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SILENCIAMENTO
HISTÓRICO DAS
MULHERES DA
AMAZÔNIA
BRASILEIRA
[ ARTIGO ]
This study analyzes some historical aspects of the Brazilian Amazon, reporting
colonizing characteristics that led to greater gender inequality in the region and
high rates of violence against women. It seeks to expose peculiarities of the process of
predatory occupation of the region and to highlight the silencing of amazon women
as a State policy. Thus, this paper seeks to produce a critical text on the process of
sacking the Amazon, emphasizing the perpetuation of stereotypes that until now
support the silencing and violence against women.
Keywords: History of the Amazon. Women of the Amazon. Gender inequality. Violence
against women.
DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2019.157418
deu início a uma expedição para reconhe- cabelos enrolados na cabeça, andando nuas.
cer e para tomar posse das terras entre os Segundo seus relatos, um índio da região
Andes e o Oceano Atlântico, pertencentes que fora aprisionado e indagado sobre essas
à Espanha, segundo Tordesilhas. Como mulheres disse que eram as amazonas. Elas
fator econômico, havia a perspectiva de não teriam maridos e sacrificariam os bebês
descoberta do “País da Canela” e do reino do sexo masculino. As meninas seriam
do El Dorado (BITTENCOURT, 2018, p. 21). treinadas, desde pequenas, para a guerra.
Não se sabe, até hoje, o que era realidade
Os expedicionários, comandados por e o que era fantasia sobre essas mulheres
Francisco de Orellana, homem de confiança guerreiras. Mas, de qualquer maneira, é
de Pizarro, teriam de enfrentar diversos interessante notar que um dos primeiros
percalços, como atravessar os Andes e eventos “históricos” que descrevem ofi-
enfrentar uma série de barreiras naturais. cialmente a Amazônia começa por falar
das mulheres, a história de uma possível
A expedição de Orellana prosseguiu pelo sociedade matriarcal: o primeiro relato
Napo, até chegar ao eixo do “Grande Rio” específico sobre as mulheres amazônicas1.
ou “Paranauaçu”, como era chamado pelos
povos indígenas aquele que seria depois Os relatos fantasiosos, exagerados
denominado por Orellana como “Rio das e repletos de alegorias criam a Amazônia
Amazonas”. Continuou navegando com da maneira como seria representada pelo
o apoio das populações indígenas, tendo colonizador. O etnocentrismo do europeu
chegado a 3 de junho de 1542 ao rio Negro, buscava associações com sua própria cul-
nome dado pelo próprio Orellana, quando tura, mesmo havendo uma dessemelhança
deparou com o encontro de suas águas extrema. Essa óptica permanece ainda nos
com as do Amazonas. […] Finalmente, em dias atuais, gerando variadas distorções na
23 de junho, os aventureiros chegaram à representação e no imaginário sobre a região.
foz do rio Nhamundá, onde se depararam
com uma tribo indígena que lhes pareceu Contudo, algumas questões históri-
ser constituída de mulheres guerreiras cas traçaram novos rumos importantes à
(RIBEIRO, 2005, p. 30). região: no evento conhecido como União
Ibérica (1580-1640), um monarca espanhol
Orellana lembrou-se das lendárias assume a Coroa portuguesa. Assim, tanto o
amazonas da Ásia Menor, batizando o Rio Brasil descoberto por portugueses (leste da
como Rio das Amazonas, que posterior- linha imaginária de Tordesilhas) quanto a
mente daria nome também ao bioma e a Amazônia (oeste) ficaram sob o domínio da
toda a região. Segundo Gondim (1994), o Espanha. Dessa forma, em 1612, a coloni-
responsável pelo relato da expedição era zação da Amazônia foi iniciada pelos dois
Frei Gaspar de Carvajal, que descreveu com países unidos. O fato configura-se como
riqueza de detalhes e também muito fan-
tasiou sobre as amazonas sul-americanas.
Carvajal narra batalhas ferozes com essas 1 As informações históricas do período, bem como
os aspectos geopolíticos advindos de tais aconteci-
mulheres, que tentavam matar os intrusos mentos, nesta e nas próximas páginas, baseiam-se em
a pauladas. Elas seriam altas e brancas, com Ribeiro (2005).
ocupação efetiva da Amazônia pelos por- cada nação tomaria posse do que efetiva-
tugueses (RIBEIRO, 2005, p. 61). mente possuía: Portugal ficaria com 70%
da Amazônia. Neste momento, Brasil e
Diversas ordens religiosas católi- Amazônia ainda eram colônias separadas,
cas, como franciscanos, carmelitas, mer- com seus rumos seguindo paralelamente.
cedários, jesuítas e capuchos, receberam
Cartas Régias outorgando a elas poderes Com o Tratado de Madri (1750), D.
para ocupar e “civilizar” as margens do Rio José subiu ao trono português, nomeando
das Amazonas, perfazendo um total de 39 em seguida Marquês de Pombal como
concessões. Foram enviados muitos missio- secretário de negócios estrangeiros e da
nários para realizar a ocupação portuguesa guerra. Pombal permaneceu no Governo
da região, considerando que a população Português por quase trinta anos, promo-
indígena seria numericamente muito supe- vendo na Amazônia uma vasta mudança.
rior à população portuguesa da época. O marquês começou por defender a sobe-
rania direta de Portugal sobre a colônia,
Projeções feitas a partir de documentos sem precisar do intermédio do governo
e de pesquisas arqueológicas estimam instalado na capital brasileira. Em 1751, o
a população indígena, por ocasião da Estado do Maranhão e Grão-Pará passou
conquista, entre três e cinco milhões de a chamar-se Grão-Pará e Maranhão, com
pessoas, na Amazônia brasileira. A pers- sede na cidade de Belém.
pectiva histórica desses povos foi inter-
rompida de forma brusca e violenta pelo As mudanças promovidas foram sig-
projeto colonial que, valendo-se da guerra, nificativas e modificaram definitivamente a
da escravidão, da ideologia religiosa e das Amazônia com: demarcação de terras; cria-
doenças, provocou na Amazônia uma das ção da Capitania de São José do Rio Negro;
maiores catástrofes demográficas da histó- grande mudança na relação entre Estado
ria da humanidade, além de um etnocídio e igreja; incentivo à migração de colonos
sem precedentes (CARVALHO; HECK; e incentivo à miscigenação destes com as
LOEBENS, 2005, p. 238-239). indígenas (estupro sistemático); implantação
do trabalho escravo em 1756 para reforçar o
A Amazônia era considerada uma cultivo de cacau, café, algodão, cana-de-açú-
terra sem dono, mesmo sabendo que o ter- car e fumo; e estímulo à pecuária.
ritório era há muito ocupado por diversos
povos indígenas. Esses eram vistos como Em 1772, o estado do Grão-Pará e
desimportantes. Inúmeras evidências Maranhão foi dividido em dois: Maranhão
fazem crer que tal imaginário sobre os e Piauí; e Grão-Pará e Rio Negro (atual
povos amazônicos ainda existe. Amazônia brasileira, exceto Acre), com
capital em Belém. Iniciava-se a conjuntura
No século XVII Portugal e Espanha que tornaria a Amazônia parte do Brasil
resolveram negociar a revisão do Tratado algum tempo depois. Esses estados não
de Tordesilhas. Os dois países declararam foram imediatamente afetados pela inde-
violação ao tratado na Ásia e na América. pendência do Brasil em 1822, tendo em vista
A partir disso, ficou estabelecido que que estavam subordinados diretamente
A autora fala ainda sobre diver- Se a situação geral de vida nos serin-
sos documentos aos quais teve acesso na gais era difícil e o seringueiro sofria diver-
região do Alto Juruá, no Acre, que citavam sas formas de violência de seus patrões, a
diversos casos de estupros e de violência situação da mulher (tanto das que viviam
doméstica, caracterizando como normais os no seringal quanto das indígenas) era ainda
crimes de honra. Em seu trabalho, a autora muito pior, pois estava sujeita às mais diver-
mostra inclusive como documentos oficiais sas atrocidades. Sofriam violências físicas,
justificavam os abusos, espancamentos e psicológicas e sexuais tanto dos seringalis-
mortes quando considerado que era para tas quanto dos seringueiros. Frisemos que
defender a honra do homem. A violência nesse período os indígenas não eram sequer
contra a mulher era aceita pelo Estado. considerados humanos.
grande maioria por homens, trazidos para da Amazônia (RIBEIRO, 2005). Assim, os
trabalhar nos dois ciclos da borracha; todavia, seringueiros tornaram-se um grande grupo
durante o segundo ciclo algumas mulheres representativo do povo amazônico.
vieram juntamente com seus maridos e filhos.
A elas era imputado o trabalho doméstico, além Com o Golpe Militar em 1964 as elites
de cuidar da agricultura. Muitas, inclusive, regionais amazônicas perderam seus privilé-
passaram a cortar seringa para aumentar a gios, surgindo novos grupos de exploradores:
produção da família. Além disso, a vinda das gestores territoriais civis e militares a serviço
famílias dos seringueiros fez com que estes se do grande capital nacional e internacional.
fixassem à terra, transformando um acampa-
mento de homens em uma nova organização Iniciou-se, assim, o tempo dos grandes
social familiar fixa (WOLFF, 1998, p. 84). projetos amazônicos, resumido no lema
“Integrar para não entregar”. O desenvol-
A miscigenação forçada entre serin- vimento previsto pelos militares, com forte
gueiros e indígenas, desde o Primeiro Ciclo teor geopolítico, estruturou-se por meio
da Borracha, fez com que a disparidade entre da criação de algumas leis e instituições:
os sexos fosse diminuindo ao longo do tempo. Banco da Amazônia S/A (Basa), em 1966;
Porém, ainda hoje se reflete na parcela maior Superintendência do Desenvolvimento
de homens do que de mulheres na Amazônia. da Amazônia (Sudam), em 1966; Lei de
Não há como negar que um sistema que foi Incentivos Fiscais, em 1966; Lei sobre a
constituído sob a violência contra as mulheres nova política da borracha, em 1967; criação
em pleno século XIX não tenha gerado uma da Zona Franca de Manaus, em 1967. Em
sociedade patriarcal, falocêntrica e violenta resumo, todas essas iniciativas sinalizaram
que se perpetua até hoje. O processo de mis- a manutenção da Amazônia sob a tutela
cigenação forçada por meio da cultura do federal. Seguiu-se a construção das grandes
estupro que se iniciou no Brasil como um estradas, conformando o novo padrão de
todo no século XVI, na Amazônia iniciou-se “ocupação” da Amazônia, visando a inte-
no século XIX, e portanto demonstra marcas grá-la com as demais regiões do país por
muito mais recentes e profundas. vias terrestres (BIITENCOURT, 2018, p. 37).
Desencadeou-se um processo de
globalização da Amazônia. Se a população
era predominantemente rural, buscou-se
3. A exploração moderna desenvolver o meio urbano e aumentar seu
do território e do povo contingente populacional. Todavia, com
a crise mundial instituída pelo aumento
repentino dos preços do petróleo, esses
Com o fim da guerra, em 1945, a produ- projetos foram afetados, pois os recur-
ção da borracha entrou novamente em crise sos públicos passariam a priorizar outros
devido à queda do preço do látex no mercado setores. Assim, a lógica capitalista passa a
internacional. No entanto a borracha conti- imperar de forma explícita na Amazônia,
nuou sendo o principal produto de exporta- que continua sendo uma fornecedora de
ção do Acre e de diversas outras localidades matérias-primas para os maiores centros.
Nesse período a pecuária e uma variedade torna muito menos evidente quando se finge
de atividades extrativistas, como a mine- não haver seres humanos sendo explorados
ração e a retirada de madeira das matas em meio às grandes obras, com a mineração
nativas, instauraram-se definitivamente. A e com a retirada sistemática da floresta. Essa
chegada de um sistema baseado em relações ideia impregnou-se de tal maneira no senso
estritamente financeiras chocou-se fron- comum (ratificado pela mídia) que várias
talmente com o modo de vida comunitário pesquisas acadêmicas relacionam instan-
local. Seringueiros, indígenas e ribeirinhos taneamente a Amazônia a meio ambiente,
nunca haviam experimentado um processo encobrindo e muitas vezes ignorando a exis-
tão acelerado e tão violento de mudança nos tência de populações nesses locais.
hábitos e costumes (GONÇALVES, 2008).
Essa visão de que Amazônia é apenas
Em 1974, o Governo Federal lança uma área de florestas e rios tem contribuído
o Programa de Polos Agropecuários e para que a região seja excluída politicamente
Agrominerais da Amazônia (Polamazônia), das decisões sobre seus próprios rumos.
incentivando a exploração mineral na Pode-se dizer que essa postura acadêmica e a
região: exploração de manganês na Serra visão do senso comum são complementares
do Navio; implantação da primeira empresa na criação de lugares autônomos. Lugares
de extração da Caulim da Amazônia (Cadam) inabitados, que existiriam para além dos
e extração de bauxita no Rio Trombetas, moradores locais e estariam a serviço do
em Oriximiná – Pará. As explorações eram forasteiro, seja nas atividades turísticas ou
realizadas por empresas estrangeiras, algu- na exploração capitalista mais direta. Na
mas em parceria com empresas nacionais Amazônia “a população foi relegada a uma
como a Vale do Rio Doce (MONTEIRO, 2005). situação subalterna de provedora de maté-
Eram os parceiros poderosos da ditadura ria-prima a preços irrisórios, em um sistema
garantindo seus grandes lucros por meio da que vai fixar a riqueza resultante em outros
exploração da terra e sociedade amazônica. É territórios” (BITTENCOURT, 2018, p. 39).
necessário citar ainda a grande exploração de
minérios na Serra dos Carajás; a construção Em pleno século XXI a lógica explora-
da Hidrelétrica de Tucuruí; a Ferrovia Serra tória e a ideia de um local que é fronteira de
do Carajás; diversos novos portos e estradas; desenvolvimento persiste. Atividades mine-
dentre outras obras desenvolvimentistas. radoras, legalizadas e clandestinas, estão
espalhadas pelo território. Quem mora em
A busca por modernização e por obras uma cidade amazônica pode comprovar a
em nenhum momento se preocupou com as quantidade de caminhões carregados de
populações tradicionais locais, muito antes madeira que passam pelas rodovias todos os
pelo contrário, seringueiros e indígenas dias. Enormes áreas de florestas são queima-
foram vistos como entrave ao desenvolvi- das todos os anos para dar lugar à pecuária
mento da região, massacrados e explorados. extensiva, que predomina em estados como
Mato Grosso, Rondônia e Acre. Este traba-
A ideia de uma Amazônia restrita ao lho nomeia essas atividades como coloni-
recurso natural foi e é muito conveniente zadoras, atividades que, além de degradar
aos interesses hegemônicos. A exploração se o meio ambiente local, não geram riquezas
localmente, com uma produção de lucro dire- distantes de informações que possam vir
tamente atrelada à produção de miseráveis. a ajudar em um processo de empodera-
Como afirma Becker (2009), a Amazônia mento, e ao mesmo tempo são estereo-
ainda vive uma fase de capitalismo anterior tipadas pelo forasteiro, pela mídia e até
à fase pela qual passa o restante do Brasil. pelas produções acadêmicas, o que eleva
seu grau de insegurança.
ser um problema que estas não venham Essa mulher amazônica precisa do espaço
acompanhadas de averiguações sobre as para dissertar sobre si e encontrar solu-
populações que a habitam. Em uma região ções endógenas para a questão dos silen-
que tem mais de 70% das pessoas vivendo ciamento histórico e violento. Precisamos
na zona urbana (BRASIL, 2008, p. 22), a ouvir e procurar soluções por meio das
maioria das pesquisas ater-se apenas às mulheres na e da Amazônia. Precisamos
zonas rurais e seus habitantes demonstra de uma perspectiva decolonial.
que temos uma lacuna científica muito
grande. O problema é que a maior parte
das pesquisas realizada na Amazônia ainda
acontece sob a ótica do colonizador.
Referências
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CERQUEIRA, Daniel; COELHO, Danilo de Santa Cruz. Estupro no Brasil: uma radiografia
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GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Amazônia, amazônias. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008.
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Disponível em: https://bit.ly/2XGpkBY. Acesso em: 11 jul. 2019.
WOLFF, Cristina Scheibe. Mulheres da floresta: outras tantas histórias. Revista de Estudos
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