
Se em 2015 o prefeito Eberhard
Edzard van der Laan foi confrontado pelas
trabalhadoras sexuais, em 2017 ele mesmo
condecorou a ex-trabalhadora sexual e

4
O blog Behind the Red Light District está disponível em:
<http://behindtheredlightdistrict.blogspot.com/>. Acesso
em: 14 jul.2021.
ativista Mariska Majoor com o título de

343
cavaleira da Ordem Real de Orange-Nassau
(PROUD NEWS, 2017). Esta honraria é
concedida a pessoas que tenham prestado
relevantes serviços à sociedade, ao Estado ou
à Casa Real holandesa. Esse reconhecimento

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pelos 20 anos de ativismo de Mariska Majoor
pelos direitos das trabalhadoras sexuais
é emblemático, pois reitera a importância
da garantia de direitos a esse grupo de
trabalhadoras. Entre esses direitos está a
salvaguarda dos seus locais de trabalho que,
naquele momento, já haviam sido reduzidos
significativamente, em virtude do fechamento

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das vitrines no bojo do Plano 1012, e que
atualmente continuam em risco.
Voltando às mudanças ocorridas no
bairro, a prostituição – considerada um
elemento indesejado na paisagem urbana
– foi concentrada em algumas ruas do
Red Light District, deixando outras áreas
livres para os novos serviços e comércios
almejados. Entre 2007 e 2018 foram fechadas
112 vitrines, o que equivale a 1/3 do total
existente, além de coffeeshops, sexshops,
entre outros. O encolhimento da área de
prostituição provocou uma superlotação,
uma vez que os turistas se concentram
onde há bares, vitrines, sexshops, teatros
de sexo ao vivo etc. O número excessivo de
visitantes em uma pequena parte do bairro
passou a gerar incômodos aos cerca de
8.500 moradores. Soma-se à concentração
da prostituição a abertura de diversos
serviços com foco no turismo e, por outro
lado, a saída de comércios que atendiam às
necessidades dos residentes (PENA, 2020).
Apesar de ter tomado algumas medidas
para tentar dirimir os impactos do turismo
a partir de 2017, como a não autorização
de novos restaurantes, lanchonetes, lojas
de souvenir etc., a prefeitura não assumiu
a responsabilidade pelos problemas. O
aumento do número de turistas é uma
consequência das intervenções do Plano
1012, além de outras iniciativas de marketing
urbano. Entretanto, nos últimos anos, a

344
prostituição foi considerada a razão para o
crescimento do turismo e os decorrentes
transtornos enfrentados pelos moradores.
Contudo, vale ressaltar que os investimentos
e intervenções a partir de 2007 buscavam

PUTA LIVRO
diminuir a importância da prostituição
no bairro e na imagem da cidade e não o
contrário.
Se nos anos 1980 havia um discurso
que vinculava a prostituição aos problemas
ligados a violência e drogas, nos anos 2000
ela foi considerada um elemento central no
contexto de criminalidade que assolava o

JOÃO SOARES PENA


Red Light District. Em ambos os momentos
estamos falando de problemas que não são
provocados pelas prostitutas, são problemas
sociais que devem ser abordados de forma
séria, com medidas que visem sua efetiva
superação. Para combater o tráfico de
mulheres, por exemplo, não é preciso fechar
vitrines, mas realizar investigações e punir os
culpados. Acontece que já havia um interesse
por investimentos privados no bairro, então
era necessário abrir caminho para novos
negócios, o que foi facilitado pela redução da
indústria do sexo.
Em continuidade à intenção de remover
a prostituição do Red Light District, a
prefeitura anunciou em 2020 o plano de
criar um “centro erótico” fora do centro
da cidade, para onde parte substancial das
vitrines remanescentes deve ser transferida.
Isto foi proposto “após anos de discussão
sobre como reduzir o barulho e os incômodos
provocados pelo turismo sexual no Red Light
District” (NL TIMES, 2020, tradução livre).
Embora o projeto ainda esteja em fase de
concepção, já tem enfrentado a resistência
das trabalhadoras sexuais que não desejam
deixar o bairro. Essa é mais uma pedra
atirada contra Geni!
Conclusão

345
Apesar de emblemática e importante,
a política holandesa de legalização dos
bordéis e regulamentação da prostituição, em
vigor desde o ano 2000, possui fragilidades

PUTA LIVRO
que colocam em vulnerabilidade muitas
trabalhadoras sexuais. Isto já ocorria, mas
ficou ainda mais evidente durante a pandemia
de Covid-19. Ao longo do tempo houve
diversas mudanças na forma como essa
atividade era encarada pelo Estado, mas
poucos anos após a regulamentação do setor
houve em Amsterdã um debate que deslocou

JOÃO SOARES PENA


a questão para o âmbito da criminalidade.
Isso abriu espaço para uma mudança na
percepção sobre o trabalho sexual em que
as prostitutas passaram a ser retratadas mais
como vítimas do que como trabalhadoras.
Em Amsterdã, a prostituição tem
sido usada como bode expiatório para (1)
problemas sociais muito mais complexos;
(2) justificar a desejada higienização social
no centro da cidade; e (3) realizar uma
“renovação urbana” com foco em um público
mais abastado e em negócios da indústria
criativa. Isto acontece porque, mesmo na
Holanda, ainda existe um grande estigma em
relação à prostituição que, como foi mostrado
anteriormente, não é socialmente aceita,
mas historicamente tolerada. Assim como
acontece com Geni, que após ter salvado
a todos e todas foi apedrejada pela cidade
na primeira oportunidade, em Amsterdã
as prostitutas são historicamente alvos de
repressão, remoção, estigmatização, exclusão
etc. As intervenções urbanas já realizadas e
propostas mostram que, a despeito de sua
importância histórica para a cidade, não se
deseja mais que a prostituição tenha um lugar
central e de grande visibilidade no tecido
urbano.
Referências

346
AALBERS, Manuel. Amsterdam. In: CHENG, Tsaiher (ed.).
Red Light City. Montreal/Amsterdã: The Architecture
Observer, 2016.

CRISP, James. Netherlands orders escorts to stop work

PUTA LIVRO
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