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Reintgen, Scott
Nyxia [livro eletrônico] / Scott Reintgen; tradução Alexandre Boide. - 1. ed. - São Paulo:
Plataforma21, 2018. - (Trilogia Nyxia; v. 1)
1,2 Mb; ePUB
18-16051 CDD-028.5
Na manhã em que vou ser liberado para voltar à ação, acordo com
um vulto na porta. Com movimentos suaves como seda, Marcus
Defoe entra no quarto. Não tinha visto Defoe durante toda a minha
recuperação. Olho ao redor à procura de Vandemeer, mas ele não
está por perto. Defoe para ao pé da cama.
– Já recuperou a sua saúde? – ele pergunta.
Seu tom faz parecer que estamos em um ponto de ônibus e que
ele está falando sobre o tempo.
Faço um gesto positivo com a cabeça.
– Estou pronto.
– Ótimo. Você está ficando para trás.
Tudo dentro de mim grita para que eu pergunte o tamanho do
prejuízo. Ou reclame que não é justo, que fui vítima de uma trapaça.
Mas ele não está nem aí para isso. Para ele é tudo um jogo.
Permaneço em silêncio. Tento parecer despreocupado. Quero que
ele acredite na minha capacidade de recuperar cada ponto. No
fundo, desejo sua aprovação.
– Estou aqui para uma visita pessoal – avisa Defoe. Ele passa o
dedo na tela portátil, e uma porta se abre à minha direita. Passei a
semana inteira neste quarto sem ao menos reparar na existência
dela. Um guarda da Babel empurra uma figura amarrada e
encapuzada para dentro. Meu coração dispara no peito. O que é
isso?
As pernas do sujeito cambaleiam, e ele cai de joelhos no chão da
enfermaria. Defoe tira o capuz. Os cabelos grisalhos estão suados.
O rosto gordo está com a barba por fazer. Vejo o sangue pingar de
seu nariz, manchando o colarinho branco. É um dos funcionários
designados para assessorar os competidores. Nunca me preocupei
em marcar a cara deles. Com exceção de Vandemeer, para mim são
todos iguais.
– Emmett – diz Defoe. – Esse é o dr. Karpinski. Foi ele que tentou
te matar.
Fico todo gelado por dentro. Uma noite sem luar, uma caverna
obscura.
Karpinski choraminga. Esse som mexe com uma parte ainda mais
fria e obscura dentro de mim. É um homem robusto de 40 e poucos
anos. Por que iria querer me matar? Nada aqui me parece certo. Ele
aparenta ser uma alma torturada, mas não estou nem aí. Quero que
ele seja punido pelo que fez.
Defoe está de olho em mim.
– Ele apagou as provas em vídeo, mas todos os rastros apontaram
na sua direção. É ele quem cuida de Roathy e Isadora. Ele queria
ajudá-los interferindo na competição.
Minha mão instintivamente se coloca sobre o lugar onde a lâmina
atravessou minhas costelas. Karpinski não pede perdão nem
misericórdia. Só respira fundo e me encara com olhos vazios de
corvo. Defoe joga alguma coisa que para no pé da minha cama.
Uma espada. Os olhos sem vida de Karpinski se voltam para lá.
– É assim que as coisas vão funcionar, Emmett – Defoe explica. –
Na China, o dr. Karpinski seria julgado e executado. Na maior parte
dos Estados Unidos, seria condenado a prisão perpétua sem direito
a condicional. Se fosse um adamita, seria mandado para as Tarefas
Eternas do Criador.
Minha mente não para de girar. O que Defoe está querendo? Tento
não olhar para a espada aos meus pés. Tento não pensar em qual
seria a sensação de tê-la nas minhas mãos vazias.
– E, apesar de existirem vários tratados internacionais sobre o uso
do espaço, estamos meio fora de jurisdição aqui. Este é o nosso
território, e as nossas leis são diferentes.
– Como assim? – pergunto com frieza.
– Nós recorremos à Lei Primeva nesse caso. Sabe o que significa?
– O primeiro. O que veio primeiro.
– Exatamente. Nesse caso, o primeiro a ser afetado. O principal
atingido. O dr. Karpinski planejou e executou um atentado contra
sua vida. Você é o primeiro. Portanto, o julgamento cabe a você.
– Não estou entendendo.
Defoe aponta com o queixo para a espada.
– Você acha que o dr. Karpinski merece morrer?
Cerro os punhos.
– Sim.
– Então pegue a espada.
Eu me agacho para apanhar a arma. O cabo é de nyxia, mas a
lâmina não. A luz se reflete na superfície prateada quando empunho
a espada. Karpinski merece morrer, mas eu não sei se mereço
matar. A espada é muito leve; seria bem fácil. Cravo os olhos no
médico.
– Por que fez isso?
Ele olha para o chão.
– Eles me obrigaram. Me ameaçaram. Não sei.
– O dr. Karpinski está se esquecendo de que é um adulto – diz
Defoe. – Mesmo que seus recrutas tenham pedido, cada um faz
suas próprias escolhas. Ele é o responsável.
Olho de novo para Defoe.
– O que acontece se eu não fizer isso? Ele vai a julgamento?
Defoe balança negativamente a cabeça.
– Lei Primeva. Se a parte mais prejudicada perdoar, nós também
perdoamos.
– E então? Ele vai ficar trancafiado?
– Claro que não – Defoe responde, como se fosse óbvio. – Ele
volta ao trabalho.
Aperto com mais força o cabo da espada.
– Isso não é justo.
– Então faça ser justo – ele retruca. – Não dá para reclamar de
injustiça se o juiz é você.
– Ou seja: ou ele morre pelas minhas mãos ou sai livre? É burrice.
– Se quiser dar a sentença, você vai ter que executar.
Meus ombros sentem o peso do desafio de Defoe. Ele está
pedindo muito. O dr. Karpinski fica me encarando, parecendo quase
um fantasma. Trata-se de mais um teste. A Babel quer saber que
tipo de juiz eu sou. O crime de Karpinski é um fato sinistro que vai
continuar me machucando por dentro enquanto ele estiver vivo. Um
potencial assassino vai estar solto por esses corredores. E pode
atacar de novo. Da próxima vez, pode ser bem-sucedido.
– Esse é o único jeito? – Ponho a lâmina contra seu pescoço.
Karpinski nem ao menos reage ao seu toque gelado. Uma parte
dele já está morta. Defoe faz que sim com a cabeça.
– O único jeito – ele repete.
Respondo com um aceno. A decisão é fácil. Você tem o melhor de
mim e o melhor dela. Isso só pode ser verdade, porque foi meu pai
que falou. Largo a espada. A arma tilinta no chão ao lado de
Karpinski como uma promessa quebrada. Me sinto como se
estivesse devolvendo a arma para Karpinski, virando as costas para
ele e mostrando onde cravá-la em mim. Destruir ou ser destruído.
Mas eu não vou matar por eles. A Babel quer um carrasco. Quer
que eu seja a mão que vai arrancar a uva podre dos seus vinhedos
impecáveis. Eles podem ir para o inferno. Não é isso que meu pai
quer de mim. Tenho a sensação de que ele me aconselharia a não
me rebaixar a esse nível, não importa o que aconteça.
Defoe dá um passo à frente.
– Essa é a sua decisão?
– Sim.
Karpinski evita meu olhar. Seus ombros desabam, junto com o
corpo inteiro. Defoe apanha a espada e admira o fio da lâmina.
– Dr. Karpinski, você obteve sua misericórdia. – Defoe baixa a
espada em um arco casual. A princípio imagino que o golpe tenha
errado o alvo, mas Karpinski grita e o sangue espirra de seu ombro
no piso ladrilhado. Ele não está com as mãos livres para tentar
estancar o sangue. Sua orelha foi arrancada, assim, do nada. –
Você não vai morrer hoje, mas está marcado. Se aprontar de novo,
vai ser lançado no espaço junto com os contêineres de lixo.
Entendeu bem?
Em meio aos resmungos, ele faz um gesto silencioso de
concordância. Defoe limpa a lâmina e volta os olhos para mim.
– Você recebeu alta, Emmett. Pode voltar à competição hoje. Se
nos der licença, eu gostaria de ter mais umas palavrinhas com o dr.
Karpinski.
Suas palavras fazem a porta no fundo do quarto se abrir. No meu
caminho até lá, escuto o grito repentino do dr. Karpinski. Quando
estou quase saindo, percebo que ele está implorando para eu não ir
embora. Eu o deixo naquele lugar terrível.
Ao voltar aos meus aposentos, preciso me esforçar muito para
conseguir acalmar minha respiração. Tenho raiva de Karpinski por
tentar me matar. E de Defoe por tentar me rebaixar a algo que não
sou. Isso é uma injustiça, um ato sinistro, que não tenho como
arquivar. As gavetas infinitas da minha mente parecem pequenas
demais para tanto, apesar de nunca ter dado errado, desde que a
minha avó me ensinou o método.
Eu tinha 9 anos. Estávamos brincando juntos, coisa típica de
meninos. Seis de nós corríamos pelo chão de terra, fingindo que era
grama. Jogávamos com uma bola de futebol americano murcha,
fingindo que estava cheia. Eu era bem rápido nessa época, um
pouco mais rápido e mais forte que os outros. Quando a gente é
criança, nunca se cansa. Continua correndo e rindo da hora que
acorda até a hora de dormir. Então eu corria. Fazia rotas e me
posicionava para receber a bola, sempre pulando um pouco mais
rápido, sempre me safando das tentativas desajeitadas de
marcação. Vários touchdowns depois, eles se irritaram. Começou
com pequenas reclamações. Não é justo, falou um. Você é rápido
demais, acrescentou outro. Meus colegas de equipe me deixaram
na mão. Cinco contra um. Não eram os Manos de Elite, eram só
garotos que moravam perto da minha casa. (Antes de descobrirmos
quem somos de verdade, as amizades acabam se formando por
proximidade geográfica, não por afinidade.)
Nem me lembro de quem me empurrou primeiro. Nem me lembro
do que me xingaram.
Mas nunca vou esquecer o primeiro soco. Veio da minha direita.
Nada estava acontecendo, e no instante seguinte o impacto. Eu saí
girando. Eles vieram para cima de mim. Eu caí. Eles me chutaram.
E assim foi até eu parecer machucado o suficiente, então eles
pararam. Me ajudam a me levantar. Nossa, isso foi um grande erro.
Aos 9 anos de idade não se conhecem as regras. Mais tarde eu
aprendi. Quem apanhou deve continuar no chão; nunca se deve
ajudá-lo a se levantar.
Nem sei se pus as mãos no garoto certo. Só sei que, quando o
peguei, não soltei mais. Só parei de bater quando restamos só nós
dois, a terra e as sirenes. Deu uma baita confusão. Com direito a
queixa, inquérito e coleta de digitais. Eu era novo demais para ser
julgado na corte juvenil, mas não para ser olhado de lado nem para
ouvir o que cochichavam a meu respeito. Tudo isso só alimentou
minha raiva.
Apenas mais tarde minha avó me pegou pela mão, me levou a seu
jardim, que na verdade era um quintalzinho quadrado com uma
cerca enferrujada, e fez eu me sentar na grama. Nós nos colocamos
frente a frente.
– Então, Emmett – ela murmurou –, você está morrendo de raiva,
né?
Comecei a chorar, e ela deixou. Chorar nunca foi vergonha, não na
frente dela.
– Seu avô não viveu o bastante para te ensinar, mas eu vou fazer
isso – ela falou. – Ele tinha motivos para sentir raiva também. A
cada dia aparecia um novo. Mas nem sempre dá para espancar os
motivos. Na maioria das vezes, os motivos dele não tinham nem um
nome. Você me entende.
Na verdade não, mas queria tanto entender que fiz que sim com a
cabeça.
– Ótimo, porque eu não vou falar duas vezes. Então o que seu avô
fazia, todas as vezes que acontecia, era arquivar o sentimento. Às
vezes eu ouvia. “Letra I de injustiça”, ele resmungava. Pensei que
fosse loucura dele, mas não. Ele armazenava tudo. Arquivava. Ele
não se entregava ao sentimento, depois o usava para outra coisa. –
Ela pôs a mão pesada sobre o meu ombro. – Lembre-se disso. Se
você se entregar à raiva, não tem mais volta. É um caminho solitário
e bem longo. Mas, se conseguir encontrar uma maneira de controlar
seus sentimentos, se puder dominar essa raiva, aí você vai se sair
melhor. Então arquive. Por exemplo, esse sentimento pode ficar no
C de covardia. Que tal?
Eu adorei. Depois disso, meu tio começou a me dar aulas de boxe.
Se alguém me xingava na escola, ou me dava uma ombrada na rua,
ou ignorava as minhas mensagens de texto, eu arquivava o
acontecido. Comecei a ficar ansioso pelos domingos. Em meio a
jabs e diretos, abria meus arquivos e despejava no saco de
pancadas toda a raiva que a semana me trouxera. Era uma válvula
de escape. Durante anos, PJ me considerou o cara mais tranquilo
do mundo. Ele sempre perguntava por que eu não ficava mais
aborrecido com as coisas que aconteciam. Você precisa ver a sua
cara, ele dizia. Parece esculpida em pedra. E era.
Eu me recordo disso ao pensar em Karpinski e Defoe. Não posso
controlar tudo o que acontece, mas não sou aquilo em que Defoe
quer me transformar. A Babel pode ter todas as chaves, mas não
sabe o que guardou dentro da jaula. Pelo menos não ainda, porque
logo vou mostrar.
DIA 28, 8h31
A bordo da Gênesis 11