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Público, massa e multidão

Gian Danton
"É uma grande desgraça não poder estar só"
La Bryère citado por Edgar Alan Poe
Em 1840, o escritor norte-americano Edgar Alan Poe publicou um texto, depois classificado
pelos organizadores de suas obras completas como conto filosófico. "O Homem das
Multidões" é narrado por um homem que vai a Londres fazer um tratamento de saúde e se
diverte observando, do saguão do hotel, a multidão que passa na rua.
No começo, o narrador vê apenas uma massa indistinta. Em breve, porém, desce aos
detalhes e consegue ver padrões de roupas, comportamentos, jeitos de andar. Vários
públicos se descortinam à sua frente: escreventes, homens de negócio, advogados,
homens de lazer...
À certa altura, um homem chama sua atenção. É um velho entre 60 e 70 anos. Sua
fisionomia apresenta um misto de triunfo, alegria, terror e desespero.
A impressão causada pelo personagem é tão forte, que o narrador passa a segui-lo. O
homem envereda pela rua repleta de gente e, chegando à praça, passa a andar em
círculos, confundindo-se com a multidão. Quando o fluxo diminui, o velho se sente
angustiado e procura outra multidão. A narrativa acompanha durante toda a noite sua busca
por agrupamentos humanos.
No final, o escritor o abandona com um comentário: "Esse velho é o tipo e o gênio do crime
profundo. Recusa estar só. E o homem das multidões. Seria vão segui-lo, pois nada mais
saberei dele, nem de seus atos. O pior coração do mundo é mais espesso do que o
Hortulus Animae e talvez seja uma das grandes misericórdias de Deus o fato de que ele
jamais se deixa ler".
Em "O Homem das Multidões", Edgar Alan Poe antecipou em muitos anos a discussão
sobre a sociedade de massa.
O século XIX viu aparecer um novo tipo de agrupamento humano. Antes a regra eram
pequenas vilas, nas quais todo mundo se conhecia e se relacionava. O processo de
industrialização forçou uma grande quantidade de pessoas a se deslocarem para grandes
centros nos quais as pessoas não se conheciam e não tinham qualquer relacionamento
mais íntimo.
A aglomeração maciça de seres humanos forçou o contato pessoal com pessoas
desconhecidas, muitas das quais permanecerão sempre desconhecidas. Não conhecemos
o homem que nos vende alimentos e a moça do correio é apenas mais uma funcionária
postal.
O homem moderno está rodeado de gente, mas é solitário. Essa nova realidade tornou
patente um novo tipo de comportamento, que não era individual, mas coletivo. Para
explicá-los surgiu a psicologia das massas.
Dois pioneiros dessa nova disciplina foram o italiano Scipio Sieghele e o francês Gustav Le
Bom.
Sieghele escreve A Massa Criminosa, no qual analisa os crimes coletivos, como revoltas e
lichamentos, e conclui que não há como indicar culpados. Os que são incriminados são
sempre bodes-expiatórios, pois é sempre impossível determinar um culpado no meio da
multidão.
Sieghele trabalha o conceito de multidão como agrupamento geográfico e resultado de uma
sugestão, como se seus integrantes estivessem sonâmbulos, hipnotizados. Em toda
multidão há condutores e conduzidos, hipnotizadores e hipnotizados. O autor italiano foi um
dos primeiros a perceber a importância dos meios de comunicação de massa nesses novos
tipos de comportamento. Para ele, a imprensa seria uma manipuladora da massa.
Para Gustav Le Bon, a civilização estava em perigo com a emergência das massas. Os
líderes políticos do século XX seriam aqueles capazes de manipular as mesmas através da
mídia (uma profecia acertada, se lembrarmos de Hitler, Mussolini e Getúlio Vargas).
O pensador Gabriel Tarde discordou desse ponto de vista, argumentando que a massa é
geográfica e o publico é formado socialmente. Para ele, a imprensa estava criando públicos,
ao permitir que pessoas distanciadas geograficamente pudessem partilhar idéias.
Os pensadores contemporâneos perceberam a dificuldade em se trabalhar com os
conceitos de multidão e massa de maneira conjunta e resolveram separá-los. Assim, há três
tipos de comportamentos coletivos.
O primeiro deles, e o mais primário, é a multidão. Sua origem é biológica e remonta aos
tempos em que o homem passou a viver em sociedade.
Na multidão, os integrantes são comandados pela ação de ferormônios, hormônios
expelidos pelo corpo, que fazem efeito ao serem percebidos olfativamente.
Todos que estiverem no campo de ação dos ferormônios são contagiados e passam a agir
como uma só pessoa, de forma irracional. É o caso de linchamentos, revoltas e tumultos em
locais repletos de gente. É comum, por exemplo, que em casos de incêndio em casas de
shows morram mais pessoas pisoteadas do que em decorrência do fogo.
A criação de uma multidão passa por quatro estágios. No primeiro deles, há um
acontecimento emocionante (a informação de que um estuprador foi preso, um trem de
subúrbio que deixa de funcionar justamente na hora em que os trabalhadores voltam para
casa).
No segundo, há uma "moedura": os indivíduos se encontram, se chocam, começam a trocar
ferormônios.
No terceiro, surge uma imagem, uma idéia de ação, a exaltação coletiva é direcionada para
um objetivo (lichar o criminoso, quebrar o trem).
Finalmente, no quarto estágio, a multidão, já totalmente dominada pelos ferormônios, age.
Uma multidão é como um estouro de boiada: é impossível pará-la com a força ou com a
razão.
Atirar adianta muito pouco, pois os que estão atrás empurram os que estão na frente, até
chegar aos seus atacantes.
Segundo Flávio Calazans, só há duas maneiras de deter uma multidão: ou dando um
segundo objetivo a ela, ou jogando gás lacrimogêneo.
Os gás impede que as pessoas continuem recebendo os ferormônios umas das outras. Por
outro lado, a irritação nos olhos e a fumaça dão aos integrantes da multidão a impressão de
que estão sozinhos. Um indivíduo só age como multidão se tiver certeza de que está
incógnito.
É a certeza de que seus atos individuais não serão percebidos que dá à multidão a
liberdade de agir. É por isso que são comuns as desordem em períodos de blecaute.
Dar um segundo objetivo também é eficiente, pois uma segunda proposta de ação leva a
multidão a pensar, e uma multidão que pensa deixa de ser multidão.
Em uma perspectiva fisiológica, a multidão seria um comportamento coletivo governado
pelo complexo R. Essa primeira camada de nosso cérebro é responsável pela
auto-preservação. É ai que nascem nossos mecanismos de agressão e ações instintivas.
O comportamento de massa é uma novidade do século XIX e surge em decorrência do
processo de industrialização e desenvolvimento dos meios de comunicação de massa.
A massa age como multidão, de maneira irracional e manipulável. Mas não há proximidade

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