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Intercept Brasil

Tapajós sob ataque - Parte 12

RURALISTAS NO PODER: A serviço do agronegócio, governo Temer ataca


terras e direitos indígenas.

“Estou de olho em tudo: garimpeiros, madeireiros, fazendeiros… – que fazem a


maioria do desmatamento – na floresta dos Kayapó. A gente protege toda a nossa
área”, diz Anhë Kayapó, presidente do Instituto Kabu. Apenas perguntamos seu nome
e ele, de um só fôlego, logo se apresenta e resume os principais problemas do seu
povo. Em seguida, conclui, se despedindo e saindo da sala: “e é isso o que eu vou
dizer pra vocês”.

Anhë Kayapó é uma liderança do povo Kayapó Mekrãgnoti, que vive na terra indígena
Baú, próximo à margem leste da rodovia BR-163, no Pará. Nessa região, as terras
têm se valorizado vertiginosamente por conta do asfaltamento da estrada, e a
substituição da floresta por extensas pastagens têm sido uma fonte de enriquecimento
rápido.

A localização das terras dos Kayapó é porta de entrada para um grande território
indígena que, somado às unidades de conservação da região, integram um maciço
florestal de 28 milhões de hectares, formando um dos maiores corredores de áreas
protegidas do planeta.

O Instituto Kabu, que representa uma dezena de aldeias


Kayapó, realiza importante trabalho de fiscalização e vigilância
dessa área vulnerável. Às suas formas tradicionais e
sofisticadas de controle territorial, os índios complementam
tecnologias de geomonitoramento e são muito eficientes, como
mostraram na cooperação para desarticular a quadrilha de mega
desmatamento e grilagem dos Junqueira Vilela, tratada em
matéria anterior nesta série. Não à toa, os Kayapó são temidos
por serem guerreiros eficazes.

O controle dos Kayapó sobre seus territórios reflete a eficiência das terras indígenas
em manter a integridade territorial – mais, até, do que as próprias unidades de
conservação como parques e outras reservas. É o que os números indicam. Em 2014,
segundo dados do Boletim Transparência Florestal da Amazônia Legal, divulgados
pela Funai, as terras sob detenção privada responderam por 59% do desmatamento
registrado naquele ano; as unidades de conservação, por 27%; os assentamentos de
reforma agrária, por 13%; já nas terras indígenas ocorreu apenas 1% das perdas de
cobertura florestal.

Tratorando a constituição

A atitude direta e reservada de Anhë em relação a nossa equipe é compreensível à


luz do estado de conflito imemorial marcado por expropriações indígenas e pela
invasão “branca”. Uma relação historicamente tensa, desigual e com um horizonte de
futuro ainda mais sombrio, à medida que a administração do presidente Michel Temer,
em conluio com o agronegócio, acelera a canetadas o retrocesso de direitos indígenas
duramente conquistados.

Apenas em 1988, na última Constituição Federal, os índios obtiveram o direito de


permanecerem índios para sempre. Antes, as terras indígenas eram áreas alocadas
provisoriamente para eles, até que estes fossem “assimilados” à dita sociedade
nacional. Ao ser promulgada, a carta magna parecia finalmente anunciar uma inversão
de rota ao final de um século que – como os anteriores – fora marcado por massacres
contra essas populações. Somente durante os anos da ditadura militar (1964-1985),
estima-se que mais de 8,3 mil índios foram assassinados no Brasil.

Mas os grandes avanços estabelecidos pela Constituição de 1988 para salvaguardar


os direitos dos índios estão sob crescente ameaça. O brutal desmonte da política
indigenista nos últimos anos e a ofensiva sem precedentes para impedir demarcações
e, inclusive, tentar reduzir as terras indígenas já homologadas, afetam diretamente os
quase 900 mil índios, divididos em 305 povos que falam 274 idiomas, que resistem no
país

O PT e os índios
Assim como aconteceu com muitos outros movimentos sociais brasileiros, os
indígenas depositaram enormes esperanças na gestão do presidente Lula (2003-
2011). A desilusão, porém, veio rápido – e foi grande.

Lula foi decepcionante para os indígenas.

Em que pese o excesso de expectativa, as políticas sociais do governo do PT


declaradamente priorizaram enfrentar a desigualdade social focando em famílias
pobres das periferias das grandes cidades. Os problemas enfrentados por povos e
comunidades tradicionais nunca foram prioridade para Lula. A liderança indígena
Gersem Baniwa sintetizou como “decepção e dúvida” o sentimento dos índios em
relação ao governo Lula em 2008.

Nos dois mandatos de Lula, foram declaradas 81 terras indígenas – uma queda
significativa quando comparada às 118 declaradas nas duas gestões de seu
antecessor, Fernando Henrique Cardoso, de quem os indígenas esperavam muito
pouco. A curva negativa se justifica, em parte, porque os processos de demarcação
irresolutos são sempre mais complicados e conflituosos. No entanto, se o governo
Lula foi decepcionante para os indígenas, foi a gestão de Dilma Rousseff (2011-2016)
que inaugurou o verdadeiro retrocesso.

Durante os dois governos de Dilma, só 26 terras indígenas foram declaradas. Esse


número seria menos da metade não fossem os inusitados últimos momentos de seu
governo. Às vésperas do impeachment, quando o presidente da Funai e o Ministro da
Justiça usaram a oportunidade para publicar uma série de atos administrativos, dando
andamento a alguns dos muitos processos de TI’s que estavam engavetados.

Belo Monte e o etnocídio indígena

Segundo Cleber César Buzatto, Secretário Executivo do Conselho Indigenista


Missionário (Cimi), importante instituição católica que trabalha em prol dos índios
brasileiros desde 1972, a gestão de Dilma “foi o governo, até então, que menos
demarcou terras indígenas no Brasil desde a ditadura militar. Não fez avançar a
política estruturante da demarcação das terras indígenas”.

A febre desenvolvimentista de Dilma se expressava pela sigla que se tornou sinônimo


de negação de direitos indígenas: PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).
Tratava-se de um ambicioso plano governamental, anunciado por Lula quando Dilma
era Ministra da Casa Civil e expandido nos mandatos da presidente, que previa – e,
em parte, efetivou – investimentos em projetos faraônicos de geração elétrica e
infraestrutura logística para o agronegócio e mineradoras na Amazônia.

“Dilma relativizou os direitos dos povos indígenas”.

Márcio Santilli, sócio fundador do ISA e ex-presidente da Funai, explicou à reportagem


que “Dilma Rousseff foi a expressão radical de uma estratégia quase desesperada de
promover o crescimento econômico a qualquer preço. Chega a ser irônico o fato de
ter sido derrubada do poder no caldo da maior crise econômica da história recente do
Brasil”.

Não foi por acaso que várias das obras que formavam o portfólio do PAC I e II,
inclusive a usina hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, no Pará, se tornaram alvos
centrais das operações de combate à corrupção e financiamento ilegal de campanhas
por empreiteiras realizadas pelo Ministério Público Federal, Polícia Federal e pelo
Tribunal Superior Eleitoral.

“Dilma relativizou os direitos dos povos indígenas em benefício das obras do PAC”,
diz Buzzato ao The Intercept. “Exemplo cabal disso foi a construção da usina de Belo
Monte”, complementa.

Os impactos da usina de Belo Monte sobre os índios foram tão grandes que Thais
Santi, procuradora do Ministério Público Federal em Altamira, declarou à reportagem,
no final de 2015, que “a barragem de Belo Monte é um processo de extermínio étnico
pelo qual o governo federal continua com a prática colonial de integração dos índios
à sociedade hegemônica”.
O MPF processa o governo federal e a Norte Energia, empresa responsável pela
construção da barragem, sob acusação de crime de etnocídio contra povos indígenas
que vivem no entorno do rio Xingu.

O agro é anti-indígena

O antropólogo Márcio Meira foi presidente da Funai entre 2007 e 2012, período em
que o órgão anuiu com o licenciamento da usina de Belo Monte e de outras
hidrelétricas muito impactantes para os índios da região, como Teles Pires e São
Manoel, na bacia do Tapajós. Ele conta que “quando era presidente da Funai, já
estava claro que ressurgia com força uma ‘onda’ anti-indígena na sociedade brasileira,
originada sobretudo nos herdeiros das velhas elites agrárias que promovem sua
investida mais recente nos territórios do Centro-Oeste e da Amazônia.”

Para Meira, mudanças estruturais na economia alimentaram essa hostilidade: “O que


vimos recentemente foi o encolhimento da produção industrial, ao mesmo tempo que
cresciam a produção agropecuária e a exportação de commodities agrícolas. O Brasil
foi se tornando cada vez mais dependente da economia gerada pelo agronegócio”,
diz, detalhando como o ruralismo passou a ditar a pauta governamental para dar
continuidade ao histórico esbulho do patrimônio indígena.

Em nota publicada em junho de 2013, a senadora Kátia Abreu (PMDB-TO), que


naquela época era presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA),
alimentava a narrativa de conflito ao afirmar que “militantes ideológicos, que
aparelharam a Funai e se associaram ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a
ONGs nacionais e estrangeiras estimulam os índios a invadir terras produtivas”.

A ruralista, que acabou nomeada ministra da Agricultura por Dilma em 2014, afirmou
ainda que “a CNA apoia a iniciativa de construção de uma nova política indigenista,
submetida não apenas à Funai, mas também a outros ministérios e órgãos do governo
federal. É inconcebível que questão deste porte fique ao arbítrio de um único órgão,
aparelhado por uma militância associada a objetivos ideológicos e comerciais, alheios
ao interesse nacional”.

A visão ruralista verbalizada em 2013 pela senadora Katia Abreu está se


concretizando hoje.
Índios, os primeiros “golpeados”

O ataque contra os direitos indígenas tem se intensificado no atual governo não-eleito


de Michel Temer. Entretanto, Márcio Santilli, do Instituto Socioambiental (ISA),
reconhece que o ponto de inflexão na pauta indígena ocorreu antes: “Houve ruptura
na política indigenista entre Lula e Dilma, mas há continuidade e aprofundamento do
retrocesso do governo afastado de Dilma para o de seu vice, Temer”.

Ao assumir o governo, no final de abril de 2016, Michel Temer deixou claro que
retribuiria o apoio recebido de ruralistas, essencial para sua chegada ao poder. Logo
de início, o presidente não-eleito anunciou a reversão dos atos de reconhecimento de
terras indígenas assinados no apagar das luzes do governo Dilma. Era só um
prenúncio do que viria a seguir.

No final do ano, mesmo se arrastando em um pântano de impopularidade e acusações


de corrupção, o governo Temer anunciou um esboço de normas para alterar o
procedimento administrativo de demarcação de Terras Indígenas. As normas
propostas também permitiriam que o direito originário dos índios à terra fosse
flexibilizado em troca de indenizações financeiras. Na prática, esse tipo de medida
“acabaria com demarcações de terras indígenas” e foi considerada por índios e ONGs
ligadas à questão “uma aberração sem precedentes”.

A reação dos indígenas foi suficiente para que a proposta fosse abortada, mas em 18
de janeiro de 2017, o Ministério da Justiça publicou a Portaria 68, que, na prática,
implementava medidas anunciadas na proposta anterior. Novamente, houve forte
rechaço da sociedade, e o governo recuou. Mas não sem antes dar mais uma amostra
dos desencontros que marcam a atual gestão em vários campos. Com diferença de
poucas horas, enquanto Temer declarava, em evento com ruralistas, apoio explícito à
nova normativa, o ato 68 era formalmente revogado.

A novela triste seguiu quando, logo em seguida, o Ministério da Justiça promulgou a


Portaria 80, uma versão suavizada da anterior, mas que mantém importante alteração
no procedimento de reconhecimento de terras indígenas com a criação de um Grupo
Técnico Especializado (GTE).
Até então, a atribuição de identificar e delimitar terras indígenas, um processo técnico,
era de competência exclusiva da Funai. Porém, com a Portaria 80, esse encargo
passa, por meio do GTE, a ser arbitrado também por outros órgãos com interesses
contrários aos indígenas e por técnicos que não os com formação de indigenista
especializado. Segundo a advogada Juliana de Paula Batista, do Instituto
Socioambiental, as mudanças teriam “a clara finalidade de reanalisar os trabalhos da
Funai e interferir politicamente em estudos técnicos”.

Serraglio devasta Funai

No final de fevereiro, em outro duro golpe nos direitos indígenas,


Temer nomeou como ministro da Justiça o deputado federal
Osmar Serraglio (PMDB-PR). A Funai passou, então, à condição
de subordinada a um ruralista com longa atuação contra os
direitos constitucionais de índios, quilombolas e outras minorias.
Membro ativo da bancada do agronegócio, Serraglio integra o
núcleo da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), uma das
mais retrógradas alas do legislativo nacional.

Segundo Buzatto, do Cimi, “o (atual) ministro da Justiça é o representante do grupo


mais duro da bancada ruralista, setor que atua de modo articulado, sistemático e
violento no ataque aos povos e direitos indígenas e contra os aliados destes povos na
sociedade brasileira”.

Não é de se espantar, portanto, que o nome do ministro seja repetidamente


relacionado à Operação Carne Fraca, que recentemente desvendou um esquema
corrupto entre fiscais e frigoríficos para burlar controles sanitários. Vale notar que a
JBS, uma das empresas do agronegócio investigadas pela Operação, fez a maior
doação declarada à campanha de Serraglio à Câmara em 2014.

A ofensiva do governo contra os direitos indígenas não apresenta sinais de


enfraquecimento. Em março de 2017, o governo reestruturou a Funai. Além de abolir
87 dos 770 principais cargos gerenciais do instituto, também criou novas barreiras
para a nomeação de funcionários substitutos. As áreas mais afetadas são justamente
as que tratam da demarcação de terras indígenas e que analisam as licenças para
projetos de infraestrutura que afetam povos indígenas.
Antônio Fernandes Toninho Costa, atual presidente da Funai, disse não ter sido
consultado. Em nota, a Funai não contestou o ato, mas restringiu-se a afirmar que
“não medirá esforços para adequar a instituição” ao que aceita como “nova realidade”.

Na prática, o atual quadro da política indigenista estancou processos de


reconhecimento de terras indígenas, o que equivale a omissão estatal de situações
de massacre e favorece o agronegócio que cobiça os territórios indígenas.

Repetidos escândalos têm dividido e desgastado a imagem do setor.

Talvez o exemplo mais contundente dessa dinâmica seja o do povo Guarani Kaiowá,
grupo cada vez mais pressionado por inúmeras violências em Mato Grosso do Sul.
Tentando se livrar do confinamento em reservas mínimas e retomar seus territórios
de direito, os Guarani-Kaiowá enfrentam milícias privadas do agronegócio que atuam
sob o nome de “empresas de segurança privada”. O resultado são relatos de tortura
e assassinatos, entre outras violações. Acampados às beiras de rodovias, os índios
vivem situação dramática, com altos índices de alcoolismo, subnutrição e suicídios.

Por outro lado, nem tudo são supersafras no mundo do agronegócio. Repetidos
escândalos têm dividido e desgastado a imagem do setor, expondo cada vez mais
seu aspecto “intrinsecamente corrupto”, nas palavras do geógrafo Antônio Ioris.

O movimento indígena vem resistindo bravamente nos últimos anos, contribuindo para
quebrar o marketing oficial de empresas e governos. Segundo Marcio Santilli, a
resistência indígena não se deixou cooptar por nenhum governo. “Os promotores do
retrocesso encontrarão resistência crescente tanto dos índios quanto de outros
segmentos da sociedade”.

A capacidade de reação reflete a maturidade do movimento indígena e já tem data


para o próximo grande capítulo de luta pela terra e pelo direito de permanecer índio.
Entre 24 e 28 de abril, os movimentos indígenas realizarão uma grande manifestação
em Brasília. A iniciativa, chamada Acampamento Terra Livre, mobilizará cerca de
1.500 lideranças indígenas de todo o país que exigem ser recebidas pelos três
poderes da República e cujo principal objetivo é “unificar as lutas na defesa do Brasil
indígena“.
Assim como têm feito secularmente em seus territórios ao enfrentar invasores e
desmatadores, o controle dos índios de sua própria luta e história é fundamental para
provocar dor de cabeça aos ruralistas que ocupam gabinetes governamentais. Em um
momento de estranho silêncio de outros movimentos socio territoriais mediante o
desmonte promovido pelo governo, a mobilização indígena ensina ao Brasil novos
caminhos de resistência e respeito aos direitos constitucionais e humanos de todas
as minorias.

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