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Julia Murachovsky

IEL II (10-12h)
nº usp 11247653
Dão-Lalalão: a mistura nas narrativas modernas

1. Sobre Guimarães Rosa e suas peculiaridades

Guimarães Rosa, e sua escrita sobre o sertão brasileiro, vieram para complicar o
quadro do romance moderno, uma vez que o escritor não se encaixa em nenhuma das duas
vertentes que integravam a literatura brasileira no pós-guerra: o romance regionalista,
engajado socialmente e inclinado ao comunismo, e o romance espiritualista cristão. O autor
elabora uma mescla desses dois estilos, elevando o romance regionalista à sua excelência
por meio da retomada de um viés realista em termos próprios.
A visão ​rosiana do mundo, formada por dois aspectos aparentemente incompatíveis,
agrega à perspectiva racionalista e desencantada um teor mítico, advindo da cultura popular
assimilada em suas obras. Esse conteúdo, que conta com a combinação de duas vertentes
dicotômicas, não poderia deixar de ser acompanhado por uma linguagem também
misturada, de modo que se estabeleça uma ​relação orgânica entre a forma de contar e a
matéria de que se trata1: uma linguagem misturada para representar um mundo misturado.

[...] a linguagem é misturadíssima. E denuncia uma poderosa vontade de estilo


(explicitada pelo próprio Rosa) de tudo moldar ou remoldar conforme a necessidade de
expressão, que não se satisfaz jamais com o código expressivo herdado, o lugar-comum, a
forma tradicional.2

Para além de veículo de comunicação, a língua é, para Rosa, ferramenta de criação.


Suas passagens são profundamente influenciadas pela oralidade, mas também
impregnadas de neologismos e estrangeirismos, além de retomadas de elementos do
português arcaico. Há uma busca pela reativação de toda a potência que a língua pode
oferecer, o que tem como resultado a criação de um idioleto próprio, que não deve ser visto
como ornamental, mas como essencial para captar a totalidade de sua obra.
2. Análise de Dão-Lalalão

A história de Dão-Lalalão, apreendida a partir da consciência da personagem


Soropita, tem a sua trama organizada a partir de suas dúvidas, receios, e expectativas. Por
meio da narração onisciente seletiva e emprego do monólogo interior (ambos recursos que

1
Davi Arrigucci, em O mundo misturado: Romance e experiência em Guimarães Rosa
2
Idem
buscam captar o fluxo mental) mergulhamos na sua intimidade, o que resulta em uma
dissolução das barreiras temporais e espaciais.
A narrativa gira em torno de uma relação amorosa entre um ex-jagunço e uma
ex-prostituta, respectivamente Soropita e Doralda, que vivem em uma espécie de pacto de
silêncio em que não se fala sobre suas vivências passadas. Eles reinventam as suas vidas
reprimindo suas memórias e instalando-se em um lugar remoto: o Ão (onde a renúncia ao
passado pode persistir sem maiores empecilhos). O ex-matador (responsável por ir até um
local mais abastecido em busca de víveres para ele e sua mulher) escapa dos limites desse
mundo esterilizado para o mundo exterior, onde há reminiscências que despertam
lembranças doloridas.
A narração começa ​in media res, em um de seus trajetos de volta para o Ão, durante
o qual Soropita pode esquecer-se de guiar o cavalo (que já conhece o trajeto) e deixar-se
imergir em seus pensamentos: ​[...] não punha maior atenção nas coisas de todo tempo: o
campo, a concha do céu, o gado nos pastos — os canaviais, o milho maduro [...] — o
deslim de um riacho. Só cismoso, ia entrado em si, em meio-sonhada ruminação. Sem dela
precisar de desentreter-se, amparava o cavalo com firmeza de rédea, nas descidas,
governando-o nos trechos de fofo chão arenoso, e bambeando para ceder à vontade do
animal, ladeira acima, ou nos embrejados e estivados, e naquelas passagens sobre clara
pedra escorregosa, que as ferraduras gastam em mil anos. Sua alma, sua calma, Soropita
fluía rígido num devaneio, uniforme.3
A princípio, Soropita detém-se, majoritariamente, em pensamentos sobre Doralda e
sua ânsia por chegar em casa, como se só lá se sentisse realizado, e apenas com o seu
amor ficasse tranquilo e seguro de si, conforme notamos no trecho seguinte: ​Chegava a
casa, abria a cancela, chegava à casa, desapeava do cavalo, chegava em casa. A
felicidade é o cheio de um copo de se beber meio-por-meio; Doralda o esperava.4
Contudo, as lembranças de seu passado, aos poucos, invadem a sua consciência. É
a partir destes fragmentos de memória que tomamos conhecimento do passado da
personagem, que aparece na forma de retrospectos, veiculados por um discurso lacunar,
elíptico, que fornece-nos parcialidades para compor uma totalidade complexa. As memórias
evocadas e a representação desse fenômeno pelo emprego do discurso indireto livre, fazem
com que haja um entrelaçamento entre [...] ​presente e passado, ato e memória, fato e
devaneio, entre a materialidade dos acontecimentos e ressonância deles interior da
personagem principal, que se pergunta incessantemente pela possibilidade do passado de
Doralda ser revelado 5.

3
Guimarães Rosa em Noites do Sertão
4
Idem
5
Clarissa Catarina Barletta Marchelli, em ​A noção de erro em Corpo de Baile, de Guimarães Rosa:
uma estratégia poética
As reflexões de Soropita sobrepõem-se ao momento narrado, de modo que a
narrativa não deixa de avançar, mas fica em segundo plano enquanto detemos-nos nos
pensamentos insurgentes na mente da personagem. Ficamos em um estado semelhante ao
do protagonista, para quem o mundo também vinha filtrado sorrateiro, furtivo, só em seus
simples riscos de existível os ruídos e cheiros agrestes entravam para a alma de seu
recordar 6. O
​ u seja, o mundo exterior só chega à Soropita na forma de estímulos que fazem
reviver o passado.
O espaço nos é apresentado por meio de uma ambientação reflexa, isto é, tomamos
conhecimento do ambiente por meio dos deslocamentos da personagem. Por conta do foco
narrativo, há uma fluidez no tratamento espacial: as linhas que delimitam o que é externo e
interno são diluídas, de modo que a paisagem e eventos exteriores penetram e repercutem
na psique da personagem (muitas vezes provocando reflexões angustiantes sobre seu
passado ou paranóias delirantes em relação ao seu futuro).
Temos, dessa forma, uma intercalação de sequências retrospectivas às sequências
correspondentes ao momento narrado, que evoca acontecimentos que deslocam a ação
presente para o passado, e eventos passados para o presente. É este o curto-circuito
temporal próprio do fluxo de consciência, no qual os pensamentos atropelam-se sem tempo
cronológico, e convivem as lembranças do passado, reflexões sobre o presente, desejos e
medos em relação ao futuro.
O recurso do monólogo interior, com sua maior flexibilidade em relação ao
tratamento temporal, causa uma distorção na correspondência ideal entre a fábula e a
trama: a representação do tempo psíquico rompe com a cronologia, operando com lapsos,
saltos lógicos e temporais, e com a cena em detrimento do sumário. O recurso narrativo
predominante em Dão-lalalão, é aquele apelidado por Friedmann como ​cena íntima, que
passa-se dentro da consciência da personagem, registrando suas reações e pensamentos
no momento em que se dão, e possibilitando, dessa maneira, a criação de um paralelo
entre os eventos narrativos e a repercussão destes no interior da personagem. A aplicação
dessa espécie de cena implica em uma escala temporal mínima, já que acompanhamos as
associações lógicas estabelecidas pela personagem.
Essa estratégia de caracterização fragmentária, o tratamento temporal desordenado
e o emprego do monólogo interior e da cena íntima, são indicativos da tentativa moderna de
inovar o realismo, de forma que este adeque-se à complexidade da experiência humana
contemporânea. É abandonada a narração puramente realista e, em seu lugar, firma-se
uma espécie de antirrealismo, que tem como propósito fazer jus à complexidade que não se
enxerga na superfície. Não se contentando mais com essa verdade superficial, há uma

6
Guimarães Rosa em Noites do Sertão
subjetivização, uma busca pela verdade de cada indivíduo: a matéria fluida é trabalhada nos
conflitos interiores da personagem.
O encontro de Soropita com um velho amigo dos seus tempos de jagunçagem,
Dalberto, acentua ainda mais o eclodir do seu passado, uma vez que o ex-companheiro
figura uma espécie de duplo dele, um ‘ele’ em outro momento de sua vida. O protagonista
passa a embrenhar-se em paranoias, em um primeiro momento em relação ao grupo de
capangas que seguem Dalberto, suspeitando de que estavam conversando sobre ele e sua
fama de matador impiedoso. Logo nos damos conta de que o passado que ele tanto tenta
dissimular foi acordado por esse encontro, e que as conversações que ele e o amigo travam
servem como alimentos para as suas fantasias paranóicas.
Não tarda para que Soropita associe ao seu passado movimentado o passado de
Doralda, o qual ele parece temer ainda mais profundamente que o seu: tem o receio de que
Dalberto tenha conhecido sua mulher no seu antigo ofício e a reconheça, que os dois já
tenham se relacionado intimamente e, principalmente, que o seu companheiro deixe de
respeitá-lo por ter se casado com uma prostituta, como constata-se com o trecho seguinte:

Podia imaginar o que o Dalberto devia de estar pensando, Dalberto cuspia no copo: — “...
Casar com meretriz? É virada! Nem puxado por sete juntas de bois... Sei que uns fazem;
pior p’ra o caráter deles...” 7

Por mais que exista, seguramente, um apelo erótico na figura de Doralda (que
descreve a si mesma como uma das mais cobiçada entre as prostitutas e carrega traços
típicos da divindade Afrodite - como o riso - e, como comenta Heloísa Vilhena de Araújo, ​em
seu nome, traz o atributo clássico da deusa do amor – dourada: a dourada Afrodite8), a
fonte da perturbação de Soropita não se resume, como pode parecer em uma primeira
reflexão, a um simples ciúmes do passado promíscuo de sua mulher. Os pensamentos e
atitudes de Soropita dão a entender que seu sentimento transcende o ciúme e que, na
realidade, trata-se de um desejo de conservação do seu caráter e uma sensação de que
sua honra está constantemente sob ameaça:

[...] a implacável insegurança de Soropita se deve mais ao esforço de manutenção


de uma honra, que a uma psicologia ciumenta do personagem. O momento em que [...]
Dalberto reconhece o velho amigo, revela o valor que o ex-jagunço atribui à sua integridade,
e o receio da queda de sua distinção, como exposto (ROSA, 1988, p. 53):

7
Guimarães Rosa em Noites do Sertão
8
citada por Clarissa Catarina Barletta Marchelli, em​ ​A noção de erro em Corpo de Baile, de
Guimarães Rosa: uma estratégia poética
“Não podia, assim num momento, desvirar tudo, desmanchar aquela admiração de
estima do Dalberto – então tudo o que ele Soropita tinha feito e tinha sido não representava
coisa nenhuma de nada, não tinha firmeza, de repente um podia perder o figurado de si,
com o mesmo ligeiro com que se desencoura uma vaca morta no chão do pasto... Mas,
então... Então matava. Tinha de matar o Dalberto. Matava, pois matava. Soropita bebeu um
gole de tranquilidade”. 9

Apesar da sua fama, do respeito, e medo que todos têm pelo seu nome, há uma
grande insegurança em Soropita, que parece, ao mesmo tempo, não reconhecer valor em
seu antigo ofício e condenar-se pelas brutalidades cometidas, mas também duvidar da sua
competência como jagunço (dúvida que ele projeta nos outros, na forma de afrontas
fantasiosas, desacatos imaginários). Em um dos retrospectos em que temos acesso ao seu
passado, vemos a caracterização grotesca que ele faz de si perante uma meretriz, que
comprova, de modo simples e claro, o pouco prestígio que atribui à si mesmo e à
jagunçagem: Ele ainda se escorava, meio provocado, meio incerto: — “É deveras, menina!
Você quer se encostar por riba de uma poeira destas?! Tou sujo, tou suado... Vim
amontando
burro...” 10
Quando os dois amigos chegam na casa de Soropita no Ão, lá estão vários
moradores da região, ansiosos para ouvir do protagonista a novela de rádio que trazia
memorizada, como sempre costumava fazer. Este, ora mostra-se tranquilo em relação ao
Dalberto (caracterizando-o como inocente, sem malícia, e um bom amigo), ora mostra-se
aflito com o encontro deste com Doralda, chegando a alucinar falas e ações que revelariam
uma intimidade secreta entre os dois. Em um dado momento, em que estão apenas
Soropita, Dalberto e Doralda, os três embriagados (o que faz com que a percepção do
protagonista fique mais alterada), não se sabe mais o que de fato aconteceu e o que foi
fantasia delirante, resultado da insegurança do ex-jagunço: a história, que antes era
perturbada pelos seus delírios, entra em um completo devaneio.
Soropita só parece tranquilizar-se em relação ao seu amigo quando tem a
oportunidade de conversar a sós com Doralda, que deu-lhe a garantia de que não havia se
envolvido com seu antigo companheiro, apaziguando sua inquietação e suas paranóias em
relação ao comprometimento do seu caráter. Na manhã seguinte, Soropita está seguro e
confiante em relação à Dalberto: ele parece reconhecer em seu amigo uma admiração por
Doralda e a vida que juntos levavam, e, consequentemente, uma legitimação do casamento
dos dois. No entanto, pouco depois da partida de Dalberto, os seus capangas aparecem na

9
Clarissa Catarina Barletta Marchelli, em​ ​A noção de erro em Corpo de Baile, de Guimarães Rosa: 
uma estratégia poética
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Guimarães Rosa em Noites do Sertão
porta da casa do casal perguntando pelo chefe, com quem haviam se desencontrado. A
vinda dos jagunços ofende Soropita, que enxerga nesta uma insinuação de que poderia ter
agredido Dalberto. Já perturbado pela visita imprevista, ao ver Iládio (com quem já havia
cismado em outro momento) fantasia que este o destratou, o que faz com que fique irado, e
sentindo-se profundamente desonrado.
Movido por essa ofensa imaginária, Soropita sai de casa com a intenção de tirar a
vida de Iládio em defesa à sua honra e, também, à de sua mulher. A sua vontade de agredir
o jagunço só atenua-se quando o outro suplica pela sua vida, revelando seu respeito e
medo perante Soropita. Com o sentimento de que sua honra foi-lhe restituída, a novela
acaba com uma maior leveza por parte do protagonista, que só pensa em voltar para os
braços de sua mulher, uma vez que ​a amizade confirmada com Dalberto, que admira a vida
de Soropita, e a condolência com Iládio, que reconhece sua superioridade bélica, legalizam
esse casamento, mais do que a cerimônia religiosa e o registro no civil11.
O que chega até nós como comportamento ciumento de Soropita, não passa de uma
tentativa por parte deste de assegurar a respeitabilidade à vida dos dois, é apenas um
indício de uma necessidade ainda mais profunda no interior do protagonista: ​o
reconhecimento e a legitimidade da união de um matador com uma prostituta, mesmo que
desvencilhados das respectivas profissões12.
3. Amarrado as pontas

O aspecto realista presente na narrativa manifesta-se na ordem moral, social, e


política que rege o sertão, com seus sistemas de poder paramilitares (como os próprios
jagunços) e sua defesa da honra por meio da violência. A própria preocupação de Soropita
com a integridade do seu caráter demonstra a importância que há na conquista do respeito
naquele meio, e suas reações agressivas comprovam que esse respeito é normalmente
conquistado através da força física. A aparição recorrente dos bordéis, da prostituição, da
jagunçagem, e de todos os demais elementos que evidenciam as contradições desse sertão
(que aparece como arcaico em meio um Brasil modernizante) integram a abordagem
realista, que é tratada a partir do recorte da relação de Soropita e Doralda, seus passados
secretos, e das problemáticas que disto surgem.
Contudo, é essencial para a narrativa o seu caráter mítico, representado no próprio
ambiente do sertão concebido por Rosa: o espaço em que se dá a história tem, em si
mesmo, um aspecto fantástico, já que apesar de ser baseado em densas pesquisas, é
também uma transfiguração desses dados factuais resgatados da realidade, o que confere
ao lugar um aspecto universal e lendário. O amor dos protagonistas, somado ao erotismo

11
Clarissa Catarina Barletta Marchelli, em ​A noção de erro em Corpo de Baile, de Guimarães Rosa: 
uma estratégia poética
12
Idem
vinculado à este, também tem algo de fantástico, retratando uma espécie de salvação para
13
os dois, que vivem a felicidade como o cheio de um copo de se beber meio-por-meio .
Ademais, o aspecto mítico também aparece na obra na forma das narrativas orais anônimas
(ditados, provérbios, causos), preservadas pela cultura popular com a qual Rosa trabalha, e
que infiltram esse mundo modernizante.
Essas duas correntes do conteúdo (e a sua mistura), podem ser melhor
simbolizadas a partir da relação das personagens com a novela de rádio: os habitantes do
Ão (lugar inviolado pela modernidade que havia começado a tomar conta do país) esperam
ansiosamente para que a novela chegue até eles, como se estivessem sedentos por algum
entretenimento, para que possam fugir por alguns minutos daquele lugar estagnado. Esta,
no entanto, chega transfigurada, pois é contada oralmente por alguém que teve a
oportunidade de ouvi-la no Andréquice. Ou seja, qualquer traço moderno que chega até o
Ão, chega distorcido pelos moldes de uma cultura local arcaica, que tem como maior
característica a conservação da oralidade. O Ão é, portanto, um pontinho retrógrado em
meio à fortaleza modernizante brasileira, integrante de um sertão regido por um tempo, leis
e culturas próprias, explorados por Guimarães Rosa a partir de um viés realista, mas
impregnado por uma dimensão mitológica, que confere à narrativa um tom encantado.
A novela conta com uma forma que segue a tendência da narrativa moderna de
abandonar a narração realista, rompendo com os modelos tradicionais da épica e com a
reprodução fiel de uma realidade exterior. Há uma subjetivização devido ao emprego do
narrador onisciente seletivo, que não narra mais de forma distante da narrativa, mas de
forma imediata e dramatizada. Não são mais virtudes, para os preceitos da arte
contemporânea, o discurso ordenado, a clareza sintática, ou a construção de uma ilusão de
realidade empírica, pois tais métodos não são adequados para tratar da realidade atual, em
que os indivíduos e suas experiências sensíveis do mundo não podem mais ser
classificadas como íntegras e coerentes. As estratégias que constroem a narrativa moderna
(e em especial Dão-Lalalão) refletem o modo como experienciamos o mundo moderno, no
qual buscamos compor um sentido por meio da combinação de fragmentos captados.
Este novo modo de narrar, que busca uma fidelidade maior à experiência psíquica
complexa é um modo misturado, tanto no âmbito temporal quanto no espacial. Abre-se mão
de uma narração cronológica para trabalhar-se com uma temporalidade em que os tempos
convivem, atropelando-se e agindo um sobre o outro. O espaços e seus limites pouco
rígidos também resultam em uma mistura e influência mútua, não apenas entre o interior e
exterior da personagem, mas também convivem os espaços de experiências passadas,
presentes e futuras. Esses dois aspectos, somados ao idioleto rosiano, compõem uma
forma híbrida que corresponde à heterogeneidade contemplada no conteúdo, de modo que

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Guimarães Rosa em Noites do Sertão
temos uma narrativa multiforme, obscura, e enigmática, a qual temos acesso pela
perspectiva de uma personagem, com quem passamos a compartilhar a visão. Como
resultado institui-se uma percepção parcial e menos verossímil quando comparada ao
narrador onisciente, mas que corresponde mais fielmente à maneira como experienciamos
o mundo moderno, apreendido de maneira restrita e fragmentária, e do qual, com muito
esforço, se extrai um sentido mais profundo do que aquele percebido sensorialmente: um
sentido imortalizado na consciência de cada indivíduo.

4. Bibliografia:
ARRIGUICCI, Davi.​ O mundo misturado: Romance e experiência em Guimarães Rosa. S
​ ão 
Paulo: Novos Estudos CEBRAP, 1994, 23p. Ensaio. 
ROSA, J. G.​ Noites do Sertão​. RJ: Nova Fronteira, 1988 
ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. I​ n​: ROSENFELD, Anatol. 
Texto/Contexto​. 1a. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996. v. 272, p. 75-97. ISBN 
9788527300735.
FRIEDMAN, Norman. ​O ponto de vista na ficção: O desenvolvimento de um conceito crítico. 
São Paulo: Revista USP, 2002, 17p. Ensaio.
BARLETTA, Clarissa Catarina. Dão-Lalalão (o devente): O desejo, a amizade e o perdão de 
Soropita. ​In​: BARLETTA, Clarissa Catarina. A
​ noção de erro em Corpo de Baile, de 
Guimarães Rosa: uma estratégia poética​. Orientador: Eliana Lucia Madureira Yunes. 2017. 
Dissertação (Mestrado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade) - Pontifícia 
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017. p. 148 p. Disponível em: 
https://www.academia.edu/35225226/A_noção_de_erro_em_Corpo_de_Baile_de_Guimarãe
s_Rosa_uma_estratégia_poética. Acesso em: 30 out. 2019. 
 

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