Você está na página 1de 22

13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

OS FILHOS ESQUECIDOS
DE ITAIPU
Prostituição controlada pela ditadura para construir Itaipu
deixou legião de crianças sem pai
Foto: Jean Pavão para o Intercept Brasil

Mauri König
6 de Janeiro de 2021, 18h01

João Batista e Maria Florinda dos Santos saíram do interior do Rio Gran-
de do Sul e chegaram em Foz do Iguaçu em 1969 com um filho no colo e
outro na mão. Compraram um alqueire de terra no bucólico bairro Três
Lagoas para plantar hortaliças e criar porcos e galinhas. De repente, se
viram rodeados de bordéis naquele que seria o maior centro de diversão
adulta da tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina.

A nova zona de prostituição foi instalada a 400 metros de um ponto de


ônibus na margem sul da BR-277. Era um efeito colateral da mega obra
da usina hidrelétrica de Itaipu, usada pelos generais como símbolo do
“milagre econômico”. A antiga zona da cidade havia sido removida pelos
militares para dar lugar a um conjunto de casas para os operários, e os
bordéis foram realocados para o pacato bairro rural, na época ocupado

https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 1/22
13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

por produtores de milho. No pico das obras, Itaipu contava 40 mil em-
pregados – 12 mil deles solteiros.

Assine nossa newsletter


Conteúdo exclusivo. Direto na sua caixa de entrada.
Eu topo ⟶

João e Maria estavam na margem sul da rodovia. João tinha oito filhos
do primeiro casamento e nove com Maria. Mas, segundo Júlia, filha do
casal, ele teria mais quatro com garotas de programa das boates – ne-
nhum deles reconhecidos pelo pai. “É o que a gente sabe, pode ser
mais”, admite Júlia, que tinha cinco anos quando a zona começou a se
instalar. A família viveria um estranho paradoxo. De um lado, João tinha
filhos com as trabalhadoras do sexo; de outro, Maria acolhia e cuidava
dos filhos das garotas de programa que trabalhavam na zona.

Um levantamento inédito feito pelo Intercept mostra que a história de


João e Maria não é a única. As obras de Itaipu fizeram a população de
Foz do Iguaçu explodir: subiu de 35 mil em 1975 para 140 mil habitantes
em 1984, datas do início das obras e do início das operações da usina. No
mesmo período, cresceu também o nascimento de crianças sem o nome
do pai no registro. Naquela década, o cartório de registro civil de Foz do
Iguaçu anotou o nascimento de 4.280 crianças vivas e 134 natimortas
sem paternidade definida – números pelo menos cinco vezes maior do
que na década anterior às obras da usina hidrelétrica.

Prostituição controlada pela ditadura deixou legi…


legi…

https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 2/22
13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

Os efeitos persistiram mesmo após a conclusão de Itaipu, pois um gran-


de contingente de barrageiros, como eram chamados os trabalhadores
da barragem da usina, permaneceu em Foz, inclusive milhares de mi-
grantes que nem chegaram a trabalhar na obra. Ao fim dos trabalhos, o
cartório registrou 7.605 nascidos vivos e 96 natimortos sem a paternida-
de reconhecida entre 1985 e 1994.

Fonte: Levantamento feito pelo Cartório de Registro Civil de Foz do Iguaçu a pedido do
Intercept.

O Intercept foi até o bairro de Três Lagoas para ir atrás dos “filhos de
Itaipu”, uma legião de crianças nascidas de encontros furtivos com pros-
titutas. Na época, centenas de mulheres – às vezes milhares – trabalha-
vam na zona com a anuência da ditadura militar. E, sem saber, com o di-
https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 3/22
13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

nheiro da venda de seus corpos, ajudavam a financiar armas e munições


para os braços armados do estado. Seus filhos são uma das poucas lem-
branças da época em que a ditadura lucrou com prostituição.

A prostituição no bairro entrou em decadência com o fim das obras e o avanço da aids. Os antigos
bordéis hoje funcionam como residências, mercearia, oficina mecânica, marmoraria e até uma
casa paroquial. Foto: Jean Pavão para o Intercept Brasil

Três dias de fervo


O bairro Três Lagoas concentrou o maior número de prostíbulos da fron-
teira no auge das obras de Itaipu. “Tinha umas 25 casas grandes, fora os
botecos. Dava umas 30, 35, entre tudo”, diz Dalva Alves Pereira, 63 anos,
de codinome Regina quando gerenciou boates no lugar. O número de
mulheres variava conforme o tamanho da casa. “Chegou a ter mais de
700, porque tinham as que moravam e as que vinham de fora fazer pon-

https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 4/22
13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

to. Ficavam uma semana, duas, um mês, dois. Tinha mais de 700, 800,
contando tudo”.

Poucas casas eram de alvenaria e tinham piscina, um atrativo de luxo


para seduzir a clientela. A maioria era de madeira, onde a sala de estar
servia de pista de dança, ligada a um corredor que dava para os quartos.
Era o lugar mais movimentado da fronteira, de dia e de noite, daí o ape-
lido de “Paraíso da prostituição” dado pela imprensa local.

A empresa deu prioridade à contratação de solteiros, porque os dormitó-


rios coletivos ficavam no interior do canteiro de obras. “Foram 12 mil
empregados solteiros sob a responsabilidade da Unicon, empresa res-
ponsável pela administração e distribuição dos barrageiros nos aloja-
mentos”, aponta a geógrafa Patrícia Claudia Sotuyo em seu mestrado so-
bre segregação urbana em Foz do Iguaçu no período da construção da
usina.

https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 5/22
13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

Dalva Alves Pereira era conhecida como ‘Regina’ quando gerenciava boates. Foto: Jean Pavão
para o Intercept Brasil

Os barrageiros passavam a semana batendo laje e nos dias de folga iam


aos bordéis para aliviar as tensões de um extenuante trabalho controla-
do com rigor militar. “Existia um interesse por parte da empresa em que
os funcionários fossem extravasar suas angústias, neuroses, desejos, na
zona do meretrício”, afirma o historiador Luiz Eduardo Catta no seu
mestrado sobre o cotidiano na fronteira durante a construção da usina.
Estima-se que, ao longo dos 10 anos das obras, ao menos 10 mil mulhe-
res trabalharam nas mais de 30 casas de prostituição de Três Lagoas.

Os dias de pagamento na obra ocasionavam preparativos frenéticos nos


bordéis, prevendo a chegada de ônibus e carros com os barrageiros. Itai-
pu pagava o salário em dinheiro, em um envelope com as cédulas. Parte
disso ia parar na zona ou nos bailinhos espalhados pela cidade. “Os caras
desciam daquele caminhão com o dinheiro na mão. Aí tomava [bebia]
um pouco, ia botar no bolso e tinha um punga que levava o dinheiro.
Era uma loucura”, recorda o policial aposentado Genésio Aparecido da
Silva, que prendeu muitos barrageiros metidos em confusão na zona.
“Era bem agitado nos dias de pagamento”.

O ex-barrageiro João Carlos Chaves reservava parte do salário para se di-


vertir nos bordéis de Três Lagoas. “Na metade do mês, eu ia para lá e não
queria nem saber. A farra era boa”, lembra. “Passava a noite lá e às vezes
nem vinha no domingo”, disse, às gargalhadas. “Às vezes vinha na
segunda”.

https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 6/22
13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

Apesar de o estado e a empresa negarem, a prostituição era encarada como necessidade para o bom
andamento das obras – um canteiro majoritariamente composto de homens solteiros. Foto: Jean
Pavão para o Intercept Brasil

Sob o nariz dos militares


Itaipu se recusava a assumir alguma responsabilidade ou discutir aberta-
mente a zona de prostituição – ainda que a mudança no local das boates
tenha ocorrido para atender aos seus interesses. E continua assim mes-
mo passados 45 anos. “Não temos registros de atuação da Itaipu para a
remoção ou realocação de casas de prostituição em Foz do Iguaçu”, in-
formou a empresa ao Intercept, por meio de e-mail.

Mas pesquisadores dizem outra coisa. “As autoridades da empresa e da


cidade entenderam a necessidade de uma zona de tolerância que fosse
suficientemente afastada do centro da cidade, facilmente acessível pela
rodovia e ampla o suficiente para conter o número de casas necessárias

https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 7/22
13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

para atender os milhares de trabalhadores da barragem que chegariam à


fronteira”, diz John Howard White na sua tese de doutorado em filoso-
fia da história pela Universidade do Novo México, dos EUA, sobre gênero
e trabalho na fronteira entre Brasil e Paraguai.

“Os guardas de Itaipu controlavam os bordéis para que não aconteces-


sem brigas e para que os trabalhadores não se embebedassem ao ponto
de que quando voltassem ao trabalho pudessem sofrer ou ocasionar al-
gum acidente”, salienta a geógrafa Patrícia Claudia Sotuyo no seu
mestrado.

A zona de prostituição também era monitorada de perto pelo estado. To-


das as trabalhadoras do sexo de Três Lagoas eram fichadas na Polícia Ci-
vil do Paraná. Eram cerca de 700 – mas, até o final da obra, esse
número somou 10 mil.

O estado exercia controle sobre o corpo dessas mulheres ao emitir a


“carteira de dançarina”, com foto e dados pessoais na frente e carimbos
das visitas médicas no verso. Cabia à Polícia Civil, por meio do Fundo Es-
pecial de Reequipamento Policial, o Funrespol, o trabalho de fiscalizar
os exames médicos das mulheres e cobrar as taxas de alvará das boates.

A prostituição em si não é proibida no Brasil, mas o Código Penal, de


1940, considera crime “tirar proveito da prostituição alheia, participan-
do diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em
parte, por quem a exerça”. A pena prevista é de reclusão de um a quatro
anos, e multa.

Atenção
Sem a sua ajuda o Intercept não existe

https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 8/22
13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

“As mulheres, para trabalhar, tinham que trazer um documento na dele-


gacia, e a gente fazia a carteirinha de bailarina, com o nome original e o
nome fantasia”, disse o policial aposentado Genésio Aparecido da Silva,
chefe do Funrespol entre 1978 e 1986. “Todos os meses você anotava. Se
uma desse furo, você falava ‘olha, cadê o exame do mês passado?’. Então
era bem cobrado, a exigência tinha que ser cumprida”.

Cada boate recolhia uma taxa mensal ao Funrespol, convertida depois


em equipamentos para as forças policiais. Mesmo considerado marginal,
o trabalho das prostitutas era revertido para a compra de armas, muni-
ções e viaturas que serviam aos órgãos estatais de repressão.

Havia uma escala para receber os donos das boates. “Os proprietários sa-
biam que pagavam um alvará de funcionamento, e a gente já avisava
que as mulheres tinham que ir lá no Funrespol fazer a carteirinha”, lem-
bra Genésio. No início do mês, os policiais faziam uma ronda pela cida-
de para cobrar as taxas. “Você fazia uma vistoria e chamava a proprietá-
ria ou o proprietário. Tinha que levar os documentos, senão podia fe-
char o estabelecimento”.

“Eles vinham fazer vistoria, boate por boate, mulher por mulher”, conta
Dalva Alves Pereira, 63 anos, ex-gerente de boates que hoje mora com o
marido em um conjugado de quarto e sala no bairro. “Nós fazíamos exa-
me no ginecologista para ver se não tinha doenças venéreas. Nós pagáva-
mos, fazíamos no posto [de saúde] e particular. Às vezes eles vinham co-
lher aqui [o sangue]”, diz. “Para poder pagar o alvará tinha que levar o
exame na delegacia. Todo mês tinha que levar os exames das mulheres,
todas, na delegacia”.

Os militares tomaram o poder à força em 1964 não só com o objetivo de


eliminar as esquerdas. Havia o pretenso projeto de um “Brasil Grande”,
apoiado em obras colossais e numa sociedade de princípios morais, cris-
tãos e conservadores, pontua o antropólogo José Miguel Nieto Olivar. No

https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 9/22
13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

livro “Devir puta”, resultado do seu doutorado, ele constata que o estado
foi complacente com prisões, torturas e mortes de prostitutas.

Mas, em Itaipu, os militares preferiram usar a prostituição ao seu favor.


A equipe da delegacia de Foz do Iguaçu enviava relatórios mensais de ar-
recadação ao comando da Polícia Civil, em Curitiba. Não há registros de
quanto dinheiro a prostituição vigiada em Três Lagoas rendeu à ditadura
militar.

Registro de uma das crianças em Três Lagoas. Não se sabe, ao certo, quantas foram fruto da pros-
tituição; cidade, no entanto, registrou uma explosão no número de nascimentos na época das
obras. Foto: Jean Pavão para o Intercept Brasil

Abortos, abandono e crianças sem pai


A família de Júlia dos Santos foi impactada pela instalação dos prostíbu-
los no bairro Três Lagoas, ao lado da área rural onde ela nasceu e se cri-

https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 10/22
13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

ou. Da janela de casa, a menina via tudo acontecer.

“Na época não existia preservativo, então era muita criança”, conta Jú-
lia. Apesar do zelo ao fichar e recolher as taxas das trabalhadoras do
sexo, o estado era menos eficiente ao garantir métodos contraceptivos
para elas. É difícil precisar o número exato de crianças nascidas das rela-
ções dos barrageiros com as prostitutas. Mas, de concreto, há 12.115 nas-
cimentos registrados sem o nome do pai em apenas duas décadas de in-
fluência direta de Itaipu na demografia de Foz do Iguaçu.

A gravidez indesejada impunha uma decisão difícil. “A gente não sabe se


era aborto espontâneo ou forçado, mas tinha muito aborto”, disse San-
tos. As mulheres que levavam a gestação adiante davam à luz na Mater-
nidade Iguaçu ou no Hospital São Vicente de Paula. “Muitas tinham o
parto em casa mesmo [no bordel]”. O destino dos bebês era variado. “Ti-
nham crianças que as mães pagavam pensão para cuidar, outras davam,
outras iam embora”, revela a ex-gerente de boate Dalva Pereira.

Eram tantos bebês que as famílias do entorno da zona do meretrício fa-


ziam um esforço coletivo para cuidar dos recém-nascidos. “Minha mãe
chegou a acolher mais de 30 crianças, filhos das prostitutas”, lembra Jú-
lia dos Santos. “Elas não podiam cuidar, porque tinham que trabalhar à
noite, então eu me obrigava a cuidar”, confirma Maria Florinda dos San-
tos, hoje com 84 anos, então vizinha da zona.

Maria era a benzedeira do bairro e passou a fazer também o papel de


mãezona ao acolher os filhos das trabalhadoras do sexo. Outras vizinhas
fizeram o mesmo. “Não só a minha mãe, a Alice*, dona de uma boate,
também criou muita criança. Tem a minha comadre Tereza também,
que criou essas crianças”, lembra Santos. Alice, cujo nome real não será
divulgado, foi proprietária da boate Carinho da Noite, uma das mais ba-
daladas da fronteira, que só encerrou as atividades em 2018.

https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 11/22
13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

Maria Florinda dos Santos (à esquerda) chegou a acolher mais de 30 crianças que orbitavam os ar-
redores de sua casa, vizinha da zona. Sua filha, Júlia (à direita) observava tudo. Foto: Jean
Pavão para o Intercept Brasil

Os donos de bordéis costumavam dispensar a mulher que engravidasse


ou exigiam o aborto. Alice fazia diferente. Mantinha a garota na boate
durante a gestação como faxineira ou cozinheira e assumia a responsabi-
lidade de criar o recém-nascido. Montou uma casa num bairro a cinco
quilômetros de distância, o Parque Imperatriz, para acolher essas crian-
ças e destacou uma de suas funcionárias para cuidar. Ao todo, afirma
que adotou 44 crianças – oito delas registradas em seu nome.

Por duas vezes, Alice se recusou a receber o Intercept na porta de sua


casa, onde funcionava a boate. Neusa, a “segunda mãe”, a funcionária
que trocou as fraldas e cuidou das crianças, explicou a razão: preconcei-
to e perseguição. Também receosa, Neusa relutou a entrar no assunto
e falou em meias palavras. Não foi fácil adaptar-se à vizinhança tendo a
um só tempo até 38 filhos de prostitutas na mesma casa. Todo o peso da
https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 12/22
13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

discriminação recaía sobre eles a ponto de quase ir parar na televisão.


Eram meados dos anos 1990, Neusa não soube precisar o ano, quando
um juiz bateu à porta, acompanhado de um cinegrafista e de um
repórter.

Vizinhos haviam feito denúncia de maus-tratos. Mas, depois da vistoria e


dos esclarecimentos, o juiz foi só elogios, segundo relato da cuidadora.
As mais de 40 crianças cresceram com o estigma pelo modo como foram
concebidas e pelo perfil socialmente negativo de quem as gerou. Incon-
táveis vezes, Neusa teve de ir à escola socorrer um dos seus, vítima de
intolerância.

“Só porque é filho de prostituta não tem direito de viver?”, questiona.


Não é sem motivo que Alice prefere o silêncio. Evita abrir as feridas do
preconceito agora que os filhos são adultos. Prefere preservá-los, pois
entre eles, diz Neusa, há servidor público graduado, chefe de cozinha,
empresário, garçom e professora. “Todos estão encaminhados, nenhum
virou bandido”, orgulha-se.

Segundo ela, havia homens cientes da gravidez. “Muitos até ajudaram


essas meninas, muitos não quiseram ajudar nem conhecer. Quanta cri-
ança que tem nesse mundo que não sabe quem é o pai e às vezes pode tá
conversando com ele? Quantas mães às vezes estão do lado do filho e
não sabe por que ela doou o filho?”, questiona. Dá para imaginar quan-
tas? “Ah, foram muitas. Muitas nasceram, muitas morreram, muitas fo-
ram abortadas. Era a lei da época. Porque, para a boate, a mulher tem
que ser bonita, e a gravidez não deixa a mulher bonita”.

https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 13/22
13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

Ignoradas pelos pais e pelo estado, crianças eram colocadas para adoção ou abrigadas por vizi-
nhos e outras mulheres. Foto: Jean Pavão para o Intercept Brasil

Promessa de futuro
O grande fluxo de clientes e de dinheiro também abriu caminho para a
exploração sexual infantojuvenil nos prostíbulos de Três Lagoas. “Como
era muito famosa, de ganharem muito dinheiro, começou a surgir as
meninas de menor, 15 anos, 16 anos. Aí começou o Conselho Tutelar vir
junto com a polícia. Elas corriam e se abrigavam nas casas dos morado-
res da redondeza. Era tudo misturado, a família, a zona, a escola”, recor-
da Júlia Santos.

Corrupção e dissimulação alimentavam esse negócio ilegal. “A maioria


mentia a idade. Tinha muito movimento, não dava tempo para procurar
se era de maior ou não. Queria ficar, azar. Se a polícia levasse era proble-
ma delas”, esquiva-se Dalva. “Às vezes dava problema para a gente, tinha

https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 14/22
13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

que pagar para não ir presa. Levava a menor, fechava a casa, ia lá e paga-
va a taxa, e eles liberavam de novo. O delegado fazia o papel e tinha que
pagar no banco”, explica.

Segundo o policial aposentado Genésio Aparecido da Silva, que à época


atuou na delegacia de Foz, o controle realizado nos prostíbulos não se
resumia a coletar as taxas do alvará de funcionamento, servia também
para evitar a presença de menores de idade nos bordéis. “Mas muitas ar-
rumavam uma certidão fria, preenchiam e diziam que tinham 18 anos.
Isso acontecia”, reconhece.

No Paraguai, do outro lado da fronteira, também havia adolescentes nas


casas do bairro María Magdalena, que tinha 400 mulheres em 37 boates.
“As proprietárias saíam ao interior para encontrar meninas e falavam
aos pais sobre o futuro maravilhoso que elas teriam”, observa o jornalis-
ta Alcibiades González Delvalle. Ele foi à cidade de Hernandarias em
1979 para investigar a morte de uma adolescente e desvendou um esque-
ma de corrupção envolvendo autoridades locais, o que acelerou o fim da
área de prostíbulos.

A vítima seria Adriana da Silva, de 16 anos, de Medianeira, cidade para-


naense a 60 km da fronteira. A morte não foi comunicada, e o corpo foi
enterrado em um cemitério particular de um fazendeiro. A identidade
não foi confirmada, e a investigação foi arquivada. Mas o jornalista des-
cobriu que a esposa do juiz responsável pelo caso ia aos sábados à zona
de prostíbulos para vender produtos de beleza às mulheres. “Ninguém
mais podia vender, só ela. E os preços eram altos”, relata.

Assim como no Brasil, do lado paraguaio cada mulher tinha de pagar


uma taxa à prefeitura para se registrar e outra mensal para trabalhar.
Donos das boates pagavam todo mês para funcionar, além de um adicio-
nal ao delegado de polícia a título de “proteção especial”, que incluía o
resgate das mulheres que porventura fugissem. “Ninguém podia sair”,
recorda Delvalle.
https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 15/22
13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

As autoridades locais faturavam uma bolada com o comércio sexual de


Hernandarias. O chefe do Centro de Saúde também cobrava uma quan-
tia das mulheres a cada 15 dias, a pretexto de atendimento clínico. “To-
dos ganhavam, menos as meninas”, diz. O destino do que era arrecadado
também nunca foi esclarecido.

A série de reportagens de Delvalle no jornal ABC Color marcou o início


do declínio da zona de prostituição de Hernandarias. As casas foram sen-
do abandonadas, e as mulheres se espalharam por outros locais da fron-
teira. Algumas foram parar na zona de meretrício em Três Lagoas, em
Foz do Iguaçu.

https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 16/22
13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

Jornal da época narra a derrocada da zona de prostituição, já no fim das obras da usina.

https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 17/22
13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

O fim da zona
O declínio da zona de prostituição começou com a redução de clientes, o
avanço da aids numa época em que a doença era tida como sentença de
morte e o início da construção de um complexo penitenciário bem ao
lado, hoje com quatro unidades. “Foi acabando, desmontando tudo”,
conta Neusa, que trabalhou na boate Carinho da Noite, a última a fechar
as portas, em 2018. As casas que não foram derrubadas ou queimadas
hoje funcionam como moradias, oficina mecânica, marmoraria e até
casa paroquial.

No canteiro de obras de Itaipu, mulheres eram exceção. A representação


simbólica disso está expressa no painel de 25 metros de largura e dois de
altura exposto no mirante da usina, uma homenagem aos barrageiros
que ergueram a “obra do século”. Já as trabalhadoras do sexo que atendi-
am aos empregados de Itaipu vivem no esquecimento – a única lembran-
ça são os filhos, já adultos, que surgiram daquelas relações.

Mas, sem elas, talvez as obras não tivessem sido as mesmas. “A prostitui-
ção foi considerada uma parte vital na construção da hidrelétrica”, diz o
jornalista paraguaio Alcibiades González Delvalle. “Em uma lógica circu-
lar, os homens não poderiam trabalhar adequadamente sem relações re-
gulares, e a hidrelétrica não poderia ser construída sem os trabalhadores
da barragem”, concorda o historiador John Howard White. “Em suma,
não poderia haver barragem hidrelétrica sem as profissionais do sexo”.

Delvalle descreve a hipocrisia e o descaso do alto escalão da Itaipu à épo-


ca em relação a essas mulheres. A binacional planejou e construiu proje-
tos habitacionais para seus trabalhadores, com educação, saúde, recrea-
ção, treinamentos. Os empregados, por sua vez, usufruíam da prostitui-
ção. “Itaipu não teve um papel direto, mas, sim, o ímpeto emanado de
seus trabalhadores e como consequência indireta de suas atividades”,
complementa White.
https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 18/22
13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

Para Delvalle, Itaipu e as subcontratadas deveriam ter reconhecido as


prostitutas como uma categoria legítima de trabalhadoras, com os mes-
mos benefícios concedidos aos trabalhadores da barragem. Sugere ainda
que o acompanhamento médico dessas mulheres deveria ter sido feito
nos hospitais e clínicas operados por Itaipu, para evitar a exploração pe-
las autoridades de saúde.

Quarenta anos depois, Dalvalle lembra com certo desalento a confirma-


ção da previsão que fez durante as obras: “quando a barragem for final-
mente inaugurada, ninguém encontrará nenhuma placa para comemo-
rar ou homenagear as jovens de Hernandarias”. Segundo ele, a prostitui-
ção era vista como uma necessidade, mas apenas tolerada enquanto per-
manecesse escondida.

CORREÇÃO: 7 de janeiro de 2020, 17h55


O trabalho de John Howard White é sua tese de doutorado, não uma dissertação.
O texto foi corrigido.

https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 19/22
13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

ANTES QUE VOCÊ SAIA… Desde 2018, quando Jair Bolsonaro foi eleito, foi
preciso ampliar nossa cobertura, fazer reportagens ainda mais contundentes
e financiar investigações mais profundas. Abraçamos essa missão com o
objetivo de enfrentar esse período marcado por constantes ameaças à
liberdade de imprensa e à democracia. Nesse cenário, nossos leitores foram
fundamentais ao apoiar nosso trabalho. De lá para cá, e você acompanha a
cobertura do TIB, sabe o que conseguimos publicar graças à incrível
generosidade de mais de 8 mil apoiadores. Sem a ajuda deles, não teríamos
investigado o governo ou exposto a corrupção do judiciário. Quantas práticas
ilegais, injustas e violentas permaneceriam ocultas sem o trabalho dos nossos
jornalistas? Este é um agradecimento à comunidade do Intercept Brasil e um
convite para que você se junte a ela hoje. Seu apoio é muito importante neste
momento crítico – nós precisamos fazer ainda mais e prometemos não te
decepcionar.

Faça parte do TIB ⟶

CONTEÚDO RELACIONADO
Entrevista: ‘A grande imprensa foi muito mais colaboradora do
que opositora da ditadura’, diz historiador

Os detalhes do processo contra ativistas paraguaios que


Bolsonaro e Moro querem expulsar do Brasil

https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 20/22
13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

Todos os heróis de Jair Bolsonaro

Fotos inéditas: funcionários de Itaipu comemoram incêndio em


casas de indígenas

ARTIGOS RECENTES

PM esconde surto de covid-19 em


academia militar e mantém alunos
aglomerados no Paraná
Felippe Aníbal — Mar. 12

Pelo menos 25 oficiais em formação já


pegaram a doença; contaminados são
coagidos a esconder sintomas e seguir
assistindo aulas.

Indústria de junk food levou Anvisa


na lábia para seguir bombando
Danoninho
João Peres — Mar. 12

Documento exclusivo revela o passo a


passo das corporações para bloquear
modelo de rotulagem mais eficaz na
redução de consumo de alimentos-
porcaria.

https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 21/22
13/03/2021 Prostituição controlada pelo estado em Itaipu deixou legião de filhos

Variante P1 do coronavírus já
assusta nossos vizinhos e agora é a
Venezuela que teme virar o Brasil
Maurício Brum, Lucas Berti — Mar. 11

▶ Mais contagiosa, a P1 teve uma mutação já


detectada na Venezuela e na Argentina,
obrigando fechamento de fronteiras e
cancelamentos de voos.

SOBRE E CONTATOS
SEJA NOSSA FONTE
INSCREVA-SE PARA A NEWSLETTER
ESPECIAIS
VOZES
VÍDEOS
DOCUMENTOS

© FIRST LOOK MEDIA. TODOS OS DIREITOS R ESERVADOS

https://theintercept.com/2021/01/06/prostituicao-controlada-pela-ditadura-para-construir-itaipu-deixou-legiao-de-criancas-sem-pai/ 22/22

Você também pode gostar