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Sumário

Prólogo

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17
Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21

Capítulo 22

Capítulo 23

Capítulo 24

Capítulo 25

Capítulo 26

Capítulo 27

Capítulo 28

Capítulo 29

Capítulo 30

Capítulo 31

Capítulo 32

Capítulo 33

Capítulo 34

Capítulo 35

Capítulo 36

Capítulo 37
Capítulo 38

Capítulo 39

Capítulo 40

Capítulo 41

Capítulo 42

Capítulo 43

Capítulo 44

Capítulo 45

Capítulo 46

Epílogo

Agradecimentos
Minha turma ficou em segundo lugar da campanha. Motivados
pela competição e, também, pela boa ação, as turmas do terceiro
ano do ensino médio competiram entre si para arrecadar alimentos.
Existia uma tabela de pontuação para cada produto, dando
prioridade para os mantimentos da cesta básica, aqueles mais
importantes, uma vez que muitos quilos de polvilho, por exemplo,
não deveriam ter a mesma pontuação que o arroz ou o feijão.

O resultado foi anunciado pelos recados matinais transmitidos


na caixa de som que cada sala tinha. O grito eufórico do primeiro
lugar pôde ser escutado pela escola inteira e o nosso grito, de
segundo lugar, também. Poderíamos não ter ganhado a viagem
para passar o dia na casa de campo do colégio, mas tínhamos feito
um bom trabalho e iríamos entregar as doações pessoalmente para
o orfanato que ficava a uma quadra do colégio.

— Eles só conseguiram porque o pai do Marco é dono de


supermercado — Catarina falou baixo para mim e dei de ombros, o
resultado já tinha sido exposto, não havia mais nada que
pudéssemos fazer.

— Enquanto eles vão para o meio do mato, vamos curtir o


shopping, saiu o filme novo dos heróis. — Meu tom era baixo
também, para não chamar atenção do professor.

— Verdade, vamos pegar a primeira sessão do final de


semana.

— Combinado!

— A turma que ficou em segundo lugar irá entregar os


alimentos na segunda-feira, com a supervisão do professor
conselheiro e dois fiscais de pátio — a diretora falou pela caixa de
som.

— Que idiotice, vou faltar nesse dia — Miguel resmungou ao


meu lado e revirei os olhos para sua falta de empatia.

— Nos economiza do seu bom humor — devolvi com ironia e


ele nem me deu bola, o que não era uma novidade.

— Deixa disso, Yasmin, não sei por que pega no pé dele —


Catarina aconselhou.

— É verdade, amiga. Vou aproveitar e levar alguns


brinquedos que tenho.

— Ainda brinca de boneca, bebezão? — Miguel implicou e foi


minha vez de ignorar, porque a acolhida havia acabado e a aula se
iniciou.

Não que eu tivesse um grande coração ou fosse adepta a


fazer doações, mas quando o colégio criava esse tipo de campanha,
me empenhava ao máximo, mesmo a contragosto dos meus pais,
que viviam ressaltando que a ajuda que precisamos dar é trabalho,
e que tudo que é dado não é valorizado.
Em pleno ano que escolheria qual seria minha profissão para
o resto da vida, sentia-me perdida e desmotivada para esses
assuntos. A caridade me chamava atenção, mas por não ter apoio
em casa, acabava mergulhada nos estudos e me dedicava a ser
uma boa aluna para que meus pais se orgulhassem, já que eu era a
única filha viva.

Minha mãe havia perdido um bebê quando eu era pequena,


lembro-me da sua barriga grande, mas não dos motivos que não o
levaram a nascer. Esse era um assunto tabu em casa, e numa
tentativa de amenizar a dor que via minha mãe sentir, me dedicava
a fazer o que ela queria: estudar para ser médica.

Em meio aos pensamentos sobre qual brinquedo poderia


doar, o período matutino e vespertino das minhas aulas transcorreu
bem. Minha mãe me buscou no colégio logo que saiu do serviço e
animada, fui contar a novidade:

— Mãe, minha turma ganhou o segundo lugar da campanha


do alimento.

Ela guiou o carro com seu jeito sério de funcionária pública do


judiciário.

— E você está animada assim, por quê? Terá ponto extra na


média?

— Não, mãe, doação não tem nada a ver com estudar, mas...

— Que bom que você sabe, minha filha, esqueça essas


distrações que a escola cria. O mercado de trabalho separa os bons
dos fracos de acordo com o seu foco no que realmente importa, os
estudos.

— Ai, mãe, estamos fazendo o bem. Não deixo de estudar por


conta disso — reclamei chateada, cruzei os braços e bufei. Eu fazia
minha parte, o que custava ficar feliz por mim?

— Fazer o bem será quando você estiver dentro de um


hospital, salvando vidas. Não siga o mesmo caminho que eu e o seu
pai como funcionários públicos, que trabalhamos tanto e não somos
reconhecidos.

— Tá bom! — tentei encerrar o assunto.

Não via suas profissões da forma que eles enxergavam, até


porque, os meus pais ficavam horas e horas conversando sobre o
serviço quando chegavam em casa e tínhamos uma boa condição
financeira.

Onde estava todo o sofrimento que eles falavam, mas não


demonstravam?

— Estou fazendo isso para o seu bem. Queria eu ter uma


mãe como estou sendo para você, que orienta e te dá o melhor
caminho a seguir ao invés de te deixar sofrer. Você ainda será
motivo de muito orgulho para a família. — Ela alisou o meu cabelo e
sorriu. Tentei ficar feliz com suas palavras, mas a única coisa que
vinha na minha cabeça era que eu fazia muito e mesmo assim não
alcançava suas expectativas.

Não era boa o suficiente. Diferente deles, eu sim me


esforçava muito e parecia não ter nenhum reconhecimento.
— Posso ir ao shopping ver filme com a Catarina?

— Você não foi semana passada? — fui repreendida.

— Não, foi mês passado. É só um filme...

— Enquanto eles assistem filmes, você estuda. Essa é a sua


vantagem. Precisa focar, Yasmin. Seu nome é um dos últimos na
chamada para você aproveitar a sala de aula enquanto a chamada
está sendo feita. Tudo precisa ser estratégico na sua vida, não
desperdice o seu tempo.

— Mãe, o filme vai sair de cartaz e não vou assistir. Por favor
— implorei, mesmo sabendo a resposta.

— Não, minha filha, e se insistir vou pedir que pare de andar


com essa menina que só pensa em sair. Ninguém se convida para
vir estudar em casa, não é mesmo? — Ela desfez meu braço
cruzado, parou o carro na garagem de casa e suspirou. — Não
gosto de brigar, você sabe disso. Não insista, ou vai ficar de castigo.

Saí do carro chateada e fui direto para o meu quarto, sem


cumprimentar meu pai que estava na sala assistindo jornal na
televisão. Sufocada e desanimada, queria ser o motivo de
admiração dos meus pais, mas quanto mais eu me esforçava, mais
parecia longe dessa realização.

Acabei passando a semana cabisbaixa, desmarquei a ida ao


shopping com Carina e nem separei meus brinquedos antigos para
levar ao orfanato na segunda-feira, porque estava com raiva. De
mim, por não ser o suficiente; e dos meus pais, por não me
enxergarem.
Por que não olhavam para mim e viam o que eu estava
fazendo?

Miguel realmente faltou no dia que faríamos a visita ao


orfanato. Obrigando-me a sorrir. Fomos até lá. Onde encontraria
felicidade para oferecer a esses que nem tinham uma família?

Não precisei de muito. Assim que a caminhonete contendo


alimentos estacionou ao lado de um pátio coberto e nós
aparecemos, as muitas crianças que se distraiam sem brinquedo
algum correram ao nosso encontro e nos abraçaram.

Estava enganada ou eram eles que estavam nos dando mais


alegria?

Agachei esquecendo-me de qualquer frustração, peguei uma


pequenina no colo e caminhei até o centro do pátio coberto, onde
alguns meninos da minha sala, junto com as crianças, começavam
um jogo de futebol.

— Você é linda! — a menina no meu colo falou olhando meu


cabelo, brincos e corrente no pescoço.

— E você é uma princesa — respondi sem conter o sorriso,


porque o brilho em seus olhos era contagiante. — Qual o seu
nome?

— Rebeca.

— Ah, princesa Rebeca! Muito prazer, eu sou Yasmin.

— Tenho dez anos.

— Uau! — enalteci o orgulho que ela tinha da sua idade.


Sentei-me no chão ao lado de Catarina, que estava servindo
de cobaia para as crianças que queriam mexer no seu cabelo.

— Você tem nome de princesa — ela disse fazendo bico.

— E você também. Olha que vestido lindo! — Fiz com que ela
desse uma volta no seu eixo, e depois fiz cosquinhas. — Só as
princesas mais lindas riem assim.

— Para, tia, para! — Fiz o que ela pediu, depois recebi um


abraço forte. — Me leva com você?

Oh, meu Deus, o que fazer nessa situação? Apesar de ser


uma criança grande, ela se comportava como as outras menores.
Observando a dinâmica dos órfãos, Rebeca demonstrava ser mais
jovem para aumentar as chances de uma família a escolher.

Iria usar o método da minha mãe de mudar de assunto


quando não queria responder algo para mim.

— Sabe fazer trança? Quer que eu faça uma em você?

— Trança de princesa? — Ela se afastou e sentou-se à minha


frente. Olhei para Catarina, que riu da sua situação, e voltei minha
atenção para a pequena Rebeca e seus cabelos levemente
cacheados.

— Vamos lá, vou te deixar linda para o baile que faremos.

— Sim, muito linda! Você vai? — Ela virou o rosto para mim,
acenei afirmativo e ela voltou a ficar de costas enquanto começava
a trançar seus cabelos castanhos.
O tempo passou muito rápido, as crianças foram tão
boazinhas e carentes, que duvidei que eles teriam sido mais
beneficiados em tudo isso do que nós. Gostaria de poder mostrar
aos meus pais toda essa ação social. Havia ocasiões na vida que
não se pagava com dinheiro ou estudo, era necessário viver o
momento, sentir-se presente.

— Vamos, pessoal, ainda teremos aula — o professor


conselheiro falou batendo palmas e resmungamos por ter acabado o
nosso tempo juntos.

Rebeca abraçou minha perna e não parecia disposta a me


largar. Enquanto Catarina e outros colegas se despediam daquelas
crianças que se identificaram mais, tentava encontrar uma forma de
desgrudar a menina que ganhou meu coração e nunca poderia levá-
la para casa pois, meus pais não deixariam e minha formação em
medicina estava acima de qualquer coisa.

— Por favor, não vá, me leva! — ela falou baixo, agachei a


sua frente e num rompante de rebeldia e afeição, tirei minha
correntinha do pescoço. No pingente continha uma foto minha e dos
meus pais colados nele.

— Ele é meu amuleto da sorte. — Coloquei no seu pescoço e


ela ficou sem fala, estava assustada com o meu ato. — De princesa
Yasmin para princesa Rebeca, a partir de hoje, sua vida vai mudar.

— E você?

Ela levantou o pingente e olhou as fotos dentro. Ah, tinha


certeza de que minha mãe me infernizaria por um mês sobre eu ter
dado ou perdido a corrente de ouro que ela fez especialmente para
mim, mas não me importava agora. Só queria fazer a diferença na
vida de alguém e pelo visto, fiz na de Rebeca.

— Eu vou ficar bem, mas você, vai brincar muitão e orar todas
as noites para o papai do céu abençoar você e todos os seus
amigos. É meu presente para você.

— Esse é o melhor presente do mundo, vou guardar para o


resto da vida. — Ela me abraçou forte e fiz o mesmo.

— Rebeca, vamos, hora do almoço. A amiga precisa estudar


— uma funcionária do orfanato falou.

Ela saiu correndo para dentro da casa e me levantei com o


coração cheio de emoções diversas. Não queria dar as costas, era
inexplicável a conexão que eu sentia com essa criança, mas tinha
que seguir minha vida, estava além de mim dar uma família para
Rebeca.

— Eles são tão lindos! — Catarina abraçou meu braço e


juntas ao grupo de estudantes voltamos para a escola. — Deu
vontade de levar todos para casa.

— Sim, que estranho, né? — Olhei para trás, o orfanato


perdeu o encanto que senti no início e, aos poucos, toda aquela
emoção foi esvaindo. — Mas temos vestibular para pensar.

— Sim, você mais ainda, vai tentar Medicina!

— Tentar não, preciso passar. — Atravessamos a rua,


corremos para o portão de entrada e seguimos até a sala de aula.
— A vida continua.
— E o presente em forma de amor fica na lembrança. Espero
que eles sejam adotados um dia. — Ela se sentou na carteira e fiz o
mesmo.

— Eu também.
Estava no meu primeiro ano de faculdade de Medicina, com
vinte anos. Dediquei-me a ser tão bom quanto meu pai, médico
oncologista. Ninguém precisou dizer-me para largar a farra e os
amigos e me dedicar aos estudos. Pelo contrário, minha mãe,
muitas vezes, tirava os livros de perto de mim e me mandava viver a
vida, ser jovem e inconsequente.

Logo eu, o nerd magricela da turma?

Minha mãe era professora aposentada, uma lesão na perna a


impediu de exercer a profissão, mas isso não a deteve de continuar
com suas obras de caridade nas escolas, creches e orfanatos. Meu
pai nem reclamava quando aparecia gastos exorbitantes com
supermercado, porque sabia que era minha mãe comprando
alimentos para quem mais precisava.

Só que nunca imaginei que, um dia, ela traria alguma dessas


crianças para casa.

Concentrado em estudar, decorando as partes do corpo, os


sistemas e todos os nomes possíveis e imagináveis do que existia
na nossa anatomia, dona Carla e Rebeca apareceram na porta do
meu quarto.
— Mãe?

— Meu filho, diga oi para sua irmã. Rebeca, filha, esse é seu
irmão mais velho, Matias.

Estava em choque quando a criança correu para me abraçar.


Normalmente, elas são tímidas e se intimidam fácil, mas essa
parecia em casa. Ainda sentado, abracei a menina magricela como
eu e encarei minha mãe assustado.

— O pai sabe disso?

— Se você não sabia, muito menos ele. Todos me conhecem


e confiam em mim, então, alguns protocolos foram quebrados para
que acontecesse tudo de última hora. Ela ficará alguns dias indo e
voltando para o orfanato até a papelada definitiva sair e morar
conosco para sempre.

— Para sempre! Sim! — Ela me olhou curiosa. — Você é o


príncipe Matias e eu sou a princesa Rebeca. — Ela apertou minhas
bochechas e reparei na sua corrente brilhosa no pescoço.

— Já comprou até presente caro para sua filha? — perguntei


brincalhão para dona Carla.

— Sua irmã, meu filho. E não, Rebeca falou que foi uma
princesa de verdade que a presenteou com o amuleto da sorte. Eu
também acho, porque não tem outra explicação para eu querer
trazer essa preciosidade para casa hoje, sem nem planejar.

Rebeca espirrou em mim, fazendo com que meleca de nariz


escorresse do seu rosto e na minha roupa, mas não me causou
nojo, pelo contrário, foi divertido.
— Eca, Rebeca “Meleca” — provoquei e ela tentou se limpar
emburrada.

— Não sou.

— É sim, Rebeca Meleca!

— Mãe, não sou meleca! — A criança correu para minha


mãe, que estava radiante com nossa interação. Quer prova maior de
irmandade quando um chama o outro por apelido?

— Vamos, vou te limpar e decidir como será seu quarto.

— Tchau irmão. — Acenou para mim e fiz o mesmo, me


levantando e indo para o banheiro me limpar.

Suspeitava que essa adoção tinha a ver com o aniversário de


morte da minha irmã mais nova, por conta de uma cardiopatia
congênita logo que nasceu. Prematura, precisou de cirurgia e não
resistiu. Meu pai, até então, era cardiologista e depois da morte dela
mudou a área para oncologia. Desde então, se dedicou as pessoas
que muitas vezes perdiam as esperanças.

Eu era muito pequeno para lembrar do que aconteceu, minha


mãe contava ou relembrava a situação sempre que chegava no
aniversário de vida e morte dela. Porém, havia algum tempo que ela
tinha deixado de seguir essa tradição, o enxoval que guardava foi
para doação e desde então, dedicou-se a mudar a vida dos outros.

Pelo jeito, mamãe voltaria a mudar a vida da família.

Aproveitei para tomar um banho, voltei para os estudos e


quando meu pai chegou em casa, naquele dia, abriu a porta e só fez
uma pergunta para mim:

— Está tudo bem para você?

— Sim. Só espero que Rebeca Meleca não fuja se eu a


perturbar demais.

***

Oito anos depois...

Olhei para minha irmã sentada à mesa da cozinha, com


vários livros de estudos espalhados. Escorei no canto da porta da
sala de jantar e relembrei o dia que a pequena Rebeca “meleca”
chegou na família. Ela tinha dez anos, um olhar encantador e, claro,
uma bateria que parecia ter duração infinita.

Não foi uma nem duas vezes que fomos para o pronto
atendimento por conta dessa pequena preciosidade. Como uma
criança que precisava recuperar o tempo perdido sem família, ela
brincou e muitas vezes se machucou.

As cicatrizes na sobrancelha e no cotovelo eram apenas


algumas das suas marcas de batalha dentro dessa casa, que
deixaria de ser minha em alguns meses. Comprei meu apartamento,
estava mobiliando aos poucos e iria viver minha própria vida,
enquanto trabalhava lado a lado com o meu pai combatendo o
câncer.

— Vai ficar me olhando estudar até quando? Se não colar a


bunda na cadeira e ler, as matérias não vão ser absorvidas por
osmose — Rebeca falou divertida, sentei-me a sua frente e conferi o
que estava estudando. Biologia. Mesmo não sendo sangue do
nosso sangue, ela tinha herdado o amor pelos estudos como eu e
meus pais.

— Já passei por isso e ainda tenho tudo na minha mente —


falei batendo minha mão na sua caneta, fazendo-a rasurar e rosnar
para mim. Meu Deus, eu amava quando a via irritada comigo.

— Matias, quando mesmo você vai se mudar? Vinte oito anos


nas costas e ainda debaixo da asa da mamãe? — Ela riscou meu
braço, por isso, tomei a sua caneta para entrarmos numa briga de
posse, onde eu sempre vencia.

— Pelo amor de Deus, até quando vocês vão fazer isso?


Queria saber o que os seus pacientes achariam dessa atitude, filho.
— Minha mãe apareceu, levantei e beijei sua bochecha.

— Ela ama isso — falei piscando para Rebeca e levando uma


borrachada nas costas.

— Me irrita, isso sim. Você tem medo de que eu passe no


vestibular mais bem colocada do que você.

— Nunca — falei para incentivá-la, porque essa garota amava


ser desafiada.

Ela sempre foi e sempre seria melhor que todos nós.


Peguei a borracha no chão, joguei para ela e fui para o meu
quarto. Tinha voltado de um plantão exaustivo no Hospital do
Câncer, ansiava por um banho e dormir.

— Precisa cortar os plantões, filho. Está sempre exausto.

— Se não fossem eles, não teria entrado na academia e


ficado bonitão — brinquei com minha mãe, que me observava ir
para o banheiro. — Está tudo bem por aqui?

— Sim, só preocupada com você.

— Então, alivie as rugas de preocupação, estou ótimo. Vou


dormir um pouco.

Faminto pelo conhecimento, peguei muito plantões e cheguei


a exaustão, até criar vergonha na cara e dedicar duas horas do meu
dia para a academia. A disposição era outra, ganhei massa
muscular e muitos outros benefícios vieram, como os olhares das
mulheres.

O nerd magricela se transformou no médico bonitão. A única


coisa que mantive foi meu jeito brincalhão. Sabia que não agradava
muitos pacientes cansados do tratamento de quimioterapia, mas
animava outros e, com eles, poderia ser quem eu era de verdade,
sem a máscara de doutor.

Estava tudo indo muito bem.


— Posso ir com você para o hospital? — Rebeca me
interceptou quando saía para trabalhar no sábado de manhã. Não
tinha domingos e feriados para descansar, estava em época de me
doar ao máximo para a Medicina.

— O que a senhorita está pretendendo? — Apertei seu nariz


e segui para o carro enquanto ela me cercava animada. Mesmo com
seus dezoito anos e eu com meus vinte e oito, parecíamos duas
crianças. Não me importava, éramos irmãos.

— O tema da redação que preciso fazer para a escola é sobre


os presentes da vida.

Até então, não entendia seu propósito com tudo isso e estava
esperando entrar no carro para dispensá-la. Ela poderia trazer
alegria para os pacientes participando de alguns grupos voluntários,
como a minha mãe participava, mas... tema de redação?

— Por que não olha para nossa mãe e faz uma redação sobre
ela, Rebeca Meleca? — Apertei o botão do alarme do carro, abri a
porta do motorista e ela entrou na minha frente, com seus olhos
grandes cheios de ternura. Ela tinha me conquistado desde o
momento que espirrou catarro em mim.
— Por que não esquece esse apelido, hein? — Ela tentou me
fazer cócegas, eu a tirei do caminho e me sentei no banco do
motorista. — É sério, Tias, me deixa ir, por favor!

— O que você encontrará na ala de oncologia do hospital que


não seja cansaço e sofrimento? Eles precisam de alegria e
esperança, vá com a mãe no voluntariado.

— Você é o presente da vida para seus pacientes. — Olhou


para o chão envergonhada, nem parecia ser uma adolescente
rebelde. — Todo mundo vai escrever sobre a mãe, o pai, ou algum
ídolo, eu queria escrever sobre o seu dia de trabalho.

Engoli em seco e não consegui fechar a porta, porque estava


impactado com sua intenção. Precisava me controlar sempre que
possível, para que o ego não me dominasse. Não era fácil encarar a
cura de uma doença tão agressiva sem se imaginar com poder.

Era apenas um ser humano, não Deus.

— Sei que você leva muito a sério sua profissão como o


papai. Às vezes, sinto que você é um dentro de casa e outro no
hospital. — Ela finalmente me encarou, suas bochechas estavam
coradas de vergonha. — Queria te conhecer melhor e,
consequentemente, fazer meu trabalho escolar.

Ah, se ela soubesse que o presente da vida para nossa


família, foi ela. Era fácil dizer que éramos em três irmãos, sendo
dois vivos. Minha mãe não sofria mais com a perda, nem meu pai,
apesar da cardiologia ser apenas uma sombra no seu currículo.
Talvez, ele precisasse dessa fatalidade em sua vida para encontrar
a verdadeira vocação na oncologia.
Sempre buscava ver o lado mais cheio do copo, porque
minha vida era trabalhar com pessoas que viam a metade vazia. A
verdade era que os pacientes nem sempre enxergavam algo de
bom.

— O que me diz? — Rebeca chamou minha atenção.

— Estou esperando você se sentar no banco para irmos.

Ela deu pulinhos, correu dentro de casa e voltou com sua


bolsa nas mãos. Acomodado no carro, ganhei um beijo apertado na
bochecha e ela recebeu de mim um apertão no joelho, que a fazia
gritar pelas cócegas.

— Vou anotar isso: apesar de um ótimo profissional, ele é


péssimo com limites pessoais.

Saí com o carro da garagem sorrindo, talvez fosse melhor me


encher de defeitos. Nunca era demais ter o ego murchado, meus
pés precisavam estar no chão.

— Fico honrado. Só não floreie muito, nem seja muito realista.


A doença é cruel e o paciente precisa de esperança tanto quanto os
familiares.

— E o médico? Ele trata tudo isso como? — Ela tirou da bolsa


um caderno e uma caneta que firmou no ar para escrever.

— É necessário ser humano, mas não se envolver


pessoalmente, senão, vai abraçar dramas que não fazem parte da
sua vida. Estou à serviço.
Ela escreveu algumas coisas no caderno e, claro, freei brusco
para que ela rasurasse. Não conseguia evitar.

— Não se envolver com o drama do paciente e ser chato são


suas características marcantes — falou brava. — Você é assim com
todo mundo lá no hospital?

— Só com as enfermeiras bonitas — brinquei e levei um


beliscão. — Adicione que estou sendo agredido pela jornalista.

— Sabia que pensei em fazer esse curso? — confessou


enquanto guardava tudo dentro da bolsa.

— Quantas vezes você vai mudar de profissão até escolher


uma?

— Queria ser médica como você e o papai, mas também


queria ser assistente social para ajudar a mamãe com o
voluntariado; depois eu penso que sou melhor em um escritório,
administração e quando assisto jornal, me vejo escrevendo matérias
ou entrevistando alguém.

— Você está perdida, minha irmã.

Ela fez uma careta, depois olhou para mim fazendo bico e
segurou o pingente da sua correntinha. Era seu amuleto da sorte, a
lembrança que a princesa lhe deu no orfanato.

— Falando em presente, você tem um no pescoço e poderia


escrever sobre ele.

— Eu sei, já tentei, mas parece que está tudo bloqueado e


bagunçado na minha cabeça. Aí, acordei decidida a vir contigo,
como se eu precisasse estar aqui, sendo obrigada a ser torturada
por você.

Estacionei o carro nas vagas dos médicos me preparando


para o turno. Saí do carro, peguei o jaleco no encosto do carro e
vesti sem me apegar aos detalhes. Rebeca veio ao meu lado e
ajeitou a lapela, ela quebrou a minha rotina com seu cuidado
amoroso, indicando que meu dia não seria como o planejado.

— Vestindo sua roupa de super-herói?

— Essa é a armadura que difere o Matias irmão do Matias


médico.

— Percebi. Você fica até um pouco mais sério, bonitão — ela


falou e deu um pulo para trás, sabendo que eu faria cócegas em
suas costelas.

— Vamos e apenas observe.

— Vou me comportar, doutor Matias.

Envolvi meu braço no seu pescoço, beijei sua testa e a soltei,


ganhando energia para mais um dia de trabalho.
Hoje visitei pacientes que estavam internados em pré e pós-
operatórios. Alguns mais debilitados, outros mais receptivos. Esses,
por sua vez, tiveram a melhor parte de Rebeca em sua performance
de contadora de histórias de conto de fadas.

Eu entrava no quarto, perguntava se minha irmã poderia fazer


parte da consulta do dia. Caso afirmativo, enquanto eu avaliava o
prontuário do paciente, lá estava ela, se apresentando, fazendo
perguntas para o paciente e deixando um pouco de carinho ao lhe
sorrir com os olhos. Vestindo um jaleco, touca e máscara de boca,
ela se realizava dando atenção para quem mais precisava.

Entrei em vários quartos, enfermarias e deixei para o final os


pacientes que mais dormiam do que se mantinham acordados, por
estarem em seus últimos momentos. Poucos familiares os visitavam
e não cabia a ninguém o julgamento sobre o abandono. Às vezes,
não era fácil nem para mim.

— Estão em coma? — Rebeca perguntou baixo quando


entramos em um quarto de um senhor com câncer no pulmão.
Estava visível, nos ossos e pele, o quanto a doença o afetou e só
estava esperando o momento para partir.
— Dormindo ou cansados. Se quiser esperar do lado de
fora...

— Eu vou — falou triste e saiu.

Fiz a avaliação médica, observei o prontuário e deixei meu


visto de visita.

Quando saí do quarto, vi minha irmã chorando silenciosa no


corredor. Beijei sua cabeça e a abracei, a realidade deles era dura e
estávamos fazendo o melhor para ajudar.

— Quer ficar na sala de espera? Você não precisa me


acompanhar em todos os lugares. Já deu para perceber que os
presentes da vida dessas pessoas são a força de vontade para
viver.

— Você faz parte desse presente também, Tias. É um médico


maravilhoso.

— Doutor Matias! — uma enfermeira me chamou baixo,


correndo em minha direção. Larguei minha irmã e fui ao seu
encontro, havia alguma emergência, com certeza. — A paciente
está sendo encaminhada para internação. Leucemia...

Rebeca se mostrava fragilizada, ela precisava ser tirada do


caminho. Não tive tempo de dar atenção a ela, que viu todo o
processo de receber o paciente da ambulância, entubado e com
sinais vitais fracos. Meu foco era a emergência.

A paciente tinha vinte e cinco anos, estava sem cabelos,


magra, e teve alta alguns dias atrás para ter um pouco de qualidade
de vida em casa. Estava na fila para doadores de medula, ela tinha
poucas chances no estado em que se encontrava.

Eram poucos casos que me chamavam atenção, o dessa


paciente era um deles. Era um sentimento que não conseguia
explicar, seja por conta do tempo lutando com a doença, ou a
ausência de familiares para acompanhar no tratamento. Fiz o que
estava ao meu alcance e segui os protocolos, mesmo que dentro de
mim exigisse ir além do básico.

Precisei de um tempo extra de academia para colocar aquele


laudo no fundo do meu cérebro, afinal, Yasmin deixou de ser minha
paciente quando lhe dei alta. Não poderia me abalar, precisava
continuar com meu papel de ajudar a todos.

Colocamos ela em um quarto, fizemos os primeiros


atendimentos e percebi que Rebeca olhava para a paciente em
choque, emocionada. Não era uma realidade fácil, a vida humana
não estava em nossas mãos para transformá-la, mas auxiliar na sua
recuperação.

Poderia ser racional demais pensar dessa forma, mas, na


minha opinião, grande parte da recuperação de um paciente
dependia apenas dele. Era uma ilusão achar que eu tinha todo o
crédito.

— Vá para a recepção — ordenei para Rebeca com meu tom


de voz de médico. Minha mãe iria brigar comigo depois, se ela se
traumatizasse de alguma forma.

— É ela, Tias. É ela! — Apontou para a cama. Segurei em


seus braços e não me deixou tirá-la a força de lá, onde enfermeiros
finalizavam o atendimento.

— Ela quem, Rebeca? Você não pode ficar aqui! — Consegui


movê-la alguns passos para fora do quarto. Quando se livrou do
meu agarre, ela pegou o pingente da sua corrente e abriu, me
mostrando algo que nunca tinha visto. Havia duas fotos, uma de um
casal mais velho e outro de uma menina, adolescente, nem um
pouco parecida com a que estava ali.

Seria a família biológica de Rebeca? Mas como? Minha mãe


não quis investigar e, como Rebeca não demonstrou interesse no
assunto, não fomos atrás da sua origem.

— Qual é o nome dela? — ela perguntou com urgência.

— Precisa ir embora. Vou ligar para a mãe — decretei e ela


segurou meus braços impaciente.

— É a minha princesa, Tias. Diga, qual o nome da paciente?

— Você está abalada. Vá se sentar enquanto alguém vem te


pegar, preciso fazer meu trabalho.

— Só diga o nome dela, por favor!

— Yasmin Cardoso dos Santos — falei por fim, exausto.

— Sim, Yasmim! Foi ela quem me deu isso, dois dias antes
da mãe me adotar. — Ela apontou para a porta do quarto e me
deixou em choque. — É a mesma Yasmin e você precisa salvar a
vida dela!

— Você está atrapalhando. Agora chega, vá se sentar! —


Assumi uma postura arrogante, minha irmã se assustou e finalmente
fez o que mandei.

Voltei para o quarto e, para meu alívio, eles estavam tirando o


tubo de sua boca. Seus sinais vitais estavam voltando ao normal e
ela poderia ficar sem o auxílio mecânico para respirar.

Todo o procedimento foi feito, anotações foram realizadas, a


limpeza no quarto foi executada e todos os instrumentos usados
foram recolhidos. Sem a correria para mantê-la viva, pude
finalmente me permitir olhar para o rosto abatido da mulher, que
mais parecia uma menina.

— Mais alguma coisa, doutor? — a enfermeira perguntou.

— Pode colocar minha irmã em um local melhor? Vou


terminar minhas rondas.

— Pode deixar, fica tranquilo.

Acenei afirmativo, minha boca não pronunciava nem mais


uma palavra, porque estava trilhando um caminho que não deveria,
de me envolver pessoalmente com um paciente.

Não era a primeira vez que a via, nem que me sentia daquela
forma. A conexão que tentei ignorar quando dei alta para Yasmin
retornou com força, ao cogitar que ela poderia ser a dona daquela
correntinha de Rebeca.

Conferi os dados de contato dos familiares, havia apenas o


nome da mãe e uma tia materna, o que me levou a concluir que os
pais poderiam ser separados. Do meu celular pessoal fiz a ligação
para elas, mas não obtive resposta depois das três tentativas.
Meu Deus, será a mesma Yasmin?

Compreendia e respeitava as relações familiares, porque


muitos se apegavam aos seus doentes e lhe davam carinho. Outros,
apenas abandonavam, por não suportarem o peso de estar nessa
rotina desgastante. Cada um sabia o fardo que poderia carregar e
no fim das contas, o paciente era se tornava seu próprio salvador. O
apoio era importante, mas nada valeria se ele não lutasse contra a
doença, em seu íntimo.

Notei em Yasmin a ausência de pelos e ainda duvidava que


essa fragilizada mulher, deitada nessa cama de hospital e de olhos
fechados, era a mesma garota sorridente da foto que minha irmã
carregava.

Droga! Não poderia me envolver, mesmo que dentro de mim


existisse o desejo de fazer tudo o que Rebeca quisesse. O presente
de vida que transformou a família sempre conseguia o que queria e
nem precisava de tanto esforço. Rebeca exigiu que eu salvasse a
paciente e, contra todas as minhas convicções, eu tentaria.

Busquei uma forma de não me entrelaçar ainda mais no


emaranhado. Se eu focasse no desejo de Receba e não no
sentimento que já existia dentro de mim, a paciente se tornaria mais
uma na minha lista de atendimento.

A coincidência dela poder ser a mesma pessoa do passado


da minha irmã era surreal.
— Eu quero doar minha medula — Rebeca falou assim que
me aproximei na recepção. Era tarde, fui irresponsável com minha
irmã, mas precisava terminar meu trabalho. Estava mais exausto do
nunca.

— Vamos para casa, Rebeca. — Segurei no seu braço e a


levei para fora do hospital.

Pegamos um elevador e seguimos em direção ao


estacionamento. Conferi as horas ao sentir uma pontada no
estômago, não tinha comido nada.

— Você almoçou? — Passava das 18 horas.

— Não tem como fazer uma coleta agora? — Ela me mostrou


o celular, ignorando a minha pergunta. — Fiz uma pesquisa sobre a
leucemia, uma das soluções...

— Eu sei como as coisas funcionam, Rebeca. Vamos


conversar quando entrarmos no carro.

— Mas eu quero ajudar! — falou de forma exagerada, soltou


seu braço da minha mão e apenas continuei caminhando sem ela.
Não estava com humor para ser o irmão mais velho divertido,
precisava ir embora e descansar minha mente.
Odiava quando lutava com minhas crenças e ambições. Não
gostava de assumir um caso pensando que faria de tudo para salvar
o paciente, porque não estava em minhas mãos a cura, mas fazer o
meu melhor. Meus pais me ensinaram muito bem, usando a morte
da minha irmã recém-nascida como exemplo. Nada nessa vida
acontecia da forma que queríamos. Somos instrumentos, não a
personificação de um poder sobrenatural.

Em outras palavras, eu tinha as ferramentas, mas não era


Deus. Nem queria ser. O peso de decidir quem vivia e quem morria
era muito grande para mim. Preferia continuar pensando que sou
um facilitador da vida, viver ou morrer estava nas mãos do paciente
e do universo. Mas Rebeca fez com que eu quisesse realizar o seu
desejo de ajudar Yasmin, o que me irritou profundamente.

Entrei no carro e já ia dando partida quando Rebeca se


sentou no banco do passageiro.

— Qual seu problema? — Ela tentou tirar a chave da minha


mão e a encarei feroz. — Por que está sendo rude comigo? Eu só
quero ajudar como ela fez comigo. Foi importante para mim, fez
toda a diferença na minha vida — anunciou chorosa e larguei meus
questionamentos de lado para abraçá-la. Era minha irmã, não
poderia ser tão idiota. Ela fungou algumas vezes enquanto eu
respirava fundo.

— Desculpe, hoje o dia foi tenso. — Afastei-me, tirando o


jaleco que nem tinha percebido que ainda o usava. Liguei o carro e
tentei relaxar.

— Nunca te vi assim, você sempre volta para casa bem.


— No trajeto entre o hospital e a casa eu vou me
equilibrando. Não sou de ferro. — Sorri de boca fechada, manobrei
o veículo e ganhei as ruas.

— Me desculpe também, acho que não facilitei. — Ela


segurou minha mão e apertei.

— Está tudo bem. Não é fácil para mim, que estou


acostumado, imagine para você.

— Mas é verdade, eu quero ajudar, Tias. — Ela soltou minha


mão, cruzou os braços e fez bico.

— E sua redação de presente da vida?

— Está pronta na minha cabeça. Sofreu algumas mudanças,


mas continua com a mesma essência. — Ela suspirou. — Quero
doar minha medula para ela.

— O caso de Yasmin não é tão simples. Há um banco de


compatibilidade, você precisa passar pela triagem antes de escolher
para quem vai doar. Se não é parente, a chance de compatibilidade
é muito baixa, é quase encontrar uma agulha em um palheiro.

— Tudo bem, eu quero testar, e se não for, mamãe com


certeza vai me ajudar a fazer uma campanha...

— Rebeca, tome cuidado! — Apertei seu braço, para que ela


me olhasse. Apesar de estar focado na direção, observava-a pelo
canto. — Ações com pacientes terminais, muitas vezes, nos levam a
frustação. Vi e vivi isso, como por exemplo, no meio da campanha
de algo, o paciente vir a óbito e a frustração dominar. Alguns
voluntários entraram em depressão na última campanha que
participei ativamente.

— Você não sofre? — perguntou desanimada. Não queria


desmotivá-la, só deixar seus pés no chão. Era importante ter
esperança, mas também, estar preparado para o destino, seja ele o
que esperávamos ou não.

— Algumas vezes mais que os outras, porque tento me


blindar o máximo que consigo. Preciso fazer meu papel, não tenho
tempo para procrastinar, tenho outros pacientes que também
precisam de atenção.

— E a Yasmin? O que vamos fazer? Por favor, me deixe


ajudar!

— Não estou te proibindo de fazer algo, apenas colocando as


cartas na mesa, minha irmã. — Parei o carro na garagem de casa e
segurei seu rosto que esboçava muitas emoções. — Converse com
nossa mãe e veja a melhor estratégia. Tenha em mente que ela é
uma paciente que está em um estágio avançado. — Soltei seu rosto
e ela se agitou.

— Ela pode morrer a qualquer momento? Eu preciso doar


hoje, não posso deixar para depois! — Ela não me deixou sair,
tentando segurar o meu braço.

— Segunda-feira conversamos sobre isso, depois que você


sair da aula. — Consegui abrir a porta e me afastar do carro, ela me
acompanhou. — Quero ler sua redação depois.
— Vou falar com a mãe agora. Talvez, nem vá à aula para
poder doar minha medula.

— Não é assim que funciona, Rebeca Meleca! — fingi


irritação, apertei seu nariz e ela sorriu, pulando no meu pescoço e
me abraçando.

— Você está de volta! Obrigada pelo dia de hoje. Amo você,


Tias.

— Também te amo, Rebeca. Vou descansar um pouco.

— Eu levo seu jantar.

Entramos em casa e minha irmã correu para a cozinha


enquanto eu segui para o meu quarto.

A única coisa que precisava era de um banho gelado, uma


cama e esvaziar minha mente dos acontecimentos do dia.

Quando escutei a porta do quarto ser aberta, já estava


deitado. Não abri os olhos, sabendo que era Rebeca e a comida,
como prometeu. Estava receoso de ser mais realista do que fui ao
carro, porque a pessoa que ela achava que era na foto poderia não
ser a tal princesa que lhe deu a corrente. Só teríamos certeza no
momento que a paciente recobrasse a consciência.

— Boa noite, Tias — ela sussurrou antes de sair.

Tinha certeza de que aquela não seria uma “boa noite”.


Achei estranho meu pai não ter rebatido as ideias da minha
mãe e irmã quanto à campanha de doação de medula óssea. As
duas foram no banco de sangue da cidade para serem cadastradas
no sistema e depois, vieram no hospital me avisar.

Estava tentado em dizer que Yasmin não era uma candidata


para tal procedimento, porque sua imunidade estava mais baixa que
o normal e os exames não seriam aprovados para entrar no centro
cirúrgico.

Na recepção da ala dos internados, eu trabalhava enquanto


minha mãe e irmã estavam de visita para executar a campanha.

— Quanto tempo para confrontar as informações, filho? —


minha mãe questionou enquanto eu olhava um prontuário entregue
pela enfermeira.

— Preciso terminar minha ronda primeiro para...

— Podemos vê-la? — Rebeca interrompeu. Eu sabia que ela


estava se controlando para não sair correndo e invadir o quarto da
mulher.

— Maria, conseguiu entrar em contato com a família da


paciente Yasmin Cardoso dos Santos? — perguntei para
enfermeira, que olhou no sistema de computador e negou com a
cabeça. — Está aqui particular ou por plano de saúde?

— Plano de Saúde.

— Então, alguém tem que vir apresentar a carteirinha dela —


questionei assombrado.

— Tudo foi feito antes da ambulância pegar a paciente em


casa. Os papéis da internação foram assinados, está tudo certo.
Quer que continue tentando contato?

— Sim, por favor. Para os dois contatos — respondi pensando


que a loucura da minha mãe e irmã poderia dar certo. Sem a
autorização do responsável, já que Yasmin estava debilitada para
assumir por conta própria, não poderemos entrar em centro
cirúrgico.

Percebi, tardiamente, que tinha sido contagiado pela


esperança e, para mim, na posição que estava, era tão perigoso.

Olhei para as duas, que me admiravam como um super-herói


e fechei a cara. Elas precisavam me deixar trabalhar, senão poderia
sofrer mais do que elas no final.

— Dez minutos de visita, então, as duas podem ir embora


para me deixar trabalhar.

— Puxou essa simpatia do pai. — Minha mãe apertou minha


bochecha, sorriu para enfermeira e foi com minha irmã entrar no
quarto de Yasmin.
Precisava parar de tratá-la pelo nome, quando mais eu a
visse como paciente, melhor.

— Sempre admirei seus pais. Eles têm um coração enorme


— Maria, a enfermeira, falou sorridente.

— São os melhores. Com licença. — Devolvi o prontuário,


segui para a minha ronda.

Quando consegui uma folga, fui para o quarto onde as duas


estavam e me surpreendi ao ver que conversavam com a paciente.

— Sim... eu lembro... — Yasmin falou baixo, o som era fraco e


triste, atingindo meu coração e me deixando estático na porta.

— Você é minha princesa! Eu vou doar minha medula para


você, porque estou com o nosso amuleto da sorte. É real! —
Rebeca falou empolgada e precisava intervir, porque essa
esperança falsa, dada ao paciente, era muito cruel.

Hesitei quando a ficha caiu. A mulher, realmente, era a


pessoa da foto. Minha irmã a reconheceu, mesmo que não fosse tão
fácil. Pelo visto, a paciente conseguia se conectar com as pessoas
de forma inexplicável.

— Você é compatível? — a voz de Yasmin soou mais firme.

— Desculpe minha filha, ela não para de falar em você desde


que a viu. — Minha mãe intercedeu e dei a volta na cama para que
fosse visto. A mulher na cama estava hipnotizada pelas duas e não
reparou minha presença. — Fizemos a coleta de sangue hoje. Meu
filho, que é seu médico, irá providenciar que o procedimento de
verificar a compatibilidade seja feito de forma rápida. — Ela apontou
para mim e, finalmente, encarei os olhos de Yasmin. Opacos, pouca
vida e curiosos.

— Olá, Yasmin, como se sente hoje? — perguntei colocando


o estetoscópio no ouvido para auscultar seus batimentos cardíacos,
além dos pulmões.

— Estou... bem.

— Que bom. Será que conseguirá comer algo? — Segurei


seu rosto, olhei a parte de baixo dos olhos e senti sua pele delicada
e fina sob meus dedos. Ela parecia tão assustada, ao mesmo tempo
que resistente a se render.

— Vou tentar.

— Eu posso te ajudar. Hoje não fui à aula, então, tenho o dia


inteiro livre! — Rebeca chamou atenção, soltei seu rosto e ela
encarou minha irmã forçando um sorriso.

— Mãe — chamei sua atenção e ela me encarou daquele jeito


quando estava tramando algo que eu não concordaria. — Rebeca
tem uma redação para entregar hoje.

— Falei com os professores dela antes de irmos para a coleta


de sangue. Está tudo certo, amanhã ela entrega.

— E eu preciso ler para você, já que não saiu do quarto no


domingo — minha irmã comentou.

— Elas podem ficar... doutor? — Olhei para Yasmin e decidi


concordar com um aceno de cabeça. Se ela se sentia bem com as
visitas, então, algo de bom estava acontecendo. Eu não impediria.
Ninguém parecia ter percebido, mas eu estive no hospital
conferindo os meus pacientes fora do horário, no fim de semana.
Estava sendo mais forte do que minha razão, estar próximo dessa
paciente.

Yasmin teve alguns momentos acordada, mas não conseguiu


comer direito, o que levaria a inclusão de uma sonda alimentar, caso
não melhorasse hoje.

— Se esse for o seu desejo, sim, elas podem. Quando estiver


muito cansada, avise, que elas irão embora.

— Vou embora só quando você dormir. Mamãe já prometeu


me trazer aqui sempre. — Rebeca segurou na mão dela com
delicadeza e agora, Yasmin sorria.

— Que coincidência... Rebeca. Lembro de você...


pequenininha...

— E eu, de você. Assim que meu sangue combinar com o


seu, te devolvo a correntinha, você precisa do amuleto da sorte mais
do que eu.

Minha irmã era impulsiva demais, como controlar Rebeca


“Meleca”? Mesmo com dezoito anos, parecia ter seus dez, quando
chegou à família.

— Tem alguém que gostaria que chamasse, Yasmin? —


Lembrei dos seus familiares me posicionando os pés da cama. Ela
me olhou triste e deu de ombros, o que partiu meu coração e com
certeza fez pior com os da minha mãe e irmã.

— Meus pais são... ocupados.


— Sobra mais tempo para nós! — Rebeca se adiantou e fez
um movimento com a mão para mim. — Vá lá pegar a comida, ela
precisa se alimentar bem.
Eu acreditava na ciência, na determinação e poucas vezes na
esperança. Milagres? Eu ajudava os pacientes a acreditarem, mas
não eu, ainda mais quando sabia a matemática de um tratamento,
pior ainda as estatísticas de um paciente em estado terminal.

Positivo.

A compatibilidade de Rebeca com Yasmin se confirmou como


ela previu e estava tentado a repetir os exames, porque era uma
situação surpreendente demais para ser verdade.

Quando, numa vida, você conseguiria retribuir o favor de dar


esperança para alguém que te fez isso, sem pretensão, anos atrás?

A partir daquele momento, com as mãos suando pelas


emoções que estava sentindo, entrei em um caminho sem volta.
Não conseguia enxergar Yasmin como sendo apenas um caso, era
uma pessoa atrelada a vida da minha irmã adotiva. Ou seja, fazia
parte de mim também.

Não tinha conseguido acionar os contatos de Yasmin ainda e


com ela parecendo mais disposta, poderia assinar por si a
realização do procedimento. Em seu prontuário, não havia nenhuma
restrição quanto a sua autonomia.
— Quantas vezes vocês tentaram falar com os familiares da
paciente? — perguntei um pouco chateado para enfermeira Maria.
Ela já deveria ter conseguido acioná-los.

— Doutor, pegamos até um número que a própria Yasmin


passou, mas ninguém atende. Estou fazendo o máximo que consigo
— ela respondeu com seriedade. Afastei-me dali, porque meu
humor, que normalmente era tranquilo, estava alterado.

Entrei no quarto de Yasmin e ela, com um sorriso sereno, me


encarou. A fragilidade da sua situação e os laços que nos uniria a
partir dessa doação de medula me deixavam confuso.

Alguns poderiam achar que eu estava exagerando quanto ao


que estava sentindo por essa paciente. Amar Rebeca fazia com que
todos que cuidaram dela antes de chegar em nosso lar, fossem
especiais. Eles, inclusive os pais que a abandonaram, deveriam ser
reverenciados. Essa era a forma que eu agradecia a existência da
minha irmã.

— Oi — sussurrou. — Eu queria me sentar, doutor. Será que


posso?

Demorei muito tempo para agir, por isso não respondi, apenas
ajudei-a com a posição. Apoiei suas costas com as mãos, o que me
fez ter a certeza da sua debilidade e magreza.

— Obrigada, não aguentava mais ficar deitada. — Ela


respirou fundo várias vezes, com certeza era um esforço imenso. —
Em casa, eu tentava me manter sempre sentada, mas hoje, parece
que não tenho energia para nada.
Mal sabia ela que sua força estava sendo reestabelecida.
Mesmo que por pouco tempo ou que, a qualquer momento, sua vida
pudesse ser tomada. Seu timbre de voz estava mais firme e seu
sorriso cada vez mais amplo.

Esperança era uma emoção intrometida que não pedia


licença para dominar seus pensamentos. Quando menos esperava,
você já estava sentindo.

Eu queria que ela melhorasse e ficasse com a mesma


aparência daquela foto que Rebeca tinha no seu pingente.

— Não conseguimos falar com seus contatos. Tem algum


outro parente que podemos acionar? — questionei sério e ela
deixou os ombros caírem.

— Se precisar assinar alguma coisa do meu plano de saúde,


eu faço. Meus pais estão de férias, minha tia Marina está viajando a
trabalho, eu estava em casa com uma cuidadora. — Ela me olhou
preocupada por ainda me manter sisudo. — Não julgue meus pais.
Se eu estou há mais de três anos cansada dessa luta, imagine eles,
que não podem fazer nada a não ser... — Deu de ombros.

— Estarem ao seu lado. — Mordi a língua, não cabia minha


colocação naquele momento, estava infringindo a moral médica.
Pelo visto, com Yasmin, eu quebraria muitos protocolos. — Me
desculpe, esqueça o que eu disse.

— Tudo bem, doutor, você também é humano. — Ela segurou


minha mão e me permiti sentir a conexão com Yasmin, vinda de
Rebeca, aquela que iluminou a minha família. Não que
estivéssemos na escuridão, mas minha irmã trouxe a constância da
luz.

— Sábias palavras, obrigado por compreender. — Ajudei-a


deitar-se novamente quando demonstrou sonolência, ela se ajeitou
na cama e suspirou.

— Vinte e cinco anos e uma experiência de oitenta. — Ela


segurou no meu jaleco e admirou. — Estava concluindo os estudos
para iniciar a residência médica quando descobri a leucemia. Acho
que foi mais duro para os meus pais me verem desistir da formação
do que me ver definhar pela doença. — Soltou o tecido e fechou os
olhos. — Esse foi o único período da minha vida que pensei apenas
em mim. Não que esteja feliz com a doença, apenas que ela veio e
me mostrou que posso enfrentar meus pais e impor meus sonhos
para eles.

— Não queria ser médica?

— Se eu sair dessa, serei Assistente Social ou Enfermeira. —


Ela me olhou e, pela primeira vez, havia um brilho em seus olhos. —
Farei meus pais se orgulharem ou apenas me misturarei com o
universo. Estou aceitando qualquer resultado, não sou exigente.

— Pais amam de formas que não entendemos.

— Sim. Os meus fazem o seu melhor, não tenho rancor


quanto a isso, a minha vida é assim.

— Hora do almoço! — A enfermeira apareceu com uma


bandeja de comida e, antecipando-me, ergui a cama de hospital
para que ela pudesse se servir.
— Obrigada por me escutar, doutor Matias — Yasmin falou
com tanto carinho que não consegui evitar sorrir para aquela mulher.
A serenidade como encarava a solidão lhe deixava com a alma
intacta e forte.

— Foi um prazer. E acabei esquecendo de falar algo


importante.

— Precisa de ajuda, querida? — A enfermeira se ofereceu e


Yasmin a dispensou. — Volto daqui a pouco para pegar, qualquer
coisa, só chamar.

Voltei para perto dela, ajeitei o travesseiro nas suas costas e


ganhei outro de seus sorrisos carinhosos. Por Deus, o que estava
acontecendo comigo? A beleza de Yasmin estava além dos ossos
salientes, debilidade, pele sem pelos ou cabeça sem cabelo. Era na
alma que me conectava, e eu estava cada vez mais atraído pela sua
força.

— Você lembra que minha irmã colheu sangue para ver a


compatibilidade da medula com a sua ou qualquer outro da lista de
espera?

— Às vezes, acho que é coisa divina, me dar Rebeca de volta


antes do meu fim. — Tomou um pouco da sopa.

— Ela é compatível com você, Yasmin. Se estiver disposta a


tentar, iniciarei a preparação para a doação de medula.

Ela deixou a colher dentro da bandeja, sua boca se abriu e os


olhos assustados me fizeram rir.
— O quê? Achou que minha irmã era o prenúncio do seu fim?
Você pode estar enganada — falei divertido sem imaginar o peso
dessas palavras para nós, todos nós.

— Ela... eu... ainda tenho chance? Posso receber? Não sou


um caso terminal?

Sorri e ela refletiu minha ação, porque o mesmo sentimento


que já tinha me dominado, havia sido compartilhado com ela, a
esperança.

— Você tem no mínimo cinco dias para melhorar o resultado


dos seus exames. Rebeca vai tomar alguns medicamentos para
aumentar a quantidade de células-tronco no sangue e então,
entraremos no centro cirúrgico para tirar dela e colocar em você.

Em choque, ela voltou a comer e olhar para a parede como se


estivesse em transe. Esperei que ela digerisse a comida tanto
quanto a informação. Yasmin estava melhorando um pouco a cada
dia, era possível que se mantivesse bem até a hora do
procedimento.

Essa era a minha parte, o resto dependeria da resposta do


paciente e, quem sabe, de “outro” milagre.

Ela terminou de comer tudo, fez uma careta divertida e tomou


o copo de suco.

— Comi até as cebolas, que odeio. O que tiver que fazer, eu


faço, só me diga o quê. — Yasmin se ajeitou na cama, me olhou
com um brilho nos olhos de determinação e senti, dentro de mim,
que essa doação de medula óssea mudaria nossas vidas.
— Está tudo bem, filho? — meu pai perguntou enquanto nos
preparávamos para o procedimento de doação de medula dias
depois do resultado da compatibilidade de Rebeca. Não iríamos
trabalhar diretamente na execução, mas ficaríamos por perto para
acompanhar minha irmã e Yasmin.

— Sim, confiante.

— Não é errado ter esperança, mesmo na nossa posição de


médico. — Ele terminou de pôr a roupa e foi lavar as mãos. — É
minha filha envolvida, impossível me desligar afetivamente do caso.
A mesma coisa com você.

— Tudo bem — falei apenas para não gerar desconfiança. A


verdade era que me encontrava envolvido além do que cabia à
minha irmã.

A força de vontade de Yasmin em recuperar suas forças, seu


jeito maduro de não julgar os pais, mesmo não estando ao seu lado,
me faziam admirá-la. Não só eu me via envolvido com ela, mas
todos os profissionais da saúde que a atendiam. Ela conseguia
cativar todos com sua postura.
Estava arrebatado. Preferia não assumir, não quando minha
vida se ligava a sua pela medicina, além de Rebeca.

Minha irmã esperava em uma sala cirúrgica para punçar a


medula do interior do osso da bacia, e Yasmin em outra para
receber, ambas seriam anestesiadas.

Entrei primeiro com meu pai, para iniciarmos o procedimento


com minha irmã. Ela irradiava alegria, passou a semana inteira
realizada por poder ser aquela que ajudaria sua princesa. Com sua
correntinha, ela teria dado sua sorte e agora, com a medula da
minha irmã, devolveria o favor.

— Até daqui a pouco, meu anjo — meu pai deu um beijo na


testa dela e se afastou. Outro profissional colocou a máscara de
respiração com a anestesia em seu rosto e em segundos, ela
apagou.

Foram feitos todos os procedimentos conforme o previsto, a


medula foi retirada e eu, junto de um enfermeiro, iríamos levar para
Yasmin. Quando viramos para sair da sala, o barulho mais
aterrorizador do mundo soou, era a queda de pressão da minha
irmã.

Algo deu errado.

— Vá para o outro paciente, eu estou com ela, doutor Matias


— meu pai ordenou como sendo chefe da situação. Saí da sala com
meu coração apertado e a cabeça confusa.

— Não deve ser nada — o enfermeiro falou e não respondi,


estava em uma guerra interna ao perceber que minha irmã poderia
morrer em um procedimento básico, numa tentativa de salvar
alguém que já estava com os dias contados.

Uma vida saudável por uma vida incerta. Esse era o preço?

Tentei desanuviar minha mente, era médico e precisava tratar


todos com igualdade, como pacientes.

Entramos na sala de cirurgia de Yasmin e não registrei o


procedimento que acontecia. Estava em piloto automático,
esperando alguém vir me dar a notícia que eu poderia me culpar
pelo resto da vida.

Quando tudo terminou e a paciente com câncer foi levada


para seu quarto, meu pai me esperava do lado de fora com um olhar
aliviado. Consegui respirar melhor depois do toque da sua mão no
meu ombro.

— Sua irmã nos deu um susto daqueles.

— O que aconteceu?

— Ainda não sei. Pode ser reação à anestesia ou outra coisa,


vou consultar um especialista depois que passar pelo pós.

— Meu Deus, eu quase tive um infarto — falei baixo e


seguimos para a sala dos médicos. — A mãe está com ela?

— Sim, e a mãe da sua paciente também apareceu. Acho que


ela viu no extrato de utilização do plano de saúde o procedimento.
— Apertou meu ombro. — No final, tudo é como tinha que ser.

— Sempre positivo, doutor Paulo Chagas. — Bati na sua mão


e entramos na sala dos médicos para descansar um pouco, porém,
não consegui. Queria ver a mãe de Yasmin, mesmo que outro
profissional já tivesse repassado todas as informações.

Levantei da poltrona que estava, andei por algumas alas do


hospital e cheguei nas internações, onde minha irmã e ela estavam.

Bati na porta, abri e encontrei uma senhora muito parecida


com a da foto que estava no pingente de Rebeca. Era a mãe de
Yasmin, com certeza.

— Olá, doutor — ela falou contendo o choro e apertou minha


mão. — Por que fizeram o procedimento apenas agora, depois de
tanto tempo?

— Apenas hoje encontramos um doador compatível. Como


não conseguimos contato com nenhum responsável, quem decidiu
foi o próprio paciente — falei sério e tentei me portar como
autoridade. Muitos me descartavam por conta da idade.

— Até quando vamos ter que lidar com isso? Não aguento
mais as despesas, os choros, as desilusões — ela falou se
aproximando da cama. Tentou tocar no corpo da filha, mas não
conseguiu, voltou a se aproximar de mim.

Percebi que a correntinha e um pedaço de papel dobrado


estava na mesa de cabeceira de Yasmin. Coisas da minha irmã e
mãe, com certeza, mas não chamaram a atenção da mulher.

Estava difícil não criticar a mãe que não apoiava sua filha,
ainda mais que parecia muito saudável e bem-vestida. Dinheiro não
deveria ser um fator crítico quando o assunto era saúde. Tentei
recordar sobre o que Yasmin tinha falado, os pais estavam de férias.
— Só vim para saber como estava, ela não quer nossa
presença, faz questão de dizer a todos que sabe se virar sozinha, é
independente e autossuficiente. — Suas palavras continham dor, a
mãe saiu do quarto e me deixou com muitas perguntas. Uma delas
era: o que havia de verdade no relacionamento familiar da minha
paciente?

Era prudente ir até Rebeca e saber como ela estava, mas


uma força invisível pregava meus pés no chão daquele quarto.
Estaria fora da minha jornada em poucos minutos, o que me
permitiu ficar até que acordasse. Ela não tinha forças para sorrir
com os lábios, mas com certeza, teve com os olhos assim que me
viu. Aproximei-me lentamente e peguei sua mão.

Tínhamos uma conexão estranha e não lutava mais contra


ela. O procedimento tinha dado certo, era tempo de manter atenção
e cuidar da sua saúde.

— Como foi? — Quase não escutei sua voz.

— Tudo bem. Quando estiver melhor, conto os por menores.


— Peguei a corrente e o papel ao seu lado. — Você tem um
presente.

— Leia para mim — pediu e coloquei o objeto na sua mão.

Quando abri o papel dobrado, um nó se formou na minha


garganta. Era a redação de Rebeca para a escola, sobre o presente
de vida, como tudo começou.

“Título: A princesa perdida


Uma menina sonhou que era uma princesa perdida. Em seu castelo
chamado orfanato, não desistiu de encontrar o seu verdadeiro
reinado. Porém, ela sempre foi a mais velha, a mais rejeitada. Para
se adaptar, ela precisou se disfarçar de criança. A cada adulto que
ela via, criava expectativas de que pudesse ser aquele que a
resgataria.

Então, não foi um adulto que lhe fez ter esperança sobre suas
origens, mas uma adolescente, com semblante carrancudo. Assim
que a menina a tocou, percebeu que havia encontrado a conexão
que tanto esperava. Linda e carinhosa, a garota lhe deu uma
correntinha preciosa, aquele que não a deixaria esquecer desse dia
nunca mais.

Seria o momento da princesa perdida encontrar seu reino?

Com seus artifícios de criança, a princesa tentou ser resgatada, mas


foi, novamente, descartada. A adolescente foi embora. A esperança
acabou. A realidade estava prestes a massacrar um coração.

O tempo de solidão não durou muito. Dois dias foram necessários


para que o amuleto da sorte fizesse efeito.

A princesa foi levada para o castelo que tanto sonhou. Conheceu


uma nova forma de amar e cresceu, se tornando tão jovem e bonita
como a adolescente que tinha se conectado há oito anos. Por mais
que a princesa tivesse encontrado seu reino, ainda existia algo
perdido em sua alma.
Foi através de seu corajoso príncipe irmão, que em nenhum
momento a tratou com distância ou um ser intruso, que ela
finalmente encontrou o que estava perdido em sua vida. A princesa,
finalmente, poderia recuperar o pedaço de amor que a adolescente
levou consigo quando partiu do orfanato.

Deveria ter sido ao contrário, não era mesmo? Afinal, a adolescente


deixou seu amuleto com a princesa.

O inimaginável era como poderia recuperar esse pedaço de amor.


Através da doação da fonte da vitalidade da princesa, as duas
conseguiram equilibrar a balança.

E onde está o presente da vida em toda essa narrativa?

Na conexão inquebrável que as duas teriam através do príncipe que


dedicou sua vida para fazer o bem. No final das contas, cada um
dos envolvidos se tornaram pedaços. Roubados ou compartilhados,
cada ato de amor conectava essas almas. Quando a garota
precisou, a princesa entregou o seu pedaço. Agora, era a vez da
adolescente – que hoje já é mulher – retribuir.

Enquanto houvesse amor para compartilhar, a princesa não se


cansaria de juntar os pedaços de amor para, enfim, se encontrar.”

Enxuguei a lágrima que escorreu do meu rosto e percebi que


Yasmin já tinha derrubado uma enxurrada delas. Por impulso, beijei
sua testa e limpei seu rosto com minhas mãos.

— Ela tem o dom da escrita. Como não amar essa menina


como se fosse minha irmã? É possível se apaixonar por alguém tão
rápido, de forma fraterna? — perguntou mais forte e emocionada.

— Da mesma forma que eu a amo desde o momento que ela


espirrou em mim e me encheu de meleca. — Apertei sua mão e
deixei o papel em cima da mesa. — Minha mãe sempre diz que as
emoções não se explicam, se sentem.

— Obrigada por ter me devolvido a vida. Concordo com ela,


você me ajudou a recuperar um pedaço meu que estava faltando
para viver a vida com plenitude — Yasmin sussurrou e fechou os
olhos, provavelmente sentindo o momento.

— Você também é meu — falei baixo por impulso. Não


poderia expor minha confusão de sentimentos, para não a iludir com
algo que poderia ir além de médico e paciente. Eu estava
extrapolando limites.

Afastei-me e saí do quarto impactado. Não estava sabendo


lidar com minhas emoções, precisava sumir.
Um ano depois...

Depois do meu transplante de medula, tudo da minha vida


mudou, inclusive meu relacionamento com meus pais. Por me sentir
culpada, eu os afastei, eles me respeitaram e me deixaram sozinha.
Definhei por muito tempo... até encontrar a esperança, através da
menina chamada Rebeca.

Ela não só me devolveu a vontade de viver, como me


despertou para o amor, em todas as formas. Amor de filha para
mãe, amor de amiga-irmã e amor de homem e mulher.

De tanto escutar Rebeca falar sobre o irmão, alimentei uma


paixão à distância pelo meu médico. Era fácil me iludir, ainda mais
que ele foi a única referência masculina possível de me relacionar
no período de tratamento da doença.

Por isso, uma semana depois do procedimento, momento que


tive toques e carinhos do doutor Matias, pedi transferência para
outro hospital. Estava com medo do que Rebeca dizia, não me
sentia digna de ser amada por alguém. Minha mãe interveio e, ao
invés de estar em outro centro de tratamento na mesma cidade, ela
me levou para o melhor do país, em outra capital.
Ela assumiu as rédeas de mãe, me colocou no lugar de filha e
juntas, reconstruímos nosso relacionamento, um que nunca tivemos,
de intimidade e carinho. Meu pai continuou como sempre, distante
emocionalmente, mas presente na medida do possível. Não
importava, o colo da minha mãe valia pelos dois e minha
recuperação caminhou de mãos dadas com a união familiar.

Rebeca>> Já comprou a passagem para vir me ver?

Yasmin>> Você está muito ansiosa. O que está


planejando?

Rebeca>> Pergunte para minha mãe e para o Tias, só faço


coisas boas. Quando vem?

Yasmin>> O quanto antes. Minhas últimas consultas já


aconteceram, finalmente vou poder viver sem estar em função
da doença.

Rebeca>> Poderia ter feito antes, sendo minha cunhada,


do meu lado. Mas te perdoo, porque está voltando.

Yasmin>> Nunca tive nada com seu irmão. Foi meu


médico, apenas isso. Você gosta de me confundir, dizendo que
ele gosta de mim, mas não admite, por conta da ética.

Rebeca>> Tias esconde bem o que sente, mas eu o


conheço. De tão alegre, chega a estar em negação. Ele gosta de
você, dê uma chance.

Yasmin>> Preciso resolver uma coisa, depois


continuamos a conversa.
— Tem certeza disso, minha filha? — Olhei do celular para
minha mãe e mostrei a língua. Sabia que a irritava, mas também lhe
arrancava alguns sorrisos.

Um ano se passou e estava de volta. Minha aparência havia


mudado, os cabelos estavam grandes, a pele fortalecida e a
autoconfiança, em reconstrução. Quilos a mais me davam aparência
saudável, sentia vontade de me maquiar e cuidar de mim.

A força para voltar a viver transbordava pelo meu sorriso,


estava em remissão.

O questionamento da minha mãe, sobre eu ter certeza do que


iria fazer, era para não abalar o que demorei para construir. Mesmo
sem saber se era verdade os sentimentos de Matias, iria revê-lo e
me dar uma oportunidade de me apaixonar. Por me manter em
contato com Rebeca, eu relembrava os momentos compartilhados
com meu médico e interpretava de outra forma a minha vivência.
Alimentei meus próprios sentimentos platônicos, eu queria tentar ser
amada.

Rebeca se tornou minha confidente, irmã, a melhor. Ela torcia


muito para que um dia eu conseguisse reencontrar Matias e
pudéssemos iniciar algo. Se tivesse uma vaga de cupido, Rebeca
seria admitida sem teste.

Independentemente do que poderia acontecer, eu estava forte


o suficiente para entrar em uma batalha no momento. Estava me
sentindo forte para guerrear com todos.
Eu me apaixonei por uma ilusão, plantada por Matias e
cultivada por Rebeca. Estava na hora de transformar o sonho em
realidade.

— O não eu já tenho — respondi-a pegando minha bolsa.


Estávamos no meu quarto e íamos para o hospital, onde Matias
ainda trabalhava.

— Faz muito tempo que vocês não se falam.

— Rebeca me manteve informada. Ele está solteiro e eu


também, é um tiro no escuro que quero dar.

— Você não poderia só focar nos estudos e esquecer


relacionamentos?

Beijei o rosto da minha mãe, fui para a sala de casa e ela me


seguiu. Chegamos na garagem, ela apertou o botão do alarme do
carro e liberou a entrada nele.

— Mãe, carreira profissional é muito importante, mas não é


tudo. Rebeca diz que ele sofreu quando fui para outro hospital, que
ele gostava de mim. Só quero saber se esse sentimento ainda
existe, porque eu... hoje eu quero me mostrar interessada.

— Tudo bem, vamos lá. Agora que aprendi a te dar colo


emocional, nunca mais o negarei. — Demos as mãos, ela deu
partida no carro e fomos juntas para o hospital.

A viagem foi tranquila e não tivemos dificuldade com o


estacionamento. Assim que entrei no local que serviu de ponto de
virada na minha vida, dei de cara com uma das enfermeiras que me
atendeu. Ela me reconheceu na hora, abracei-a com força e me
senti vitoriosa. Apesar de ter que sempre cuidar da minha saúde,
fazer mais exames regulares do que os outros, eu estava bem, viva
e feliz.

— Veio visitar a gente e dar esse presente da sua


recuperação? — a enfermeira falou e eu concordei com a cabeça.
— Vou com você, faço questão.

Ela de um lado e minha mãe de outro, caminharam comigo


pelo hospital, depois pelo elevador. Quando chegamos na parte de
internação, lá estava ele, compenetrado em algum prontuário.

Não tinha avisado Rebeca que estaria aqui. Sei que me


matará, mas precisava agir em silêncio, porque a surpresa também
era para ela.

— Oi! — chamei a atenção de Matias. Seu olhar para mim foi


algo emocionante de se ver. Seu sorriso ampliou, ele não parecia
triste ou magoado, mas orgulhoso.

Largou o prontuário de um lado e foi me abraçar, momento


esse que minha mãe e a enfermeira se afastaram e me deixaram
aproveitar. As evidências que Rebeca me dizia parecia se
concretizar com sua recepção calorosa. Ele gostava de mim!

— Você está bem? — perguntou sussurrando.

— Sim, e também, estou de volta à cidade. Vim para ficar. —


Inspirei seu perfume, a minha paixão platônica ganhava forma.
Separamo-nos e retirei a correntinha do pescoço, que era mais de
Rebeca do que minha. — Devolva para sua irmã e diga para não
brigar comigo. Eu não falei que vinha, mesmo tendo trocado
mensagens com ela há menos de uma hora atrás.

Ele fechou a mão com a corrente, encarou-me divertido e


depois olhou para os lados, ficando encabulado ao perceber que
estávamos com plateia.

— Oh, oi. Tudo bem? — Estendeu a mão para a minha mãe e


depois me encarou. — Quer jantar lá em casa?

— Vai ser bom rever Rebeca. Vou sim — respondi animada,


sem pestanejar. Caramba, ele gostava de mim! Pelo menos era o
que eu estava me iludindo com sua cordialidade. Não éramos mais
médico e paciente, esse tipo de intimidade não era uma violação de
ética ou bons costumes.

— Doutor Matias? — uma enfermeira chamou, ele me


abraçou novamente e sussurrou:

— A visita para minha irmã terá que ser adiada. Eu não moro
mais com meus pais. Vou pegar seu número com Rebeca e
conversamos mais tarde.

Corei dos pés à cabeça vendo-o se afastar. Minha mãe


percebeu e me empurrou de volta para o elevador antes mesmo de
cumprimentar os outros profissionais.

— O que ele falou, Yasmin? — minha mãe quis saber


carrancuda.

— Que estava feliz em me rever. — Fantasiei com nosso


jantar. Quem convidaria uma pessoa em um local tão íntimo como
seu apartamento?
— Está feliz? — Saímos do elevador e a abracei de lado. —
Teve sua resposta?

— Talvez eu demore um pouco mais para tê-la, mas não


importa, hoje o dia foi maravilhoso. Obrigada, mãe. Você sempre
terá um pedaço do meu amor.

— Você tem o meu, minha filha. Meu amor transbordou do


peito e gerou você.

Mesmo tendo a sombra de uma doença tão agressiva,


descobri que era possível recomeçar. As pessoas estavam se
tornando presentes para o meu recomeço e a vida brilhava em
meus olhos cheio de esperança.

Sem medo de trilhar meu caminho, escolhi encontrar os meus


pedaços que perdi enquanto me tratava. Eu tinha o amor de filha, da
amiga, era tempo de me achar como mulher.
Alguns dias se passaram desde meu encontro com Matias no
hospital. Rebeca soube do meu retorno e nossa troca de
mensagens se tornou em encontros presenciais.

Decidimos nos encontrar no shopping, olhamos vitrines e


fizemos planos para a faculdade. O processo seletivo para ingressar
no curso de enfermagem na próxima semana estava agendado.
Estudei por conta própria para realizar a prova, era na mesma
instituição que minha amiga cursava jornalismo.

Depois da tarde agitada, estava exausta no meu quarto,


deitada na cama, assistindo um seriado pelo tablet.

Meu celular vibrou ao meu lado, indicando o recebimento de


uma mensagem. Era aquela que tentei não pensar para não parecer
uma desesperada. Estava bem, viva, precisava dar o próximo passo
para ser uma garota normal.

Desconhecido>> Pronta para experimentar meus dotes


culinários?
Olhei para o texto tentando acalmar meu coração. Poderia ser
Matias ou uma mensagem errada. Como ele não morava mais com
os pais e não comentou nada com a irmã, deixei para contar a
Rebeca sobre o jantar com seu irmão depois que realmente
acontecesse.

E se eu estragasse tudo?

Lutando contra meu lado depreciativo, que surgia toda vez


que acontecia algo de bom, larguei o tablet, peguei o celular e digitei
uma mensagem de volta.

Yasmin>> Olá, quem é?

Desconhecido>> Marcou mais de um jantar? Não importa,


meu charme e minha comida serão inesquecíveis como você foi
para mim. É o Matias, Yasmin. Saí tarde do hospital naquele dia
e nos outros, sinto muito por entrar em contato apenas agora.
Prometo compensar.

Rapidamente adicionei seu número nos meus contatos. Senti


minhas mãos suarem e a antecipação nervosa dar força para
minhas inseguranças. Digitei e apaguei várias mensagens, até
conseguir enviar um simples:

Yasmin>> Oi. Eu só marquei com você.


Meu Deus, isso estava acontecendo de verdade? Tentei
apagar mesmo sabendo que ele tinha lido e consegui, porém,
apenas para mim.

Matias>> Pode ficar tranquila que não deixarei Rebeca ler


nossa conversa. Minha irmã acha que vocês são uma pessoa
só. E então, podemos jantar amanhã?

Yasmin>> Rebeca é minha única amiga, ela não desiste


fácil.

Matias>> Farei seu prato preferido, colocarei velas, serei


um perfeito cavalheiro ou príncipe de contos de fadas. É
apenas um jantar, queria saber como foi seu ano longe de mim.

Era a confirmação que eu buscava. O homem era irresistível


e galanteador. Como não se apaixonar? Parecia que eu estava
desconversando, mas eu queria estar com ele desesperadamente.

Yasmin>> Você me passa seu endereço e a hora que


poderei aparecer? Claro que irei, já tinha concordado no
hospital, não mudarei de resposta por nada nesse mundo.

Matias>> Não sou perfeito assim, mas vou aceitar tudo o


que está por trás da sua preferência. Estou precisando amaciar
meu ego hoje.

Yasmin>> O que aconteceu?

Matias>> Nada fora do normal. Até amanhã.


Yasmin>> Boa noite, doutor Matias.

Mordi o lábio inferior, não sabendo se soou estranho tê-lo


chamado com a sua profissão na frente. Apesar do empurrão de
Rebeca, estava atraída pelo médico, mas acima de tudo, pelo
homem existia por detrás do jaleco.

Verdade seja dita, eu não o conhecia fora do hospital. Talvez,


todo o encanto se desfizesse no primeiro momento que finalmente
estaremos juntos, sem minha doença entre nós.

Peguei o tablet, para voltar a assistir e esperar que o sono


viesse induzido pelo cansaço, mas passou horas e nada da minha
mente espairecer. Além do conteúdo audiovisual, tinha o conflito
mental de eu ser suficiente ou não.

Ainda bem que ninguém invadia minha cabeça. A pose de


confiante e determinada que eu mantinha do lado de fora não tinha
nada a ver com o que eu realmente sentia.

Forcei o sono a vir e acordei cedo, me sentindo descansada o


suficiente, mesmo que parecesse improvável. Iniciei minha rotina
matinal, despedi-me do meu pai que saiu para trabalhar sozinho, já
que minha mãe teria mais alguns dias de folga por conta de ainda
estar de atestado para me acompanhar.

Percebi que os dois não tinham trocado o beijo costumeiro de


despedida e, pela primeira vez, senti algo diferente entre os dois.

— Está tudo bem, mãe? — perguntei enquanto ela lavava a


louça do café da manhã. A diarista passou a vir apenas uma vez por
semana, por conta dos gastos em excesso comigo.

— Sim. E você? Dormiu tarde novamente? — Olhou-me por


cima do ombro.

— Estava assistindo uma série, perdi o horário. — Dei de


ombros. — Mas, e você e o papai? — Insisti.

— Como assim, filha? — percebi que estava se fazendo de


desentendida, ela costumava piscar os olhos com força quando
falava sobre um assunto que não lhe agradava.

— Papai não te deu um beijo de despedida quando saiu.

— Ah, é? Nem reparei. — Terminou de pôr a última louça no


escorredor e enxugou as mãos no pano de prato.

— Está tudo bem entre vocês? — Cruzei os braços quando


passou por mim e seguiu para dentro, ela realmente queria fugir do
assunto. Segui-a até seu quarto, ela começou a arrumar a cama
demonstrando chateação.

— Somos seus pais e continuaremos sendo, isso é tudo o


que você precisa focar. — Sorriu de boca fechada. — Você voltou,
está curada, é hora de voltar para a faculdade, mesmo que não seja
medicina.

— Ou seja, o tempo que você ficou comigo em tratamento


longe da cidade afastou vocês. — Meu coração apertou quando
percebi que eu tinha me aproximado da minha mãe, mas estragado
sua relação com meu pai.

— Filha, ele é seu pai...


— Que desde o início do tratamento não conseguiu me olhar
nos olhos. — Joguei os braços para o ar, descontrolando meu tom
de voz no caminho. — Se o preço para estar com você é atrapalhar
sua vida, eu troco, mãe. Vou voltar para a faculdade, arranjar um
emprego e...

— Sair de casa? Nem pensar, Yasmin! Você quase morreu,


quase te perdi, eu... — Sentou-se na cama e tampou o rosto com as
mãos. — Perder outra filha, não.

Esqueci-me que, antes de eu ter nascido, minha mãe perdeu


um bebê, fazendo-me a segunda filha, não a primeira. Por mais que
não estivesse viva, ela vinha antes e eu sentia, no meu coração,
que precisava reconhecer a sua posição. Em meio as minhas dores
e tristezas com o tratamento da leucemia, além da minha mãe ter
proibido de falar sobre o assunto, essa informação se perdeu.
Naquele momento, eu a recuperei e fez toda a diferença para me
pôr no meu lugar.

Ia me aproximar para a consolar, mas recuei, voltei para o


meu quarto e me mantive nele por um longo tempo. Como poderia
me aproveitar de um relacionamento mãe e filha, se estraguei o de
marido e esposa? Ou pior, estava causando dor, por fazê-la ter
quase um segundo luto.

Não imaginava o quanto de sofrimento que uma mãe poderia


ter pela perda do seu filho, mesmo ainda no ventre, sem nome ou
expectativas.

Aquela sensação deprimente, o sofrimento de que era um


peso na vida de todos, voltou com tudo dentro de mim. Peguei o
celular e arrisquei digitar uma mensagem para Matias, cancelando
nosso compromisso, mas ainda existia uma luz no fim do túnel. Se
eu conseguisse avançar no relacionamento com ele, talvez eu me
emanciparia.

Conferi as mensagens de Rebeca, que nunca me deixava


sem seus comentários sobre as aulas ou colegas de turma. Ainda
era possível ter uma vida, mesmo que alguns anos foram perdidos
com tratamentos, dores e preocupações.

Deixei de compreender meus pais e resolvi tomar partido da


minha mãe. Ela ainda não me contou tudo o que estava
acontecendo e se dependesse de mim, enfrentaria meu pai para
que assumisse seu papel antes que fosse irreversível.

Só esperava que ainda desse tempo.

Rebeca>> Vai ter um churrasco no final de semana, já


comprei seu ingresso. Vamos nos divertir!

Yasmin>> Será que seu irmão toparia ir?

Rebeca>> Ah, pensando nele novamente? Será que


finalmente vai assumir que é apaixonada desde sempre pelo
Tias? Pode contar comigo, eu serei a cupido.

Yasmin>> Não conte a ninguém ainda, vou jantar com ele


hoje, depois nos falamos.

Rebeca>> O QUÊ? E QUANDO IA ME CONTAR?


Yasmin>> Você está cheia de perguntas, depois nos
falamos.

Rebeca>> A jornalista em mim precisa de DETALHES.


Dos amorzinhos aos sórdidos.

Yasmin>> Mais tarde.

Senti meu coração acelerar e um sorriso despontar dos meus


lábios... A esperança, eu precisava dela.
Matias me enviou a localização, peguei o carro da minha mãe
e segui pelo GPS. Apesar de falar o quanto estava feliz comigo
encontrando meu caminho, minha mãe demonstrava tristeza. Sentia
no seu sorriso forçado e no suspiro depois do beijo de despedida
que lhe dei o quanto eu ir atrás da minha felicidade a incomodava.

Meu pai não tinha voltado do trabalho e parte do que ela


sentia também tinha a ver com ele.

“Em 100 metros, seu destino estará à direita.”

Parei o carro e tentei colocar todos os meus problemas em


uma gaveta. Voltaria a pensar na minha família quando tudo desse
certo com o homem que sonhei ser minha esperança. A paixão que
cultivei à distância estava prestes a ser consumada.

Saí do carro limpando minhas mãos na calça jeans. Falei com


o porteiro e minha entrada foi liberada, indicando o andar de Matias,
o décimo segundo. Caminhei apressada até o hall do térreo e
enquanto esperava o elevador, tentava lembrar a última vez que
tinha me envolvido com alguém.

Tão focada nos estudos e com uma mãe que exigia


resultados, meus namoros se resumiam a beijos sem compromisso,
nos churrascos que fazíamos no fim do semestre. Ah, também teve
aquele veterano, em um grupo de estudo, que me encurralou na
saída da biblioteca e acabei cedendo. Suas mãos de polvo
começaram a tocar além do que estava disposta a oferecer no
momento e interrompi o momento.

Odiava pensar que era vigem. Sonhei em ter um namorado,


viajar quando fizéssemos um mês de namoro, depois de seis meses
morar juntos e um ano nos casar.

Entrei no elevador e não gostei do que vi no espelho, virei de


costas e apertei o botão com o número 12. Não havia nada de
mulher em mim, era apenas um corpo frágil misturada a uma
tentativa de esconder minha debilidade com um penteado diferente,
além de algumas olheiras que esqueci de esconder com o corretivo.
Batom nunca era suficiente para mim, a base era necessária e eu
tinha me esquecido.

As portas se abriram e lá estava ele, sem o jaleco e sem o


olhar preocupado. Era apenas Matias, com seu sorriso acolhedor e
toda aura tranquila.

— Bem-vinda — falou esticando a mão e segui olhando para


baixo acanhada. — Como está?

Abracei-o da mesma forma que retribuiu, senti seu cheiro e


tentei não derramar meu coração antes mesmo de provar sua
comida. Estava desesperada, sabia o quanto os homens poderiam
ser esquivos quando pressionados.

— Tudo bem e você? — questionei soltando-o.


Ele segurou minha mão por um momento, me olhou fundo
nos olhos e indicou para entrar.

— A correria dos plantões e do hospital ainda ocupa boa


parte do meu tempo. — Fechou a porta atrás de si. — Preparada?

— Para o quê? — Andei até próxima da mesa de jantar, que


estava posta para duas pessoas. — Se for falar sobre sua comida,
pare de exagero, eu vou sobreviver.

— Por via das dúvidas, trouxe para casa alguns instrumentos


de trabalho — falou divertido, puxou a cadeira e indicou para me
sentar. — Vou trazer a entrada. Você come salada?

— Sim, obrigada. Tive que aprender a comer de tudo, Matias.

Ele se apressou até a cozinha e olhei ao redor, a sala de um


lado e o corredor de outro. Percebi dois porta-retratos abaixados ao
lado da televisão, mas não dei importância, porque ele tinha voltado
e se sentado na ponta da mesa.

— Então me conte, Yasmin. Como foi o seu tratamento no


centro especializado? — Entregou-me dois molhos de salada. Senti
a pressão da sua pergunta, como se tudo foi planejado para que o
interrogatório fosse menos doloroso do que o tempo que passei por
lá.

— Acho que os detalhes dos medicamentos, exames e


aconselhamentos você já está cansado de saber. O que posso dizer
é que meu relacionamento com minha mãe melhorou, ela nem está
reclamando muito que tentarei outra faculdade que não medicina.
— Fico feliz por isso, mas... por que abandonar seu curto?
Faltava tão pouco, que eu me lembre. — Cortou as folhas de alface
e franziu a testa desconfiado.

— Sim, iria começar os estágios, pensar na residência, mas...


— Olhei para o meu prato e ainda não tinha decidido o que fazer
com aquilo. — Eu quero poder ajudar mais, sabe?

— O que poderia ser mais útil que um médico? — questionou


com ironia. Como tinha várias interpretações, preferi não me sentir
ofendida e segui com outro assunto mais seguro.

— Farei o processo seletivo na mesma faculdade que Rebeca


cursa jornalismo. Terei uma amiga por perto, não serei a velha no
meio dos recém-saídos do ensino médio.

— Lá tem medicina, Yasmin. — Percebi que estava nervoso,


continuava a cortar as folhas sem me encarar e suspirou. — Não vai
comer? O molho parmesão é uma delícia.

— Sim, desculpe. — Temperei minha salada e comecei a


repetir seus movimentos no meu prato. — Estou te imitando bem?
— tentei zombar, mas parecia como se eu quisesse cutucar a onça
com vara curta.

— Você me pegou de surpresa no hospital. Fui impulsivo, tive


que agir... — Colocou a mão na testa e fechou os olhos, ele parecia
estressado. — Desculpe, o problema não é seu. Tudo bem,
faculdade nova, vida nova. — Forçou o sorriso e percebi que tudo o
que via no hospital e agora, nada mais era que parte de uma
armadura.
As certezas sobre os sentimentos dele por mim caíram por
terra. Ele não me queria, nunca sentiu nada além do que simpatia
pela minha situação. Cogitava acreditar que estava sendo um ato de
caridade. Céus, Rebeca nunca me falou sobre seu irmão mentir ou
fingir alguma situação, ele parecia outra pessoa naquele momento.

— Você mudou — constatei e ele finalmente começou a


comer sua salada.

— Um ano é muito tempo para se manter em um mesmo


lugar, com os mesmos pensamentos. — Fez uma careta e largou os
talheres no prato. — Não sei fazer isso, Yasmin.

— Como assim? — Arrastei minha cadeira para trás,


preparando-me para levantar e ir embora. Sentia o cheiro da
rejeição chegar no ar, eu só queria poder não me sentir tão para
baixo. — Fui te ver, sou muito grata por você e sua família me
ajudarem no processo de cura da leucemia. Fui surpreendida
quando me convidou para jantar na sua casa, minhas expectativas
foram lá em cima, mas você parece... incomodado.

— Magoado é a palavra certa. — Olhou-me demonstrando o


poder das suas palavras. — Você foi embora, mesmo que eu
mostrasse o quanto poderia fazer igual ao outro centro de
tratamento. Me envolvi com uma paciente, estava emocionalmente
afetado e não queria te perder. Mesmo debilitada e fraca, eu me
sentia conectado com você.

— E agora que não sou mais um caso para ser analisado,


perdeu o interesse? — Levantei-me com as pernas bambas. A
fraqueza, tanto emocional como física, me fez recordar que não
tinha comido nada naquele dia fatídico, desde a manhã. —
Desculpe se entendi errado, se nos tornamos uma bagunça de
interpretações errôneas, mas não podemos iniciar algo que mal
começou ou o que está desordenado.

— Não era isso que eu queria, Yasmin. — Ficou de pé e dei


um passo para trás. — Queria começar alguma coisa com aquela
mulher que vi perseverar depois da doação de medula, com parte
da minha irmã em seu sistema. — Coçou a cabeça e forçou a
risada, ele estava mais confuso do que qualquer coisa. — O
problema é que você demorou demais. Mesmo assim, meus
sentimentos nunca mudaram.

— Está tudo bem, Matias. — Segurei nos seus braços e


apertei, ele parecia em busca de respostas. Eu não sabia quais
perguntas deveria fazer e tinha medo de descobrir. — Você
continuará sendo especial para mim, talvez estejamos confundindo
um carinho de médico e paciente com o amor de homem e mulher.
Eu sei qual é o meu lugar.

A fechadura da porta de entrada fez barulho, olhamos para a


direção dela e uma mulher linda apareceu sorridente com uma mala
na mão. Assim que nos encarou, perdeu a alegria e parou seu
caminhar.

— Nadja? — Matias perguntou assustado.

— Enviei uma mensagem que iria chegar mais cedo e... quem
é você? — ela me perguntou confusa, olhei para os porta-retratos
virados para baixo e tudo fez sentido.
Matias poderia até gostar de mim, mas como ele mesmo
disse, eu demorei. Havia outra mulher, outro relacionamento e longe
de mim querer bagunçar com sua cabeça, quando a minha
finalmente estava sã.

— Sou Yasmin, amiga da Rebeca. — Forcei a simpatia para


fora e as lágrimas para dentro, elas não poderiam escorrer. Não
existia esperança aqui. — Desculpe alugar o ouvido do Matias, era a
única pessoa que pensei em recorrer quando fiz um exame e deu
alteração.

— Teve? — o médico perguntou assustado e já fui me


colocando longe dos dois, a mulher estava incrédula.

— Eu já vou, adeus.

Apressei-me em sair do apartamento, na direção das escadas


de emergência e deixei as lágrimas caírem enquanto os degraus
faziam o papel de me manterem viva até chegar no carro. Não
poderia ser a causadora de mais uma desunião, já bastava meus
pais, agora Matias. Como Rebeca não me contou sobre o
compromisso dele, ou será que não sabia?

Enfim, iria ficar no passado. O pedaço que eu procurava em


Matias estava perdido. Era tempo de encontrar os outros
espalhados na minha vida pós-tratamento.
— O que está acontecendo, Tias? — Nadja perguntou
quando segui para a porta do apartamento e fiquei olhando para o
hall, esperando que Yasmin voltasse.

Não era para ter sido assim. Planejei na minha mente por
horas e horas como seria a nossa conversa. Deveríamos comer,
faria um pedido de tempo para resolver as coisas antes que
tentássemos nos aproximar e tudo encerraria bem.

A explicação para o rancor que estava expondo, por ela ter


ido embora, era inexistente. Por Deus, nunca tinha pensado dessa
maneira, que seu afastamento para o tratamento de saúde me
machucasse tanto. Estava jogando toda a culpa nela de que me
relacionei com outra pessoa pela sua demora.

Minhas ações estavam irreconhecíveis.

— Matias, entre, precisamos conversar.

Fechei a porta com o peito doendo e as mãos inquietas,


precisava encontrar meu celular, falar com Yasmin, tentar consertar
as coisas. Dei passos lentos até a mesa de jantar e percebi que ela
não tinha comido nada. Droga, a última coisa que precisava era que
sua imunidade baixasse por alimentação irregular.
Peguei os pratos para levar até a cozinha, mas fui impedido
por uma mulher furiosa e que eu tinha um grande carinho. Seu olhar
poderia ser de alguém irritado, mas a conhecia o suficiente para
saber que a magoei, de forma irreversível.

Era possível que eu estivesse chateado, inclusive, comigo


mesmo.

— Não fuja, nós precisamos conversar — ordenou e larguei


os pratos em cima da mesa. — Quem era essa mulher? Você está
me traindo?

— Nadja, é Yasmin. — Soltei o ar e continuei encarando-a,


por mais que me trouxesse vergonha. Ela sabia da minha história
com a paciente e por mais que tentei esquecer, seguindo a vida e
me permitindo outros relacionamentos. A cada passo para longe,
minha mente e meu coração sempre voltavam para essa garota.

— Ah. — Afastou-se e esfregou os olhos, como se estivesse


muito difícil de enxergar. — Ela voltou.

— Sim, ela veio me ver no hospital. Convidei-a para um jantar


em casa para conversarmos, eu precisava disso. — Quando vi a
mágoa aumentar em seus olhos, tentei me justificar. — Você sabia
da minha história e mesmo assim, aceitou ficar comigo.

— Claro, a culpa é toda minha por esperar que o idiota do


meu namorado finalmente olhasse para mim com amor e
enxergasse a mulher que tinha ao seu lado. — Vi as lágrimas se
formarem em seus olhos e me xinguei mentalmente, ela não
merecia isso. — Entendi o recado, Matias. Foi bom enquanto durou,
agora tchau.
— Espere!

Segurei seu braço quando tentou passar por mim. Limpou


com pressa a lágrima que escorreu e lhe trouxe para os meus
braços. Chorou no meu peito de forma intensa, sabia o quanto não
era digno de lhe consolar, mas era mais forte do que eu querer
ajudá-la.

Conheci Nadja no estágio supervisionado, no hospital. Ela se


tornou professora da universidade, de enfermagem... merda, ela
dará aula pra Yasmin se insistir em continuar com essa vontade de
mudar de graduação.

Eu não queria me relacionar, ela insistiu e contei, mesmo


podendo fazer papel de ridículo, que precisava resolver um antigo
amor. Foi difícil assumir que estava atraída por uma paciente, cuja
medula da minha irmã ela carregava. Só de lembrar do dia, que eu
poderia ter perdido Rebeca, me causava um rebuliço no estômago.
As duas estavam bem e saudáveis, eram amigas, eu precisava
colocar minha mente em ordem, já que o coração não parecia
disposto a entrar em um acordo.

Fazia poucos meses que estava junto com Nadja, ela vinha
dormir no meu apartamento e praticamente tínhamos uma rotina de
casal. Pensar no término do nosso caso me doía, mas era mais
insuportável quando pensava em Yasmin saindo do meu
apartamento sem que eu pudesse me explicar.

Era impossível esclarecer o que eu sentia.

Nadja controlou seu choro, ergueu a cabeça e a encarei


implorando perdão. Nunca foi minha intenção magoá-la, eu só não
soube dizer não quando se mostrou muito receptiva para ser uma
mulher que não precisava ser amada.

Como pude acreditar que um ser humano poderia entrar em


um relacionamento sem esperar amor em troca? Idiota, eu merecia
o prêmio do mais iludido.

— Eu te amei, Tias. Dói demais dizer adeus. — Abraçou meu


pescoço e uniu nossos lábios. Fechei os olhos por impulso e
correspondi o beijo, porque seu sabor era familiar, tudo nela me
fazia sentir seguro.

O único problema era que Yasmin estava ao meu alcance,


não mais um sonho. Tentei afastar a mulher que estava em meus
braços, mas ela não queria me soltar e me punia com sua boca na
minha.

— Passei duas semanas fora em um congresso esperando o


momento que chegasse em casa e você me tomasse contra a
parede, na cama e no banho. — Olhou em meus olhos com
determinação e chateação. — Se é para nos despedir, que seja do
meu jeito. Então, poderei te libertar para buscar a ilusão.

Dispensei o raciocínio das suas palavras, voltei a beijá-la e


dando passos apressados, pressionei-a contra a parede. Ela gemeu
enquanto nossas línguas pareciam duelar uma com a outra. Era
errado de muitas formas, sentia como se traísse Yasmin, mas
também entendia que era o fim... o encerramento para que eu
pudesse ter um novo momento.

Quando senti meu corpo reagir aos seus estímulos, percebi


que Nadja tinha um pedaço de mim. Mesmo que não quisesse e
omitisse meus sentimentos, eu a amei, do meu jeito torto e sem
noção. Era momento da despedida, nossa relação estava
encerrando.

Como ela pediu e sem me conter de aproveitar toda a


situação, amamos um ao outro na sala, no quarto e no banho. Por
muitos momentos ela deixou lágrimas escorrerem e com meus
dedos limpei todas, porque sabia que era eu o causador de todo
sofrimento.

No último suspiro de prazer, findando o beijo molhado pela


água do chuveiro, ela me olhou com toda a ternura pelo qual fui
atraído a ela e sorriu, satisfeita.

— Hoje eu te odeio, mas lembro de todos os momentos que


te amei. Você merece ser feliz, só precisa aprender a ser sincero,
consigo mesmo, principalmente.

Engoli em seco e não respondi. Sua mão se afastou de mim


como seu corpo e me mantive ali, observando-a se enxugar. Depois
de tudo o que passamos e a química que eu sentia ao estar com
ela, me deu insegurança de buscar algo novo. E se com Yasmin não
for assim e eu estiver jogando fora a pessoa certa para mim?

— Não pegue no pé dela, por favor — pedi baixo e ela me


encarou confusa. — Ela poderá ser sua aluna, espero que...

— Apesar de você achar que ela tem seu coração, o único


responsável pelo término do nosso namoro é você, Matias. —
Aproximou-se do box e me encarou com malícia, ela finalmente
estava acima de mim emocionalmente. — Faz parte do meu papel
dar mais atenção para um ou outro aluno, ainda mais se eu
perceber que meus alertas surgem efeito.

Ela terminou de se enxugar e desliguei o chuveiro, estava na


hora de enfrentar as consequências dos meus atos. Fui me
aproximar, ela recusou e pendurou a toalha me dando as costas.

— Vou pegar minhas coisas do seu guarda-roupa outro dia.


Agora, eu só preciso dormir — falou exausta.

— Pode ficar na cama, eu durmo no outro quarto.

— Adeus, Matias. — Impôs a distância, saiu do banheiro, do


quarto e não a segui, porque dessa vez, eu precisava aceitar que o
caminho estava livre para poder conversar com Yasmin.

Quando escutei a porta do apartamento bater, fui para o


quarto, coloquei uma cueca e busquei meu celular. Ajustei o
despertador e bocejei de cansaço, acabou sendo uma noite e tanto,
não como planejado.

Deitei-me e observei as mensagens trocadas com o meu


amor platônico. Senti a mágoa voltar para o meu peito, Yasmin era
responsável pela confusão ao me despedir de Nadja. Ao mesmo
tempo, me dava força quando eu tratava um paciente que não tinha
esperanças de sobreviver.

Yasmin ultrapassou todas as expectativas, penetrou meu


coração e lá fez moradia, mesmo que não soubesse.

Precisava fazer com que ela voltasse a me encontrar.


Bocejei, procurando Nadja ao meu lado e não encontrando.
Percebi que eu precisaria de um tempo para processar que minha
vida tinha mudado e talvez, Yasmin nem fizesse mais parte dessa
resolução.

Que confusão!

O melhor que eu fazia era dormir, trabalhar e malhar. Deixaria


para o universo conspirar qual seria o meu próximo passo.
Os dias se seguiram sem grandes distrações. Fui aprovada
no curso de enfermagem e resolvi aceitar um dos convites de
Rebeca para um churrasco universitário. Estava disposta a me
sentir eufórica por mais uma conquista alcançada.

Já tinha entrado com o processo administrativo para


aproveitar algumas matérias já cursadas em medicina e no próximo
dia útil, começariam minhas aulas.

Estava feliz, apesar do pequeno ponto triste no meu peito.


Matias seria aquele doce amor da juventude, uma desilusão
amorosa imatura, mesmo eu tendo meus vinte e seis anos. Passei
muito tempo doente, havia etapas da minha vida que eu não tinha
aproveitado e agora, com Rebeca, eu desfrutaria ao máximo.

— Bem-vinda a universidade, bebê! — Rebeca falou alto,


assim que passamos pelo portão da casa onde estava acontecendo
o churrasco universitário.

Forcei o sorriso e cumprimentei seus amigos com beijos e


abraços, algo que me incomodava, mas precisaria me acostumar.
Afinal de contas, eu era a mais nova estudante de enfermagem da
faculdade.
Depois do jantar desastroso com Matias, chorei no colo da
minha mãe e decidi esquecer os homens, relacionamentos não
eram para mim. Deixei de lado o problema dela com o meu pai e
foquei nos meus estudos.

Bloqueei Matias no meu celular, falei apenas o necessário


com Rebeca, mas ela foi atrás para saber o que realmente tinha
acontecido. Os dois brigaram e, novamente, eu me colocava entre
um relacionamento. Primeiro, dos meus pais. Segundo, Matias e
Nadja. Naquele momento, entre irmãos, isso estava me magoando.

Para não sofrer, ignorei e dei suporte para as mulheres da


minha vida.

— Aceita? — Receba me tirou dos devaneios. Ela me passou


a garrafa de cerveja, que tomou um gole no bico e neguei. Havia
limites que eu não poderia ultrapassar, principalmente, porque os
remédios que eu tomava não combinavam com eles.

— Motorista da rodada. — Ergui a chave do carro para não


ter que lembrar da doença. Esse era o fantasma que me perseguia
e não queria ter que me explicar para ninguém. O câncer era o tipo
de assunto que fazia morrer qualquer animação em uma roda de
conversa.

— É só um golinho! — Insistiu imprudente. Incentivei-a tomar


mais um gole e apontei na sua direção.

— Pronto, você tomou por mim. Serve outro.

Riu alto e entregou a garrafa para um de seus colegas de


sala, que já parecia mais alcoolizado do que o normal. Olhei ao
redor e vi muitas pessoas desconhecidas, era tempo de criar laços
de amizade.

Quando meu olhar se fixou em alguém, abri a boca em


choque e nem avisei Rebeca sobre meu distanciamento. Andei em
direção a mulher que falava e gesticulava exageradamente com
meu coração acelerado. Quando olhou para o lado e me viu, soltou
um grito e terminou a distância entre nós.

Era Catarina, minha amiga de colégio.

— Meu Deus! É você, Yasmin! — Abraçou-me com força e


retribuí, era tão bom saber que ela parecia muito bem. — Pensei
que você não se misturava com a ralé bêbada dos churrascos.

— Para! — Afastei-me sorrindo. — Essa Yasmin morreu há


alguns anos. Estou de volta, mas na enfermagem. E você?

— Outra faculdade? — Segurou minha cabeça e a beijou.


Percebi o cheiro de álcool, ela deveria estar sob o efeito dele pelos
atos exagerados. — Sempre a mais cabeção de todas. Vou te
apresentar meus colegas.

Esquecendo um pouco de Rebeca, fui me enturmar com


pessoas da minha idade. A maioria deles eram professores ou
técnicos da universidade, todos amigos dos estudantes. Catarina
tinha um cargo administrativo e parecia ser aquela que todos
conheciam, pois ela apontava e falava sobre os convidados com
intimidade.

— Pelo visto, você amou tanto a faculdade que agora não vai
largar — brinquei.
— Nunca mais! — Tomou um gole da sua bebida e envolveu
meu pescoço com seu braço. — E sabe quem é o professor gato do
jornalismo?

— Pensei que já tinha me falado sobre todos. — Soei


divertida e recusei seu copo pela décima vez. Todos estavam
envolvidos em conversas e bebidas, eu não poderia me entregar por
completo.

— Menina, onde esteve por todo esse tempo? Ah, verdade,


sendo metida com os alunos de medicina. — Todos da roda riram e
fiz uma careta.

— Não é verdade. Eu precisava estudar, não dava para


conciliar com esse tipo de badalação. Vidas estão em minhas mãos.

— É justo, preciso que estude muito para não me deixar


morrer — um rapaz, que estava na nossa roda, brincou.

— Mas agora você está aqui com os relés mortais. —


Catarina insistiu. — Ainda bem que trocou de curso, sempre é
tempo de mudar, minha gente.

— Não julgue todos os estudantes de medicina. Há os


metidos, mas também, os que só querem fazer a diferença. —
Forcei um sorriso, já que meu tom era de chateação. Odiava esse
pré-conceito, era um dos motivos de não ter tantos amigos.

— Enfim, vamos voltar ao “professor gostosão” do jornalismo.

— Não é antiético ou algo assim, chamar um docente por um


apelido desses? — questionei e todos riram da minha inocência.
— Bem, para as novinhas de dezoito ou dezenove anos pode
até ser proibido, mas nós — ergueu as sobrancelhas várias vezes
— podemos usar e abusar do nosso amigo de colégio.

— Quem?

— Miguel! — Apontou para uma roda mais longe. No mesmo


momento, ele olhou para nós e acenou, Catarina retribuiu e eu fiquei
chocada com o que via. Ele também se surpreendeu e veio em
nossa direção. — Meu Deus, essa boca...

— Miguel tipo... aquele Miguel do terceiro ano que só falava


merda? — perguntei baixo, lembrando do dia que fomos levar os
alimentos para as crianças do orfanato e ele foi o primeiro a dizer
que faltaria para não participar.

— Ele pode falar o que quiser no meu ouvido se colocar


aquelas mãos em mim — murmurou sorrindo de orelha a orelha e
se afastou para abraçar o homem.

Sim, Miguel tinha virado um homem atraente, alto e com um


olhar intenso. Todavia, lembrar do quanto ele foi chato no passado,
tomava o melhor de mim. Esse era um pedaço da minha vida que
não queria recuperar.

— Eu te conheço de algum lugar — Miguel falou com o braço


em volta da cintura de Catarina e me encarando.

— Claro que conhece, é a Yasmin! — Minha amiga foi para o


meu lado e fez um movimento com as mãos de apresentação. Senti
meu corpo inteiro esquentar de vergonha, ainda mais porque Miguel
me conferia da cabeça aos pés.
Não tinha curvas e nem beleza natural. Depois da doença,
tudo em mim era pele, osso e brancura. Meus cabelos estavam
grandes por questões de genética, por isso os mantinha soltos e
com produtos para dar volume. A irmã da minha mãe, tia Marina,
também era provida de grandes madeixas.

Por ter feito questão de me produzir para estar com Rebeca


em um evento de faculdade, devo ter chamado a atenção dele. Não
estava linda, mas com certeza, apresentável.

— Oi Yasmin, há quanto tempo. — Pegou minha mão e beijou


o dorso, me fazendo rir tanto pela situação ridícula. Mesmo ele
estando mais maduro, eu só conseguia ver o garoto chato do
terceiro ano. — Está muito bem.

— Para de olhar desse jeito, ela é caloura de enfermagem. —


Catarina se divertiu e revirei os olhos para sua atitude.

— Eu lembro que você tinha passado em medicina. O que


mudou? Normalmente, é o contrário que acontece, enfermeiro quer
ser médico. — Inclinou a cabeça de lado e cruzou os braços. Senti-
me desconfortável em responder à pergunta, porque o assunto que
acabaria com a alegria viria à tona.

— Mudanças de planos. Acho que posso contribuir mais


sendo enfermeira do que médica. — Dei de ombros. — E você,
professor de jornalismo?

— O professor de jornalismo. — Catarina piscou um olho para


ele e depois o empurrou. — Vá pegar uma bebida para nós,
precisamos relembrar os velhos tempos.
— Desde quando ele vai querer lembrar quando caiu no
recreio e ficou sujo, parecendo que tinha cagado no short? —
questionei quando ele estava longe, fazendo Catarina começar a rir
e eu também. Os outros, que estavam por perto, iniciaram outra
conversa sem nós. — E pior, ele fazia barulho de pum apenas para
dizer que realmente tinha feito.

Rimos alto, a lembrança até que tinha sido divertida. Lágrimas


escorreram dos meus olhos, ele voltou com dois copos e sem
processar direito o que tinha dentro, tomei o líquido. Com sede,
mesmo sendo cerveja, tomei para melhorar a secura da boca.

— Oh, uau, essa é das minhas — Miguel falou, colocou a


mão na minha nuca e encarou meus olhos como se precisasse de
algo.

Senti meu coração acelerar, Catarina gritar algo inteligível e


meu mundo girar. Quando pisquei para afastar os pontos pretos na
minha visão, senti seus lábios tocarem os meus e prontamente se
abrirem, para sua língua tocar a minha.

Céus, Miguel estava me beijando, isso era tão errado.


Escutei um barulho de água mesclado a um grito conhecido e
afastei Miguel de mim. Lembrei que eu não tinha vindo sozinha
nessa festa, mas com Rebeca. Fui em busca dela e a encontrei
molhada ao lado da piscina, rindo, quase perdendo o fôlego junto de
um rapaz ensopado. Provavelmente, os dois causaram o alvoroço
me permitindo interromper o beijo.

Mesmo não sendo profissional, tinha parte do conhecimento e


verifiquei os sinais vitais dos dois com preocupação.

— Minha irmã! — Rebeca me abraçou, bêbada, impedindo


que avaliasse seu estado. — A única que tem um pedaço meu, de
verdade. Poderia virar minha cunhada, mas meu irmão cagou no
pau.

— Espere, Beca. — Tentei me afastar e nós duas fomos para


o chão, ela rindo e eu desistindo de ser responsável. — Sua doida.
Está na hora de voltar para casa.

— Eu também te amo, Yasmin, min, min... — continuou


falando e rindo.

Tentei me levantar e ajudá-la, não consegui. Senti o riso


querer me dominar e me xinguei mentalmente por ter tomado um
copo de cerveja todo de uma vez. Nem precisava lembrar que meu
estômago estava vazio, o pouco de álcool e a mistura que existia no
meu corpo potencializou tudo.

— Eu ajudo vocês — Miguel apareceu ao nosso lado e


estendeu a mão para nos levantar. Percebi Yasmin suspirar
apaixonada por ele e revirei os olhos, ela não poderia o ver dessa
forma. — Tudo bem?

— Sim, nós vamos para casa — falei tentando me livrar do


seu toque.

— Acompanho vocês até o carro.

— Não precisa!

— Precisa sim! — Rebeca se jogou nos braços do professor e


a tirei vendo-o sem graça. Como assim, ele não era o professor
gostosão? Pensei irônica, relembrando nossa época adolescente. —
Me deixa com ele, Min-min. — Riu alto do meu novo apelido.

— Eu não saio pegando minhas alunas como você deve estar


pensando — Miguel falou baixo e neguei com a cabeça quando
tentou me tocar. — Posso te ajudar, Yasmin. Nós estávamos ficando
e...

— O quê? — Rebeca gritou e empurrou Miguel. — Minha


irmã é do meu irmão. Merda, soou errado, a Yasmin é do Tias!

Abaixei a cabeça e não quis ver a reação de ninguém.


Agradeci por ser um churrasco de outra turma, pois, os alunos não
precisavam saber do meu passado doente, muito menos dos
amores que seriam esquecidos.
Ajudei-a a andar até a saída da casa e fui em direção ao meu
carro. Entre risos e tropeços, minha amiga chegou até o automóvel
e praticamente se deitou no banco de trás, deixando as pernas para
o lado de fora.

Abri a porta do motorista, senti uma tontura e coloquei a mão


na testa, pensando que não estava apta para dirigir. Merda, por que
tomei a maldita cerveja? Claro, estava morrendo de sede e fome,
não pensei duas vezes em aplacar a sensação, mesmo sabendo
que poderia ter consequências piores.

Rebeca gemeu no banco, coloquei-a virada de lado e orei


para que não vomitasse. Minha mãe iria me matar por ser tão
irresponsável e agora, não conseguindo levar minha amiga para
casa.

Peguei o celular, pronta para fazer a ligação para ela, mas o


nome de Matias brilhou abaixo do contato dela. Eu tinha o
bloqueado, será que me atenderia? Era melhor que o irmão a visse
naquele estado, do que os pais.

Por Deus! Eu seria condenada pela família Chagas!

Toquei o botão de desbloqueio, apertei o verde e coloquei o


aparelho no ouvido. Não poderia pensar no que, como, quando ou
onde, senão, não iria ter coragem de fazer.

— Yasmin? — a voz de Matias era um bálsamo, mas também


farpas na minha cabeça. — Está tudo bem?

— Oi, Matias. Desculpe te incomodar, mas eu preciso de


ajuda.
— O que foi? — perguntou com urgência.

— Poderia vir de carona até o churrasco que eu e Rebeca


estamos? Eu deveria dirigir, mas estou meio tonta...

— Você bebeu? — seu tom era incrédulo. — Você toma


remédios e...

— Deixa o sermão em casa, tudo bem? Se for para dar uma


de pai, só ignore a ligação, e vou pedir para minha mãe ajudar.
Rebeca apagou, eu preciso levá-la para casa com segurança e
prefiro não arriscar.

— Mande a localização, estou indo.

Olhei para o celular quando percebi que tinha sido encerrada


a ligação. Curto e grosso ele mandou e eu, mesmo sofrendo por
saber que o veria, obedeci. Pelo menos com Matias, poderia rebater
e o mandar para aquele lugar pela repreensão. Minha mãe era mais
difícil e, com certeza, ela iria chorar comigo, porque não queríamos
perder uma a outra.

Ajeitei Rebeca no carro para fechar a porta, sentei-me no


banco do passageiro e liguei o carro para o ar-condicionado ajudar a
reestabelecer minha sanidade.

Um táxi parou próximo da porta, reconheci quem saia do


automóvel e acenei para Matias, que me viu e se apressou até onde
eu estava. Quando se atentou que eu estava no banco do carona,
ele foi até o lado do motorista e se sentou apressado. Reclamando
baixo ao afastar o banco e ajeitar os retrovisores, eu antecipava a
sua reação de repreensão.
— Como está? — perguntou para mim e esticou o braço para
trás, tocando Rebeca e a fazendo rir. — Espero que acorde com
ressaca, para nunca mais querer beber na vida.

— Eu não estou te amando hoje, Tias — Rebeca resmungou


e suspirei aliviada, ela estava bem afinal.

Ele deu partida, manobrou o carro e o guiou, sem falar mais


nada ou me direcionar o olhar. Pensei, por várias vezes, iniciar uma
conversa ou falar sobre Rebeca, mas nada saiu da minha boca até
que percebi que não estávamos indo para a minha casa ou dos
seus pais.

— Matias, eu não estou conseguindo dirigir — falei


envergonhada.

— Sim, por isso me chamou, não foi? — Por mais que seu
tom era divertido, me lembrando do doutor Matias pelo qual me
lembrava, eu não o recebi assim.

— Se você levar Rebeca para seu apartamento, não vou


conseguir ir para a minha casa.

— Vocês duas ficarão sob minha supervisão — decretou e


virou o volante para entrar na sua rua. — Algum problema? —
Encarou-me com cinismo.

Poderia me comportar como uma criança birrenta e dizer não,


ou mesmo elencar todos os motivos para não querer estar
novamente no seu apartamento. Mas a tontura tirou minha
concentração, senti minha pressão baixar e o desmaio vir logo que
ele entrou na garagem subterrânea do seu prédio.
Era uma merda estar tão fragilizada perto de alguém que eu
precisava me manter forte.
Acordei assustada, em um lugar que não era familiar. O
cheiro...

Sentei-me e deixei que a visão se acostumasse com a


claridade que vinha do banheiro. Um barulho de alguém jogando
tudo do estômago para fora soou, me fazendo ver o cômodo que eu
estava girar.

— Essa era a fase que eu não tinha um pingo de vontade de


acompanhar — Matias falou baixo aparecendo na porta do banheiro
e suspirando aliviado ao me encarar. — Ainda bem que despertou.
Beba água e me fale o quanto de álcool ingeriu. — Apontou para
uma bandeja em cima da cômoda de cabeceira e voltou para dentro,
quando o barulho de vômito novamente soou. — Já volto.

Eu dormi ou desmaiei?

Fiz como ordenado e ainda aproveitei para comer duas


rosquinhas Mabela que tinha em um pote. Sim, estava faminta e
minha cabeça dava indícios de dor no lado esquerdo. Não deveria
ter tomado aquele copo de cerveja, pior ainda, ido para o churrasco
da faculdade sem rechear o estômago. Acreditava que teria carne e
pão, mas era apenas bebidas e mais bebidas, como nos velhos
tempos.
— Você está melhor que eu — a voz de Rebeca soou rouca e
desanimada. Parada na porta do banheiro com a ajuda de Matias,
ela foi até meu lado e se sentou, esticando a mão para a rosquinha.

— Nem pense nisso. Durma e quando acordar, terá um soro


te esperando. — O irmão mais velho estava em ação, carinhoso e
mandão.

— Obrigada, Tias. Eu te amo e te odeio hoje. — Engatinhou


na cama e se deitou ao meu lado, suspirando com exaustão.
Fechou os olhos e procurou minha mão, que eu dei e ela apertou. —
Depois quero saber mais sobre o beijo que deu no professor Miguel.

Se eu não tivesse comido algo, com certeza tinha desmaiado


novamente, de vergonha e desespero. Vagarosamente, virei meu
rosto para encarar Matias, que estava com as mãos na cintura e
olhar incrédulo na minha direção.

Abri e fechei a boca, nada saiu. Tomei mais um gole de água,


sem conseguir livrar minha mão de Rebeca, era meu suporte. A ida
ao banheiro teria que ficar para depois.

— Quanto bebeu? Quais os remédios que está tomando? —


perguntou em seu modo sério, me lembrando que além dele ter sido
uma paixão platônica, era médico e tinha uma namorada.

Foi bom recordar de tudo isso, porque deixei a timidez de lado


e dei boas-vindas a minha fúria e desilusão amorosa. Ergui a
sobrancelha e o encarei, mesmo estando por baixo, estava me
comportando como se estivesse por cima.

— Você não é meu médico, eu estou bem.


— Já fui e sei o seu histórico. Será que não passou pela sua
cabeça que poderia se machucar ou prejudicar Rebeca com essa
bebedeira de faculdade? — Afastou-se jogando os braços para o ar
e depois alisando o cabelo com nervosismo. — Uma postura como
essa vinda de Rebeca, tudo bem. Mas você? — Negou com a
cabeça, sem me encarar. — Você não é mais adolescente, Yasmin.

— Preciso da minha mão — exigi da minha amiga, que estava


de olhos fechados apenas descansando, não dormindo. Ela bufou e
soltou, virou as costas para mim e me levantei, controlando minha
língua para não responder o indivíduo que estava esperando
retrucar. — Qual banheiro posso usar? — perguntei séria.

— Vá no social, vou ligar o exaustor para tirar o cheiro forte


de vômito daqui — respondeu percebendo certa derrota ao não lhe
responder.

Segui meu destino e fiz o que precisava. Lavei as mãos, o


rosto e a nuca, encarei-me no espelho, esperando alguma resposta
de mim mesma. Matias estava mostrando um lado que não
conhecia, insensível e duvidoso. Era assim que funcionava as
paixões instantâneas, em ambientes onde o amor não deveria se
fazer presente.

Deveria ter focado em conceitos retrógrados, onde no hospital


só tinha doentes, família e funcionários. Nada de amizades ou
possíveis namorados.

Saí do banheiro me assustando com Matias me esperando


com as mãos no bolso da calça e olhar triste. Tentou sorrir, mas não
conseguiu e deu de ombros. Foi a vez dele ficar sem palavras, não
saber reagir ou encarar o que estava acontecendo.

Fechei a porta e me escorei nela, coloquei as mãos para trás


e o encarei cobrando alguma coisa. Desculpas? Talvez, no final das
contas, precisávamos passar por cima de tudo o que nos iludimos
pelo bem de Rebeca.

— Pode me xingar, eu mereço — finalmente soltou,


desviando o olhar para a porta do seu quarto. — Só estou irritado
por conta da preocupação e porque a semana foi uma merda. Perdi
você, pisei na bola com Nadja e dois pacientes que demonstravam
melhoras morreram hoje mais cedo, complicações respiratórias. —
Decidiu me encarar, meu coração estava sendo tocado além do
necessário. — Palavras ditas não podem ser recolhidas.

— Tudo bem, afinal de contas, o que nos une está lá. —


Apontei para o quarto. —E não aqui. — Indiquei nós dois. —
Obrigada pela carona, vou comer algo na rua e voltar para casa. —
Virei-me e sua mão segurou o meu braço.

— Melhor ficar, já passa das 23 horas.

— Tudo isso? — Tirei o celular do bolso e vi que havia duas


chamadas não atendidas da minha mãe. — Merda. — Pesquisei as
mensagens de texto e encontrei várias dela, preocupada comigo e
se iria voltar para casa.

Precisava encontrar minha confiança e tomar uma atitude


sem me questionar tanto.
Como uma adolescente, digitei uma mensagem vaga de
resposta sobre ficar na casa de Rebeca para vermos um filme. Pedi
desculpas por não avisar, mas não dava para ir embora enquanto
todos estavam dormindo na casa.

Poucos segundos se passaram e minha mãe respondeu,


aliviada e me apoiando em ficar. Fez-me prometer que eu voltaria
assim que todos acordassem, porque ela estava sozinha e minha
companhia a alegrava.

Dona Joana estava carente e não a julgava. Meu pai estava


se distanciando e eu decidi fechar os olhos para os homens que me
cercavam. Pelo visto, não estava fazendo um bom papel, porque
existia Matias ao redor, Miguel me beijou e meus pensamentos
estavam no meu progenitor.

Caminhei em direção a sala e furiosa, busquei o contato do


meu pai, despejando toda a minha frustação em uma mensagem de
texto que mais parecia uma carta. Metade disso não era sobre ele,
mas não me importava, alguém me escutaria.

Não compreendia os motivos que o levavam a tratar minha


mãe daquele jeito. Se existia algum culpado, o título era meu.

Sentei-me no sofá e só percebi que estava chorando quando


funguei. Olhei ao redor, Matias continuava distante, mas me
observando atento, sem aquele ar de pobre-coitado que estava
antes.

— Vou ficar pela Rebeca, ela vai precisar me ajudar na


mentira com minha mãe. Não que seja do seu interesse.
— O que quer comer? — perguntou mostrando claramente
desconforto. — Quer pedir algo ou quer que eu faça?

— A rosquinha Mabela já me é o suficiente. Desculpe


incomodar, Matias. — Limpei mais uma lágrima que escorria, por
perceber que eu conseguia dizer as palavras de perdão, mas ele
não. — Sinto muito por Nadja também, não pensei que você já tinha
alguém.

— Essa merda é toda minha, Yasmin. — Sorriu com cinismo.


— Vou fazer um lanche para nós. Eu já volto. — Seguiu para a
cozinha, me deixando sozinha com as dores emocionais que eu não
queria sentir estando ao seu lado.
Debatendo internamente entre brigar ou acolher a mulher que
não parou de mexer com meu juízo desde que apareceu no hospital
dias atrás, fiz um queijo quente, coloquei chá gelado em dois copos
e levei para a sala. Ela poderia estar indisposta por conta do tanto
que bebeu, mas se não quisesse, eu mesmo comeria.

Yasmin não falava comigo e não respondia minhas perguntas,


tirando meu equilíbrio emocional.

Sempre acabamos mudando de assunto, alterando o clima e


me fazendo esquecer a preocupação principal, sua saúde. Ela
poderia estar querendo curtir a vida que não teve, mas eu sentia
que sua partida em definitivo desse mundo me causaria muita dor.

— O cheiro está bom — ela falou suave, parecendo mais


calma do que antes de digitar furiosa no celular. Será que era com o
tal professor Miguel? Por Deus, ela tinha idade suficiente para se
relacionar com quem quisesse, eu não era mais um pedaço
importante da sua vida.

Sentei-me no chão e coloquei os copos junto com o prato em


cima da mesa de centro. Ela se arrastou para ficar na mesma
posição que eu e tomou um gole do chá, sorrindo apreciando o
sabor.
— Como sabia do que eu gostava?

— Arrisquei. — Abocanhei o lanche e suspirei. O peso da


culpa me consumia, deveria dizer as palavras, mas algo dentro de
mim gritava que estava com a razão enquanto ela não falasse o que
aconteceu naquele churrasco. — Eu também gosto, uma alternativa
para abandonar o refrigerante.

— Trocou uma água gaseificada cheia de corante e açúcar


por uma sem. — Decidiu pegar um dos lanches e mordeu.

— Você não está ruim do estômago como Rebeca?

— Eu não bebi como você imagina. Na verdade, virei o copo


por impulso, já que não tinha comido nada há muito tempo e estava
com sede. — Fez uma careta e mordeu mais um pedaço do queijo
quente. — Mas isso não impede do meu corpo me fazer ter uma
ressaca. Foi apenas um copo, mas sinto como se estivesse há dois
dias tomando cachaça.

— Seus remédios podem potencializar alguns efeitos


colaterais combinados com o álcool. — Mordi mais do meu pão
quando ela me direcionou um olhar mortal. Poderia não ser seu
médico, mas um dia fui, além de estar preocupado com ela. Porra,
custava me dar uma colher de chá? — Só estou dizendo o que faz
parte da literatura médica.

— Não convoquei um médico particular. Você é o irmão da


minha amiga, apenas isso. — Apontou para o quarto. — Quer dar
sermão, faça com ela. Nós não temos nada.

— Tivemos.
— Um amor platônico que nunca deveria existir. — Respirou
fundo e terminou seu pão. — Vamos encerrar esse assunto, eu não
quero ter que relembrar quando estive aqui, com seus porta-retratos
abaixados e o flagrante da sua namorada.

— Reparou nisso? — Ergui a sobrancelha e conferi meu


raque da televisão. Tinha retirado tudo que me lembrava Nadja,
pois, nossa vida a dois tinha encerrado quando voltou para buscar
suas coisas. — Nunca tive namorada.

— Se acha que isso faz com que eu me sinta melhor,


enganou-se. A mulher tinha a chave da sua casa. Se não assumiu
um relacionamento depois de demonstrar tanta intimidade, imagine
o que fará comigo? — Percebi o tremor da sua mão quando foi
tomar um pouco do chá gelado.

— Culpa sua, eu só pensava em você — tentei soar


engraçado e galanteador, mas ela se levantou e foi para o sofá,
longe de mim. — É a verdade.

— Eu aprendi a gostar de você, nem por isso saí arrasando


corações por onde passei. — Apontou o dedo para mim. — E não
me venha dizer que eu estava doente, meu foco era outro. Temos
escolhas, Matias.

— Não foram vários, somente um: Nadja. Ela sabia o terreno


que estava pisando, só achou que algum dia aquela areia movediça
fosse engoli-la com amor. — Sorri quando ela pareceu
envergonhada, seus pensamentos tinham ido em outra direção. — É
isso mesmo, Yasmin, comigo era apenas sexo e ela sabia.
— Chega de conversar sobre isso. — Cruzou os braços,
indignada. — Até parece que algum dia nós decidimos fazer uma
promessa de mindinho sobre sermos o destino um do outro. Nunca
houve acordo, era apenas uma ilusão e você também se iludiu.

— Aí que você se engana. — Fiquei de joelhos e fui até mais


próximo dela, para seu desespero contido. Não iria tocar seu corpo,
apenas mostrar, com o meu olhar, o que eu iria explicar: — No dia
que você e sua mãe decidiram ir até outra cidade continuar o
tratamento, eu fui contra e explanei o quanto poderia ter bons
resultados sob a minha supervisão. Quando estávamos sozinhos,
enquanto sua mão segurava a minha, não precisávamos de
palavras, a conexão existia. Naquele momento, não havia nada
além do platônico. Mas, quando você voltou, tudo mudou. O
sentimento adormecido saiu do casulo e se transformou em outro
muito mais forte, concreto.

Vi brilho nos seus olhos, ela sentia o mesmo que eu. Havia
situações em que muita coisa precisava acontecer, muitas palavras
necessitavam serem ditas. Mas não quando eu, sendo médico, tinha
me apaixonado pela paciente, cuja medula foi doada pela minha
irmã. Eu amava Rebeca, consequentemente, sentia o mesmo pelo
pedaço que estava em Yasmin. Parte ou todo, eu estava envolvido
muito mais do que planejei.

Ela fechou os olhos e balançou a cabeça em negação. Seu


corpo relaxou no sofá e deitou a cabeça no encosto, parecia perder
as forças ao relembrar aquele dia.

Por mais que parecíamos paciente e médico, tudo em nós


estava interligado. Era um segredo apenas nosso: as mãos dadas,
as conversas depois do plantão e muitas vezes, o carinho na sua
cabeça para que ela dormisse. Pensei que o sentimento partia
apenas de mim, naquele momento, ela demonstrava que também
existia nela.

— Yasmin? Você está bem? — questionei pronto para tocar


seu joelho e chacoalhar.

— De saúde, estou bem, vou sobreviver para mais um dia.


Emocionalmente? Preciso de um tempo, criar rotina e me portar
como uma estudante de vinte e seis anos, como você mesmo
pontuou.

— Não leve minhas palavras em consideração enquanto


estou puto comigo mesmo.

— Quero trabalhar com sua mãe, dar um pouco do meu


tempo para o voluntariado e também, buscar especialização na
oncologia. Quero fazer a diferença na vida de pessoas como eu. —
Mordeu o lábio e a ação me pareceu sexy. — Estou divagando, você
não tem nada a ver com minhas escolhas.

— Acho que você teria mais a oferecer como médica —


provoquei com uma pitada de verdade.

— Sim, não te interessa — rebateu geniosa e tentou esconder


o sorriso.

— Independentemente do que escolher, sei que terá sucesso.

Um estranho silêncio ficou entre nós. Era eu me entregando


demais enquanto ela se fechava, por minha própria culpa.
Necessitava querer saber mais e como eu poderia fazer se não
fosse acionando meu lado invasivo e chato?

— Posso dormir aqui no sofá? — perguntou fraca, ainda


mantendo os olhos ocultos pelas pálpebras.

— Tem a minha cama e o quarto de hóspedes...

— Você começa a atender cedo amanhã, certo? — Mexeu o


corpo para melhor se acomodar. — Aqui é bom, você fica com sua
irmã ou no outro quarto.

Tão envolvido com lembranças, minha mão foi à sua cabeça


de forma involuntária. Ela sorriu como fazia naquela época e
permaneceu entregue as carícias até dormir.

Não soube diagnosticar seu desmaio, nem o nome dos seus


remédios, muito menos tirar satisfação sobre o que estava
acontecendo com tal professor. Nada mais importava, porque eu
sentia que nossa conexão havia se reestabelecido, de uma certa
forma.
Despertei por causa do carinho no meu cabelo. Abri os olhos,
pisquei várias vezes até me situar no lugar e com Matias tão
próximo. Enquanto estávamos assim, olhares e toques, era tão
familiar e seguro, que não consegui conter o sorriso. Ele fez o
mesmo, nem lembrava mais o motivo de estar brava com ele ou sua
abordagem insensível.

— Estou indo para o hospital, não gosto de me atrasar.


Rebeca não acordou, mas Dalva está na cozinha preparando um
café da manhã para vocês. Como se sente?

— Bem.

— Tontura ou indisposição? Além da causada por dormir no


sofá?

— Tudo ok — respondi com um bocejo, ele soltou o ar e se


levantou, caminhando até a porta sem olhar para trás.

Não me lembrava que Matias tinha aquele corpo, a calça


jeans justa mostrava o quanto ele era definido. Admirei sua
retaguarda até que saiu do meu campo de visão.

A porta do apartamento bateu, finalmente me sentei e estiquei


os braços. Apesar do sofá ser confortável, precisava de um banho e
meu colchão, o corpo inteiro gritava por bom descanso.

Conferi as horas no celular, que estava com menos de 20%


de bateria e fui até o quarto acordar Rebeca. Ela que me perdoasse,
mas se não fosse embora comigo, a deixaria ali para voltar para
casa por si.

No momento, não queria mais nenhuma aventura.

— Beca, acorda. — Sentei-me do seu lado e chacoalhei seu


corpo. Resmungou e virou-se, ou seja, ela não queria despertar. —
Tudo bem, estou indo embora, você fica por aqui.

— Como foi com Tias? — perguntou baixo, quase não a


escutei.

— Tudo bem — respondi sem entender.

— Bem nada, ouvi uma ou outra coisa, ele foi idiota como no
jantar. — Virou-se para mim e abriu os olhos, bocejando e me
contagiando. — Ele morreu de ciúmes que você ficou com o
professor Miguel. Não foi?

— Você não precisava ter comentado, né? Nem eu quero


lembrar disso. — Esfreguei as mãos no rosto.

— Ele é um gato e você conseguiu algo que metade do


departamento não conseguiu. Acho que deveria curtir com o errado
enquanto meu irmão não acorda para a vida.

— Você tem que esquecer isso como eu e ele estamos


fazendo. Operação cupido encerrada.
— Como assim? — Ela se sentou bem alerta. — Vocês não
vão tentar se acertar? Nadja ainda está na parada? — Fez uma
careta e voltou a se deitar na cama. — Esqueça, vamos conversar
quando minha cabeça não estiver explodindo e minha boca não tiver
gosto de cabo de guarda-chuva.

— Eu e Matias fomos paciente e médico. Há um grande


carinho e você me doou a medula. Não cabe evoluir para algo mais.

— Porque não quer — resmungou e me deu as costas. —


Depois me manda uma mensagem, vou ficar e adiar a bronca da
minha mãe.

— Tudo bem, depois nos falamos.

Inclinei para beijar sua cabeça e saí do quarto, tentando


passar reto pela cozinha, mas a tal Dalva apareceu na porta e me
impediu. Droga, eu não queria ficar aqui, me confundia e me dava
esperança. Meu foco deveria mudar.

— Matias falou para não te deixar sair sem comer alguma


coisa. O que você gosta? Ele comprou da padaria um pouco de
cada coisa. — A moça revirou os olhos e me deu espaço para entrar
na cozinha, que fiz a contragosto. Não entendi se ela achou que era
exagero da parte dele ou minha.

— Obrigada. — Olhei para o balcão, escolhi pão de queijo e


comecei a comer, sentindo a fome despertar. Peguei um copo no
escorredor da pia sob o olhar atento de Dalva, abri a geladeira e me
servi do mesmo chá gelado de ontem.
— Nunca te vi aqui, Yasmin. É amiga de Rebeca há muito
tempo?

— Eu já estou indo embora — respondi constrangida. Não dei


satisfação para Matias, faria muito menos para a mulher que estava
me analisando além do necessário. Ela não parecia ser tão velha, o
que não me esclarecia se tudo isso era proteção de tia, irmã ou
alguma admiradora.

— Se for embora sem comer, o patrão vai reclamar comigo.


Coma mais. — Foi até um dos pratos com rosquinhas Mabela e me
ofereceu. Céus, ela poderia arranjar outra coisa para fazer.

— Não acho que Matias seja tão bravo assim. — Recusei


com a cabeça, mesmo tendo vontade de comer. Continuei com o
pão de queijo e o chá.

— É modo de dizer. Doutor Matias é um bom homem, tem um


coração enorme e não merece ter interesseiras em seu caminho.

— Mire suas armas para outra, Dalva. Essa, realmente, é


minha amiga. — Rebeca entrou na cozinha, se jogou nos braços da
mulher, que a acolheu sem tirar os olhos de gavião de mim. — Faz
um chocolate quente para mim?

— Pode deixar, querida — suavizou o tom e foi atendê-la


enquanto Beca se sentou em um dos bancos abaixo do balcão.

— Pode ficar tranquila, Dalva só está fazendo o que eu pedi.


Espantando as mulheres do meu irmão. A sorte é que Nadja nunca
estava no mesmo horário dela.
— Eu ainda ficarei de olho. — A moça direcionou-me um
olhar sério, para diversão da minha amiga, que começou a rir.

— Quer que eu te espere? Já vou indo. — Enchi minha mão


com rosquinhas Mabela e mostrei para Dalva, que estava prestes a
dizer algo. — Vou comer, seu patrão não vai brigar.

— Não, eu continuarei aqui. Minha mãe enviou uma


mensagem nada amigável, vou ficar bem quietinha no meu refúgio.
— Esticou a mão para pegar uma bolacha da minha mão. —
Quando será o próximo churrasco?

— Depois do que aconteceu, nem na sua sala de aula vou


aparecer. Tchau.

— Tem até foto dos dois se beijando rolando nos grupos de


mensagens. — Mesmo com a chamada de atenção de Rebeca, virei
as costas e saí, com o coração acelerando a cada passo.

O garoto que eu mais odiava no ensino médio tinha uma foto


nossa aos beijos. A parte de mim que queria esquecer voltou para a
minha vida com provas incontestáveis.

Chamei o elevador enquanto comia as rosquinhas, peguei


meu celular com a outra mão e fui conferir as mensagens. Estava
pronta para avisar minha mãe que estava indo para casa, quando
um enorme texto do meu pai apareceu. Entrei e saí da caixa de
metal com os olhos atentos e sentindo minha pressão baixar.
Odiava o quanto tinha ficado sensível emocionalmente e isso me
abalava fisiologicamente. Pelo visto, o que eu fiz no dia anterior em
um desabafo foi o suficiente para meu pai explicar que estava
saindo de casa, que o relacionamento dele com minha mãe não
existia mais.

“Tudo começou quando seu tratamento exigiu demais de


nós como homem e mulher e acabamos nos desconectando.
Conheci alguém e iria tentar reatar com sua mãe agora, mas
acho que está fazendo mais mal do que bem.”

Esse foi o único trecho que consegui ler com coerência e me


afetou profundamente. Sim, eu fui a culpada e não deveria estar me
divertindo enquanto ela sofria por minha causa.

Chorando, passei pela portaria jogando as rosquinhas no lixo,


entrei no carro e dirigi até em casa esperando me acalmar no
caminho. Era minha vez de ser forte pela minha mãe e dizer não
aos relacionamentos, que apenas nos machucavam e faziam mal.

Miguel não teria nada de mim, nem Matias. Estaria com


Rebeca e manteria uma postura distante desses dois que nem
deveriam ter feito parte da minha vida.

Quando cheguei em casa, o que achei que estava preparada


para enfrentar não tinha nada a ver com o que encontrei. Em seu
quarto, colocando roupas dentro de sacos de lixo, minha mãe sorria
e parou quando me viu chegar.

— Como foi o churrasco? Bebeu todas, foi? — Abracei-a, mas


parecia que havia outra pessoa no seu lugar. — Bem, estou fazendo
uma faxina em casa, vou renovar tudo.
— E o pai? — perguntei e ela deu de ombros, mostrando
indiferença forçada.

— Aquele traste finalmente assumiu quem era e saiu do


nosso caminho. Tudo o que ele deixou vai para doação. — Apontou
para a porta. — Faça o mesmo, Yasmin. Não quero que você fique
com nada que não sirva. Vida nova! Depois, iremos às compras.

Incoerente. Se o sofrimento era complicado lidar, a negação


era muito pior e eu já tinha passado por isso, quando fui
diagnosticada com leucemia. Naquele momento, o que eu poderia
lidar era apenas em seguir seus passos, por isso, fui para o meu
quarto e a obedeci.

Era hora de liberar espaço para o novo entrar.


Mãe>> Estou saindo com minhas amigas e voltarei tarde.
Não me espere. Tem comida congelada na geladeira.

Aproveitei o intervalo das aulas para checar minhas


mensagens de celular e me deparei com essa. Não deveria me
surpreender, uma vez que minha mãe estava agindo de forma
estranha desde o dia que meu pai saiu de casa e se despediu por
mensagem de mim, há semanas. Ainda bem que tive um tempo
para digerir esse novo clima familiar antes das minhas aulas
começaram em efetivo.

Caminhando pelo corredor da universidade em busca da


minha próxima aula, conferi o papel que tinha em mãos com os
horários e deixei para responder à mensagem em outro momento.
Tinha muitas coisas nas mãos para equilibrar até conseguir me
sentar.

Encontrei a sala, entrei acanhada com vários olhares em


minha direção e fui para o fundo me acomodar. A semana de aula
estava sendo boa, apesar de estar cursando matérias em semestres
diferentes e não ter conseguido fazer nenhuma amizade. Essa era a
matéria de estágio, ao meu redor só tinha os graduandos.
— Veio transferida? — uma menina perguntou curiosa e
desinteressada em minha pessoa. Mesmo assim, forcei um sorriso e
acenei afirmativo.

— Sim. Meus horários estão mesclados com vários


semestres, mas vai dar tudo certo.

— Hum. — Olhou-me da cabeça aos pés e desviei minha


atenção para conferir se o celular estava no modo silencioso. —
Onde morava?

— Boa tarde, pessoal. — Uma voz conhecida me impediu de


responder o questionamento da colega. Longe de mim dizer que
estava fazendo medicina e optei por enfermagem, havia algo entre
essas duas profissões que não queria me aprofundar. — Pensaram
que se livrariam de mim tão cedo? — o tom era de brincadeira e
todos riram, apreciando a chegada da professora, menos eu.

Era Nadja, a namorada de Matias. Essa informação não tinha


sido repassada por ele.

Estava claro que ela sabia sobre mim, porque olhou rosto por
rosto até achar o meu. Sorriu amarelo, deixou o material em cima da
mesa do professor e apoiou o quadril nela, exalando superioridade.

— Olá. Para quem ainda não me conhece, sou Nadja


Albuquerque. Bacharel em Enfermagem por essa universidade e
Mestre em Saúde Pública. Tivemos uma troca emergencial de
professores, vou assumir o estágio supervisionado de vocês. Espero
que tenham pensado muito bem onde pretendem colocar o dom de
vocês em prática.
Encolhi-me na cadeira e prestei atenção em tudo o que ela
falava. Explicou como trabalhava, apesar de todos parecerem saber
o quanto ela era exigente. Relatórios deveriam ser feitos à mão e o
trabalho final digitado, uma forma de exercitar o que faremos na
prática, já que nenhum hospital ou clínica conveniada com a
universidade tinha prontuário 100% eletrônico.

Abri meu caderno e fiz algumas anotações, sem me intimidar


de ser a única agindo como nerd. Sabia que, às vezes, minha
memória falhava e tendo Nadja como professora, passando pelo o
que passamos, precisava ser nada menos do que perfeita na sua
matéria.

Em pouco tempo, a turma dispersou em uma conversa


paralela sobre a escolha do estágio. Segurei-me ao máximo para
não ir falar com a professora e encerrar esse assunto que estava
mais do que definido para mim. Iria me disponibilizar para a
oncologia.

Alguém comentou sobre o hospital onde Matias trabalhava, o


mesmo que salvou minha vida e vários rechaçaram. Era o pior lugar
para se estar, a carga era pesada.

Estava pronta para dar suporte e conforto para aqueles que


passariam por uma situação parecida com a minha.

Levantei minha mão e Nadja me encarou com uma


sobrancelha erguida. Céus, a mulher era linda, confiante e com
certeza, teve uma vida sem interrupções por conta de uma doença.
Ela era adulta e eu ainda me sentia como uma jovem recém
ingressada na universidade.
Como ela não disse nada, me levantei para ir até onde
estava, mas estendeu a mão e me freou.

— Pode falar daí, Yasmin. — A sala silenciou e eu voltei para


a minha posição acuada, engolindo em seco.

— Quando poderemos fazer a opção do local do estágio? Eu


já sei onde quero estar.

— Preencha o formulário e aguarde ser aprovada. — Olhou


ao redor. — Lembrando que sua escolha nem sempre é onde você
ficará. Será avaliada e selecionada de acordo com a quantidade de
vagas disponível para o lugar. — Alguns soaram desapontados. —
Nem todo mundo poderá ficar na parte administrativa ou tirando
sangue. Sei muito bem o quanto vocês gostam de moleza.

— Posso pegar o formulário? — perguntei tímida, temendo


seu jeito sério de falar.

— Sim. — Estendeu-me o papel, como se fosse óbvio e eu


estava fazendo charme. Por Deus, será que ela não entendia o
quanto eu respeitava sua posição de mestre da sala? Muito além
disso, sabia o quanto estava envolvida com Matias e não queria
atrapalhar.

Caminhei apressada, peguei o papel sem a encarar e voltei a


me sentar.

— Qual opção marcará? — A colega curiosa do meu lado


questionou alto. Encarei-a e percebi que todos estavam me dando
mais atenção do que deveria.
— Oncologia — respondi baixo. Para disfarçar meu
nervosismo, tentei ler o formulário com calma para preencher sem
rasurar. A ideia era passar pelo curso como qualquer outro
estudante, mas pelo visto, minha presença nessa aula seria notável.

— Uau, alguém interessada em oncologia. Menos uma vaga


para nós — a menina falou brincando, alguns colegas riram em
contrapartida a seriedade que vinha da frente.

— Vocês precisam tomar cuidado com o que escolhem. Não


se iludam com a área, muito menos com os profissionais que
trabalham nela. Sendo bons ou carrascos, o seu empenho que fará
a diferença no estágio. Relatórios feitos à mão mostrarão o quanto
está preocupado que outra pessoa entenda. Temos que ser
facilitadores e focar na nossa função.

Senti meu peito apertar, a emoção tomar conta e muita coisa


do que vinha guardando no peito querer sair em forma de choro. Ela
não deveria saber do meu histórico, ou não deixaria a indireta clara
para mim. A oncologia não me atraia por Matias, mas pela minha
experiência de vida.

Gostaria de poder escolher outro lugar, quem sabe, mudar de


cidade novamente, mas não era tão simples assim. Depender da
minha mãe e ter estragado sua vida me tornava alguém que
cederia, para compensar.

Respirei fundo duas vezes, um murmurinho iniciou


especulando sobre Nadja e eu. Ergui minha cabeça, engolindo o
choro e me portando como a mulher de vinte e seis anos que eu
era. Poderia não ter vivência com as pessoas tanto quanto ela, mas
já estive entre a vida e a morte, isso nos dava uma força sem igual.

— Obrigada pelo conselho, professora. Opto pela oncologia


porque fez parte da minha vida por um tempo. Eu vi como funciona
e sei que minhas habilidades poderão ser bem utilizadas nesse
setor. Mas, se for escolhido outro posto, exercerei com dedicação da
mesma forma.

Sua feição mudou, estava indecifrável, o que me intimidou


mais ainda. Não assumi minha doença, alguns deveriam achar que
vi um parente sofrer e preferia assim. Não era nenhuma pobre
coitada para sentirem pena, estava viva e queria usufruir da minha
saúde.

— Bem lembrado, Yasmin. Todos precisam de um atestado


médico para serem autorizados a fazerem o estágio. Não acho
que...

— Vou providenciar, professora. Muito obrigada pela


oportunidade — apressei-me para que ela não dissesse além do
que eu estava disposta a expor.

Com a cabeça cheia e focada no papel que tinha em cima da


carteira, preenchi o formulário e torci para que não precisasse mais
me sentir tão mal como estava. Essa tinha sido apenas a primeira
aula de supervisão de estágio e eu teria que lidar com ela até
encerrar o semestre.
— Está fugindo de mim? — Beca apareceu na porta do centro
acadêmico de enfermagem, onde eu aguardava o resultado do
estágio supervisionado ser divulgado.

Nem parecia que tinha se passado dias desde aquela aula


fatídica, combinado com minha mãe voltando de madrugada para
casa. De acordo com ela, estava aproveitando como meu pai fez.

— Não, estou corrida para alcançar minha turma. — Era


apenas parte da verdade. Estava há uma semana apenas trocando
mensagens com Rebeca e não ia até sua sala para visitá-la.
Buscava evitar mais conflitos na minha vida.

Observei-a entrar no centro acadêmico sem se intimidar.


Sentou-se ao meu lado e olhou ao redor, só tinha eu e os armários.
Pelo visto, meu caso precisava de uma grande análise, já que todos
os outros alunos tinham o resultado, menos eu.

— O que está acontecendo? — inquiriu séria. — Sou sua


amiga e se bobear, podemos nos considerar irmãs, já que tem uma
parte minha dentro de você. Ou você quer cortar relações?

— Meu Deus, Rebeca, não é nada disso. — Abracei-a com


força e ela parecia aliviada pela minha reação. O que minha amiga
não entendia era que falar com ela me remetia a Matias e, também,
o beijo indevido em Miguel. Estava confundindo tudo, o maior
presente que ela me deu não tinha nada a ver com os eventos que
aconteceram ao nosso redor. — Eu te amo, não se esqueça.

— Que bom, então você vai comigo no barzinho uma quadra


daqui com o pessoal da minha turma. — Afastou-se com um sorriso
cínico, poderia arriscar que seu drama foi apenas encenação.

— Estou esperando uma informação, a professora pediu que


eu aguardasse aqui.

— E depois, você vai para onde? — Segurou nas minhas


mãos e se remexeu. — Preciso que vá, o professor Miguel vai estar
lá.

— Esqueça esse menino, eu não quero ter nada a ver com


ele. — O desespero na minha voz não combinava com o riso fácil
dela.

Miguel me lembrou de Catarina, tão envolvida com minha


nova rotina que esqueci de ir atrás dela na faculdade. Essa sim, era
um pedaço da minha vida que eu queria resgatar, não o colega
chato do terceiro ano que mudou de status para gostosão.

— Ele é um homem muito atraente.

— O que ele tem de bonito, tem de pouco cérebro. Não


consigo separar o menino que estudei desse homem lindão que
você vê. — Ergueu as sobrancelhas com diversão e bati de leve na
sua perna. — Pare com isso, eu não o quero.

— Nem um caso de uma noite?


— Não vou dar para ele! — falei alto demais, tampei a boca e
ela riu mais ainda. Acabei cedendo e ri com ela, que fez cosquinhas
em mim e eu nela. — Quem vê pensa que você é o perigo dos
homens do jornalismo.

— E sou mesmo. — Empinou o nariz, me surpreendendo por


sua confiança feminina. — Se tudo der certo, hoje eu o Cleber
vamos...

— Por isso você quer que eu vá nesse bar com a sua turma,
para te dar cobertura — constatei e ela acenou afirmativo
empolgada. — Vocês estão namorando?

— Claro que não, é só um peguete.

— E vai perder a virgindade com ele? — falei baixo, sentindo


o sangue ir para a cabeça e me deixar quente de vergonha com a
ideia.

— Sim, já está tudo combinado. Por favor! — implorou como


se fosse normal e tentei enxergar essa necessidade que eu mesma,
anos mais velha, não via.

— E se ele não for cuidadoso? E se...

— Ele parece ser um amorzinho, será perfeito. — Apertou


minha bochecha. — Já falei para minha mãe que dormiria na sua
casa.

— Igual no churrasco? — ironizei. — No final, Matias que te


salvou.
— NOS salvou. Meu irmão é um anjo, nunca me dá bronca,
só carinho. Uma pena que vocês não se acertaram, eu jurava que
iria acontecer algo na sala enquanto eu dormia.

Um barulho de garganta nos tirou da bolha que estávamos.


Nadja nos encarava com um papel na mão e olhar de poucos
amigos. Apressei-me em me levantar e orei para que ela não tivesse
escutado a conversa.

— Você foi aprovada na oncologia. O colegiado ficou tocado


com sua carta anexada ao formulário. Não precisava. — Seu tom
era seco, mas não me incomodou em nada, porque parte do meu
sonho começava a se concretizar.

— Obrigada, professora — respondi feliz, mesmo que para


ela fosse o contrário.

— Isso não fará com que sua vida seja mais fácil com Matias.
A rotina pode acabar com um relacionamento.

— Como disse, professora, não estou por ele. — Coloquei o


papel no meu peito e sorri para ela em busca de um pouco de
empatia. — É por mim, apenas isso.

— Continue assim. — Ela olhou por cima do meu ombro,


depois para mim e ia se virar, mas segurei seu braço.

— Me desculpe pelo o que aconteceu. Eu e Matias não temos


nada, não aconteceu...

— Claro que não. O que ele acha que sente é apenas


platônico. Confundiu a sua admiração como paciente, ele é apenas
o médico que te salvou. — Sorriu de forma maléfica e eu senti que
facas atravessavam meu peito com suas palavras. — E quando
você o deixou, foi comigo que ele dormiu — sussurrou com
arrogância.

Vi-a sair enquanto ficava em choque com tanta informação


que ela me jogou junto com minha aprovação de estágio. Senti
mãos nos meus ombros e me assustei, virando para uma Rebeca
confusa.

— Se eu entendi direito, essa professora é a ex-namorada do


meu irmão? — Nem precisei responder, apenas fiz uma careta
quando uma lágrima escorreu dos meus olhos.

Matias era bom em algumas coisas, mas imperfeito em


outras. Precisava parar de endeusá-lo, porque estava me fazendo
mal descobrir os seus defeitos.

Limpei o rosto e peguei o celular quando o senti vibrar no


bolso. Quando vi o nome da minha mãe, tentei me recompor e me
afastei de Rebeca para falar com ela.

— Sim, mãe?

— Filha, acabei saindo de casa e não deixando nenhuma


comida para você. — Ela riu, escutei uma voz masculina e me
preocupei.

— Quem está aí? O que aconteceu?

— Ah, está mais do que bem. Não me espere em casa e


coma algo na rua. Você não pode ficar sem se alimentar direito.
Encerrou a ligação aos risos, olhei para as horas e vi que
ainda faltava vários minutos para o sol se pôr. Aonde ela poderia ir e
não ter hora para voltar à noite?

— Você tem me escondido muita coisa, não é mesmo? —


Rebeca mostrou verdadeira chateação quando a encarei. — Mas
tudo bem, você vai comigo no bar, dar cobertura, depois
conversamos sobre sua mãe e a ex do Matias ser sua professora.

Pegou meu material, foi até mim, segurou minha mão e saiu
me puxando para onde ela queria. Pelo visto, iria ser álibi para a
minha amiga perder a virgindade e provavelmente, daria de cara
com seus amigos que achavam que eu tinha interesse em Miguel.
Pior, ele poderia estar lá também e eu teria que lidar com sua
presença.

Não dava para ligar para a minha mãe e pedir uma carona,
sendo assim, estava por minha conta.

Caramba, como tudo chegou a esse ponto?

Apesar da situação de desamparo, eu tinha o meu estágio na


oncologia garantido. Ele seria meu porto seguro.
O tal bar era em uma casa de esquina, com muitos
universitários ao redor, conversa e bebida. Pedi uma água e fiquei
nela para que não caísse na tentação de tomar um gole de cerveja.

Entre sorrisos falsos e preocupação, estava na roda de


amigos de Rebeca, sem ela e Cleber. Pediu-me duas horas e eu já
estava há uma e meia, contando no relógio e esperando sua volta.
Iríamos para a minha casa de táxi ou motorista de aplicativo, então,
teria que aturar o momento mesmo não me sentindo parte dessa
turma.

Alguém trouxe o violão e com alívio, me distraí cantando as


músicas. O violeiro começou a me encarar com malícia e fingi que
não percebi sua investida, eu cantava por mim e não para galantear.

Vi de longe um carro chegando e Rebeca saindo, aos


tropeços. Deixei meu material e bolsa em cima da cadeira e fui até
ela, preocupada com sua situação. A culpa me dominou e percebi
que não fiz meu papel de amiga, muito menos de profissional da
área de saúde. Achei os dois entrosados no churrasco, ela falou que
era seguro, então, aceitei como verdadeiro.

— Está tudo bem? — perguntei segurando seus braços


enquanto ela ria e caminhava. — Você bebeu?
— Acho que exagerei — falou soluçando e colocando a mão
na boca para conter o riso. — Foi maravilhoso. Podemos ir embora?
Preciso de um banho.

— Mas... o quê? — Olhei ao redor, procurando o seu peguete,


mas nem sinal dele. — Cadê o Cleber?

— Ficou na casa dele. Somos universitários, quebrados e


sem condução. — Ela riu e se sentou em uma cadeira na calçada.
— Não vou enfrentar meus colegas, depois eu deixo a fofoca se
espalhar e lido com isso amanhã.

— Todo mundo sabe o que aconteceu? — Segurei seu rosto,


ela não conseguia focar em nada e estava bamba. — Amiga, se eu
te escondi meus problemas, você também. O que está
acontecendo?

— Agora só você é virgem, eu não. — Cutucou meu peito e


soltou seu rosto das minhas mãos. O que ela queria dizer com isso
eu não entendi, até porque, estava confortável com minha situação.
— Vamos?

— Sim, Beca. Vou pegar meu material e chamar um motorista


pelo app. — Deixei-a lá e fui para onde estavam todos, torcendo
para que ninguém perguntasse o motivo de ir embora.

— Mas já vai? — O violeiro começou a tocar uma música e


percebi que me empurravam para ele.

— Vou sim. Obrigada pela companhia, pessoal. — Deixei


dinheiro para pagar minha parte da conta e fui ao encontro de
Rebeca, não poderia deixá-la sozinha.
Quando me aproximei, ela tinha o celular no ouvido e
resmungava algo. Quando me viu, disse adeus e voltou a deitar a
cabeça na mesa.

— Espero que seja o Cleber te pedindo desculpa. Como não


está ao seu lado depois do que vocês fizeram? — Peguei meu
celular e ela o tirou da minha mão. — O que foi?

— Matias vem nos buscar.

— Você ligou para ele? Por quê? — Peguei o aparelho de


volta e ela deu de ombros, bocejando.

— Aquela vaca não pode ficar por cima de você, esfregando


na sua cara que teve meu irmão enquanto você é virgem.

Ignorei suas palavras e tentei abraçá-la, o álcool estava


afetando o seu juízo ou apenas dando asas para os seus desejos
mais íntimos. Preparava-me psicologicamente para trabalhar,
exercer minha nova profissão e não me relacionar.

— Não precisa tomar minhas dores, Beca. Ela é minha


professora e eu preciso exercitar o respeito com ela.

— Mesmo não sendo recíproco? Sabia que dói não ser


amada também?

Respirei fundo e continuei abraçando-a. Céus, o que será que


está passando na cabeça dela? Não tinha espaço para ter mais uma
preocupação, mas era a minha amiga, aquela criança que eu vi no
orfanato e dei meu bem mais precioso. Um pedaço de mim.
Lembrei do nosso primeiro momento juntas, depois do
hospital, o quanto ela foi um brilho de esperança. Pensei que
Rebeca era mais forte que todos nós, mas na verdade, era a mais
frágil.

— Oh, minha amiga. O que se passa com você? — Alisei seu


cabelo e ela suspirou sem me responder. Deixei que tivesse o
tempo necessário para se centrar e tentaria não expor sua vida para
seu irmão, até porque, unir forças com ele para resolver os
problemas de Rebeca não era uma boa alternativa.

Achava que teria mais tempo sem o ver antes de ter que lidar
com a rotina do hospital, na oncologia. Pelo visto, o universo estava
conspirando para a nossa vida se emaranhar de um jeito que não
teria como escapar.

Vi um carro parar na nossa frente, Matias saiu com roupa de


trabalho e abriu a porta de trás do carro. Deveria ter vindo do
hospital direto para cá.

— Meu irmão! — Rebeca se levantou e o abraçou. Para


minha surpresa, Matias riu, deixou um beijo na sua testa e a colocou
deitada no banco de trás.

— Vai descansar, Rebeca Meleca. — Fechou a porta e me


encarou mais contido. — Oi, Yasmin.

— Olá. — Fui para a mesa e peguei meu material. — Já que


você vai cuidar dela, eu vou para casa.

— Eu te dou uma carona, por favor. — Apontou para o carro e


fiquei tentada a recusar, mas cedi. — Tudo bem?
— Tudo sim. — Dei a volta no carro, sentei-me no banco do
carona e coloquei o cinto de forma robótica. Tê-lo ao meu lado era
uma mescla de desespero e desejo, por querer seu toque e ao
mesmo tempo que não encostasse em mim. Não me sentia
preparada.

Pensei nas atitudes impulsivas de Rebeca e... céus, como


poderia ter se entregado dessa forma? Havia um lado em mim que
invejava seu lado livre, sem pensar no que os outros iriam falar ou o
que eu mesma pensaria sobre minhas ações.

Matias guiou o carro em silêncio por alguns segundos.


Esticou a mão, pegou a minha e a levou para a sua coxa. Aquele
toque, o calor que emanava e o arrepio que causava em meu
corpo...

Nós suspiramos e ficamos assim até que ele chegou no seu


apartamento. Deveria ter negado ou reclamado, mas sabia que em
casa, não haveria ninguém para comemorar meu estágio e doeria. A
culpa viria me assombrar e de certa forma, a saudade que eu tinha
do meu pai me puniria.

Levando sua irmã no colo, segui Matias pelo elevador até seu
apartamento. Entrei me sentindo confortável, deixei o material em
cima da mesa, fui para a cozinha e sorri ao encontrar o chá gelado
na geladeira. Minha mãe esquecia sempre de comprar e eu estava
sentindo falta.

Assustei-me quando Matias entrou na cozinha, pegou o copo


da minha mão e tomou um gole da bebida antes de me devolver. Ele
parecia cansado, mas seu semblante estava sereno.
— Rebeca nunca dá ponto sem nó. Ela acha que pode me
juntar com você. — Suas palavras me acertaram com uma brisa
reconfortante, por isso bebi um pouco do chá e tentei não me iludir.

— Acho que é mais sobre ela do que nós dois.

— O que você sabe? — Agora ele parecia preocupado de


verdade.

— Amor, Matias. Todo mundo precisa de amor e ela mais do


que ninguém. — Minha mão pousou em seu rosto sem que eu
percebesse. Ele a segurou onde estava. Suspiramos, era aquele
momento em que partiríamos para um nível que me fechei.

Fui surpreendida com Matias levando minha mão para a sua


boca, deixou um beijo cálido na palma e me puxou para fora da
cozinha enquanto caminhava de costas. Segui-o, estava hipnotizada
pelo carinho e confiança que sentia ao percebê-lo respeitar minhas
escolhas, mesmo que eu não tenha dito em palavras.

Ele abriu a porta para a varanda, o vento me fez sorrir e sentir


que havia mais calmaria do que guerra ao meu redor. Os problemas
externos tinham sido esquecidos, era apenas eu e ele.

Sentou-se em um banco almofadado, me colocou ao seu lado


e me abraçou, como se fôssemos um casal. Não queria dar atenção
para meu coração palpitando com anseio, mas estava impossível,
ainda mais quando roubou novamente o copo da minha mão para
bebericar meu chá.

— Como estão as aulas? Enfermagem é o que você


esperava?
— Sim. — Aconcheguei-me ao seu lado e olhei para o céu
escuro, as estrelas e a lua. — Estou gostando e tive uma boa notícia
hoje. Acho que isso indica que estou no caminho certo.

— Parabéns. — Beijou minha testa e começou a alisar meu


braço, com carinho. Lembrou-me daqueles toques da época em que
estava no hospital.

O ruim de lidar com memórias, eram que outras surgiam


juntas. Havia minha mãe voltando tarde para casa, do meu pai sem
manter contato, da professora me oprimindo e Rebeca se
excedendo. Meu humor estava prestes a se alterar, por isso optei
por jogar tudo para um canto.

Focaria no presente, era apenas eu e Matias. O homem por


quem me apaixonei à distância, através de mensagens de Rebeca
mesclada as minhas ilusões. Gostava de pensar que, se eu parasse
de respirar amanhã, pelo menos, eu teria me permitido amar um
homem.

— Chegou agora do hospital? — perguntei me pondo mais de


lado e apoiando minha mão na sua barriga. Afastou o copo de chá e
sua outra mão foi para cima da minha. O aperto que deu intensificou
o momento.

— Saí mais cedo para ver Rebeca. É a segunda vez que


bebe demais e eu preciso acobertar, pois, mamãe fica preocupada.
Deveria repreendê-la, mas como você está por perto, imagino que
ela ainda está brava comigo por não termos nos acertado. — Beijou
minha testa, parecia mais uma forma de reforçar suas palavras e eu
só sabia sentir. Estava tudo bem entre nós, do nosso jeito. — Algo
que disse me chamou atenção, que minha irmã precisava de amor.

— Sim. Às vezes, mesmo tendo todo o amor do mundo, não é


o suficiente. Algo nos falta e para encontrarmos, fazemos...

Lembrei sobre aquele dia ser sua entrega da virgindade. As


atitudes impulsivas explicavam o quanto ela estava confusa sobre
algo, mas ainda me questionava se era necessário chegar nesse
extremo. Algo estava sendo buscado por Rebeca, restava saber o
que era e se eu poderia ajudar.

— Obrigado por estar com ela.

— Eu não sou a melhor pessoa para a acompanhar. Sinto que


estou em falta, como amiga e irmã. — Ergui meu rosto para o
encarar, ele desviava os olhos para a minha boca. Seu coração
parecia que iria sair do corpo, sentia o ritmo acelerado tanto quanto
o meu estava.

Um urro de ânsia soou e rompeu a nossa bolha. Beijou minha


testa, levantou-se e foi para o banheiro, eu o segui em silêncio.

— Nunca mais vou beber — minha amiga resmungou e da


porta, ouvi preocupada.

— Jogue para fora, vai melhorar o seu ânimo.

Esperei alguns minutos, Matias me encarou de onde estava


ajudando a irmã, acenei adeus e ele fez o mesmo. Fui para a mesa
de jantar, onde meu material estava, peguei o celular e chamei um
motorista para me levar até em casa, a solidão que tanto antecipei.
Na escuridão que queria dominar minha alma, havia pontos
luminosos que me motivavam e eram neles que eu estava focada.
Poderia ser uma manhã qualquer, se eu não estivesse
sozinha em casa. Tornara-se um hábito minha mãe virar a noite
longe do lar. Desde a vez que Rebeca me fez de álibi e Matias nos
resgatou no bar próximo da universidade, dona Joana estava agindo
como adolescente. Não foi um, nem dois dias, mas vários outros se
seguiram na mesma maneira.

Sentada no sofá, esperando a minha mãe chegar da sua


noitada, deixei meu nervosismo ir para a perna e chacoalhar. Com o
estágio no hospital, não precisava ficar o dia inteiro na faculdade
esperando a próxima aula.

Passava do horário do almoço e por mais que não tinha


vontade de me alimentar, forrei o estômago. Ficar doente não era
uma opção quando estava trabalhando para deixar outras pessoas
bem.

Parte da minha angústia também era por estar no mesmo


local de trabalho que Matias. Tinha expectativas sobre como
lidaríamos com tudo e esperava que fossem atendidas. Não
buscava beijos ou juras de amor, mas toques furtivos e palavras
assertivas sobre nossa rotina.
Tentei saber mais sobre a vida de Rebeca e suas verdadeiras
motivações para ter agido daquela forma. Ela focou apenas em
contar o quanto estava amando Cleber e parecia que iriam assumir
o namoro para os pais se durasse mais de um mês.

Algo estava acontecendo e como eu mesma não conseguia


me abrir sobre o que me afligia, não exigia dela.

Levantei-me quando escutei barulho do portão se abrindo.


Com os braços cruzados, sentindo a irritação me dominar, esperei
minha mãe entrar em casa. Não esperava que ela estivesse
sorrindo e bem-disposta.

— Não está na faculdade, querida? — Mamãe me abraçou e


não retribuí, estava possessa.

— Passou a noite aonde? — questionei quando ela seguiu


para a cozinha e eu a acompanhei.

— Curtindo a vida, você deveria fazer o mesmo. — Abriu a


geladeira e tirou uma maçã de dentro. — Vai ficar chorando pelo
médico que te deu o pé na bunda até quando? — Olhou-me por
cima do ombro enquanto ia para a pia lavar a fruta. Deveria doer
suas palavras, mas me incomodava mais o fato dela estar tão
diferente.

— Mãe, você deveria ter voltado a trabalhar.

— Disse certo, querida, deveria. — Mordeu a maçã e


suspirou, parecia que não havia comido nada. — Mas estou,
finalmente, aproveitando meu status de esposa, mesmo não tendo
marido — debochou e continuou a devorar a fruta.
— Como assim?

— Seu pai vai nos bancar até essa vida me cansar. —


Segurou no meu ombro e me conferiu da cabeça aos pés. — Você
está bem. Saudável. É bonita e está seguindo o seu caminho,
mesmo eu preferindo que seja outro. — Passou por mim e bateu na
minha bunda. — Pode cuidar da sua vida, Yasmin, eu cuido da
nossa.

— Mãe, não é bem assim...

— Agora eu vou dormir, porque eu passei a noite em claro. —


Piscou um olho e fechou a porta do seu quarto. — Permita-se! —
gritou lá de dentro.

Estava mais chocada do que processando sua ordem. O


impossível tinha acontecido, dona Joana mudou de centrada e
metódica para desinibida e irresponsável. Ficar sem trabalhar e às
custas do dinheiro do meu pai era, de longe, a opção que eu
acreditava que minha mãe tomaria.

Estava tentada a levar o carro da minha mãe para o hospital


comigo, mas optei por chamar um motorista de aplicativo e ligar
para o responsável por essa situação ridícula.

Depois de tantos dias, por impulso, encontrei o contato do


meu pai e apertei em chamar. Já estava no carro a caminho do
hospital quando ele atendeu a ligação.

— Filha? — perguntou preocupado.

— Pai, o que está acontecendo com a mãe? — O nervosismo


ficou claro no meu tom, meu coração estava acelerado além do
normal.

— Desculpe, eu não entendi. Como assim? O que ela tem a


ver comigo?

— Ela não está indo trabalhar e volta para casa no outro dia,
como se fosse normal! — Soltei indignada. — Minha vida foi estudar
e focar em ser uma boa pessoa, centrada e certinha. Agora, depois
que você foi embora, minha mãe é outra pessoa!

— Será que mudou? Só acho que ela sempre foi assim e nós
dois não vimos.

— É culpa sua! — gritei alarmada, o motorista pareceu


assustado.

— Olha, Yasmin. Eu vou entrar em uma reunião, depois


conversamos sobre isso. A única coisa que você precisa saber é
que eu vou dar suporte para as duas. Se precisar de ajuda
especializada para lidar com as emoções, eu...

Encerrei a ligação, com lágrimas nos olhos e indignação


saindo como um bufo irritado. Sério que iria me indicar um
psicólogo? Ele estava muito bem e por cima da carne seca
enquanto meu mundo familiar parecia desmoronar.

— Moça? — o motorista chamou minha atenção e o encarei


pelo retrovisor interno. — Posso dizer algo?

Funguei e estava tentada a mandá-lo cuidar da sua vida, mas


precisava acalmar meu coração. Rebatendo sua opinião não seria
uma forma interessante de extravasar.
— Diga — ordenei com desdém.

Ele parou o carro, virou na minha direção e tentou sorrir com


simpatia.

— Assunto de marido e mulher, filho não mete a colher. —


Abri a boca e ele se apressou em continuar. — O que acontece
entre eles, deixa com eles. Exija que faça o papel de pai e o papel
de mãe. Mas marido, mulher... isso é assunto de casal.

— Obrigada. — Eu não estava agradecida.

Saí do carro e resmunguei o quanto ele estava enganado. Se


meu pai não sabia ser um bom marido para minha mãe, iria falhar
em tudo na vida, até no trabalho. Como era possível eu não meter a
colher, se estava prejudicando nossas vidas?

Com esses pensamentos, segui para a entrada do hospital e


sorri para a recepcionista. Nós já nos conhecíamos e seria bom ter
um rosto amigo no meio de tanto estresse emocional.

— Seja bem-vinda. É seu primeiro dia de estágio, certo? —


Acenei afirmativo. — Quando tiver um tempo, venha falar comigo.

— Sim, Lilian. — Despedi-me com um abraço, subi as


escadas até o andar da oncologia e senti como se estivesse em um
déjà vu.

Matias estava na recepção falando com as enfermeiras e


conferindo um prontuário. Hesitei alguns segundos antes de
caminhar e sentir que era uma situação diferente. Não haveria
abraços e reencontros, porque eu estava em outra posição e ele
também.
Seu olhar saiu do papel que analisava e sorriu quando me viu.
Olhei ao redor, esperando que tivesse mais algum colega da
faculdade, mas tudo indicava que eu estava sozinha.

— Não me surpreendi quando soube que era você vindo para


preencher a vaga. — Entregou o prontuário para uma das técnicas e
colocou a mão nas minhas costas para me apresentar. — Essa é a
estudante de enfermagem que fará estágio conosco nesse
semestre, Yasmin.

— Eu te conheço de algum lugar — uma delas falou.

— Ela foi nossa paciente, agora fará parte da equipe. — A


mulher mais velha se levantou e foi me abraçar. — Seja bem-vinda,
sou Quênia, enfermeira chefe.

— Mais fácil chamar de mãezona — outra comentou e todos


nós rimos. — Você foi a sortuda da vez na oncologia? — brincou.

— Sim, eu escolhi aqui. Sou Yasmin. — Olhei para Matias de


forma involuntária e percebi que deixei a entender que foi por conta
dele. — Onde posso me aprontar?

— Vamos, eu te levo. — A última que tinha falado se


aproximou e estendeu a mão. — Sou Maria.

Segui-a até uma sala de funcionários e me obriguei a não me


direcionar para Matias, mesmo que parecesse visceral a
necessidade de o olhar ou tocar. Que continuasse de forma furtiva,
sem que as pessoas comentassem o quanto antiético poderia ser.
Se com paciente era estranho, uma aluna poderia causar um
escândalo.
— Doutor Matias é um ótimo profissional, dos médicos é o
mais paciente com os pacientes. — Riu por conta do jogo de
palavras repetidos. Abriu um armário e coloquei minha bolsa dentro.
— Você entendeu, né?

— Sim. Ele foi meu médico quando estive internada.

— Onde era? — deixou subtendido a doença câncer.

— No sangue, leucemia. — Sorri quando a percebi surpresa.


— Meus exames estão bons e é a minha vez de retribuir o que
fizeram para mim.

— Ah, está ansiosa para tratar os pacientes? — perguntou


animada enquanto eu vestia meu jaleco. — Tenho um especial para
você. Se passar dele, atenderá qualquer um.

— Quero todos eles — respondi ansiosa, porque era por esse


motivo que eu queria ter o coração acelerado e não pelos problemas
de família.

Coloquei o celular no bolso em modo silencioso, acompanhei


Quênia e fui me apaixonando cada vez mais pela profissão. Havia
algo na enfermagem que a medicina não oferecia, que era o contato
com mais intensidade com os pacientes, o acompanhamento de
perto, a rotina do dia a dia, os melhores e piores momentos, a
intimidade.

Comecei meu turno acompanhando a enfermeira Maria nos


cuidados de pós-operatório e internações de pacientes que vinham
do pronto atendimento. De troca de curativos a anotações dos sinais
vitais, fiz minha parte com grande entusiasmo de aprender um
pouco mais a cada atendimento.

O último paciente a me surpreendeu, era o tal desafio que me


foi dito logo que iniciei o turno. Seu Wilson era um homem com mais
de sessenta anos, tratava do câncer há dois anos e meio e
alternava entre internações e ficar em casa. Sua fama era de ser
rabugento e estar muito debilitado.

Como aconteceu ao ver Rebeca há nove anos, me conectei


com o paciente e coloquei, como missão do meu estágio, ser agente
transformador na sua vida. Ele teria um pedaço do meu amor.
Estava conversando com outro médico da área, mas minha
atenção estava na moça chorosa que se encaminhava às pressas
para a sala dos funcionários. Despedi-me do meu colega de
trabalho e fui para o mesmo destino de Yasmin, que estava no seu
segundo dia de estágio. Quênia, a enfermeira chefe, estava
satisfeita com o quão empenhada e profissional ela era.

Seria mentira dizer que isso não me orgulhava pra cacete,


ainda mais que nossa rotina de hospital tinha voltado, de um jeito
diferente e instigante. Trocávamos olhares, sorrisos tímidos e o
adeus que me sufocava, porque ela deveria estar comigo no final do
dia, não na sua casa.

Deixei as dúvidas debaixo do meu colchão e optei por


assumir o que sentia. Em parte, vinha o amor platônico de quando
ela foi minha paciente. O que restava, era sobre o momento que
estávamos vivendo juntos, da mulher que meus olhos enxergavam e
minhas mãos conseguiam tocar.

Entrei na sala dos funcionários, duas técnicas conversavam e


logo saíram por me ver. Percebi que a porta do banheiro estava
fechada, aproximei até que minha orelha ficasse contra a porta e
escutasse as fungadas mais profundas.
Acreditava que todos daquela ala do hospital poderiam dizer
que tiveram um surto de tristeza, seja no início da carreira ou mais
experiente. A questão era que, trabalhar tendo a morte como
companhia, não era fácil.

Escutei o barulho da descarga, depois da torneira da pia e me


arrisquei ao bater na porta. Se alguém nos pegasse aqui, a fofoca
aconteceria e atrapalharia por alguns dias nossa concentração
profissional. Eu não me importava, já estavam falando sobre meu
rompimento com Nadja, mas Yasmin era uma pessoa que precisava
ser preservada.

Quando abriu a porta, seu olhar se surpreendeu ao me ver e


apressado, nos coloquei para dentro do banheiro novamente e a
encarei com diversão. Ela logo suspirou e deixou que o peso nas
suas costas suavizasse. Levar a sério era importante, mas moderar
postava-se necessário.

— Conte-me — exigi com empatia e baixo, para manter nosso


sigilo.

Ela ficou de perfil e apoiou as mãos na pia enquanto me


encostei na porta.

— Apenas um dia ruim com um paciente que duvida da sua


capacidade por ser apenas a estagiária. Vou superar. — Encarou-se
no espelho, ela parecia repetir na sua mente para se convencer.

— Seu Wilson? — questionei, porque de todos os internados


no momento, havia apenas um que tinha força suficiente para abalar
os profissionais.
— Sim. Entendo que está em uma situação complicada,
esperança não é algo para se apegar e...

— Se te consola, ele faz isso com todo mundo, até comigo —


cortei-a antes que se lamentasse mais. Nosso momento desabafo
tinha os minutos contados e a última coisa que Yasmin deveria
estar, era na posição de vítima.

— Percebi e a chefe Quênia falou a mesma coisa. —


Respirou fundo e voltou sua atenção para mim. Amava o seu olhar
demonstrando que precisava de ajuda. — Um minuto, era tudo o
que precisava para não desmoronar na frente dele.

Era momento de termos algo a mais do que estávamos


acostumados. Peguei em seu pulso, puxei-a com delicadeza para se
aproximar, já que o espaço não permitia movimento abrupto e a
envolvi com meu abraço.

Senti-a endureceu o corpo, trancou a respiração e não disse


nada. Alisei suas costas e suspirei, transmitindo a segurança que
poderia oferecer. Ela fez o mesmo, envolveu seus braços no meu
corpo e apertou, correspondendo a algo grandioso que nos rodeava.

Era homem, tinha minhas necessidades e sabia como


funcionava um relacionamento sério ou casual. Único e poderoso,
por mais que não falássemos sobre nós diretamente, fazíamos de
forma inocente e no momento me bastava. Acreditava que do lado
dela também era o suficiente, porque o sorriso que me deu, quando
se afastou de mim, falava muito mais do que palavras.

— Obrigada — sussurrou e olhou por cima do meu ombro


indicando que estava satisfeita. Nós tínhamos dado um passo a
mais, era momento de cada um seguir para o seu canto para
processar.

— Vou sair primeiro, dispersar quem estiver por aqui e depois


você sai. Tudo bem?

— Ou o quê? Vão achar que estávamos fazendo algo


inapropriado no banheiro? — questionou baixo e indignada. Não
resisti ao sorriso de lado e as sobrancelhas levantadas. — Matias,
isso não é seriado de televisão.

— Claro que não. — Meu tom irônico antes de lhe dar as


costas a fez se aproximar e puxar meu jaleco. Olhei-a por cima do
ombro sem perder a diversão, que para ela, era desespero. — A
ficção, muitas vezes, imita a realidade. Ou poderia.

Pisquei um olho, saí rapidamente e não me deparei com


ninguém na sala. Fechei a porta da sala dos funcionários com mais
força do que deveria. Quênia me viu andar pelo corredor e
transformei minha fisionomia divertida para séria.

— Conheço esse olhar, doutor Matias — falou com seu tom


mãezona. Droga, os sermões dela eram piores que de dona
Betânia.

— Vou ficar no pronto atendimento. Se precisar de mim, só


chamar. — Passei por ela e tentei disfarçar, mas o bufo que deu me
fez virar o corpo para encará-la. Lá estava Yasmin saindo da mesma
sala que eu com o rosto vermelho de vergonha.

Droga! No final, ela entregaria tudo com seu jeito expressivo.


Deu conta de uma leucemia, com certeza, daria conta de Quênia e
os pacientes mais exigentes.

Optei por descer as escadas e descarregar minha energia


ansiosa. Registrei-me para a segunda parte do meu plantão,
apresentei-me a técnica responsável pela parte administrativa da
recepção e me acomodei na sala.

A rotina do atendimento me desligou dos problemas pessoais.


Estar a serviço das pessoas, para auxiliá-las no que era imediato,
dava-me satisfação pessoal e profissional. Eu tinha escolhido a
profissão correta, era o que me completava. Perdia as contas de
quantos pacientes atendia, eu só parava quando o meu horário
terminava – às vezes, ultrapassava esse tempo.

Depois de três atendimentos por conta de viroses e um, por


corte na mão, os pensamentos em Yasmin voltaram em foco. O
próximo paciente que entrou no consultório me fez lembrar da minha
irmã. Atrelada a ela, a mulher por quem estava interessado.

O rapaz que mal ficava sentado ereto na cadeira era um


adolescente e estava acompanhado pela mãe. Seu histórico de
álcool e drogas, uma combinação perigosa, me levavam a crer que
não seria apenas em um simples atendimento emergencial.

Pedi que o paciente se sentasse na maca, deixei a lixeira


próxima caso ele vomitasse e fiz os testes básicos de reflexos. Ele
parecia sem forças para deixar a cabeça erguida, seu pulso estava
acelerado e nem precisaria de um exame toxicológico para atestar
que tudo o que foi dito pela mãe estava correto.

— Doutor, não sei mais o que fazer. Ele acha que é dono do
próprio nariz, mas quando passa mal por causa dessas porcarias,
quem tem que dar conta sou eu. — A mãe desabafou enquanto eu o
examinava.

— Aqui, eu poderei apenas aliviar a situação de forma


momentânea, mas ele precisaria de um acompanhamento
psicológico, quem sabe, uma internação. — Assim que terminei de
falar, o rapaz se mostrou em alerta e se levantou quase me
derrubando.

— Eu não vou ficar preso, mãe! Te odeio! — Tentei segurá-lo,


mas rapidamente saiu da sala e a acompanhante ficou chorosa na
sua cadeira.

— Tudo para chamar atenção do pai. — Olhou-me enquanto


voltava para a minha cadeira. — Ele tem outra família, não quer
saber do filho, ainda mais drogado. Eu que cuido e sou odiada.

— Acompanhamento especializado não é só para o


dependente químico, mas para os familiares. — Fui encarado com
descrença. — Posso encaminhar...

— Não é necessário. A próxima vez, vou deixar sofrendo


sozinho no próprio vômito — falou chateada e saiu da sala. O
julgamento não cabia a mim, ainda mais quando era experiente no
assunto sofrimento.

Cada pessoa sentia de uma forma.

Pedi um momento antes de atender o próximo paciente,


precisava redigir as informações no prontuário eletrônico. Com o
pensamento em Rebeca e os episódios de bebedeira, percebi que
acobertei duas vezes que se excedeu e tinha conhecimento de
outras antes de Yasmin estar por perto. Meus pais não sabiam,
porque acreditei ser passageiro, coisa da idade. Será que não era
momento de colocar as cartas na mesa?

Concluí o prontuário e avisei a técnica que estava livre para


atender o próximo paciente. Gostava de me comportar como sendo
um bom irmão, mas talvez, estava resultando errado. Meu pai não
atendia mais nesse hospital e minhas idas até a casa dele se
resumia a levar Rebeca depois de dormir no meu apartamento.

Peguei meu celular, digitei uma mensagem para a minha mãe


e combinei um almoço de domingo com ela. Claro que sugeri
convidar Yasmin, a desculpa para estar com ela não era apenas
minha, mas de Rebeca.

— Olá, doutor. — Um homem jovem e com olheiras entrou e


deixei de lado meus pensamentos.

Era momento de fazer a diferença na vida de outras pessoas.


O que poderia ser pior que ver Rebeca novamente bêbada?
Ela estar dessa forma e avisar que teria um almoço na casa dos
seus pais no final de semana e eu tinha sido convidada. Mal passou
uma semana desde o início do meu estágio e estava recebendo um
pedaço surpresa de loucura da minha doadora de medula.

— Seu irmão vai estar também? — perguntei incomodada,


porque não conseguia deixar de pensar no nosso abraço no
banheiro e no que as pessoas faziam no hospital, que a ficção
imitava o real.

— Claro que vai. Eu acoberto os dois para uma escapadinha,


como você faz comigo — falou conspiratória e riu, chamando
atenção das mesas ao lado.

Como tive aula de tarde e não precisei ir para o hospital


cumprir meu estágio, aceitei o convite da minha amiga de
acompanhá-la em um cachorro-quente. O que não esperava era me
encontrar com uma Rebeca bêbada.

Mesmo assim a acompanhei, sentamo-nos em uma mesa na


calçada e falamos sobre a faculdade, até que o convite foi exposto.

— Como está você e o Cleber?


— Não mude de assunto. Matias vai te buscar dez horas no
domingo. Leve biquini.

— Está chegando perto do meu período, melhor não arriscar.

— Existe absorvente interno para isso, Min-min. — Apertou


minha bochecha como se eu fosse uma criança. — Está tensa
demais, precisa dar umazinha.

— Você faz isso com Cleber? — questionei envergonhada.

— Sempre que possível. — Tomou um gole do refrigerante e


desviou o olhar, como se fosse vergonhoso até para ela assumir. —
Mas não estamos namorando, então, não fale nada, nem para
Matias.

— Tem algo que te incomoda e você não quer falar para mim.

Nossos pedidos chegaram, ela focou na comida e eu em ser


respondida. Deixei que comesse metade antes de insistir:

— Sou sua amiga, pode falar comigo o que quiser.

— Você também, mas pelo visto, não sou digna dos seus
segredos — respondeu com desdém.

— Qual segredo? Que sou virgem? Que passei anos tratando


minha leucemia até você aparecer e salvar minha vida? — Olhou-
me incrédula e apenas bufei. — Essa sou eu, sem graça e sem
mistério.

— Você não fala mais sobre seus pais, não entrou em contato
com minha mãe para participar do voluntariado e deixou de falar
sobre você e meu irmão.
— Não tem nada acontecendo — falei um pouco mais alto e
nervosa. Para minha indignação, ela pegou o próprio celular e
chamou Matias. — Pare, Rebeca, isso é muito infantil da sua parte.
Sobre meus pais...

— Oi, irmão. Vem comer um cachorro-quente comigo e com


Min-min? — Queria estrangulá-la pelo apelido e deboche na voz. —
Sim, é Yasmin e pare de ser chato, só tomei um copo hoje. Tchau.
— Encerrou a ligação e me olhou esnobe. — Você ia falar dos seus
pais...

— É difícil para mim, ok? — Tentei tomar o refrigerante e o


abandonei, depois abri a boca para comer, mas tudo parecia errado.
— Sempre fui fechada, a única amiga que eu tive no colégio,
encontrei no churrasco e não parei um minuto para ir atrás dela na
universidade.

— Ah, agora ela é a sua única amiga? — Inclinou o corpo


para frente na mesa, me intimidando.

— ERA, Rebeca. Hoje eu tenho você e não consigo me abrir.


Sinto muito que não venho despejar meus problemas e aflições no
seu colo, mas é porque prezo os bons momentos, seu carisma e
empolgação. — Peguei na sua mão, ela se afastou e isso me
machucou. — Por favor, me entenda e se abra comigo.

— Estou fazendo igual você faz comigo. Amizade é


reciprocidade.

Ficamos uma olhando para a direção contrária da outra por


um bom tempo. O garçom apareceu perguntando se tínhamos mais
um pedido, mas recusamos. No momento precisávamos de minutos
para digerir as palavras.

A explicação para minha dificuldade em me expressar era


inexistente. Meu pai saiu de casa, minha mãe só queria saber de
farra e nem trabalhar estava mais. Estou passando uma semana de
cão por causa do paciente Wilson, que não me aceitava nem
trocando seu soro.

Minha vida parecia pesada demais para fluir naturalmente.


Era momento de procurar ajuda especializada e Rebeca estava na
mesma situação.

Assustei-me quando vi o carro de Matias parar próximo de


nós. Ainda com a roupa que ele costumava usar no hospital, saiu do
carro e enfrentou Rebeca.

— Oi irmão! — Ela levantou-se e o abraçou, ele não tinha


dirigido o olhar para mim. — Vamos embora? A Yasmin resolve a
conta.

O problema não era pagar sua parte, mas como tudo estava
acontecendo. Senti a dor de cabeça surgir do lado esquerdo,
coloquei a mão na testa e suspirei em busca de alívio. Seria uma
noite e tanto.

— Eu resolvo. Vá para o carro — ordenou Matias e Rebeca


foi se comportando como uma criança. Ele esperou a irmã se fechar
no carro para ocupar seu lugar à minha frente na mesa. — Você não
está legal.
— Brigamos. — Dei de ombros, mas a verdade era que me
doía demais perder a única amiga que tinha. — Pode deixar que
resolvo tudo, ela precisa de cuidados.

— Percebi e meu papel de irmão legal está contribuindo para


isso. — Finalmente o encarei e aquela conexão que aflorava ao tê-lo
por perto aconteceu. Era só com ele que eu me sentia assim, o
pedaço da minha vida reservada para os amores era acionado na
sua presença. — Vem comigo — pediu sussurrado.

Tantos motivos para negar, outras tantas justificativas para


recusar, mas bastou uma desculpa esfarrapada para acenar
afirmativo, precisava de um abraço. Ele era o único que poderia me
proporcionar a calmaria, como fez no banheiro do hospital.

Como minha mãe não estaria em casa e logo Rebeca


dormiria, aceitei o convite ansiando por ficarmos juntos.

Ele chamou o garçom, fechou a conta e deu uma mordida no


meu cachorro-quente. Céus, ele era perfeito, até havia voltado
minha fome. Mordisquei um pedaço e Matias pegou o resto da
minha mão antes de entregar o dinheiro para o moço e se levantar.

Abracei meu material, dei a volta no carro e me sentei no


banco, olhando por cima do ombro Rebeca deitada de olhos
fechados. Ela não estava dormindo e não diria nada, ainda mais
quando Matias esticou a mão, segurou a minha e seguimos para o
seu apartamento.

Tentava encontrar explicação para o que eu e ele tínhamos.


Era uma sensação boa, a única descrição que poderia pôr em
palavras e soava tão bobo, preferia guardar para mim. Se Rebeca
se permitia transar a qualquer momento em busca de conforto,
como poderia entender a satisfação de ter a mão segurada por
alguém especial?

Para sairmos do carro, quando chegamos no estacionamento


do seu apartamento, ele a carregou no colo. Ficou com ela no
elevador até chegar no apartamento. Em seu quarto, ele a deitou e
depois, foi me recepcionar na cozinha. Sentindo-me confortável, abri
a geladeira e me servi de chá gelado.

— Vai roubar? — perguntei divertida, quase em negação.


Como desafio, ele se aproximou e pegou o copo. — Sirva um para
você.

— Do seu copo é mais gostoso, sempre. — Devolveu e


acenou para a porta. — Vamos para a varanda.

Tomei todo o chá e segui-o, sabendo que poderia agir como


da outra vez. Ele se sentou no banco almofadado, fiz da mesma
forma, bem próxima dele. Toquei sua barriga e diferente da última
vez, senti mais que sua camisa, o seu abdômen rígido.

— Adivinha quem perguntou de você? — Matias brincou.

— Seu Wilson que não foi — respondi incrédula.

— Sim, o próprio e você confirmará com Quênia no hospital


quando for novamente. — Abraçou-me com mais força e quase me
deitei ao seu lado.

— Em comparação a ele, brigar com Rebeca é pior —


comentei erguendo minha cabeça para o encarar e receber seu
olhar preocupado. — Ela é a única família próxima que seja normal.
Está uma confusão lá em casa.

Olhou para minha boca, depois meus olhos e respirou fundo.


Suas ações estavam difíceis de prever. Esperava alguma forma de
conforto ou palavras de carinho, mas fui surpreendida com seus
olhos fechados e seus lábios se aproximando dos meus.

Involuntariamente, fechei os olhos e esperei o contato, que


veio suave e diferente, como o abraço no hospital. Uma vibração
irregular soou dentro de mim, algo mais quente e desejoso me deu
força para inclinar a cabeça para o lado e lhe dar passagem para
sua língua explorar minha boca.

Calmo e sensual, aos poucos, ele ia me conhecendo mais


intimamente e eu perdia a vergonha, fazendo o mesmo. Havia algo
dentro de mim que gritava, em um idioma desconhecido, que nunca
poderia sentir prazer na minha vida. Eu era alguém doente e mais
propensa a morrer que as outras, por causa da leucemia. Mesmo
que parecesse absurdo, não me sentia digna.

Seu abraço mais forte me fez suspirar, a velocidade do seu


beijo me desequilibrou emocionalmente e tudo o que eu queria fazer
era continuar, mas tive que interromper e me afastar.

Eu ainda achava que não estava pronta.


Não me despedi ou dei maiores explicações, apenas
caminhei desnorteada até a mesa onde estava meu material da
faculdade, saí do apartamento e agradeci que o elevador chegou
rápido o suficiente. No meu íntimo, esperava que Matias corresse
atrás de mim, pedindo que voltasse.

Estava em dúvida se era, realmente, o que eu mais ansiava.

Quando passei pela portaria, meu celular tocou apenas uma


vez. Conferi quem era, aliviada ao mesmo tempo que na
expectativa, era Matias. Por instinto, olhei meu aplicativo de
mensagens e lá estava ele, preocupado comigo.

Matias>> Só me diga se está bem. Posso te levar em


casa. Eu te entendi.

Yasmin>> Cuide de Rebeca.

Andei até a avenida mais próxima e me sentei no banco do


ponto de ônibus. Acionei o motorista de aplicativo e lembrei daquele
que havia me dado o conselho que em briga de marido e mulher,
filho nenhum metia a colher.
Pensei no meu pai, nas saudades que tinha dele e tudo o que
minha mãe expôs. Ele estava nos bancando e para mim já estava
pesado demais. Se não fazia mais parte da família, não havia razão
para me sustentar, ainda mais por ser maior de idade.

Alternei entre o aplicativo e o contato do meu pai. Era tarde,


tão inapropriado, já que me sentia uma intrusa na sua vida. Meu
carro chegou, minha mente focou e apertei o botão de chamar para
falar com ele enquanto me acomodava no automóvel.

Tocou várias vezes antes dele atender sonolento:

— Yasmin? Está tudo bem?

— Oi, pai. — Respirei fundo e tomei coragem. — Como está?

— Aconteceu alguma coisa? Brigou com sua mãe?

— Estou bem. Só queria... conversar. — Toquei meus lábios e


lembrei que há minutos tinha dado meu primeiro beijo. De certa
forma, era o primeiro significativo da minha segunda vida. — Posso
ligar outro dia, se for o caso.

— Tudo bem, podemos conversar. — O silêncio pairou entre


nós. Apesar de existir vontade, faltava assunto para mantermos um
diálogo. Perdemos a nossa conexão e não sabia dizer quando isso
aconteceu. — Estou morando perto da universidade que você está
estudando. Quando quiser, pode vir almoçar ou tomar um café,
Carolina trabalha em casa.

— Quem é Carolina? — perguntei baixo, sentindo-me traída,


algo que não deveria acontecer, afinal, ele continuava sendo meu
pai.
— Não queria ter que te contar por telefone. Venha, me dê
uma oportunidade de conversar pessoalmente.

— Estou fazendo estágio no mesmo hospital que fui


internada. — Mudei de assunto propositalmente, saber da sua nova
família era demais para mim. — Vou seguir carreira na oncologia.

— Não enjoou de estar entre os doentes? — Tentou rir no


final, não sei em que momento ele achou que era uma piada.

— Foi ali que recebi a cura, será lá que me doarei para o


resto da vida. Poderia respeitar minha escolha? Quem sabe, me dar
apoio? — A chateação estava nítida, até o motorista me encarou
pelo retrovisor.

— Sim, filha, claro. Ninguém melhor do que você para fazer a


diferença na área da saúde. Medicina era o ideal, mas entendo que
enfermagem tira um pouco do peso das suas costas.

— Não diminua a minha profissão! — Olhei para a tela do


celular e o escutei resmungar baixo. — Quer saber? Não deveria ter
ligado, fique com sua amada Carolina, eu continuarei com minha
vida longe de você.

Encerrei a ligação mais chateada do que já estava e deixei as


lágrimas banharem meu rosto. Não iria mais repreender nenhuma
reação do meu corpo, guardar estava me tornando uma bomba
relógio.

Saí do carro quando ele parou na frente de casa e revirei os


olhos ao perceber que estaria o resto da noite sozinha. Tomei um
banho, organizei meu material da faculdade e encontrei, em uma
gaveta, uma foto minha e dos meus pais antes da leucemia ter me
encontrado.

Analisei a imagem, conferi a postura dos meus pais, comigo


no meio e de uma certa forma, senti que a única conexão deles era
eu. Enquanto estava sadia e seguia os passos que eles
determinaram para mim, eu os conectava. Depois da minha doença,
suas ausências e minha vontade de ficar sozinha desestabilizou a
união deles e o inevitável aconteceu.

Isso os tornavam menos pai e mãe?

Fui atrás de outras fotografias, minha mãe guardava uma


caixa cheia delas na parte de cima do seu guarda-roupas. Abri a
porta e não reconheci nada do que tinha dentro. Por não estar onde
era de costume, acabei olhando suas roupas, joias e outros itens
pessoais. Aos poucos, a dor de cabeça foi me tomando, as dores
nos ombros me abalando e meu peito doendo, ainda mais quando
encontrei um pacote de preservativo.

Achei o que queria, estava bem ao fundo da parte debaixo,


onde tinha algumas caixas de sapatos. Revivi uma época que
parecia distante, quase uma história de outra pessoa. Meus pais
eram rígidos, me davam exemplos de como me vestir, o que falar,
como me comportar. Não existia sorrisos, mas parecia ter amor. Um
sentimento diferente daquele que eu compartilhava com Rebeca,
apesar da nossa briga recente.

Ao ver minha mãe ao lado de sua irmã, percebi que me


afastei não só dos meus pais, mas da família. Não sabia se tia
Marina ainda morava na cidade, ela foi meu contato emergencial
antes de me tratar em outra cidade. A vó Cida, mãe do meu pai, há
muito não visitava ou conversava.

Guardei tudo de volta no lugar, pensando que minha mãe


tinha mais liberdade para ser quem ela era do que eu. Justo ou não,
se ela estava em busca de ser feliz, do seu jeito, claro, eu deveria
fazer o mesmo.

Deitei-me na cama, peguei o celular e enviei uma mensagem


para Matias.

Yasmin>> Fui pega de surpresa, não desista de mim


ainda.

Matias>> Isso quer dizer que posso tentar novamente?


Estou sem pressa ao mesmo tempo que conto os minutos para
te ver, te olhar, te tocar... algo que não tive na época do colégio,
por ser o mais nerd da turma. Momentos prazerosos de se viver
agora.

Yasmin>> É isso que você busca? Um romance platônico,


onde a menina surta por causa de um beijo? Ainda não me
sinto confortável comigo mesma. Me acostumei a ter distância
emocional de todos para superar a leucemia.

Matias>> Sua ótica sobre nós não está errada, mas


também, não é completamente certa. Faço, porque me sinto
bem. Pode parecer imaturo ou inocente demais para um homem
maduro como eu. Sei do meu potencial, mas também consigo
respeitar as situações que me fazem bem.
Yasmin>> Estou com medo.

Matias>> Faz parte do pacote. Confia em mim como eu


estou confiando em você. Prometo me controlar para não
roubar mais chá gelado do seu copo.

Aproveitei para entrar na brincadeira, o assunto sério estava


me abalando de uma certa forma.

Yasmin>> O meu é sempre mais gostoso.

Matias>> Tudo. Sempre. Com certeza.

Yasmin>> Nos vemos no hospital?

Matias>> Terei dois dias de folga, então nos vemos no


almoço nos meus pais. Eu te busco.

Yasmin>> Preciso falar com Rebeca antes disso. Ela é


minha única amiga, Tias.

Matias>> Mande áudio, você nunca me chamou assim


pessoalmente.

Yasmin>> Boa noite, até o almoço.

Encerrei a conversa com um sorriso no rosto e paz no meu


coração que parecia buscar a revolta. A minha felicidade, precisava
ir de encontro a ela e deixar os outros assuntos para quem lhes
cabia.
Sentada no sofá, enquanto minha mãe preparava alguma
coisa na cozinha, tentei falar com Rebeca e não tive retorno. Sem
atender minhas ligações e ignorando minhas mensagens, ir ao
almoço com sua família parecia ilógico.

Porém, esqueci de falar com o responsável pelo convite. Um


carro parou em frente de casa, conferi na janela da sala quem era e
me bati mentalmente. Matias veio me buscar, sendo que não queria
estar em um lugar onde não seria bem-vinda.

Tocou a campainha e minha mãe foi para a sala, me olhou


curiosa e fez bico.

— Quem pode ser?

— É o Matias. Tinha combinado de ir almoçar com sua


família, mas eu não quero.

— Simples, mande-o embora. — Voltou para a cozinha e a


campainha tocou novamente, me apressando a recebê-lo. Não iria
descartar sua vinda, ainda mais por estarmos entrosados por
mensagens.

Peguei a chave do portão menor, fui até a entrada de casa e


abri, recebendo o seu melhor sorriso. Até esqueci o motivo de não ir
com ele quando me puxou para um abraço e beijou minha testa.

— Esse cheiro... — comentou baixo e inspirou


profundamente. — Oi, moranguinho.

— Mas esse cheiro é do meu xampu e não de morango —


comentei divertida e empolgada por ter recebido um apelido tão fofo
como aquele.

— Mas a boneca moranguinho tinha vários cheiros, eu


brincava que comia todas elas com a Rebeca. — Inspirou
profundamente novamente. — Algo mais para cereja.

— Sim, isso mesmo. — Abracei-o com força e soltei o que


mais ansiava: — Oi, Tias.

Afastou-me fechando os olhos, parecia estar sofrendo por


alguma coisa.

— Podemos ir? Minha meta hoje é ficar o máximo de tempo


com você me chamando assim. Quando voltar os plantões, não
teremos tantas oportunidades e terei que me contentar com te olhar
de longe.

— Exagerado. — Meu rosto ficou quente. Enquanto a


conversa mais direta se mantinha nas mensagens, me sentia
ousada. Pessoalmente, não sabia onde colocar meu rosto.

— E, então?

— Rebeca não me respondeu e nem atendeu minhas


ligações. Acho que será chato esse almoço sem estar conciliada
com ela.
— Ah, por isso que ela anda toda ranzinza. — Voltou a me
abraçar e riu baixo. — Fará bem para as duas. Vou abdicar do meu
tempo com você, para que voltem a se entender.

— Vai entrar ou ficar namorando na porta para os vizinhos


falarem de vocês? — minha mãe gritou. Assustei-me, puxei Matias
para dentro e fechei o portão menor.

Sem o convidar para entrar, caminhei apressada para a porta


de entrada de casa, onde dona Joana me esperava séria.

— Mãe, não precisava disso — falei baixo e Matias entrou


logo atrás de mim, estendendo a mão para ela.

— Como vai a senhora?

— Senhorita, rapaz. E aqui você não é médico, é o


namoradinho da minha filha que a chamou para jantar em casa
enquanto namorava outra.

— MÃE! — Se tinha sentido vergonha uma vez na vida,


aquela, com certeza, foi a pior de todas. Olhei para Matias, que
soltou da mão dela e sorria contido.

— Foi um mal-entendido. Mesmo assim, estou tentando me


redimir desde então.

— Acho bom, porque não preciso dizer nada sobre o passado


dela, uma vez que você fez parte dele. — Intimidou-o enquanto eu
me sentava no sofá e tampava o rosto. Uma adolescente, era como
me sentia e precisava resgatar meus vinte e seis anos
urgentemente!
— Tenho boa memória e as melhores intenções.

— Estarei na cozinha se precisarem de mim.

Senti a aproximação ao meu lado e um riso baixo soar. Abri


alguns dedos e virei o rosto em direção a Matias, ele parecia se
divertir com a minha desgraça.

— Isso é broxante — falei baixo.

— Sim, mas divertido também. Será o assunto do nosso


almoço hoje — comentou no mesmo tom.

Apertei sua coxa, ele colocou a mão na boca para não soltar
o riso descontrolado. Aos poucos fui me contagiando, percebi que
estávamos lidando com uma mãe leoa, que para mim, aquecia meu
peito por demonstrar que se importava comigo.

Meus pensamentos foram para o meu pai e como ele se


portaria na mesma situação.

— Acho melhor ir com você, ou terei que lidar com ela. — Dei
de ombros. — Ou não, já que está mais fora do que dentro de casa.

— Hum, tem algo acontecendo então — comentou


envolvendo seu braço nos meus ombros.

— Vou terminar de me aprontar, só um minuto. — Levantei-


me apressada, por mais que não tenha disfarçado minha
necessidade de mudar de assunto.

Fui para a cozinha primeiro, avisar minha mãe sobre minha


saída e depois troquei de roupa para uma mais formal. Sabia que
era outro mundo estar na presença dos Chagas.
— Não mude nada na sua vida por causa de homem nenhum,
minha filha. Está entendendo? — Fui surpreendida com minha mãe
entrando no meu quarto quando terminei de passar o batom.

— Mãe, é o Matias. Foi meu médico, ele é especial.

— Todos eles são. Na primeira dificuldade, nos trocam por


uma com a metade da idade. — Colocou as mãos na cintura e
suspirou indignada.

— Tudo bem, mãe.

— Falo para o seu bem. Demorei muito tempo para saber o


que eu realmente queria da minha vida. Você não precisa disso
tudo, pode aprender com meus erros.

Estava falando do meu pai, do que ela passou, mas o homem


que estava na minha sala me conheceu no meio do caos em que
minha vida estava. Não concordava que as frustrações dela seriam
as mesmas que as minhas.

A conversa que tive com meu pai, o sentimento de traição e


todo rancor parecia se esvair de mim. Era tudo da minha mãe, da
mesma forma que ela buscava ir atrás da felicidade, eu fazia e meu
pai, provavelmente, também.

— Eu fui um erro, mãe? — perguntei emocionada.

— Claro que não. Seu pai, sim. — Pareceu tocada, já que


suas palavras respondiam minha pergunta com afirmação. Veio até
mim e me abraçou com um pedido de desculpas. — Estou falando
um monte de besteiras. Sinto muito. Só tome cuidado, tudo bem?
Tenho camisinhas comigo...
— E essa é minha deixa. — Soltei-me dela, deixei um beijo
em sua bochecha e fui até a sala puxar Matias para sair de casa
sem muitas explicações.

Entramos no carro sem silêncio. Acomodei-me no banco,


coloquei o sinto e soltei o ar aliviada quando começamos a nos
afastar. Para manter o padrão, Matias começou a rir e me contagiou,
mesmo sem eu saber o motivo.

— Ela tentou o papo sobre sexo e DST?

— E você está rindo disso? Tias, pelo amor de Deus, eu fiz


medicina e tenho vinte e seis anos. Estou me sentindo com dezoito,
preciso assumir meu lugar.

Ainda rindo, por mais que eu demonstrasse exaltação, pegou


minha mão, levou para a sua boca e deixou um beijo no seu dorso
antes de colocá-la na sua coxa e continuar guiando apenas com
uma mão.

Ajeitei minha postura, olhei para frente e fui me centrando aos


poucos. Assumir o meu lugar... estava aprendendo e tinha alguém
muito especial ao meu lado me ensinando.
Percebi que estava de mãos dadas com Matias quando entrei
na casa dos seus pais e o olhar de dona Betânia focou na nossa
união. Rapidamente me soltei dele para abraçar uma das mulheres
que me ajudaram a ter um momento menos sofrido enquanto estava
em uma cama de hospital.

— Olá, querida, como está? Que surpresa agradável. —


Apertou-me de um jeito que me fez lembrar dos abraços da minha
mãe, enquanto éramos apenas nós duas longe de casa.

— Obrigada pelo convite, dona Betânia.

— Ah, agradeça meu filho. — Ela me afastou e encarou meus


olhos com intensidade. Relutei para não desviar, de uma certa
forma, se eu fugisse, estaria assumindo que não era merecedora.
Do quê? Naquele momento, eu só sabia sentir. — Como vai a
faculdade? Adaptou-se bem na enfermagem?

— A melhor estagiária — brincou Matias e o seu pai apareceu


para me receber.

— Sou a única — respondi no mesmo tom de brincadeira.

Senti meu coração bater acelerado e, segundos depois,


descobri o motivo, iria ver Rebeca. Eu não me sentia preparada
para lidar com a rejeição da minha amiga-irmã.

— Como está? — a pergunta do doutor Paulo tinha mais


significado do que aparentava. Abraçou-me rapidamente e conferiu-
me da cabeça aos pés. — Está se alimentando bem?

— Se esqueço, o celular me lembra, eu tenho um


despertador. — Minha doença sempre seria uma sombra na minha
vida. Precisava aprender a aceitar que ela fazia parte, por mais que
não me obrigava a estar em um hospital naquele momento.

Dei passos para trás, com a intenção de ficar mais próxima de


Matias, era onde me sentia protegia.

— Muito bem. E para comemorar, fizemos um almoço bem


nutritivo — dona Betânia falou entusiasmada. — Gosta de legumes
assados?

— A pergunta que você deveria fazer, meu amor, é se ela


gosta de alho. Você sempre coloca uma quantidade extra. — Doutor
Paulo beijou o rosto da esposa enquanto riamos da situação.

Senti a mão de Matias querer pegar a minha e as uni atrás de


mim, porque estava morrendo de vergonha. Talvez, se não fosse a
ansiedade de Rebeca aparecer a qualquer momento, eu estaria
mais calma em lidar com algo desconfortável.

— Vamos para a cozinha de fora? Tenho várias misturas de


sucos para fazer enquanto conversamos. — A mãe de Matias se
virou junto com seu marido e olhei ao redor, confusa. — Pegue o
patê para nós, Paulo.
— Vem comigo, filho. — Os homens passaram por uma porta
enquanto eu e dona Betânia íamos para a área do fundo.

Uau! Esse sim era um espaço gourmet digno de revista de


arquitetura. Com mármore, madeira e vários azulejos temáticos de
comida, observei tudo antes de me aproximar do balcão enquanto
ela ia para a pia.

— Precisa de ajuda? — ofereci, mesmo sabendo que era


péssima com afazeres de casa.

— Na verdade, sim. Mas não é na cozinha. — Olhou para


cima e suspirou, ficando de perfil para mim enquanto colocava
laranjas dentro da pia. — Você e minha filha brigaram, não foi?

Senti minha pressão baixar, alguns segundos fiquei sem


respirar e soltei o ar quando ela me encarou com ternura. Céus,
aquela amizade abalava minhas emoções, era um pedaço que não
queria me desfazer. Essa família era muito importante para mim,
não só por Matias e Rebeca.

— Si-sim... — Olhei para minhas mãos em cima do balcão, a


derrota queria fazer morada nas minhas costas.

— Você poderia contar para mim o que houve? — Aproximou-


se e colocou sua mão em cima da minha. — Não estou aqui para
julgar, quero ajudar.

— Não consigo desabafar. — Olhei por cima do meu ombro,


preocupada que os homens poderiam aparecer.

— Fale comigo, eles só vão aparecer quando eu chamar. —


Piscou um olho e focou para as laranjas.
— Estou em uma situação complexa. Não como a leucemia,
mas que está me travando. — Voltei a encarar minhas mãos. — Não
contar o que está se passando comigo foi uma afronta para Rebeca.
Mas... — Soltei o ar com força, não sabia com o que complementar.

— Minha filha anda se sentindo a dona do mundo. — Cortou


uma laranja ao meio e fez a mesma coisa com a próxima. — Não
quer voltar para a terapia, então, tive que improvisar. Ontem a levei
em um médico amigo de Paulo que trabalha com Microfisioterapia.

— O que é isso?

— Uma técnica manual, que ajuda a encontrar a origem de


um estado ou doença. — Olhou-me com tranquilidade. — Se ela
não queria falar o que estava sentindo, fui atrás de um tratamento
onde o corpo falaria por ela. — Apontou com a faca para cima. —
Chorou bastante enquanto fazia a sessão e agora, está trancada no
quarto. O médico falou que isso poderia acontecer, ainda mais com
os conteúdos trabalhados.

— O que ela tem? — Fui para o seu lado, porque senti um


aperto no peito, como se Rebeca estivesse passando por algo
doloroso.

— Está tudo bem. — Entregou-me a faca e uma laranja. —


Ela precisava de um tempo para digerir as informações que lhes
foram apresentadas. Apesar de muito amor que a nossa família dá
para Rebeca, ela sente falta de outra pessoa. — Vi quando seus
olhos se encheram de lágrimas e as conteve. — Sou sua mãe
adotiva, não posso substituir a que gerou e deu a vida. Acabou que
nós duas fomos tratadas. Seria bom você fazer, descobriria o
verdadeiro motivo de não conseguir se expressar como quer.

Cortei as laranjas em silêncio e dona Betânia ligou o aparelho


para espremê-las. Deixei que esse barulho tomasse conta do
momento, porque a emoção queria sobressair. Não era momento de
chorar, mas de confraternizar.

Os homens vieram até onde estávamos, envolvidos em uma


conversa sobre pacientes, sintomas e cirurgias. Serviram o suco,
um copo foi entregue para mim junto com um pote de rosquinhas
Mabela. Olhando para dona Betânia, nem precisou que me
orientasse o que fazer, apenas segui para dentro da casa e fui em
busca do quarto de Rebeca.

Sentia grande receio de ser rejeitada, mas não conseguiria


desistir sem tentar. Encontrei a única porta fechada, bati algumas
vezes e a abri, a autorização verbal não viria.

Em um completo escuro, Rebeca estava deitada na cama


olhando para a tela do celular. Um pouco de luminosidade me
ajudava a adentrar o quarto grande e elegante. Quando viu que era
eu, sentou-se na cama, a boca prestes a dizer algo, até que viu o
que tinha em minhas mãos.

— Trégua — falei baixo, dando passos em sua direção.

— Deu sorte, porque estou morrendo de fome.

Pegou os dois itens da minha mão quando me aproximei. Fui


até a parede acender a luz enquanto ela comeu e bebeu sedenta.
Fiquei de pé a encarando, cabelos revoltos, pijama de bichinhos e
olheiras sob os olhos.

— Sua mãe falou que você fez um tratamento diferente —


comentei e seu revirar de olhos era esperado. — Acho que vou
fazer também.

— A Micro não cura amizades desfeitas.

— Você é importante demais para mim. Compartilhamos um


mesmo pedaço, não vou desistir de nós. Quero conversar sobre
tudo o que está acontecendo comigo, preciso de ajuda.

Ela terminou de tomar o suco, colocou o copo em cima do


pequeno armário de cabeceira e comeu as rosquinhas me
encarando desconfiada. Rebeca parecia fazer um cálculo mental
dos riscos de nos darmos uma pausa no conflito ao mesmo tempo
se eu valeria todo o esforço.

Parecíamos duas crianças disputando um brinquedo e tudo


isso precisava mudar. Ela tinha dezenove anos, estava agindo
conforme sua idade, era eu quem precisava tomar posse do meu
lugar de adulta.

— Você tem todo o direito de ficar chateada ou me ignorar. Eu


te aceito do jeitinho que você é. — Dei um passo para trás, ela
parecia em alerta. — Estou disponível quando quiser conversar e
estarei trabalhando para me expressar melhor.

Continuei recuando enquanto ela não dizia nada, saí do


quarto e respirei fundo várias vezes enquanto voltava para o fundo
da casa.
Desinibido, assim que me aproximei, Matias envolveu seu
braço sobre os meus ombros e beijou minha testa, como se fosse a
coisa mais natural do mundo. Senti os olhares dos seus pais em
mim, mas como não disseram nada e nem perguntaram como foi
com Rebeca, tentei relaxar e apreciar a conversa, o carinho e
principalmente, a boa comida.

Um momento entre adultos, estava precisando disso.


— Está rindo até agora da piada sem graça que meu pai
contou, não é? — Matias perguntou abrindo a porta do carro para
que eu entrasse. Já era final da tarde e passar o dia com a família
Chagas tinha sido maravilho e hilário.

— É engraçada porque é muito boba. — Meu riso não parou


enquanto me sentava e o observava dar a volta no carro para se
acomodar no banco do motorista.

— E você não sabe da maior, ele conta essas piadas até para
os pacientes dele.

— Socorro! — falei alto, arrancando mais risos nossos.

Manobrou e seguiu pelas ruas, ainda em clima descontraído.


Com mais intimidade e menos vergonha, Matias pegou na minha
mão, beijou o dorso e a colocou em cima da sua perna.

Meu coração foi se acalmando em marcha lenta. Lembrei que


depois que tínhamos almoçado, Rebeca apareceu e jogamos UNO
enquanto doutor Paulo contava seu grande repertório de piadas.
Não havia cobrança ou constrangimento, sentia-me integrada
naquela família, conectada com Rebeca e apaixonada por Matias.
Céus! Estava sentindo, novamente, aquele rebuliço na
barriga, as mãos suando e o formigamento nos pés pela
antecipação de conseguir um carinho dele. Diferente de quando
estava em tratamento, não estávamos limitados ao toque ou
olhares, ele havia me beijado alguns dias atrás.

Ele percebeu minha mudança de humor, apertou algumas


vezes minha mão e começou a acariciar com seu polegar a palma.
Arrepio atrás de arrepio aqueciam meu coração e levavam minha
mente para um lugar desconhecido, ou seria adormecido? Outros
lugares do meu corpo reagiram ao seu carinho e quando ele parou o
carro na frente de casa, não dissemos nada, apenas continuamos
como estávamos.

Ele respirou fundo e umedeceu os lábios. Meus olhos não


saiam da sua boca, mesmo que estivesse apenas de perfil. Queria
mais dele, sentia-me preparada para dar o próximo passo e ansiava
por Matias tomar a iniciativa.

— Dessa vez, vou deixar que me diga ou faça como quer — a


rouquidão da sua voz era desconhecida e transformou-se em uma
onda abrasante.

Desconhecia as sensações que me dominavam. Não


conseguia controlar, me fazia esquecer tudo ao meu redor e focar
apenas no homem que tinha mais de mim do que qualquer outra
pessoa.

— Tias — sussurrei e seu rosto se virou para mim, exibindo


aflição. — O que foi?
— Esse sou eu controlando minha vontade de te puxar para o
meu colo, beijar sua boca e esquecer que sua mãe pode aparecer
novamente e me dar um sermão.

Virei o rosto para a minha casa e a carícia na minha mão me


fez retomar o foco nele. O medo tentou me assombrar, mas havia
um sentimento maior tomando conta do momento e era nele que eu
estava determinada quando soltei o cinto de segurança, ajeitei-me
para ficar de frente a ele e segurei seu rosto com minha mão
trêmula.

Para me dar apoio, colocou sua mão na minha e aproximou o


rosto do meu. Fui eu quem findei a distância entre nós, toquei seus
lábios com os meus e me permiti saborear a paixão que sempre
esteve nos meus sonhos.

Quando se está há muito tempo focada em um tratamento de


saúde, que te debilita ao ponto de não poder se envolver
amorosamente com ninguém, corre o risco de achar que não é
capaz de voltar ao normal.

Ele abriu a boca e sua língua encontrou a minha, convidando


para que explorasse sem medo de ser feliz. Fiquei de joelhos e
segurei seu rosto com a outra mão, agora mais firme e determinada
a apreciar o beijo.

Era reconfortante constatar que não estava estragada ao


ponto de ser irreparável. Permiti ser eu mesma novamente, quando
beijava garotos da faculdade e deixava meu corpo acender por
mais. A diferença, naquele momento, era que Matias se mostrava
ser mais que uma distração ou um rapaz insistente para me provar,
mas um determinado homem em respeitar o meu tempo.

Sua mão deslizou pela minha enquanto nos beijávamos,


seguiu para o braço e foi até meu ombro, onde desceu pelas costas
e me fez arrepiar. Mal sabia ele que meu corpo era chama, que seu
desejo era o meu naquele momento. Estava a um passo de me
sentar em seu colo e ser a mulher que lutava para resgatar. O
pedaço perdido ao me recuperar da leucemia foi encontrado.

Minha mente seguiu para longe, naquele banheiro em que


Matias me deu suporte e deixou subentendido que poderiam achar
que tínhamos transado. Eu era capaz de perder a virgindade com a
idade que estava? Não me sentia preparada, tinha medo de ser
julgada como imatura.

Acabei escorregando, caí em cima dele e nosso momento foi


interrompido por risos. Era tão bom sorrir, mais ainda quando estava
mesclado com esse sentimento avassalador que me dominava.
Matias me ajudou a me sentar no banco e se ajeitou com dificuldade
no dele.

— Acho que fiquei alegre demais — comentou fingindo


constrangimento e ajeitando a calça. Meus olhos foram direto na
sua virilha e se arregalaram por ver o volume e tudo o que isso
significava.

— Eu não posso.

— Está tudo bem. — Voltou a pegar na minha mão e apertar,


dessa vez em cima da minha coxa. — Sei o terreno que estou
pisando e apreciarei todas as surpresas boas de estar com você.
— Por que eu valho tanto o esforço? — perguntei insegura e
seu sorriso foi a única resposta que me deu. — Tenho certeza de
que não tinha metade da complicação com Nadja.

— Você pode encerrar quando quiser, moranguinho — falou


com deboche, confiante de que tudo não passava de palavras. Será
que ele seria o único homem que me olharia dessa forma? — Estou,
porque quero. Você poderia ter continuado longe, escolhido outra
profissão, mas está perto de mim e as oportunidades não foram
feitas para serem desperdiçadas, muito menos as segundas
chances.

Voltei a beijá-lo, porque seu cheiro e o seu sabor não estavam


impregnados em mim o suficiente. Foi ele que se inclinou na minha
direção, alisou minha perna até uma região mais íntima e eu deixei,
porque era isso que queria.

Mordi seu lábio inferior e o escutei gemer baixo, apertando


meu joelho e me fazendo enxergar que estava em um limiar
perigoso. Como nossa comunicação mais eficaz era o toque e o
olhar, interrompi o beijo, fiquei alguns segundos o encarando e saí
do carro, deixando uma parte de mim com ele, que nunca mais teria
de volta.

Havia amores que nunca se desfaziam, apenas se tornavam


inertes na nossa alma. Seja por ter outro relacionamento mais
avassalador ou pela dor causada pelo anterior, certas conexões
existiriam para sempre.

Meu coração pertencia a Matias e a constatação desse fato


não me assustava, trazia paz. Era certo. Tinha que ser.
Entrei em casa pisando nas nuvens e me surpreendi ao ver
minha mãe na sala, assistindo televisão e com semblante
preocupado.

— Foi bom o almoço? — ela perguntou ao me ver parada


encarando-a.

— Sim. Você não vai sair hoje?

— Amanhã voltarei ao trabalho, então, preciso dormir cedo.


Quer carona para a faculdade?

Era a minha mãe de volta, isso deveria ser um sinal, não?


Mas as olheiras sob seus olhos e voz monótona indicava que parte
da sua confiança não tinha retornado, o que não me agradou.

Sentei-me do seu lado, vi um pouco do programa que


passava na televisão e suspirei.

— Sim — soltei.

— O que disse, filha?

— Quero carona para a faculdade amanhã. — Olhamo-nos


cheias de carinho.

— De volta a rotina. Podemos almoçar juntas também, na rua,


já que você tem estágio de tarde.

— Ok. — Voltei meu olhar para o programa de televisão e me


senti culpada, por estar feliz e ela não parecer como eu. Afinal de
contas, minha mãe não estava em busca de recuperar o tempo
perdido? — Está tudo bem?
— Agora está. Chega de botar a culpa nos outros. Se preciso
mudar, que seja eu. — Bateu de leve na minha perna e se levantou.
— Vou para cama, durma cedo também, estará mais disposta para
a sua jornada amanhã.

Peguei o controle da televisão, desliguei-a e fui hipnotizada


para o meu quarto. Era a minha mãe de volta, mas sem meu pai.
Esperava que os dois tivessem se reconciliado.

“Em briga de marido e mulher, filho nenhum mete a colher.” A


frase do motorista me veio à mente e revirei os olhos. Já tinha
entendido e esperava que tudo se encaixasse como deveria ser.
— Preciso de você no quarto 5. — Quênia entregou um
prontuário e resmunguei mentalmente por ser o paciente Wilson.
Seria necessário aplicar um analgésico, procedimento simples, mas
que ele já tinha me negado de fazer em outro momento. — Vai
precisar de ajuda para isso?

A chefe parecia impaciente hoje, por isso neguei com a


cabeça, fui até o almoxarifado pegar o que era necessário e segui
até meu desafio pessoal. Bati na porta, entrei e me deparei com seu
olhar sofrido.

— Olá, seu Wilson. Como está hoje? — Aproximei-me


olhando-o por completo e percebendo que sua careta demonstrava
a sua dor. Tentou se mexer na cama, mas não conseguiu, só
gemeu. — O senhor quer se sentar?

— Falei com a enfermeira chefe, preciso de um remédio para


dor, toda posição me incomoda. — Sua voz estrangulada mostrava
mais ainda o quanto ele estava abalado com a sensação. Como seu
câncer era no intestino e havia complicações por conta dele, sentir
dores era uma constante.

— Estou aqui para isso. — Ergui a bandeja na minha mão e


ele resmungou algo baixo. — Posso aplicar para que o senhor se
sinta melhor?

— E estourar mais uma veia? — Mostrou o braço, que


representava o tanto que já tinham o utilizado para terem acesso ao
seu sistema.

Pacientes como ele, que não tinha acompanhantes da família


por perto e precisavam sempre de intervenção, acabavam sofrendo
dessa forma. Não havia culpa em nenhum dos lados, era apenas
complicado assim.

Se eu voltasse para que Quênia assumisse, mostraria que


não era capaz, mais uma vez. Tinha que provar não só para ela,
mas a mim mesma, que saberia lidar com uma situação como essa.

Coloquei a bandeja em cima do armário de cabeceira dele,


peguei a cadeira e me sentei ao seu lado, respirando fundo e
mostrando meu lado mais sereno. Ele ainda se remexia e
resmungava, tentando me dissuadir de qualquer tentativa de entrar
em seu mundo.

Nós só queríamos ser acolhidos, por pior que parecêssemos


ou agíssemos.

— Posso trazer o remédio em comprimido, mas demoraria


mais tempo para fazer efeito. Ou o senhor pode me deixar injetar o
analgésico e me dar um voto de confiança.

— Como fiz com essas? — Mostrou novamente o braço.

— Sim. — Confundi-me. — Não. Pode não parecer, mas sei o


que está sentindo e estou aqui para ajudar.
— Você é apenas a estagiária, não serei sua cobaia —
resmungou soltando um gemido mais sofrido de dor. — Chame
Quênia.

— Ela confia em mim, você deveria fazer o mesmo. Parte de


qualquer tratamento de saúde envolve compaixão. Eu tenho pelo
senhor, gostaria que tivesse um pouco por mim.

Levantei-me para preparar o remédio enquanto ele sofria.


Dessa vez, não perguntei, peguei seu braço, senti a sua veia pulsar
sob o meu dedo e o encarei, desafiadora. Em expectativa, enfiei a
agulha o mais suave que consegui encontrando sua veia e
pressionei o embolo da seringa.

Revezei meu olhar entre a seringa e seus olhos, que aos


poucos iam se suavizando. Encerrei o procedimento, ajeitei-o na
cama como dava e fiz os outros procedimentos padrões de verificar
seus sinais vitais para atualizar o prontuário. Coração, pulmões e
pressão regulares, na medida do possível. Seus olhos se fecharam
e soltei o ar alto demais, como alívio.

Recolhi todo o meu equipamento, abri a porta e escutei o


baixo agradecimento:

— Obrigado, Yasmin.

— Estou à disposição, seu Wilson — respondi baixo, fechei a


porta e os olhos de Quênia e Maria estavam em mim. Ergui a
bandeja e respondi suas perguntas silenciosas, eu tinha
conseguido.
Passei por Matias enquanto atendia o paciente de pós-
operatório abdominal. Daquela vez, meu sorriso era além da minha
paixão por ele, mas a vitória do dia de hoje. A vitória que explodia
em meu peito exigia que eu comemorasse. Meu Deus, eu precisava.

Lembrei da minha recusa de almoço com a minha mãe,


justificando meu atraso no estágio e a culpa quis me corroer. Estava
na dúvida sobre o quanto essa mudança iria durar em minha mãe, a
única esperança que não me decepcionou foi na minha cura. O
resto, eu sempre tinha uma parte de desilusão.

Próximo ao horário da minha saída, fui até a sala dos


funcionários, sentei-me no sofá e relaxei a tensão. Fechei os olhos e
estiquei o corpo, era a pior das posições, mas a necessária no
momento. Logo alguém entrou na sala e continuei como estava,
tinha 15 minutos para descansar.

Escutei um barulho de tampa sendo aberta, o cheiro do chá


gelado que eu tanto amava chegou no meu nariz e abri os olhos me
deparando com Matias com uma garrafa pequena do que tanto
gostávamos.

— Me dá! — exigi esticando o braço. Como não parecia me


atendar, levantei-me e precisei persegui-lo para tomar a garrafa da
sua mão. — Um brinde a mim.

— Depois sou eu que roubo — comentou sorrindo. — Vá


comprar uma dessas para você.

— O seu é mais gostoso — rebati da mesma forma que fez


comigo, seus olhos brilharam. Quando esticou o braço na minha
direção, eu fugi dele. — Aqui não, Tias.
— Para comemorar, moranguinho — respondeu me
alcançando, abrindo a porta do banheiro feminino e nos trancando
lá.

Pegou a garrafinha da minha mão, tomou tudo e depois me


beijou, pressionada contra a porta e o seu corpo. De pé era uma
experiência completamente diferente, havia sensações mais
intensas, minhas mãos pareciam querer explorar seu corpo
enquanto sua língua fazia isso na minha boca.

Deslizou os dedos pelos meus braços, depois subiu pela


minha cintura e chegou até o rosto, direcionando para o lado que ele
me queria enquanto me beijava.

Alguém bateu na porta, assustei-me o empurrando e quase


gritei, se não fosse Matias voltando a me beijar intensamente.
Deixou selinhos na minha boca e suspirou de contentamento para
me acalmar.

— Deixe que eu lido com isso — sussurrou no meu ouvido.

— Não vamos sair até a pessoa desistir — respondi baixo e


voltei a beijá-lo. Senti que sorria contra meus lábios, estava me
descobrindo uma necessitada pelos seus beijos.

Comemorava o pedaço da minha vida profissional que


parecia seguir em bons caminhos.

Ouvimos portas abrindo e fechando. Ele rapidamente me


puxou para ficar atrás dele. Colocou a cabeça para fora, conferiu a
sala e depois nos puxou para sair. Deu mais um beijo em meus
lábios e me deixou sentindo fogo e emoção.
— Você demorou, tive que usar o outro — Quênia saiu do
banheiro masculino e me senti envergonhada por tantas coisas,
além da vontade de fazer xixi naquele momento.

— Diarreia — comentei colocando a mão na barriga e


voltando para o banheiro.

Estava arriscando, apesar do meu coração pedir mais. Era


um momento especial, poderia me permitir ser irresponsável pelo
menos uma vez. Certo? Errado, ainda mais quando se trabalhava
com vidas.

A minha consciência precisava tirar umas férias, meu trabalho


tinha sido feito e curti meus 15 minutos de descanso com emoção.
Todos tinham o direito, até mesmo os apaixonados.

Usei o banheiro e me recompus, precisava focar e voltar para


casa, queria saber como tinha sido o dia da minha mãe e se sua
mudança ainda estava em vigência.
A rotina de aula, estágio e fortes emoções com Matias estava
me deixando cada vez mais ansiosa, consequentemente, mais
esquecida. Depois de semanas corridas, tive que implorar para o
professor me deixar entregar o trabalho fora do prazo, porque não o
trouxe impresso. Não sabia em que dimensão estava a minha
agenda com anotações.

Ainda bem que minha mãe parecia menos invasiva e mais


cuidadosa, diferente do seu modo exigente de anos atrás. A
verdade era que, estava aos poucos incorporando a minha posição
de adulta. Por mais que era filha e estava sob o mesmo teto dela, eu
não era mais uma adolescente que precisava de regras.
Necessitava de alguém que me apoiasse nas decisões que tomaria.

Acenei para alguns colegas que se despediram de mim,


peguei meu celular e respondi a mensagem de Rebeca. Antes que
eu pudesse agendar um horário para a tal Microfisioterapia, dona
Betânia o fez e queria saber se eu poderia comparecer. Iria em
qualquer dia marcado, elas estavam apenas cuidando de mim
quando eu mesma não conseguia.

Aos poucos, estávamos retomando nossa amizade, com


perguntas sobre nossa rotina ou comentários que envolvia alguma
situação esporádica. Ela não me convidou mais para seus
momentos em barzinhos pelo bairro, o que me aliviou ao mesmo
tempo que entristeceu, já que não nos vimos com a mesma
frequência de antes.

Em compensação, era sempre prazeroso estar no estágio no


hospital. Não só por ter Matias por perto, mas os avanços que eu
dava como profissional na área de saúde. Entre ações bem-
sucedidas e olhares trocados durante o expediente, no final do dia,
esperava Matias sair do hospital para termos um momento só nosso
e ele me levar para casa.

Estava indo tudo muito bem.

Terminando de ajeitar meu material no fim da aula, não


percebi que fiquei sozinha na sala.

— Yasmin? — a voz de Nadja ecoou, larguei meu celular e


encarei a mulher que parecia nada mais que minha futura colega de
profissão. Analisei seu olhar e sua postura, parecia inabalável como
sempre. — Posso falar com você um minuto?

— Sim, professora — respondi agilizando meus movimentos


para guardar o material da faculdade, abracei tudo e fui até a porta
onde ela me esperava.

Caminhou pelos corredores e a segui, imaginando que tipo de


informação esqueci de passar sobre o meu estágio. Um trabalho,
consegui remarcar a entrega, com ela não saberia dizer se teria
uma nova chance.

Viramos em outro corredor e ela parou para me encarar, me


fazendo interromper os passos apressados para não trombar nela.
— Estou decepcionada com você, Yasmin. — Engoli em seco,
por mais que não sabia que culpa eu tinha. — Me convenceu de que
iria para a oncologia, porque retribuiria tudo o que foi feito para você
enquanto estava doente.

— Mas continua sendo meu objetivo! — falei aflita.

— Claro, entre escapadas íntimas no banheiro do hospital ou


no estacionamento. TODOS estão comentando da sua postura
antiprofissional com doutor Matias.

Dei um passo para trás e olhei ao redor. Duas colegas de


outra turma passavam no momento e abaixei o olhar, envergonhada
de que meus momentos particulares estavam sendo vigiados.

Antes de permitir o choro tomar conta, lembrei-me que


precisava lutar por esse pedaço da minha vida. Por mais que estava
no papel de estudante, tinha responsabilidades e estava cumprindo-
as.

Ergui a cabeça, encarei-a como mulher, porque sabia que


parte da sua atitude era ciúme e respirei fundo antes de falar:

— Nada inadequado aconteceu dentro do hospital, nem no


meu horário de serviço. A chefe Quênia não reclamou da forma
como conduzo o estágio...

— Reclamou para mim, Yasmin. Quem fala aqui é sua


supervisora de estágio e não a mulher que você roubou o namorado
— sibilou com raiva, contradizendo suas palavras com essa reação
inadequada. Neguei com a cabeça, o que a deixou furiosa. — Você
vai sair desse estágio, ou irei te reprovar. Você nunca irá se formar
manchando com suas atitudes a grandeza da nossa profissão.

— Sinto muito como as coisas aconteceram. Sou responsável


pelo que está acontecendo entre mim e Matias. Se for necessária
alguma ação, estou pronta para arcar com as consequências. — Era
um desafio que me matava por dentro, mas não poderia me deixar
ser humilhada. Algo tão lindo como o que eu estava vivendo com o
homem que era apaixonada não poderia ser maculado com isso.

— Você quer acabar com a carreira dele. — Colocou as mãos


na cintura, percebi que chamávamos atenção de outros alunos. —
Sabe que não farei nada drástico, porque vai prejudicar um
inocente. Ele é bom, de boa família e bem-sucedido. Quer se
destruir? Vá sozinha!

Comecei a respirar com dificuldade. Cada pilar de segurança


que eu tinha, ameaçava ruir na frente dela e não poderia me
desmanchar. Sim, não era apenas a minha vida que estava sendo
observada, mas a de Matias. Ele precisava saber dos riscos, agora
que tudo tinha sido jogado no meu rosto. Tinha receio que, sabendo
dos riscos, tomaria alguma atitude para nos afastar.

Por Deus, ele era um homem bom, nós iríamos achar uma
forma do nosso relacionamento dar certo.

Engoli em seco e abracei meu material com mais força para


me proteger. Não era possível me acalmar, então, enfrentaria a
mulher do jeito que eu estava.

— Mais alguma observação, professora? — questionei com


humildade, mas ela encarou como uma afronta.
— Não se faça de vítima. Só porque passou por um câncer
grave não quer dizer que pode fazer o que quiser da vida. Sua
liberdade termina quando você atropela a intimidade de outra.

— Espero que você siga seus próprios conselhos.

Dei-lhe as costas e andei o mais rápido que pude, porque fui


ousada ao dizer aquelas palavras. Não controlei minha afronta
quando a hipocrisia dela me humilhar enquanto dizia sobre ter
limites me tirou o chão.

Para não ter que falar com ninguém ou ela tentar me


alcançar, aproveitei que estava de tênis hoje e caminhei bastante,
pelas ruas, até me sentar no ponto de ônibus mais distante. Seguiria
para o hospital sem almoçar ou falar com alguém.

Conferi minhas mensagens quando entrei no ônibus que ia


em direção ao meu estágio. Estava tentada a desabafar com
Rebeca ou Matias, mas percebi que tinha confirmado a consulta de
Microfisioterapia naquele dia. Céus, meu prato estava cheio demais
para digerir em pouco tempo.

Pronta para cancelar, meu ponto de descida chegou. Segui


em piloto automático: chegar no hospital, me higienizar, colocar
jaleco, atualizar sobre os pacientes e começar o trabalho. Entre um
acompanhamento de internação menos grave e outro atendimento
de pós-operatório, ouvi que doutor Matias estava em cirurgia e outro
médico faria o atendimento ambulatorial.

Como não teria o apoio dele, aproveitei para avisar a chefe


Quênia que precisaria sair mais cedo para uma consulta particular.
Ela me olhou estranho, mas não negou.
Duvidava que a enfermeira teria falado sobre mim daquele
jeito para Nadja, mas com sua atitude, comecei a acreditar.

— Chefe, existe alguma coisa que preciso melhorar ou


corrigir? — Peguei-a de surpresa.

— Como assim? — Piscou várias vezes e sorriu


apaziguadora. — Desculpe meu mau-humor nesses últimos dias,
estou com alguns problemas na família.

— Estou aberta a críticas, quero fazer o melhor que posso —


insisti, porque ela não tinha me convencido.

— Pode ficar tranquila que não economizo nem alivio para


ninguém aqui. — Bateu no meu ombro de leve. — Aproveite e vá
conferir os sinais vitais do seu Wilson antes de sair. Ele te elogiou
esses dias.

Esperança. Aquela que não me deixava afogar em meio a


tanta tempestade no meu dia. Sorri para minha superior, fui concluir
as obrigações do estágio e fiz como combinado, entrando no quarto
do seu Wilson.

— Como está? E as dores? — Aproximei-me da cama, ele


parecia melhor.

— Pediram que eu providenciasse uma almofada com buraco


para me sentar, mas não acredito que vai parar de doer. Vocês não
têm noção do que eu passo. — Fez uma careta enquanto eu
auscultava o seu coração. — Toda vez que vou no banheiro é um
parto.
— A dor não vai embora, mas não fazer pressão na região te
dá um sossego. — Sorri fazendo anotações. — E que honra você
tem, de sentir-se como uma mulher parindo. Não é para qualquer
um.

Ele riu, auferi sua pressão e me despedi, sentindo minha alma


um pouco mais leve. Se eu tinha conquistado um paciente
complicado, com certeza, conseguiria muito mais.
Deitada em uma maca, com a cabeça apoiada em uma almofada, o fisioterapeuta
tocou meu rosto e deslizou os dedos pela minha pele até chegar no braço. Depois, seguiu
para a costela e deu uma leve pressão.
— Tem dificuldade para respirar? — ele perguntou. — Medo de morrer afogada?
— Tive muitas questões pulmonares na época que estava crítica a leucemia. —
Desviei o olhar relembrando alguns momentos. — Tenho medo de morrer e deixar minha
mãe sozinha. Ela e meu pai se separaram.
— E, você? O que perderá se deixar essa vida?
— Alguns pedaços de amor que ainda não quero desapegar. Como Rebeca, minha
amiga que o senhor também a tratou.
— Hum...
Antes de começar o atendimento, ele tinha feito uma entrevista e não consegui falar
muita coisa sobre mim. A doença, minha faculdade e onde estava trabalhando, foi tudo o
que expus.
— Como conseguiu? — questionei enquanto ele remexia a mão, como se
desfizesse um nó imaginário na minha costela. — Eu... nada saia da minha boca e com
isso, já estou falando mais do que fiz nesses últimos dias.
— Antes que pergunte, não é feitiçaria. É uma técnica criada há mais de trinta anos
na França e veio para o Brasil nos últimos dez ou quinze anos. Microfisioterapia. Com o
toque, desbloqueei o ponto que traz angústia, sofrimento e medo, vinculado ao pulmão. Na
posição que estava, vem do lado materno. — Sorriu quando franzi a testa. — Isso não quer
dizer que a culpa é da sua mãe por se sentir assim, mas você traz no seu corpo, nas
células e no sangue, o DNA dela. É natural que tome as dores ou se preocupe demais,
mas ela nasceu primeiro, te gestou por nove meses. Acredite, ela dá conta.
Fiquei em silêncio e só respondi o que me foi perguntando nos próximos
desbloqueios. Dificuldade de se sentir merecedora, confusão mental e sofrimento por
antecipação foram alguns dos conteúdos trabalhados. O fisioterapeuta mostrou muita coisa
que não conseguiria pôr em palavras ou organizar na minha mente. Muitas vezes, achei
que era vidente, porque até da minha irmã mais velha – falecida – ele falou.
Foi uma experiência inigualável e que me fez entender a “ressaca” que Rebeca
parecia estar. Não era de álcool, mas de autoconhecimento.
No automático, voltei para casa enquanto digeria meus conteúdos. O pedaço da
minha vida pessoal estava cada vez maior, isso me fazia sentir completa e satisfeita
comigo.
— Seu pai ligou — minha mãe falou assim que entrei em casa de noite. Sentada no
sofá, assistindo o jornal na televisão, ela nem me olhou.
Primeiro fiz sua leitura corporal e para minha desvantagem, não demonstrava nada.
Deixei tudo o que tinha em mãos em cima da mesa e fui me sentar ao seu lado, beijando o
seu rosto. Culpava a sessão de Microfisioterapia que tinha feito por estar tão em paz ao
mesmo tempo que enxergava o meu próprio caos com outros olhos.
O suspiro que soltou entregou sua tensão. Só, então, consegui processar a
informação que ela passou, sobre meu pai ter falado com a minha mãe, provavelmente
sobre mim.
Com o dia tão cheio e a mente cansada, eu não estava em condição de ser
surpreendida negativamente. Matias não estava por perto para segurar minha mão ou olhar
para mim com carinho, daquele jeito que eu sentia que tudo ficaria bem no final.
Antes de iniciar meus questionamentos, conferi meu celular e não vi nenhuma
ligação dele ou mensagens de texto.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntei baixo.
— Ele me pediu ajuda para marcarmos um encontro e conversar sobre a
separação. — Entortou a boca e parecia se sentir forçada a dizer as palavras. — Você não
é obrigada, filha.
— Eu quero — apressei-me em dizer. — O pai não precisava falar com você para
isso. Estava tentando conversar com ele há um tempo.
— Parece que você não gostou de saber que ele está namorando. — Desligou a
televisão e me encarou, se controlando ao máximo para não explodir. — Olha, Yasmin...
— Realmente, não gostei de saber no meio de uma conversa sobre a tal Carolina,
mãe. De certa forma, me sinto culpada por tudo o que vocês passaram. Com minha
doença, sua ausência em casa e minha mudança de vida, eu causei tudo isso.
— Não posso dizer que nunca te culpei. — Suas palavras me doeram. — Como
também sei que meu relacionamento com seu pai andava problemático desde antes do
diagnóstico de leucemia. Nós sempre focamos em trabalhar, o lado profissional tinha
prioridade sobre tudo.
— Sei. — Não sabia explicar se queria uma máscara da realidade ou a verdade
como estava sendo. Respirei fundo e busquei o contato do meu pai para enviar uma
mensagem de texto.

Yasmin>> Quando quiser, pai, você pode falar comigo.


— Só fale com ele, resolva o que precisa e tire o peso na minha consciência. Não te
fiz alienação parental e não irei receber mais dinheiro dele para as nossas despesas.
— Tudo bem. — Levantei-me, percebendo que a culpa ainda estava em minhas
costas. Precisava dormir e descansar o quanto antes. — Amanhã tenho um longo dia, vou
para a cama.
— Ligue para o seu pai — exigiu apontando para o meu celular.
— Já fiz, por texto. Se ele te incomodar sobre mim, fala que tenho vinte e seis anos
e que meus problemas, cuido eu. Você pode se livrar dele, não precisa intermediar por
mim. — Meu tom foi duro e me deixou confiante.
Fui para o banho, coloquei meu pijama e senti uma tontura antes de me deitar na
cama. Era o mesmo mal-estar de antes do diagnóstico que mudou minha vida, por isso não
pensei duas vezes em ir até a cozinha e comer uma fruta acompanhada de bolachas. Não
era o ideal, mas precisava estar bem alimentada sempre.
Minha mãe já tinha ido dormir, então fiz tudo sozinha repassando nossa conversa
na mente. O celular tocou no meu quarto e voltei para ele, esperando que fosse meu pai
querendo marcar esse tal encontro, mas era Matias.
— Oi! — atendi afobada, fechei a porta e me joguei na cama, sentindo a tontura
novamente. Gemi irritada pela assombração dos sintomas que me lembravam o câncer.
— Tudo bem? O que aconteceu? — Sua preocupação não ofuscou o cansaço na
voz.
— Deitei rápido demais, vi o quarto girar. Mas me fale, como foi hoje? Você ficou em
cirurgia a tarde inteira.
— Sim, saí agora e ainda cobri um colega que precisou se atrasar para o plantão.
— Escutei o barulho do carro sendo ligado.
— Está indo embora agora? Não dirija falando no telefone.
— Estou com o fone bluetooth e não te vi, preciso da minha dose diária de você,
moranguinho.
— Virei remédio agora? — questionei sedutora.
— Depois que provei seu sabor, não posso ficar em abstinência, senão poderei ter
alguma síndrome. — Rimos juntos. — Viu seu Wilson hoje?
— Sim, mais uma vitória para o dia fatídico de hoje. — Mordi o lábio, não queria
relembrar a pior parte, que foi na faculdade.
— Pode contar, sou um bom ouvinte.
— Atrasei um trabalho na faculdade, a Quênia parecia chateada comigo, mas falou
que estava passando por um momento ruim. — Soltei o ar, a briga com Nadja ficaria
comigo. — E ainda estou fora de sintonia com meus pais.
— Não teve nada mais? — questionou cheio de segundas intenções. Já sabia que
tinha bloqueios quanto a me expressar, mas estava fazendo muito mais do que estava
acostumada. — Yasmin...
— Nada que eu mesma não consiga lidar. Fiz a tal Microfisioterapia, gostei do
tratamento, mas só voltarei mês que vem.
— Tudo bem, tudo bem. Você tem sorte que não sou minha irmã, senão iria brigar
com você por não se abrir comigo. Quero te ver amanhã.
— Falando nela, Beca ainda não respondeu minha mensagem de texto hoje.
— Rebeca Meleca está de TPM. Ainda bem que você não parece ter essas fases de
descontrole hormonal.
— Estou na fase de parar de ter hemorragias — falei brincando, uma vez que
comecei a tomar anticoncepcional contínuo para regular meu ciclo por conta das
consequências da minha doença. — Eu deveria ter esse tipo de conversa com você?
— Além de médico, tenho segundas intenções com você, moranguinho. Não pense
que irá fugir de mim tão rápido. — Escutei sua voz ecoar, ele deveria ter chegado no
estacionamento subterrâneo de seu prédio.
— Vamos com calma — pedi baixo. Senti meu corpo inteiro reagir com as imagens
que surgiam em minha mente.
— No seu ritmo, está ótimo para mim. Só estou pensando no próximo passo, que
pode ser amanhã, daqui uma semana, um mês, um ano...
— Tias, você me esperaria por um ano? — Virei de lado e me senti emotiva.
— Poderia dizer que esperei, mas isso me tornaria um hipócrita, já que tenho uma
ex no nosso encalço. Mas se você me der esperanças, então sim, eu faria o esforço
necessário para isso acontecer.
— Acho que não te mereço, mais sofrimento só me faria sentir culpada.
— Como diria meu pai, não sou quadrado, eu me viro, dou conta do recado,
moranguinho. — Um som de porta sendo aberta soou e ele bocejou. — Em casa. Vou
tomar um banho e dormir. Vem aqui me fazer um cafuné?
— Já estou bem acomodada na minha cama, obrigada.
— É um convite? Eu vou até você, não duvide — falou rindo.
— Claro que vem, Tias. Mas não hoje. Boa noite.
— Boa noite e... se precisar, você poderá usar o laboratório do hospital para fazer
exames de sangue. Sua consulta comigo é de graça.
Fiquei muda, escutei seu suspiro e encerrou a ligação. Abracei o celular, fechei os
olhos e não deixei que a sombra do medo me dominasse novamente. Era apenas um dia
fatídico, não tinha nada a ver com minha doença querendo reaparecer e bagunçar mais
ainda minha vida.
Peguei minha bolsa no armário da sala dos funcionários, tirei
meu jaleco e me apressei para sair do hospital antes que Matias
viesse me encontrar. Por mais que eu tentasse assumir minha
posição nessa vida adulta, algumas situações me faziam retroceder
vários passos.

A chefe Quênia ainda estava séria demais comigo e não tinha


nada a ver com seus problemas pessoais, mas minha interação com
Matias. Por mais que fossemos discretos, apenas me ver ao lado
dele, questionando sobre o tratamento de um paciente, ela me
encarava de uma forma diferente.

Senti meu celular vibrando no bolso enquanto caminhava pela


calçada. Sabia que era Matias e antes de atender, precisava de uma
desculpa melhor para a fuga do que o medo de sair do estágio por
conta de falta de ética.

Cheguei perto do ponto de ônibus, liguei para Rebeca, que


me atendeu no primeiro toque:

— Virou vidente? Estava preste a te escrever uma mensagem


de texto.

— Sorvete? Estou saindo do hospital, preciso relaxar a


mente.
— Achei que o Tias era sua primeira opção para isso — falou
em tom de ciúmes.

— Beca, eu amo você, sabe disso, não? — implorei e acenei


para o ônibus que seguiria em direção ao centro. — Que tal aquela
sorveteria italiana nova, no centro?

— Vamos, está na hora de desabafar com alguém e como


estou com o assunto na ponta da língua, você terá que me aguentar
falar. Estou a caminho.

— Eu também.

Guardei o celular no bolso, fiquei de pé e percebi que minhas


palavras finais poderiam ter mais significados do que concordar com
estar indo até a sorveteria. Queria falar do que sentia no momento,
não só com Matias, mas também sobre os meus pais.

Bufei irritada por lembrar que meu progenitor nem se deu ao


trabalho de continuar a responder minhas mensagens. O que quer
que tenha acontecido com ele e minha mãe, estava me afetando e
não queria mais ficar entre os dois.

Se eu estava encontrando meu lugar e tendo minha própria


vida, os dois teriam que fazer o mesmo.

Desci no ponto próximo a sorveteria, caminhei abraçada ao


meu material e meu corpo gelou ao ver o carro do meu pai
estacionado na frente do lugar. Reconheci a placa, o adesivo colado
no para-choque e não vi ninguém dentro dele.

Entrei na sorveteria, achando que iria escapar de cruzar com


ele, mas foi o contrário, lá estava seu Ulisses com uma mulher
jovem e sorridente sentados em uma mesa.

Alguém trombou em mim pelas costas, por ter ficado parada


perto da porta de entrada e derrubei meu material. Todos olharam
para mim e o rapaz, que quase me atropelou, se ajoelhou para me
ajudar a pegar tudo que tinha sido esparramado. Enquanto ele pedia
desculpas, eu fazia o mesmo e tentava não surtar.

Para minha sentença final, nas mãos do meu pai estava meu
estojo. Ele segurava ainda se mantendo sentado e me esperava vir
pegar na sua mão.

Vamos, Yasmin. Você é uma mulher falando com seu pai, só


depende de você.

— Oi, pai — cumprimentei forçando um sorriso.

— Filha, que... surpresa — comentou e olhou para a mulher,


que parecia sem graça a sua frente. — Está tudo bem?

— Sim. — Peguei o estojo, coloquei junto com as coisas que


tinha em mãos e tirei forças de onde nem sabia que existia, para
encarar Carolina. — Oi, sou Yasmin.

— Oi, tudo bem? O Ulisses não falou que tinha combinado


com você. — Olhou para o meu pai e não escondeu o desconforto.

— Carolina. — Repreendeu-a com o olhar e, também, me


senti no meio de outro relacionamento. Não mais! Toquei seu ombro
equilibrando meu material com uma mão e apertei. Céus, não me
lembrava da última vez que tinha sentido meu pai.
— Está tudo bem. Saí do hospital, vim encontrar uma amiga e
podemos nos encontrar outro dia. Quem sabe, fazer um almoço?
Vocês estão morando próximo da minha faculdade, não?

— Sim, filha, faço questão. — Apertou minha mão e soltei-o


rapidamente, porque tive vontade de chorar e não sabia explicar o
motivo.

— Desculpe, Yasmin. Eu só estou nervosa com... — Carolina


começou e meu pai apertou sua mão, eu dei um passo para trás.

— Me mande uma mensagem, tudo bem? Bom te ver. —


Forcei o sorriso, fui para os fundos da sorveteria e agradeci que não
dava para ver a entrada.

Coloquei tudo em cima da mesa, abaixei minha cabeça e


deixei as lágrimas escorrerem, as de vitória e as de dor. Eu me
comportei como adulta, mas a dor de ter consciência de que nunca
mais seremos uma família queimou como brasa no meu peito. Esse
pedaço não poderia ser recuperado, porque nunca tinha sido meu.
Ele era meu pai, o marido tinha a ver com a minha mãe.

Tomei grandes respirações, fui me acalmando e ergui meu


rosto, recobrando o controle das minhas emoções. Peguei o celular,
enviei uma mensagem de texto para Rebeca, mas nem dois
segundos se passaram, um abraço forte me dominou de lado.

— Oi! — Rebeca gritou, beijou meu rosto e se sentou à minha


frente. — Quem morreu?

— O casamento dos meus pais — soltei sem conseguir filtrar.


Ela arregalou os olhos, balancei a mão na sua frente e sorri.
Esperava que ela não tivesse cruzado com ele, provavelmente não
lembrava ou nem sabia quem era. — Assunto para outra hora,
quero saber de você.

— Pelo visto, estamos cheias de problemas com nossos pais.


— Arregalei meus olhos e ela revirou os dela. — Não Betânia e
Paulo, mas os que me deram a vida. Quero saber quem são, por
que me abandonaram, o que eu fiz de errado?

— Mas... o quê... — não sabia o que perguntar ou o que


comentar. Ela deu de ombros e se levantou.

— Preciso de glicose na veia para contar mais, já que o álcool


não é uma opção agora.

Não deveria ser algo tão extraordinário para abalá-la tanto


assim. Os seus pais adotivos eram os melhores, mas como dona
Betânia comentou no almoço que estive com ela, havia um espaço
que precisava ser preenchido e nunca pertenceu a ela e ao doutor
Paulo.

Também havia seu amor irresponsável com Cleber, esperava


que ele desse um pouco de suporte enquanto Rebeca nos afastou.

Aguardei se servir e voltar para a mesa para começar a


enxurrada de perguntas:

— Já contou para sua família?

— Não, mas minha mãe já insinuou. Ela sempre sabe tudo,


não sei como. — Comeu um pouco de sorvete e fez bico,
provavelmente por conta da minha cara de insatisfeita. — Estou
juntando dinheiro para contratar um detetive particular.
— Não é mais fácil abrir o jogo para sua mãe? Ou o Matias?

— A gente brigou, porque não conseguia falar com você! Eu


me sinto culpada, ingrata, é complicado. — Lembrou-me com ironia.

— E Cleber?

— Aquele idiota? — Comeu duas colheradas de sorvete antes


de continuar. — Já superei e estou lidando com as consequências.
Enquanto me chamam de vagabunda, eu digo que ele tem pinto
pequeno. Está uma guerra interessante de mídias estudantis. —
Começou a rir e eu só via uma alienígena na minha frente. Não
existia um ser humano que não se importasse com boatos desse
nível. — Estou na área certa, Min-min. Trabalharei com jornalismo e
estou me preparando para o mercado de trabalho.

— Esqueça esse apelido horrível, Beca.

— Min-min! — provocou. — Enfim, essa é minha história e me


sinto mais leve, inclusive. Me ajuda?

— Conte para seu irmão, ele tem todos os recursos que você
precisa.

— Vai virar partidária dele? Estão namorando? — Comeu seu


sorvete e foi minha vez de me levantar.

— Eu preciso de sorvete também.

— Não fuja da raia, cunhadinha — falou alto, me pondo como


centro das atenções e se divertindo com meu desconforto.

Por mais incomodada que estava, sentia paz. Era a


normalidade que eu buscava em meio a tantas informações novas
que nos rondavam. Meu pai tinha ido embora com a namorada, me
servi e voltei para a mesa onde parte da minha felicidade estava.

Enquanto meus pais se desencontravam, eu me conectava


ainda mais com a irmã que o destino colocou na minha vida. O
pedaço de amor que era apenas meu e crescia em mim. Isso me
fortalecia.
Alguns dias depois...

Esse era um dos raros dias que minha paciência estava


abalada, bem como desestabilizou meus sentimentos por Yasmin.
Será que estava fazendo isso por mim ou querendo provar para
alguém alguma coisa?

Caminhando a passos lentos até meu carro, depois de uma


jornada exaustiva no hospital, vi Yasmin de longe e percebi que
estava se esquivando de mim. Tudo o que eu queria era aproveitar
minha noite em algum bar e desfrutar meu dia de folga sem falar
com ninguém.

Apertei o botão do desarme do alarme do carro, joguei meu


jaleco na parte de trás e sentei-me no banco do motorista levando
um susto ao perceber que uma pessoa se sentava ao mesmo tempo
no banco do passageiro ao meu lado. Yasmin estava ofegante,
colocou o cinto rapidamente e se encolheu.

— Vamos, vamos! — exigiu e minha boca estava prestes a


soltar algo grosseiro, mas meu bom senso conseguiu me controlar.

Ela estava do meu lado, comigo e nem disse a direção. Que


fosse para o meu apartamento, precisava pisar em um território
onde me sentia seguro e confiante.

Fechei a porta, liguei o carro e dirigi sem falar nada. Deixei o


silêncio me acalmar, até Yasmin apertar o botão que ligava o rádio e
deixou a música nos fazer companhia. Ou era sua tentativa de nos
reconectar?

“I love it when you call me señorita

I wish it wasn't so damn hard to leave ya

But every touch is ooh la la la

It's true, la la la

Ooh, I should be running

Ooh, you keep me coming for ya”

“Eu adoro quando você me chama de senhorita

Eu queria poder fingir que não precisava de você

Mas cada toque é ooh-la-la-la

É verdade la la la

Ooh, eu deveria estar fugindo

Ooh, você continua me fazendo voltar por você”

A batida suave combinada com a letra da música me fez


acalmar a ansiedade, principalmente porque imaginei moranguinho
ao invés de senhorita. Conferi no painel o nome da música, era
Señorita, de Shawn Mendes e Camila Cabello. Eu lembraria dessa
música por muito tempo, por isso soltei o ar aliviado.

Olhei de relance para Yasmin e percebi que ela precisava de


um tempo, porque não se pronunciou e continuou encolhida no
banco, parecia fugir de alguém ou alguma coisa.

Fiz uma careta e não deixei que minha mão fosse buscar a
dela. Nós não estávamos mais nesse estágio. Era beijo, corpo
contra corpo, sentir suas curvas... Recusava-me regredir e tomar
alguma atitude contra isso não condizia com meu respeito ao tempo
que disse que lhe daria.

A solução? Deixar que fluísse, como sempre foi.

Parei em frente ao portão do meu prédio e enquanto ele abria,


encarei Yasmin. Ela olhava para frente, acuada e frágil, me
lembrava muito do seu momento internada no hospital.

— Precisa de ajuda? Eu posso te prescrever os exames, você


faz no hospital e se tiver alguma alteração...

— Estou bem, Matias. Os exames de rotina serão feitos só


daqui três meses, não há motivo para alarde. — Pareceu acordar do
transe ao soar ofendida, sentou-se melhor no banco e enquanto
guiava até a minha vaga de estacionamento, respirou fundo e me
encarou. — Desculpe meu tom, não vim discutir com você.

— E tem algo a ser feito, depois de fugir de mim todos esses


dias? — Tirei a chave do contato, saí do carro e bati a porta. Idiota,
eu sabia como estava agindo, só não conseguia evitar.
— Tias! — gritou atrás de mim enquanto caminhava
determinado em direção ao elevador. Seus passos ecoaram pelo
estacionamento, meu apelido em seus lábios abalavam o meu juízo
e por um milésimo de segundo não agi antes dela.

Apertei o botão para chamar o elevador e virei o rosto no


mesmo momento que suas mãos seguraram minhas bochechas e
sua boca encontrou a minha. Ah, seus lábios, aqueles que tanto
sonhei e ansiei pela semana e me foram negados.

Abracei sua cintura, minha mão foi até sua lombar e ousou
descer um pouco mais que o recatado. Abri minha boca e deixei que
a língua conduzisse o beijo, exigente e punitivo, para mim mesmo,
que duvidei da nossa conexão.

Dei um passo para a pressionar contra a parede, senti-a arfar


e aprofundar ainda mais o beijo, era disso que eu precisava, muito
mais do que meu apartamento ou minha ducha.

Era com seus lábios unidos aos meus que eu sentia paz,
estava em casa e nada mais importava.

Sorri quando a porta do elevador abriu e escutei passos ao


nosso lado. Puxei-a para dentro da caixa de metal e apertei o botão
do meu andar, trazendo-a de volta para meus braços e unindo sua
boca a minha.

Nossa conexão estava em sincronia, porque não me


interrompeu ou brigou, envolveu seus braços no meu pescoço e
suspirou contente, ela me queria tanto quanto eu.
Novamente interrompi o beijo, dessa vez para a puxar até
meu apartamento. A essa altura, nós estávamos sorrindo feito dois
apaixonados, envolvidos demais na nossa bolha para lembrar de
câmeras ou os vizinhos como voyeurs.

— Estou com medo de perguntar o que aconteceu —


confessei abrindo a porta, ainda de mãos dadas com ela.

— Depois do meu chá gelado eu te conto — provocou, me


fazendo rir alto, pegá-la no colo e entrar em casa como se fossemos
recém-casados.

Ela gritou, fechei a porta com o pé e a coloquei no chão da


minha cozinha, em meio aos seus risos. Se estava cansado ou
irritado, tinha desaparecido como a fumaça em frente a um
ventilador no momento em que ela me beijou.

Peguei um dos copos do escorredor da pia, enchi-o com o


chá de dentro da geladeira e claro, Yasmin o tomou de mim antes
de dar o primeiro gole. Fiz o mesmo com ela, deixei o copo em cima
do balcão e a tomei em meus braços, agora tendo nosso beijo com
gosto de chá gelado.

Inspirei profundamente, sentindo seu cheiro mesclado ao


tesão que transbordava cada vez mais. Ela virava a cabeça para se
encaixar melhor contra a minha boca e eu aproveitava toda a
disposição que ela tinha. Confessava que existia algum receio que
isso pudesse acabar a qualquer momento e novamente regredir ao
invés de aproveitarmos o passo a diante que demos.

Coloquei-a em cima do balcão, encaixei-me entre suas


pernas e deixei leves beijos em seus lábios antes de seguir para sua
bochecha, queixo e por fim, pescoço.

— Então, sobre hoje... — ela começou, tive que interromper.

— Não quero conversar enquanto você está saborosa assim,


moranguinho. I love it when you call me moranguinho... — Chupei
próximo a sua orelha, ela arfou e retesou o corpo, então parei e a
encarei. — Desculpe, minha cabeça de baixo estava falando por
mim. É importante? O que aconteceu hoje?

Respirou fundo várias vezes antes de deixar o sorriso surgir


pouco a pouco em seu rosto. Acariciou meus cabelos, trouxe minha
cabeça para próximo dela e beijou minha testa com carinho, como
eu estava acostumado a fazer com ela.

— Gostei da música — sussurrou.

— Canto minha versão para você depois.

— Eu preciso de um banho e você também.

— Topo, vamos! — Abracei sua cintura com um braço,


segurei sua bunda com o outro e ela começou a rir quando a levei
do jeito que estava contra meu corpo até chegar no meu quarto. Eu
era um homem desesperado para ter mais proximidade com Yasmin
ao mesmo tempo que frearia meus instintos se fosse o desejo dela ir
mais devagar.

— Se eu não estivesse aqui em uma missão nobre, talvez


entraria no seu jogo de sedução. — Coloquei-a deitada de costas na
cama e a cobri com meu corpo. Encarei-a com o cenho franzido,
exigindo mais informações e ela me deu: — O grande
acontecimento é o seguinte, sua irmã precisa de ajuda e não sabe
como pedir a você sem parecer ingrata ou culpada. Ela me deu
autorização, então, vou intermediar o diálogo entre vocês.

— O que Rebeca tem a ver com tudo isso? — questionei,


indicando o nosso clima, a reação dos nossos corpos e a minha
ansiedade por ter mais dela.

— Ela quer saber quem são seus pais biológicos — sussurrou


e como um interruptor, ela conseguiu me tirar do transe da sedução
para a posição de irmão. — Disse que não sabe explicar o motivo,
ama seus pais e você, mas ela tem essa necessidade...

— Desde quando? — Saí de cima dela e me sentei ao seu


lado, ela se ergueu e segurou a minha mão.

— Mais detalhes, quando conversar diretamente com ela.


Queria salientar que não é ingratidão, mas uma curiosidade normal
de quem não conhece os pais de sangue. Sua mãe já suspeita,
então...

As atitudes rebeldes, a bebida e os choros sem sentido.


Estava óbvio e não enxerguei... bem, pelo menos minha mãe
interpretou os sinais, eu só estava focado demais na minha vida.

Olhei com carinho para Yasmin, que além de ser alguém que
me conectava com tanta confiança, estava se integrando a família
com naturalidade.

— Eu ajudo e não será tão difícil de encontrar com os


contatos que minha mãe tem. Se tiver algum registro, nós
conseguiremos. — Levantei-me e comecei a desabotoar minha
camisa, para seu espanto. — Só que poderíamos fazer isso sem
que ela soubesse, o que acha?

— Que você gosta de fortes emoções. — Desviou o olhar


quando fiquei sem camisa e comecei a desabotoar a calça. — Vou
te esperar na sala. — Tentou se levantar, eu a impedi. O desespero
para avançarmos ou termos mais tinha se acalmado, meu peito só a
queria com suas imperfeições tão perfeitas para mim.

— Fique. Vou tomar banho, se você quiser, também o faça.


Quero saber sobre o seu dia, por que esteve tão longe de mim
nesses dias e o motivo de ter saído do quarto do seu Wilson tão
sorridente.

Ela me encarou radiante e logo ficou vermelha quando deixei


a calça cair e fiquei apenas de cueca boxer na sua frente. Segurei
seu queixo, pisquei um olho e deixei um selinho em seus lábios
antes de andar até o banheiro e fechar a porta atrás de mim.

Se estava irritado ou preocupado, não me recordava mais.


Depois de dias afastada emocionalmente de Matias, retornei
a nossa interação por conta de Rebeca. Além do que sentíamos, ela
era parte da cola que juntava o meu amor ao dele.

Acordei tão disposta e animada, que nem o olhar irritado da


professora Nadja me incomodou. Apesar da minha alegria ser parte
da sua tristeza, não cabia a mim forçar duas pessoas a se
gostarem.

Matias estava cada vez mais se enredando na minha vida,


tocando minha alma e me ajudando a despertar a mulher que ficou
adormecida por causa da doença.

Desviei minha caminhada até o ponto de ônibus para um mais


longe, apenas para não ter que discutir com a mulher que não
estava fazendo o seu papel de professora. Cogitei falar com a
diretora do curso e trocar a supervisora de estágio, mas qual seria a
justificativa? Não havia nenhuma regra quanto a não me relacionar
com pessoas que trabalhassem comigo, mas ainda havia a sombra
do conceito de ética. Não me sentia segura por completo nesse
quesito.

Tomei o transporte coletivo até o hospital e no caminho, fui


trocando mensagens com Rebeca. Ela andava muito ansiosa com
relação a sua busca e depois de abrir o jogo com Matias, eu havia
concordado com o seu plano. Então, teria que enrolar minha amiga,
para o seu próprio bem e parte da surpresa que estava preparada
para ela.

Desci no ponto, devorei o prato feito que era servido em um


restaurante perto de lá e fui caminhando até o hospital abraçada aos
meus materiais. Cada pisada no chão que eu dava me fazia lembrar
do passo metafórico que dei junto a Matias.

Não foram apenas beijos naquela noite. Depois do seu banho,


de contar sobre meu dia e discutirmos sobre alguns procedimentos
com pacientes – o que foi engrandecedor, profissionalmente falando
–, voltamos aos beijos, às suas mãos exploradoras e minha vontade
de ter seu corpo junto ao meu.

No sofá, no chão e até na sua cama, senti-o, sobre a roupa


como ele fez comigo, extrapolando apenas quando tocou minha
bunda e deslizou sua mão pela lateral dos meus seios. Estava mais
do que pronta para me entregar. Se não estivesse empenhada em
fazer o papel de adulta responsável, dormiria com Matias e só
enfrentaria minha mãe depois.

Não havia pressa quando a certeza estava ao alcance da


minha mão. Preciosa e rígida, essa era a paixão que compartilhava
com aquele homem.

Pensando nele, acabou o atraindo até mim. Enquanto subia


os degraus da escada, ele descia e abriu um enorme sorriso quando
me viu. Tocou meu queixo assim que parei, beijou meus lábios e fez
uma carícia no meu rosto.
— Oi, moranguinho. Tive que vir trabalhar hoje, cobrir um
colega no pronto atendimento. Me ligue, se precisar de mim.

— Tudo bem — respondi hipnotizada, acompanhando sua


descida e suspirando apaixonada.

Será que seria sempre assim? Esperava que, pelo menos, o


início do nosso relacionamento voltasse a mente para aquecer meu
peito nos momentos que achasse que tudo estava perdido.

Cheguei no meu andar, cumprimentei todas as minhas


colegas na recepção e ao abrir a porta da sala dos funcionários, a
chefa Quênia estava lá. Ela parecia me esperar, por estar
encarando a porta.

— Boa tarde — cumprimentei forçando um sorriso e me


apressando a guardar minhas coisas para começar meu expediente.

— Olá, Yasmin. Está tudo bem com você?

— Sim — respondi confusa, coloquei meu jaleco e a encarei.

— Doutor Matias pediu autorização para que você pudesse


fazer alguns exames. Ele está te consultando?

— Ele foi meu médico há um ano e está sendo superprotetor


por conta de uma preocupação da sua irmã. Sou amiga de Rebeca,
ela que doou a medula que me ajudou no tratamento de leucemia.

Parei em frente a ela e não desviei o olhar. Parte do que


contei era uma máscara da verdade, Matias deveria me consultar
antes de atropelar minhas decisões. Estava segura e em posse das
minhas vontades, não me sentia fazendo nada de errado ao me
relacionar com meu antigo médico. Além do mais, colocar minha
cabeça no travesseiro, nesses últimos dias, estava me fazendo mais
bem do que mal.

Por conta da minha postura, ela acenou afirmativo e indicou a


porta, para que eu saísse junto dela.

— Depois que atender o quarto dois, adolescente com fratura


na perna, preciso que cheque o paciente Wilson. Veja se será
necessário mais uma dose da sua medicação para dor, ele precisa
ser atendido por outras enfermeiras que não seja eu — ela me
delegou a tarefa com dureza.

— Pode deixar.

Desviei do caminho dela e fui limpar minhas mãos. Enquanto


fazia a higienização, olhei ao redor e percebi um certo incômodo.
Foi impressão minha, ou a chefe Quênia deu a entender que eu não
estava dando conta? Logo com esse paciente que eu tinha feito
grandes progressos.

Fui realizar o primeiro atendimento, trocar curativos e verificar


o soro da paciente com a perna quebrada. Acompanhada da mãe,
foi impossível não a comparar com o que eu passei.

Findado o atendimento, segui para o segundo paciente.


Peguei os aparelhos, depois sua ficha médica e bati a sua porta,
escutando seus gemidos de dor. Ah, sabia o que era não ter paz
nem conseguir relaxar, era como se precisasse sair do próprio
corpo, porque ele não lhe servia.
— Olá, seu Wilson. Não está sendo um bom dia? —
questionei alegre, tentando contagiá-lo.

— A dor não passa! — soltou furioso e tentou se mexer na


cama, gemendo ainda mais. — Preciso de um remédio que faça
parar a dor, não que me dê sono. Agora não consigo dormir, porque
me dói tudo.

O soro havia voltado para sua intravenosa. Conferi o histórico


de medicação, pelo meu conhecimento, a próxima dosagem seria
de morfina. Doutor Matias fez uma anotação com relação a ele
precisar de um acompanhamento terapêutico, já que estava
apresentando sintomas de confusões mentais.

Olhei do papel para o senhor, que poderia ter a idade do meu


pai e me apertou o peito. A última coisa que precisava era me
envolver emocionalmente com um paciente, mas esse, em
específico, mexeu demais comigo desde sua primeira crítica.

— Você me lembra meu pai — comentei colocando o


aparelho de auferir pressão no seu pulso.

— Ele também está doente? — questionou sofrido, mas


parecia ter se interessado. Uma boa forma de desviar a atenção do
que não poderia ser mudado, era falando de outro assunto.

— Não, se separou da minha mãe. Ou melhor, os dois fizeram


isso, de comum acordo. Acho. — Sorri para sua preocupação e dei
de ombros antes de fazer as anotações. — É complicado ser filha
de pais separados, a gente quer se envolver, mesmo sabendo que
não é da nossa conta.
— Filha... — comentou e seu olhar parecia estar longe, além
da parede. — Eles têm novas famílias?

— Meu pai sim, minha mãe não. Moro com ela. — Peguei o
estetoscópio e escutei seus batimentos cardíacos, bem como a
respiração.

— Para a mulher sempre é mais difícil. Trabalho, casa,


filhos... — Ajeitou-se melhor na cama e parecia até mais aliviado.

— E o senhor, tem filhos? Casado?

— Nenhuma mulher me quis, acho que todas as enfermeiras


que passaram por mim sabem muito bem o motivo. — Olhou-me
com desafio e retribuí, porque comigo não iria colar essa
informação. — Sei que sou difícil.

— Porque é mais fácil afastar as pessoas do que as perder


depois, ou pior, escutar suas lamentações e culpas. — Sorri para
seu olhar reconhecedor. Mal sabia ele que usei os mesmos artifícios
quando estava entre a vida e a morte. — Elas só querem te fazer ter
um momento melhor no meio de tanta angústia.

— O que você sabe sobre essa doença, menina?


Acompanhar pacientes em tratamento de câncer não é a mesma
coisa que estar na pele deles. — Fez uma careta e voltou a lembrar
da dor. Droga, o tiro saiu pela culatra. — Onde está meu remédio?
Vocês está me fazendo sentir dor sem necessidade. Diga a Quênia
que preciso do médico, para me dar mais do outro soro de ontem.

— Sei que está aqui para ser bem tratado — falei ousada,
correndo o risco de ser chamada atenção, mas seu Wilson
precisava enxergar algumas verdades. — A dor é sua, bem como o
dinheiro que o senhor investiu no tratamento. Quatro meses de um
quarto de hospital pago em dinheiro, para ficar sozinho e fugir da
família? — Mostrei a palma da minha mão para o impedir de falar.
— Você acha que está no final da sua vida, tudo bem. Mas que triste
fim é esse? A opção de encerrar sorrindo também existe.

Ele demorou para responder, me encarou por um tempo


enquanto dentro de mim eu repetia o quanto o admirava. Os
pacientes daquela ala do hospital não mereciam pena, mas
admiração, por terem a grandeza de passarem por esse tratamento.
Não era para qualquer um e a morte não significava derrota.

Seu Wilson precisava recuperar um pedaço da esperança que


abandonou, em algum momento do seu tratamento.

— Não tenho família, porque cometi erros irreparáveis. Excluí


alguém importante e hoje, sou excluído. É a lei da vida, minha
doença veio para que eu pague pelos meus pecados — falou com
pesar.

— Quem disse que a cura também não faz parte do


pagamento? — Peguei na sua mão e apertei, ele retribuiu e senti
uma conexão, daquela que não conseguia explicar, como aconteceu
quando vi Rebeca pela primeira vez. — Se quiser conversar, estou
aqui, também fora do meu horário de trabalho. Quem sabe eu conte
mais sobre o quanto sei o que é estar no mesmo lugar que o senhor.
— Olhei para o seu soro e depois ele. — Vou procurar o doutor para
providenciar o seu remédio.
— Daqui a pouco. Está tudo bem, menina Yasmin. — Fechou
os olhos e suspirou. Fiz o mesmo e o soltei, porque a vontade de
chorar veio com força ao perceber que se ele morresse hoje,
pareceria calmo e tranquilo. Minha bronca proporcionou esse
momento.

Engoli em seco e voltei a minha rotina quando saí do quarto,


ainda mais por ter a chefe Quênia no meu encalço, como um
gavião.

Ainda bem que teria Matias no final do dia – havia cansado de


fugir – e a ação voluntária no final de semana com dona Betânia.
Dava para suportar qualquer enfrentamento com tantas
recompensas.
Nem esperei Matias sair do carro, assim que o vi estacionar
em frente à minha casa, corri para o seu lado e o agarrei para
enchê-lo de beijos. Nos últimos dias acabamos nos desencontrando,
as mensagens e telefonemas não eram o suficiente para arrebatar o
que estava prestes a explodir dentro de mim.

— Não esqueça de entregar minha doação, filha. — Parei o


que estava fazendo para olhar minha mãe, que nos observava com
seriedade do portão. — Bom trabalho e juízo.

— Pode deixar. Tchau — tentei não soar como uma


adolescente querendo revirar os olhos para a preocupação
desnecessária. Ela era mãe, estava me dando espaço, respeitando
meus horários e ao mesmo tempo demonstrava o quanto era difícil
ceder o controle da minha vida.

Seu trabalho parecia não ter a mesma empolgação de antes e


não duvidava que cruzar com o meu pai, nos corredores do Órgão
Público que trabalhavam, era sofrido.

O meu destino junto a Matias poderia ser o mesmo. Lutei


contra a vontade de elencar tudo o que poderia não dar certo.

Dei a volta no automóvel para me sentar no banco do


passageiro e Matias ficou me encarando por um tempo antes de
ligar o carro e guiar.

— Pensei que o sermão seria maior dessa vez — brincou e


trouxe minha mão para a sua perna.

— Está sendo difícil, mas ela quer fazer diferente. — Suspirei.


— Entendo-a, a vida está diferente agora que é solteira e tem uma
filha prestes a pular do ninho. Imagino que deve se achar sozinha
no mundo.

— Seus pais vão mesmo se separar?

— De corpos, já o fizeram. No papel, não sei. — Apertei sua


mão e sorri, percebendo que saiu naturalmente, não me doía ao
falar do assunto. Seria mágica ou apenas minha visão sobre o
assunto que mudou? — Aquele motorista tinha razão.

— O que disse?

— Em briga de marido e mulher, filho não mete a colher. Um


motorista de aplicativo me falou isso, uma vez que briguei com o
meu pai pelo celular. Na época, achei um absurdo, mas agora, estou
colhendo os benefícios.

— Pelo visto, te deixava aborrecida o assunto. Era isso que te


incomodava um tempo atrás? — questionou levando minha mão até
seus lábios.

— Sim, e também, um certo médico que está caçando minhas


veias para fazer exames. Matias, eu estou bem, isso só gerou mais
desconfiança para a chefe.
— Ela sabe sobre nós — comentou como se fosse simples
assim. — Para ela, ser minuciosa com as atividades dos estagiários
faz parte de formar bons profissionais. Você está tirando de letra.

— Se a receptividade do seu Wilson comigo for um medidor,


então sim, estou indo muito bem — brinquei.

— Ele não quer terapia. — Virou o volante e demonstrou


preocupação. — Paciente com câncer sem tratamento psicológico é
igual soldado que volta da guerra e segue a vida sem ajuda. Vive,
sobrevive, alguns sem traumatizar a família, outro mais
desequilibrados...

— Tipo eu — confessei o surpreendendo.

— Mas você teve acompanhamento lá na cidade onde você


se tratou.

— Claro, depois de largar parte do meu coração aqui. — Ele


parou o carro em frente à minha antiga escola e segurei a emoção.
— Eu estudei aqui.

— Sim, o voluntariado será no orfanato onde Rebeca esteve.


— Começou a rir quando me viu respirar fundo várias vezes para
conter a emoção. — Nós faremos uma surpresa para minha irmã,
mas primeiro, ela irá fazer para você.

Saímos do carro e caminhamos um bom pedaço antes de


chegarmos ao nosso destino. Muitas pessoas estavam no lugar, que
agora tinha uma grande estrutura e brinquedos. Reconheci Catarina
sentada no chão tendo o cabelo mexido por várias crianças, outros
colegas da minha turma e Miguel, que na época que fizemos nossa
ação voluntária, não participou.

Esse pedaço da minha vida foi precioso e seria maravilhoso


reviver, em outros termos.

O menino que eu não conseguia enxergar como homem


sorriu para mim e correu em minha direção. Miguel reduziu os
passos quando Matias soltou minha mão para rodear meu ombro
com seu braço. Terror e vergonha tomaram conta, inclusive quando
dona Betânia e Rebeca se aproximaram entusiasmadas de mim.

— Surpresa! — minha amiga me abraçou e ficou na frente do


seu irmão, tampando-o da vista dos outros. — Nós sempre fazemos
um dia de brincadeira com as crianças daqui. Então, tive a ideia de
chamar os seus amigos. — Apontou para meu antigo colega, que
forçava um sorriso simpático ao dividir a atenção de todos. — O
professor Miguel me ajudou a chamar todos que ele tinha contato,
para um reencontro da turma e claro, divertir as crianças.

— O-obrigada. — Só abracei Miguel, porque Rebeca me


empurrou para cima dele. Rapidamente me afastei em busca de
Matias, mas ele não estava por perto.

— Gostou? Espero que seja um presente para todos,


principalmente para você. — Dona Betânia me puxou para um
abraço e riu perto do meu ouvido. — Meu filho foi para dentro
contando que eu cuidasse de você.

— Está tudo bem. Obrigada. — Soltei-a e encarei tudo ao


redor. — Minha mãe gostaria de doar um valor em dinheiro, se
possível.
— Claro, querida. Podemos fazer depois do almoço. Vá
brincar.

— Venha! — Rebeca parecia criança, me pegou pela mão e


saiu correndo me puxando até Catarina. Minha amiga gritou quando
me viu, assustando as crianças.

— Calma, a tia é doida, mas do bem. Preciso cumprimentar


alguém. — Ela me abraçou e riu alto. — Meu Deus, até rimou! Já
posso mudar de profissão.

— Que bom que está aqui. — Olhei por cima do seu ombro e
tentei relembrar o momento que estava gravado na minha mente. —
Nossa, aqui mudou tanto.

— Aqui não falta nada, é prioridade da mamãe — Rebeca


falou, percebi que Miguel se aproximou de outros dois amigos. —
Vá falar com eles, vou voltar para a amarelinha.

Cumprimentei quem chegava perto, alguns diferentes,


distante, outros mais amigáveis e entusiasmados. Percebi o
professor de Rebeca se incomodar ao meu lado e logo se afastar,
para meu alívio. Não havia nenhuma chance de continuar algo que
nem deveria ter começado entre nós. O pedaço que ele tinha de
mim era mísero e o suficiente, meu amor era de outra pessoa.

Brincamos de pega-pega, queimada e rouba bandeira, para


nossa exaustão e divertimento das crianças. Dona Betânia recolheu
brinquedos, roupas usadas e alimentos das pessoas que vinham
presencialmente entregar ao mesmo tempo em que promovia um
almoço beneficente. As crianças seriam alimentadas, os adultos
pagariam e levariam sua comida para casa.
Com saudade, despedi-me de alguns colegas que
aproveitaram o horário para se recolherem e claro, contribuir com a
comida na saída. Pessoas fizeram fila do lado de fora enquanto
alguns adultos e educadores estavam conosco realizando a
recreação.

Sentei-me no chão e Catarina fez o mesmo, observando as


crianças serem conduzidas ao refeitório. Percebi que com ela não
havia mais nada além de um grande carinho. A amizade, que valeu
tanto para mim no passado, não era nada mais do que uma boa
memória.

— E a faculdade? Se adaptando com os adolescentes


cheirando a leite?

— Exagerada. Aproveitei algumas matérias e estou


perambulando entre alguns semestres. Conheço quase todo mundo
da enfermagem por isso. — Juntei as pernas e a abracei, ainda
mais quando vi Miguel conversar com outros colegas em despedida.

— Você, definitivamente, não gosta do Miguel, né?

— Meu coração é de outra pessoa, sempre foi — respondi


oferecendo-lhe meu melhor sorriso. Ela apertou minha bochecha e
tirou o celular do bolso.

— Vou anotar seu número, lá no churrasco acabamos nos


desencontrando. — Bateu seu braço no meu. — Tenho boas
lembranças com você, nerd.

— Eu também. — Deitei minha cabeça no seu ombro e meu


coração acelerou ao ver o homem, que não era o meu, caminhar na
nossa direção. Falei meu número, ela anotou e enviou uma
mensagem de texto.

— Para alguns, concorrência. Outros, uma oportunidade. —


Levantou-se e não deixou que Miguel se aproximasse de mim. Só
então percebi que ela estava interessada nele e por nunca ter
conseguido uma brecha, não demonstrou.

Ela iria consolar o chato do terceiro ano que virou um homem


bonito e desejável. O primeiro adjetivo eu enxergava, mas de tanto
falarem, estava começando a aceitar o segundo.

Os dois acenaram para mim de longe, fiz o mesmo e me


levantei, era hora de buscar minha família. Ri do meu pensamento,
ainda mais por nem ser uma namorada de verdade. Tudo bem,
sentia que estava em um relacionamento com Matias, mas
nenhuma suposição tinha mais peso que um pedido oficial, se ele
viesse.

Encontrei dona Betânia ocupada com a entrega de marmitas,


depois vi Rebeca bem entrosada sendo aquela que recebia o
dinheiro. Caminhei para dentro da casa, em busca de Matias,
questionando-me se ele não gostou de saber que Miguel estava no
orfanato. Era apenas meu colega de colégio, afinal de contas.

Encontrei uma senhora atrás de uma mesa logo na entrada e


fui perguntar sobre meu fujão. Tanto sabia, como me direcionou a
sala que ele estava, conversando com uma das funcionárias
administrativas do lugar.

Apesar de prezar pelo momento individual de todos, não


queria ficar sozinha, então bati na porta e coloquei minha cabeça
para dentro. Matias fez um movimento com a mão para que eu
entrasse e a mulher, que sorria entusiasmada, se fechou um pouco
quando me viu pegar a mão dele de forma possessiva.

— Ela está me dando alguns meios para encontrar a mãe de


Rebeca. Minha irmã foi registrada nessa cidade, mas alguns
documentos foram perdidos numa mudança de gestão — Matias
falou beijando a minha mão.

— Não está no sistema e nem nos cadernos de protocolo. Há


alguns prontuários médicos, mas está no almoxarifado da prefeitura.
Precisarei de uma autorização judicial para executar a busca —
falou seca e percebi que ele parecia confuso com a mulher.

Céus! Pelo visto, o momento para conflito entre casais


começou.

— Que bom, meio caminho andado, não é mesmo? — Sorri


para os dois, tentando apaziguar o clima. — Vamos ajudar sua
mãe? — perguntei arregalando os olhos para ele, numa tentativa de
me fazer entender.

— Sim, vamos. Obrigado, Margarida. — Estendeu a mão para


ela, que apertou e sorriu de orelha a orelha. Para mim, com a ponta
dos dedos, segurou os meus e ficou séria.

Saímos da sala e comecei a rir. Matias não entendeu, mas me


acompanhou, até seguirmos para o pátio.

— Você fugiu de mim porque lembrou que beijei Miguel?

— Esse é o tal professor? Nem percebi — falou cínico e ri


alto, ele me acompanhou. — Um gurizão que não tem nem barba no
rosto, nenhuma concorrência ali.

— Mesmo se tivesse barba, não seria. Mas dona Margarida...


— Coloquei-me na sua frente e comecei a andar para trás, vendo-o
confuso. — Nem percebeu que ela mudou de postura quando entrei
e mostrei que era mais que uma amiga.

— Está vendo coisas. Só conversei com ela, moranguinho.

— Por mais de três horas?

— Sim, foi difícil convencer a mulher, que nem queria manter


em sigilo para fazermos uma surpresa para Rebeca.

— E você prometeu o quê? Brincar de médico? — Gritei


assustada quando Matias abaixou e me colocou em seu ombro,
como um saco de arroz. — Tá louco?

— Vai ver com quem vou brincar de médico mais tarde —


prometeu antes de correr comigo e nos girar, chamando atenção
para a nossa brincadeira.

Encabulada, ele me colocou no chão e beijou minha boca,


como se o mundo fosse acabar amanhã. Corresponder era a única
coisa que conseguia no momento, ainda mais com o coração
acelerado e o corpo em chamas, pelo calor e por causa dele.

Arrancamos aplausos de quem nos via e se colocou ao lado


da mãe, que aproveitou nossa presença para ir ao banheiro. Fiz o
mesmo para Rebeca, que parecia satisfeita consigo mesma.

— Pode agradecer, eu mereço um prêmio — falou divertida.

— Como assim?
— Foi tudo friamente calculado. Meu irmão ficar com ciúmes
de você e assumir o relacionamento publicamente. — Ergueu as
sobrancelhas divertida. — Obrigada?

— Ele não me pediu em namoro — sussurrei envergonhada.

— Quer mais do que aquilo? — Apontou para onde


protagonizamos o beijo. — Você precisa rever seus conceitos. Hoje
em dia ninguém pede mais em namoro, muito menos em
casamento.

— Yasmin, quer namorar comigo? — Matias apareceu na


nossa frente, quase me fazendo perder o fôlego. Como se fosse
uma pergunta simples, que no caso era, mas não a ocasião.

— Ela aceita, irmão. Minha irmã-cunhada! — Rebeca


declarou me abraçando, atrapalhando o recebimento do pagamento
das marmitas.

Meu olhar era apenas de Matias. Deixei o medo de lado,


acenei afirmativo e apenas disse sim, sem deixar minha voz sair.
Esse momento era apenas nosso, tinha que ser. Recuperei o
pedaço que me fazia sentir completa como mulher e, ainda por
cima, estava compartilhando com alguém.

Ele voltou para seu posto, eu me mantive ao lado de Rebeca


buscando equilíbrio. Quando tive tempo, digitei uma mensagem
para a minha mãe e avisei que dormiria com Rebeca.

Estaria com Matias.


Entrei no carro de Matias quando o sol estava se pondo.
Exaustos de tanto trabalho e com o coração cheio de esperanças,
fomos em silêncio para seu apartamento, sem nem mesmo eu dizer
que estava preparada para dormir com ele.

De todas as formas.

Literalmente e metaforicamente dizendo.

O nervosismo não conseguiu tirar o melhor de mim, ainda


mais quando a música Piece of Your Heart, cantado por Meduzaz
começou a soar baixo pelos autofalantes do carro. Sorri de forma
involuntária, porque minha opção por trocar medicina por
enfermagem foi com a intenção de espalhar meu amor por onde eu
passaria, como a letra da música dizia.

“Me mostre um pedaço do seu coração, um pedaço do seu


amor

Estou te chamando para se envolver, se envolver, se envolver

A maneira como nós nos tocamos nunca é suficiente”


Apesar de ser uma balada mais eletrônica, a música
conseguiu nos sintonizar no clima exigido para o momento. Matias
pegou minha mão e como havia se tornado um hábito, beijou o
dorso e colocou em cima da sua coxa.

“Me mostre um pedaço de você

Me mostre uma parte de você

Eu serei o que você quer”

Ele parou o carro em frente ao portão do seu prédio, pegou o


celular enquanto o portão ia se abrindo e conectou o aparelho ao
som do carro, que começou a tocar a música novamente.

Não era apenas eu que tinha entendido o significado daquela


música, que parecia ter sido feita para nós, naquele momento em
específico.

Parou o carro, soltou o cinto e me ajudou a fazer o mesmo,


apenas para facilitar sua manobra e me ter mais perto. Segurou
minha nuca e me beijou. A sensualidade estava mais aflorada que o
cansaço. Parte do nosso cheiro, que compartilhamos durante o dia,
combinou com a lascívia que emergia em mim.

Ousei, fiquei de joelhos abraçando seu pescoço, para estar


mais próximo dele. Não hesitou em afastar o banco e me colocar em
seu colo, de lado, apenas o suficiente para os nossos corpos
estarem se tocando nos lugares certos.
O medo se despediu e o atrevimento nos cumprimentou no
momento que sua mão deslizou pelo meu corpo para baixo, apertou
próximo a minha bunda e depois subiu para o meu seio.

Remexi no seu colo, me obrigando a soltar as amarras que


me impediam de amá-lo como deveria. O movimento pareceu
agradá-lo, porque mordeu meu lábio inferior e gemeu apertando
onde sua mão ainda continuava.

A luz do estacionamento subterrâneo se apagou, o brilho dos


seus olhos era apenas um reflexo do que eu mesma sentia, a
luxúria. Tocando de forma repetitiva, Piece of Your Heart nos
embalou para mais um beijo ardente, dessa vez, eu o queria montar,
quadril com quadril.

— Está tudo bem? — perguntou segurando o meu rosto e


colocando o meu cabelo atrás das orelhas. — Acho que hoje não te
devolvo para a sua casa.

— Que bom, porque pretendia estar com você até o


amanhecer. — Ergui-me o suficiente para fazer o que eu queria,
falar minhas intenções seria mais difícil do que agir.

Olhou-me da cintura até a minha cabeça, suas mãos fizeram


o mesmo movimento e fui presenteada pelo seu sorriso, uma das
coisas que mais me encantaram nele. Aquele era o dia, mesmo não
tendo planejado como deveria. Era Matias, afinal de contas. Tudo
com ele era bom, independente da preparação anterior.

Beijei-o movimentando meu corpo, o arrepio me abalou e


precisei interromper o que fazíamos para abraçar seu pescoço e
esconder meu rosto. Caramba, era arrebatador o que sentia, será
que seria sempre assim com ele?

— Vamos subir, moranguinho. Lá teremos privacidade e você


será toda minha. — Afastou-me e esperou alguma confirmação, o
que não veio. Necessitava dizer o quanto o amava e não que estava
pronta para me entregar de corpo e alma. Ele era o pedaço de amor
que cultivei dentro de mim à distância, estávamos colhendo os
frutos de nos darmos tempo. — Quer ser minha? Posso ser seu?

Lembrei do seu pedido de namoro no meio do nosso trabalho


voluntário, sorri e saí do seu colo com um pouco de dificuldade.
Muito mais do que um rótulo, eu queria sublimar o que sentia.

— Estamos perdendo tempo aqui, vamos — chamei abrindo a


porta do carro e apertando o passo para chegar até o elevador.

Puxou-me para ficar abraçada a ele, de costas, tampando sua


frente. Sentia sua ereção, seu coração acelerado e parte da
promessa que parecia exalar pelos seus poros.

Ainda bem que estávamos sozinhos quando subimos, porque


assim que chegamos no seu andar, lá estava o desespero tomando
conta dos gestos e do gosto dos seus lábios. Pressionada contra a
parede, ele não teve mais nenhum cuidado ao me tocar, era intenso,
possessivo.

Interrompeu nossa interação apenas para abrir a porta, me


pegou no colo de frente, caminhando até o sofá e me deitou em
cima dele. Um gemido surreal saiu por entre nossos beijos, a fricção
da sua pélvis contra minha virilha estava sendo exorbitante.
— Se deixe ir, moranguinho. Estou aqui com você —
sussurrou no meu ouvido e esfregou um pouco mais. Segui seu
comando e lá estava minha alma se jogando de uma ponte, com as
pernas amarradas ao suporte no alto, como em um bungee jump.

Só parou de se mover quando apertei seus ombros com


força, fechei os olhos e arfei necessitando de uma pausa. Tinha
estudado anatomia humana o suficiente para saber o que tinha
acontecido. Não sabia dizer se foi minha primeira vez, mas com
certeza era diferente de tudo o que havia sentido.

Abri os olhos vagarosamente, pisquei várias vezes para me


acostumar com o escuro que nos cercava e sorri para o olhar
preocupado dele. Céus, não éramos mais médico e paciente, não
havia sobrado nada daquele amor platônico.

Era real.

— Isso é só o começo, Yasmin. Mas você pode dizer quando


quiser parar a qualquer momento, também estou atento as suas
reações...

— Promete?

— O quê? — perguntou suave acariciando o meu rosto.

— Que hoje é apenas o começo. Sem pensar em parar ou o


final... esse é o início. O real.

— Sempre foi real, nossa conexão nunca foi convencional.


Esse momento é apenas um passo, mais uma linha da nossa vida
se entrelaçando.
— Você é romântico, Tias — sussurrei admirada. Com força,
ele me ergueu junto com o seu corpo e caminhou até o quarto.

— Esse pedaço do meu coração é apenas seu, moranguinho.

Colocou-me no chão próximo ao banheiro, o que achei


interessante, já que nada entre nós era normal. Por que nossa
primeira vez deveria ser? Ele acendeu a luz do quarto e ia fazer o
mesmo no banheiro, mas o impedi, deixando que entendesse meu
objetivo. Eu conservava alguma timidez, a coragem que existia não
era perfeita.

Desabotoei minha calça e o vi se despir em tempo recorde.


De cueca, ajudou-me com minha roupa, até chegar na calcinha, que
fez questão de se ajoelhar na minha frente e deixar beijos molhados
na minha perna enquanto a removia do meu corpo.

Ele também tirou sua última peça de roupa e de mãos dadas,


fomos para dentro do box, deixamos a água morna temperar o
momento. Com sua habilidade e minha inaptidão, ele me preencheu
pouco a pouco, pegou o pedaço de amor que estava lhe dando de
presente e completou nossa união de mais uma forma.

Éramos de alma, agora de corpo.

Gemidos ecoaram pelo quarto madrugada adentro. Estava


ávida para conhecer mais sobre o meu corpo, o dele e tudo o que
tinha perdido enquanto me afundei em uma doença que não me
aleijou. Poderia culpá-la pelo tempo perdido, mas eu era a única
detentora das minhas ações.
Perdi-me em peças pelo caminho da vida, estava recolhendo
todas aquelas que valiam a pena, para me completar.

Ainda bem que existia Matias e que ele havia acolhido meu
coração tão bem. Não havia nada que pudesse manchar o que
sentia por ele.
Alguns dias depois...

Mesmo que a exaustão da minha rotina de estudar e estagiar


me consumisse, sentia-me muito bem. Viver estava fluindo sem
empecilhos, por isso ignorei a tontura que tive logo que me despedi
de Matias de longe, que conversava com outro médico no hospital.

Era preferível manter nossa distância enquanto estávamos no


trabalho, ainda mais por ter Quênia sempre atenta as minhas ações.
Parei alguns segundos para firmar o corpo antes de continuar meus
passos até o elevador e vi a enfermeira se aproximar e segurar o
meu braço com firmeza.

— Você ainda não fez os exames? — questionou baixo e me


livrei das suas mãos com um sorriso forçado.

— Estou bem, preciso comer apenas. Obrigada.

Não olhei para os lados e orei para que Matias não tivesse
flagrado nossa interação. Ele era o mais preocupado de todos, seus
toques e olhares diziam mais que sua boca. Claro, estava fugindo,
porque em algum lugar dentro de mim, acreditava que enquanto não
tivesse o diagnóstico, estaria tudo bem. A doença não retornaria
para a minha vida.
Saí do hospital com pressa, caminhando pelas calçadas em
busca de algo para comer. Não era o ideal, mas teria que servir até
chegar em casa e me alimentar corretamente.

Meu celular tocou e por estar com as mãos cheias, deixei de


lado, havia outras prioridades. Devorei o cachorro-quente de um
vendedor ambulante, consegui pegar meu ônibus e fui a pé,
observando o movimento da rua pela janela pensando que eu me
tornara uma mulher completa. Com um namorado maravilhoso,
minha cunhada era mais que amiga e sua família me acolheu com
amor.

Os pais biológicos de Rebeca estavam sendo encontrados


pelo detetive que Matias contrato. A professora Nadja não
economizava nos olhares furtivos pela faculdade e começaram a me
incomodar. Ela tinha o poder de me prejudicar e atrapalhar meus
sonhos, não sabia o que fazer para impedir que isso acontecesse.

Cheguei no meu ponto, desci ainda com o pensamento em


outras pessoas e só me dei conta que tinha questões familiares para
lidar quando vi o carro do meu pai estacionado em frente de casa. O
desastre que foi o encontro na sorveteria parecia que se repetiria.

Mudei meu ritmo de caminhar para um mais cauteloso, entrei


em casa e vi meus pais conversando e assistindo televisão como
antes de eu ter o diagnóstico. Parei um minuto para observar os
dois, perceber que eles estiveram distantes há mais tempo do que
imaginei e, mesmo assim, eram meus pais, apesar de tudo.

— Oh, filha, chegou — minha mãe reparou na minha


presença e ficou sem graça. Levantou-se e me abraçou, depois me
ajudou a colocar os materiais na mesa e ficou ao meu lado. — Seu
pai tentou falar com você e ficou preocupado.

— Ah, era você? — perguntei tirando o celular do bolso e


vendo três ligações não atendidas, todas dele em horários
diferentes do dia. Como não tinha visto? — Desculpe, hoje foi muito
corrido e no hospital nem fico com o celular por perto.

— Oi. — Meu pai continuou sentado, olhou da minha mãe


para mim e soltou o ar com força. — Queria saber se você poderia
almoçar comigo amanhã, em casa.

— Aqui? — perguntei confusa e logo me dei conta que não,


era na casa que ele dividia com Carolina, perto da faculdade. —
Desculpe, falta de costume.

— Independente das escolhas que eu e seu pai fizemos, você


continua sendo a nossa filha. Ele é o pai certo para você — minha
mãe falou e franzi a testa para seu tom conciliador. Sabia que por
dentro havia muito conflito e sofrimento, porque era assim que me
sentia também.

— Tudo bem, mãe — respondi dando de ombros. — Eu vou


amanhã, não terei a segunda aula, poderei sair mais cedo e almoçar
com tranquilidade antes de ir para o hospital. Pode ser? — A mão
da minha mãe apertou com suavidade meu braço quando meu pai
engoliu em seco e se levantou.

— Você é sempre bem-vinda em casa, Yasmin — ele falou


com voz embargada.
— Mas ela não precisa de outro lar para morar. Estamos bem
aqui, voltei a trabalhar, estou fazendo terapia, nós daremos conta.
— Minha mãe foi para a porta e encerrou a conversa praticamente o
expulsando da sua antiga casa.

Quando virou de lado para ir embora, dei um passo para


frente e envolvi os braços em seu pescoço. Não consegui ficar mais
do que alguns segundos, ainda mais porque ele não retribuiu meu
gesto.

— Até amanhã, pai — falei sentindo o choro chegar. Ele nem


me olhou, foi embora e me deixou preocupada com o que tinha feito
de errado.

Ainda bem que a tontura me alertou que eu ainda precisava


de uma alimentação saudável antes de dormir, por isso olhei para
baixo, respirei fundo e fui para a cozinha mudar o clima tenso que
estava sentindo.

— Está tudo bem, Yasmin? Seu pai ficou emocionado,


apenas isso. Nunca tivemos costume de expressar nossos
sentimentos como os adolescentes de hoje em dia, mas...

— Pode ficar tranquila, mãe. — Encontrei um mamão cortado


na geladeira, peguei maçã e banana na fruteira, iria me contentar
com uma salada de frutas. — E você, como está? Não sabia que
estava indo na terapia.

— Era isso ou a minha chefe me obrigaria a passar por uma


perícia médica. — Vi pela minha visão periférica que ela pegou o
espremedor de laranja e ficou ao meu lado. — Vou fazer um suco
também. Você precisa se alimentar bem, sempre. Esse mês que
volta para a consulta de rotina?

— Não, mais alguns meses. Pode ficar tranquila, eu também


dou conta. — Comecei a cortar as frutas e sorri quando a vi franzir a
testa. — Além do mais, meu namorado é especialista, mais
preocupada que ele, só você mesma.

— Então, estão namorando mesmo? — Espremeu uma


laranja e voltei meus pensamentos para o outro lado da minha vida.
— Tome cuidado, filha. No início eu incentivei, porque ainda te via
como uma criança apaixonada pelo seu primeiro amor. Você é uma
mulher e pode ser prejudicada no seu trabalho por causa dele.

— Você cruza com o pai no trabalho?

— Essa conversa não é sobre mim, mas você.

— Rebeca é minha única amiga, dona Betânia e doutor Paulo


são muito queridos, mãe.

— Não é sobre eles esse relacionamento, mas você e o


Matias. Tome cuidado, não só com seu coração, mas... — Terminou
as laranjas, desligou o aparelho e foi até o freezer pegar cubos de
gelo.

Só de lembrar o que fizemos no final de semana, ficava


vermelha, então, nem busquei confirmar se tínhamos usado
proteção ou não. Esse era um detalhe para outro momento, quando
não tivesse o olhar de mãe protetora em cima de mim.

— Yasmin! — ela me chamou, virei de costas fingindo pegar


os talheres.
— Ele gosta de mim, sua família também. Eu gosto dele e
espero que não o recepcione com pedras nas mãos na próxima vez
que vir aqui. — Coloquei uma colher bem cheia de salada de fruta
na boca e fui acalmando a vermelhidão do meu rosto enquanto a
encarava.

— Você não precisa ter os meus medos, mas nem por isso
vou deixar de cumprir meu papel. — Estendeu um copo com suco
para mim. — Cuidado, proteção e carinho. Me deixe fazer, preciso
disso.

Ela veio me abraçar e com as mãos cheias, envolvi sua


cintura e a senti suspirar ao alisar meu cabelo. Parecia que buscava
o tempo perdido e enquanto eu aceitava que o passado foi como
tinha que ter sido. Se existisse tanto amor e carinho, talvez não
cruzaria meu caminho com Matias, não receberia parte da cura de
Rebeca e não mudaria de profissão.

— Vou me deitar, tudo bem? — Beijou minha testa e fungou


se afastando de mim. — Não esqueça do almoço com seu pai
amanhã. Ele te ama muito, só precisa aprender a dizer isso.

— Mãe, nós poderíamos fazer um almoço de família também


— comentei as suas costas. Ela parou e se virou com o olhar
incrédulo. — Não com a namorada do pai, mas a tia Marina e a vó,
um dia de mulheres.

— Gostei da ideia.

O brilho em seu olhar foi suficiente para que o mesmo calor


no peito que eu sentia ao estar com os familiares de Matias se
fizesse presente.
A vida mudou e não dava para lutar contra a maré. O melhor
era se adaptar e encontrar a positividade no meio disso tudo.
Ignorei a sensação estranha quando saí da casa onde meu
pai dividia com sua namorada. Estava incomodada por não ser mais
como era antes e também, aliviada que Carolina não era tão chata
quanto demonstrou ser na primeira impressão que eu tive.

Tudo bem, ela ainda tinha milhões de defeitos, passaria o dia


inteiro citando cada um deles, mas havia qualidades que não queria
assumir, uma vez que eu já tinha uma mãe.

Ela era apenas a namorada do meu pai... que era um pouco


mais velha que eu, mais vaidosa e com certeza, mais preocupada
com a aparência do que todas as mulheres que estiveram na vida
do seu Ulisses.

Dentro do carro do meu pai, em silêncio enquanto ele dirigia


até o hospital, decidi questioná-lo da mesma forma que tinha feito
com minha mãe, mas ela desconversou:

— Você se encontra com a mãe no trabalho? É difícil?

— Quer saber se ficará estranho trabalhar com alguém que


você se envolveu amorosamente? O médico não é alguém que te
dá segurança?
— Pai, eu amo Matias. Não é sobre mim, mas vocês. —
Cruzei os braços contrariada, eu queria saber mais, por que os dois
achavam que a pergunta tinha algo a ver comigo?

— O que eu e sua mãe passamos não precisa fazer parte da


sua vida. Sempre achei que não deveríamos falar sobre isso com
você, sua mãe era contra, mas agora voltou a concordar comigo. —
Suspirou apertando o volante do carro com força. — Eu não era feliz
naquela casa, minha filha. Foi a decisão mais difícil e maravilhosa
que eu já tomei.

Engoli a saliva como se fosse espinhos. Acabei tossindo e


deixei que as lágrimas escorressem, pois estavam disfarçadas pelo
meu repentino ataque.

— Está tudo bem? — perguntou preocupado.

— Sim. Me engasguei com a saliva. — Forcei o sorriso e


ajeitei o material no meu colo, nosso destino estava perto. — Sinto
muito por tudo, pai. Nunca tive a intenção de causar tanta dor com
minha doença. Estou me cuidando para que não aconteça
novamente, tenho muitos motivos para querer viver bem e saudável.
— Manteve-se em silêncio, então continuei: — Pretendo sair de
casa quando me formar, a mãe também precisa de outra
oportunidade de ser feliz em um relacionamento.

— Você nunca foi motivo da minha infelicidade, nem Joana.


Eram minhas escolhas. — Parou o carro e esfregou a mão no rosto.
— Sempre falo algo para você que a coloca no meio do furacão. Me
dê a oportunidade de mostrar que tenho orgulho de te ter como filha.
Só peço isso.
— Tudo bem, pai. Eu te entendo, na nossa família nunca foi
fácil expressar o quanto a gente ama as pessoas. — Soltei o cinto
de segurança e beijei seu rosto. — Se te faz feliz, eu estou fazendo
diferente. Te amo. Adorei almoçar com vocês, estarei sempre livre
para estar mais no seu mundo. Bom trabalho.

Meu humor mudou quando saí do carro e caminhei


lentamente para a porta do hospital. Poderia ter sido o
esclarecimento suficiente para acalmar meu coração, mas doeu.
Meu pai não sabia dizer que me amava, muito se explicava, já que
não amou de verdade minha mãe. Entraram em uma rotina, me
incluíram nas suas discórdias silenciosas e, como adulta, eu teria
que dar conta de olhar para isso e não me envolver.

Que merda.

— Filha! — escutei a voz aflita do meu pai, ele se aproximou


de mim ofegante e parei de andar quando o vi emocionado. —
Quando sua mãe perdeu o bebê, aquele que ela não gosta que
comente, parte de mim se foi junto com ela por completo. Fui feliz
com sua mãe, mas não soubemos lidar com a perda do que deveria
ser o resultado do nosso amor. Você mostrou que ainda era possível
ter sucesso, mas aquele bebê que não nasceu ainda era uma
lembrança de fracasso para nós. Nos entregamos ao trabalho ao
invés de conversar sobre o assunto. Ela sofreu, mas eu também. —
Apertou os lábios com força e fiz o mesmo, só que as lágrimas
escorreram pelo meu rosto. — Por você, valeu a pena, tudo bem?
— Acenei afirmativo. — Não fale sobre isso com sua mãe se não
estiver preparada para enfrentar uma tempestade. Ela já está
procurando ajuda, é meio caminho andado.
Vi meu pai voltando para o seu carro em prantos. Tinha me
esquecido dessa perda mais uma vez. Como ela poderia ser a
causadora de tanto sofrimento?

Entrei no hospital e fui direto ao banheiro me recompor.


Depois subi os degraus até o andar da oncologia e não distribuí os
sorrisos de sempre, nem admirei minhas colegas de trabalho como
de costume.

Atendi uma senhora idosa, que removia o acesso para o soro


por conta de pressão alta. Um bebê com menos de um ano de idade
internou por conta de pneumonia. Estava envolvida na rotina como
enfermeira.

Matias cruzou comigo no corredor, mas não pode vir até mim,
porque um novo paciente emergencial tinha sido internado e uma
equipe de médicos estava discutindo se fariam uma cirurgia de
emergência ou não.

Quando Quênia pediu que eu fosse ver seu Wilson, que já


tinha reclamado de dores mesmo depois dos remédios, eu só queria
que ele me expulsasse do seu quarto. Não estava bem para lidar
com sua complexidade.

— Você não vai me dar remédio. Chame o doutor ou Quênia,


estou com dor! — reclamou assim que entrei no seu quarto. Acenei
afirmativo, mas não mudei minha trajetória de anotar seus sinais
vitais.

— Além da dor, existe algo que esteja incomodando? Saiu


sangue nas fezes?
— Quando não sai sangue? Além do câncer, da hemorroida e
da fistula, minha próstata começou a dar problema também. —
Gemeu quando peguei seu braço, tentei sorrir para o reconfortar,
mas não consegui. — E vem você com essa cara de velório por
aqui. Já vai me enterrar?

— O que morreu, seu Wilson, foi meu irmão ou irmã. —


Encarei-o com seriedade, o que o fez se assustar. — Passou muito
tempo, nem lembrava dessa história, mas percebi que nunca sofri
por isso. Ele nem nasceu, foi um aborto que minha mãe nunca
comentou sobre e hoje, meu pai contou que foi o motivo dele ter
saído de casa. — Auferi sua pressão em silêncio e anotei os
valores. — Então sim, seu Wilson. Estou com cara de velório,
porque estou de luto. Atrasado, mas válido. Vou tentar vir com uma
máscara melhor amanhã.

Peguei o estetoscópio para auscultar seu coração e sua mão


foi para o meu pulso, sem força. Estava prestes a chorar, mas ele
conseguiu me fazer ir até próxima de uma cadeira que tinha ao lado
da sua cama.

— O senhor continua recusando tratamento terapêutico. Eu


preciso, você precisa, meus pais também...

— Sente aí, vou contar uma história.

E eu fiz, desanimada do jeito que estava, apenas seguindo o


fluxo do rio que me tragava. A mão do seu Wilson continuava no
meu braço e assim que o encarei, ele ergueu a sobrancelha e
pressionou seus dedos em mim.
— Ninguém está preparado para ser pai ou mãe. Nós
julgamos muitos aqueles que rejeitam um ser inocente que veio para
esse mundo por causa das nossas escolhas, sejam elas erros ou
acertos. — Suspirou, nem parecia o homem amargurado de antes.
Naquele momento, estava sereno e olhando para o teto. — Gostaria
de poder fazer diferente, ter sido mais maduro e não ter magoado
minha namorada.

— O que aconteceu? — perguntei, despertando para um


interesse genuíno.

— Nosso namoro era recente, ela ficou grávida, pedi que


abortasse e foi como se o amor acabasse. — Fechou os olhos e fez
uma careta, a dor era sentida na sua alma. — Eu faria diferente
hoje. Desde que me afastei dela, nunca mais amei outra pessoa. —
Virou o rosto para me encarar, seus olhos abertos estavam cheios
de dor. — Tenho culpa por estar doente. Briguei com minha família e
estou gastando todo o meu dinheiro para morrer e levar tudo
comigo.

— Não diga isso, seu Wilson. Há dias bons e não tão bons,
sua cura ainda está ao seu alcance. — Engoli em seco, percebendo
que minhas palavras, quando era eu deitada na cama escutando,
não faziam sentido algum.

— Você me ajuda, mas não tem o poder de me salvar — falou


com arrogância e voltou a encarar o teto.

— Ela abortou? — sussurrei.

— Uma semana depois falou comigo, encerrou não só a


gestação, como nosso relacionamento. Naquela época fui cruel...
mereço toda dor que estou sentindo, mesmo que queira acabar com
ela.

— Acho que somos responsáveis pelas coisas que


acontecem conosco, mas aí, dizer que merecemos essa doença
cruel... — Tirei minha mão do seu agarre, olhei para minhas palmas
abertas em cima do meu colo e suspirei. — Se errou no passado,
por que não fazer certo no presente ao invés de acabar com sua
vida? Por que não compensar uma falha com uma conquista?

— Como assim, merecemos? O que sabe sobre o câncer? —


questionou e me levantei, mais mexida do que estava antes. Era o
que eu queria fazer, o que meus pais deveriam fazer e seu Wilson
também. Não seguir para esse caminho estava me incomodando
visceralmente.

— Sinto muito, eu preciso de um tempo. — Ia saindo da sala,


me lembrei dos meus materiais, voltei para buscar e não olhei para
cima, apenas escutei seu suspirar sofrido.

Não era problema nenhum saberem sobre minha enfermidade


do passado, a questão era apenas acreditarem em mim quando
tinham ciência da minha experiência. Por que meu eu de hoje não
era suficiente?

A doença sempre faria parte da minha vida e eu queria


apagar esse tempo da memória.

Foi caminhando em direção a recepção, para entregar o


prontuário do paciente, que minha vista se escureceu e não vi mais
nada ao meu redor.
Abri os olhos escutando o bip do monitor cardíaco. Gemi, não
por estar sentido dor, mas ao perceber que estava em uma cama de
hospital depois de um desmaio não previsto. No final das contas,
minhas tonturas esporádicas tiveram o melhor de mim.

— Min-min! — escutei a voz de Rebeca antes de sentir o


abraço. Movimentei minhas mãos, para poder me auxiliarem a me
sentar, uma delas tinha um acesso em minhas veias. — Que susto
nos deu.

— O que aconteceu? — perguntei mesmo sabendo a


resposta. Conferi o soro no alto e envolvi meu braço livre no
pescoço da minha amiga, em busca de conforto.

— Se não me assustasse tanto, diria até que poderia ter feito


um meme do seu desmaio. — Afastou-se e tocou minha cabeça, só
naquele momento percebi uma lesão superficial. — Estava ansiosa,
iria esperar você e Matias terminarem o trabalho para irmos comer
algo e conversar. Quando cheguei no andar, você saiu do quarto de
um paciente e se esborrachou no chão, espalhando tudo o que tinha
nas mãos. A enfermeira chefe deu um berro chamando Matias e foi
como nos filmes, meu irmão te pegou no colo, colocou no primeiro
quarto livre e cuidou de você como uma princesa. — Apontou para a
curva do meu braço. — Ah, foi ele quem tirou seu sangue também e
espantou todos os curiosos. Ainda bem que sou da família, era
capaz dele ter me enxotado também.

— Não deveria ter acontecido isso. — Fechei os olhos e tomei


várias respirações profundas. — Estou me alimentando bem,
comendo, inclusive quando não estou com fome, só por saber que é
o horário.

— Acredito em você, até porque, necessito que esteja viva


quando eu for atrás dos meus pais biológicos. — Bufei um riso e
abri os olhos encarando-a. Sorridente e como uma adolescente
preste a ganhar seu primeiro presente caro, ela me fez perceber que
eu estava cada dia mais no meu lugar de adulta. — Contei para os
meus pais o que está acontecendo comigo. Minha mãe nem chorou,
disse que fará tudo o que estiver ao seu alcance para encontrar
quem eu busco. Também falou que se eu me decepcionar, ela
continuará lá me esperando, como mãe adotiva que nunca romperá
o vínculo.

— Você é privilegiada.

— Agora quero falar com Matias e tirar esse peso do meu


peito. — Fez uma careta. — Só não acho que será um bom
momento, já que a amada está em um leito de hospital.

— Seu irmão é um exagerado. — Finalmente me coloquei


sentada com as pernas suspensas, alcançando o soro e conferindo
que era apenas hidratação. — Sente-se do meu lado — pedi e ela
prontamente se colocou junto de mim, segurando minha mão livre e
apertando. — Também tenho coisas para te falar que não conseguia
por sentir culpa.
— Agora é momento de você descansar.

— Meus pais se separaram. — Olhei-a para que visse minha


dor. — Minha mãe surtou no primeiro momento, saia de noite e só
voltava no outro dia próximo do almoço. Depois, ela se centrou e
agora, está fazendo terapia e tentando ter um bom relacionamento
com meu pai, por mim. — Fiz bico e ela franziu a testa. — Meu pai
já tem até namorada.

— O-oh, então, eles estão separados há muito tempo.

— Sim. Achei que tinha sido por conta do meu tratamento em


outra cidade, minha doença, onde afastei todos para que não
sofressem comigo. Mas foi há mais tempo do que imaginava,
quando minha mãe perdeu um bebê e para ela sempre foi difícil
falar. — Olhei para nossas mãos unidas. — Tinha até esquecido,
mas meu pai falou e vou deixar essa história do jeito que ela ficou.
Sou apenas a irmã mais nova desse bebê que não pode nascer.

— A mãe também perdeu um bebê. — Olhei para Rebeca


confusa, confundindo Betânia e a mãe biológica dela. — Matias teve
uma irmã, que nasceu com problema no coração. O pai era
cardiologista antes de seguir para a oncologia. Foi demais perder
sua filha, sendo perito. — Ela sorriu de forma tão inocente, que
parecia que encarava uma criança perdida que tinha sido
encontrada. No final das contas, Rebeca era isso e muito mais. —
Fiquei sabendo alguns dias depois do nosso procedimento com a
medula, onde quase morri por conta de algo inexplicável, já que
fizeram todos os testes comigo e eu não tinha alergia a anestesia.
— Ainda bem que você é teimosa tanto quanto eu. —
Abracei-a e a porta se abriu, revelando um médico com olhar
cansado e semblante preocupado.

Matias se aproximou ao mesmo tempo que Rebeca saiu do


meu lado. Sua boca veio até a minha para um beijo de alívio e
reconhecimento dos seus sentimentos atuais. Sim, sua preocupação
era a minha.

— Vou esperar lá fora, meus irmãos. — A menina que estava


se transformando em mulher, pouco a pouco, saiu.

— Não posso estar doente novamente, Matias — decretei


antes que ele dissesse qualquer coisa. — Estou bem, feliz, me
resolvendo... até almocei com meu pai hoje, e sua namorada.

Ergueu a mão revelando alguns papéis nela. Era o resultado


dos exames de sangue, nem imaginava quais ele tinha feito.
Caminhou pelo quarto sem falar nada, focado nos que tinha em
mãos até chegar na porta e a trancar.

Senti como se tivesse uma armadilha no meu coração,


apertando meu peito e não me deixando respirar. Ele voltou para
próximo de mim, abriu minhas pernas e se encaixou entre elas, me
desconcertando.

A tensão oscilava entre o desespero e a paixão, ele estava


me confundindo de propósito.

— Seria bom fazer exames de imagem, por precaução.

— O que deu no resultado?


— Pedi urgência, mas alguns demoram mais de um dia para
ficar pronto, por não serem feitos no laboratório do hospital.

— Matias, eu estou bem! — Peguei minha mão boa para


começar a tirar o acesso da outra, mas ele me impediu.

— Sei que está, os exames também confirmam, mas esse


desmaio não é normal. Você está tendo tonturas desde quando? —
Acionou o modo médico, me fazendo recordar de quando éramos de
mundos opostos, comigo sendo paciente. — Está se alimentando
bem?

— Estou estressada, Tias — choraminguei e ele teve a


coragem de sorrir para o meu sofrimento exagerado. — Não
aguento mais os olhares predadores da professora Nadja, minha
mãe está se esforçando muito para não invadir meu espaço, até
porque, quem cuida dele hoje sou eu; almocei com meu pai, ele me
revelou algo chocante e para concluir, o seu Wilson resolveu contar
sua história. — Segurei seu rosto com minhas mãos, ele não
parecia acompanhar minha linha de raciocínio, senão estaria com
pena de mim e não sorrindo. — Se não acredita no que estou
falando, fique comigo por um dia inteiro, vai ver que estou lidando
até que de forma razoável com meus problemas.

— Ainda bem que não fui listado nisso, porque sou a solução,
moranguinho. I love it when you call me moranguinho... — Ergueu
as sobrancelhas enquanto cantava a sua versão da música señorita,
enterrou seu rosto no meu pescoço e inspirou profundamente. —
Seu cheiro é perfeito.
— Tias, o que está fazendo? — questionei sentindo meu
corpo inteiro se arrepiar em apreço. Não era local nem momento
para isso, mas sentia minha mente se esvaziar aos poucos
enquanto ele me seduzia. — Estou em uma cama, se não percebeu.

— Foi exatamente isso que eu percebi. — Deu uma leve


mordida no meu pescoço, se afastou e me encarou com o olhar
brilhando de expectativa. — Você me assustou pra caralho. Estou
aliviado... não por completo, mas o suficiente para fazer uma
loucura pela primeira vez nesse hospital. Preciso sentir você,
Yasmin.

Sua súplica foi um comando exigente para meu coração.


Estava entregue a ele antes mesmo que soltasse os papéis da sua
mão para tirar o que nos impediria de completar o ato. Livrou-me da
intravenosa e enquanto eu segurava o dedo em cima do buraco
para estancar o sangue, Matias tirou seu jaleco e subiu na cama,
me deitando, para ficar em cima de mim.

Sua boca se apossou da minha com fome e desejo por mais.


Sentindo o sabor do chá gelado que partilhávamos sempre em seu
lar, me rendi ao impulso de ser apenas mulher, em meus vinte seis
anos, com direito a ousadias e imprudências.

Conhecia seu corpo tanto quanto ele sabia onde tocar no


meu, para me fazer gemer. Apertou meu seio por cima da blusa e
não economizou nos movimentos, mesmo tendo pouco espaço e
fazendo um certo barulho.

— Precisamos ser mais silenciosos — sussurrou antes de


chupar meu pescoço e se esfregar entre as minhas pernas. O meu
jeans contra a calça dele me causava sensações insanas.

— Só preciso tirar minha calça, deve bastar — falei baixo


demais, com vergonha de como o meu desejo poderia ser
interpretado.

— Você é o suficiente, Yasmin. — Saiu da cama para me


auxiliar a me desfazer da parte de baixo das minhas roupas. Voltou
para cima de mim, desabotoando sua própria calça. — Eu te amo.

Abri a boca para responder sua declaração de amor e nada


saiu, porque fui preenchida com apenas um movimento. Seus lábios
encontraram os meus e com ações ora lentas, ora acelerada, me
proporcionou os melhores momentos de prazer inconsequente.

Dobrei uma perna para o sentir mais fundo e me deliciei com


as frases obscenas sussurradas no meu ouvido. Precisei chegar no
meu clímax para que as palavras voassem da minha boca sem que
eu pudesse evitar.

— Te amo, Matias.

Gemeu baixo quando chegou ao ápice, investiu com precisão


e depois deixou seu corpo relaxar em cima do meu, como se
fôssemos o encaixe perfeito um do outro.

Dessa vez não houve culpa, nem preocupação. Sentia-me


muito bem, viva e não tinha exame nessa vida que me abalaria.
Percebi que nunca poderia excluir a doença da minha vida, porque
foi através dela, que conheci Matias. Por causa dela, dou mais valor
aos pedaços de amor espalhados pela minha rotina.
No final do dia, o que eu precisava era apenas isso, relaxar
sentindo-me amada, sem ressalvas ou segredos.
Saí do hospital naquele dia sem falar com ninguém. Meu
namorado e médico daquela ala, me escoltou até em casa e
praticamente me fez dormir, ficando ao meu lado no quarto.

Minha mãe não se envolveu, nos deu privacidade e não


fizemos nada além de conversar deitados na minha cama até me
cansar. Era maravilhoso ter um peitoral firme como almofada e
braços aconchegantes como cobertor, não me incomodaria nem um
pouco de entrar nessa rotina.

Acordei revigorada, minha mãe também parecia contente


quando nos cruzamos na cozinha.

— Quer carona para a faculdade? — ela perguntou colocando


duas fatias de pão de forma na torradeira.

— Pode ficar tranquila que meu ônibus ainda não passou. —


Sentei-me à mesa e olhei ao redor para saber o que iria comer.

— Ainda estou no meu horário, eu te levo. — Sorriu pegando


um prato e colocando as torradas nele. — Fique com esse, vou
pegar a geleia e o requeijão.

Nem mesmo no hospital, quando nos aproximamos como


mãe e filha, ela deixou de comer para me servir. Ao invés de
perguntar, acolhi com um sorriso e a esperei se sentar para
comermos juntas.

Mais um motivo para acreditar que não havia justificativa para


adoecer, era apenas uma lembrança de que a leucemia fazia parte
do passado. Minha vida estava indo bem, acordar me trazia
esperança, pensar em Matias me enchia o coração de amor...

Ele me amava.

— Aproveite esse início de namoro, minha filha. É


maravilhoso — comentou sorrindo, sem os sentidos subjetivos
negativos adicionados nele. — Traga-o mais vezes para cá, ele é
bem-vindo.

— Obrigada, mãe. Mas nosso encontro marcado é com as


mulheres da família. — Terminei de comer meu café da manhã e me
levantei. — Já falou com a tia e a vó? Posso fazer isso, se estiver
muito ocupada.

— Vou marcar, sábado, aqui em casa. — Levantou-se


também e riu baixo. — Minha irmã vai até estranhar minha ligação.
Moramos na mesma cidade e há anos não nos vemos. Pode deixar
que direi que foi ideia sua, para não a intimidar.

— Combinado. Domingo passarei o dia com a família Chagas.


Tudo bem? — Ia saindo da cozinha para escovar os dentes, mas
parei, porque a vi olhar através de mim e suspirar.

— Claro, minha filha. Está tudo bem, pode ir.

Eu não tinha pedido autorização, era apenas uma


formalidade, mas sua frase de liberação tinha mais significado que o
sentido literal. Estava livre para seguir o meu caminho, de uma certa
forma, até abençoada.

Juntas, fomos de carro até a faculdade e cantei as músicas


que tocavam na rádio. Apesar de não ter nenhum mal para me
preocupar, sentia a necessidade de mostrar a todo mundo o quanto
estava feliz.

Realizada!

A primeira aula foi tranquila e a segunda resultou em ser


apenas a entrega de um trabalho. Conversei com alguns colegas,
recebi uma mensagem de Catarina me chamando para um
churrasco no sábado que recusei sem me sentir mal, era o momento
das mulheres Cardoso.

Planejava uma sessão da tarde vendo um filme e comendo


sorvete ou pipoca.

Meu estômago roncou e mesmo sabendo que estragaria meu


almoço, fui até a lanchonete do meu bloco para comprar um
salgado. Virei o corredor e quase deixei tudo o que tinha nas minhas
mãos cair no chão quando vi Matias e Nadja conversando em um
canto dos corredores do departamento.

Aos poucos, fui percebendo que não era uma interação


amistosa, meu namorado tinha o corpo rígido e a feição chateada,
tão diferente da sua habitual tranquilidade. Já a professora Nadja
estava com o nariz empinado e mão na cintura, como se estivesse
contando vantagem sobre algo.
— Ali está. Venha, Yasmin, preciso falar com você sobre seu
estágio — ela virou para mim com um sorriso cínico e ia dar um
passo na minha direção, mas Matias a segurou pelo braço. — Não
me toque, doutor Matias — sibilou com nojo.

— Vai descontar a raiva que sente por mim nela? — Meu


namorado soltou-a, que caminhou na minha direção enquanto ele a
seguia atrás. — E os exames dela estão perfeitos, não há motivo
para suspender suas atividades.

— O quê? — Olhei dele para ela, que parou na minha frente


enquanto Matias se colocava ao meu lado. Tocou meu ombro e
deixei, porque precisava do seu suporte.

— Está proibida de seguir com o estágio. Você será chamada


na semana que vem para responder a um processo administrativo
por postura estudantil e profissional antiética. Mentiu sobre estar
bem para exercer o estágio e agora se envolveu com o colega de
trabalho, fornicando por todos os cantos daquele hospital.

Dei um passo para trás e Matias me segurou, negando com a


cabeça veemente. Minha pergunta silenciosa a ele era se as
pessoas sabiam sobre o que tinha acontecido naquele quarto e ele
parecia convicto de que nada tinha a ver com o nosso momento
íntimo.

— Se quer culpar alguém por conduta inapropriada, faça


comigo. Eu sou o profissional que se aproveitou da aluna e não o
contrário. — Abraçou-me de lado com força, Matias não tinha
percepção que poderia destruir sua carreira profissional por minha
causa.
— Seu nome foi citado no processo, pode ter certeza de que
será chamado também, doutor Matias — falou em tom de ameaça,
deu a volta em nós e começou a se afastar.

— Espero que tenha se exposto nesse processo também,


Nadja. — Matias nos virou e várias pessoas prestavam atenção na
nossa discussão. A professora parou, se virou e olhou com
superioridade, nada parecia atingi-la.

— Eu não tenho nada a ver...

— Tem sim! — Matias falou com convicção. — A mais


interessada em estragar a vida de alguém, sem escrúpulos, falsa. —
Esticou um braço enquanto o outro continuava ao meu redor. Céus,
nunca vi meu namorado tão irritado. — Tivemos um caso e foi muito
bom enquanto durou. Só que eu sempre te falei que meu coração
era de outra pessoa, sempre foi e continua sendo. Você estava
ciente, assuma a responsabilidade de ter aceitado a ilusão de que
eu mudaria algum dia. — Virei para ficar de frente a lateral dele, que
demonstrava sinais de emoção. Abracei como dava seu corpo e o
senti suspirar. — Eu amo Yasmin, esse pedaço de mim sempre foi
dela. Por favor, Nadja, nos libere.

Murmurinhos soaram junto com passos apressados. Um tapa


foi dado, olhei para Matias e o vi com o rosto para o lado enquanto
Nadja se afastava de nós.

Aos poucos, comecei a empurrar o corpo do meu namorado


em direção ao estacionamento, onde deveria estar o seu carro. Se
meu dia estava perfeito, o universo me pregou uma peça, porque o
resultado poderia mudar muita coisa.
Troquei medicina por enfermagem por conta de um propósito
maior de vida, mas acabou sendo minha própria ruína. Não saberia
dizer quais eram as consequências de ser sentenciada culpada
nesse processo administrativo, mas sentia, no meu coração, que era
a destruição do meu sonho.

Fomos imprudentes demais, ultrapassei limites que não


deveriam...

— Como ela sabe que transamos ontem no hospital? —


perguntei baixo assim que chegamos no estacionamento e ninguém
mais nos via. — Desculpe, Tias. Eu...

— Nada vai acontecer com você, está me entendendo? —


Parou de andar, segurou meu rosto e apresentou seu lado
vulnerável. — Depois do que você me falou ontem, fui atrás de
Quênia e ela me revelou tudo. A enfermeira Maria anda enchendo a
cabeça de Nadja, que tenta tirar algo da chefe e não consegue. Os
tais problemas que ela tinha e seu mal humor, tudo tinha a ver por
estar em meio a um fogo cruzado.

— Você não pode perder tudo.

— Nem você. — Beijou minha boca suavemente e


suspiramos. — Nadja não aceita nossa separação. Eu nunca a
enganei, Yasmin. — Puxou-me e caminhamos para outro rumo,
dessa vez, sendo guiada por ele.

— Ela te deu um tapa?

— Sim. Era isso que eu merecia no dia que você foi jantar em
casa ao invés da... despedida — assumiu baixo, um pouco
envergonhado. Tentei não sentir ciúmes, naquela época, nosso
amor não estava sólido. — É passado. Nadja foi importante, ela
precisa entender isso e me liberar.

— Mas há consequências com o que fizemos. De uma certa


forma...

— Não, Yasmin. Seria antiético se eu pegasse uma colega de


trabalho por dia, esgueirando pelos cantos e sendo promíscuo. Era
você, no seu quarto, apenas... — Parou em frente ao seu carro e me
encarou, buscando a palavra certa. — Fomos estravagantes. Ponto.
Ninguém sabe o que aconteceu, Nadja alega que fazíamos sempre
no banheiro dos funcionários.

— Fornicando — falei percebendo que aquela palavra era


tão... antiquada. O nervosismo da situação se tornou em negação e
comecei a rir, sem saber o real motivo. — Ela disse essa palavra.

— Sim e já ouvi falar em outros momentos sobre copular.

Soltei um riso alto, ele fez o mesmo e me abraçou, com força,


enquanto nos controlávamos. Apoiado no carro, ele apertou o botão
do alarme, tirou meus materiais da mão, colocou-os no banco de
trás e voltou para como estávamos, dessa vez, abraçando a minha
cintura enquanto tocava o seu peito.

— Se ela seguir com esse processo administrativo,


entraremos em guerra. Terei o melhor advogado ao nosso lado e
não vou querer apenas desfazer esse mal-entendido, farei com que
sinta na pele o que nos ameaçou. — Perdeu toda a graça no final da
sua fala.
— Estou com medo desse seu lado sombrio — comentei
ainda sorrindo, porque achava que essa era sua forma de
extravasar a raiva.

— Venha para o lado negro ter horas de fornicação antes de


copular.

Comecei a rir alto, ele sorriu e me abraçou beijando minha


boca com desejo. Relaxado a cada toque da minha língua na sua,
enlacei seu pescoço e inclinei minha cabeça para cima, com a
intenção de aprofundar nossa conexão.

Naquele estacionamento, éramos apenas dois namorados em


busca de extravasar nossa frustração com demonstração excessiva
de afeto. Durou poucos segundos, mas foi o suficiente para o
convidar, silenciosamente, para concluirmos o que começamos em
outro lugar.

Depois pensaria com racionalidade. Fugir da guerra eminente


era a melhor opção naquele momento.
Foi estranho passar o resto do dia olhando para o teto
enquanto pensava no que fazer. Matias havia me levado para casa,
estreamos minha cama, fiz uma macarronada de almoço para nós e
tive que me despedir, já que ele precisava ir para o hospital.

Sua recomendação foi para que eu não voltasse para o


estágio enquanto não impedisse que Nadja desse andamento com o
processo administrativo. Um pedaço importante da minha vida, a
profissional, estava escorregando pelas minhas mãos.

Meu celular apitou, Rebeca havia me enviado uma imagem


engraçada e meu namorado, um texto curioso.

Matias>> Acabei esquecendo de te falar uma coisa, havia


muita distração. Não que eu esteja reclamando, muito menos
que a informação seja insignificante.

Yasmin>> Vai falar ou me deixar curiosa?

Matias>> O detetive particular que contratei achou a mãe


de Rebeca. Pedi que entrasse em contato primeiro para saber
se ela quer saber da filha ou não.
Yasmin>> Sua irmã tem o direito de saber quem é aquela
que lhe deu a vida. Querendo ou não a conhecer, é direito dela.

Matias>> Tanta coisa acontecendo, preciso proteger as


mulheres da minha família.

Yasmin>> Sua mãe tem seu pai, Rebeca tem sua mãe e
eu. Então, foco em mim, Tias. Vou ler sobre a ética para
profissionais de saúde.

Matias>> Bom saber que você me quer todinho com


exclusividade. Pensando em mil e uma maneiras de te roubar
para mim hoje à noite sem que sua mãe saiba.

Yasmin>> Domingo, pode ser? Sábado terei reunião de


família com as mulheres do lado da minha mãe.

Matias>> Vão falar mal dos homens. É bom.

Yasmin>> Menos de você, amore mio. Bom trabalho e me


mande notícias.

Matias>> Será a primeira a saber, sempre. Te amo.

Olhei para a tela do celular e sorri, esse era o homem que


estaria comigo no amor e na dor.

Yasmin>> Eu te amo.
Esparramei-me no sofá, escolhi um filme para assistir e
esqueci da vida até que minha mãe chegou com duas sacolas
cheirosas. Nossa, estava com tanta fome que nem tinha percebido.

— Chegou mais cedo, filha? — Segui-a até a cozinha, olhei


suas compras e já peguei um sonho para me fartar. — Não comeu,
dona Yasmin?

— Um lapso que estou resolvendo agora, mãe. Fiquei


distraída vendo televisão. — Encarei-a com o cenho franzido, estava
disposta a lhe falar a verdade. — Aconteceu uma coisa...

— É seu pai? — deduziu revirando os olhos e abrindo outras


sacolas. — Dê espaço para ele, que nunca soube falar. Quando fica
acuado, ele se fecha. É normal.

— Está tudo bem com o pai. É minha faculdade. — Mordi


mais um pedaço do sonho. — Minha professora de supervisão de
estágio é ex-namorada do Matias.

— Não! — falou chocada. — Já entendi tudo.

— É um pouco pior. — Terminei de comer e encontrei um


saco com chipas. — Ela abriu um processo administrativo contra
mim por ser antiética. Me tirou do estágio, e...

— Vou acabar com a vida dessa mulher! — Minha mãe saiu


como um furacão da cozinha, depois voltou, pegou o celular e
chamou alguém.

— Mãe, Matias já está vendo isso.


— Ulisses? Qual o nome daquele seu amigo metido a rato de
academia? Sim, o advogado. Ele é o melhor, não? — Colocou a
mão na cintura e sorriu para a parede. — Eu até poderia o convidar
para sair, mas estou focada no trabalho novamente. Não se
preocupa, quero o contato dele para ajudar a nossa filha.

— Não precisa! — sibilei e voltei a comer, a ansiedade


tomando o melhor de mim.

— Isso, me envie uma mensagem com o contato dele. Vou


ver certinho e depois te conto. Sim, vou aceitar a sua ajuda
financeira, é justo dividirmos.

— Mãe! — chamei-a alto, ela encerrou a ligação e ficou


olhando para o aparelho. — Matias está envolvido, ele já disse que
cuidará de tudo.

— É uma maravilha ter um homem ao seu lado te dando


apoio, mais ainda quando seus pais fazem o mesmo, filha. —
Mostrou a tela do celular para mim e vi o nome de alguém. — Você
não perderá seu estágio nem sua vaga na faculdade por conta de
alguém com inveja das suas conquistas. Poderia ser médica,
escolheu enfermagem e vem essa zinha...

— Está bem, mãe. Obrigada. — Fui abraçá-la e terminei de


comer a chipa. — Tudo confirmado para o sábado?

— Sim. Comprei o que precisa para impressionar minha mãe


e Marina. — Afastei-me e voltei para a mesa em busca de outro
alimento. — Tem pão de batata que você adora.

— E os anjos dizem amém.


Encontrei o que foi oferecido e continuamos nossa conversa
focadas no final de semana. Vez ou outra ela soltava uma
exclamação indignada sobre a minha professora, mas eu ria,
apreciando essa diferença de comportamento materno. Em outras
épocas, ela me acusaria de tudo e eu teria que resolver. Naquele
momento, ela assumiu a postura de mãe, que independente do que
a filha fizesse, estaria ao seu lado em defesa da sua felicidade.

Deixei de ir à faculdade no outro dia com a desculpa de que


arrumaria os fundos da casa para minha tia e vó. Lavei a mesa
empoeirada, limpei o quintal que há muito tempo não era tocado e
conferi os ingredientes. Minha mãe não tinha esquecido nada no
supermercado.

Falei com Matias por mensagens, o detetive tinha conseguido


falar com a mãe de Rebeca, mas ela pediu um tempo para
responder. Sobre o meu processo, não havia nada formalizado e
meu namorado estava de prontidão para contra-atacar. A chefe
Quênia enviou um abraço por ele e que sentia minha falta, bem
como seu Wilson. Tive vontade de o visitar, não havia nada que me
impedisse de falar com ele como sua convidada.

Dormi no sofá, assistindo uma série médica com temporadas


infinitas e não me permiti sofrer por conta do estágio. Teria que
voltar a viver e enfrentar o que me aguardava. Como adulta,
reclamaria para continuar na minha posição de estudante. Minha
vida pessoal não era impedimento para que exercesse minha
profissão com maestria.

De manhã, minha mãe acordou bem cedo e começou a


preparar o gromelão, receita tradicional da sua avó com
descendência alemã. Parecido com um escondidinho, ele precisava
de batatas, carne moída e muito amor.

— Sua avó o faz mais mole, eu gosto de duro — comentou


colocando farinha enquanto misturava a batata e o leite.

— O da vó é gostoso, mas eu prefiro o seu. — Beijei sua


bochecha e fui atender a campainha, que havia tocado.

Tia Marina e vó Carmem estavam no portão esperando para


entrar. Cumprimentei-as com abraços e ajudei a matriarca da família
caminhar enquanto me perguntava sobre a minha saúde. Suas
recomendações e preocupações não me afetavam mais, enxergava
que nada mais era que a forma de demonstrar afeto. Como minha
mãe, ela tinha suas peculiaridades.

A mesa do fundo foi posta, as visitas se sentaram nas


cadeiras de madeira e começamos a falar sobre minha faculdade
enquanto minha mãe concluía o que precisava na cozinha.

— E está conseguindo conciliar todos os seus horários? —


minha tia perguntou.

— Sim. Faço matérias de vários semestres, mas ainda acho


tempo para almoçar no meu pai, inclusive.

— E ele estava com outra mulher enquanto morava nessa


casa? — Vó Carmem demonstrou insatisfação. — Sempre falei para
a sua mãe que ele não prestava.

— Ele é meu pai — soei tranquila, mesmo que no meu peito


doía saber que ela não gostava dele.
— Igualzinho o seu avô. Ainda bem que com Marina,
consegui a salvar antes que fosse tarde demais. — Revirei os olhos
para o pensamento retrógrado da minha avó e encarei minha tia,
que de uma hora para outra demonstrou emoção. — Nenhum
homem é bom o suficiente para você, minha filha. Nem para Joana.
Eles precisam beijar o chão que vocês pisam.

Vi tia Marina se levantar e ir para cozinha enquanto outro


assunto era iniciado. Não dava para julgar a vovó, que além de viver
em outra época, pelo o que eu lembrava, seu pai era muito rígido.
Moravam em uma fazenda, trabalhavam no campo e se casou com
o primeiro homem da cidade que surgiu na sua vida.

— Traga uma água para mim, minha neta — vovó exigiu e me


levantei para ir até a cozinha. Não tinha ninguém, servi um copo e
escutei um choro baixo vindo da sala.

— É a sua segunda chance, Marina. Ter uma filha é


maravilhoso — minha mãe falou empolgada.

— Como ela vai olhar para mim e me perdoar? Nossa mãe


nunca reconheceu meu relacionamento, nem minha filha. Agora ela
vem... — minha tia voltou a chorar.

— Você a rejeitou uma vez, ela está no direito de fazer o


mesmo. Pelo menos, vocês estarão em pé de igualdade e poderão
recomeçar. Dê uma nova chance a você mesma, a mãe sempre
será contra, mas eu e Yasmin não.

— Fiquei de dar uma resposta para o tal detetive, segunda-


feira eu faço a ligação. Foram quinze anos longe, desde os seus
quatro anos naquele orfanato perto do colégio da Yasmin. Sempre
sonhei em cruzar com o caminho dela um dia...

Minha mente fez o cálculo mental, um filme passou pela


minha cabeça e as nuvens, que nublavam meu juízo,
desapareceram. Como não me lembrava dessa criança? Em que
ponto me perdi que não reconheci minha própria prima?

Ela era compatível, por Deus!

O copo escorregou da minha mão, cacos e água se


espalharam pela cozinha. Minha mãe foi a primeira a chegar na
porta para me acudir, mas estava atordoada, sentia que meu
coração ia sair pela boca se eu falasse algo.

Minha tia apareceu logo depois que minha mãe gritou para a
minha avó que estávamos todas bem, tinha sido apenas um
acidente. Percebi semelhanças de Rebeca em Marina que eram
óbvias, mas nunca pareceu tão intenso quanto agora.

— Você escutou? — tia Marina sussurrou.

— Rebeca Chagas é minha melhor amiga e salvou minha


vida com sua medula — falei sentindo mãos e pés suando. Foi a vez
da minha mãe ter a ficha caída, olhou de mim para a irmã várias
vezes enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas.

Será que meu coração aguentaria mais uma revelação como


esta?
Abraçada a Matias, em sua cama, escutávamos uma música
suave ao fundo. Estava tendo uma festa no salão do seu prédio e
mesmo estando tão baixo, conseguíamos distinguir o que tocava.

“Porque eles dizem que lar é onde seu coração está


inalterável

É onde você vai quando está sozinho

É onde você vai para descansar seus ossos”

Home, cantado por Gabrielle Aplin embalou nossas carícias e


pensamentos longe. Dormiria com Matias essa noite, iria para a
faculdade com toda a coragem e bravura que existia em mim.
Depois seguiria para o hospital e com meu namorado, buscaríamos
sua irmã para visitar minha tia.

Céus, Rebeca era minha prima, eu não conseguia acreditar.


Estava perdida em qual direção tomar com Rebeca, se a amizade
continuaria apesar da nossa nova conexão. Matias continuaria ao
meu lado, mas a insegurança queria dominar.
Como a música dizia, “Contanto que estejamos juntos,
importa pra onde vamos?”

— Eu te amo — falei para preparar a conversa.

— Também te amo. — Beijou minha testa. — Mas não é isso


que você quer falar.

— Claro que quero e... — Respirei fundo. — Será que


Rebeca ainda vai me ver da mesma forma?

— Aquela menina sempre foi especial. E ela queria tanto ter


um vínculo forte com você, que não bastou doar a medula óssea,
mas ser cunhada e agora prima. — Apertou-me em seus braços. —
Tenho certeza de que ela vai vibrar intensamente.

— Será necessário fazer teste de DNA, certo? Por que não


fazer antes do encontro?

— É apenas uma formalidade, moranguinho. Você mesma


encontrou as semelhanças, não há motivo para dúvidas. Com o que
ela trabalha?

— Professora de artes. Ela era professora e, atualmente, faz


muitos bicos, ainda mais por essa especialização não ser tão
valorizada. Tinha pouco contato com ela por conta disso, minha mãe
morria de medo que eu seguisse por esse caminho alternativo.

— Que obsessão da sua mãe pela medicina.

— Acho que era mais pelo status e não a profissão em si.

— Importante é que no final, você está aqui.


Beijei seu peito e o apertei, ainda queria falar mais sobre as
possibilidades do dia de amanhã.

— E se ela quiser saber sobre o pai? Não há nada dele, nem


minha avó quer saber. — Lembrei do quanto minha tia repudiou
dizer o nome dele.

Depois de tudo revelado no sábado, interagimos com minha


avó e esperamos que ela dormisse o sono da tarde para
conversamos entre nós três. Mostrei fotos, contei a história da
minha vida enquanto doente que afastou todos ao meu redor.

Para tia Marina, Rebeca era apenas dela.

— Isso é algo que poderá ser conquistado aos poucos. Vai


dar tudo certo, você vai ver. — Virou seu corpo e ficamos frente a
frente. — Quer comer algo antes da segunda rodada?

— Insaciável! Já estou bem servida. — Ri alto quando


começou a me fazer cócegas. — Tudo bem, entendi, vou comer
uma fruta antes de dormir.

Saí da cama fugida, peguei uma camiseta dele no guarda-


roupa e fui até a cozinha me servir. Logo ele veio atrás, apenas de
cueca, para nos servir um chá gelado.

— Precisamos marcar seus exames de imagem — falou


distraído.

Nem respondi, ainda mais quando o interfone tocou tirando a


nossa atenção. Peguei duas maçãs, duas bananas e coloquei em
cima da mesa, para o esperar falar com o porteiro.
— Pode mandar subir, por favor. — Ele desligou com um
olhar sombrio em minha direção. — Vamos nos vestir, Nadja está
subindo.

— O quê? Por quê? — Segui-o até o quarto, buscando as


roupas que estava assim que cheguei no seu apartamento. — Você
a convidou?

— Sim, quero dizer, não! — Matias colocou um short, depois


a camiseta que eu tinha vestido e me encarou balançando a cabeça
em negação. — Meu advogado entrou em contato com ela esse
final de semana, ela disse que falaria diretamente comigo, só não
achei que seria agora.

A campainha do apartamento soou, nós dois seguimos para a


sala e fiquei ao lado do sofá, esperando a vinda de um monstro.
Ajeitei o cabelo sem ver se estava bom o suficiente e Nadja
apareceu.

Percebi a dor no seu rosto, olhou de mim para Matias, que


vinha ficar ao meu lado e suspirou.

— Serei breve. — Cruzou os braços e direcionou seu olhar


para mim. — Vou engavetar o processo administrativo, mas você
terá que refazer essa matéria no próximo semestre. Desista do
estágio, eu não irei te passar ou aprovar que fique na oncologia.

— Quem está sendo antiética agora? — Matias jorrou


sarcasmo no seu questionamento.

— E se ano que vem você for a supervisora de estágio


novamente? — questionei, mesmo sabendo que cederia apenas
para encerrar esse contratempo na minha vida. Ela também lutava
por seu pedaço de amor, estava resgatando a dignidade de mulher
rejeitada.

Havia muitas coisas importantes para lidar, uma ex-namorada


ciumenta que se aproveitou da sua posição superior a mim não
deveria me fazer perder tempo. Ela ganharia essa batalha, mas a
guerra era minha.

— Você vai terminar seu estágio e ela vai te avaliar


corretamente! — exigiu Matias, me encarando indignado.

— Nessa, eu prefiro perder, Tias. — Voltei a olhar para Nadja.


— Não vou trocar de faculdade. Posso perder um semestre, mas é o
máximo que posso lhe dar.

— Meu doutorado foi aprovado, em alguns meses não


precisarei mais lidar com vocês. Sejam felizes e todas essas
baboseiras que um dia você me prometeu.

— Para, Nadja! Nunca falamos sobre isso, nem te apresentei


aos meus pais! — soltou irritado, apertei o seu braço e o quis socar
por querer pisar numa ferida aberta. Duas verdades estavam
expostas, escolhemos uma delas para acreditar. Nem certo nem
errado, apenas necessitava de fim.

— Também desejo sucesso no seu doutorado. Segunda-feira


vou te entregar uma carta formal sobre a minha desistência do
estágio. É o suficiente?

— Sim — respondeu não parecendo vitoriosa, apesar de ter


tudo o que pediu.
— Não engavete o processo que você criou. Jogue fora,
queime, delete...

— Se não for pelo bom senso, seja por caridade, professora


Nadja. — Dei um passo para frente, tampei Matias para que a
conversa fosse apenas por nós duas. — Já tive uma doença grave
que, por mais que tenha me curado, ela sempre será um fantasma
na minha vida e na de quem me ama. Não crie outro, você tem esse
poder.

— Que seja. Se não me entregar amanhã, aguarde


convocação para prestar esclarecimento na universidade.

Barrei Matias de me ultrapassar. Vi-a se retirar do


apartamento, mas não sem antes olhar tudo ao redor, e bater à
porta, me fazendo quase cair no chão de alívio. Abracei Matias e
respirei fundo várias vezes, ele estava comigo, nós estávamos bem,
uma situação complicada a menos para pensarmos.

— Nunca tive tanta raiva de alguém — ele desabafou ainda


nos meus braços.

— Então liberte esse sentimento, porque se existe algo, bom


ou ruim, é porque a ligação ainda é forte.

— A única pessoa que preciso me conectar é você. —


Ergueu-me em seus braços, minhas pernas envolveram sua cintura.
— Banho de sal grosso?

— Comer! Meu chá gelado vai precisar refrigerar.

Fiz bico e ele mais que depressa correu para a cozinha. Ainda
bem que o clima mudou drasticamente em poucos segundos,
porque ninguém deveria ter o direito de tirar a nossa paz, muito
menos abalar o amor que existia há mais tempo do que o
relacionamento anterior.

Malfeito feito, desfeito, seguimos a vida.


Entrei no hospital com um sentimento saudoso ao mesmo
tempo que desprendido. O meu dever parecia cumprido quando
cumprimentei todos os colegas de trabalho, inclusive a enfermeira
Maria, que foi a minha dedo-duro. Não tinha feito nada de errado, a
culpada de tudo isso era o amor.

Como dizia na música de Legião Urbana: “Quem um dia irá


dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração? E quem irá
dizer que não existe razão?”

Deixei uma carta solicitando dispensa do estágio, por razões


pessoais. Protocolei com a professora Nadja e esperava que fosse
nossa última interação. Como no apartamento de Matias, ela não
parecia satisfeita, mas fez questão de rasgar os papéis contendo as
informações usadas para o tal processo administrativo, na minha
frente.

Troquei mensagens durante o dia com Rebeca, ela sabia que


Matias tinha uma novidade para ela, mas que só contaria depois
que saísse do hospital. Minha tia não respondeu nenhuma
mensagem que enviei, nem para confirmar se poderíamos ir à sua
casa.
Enquanto o final do expediente não havia chegado, fui
autorizada por Quênia para ir ver seu Wilson. Ele foi o paciente que
mais me marcou e com certeza sua passagem na minha vida fez a
diferença, mesmo eu ainda não sabendo qual. Estava levando
comigo um pedaço de amor dele, esperava ter deixado algo meu
também.

Bati na porta, coloquei minha cabeça para dentro e o esperei


me autorizar entrar. Não era mais uma funcionária, minha posição
não deveria ser imposta.

— Oh, Yasmin. — Gemeu e tentou se sentar.

— Posso entrar? — questionei preocupada com sua tentativa


frustrada e gemidos de dor.

— Sim, pode. Me ajude, por favor.

Prontamente atendi, ergui a cabeceira da sua cama e fiquei


ao seu lado quando ele buscou minha mão para segurar. Seu
semblante estava mais sereno do que o de costume, porém, as
olheiras pareciam mais profundas e arriscaria dizer que perdeu
peso.

— Está se alimentando bem? — perguntei com um sorriso.

— O tempero daqui está cada vez pior. Comida de hospital


tinha que ser melhor, já reclamei e sempre vem a mesma gororoba.

— Pelo visto, a ajuda psicológica continua ignorada.

— Quem precisa disso, quando se tem dor 24 horas por dia?


— Apontou para o soro. — Eles ainda ficam regulando remédio para
mim, você poderia ver para facilitar minha vida. Eu já sofri demais.

— Saí do estágio, hoje sou apenas uma visita.

— Fiquei sabendo. — Acreditava que era a primeira vez que o


tinha visto sorrir. — Você está namorando o doutor, estão todos
comentando.

— Sim, mas não foi o motivo maior para eu me afastar. — Por


hábito, conferi as gotas do soro, depois o encarei.

— Poderia ter avisado antes — repreendeu.

— Tive um final de semana cheio. Estou aqui hoje e espero


que o senhor fique bem, sem aqueles pensamentos destrutivos. —
Apertei seus dedos. — Faça algo de bom, ainda é possível.

— Preciso ir ao banheiro. — Começou a tossir e gemer, o


movimento do diafragma deveria lhe causar a pior das dores
intestinais.

Ajudei-o a sair da cama, ajudei-o a se locomover com o poste


de soro até o banheiro e lá o deixei para ir atrás de alguém
autorizado para o auxiliar nessa tarefa.

— Oh, Nina, me perdoe — ele choramingou baixo antes de eu


sair. Ele ainda se sentia culpado por exigir que a namorada do
passado fizesse um aborto, não sabia o que falar para que
convertesse tudo isso em força.

Avisei a chefe Quênia, fui me sentar nos bancos da recepção


e senti meu coração palpitar ao conferir o celular. Minha tia havia
confirmado o horário da nossa visita, quis saber o que comprar de
comida para oferecer.

Passos apressados me chamaram atenção, percebi que


todos seguiam o quarto de Wilson e fiz uma breve oração. Se fosse
para ser o seu momento, que sua alma estivesse em paz. Se ele
ainda precisava passar por mais, que seu coração perdesse as
armaduras, porque muitos poderiam ajudar, bastava ele se permitir.

Entre conversar com minha tia, Rebeca e até Catarina havia


me encaminhado uma nova mensagem, marcando um encontro,
orei e aguardei. Apesar de termos convivido por pouco tempo, ele
sempre seria especial para mim.

Matias saiu do quarto do paciente, deu algumas instruções e


me viu de longe. Caminhou em minha direção, esperei-o de pé e
recebi um beijo nos lábios como cumprimento.

— Pode ficar tranquila, ele apenas escorregou no banheiro e


deu trabalho para os técnicos e enfermeiros. — Sorriu alisando meu
rosto com os dedos. — Seu Wilson está com um roxo na perna e o
orgulho ferido.

— E xingando todo mundo, imagino — comentei e ele acenou


afirmativo. — Minha tia confirmou e falei com Rebeca.

— Mais trinta minutos e vamos. O médico que cobri esses


dias voltou e pagará os favores para mim.

Ele se afastou, voltei a me sentar e Quênia nos observava. O


olhar sério com uma pitada de chateação se transformou em um
sorriso de lado, satisfeito. Retribuí um pouco acanhada e foquei no
meu celular, minha atenção era para o que aconteceria pela noite.

Recebi ligações da minha mãe nos últimos minutos antes de


sair do hospital, ela parecia nervosa por conta da minha tia não ter
dado notícias. Minha avó não estava sabendo desse encontro e
continuaria assim, até que todas nós pudéssemos estar seguras de
que o passado tinha ficado para trás. Valia o que o presente nos
proporcionava.

Fui com Matias pegar Rebeca na casa dos seus pais. Por
opção dela, seus pais não a acompanhariam para que tivesse a
experiência sozinha, sem se sentir intimidada. Sorridente e
animada, essa não parecia uma garota que conheceria sua mãe
biológica.

— Está tudo bem? — Matias tomou a frente dos meus


pensamentos.

— Não. Estou surtando, mas sabendo que vocês estarão


comigo, eu me sinto bem. Segura. — Cutucou o ombro do irmão. —
Vamos logo, acelera esse carro.

Optei por contar que sua mãe era minha tia quando ambas
estivessem frente a frente. Que a enxurrada de informações caísse
no seu colo de uma vez só, para não criar mais expectativas.

— Cleber me ligou — ela falou durante o percurso, Matias já


sabia o caminho.

— Ainda estão em pé de guerra? — perguntei tensa,


relembrando os momentos de bebedeira, perda de virgindade e a
briga de fofocas ácidas na faculdade.

— Ele pediu uma trégua, queria me levar ao cinema.

— Nós vamos juntos — Matias decretou.

— Claro que não. Como vou dar uns amassos com vocês do
lado? — falou indignada e eu a encarei da mesma forma.

— E você ainda vai ficar com ele? Rebeca, ele disse que você
é fácil!

— Sim, e eu o destruí com o pinto pequeno. Foi uma jogada


de marketing e estamos fazendo as pazes.

— Vou fingir que não estou escutando isso, senão vou


quebrar a cara desse João — Matias resmungou.

— É Cleber. Não fique chamando por outro nome, sabe o


quanto me irrita! — Rebeca rebateu batendo no ombro do seu
irmão.

— Pode deixar, Rebeca Meleca, vou tratar o Luís


adequadamente.

— Pare! — choramingou para nós dois e suspirei aliviada,


porque essa discussão de irmãos fez com que a viagem fosse
rápida e a casa da minha tia estivesse ao nosso lado em pouco
tempo.

O carro parou, Rebeca saiu rapidamente e fui ficar ao seu


lado em frente ao portão da casa simples e acolhedora. Segurei
forte na sua mão, seria seu apoio como ela foi o meu por muito
tempo. Irmã de medula, cunhada e prima, eu estaria ao seu lado
sempre.
Toquei a campainha ainda grudada em Rebeca e vi minha tia
aparecer emocionada na janela. Acenei de forma amistosa, para
mostrar que estava tudo bem, mas ela se demorou nos encarando
de longe.

— Será que ela continua não me querendo? — Rebeca


sussurrou para mim, mas foi Matias que respondeu:

— Lembre-se que se não fosse por ela ter te colocado no


orfanato, você não seria minha irmã. — Segurou na sua nuca e
massageou, era a minha vez de ficar emocionada por conta do
quanto sua fala serviu para mim.

Se não fosse tudo o que passei, não teria cruzado o caminho


dessas pessoas maravilhosas. Sofri, tive minha vida fragmentada
em pedaços perdidos, mas aconteceu como tinha que ser. O amor
se recompôs em meu coração.

— Eu amo você, Rebeca — falei abraçando-a quando percebi


que minha tia decidiu nos receber.

Não respondeu e nem exigi, porque se eu estava prestes a


chorar, imaginava o que estava passando na cabeça dela e de
Marina?
O portão pequeno foi aberto, um soluço soou, depois outro e
as duas se abraçaram sem nem mesmo darem oi. Matias envolveu
seu braço no meu ombro e me puxou para me acudir. Nem tinha
percebido que também estava chorando de soluçar.

— Me perdoa, me perdoa — tia Marina repetiu várias vezes e


não havia resposta ou réplica, apenas lágrimas. Afastou Rebeca,
segurou seu rosto com as mãos e digitalizou cada parte. — Você é
linda, fizeram melhor do que eu mesma poderia.

— Eu tenho uma família maravilhosa graças a Yasmin e seu


colar da sorte. — Mostrou o pingente, aquele pedaço de amor em
forma de objeto que nos uniu de forma rebelde e minha tia riu um
pouco o segurando.

— Eu que ajudei sua mãe a escolher esse presente. — Olhou


para mim e quase desmaiei quando Rebeca também o fez,
espantada. Não imaginava que deixar para esse momento fosse
pior do que ter contado antes. — Era o que eu pensei em te dar
antes de nos separar, mas não queria te prejudicar com minhas
escolhas erradas.

— Podemos entrar e tomar um pouco de água? — Matias


interveio, percebendo o clima confuso se formando.

— Ah, claro, claro! — Tia Marina começou a andar, depois


voltou para pegar na mão de Rebeca, mas a soltou, ainda estava
lutando contra a culpa que carregava. Lembrei-me de Wilson e o
quanto seria interessante seu encontro com a tal mulher que ele
namorou. — Desculpe a bagunça, pintar me ajudou a não ficar uma
pilha de nervos até o horário chegar.
Tintas espalhadas, respingos no chão e um quadro confuso
nos recepcionou. Fazia tempo que não falava com esse lado da
família e percebi que teria motivos de sobra para visitá-la.

Rebeca se sentou, Matias se colocou de um lado dela


enquanto fiquei do outro. Tia Marina foi para a cozinha e apertei a
mão da minha prima, que não me rejeitou, para meu alívio.

— Não tive coragem de te contar sobre o nosso parentesco


— confessei baixo.

— Você sabia há quanto tempo? — questionou séria.

— Um dia depois que Matias recebeu a notícia que o detetive


achou sua mãe, minha tia veio em casa e conversou com minha
mãe.

— Então, mesmo se você não tivesse me encontrado no


orfanato, nós seríamos amigas, porque... somos primas! — atestou
o óbvio.

— E eu? — Matias questionou com diversão, tentando


diminuir a tensão. — Você chegou em casa, me abraçou e espirrou
em mim... minha vida não seria a mesma sem você, Rebeca
Meleca. — Passou o dedo no nariz dela e fez cara de nojo, nos
fazendo rir.

Minha tia voltou para a sala com água e pão de queijo.


Sentou-se em uma cadeira a nossa frente e observava nós três
juntos com um sorriso saudoso. Estendi a mão para pegar um copo
de água e entreguei para Rebeca, que bebeu dando várias goladas
longas. Tomei um e percebi que nada seria dito se eu o Matias não
iniciasse a conversa.

— Então... — falei olhando para meu namorado, que já se


servia de um pão de queijo encarando o quadro. — Está pintando o
quê, tia?

— Só o que veio à mente mesmo. — Deu de ombros


desprezando sua própria arte.

— Como... por quê... o que aconteceu? — Rebeca questionou


insegura, voltou a apertar minha mão, para meu consolo de que não
estava brava comigo.

— Seu pai não te quis — falou igualzinha à minha avó, até


arregalei os olhos por conta da semelhança. — Tentei te criar
sozinha, mas eu ainda morava com minha mãe e... sua avó é difícil,
pergunte a Yasmin.

— Vó Carmem é tradicional, faz o melhor gromelão da família,


depois da minha mãe. — Forcei um sorriso, ao ver a confusão da
minha amiga. — Vai dar tudo certo. Dona Joana você conhece,
agora é da família, tudo misturado.

— Por que não me falou que éramos primas antes de


chegarmos? — Soltou sua mão e bateu no meu braço, alterada.

— Nem se compara com o que você está passando, mas eu


também estou confusa por saber que você é minha parente. —
Tentei mostrar meu lado, não justificar.

— Yasmin passou por muito, Rebeca — minha tia falou.


— Eu sei, porque foi minha medula que a salvou — falou com
arrogância e voltou a pegar na minha mão com força. Céus, não
sabia que era tão forte. — É tão estranho te chamar de mãe. Por
que não lembro de você?

— Não sei. — Abaixou a cabeça e olhou para as mãos, que


apenas naquele momento percebi as manchas de tinta. — Nunca
quis seu mal, por isso sacrifiquei o meu amor para que você tivesse
uma segunda oportunidade.

— Obrigada, apesar do amargor que sinto ao dizer isso. —


Abraçou Matias e beijou seu rosto. — Esse é meu irmão mais velho,
ele foi maravilhoso comigo em todos os momentos da minha vida.
Minha mãe e meu pai também são perfeitos, mas não vieram,
porque não queria atrapalhar minha aproximação. Senti culpa por
querer te conhecer.

— Talvez eu não valesse a pena. Era mãe, deveria lutar mais


por você. — Tia Marina me encarou em busca de ajuda, apenas
sorri com pena, porque essa era uma luta dela. — Poderia ter
insistido com o seu pai...

— E onde ele está? Quem é? — Rebeca perguntou


apressada, que agora soltou de mim e de Matias para enfrentar sua
mãe biológica.

— Perdi o contato...

— Qual o nome dele? Eu não quero saber apenas de você,


mas dele também! — alterou o tom e coloquei a mão nas suas
costas para a acalmar.
— Ele te rejeitou! Para mim, aquele homem morreu no dia
que me obrigou a abortar. — Levantou-se indignada, esse era um
assunto delicado.

— Tudo bem, preciso respirar. Vamos falar de outro assunto?


— Rebeca virou para mim e forçou o sorriso. — Conta mais sobre a
família, o que eu perdi?

Mesmo me sentindo pressionada, contei um pouco de como


estavam sendo as minhas aulas de faculdade, as visitas que fiz na
casa da minha avó, quando a tia Marina mudou de casa e o bebê,
que por algum motivo, tinha esquecido. Vi Rebeca quando nasceu
apenas uma vez e depois, no orfanato.

— Desculpe por não te reconhecer. Mas... — falei com pesar.

— Sim, eu lembro desse dia e queria ir para a sua casa, como


se você fosse minha família. Dias depois, minha mãe me adotou. —
Rebeca virou para a dona da casa, que tinha ficado para escanteio.
— Você deveria conhecer meus pais e participar de um dia de
voluntariado. As crianças iriam amar pintar como você.

— O quê? — Ela pegou um copo com água e bebeu com


nervosismo.

— Minha mãe não é contra Rebeca ter contato com sua mãe
biológica. Dona Betânia é maravilhosa e poderá te incluir nas
atividades da família se você quiser.

— Você me quer? — Vi quando a súplica de Marina para que


a resposta fosse sim emocionou as duas. Olhei com expectativa
para Matias, torcendo para que ele pudesse fazer algo caso uma
negativa fosse dada.

— Vamos começar nos conhecendo. Preciso aprender a lidar


que tenho duas mães e isso é bom, ao invés de pensar que você
me rejeitou. — Rebeca olhou para Matias. — Ver o lado bom, tinha
que ser assim no final das contas, não é mesmo?

— Te vejo com 80 anos depois dessas palavras. Ainda bem


que ainda sou um jovem doutor na flor da juventude. — Beijou sua
testa e olhou para tia Marina. — Tem mais desses? Estou faminto.

— Peça uma pizza e vamos deixar trabalho para Dalva. —


Rebeca se levantou e olhou para mim. — Ela já te aceitou como
dona do apartamento?

— Não cruzei com ela ainda. — Virei-me para a dona da


casa. — Marcamos outro dia, pode ser?

— Eu marco. Sou grandinha e vou aprender a lidar com mãe


Betânia e mãe Marina do meu jeito. — Rebeca pegou o celular,
anotou o número e saiu da casa sem nos esperar.

Suspirei aliviada, acreditava que o saldo da situação fosse


bom no final das contas.

— Pode passar no laboratório amanhã? Será necessário


fazer o exame de sangue. Formalidades — Matias falou e Marina
acenou afirmativo.

— Claro, mesmo sabendo o resultado. — Colocou a mão na


boca e deixou as lágrimas caírem. — Ela é linda, e Yasmin estava
ao seu lado esse tempo todo.
— E duvido que seria amiga dela se não fosse as nossas
circunstâncias. — Abracei-a com força. — Ligue para minha mãe,
ela está preocupada.

— Farei. Obrigada.

Encontramos com Rebeca ansiosa por ir embora, entrou no


carro e ficou em silêncio até o apartamento do seu irmão, onde
desatou a falar sobre a faculdade, Cleber e o quanto ela conseguia
separar amor e profissão.

Cada um lidava de uma forma com as pedras no caminho.


Algumas enfeitavam belas paisagens e outras eram chutadas para
bem longe. Com certeza, a situação era digna de um monumento
cheio de fotos de recordação e tinta.
— Bom dia, Dalva — cumprimentei a mulher que cuidava do
apartamento de Matias com um sorriso.

— Bom dia, senhora — respondeu séria enquanto lavava a


louça que deixamos do dia anterior. Por enquanto, nós
continuávamos na educação.

Abri a geladeira, peguei um pouco do chá gelado e fui para a


sala, onde Rebeca ainda dormia, depois de ficar assistindo filme.
Seu dia tinha sido cheio de emoção, ela merecia descansar, mas
ainda teríamos aula.

— Acorda, dorminhoca — falei baixo e chacoalhei seu ombro.


Ela espreguiçou e virou para o outro lado. Peguei o copo, coloquei
em seu pescoço e ela se assustou, me fazendo derrubar tudo no
chão.

— Ah, sua doida! — Sentou-se bocejando e encarando o


lugar da sujeira. Ainda bem que o copo era de plástico, apenas o
tapete e parte do sofá foi prejudicado. — Tudo isso para dar
trabalho para a Dalva? — Olhei-a com incredulidade. — Pare de
implicar com ela, por favor.

— Sua sorte é que somos primas, senão te jogava pela janela


— ameacei levantando-me ao som do seu riso. Vi a moça aparecer
na sala e juntei as mãos como um pedido de desculpas. — Ignore o
que ela está falando, eu não fiz de propósito.

— Tudo bem. — Evitou me olhar, foi até onde estava o


estrago e se surpreendeu com o abraço de Rebeca.

— Dalva, Yasmin veio para ficar. Daqui a pouco os dois estão


morando juntos e você terá dois patrões. — Congelei no lugar
enquanto elas me encaravam com diversão. — Yasmin Chagas,
olha como combina?

— O que combina? — Matias apareceu com o cabelo úmido e


abotoando a camisa social. Aproximou de mim primeiro, beijou
meus lábios e seguiu para a cozinha. — Nossa, você está cheirando
a chá.

— Eu derrubei. — Olhei para Dalva, que até parecia outra


pessoa. — Quer que eu ajude a limpar?

— Tomem o café da manhã, depois limpo tudo aqui.

Fui para a cozinha, sentei-me à mesa e fui servida por um


sorridente dono da casa. Piscou um olho quando me senti
envergonhada, isso me lembrou do que fizemos antes de dormir,
dos sons contidos e o banho.

— Eu te levo até a faculdade — ofereceu.

— Sim, eu quero carona. Vou para casa só depois da aula,


porque se encontrar minha cama, vou dormir novamente. — Rebeca
sentou-se numa cadeira e bocejou. — Parece que fui atropelada.
— Estou sentindo um cheirinho azedo vindo de você — o
irmão provocou, para minha diversão. Tomei seu copo e me senti
vitoriosa, já que era ele que costumava roubar meu chá.

— Economizando água, estou na vibe sustentável.

Começamos a rir e Dalva colocou mais comida sobre a mesa


para podermos nos fartar. Como no início do nosso relacionamento,
troquei olhares com Matias, toques furtivos por debaixo da mesa e
carícias sem que ninguém pudesse ver.

Era o nosso mundo e eu amava o quanto nos conectávamos


tão bem.

Rebeca foi até o banheiro social e eu segui para o banheiro


da suíte, onde havia uma escova de dentes para mim. Matias logo
surgiu ao meu lado e nos encarando pelo espelho, executamos a
tarefa juntos, como se fosse parte da rotina.

— Você poderia vir mais vezes, dormir juntos, compartilhar


escova de dentes... — Cuspiu a pasta na pia e fiz o mesmo.

— Agora que não terei mais estágio, consigo mais tempo livre
quando não estiver focada nos trabalhos.

— Traga algumas roupas e seu material, tem um computador


no quarto de visita, pode usar.

Meu coração acelerou sem nenhum motivo aparente, ou era


apenas suas palavras indicando algo mais do que estava na
superfície. Minha mente não entendia, mas o que fazia todos os
outros órgãos do meu corpo funcionarem – o coração – esse estava
mais do que ciente sobre suas intenções.
Abraçou-me pelas costas, olhei em seus olhos pelo espelho e
me apressei em limpar a boca. Parei minhas ações para pensar e
agora, estava desconcertada.

— O que foi, moranguinho? — perguntou beijando meu


pescoço.

— Vamos logo, iremos chegar atrasadas! — Rebeca gritou do


lado de fora do quarto e Matias me virou para ficar de frente para
ele.

— Melhor irmos — sussurrei.

— Quero você comigo, Yasmin. Não só em momentos


contidos, mas todas as noites e manhãs, vendo-a estudar ou
apenas dormindo.

Inclinou para tocar meus lábios, abri a boca e o deixei


aprofundar o beijo com gosto mentolado. Ele se afastou rindo, olhou
para trás e não me soltou.

— Vou ter que mudar seu apelido de Rebeca Meleca para


empata...

— Estou pronta, vamos! — Impedi que concluísse, empurrei-o


da minha frente e envolvi meu braço no de Rebeca. — Antes de
voltar para casa, vá no laboratório para o exame de sangue com
minha tia.

— Preciso ficar brava com você ainda sobre não me contar


que somos primas. — Peguei meu material e conferi Matias atrás de
nós com um sorriso que só eu sabia do que era capaz. — Vou
guardar para quando for meu aniversário e você não querer ir
comigo para um clube das mulheres.

— Você precisa de outra amiga, irmã — Matias falou com


seriedade e revirei os olhos para a provocação dos dois.

— Estou precisando concluir minha missão. Vai me ajudar a


falar com Marina para saber sobre o meu pai? — Rebeca perguntou
para mim e acenei afirmativo, mesmo sabendo que esse era um
assunto delicado para a minha tia.

Entramos no elevador, senti o abraço lateral de Matias me


reconfortar e refleti sobre o comportamento da minha prima. Talvez,
ela recebeu bem demais a notícia ou era apenas a negação
camuflando seus verdadeiros sentimentos.

— E a terapia? — perguntei para ela quando chegamos no


subsolo.

— Vou continuar com a tal Microfisioterapia. Semana que vem


já tenho sessão marcada, e você?

— E uma coisa substitui a outra? — Eu quis saber mais.

— Não sei, mas é o que dou conta no momento. — Abriu a


porta do carro e fez uma cara tranquila. — Talvez eu entre para uma
aula de yoga.

— E você consegue ficar cinco minutos de olhos fechado e


parada? — Matias ligou o carro e nos acomodamos corretamente
nos bancos.
— Diga duvido, irmãozinho. Farei com que coma suas
palavras com ketchup.

— Ainda bem que vocês se amam — brinquei.

— E nós te amamos. — Minha mão foi apertada pela de


Matias, colocada em sua perna e como era de costume, seguimos
unidos até a faculdade.

Rebeca foi a primeira a se despedir e sair do carro, só


naquele momento que percebi que estava sem os materiais. Toquei
no rosto do meu namorado, beijei seus lábios e seu celular tocou
nos interrompendo.

— Depois nos falamos, é do hospital — dispensou-me suave


colocando o celular no ouvido.

Abri a porta, coloquei um pé para fora e congelei ao ouvir o


nome de Wilson. Ele parecia estar em uma crise, a presença do
médico estava sendo requisitada com urgência.

Fechei a porta e não demonstrei minha preocupação.


Caminhei abraçada com o que eu tinha em mãos e senti a emoção
dominar o meu peito ao pensar que poderia perder um paciente, que
nem era mais meu. A questão maior era que ele merecia se dar uma
segunda chance como minha tia teve e Rebeca também.

Precisava vê-lo antes que o pior acontecesse.


Observei o paciente dormindo induzido pelos analgésicos que
tomou e suspirei em derrota. Apesar dessa luta, de ser apenas um
coadjuvante, sentia-me mais vitorioso quando eles superavam seus
medos do que quando se rendiam a eles.

Aprendi, há muito tempo com meu pai, que a cura era relativa.
Para alguns, melhorar era estar sã, para outros, era a própria
doença e ainda havia aqueles que obtinham a vitória na morte. A
luta, para aquele que enfrentava a doença, era sempre uma longa
jornada.

Eu era apenas o médico, aquele que indicaria o caminho e


estava à serviço da vida. Tinha limitações, minhas próprias crenças
e mesmo que Yasmin tenha sido a única paciente pela qual me
envolvi muito mais do que o necessário, cada um que passava na
minha vida era único e me marcava de uma forma.

O senhor Wilson me ensinou a respeitar o tempo de cada um.


Não queria a ajuda de ninguém que não fosse os remédios e
assustou quase todas as enfermeiras que o atendia. Queria a
solidão, estar sozinho. Yasmin e Quênia eram as únicas que tinham
penetrado as cascas grossas que cercavam a mente e o coração
daquele homem.
Meu expediente estava quase chegando ao fim e fiquei na
dúvida sobre o deixar aqui ao invés da UTI. Não havia nada de
grave, era apenas seu corpo que estava desistindo aos poucos de
se manter firme.

Batidas soaram na porta, olhei para ver quem entrava e não


me surpreendi ao encarar os olhos mais amoroso que já tinha visto
na vida. Yasmin tentou disfarçar quando saiu do meu carro hoje de
manhã, mas ela se preocupava com o homem.

Como meu pai me ensinou, daria a informação que precisava


para Yasmin com empatia e profissionalismo.

— Não consegui evitar — falou baixo e chegou até mim, sem


me tocar ou olhar, seu foco era em quem estava na cama. — Como
está?

— Sinais vitais baixos, muita dor e fraqueza. Os exames de


sangue deram anemia, tomou uma bolsa de sangue, mas...

— Ele se culpa tanto, Tias — falou tocando a cama com


carinho. — Contou sua história e queria dizer a ele o que aconteceu
ontem. Se minha tia e Rebeca puderam ter uma segunda chance,
ele também.

— Faça isso. — Toquei seu ombro e beijei sua cabeça. —


Tenha em mente que ele é apenas um paciente.

— Não mais, porque sou visitante e não a enfermeira.

Iria sair do quarto e deixar os dois sozinhos, mas encostei


meu ombro ao lado da porta e observei minha mulher pegar a
cadeira, sentar-se ao seu lado e tomar sua mão com carinho.
Se era possível se apaixonar um pouco mais por ela, estava
acontecendo naquele momento. Tendo uma mãe amorosa e um pai
dedicado em tudo o que fazia, não deveria me surpreender que
alguém como Yasmin fosse criar raízes no meu coração e de lá,
mesmo passando um ano longe de mim, continuaria fortemente
conectado a ela.

— Oi, seu Wilson. É Yasmin. — Alisou sua mão e tentou não


chorar. — Fiquei preocupada com o senhor. Espero que não se
incomode com minha visita. Tenho algo importante para te contar.

Colocou o cabelo atrás da orelha e o conferiu dos pés à


cabeça. O homem havia perdido peso, cada evacuação estava
sendo torturante para ele. Essa doença nos levava a perder um
pouco da dignidade, nem ao banheiro poderíamos ir sem sentir dor.

— Eu tenho uma prima. Confesso que não lembrava da sua


existência até que tudo veio à tona. Minha tia Marina teve um
relacionamento e tentou criar a criança sozinha, já que seu
companheiro não a queria. — Senti um nó na garganta, Rebeca era
forte por causa de suas origens. Desde pequena sendo rejeitada e
hoje, estava se transformando em uma mulher maravilhosa. Quando
que minha pequena Rebeca Meleca cresceu tanto? — Hoje elas
fizeram o teste de DNA e o próximo passo será a busca por esse pai
que a rejeitou. — Vi uma lágrima escorrer do seu olho. — Mesmo
sem conhecer, já perdoei esse homem. Ele merece uma segunda
chance tanto quanto você. A história é parecida e os sentimentos
são os mesmos. Acredite, você também pode ter a oportunidade de
fazer diferente, mesmo que o seu bebê não tenha nascido.
Cruzei meus braços, depois os descruzei e não acreditei
nessa coincidência. Mesma história? E se fosse o tal homem? Tanta
culpa nas costas, rejeitou a família e estava disposto a acabar com
sua vida da mesma forma que ele induziu alguém a fazer isso com
um feto. Conhecia a história de Marina, os dois possuíam a mesma
faixa etária e moravam na cidade por muito tempo.

Será que Yasmin não tinha percebido o quanto o universo


estava conspirando para colocar as pessoas certas no nosso
caminho?

Deixei que os dois ficassem sozinhos, peguei os itens para


fazer a coleta de sangue e não falei com minha mulher, nem ela
tomou nota do que eu estava fazendo. O laboratório que minha irmã
e sua mãe biológica estava fazendo exame era o mesmo que o
hospital tinha convênio. Saí do quarto, fiz a ligação e os contatos
necessário para que mais um teste fosse realizado.

Seria uma culpa difícil de carregar, minha irmã nunca


conhecer seu pai biológico porque eu não consegui o salvar.

Precisei de um minuto na sala dos funcionários para respirar


fundo e não me deixar abalar pelas coisas que eu não tinha poder
de mudar. Fiz tudo o que era necessário, agora dependia de Wilson.

— Pensei que já tinha ido embora e deixado Yasmin —


Quênia falou logo que entrou na sala. Percebeu minha posição de
preocupação e me encarou desconfiada. — O que aconteceu?

— Apenas pensando. — Forcei um sorriso, o que não a


convenceu. — Vou para casa, mas deixei avisado com o pessoal.
Me ligue se algo acontecer com Wilson.
— Tudo bem, doutor. — Apertou meu braço e me puxou para
um abraço de mãe, como ela sempre foi para todos aqui.

Saí da sala com uma despedida murmurada, voltei para o


quarto do paciente e Yasmin estava de pé, olhando para o homem e
deixando as lágrimas escorrerem. Abracei-a e aos poucos a tirei de
lá.

Apoiada em mim, saímos do hospital e criava planos sobre


ela dormir novamente na minha casa. Proteger e lhe dar bons
momentos, era tudo o que eu desejava para ela.

— Pode me dar uma carona para casa? — perguntou quando


chegamos no carro.

— Só se você pegar uma muda de roupa e ir dormir comigo.


— Entramos no carro e ela soltou um riso em meio a sua tristeza.

— Não estou bem para ser companhia. Além do mais, a


última coisa que quero é ter você enjoado das minhas lamúrias por
um paciente.

— Quero tudo. — Beijei seus lábios antes de colocar o cinto e


ligar o automóvel. — Ou você já se esqueceu que me apaixonei pela
minha irmã por causa da meleca de nariz?

— Só você, Tias. — Suspirou e fechou os olhos. — Desse


jeito vou acreditar que quer que eu more na sua casa. Deixei
roupas, já tenho uma escova de dentes...

— E qual seria a resposta? — questionei despretensioso, por


mais que dentro de mim gritava para fazer direito dessa vez. O
pedido de namoro foi no susto, esse passo não poderia ser tão
simples.

— Precisamos desacelerar. Se não fosse meu sistema


reprodutor comprometido, estaríamos com um filho a caminho. —
Ela pegou a minha mão e trouxe para a sua perna, como eu fazia.
Não me intimidava com o nosso futuro, a dúvida só se fez presente
quando ela estava longe. — Pode ser?

— Claro. Eu te ajudo a fazer uma mala hoje e um dia na


semana você dorme na casa da sua mãe. — A intenção era
provocar indignação, mas ela riu mudando o clima tenso que
estávamos.

— Vou te ensinar o que é ir com calma, doutor Matias.

— Tomando banho ou na cama, de preferência.

No som do carro tocava Audioslave, Like a Stone. Cantei o


refrão e acalmei nossos ânimos com a lentidão da batida, que
combinava muito com o seu pedido de ir suave.

“Em sua casa

Eu quero estar

Quarto por quarto

Pacientemente

Vou esperar por você lá

Como uma pedra”


Trouxe nossas mãos unidas para a minha perna e iniciamos
uma conversa sobre sua faculdade e trabalhos em andamento.
Deveria ter contado sobre o exame de sangue e minhas suspeitas,
mas aguardaria o momento que tivesse o resultado. Se fosse
negativo, apenas deixaria de lado, mas eu sentia, minha intuição era
forte e estava gritando que tive sob a minha supervisão o pai da
minha irmã.

Deveria acreditar que fiz tudo o que estava em minhas mãos,


foi o meu melhor, agora era a vez dele reagir.
Acordei na minha cama, percebendo que estava
desacostumada com meu próprio canto. Queria aproveitar o início
do final de semana conversando com minha mãe e explicando o que
ela já vinha percebendo nos últimos dias desde a minha última visita
ao senhor Wilson.

Fiz minha higiene matinal antes de ir para a cozinha e


encontrar dona Joana animada batendo um bolo. Não lembrava
quando tinha sido a última vez que fez, mas era algo bom de se ver.

— Matias, Rebeca e sua tia vão tomar um lanche antes do


almoço aqui em casa. Vá por uma roupa.

— Como assim? — Ia me sentar, mas fui ao seu lado para


entender o motivo desse evento. — Eu não sabia...

— Liguei agora cedo para todos. Eles estão a caminho e você


ainda veste pijama.

— Queria falar com você. — Fiz bico, porque isso mudaria


todos os meus planos.

— Não precisa da minha autorização, Yasmin. Por mais que


me doa te ver crescendo e encontrando um caminho longe de mim,
preciso te liberar. — Desligou a batedeira e ergueu o pote em minha
direção como se autorizasse minha ida a uma festa da escola. —
Quer raspar?

— Você me libera? — falei pausadamente.

— Sim. Matias é um rapaz estável, de boa família e que te


dará um bom futuro.

— Você está falando igual a vó Carmem. Não serei


sustentada pelo marido, irei atrás de um emprego.

— Minha filha, faça diferente da sua mãe. — Despejou a


mistura em uma forma e entregou a colher de silicone junto com o
pote para mim. — Está feliz?

— Por você ter me deixado um monte de mistura? Claro —


ironizei e comecei a comer, tendo dificuldade para digerir não só o
alimento, mas as palavras. — Matias quer que eu vá morar com ele.

— E você? — questionou colocando o bolo para assar.

— Acho muito cedo.

— Então, não vá. Ele não tem o direito de te pressionar —


decretou soltando o ar aliviada. — Acho que vou cancelar o lanche.

— Um lado meu quer, o outro me segura. — Terminei de


raspar o pote e o coloquei na pia. — Acabamos de nos entrosar
melhor, mãe. Teve a doença, sua separação...

— E os meus problemas não são seus. — Segurou meus


braços e me deu um olhar profundo. — Eu dou conta.
A campainha tocou, ela me virou para ir trocar de roupa e foi
atender a porta. Suas palavras se repetiram na minha mente várias
e várias vezes. Ela dava conta, minha preocupação era exagerada.

Coloquei um vestido simples e quando voltei para a cozinha,


Rebeca e Matias estavam me aguardando. Logo a campainha tocou
novamente e depois de cumprimentá-los, abri a porta para tia
Marina entrar.

Sentados à mesa e esperando o bolo terminar de assar,


minha mãe serviu café, chá, pão de queijo e pão francês. Foi legal
ver a interação da minha prima com sua mãe, o abraço e as duas
sentadas uma do lado da outra. Ainda existia algo de estranho no ar,
mas elas estavam se dando uma oportunidade.

A segunda chance que o seu Wilson deveria se dar.

— Bem, chamei vocês aqui de manhã para dizer o quanto sou


feliz por ter vocês como minha família — minha mãe começou
olhando para todos. — Não sou muito de demonstrar meus
sentimentos, então, isso é tudo.

— Ainda não acredito que tenho minha filha ao meu lado —


tia Marina olhou para Rebeca e depois para a sua irmã. — Obrigada
pelo convite, eu não sabia em qual momento a convidaria para um
café.

— Durante a semana estou enrolada na faculdade, mas no


final de semana, estou livre. — Minha prima sorriu constrangida.

— Se tiver comida, me convide também, sou muito legal —


Matias brincou e recebeu um revirar de olhos de Rebeca.
— Percebi vocês enrolando, por isso antecipei. — Minha mãe
indicou com o queixo a minha direção. — E precisava dar minha
benção para meu genro. Cuide bem da minha filha.

— Vocês vão se casar? — Rebeca gritou e meu rosto


esquentou.

— Chamei-a para morar comigo e pedi autorização para dona


Joana — meu homem parecia nervoso pela primeira vez.

— Sem um pedido de noivado? — Minha amiga-prima esticou


a mão e não deixou ninguém falar. — Faça direito dessa vez. Sem
aproveitar minha deixa, sei que pode ser mais romântico.

— Será interessante. — Tia Marina olhou de nós para a filha.


— E você, tem algum namorado?

— Não — ela respondeu.

— Cleber — falei junto dela, numa tentativa de me vingar. Às


vezes, a adolescente que havia em mim dominava a mulher em
resolução de vinte e seis anos.

— Ele é um bom rapaz? — a mãe biológica de Rebeca


questionou e soltei um bufo junto de Matias. — O que foi?

— Não ligue para eles. Eu sou solteira, Cleber é apenas um


colega de sala apaixonado por mim.

— Isso é Fake News — comentei pegando um pão de queijo


para comer.

Entramos em uma conversa amistosa sobre mentiras


propagadas pela internet, nossa faculdade e a época que minha
mãe e tia estudavam. Matias saiu da cozinha com o celular na mão
quando minha mãe tirou o bolo do forno. Ele voltou depois de alguns
minutos com seriedade demais para que continuássemos a
conversa. Na hora me veio o pensamento sobre seu Wilson, acabei
me blindando sobre ele por conta do quanto estava sofrendo.

Minha mãe o encarou questionadora, ele demorou um pouco


para dizer algo:

— Tenho um contato no laboratório e pedi que me avisasse


quando os exames estivessem prontos.

— Pela sua cara, até parece que Marina não é minha mãe
biológica. Eu demito vocês como parentes — Rebeca brincou,
mesmo que seu olhar não parecesse divertido.

— O de vocês deu positivo, era de se esperar. — Matias


pegou minha mão por debaixo da mesa e apertou. — Fiz algo além
do que deveria e gostaria da autorização de Marina para falar. —
Olhou para minha tia, que estava branca. — Eu sei quem é o pai.

Ele não precisava dizer mais nada para que minha ficha
caísse e eu lembrasse da minha última visita a seu Wilson. Matias
tirou seu sangue, as histórias semelhantes, o nome da namorada
dele era Nina, a culpa, nossa conexão...

Comecei a chorar e minha mãe me consolou, já que as duas


interessadas pareciam em choque olhando para Matias. Todos da
minha família estavam tão perto, sempre estiveram.

— Como o achou? — tia Marina perguntou com um fio de


voz.
— Estava sob os meus cuidados no hospital.

— Podemos ir embora, Tias? Eu não quero ainda. — Rebeca


se levantou e acenei afirmativo, para que ele fosse junto com a irmã.

— Depois eu te ligo — Matias falou para mim, se despediu


das mulheres e acompanhou uma Rebeca chocada.

Levantei-me para pegar um copo de água para todas e


aguardei, ansiosa, por Marina querer saber mais do homem que a
feriu. Ela poderia não lhe dar uma segunda chance, mas eu
continuava com o mesmo pensamento de sempre, ele merecia
conhecer a filha que rejeitou, mas sobreviveu.

— Sabe quem é? — foi minha mãe que questionou.

— Sim, eu o tratei na oncologia. Ele está muito mal. — Olhei


para a minha tia e vi as palavras não ditas brilhando em seu olhar.
Ainda tinha muito rancor e não a julgava.

— É grave?

— Como eu estava, mãe. Esperando um milagre ao mesmo


tempo que desistia da família e de mim mesma.

— Você não é como ele. — Minha tia se levantou da cadeira


alterada.

— Acho que nosso lanche acabou, minha filha. — Franzi a


testa para a minha mãe e ela olhou para a porta. — Pode ir para o
seu quarto, eu e sua tia vamos conversar.

Levantei-me sentindo uma profunda tristeza. Dei passos


lentos e escutei um fungar atrás de mim.
— Não faça as malas hoje. Vá para Matias na segunda-feira,
tudo bem?

Olhei por cima do meu ombro e concordei com a cabeça,


naquele momento, não conseguia pensar em nada mais do que em
orar. Que o seu Wilson pudesse ter sua segunda chance. Não só
ele, mas Rebeca e tia Marina precisavam também.
Dias se passaram desde aquele lanche da manhã com as
pessoas que eu amava. Não houve mudança de casa. Segui minha
rotina de faculdade e casa da minha mãe, já que não tinha mais
estágio. Meus horários não cruzaram mais com os de Matias,
falávamos por mensagens e poucas vezes por telefone. A distância
estava se formando e não conseguia impedir que aumentasse cada
vez mais.

Rebeca estava sempre em contato, falava sobre Cleber estar


se arrastando aos seus pés e o quanto ela estava se vingando.
Deixou escapar que gostava dele, mas ainda não voltou a confiar.
Era compreensivo, ainda mais com o tanto de informação que tinha
em sua cabeça. Ainda bem que pelo lado de dona Betânia e doutor
Paulo, ter a mãe biológica dela por perto era um adicional valioso.

Estava na sala, assistindo televisão, quando minha mãe


chegou no serviço e se trancou em seu quarto. Levantei-me quando
escutei certos barulhos e logo a vi surgir... espetacular.

— Aonde a senhora vai? — questionei indignada, que mal


tinha chegado do serviço e já saia, com uma roupa elegante,
daquelas que usou quando tinha recém se separado do meu pai. De
novo, não. — Mãe...
— Recomendações terapêuticas, minha filha. Socializar e
cuidar da minha felicidade. Deveria tentar. — Conferiu o que tinha
na pequena bolsa que estava na sua mão, passou por mim e foi
para a porta de entrada de casa.

— Há tantas coisas acontecendo, mãe. A tia Marina com a


Rebeca, a saúde do seu Wilson...

— E minha vida bem como a sua. — Deu passos em minha


direção e senti o cheiro forte do perfume. — Pelo visto, vou repetir
várias vezes. Eu dou conta.

Abri a boca para rebater, porque não fazia sentido algum


essas palavras. Todos precisavam de ajuda, inclusive ela... ou era
apenas eu esquecendo das minhas obrigações.

Nem me beijou quando saiu ao escutar a buzina do carro lá


fora. Queria chorar, espernear e me indignar, mas tive forças apenas
para pegar o celular e ligar para Matias. Se ela poderia sair e nem
dar satisfação, eu faria o mesmo.

Depois de três ligações e duas mensagens de texto sem


resposta, percebi que afastei aquele que eu amava, novamente.
Meu namorado me chamou para morar com ele, não tomei
nenhuma atitude quanto a isso, pelo contrário, só dei a entender que
não era o momento.

Não deveria ser movida pela raiva ou a vingança, mas foram


elas que me fizeram ir até meu quarto, pegar uma mala e colocar
minhas roupas dentro. Não foram todas, apenas o necessário para
sobreviver alguns dias longe de casa. Se minha mãe dava conta,
que lidasse com minha ausência também.
Coloquei tudo do banheiro em um saco de supermercado,
meus materiais em uma mochila de mão e chamei um motorista de
aplicativo para me levar. Apesar de Matias não ter respondido,
estaria sentada na sua porta esperando sua chegada, anunciando
que aceitava seu convite.

Poderia ser pelas razões erradas, mas dentro do meu peito


vibrava por finalmente ter agido pensando apenas em mim. Essa
era a minha vida, o pedaço de amor que estava resgatado, era o
mais importante. Deixar de lado foi um lapso que estava preparada
para corrigir.

Engoli em seco por lembrar da situação que minha tia vivia, a


dúvida sobre ir lá falar com seu Wilson ou apenas deixá-lo com o
que restava da sua saúde. Apesar de termos um vínculo, estava
invadindo um espaço que era de Marina e Rebeca. Tinha que
respeitar suas decisões.

Joguei longe os pensamentos que só remetiam aos outros, se


continuasse focada na vida alheia, perderia a minha.

Com a ajuda do motorista, coloquei minhas coisas no porta-


malas e segui até o apartamento de Matias. Minha mãe surtaria
quando não me visse lá, bem como minhas coisas ou... apenas
levantaria as mãos para os céus, agradecendo que eu finalmente a
deixei em paz.

Pelo visto, ela estava disposta a se livrar de mim.

Respirei fundo várias vezes para me centrar e voltar a repetir


o mantra na minha mente sobre minha idade, que era mulher e
arcava com as responsabilidades sobre as minhas ações. Iria morar
com Matias, dividiríamos uma vida e seríamos felizes, porque eu
confiaria na capacidade de cada um ao meu redor de lidar com seus
problemas.

Rebeca tinha seus pais adotivos como suporte.

Minha tia Marina tinha minha mãe.

Seu Wilson tinha os profissionais de saúde para lhe dar


atenção. Poderia ter a família, mas foi ele quem os afastou.

Poderia colaborar com todos eles do meu lugar, estando feliz


com o homem que me escolheu.

O carro parou, tive ajuda com a mala e sacolas até a portaria


e me surpreendi ao ser liberada sem nem interfonar para o
apartamento de Matias. Meu coração acelerou, arrastei tudo comigo
para o elevador e depois no andar do seu lar. Toquei a campainha
várias vezes, sentido as lágrimas escorrerem por me sentir vazia,
sozinha.

Toquei a maçaneta e a porta estava aberta. Seria para mim?

Entrei chamando Matias, minha voz ecoou pelo local que já


era tão familiar para mim. Fui até seu quarto, abri o guarda-roupas e
percebi que havia um espaço vazio nele... era para mim.

Enchi-me de coragem e esperança quando busquei meu


celular e tentei contato com Matias, dessa vez, celular desligado.
Quase liguei para Rebeca, comecei a ficar preocupada com sua
falta de comunicação, mas desisti. Iria esperá-lo, deveria estar em
alguma emergência ou plantão. Por mais que enrolou Nadja no
relacionamento, comigo sempre foi aberto e responsável. Tinha que
acreditar no seu amor por mim. Como poderíamos iniciar uma vida
juntos sem o principal pilar de um relacionamento?

Confiança.

Guardei minhas coisas com pressa, invadi seu banheiro com


minhas coisas femininas, o suporte do banheiro com meus produtos
e fui até a cozinha, pegar o chá gelado para me acalmar. Era nosso
agora e para não ser um fardo nas suas costas, deveria procurar um
emprego.

Por que não tinha pensado nisso antes de vir para cá? Já
estava surtando com a possibilidade de parecer interesseira, por
mais que não havia um pingo de cobiça em mim nesse sentido.

Ao invés de dois copos do chá, tomei um. No mínimo, poderia


economizar nas despesas e quem sabe, ajudar com a limpeza.
Olhei ao redor e lembrei de Dalva, a mulher que era tão entrosada
com Rebeca, mas ainda tinha ressalvas comigo. Eu mudaria essa
situação o quanto antes.

Andei pelo apartamento, tomei um banho e vesti uma


camiseta de Matias enquanto tentava ligar para seu celular. Evitei
chamar o hospital ou qualquer outra pessoa, mesmo que meus
dedos pareciam ter mais forças que meu coração.

Fuçando nos armários de cabeceira da cama, encontrei um


papel dobrado e sorri ao perceber que era a redação de Rebeca,
aquela que li no hospital, quando a leucemia não era apenas uma
conhecida, mas parte da minha vida.
“E onde está o presente da vida em toda essa narrativa?

Na conexão inquebrável que as duas teriam através do


príncipe que dedicou sua vida para fazer o bem. No final das contas,
cada um dos envolvidos se tornaram pedaços. Roubados ou
compartilhados, cada ato de amor conectava essas almas. Quando
a garota precisou, a princesa entregou o seu pedaço. Agora, era a
vez da adolescente – que hoje já é mulher – retribuir.

Enquanto houvesse amor para compartilhar, a princesa não


se cansaria de juntar os pedaços de amor para, enfim, se
encontrar.”

Coincidências... pedaço de amor... meu presente da vida.


Essas eram as pessoas que eu queria ter comigo. Algumas lágrimas
escorreram pelos meus olhos ao reler a redação e percebi que não
havia me unido apenas a Matias, mas toda a grandiosidade que era
a sua família.

Rendida pela exaustão mental e a pontada de dor de cabeça


do lado esquerdo, fiquei na cama forçando meus olhos abertos, mas
logo se fecharam. A última coisa que lembrava era das últimas
palavras da minha mãe, que se repetiam várias e várias vezes na
minha mente.

Eu dou conta.

Se ela conseguia, eu também era capaz.

Acordei assustada quando braços pesados me rodearam e


um corpo bem sólido se firmou atrás de mim.
— Shiu... pode continuar a dormir — o som da voz de Matias
era um bálsamo de calmaria para minha ansiedade.

— Tentei ligar para você — falei forçando meu corpo a virar,


mas ele me prendeu em seus braços e com um suspiro, aceitei. Ele
estava ali, comigo.

— Meu celular acabou a bateria, fiquei em cirurgia e Wilson


ainda nos deu um susto. Só agora consegui ir embora, amanhã
estou de folga, um colega vai me cobrir.

Apertei suas mãos, que me rodeavam e tocavam meu corpo


com carinho. Céus! Ainda havia dúvidas se isso era uma indicação
de que estava fazendo o certo ou o errado.

— Está tudo bem com ele?

— Sim, na medida do possível — comentou cansado. — O


que são todas aquelas coisas no banheiro? — Bocejou e fungou
meu pescoço, meu corpo inteiro se arrepiou em apreço.

— Essa sou eu invadindo o seu espaço. Tive sorte que a


porta estava aberta, senão iria me encontrar no lado de fora em
meio a sacolas.

Sua risada silenciosa reverberou no meu corpo. Minha


cabeça e pescoço foram beijados várias vezes até que Matias voltou
para sua posição e bocejou mais uma vez.

— Boa noite, moranguinho. Vou providenciar uma chave do


apartamento para você, apesar de que para o meu coração, você
sempre teve entrada livre.
— Precisamos conversar sobre as despesas...

— Lembre que eu estou há mais de vinte horas acordado,


tenso e cuidando de doentes. Preciso do seu boa noite e uma
declaração de amor.

Virei meu rosto e o beijei nos lábios. Paz e lar, era tudo o que
eu almejava.

— I love it when you call me moranguinho... — Cantei. — Te


amo, meu chá gelado.

— Eu te amo também, moranguinho — respondeu satisfeito,


com a voz embargada e nossos corações acelerados, em sincronia.

Esse era o início das nossas vidas, com assuntos inacabados


de quem nos cercava, mas com amor por onde a gente passava.
Não era ruim fragmentar o sentimento tão puro que nos regia, o
amor distribuído em pedaços se tornava um amontoado do bem no
meu peito. Todos os pedaços da minha vida foram recuperados.
Mulher, filha, profissional e amiga, eu compartilhava o meu amor.

Rebeca foi feliz em dizer que “cada um dos envolvidos se


tornaram pedaços. Roubados ou compartilhados, cada ato de amor
conectava essas almas”. Perdi o ano de estágio, estava preocupada
com a solução dos conflitos da minha prima e sua família biológica,
mas enquanto pensasse em mim e confiava que ela daria conta,
tudo ficaria bem.

Eu dou conta. Você dá conta.


Alguns meses depois...

A música animada da festa junina contagiava todo mundo. De


criança a adulto, os voluntários, funcionários e as crianças do
orfanato se divertiam com as pescarias, comidas típicas e
brincadeiras.

Logo seria iniciado as quadrilhas, duas infantis e uma, dos


adultos, organizados por Rebeca. Ela estava cada vez mais
empenhada em seguir os passos de dona Betânia, ainda mais tendo
ajuda de tia Marina com as aulas de artes dos pequenos.

Com um vestido típico e enfeites na cabeça, caminhei entre


as pessoas com um pacote de pipoca na mão. Era estranho ter meu
pai e sua namorada grávida no mesmo lugar que minha mãe. Cada
um estava em um canto, mas faziam questão de prestigiar os
eventos que eu participava.

— Sua mãe está namorando? — Rebeca chegou ao meu


lado, quase me fazendo derrubar a pipoca.

— Não que eu saiba. — Busquei minha progenitora com o


olhar e percebi que seu colega de trabalho a olhava muito
intensamente enquanto conversava com minha tia.
— Para! Claro que sabe. Olha aquele olhar...

— Parece o Cleber te olhando? — Indiquei com a pipoca o


namorado da minha prima, que ainda não tinha assumido o
relacionamento, por mais que estivessem sempre juntos. Cuidando
da pescaria, o rapaz sempre encontrava tempo para buscar sua
amada e sorrir para ela. — Quando vai assumir o namoro?

— No dia que você se casar com Matias.

Revirei os olhos, porque essa era uma pressão que sofríamos


dos nossos pais. Morando juntos, o próximo passo era formalizar
juridicamente. Como poderia assinar um papel, que compartilhava
os bens em comunhão, se nem emprego eu tinha? Fiz alguns bicos
como cuidadora no hospital, mas não contribuía para as despesas
da casa, ainda.

— Vamos mudar de assunto? — sugeri comendo pipoca.

— Quero adotar uma dessas crianças.

Comecei a rir, porque Rebeca não sabia ser suave, tudo era
intenso. Ela ficou na minha frente com as mãos na cintura e olhar
chateado, não era divertido a sua intenção, mas o momento que
isso surgia.

— É sério! — reclamou chateada.

— Quando concluir sua faculdade, dividir o mesmo teto com


Cleber, se for ele o amor da sua vida, então faça isso. Acho que a
escolhida ou escolhido será muito bem cuidado e amado.
— Pensei em falar com a mãe... a mãe Marina. — Fez bico e
olhei para a pobre da minha tia, que se derretia ao ouvir minha
prima a chamando assim. Tão envolvidas no projeto, tinha certeza
de que não haveria negação para o seu pedido.

— Por saber que ela não negaria, te aconselho a terminar a


faculdade primeiro. Dê tempo.

— Igual você está fazendo com o pobre do meu irmão?

— É, realmente, Tias é um coitado. — Apontei para meu


namorado, que estava disputando com as crianças o jogo da argola.
Ganhava todos e ainda contava vitória, sua criança interior tinha
saído para brincar.

A música tinha parado e a diretora anunciou no microfone o


início da quadrilha. Também agradeceu a participação de todos,
especialmente da dona Betânia e suas contribuições.

Enchia-me de orgulho saber que eu também fazia parte dessa


família tanto quanto a minha. Chamei mamãe com um aceno, para
participar e foi seu acompanhante que a fez se levantar para ir. Meu
pai acenou negativo antes que eu fizesse o convite e dei de ombros,
tinha que aceitar que estavam ali por mim, mesmo ainda tendo a
mágoa entre eles.

Caramba, nem conseguia pensar que eu teria um irmão ou


irmã por parte de pai. Quando ouvia os outros falar soava tão
comum, mas vindo de mim era... estranho. Ainda bem que o bebê
demoraria para nascer, seria o suficiente para me acostumar com a
ideia e acolher esse ser que compartilhava o DNA do meu pai.
Apressei-me para chegar próximo ao palco, Matias chegou
rapidamente e me abraçou por trás. Acompanhamos as duas
quadrilhas infantis, rimos e nos emocionamos com a homenagem
que eles fizeram para os voluntários. Cada um deles estavam ali por
algum motivo e mesmo assim, eram pedaços de amor prontos para
serem acolhidos por uma boa família, como a de Rebeca.

Vi Cleber e Rebeca abraçados, minha prima-cunhada estava


mais emocionada que todos e tinha razão. Ela cresceu aqui,
perseverou com seus pais adotivos, conheceu a mãe biológica e o
pai...

O assunto que envolvia o senhor Wilson me tocava


profundamente. Sua família estava lidando como davam conta e,
sem julgar, eu tinha notícias dele um dia após o outro. Não saber o
final da sua história nada mais era do que a representação do
esperar, o teste da minha fé de que eles dariam conta. Rebeca
Chagas era intensa e esse pedaço resgatado na sua vida era uma
dádiva, cabia a ela aproveitar o momento.

As crianças deram espaço para os adultos, nos posicionamos


para a quadrilha atrás de quem puxaria, mas Rebeca nos colocou
como os primeiros. Matias me olhou com carinho antes da música
começar e puxar a fila. Meu coração acelerou pela exposição, não
por ser o centro das atenções, mas porque havia algo mais que não
tinha percebido.

Fizemos vários passos conhecidos de uma quadrilha e


quando foi feita a grande roda, lá estávamos nós, cercados de
pessoas a caráter e amor.
A música parou, a diretora surgiu com o microfone e entregou
para Matias. Já me sentia emocionada o suficiente para começar a
chorar mesmo não sabendo o que ele havia preparado.

— Boa noite. Sou Matias Chagas, filho do doutor Paulo e da


amorosa mãe Betânia. Ah — apontou para Rebeca, que era
acolhida por Cleber —, também irmão da Rebeca Meleca.

As pessoas riram e eu continuava a chorar.

— Eu te amo, Yasmin. — Segurou minha mão e se ajoelhou,


arrancando suspiros e exclamações de quem estava ao redor. — Na
saúde ou na doença, na alegria e na triste, quero você ao meu lado,
mesmo você achando que o que temos seja suficiente.

— Tias... — resmunguei limpando as lágrimas e escorrendo


mais delas.

— Casa comigo? Só me falta isso.

Agachei para o abraçar, as palmas soaram e deixei que o


choro emocionado me tomasse. Foi tanta coisa que passamos para
estar aqui, pessoas que cruzaram o nosso caminho. No amor e na
dor, continuamos juntos.

Afastei-me para que fosse posto e anel no meu dedo.


Levantamos e trocamos um beijo apaixonado, ao som de assobios e
uma chuva de arroz, para a minha surpresa.

Ri quando a nossa música tocou e Matias a cantou contra os


meus lábios.

— I love it when you call me moranguinho...


— Sim! — gritei e era muito mais que a resposta que Matias
esperava.

Sim a nosso relacionamento.

Sim aos meus pais.

Sim a vida.

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