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Nyxia

© 2017 by Scott Reintgen.


© 2018 Vergara & Riba Editoras S.A.

Plataforma21 é o selo jovem da V&R Editoras

Fabrício Valério e Flavia Lago


- Thaíse Costa Macêdo
Carla Bitelli
Fabiane Zorn e Flávia Yacubian
Ana Solt
Gabrielly Alice da Silva
Steve Stone

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Reintgen, Scott
Nyxia [livro eletrônico] / Scott Reintgen; tradução Alexandre Boide. - 1. ed. - São Paulo:
Plataforma21, 2018. - (Trilogia Nyxia; v. 1)
1,2 Mb; ePUB

Título original: Nyxia.


ISBN 978-85-92783-74-7

1. Ficção de fantasia 2. Ficção juvenil I. Título. III. Série.

18-16051 CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:


1. Ficção : Literatura juvenil 028.5
Iolanda Rodrigues Biode - Bibliotecária - CRB-8/10014

Todos os direitos desta edição reservados à


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Para a minha esposa, Katie.
Espero que todas as sequências que a gente escreva tenham o seu
sorriso.
DIA 1, 8h47
A bordo da Gênesis 11

– Todos vocês sabem por que estão aqui.


Somos dez à mesa. Todos assentimos com a cabeça como se
tivéssemos alguma ideia do que está acontecendo.
Oito das pessoas mais ricas do mundo estão do outro lado da
mesa na sala de reuniões. Na noite anterior, usei o celular de PJ
para pesquisar a respeito desse pessoal. Babel Comunicações.
Engoliu o Google em 2036. Um blogueiro afirma que a empresa é
uma pedra no sapato da NASA há décadas. O que quer que esse
pessoal faça, está fazendo em grande estilo. Estão todos com trajes
pretos idênticos. É como se alguém tivesse misturado todas as
versões possíveis de trajes formais. As cabeças são as únicas
coisas que diferenciam os tecidos e os sapatos impecáveis.
Contudo, as luzes, o restante da sala e o mundo estão voltados
para o homem com a palavra: Marcus Defoe. Ele é negro, mas não
como eu. Passei metade da minha vida me sentindo uma presença
ausente, uma noite sem luar. Não consigo imaginar esse cara
aparecendo em nenhum lugar sem atrair todos os olhares. Tudo
nele sugere realeza. Sua postura, o tom de sua voz, seu jeito de
andar. Ele desliza na nossa direção, e a imagem de uma pantera
surge em minha mente. Em meio a tanta elegância e polidez, quase
perdi de vista as garras.
Me inclino para trás e tiro um dos fones da orelha. A música
estava tocando baixinho, mas o garoto asiático ao meu lado fica me
encarando como se fosse a coisa mais barulhenta do mundo. Azar o
dele. Aumento o volume só para irritar. Quando a Babel me
recrutou, disseram que era uma espécie de jogo. Gosto de jogar,
porém gosto ainda mais de ganhar. O cara certinho ao meu lado
sacode a cabeça, irritado, e percebo que já estou a alguns pontos
de vantagem em relação a ele.
Meu fone exala batidas quebradas e vozes antigas. Na escola as
pessoas acham que curto hip-hop por ter um gosto retrô, mas a
verdade é que nunca tive como pagar para ouvir coisas novas.
Quando meu vizinho de mesa me olha feio pela milésima vez, faço
um aceno e abro um sorriso como se tivesse a certeza de que
vamos nos tornar melhores amigos.
– Vocês foram escolhidos para dar início à exploração espacial
mais séria da história da humanidade. Os resultados da missão vão
mudar as perspectivas da nossa espécie. – Defoe prossegue seu
discurso falando sobre humanidade, destino manifesto e fronteiras
finais. Sua cabeça raspada é perfeitamente redonda. Seu sorriso é
ofuscante. Seus olhos são tão azuis que as garotas da minha escola
os definiriam como arrasadores. O rei da Babel só tem uma
imperfeição: sua mão direita é deformada, como se um gigante
tivesse feito questão de quebrar todos os ossos, um a um. É o tipo
de defeito físico que a gente não deveria ficar olhando, mas acaba
fazendo justamente isso. – A recompensa pelos seus esforços vai
muito além do que podem imaginar. Um fundo de investimentos já
foi constituído em nome de cada um de vocês. Um cheque de 50 mil
dólares vai ser depositado nas suas contas todos os meses pelo
resto das suas vidas.
O nosso lado da mesa assume uma postura mais atenta. Os
ombros se alinham, os olhos se arregalam, as mãos se aquietam. A
reação aos números é generalizada; pelo jeito todo mundo ali é
falido. Todos menos um cara.
Ele parece entediado. O rei Salomão acabou de entregar a chave
do reino, e ele está disfarçando bocejos? Dou uma examinada mais
atenta. É um garoto branco. Olho ao redor da mesa e percebo que é
o único. Americano? Talvez. Pode ser europeu também. Está com
uma camisa lisa de três botões. Batuca distraidamente na mesa
com os dedos, e percebo uma etiqueta debaixo de uma das axilas.
A camisa é nova. Os cabelos parecem desalinhados de propósito,
como se ele quisesse parecer meio relaxado. Quando se vira para
mim, volto os olhos para Defoe.
– Além da estabilidade financeira, vamos oferecer planos de saúde
às suas famílias. Seus parentes podem ter acesso ilimitado a
serviços médicos, acompanhamento psicológico e procedimentos
cirúrgicos, além dos tratamentos mais avançados para o câncer e
outras doenças terminais. Tudo isso sem gastar um tostão, e em
caráter vitalício.
Não sei o que caráter vitalício significa, mas uma parte do pessoal
ao redor da mesa balança a cabeça positivamente, como se
soubesse do que se trata. Duas pessoas fazem uma careta ao ouvir
a palavra câncer. Por exemplo, a loira de olhos azuis, maquiada
como se estivesse em um concurso de beleza. Percebo uma mecha
de cabelos pintados de rosa presa atrás de uma das orelhas. O
outro é um garoto bem moreno de olhos castanhos. Deve ser do
Oriente Médio. Fico me perguntando se alguém na família deles tem
câncer. Imagino que pode ter sido assim que a Babel atraiu os dois
para esse lance de cobaia espacial. E fico sem saber se alguém
percebeu que eu fiz uma careta também.
É difícil ouvir as palavras que vêm a seguir, porque uma imagem
da minha mãe surge na minha mente. Os pulsos fininhos com
pulseiras hospitalares. Passamos tanto tempo na UTI que o hospital
começou a parecer uma prisão. A única diferença é que os doentes
não têm chance de serem postos em liberdade condicional.
– … oferecemos ações da nossa companhia, contato com
executivos de todas as empresas do mundo e uma chance de
gravar seu nome na história da humanidade. Desmond está
distribuindo os formulários de confidencialidade. Caso ainda estejam
interessados, basta assinar na linha pontilhada.
Um figurão menos importante circula ao redor da mesa. Ele põe
formulários recém-impressos à frente de cada um de nós. Não
consigo desviar os olhos do relógio de ouro enorme em seu pulso.
Se as circunstâncias fossem menos promissoras, eu levantaria da
cadeira em um pulo, arrancaria o relógio e sumiria da sala antes que
ele se desse conta do que tinha acontecido. Mas a vida está boa,
então passo os olhos por um parágrafo com palavras como
privatização e extrajudicial. À minha esquerda, o garoto asiático
examina um estranho conjunto de símbolos. A garota à minha direita
está lendo um texto que vai além dos meus parcos conhecimentos
de espanhol de aluno do ensino médio. Quase dou risada ao
imaginar que somos uma espécie de versão politicamente correta
do Esquadrão da Justiça. Se, porém, a Babel está à procura de
heróis, escolheu o cara errado.
Assino na linha pontilhada e tento disfarçar a sensação de ter
ganhado na loteria.
Os figurões trocam segredos milionários. Defoe rodeia a mesa em
movimentos discretos e predatórios para se certificar de que todo
mundo está colaborando. Passo para a música seguinte da minha
lista, e uma batida agradável começa a tocar. Duas vozes fazem um
dueto até chegarem ao refrão primitivo. A cantoria continua até eu
me sentir de novo na selva de pedra, curtindo e rindo com os Manos
de Elite.
Já estou com saudade dos caras, principalmente PJ. Mas o nosso
bairro é cheio de becos sem saída, e a Babel está oferecendo uma
rota de fuga. Não sei o que isso representa para o restante do
pessoal reunido à mesa, mas para mim significa o nome da minha
mãe no topo da lista de transplantes. E o fim dos turnos da
madrugada para o meu pai. E também três refeições por dia e mais
de uma roupa para usar.
Para mim, significa tudo.
A última pessoa a assinar é uma garota. Como diria PJ, é muito
mais do que gata. Mais alta do que eu, com os cabelos curtinhos. É
tão magra que dá para ver todos os ossos. A pele escura faz as
pulseiras de miçangas ao redor de um dos pulsos parecerem as
penas reluzentes de um pássaro. Os pingentes de metal dançam e
tilintam, refletindo a luz. Parece uma coisa antiga, algum tipo de
amuleto africano. Todos observamos enquanto ela faz uma
modificação em seu formulário. Defoe examina o papel. Ele abre um
sorriso de orelha a orelha e faz que sim com a cabeça. Estamos
todos dentro.
– Muito bem. Vocês ainda estão livres para desistir a qualquer
momento enquanto descrevemos sua missão, mas o formulário de
confidencialidade é um documento que levamos mortalmente a
sério.
Defoe faz uma pausa para enfatizar a escolha do advérbio.
Mortalmente. Dedos-duros não são novidade no mundo, nem as
consequências de ser um. Mas uma olhada pelo ambiente revela
que nem todo mundo sacou as entrelinhas. Ou seja: pular fora não é
uma opção.
– Se conversarem sobre isso com alguém – ele continua –, vão
acabar comprometidos judicialmente pelo resto da vida. Entendido?
Todo mundo faz que sim com a cabeça. Pela primeira vez, me dou
conta de que Defoe está fazendo todo seu discurso em inglês. Para
mim é o ideal, mas será que o restante do pessoal está
entendendo? Todo mundo aqui fala inglês? Mais uma olhada ao
redor confirma que trouxeram gente de todos os cantos do mundo.
Talvez existam escolas que eduquem as crianças em inglês na
maior parte do planeta hoje em dia, mas acho meio difícil de
acreditar.
Uma tela preta de vidro surge atrás de Defoe. Os outros figurões
se espalham, e as imagens digitais ganham vida. A parte mais louca
é que não escuto nada. Nada de ventoinhas, engrenagens ou
cliques. Uma tela de 70 polegadas exibe imagens de uma resolução
impecável.
Defoe escancara todos os dentes da boca em um novo sorriso. Os
outros figurões se agitam.
Eles estavam ansiosos para fazer essa revelação. Para nós.
– A Babel Comunicações descobriu um planeta habitável há 63
anos. – Um lugar parecido com a Terra aparece atrás dele. – Éden.
Nossa relação com o planeta tem sido persistente. Sempre
acreditamos que a vida em Éden seja possível. Agora temos
certeza. O planeta é capaz de abrigar a vida humana. – A tela exibe
distâncias, dados de navegação estelar e informações planetárias.
Coisas ilegíveis para mim. – Mesmo com nossos grandes avanços
tecnológicos, a viagem original a Éden demorou 27 anos.
Defoe espera até que todo mundo absorva a informação. Vinte e
sete anos. Nós fazemos nossas contas e ficamos bem aborrecidos
quando chegamos ao resultado. Ninguém aqui disse que topava
envelhecer no espaço. Pelo menos eu sei que não.
– Hoje a viagem demora menos de um ano, claro.
Todos nós respiramos aliviados. Menos de um ano. Defoe
claramente está curtindo com a nossa cara. Os figurões abrem seus
sorrisos milionários ao ouvir a gracinha. Começo a me perguntar
quem são essas pessoas e o que pensam de nós. Arquivo esse
pensamento na letra R de raiva.
– A Estação Torre Espacial já está orbitando Éden. Vamos pousar
lá antes de mandarmos vocês para a superfície. O planeta é
habitado por seres chamados adamitas.
Planetas habitáveis. Alienígenas. Certo. Nossa geração
testemunhou a aterrissagem em Marte. Os cartazes de
recrutamento da NASA estão espalhados por todas as escolas. Mas
nunca ouvimos falar nada de outras formas de vida. É difícil
imaginar que um segredo como esse pudesse ficar escondido por
três décadas. Pelo que sei, três décadas atrás os humanos estavam
dando pulinhos na Lua. A Babel está sugerindo um salto temporal
nos livros de história que tornam suas revelações impossíveis de
acreditar.
Continuamos assistindo enquanto a tela se divide em uma série de
imagens. Vemos humanoides em uma paisagem vasta e primitiva.
São mais baixos e atarracados que a média dos humanos. Seus
olhos são maiores e mais esbugalhados. Defoe abre um sorriso
triunfal, mas já vi montagens melhores na internet feitas com o
Photo Factories.
– Naturalmente, já fizemos alguns contatos com a espécie.
Defoe aperta um botão invisível, e um vídeo surge na tela. Vemos
uma tomada a distância de alguns militares e cientistas. Estão
equipados com tecnologia de ponta, inclusive fuzis de assalto do
tipo usado nas missões do KillCall. Vemos a negociação dar errado.
Muito errado. Sombras aparecem e cobrem os tais adamitas. Tiros
são disparados, mas no meio do caos e da fumaça todos os
soldados acabam mortos ou desmembrados. Os adamitas só
poupam uma pessoa entre os intrusos: uma menina de uns 7 ou 8
anos.
Defoe aperta o botão de pausa.
– Jacquelyn Requin. Nasceu durante o primeiro voo para Éden.
Nossos satélites indicam que ainda está viva. Por quê? Os adamitas
idolatram os jovens e as crianças. Ela continua viva porque
representa algo que se perdeu para eles. Atualmente, o membro
mais jovem da sociedade dos adamitas tem 21 anos de idade.
Apesar de serem uma espécie antiga, ao que parece não são mais
capazes de se reproduzir. Sendo assim, adoram e valorizam as
crianças. E foi essa adoração que proporcionou a oportunidade para
o nosso empreendimento.
Ele enfia a mão no bolso e saca uma esfera do tamanho de uma
bolinha de gude. É totalmente preta, diversos tons mais escura que
os dedos que a seguram.
– Conheçam a nyxia.
Com uma leve manipulação, a substância se estica. As mãos de
Defoe se movem. Um instante depois, ele as ergue. Uma adaga
preta. Ele permite que todo mundo dê uma boa olhada na faca e a
arremessa em um alvo à sua direita. A lâmina se encrava até o
cabo. É uma demonstração bem impressionante, mas ainda não
acabou. Com mais um movimento leve, Defoe atrai a substância de
volta até a palma de sua mão. Em seguida, mostra a bolinha de
novo. Bem impressionante mesmo.
– A Babel Comunicações encontrou diversos usos para a
substância. É o recurso secreto mais valioso do mundo. Nossa
missão é coletar o máximo possível. Quem é capaz de adivinhar
onde existem depósitos imensos de nyxia?
Em Éden – é o que todo mundo deduz. Muito bem, Defoe, você
tem nossa atenção. Com um toque do dedão, ele substitui o vídeo
por um mapa digital do planeta. Nosso olhar se volta para as áreas
marcadas em vermelho. Os pontos pretos ficam na base de
elevações e próximos de bacias hidrográficas de padrões
indefiníveis. Defoe explica:
– Cada ponto preto representa uma mina subterrânea de nyxia.
Em termos concretos, cada pontinho preto vale algo na casa de 50
bilhões de dólares.
O ranzinza sentado ao meu lado solta um assobio. Finalmente
concordamos em uma coisa: é dinheiro que não acaba mais. E os
pontos pretos não são poucos. Mas ainda não me esqueci dos
soldados espaciais mortos e seus membros mutilados.
Um garoto de olhos castanhos à minha direita faz uma pergunta
em um idioma que desconheço.
Defoe assente com a cabeça.
– As áreas em vermelho indicam os locais que os adamitas
decretaram que estão fora dos nossos limites. Ninguém da Babel
Comunicações jamais se aproximou desses lugares.
Por mais valiosos que sejam os pontos pretos, estão no meio das
áreas vermelhas. Na verdade, só há um pequeno círculo de locais
acessíveis na parte de baixo do mapa, e sem nenhum ponto preto
por perto. Defoe faz a pergunta que não quer calar:
– Então como nós retiramos a nyxia de minas protegidas por uma
espécie com tecnologia superior e uma postura agressiva de defesa
de suas fronteiras?
Pois é, eu penso. O que nós podemos fazer a respeito? E por que
arriscaríamos nossas vidas para isso?
Defoe responde à sua própria pergunta de forma misteriosa:
– Eu asseguro que, a não ser que se convertam e se tornem como
crianças, vocês nunca entrarão no reino dos céus.
A menina com a maquiagem carregada inclui seu sotaque do sul
dos Estados Unidos na conversa.
– Isso é da Bíblia, né?
Defoe confirma:
– É, sim. Sua idade vai ser a proteção de vocês. Nossa jornada vai
garantir tempo de sobra para lhes ensinar a extrair a nyxia de forma
segura nas minas em que entrarem. Vamos estabelecer cotas para
cada um. O cumprimento das cotas vai garantir as recompensas
financeiras prometidas.
O garoto asiático ao meu lado faz uma objeção. Defoe ouve
pacientemente antes de responder:
– Longwei perguntou sobre os riscos. Está com medo de ser morto
e ficar sem a recompensa. Além de termos um claro precedente de
proteção dos jovens por parte dos adamitas, fizemos um acordo
com eles dois meses atrás. Aqueles entre vocês que aterrissarem
em Éden vão ter permissão para circular livremente. Vão ser
recebidos como hóspedes.
– Então só precisamos pegar essa tal de nyxia? – pergunta a
menina sulista.
– Isso mesmo, Jasmine. Quanto mais, melhor. – Uma rápida
olhada para os demais figurões revela que ainda há mais uma coisa
a dizer. Defoe endireita os ombros já alinhados. – Como já devem
ter notado, existem dez de vocês aqui. Na Babel Comunicações,
nós valorizamos o espírito competitivo. O ferro afia o ferro etc. e tal.
Vocês estão em dez, mas somente oito vão ser levados para Éden.
O verdadeiro medo é sempre silencioso. De um instante para o
outro, viramos estátuas. Ninguém respira, a não ser o garoto
branco, que estala as juntas dos dedos e se recosta na cadeira. Ele
não é como o restante de nós. Não sei dizer como, mas tenho
certeza. Todo mundo fica esperando Defoe dizer que está
brincando, mas é claro que não está. Um asiático corpulento
sentado à ponta da mesa faz um comentário sarcástico. Seja qual
for a piada, Defoe não acha graça.
– Katsu quer saber o que vai acontecer com os outros dois –
explica Defoe. – Nossa viagem de um ano de duração vai ser uma
espécie de competição. Todos os testes que realizarem vão ser
avaliados. Cada tarefa que propusermos vai ser analisada. A partir
do momento em que entrarmos no espaço, vocês ficarão sob o foco
de um microscópio. Os rankings de classificação vão estar
espalhados pela nave. Só oito de vocês vão aterrissar em Éden
quando chegarmos. Esses oito vão receber os incentivos financeiros
que explicamos.
Mais silêncio. Mais corações partidos.
– Os outros dois ainda vão receber uma quantia, só que menor. O
salário anual médio de um funcionário da Babel Comunicações é de
150 mil dólares. Quem ficar de fora vai receber o equivalente a dois
anos de trabalho. Os outros benefícios não serão concedidos.
No meu bairro, esse prêmio de consolação seria mais que
suficiente. Com certeza é mais dinheiro do que eu poderia sonhar
em ganhar até hoje. Mas agora sabemos que existe uma
possibilidade ainda melhor. Temos uma promessa de riqueza que
pode durar para sempre. A mesa está cercada de rostos
gananciosos. A aposta da Babel está dando certo.
Concorrência. Oferta e demanda. No melhor estilo vale-tudo.
– Podemos começar? – quer saber Defoe.
A pergunta ecoa sem parar na minha cabeça.
DIA 1, 9h13
A bordo da Gênesis 11

Um funcionário da Babel me leva até um dos casulos de


relaxamento da nave e me diz para apreciar a vista. O
compartimento de carga está um caos. Um vidro grosso isola o
ruído por completo. É como ver um filme mudo sem legendas. A
decolagem provavelmente está sendo planejada há uma década,
mas sempre há mais trabalho a ser feito. Os funcionários do
departamento técnico, com seus fones de ouvido modernos,
vasculham o conteúdo das cargas e gritam ordens de transporte
para o pessoal do trabalho braçal. Solto um suspiro, seleciono
algumas músicas e espero.
A porta atrás de mim parece tirada de um dos remakes de Guerra
nas Estrelas. O piso tem a temperatura controlada. Almofadas
macias estão posicionadas em todos os cantos do recinto, como
cogumelos. O nome do lugar é casulo de relaxamento, mas estou
uma pilha de nervos. Iluminação difusa, paredes cor de lavanda e
uma máquina de café expresso liberada. É o tipo de coisa que faz
com que eu me sinta deslocado.
No meio da lista de reprodução começa a tocar um híbrido de
reggae e hip-hop que meu primo Taylor produziu no ano passado.
PJ e os Manos de Elite idolatram Taylor porque acham que ele está
no nível dos melhores rappers da nossa geração. Mas na verdade o
cara está todo endividado e trabalha no turno da madrugada com o
meu pai. É assim que as coisas são em Detroit. Penso na minha
família, nos meus amigos, em todo mundo. De onde eu vim, as
expectativas limitadas acompanham cada geração.
Então sou obrigado a questionar: por que eu? É uma pergunta que
não tem resposta fácil.
Mas os números são bem claros:
Oito de dez.
Cinquenta mil dólares por mês. Pela vida toda.
Fico observando os trabalhadores e respirando fundo até a porta
se abrir. Não sabia quem a Babel Comunicações iria trazer para se
despedir de mim, mas estava na cara. Minha mãe nunca entrou em
um avião. E os médicos nem permitem que ela faça viagens longas.
Então é meu pai quem entra no recinto, vestindo uma jaqueta de
couro e uma calça jeans surrada. Está com a boina de jornaleiro que
sabe que eu adoro. Não sorri, porque já está chorando.
Ele estende a mão em um gesto solene, como se eu tivesse me
formado na faculdade, ou entrado no exército, ou coisa do tipo.
Quando nos cumprimentamos, sua mão engole a minha. Nós nos
sentamos, e ele nem se dá ao trabalho de secar as lágrimas dos
olhos vermelhos. A Babel me recrutou faz um mês. É uma loucura a
velocidade com que as coisas aconteceram, não temos mais tempo
para nada.
– O sr. Defoe falou que seriam três anos. – A voz dele é como um
motor enguiçado. – Emmett, sei que é uma grande oportunidade.
Deus é testemunha de que nunca ganhei nada na vida. Mas você
tem certeza? – Ele olha ao redor, para as almofadas estranhas e os
revestimentos reluzentes. Isto parece certo?
Ele faz a pergunta da qual tentei fugir a manhã inteira. Qual é a
pegadinha? Quem é o mágico escondido atrás da cortina? A Babel
tem seus segredos, mas eu também tenho os meus, assim como
todo mundo.
– Não dá para recusar, pai.
– Sempre dá para recusar.
– Eles estão oferecendo 50 mil dólares…
Ele me interrompe.
– Dinheiro é só dinheiro, Emmett. Eu poderia ganhar um monte
fazendo só coisas erradas. Isto aqui parece certo para você?
– Por mês, pai. Cinquenta mil dólares por mês. – Desvio o olhar,
fingindo que estou observando os trabalhadores. Eu sei o quanto ele
ganha por ano. Quão irrisório é o seu salário perto do que estão me
oferecendo. Sei que a vida não é justa. – Para a vida toda. E com
assistência médica de graça também. Você pode levar a mamãe
amanhã mesmo. Tratamento sem custo em qualquer clínica de
Detroit. Eu já vi os preços, pai. E o tamanho da lista de espera de
transplantes. A Babel é o tipo de empresa que pode colocar o nome
dela no começo da fila. Eles são o tipo de gente que mexe os
pauzinhos onde a gente não alcança. E sei que é disso que
precisamos. Que ela precisa.
Ele ignora tudo o que eu disse.
– Eu fiz uma pergunta para você.
Solto um suspiro, mas os olhos dele continuam cravados em mim.
Isto parece certo?
– Eu não sei, de verdade – respondo. – É difícil ver a diferença
entre rico e errado.
Com certeza escutei isso em algum rap, mas é exatamente o que
penso. A Babel Comunicações é uma organização suspeita, porém
todo mundo que mexe com bilhões é suspeito. Esse pessoal vive
em outra realidade, convive com outro tipo de gente, respira outros
ares. Sempre foi assim, e sempre vai ser.
Meu pai olha para os trabalhadores do outro lado do vidro.
– Eu nunca vi nada parecido.
– Nem eu.
Vemos um cara quase ser atropelado por uma empilhadeira.
– Está com medo? – ele pergunta.
– Estou.
– Significa que você tem juízo.
– Pois é.
– Se pedirem para você fazer alguma coisa errada, qual vai ser
sua resposta?
– Não.
– E se colocarem você à beira do precipício para aceitar?
– Eu saio voando.
– Qual é o seu nome?
Ele me perguntava isso antes de cada um dos jogos de futebol
americano. É uma tradição, um lembrete.
– Emmett Ethan Atwater – respondo.
– O que Ethan significa?
– Firme.
– O que Emmett significa?
– Batalhador.
– O que Atwater significa?
Eu hesito.
– Isso você nunca me contou…
Ele sorri.
– Eu também não sei.
O fato de ele conseguir fazer piadinhas em um momento assim
alivia um pouco o nó no meu estômago.
– Então eles vão cuidar bem de você, é?
– Não só de mim. De você e da mamãe também. – Desvio o olhar
outra vez. – Eu quero muito isso, pai.
– Mas queira para você primeiro. Quando estiver lá em cima. – Ele
olha para cima como se o teto não existisse, como se estivesse
contemplando as galáxias em toda sua infinitude. – Queira para
você. Eu trabalho muito, mas você merece bem mais do que posso
proporcionar. Conquiste o seu primeiro. Entendido?
De um momento para o outro me sinto fraco. Um esqueleto vazio,
sem coração.
– Só oito de nós vão descer em Éden.
Ele assente com a cabeça, como se já esperasse um senão.
– Oito de quantos?
– De dez.
– É uma boa possibilidade.
O ar fica espesso. As palavras arranham minha garganta.
– E se eu não ganhar?
– E se você ganhar? – rebate ele.
Um segundo depois, meu pai fica de pé. Ele não está mais
chorando.
– Trate de lutar, Emmett. Mostre seu valor. Não aos olhos deles,
mas aos seus. Pode desrespeitar as regras se for preciso, mas sem
nunca se esquecer de quem você é e de onde veio. Quando te
derrubarem, e isso vai acontecer, trate de não me decepcionar.
Faço que sim com a cabeça.
– Nunca – enfatiza ele.
Nós nos abraçamos. Depois nos sentamos e ficamos observando
o compartimento de carga até todos os caixotes estarem
empilhados. Meu pai me estende uma chave de metal, que eu só
tinha visto antes em um mostruário de vidro no quarto dos meus
pais. É antiga. Toda riscada e do tamanho da palma da minha mão.
Eu viro a chave e penso em todos os Atwater que já a seguraram.
Meu pai não me explica por que está me dando, pois eu já sei.
Quebre as correntes, a chave grita. Pegue o que é seu.
DIA 1, 9h33
A bordo da Gênesis 11

Em um piscar de olhos, estou deixando a Terra para trás.


Não para sempre, mas não é a mesma coisa que embarcar em um
ônibus para o acampamento de férias. Não me parece certo
abandonar a minha mãe só para garantir o tratamento de que ela
precisa. Eu não vou estar por perto durante a fase mais difícil do
combate à doença, mas essa é a forma que tenho para lhe dar uma
chance. Preciso acreditar que os dois vão estar por aqui quando eu
voltar, vivos e saudáveis e com a perspectiva de uma aposentadoria
na riqueza. Assim que um funcionário do departamento técnico me
leva para dentro da nave, é como se alguma coisa estivesse
escapando dos meus dedos.
A embarcação é gigantesca. Túneis espaciais levam às entranhas
tecnológicas. Tento memorizar o caminho, mas precisamos subir
três patamares, percorrer dois corredores e passar por muitas
portas até chegar. Uma batida forte pulsa nos meus fones, então
perco a primeira rodada de instruções.
– Quê? – pergunto, baixando o volume.
– Seus aposentos, sr. Atwater.
O funcionário digita um número e passa um cartão, e a porta se
abre. Por um instante chego a esquecer que estamos em uma
espaçonave. O piso é acarpetado, os sofás são de couro e a
biblioteca é muito bem abastecida. Além da sala de estar vejo duas
portas; imagino que dão para o dormitório e o banheiro. O técnico
começa a digitar outro código em sua tela portátil. Tudo neste lugar
é azul, robótico e reluzente.
– Eu vou ganhar um cartão desses? – questiono. – Lá em Detroit a
gente ainda usa chaves.
– O código de cada aposento está inserido nos seus trajes.
– Eu vou ganhar um traje?
Ele confirma com a cabeça.
– E uma arma.
– Sério?
– Não.
Pela primeira vez, o cara ganha feições humanas. Ele acabou de
fazer uma piada. Isso o torna mais do que apenas uma engrenagem
no mecanismo bem ajustado da Babel. Tem o rosto quadrado, a
pele clara e os olhos escuros. Parece o tio de alguém. Com um
sorriso, eu estendo o punho fechado. Ele olha para o corredor, abre
um sorriso para si mesmo e me cumprimenta.
– Qual é o seu nome? – pergunto.
– Donovan Vandemeer.
– Não é um nome americano, né?
O sr. Vandemeer faz que não com a cabeça.
– Holandês.
– Ah, eu adoro a Irlanda.
Vandemeer inclina a cabeça, com a correção na ponta da língua.
Mas então percebe que estou brincando.
– Essa foi boa, sr. Atwater.
Está na cara que Vandemeer precisa se apressar. Vejo uma nova
tarefa piscar em sua tela portátil e, apesar de o cara permanecer
imóvel, sei bem a direção em que quer começar a caminhar. As
engrenagens bem azeitadas da Gênesis 11 estão à minha espera.
Isso até que é legal.
– Quanto tempo eu tenho para me preparar? Até a decolagem?
O sorriso se alarga no rosto de Vandemeer.
– A decolagem está acontecendo neste exato momento, sr.
Atwater.
Dou uma risadinha. Já vi muitos filmes dos Colonos de Marte para
acreditar nisso. As decolagens nessa série são sempre eventos
cercados de caos e apreensão. Vandemeer abre um sorriso quando
começo a andar pelo recinto.
– Claro, que bobagem minha! Pode deixar que eu me viro,
Vandemeer.
– O seu dormitório é o da esquerda.
Balanço a cabeça e pergunto por cima do ombro:
– E a porta da direita é a do banheiro?
Antes que Vandemeer possa responder, a porta se abre. Uma
garota asiática sai de lá. Está usando um macacão de corpo inteiro,
reluzente como metal. É bem justo, de couro, com proteções
articuladas sobre os órgãos vitais. Uma máscara preta metálica
atravessa seu maxilar. Seus olhos são escuros, e os cabelos estão
bem presos em um rabo de cavalo por um elástico com um morango
de plástico. Ela passa por mim sem ouvir meu cumprimento
baixinho. Em seguida, faz um aceno para Vandemeer e desaparece
no corredor.
Vejo que o holandês sorri.
– O que ela está fazendo aqui? – pergunto.
– Um dormitório é dela. O outro é seu.
– Mas… – Faço um gesto hesitante. – Ela é uma garota!
Vandemeer dá risada.
– Eu não sei muita coisa sobre os Estados Unidos. Não existem
garotas por lá?
– Sim, mas não tem nada a ver. A gente não… elas não… Cada
um vai ter seu banheiro, certo?
Por algum motivo, a ideia de compartilhar um banheiro com ela me
deixa apavorado. E se ela me achar fedorento? E se ela for
fedorenta? E se eu me esquecer de trancar a porta?
– Os dormitórios são separados, e cada um tem seu banheiro.
Vocês só vão compartilhar a área comum.
– Certo – respondo. Mesmo assim é esquisito. – Eu preciso falar
com ela?
– Seria de bom-tom – explica Vandemeer.
– Ela é americana?
– Acho que é japonesa.
– Japonesa, certo. Como é que vou conseguir conversar em
japonês?
– Você deve ter visto o dispositivo que ela está usando. A
máscara.
Faço que sim com a cabeça.
– Parece uma coisa saída de um gibi.
Vandemeer ri novamente.
– É um conversor de idiomas feito de nyxia. Tem um no seu
dormitório também. – A tela portátil vibra, e o sorriso desaparece do
rosto dele. – Mais alguma dúvida, sr. Atwater?
– Ela é bonita – comento sem querer.
Vandemeer dá outra risada e sai. A porta automática se fecha com
um assobio, e eu me vejo totalmente sozinho.
DIA 1, 10h30
A bordo da Gênesis 11

Depois que coloco o traje, vou me olhar no espelho espacial.


Fico impressionado. O traje me faz parecer mais musculoso do
que sou. Comprime meu abdome e alarga meus ombros. A proteção
sugere uma barriga de tanquinho que eu não tenho. Apesar de não
ter uma arma, estou me sentindo um James Bond galáctico.
Pena que só teve um James Bond negro, e era um mano bem
mais claro que eu. Chego mais perto do espelho. A cada dia estou
mais parecido com o meu pai. Minha mãe sempre brinca que a
única coisa que puxei dela foram os cotovelos. Tenho o mesmo
nariz dele, os mesmos olhos castanhos e o mesmo rosto redondo.
Até uma sombra do bigode dele está aparecendo em cima da minha
boca. Isso me lembra que ele nunca me ensinou a fazer a barba. De
acordo com o cronograma da Babel, só vou voltar à Terra aos 18
anos. Mais uma coisa que vou precisar aprender sozinho.
À esquerda do meu reflexo, surgem os números do que parece ser
um prontuário médico. Temperatura corporal, pressão arterial,
frequência cardíaca e respiratória. Dou uma olhada nos algarismos,
mas não sei dizer se estão bons ou ruins. Pego a última peça do
meu arsenal: o conversor de idiomas feito de nyxia. Fico totalmente
perdido. A coisa não tem ganchos, nem fechos, nem nada que eu
possa usar para prendê-la no rosto. Caso seja o primeiro teste da
Babel, a menina japonesa já saiu na minha frente.
Ponho a máscara sobre a boca, para testar um meio de prendê-la,
e a coisa ganha vida. Fico apavorado quando o metal se gruda à
minha pele e o forro de couro se prende ao meu maxilar. O
dispositivo para a poucos milímetros da minha orelha, bem fixado e
surpreendente leve. Tiro a mão do rosto, e máscara continua presa
como em um passe de mágica. Olho de novo para o meu reflexo.
Irado. É a única palavra que encontro para descrever o que vejo.
Estou parecendo um semideus bizarro do futuro. Meus olhos
parecem enormes e ameaçadores por cima do metal preto. Com
este traje, eu me sinto pronto para qualquer desafio que a Babel
possa ter planejado. Saio do aposento e, depois de dois passos no
corredor, me dou conta de que não faço ideia de onde estou. A
Genesis 11 é gigantesca.
Sigo pelo corredor, cujas paredes translúcidas revelam uma fiação
de arranjo complexo. Depois de passar por mais uma porta
automática, encontro um novo corredor que leva a um espaço
aberto com passarelas de metal e vários lances de escadas. Todos
conduzem para baixo. Eu me inclino sobre o corrimão e vejo alguns
outros desafiantes no patamar inferior. É assim que eu os encaro.
Desafiantes. Todos eles querem ficar com o que é meu.
Finjo que estou observando a iluminação de aspecto alienígena
mais acima enquanto formulo minhas estratégias. Fatos apurados:

1. São quatro garotas.


2. São seis garotos.
3. Minha colega de aposentos é uma japonesa.
4. Pelo que percebi, é uma iniciativa de alcance global. Kumbayá
e cooperação.
5. Mas só oito jovens vão ser escolhidos. Então tem competição
envolvida também.
6. A Babel é rica. Muito rica mesmo.

São várias as maneiras de entrar no jogo. Posso manter a boca


fechada e os ouvidos atentos. Assim consigo ficar sabendo de muita
coisa, mas podem me confundir com um espião. Ou posso sacar
quais são os competidores mais fortes e ir no embalo deles. Talvez
formar umas alianças. O problema é que não tenho ideia de como
vai ser a competição.
Antes de conseguir decidir, alguém dá um tapinha no meu braço, e
quase despenco por cima do corrimão. Eu reconheço o garoto da
reunião. Ele fez uma careta ao ouvir a palavra câncer. Pode estar
aqui pelo mesmo motivo que eu. Pode ter alguém na condição da
minha mãe em casa, alguém que precisa de toda a ajuda que um
contrato com a Babel é capaz de oferecer. Parece ser do Oriente
Médio. Seus olhos têm uma infinidade de tons castanhos. Diferentes
matizes que se juntam em um padrão intricado. A pele acima e
abaixo da máscara é bem morena. Nem mesmo o conversor de
idiomas é capaz de esconder seu sorriso.
– Olá – ele diz, hesitante. A palavra vem junto com um aceno
discreto, como se receasse que o dispositivo não funcionasse. –
Meu nome é Hilal – ele anuncia, batendo no próprio peito.
Balanço positivamente a cabeça e estendo a mão.
– Emmett.
Trocamos um aperto de mão. Ele olha por cima do corrimão.
– Uau, que alto. A nave é gigante, né?
– Pois é. Não tem nada parecido lá em Detroit – comento, olhando
lá para baixo.
– É de lá que você vem? De Detroit?
Ele está puxando conversa como os adultos fazem, mas ainda não
sei se quero entrar nessa. Por isso dou de ombros e rebato a
pergunta:
– E você? De onde é?
– Palestina. – Eu não esboço reação, então ele tenta de novo. –
Cisjordânia.
Vendo que ainda estou confuso, acrescenta:
– A terra santa da Bíblia.
Não tenho muita intimidade com o meu Senhor e Salvador, mas
balanço a cabeça como se tivesse entendido tudo. Sem saber como
continuar a conversa, digo:
– O seu inglês é muito bom.
Ele solta uma risada de divertimento. Com um puxão e um clique,
a máscara cai na palma de sua mão. Depois, com um sorriso, ele
começa a falar em árabe. Mas consigo distinguir uma palavra da
outra. Com um gesto rápido, a máscara se encaixa de novo em seu
rosto.
– O seu árabe também é muito bom – ele responde.
– Isso é bem legal.
Hilal franze a testa.
– Por que seria ilegal?
Dou risada.
– Não, é tipo bom. Legal quer dizer “bom”.
Hilal me lança um olhar atravessado.
– Você conhece bem as leis?
– Esquece – digo. Faço um gesto para o patamar inferior. – Vamos
descer?
Hilal olha para baixo, respira fundo e faz que sim com a cabeça.
Quando começamos a nos movimentar, percebo que suas mãos
estão trêmulas. É até bom saber que tem alguém aqui mais nervoso
que eu. Descemos juntos os degraus instáveis e barulhentos.
Depois de quatro lances, chegamos a um ambiente que parece ser
uma mistura de refeitório e ginásio. Hilal aponta tudo, empolgado,
mas meus olhos se voltam apenas para os desafiantes sentados lá
embaixo. Cinco deles estão à espera no refeitório bem iluminado. As
máscaras fazem todos parecerem um bando de super-heróis sem
função definida. Um deles, o asiático corpulento que tem a minha
altura, fica de pé e surpreende Hilal com um grande abraço.
– Meu nome é Katsu – ele diz. – Sou japonês.
Estendo a mão antes de ser capturado por suas garras de urso.
Enquanto apertamos as mãos, ele arrisca a velha brincadeirinha de
fazer cócegas na palma da mão com um dedo. Eu puxo minha mão
de volta, e ele solta uma gargalhada de fazer vibrar o piso.
– Pronto. Essa é a melhor de todas as pegadinhas japonesas.
Zerei meu arsenal agora. Qual é o seu nome?
– Emmett. Sou de Detroit. Esse é o Hilal… ele é da terra bíblica.
Hilal dá risada.
– Palestina. A terra santa da Bíblia.
Katsu reage com um grito:
– Então você veio da terra dos santos. Ei, pessoal! Se alguém
quiser saber mais sobre os santos, é só procurar o Hilal!
Nós damos risada e cumprimentamos os outros. É estranho que
as barreiras do idioma possam ser superadas com tanta facilidade.
Não sei muita coisa sobre a Bíblia, mas conheço a história de Babel,
que sempre achei esquisita. Deus separa as pessoas dando a cada
uma delas uma língua diferente. A Babel Comunicações juntou
gente de toda a Terra e reverteu o processo. Existe um elemento
sagrado nessa capacidade de conversar tão facilmente e sem
limites. Ou talvez o elemento seja profano.
Do outro lado da mesa, a garota com sotaque sulista prende a
mecha cor-de-rosa dos cabelos atrás da orelha e acena para nós
como uma participante de concurso de beleza. Lembro que Defoe a
chamou de Jasmine.
– Detroit? Eu conheço Detroit! Meu nome é Jasmine, mas podem
me chamar de Jazzy. Sou de Memphis, no Tennessee. Estados
Unidos.
Ao lado dela, a garota africana faz um aceno para nós. Ainda está
usando a pulseira de miçangas coloridas. Um punhado de pingentes
de prata do tamanho de moedinhas balança em seu pulso quando
ela aperta minha mão. Seus olhos são duas manchas escuras em
uma pele ainda mais escura. Preciso pedir para ela repetir seu
nome para conseguir entender. As sílabas se juntam como o início
de uma canção.
– Azima – ela diz. – A-zi-ma. Sou do Quênia.
Os outros dois estão sentados na outra ponta da mesa, ignorando
um ao outro e todos os demais. Katsu dá um murro na mesa com o
punho pesado para chamar sua atenção.
– Amizade! Façam amizade! Não sejam antipáticos!
Um deles é o garoto branco em que reparei na reunião. Vestido
com o traje preto, tem a mesma aparência de todos nós. Seus
cabelos parecem mais arrumados agora, e seu rosto é do tipo que
se encontra nos quadros que decoram os corredores das grandes
mansões. Seus olhos são verde-claros, e sua pele é branca como
mármore. Ele estende a mão como se fosse um cartão de visitas.
– Jaime – ele se apresenta. – Sou da Suíça.
Katsu dá risada.
– Que coisa mais neutra!
O garoto dá de ombros e começa a cutucar as unhas. Do outro
lado está o asiático que eu irritei na sala de reuniões. Ele dá uma
boa olhada em todos nós, faz cara de tédio e fecha os olhos. Sou
obrigado a admitir que sua aparência é bem impressionante. A
cabeça é totalmente raspada a não ser por uma franja, que ele
penteia para a esquerda. Eu me lembro de ter ouvido Defoe chamá-
lo de Longwei. Fico me perguntando de onde ele pode ser; e qual
seria sua estratégia. Todo mundo se senta, e Katsu começa a contar
uma piada longa e confusa sobre um padre, um zumbi e um cacto
que entram em um bar. Mas ele esquece o final, cai na risada
sozinho e aponta para mais desafiantes que estão descendo as
escadas.
Minha colega de aposentos japonesa se aproxima com passos
leves e toca sutilmente o ombro de Hilal. Ele ergue a cabeça,
confuso, então se dá conta de que ela está pedindo um espaço para
se sentar. Hilal desliza para o lado e ela se acomoda perto de mim,
como se já tivesse decidido ficar sempre ao meu lado. Por algum
motivo bizarro, ela faz eu me lembrar de PJ. Nunca houve um
momento em que decidimos ser amigos. Simplesmente nos
sentamos perto um do outro na escola e resolvemos continuar
assim. Ela não diz nada, mas está claramente ouvindo tudo, com
olhos atentos e brilhantes. Já comecei a gostar dela.
Os outros dois sentam-se em cantos opostos da mesa. Reconheço
a garota da sala de reuniões. Enquanto atravessa o refeitório, é
impossível não notar a tatuagem em sua nuca. Um contorno escuro
do número oito, ou talvez um símbolo do infinito na vertical, usando
uma coroa torta na cabeça. Ela faz um aceno para os demais e se
apresenta como Isadora.
– Sou do Brasil – ela conta. – O melhor país do mundo.
Katsu revira os olhos. Voltamos nossa atenção para o outro
garoto. Tem a pele escura e os cabelos castanhos. Seus lábios são
finos, e a maneira como posiciona os ombros faz parecer que está
se preparando para receber um impacto a qualquer momento. Ele
diz que seu nome é Roathy. Ficamos esperando que diga de onde
vem, mas ele começa a cutucar um calo na mão e nos ignora.
Minha colega de aposentos percebe que as atenções estão
voltadas para ela e se apresenta como Kaya. Quando estamos
todos sentados em um silêncio cada vez mais constrangedor, Defoe
aparece por uma porta que ninguém tinha nem visto. Sua cabeça
brilha sob a luz forte, e ele abre um sorriso predatório.
– Eis nossa intrépida tripulação. Sejam bem-vindos. Sabiam que
são a equipe mais jovem a viajar para o espaço? Já estão
estabelecendo recordes desde o início.
A parede atrás dele se abre como as cortinas de um teatro. Os
painéis pretos deslizam para o lado e revelam… a Terra. Todo
mundo é pego de surpresa. Pensei que Vandemeer estivesse
brincando. Não houve contagem regressiva, nem uma comunicação
de Houston, nem nada. Estamos no espaço. Dá para ver os
oceanos, as camadas da atmosfera e tudo mais. Mas cadê a
gravidade zero que a gente sempre vê nos filmes? Não deveríamos
estar flutuando pela nave e dando risada ao ver nossas moedinhas
fugirem para os cantos da nave? Defoe nos deixa absorver
completamente a situação antes de sorrir de novo.
– Bem-vindos à fronteira final. – Ele faz um gesto magnânimo e
dramático com a mão boa. – Me permitam apresentar o comandante
Crocker.
Das sombras à nossa direita, um astronauta de verdade aparece.
Está em um traje espacial robusto e digno das telas de cinema. Não
é tão bacana quanto o nosso, mas dá para perceber que se trata de
um profissional. Seu rosto está bem barbeado, e os cabelos estão
cortados rente. A única semelhança entre nós e ele é o conversor
de idiomas de nyxia preso no rosto. Fico surpreso quando ele
começa a falar com um sotaque americano sulista bem forte.
– Bem-vindos ao fim do mundo, lacaios. Sou o comandante
Crocker, mas podem me chamar de Crock. Sou o comandante de
operações da viagem. Se tudo correr bem, vocês só vão ver o meu
rosto bonito de novo quando chegarmos à Estação Torre Espacial.
A visão da Terra, que já está do tamanho de uma bolinha de gude,
é substituída por imagens holográficas com a arquitetura básica da
nave. Crock usa uma vareta para indicar as áreas proibidas.
– É aqui que fazemos nossos experimentos de gravidade zero.
Minha equipe trabalha adoidado para garantir que a nave não saia
do prumo. A melhor coisa que vocês podem fazer para colaborar
com a segurança de todos é não meter o narizinho onde não são
chamados.
Dou uma olhada de relance para Kaya. Crock está usando um
conversor de idiomas, mas será que a tradução desse jeito de falar
tão peculiar está saindo certa? Minha nova amiga parece estar
entendendo tudo, mas quem é que sabe? Tenho um sobressalto ao
pensar na ideia de fazer amigos. Kaya e Hilal parecem bacanas. Até
Katsu tem um jeito divertido. Mas a verdade pura e simples é que
estamos em uma competição. Pontos primeiro, amizades depois.
Essa precisa ser a minha mentalidade se quiser voltar para casa
com a recompensa.
– O contorno preto representa os corredores selados com nyxia.
Tudo dentro desse perímetro está disponível para vocês – Crock
explica. – Só alguns lembretes. Vocês estão no espaço. As pessoas
mudam quando estão no espaço. Informem qualquer coisa estranha
para a equipe médica. Se tiverem pesadelos recorrentes, dor de
estômago, se ficarem melancólicos à noite. Qualquer coisa. Temos
profissionais formidáveis aqui, mas eles só vão poder ajudar se
souberem qual é o problema. Alguma pergunta?
Azima levanta a mão.
– No cinema, não existe gravidade no espaço. Todo mundo sabe
disso. Por que não estamos flutuando? – Ela franze a testa de leve.
– Eu queria flutuar.
Crock abre um sorriso.
– Lembra que os troianos sequestraram Helena e toda a frota
grega foi atrás? Bom, a beleza de Helena não é nada comparada à
da nyxia. Como conseguimos encurtar a viagem em 20 e poucos
anos? Combustível enriquecido com nyxia. Como vedamos algumas
partes da nave mantendo a gravidade? Selantes e filtros de nyxia.
Como fazer cocô no espaço? Com nyxia.
Todo mundo dá risada, menos Jazzy, que parece enojada.
– Na verdade, isso nós já sabíamos fazer há um bom tempo. Mas
a palavra mágica é nyxia. A Babel investiu boa parte do estoque
inicial de mineração no programa espacial. Nesta parte da nave,
vocês nem vão sentir que estão no espaço. A nyxia está ajudando a
isolar este ambiente. Por isso seus corpos não vão sentir os efeitos
habituais. Minha equipe e eu vamos estar um pouco mais altos na
Estação Torre Espacial, mas vocês vão se manter ocupados
competindo e tudo mais. Sendo bem sincero, esta nave, a estação e
as operações de chão da Babel na Terra estão uns cem anos mais
avançadas do que vocês estão acostumados a pensar. Tudo graças
ao novo ouro negro.
E nós somos os únicos capazes de conseguir mais, percebo. Isso
significa que temos certa margem de manobra por aqui. A Babel
pode ter nos recrutado por sermos jovens, mas estão ocultando
esse nosso poder atrás da fachada de competição. Arquivo esse
pensamento na letra P de poder.
Sem nós, eles não têm como obter mais nyxia. Sem nós, a
operação inteira é uma perda de tempo. Mas esse poder não
significa nada para quem não ficar entre os oito primeiros. Esse
pessoal da Babel é bem esperto. Contudo, quando os oito vitoriosos
forem definidos, uma parte desse poder vai voltar para as nossas
mãos.
– Mais alguma pergunta? – Crock questiona.
Roathy estreita os olhos atentos e levanta a mão.
– E se algum de nós morrer?
O ambiente fica tenso. Até o comandante Crocker empalidece um
pouco.
– Bom, temos protocolos definidos para esses casos, mas a
história da exploração espacial tem poucas fatalidades. O histórico
da Babel é impecável nesse sentido, então eu não me preocuparia.
Roathy assente com a cabeça, mas dá para notar a desconfiança
em seus olhos. Crock logo muda de assunto. Eu deveria prestar
atenção ao que ele diz, mas meu olhar se volta para Roathy. Ele
está bem tenso. Seus olhos são tão afiados que parecem capazes
de perfurar tudo o que veem, escavando a superfície das coisas.
Preciso de uns bons 30 segundos para entender o que há de tão
estranho nele. Ele encara o mundo da mesma forma que eu. Quanto
mais promissoras as coisas parecem ser, maior a probabilidade de
decepção. Nós dois sabemos que a verdade se esconde bem
debaixo das aparências.
Quando desvio os olhos dele, Crock está se retirando para as
entranhas da nave e Defoe já reassumiu seu lugar.
– Como vocês já sabem, meu nome é Marcus Defoe. É minha
responsabilidade garantir que estejam prontos para entrar em ação
quando chegarmos. Nossa competição foi projetada para ser um
sistema de meritocracia. Queremos que só os melhores entre os
melhores desçam em Éden e trabalhem para nós. As recompensas
já foram explicadas. Meu trabalho é aprimorar as habilidades e
transmitir o conhecimento de que vão precisar quando chegarem ao
planeta dos adamitas. O processo não vai ser nada fácil.
Ele estala os dedos, e funcionários da Babel entram no recinto.
Seus passos abafados são o único ruído audível. Noto a presença
de Vandemeer entre eles. Faço um aceno de cabeça, que ele
retribui com um sorriso. Os assistentes colocam um anel preto
diante de cada um de nós. São lisos, sem nenhuma espécie de
decoração. Como crianças curiosas, pegamos os anéis e
começamos a examiná-los. O meu é frio ao toque. Sinto outra coisa
também. Algo que me puxa quando o viro sobre a palma da mão. O
material parece vivo e cheio de energia. Ele quer alguma coisa. Eu o
coloco no dedo anelar e não fico surpreso ao constatar que se
encaixa com perfeição. A Babel parece ser o tipo de empresa que
se preocupa com cada detalhe.
– Vocês vão aprender a usar a nyxia por meio de uma série de
tarefas – explica Defoe. – A primeira começa agora.
Uma onda de choque se espalha pela mesa. Mas já? Só
descobrimos que estamos no espaço uns dois minutos atrás. Hilal
olha para Kaya e para mim. Suas mãos estão tremendo, mas ele
consegue dizer:
– Boa sorte, certo?
– Para você também – respondo. E com sinceridade. Fico
contente por nossos caminhos terem se cruzado. Ele é um cara
legal.
Um cara legal que ainda assim quero derrotar. Preciso derrotar. Ao
final disto tudo, Hilal vai voltar para a Palestina e eu vou voltar para
Detroit, e quero que seja como um vencedor, como um dos oito que
se deram bem. Desvio os olhos, torcendo para que ele não fique
entre os dois últimos, mas desejando ainda mais que eu consiga
vencê-lo. Defoe mostra a adaga que atirou na sala de reuniões,
aparentemente uma eternidade atrás. Luz tremula por toda a
extensão dela.
– Uma das funções mais importante do treinamento é ensinar
vocês a serem criativos na manipulação da nyxia. Queremos que
saibam usar o recurso que vão minerar para nós, e isso exige
concentração. – Com um gesto mínimo, a lâmina se contrai para o
tamanho de uma pequena esfera perfeitamente redonda. Defoe a
ergue para que todos possam vê-la. – Primeiro passo: transformar
seu anel em uma pedra. Podem começar.
Me apresso a tirar o anel do dedo. O grupo inteiro fica em um
silêncio compenetrado. A ligação que senti antes volta à vida. Faço
o possível para perceber a energia fluindo, e imagino uma pedra. O
pensamento fisicamente deixa a minha cabeça. Por um instante fico
só olhando para minhas mãos. O que eu estava tentando fazer?
Então o pensamento aparece na superfície preta do metal. Meu anel
estremece na minha palma e se molda em uma bolinha. Abro um
sorriso de alívio e olho ao redor da mesa. A maioria dos outros já
completou a tarefa também.
Somente Hilal e Isadora, a menina brasileira, não conseguiram.
Meu primeiro instinto é o de ajudar Hilal, mas não sei como nem por
que fazer isso. Se for um teste, ele que sofra. É um pensamento
cheio de frieza, e estremeço um pouco quando na tela atrás de
Defoe aparece uma imagem: um par de luvas de couro.
– Passo dois: manipular a substância para transformá-la neste par
de luvas.
Essa é mais difícil. Meu primeiro pensamento faz a pedra
estremecer antes de eu determinar a cor da imagem na minha
mente. Isso as deixa formadas pela metade, com alguns dedos
faltantes. Fico impressionado com a maciez, com seu aspecto real.
Olho para a imagem, me concentro e organizo o pensamento outra
vez. Assim como antes, ele escapa da minha mente, me deixando
um tanto perdido. Então a nyxia reage, e ganho o meu par de luvas.
Nas paredes ao nosso redor, um placar aparece.
Estou em sétimo. Esse pensamento me deixa com as mãos
suadas. Apenas Hilal, Jazzy e Isadora estão atrás de mim. Longwei,
o asiático rabugento de franja, tem a maior pontuação total, e com
uma grande vantagem. A mensagem da Babel é bem clara: vencer
é importante. Defoe examina os resultados, e a sala inteira fica à
espera enquanto Isadora tenta moldar suas luvas. Ela está
transpirando, e eu lamento, mas ao mesmo tempo agradeço por não
estar em seu lugar. Hilal ficou em oitavo. Ele me lança um olhar
apreensivo.
– Vai melhorar, né? – ele murmura.
Faço um aceno rápido, mas estou compenetrado demais para
oferecer algo além. Não tenho tempo para dar tapinhas nas costas e
cuidar de mim.
Defoe aciona um botão e a imagem desaparece.
– Por último, preciso que produzam uma flor com caule roxo e dez
pétalas.
Espero até que ele mostre uma imagem, mas em vez disso Defoe
atravessa a sala e começa a remexer uns papéis. Nenhuma
referência de imagem desta vez, então. Tento imaginar a estranha
flor, mas me distraio quando o nome de Longwei pisca no placar.
Um monte de pontos é acrescentado ao seu total. Olho para o outro
lado da mesa e o vejo guardando a flor no bolso do casaco. Seus
olhos se estreitam em um sorriso de satisfação. Ele sabe que todos
vão querer espiar o que ele fez para facilitar nossa transformação.
Me esforço para me concentrar.
Caule roxo, caule roxo. Dez pétalas, dez pétalas.
Minhas luvas de nyxia se fundem e se encolhem em um caule cor
de lavanda. Mas faltam as pétalas. Alguns outros nomes piscam no
placar, e começo a suar enquanto formo e libero mais um
pensamento. A flor aparece, mas com pétalas demais. Em pânico,
tento de novo. E fracasso de novo.
Quando consigo fazer a flor certa, sete outras pessoas já
terminaram. Inclusive Hilal. Derrotei apenas Isadora e Roathy. Se
fizessem os cortes hoje, eu escaparia de sair de mãos abanando
por meros 4,3 segundos. Olho para a minha flor roxa desajeitada e
tento não ter um ataque de pânico. Para vencer a competição, é
preciso ter regularidade. Foi só um evento. Só o primeiro.
Defoe se vira para nós quando o placar se consolida.
– À medida que progredirmos, vou começar a exigir imagens e
itens maiores e de maior complexidade. Fiquem à vontade para
pedir conselhos uns aos outros sobre a manipulação, mas eu não
abriria mão de nenhum segredo sem a garantia de obter outro em
troca. Por favor, transformem sua substância de volta em um anel e
me sigam.
Levanto os olhos e percebo que Longwei já está pondo o anel no
dedo. Kaya e Azima se levantam logo em seguida. Os cinco
primeiros formam uma fila enquanto os retardatários, inclusive eu,
apressam-se para acompanhá-los. Tento manter a cabeça erguida,
mas sinto que já estou comendo poeira. Como conseguem ser tão
melhores? Como Longwei pode ser tão sobrenaturalmente rápido?
Pelas três horas seguintes, Defoe nos conduz por diversas outras
atividades aleatórias. Cada um de nós nada por dez minutos em um
tanque com turbina que simula ventos fortíssimos. Katsu faz uma
piadinha sobre baleias, e os ajudantes precisam tirá-lo da água
depois de nadar por apenas um minuto. Ele deita no chão com as
mãos na barriga e dá risada. Defoe não parece achar muita graça.
Não sou o melhor nadador do grupo, mas consigo ficar entre os
três primeiros, o que me deixa em uma posição mais segura no
placar. Depois de nos secarmos, passamos uma hora em uma sala
de aula aprendendo sobre a flora de Éden e algumas espécies
nativas. Fico surpreso por ter que fazer uma prova no final e me saio
mal no teste. Prestei atenção à aula, mas os nomes se misturaram
na minha cabeça. Fico remoendo os erros. Todo ponto é importante,
cada pontinho conta.
Longwei arrasa na prova e mantém sua vantagem no topo da
tabela. Por sorte, Roathy se sai pior que eu, e seus números
continuam desabando a cada tarefa. É uma coisa viciante verificar a
posição de cada um, verificar onde poderíamos ter nos saído
melhor. O único que nunca olha é Longwei, porque onde mais ele
estaria além de no primeiro lugar?
De tempos em tempos, Defoe pede para manipularmos nossos
anéis de nyxia em alguma outra forma. Vou melhorando a cada vez,
assim como todo mundo. Hilal, principalmente, está ficando craque,
e é impossível não notar que seu nome está assumindo as posições
que deveriam ser minhas. Em determinado momento, ele faz um
comentário sobre seu progresso; finjo que não ouço.
Fazemos exercícios de evasão simulada, além de um teste
situacional projetado para nos ajudar a entender como pensam os
adamitas.
Quando enfim chega a hora do almoço, meus olhos se voltam para
o placar:

1. LONGWEI 7.324 pontos


2. JAIME 4.874 pontos
3. AZIMA 4.454 pontos
4. KAYA 4.200 pontos
5. KATSU 4.124 pontos
6. HILAL 4.100 pontos
7. EMMETT 3.843 pontos
8. JASMINE 3.650 pontos
9. ROATHY 3.324 pontos
10. ISADORA 2.980 pontos

Toda a empolgação do início do dia desapareceu. Estamos


cansados de tanto nadar, correr e pensar. Cansados de ver outros
nomes à frente dos nossos no placar e de tentar estabelecer
conversas amistosas entre uma tarefa e outra. Defoe e alguns
técnicos nos observam de um canto do refeitório quando
despencamos nos assentos e olhamos para nossos pratos. Sei que
estão felizes. A competição está a todo vapor. Os guerreiros estão
sendo moldados e endurecidos. Ferro afia ferro, foi o que disse
Defoe. Ele tinha razão. Quando isto terminar, vou estar mais duro,
frio e afiado do que poderia ter imaginado alguma vez na vida.
Ponho mais comida na boca e penso na recompensa. No esforço,
na competição e no sofrimento. Só o que preciso fazer é sair
vencedor no joguinho da Babel e posso voltar para casa como um
rei.
DIA 1, 16h03
A bordo da Gênesis 11

– As atividades da tarde vão ser dinâmicas de grupo.


Olho ao redor e fica claro que não sou o único insatisfeito com a
ideia de fazer atividades em grupo. Passamos a manhã inteira
lutando com unhas e dentes uns contra os outros para garantir o
melhor lugar possível. Sabe esse pessoal que está acima de mim na
tabela? Eles não são meus amigos. E quem está abaixo? Duvido
que estejam empolgados para serem meus parceiros. Defoe ignora
a tensão e nos organiza em grupos aleatórios. Resmungo
mentalmente ao ver que Longwei caiu no outro time. Até agora, ele
se mostrou imbatível. Qualquer que seja a próxima competição, a
equipe dele com certeza já está em vantagem.
Defoe nos conduz dois lances de escada para baixo e por portas
duplas automáticas. A sala está vazia, a não ser por uma rede que a
divide ao meio. Parece uma rede de tênis, que chega até a cintura e
parte o local na vertical, formando dois retângulos compridos. Cada
porção da sala vazia se estende por 30 metros de comprimento, 20
metros de largura e 20 metros de altura. O teto, o piso e as paredes
são pretos como nyxia. Defoe manda minha equipe para um lado e
a de Longwei para o outro. Encolho os dedos dos pés e testo a
resistência do piso com o peso do corpo. É um material meio
flexível, mas não elástico a ponto de prejudicar o equilíbrio. Talvez
algum tipo de borracha?
Apesar de não termos Longwei, nosso time não é ruim. Jaime,
Azima e Kaya estão logo atrás dele na classificação. Mas Isadora
está em último lugar. Olho para ela como se fosse um peso morto, e
percebo que Jaime e Azima estão fazendo o mesmo comigo.
Eles acham que sou um dos pontos fracos. Preciso mudar isso. E
depressa.
Esperamos Defoe ultrapassar a rede para o lado oposto ao da
entrada da sala. Ele mexe na tela portátil, e mecanismos ganham
vida. O piso começa a vibrar, e Defoe assume seu lugar em uma
plataforma elevada. Como sempre, está com seu sorriso de
predador.
– Esta é a Sala do Coelho.
Ele faz um gesto para as paredes. Os espaços vazios piscam, e
imagens idênticas de uma floresta aparecem nas paredes de ambos
os lados da rede, com cores brilhantes e realistas. É como se
estivéssemos olhando para um portal que leva a outro mundo. Com
certeza a tecnologia apenas desta sala custa mais que o meu bairro
inteiro.
– Se fizerem contato com a parede de trás – Defoe continua as
instruções –, estão fora da competição. A equipe com mais gente no
fim do exercício vence.
Sem dizer palavra, ele aciona a tela portátil e o chão começa
literalmente a se deslocar. Ambos os times começam a ser
empurrados na direção da parede traseira. Na tela distante à frente,
um corredor invisível se move por entre as árvores. Precisamos
persegui-lo, percebo. Em uma esteira gigante.
Jaime é o primeiro a se dar conta do fato.
– Vamos! – ele grita.
Com alguns passos, ele se afasta da parede do fundo. O time de
Longwei já está no meio da sala do outro lado. Dá para ouvir seus
cochichos quando o nosso grupo segue Jaime lá para a frente.
– Vamos ficar o mais perto possível da tela.
Jaime não só parece um capitão falando como também tem a
aparência de um. Alguma coisa nessa tomada de liderança me irrita,
mas não tenho um plano melhor, então vou atrás dele e de Kaya. Os
outros se juntam a nós, e quando chegamos bem perto da tela
diminuímos o ritmo para uma caminhada acelerada. A floresta é tão
realista que parece possível dar um salto dimensional e ir parar lá.
Depois de alguns minutos, a velocidade aumenta. Já estou
ofegante, assim como o restante do nosso time. O caminho se
bifurca e o primeiro obstáculo aparece. Um enorme tronco de árvore
atravessa o caminho. Continuamos correndo lado a lado, esperando
que o corredor invisível escolha uma direção.
É por isso que nenhum de nós espera que a árvore apareça. Em
um instante, está tudo vazio. No instante seguinte, um tronco em
tamanho real surge na esteira e derruba Azima. O barulho ecoa pela
sala, e a queda dela faz Kaya tropeçar. As duas ficam para trás,
junto com o tronco, que absurdamente está caído em cima da nossa
esteira.
Até penso em voltar para ajudá-las, mas Isadora grita:
– Cuidado!
Juntos, nós nos encurvamos para desviar de um galho baixo que
aparece de repente. Jaime faz o mesmo antes de se posicionar
entre nós. Quando o caminho fica livre, olho para trás e vejo Kaya
tentando ajudar Azima a se levantar. Mas ela está atordoada demais
para se mover. Um instante antes de as duas se espatifarem contra
a parede traseira, Kaya rola para o lado e sai correndo.
Nosso lado da sala pulsa. Uma luz branca atravessa as paredes e
o piso, então a velocidade da esteira aumenta. Estamos indo mais
rápido que o outro grupo agora. O castigo é bem claro. Quem perde
um membro da equipe tem menos chance de vencer.
E agora os obstáculos também estão vindo mais depressa. Uma
pedra rola pela esquerda, e três de nós saltamos para a direita.
Kaya está quase nos alcançando quando um animal surge do meio
das árvores. Vejo suas presas e garras e me abaixo instintivamente
assim que a criatura salta. Eu escapo, mas Jaime é pego pelo
ombro. Percebo quando ele cai, e escuto seu grito, seguido pelo de
Kaya. Olho para trás para ver se o bicho já foi, mas Jaime e Kaya
estão embolados um com o outro. Antes que possam recobrar o
equilíbrio, a esteira manda os dois para a parede traseira.
Solto um palavrão quando nosso lado pulsa duas vezes e a esteira
começa a se mover cada vez mais depressa.
Estamos correndo praticamente em velocidade máxima. Isadora
põe a mão abaixo das costelas. Testemunhar sua dor faz com que
me lembre da minha. A pontada na barriga fica mais forte, então
grito:
– Não para!
Lado a lado, vamos atravessando a floresta cada vez mais densa.
Um som de impacto forte ressoa à direita, e ouço gritos da outra
equipe. As paredes pulsam com luzes sucessivas. Não posso me
arriscar a olhar para ver quantos ainda estão lá. Isadora e eu
continuamos correndo.
Mais adiante, um riacho cruza a superfície da floresta. Enquanto
me pergunto se vamos ter que saltar, o corredor invisível que nos
guia decide ir em frente. Uma faixa do chão assume uma coloração
azul, e meu pé pousa bem em cima dela. O chão afunda como areia
movediça. A alteração repentina me faz perder o equilíbrio, e caio
com força na esteira, arranhando o ombro na queda. Isadora dá um
grito, e nós dois somos arrastados para trás.
Eu consigo ficar de pé. Isadora não.
A luz pulsa outra vez; estou sozinho. Uma rápida olhada revela
que Longwei, Hilal e Jazzy ainda estão correndo. É uma surpresa
ver Jazzy liderando o grupo, mas uma observação mais atenta
revela que faz todo o sentido. Ela mantém a compostura, como se
as corridas cross-country fizessem parte de sua rotina habitual.
Longwei e Hilal seguem no encalço dela, imitando a forma como
Jazzy se desvencilha de cada obstáculo.
Acelero o movimento dos braços e consigo voltar ao centro do
nosso lado da sala. A floresta fica menos densa, e vejo uma série de
desfiladeiros adiante. A trilha se transforma em uma decida, e meu
estômago vai parar na boca. Há precipícios e barrancos mais à
frente. Vejo o corredor invisível que guia nosso caminho se
aproximar da beirada e saltar.
Só pode ser brincadeira.
Uma faixa vermelha aparece na esteira. Mal consigo pulá-la, mas
a descida continua, e a trilha passa a percorrer um caminho
tortuoso. Um precipício enorme se abre do lado direito, e preciso
correr na ponta dos pés para não ralar o ombro no paredão à
esquerda. A velocidade está aumentando, e meu único consolo é
ver que Hilal errou um salto e está eliminado. Depois vêm dois
saltos em sequência, e no segundo eu aterrisso de um jeito meio
estranho. Quase torço o tornozelo. O tropeção me joga para o lado
errado do desfiladeiro. Vejo o caminho à minha frente encolher e
chegar ao fim. Desesperado, uso todas as minhas forças para dar
um salto em diagonal.
Não é suficiente. O chão vermelho se ergue como uma onda de
energia sob os meus pés. Minhas pernas ficam dormentes, e saio
rolando sem conseguir parar até onde minha equipe está à minha
espera, ainda ofegante. A esteira me arremessa contra a parede, e
a sala inteira fica em silêncio. A tela apaga quando Longwei e Jazzy
caem. O suor escorre pelos nossos rostos, e a dor começa a se
anunciar depois da descarga de adrenalina. É horrível.
Defoe vem andando até nós.
– Vamos visitar a Sala do Coelho com frequência. As equipes são
permanentes. Os mapas por onde vão correr vão variar, mas ainda
vai ser necessário elaborar estratégias se quiserem se dar bem. A
dinâmica do jogo vai mudar à medida que seu treinamento for
avançando. Hoje foi só uma amostra do que vamos exigir de vocês.
Podem ir descansar. Na Bíblia, o sabá vem a cada sete dias. Aqui
na Babel, descansamos a cada dez.
O restante do grupo fica de pé. Jaime inclusive estende a mão
para me ajudar a me levantar e comenta:
– Boa corrida, Emmett. Da próxima vez a gente ganha.
Uma parte de mim sente vontade de dizer que não somos amigos,
que, enquanto estiver na minha frente no placar, ele é meu inimigo.
Mas, felizmente, essa parte está cansada demais para reagir.
Seguro a mão que ele estende para mim.
– Obrigado.
Subimos os degraus com passos arrastados e entramos no
ambiente mais amplo do refeitório. Quando olho para o placar, fico
de queixo caído. Terminei em terceiro lugar no último exercício. Só
dois competidores resistiram aos obstáculos melhor que eu. Estava
esperando ultrapassar algumas pessoas na pontuação. Em vez
disso, perdi posições:
1. LONGWEI 9.324 pontos
2. KATSU 6.124 pontos
3. HILAL 6.100 pontos
4. JAIME 5.874 pontos
5. JASMINE 5.650 pontos
6. AZIMA 5.454 pontos
7. ROATHY 5.324 pontos
8. KAYA 5.200 pontos
9. EMMETT 4.843 pontos
10. ISADORA 3.980 pontos

Os outros param ao meu lado. Estão todos observando a nova


classificação e tentando entender como foi a pontuação da Sala do
Coelho. Longwei e Isadora são os únicos a permanecer na mesma
posição. Aponto para o placar quando Defoe passa por nós.
– Não entendi. Eu terminei em terceiro.
Defoe para e ergue as sobrancelhas.
– Na verdade, você terminou em segundo.
– Jazzy e Longwei ainda estavam correndo – falei. – Se foram os
únicos a me vencer, por que eu caí na classificação?
– Vocês faziam parte de uma equipe. E a sua ficou em segundo
lugar.
Minha raiva borbulha, e com bastante intensidade, do tipo que
queima a garganta. Detesto esse tipo de pegadinha, com detalhes
ocultos nas entrelinhas.
– Isso não é culpa minha.
– É um esforço coletivo – explica Defoe. – Quem fica em primeiro
ganha dois mil pontos. Quem fica em segundo ganha mil. Da
próxima vez, trate de fazer de tudo para que a sua equipe vença.
– Isso não é justo.
Defoe abre um sorriso. Ele endireita os ombros e ajusta o nó da
gravata, apesar de já estar perfeito. Cada gesto seu é um lembrete
de que, neste mundo, ele é o rei.
– Eu bem que queria saber quando ouviria essa palavra pela
primeira vez. Justo. Esqueça agora mesmo a sua ideia do que é
justo. As regras aqui são as nossas regras. Esta competição está
sujeita a ferimentos, acidentes e erros. Vocês vão parar na
enfermaria em algum momento. Podem até acabar mandando outra
pessoa para lá. Mas nunca se esqueça de que é nossa competição.
Somos nós que determinamos o que é justo ou não.
Depois disso, ele desaparece por um corredor. Olho para os
outros, porém ninguém mais parece incomodado. Fico surpreso ao
constatar como todos aceitam tão facilmente ser colocados na linha.
A retirada de Defoe faz os demais funcionários da Babel saírem
também. Meus punhos ainda estão cerrados, meu rosto está
coberto de suor. Vandemeer me entrega uma toalha e um sanduíche
embrulhado em um papel para o jantar, mas estou irritado demais
para comer, enojado demais para fazer qualquer coisa que não seja
limpar a sujeira e o suor.
Ao final do primeiro dia, estou em nono lugar. O fato aterrador de
que posso não vencer vai se instalando aos poucos na minha
mente. Me imagino voltando a Detroit e dizendo para os meus pais
que não ganhei na loteria. O prêmio de consolação oferecido pela
Babel ainda seria útil, mas eu seria obrigado a passar o resto da
minha vida ralando no mesmo emprego do meu pai para descolar
um contracheque, pensando em como seria se tivesse ganhado.
Hilal vem andando até mim e tenta chamar minha atenção, então
penduro a toalha no pescoço e sigo para a escada. A última coisa
de que preciso agora é alguém querendo ser legal comigo. Três
lances de escada depois, atravesso o corredor sozinho e entro no
meu dormitório. Não estou a fim de conversar, não com Hilal, que
está na minha frente e num confortável terceiro lugar, nem com
ninguém. Tiro o traje, a máscara de nyxia e o anel. Só de cueca,
entro debaixo das cobertas e tento fingir que estou em casa. Mas as
cobertas são macias demais, assim como a cama, e o cheiro do chá
de ervas da minha mãe não está no ar. Aqui não é a minha casa.
Até a dura realidade vir à tona, era só minha passagem para um
lugar melhor. Mas nem isso eu consigo fazer direito.
Deve estar anoitecendo. O turno do meu pai começa em breve. A
imagem dele me vem à mente: parecido comigo, só que mais largo,
mais grisalho e mais envelhecido. Está usando seu macacão azul
com o nome bordado na frente: Jeremiah. Quando acha que não
tem ninguém olhando, seus ombros sempre desabam. É o peso dos
anos, de não ter conseguido subir na vida. Não é culpa dele, mas
trata-se de um fardo que é passado de geração em geração na
minha família.
Aprendi sobre a nossa história em parábolas, contos que servem
como um alerta. O restaurante do meu bisavô foi desapropriado
para a construção de uma ferrovia interestadual. O governo
confiscou suas terras e deu uma indenização suficiente apenas para
ele tentar a sorte na cidade vizinha e fracassar. Meu avô abriu mão
da bolsa de estudos em Michigan depois que o velho morreu.
Poderia ter sido um jogador profissional, mas em vez disso foi
trabalhar em uma fábrica para sustentar os irmãos e as irmãs mais
novos. Em cada galho da nossa árvore genealógica, alguém esteve
perto de conquistar a liberdade. A vida, porém, sempre tem seus
percalços. Sempre tem algum detalhe nas entrelinhas que arruína
os sonhos antes que se concretizem.
Solto um suspiro, afasto as cobertas, fico de pé e atravesso o
quarto. A chave de metal que meu pai me deu está em um gancho
de metal. Eu a arranco da parede e a viro nas mãos, sentindo o
desgaste dos séculos. Conheço a história que acompanha essa
chave. Meus antepassados fugiram para o norte como escravos.
Um chaveiro nos arredores de Detroit fez a medição da tranca das
correntes dessa minha parente longínqua e fabricou a chave, que foi
passada de mão em mão como um símbolo para os demais Atwater,
como um lembrete de que nem sempre fomos livres para fazer o
que queríamos. Muitos dos homens e das mulheres que tiveram
essa chave nas mãos não eram livres, pelo menos não de verdade.
Meu pai? Ele não é escravo, mas também não é livre de verdade.
A vida o forçou a suar para conseguir cada centavo. Na maior parte
do tempo, é como se ele estivesse no meio de uma corrida que não
vai conseguir terminar. Ele e minha mãe nunca tiveram a
oportunidade de ir para a faculdade. Alguns primos meus
conseguiram, mas a maior parte da minha família está presa aos
trabalhos braçais desde sempre. Viro a chave na mão e me dou
conta de que posso escrever minha própria história. Não a de um
sonho perdido, mas a de um futuro reluzente como uma mina de
ouro.
Foi só um dia, lembro a mim mesmo. Minha luta vem de muitas
décadas e gerações. Um dia ruim não vai me impedir de me
levantar. Eu não vou me render, nem hoje, nem nunca.
A ideia de ir dormir é tentadora. Em vez disso, atravesso o quarto,
vou até a escrivaninha e pego meu anel de nyxia. Escrevo uma lista
de itens que pretendo criar e começo a praticar. A cada imagem, a
transformação é mais rápida; a cada manipulação, os erros
diminuem. Continuo até minha visão ficar turva. Continuo até ter a
certeza de que amanhã vai ser melhor.
DIA 2, 8h38
A bordo da Gênesis 11

Meus sonhos são buracos negros. No primeiro, o buraco negro me


devora átomo por átomo e me deixa no vazio do universo. No
segundo, eu sou o buraco negro. Escuro e gigantesco, destruo os
outros competidores, um por um. Seus gritos não têm som. Não sei
qual sonho é mais assustador, o do destruído ou o do destruidor.
Fico olhando para o teto e me dou conta de que a competição da
Babel vai me transformar em uma das duas coisas. Não existe
meio-termo na Gênesis 11.
Sei que deveria tomar um banho e me preparar para enfrentar o
dia, mas só consigo vestir meu traje e me arrastar até a
escrivaninha. Meus músculos estão tensos e doloridos, mas não
posso me deixar abalar pela dor. Não diante da necessidade de
excelência. Antes de sair, manipulo meu anel de nyxia para que se
transforme em um elástico preto. Ontem, perdi preciosos segundos
tentando arrancar o anel teimoso do dedo. Mas agora sei que cada
segundo conta. Ponho o elástico no pulso e faço um teste: ele entra
e sai bem mais fácil que o anel. Meu pai sempre diz que são os
detalhes que decidem os campeonatos. Eu acredito nisso.
Saio do dormitório e, para minha surpresa, encontro Kaya à minha
espera. Ela está sentada em um sofá e acena ao me ver. Seus
cabelos estão presos em marias-chiquinhas que parecem infantis
em comparação com a máscara irada de nyxia em seu queixo.
– Bom dia – ela cumprimenta. – Tenho uma proposta para você.
Eu levanto uma sobrancelha.
– Tem alguma coisa a ver com o café da manhã?
– Uma aliança – ela responde. – Entre nós dois.
A ideia dispersa meus pensamentos em sete direções diferentes.
Ela quer se aliar a mim? E se for uma emboscada? E se o caráter
da competição mudar? E por que fazer uma aliança tão cedo? Não
me parece o pior acordo do mundo, mas ainda estamos no segundo
dia. Eu até esperava que alianças e relacionamentos se formassem,
mas assumir um compromisso assim tão cedo me parece arriscado.
Observei Kaya ontem durante a competição. Ela seria de grande
ajuda, mas não sei o que eu teria a oferecer. E também não posso
deixar de lado os sonhos que tive. Todos aqueles buracos negros.
Destruir ou ser destruído. Uma aliança seria capaz de sobreviver ao
que a Babel programou para nós? E se a última vaga entre os
finalistas ficar entre nós dois?
– Me explica por quê.
Ela assente com a cabeça.
– Sou uma estrategista, boa na resolução de problemas. Essa é
minha especialidade. Arrumar soluções. Se você tiver dificuldade
em um evento, podemos bolar estratégias juntos.
– O que eu quis dizer foi: por que eu? Já vi você em ação. Sei que
seria uma boa aliada, Kaya, mas por que iria querer se aliar a mim?
Estou em nono lugar.
Ela assente outra vez.
– Não por muito tempo. Pude ouvir você acordado até tarde
ontem. Estava praticando, certo? Dá para ver que você tem espírito
competitivo. A Babel vai mudar a cara do jogo. Vai surgir outro tipo
de tarefa. Vou ajudar você com os seus pontos fracos; você me
ajuda com os meus. É assim que funciona uma aliança.
– Como vou saber que você não vai se aliar a outra pessoa
também?
– Você é a minha escolha mais lógica – ela responde. – Pensa
bem. Nós dividimos os mesmos aposentos. Do lado de fora dessa
porta, só existe uma competição sem fim. Precisamos lutar para
conquistar cada ponto. Você não quer ter um lugar na nave em que
isso fique em segundo plano? Se a gente se unir, pode ter um lugar
seguro para voltar todos os dias. Quero poder sentir que estou
voltando para casa.
Faço que sim com a cabeça. É inevitável. Tudo faz muito sentido.
– Eu também.
Ela estende o dedo mínimo.
– Prometo que, quando não estivermos disputando um contra o
outro, vou ajudar você na competição. Estamos juntos nessa.
Seguro o dedinho dela com o meu e repito suas palavras. Para
minha surpresa, Kaya solta um grande suspiro de alívio. Não
percebi o quanto ela estava preocupada em ter sua proposta
rejeitada.
– Então vamos começar – ela diz. – Tenho uma estratégia para a
Sala do Coelho.
Abro um sorriso.
– Quer explicar no caminho para o café da manhã? Estou
morrendo de fome.
Kaya concorda, e passamos pela porta automática. O corredor
está vazio, assim como a escada. Ao que parece, todo mundo já
está tomando café.
– Sabe a história do jabuti e da lebre? – ela pergunta.
– Sei – respondo, me lembrando da época do ensino fundamental.
– A tartaruga vence porque o coelho é arrogante. Tira um cochilo no
meio da corrida ou coisa do tipo.
– É uma história idiota – Kaya comenta, bem séria. – Muito idiota.
Se eu fosse o coelho, teria aberto uma distância insuperável da
tartaruga. Rapidez e inteligência são muito melhores do que lentidão
e persistência. Mas acho que ontem encontrei um jeito de a
tartaruga vencer.
– Na Sala do Coelho?
Kaya faz que sim com a cabeça, e começamos a descer a escada.
– Os obstáculos desaparecem assim que chegam à parede de
trás. Percebi isso ontem quando tentei ajudar Azima. A uns dois ou
três passos da parede, eles simplesmente desaparecem. Só
precisamos ficar na extremidade da esteira. Lá nós temos como nos
esconder do perigo, como uma tartaruga.
Encolho os ombros.
– Me parece uma boa ideia.

Já estou gostando da nossa aliança. Nós nos juntamos aos demais


para o café da manhã. A maioria dos pratos está vazia, e a feição de
muitos é de cansaço, como se também tivessem sonhado com
buracos negros. Pego um croissant que está com a cara boa e
algumas frutas. Não é exatamente o estilo do desjejum de Detroit,
mas tudo parece delicioso aqui. Hilal aponta para o lugar ao seu
lado, e eu me sento. Ele me cumprimenta com um bom-dia
educado, mas parece exausto. O único animado à mesa é Katsu.
– Emmett – ele chama. – Olha só isso. É incrível.
Eu me inclino para a frente. Um par de asas pretas se abre. Não é
nada muito grande, mas Katsu transformou sua nyxia em uma
espécie de sombra de pássaro. Vejo a coisa se acocorar no prato
dele e abro um sorriso.
– Bem legal – comento.
– Nem chegou a melhor parte – Katsu retruca. – Traga uma
linguiça para o seu rei!
Todos observamos quando a sombra de pássaro bate as asas até
o bufê. Depois de rodar um pouco, a criatura pega uma linguiça nas
garras e retorna. Katsu solta uma gargalhada tão alta que a mesa
inteira balança.
– Eu sou o rei! – ele berra, dando uma mordida na linguiça. – O rei
do mundo!
Alguns dão risada. Sentado mais longe, Longwei faz cara feia por
causa do barulho, como se uma risada fosse uma transgressão
digna de castigo. Jaime está sentado mais perto da gente hoje.
Ainda mantém certa distância, mas já é um começo.
– Os reis só criam problemas – rebate Azima. É impossível não
olhar para os amuletos de prata em seu pulso. E isso é mais fácil
que enfrentar seu olhar. Ela tem uma maneira de encarar as
pessoas que equivale a prensá-las contra a parede. – As rainhas
são governantes melhores. Todo mundo sabe.
Katsu cai na risada. Com uma rapidez surpreendente, ele pega o
pássaro no ombro e o transforma em uma coroa. Nossa, como ele é
rápido! Não fui o único a aprimorar minhas habilidades ontem à
noite. Ele equilibra o metal preto sobre a cabeça larga e abre os
braços em um gesto de realeza.
– Mas toda rainha precisa de um rei – ele diz.
– Rei? – A voz de Roathy interrompe a gargalhada. Ele observa
Katsu com os olhos espertos e sacode a cabeça com desdém. –
Não estou vendo reis nem rainhas aqui.
– Obrigado por afirmar o óbvio, gênio – Katsu retruca. – Estamos
só brincando.
Roathy não reage ao insulto. Simplesmente fica encarando Katsu,
e percebo que sua intenção é ver o que existe por trás das piadas e
das brincadeiras. Sua intenção é encontrar uma camada mais
profunda e obscura.
– Olha ao seu redor, grandalhão. Qual é a única coisa em comum
entre todos nós?
Katsu não responde. Todos olham em volta, como se a resposta
pudesse estar escrita nas paredes. Os outros podem não saber,
mas eu já saquei exatamente o que é: somos todos ferrados e mal
pagos. É esse o elemento em comum. A Babel tem recursos
ilimitados. Não é difícil imaginar a triagem que fizeram para chegar
até nós: pesando, medindo, selecionando. Eles precisavam
encontrar uma forma de nos tornar manipuláveis. Nossa pobreza só
faz o bilhete de ouro que eles têm a oferecer ficar ainda mais
atraente.
– Nós somos pobres – Roathy afirma sem um pingo de vergonha.
– Fomos escolhidos porque não temos dinheiro. Podemos ser reis e
rainhas, claro, mas só se nos curvarmos primeiro.
Ninguém faz menção de negar. Algumas pessoas olham para os
próprios pratos. Outras cerram os dentes. Jaime continua
mastigando distraído seu pedaço de bacon. Sua postura casual me
incomoda.
– Menos você – digo, antes de me dar conta do que estou
fazendo.
Jaime ergue os olhos.
– Quê?
– Roathy tem razão – explico. – Aqui todo mundo é pobre, menos
você.
Jaime encolhe os ombros, como se eu não tivesse entendido nada
a seu respeito.
– Não sei do que está falando.
– Então me diz, sr. Suíça… o que os seus pais fazem da vida?
Não deveria fazer diferença, mas faz. A competição é tudo. Se
vamos continuar brigando mano a mano até o fim e o filho de um
executivo engravatado terminar com o meu bilhete premiado, vou
ficar muito puto. Jaime não se deixa abalar pela acidez da pergunta,
mas percebo que suas mãos permanecem imóveis durante a
resposta, como se ele não soubesse mentir e agir normalmente ao
mesmo tempo.
– Eram produtores rurais, mas nós perdemos nossa propriedade
no ano passado. Então vai à merda, Emmett.
– O que eles produziam? – questiono.
Jaime sacode negativamente a cabeça, um gesto que proporciona
um segundo a mais para inventar uma mentira. Reconheço isso
porque sou um dos melhores nessa tática de enrolação.
– Laticínios. Nós fabricávamos queijo montanhês.
– Até parece – retruco.
Estamos os dois de pé, e estou soltando o ar com força pelo nariz.
Não sei por que fiquei irritado, mas tenho certeza de que ele não é
um de nós. Ele é alguma outra coisa. Não tem a mesma
necessidade que o restante do grupo; está aqui por outro motivo. O
fato de ele poder ficar com o que é meu me dói como uma facada.
Ainda estamos nos encarando quando Defoe chega. Assim que nos
vê medindo um ao outro dos pés à cabeça, ele não abre seu sorriso
habitual.
– Algum problema, senhores?
Cerro os dentes e faço que não com a cabeça, sem tirar os olhos
de Jaime.
– Não, senhor. Problema algum.
Arquivo os acontecimentos desta manhã na letra R de raiva. Por
sorte, a raiva silenciosa que sinto por causa da mentira de Jaime me
ajuda a manter a concentração durante as primeiras tarefas. Para
aquecer, começamos com as manipulações de nyxia. As horas que
passei praticando na noite anterior me fizeram produzir cada nova
imagem em um piscar de olhos. Defoe pediu uma colher, um cabo
de espada e um livro com as páginas em branco e capa azul. Fico
atrás apenas de Longwei, Katsu e Azima nessas tarefas.
– Por último – Defoe diz, segurando um copo –, transformem a sua
nyxia em água.
Pensamento, piscar de olhos, transformação. Em um instante
estou com um copo transparente na mão direita, mas a água não
está lá. Repito o processo, mas a água ainda não aparece. Volto
meu olhar para Longwei. É surpreendente não ver o nome dele
piscar no placar. Ele continua transformando sua nyxia, mas, assim
como no meu caso, o copo continua vazio.
Defoe sorri, só esperando.
– Não dá para transformar em água – eu digo.
O sorriso de Defoe se alarga, e o meu nome pisca no placar. Por
algum motivo, a resposta me dá mil pontos. Vejo que subi para o
quinto lugar.
– Muito bem, Emmett. A nyxia não pode ser transformada em
água, alimento ou elementos orgânicos – Defoe explica. – Portanto,
quando estiverem em Éden, vão precisar usar a nyxia como recurso
para conseguir comida e água. Ela pode virar uma panela para
ferver água, uma lança para caça, mas não um bufê de pratos
quentes – ele ergue o copo e dá um gole – nem ao menos um
simples copo d’água.
Depois da lição, vamos com Defoe para a área de treinamento e
passamos pelo mesmo processo do dia anterior. Uma sessão na
sala de aula ensina a categorização dos tipos de cogumelo
existentes em Éden. Kaya se senta ao meu lado e me lança um
olhar antes de manipular sua nyxia para que se transformasse em
um caderno e uma caneta. Ela faz um gesto para que eu a imite.
Aceno com a cabeça e copio sua manipulação. Preciso de
algumas tentativas para acertar, mas enquanto o vídeo é exibido
começo a anotar tudo. Defoe provavelmente vai pedir para
guardarmos nossas anotações ao fim da sessão, mas escrever tudo
ajuda a fixar as palavras na minha mente. Mal acabo de catalogar
as cores e os formatos venenosos quando a apresentação termina e
Defoe distribui as telas portáteis para a prova. Ele observa minhas
anotações, faz um gesto positivo com a cabeça e segue em frente.
A prova é moleza. Ainda consigo errar uma questão, mas me saio
muito melhor que a maioria. Longwei e Jaime gabaritam as
respostas. É impossível não pensar que Jaime vai bem porque
estudou em escolas melhores ou foi criado em uma casa com uma
biblioteca imensa. Uma parte de mim pequena e assustada se
pergunta se o que ele disse pode ser verdade, se ele é mesmo o
filho de produtores rurais que perderam suas terras. As pessoas já
tiraram conclusões equivocadas sobre mim antes, então sei o
quanto uma identidade mal compreendida pode ser incômoda.
Murmuro um agradecimento para Kaya quando nos deslocamos
para a tarefa seguinte. Nossa aliança já está rendendo frutos. No
placar, subi para o quarto lugar.
1. LONGWEI 11.350 pontos
2. KATSU 9.124 pontos
3. JAIME 8.200 pontos
4. EMMETT 7.850 pontos
5. AZIMA 7.750 pontos
6. KAYA 7.400 pontos
7. HILAL 7.300 pontos
8. JASMINE 7.050 pontos
9. ROATHY 6.324 pontos
10. ISADORA 5.080 pontos

Ontem caí para o nono lugar e isso me pareceu o fim do mundo.


Subir na classificação é ótimo, mas preciso ter em mente que nunca
estou seguro. A pontuação de cada dia conta. Hoje é um dia bom,
mas amanhã eu posso me dar mal em uma tarefa e perder quatro
posições.
É uma grande montanha-russa.

Um a um, os outros entram no enorme tanque que a Babel construiu


no chão. Os ventos simulados agitam violentamente a água, e os
desafiantes nadam como se estivessem enfrentando tsunamis perto
da praia. Enquanto Katsu se debate loucamente nas águas
tormentosas, manipulo meu elástico de nyxia e os transformo em
óculos de natação. Em seguida, escondo-os atrás das costas
quando Defoe chama Jazzy.
Ao chegar a minha vez, prendo o elástico dos óculos de natação
na nuca. As ventosas fixam o equipamento aos meus olhos, e entro
na minha bolha particular. Mergulho no tanque e começo a nadar. A
diferença é perceptível. Ontem nadei às cegas entre as ondas. Não
foi terrível, mas às vezes batia nas bordas e desperdiçava energia
para corrigir a rota. Conseguir enxergar faz toda diferença. Posso
espiar entre as braçadas e ver se estou no ritmo certo em relação
aos demais.
Dez minutos depois, as ondas se acalmam e saio da piscina. Kaya
é a única que vai nadar depois de mim. Ela manipula seus óculos e,
seguindo nosso espírito de equipe, minha força se soma à dela.
Quando os resultados são divulgados, meu nome aparece à frente
de Jaime e Katsu no placar. Segundo lugar.
Instintivamente, volto meu olhar para Longwei. Ele ainda está
ofegante por causa da natação. Seus olhos se cravam nos meus, e
ele faz um aceno de cabeça. Desafio aceito, penso. Abro um sorriso
quando nos dirigimos para a Sala do Coelho. Longwei não sabe que
tenho uma carta na manga. Jaime se recusa a olhar para mim, mas
escuta com atenção quando Kaya passa para o grupo a mesma
explicação que me deu de manhã.
– Então, se ficarmos bem no final da esteira – ela diz –, não vamos
precisar desviar de nenhum obstáculo. É só vocês ficarem atentos e
manterem o passo, entenderam?
– Não gosto dessa ideia – comenta Jaime. – Um passo em falso e
fica impossível se recuperar.
– Mas só vamos precisar correr – Kaya responde sem perder a
calma. – Sem precisar desviar nem pular nada. Enquanto a esteira
estiver ganhando velocidade, podemos ir mais para a frente e abrir
espaços entre nós. Acho que podemos ficar para trás só quando
chegarmos aos desfiladeiros.
Jaime abre a boca para retrucar, mas Azima o interrompe:
– Eu lembro que a árvore desapareceu. É uma boa estratégia,
está na cara, mas e se a outra equipe perceber o que estamos
fazendo e copiar?
Kaya balança a cabeça.
– Só vamos ter essa vantagem hoje. Podemos começar no meio
da esteira e ir para trás quando o primeiro obstáculo aparecer.
Azima concorda:
– Garota esperta. Vamos vencer hoje. Eu vim aqui para ganhar.
Jaime faz cara feia, e dá para perceber por quê. Ontem quem
tomou a iniciativa foi ele. Hoje vamos seguir as instruções de Kaya.
Ser líder não dá pontos no placar, mas aposto que a Babel está
prestando atenção a tudo. Depois de um momento de imobilidade e
frustração, Jaime assente com a cabeça e assumimos nossas
posições. A outra equipe forma uma fila organizada, com Jazzy à
frente. Eles abrem espaços entre si para que uma queda não
derrube todos os demais. Defoe ergue a mão pedindo atenção.
– As mesmas regras de ontem. Se perderem um participante, a
velocidade aumenta. Boa sorte.
O chão começa a se mover. O corredor invisível que nos guia
começa a percorrer uma floresta conhecida, e os únicos ruídos são
os das respirações leves e os dos passos pesados. O ritmo continua
tranquilo por alguns minutos, até vermos uma série de árvores
caídas mais à frente. Ao sinal de Kaya, diminuímos o passo.
Ninguém da outra equipe percebe que nos posicionamos nos
últimos metros da esteira e então retomamos o passo. Defoe nota, e
seus olhos se estreitam de curiosidade.
As árvores tombadas se materializam diante de nós: um
emaranhado de galhos, que o outro time desvia em movimentos de
zigue-zague. Longwei grita ordens, e os seus colegas parecem uma
fila de patinhos atrás da mamãe. O pânico comprime meu peito
quando as árvores se aproximam cada vez mais e então
desaparecem. Kaya abre um sorriso satisfeito e nos mantemos nos
nossos lugares. Jaime estava certo: não existe margem para erros.
Mais ou menos meio metro para trás ou para a frente. Mas o plano
de Kaya com certeza está funcionando.
A distância, duas criaturas parecidas com lobos ganham vida. A
outra equipe se desloca para a direita, e vejo um vulto de sombras
negras. Os anéis de nyxia deles se agrupam na forma de pequenos
escudos. Os lobos passam pela formação cerrada e são rechaçados
facilmente. Vejo nossos lobos se dissolverem em meio a rosnados.
Kaya dá uma risadinha dessa vez. Do outro lado da rede, Jazzy fica
um pouco para trás e põe a mão no ombro de Katsu. Ele é bem
mais pesado que os demais, e o ritmo já está ficando puxado.
Continuamos correndo. Um deslizamento enorme de terra
acontece, e Katsu não consegue desviar. Jazzy se afasta, mas na
queda a mão dele se engancha em seu traje e os dois são lançados
contra a parede de trás. A sala pulsa duas vezes, e os três
competidores restantes do outro lado precisam correr cada vez mais
depressa.
Mais adiante, a trilha da floresta começa uma trajetória
descendente, e vejo a série de desfiladeiros que atravessamos
ontem. Mal consigo acreditar no quanto estou energizado desta vez.
Não perdemos ninguém, e nosso ritmo se mantém em um trote
confortável. Hilal, Roathy e Longwei estão correndo a toda
velocidade.
– Kaya – eu chamo. – Está na hora de ir lá para a frente?
Ela já viu o desfiladeiro.
– Vai na frente, Emmett. Fiquem longe da faixa vermelha.
Começo a correr com passos mais largos. Os desfiladeiros são
serpenteantes e cheios de falhas abruptas. Desvio para a esquerda,
e meu grupo vem atrás. A outra equipe já está aos tropeções, e faço
meu melhor para me manter concentrado no nosso desempenho, e
não no deles. Quando saltamos nosso primeiro abismo, as luzes
piscam à nossa direita e a esteira para de repente. Os cinco
membros do nosso time ainda estão de pé. Até Jaime está todo
sorridente, como se o incidente do café da manhã tivesse
acontecido séculos atrás.
– Meus parabéns – diz Defoe. – Podem esperar ajustes no
percurso amanhã.
Ou seja: A falha vai ser consertada, mas gostamos de ver que
vocês souberam tirar vantagem disso. Arquivo o que aconteceu na
letra V de vitória e vou até Kaya para um abraço discreto. O restante
do grupo se aproxima, e o sorriso dela é tão escancarado que nem
mesmo a máscara de nyxia é capaz de esconder. Não sei por quê,
mas a sensação é muito melhor do que ganhar uma prova
individual. Não tenho nada contra a ideia de reconhecer o mérito de
Kaya, e gosto de vencer. Peço para ela bolar uma nova estratégia
para a equipe, o que ela faz de bom grado. Apenas quando
voltamos para nossos aposentos no fim do dia é que me dou conta
da verdadeira importância da vitória: eu passei para o primeiro lugar
no placar.
Me obrigo a pensar que ainda falta muito, mas vou dormir com um
sorriso no rosto. Pela primeira vez, sinto que tenho um motivo para
estar aqui, que mereço ir a Éden. Sei que, quando acordar no dia
seguinte, não vou me contentar em ficar entre os oito.
Eu quero ganhar.
DIA 7, 8h38
A bordo da Gênesis 11

1. EMMETT 38.900 pontos


2. LONGWEI 36.750 pontos
3. AZIMA 29.900 pontos
4. HILAL 29.300 pontos
5. KAYA 28.450 pontos
6. KATSU 27.400 pontos
7. JAIME 26.200 pontos
8. JASMINE 22.050 pontos
9. ISADORA 22.080 pontos
10. ROATHY 21.324 pontos

A competição da Babel não é uma corrida de tiro curto.


É uma maratona na qual vez ou outra precisamos atravessar
terrenos alagados. Já deu para sentir que os sétimos dias vão ser
sempre os mais difíceis. Uma semana seguida de trabalhos, e ainda
bem longe do sabá. Esses serão os dias que vão testar nossas
amizades forçadas e nossas alianças. As pessoas vão se ferir nos
sétimos dias, vão perder a cabeça nos sétimos dias. Até aqui, as
únicas folgas que tivemos foram para as simulações
comportamentais. E às vezes elas são mais exaustivas que a Sala
do Coelho. Mas cada dia que passa é um lembrete, um testamento.
Eu sou bom. Sou capaz de terminar entre os oito primeiros, de
vencer. Kaya se esforça para pôr tudo em perspectiva nas nossas
conversas diárias, mas sei que sou um competidor levado a sério
por causa de Longwei. Ele passa metade do tempo me encarando.
Estamos nos revezando na liderança do placar. Não desvio o olhar
quando ele me encara. Não vou amarelar, nem para ele, nem para
ninguém.
No sétimo dia, a Babel forma guerreiros.
Defoe nos conduz por um corredor desconhecido até uma sala
com um espaço aberto e bem amplo. Parece um ginásio de
trampolim acrobático. O recinto tem três ou quatro níveis, paredes
acolchoadas e uma estante preta com armas dos dois lados da
porta. Espadas de vários tamanhos e maças ameaçadoras. Vejo até
algumas estrelas ninja.
Minhas entranhas se retorcem. Depois de ver o que os adamitas
fizeram com uma tropa de militares armados, era de se esperar que
haveria algum tipo de treinamento de combate. E era de se esperar
que só poderíamos treinar um contra os outros. Kaya e eu trocamos
olhares. Não sei quem vai orientar quem nesta competição. Ela é
miudinha, mas ninguém precisa ter um físico imponente se souber
usar uma lâmina afiada.
A tela portátil de Defoe acende. Vemos uma tela se iluminar ao
longe. Versões de Hilal e Azima como personagens de Combat
Kings aparecem. Seus avatares digitais nos encaram. Preciso
espremer os olhos, mas consigo ver a barra de energia e a lista de
sinais vitais acima de suas cabeças.
– As armas vão parecer reais. Foram projetadas com o peso e o
centro de gravidade reais. Porém são revestidas com um óleo de
nyxia inventado por nós. Não são capazes de cortar nem de tocar
objetos físicos. – Defoe empunha um machado. Ele se aproxima de
um conjunto de blocos e golpeia. A arma faz um zunido no ar, e a
lâmina desaparece ao passar pelo revestimento acolchoado.
Jazzy vocaliza o que todos estão pensando:
– Isso é incrível.
Defoe devolve o machado ao seu lugar.
– O dano que vocês infligirem ao oponente vai ser exibido no
vídeo. É um jogo com vencedores e perdedores. Se deceparem um
membro, o adversário não vai poder usá-lo. Se cortarem uma
artéria, o sangramento pode levar à derrota. Se acertarem um golpe
fatal, vão sair vencedores. Entendido?
Todos assentimos. Eles vão mesmo nos colocar para lutar uns
contra os outros. Olho para Jaime. Não será surpresa alguma se
nos enfrentarmos. É assim que acontece nos filmes. Os
protagonistas são colocados para brigar com quem já não se davam
bem. E levam a pior.
Azima e Hilal dão um passo à frente.
– Escolham suas armas com sabedoria – avisa Defoe.
Azima escolhe uma lança de seu tamanho. Depois de testar
alguns golpes, ela caminha até o centro da arena. Mas Hilal parece
perdido. Duvido que um cara gente boa como ele já tenha brigado
alguma vez na vida. Ele passa pelas prateleiras de armas, olhando
para cada uma como se fossem cobras venenosas. Por fim, escolhe
uma espada curta. Parece bem deslocado quando desce para a
arena. Eles se encaram. Na tela, seus avatares fazem o mesmo.
Apesar de estarem parados ali, os avatares assumem uma posição
de luta.
– Podem começar – diz Defoe.
Nossas lutas não têm o mesmo drama do cinema. Lutas reais com
armas não se estendem por vários minutos. Acabam em segundos.
Hilal ergue a espada e cambaleia para trás quando a lança de
Azima é projetada para a frente. Ele ainda está recuando quando
um segundo golpe o atinge na coxa. Na tela, o sangue esguicha do
ferimento, e vejo sua barra de energia acender. Hilal tenta uma
investida, mas Azima se esquiva para a direita e salta para a frente.
A lança o atinge no pescoço, e o Hilal da tela despenca sobre uma
poça de sangue.
Pela primeira vez na vida, não gosto de ver um jogo com gráficos
realistas.
– Próximos – chama Defoe.
Hilal aperta a mão de Azima e a elogia pela agilidade. Vejo que
Defoe franze a testa. Ele quer promover uma competitividade sem
limites, mas Hilal é honrado demais para isso. Katsu e Longwei
aparecem na tela a seguir. Katsu se dirige diretamente para um
machado enorme e ameaçador. Longwei escolhe uma espada
reluzente com cabo entalhado. Eles se encaram no centro do
quadrilátero da arena, e Defoe autoriza o início do combate.
Minha expectativa é de que Longwei se saia bem nesta atividade
como em todas as outras, e é assim que ele começa. Eles fazem
algumas tentativas desajeitadas, então Longwei abre um corte na
panturrilha de Katsu. Seu avatar hesita, mas, quando Longwei tenta
um segundo golpe, o contra-ataque de Katsu o manda voando pelos
ares. Pela primeira vez na luta, a vantagem física de Katsu faz a
diferença. Um golpe pesado do machado arranca a espada da mão
de Longwei. O peito largo de Katsu se flexiona quando ele prepara
outro ataque. Longwei tenta se esquivar para o lado, mas não
consegue. O machado se enterra em sua coxa, e seu avatar
cambaleia. O verdadeiro Longwei se arrasta no chão, tentando
alcançar a espada, quando Katsu o finaliza.
– Eu sou o rei! – ele grita de novo. Todo mundo cai na risada,
menos Longwei.
Kaya e Jaime vão a seguir. Em vez de encará-lo frente a frente,
Kaya usa um dos trampolins para chegar ao patamar superior. Logo
fica evidente que ela planejou uma estratégia antes de ir para a luta.
Usando os obstáculos a seu favor, ela atrai Jaime para uma
belíssima armadilha. Ele a persegue cegamente até levar uma
estrela ninja na testa. Jaime faz menção de reclamar que não foi
uma luta justa, mas Defoe o ignora e chama os próximos
combatentes.
Jazzy e Isadora. Meus olhos se cravam em Roathy. Ele vai ser
meu primeiro adversário. É bem menor que eu, mas duvido que se
renda facilmente. Tudo nele aponta que se trata de um garoto
briguento. Meu palpite é que vai ser um lutador impiedoso e sem
disciplina. O antídoto natural para isso é se concentrar na defesa e
aproveitar uma brecha.
Minha atenção se volta para a luta mais abaixo. Jazzy prende os
cabelos loiros em um rabo de cavalo. Isadora se ajoelha diante dela.
Vejo quando ela contorna com o dedo a tatuagem na nuca antes de
ficar de pé com um par de adagas na mão.
Depois do que vi na Sala do Coelho, minha expectativa é que
Jazzy leve vantagem, mas sua capacidade atlética não se traduz em
habilidades de combate. Ela ataca duas vezes em vão, e acaba
levando duas espetadas das lâminas de Isadora, que não vinha se
destacando até o momento, mas tem uma maneira de empunhar
uma faca que chama muito a atenção. Ela recua, olha para a tela e
vê que o sangramento de Jazzy está prestes a lhe garantir a vitória.
Só precisa esperar e continuar se esquivando até ganhar o
combate.
A arena está pronta para Roathy e eu. Ele pega a mesma espada
de Longwei, mas escolho sem pressa. Os machados não me
parecem ideais, e as outras espadas são muito pesadas. Não
consigo me imaginar duelando com uma lâmina, e algumas maças
não sei nem como funcionam. Meus olhos se voltam para um par de
garras de metal. Nunca usei manoplas antes, mas tenho um tio que
me ensinou a lutar boxe. Enfio as mãos nas luvas metálicas e
flexiono os dedos. A mão direita tem um escudo em forma de lua. A
esquerda tem pontas afiadas nas juntas e três garras prateadas nas
pontas.
As manoplas foram feitas para um canhoto como eu.
Assumo meu lugar diante de Roathy e espero. Quando Defoe dá o
sinal, Roathy faz exatamente o que imaginei. Avança sobre mim em
um pulo, desferindo dois golpes seguidos com a espada. Uso o
escudo da mão para me defender, depois me abaixo para me
desvencilhar do terceiro golpe e contra-atacar. Não preciso olhar
para cima para saber que os órgãos internos dele estão espalhados
pelo chão. Roathy reage à dor de seu avatar, afastando-se e
mancando. Ele avança de novo, e contenho sua espada com a mão
direita. Sua lâmina arranha meu ombro, mas o passo à frente me
permite colocar todo o peso do corpo no soco. A nyxia atinge
inofensivamente o pescoço de Roathy, mas meu punho esmaga sua
traqueia.
O verdadeiro Roathy e seu avatar desabam juntos. Dou um passo
atrás, com a adrenalina a mil, com a emoção da vitória e o gosto da
dor, mas não dura muito. Roathy está caído, com dificuldade para
respirar, e o som de suas arfadas é desesperador. Defoe se
aproxima, acompanhado de dois paramédicos.
Isadora, que é a colega de aposentos de Roathy, está aos berros.
Defoe precisa segurá-la pelos ombros para impedi-la de sair junto
com os paramédicos. Eu deveria me sentir mal, mas me lembro bem
do rosto de Roathy no início da luta. Se pudesse, ele teria feito o
mesmo comigo. Destruir ou ser destruído. Dou uma olhada nos
outros participantes, que estão todos de cabeça baixa. Alguns me
encaram como se eu estivesse diferente agora, como se um lado
obscuro meu tivesse acabado de ser revelado. Tiro as manoplas e
saio da arena, tentando não pensar em buracos negros e coisas
quebradas.
Na hora do almoço, o placar reflete meu domínio. Eu deveria estar
animado, mas a ausência de Roathy me causa um incômodo. Para
mim, era só parte do jogo. Não queria machucar ninguém. Começo
a remexer no meu prato e repetir mentalmente: Eu não queria
machucar o garoto. Eu não queria machucar o garoto. Eu não
queria…

1. EMMETT 41.900 pontos


2. LONGWEI 36.750 pontos
3. AZIMA 32.900 pontos
4. KAYA 31.450 pontos
5. KATSU 30.400 pontos
6. HILAL 29.300 pontos
7. JAIME 26.200 pontos
8. ISADORA 25.080 pontos
9. JASMINE 22.050 pontos
10. ROATHY 21.324 pontos

Quando nos dirigimos para a Sala do Coelho, Roathy ainda não


voltou. Fico o tempo todo olhando para trás, na esperança de vê-lo
no corredor, acompanhado de um paramédico. Mas as portas
automáticas se fecham e a competição começa sem ele. Defoe faz
um sinal da frente da sala.
– Longwei, sua equipe vai ter um competidor a menos. De acordo
com as regras, sua esteira vai começar em uma velocidade mais
alta por causa da perda. Boa sorte.
O time adversário lança olhares enraivecidos na minha direção,
como se eu soubesse dessa regra e tivesse mandado Roathy para a
enfermaria de propósito para ganhar uma vantagem para a nossa
equipe. É uma acusação sem o menor fundamento, mas não digo
nada, porque Defoe já explicou qual é o conceito de justiça da
Babel. Kaya reúne nosso grupo, mas as vibrações negativas
também estão presentes neste lado da rede. Isadora mantém
distância de mim, e Jaime me lança olhares apreensivos. Kaya
ignora tudo isso.
– Emmett, quero que você seja nosso coelho hoje.
Encaro ela. A ideia de receber ordens neste momento me deixa
irritado.
– Por que eu?
– Você tem reflexos mais rápidos – ela responde. – Vamos correr
mais atrás. Você fica na frente. Avise sobre todos os obstáculos com
antecedência, para a equipe poder reagir. Pode ser?
Demoro um instante para perceber a intenção de Kaya. Ela está
depositando sua confiança em mim, mostrando aos outros que me
considera um aliado. Quer que os demais se esqueçam do que fiz
com Roathy e se lembrem de como tenho me saído na Sala do
Coelho. Faço um aceno de cabeça em agradecimento enquanto
Defoe se posiciona na plataforma e o chão emborrachado começa a
se mover.
A outra equipe mantém a estratégia de proximidade, mas agora
Katsu está no começo da fila, e Longwei está com uma das mãos
nas costas como sinal de apoio. Kaya e os outros ficam para trás, e
eu me posiciono à frente. Nosso caminho começa na floresta, e eu
olho ao redor.
Uma árvore cai na trilha na nossa frente, e eu aviso. Desviando
para a direita, só preciso pular a parte dos galhos. Depois disso, há
alguns córregos e uma série de galhos baixos. Dou o alerta sobre
cada obstáculo, e estou satisfeito com nosso ritmo, mas então
escuto um grito. Minha cabeça se volta imediatamente para trás
enquanto meus braços continuam na movimentação da corrida.
A parede dos fundos ganhou vida. Uma outra vista da floresta nos
segue, com as árvores desaparecendo à medida que avançamos.
Uma segunda olhada revela uma dupla de lobos nos perseguindo.
Defoe prometeu que o jogo iria evoluir, e isso aconteceu. Obstáculos
à frente, perigos atrás. Sem aviso, a velocidade da esteira aumenta.
Não perdemos ninguém, mas é como se nosso corredor imaginário
tivesse visto os lobos e estivesse ansioso para fugir. Passamos por
mais alguns obstáculos, e ouço o comando de Kaya para o grupo se
apressar.
Eles se juntam a mim quando o ritmo acelera para uma corrida em
alta velocidade. Olho para um dos lobos que sai da tela. É enorme,
maior que o dos dias anteriores, e não parece prestes a sumir, muito
pelo contrário. Desviamos de uma série de galhos, e Isadora
tropeça. Não consigo segurar a mão que ela estende, e vejo quando
o lobo dá o bote e a imobiliza no chão. Isadora solta um berro, e os
dois deslizam até o fundo da sala. Nosso lado pulsa, e a velocidade
aumenta. O suor escorre pelo meu rosto.
Do outro lado da sala, Katsu enfim vai ao chão. Consigo ouvir seu
grito quando ele é levado até a parede dos fundos e a outra equipe
fica reduzida a três integrantes. Ainda não apareceu nenhum lobo
para eles, percebo. A tela da floresta na parede de trás está lá, mas
não há nenhuma perseguição.
Nosso segundo lobo se materializa na parte posterior da esteira.
Ele vem correndo pelo flanco esquerdo, desviando dos galhos na
perseguição. Kaya dirige nosso grupo para a direita o máximo
possível, mas é difícil correr e ao mesmo tempo manter os olhos no
lobo. Kaya queria que eu fosse o coelho hoje, mas tenho uma ideia
melhor.
Me concentrando, transformo meu elástico na adaga que vi Defoe
usar no primeiro dia. É pesada e quase escorrega da minha mão
suada. Aperto o cabo com mais força e fico mais para trás dos
outros. Ciente de que se trata de um ato suicida, ajusto meus
passos e me desloco até o lobo. Antes que possa dar o bote sobre
algum de nós, avanço para cima dele. A lâmina entra no ombro do
bicho, e a colisão expulsa o ar dos meus pulmões. O lobo e eu
vamos rolando para o fim da esteira, mas mantenho a adaga
cravada e envolvo seu pescoço com meu outro braço. O animal
fecha os dentes ameaçadoramente perto do meu rosto, mas
desaparece quando atingimos a parede dos fundos.
Nosso lado acende, mas meu sacrifício permite que os demais
continuem correndo sem distração. A equipe de Longwei está
correndo em um ritmo mais puxado há mais tempo, e logo em
seguida Hilal perde o equilíbrio e é arremessado para trás. Longwei
não consegue atravessar o terreno acidentado, e meu time se
mantém firme por tempo suficiente para eliminar Jazzy nos
desfiladeiros. Fico deitado no chão, olhando para o teto, com os
punhos erguidos para comemorar a vitória. Essas vitórias sempre
são as melhores. Kaya é a primeira a elogiar minha atitude em
relação ao lobo. Até mesmo Jaime admite que foi incrível.
Azima estende a mão para me ajudar a ficar de pé, mas Longwei
entra na frente e me dá um chute na cara. Minha cabeça é lançada
para trás, e o sangue se espalha pelo chão. Meus olhos se enchem
de lágrimas, e a sensação do meu rosto vai de dor intensa a
amortecimento em questão de segundos. Antes que eu possa
pensar em me levantar ou reagir, Jaime e Azima entram em ação
para afastá-lo. Longwei consegue resistir por tempo suficiente para
gritar:
– Você trapaceou. Só ganhou porque trapaceou.
Jaime dá mais um empurrão nele.
– Sai fora, Longwei. Some daqui, caramba.
Longwei dá as costas e vai embora. Todos os músculos do meu
corpo exigem que eu me levante. Quero ficar de pé e acabar com
ele. Longwei pode ser mais esperto e mais veloz, mas sou maior e
mais forte. Já o vi lutando e conheço seu estilo. Mas todos no grupo,
e a Babel também, aliás, já viram meu lado agressor. Agora preciso
que me vejam assim, como vítima. Levo a mão ao nariz e deixo
Kaya examiná-lo. Defoe já está por perto também.
– Precisa de atendimento médico? – ele pergunta.
Eu encolho os ombros.
– Ele me chutou do nada.
– Eu vi. Vou falar com ele. Esse tipo de violência não é permitido.
Precisa de atendimento médico?
– Não, acho que não. Não quebrou, né?
Defoe faz que não com a cabeça.
– Vá se limpar.
Kaya me ajuda a ficar de pé. Ela passa o braço ao meu redor
enquanto caminhamos. Ao contrário da retirada silenciosa e exausta
ao final de cada dia, os outros vêm falar conosco, preocupados com
meu nariz ou empolgados por terem um drama com que lidar. Jazzy
é a primeira a tomar partido:
– Da minha parte, sem ressentimentos. Não acho que você tenha
trapaceado, Emmett.
– Obrigado, Jazzy – agradeço.
Hilal bate no meu ombro.
– Quer que eu faça um chá para você, Emmett?
– Chá? – questiono. – Para aliviar a dor no nariz?
Ele faz que não com a cabeça.
– Não, mas o gosto é muito bom.
Dou risada.
– Não, eu estou bem, cara. Valeu.
Azima entra na conversa:
– Se ele não vai querer o chá, eu aceito.
Hilal parece surpreso.
– Você… você vai querer o meu chá?
Katsu dá risada.
– Já que você está tirando pedidos, Hilal, vou querer um mimosa.
Com um guarda-chuvinha no copo. Eu adoro aquelas coisas.
Todo mundo ri. Caminhamos juntos pelo corredor, e percebo que
sou o centro das atenções do grupo. Apenas Longwei vai mais à
frente, isolado. Eu deveria agradecer pelo que ele fez. Sem isso, eu
ainda seria o vilão. A frustração dele fez com que assumisse esse
papel. Bater em alguém em uma luta é uma coisa; agressões
covardes são as mais baixas das baixarias.
No fim do corredor, ele se vira para nós. Estamos próximos o
suficiente para ver a raiva em seus olhos. Ele joga o tufo de cabelos
para o lado e desaparece escada abaixo.
Arquivo esse olhar na letra I de inimigo.
DIA 10, 11h38
A bordo da Gênesis 11

Quando o sabá finalmente chega, eu durmo feito um cadáver.


Acordar só serve para lembrar que meus músculos estão doloridos
e a minha mente está exausta. A competição e a adrenalina afastam
os pensamentos da dor. Meu primeiro sono profundo traz à tona os
inchaços e hematomas. Quando me arrasto para a sala de estar dos
aposentos, encontro Kaya sentada de pernas cruzadas no sofá. Ela
fecha o livro, pega a máscara de nyxia na mesinha e dá risada
enquanto coloca.
– Você está parecendo um vovozinho – ela comenta.
– Estou me sentindo um vovozinho. – Eu me sento ao seu lado. –
Quais são os grandes planos para o dia de folga?
Ela dá um tapinha no livro em seu colo.
– Alice e eu estamos entrando em uma bela encrenca.
Eu levanto uma sobrancelha.
– Alice?
Ela mostra a capa do livro. Uma garota de cabelos loiros e vestido
azul parece estar se metendo em todo tipo de encrencas. E
perseguida por um bando de personagens absurdos.
– Eu leria com você, mas ao que parece está em japonês.
Os olhos de Kaya brilham.
– Você quer mesmo ler?
Olho para as prateleiras.
– Tem uma versão em inglês?
– Claro – diz Kaya. – Mas quem precisa disso comigo por perto?
Fica à vontade.
Quando ponho os pés para cima, Kaya começa. Ela volta para o
começo, apesar de eu ver uma dobra em uma página na metade do
livro marcando seu progresso. Enquanto lê, ela faz pausas
dramáticas e muda de voz para marcar os diferentes personagens.
A única pessoa na minha vida que já leu assim para mim foi a minha
mãe. Isso me faz sentir que o que temos é mais que uma aliança.
Há um toque familiar também.
E eu estava certo sobre Alice. A garota está se metendo em todo
tipo de encrencas.
– Espera aí – interrompo. – Ela começou a encolher?
– Sim – responde Kaya, passando o dedo na linha que está lendo.
– Quando bebeu o conteúdo da garrafa, ela ficou bem
pequenininha.
Minha testa se franze.
– Não é muito realista.
– Você não falou nada sobre o coelho com um relógio de bolso.
– Porque pareceu um lance estiloso.
Kaya me dá uma encarada.
– Quer que eu continue lendo ou não?
– Quero, sim – respondo, dando risada.
Antes que ela possa recomeçar, nossa porta se abre. Defoe entra
no aposento, dá uma boa olhada em nós dois e aponta para mim
com o queixo.
– Venha comigo, Emmett.
Ele emite a ordem como um rei faria. Fico de pé com um grunhido
e dou uma piscadinha para Kaya.
– Obrigado pela leitura. Promete que não vai continuar lendo sem
mim?
O rosto dela se desmancha.
– Certo, prometo.
Defoe me conduz para fora dos aposentos. Acho que o buraco de
coelho para onde ele está me levando não tem poções mágicas.
Passamos por vários corredores, e preciso me esforçar para
acompanhar seus passos largos e determinados. Fico olhando de
soslaio para o misterioso diretor de operações. Nada é capaz de
abalar esse sujeito. Ele sempre parece no controle, confiante.
Apenas sua mão se destaca como uma fraqueza. De perto, dá para
ver quanto é deformada. Desde o primeiro dia, ele não fez nenhum
esforço para escondê-la. Os ossos parecem malformados, e a pele
parece ter cicatrizes irremovíveis de queimaduras.
– O que aconteceu com a sua mão? – pergunto. Não é da minha
conta, mas está na hora de testá-lo também. Quero saber que tipo
de podres se esconde sob essa superfície impecável.
Ele estende a mão e a observa.
– Machuquei em um confronto com um adamita.
Eu arregalo os olhos.
– Sério? Você já viu um deles?
– Você também, Emmett. – Ele olha para mim. – Naquele vídeo.
– Mas você viu pessoalmente. E ainda lutou com eles?
– Não era essa a intenção. Era para ser uma conversa amigável.
– E ele fez isso com você?
– Sim, mas sabe aquela frase “você precisava ver o que
aconteceu com ele”?
Faço que sim com a cabeça.
– Claro.
– Bom, você precisava ver o que aconteceu com ele – diz Defoe,
abrindo um sorrisinho perigoso.
Me lembro do vídeo dos adamitas. Um pelotão de militares com
equipamentos de última geração foi destruído por apenas um
punhado deles. Mesmo assim, acredito em Defoe. Existe um
elemento de perigo indefinível nele. A Babel precisa de nós porque
não tem como superar as forças e defesas dos adamitas para
minerar a nyxia de que precisa, mas, pelo jeito, existem milhões de
habitantes em Éden. É possível que em uma luta corpo a corpo um
humano possa sair vencedor, especialmente alguém como ele.
– Você não tenta esconder nem nada – comento.
– Não – ele responde baixinho. – É um lembrete.
– Do quê?
– De que eu não preciso ser perfeito. Só preciso ser melhor que o
meu adversário.
Ele me leva até uma escada em espiral. É estranho andar e falar
com Defoe como se ele fosse uma pessoa normal. Eu meio que
admiro o cara. É uma espécie de ideal de uma nova era. Mas o
medo instintivo e profundo continua presente. Por fora, ele é
perfeito, mas sei que Defoe tem sua dose de conflitos e caos.
– Você não está usando máscara.
Ele olha para mim.
– Não faz meu estilo.
– Mas como é que todo mundo entende o que você fala? Sem a
máscara?
Ele ergue uma sobrancelha, como um mágico que reflete sobre a
pertinência de revelar ou não os seus truques. Depois de mais
alguns passos, ele ergue a mão boa e dá dois tapinhas no próprio
rosto.
– Tenho um dispositivo de tradução implantado no molar. É nossa
tecnologia mais avançada. Ser o chefe tem seu lado bom.
Então a Babel tem ainda mais recursos do que já vimos. Isso me
faz pensar no que ainda vem pela frente.
– Eu estou encrencado? – pergunto. – Parece que estou sendo
levado para a diretoria.
– Não exatamente. Só precisamos monitorar a saúde dos nossos
candidatos. Com apenas dez de vocês a bordo da Gênesis 11, é
fundamental manter todos vivos e saudáveis.
– Minha saúde? Mas eu estou bem.
– Como você se sentiu quando machucou Roathy?
Demoro um tempinho para responder:
– Não foi minha intenção, se é isso que quer saber.
– Ah, não?
– Não para valer. Eu só queria vencer.
– Vencer é importante – diz Defoe. – Eu entendo. É só uma coisa
protocolar.
Continuamos em silêncio. O corredor se estreita até uma porta de
largura quase normal, que se abre para um dos casulos de
relaxamento da nave. É um recinto cheio de almofadas macias e
cores relaxantes nas paredes. Mas a vista agora é do espaço. Eu
me aproximo da janela e olho para fora. Isso faz eu me lembrar dos
buracos negros.
– Pode se sentar, Emmett. O dr. Vandemeer já vem.
Defoe pega um café expresso. A máquina cospe o líquido preto na
xícara de cerâmica. Ele despeja açúcar e começa a mexer. Até o
café faz eu me lembrar dos buracos negros.
– O nome do funcionário que me assessora também é Vandemeer
– comento.
– É o próprio.
– Mas ele não é médico.
– Claro que é – diz Defoe, virando-se para mim.
Ouço um chiado vindo da porta, e Vandemeer entra. Ele abre um
sorriso simpático, mas parece outra pessoa. Está de óculos e com
um jaleco por cima do uniforme. Como Defoe, tem uma tela portátil
na mão.
– Olá, sr. Atwater – cumprimenta ele.
Defoe faz um aceno de despedida erguendo a xícara de café e sai.
– Então você é médico? – pergunto.
– Mais ou menos isso – Vandemeer responde. Ele senta-se diante
de mim. Seu rosto é cheio de ângulos estranhos, e os cabelos
curtos são cortados bem rente. É a primeira vez que o vejo assim.
Na maior parte do tempo, ele é uma presença furtiva, visível em um
instante e desaparecida no seguinte. Depois de alguns cliques na
tela portátil, ele me encara. – Então você se envolveu em um
incidente um dia desses.
Confirmo com a cabeça.
– Foi um acidente.
– Claro – concorda Vandemeer. – E como se sente em relação a
isso?
Ah. Então ele é esse tipo de médico. Solto o ar com força e olho
para fora, para o espaço. É um cenário tão desconhecido que
parece um vazio. Não quero abrir meus sentimentos para um
psiquiatra. Ele passou de um aliado do lado de lá a ladrão de
informações em questão de minutos. Não respondo, e Vandemeer
tenta de novo:
– Emmett, todo funcionário tem mais de uma função aqui na nave.
Os meus dois papéis têm a ver com propiciar um ambiente
confortável. Sou um assessor de logística para vocês durante parte
do dia e médico no restante do tempo. Fui designado para você,
mas não tenho como ajudar se não falar comigo.
– Eu não preciso da sua ajuda, entendeu?
– Certo. Entendi. Posso mostrar uma coisa?
Eu o encaro.
– Claro – respondo com um suspiro.
Ele vira a tela portátil para mim, bate com o dedo e abre um vídeo
daquele dia. Eu apareço me esquivando do golpe de Roathy e
desferindo um gancho de esquerda. Ele desaba, e a câmera me
acompanha quando me afasto. Meu rosto está totalmente sem
expressão, de um jeito assustador.
– Você percebeu o que nós notamos aqui? – Vandemeer pergunta.
Faço que sim com a cabeça.
– Então vou perguntar de novo. Como se sente em relação a isso?
– Muito mal – respondo. – Não era minha intenção machucar
ninguém. Fiquei mal.
– Mas esse sentimento não apareceu no seu rosto. Você o
escondeu.
– Não foi por querer. Eu só estava… sei lá. Tudo por aqui é pura
simulação.
Vandemeer assente com a cabeça.
– Exatamente, Emmett. Uma das nossas maiores preocupações
quando projetamos o treinamento foi esse aspecto de simulação.
Ficamos com receio de que isso criasse um distanciamento entre os
participantes e suas atitudes.
– Certo – respondo. Aonde ele pretende chegar? Detesto a
sensação de estar sendo conduzido em determinada direção, como
um cachorrinho levado na coleira. – Se vocês sabiam que isso iria
acontecer, então qual é o problema?
Vandemeer vira a tela para si, aciona um comando e continua me
encarando.
– Nós projetamos a progressão desses sintomas até o dia 112.
Olho fixamente para ele.
– Vocês estão com medo que eu vire um assassino implacável ou
coisa do tipo?
Vandemeer faz que não com a cabeça com um gesto discreto.
– Claro que não. Você tem medo de que isso aconteça?
Reviro os olhos. Detesto essa coisa de rebater questionamentos.
Volto minha atenção para o lado de fora e me lembro dos sonhos
recorrentes. Destruir ou ser destruído. Não sou um assassino, mas
quero ganhar. Mais do que qualquer coisa na vida.
Depois de apenas dez dias, a Babel já está com medo de ter uma
mente avariada a bordo. Tento imaginar como eles me veem. Um
garoto pobre de Detroit. Caso tenham feito direito sua pesquisa, eles
sabem que não pertenço a nenhuma gangue. Ando com os Manos
de Elite, uma galera inofensiva para os padrões de Detroit. Mesmo
assim, para o pessoal mais bem de vida e para os riquinhos, eu
devo parecer um maloqueiro.
– Escuta – digo. – Quando alguém vem para cima de mim, eu
reajo. Fui criado assim.
– E isso explica a sua ausência de sentimento? – Vandemeer
questiona.
– Acho que não senti que estava fazendo nada de errado porque
foi em defesa própria. Você viu como ele me atacou.
– Sim, eu vi. Tem razão. Então você sentiu que estava só se
defendendo?
– Isso.
– E por isso perdeu toda a empatia por ele?
– Não toda. Eu estava me sentindo mal por dentro. Mas não
demonstrei isso porque o meu instinto é me proteger atacando.
Acho que eu ainda não sabia com certeza que a ameaça tinha sido
eliminada.
Vandemeer franze a testa.
– Mas ele estava caído no chão a essa altura, Emmett.
Dou risada, ciente de que agora estou em um terreno mais
confortável para mim.
– Você já brigou alguma vez na vida?
– Não, você já?
– Algumas vezes – conto. – E já vi um monte de brigas.
– E? – pergunta Vandemeer, erguendo as mãos.
– Bom, o primeiro a cair nem sempre leva a pior na briga, doutor.
– Entendo. Então isso tudo foi… instinto?
– Pois é. Eu estava me defendendo, e não baixo a guarda quando
o outro vai para o chão. Quem começa uma briga tem que saber
que pode se machucar. Só isso. Caso encerrado. – Ele não parece
muito convencido, então decido revelar mais uma coisinha: – Eu
ando tendo um sonho recorrente. – Tento parecer distante, como se
estivesse falando a contragosto. – Não sei o que significa.
– Quer conversar a respeito? – ele pergunta.
Lanço um olhar demorado para ele.
– Não sei.
– Vamos, Emmett. Isso pode facilitar as coisas.
Faço que sim com a cabeça. Agora parece que a conversa sobre o
sonho foi ideia dele. As pessoas adoram a sensação de estarem no
comando da conversa.
– Eu sou sugado para o espaço – conto. – Tem uns buracos
negros que se parecem com os outros competidores. Sou tragado
para dentro deles, como se estivessem me destruindo.
Vandemeer faz anotações na tela portátil, digitando depressa e
assentindo, como se tudo fizesse o maior sentido. Ele continua
estabelecendo perguntas; eu continuo respondendo. Pouco a pouco
nos encaminhamos para a conclusão de que a minha vivência nas
ruas me colocou na defensiva, mas que eu não devo deixar que isso
crie uma barreira entre mim e os meus sentimentos. Não menciono
a parte dos sonhos em que o buraco negro sou eu, em que eu sou o
destruidor. Sou o que a Babel acredita que eu seja. É melhor assim.
DIA 10, 14h18
A bordo da Gênesis 11

Vandemeer me libera, mas suas palavras reverberam dentro de


mim, e sinto meus pés me levando para uma direção diferente. Não
de volta aos meus aposentos, mas para baixo. Patamar após
patamar, até chegar à placa indicando a enfermaria. No dia das
instruções gerais, esta ala foi apontada como proibida, mas preciso
ver Roathy. Ele está na enfermaria desde que o mandei para lá no
dia 7. Tentei não me sentir muito culpado, tentei me convencer de
que o risco fazia parte do jogo, mas a Babel marcou os confrontos
seguintes na arena como revanches das primeiras lutas. Todos
enfrentaram os mesmos oponentes da rodada anterior. O avatar de
Roathy apareceu junto ao meu, e a luta foi vencida por WO. A
pontuação foi acrescentada ao meu placar, e uma pontada de culpa
comprimiu meu peito. Eu disse a verdade para Defoe: não era
minha intenção machucar o garoto.
A enfermaria é uma colmeia iluminada de quartos. Seis das sete
portas estão escancaradas. Os lençóis nos leitos estão impecáveis.
As luzes se refletem nos instrumentos médicos metálicos. Meu
estômago se revira um pouco. Hospitais fazem eu me lembrar da
minha mãe.
Engulo em seco e passo pelos quartos vazios. A sétima porta está
com uma fresta aberta. Paro diante da abertura e olho ali dentro.
Isadora está sentada de costas para mim. Seus cabelos estão
presos em um coque, e consigo ver o oito com a coroa tatuado em
sua nuca. Meus olhos percorrem as linhas delicadas, mas então
percebo seus braços estendidos. Ela segura a mão imóvel de
Roathy entre as suas. Os olhos dele estão fechados, e um monitor
marca seus batimentos. Ele está vivo, contudo não parece nada
bem.
Quase me viro para ir embora, mas penso melhor. Só porque a
Babel quer uma competição implacável, não significa que preciso
deixar de lado a pessoa que meus pais me ensinaram a ser. Dou
duas batidinhas na porta.
A fresta se amplia, e Isadora se vira.
– Oi – eu digo. – Como ele está? Queria ter uma palavrinha com
ele.
Ela fica de pé, e sua beleza assume o aspecto ameaçador de uma
arma. Isadora me encara com a mesma ferocidade que vi quando
cravou uma faca na barriga de Jazzy.
– Vai embora.
– Eu só vim para dizer que…
Ela faz um gesto casual com o pulso. Um bracelete de nyxia
desliza para sua mão e assume a forma de uma adaga. Meu
coração dispara quando ela arreganha os dentes.
– Você precisa sair daqui.
Posso ser um monte de coisas, mas não sou burro. Estendo as
mãos em rendição e dou um passo atrás. Sinto seu olhar sobre mim
até chegar às escadas. Diminuo as passadas e acalmo minha
respiração ao voltar para os meus aposentos. As palavras de Kaya
fazem mais sentido agora: Se a gente se unir, pode ter um lugar
seguro para voltar todos os dias. Quero poder sentir que estou
voltando para casa.
Lá em Detroit, todo mundo sabia aonde podia ou não ir. Havia
linhas invisíveis desenhadas em cada quarteirão, e as
consequências de estar no lugar errado na hora errada eram claras.
Nós aprendemos as regras porque disso dependia a nossa
sobrevivência. A ameaça de Isadora é um lembrete bem-vindo.
Alguns lugares na nave não são seguros. E certos locais são mais
perigosos que outros. Fixo na mente o fato de que preciso aprender
as novas regras o quanto antes.
Kaya está à minha espera quando entro no nosso aposento. Antes
que eu possa dar mais detalhes sobre o acontecido, porém, ela me
interrompe:
– Você precisa de um banho. Talvez dois.
– Sério mesmo?
Ela se inclina para mim, fareja o ar e finge desmaiar no sofá.
– Que sacanagem, Kaya.
Mas ela continua deitada, fingindo ter apagado. Jogo uma
almofada nela, mas nem assim Kaya se move.
– Certo. Vou tomar um banho, mas que tal ver o que acontece com
a Alice depois?
Ela abre um olho.
– É uma ótima ideia. Vai logo!
Solto uma risadinha antes de ir para o meu dormitório. Kaya está
se tornando rapidamente a minha pessoa preferida aqui. É bem fácil
gostar de Hilal, claro. Ele é sempre muito educado e cheio de
elogios, mas é assim com todo mundo. Se tivesse cruzado com
Longwei na escada no primeiro dia, acho que Hilal teria feito
piadinhas e dado risada com ele também. Ou pelo menos teria
tentado.
No caso de Kaya, entretanto, é como se ela tivesse me escolhido.
Primeiro como parceiro de equipe, agora como amigo. É uma
sensação completamente desconhecida perceber que alguém gosta
de mim sem motivo nenhum. Lá de onde eu venho, é preciso fazer
por merecer as coisas. Uma bola na cesta ou uma piada na hora
certa. Com a reputação vêm os amigos. Kaya mudou essa regra, e
isso é bom.
Depois de me enxugar e vestir um roupão de banho macio da
Babel, encontro Kaya à espera na nossa sala de estar
compartilhada. Quando me sento ao lado dela, porém, dá para
sentir que não se trata mais da pessoa que deixei ali meia hora
atrás. Um estado de humor mais sinistro atravessou suas defesas.
Seus cabelos pretos estão caídos sobre o braço do sofá, e seus
braços finos abraçam uma almofada.
– Não consigo parar de pensar no que Roathy falou no primeiro
dia, sobre todo mundo ser pobre.
Eu me sento na outra ponta do sofá.
– Ele não estava errado.
– Mas também não estava certo – ela rebate. – Não foi por isso
que a Babel escolheu a gente.
Kaya me encara. Seus olhos são como duas pedrinhas escuras e
brilhantes. Tento não me concentrar no fato de ela ser tão bonita.
Durante todo esse tempo, ela vem me tratando como um irmão;
quero tratá-la como uma irmã também. Apesar de toda a beleza,
existe também uma tristeza que me surpreende.
– Por que escolheram a gente?
– Estamos todos destruídos. Eles nos escolheram porque estamos
destruídos.
Não gosto de pensar no quanto a tese dela se aproxima da
verdade. Essas palavras me fazem me remexer no assento,
deixando-me todo desconfortável. Não sei o que dizer, então resolvo
tentar amenizar o clima. Começo a dar tapinhas nos meus braços e
nas minhas pernas antes de abrir um sorriso.
– Tem certeza? Até onde vejo, acho que estou inteiro.
– Você está destruído – ela responde baixinho. – Do mesmo jeito
que eu. Nós temos a mesma cor, sabia? Não é a pior cor possível,
mas dói mesmo assim.
Desvio o olhar. Vandemeer pode ter um diploma, mas pelo jeito
Kaya sabe muito mais que ele. Ela tem razão. Estou destruído. Já
deveria ter conseguido me recompor a esta altura, mas passei o
tempo todo tentando me preparar para a próxima porrada. Penso na
minha mãe, que passou de guerreira a inválida quando a doença se
espalhou pelos seus rins. Penso em todos os professores que
achavam que, por eu ser quieto e fechado, não era digno de
atenção. Penso em PJ dando em cima de Shae Westwood mesmo
sabendo que eu era a fim dela. A vida vem me distribuindo
pancadas de todas as direções. Com isso aprendi que a distância é
uma forma de defesa.
Talvez seja por isso que aceitei ser recrutado pela Babel. Para
tentar me distanciar da próxima porrada. Uma partezinha de mim
sente vontade de sair correndo agora, de abrir uma distância do
olhar revelador de Kaya. É como se ela visse em mim algo que
tentei ignorar a vida toda.
– Você consegue mesmo ver tudo isso? – questiono.
– Na forma de cores – ela responde com um aceno positivo. – É
assim desde que eu era… pequena. Os diferentes tipos de
destruição se manifestam em cores diferentes. Todo mundo aqui
têm uma cor. Longwei, Jazzy e Hilal são vermelhos. Isso significa
um fardo. Eles carregam um peso enorme nos ombros. Azima é
branca, está procurando a paz que perdeu. E Roathy é preto,
porque nunca teve paz. Katsu e Isadora foram traídos. É uma cor
dourada, mas desbotada. E aí tem você, eu e Jaime. Nós somos
azuis.
Tudo isso me parece muito estranho, mas a pergunta é inevitável:
– O que significa o azul?
– Esquecidos – ela diz. – Nós somos as pessoas que o mundo
quer esquecer.
Suas palavras calam tão fundo e têm um impacto tão forte em mim
que só consigo soltar o ar com força. Ela estende o braço e dá um
tapinha na minha perna, como se soubesse exatamente o que é se
sentir perdido dessa maneira no mundo.
– Então, eles nos escolheram porque estamos destruídos, não
porque somos pobres – ela diz.
– Qual é a diferença?
Kaya abre um sorriso.
– As pessoas destruídas podem ser reconstruídas como eles
quiserem. Se o problema fosse só falta de dinheiro, eles iriam
precisar destruir a gente primeiro para depois fazerem o que
querem.
Solto uma risadinha.
– Pensei que estivessem tentando justamente destruir a gente.
Jogando umas moedinhas no meio dos mendigos para ver o pau
quebrar. Esse tipo de coisa.
– É o que parece agora, mas essa impressão vai mudar logo, logo.
A Babel quer moldar a gente. E do jeito deles. – Ela suspira. – Além
disso, não estou nem aí para o dinheiro.
Isso me deixa sem reação. Para mim, o dinheiro faz tanta
diferença que sequer consigo imaginar que para alguém possa não
fazer. Imaginei que Jaime fosse indiferente ao dinheiro, não Kaya.
– Mas você não disse que estava destruída?
Os olhos de Kaya se voltam para o teto.
– E estou. Mas não dá para resolver meu problema com dinheiro.
– Então por que vir para cá?
– Éden. – Em sua boca, a palavra soa como uma promessa, um
sonho. – Eu queria ir para Éden. Dá para imaginar, Emmett? Outro
planeta. Com espécies, habitantes e paisagens diferentes. Não
sobrou muita coisa para mim na Terra. Queria me afastar o máximo
possível. O que pode ser melhor que outro planeta? – Ela fecha os
olhos por um instante. – Mas ninguém me avisou que o sofrimento
vinha junto. Que a dor também viaja na velocidade da luz.
Ela se levanta, me dá um apertão no ombro e vai para seu
dormitório. Fico sentado no sofá por um bom tempo ainda. Lamento
muito que ela esteja tão certa sobre tudo. Quando a Babel me
escolheu, tentei acreditar que foi porque fiz algo especial. Minha
vida toda tinha sido composta de decepções, uma seguida da outra,
e eu enfim senti que estava sendo recompensado. As palavras de
Kaya lançaram uma sombra sobre essa impressão.
Estou prestes a encerrar o dia quando alguém bate na nossa
porta. Fico olhando para o vazio por alguns minutos, me
perguntando se não teria imaginado o barulho, mas a batida se
repete. O que será que pode ser?
Atravesso a sala e posiciono meu traje no scanner para a porta se
abrir. Hilal está parado na entrada.
– Olá, Emmett.
– E aí, cara? Tudo certo?
– Tudo – ele responde. – Só vim fazer um convite formal para você
visitar meus aposentos.
Eu levanto uma sobrancelha.
– Agora?
Ele solta uma risada nervosa.
– Não, me desculpe, é um convite de caráter aberto. Pode vir
quando quiser.
– Aos seus aposentos?
– Exatamente. – Ele confirma com a cabeça.
– Tipo… para jogar e coisa e tal? Me ajuda aqui, cara. Estou
perdido.
Hilal franze a testa.
– Jogar? Acho que podemos fazer isso, sim. É só um convite.
Dou risada, completamente confuso.
– Um convite para quê?
– Meus… é… – Ele respira fundo. – Talvez eu não tenha sido
claro. De onde venho, é costume abrir nossa casa para os amigos.
Só queria avisar que minhas portas estão abertas para você e Kaya.
Tenho os dois em alta conta e gosto da sua companhia. Só isso.
– Ah. Valeu, cara. Eu agradeço.
Ele assente com a cabeça, como se a visita tivesse sido um
sucesso, mas então fica lá parado, esperando.
– Você quis dizer agora mesmo?
– Não, claro que não. – Ele fica vermelho de novo e começa a
recuar. – Boa noite, Emmett.
Devolvo o cumprimento e não consigo conter o riso quando a porta
se fecha. Ele estava todo sem jeito, mas eu gosto do cara. Vou para
o meu dormitório e passo as horas seguintes treinando
manipulações. Tento imaginar os outros com os pés para cima
enquanto estou de cabeça baixa com o nariz enterrado na pedra. No
fim, a exaustão me leva para a cama bem mais cedo que de
costume. Eu me deito e me concentro nos principais acontecimentos
do dia.
Quero dormir com a imagem de Kaya lendo para mim, ou Hilal
fazendo convites esquisitos. Porém, perco essa batalha. Minha
mente se volta para imagem de Isadora. Meus sonhos são
povoados por oitos com coroa. Eles se multiplicam e me cercam, e
um deles está empunhando uma adaga pretíssima.
DIA 11, 9h45
A bordo da Gênesis 11

Quando a nova semana começa, Longwei muda o método de


ataque.
Em vez da violência física, ele demonstra seu ódio me
destroçando nas competições matinais. Ele fica em primeiro em
todas as manipulações de nyxia. Gabarita a prova sobre os
mamíferos dominantes em Éden. Surpreende inclusive no tanque de
água. Em vez de transformar sua nyxia em óculos de natação, ele
faz um par de calçados especiais. Todos nós esticamos o pescoço
quando ele enfia os pés nos implementos com membranas entre os
dedos e mergulha. Não sei o que são nem como ele os fabricou,
mas Longwei nada como um atleta olímpico e supera os meus
tempos.
Depois de cada tarefa, ele faz questão de me encarar. É como se
quisesse se certificar de que eu saiba que tudo isso, todo esse
esforço e aprimoramento de habilidades, é direcionado apenas para
mim. Eu gosto dessa versão de Longwei. Pelo menos parece
humana.
Quando chega a hora do almoço, já estou em segundo no placar,
mas a conversa se limita ao evento da tarde. As corridas na Sala do
Coelho vão ser substituídas por outra competição nos próximos
nove dias. Está todo mundo discutindo as possibilidades como se
fosse uma coisa divertida. Mas por enquanto a Babel só nos fez
assassinar uns aos outros digitalmente, nadar no meio de
tempestades e correr por cenários exaustivos com obstáculos.
Duvido que o próximo evento vá ser um jogo de boliche ou um
circuito de minigolfe.
– E se for, tipo, pilotar umas mininaves espaciais? – Jazzy sugere.
– Eu adoraria pilotar alguma coisa.
Katsu faz um gesto negativo com o garfo na mão.
– Sem chance de deixarem a gente pilotar uma nave.
– Desde que não seja a Sala do Coelho, não me interessa o que
possa ser – diz Hilal. Ele parece cansado, como se estivesse
dormindo bem pouco. Aposto que todo mundo deve estar com essa
aparência. – Odeio a Sala do Coelho.
Dou uma olhada para ele, surpreso com o fato de Hilal saber o que
é odiar.
– Só porque nós sempre ganhamos – Azima provoca. – Eu adoro
a Sala do Coelho. Adoro correr. E nunca tinha visto árvores tão
lindas.
Hilal franze a testa.
– Você foi derrubada por uma dessas lindas árvores. Lembra?
– Mesmo assim eram lindas – retruca Azima. – Por que será que
fazem a gente correr tanto? Vai ser assim em Éden?
Com o canto do olho, vejo Kaya pensativa, como se estivesse
escondida em um lugar ao qual ninguém mais tem acesso. Hoje
seus cabelos estão presos em uma trança grossa que cai sobre um
dos ombros como uma faixa de miss. Ela demora um pouco para se
dar conta de que ainda existem outras pessoas no mundo.
– Azima fez uma ótima pergunta. – A voz de Kaya sai tão baixa
que silencia todas as outras conversas.
– Ah, fiz? – Azima questiona.
– Para que eles estão preparando a gente? – Os olhos de Kaya
estão perdidos em meio ao raciocínio. – As tarefas com a nyxia
fazem sentido. Estamos sendo preparados para usar a substância
que vamos coletar. Imagino que a redução para determinados
formatos facilita o transporte. E a natação. Isso significa que vamos
encontrar rios e mares. A Sala do Coelho é para deixar todo mundo
em boa forma para correr de um lugar a outro. Mas para que servem
as lutas?
– Você não viu o que aconteceu com os soldados naquele vídeo?
– pergunto.
Jazzy faz uma careta.
– Mas nós não vamos precisar lutar contra os adamitas. O sr.
Defoe falou que eles gostam de nós. Vamos ser recebidos como
hóspedes.
– Talvez existam outras espécies – especula Hilal. – Nós podemos
precisar lutar contra elas.
– Toda atividade tem um propósito – Kaya diz com firmeza. – Já
sei qual é a próxima tarefa. Nós ainda não aprendemos a minerar a
substância. É isso que vem a seguir.
Katsu encolhe os ombros enormes.
– Nada disso faz diferença se você não ficar entre os oito.
Ele está entre os quatro primeiros, e se sentindo seguro, pelo jeito.
Roathy e Isadora têm as pontuações mais baixas. A cada dia de
ausência, Roathy cai mais no placar e meu sentimento de culpa só
aumenta, mas a verdadeira surpresa é Isadora. Sua pontuação
nunca foi muito boa, mas agora ela se desligou de vez da
competição. Isadora é o oposto de Longwei. As duas únicas
semelhanças entre os dois são o isolamento e o distanciamento.
Porém, enquanto Longwei escuta cada conversa e memoriza as
informações para usá-las mais tarde, Isadora parece não ouvir
nada.
Ela fica olhando para as portas automáticas distantes, à espera do
retorno de Roathy. Na semana passada, ouvi Kaya tentando motivá-
la. Isadora a rechaçou, irritada. Ela e Roathy nem se conheciam
antes de embarcarem na nave, mas o fato de ele ter se machucado
os uniu. É como se a visão de Roathy ferido tivesse atraído Isadora
para seu lado. Isso faz eu me lembrar dos caras que apareciam na
escola com ossos quebrados. As garotas que não estavam nem aí
para eles faziam fila para assinar o gesso ou carregar seus livros.
Isso tudo significa que Isadora está com uma pontuação quase tão
baixa quanto a dele. Parte de mim lamenta por ela, mas outra parte
sabe que seu prejuízo significa lucro para mim. É menos uma
pessoa para ficar de olho. Esse pensamento faz com que eu me
sinta frio, cheio de culpa.
Defoe chega um pouco mais tarde que o normal. Está com seu
traje escuro de sempre, com a postura de quem tem o mundo a
seus pés.
– Novas equipes para a sessão desta tarde – ele anuncia.
Kaya assente com a cabeça como se já esperasse por isso. Um
olhar rápido revela que Azima está chateada. Eu não sei como me
sentir. É compreensível que a Babel queira misturar os times,
evitando que os membros dos grupos se tornem muito próximos.
Mas gostei de fazer parte de uma equipe e de vencer as
competições coletivas. Agora tudo muda.
– Emmett, Longwei, Roathy, Katsu e Jazzy.
É inevitável não olhar para Longwei. Seus olhos estão cravados
nos meus, e ele não está nada contente. Finalmente, pensei, uma
competição em que ele não pode me vencer. Esse pensamento me
faz sorrir. Só preciso torcer para que ele não tente me esfaquear ou
coisa do tipo. Estamos com um competidor a menos por causa da
ausência de Roathy, mesmo assim temos uma boa chance de
vitória. A única desvantagem é não estar no time de Kaya. Minha
amiga e aliada, e também a melhor estrategista do grupo.
– O time de Kaya: vocês querem ir primeiro ou depois?
Fico surpreso ao ouvir Defoe se referir à outra equipe como a de
Kaya, mas seus companheiros não questionam o fato. Ela ganhou
certa reputação na Sala do Coelho. Longwei pode ter a pontuação
mais alta, mas é nela que as pessoas confiam. Kaya é inteligente,
simpática e tem um raciocínio muito rápido. Observamos quando o
outro time se reúne e cochicham um plano. Jaime se destaca dos
demais e anuncia:
– Vamos querer ir depois.
Defoe se vira e nos conduz para a Sala do Coelho. Hilal solta um
grunhido de desgosto quando as portas automáticas se abrem. Me
arrependo de ter comido tanto. Quanto mais será que vão nos fazer
correr? Contudo, quando chegamos, dá para perceber que a sala
mudou. A rede divisória foi removida. Mais acima, os painéis do
forro estão abertos, revelando a fiação e os equipamentos. Cabos
brancos estão presos ao teto como teias de aranha. Consigo contar
cinco. Um para cada integrante da equipe.
– Iniciar sequência de treinamento – Defoe comanda.
As luzes no recinto são diminuídas. Cada cabo grosso se
desmembra em cinco terminações nervosas. Na ponta dos fios mais
estreitos há círculos brancos do tamanho de moedas. Os cabos
então sobem e se arranjam no formato de um halo. Ninguém se
move, porque é como ver um filme de ficção científica se
materializar. A maior parte da tecnologia da Babel está um passo à
frente do que temos na Terra, mas esta é a primeira vez que o
equipamento técnico da Babel parece tão alienígena quanto os
adamitas.
Quem são essas pessoas? Olho para o lado e vejo Kaya erguer a
sobrancelha. Pelo menos não sou o único surpreendido com o
arsenal infinito de aparatos da Babel. Arquivo esse pensamento na
letra I de investigar.
– Primeira equipe, sua vez – Defoe avisa. – Completem o tutorial e
comecem a tarefa. Para vencer, vocês precisam concluí-la mais
rápido que o outro grupo. Boa sorte.
Longwei lidera o caminho até os cabos. Katsu faz uma piadinha
sobre controle da mente, mas ninguém ri, porque ele se aproximou
demais da verdade. De perto, escuto os eletrodos estalando e sinto
um estranho calor perto dos cabos sencientes. Respirando fundo,
vou até o conjunto mais próximo e fico na ponta dos pés.
Um a um, os pequenos círculos se grudam por sucção ao meu
rosto. Quando o primeiro se fixa, a temperatura ambiente sobe
vários graus; um instante depois, estou transpirando por baixo do
traje. O círculo seguinte se prende, e ouço o som de fumaça sendo
solta. O terceiro faz a sala inteira feder a enxofre. O quarto me deixa
de boca seca, com um gosto de charuto podre na língua. Quando o
último círculo assume seu lugar, minhas sinapses se incendeiam, e
sou lançado para realidades desconhecidas.
Uma parte do meu cérebro se agarra à noção de que aquilo que
estou vendo não é real. À minha esquerda, Katsu, Longwei e Jazzy
parecem estátuas de cera. Nenhum deles se move ou respira. Isto
não é real, penso de novo. Mas então o restante do meu cérebro
domina essa parte. Parece ser real. Levanto a mão e espalho a
fumaça que sobe. Meus olhos percorrem uma paisagem de morros
áridos e carrinhos de mão lotados de pedras. O céu não é bem um
céu; é mais como uma névoa que recai sobre tudo.
– Legal – alguém comenta. Olho para o lado e vejo Katsu se
ajoelhando no chão. Tem na mão uma lasca de vidro vulcânico. Ele
a parte ao meio e dá risada. – Muito legal.
Atrás dele, Longwei começa a se mover. Jazzy permanece ao meu
lado, com os olhos fechados.
– Você está bem, Jazzy? – pergunto.
Ela abre os olhos e sorri.
– Sim, desculpa. É o calor. Meio que faz eu me sentir em casa.
Abro um sorriso para ela e começo a explorar os arredores. Tem
alguma coisa divertida na ideia de sermos arremessados no
desconhecido, e começamos a apontar e rir como criancinhas. É
impossível enxergar além de 200 metros. Dá para sentir o chão
pulsando como se estivesse vivo. Isso faz eu me lembrar do
primeiro dia, quando Defoe entregou nossos anéis de nyxia. É como
se houvesse algo à espera nas pedras. Estamos todos explorando a
paisagem desconhecida quando um caminhão enorme, o maior que
já vi, atravessa o nada nebuloso. As rodas têm o dobro do meu
tamanho, e a frente do veículo tem um corrimão branco com
degraus da mesma cor.
Quando o caminhão para, vejo que o enorme veículo é dividido em
três partes. A da frente tem uma cabine para o motorista, com um
intricado painel de tecnologia de ponta, com mostradores e botões.
A do meio parece um pássaro robótico empoleirado em uma gaiola
metálica. Na parte de trás, há uma caçamba que poderia facilmente
transportar duas ou três casas. Uma sonda exploratória em
miniatura está presa lá, junto com seus próprios componentes
mecânicos.
A fumaça continua a dançar em torno dos nossos tornozelos
quando o motorista encosta e desce a escada. Ele tem a aparência
exata de um dos militares mostrados no vídeo da Babel. Cabelos
cortados bem rente, cinto cheio de ferramentas e uma voz mais
retumbante que o som do motor do caminhão em marcha lenta.
– Bem-vindos ao vídeo instrucional de mineração de nyxia. Todos
os candidatos estão presentes?
Nós olhamos ao redor. Pela primeira vez, a ausência de Roathy
pesa na minha equipe. Lanço um olhar culpado para os outros
enquanto Longwei responde:
– Sim, senhor.
O militar corrige a postura.
– Sou o tenente Light. Atrás de vocês está o melhor equipamento
de mineração que vão ver na vida. Esse maquinário é muito mais
inteligente que vocês, então na maior parte do tempo basta deixá-lo
trabalhar. Quando chegarem a um local de escavação, o primeiro
passo vai ser a avaliação do depósito de minério. Tudo começa no
painel de comando.
Ele nos conduz até o caminhão e desliza o painel metálico lateral.
As luzes e os mecanismos parecem indecifráveis como hieróglifos.
Existe uma salada de botões e uma tela preta apagada. Ele aperta
um botão prateado por três segundos.
– Todas as funções têm um tempo de ativação de três segundos,
como forma de prevenção contra acidentes. Este botão inicia o
processo de avaliação.
As escotilhas entre as rodas do veículo se abrem, e uma nuvem
preta de drones passa por nós. É possível ouvir o zumbido enquanto
os aparatos dão início ao escaneamento a laser do terreno.
Enquanto trabalham, imagens digitais de mapas surgem na tela
diante de nós. A tecnologia da Babel continua a parecer cada vez
mais absurda.
Os drones voltam para as escotilhas, e o militar chama nossa
atenção para a tela.
– Existem duas plantas para cada mina de nyxia. A primeira
mostra a profundidade e largura do depósito de minério. – Uma
imagem em 3-D exibe uma colmeia subterrânea de nyxia. As
espirais pretas têm 300 metros de profundidade e quase a metade
de largura. Enquanto observamos, um pontinho cor-de-rosa acende
na superfície do depósito. O militar coloca o dedo em cima. – Este é
o local de origem. O centro do depósito e, portanto, o melhor lugar
para começar a minerar. Mas é sempre bom levar em conta a
segunda tela antes de dar início à mineração.
Ele põe o dedo na tela e arrasta para a esquerda. A colmeia preta
é substituída por um diagrama de traços vermelhos entrelaçados.
Não são muito numerosos, e a maioria está reunida nos recantos
mais profundos da mina.
– Como na maior parte das operações subterrâneas, existem
bolsões de gases inflamáveis. O principal a lembrar é que vermelho
é ruim. Muito ruim. Seu comandante vai precisar ficar de olho na sua
localização, para que vocês não acabem escavando um desses
bolsões e explodindo a merda toda. Alguns dos menores podem ser
perfurados, mas o computador indica áreas perigosas demais para
que vocês se aproximem.
Ele passa o dedo na tela uma segunda vez, e as imagens se
fundem. Uma espiral preta de nyxia manchada por bolsões
vermelhos de gás que, de acordo com esse cara, estão só
esperando para me mandar pelos ares. Legal.
– O computador vai tomar a decisão mais segura. Mantenham isso
em mente. Se o seu engenheiro encontrar uma forma de contornar
os bolsões de gás que pode ser mais lucrativa, então a decisão é
dele. Desde que não arrisquem a vida de seus companheiros de
equipe, vocês têm permissão para não cumprir as decisões do
computador. – O militar aperta um botão rosado e conta três
segundos com a outra mão. Quando o último dedo aparece, o
caminhão é ligado. Nós nos afastamos quando o motor ronca, as
rodas começam a girar e o veículo inteiro avança. Sem motorista.
Ninguém esboça reação, porque veículos autônomos são a
tecnologia corrente. É o acionamento da broca que chama nossa
atenção.
Os sistemas de controle levam o caminhão um pouco para a
esquerda e o fazem parar depois de cerca de 50 metros. O militar
estende a mão para nos deter quando um guincho metálico
reverbera sobrepujando todos os demais ruídos. Vemos as asas
prateadas se abrindo sozinhas. Enormes patas com unhas afiadas
se estendem e se enterram no chão. Os demais implementos de
metal surgem em seguida, desdobrando-se como uma enorme
garra.
– Vocês estão vendo isso? Que incrível! – exclama Katsu.
Trinta segundos depois, nossa broca paira ameaçadoramente
sobre o solo. A coisa tem uns 15 metros de altura. Damos alguns
passos para o lado quando o caminhão dá ré para proporcionar ao
enorme dispositivo o espaço necessário para escavar.
– Vocês vão estar em equipes de cinco – o militar nos explica. – O
comandante vai monitorar tudo. Ele ou ela deve instruir todos em
busca de atingir o objetivo. O segundo trabalho vai para o força-
bruta. Tem um espaço na broca para um operador. O força-bruta
precisa ser ágil, firme e atento a qualquer mudança sob a superfície.
Precisa ser uma pessoa calma também. Se alguma merda
acontecer a 200 metros de profundidade, é preciso manter o
sangue-frio. Duas pessoas são necessárias para operar a esteira de
recolhimento, e o último integrante do time precisa moldar a nyxia
no formato com dimensões ideais para o transporte. Alguma
pergunta?
Longwei levanta a mão.
– Como vamos fazer para nos comunicar uns com os outros?
O militar faz um aceno curto de cabeça.
– Aperte o botão no seu ombro.
Todos levamos a mão ao ombro. Depois de três segundos, o
tecido em nosso pescoço se transforma em capacetes. O meu cobre
até a minha testa, então um visor transparente me isola dentro do
traje. Minha respiração sai na forma de fumaça à minha frente.
Como sempre, é Jazzy quem diz o que todos estão pensando.
– Isso é incrível, pessoal.
– É mesmo – Katsu responde pelo comunicador. Todos nós
parecemos astronautas de verdade agora.
O militar pergunta se temos mais alguma pergunta, mas não
consigo pensar em nada. Ainda estamos em pleno estágio do
choque inicial. Katsu estava certo e errado antes. Não vão nos
deixar pilotar espaçonaves, mas estão nos dando a chave de um
equipamento de mineração milionário. A Babel confia em nós, mas
acho que não tem opção. Somos sua única possibilidade de obter
mais nyxia.
Depois de um breve silêncio, o militar bate continência.
– Sua primeira tarefa é escavar um túnel operacional. Vocês vão
precisar escavar até uma profundidade exata de 150 metros. Boa
sorte, soldados.
Ele desaparece na névoa. Nós nos botamos em movimento, mas é
uma atividade um tanto frenética e incerta. Não fazemos ideia de
por onde começar, por isso nos aglomeramos em torno das plantas
digitais e fingimos entender o que significam. Longwei examina a
planta por um segundo antes de abrir caminho entre nós. Ele
começa a subir os degraus de metal que dão acesso à broca.
Quando chega lá em cima, abre a cápsula e entra dentro dela.
– Por que ele vai ficar com a broca? – questiono.
– Vou ficar com a broca porque sou o melhor – retruca Longwei.
Meus olhos se arregalam. Me esqueci do comunicador no
capacete. Katsu ri como um idiota para mim. Alguns segundos
depois, a broca é acionada. Todos observamos seus dentes girarem
de forma ameaçadora. É impossível ouvir alguma coisa que não
seja nós mesmos agora. A voz de Longwei volta a ressoar nos
capacetes.
– Fiquem de olho nas plantas. Se aparecer algum bolsão de gás
por perto, me avisem.
O mecanismo hidráulico assobia, e a broca se enfia no chão.
A lama escorre para fora em jorros grossos enquanto observamos o
implemento prateado desaparecer. Nos reunimos perto da planta e
vemos nossa broca sumir no diagrama. A ponta vai cortando a
nyxia, marcada em preto, e atrás de nós o som se eleva em alguns
dolorosos decibéis. O mundo inteiro balança.
Quando a broca está quase toda enterrada no chão, percebo que
isso é muito, muito tedioso. Não nos resta nada a fazer além de
observar os pontinhos na tela.
Então observamos. Por quase uma hora. Em certa ocasião,
precisamos avisar Longwei de um bolsão vermelho 5 metros abaixo
e à esquerda de sua posição. Ele pressiona um botão que dissipa
os gases e prossegue. Está a 10 metros de distância quando outro
som atravessa o retumbar ensurdecedor. Nós três nos viramos para
trás quando uma dupla de vultos surge na névoa.
– Temos companhia – eu digo.
O guincho da broca se transforma em um resmungo.
– Quê? – pergunta Longwei.
– Monstros – revela Jazzy. – Na superfície.
A palavra monstros a faz soar como uma garotinha, mas as coisas
que estão se materializando no nosso campo de visão faz com que
eu me sinta como uma criança. São monstros mesmo. Andam sobre
quatro patas, e seu avançar é cambaleante e trôpego. À medida que
se aproximam, dá para ver mais músculos em seus peitos e
antebraços largos. A comparação mais próxima que consigo fazer
com nosso mundo é com um gorila, mas não parece a escolha
certa. Em vez de pelos, eles têm escamas em forma de diamantes,
e as garras têm formato de adaga. Os ombros são pontudos, e a
língua comprida pendura-se dos recônditos escuros da boca.
Sou o primeiro a me afastar da segurança do caminhão na direção
dos intrusos. Me concentrando na imagem, transformo a nyxia na
minha luva com escudo da arena. Uma segunda manipulação forma
a manopla com juntas afiadas. Ergo as armas quando os animais
tomam o rumo da nossa broca. Uma rápida olhada revela que Jazzy
está alinhando os passos com os meus. Não sei por que eu
esperava que ela fosse sentir medo, mas seu queixo está erguido e
sua arma está de prontidão. Katsu permanece imóvel ao lado do
caminhão.
– Acorda, Katsu. Precisamos da sua ajuda – digo.
O calor emana do buraco que Longwei abriu no chão. A fumaça se
dissipa quando uma das criaturas para ao lado de um dos pés de
apoio da broca. Suas mãos com garras atingem o metal, que
enverga. O bicho golpeia de novo enquanto o outro se detém e nos
observa em silêncio. Estão a apenas 20 metros agora. Meus passos
continuam encurtando essa distância.
– Ei! – grito. Não tenho nenhum plano em mente, mas, se essas
coisas destruírem um dos suportes, sei que a broca não vai
conseguir chegar à profundidade necessária. – Ei, aqui!
Consigo chamar a atenção do outro lagarto, que atravessa a
distância entre nós em um piscar de olhos. Deslizo para a direita e
faço com que minhas juntas afiadas se arrastem pelo antebraço
exposto. A maior parte do estrago é evitada pelas escamas grossas,
mas consigo atingir a pele perto da articulação do cotovelo; o bicho
solta um rugido de dor. O sangue jorra, e sou lançado para o lado
com uma ombrada. Jazzy dá um berro e golpeia com a espada,
decepando a mão estendida da criatura.
O monstro solta mais um rugido e começa a recuar enquanto o
outro avança. Bloqueio dois golpes com a luva-escudo, mas um me
atinge no quadril. E tudo se arrebenta. Sinto meus ossos vibrarem, o
ar abandona meus pulmões e tenho a sensação de estar caindo
para fora do mundo. O animal solta um grunhido ao se colocar de pé
ao meu lado, mas uma espada enorme é enterrada em seu peito
exposto. Katsu a enfia até o fim, desviando das garras frenéticas até
a coisa perder o fôlego, soltar um último suspiro e morrer. Estamos
todos ofegantes, e sei que não consigo me mover nem ao menos
ficar de pé. Permaneço deitado na terra.
– Está tudo bem aí em cima? – Longwei pergunta.
– Continua cavando – esbraveja Katsu.
O ruído da broca em movimento volta a preencher o ar, e minha
dor duplica. Estendo a mão para apalpar o ferimento e solto um
grunhido mesmo com a mais leve pressão. Um golpe daquela
criatura é capaz de envergar metal. Meus ossos não envergam. O
quadril está dilacerado, e os fragmentos parecem estar encravados
como balas na lateral do meu corpo.
– O que a gente faz? – Katsu pergunta, em pânico. – Jazzy, o que
a gente faz?
Jazzy consegue se manter bem mais calma sob pressão. Uma
olhada rápida revela que ela está correndo para buscar um dos kits
médicos. Minha visão fica borrada quando a dor aperta. É a pior
sensação que já experimentei. Pior que a minha concussão no ano
passado. Pior que as vezes em que quebrei o nariz jogando futebol
americano. Pior do que os ombros deslocados em partidas de
basquete com PJ ao longo dos anos. Jazzy grita alguma coisa no
comunicador, mas não consigo distinguir as palavras.
Sinto que o mundo está encolhendo. Aí tudo para.
Trocamos a terra pela borracha, a névoa pelos fios suspensos. A
Sala do Coelho volta à tona e minha dor desaparece. A presença de
outras pessoas invade minha realidade. Defoe está lá com uma
dupla de funcionários. Eles desconectam os fios brancos e nos
entregam um balde.
– Para que isso? – Katsu pergunta.
– O cérebro e o corpo nem sempre concordam – Defoe explica.
Bem nesse momento, Jazzy começa a vomitar. Katsu cai de
joelhos e faz o mesmo. Longwei e eu ficamos nos encarando com
expressões duras, como se aqui também houvesse uma batalha de
vontades. Alguma coisa me golpeia no estômago; sinto o gosto da
bile subir e me rendo primeiro. Longwei sai vencedor de novo, mas
o espólio da vitória o deixa debruçado sobre um balde também. Os
funcionários oferecem toalhas e garrafas d’água enquanto a outra
equipe assume nosso lugar.
– E eu pensando que não iria vomitar hoje – comenta Hilal, me
estendendo a mão. – Você está bem?
– Pois é. – Ainda estou com a mão no quadril. Minha mente não
consegue aceitar que os ossos não estejam esmigalhados. Dá para
sentir a realidade virtual invadir meus sentidos e meu estômago.
Quase conto a Hilal sobre os lagartos-gorilas, mas penso duas
vezes. Por que alertá-lo? É uma competição de equipe contra
equipe. Ele está me olhando com uma cara estranha, então digo
apenas: – Boa sorte. É meio esquisito por lá.
Ele assente com a cabeça e se junta ao restante da equipe.
Somos afastados do centro da sala, mas podemos ver tudo lá de
trás. Os fios brancos se fixam aos novos hospedeiros, e em pouco
tempo os cinco estão flutuando no ar. Nós também flutuamos
assim? Nem sei se é possível, mas suas mãos estão se movendo e
suas pernas caminham pelo outro mundo. Eles não se movem mais
que alguns passos para a esquerda e para a direita, porém mesmo
assim é um pouco assustador. Como ver marionetes humanas
presas a cordas. Azima se agacha e pega um punhado invisível de
terra. Hilal aponta para algo a distância. É difícil não imaginar seus
olhos brilhando ao verem o caminhão pela primeira vez.
Observo por um tempo, então me recosto e fecho os olhos. Por
alguma razão, me sinto mais cansado do que nunca na Sala do
Coelho. Como se meu cérebro e meu corpo tivessem que se
esforçar mais para entrar em outra realidade do que para correr em
um percurso de obstáculos.
Nosso grupo permanece em silêncio, e consigo até cochilar um
pouco. Katsu me acorda quando os outros começam a ser retirados
do simulador. Como nós, eles vomitam nos baldes e se afastam com
passos cambaleantes. É uma visão tão lamentável quanto a
sensação.
– Meus parabéns à segunda equipe – Defoe anuncia. – Vocês
chegaram ao estágio seguinte cinco minutos antes da primeira.
A vitória é de vocês.
Meus ombros despencam. Fico me perguntando se a ausência de
Roathy fez alguma diferença nessa primeira rodada. O mais
provável é que Kaya tenha feito a diferença. Havíamos esperado
que Longwei agisse como um líder, mas ele pulou dentro da broca e
não deu a menor bola para nós. Normalmente, é o tipo de problema
sobre o qual eu me aconselharia com Kaya, mas nesse caso ela
não vai me dar conselhos, porque nossa aliança está suspensa.
Azima começa a se gabar da vitória, mas acaba vomitando no meio
da frase. Depois disso, os dois times se deslocam pelos corredores
em silêncio.
O placar aparece à esquerda.
Todos os olhos se voltam para a pontuação. Nosso lembrete diário
do sucesso e do fracasso:

1. LONGWEI 50.750 pontos


2. AZIMA 49.900 pontos
3. EMMETT 48.900 pontos
4. KAYA 41.450 pontos
5. KATSU 41.400 pontos
6. HILAL 40.300 pontos
7. JAIME 37.200 pontos
8. JASMINE 33.050 pontos
9. ISADORA 22.080 pontos
10. ROATHY 21.324 pontos
O prejuízo do dia não foi dos piores. Estou em terceiro lugar e
tenho uma enorme vantagem em relação a Isadora e Roathy.
Lembro a mim mesmo que é apenas o 11º dia da viagem. O objetivo
não é ficar confortável aqui, e sim ralar o suficiente para garantir
que, caso eu seja o próximo a sair ferido ou ficar doente, não
precise me preocupar em perder a posição entre os oito primeiros.
Ciente de que esse é o melhor conselho que posso receber, volto
para os aposentos depois do jantar e me obrigo a praticar as
manipulações de nyxia.
Cada vez mais rápido. Forço meus próprios limites a ponto de cair
imediatamente no sono quando deito a cabeça no travesseiro.
DIA 12, 8h23
A bordo da Gênesis 11

Roathy aparece à mesa no café da manhã. Todos dão as boas-


vindas e desejam melhoras, mas ele nos ignora. Ainda não pode
comer alimentos sólidos, então bate algumas frutas com leite no
liquidificador e senta-se ao lado de Isadora. Ela se inclina para o
lado e dá um beijo em seu rosto. Kaya me lança um olhar. O apego
cada vez maior de Isadora é preocupante. Se Roathy me encarar
como inimigo, o mesmo vale para Isadora. Olho para eles mais
algumas vezes; a inveja é inevitável. Quero que alguém me olhe
assim também. Quero me sentir querido.
Defoe chega para os exercícios matinais. Quando todos se juntam
para sair do refeitório, tento ser humilde mais uma vez. Isadora
rejeitou meu pedido de desculpas, mas ainda tenho esperança no
caso de Roathy.
– Espero que não haja ressentimentos – digo a ele. – Só estava
fazendo a minha parte no jogo.
Um sorriso aparece no rosto dele. Roathy lança para mim o
mesmo olhar que dedica a todo mundo. Como se pudesse enxergar
a estratégia oculta no meu pedido de desculpas. Meu corpo todo
fica tenso quando ele se inclina para a frente e murmura para
ninguém mais ouvir:
– Se quer bater em alguém daquele jeito, é melhor garantir que a
pessoa nunca mais se levante.
Ele ergue uma sobrancelha e se afasta. Hilal vê tudo e vem falar
comigo:
– Está tudo bem?
– Está, sim. Roathy mais late do que morde.
Hilal parece ainda mais preocupado.
– Eu não acho que seja assim, Emmett. É melhor você tomar
cuidado.
– Não posso fazer nada a respeito agora – digo. – Vamos, a gente
está ficando para trás.
A volta de Roathy não é a única surpresa. Nossas manipulações
normais são substituídas por um tipo diferente de teste. Até aqui,
fomos direcionados para concentração e velocidade. Hoje Defoe
quer testar nossa força. Uma fileira de formas geométricas está
alinhada à parede dos fundos da sala. Vejo cubos, esferas,
pirâmides e cilindros. São todos da cor de buraco negro da nyxia, e
da esquerda para a direita vão ficando cada vez maiores.
– Longwei – chama Defoe. – Um passo à frente.
Ele obedece. Seu tufo de cabelos parece bagunçado hoje, e seus
olhos estão vermelhos. O simulador drenou energias de todos nós.
Vemos quando ele põe a mão em uma esfera do tamanho de uma
maçã.
– Ao meu comando – orienta Defoe –, transforme isso em uma
forma em 3-D do mesmo tamanho. Pronto?
Longwei faz que sim com a cabeça.
– Cubo – diz Defoe.
Vemos o ar se agitar e um cubo tomar forma. Ele passa para o
próximo. Cilindro, cubo, cubo, esfera, pirâmide e por aí vai. Longwei
já cumpriu três quartos da fila quando para diante de uma esfera do
tamanho de uma bola de praia. Só restam seis objetos.
Ele estende o braço, fecha os olhos e desaba. Longwei cai de
costas e começa a se debater como se alguém tivesse enfiado seu
dedo em uma tomada. Dou um passo à frente para oferecer ajuda,
mas Defoe ergue a mão:
– Ele precisa superar isso sozinho.
Solto um palavrão baixinho. Apesar de não gostar de Longwei, é
difícil ver seu corpo se contorcendo como o de uma marionete. A
crise dura 30 segundos. Quando seus olhos enfim se abrem, ele
respira fundo algumas vezes e solta um grito apavorado.
Longwei, o mais durão e determinado do grupo, é removido aos
berros por uma dupla de funcionários. Defoe chama Azima a seguir.
Com passos cautelosos ela se aproxima dos objetos. É a primeira
vez que a vejo demonstrar algum medo, alguma contenção. Parece
uma criança diante do desconhecido, com uma escuridão profunda
e perigosa à sua espera. Seu colapso acontece na metade do
exercício. Forças invisíveis a esmagam, imobilizam, sugam a vida
de seu corpo. Depois de cerca de dez segundos, ela volta, ofegante.
Azima não grita, mas não consegue ficar de pé sozinha. Hilal vai até
ela correndo e a abraça pelo ombro. Eles vão juntos até a porta.
Que diabo é isso? O nome de Kaya é chamado.
– Não – ela diz.
Defoe ergue uma sobrancelha.
– Não?
– Não.
– Kaya, se você não participar, não vai ganhar pontos.
– Tudo bem. Eu não estou confortável com esse exercício. Vou
abrir mão dele.
Um silêncio absoluto desaba sobre o recinto. Pela primeira vez, os
métodos da Babel estão sendo questionados. Eles só têm a
autoridade que estamos dispostos a conceder, e no momento Kaya
está colocando sua saúde acima dos pontos. Lembro que o dinheiro
de que precisamos tão desesperadamente não faz diferença para
ela. Sei que Kaya quer ir a Éden. Ela quer conhecer um lugar novo e
fugir de uma vida de tristeza na Terra, portanto, também quer
ganhar. Mas no momento está dizendo não. E merece todo o meu
respeito e um pouco mais.
A expressão de Defoe fica mais fechada.
– Quinhentos pontos a menos. A penalidade vai ser dobrada a
cada vez que fizermos essa atividade e você se recusar. – Seus
olhos se voltam para mim. – Emmett.
Kaya observa ao redor. Seus olhos são duas piscinas escuras, e
vejo neles a tristeza que detectei durante nossa conversa no sofá.
Ela não está tentando ser rebelde; só está com medo. O que quer
que os outros dois tenham visto atrás da cortina opaca da Babel, ela
não quer testemunhar. Eu também não quero, mas jogo é jogo.
Cada pontinho conta. Aceno com a cabeça e me aproximo.
Quanto mais tempo passo com meu anel, menos sinto a tentação
da nyxia. O material ainda parece vivo e vibrante, mas já o
comandei por tempo suficiente para não temê-lo. A primeira esfera
de nyxia em que ponho a mão exerce uma atração muito mais forte.
Dá para sentir o pulso vibrante de algo sob a superfície da
substância. Então escuto Defoe dizer:
– Cubo.
Me concentro, projeto a imagem e vejo a esfera se ajustar em um
cubo. Cada bloco sucessivo tem uma influência maior sobre mim.
Faltam apenas seis objetos na fileira quando sinto a nyxia
exercendo uma forte pressão contrária. Só com uma concentração
extrema consigo superar suas defesas e transformar o objeto em
uma pirâmide. Minha respiração desacelera e meu coração mal
parece bater. Passo pelo bloco que causou dificuldades a Azima. E
pelo seguinte, e pelo seguinte, até superar a marca de Longwei.
Eu sou mais forte que você, Longwei.
O orgulho antecede a queda. O antepenúltimo objeto me desliga
do mundo.
Afundo em águas profundas. E sou puxado com força demais para
que meu corpo consiga resistir. Sinto meus braços se
desencaixando e se encaixando de novo nos ombros. O puxão fica
mais fraco, depois para, e agora alguma coisa fora de mim começa
a me invadir. Garras exploram os espaços mais recônditos, tocam-
me em partes de mim que nunca vou ver. Nessa escuridão
impossível, vejo um rosto… pouco antes de a luz voltar.
Meus pulmões imploram por ar. Grito até me tirarem da sala.
Vandemeer senta-se comigo em um casulo de relaxamento. Ele é
gentil e paciente. Tento não olhar para o espaço do lado de fora,
porque o vazio do negrume agora tem um rosto. Vandemeer
percebe, aciona um botão e uma imagem de montanhas enevoadas
ao longe substitui a vista da janela. Tudo para a Babel se resume ao
clicar de um botão. Isso está começando a me irritar.
– Quem são vocês?
– Apenas pessoas – Vandemeer responde.
– Não. Os meus amigos são apenas pessoas. PJ e os Manos de
Elite, eles são gente comum, nada mais. Eu? Eu sou um cara
comum. Mas vocês? Sem chance. O que vocês querem?
– Dinheiro – responde Vandemeer. – A questão é sempre o
dinheiro, Emmett. A Babel quer ser a corporação mais rica e
poderosa do mundo. Eu entrei na empresa pelo mesmo motivo. Eles
pagavam melhor e tinham mais recursos. Todo mundo quer estar no
time vencedor.
E o que acontece com o time perdedor?, é o que sinto vontade de
perguntar. Quero saber tudo o que eles não querem me contar. Os
segredos que estão me incomodando desde o primeiro dia, os
temores que meu pai mostrou com relação a isso. Tudo está
voltando à tona. Esta viagem deve estar custando bilhões de
dólares. Então o que eles querem em troca? A nyxia? Será que é
mesmo assim tão simples? Gastar alguns bilhões para ganhar
algumas centenas de bilhões?
– O que aconteceu comigo? – questiono. – O que foi isso?
– A nyxia é um elemento interativo. Pode ser manipulado usando
pensamentos e intenções. Todos são capazes de manipular a
substância, mas existem limites. Descobrimos que, se a pessoa
exagerar na manipulação, a nyxia reverte o processo. É como se a
substância tentasse pegar sua pele, seu sangue e seus ossos para
produzir… outra coisa.
Fico olhando para ele, horrorizado.
– Nós estamos sendo usados como cobaias?
– Claro que não.
– Então o que foi aquilo?
– Nós fizemos testes exaustivos – explica Vandemeer. Ele me
lança um olhar estranho e dá uma espiada no relógio. Com alguns
cliques, o dispositivo é desligado. – Cá entre nós, descobrimos
essas limitações durante a primeira missão. Um dos nossos homens
tentou manipular uma mina inteira. Ele foi consumido.
– Como assim?
– Você não sentiu, por dentro?
Estremeço e faço que sim com a cabeça.
– Senti – respondo.
– Imagine que não tivesse sido uma quantidade segura e testada
de nyxia. Imagine o que você experimentou multiplicado por mil.
– Parece horrível.
– O vídeo foi uma coisa difícil de ver. A vítima não teve uma morte
bonita – confirma Vandemeer. Ele volta a ligar o relógio de pulso. –
Minha sugestão para você é pegar mais leve. Forçou seus limites
hoje. Pode ser mais inteligente participar do exercício e desistir
enquanto ainda é seguro. Assim você pode ganhar pontos, mas
sem…
– Me sentir como se estivesse sendo morto por dentro?
– Sim – responde Vandemeer. – Isso.
– Ótimo conselho, doutor.
Vandemeer franze a testa, o que faz com que seu rosto pareça
ainda mais estreito e seu olhar, ainda mais afiado.
– Emmett, de verdade, estou aqui para cuidar de você. Minha
principal preocupação é sua saúde e a de Kaya. Entende isso?
– Eu agradeço, Vandy. Mas, no fim das contas, você é um deles.
Não é?
Vandemeer se recosta na cadeira, olha no relógio e assente com a
cabeça.
– Sim, Emmett. Sou um médico empregado pela Babel, acima de
tudo.
Fico de pé e esbarro nele de leve ao sair.
– Ainda bem que esclarecemos isso.
Hábitos antigos são difíceis de abandonar. Eu não costumava
roubar muito quando criança, mas estava sempre de olho. Sempre
pensando em uma forma de fazer um relógio se soltar de um pulso
ou um par de tênis desaparecer em um passe de mágica do armário
do vestiário da escola. Depois de passar anos usando sempre a
mesma calça jeans, o risco começa a parecer que vale a pena.
A bordo da Gênesis 11, existem coisas um pouco mais valiosas
que um par de pisantes novinhos. Desde o primeiro dia, estou de
olho no equipamento de Vandemeer. Ele usa a tela portátil para ter
acesso à nave toda, mas também tem um cartão de identificação
secundário, com os mesmos códigos incluídos. E nunca usa. Deve
ser uma coisa só para emergências. Em geral fica guardado em
segurança na parte de trás do cinto de ferramentas, mas agora está
no meu bolso. Uma parte de mim queria saber se eu teria coragem
de roubá-lo. Mas o verdadeiro motivo? Quero explorar o restante da
nave. A Babel claramente tem seus segredos. Talvez alguns que
Vandemeer não conheça.
Sei que preciso investigar, descobrir o que a Babel guarda no
porão. Esse conhecimento pode ser a única coisa capaz de me
garantir uma vantagem de verdade no restante da competição. É
minha única forma de fazer cair a máscara da Babel. As respostas
estão à espera. Só preciso encontrá-las.
DIA 18, 11h23
A bordo da Gênesis 11

A presença de Roathy me atormentou a semana toda. Ele está


sempre por perto, mas, toda vez que me viro para olhar, já
desapareceu. De todos os competidores, provavelmente somos os
mais parecidos. Vejo muito de mim mesmo nele, mas um passo em
falso o transformou em inimigo. Sei que ele vai tentar se vingar, mas
não sei de que forma um garoto como ele faria isso. Se estivesse
em seu lugar, qualquer um que me impedisse de ganhar pontos
cruciais teria um alvo grudado nas costas. Fico com a sensação de
que, quando chegar a hora de sua desforra, não vai ser jogo limpo.
E a pior parte é não saber o que vem pela frente, nem quando.
A Babel está nos submetendo a uma série de tutoriais de
mineração. Quando explodimos acidentalmente Longwei em uma
simulação, as repetições começam a fazer sentido. Não estamos só
treinando o uso de um equipamento caríssimo. Estamos
aprendendo a permanecer vivos para executar o trabalho que fomos
contratados para fazer.
Infelizmente, nosso grupo está aprendendo em um ritmo mais
lento que o de Kaya. A garota é mais esperta que todos nós juntos,
e estamos perdendo pontos a cada dia que passa. Longwei põe a
culpa em nós, mas não tem ideia de como trabalhar em equipe. Não
me irrito porque sei que vamos voltar a correr pelas florestas digitais
na próxima semana. Nessa competição, as estratégias de Kaya
funcionam a meu favor. Os pontos perdidos e ganhos nas provas
individuais são mais importantes. As batalhas incessantes na arena
são oportunidades de reduzir um pouco o prejuízo.
Quando entramos no espaço de combate, dou uma olhada no
placar.

1. LONGWEI 62.750 pontos


2. AZIMA 61.900 pontos
3. EMMETT 58.900 pontos
4. KAYA 53.450 pontos
5. KATSU 51.400 pontos
6. HILAL 50.300 pontos
7. JAIME 47.200 pontos
8. JASMINE 43.050 pontos
9. ISADORA 39.080 pontos
10. ROATHY 32.324 pontos

Meu desempenho caiu um pouco. Kaya está voltando para o topo


da classificação. Na verdade, se Isadora e Roathy não estivessem
tão mal, eu estaria sentindo a pressão a esta altura. Mas a
pontuação ainda está aberta. Se me esforçar, não existe motivo
para o meu nome não poder ficar no primeiro lugar. A tela dos
avatares aparece, e me sinto afiado. No fundo, estava querendo
uma boa briga.
Azima e Longwei vão primeiro. Azima pega sua lança e Longwei
continua com a espada. Ele está melhorando, mas isso não faz
diferença para Azima. Ela é como uma cobra no mato alto. Pela
primeira vez, reparo na qualidade de seu jogo de pés. Ela desliza
para a esquerda e para a direita, abre a base para golpear e se
esquiva de todos os ataques. Seus ombros também ficam muito
bem posicionados. Ela se abaixa para mudar o ângulo do ataque ou
se contorce para bater com o outro lado da lança. É um ritmo quase
musical. Longwei fica na luta no máximo uns 20 segundos antes de
seu avatar desabar.
Em seguida vêm Roathy e Isadora. Defoe parece curioso para ver
como os pombinhos vão se comportar na arena um contra o outro.
Mas, quando ele dá o sinal, Isadora larga as duas adagas. Roathy
se aproxima e decepa sua cabeça imaginária. Eles se juntam a nós
do lado de fora e largam as armas. Uma bela decepção para quem
esperava um duelo dramático entre os namorados.
Meu eu digital ganha vida na tela. Jaime aparece do outro lado.
Não consigo conter um sorriso. Jaime até que é legal, mas o
desentendimento inicial continua pesando entre nós. No fundo,
estou esperando por essa luta tanto quanto ele. Jaime pega as
mesmas espadas curtas que Roathy usou. Pego minhas manoplas e
assumo a posição de combate.
Ele parece furioso. Ótimo. A raiva é recíproca.
Defoe dá o sinal e começamos a circular um ao outro.
Ao contrário de Roathy, Jaime não é impulsivo nos ataques.
Defendo seu golpe inicial e cravo um soco em sua costela. Ele
assimila o golpe, e nos afastamos. Meu tio me ensinou a lutar de
forma paciente. Deixar o outro tomar a iniciativa, cometer um erro e
só então ir para cima. Jaime é cauteloso até demais para cometer
algum deslize. Ele testa minha defesa com outro golpe de espada, e
faço o mesmo com um soco de manopla. Por fim, ele se abre com
um movimento mais amplo.
Eu me defendo com a manopla em seu pulso, me esquivo do
contra-ataque e rasgo seu ombro com as garras. Ele recua, e chega
a minha vez de pressionar. Atacando e circulando e atacando.
– Você nunca brigou antes – comento com um grunhido. – Nunca
precisou lutar.
Sei que é verdade. Pela maneira como seu corpo se move e pelo
fato de seus olhos se arregalarem, em vez de se estreitarem. Esse
cara nunca brigou com ninguém. Uma das espadas escorrega de
sua mão, e meu golpe fatal é um soco de baixo para cima no
queixo. A Babel deu um jeito na minha arma para eu não conseguir
atingir seu rosto de verdade, mas, isso não impede que Jaime caia
no chão. Ele fica furioso, porém, quando consegue se levantar, seu
avatar está morto e eu saio vencedor.
– Você não sabe de nada – ele diz, empurrando-me com força
pelas costas.
Vou das brasas às chamas em um piscar de olhos. A velocidade
com que me viro o surpreende. A nyxia se agita no meu bolso, como
se estivesse se alimentando da minha raiva. Penso em dar um soco
na boca dele, mas em vez disso abro um sorriso. Estou em um jogo
de longa duração.
– Sei que vou ganhar de novo amanhã. Toda vez que a gente se
enfrentar aqui, eu vou vencer. Pode contar com isso.
Defoe se aproxima para separar uma briga que não vai acontecer.
Fico atento a esse fato. Em geral ele não interfere quando a
competitividade passa do ponto. Sempre chega quando o estrago já
está feito, como se gostasse de ver que as tarefas nos levam ao
limite. Mas no caso de Jaime ele aparece antes que eu possa fazer
alguma coisa? Arquivo esse pensamento na letra S de suspeito.
Guardo minhas armas e assisto às duas últimas lutas junto com os
demais. Kaya supera Katsu em um jogo de gato e rato e Hilal acerta
um belíssimo golpe final em Jazzy. Deixamos as lutas de lado e
vamos almoçar.
Depois de 18 dias a bordo da Gênesis 11, as mortes imaginárias
não incomodam mais. Até fazemos piadas a respeito enquanto
comemos os sanduíches de frango. Vandemeer tem razão. É tudo
muito irreal. As consequências não se impõem porque sabemos que
amanhã vamos lutar de novo e que os golpes das espadas e das
estrelas ninja não vão nos machucar. Eu me pergunto se vamos
conseguir virar a chave quando estivermos em uma situação real de
combate ou mineração. O plano da Babel é nos deixar insensíveis.
Executar a tarefa sem deixar os sentimentos virem à tona.
Simplesmente concluir a missão.
A visão da Babel para o fim do jogo é um mistério, mas o placar
não é segredo para ninguém. Estou em terceiro lugar e preciso
permanecer no alto da tabela. Terminamos o almoço e vamos para a
Sala do Coelho. Conforme esperado, a iluminação está difusa e os
fios brancos estão esperando para nos levar à simulação virtual de
Éden. Antes de termos sequer a chance de discutir estratégias,
Longwei atravessa a sala e se conecta. Seu corpo já está flutuando
quando chegamos lá.
– Que bacana – murmuro. – O capitão que deixa os companheiros
para trás.
– O cara é meio tenso demais – Katsu comenta. – A gente deveria
oferecer uma massagem para ele.
– Então ele quer fazer tudo sozinho, é? – Jazzy entra na conversa.
– Pois é – respondo –, mas o digníssimo pelo menos poderia dar o
crédito pelo que a gente faz por ele.
– Também acho.
A voz está tão próxima de mim que meu corpo se enrijece. Roathy
surge como um chacal, sem tirar os olhos de mim, e sua risada ecoa
nos meus ouvidos. Ele sabe que, mesmo que só por um instante,
esqueci-me de sua presença. E eu sei que ele poderia ter
transformado sua nyxia em uma faca e a cravado nas minhas
costas.
Ignoro seu sorriso torto e assumo minha posição sob os fios. Um a
um, meus sentidos se transferem daqui para lá. Nossa broca está
no chão, e Longwei é o único que não está ali conosco. Uma mão
enorme bate no meu visor, e quase caio para trás tentando me
desvencilhar dela. Katsu dá risada no comunicador e mostra a pata
decepada do lagarto do primeiro dia.
– Você precisava ver a sua cara – ele comenta.
Enrugo a testa e volto minha atenção para a broca.
– Longwei, você está aí? – digo.
Hoje está tudo diferente. Nas últimas simulações, entramos em
sessões tutoriais, com diversos tipos de novas lições e ferramentas,
mas ao que parece agora voltamos a onde paramos no primeiro dia.
Não há resposta de Longwei nem sinal dos monstros.
– Longwei – chamo mais alto. – A não ser que esteja planejando
ficar em segundo lugar toda vez, adoraríamos saber o que você está
fazendo para podermos ajudar.
– Estou voltando aí para cima – ele diz. – A broca precisa subir
para começar o próximo passo.
Uma fenda se abre à nossa direita, e o tenente Light reaparece.
Quando o buraco repentino no mundo se fecha, ele sorri como se
nada tivesse acontecido e aponta para a broca.
– Agora que vocês retiraram a broca, está na hora de uma parte
da equipe começar a raspagem e a outra a escavar um túnel
secundário. Venham comigo.
Nós o seguimos até as plantas exibidas na lateral do caminhão.
Ele aponta para os resultados dos esforços de Longwei. A broca é
uma linha branca dividindo um mar preto de nyxia. Está meio torta
aqui e ali, mas de resto parece estar tudo certo.
– Nada mau, mas seu operador precisa ter mais firmeza nos
controles quando descer. Quanto mais reto o túnel, mais fácil fica o
trabalho. Esta parte aqui embaixo é onde toda a nyxia vai se
acumular agora. Tudo o que seu força-bruta raspar das paredes
verticais do funil vai descer. O túnel secundário vai permitir a
extração da nyxia enquanto o força-bruta expande o local de
escavação inicial.
Ele aperta e segura um botão azul. Conto os três segundos até
que uma movimentação aconteça na tela. Um ponto azul aparece
na superfície a 50 metros de distância do nosso local inicial de
entrada. Uma linha corta o chão em diagonal e se conecta ao ponto
mais baixo do nosso túnel. O militar se afasta.
– Agora só o que vocês precisam fazer é apertar o botão azul
outra vez. A minissonda vai ser ativada, e o segundo túnel vai ser
cavado. Sua tarefa hoje é começar a minerar a abertura principal,
montar a esteira de recolhimento e extrair meio quilo de nyxia. Ah, e
mais uma coisa. – Ele põe a mão na enorme arma em seu coldre. –
Como vocês perceberam, algumas vezes a escavação atrai a
atenção dos tares. Devem ter percebido também que as pancadas
deles são como marretadas. Basta acionar o sistema de defesa no
painel sempre que alguma coisa se aproximar. Boa sorte, soldados.
Ele desaparece nas brumas de novo. Antes que possamos
combinar o que quer que seja, Roathy aperta o botão azul. Três
segundos depois, o metal começa a ranger na parte traseira do
caminhão. Vamos até lá e quase somos decapitados por uma rampa
de extensão, que baixa até o piso. Um kart equipadíssimo desce
para a superfície. Uma nuvem de poeira o segue por 50 metros, e
vemos quando a broca em miniatura se desacopla de sua traseira.
– Katsu – eu digo. – Você e a Jazzy podem cuidar do túnel
secundário.
Katsu assente com a cabeça. Os dois saem correndo na direção
da sonda, e percebo que as pessoas aceitam acatar ordens minhas.
Olho para o lado e vejo que acabei sozinho com Roathy. A
expressão dele é de divertimento, como se estivesse me desafiando
a lhe dar uma ordem. Ele abre um sorrisinho e diz:
– Não se preocupa. Eu vou com eles.
Roathy se manda, deixando-me sozinho. Volto minha atenção para
o mostrador digital. É possível ver tudo. Os bolsões vermelhos
pulsando sob a superfície, a broca principal retirada, e até mesmo a
sonda em cima do ponto azul no nosso mapa. Fico observando a
movimentação por um tempo, então me viro para o local da
escavação principal.
– Como estão indo as coisas, Longwei? – pergunto.
– Não sei – ele diz. – Está emperrada.
– O que está emperrada?
– A broca. Estou fazendo o mesmo que ontem, mas a coisa não se
mexe.
Começo a caminhar em sua direção, porém escuto a voz de Katsu
no comunicador.
– Emmett! – ele grita. – Ei. Ativa o lance da defesa. As criaturas
lagartos-gorilas estão de volta. Os tares ou sei lá o quê! Tem um
monte deles vindo.
Volto para o painel de controle e encontro a alavanca com a
inscrição defesas. Me certifico de que é o comando certo e o aciono.
O metal guincha alto quando duas torretas se erguem sobre o nosso
caminhão. Tudo acontece depressa e de um jeito quase irreal, como
nos videogames. No KillCall, dá para montar uma torreta, que
simplesmente surge do nada e começa a atirar. Pelo jeito, é assim
que acontece quando a Babel projeta as coisas. As duas armas
buscam um alvo e começam a disparar. Os tiros são barulhentos,
mas não me impedem de ouvir os gritos distantes dos tares feridos.
Katsu e Jazzy comemoram no comunicador.
Volto para ajudar com a broca.
– Quer que eu dê uma olhada, Longwei?
– Quero – ele responde baixinho.
Começo a escalar uma das pernas do suporte metálico da broca.
Tomando cuidado para não perder o equilíbrio, atravesso a estrutura
até a cabine. Com uma torção e um puxão, abro a escotilha e olho
lá para dentro. O rosto de Longwei está coberto de suor. Sua
máscara está embaçada, e suas mãos seguram com força as duas
alavancas pretas. Ele olha para cima e aciona uma delas para me
mostrar.
– Não desce – ele fala.
– Você tentou usar as outras alavancas?
Ele faz que não com a cabeça.
– Esta é a alavanca para descer. As outras são para escavações
laterais. Não adianta querer usar se eu não estiver no subsolo.
– Experimenta – sugiro. – Talvez isso reative as outras alavancas
que não estão funcionando.
– Não faz sentido – ele diz.
Enrugo a testa e olho na direção dos outros. Daqui do alto,
consigo ver a sonda e o contorno vago do corpo deles na névoa.
– Jazzy – eu chamo. – Como está indo o túnel secundário?
– Está quase na metade do caminho – ela responde com seu
sotaque sulista carregado. – Está dando tudo certo, mas vamos
precisar de ajuda para montar a esteira. É uma coisa meio esquisita.
Olho de novo para Longwei. Ele está mexendo com teimosia nas
alavancas pretas. Aperto o botão no meu ombro, e o capacete se
retrai. Meu comunicador desaparece, e respiro uma lufada de ar
fresco.
– Longwei! – grito. Os capacetes abafam tudo. Embora a broca
não esteja escavando, os motores continuam rugindo, e os pistões
martelam sem parar. Me inclino lá para dentro e berro mais alto: –
Longwei, me deixa tentar. Pode deixar. Eles precisam de você para
montar a esteira.
Dá para ver o conflito interno dele. Longwei gosta de vencer tanto
quanto me odeia. Desistir significa admitir a derrota, mas continuar
sendo teimoso quer dizer continuar levando uma surra de Kaya.
Alguns segundos depois, ele assente com a cabeça e solta o cinto
de segurança. Estendo a mão para ajudá-lo a sair do assento do
força-bruta.
Quando sai da cabine, ele aperta o botão para tirar o capacete. O
vento sopra seu topete e ele seca o suor da testa com as costas da
mão enluvada.
– Eu teria conseguido – ele diz. – Não precisava de ajuda.
– Eu sei. Você teria dado um jeito. – Olho para o caminhão e
decido contar a mentira que Longwei precisa ouvir. Ele não aceita
suas próprias fraquezas, mas não vê problemas em usar a minha
como pretexto. – Eu não consigo entender o monitor. Você sim.
Precisamos de você comandando a equipe, coordenando tudo,
pode ser?
Nós dois reativamos os capacetes. O calor aumenta quando entro
na cabine da broca. O assento está quente, assim como ar, e
começo a suar intensamente por dentro do traje. Assumo meu lugar
e o mundo se transforma em um terremoto de alta vibração. Tento
acalmar minha respiração quando meus dentes começam a bater.
Há centenas de imagens digitais diante de mim. Não sei o que
significam, mas sei que preciso fazer essa coisa descer e minerar,
ou estamos ferrados. As alavancas pretas não surtem efeito, então
começo a apertar e acionar outras coisas. Quando pego um controle
prateado à minha direita, a broca responde. Tudo começa a vibrar
um pouco mais. Empurro a alavanca para a frente e o metal guincha
alto. No meu mostrador, a broca direita gira. É um bom começo.
Pego o controle da esquerda e aciono os dois ao mesmo tempo.
As duas brocas laterais giram, e as alavancas pretas com que
Longwei tanto contava se recolhem para dentro do painel de
controle. O assento se reclina e o mostrador se ajusta para que eu
possa vê-lo mesmo quase deitado. Perto dos meus pés, uma
plataforma prateada acende como se eu estivesse prestes a
começar uma partida de ElectraDance. Aperto com os dois pés e a
broca ganha vida. As janelas inferiores escurecem. No meu monitor,
vejo a ponta do instrumento se mover para dentro da fenda, e
minhas brocas laterais estão a poucos metros do primeiro contato.
Depois de um breve sibilo, começo a ser arremessado de um lado
para o outro quando as brocas se enfiam nas paredes de nyxia à
direita e à esquerda. Meu monitor mostra o minério caindo em
raspas espessas. Estou tentando manter os controles alinhados
quando o da esquerda começa a brilhar. O metal exibe um brilho
branco por um instante, e depois nada. O da direita faz a mesma
coisa. Continuo descendo mais fundo enquanto as duas brocas
laterais moem tudo o que conseguem alcançar. Apesar da vibração
insana e da ardência nas mãos, sinto que estou jogando o game
mais louco de todos os tempos.
Quando estou a 15 metros de profundidade, o lado esquerdo do
monitor é tomado pela imagem do tenente Light. Sua figura tem
pouco mais de 30 centímetros de altura, mas sua voz continua tão
grave e potente quanto antes.
– Não se esqueça de usar os botões de pulsar quando as brocas
laterais se estenderem ao máximo, soldado. Se você avançar rápido
demais, vai acabar descendo sem raspar a quantidade ideal de
minério. Boa sorte.
Meus olhos vasculham os arredores em busca de botões de
pulsar. Que diabo é isso, aliás? Os meus dois controles acendem ao
mesmo tempo. Percebo que é um sinal de que, como o militar
acabou de me alertar, as brocas estão estendidas ao máximo. Então
onde está o botão de pulsar? Tateio as alavancas com os
indicadores e encontro um botão em forma de gatilho. Rindo
sozinho, comento em voz alta:
– É um videogame mesmo!
Quando as luzes acendem de novo, aperto o gatilho e um trovão
ecoa no subsolo. A pedra explode nos mostradores, e até as janelas
de vidro são atingidas pelos escombros em queda. Apesar do calor,
sinto um frio na espinha. Isso é muito potente. Muito mesmo.
– Emmett – chama a voz de Longwei. – Tem um bolsão de gás 10
metros mais para baixo. Está à sua esquerda, e só a uns 2 ou 3
metros da superfície da rocha. Eu imobilizaria essa broca em 5
metros.
– Positivo – digo, porque é isso que as pessoas sempre falam em
jogos como KillCall ou Gadget Swing. Deixo a broca raspar mais um
pouco, depois recolho o controle da esquerda para junto do peito. O
mecanismo se retrai, e eu passo pelo bolsão de gás. Longwei dá o
sinal positivo para retomar a raspagem, e o retumbar e as vibrações
dos dois lados recomeçam. Fazia tempo que eu não me sentia tão
útil cumprindo uma tarefa.
Saímos vomitando do simulador uns 30 minutos depois. Jazzy
precisou descer até a metade do túnel secundário para desemperrar
a esteira, mas de resto correu tudo bem. Longwei comandou os
trabalhos, e até Roathy colaborou. Nossa equipe conseguiu
estabelecer um bom ritmo de trabalho porque ele assumiu diferentes
funções sempre que necessário.
Esperamos inquietamente até a equipe de Kaya terminar a sessão
e somos recompensados com o sorriso de Defoe.
– Meus parabéns por sua primeira vitória, equipe um. Estão todos
liberados para o jantar.
Kaya oferece seus cumprimentos, e estamos voltando pelo
corredor quando sinto uma presença perto do meu ombro direito,
mas longe das minhas vistas. Roathy está tentando transmitir a
mensagem que vem me passando a semana toda. Estou aqui.
Estou de olho em você. Vou me vingar.
Mas minha paciência está por um fio.
Eu me viro e o pego pelo colarinho com as duas mãos,
empurrando-o para a parede mais próxima.
Só que não é Roathy; é Jaime. Seus olhos verdes se arregalam, e
dá para ver que ele bateu a cabeça com força contra a parede. Kaya
e Hilal dão um passo atrás, encarando-me como se eu fosse uma
granada que precisassem desarmar. Solto Jaime e murmuro:
– Não fica me seguindo assim.
– Eu só estava andando – responde Jaime. – É um corredor. Fica
todo mundo perto mesmo, seu virado.
Ele me lança um olhar comparável às encaradas de Longwei e
continua andando. Fico observando ele se afastar com os demais.
Quando não há mais ninguém por perto, encosto a cabeça na
parede fria de metal e fecho os olhos. Eu me vejo no espaço,
afundando na escuridão, tornando-me a ameaça que os outros
temem. Eu sou o Roathy dos demais? Eles estão preocupados
comigo? Não demorou nem 30 segundos e a empolgação da
simulação já passou. Agora só estou assustado. Me sentindo
perdido.
A única coisa boa em virar um buraco negro é ser reconhecido
pelos outros buracos negros.
– Vamos, Emmett – Kaya chama. Ela voltou para me buscar, e me
pega pelo braço como se eu tivesse esquecido o caminho. – Quer
jantar?
– Não – respondo. Não estou com fome. Não estou sentindo nada.
– Eu também não – ela diz. – Vem comigo.
Com toda a paciência, ela me guia de volta aos nossos aposentos.
Depois me leva até o dormitório e olha para o outro lado enquanto
visto o pijama. Em seguida literalmente me põe na cama.
– Não vai embora – peço. – Não quero dormir. Estou tendo uns
sonhos.
Ela assente.
– Só um minuto.
Quando Kaya sai, percebo que estou chorando. Não é só por
causa da escuridão que sinto por dentro. Estou com saudade do
meu pai e da minha mãe. Sinto falta de ir a uma escola normal com
expectativas normais e na companhia de pessoas normais. Quero
sentir o cheiro da cidade e o barulho das fábricas a caminho do
colégio. Inclusive pagaria uma boa grana para tomar conta dos
meus priminhos agora. Qualquer coisa que fizesse eu me sentir
normal de novo.
Kaya volta com três livros nos braços. Ela senta-se na cama por
cima das cobertas e se recosta na parede.
– Vou ler para você.
Abro um sorriso quando ela me mostra as capas. Os livros estão
todos em japonês. Na capa do volume do meio tem um cara branco
com o contorno de uma machadinha transparente encravada na
cabeça. Não parece ser o tipo de história que se conta na hora de
dormir. Não são coisas divertidas como Alice.
– Por que você pegou uns livros tão assustadores? – pergunto,
meio que rindo.
Ela encolhe os ombros.
– Tinha garotos na capa. Sei lá!
Abro um sorriso. A terceira opção mostra um garoto e uma
menina. Ele está encostado em uma árvore enorme. A garota está
sentada nas raízes, lendo alguma coisa. A cena é iluminada por
uma luz dourada, e ambos olham para alguma coisa a distância.
– Esse aí. Lê esse – escolho.
Kaya põe os outros livros no chão, cruza as pernas e começa.
Como da primeira vez, ela faz a história ganhar vida. Sua voz é tão
vibrante e animada que me vejo longe do mundo sinistro da Babel.
Eu me vejo correndo pelo bosque com os personagens,
atravessando uma ponte para um mundo imaginário. Escuto a
respiração e o riso de Kaya, mais suave que a queda das folhas
narrada no livro. Ela lê até eu cair no sono, até meu medo passar.
DIA 19, 7h58
A bordo da Gênesis 11

1. AZIMA 65.900 pontos


2. LONGWEI 63.750 pontos
3. EMMETT 61.900 pontos
4. KAYA 60.450 pontos
5. HILAL 57.300 pontos
6. KATSU 54.400 pontos
7. JAIME 49.200 pontos
8. JASMINE 45.050 pontos
9. ISADORA 42.080 pontos
10. ROATHY 34.324 pontos

No café da manhã, a conversa é a respeito de Azima.


É a primeira vez que ela não está usando sua pulseira tradicional.
O espaço vazio em seu pulso parece desnudo sem ela. Katsu faz
um carnaval a respeito, fingindo não reconhecê-la, que se trata de
uma nova competidora na nave, e a apresenta com um nome
japonês que é traduzido como Flor Adorável. Azima dá risada, pelo
menos até Katsu alegar que a antiga competidora lhe doou todos os
seus pontos.
– Eu sou o rei de novo – ele proclama. – E vocês são os meus
súditos leais.
Azima o ameaça com o garfo:
– Esses pontos são meus. Pode tirar o olho.
– O que era? – pergunto, apontando para o meu pulso. – A
pulseira que você usava…
– Um lembrete. Meu povo era a última população nômade da
África. Paramos de migrar, mas uso as miçangas como um lembrete
de que meu povo nasceu para estar em movimento. As miçangas
contam a minha história. E também são usadas pelas garotas para
atrair um homem de valor.
Jazzy franze o nariz.
– Então você estava tentando atrair um homem de valor?
– Estava – Azima responde entre uma mordida e outra. – No
começo.
– O que você quer dizer com isso? – questiono.
Azima me observa um pouco.
– Fiz um acordo com o sr. Defoe.
– Todos nós fizemos – Katsu rebate. – E envolvia uma boa grana,
pelo que me lembro.
– Não – explica Azima. – Eu acrescentei uma coisa. Queria poder
escolher um marido caso algum de vocês fosse digno de mim.
Três de nós engasgamos com a comida. O silêncio constrangido
domina a mesa. Escolher um marido? Os olhos de Azima estão
estreitados por um amplo sorriso escondido sob a máscara de nyxia.
Sinto vontade de evitar o contato visual, só por precaução, já que
não sei quais os fatores de escolha dela.
– Não se preocupem. Esse é o nosso jeito. A mulher precisa ser
forte. Tem que saber se defender. Tem que chegar à idade adulta
com a cabeça feita. Se isso acontecer, só um homem de valor pode
pedir sua mão em casamento para o pai dela. – Todos nós ficamos
encarando Azima. Mas a conversa é séria. Ela quer mesmo se
casar. Provavelmente com um de nós. – Eu me esforcei muito para
garantir um alto grau de exigência para um marido. Ser convidada
para esta missão elevou ainda mais esse parâmetro. Se eu
estivesse no meu vilarejo, meus pais iriam procurar um jovem com
capacidades equivalentes, alguém que estivesse no meu nível. É
natural que eu considere como candidato quem também foi
convidado para a missão. Vocês conseguiram uma conquista do
tamanho da minha.
– Bom, e qual de nós é o escolhido? – Katsu pergunta, estufando
o peito. – Você viu minha habilidade com o machado. Não estou
querendo dizer que a escolha óbvia sou eu, mas…
– Não. Nenhum de vocês, porque eu sou a melhor guerreira. – Ela
aponta com o garfo para o placar. Seu nome brilha no topo. – Vocês
não são capazes de me proteger. Na verdade, eu é que tenho que
proteger vocês. A única opção viável seria eu me casar comigo
mesma.
Todos caímos na risada quando Katsu se oferece para dar início à
cerimônia. Mas Defoe chega e acaba com a diversão. Somos
levados para a fileira de objetos de nyxia de novo. Os únicos que
não saem da sala aos gritos são Jazzy e Roathy. Depois de se
sacudir inteira por dez segundos, Jazzy recupera a compostura,
respira fundo e volta para a fila sem dizer palavra. Acho que isso
não chega a ser surpresa. Ela sempre se revelou a competidora
mais tranquila sob pressão.
A resistência de Roathy à nyxia parece diferente. A escuridão o
domina, mas ele a ignora, como se já tivesse passado por coisa
muito pior que uma força misteriosa revirando suas entranhas.
Quando enfim chega a minha vez, acato o conselho de
Vandemeer, porque não quero que aquilo que aconteceu volte a se
repetir. Assim, converto os objetos só até começar a sentir a nyxia
reagir e se tornar difícil de controlar. Dou um passo atrás e faço um
aceno para Defoe.
– Para mim chega – anuncio.
Ele fecha a cara.
– Azar o seu.
Minha pontuação diminui no placar, e Defoe chama Kaya. Ela se
recusa outra vez, e ficamos esperando que Azima e Longwei
concluam o desafio. Os dois são competitivos demais para desistir
antes de ter problemas. Depois que Azima se submete à sua dose
de tortura, Longwei resiste até o limite antes de ir ao chão, com mais
força e por mais tempo que da outra vez. Seu corpo inteiro
convulsiona. Ele respira fundo ao voltar a si, mas não grita. Em vez
disso, fica de pé e aponta para os blocos com uma expressão
furiosa. Pela primeira vez sua raiva não é dirigida a nenhum de nós,
e sim a Defoe.
– Você não deveria pedir para a gente fazer o impossível.
– Impossível? – Defoe retruca. Seus questionamentos são sempre
ásperos e venenosos.
– Os objetos são grandes demais – Longwei explica. – Isso foi
feito para a gente fracassar.
– Isso foi feito para fazer vocês superarem suas limitações atuais.
Defoe se posiciona ao lado do último objeto, um cubo que chega
quase até sua cintura. Ele põe a mão sobre a superfície escura e
fecha os olhos. A substância assume outra forma.
– Impossível? – ele repete.
Em seguida põe a mão sobre uma pirâmide de nyxia e a
transforma em uma esfera, um cubo, outra pirâmide e por fim de
novo em um cubo. A cada vez, a transformação acontece mais e
mais rápido. Vejo o suor escorrer de sua testa, mas fora isso parece
não haver esforço.
– Que incrível – Azima murmura.
– Mas não impossível – Defoe responde. – Esqueçam sua noção
de impossível.
É uma demonstração e tanto, eu penso. E um erro e tanto. Antes
nós não sabíamos do que ele e os funcionários da Babel eram
capazes. Agora sabemos. Sabemos que ele é poderoso. Mais forte
que nós. Combatê-lo usando a nyxia seria impossível. Arquivo esse
pensamento na letra P de perigo.
Seguimos para a arena. Meus olhos se voltam para o placar, e
agradeço o conselho de Vandemeer. Não fui torturado pela nyxia e
isso não me causou muito prejuízo na classificação. Quando
entramos, percebo que estou ansioso por mais uma luta com Jaime.
Fiz uma promessa ontem para nosso amigo almofadinha e pretendo
cumpri-la.
As outras lutas servem para fazer meu pulso acelerar. Todos os
resultados se repetem, mas desta vez é Roathy quem larga a
espada e se sacrifica por Isadora. Quando Jaime e eu assumimos
nosso lugar no centro da arena, sinto-me um homem perigosíssimo.
Ele está parado à minha frente, com seus cabelos bem penteados e
seus olhos verde-claros. Parece furioso. Está com os dentes
cerrados e apertando as espadas com força. Tentando ficar
empolgado para a luta.
As pessoas acham que funciona. Faço isso sempre que jogo
basquete com PJ, e levo uma surra todas as vezes. Normalmente, a
única coisa que conta é a técnica.
Defoe dá o sinal. Jaime não tenta me estudar desta vez. Ataca
com a espada da mão direita e em seguida lança outro golpe com a
esquerda. Ele continua avançando às cegas e atacando sem parar,
tentando me pegar de surpresa. É uma tática desesperada. Defendo
as primeiras investidas, ajeito a posição dos pés e uso sua posição
de desequilíbrio contra ele. Uma rápida esquiva me proporciona um
bom soco em suas costelas. Seu avatar sangra. Eu poderia me
afastar e deixar sua barra de energia se esvair. Mas não é o que
quero. Minha intenção é castigá-lo, finalizá-lo, destruí-lo.
Jaime vem para cima de mim de novo, com um golpe de dorso da
mão. Eu o bloqueio, dou dois socos rápidos em sua barriga e
deslizo para o lado. Meu jogo de pés é perfeito, então dou um passo
para o gancho final. Mas ele não recua. Era para ele recuar. Em vez
disso, Jaime se inclina na direção do meu soco e baixa uma das
espadas.
Se fosse na vida real, ele não teria mais o maxilar.
Se fosse na vida real, eu não teria mais um dos meus órgãos
internos.
A dor se espalha pela minha barriga, e nossas pernas
cambaleiam. A dor simulada é bem parecida com a dor real. Jaime e
eu estamos suados e enroscados um no outro. Mais uma onda de
dor me atinge, e os olhos dele se arregalam de terror. Entro em
pânico, imaginando que o machuquei da mesma forma que
aconteceu com Roathy. Mas seu olhar está voltado para a minha
barriga. A dor triplica. Um círculo vermelho vivo está se espalhando
pelo meu corpo. Sua lâmina atravessou meu traje e entrou na minha
barriga. Não é uma simulação. Não é um ferimento falso. Não está
acontecendo com meu avatar e se transferindo para o meu cérebro.
É uma espada de verdade na minha barriga de verdade.
Eu caio para trás. Quando tento falar, solto uma tossida
sanguinolenta. Uma multidão de rostos mascarados, palavras em
línguas desconhecidas e então uma escuridão silenciosa e sem
nyxia.
DIA 21, 1h37
A bordo da Gênesis 11

Vandemeer está sentado em uma poltrona reclinável a um canto.


Mas o holandês nunca relaxa. Está sempre sentado com as pernas
e os braços cruzados ou com uma caneta girando entre os dedos.
Finjo ler um livro enquanto ele monitora meus sinais vitais na tela
portátil. Está de plantão ao meu lado há 24 horas. Quase entendo
isso como uma preocupação legítima. Mas então me lembro de que
ele é da Babel. Esse é o trabalho dele. Seu ganha-pão. Nada mais.
– Quando posso sair daqui? – pergunto de novo.
– Sr. Atwater, foi uma cirurgia de grandes proporções. Com direito
a transfusão de sangue. O ferimento é grave.
– Quando? – repito.
Ele suspira, passa o dedo na tela e encolhe os ombros quadrados.
– Mais uma semana – ele responde.
– Eu posso fazer algumas tarefas. As manipulações de nyxia, pelo
menos.
– Não – ele diz. – Não pode.
– Posso, sim.
Ele solta outro suspiro, fica de pé e pega uma laranja no cesto de
comida em um canto. Ele atravessa a sala e me entrega a fruta.
– Descasque – ele manda.
Vandemeer põe a laranja na minha mão aberta. Eu me concentro e
começo a descascar. Consigo sentir o suor escorrer da testa depois
de tirar só as partes mais grossas. Na metade da tarefa, minhas
mãos estão tremendo. Ele pega a fruta da minha mão e descasca o
resto.
– Está cansado? – ele pergunta. – Com dor?
– Estou bem. – Eu me recosto na cama com a respiração
acelerada, sentindo-me vazio. – Consigo fazer isso.
– Talvez se você estivesse tomando os analgésicos – Vandemeer
insiste.
– Não – respondo. – Nada de drogas.
– Pelo menos me explica por que não quer tomar.
– Não faz diferença. Está fora de cogitação.
Vandemeer solta um suspiro. Está tentando escavar a verdade o
dia todo, mas meu passado pertence a mim e a mais ninguém. A
Babel tem muito controle sobre mim no momento, e não quero que
aumente. Eles não precisam saber que convivi com viciados em
drogas na escola e no meu bairro. Vi muita gente percorrer um
caminho cruel, e prometi que nunca seguiria esses passos. Os
analgésicos podem parecer inofensivos, mas ainda os vejo como a
porta de entrada para um mundo que não quero frequentar. Arquivo
esse pensamento na letra N de não, obrigado.
Vandemeer volta sua atenção para as planilhas de informações
médicas.
– Você que sabe. Mas vai precisar esperar seu corpo se curar.
Não dá para competir assim.
– Eu aguento.
– Não aguenta, não.
– Então me dá uma chance de mostrar.
O verniz de paciência de Vandemeer começa a mostrar pequenas
falhas. Seus olhos revelam uma leve faísca de irritação.
– Levante os braços.
Cerrando os dentes, estendo as duas mãos para a frente.
– Lá para cima – ele desafia.
Consigo erguer os braços esticados até a altura dos ombros antes
de sentir uma dor lancinante que então dá lugar a algo pior, parecido
com fogo de verdade. Continuo com as mãos levantadas em sinal
de desafio até Vandemeer me forçar a baixá-las.
– Teria sido bem mais impressionante caso seus batimentos não
tivessem ido parar lá no teto. – Ele pega a toalha e limpa com
cuidado o suor da minha testa.
– Eu dou conta – repito. – Só me deixa tentar.
– Se existe alguém capaz de fazer isso, é você – diz Vandemeer. –
Mas não vai a lugar algum. Não sem receber alta. Descanse. Se
cure. Vamos começar a terapia em alguns dias, depois você vai
poder se juntar aos outros. – Quando começo a reclamar, ele põe a
mão no meu ombro. – Emmett, você não vai perder. Já te vi
competindo. É durão. Seu desejo de vencer é forte demais para
isso.
Eu o encaro.
– Isso não importa.
– Claro que importa – ele fala baixinho. – Sei quanto significa para
você.
– Se soubesse, me deixaria voltar ao jogo.
Ele faz que não com a cabeça.
– Você já ganhou muitos pontos. Se não ficar em repouso, seu
corpo não vai cicatrizar. Um ferimento qualquer traria você de volta
para a enfermaria.
– Que seja – resmungo. – Me deixa dormir, então.
Irritado, Vandemeer faz um gesto bem deliberado para desligar o
relógio.
– Você vai ter que confiar em mim – ele murmura. – Já parou para
pensar que eu posso me beneficiar com o seu sucesso, Emmett?
Olho feio para ele.
– Como é, você quer o meu dinheiro?
Vandemeer dá risada.
– Não, não é isso. Você deve ter reparado que Babel acredita na
competição saudável.
– Saudável? Eu estou preso aqui, sem poder levantar da cama.
– Você entendeu o que eu quis dizer – ele retruca. – A competição
entre vocês não é a única.
Ele não pode estar falando sério.
– Quê? O melhor médico ganha um bônus? Como isso funciona?
– Nós tivemos permissão para escolher – ele diz, vermelho de
vergonha.
– Escolher?
– Eu escolhi você e Kaya. Nós receberemos um bônus
considerável se formos os responsáveis pelos competidores mais
bem classificados. Quanto melhor nossos pacientes se saírem, mais
dinheiro ganhamos.
Balanço a cabeça positivamente. Claro. A crença primordial da
Babel é na competição. Dar um incentivo à pessoa e lembrá-la de
que outros estão trabalhando pela mesma recompensa. Assim todo
mundo se esforça em dobro, e a Babel só precisa conceder um
prêmio no final. É uma ideia inteligente, mas significa que os
figurões da empresa não veem somente nós como peças de xadrez.
Eles veem todo mundo como peças de xadrez. Vandemeer é um
médico de carne e osso. Ele largou tudo o que estava fazendo para
ser manipulado como um fantoche na Gênesis 11. Tudo por um
bônus polpudo. No fundo, ele não é muito diferente de mim.
Vandemeer assente e vai para a porta. Eu o chamo de volta pouco
antes de ele sair.
– Você sabe como aconteceu? Com a espada?
Vandemeer assume uma expressão séria. Eu ter me machucado o
incomoda. E agora sei que não é uma preocupação falsa. Seu
sucesso depende em parte do meu. Talvez ele se importe de
verdade.
– Alguém usou um pedaço de nyxia para recriar a espada – ele
responde. – Ela foi trocada pela versão inofensiva que mantemos no
arsenal. Não era uma cópia muito bem feita, mas ninguém reparou.
– Foi o Jaime – concluo.
O rosto de Vandemeer não revela nada.
– Ainda estão investigando.
Ele está de volta à postura diplomática e cautelosa, às respostas
calculadas de um funcionário da Babel. Pode querer que eu confie
nele, mas me parece camaleônico demais para isso. Arquivo essa
conversa na letra E de esperança vazia. A porta automática se
fecha depois que ele sai.
Cerro os olhos. Na minha mente, ainda consigo ver Jaime. O
passo à frente no meio do meu soco, o golpe com a espada.
Também vejo o olhar de surpresa em seu rosto. Uma parte mais
teimosa de mim considera isso mera encenação. A parte mais
realista sabe que não faço a menor ideia. Não é difícil vincular a
espada a Roathy. Ele a usou em uma luta antes. Pode ter
manipulado a arma a qualquer momento, ciente de que não ia usá-
la com Isadora. Só o que precisou fazer foi trocar as lâminas e
deixar a outra para Jaime.
Detesto ter tanta raiva e ninguém para direcioná-la.
Seja como for, estou preso aqui. E eles estão lá.
Não tem placar na enfermaria. Só consigo imaginar as toneladas
de pontos que estão faturando na minha ausência. Não tenho ideia
de quanto tempo vou ficar aqui, de quanto vou ficar para trás. Aperto
um botão para diminuir a luminosidade forte sobre a minha cabeça.
Na luz mais fraca, abro a versão em inglês do livro que Kaya leu
para mim. Ao que parece, foi o que pedi a Vandemeer quando me
trouxeram para ser costurado. Nunca consigo ler sozinho. Tenho
primos demais para cuidar. Noites demais vigiando o sono da minha
mãe no sofá. Sentando ao seu lado e torcendo para ela continuar
respirando.
Nunca pensei em escapar para dentro de um livro.
Por isso, enquanto leio, fico surpreso com a velocidade com que
as palavras me arrebatam do leito do hospital e me transportam
para o bosque. Sou eu que estou me balançando nos cipós em uma
terra imaginária. Mas não gosto de quando enfrento o valentão da
classe nos corredores da escola. Não gosto quando meus amigos
me abandonam e fico sozinho. As palavras do livro ecoam em mim.
Palavras sobre ser enganado, sobre ser convidado para um novo
mundo só para mais tarde ser deixado na mão. Eu me pergunto por
que Kaya não veio me visitar. Nem Hilal. Deixo o livro de lado e
apago as luzes. Não gosto de como as palavras do livro fazem eu
me sentir. Fecho os olhos para aplacar a dor no corpo e no coração.
O sono acaba vindo, para meu alívio.
DIA 25, 19h38
A bordo da Gênesis 11

Mesmo o mais leve movimento deixa a lateral do meu corpo em


chamas.
– Cuidado – recomenda Vandemeer.
Ele me ensinou com toda a paciência os exercícios de ioga.
Torções de tronco, agachamentos e respirações profundas. Sem os
analgésicos, é um processo lento. Bem mais lento do que eu
gostaria. Seis dias já se passaram. Vandemeer se recusa a me falar
o placar, e ninguém vem me visitar. Nem mesmo Kaya. Sou o
astronauta solitário do livro.
– Por que não usaram a nyxia para me curar? – pergunto com um
grunhido. Vandemeer me fez deitar de costas no chão e levantou
minhas pernas a quase meio metro do chão. É uma dor infernal.
– Não funciona – ele explica. – Se a nyxia causa o ferimento, não
podemos usá-la na cicatrização.
– Parece uma limitação séria.
Eu me sento. Ele faz um gesto para eu estender as mãos devagar
enquanto baixo o queixo.
– É assim que a substância funciona – ele diz. – A nyxia foi usada
para cortar você. Se tentássemos usá-la para curar a ferida, a
substância se recusaria. Ela consegue reconhecer suas próprias
ações e por isso não as desfaz. Faz sentido?
– É assustador. Você entende quanto é assustador, né?
Vandemeer me faz respirar fundo e mover o pescoço em
movimentos circulares.
– É uma substância interativa – ele prossegue. – O material é bem
mais inteligente do que a Babel gosta de admitir. Não sabemos
como funciona, mas estamos aprendendo a cada dia.
– Então a nyxia é toda conectada? – questiono.
– Como assim?
– Você disse que a substância sabe que foi usada para me cortar.
Então isso significa que ela sabe o que o resto da nyxia fez? Como
se estivesse tudo conectado de alguma maneira?
– Ou a nova nyxia reconhece uma alteração nas suas células. Não
sabemos ao certo.
Eu encolho os ombros.
– Parece idiotice depositar tanta fé em uma coisa que vocês não
entendem.
– Eletricidade, gasolina, vacinas. Não dá para progredir sem correr
riscos.
– Pois é – digo. – Mas vocês têm certeza de que nós todos não
vamos pegar câncer nem nada do tipo?
– Tudo causa câncer – Vandemeer responde em um tom
monótono. – Menos a nyxia. Nós testamos.
– Em quê?
Ele junta as pontas dos dedos das mãos.
– Isso é confidencial.
Dou risada e me sinto como se uma dupla de gigantes tivesse me
chutado nas costelas. Desabo no chão de dor, e Vandemeer me
joga uma toalha.
– Bom trabalho hoje – elogia ele. – Está chegando lá.
– Estou pronto.
Ele me ignora.
– Vamos fazer mais alguns diagnósticos amanhã. Seus
movimentos ainda estão limitados. Lutar na arena pode ser
complicado, mas para a maior parte das tarefas você está bem. O
que acha?
– Ah, sim. Acho bom.
– Enquanto isso – diz Vandemeer, batendo com o dedo na tela
portátil. – Tenho uma surpresa para você.
Uma tela sai de dentro de um compartimento na parede sobre o
meu leito hospitalar. Lanço um olhar confuso para Vandemeer.
– Você perdeu a primeira ligação programada para casa. Tomei a
liberdade de providenciar uma daqui. O sinal vai chegar em dois
minutos.
– Está falando sério?
Ele sorri.
– Estou sim.
Depois de dizer isso, Vandemeer sai do quarto. Esqueci que iria
poder vê-los. Não sabia que estava com tanta saudade. Sinto falta
da minha mãe me entregando a mochila todas as manhãs e me
puxando pelo pescoço para me dar um beijo. Sinto falta do meu pai
reclinado em sua poltrona favorita, lendo os placares dos jogos do
dia anterior. Nós podemos ser pobres, mas pelo menos eu sabia o
que iria encarar todos os dias. Os próximos três anos vão ser um
experimento inesperado e imprevisível. Fico olhando para a minha
imagem refletida na tela preta. Não estou pronto para isso, para
nada disso.
Os dois minutos de espera parecem trinta.
Uma luz pisca na tela, que então acende por inteiro. Não percebi
antes que estava segurando a respiração. Tento encontrar uma
posição confortável apoiado nos travesseiros macios demais
quando os pixels se arranjam e meu pai preenche a imagem. É
inevitável para mim procurar minha mãe atrás dele, mas ela não
está lá.
Um sorriso se abre em seu rosto.
– Aí está ele. Meu garoto.
– E aí, pai? – respondo. – Estou com saudade. De você e da
mamãe.
Meu rosto dói quando forço um sorriso para não chorar. Ele pede
desculpa pela minha mãe. Não precisa dizer por que ela não está lá;
não é necessário. Não é fácil para ela viajar, e acho que o centro de
comunicações mais próximo da Babel fica a alguns quilômetros da
casa deles. Meu pai se apressa em dizer que ela me ama, o que a
minha mãe me falaria se não estivesse tão doente e debilitada. É
devastador pensar que em apenas três semanas já estou a milhões
de quilômetros dos dois. Odeio não sentir o cheiro das fábricas ou
do perfume forte do sabonete que ele usa. Com um sorriso, ele
passa o polegar e o indicador nos cantos do bigode.
– O que é isso? – ele questiona. – Está deixando crescer?
Passo a mão sobre o meu lábio, idêntico ao dele. O projeto de
bigode está mais espesso agora.
– Acha melhor raspar? – pergunto.
– Você que sabe – ele responde. – Só não esquece de usar um
creme de barbear. Dá uma boa olhada em como está crescendo e
raspa na direção dos pelos. Não contra. Entendeu?
Faço que sim com a cabeça.
– Obrigado, pai.
Ele abre um sorrisão.
– Agora me conta tudo. Como estão as coisas?
– Está tudo bem – digo. – Não é fácil, mas ninguém aqui sabia
nada no início, todo mundo teve que começar do zero.
– Então você está se saindo bem?
– Estava – conto. – Tive uns altos e baixos, mas estou entrando no
ritmo.
Ele faz um aceno encorajador. Não consigo contar que quase
morri. Isso o faria perder ainda mais o sono.
– Bom, foram só as primeiras semanas. Uma temporada não se
decide nos primeiros jogos. Lembra da última campanha vitoriosa
dos Lions?
– Eles começaram com quatro derrotas seguidas – respondo.
– As pessoas exageram nas reações. Parecia que o mundo ia
acabar em Detroit. Eles mantiveram o plano de jogo, saíram do
buraco e terminaram vencedores.
Concordo com um gesto de cabeça. Ele tem razão. Apesar de
estar alguns pontos atrás, ainda tem muita coisa para acontecer. Os
outros também vão ficar doentes, vão se machucar. Só preciso me
manter firme. Ser melhor que duas pessoas. Com isso, posso voltar
a Detroit como um rei. Pensar em Detroit faz eu me lembrar de PJ e
dos caras, o que só aumenta o aperto no meu peito.
– Quem eles escolheram no draft?
– Um defensor de Wisconsin – ele responde. – Uma máquina de
jogar.
– Como está o time?
Ele sorri.
– Acho que este ano está entre nós e Londres. Vai ser uma
temporada e tanto.
Ouvir sobre Detroit alivia meu coração. Peço mais notícias.
– PJ sempre passa por aqui – ele diz. – Pedindo notícias. É um
bom garoto quando não está tentando fingir que é indestrutível. Para
mim sempre vai ser o moleque que pulou da nossa janela.
Abro um sorriso. Como na maior parte das nossas histórias de
infância, o lance da janela foi culpa minha. Eu mencionei que os
superpoderes dos heróis se revelavam em situações de perigo.
Como poderíamos saber se PJ tinha algum superpoder, se não
fizéssemos uns testes? Por minha sugestão, ele fez tiros de corrida
cronometrados, levantou os pesos do meu pai, saiu correndo e
pulou por uma janela. Seus pais o mantiveram a distância de mim o
máximo possível depois disso. Mas só conseguiram por uma
semana. Éramos próximos demais para sermos separados. É uma
lembrança que parece vir de outra vida.
– Sinto falta dele. – Me pego pensando que nenhum dos outros
competidores veio me visitar. Considero Kaya, Hilal e Katsu meus
amigos. Mas eles não vieram nem uma vez. – Estou com saudade
de todos vocês.
– Nós também. Mas no momento você tem uma missão – ele me
lembra. – Trate de se esforçar e manter a cabeça erguida, que
vamos estar aqui quando você voltar. Certo?
Faço que sim com a cabeça, mas não consigo encará-lo. Ele
acredita mais em mim do que eu seria capaz de acreditar em mim
mesmo.
– Pai – eu digo –, posso fazer uma pergunta?
– Claro.
Resolvo perguntar o que está me atormentando:
– Eu sou uma pessoa ruim?
A expressão alegre some de seu rosto. Ele me observa como se
estivesse em busca de alguma cicatriz.
– Alguém te disse isso? Foi o pessoal da Babel?
Balanço negativamente a cabeça.
– Não, é uma sensação dentro de mim. Fico com muita raiva. Dos
outros competidores, de mim mesmo.
– Emmett. – Ele fala meu nome como se fosse um lembrete de
algo esquecido. – Você tem o melhor de mim e dela. Desde
pequeno, sempre foi assim.
– Não é como eu me sinto – rebato.
– Você está no meio do espaço em uma batalha contra outras
nove pessoas. Nem sempre vai mostrar seu melhor lado. Só não se
esqueça de quem é. Se você é uma pessoa ruim? Claro que não.
Mas isso significa que vai fazer sempre a coisa certa? Claro que
não. Ninguém é perfeito.
– Eu só quero ganhar. Mais do que tudo.
– Ganhando ou perdendo… – ele encolhe os ombros, como se
desse no mesmo – … eu tenho orgulho de você. Todos nós temos.
Ele teria orgulho se soubesse o que fiz com Hilal? Ou o tanto que
impliquei com Jaime só porque ele é diferente? Sinto a vergonha
congestionar os becos estreitos do meu coração.
– Ei, por falar nisso – ele muda de assunto. – Sua mãe começou o
tratamento. Os médicos que a Babel sugeriu são incríveis. Ela…
Mas a transmissão cai antes que ele possa me transmitir alguma
esperança. Olho para meu reflexo na tela apagada. Um astronauta
solitário em sua cabine. Eu me deito, pego meu dispositivo de
música no criado-mudo e passo por algumas faixas.
A que escolho tem batidas pesadas que se misturam no início até
começarem a se chocar como titãs no refrão. Todo meu caos se
esvai na música. Ouço a canção três vezes, cada vez mais alto, até
minha mente inteira ser dominada pela música, pelo pulso, pela
batida.
DIA 28, 5h30
A bordo da Gênesis 11

Na manhã em que vou ser liberado para voltar à ação, acordo com
um vulto na porta. Com movimentos suaves como seda, Marcus
Defoe entra no quarto. Não tinha visto Defoe durante toda a minha
recuperação. Olho ao redor à procura de Vandemeer, mas ele não
está por perto. Defoe para ao pé da cama.
– Já recuperou a sua saúde? – ele pergunta.
Seu tom faz parecer que estamos em um ponto de ônibus e que
ele está falando sobre o tempo.
Faço um gesto positivo com a cabeça.
– Estou pronto.
– Ótimo. Você está ficando para trás.
Tudo dentro de mim grita para que eu pergunte o tamanho do
prejuízo. Ou reclame que não é justo, que fui vítima de uma trapaça.
Mas ele não está nem aí para isso. Para ele é tudo um jogo.
Permaneço em silêncio. Tento parecer despreocupado. Quero que
ele acredite na minha capacidade de recuperar cada ponto. No
fundo, desejo sua aprovação.
– Estou aqui para uma visita pessoal – avisa Defoe. Ele passa o
dedo na tela portátil, e uma porta se abre à minha direita. Passei a
semana inteira neste quarto sem ao menos reparar na existência
dela. Um guarda da Babel empurra uma figura amarrada e
encapuzada para dentro. Meu coração dispara no peito. O que é
isso?
As pernas do sujeito cambaleiam, e ele cai de joelhos no chão da
enfermaria. Defoe tira o capuz. Os cabelos grisalhos estão suados.
O rosto gordo está com a barba por fazer. Vejo o sangue pingar de
seu nariz, manchando o colarinho branco. É um dos funcionários
designados para assessorar os competidores. Nunca me preocupei
em marcar a cara deles. Com exceção de Vandemeer, para mim são
todos iguais.
– Emmett – diz Defoe. – Esse é o dr. Karpinski. Foi ele que tentou
te matar.
Fico todo gelado por dentro. Uma noite sem luar, uma caverna
obscura.
Karpinski choraminga. Esse som mexe com uma parte ainda mais
fria e obscura dentro de mim. É um homem robusto de 40 e poucos
anos. Por que iria querer me matar? Nada aqui me parece certo. Ele
aparenta ser uma alma torturada, mas não estou nem aí. Quero que
ele seja punido pelo que fez.
Defoe está de olho em mim.
– Ele apagou as provas em vídeo, mas todos os rastros apontaram
na sua direção. É ele quem cuida de Roathy e Isadora. Ele queria
ajudá-los interferindo na competição.
Minha mão instintivamente se coloca sobre o lugar onde a lâmina
atravessou minhas costelas. Karpinski não pede perdão nem
misericórdia. Só respira fundo e me encara com olhos vazios de
corvo. Defoe joga alguma coisa que para no pé da minha cama.
Uma espada. Os olhos sem vida de Karpinski se voltam para lá.
– É assim que as coisas vão funcionar, Emmett – Defoe explica. –
Na China, o dr. Karpinski seria julgado e executado. Na maior parte
dos Estados Unidos, seria condenado a prisão perpétua sem direito
a condicional. Se fosse um adamita, seria mandado para as Tarefas
Eternas do Criador.
Minha mente não para de girar. O que Defoe está querendo? Tento
não olhar para a espada aos meus pés. Tento não pensar em qual
seria a sensação de tê-la nas minhas mãos vazias.
– E, apesar de existirem vários tratados internacionais sobre o uso
do espaço, estamos meio fora de jurisdição aqui. Este é o nosso
território, e as nossas leis são diferentes.
– Como assim? – pergunto com frieza.
– Nós recorremos à Lei Primeva nesse caso. Sabe o que significa?
– O primeiro. O que veio primeiro.
– Exatamente. Nesse caso, o primeiro a ser afetado. O principal
atingido. O dr. Karpinski planejou e executou um atentado contra
sua vida. Você é o primeiro. Portanto, o julgamento cabe a você.
– Não estou entendendo.
Defoe aponta com o queixo para a espada.
– Você acha que o dr. Karpinski merece morrer?
Cerro os punhos.
– Sim.
– Então pegue a espada.
Eu me agacho para apanhar a arma. O cabo é de nyxia, mas a
lâmina não. A luz se reflete na superfície prateada quando empunho
a espada. Karpinski merece morrer, mas eu não sei se mereço
matar. A espada é muito leve; seria bem fácil. Cravo os olhos no
médico.
– Por que fez isso?
Ele olha para o chão.
– Eles me obrigaram. Me ameaçaram. Não sei.
– O dr. Karpinski está se esquecendo de que é um adulto – diz
Defoe. – Mesmo que seus recrutas tenham pedido, cada um faz
suas próprias escolhas. Ele é o responsável.
Olho de novo para Defoe.
– O que acontece se eu não fizer isso? Ele vai a julgamento?
Defoe balança negativamente a cabeça.
– Lei Primeva. Se a parte mais prejudicada perdoar, nós também
perdoamos.
– E então? Ele vai ficar trancafiado?
– Claro que não – Defoe responde, como se fosse óbvio. – Ele
volta ao trabalho.
Aperto com mais força o cabo da espada.
– Isso não é justo.
– Então faça ser justo – ele retruca. – Não dá para reclamar de
injustiça se o juiz é você.
– Ou seja: ou ele morre pelas minhas mãos ou sai livre? É burrice.
– Se quiser dar a sentença, você vai ter que executar.
Meus ombros sentem o peso do desafio de Defoe. Ele está
pedindo muito. O dr. Karpinski fica me encarando, parecendo quase
um fantasma. Trata-se de mais um teste. A Babel quer saber que
tipo de juiz eu sou. O crime de Karpinski é um fato sinistro que vai
continuar me machucando por dentro enquanto ele estiver vivo. Um
potencial assassino vai estar solto por esses corredores. E pode
atacar de novo. Da próxima vez, pode ser bem-sucedido.
– Esse é o único jeito? – Ponho a lâmina contra seu pescoço.
Karpinski nem ao menos reage ao seu toque gelado. Uma parte
dele já está morta. Defoe faz que sim com a cabeça.
– O único jeito – ele repete.
Respondo com um aceno. A decisão é fácil. Você tem o melhor de
mim e o melhor dela. Isso só pode ser verdade, porque foi meu pai
que falou. Largo a espada. A arma tilinta no chão ao lado de
Karpinski como uma promessa quebrada. Me sinto como se
estivesse devolvendo a arma para Karpinski, virando as costas para
ele e mostrando onde cravá-la em mim. Destruir ou ser destruído.
Mas eu não vou matar por eles. A Babel quer um carrasco. Quer
que eu seja a mão que vai arrancar a uva podre dos seus vinhedos
impecáveis. Eles podem ir para o inferno. Não é isso que meu pai
quer de mim. Tenho a sensação de que ele me aconselharia a não
me rebaixar a esse nível, não importa o que aconteça.
Defoe dá um passo à frente.
– Essa é a sua decisão?
– Sim.
Karpinski evita meu olhar. Seus ombros desabam, junto com o
corpo inteiro. Defoe apanha a espada e admira o fio da lâmina.
– Dr. Karpinski, você obteve sua misericórdia. – Defoe baixa a
espada em um arco casual. A princípio imagino que o golpe tenha
errado o alvo, mas Karpinski grita e o sangue espirra de seu ombro
no piso ladrilhado. Ele não está com as mãos livres para tentar
estancar o sangue. Sua orelha foi arrancada, assim, do nada. –
Você não vai morrer hoje, mas está marcado. Se aprontar de novo,
vai ser lançado no espaço junto com os contêineres de lixo.
Entendeu bem?
Em meio aos resmungos, ele faz um gesto silencioso de
concordância. Defoe limpa a lâmina e volta os olhos para mim.
– Você recebeu alta, Emmett. Pode voltar à competição hoje. Se
nos der licença, eu gostaria de ter mais umas palavrinhas com o dr.
Karpinski.
Suas palavras fazem a porta no fundo do quarto se abrir. No meu
caminho até lá, escuto o grito repentino do dr. Karpinski. Quando
estou quase saindo, percebo que ele está implorando para eu não ir
embora. Eu o deixo naquele lugar terrível.
Ao voltar aos meus aposentos, preciso me esforçar muito para
conseguir acalmar minha respiração. Tenho raiva de Karpinski por
tentar me matar. E de Defoe por tentar me rebaixar a algo que não
sou. Isso é uma injustiça, um ato sinistro, que não tenho como
arquivar. As gavetas infinitas da minha mente parecem pequenas
demais para tanto, apesar de nunca ter dado errado, desde que a
minha avó me ensinou o método.
Eu tinha 9 anos. Estávamos brincando juntos, coisa típica de
meninos. Seis de nós corríamos pelo chão de terra, fingindo que era
grama. Jogávamos com uma bola de futebol americano murcha,
fingindo que estava cheia. Eu era bem rápido nessa época, um
pouco mais rápido e mais forte que os outros. Quando a gente é
criança, nunca se cansa. Continua correndo e rindo da hora que
acorda até a hora de dormir. Então eu corria. Fazia rotas e me
posicionava para receber a bola, sempre pulando um pouco mais
rápido, sempre me safando das tentativas desajeitadas de
marcação. Vários touchdowns depois, eles se irritaram. Começou
com pequenas reclamações. Não é justo, falou um. Você é rápido
demais, acrescentou outro. Meus colegas de equipe me deixaram
na mão. Cinco contra um. Não eram os Manos de Elite, eram só
garotos que moravam perto da minha casa. (Antes de descobrirmos
quem somos de verdade, as amizades acabam se formando por
proximidade geográfica, não por afinidade.)
Nem me lembro de quem me empurrou primeiro. Nem me lembro
do que me xingaram.
Mas nunca vou esquecer o primeiro soco. Veio da minha direita.
Nada estava acontecendo, e no instante seguinte o impacto. Eu saí
girando. Eles vieram para cima de mim. Eu caí. Eles me chutaram.
E assim foi até eu parecer machucado o suficiente, então eles
pararam. Me ajudam a me levantar. Nossa, isso foi um grande erro.
Aos 9 anos de idade não se conhecem as regras. Mais tarde eu
aprendi. Quem apanhou deve continuar no chão; nunca se deve
ajudá-lo a se levantar.
Nem sei se pus as mãos no garoto certo. Só sei que, quando o
peguei, não soltei mais. Só parei de bater quando restamos só nós
dois, a terra e as sirenes. Deu uma baita confusão. Com direito a
queixa, inquérito e coleta de digitais. Eu era novo demais para ser
julgado na corte juvenil, mas não para ser olhado de lado nem para
ouvir o que cochichavam a meu respeito. Tudo isso só alimentou
minha raiva.
Apenas mais tarde minha avó me pegou pela mão, me levou a seu
jardim, que na verdade era um quintalzinho quadrado com uma
cerca enferrujada, e fez eu me sentar na grama. Nós nos colocamos
frente a frente.
– Então, Emmett – ela murmurou –, você está morrendo de raiva,
né?
Comecei a chorar, e ela deixou. Chorar nunca foi vergonha, não na
frente dela.
– Seu avô não viveu o bastante para te ensinar, mas eu vou fazer
isso – ela falou. – Ele tinha motivos para sentir raiva também. A
cada dia aparecia um novo. Mas nem sempre dá para espancar os
motivos. Na maioria das vezes, os motivos dele não tinham nem um
nome. Você me entende.
Na verdade não, mas queria tanto entender que fiz que sim com a
cabeça.
– Ótimo, porque eu não vou falar duas vezes. Então o que seu avô
fazia, todas as vezes que acontecia, era arquivar o sentimento. Às
vezes eu ouvia. “Letra I de injustiça”, ele resmungava. Pensei que
fosse loucura dele, mas não. Ele armazenava tudo. Arquivava. Ele
não se entregava ao sentimento, depois o usava para outra coisa. –
Ela pôs a mão pesada sobre o meu ombro. – Lembre-se disso. Se
você se entregar à raiva, não tem mais volta. É um caminho solitário
e bem longo. Mas, se conseguir encontrar uma maneira de controlar
seus sentimentos, se puder dominar essa raiva, aí você vai se sair
melhor. Então arquive. Por exemplo, esse sentimento pode ficar no
C de covardia. Que tal?
Eu adorei. Depois disso, meu tio começou a me dar aulas de boxe.
Se alguém me xingava na escola, ou me dava uma ombrada na rua,
ou ignorava as minhas mensagens de texto, eu arquivava o
acontecido. Comecei a ficar ansioso pelos domingos. Em meio a
jabs e diretos, abria meus arquivos e despejava no saco de
pancadas toda a raiva que a semana me trouxera. Era uma válvula
de escape. Durante anos, PJ me considerou o cara mais tranquilo
do mundo. Ele sempre perguntava por que eu não ficava mais
aborrecido com as coisas que aconteciam. Você precisa ver a sua
cara, ele dizia. Parece esculpida em pedra. E era.
Eu me recordo disso ao pensar em Karpinski e Defoe. Não posso
controlar tudo o que acontece, mas não sou aquilo em que Defoe
quer me transformar. A Babel pode ter todas as chaves, mas não
sabe o que guardou dentro da jaula. Pelo menos não ainda, porque
logo vou mostrar.
DIA 28, 8h31
A bordo da Gênesis 11

Vandemeer me acompanha até a mesa do café da manhã. Parece


empolgado com o meu retorno. É difícil acreditar que ele não saiba
nada a respeito de Karpinski. O atentado contra a minha vida é uma
lição que não vou esquecer. Karpinski argumentou que foi forçado
por Isadora e Roathy. Os outros competidores querem ganhar tanto
quanto eu. Mas escolheram o cara errado como inimigo. Eu não
esqueço e não vou perdoar.
Enquanto caminhamos, sinto que as minhas entranhas ainda não
cicatrizaram, mas estou ansioso para voltar, para recuperar o tempo
perdido. Pegamos a escada que leva ao enorme refeitório multiuso.
Quero ver os demais, mas estou mais interessado no placar.
É para lá que meus olhos se direcionam:

1. LONGWEI 97.750 pontos


2. HILAL 91.300 pontos
3. AZIMA 90.900 pontos
4. KAYA 87.450 pontos
5. KATSU 84.400 pontos
6. JAIME 80.200 pontos
7. JASMINE 75.050 pontos
8. ROATHY 74.324 pontos
9. ISADORA 74.080 pontos
10. EMMETT 64.900 pontos
Fico atordoado. Os números fazem sentido, mas continuo
perplexo. Meu coração dispara quando percebo quanto fiquei para
trás. É tudo relativo, eu lembro. Os outros também vão se machucar.
Também vão ficar doentes. Mas isso não elimina a sensação de que
estou em um buraco escuro e profundo sem nenhuma corda por
perto pela qual me içar.
Estou a 10 metros da mesa quando enfim percebem minha
presença. Todos fazem uma cara de quem está vendo um fantasma.
Procuro nos rostos por sinais de culpa, distanciamento ou vergonha.
Estão todos chocados demais com o meu retorno para deixar
escapar alguma coisa. Só Kaya revela uma emoção. Ela parece
furiosa.
Katsu é o primeiro a falar:
– A gente pensou que você estava morto.
– Eu não vou morrer assim tão fácil – respondo.
Alguns sorrisos escapam. Roathy e Isadora trocam olhares. Isso
foi visto e anotado.
– É sério – diz Katsu. – Eles não contaram nada. Você parecia
bem mal quando foi levado, cara. Não acredito que deixaram a
gente pensar que você estava morto.
Kaya se levanta para me dar um abraço e sussurra no meu
ouvido:
– Vandemeer falou que eu não podia fazer nenhuma visita. Eles
não contaram nada. Desculpa. Não queria que ficasse sozinho.
Tentei conseguir autorização para uma visita todos os dias, Emmett,
de verdade.
Balanço positivamente a cabeça e finjo que não é nada de mais.
Mas sinto a traição de todos os lados. A ideia de que Vandemeer,
depois do vínculo que criamos na enfermaria, tenha proibido Kaya
de me visitar por iniciativa própria é bem desconcertante. E, caso
Vandemeer só estivesse seguindo o protocolo, o que a Babel
poderia ganhar me mantendo isolado? Quando me afasto do abraço
de Kaya, fico sem saber quem culpar ou com quem ficar puto.
Acabo me sentando à mesa do café da manhã e mal presto atenção
a Katsu, que me faz prometer lhe mostrar a cicatriz.
Defoe não dá atenção à minha presença quando chega para nos
conduzir às atividades da manhã. Estamos de volta às
manipulações de nyxia em alta velocidade. Termino entre os três
últimos em todas as provas. Estou enferrujado e lento; os outros
tiveram dez dias de prática a mais. Acompanho o ritmo na sala de
aula, mas perco terreno de novo no tanque de natação. Meus
pulmões não estão acostumados ao exercício. Minha pontuação
continua tão distante dos demais como estava assim que voltei.
Na arena, minha adversária é Azima. Uma bela recepção de boas-
vindas à competição.
Eu estava enganado quanto a ela. Azima não parece uma cobra
em um matagal. Parece três. Seus botes são rápidos demais para
serem bloqueados. Seria ótimo poder culpar meu ferimento, mas
estou andando para trás e errando na esquiva, então sei que ela é
boa. E está melhorando. Depois do quinto ataque meu avatar vai ao
chão, e Azima levanta o braço em triunfo.
A manhã me deixou suado e exausto. Não perco tanto terreno
como quando estava na enfermaria, mas Vandemeer tinha razão.
Eu não estou pronto. Não estou bem nem inteiro. As dificuldades
continuam à tarde. Nós voltamos à mineração simulada. Os outros
se movem em uma velocidade aceleradíssima. Agora têm planos e
estratégias para maximizar a eficiência. Longwei opera a broca, e no
fim eles me deixam fazer a parte da manipulação da nyxia.
Somos derrotados com facilidade. Katsu resmunga alguma coisa
sobre pontos fracos. Suas palavras não deveriam me magoar, mas
é inevitável. Essa noite, nos meus sonhos, caminho por salas vazias
que ficam cada vez menores. Quando os recintos encolhem, o
mesmo acontece comigo. Acordo pouco antes de ser reduzido a
nada.
O dia seguinte é ainda mais difícil. Preciso abandonar a natação
na metade, quando sinto que o lado esquerdo da minha barriga está
em chamas. Vandemeer sugere uma licença médica, mas eu
recuso. Então ele aplica um bálsamo na minha ferida quando nos
dirigimos à arena. A dor persiste por tempo suficiente para que
Azima me veja como uma criaturinha frágil e ferida. Tento usar os
trampolins para estender a luta. Fazer um pouco de esconde-
esconde. Azima é melhor procurando do que eu sou me
escondendo. Levo um golpe de lança no pescoço e vou almoçar.
Me concentro no meu pedaço de frango, para não precisar olhar
para o placar. Não estou conseguindo tirar a diferença. Vou ficando
cada vez mais para trás. Será possível acreditar que já fiquei em
primeiro lugar? Essa ideia quase me faz rir. Longwei não olha mais
para mim. Eu deixei de ser ameaça para ele. Para os outros, sou
digno de pena. Todos desistiram de mim. Até eu sinto vontade de
desistir de mim, porém me lembro do meu pai trabalhando a noite
toda, e da minha mãe recebendo os olhares desconfiados dos
médicos achando que não temos como pagar o tratamento. Me
lembro de que, se não fizer alguma coisa em breve, vou voltar para
casa com uns trocados em vez de com o baú do tesouro.
Existe uma grande diferença entre querer uma coisa e fazer
acontecer. Mesmo concentrado, bagunço o ajuste do maquinário na
escavação e não consigo manipular a nyxia com a rapidez
necessária. A outra equipe destrói a nossa. Meus colegas de time
olham feio para mim. Quando Defoe reúne todo mundo, eu faço o
papel do fantasma no fundo da sala.
– Mais um sabá chegou – Defoe anuncia no fim do exercício. –
Uma folga merecida. Vamos abrir a sala de recreação, como da
última vez. Durmam até tarde e tratem de descansar.
Caminho atrás de todo o grupo quando atravessamos os
corredores da nave. Minha imagem se reflete nas paredes, e me
pergunto para quem estou olhando, onde foi parar meu verdadeiro
eu. Claro que Kaya fica para trás para me fazer companhia. Ela bate
o ombro no meu.
– Eu senti sua falta – ela diz.
– Ah, é? Que jeito engraçado de mostrar.
A expressão de Kaya fica séria.
– Vandemeer não me deixou fazer uma visita. Esse é o protocolo
da nave, Emmett. É a Babel que manda, não eu. Toda vez que
alguém é ferido com nyxia, precisa ficar de quarentena. Só a equipe
médica tem acesso à pessoa. Que foi? Acha que estou inventando?
A explicação faz sentido, mas foi um dia bem longo, e sinto que
mereço ficar com raiva de alguém, de alguma coisa. Encolho os
ombros e saio andando:
– Que seja.
Ela me pega pelo braço com mais força do que eu esperava.
Detenho o passo, e ela espera até que meu olhar encontre o seu.
– Não precisa dar uma de durão comigo.
– Que diferença faz para você? – Desvencilho o braço de sua
mão. – Me responde.
– Nós somos colegas de time, Emmett. Somos amigos. Somos da
mesma cor. Pensa que eu esqueci?
– Kaya, eu nem sei o que isso quer dizer.
– Você é azul, Emmett, está destruído, assim como eu. Esqueceu?
Nós dois somos esquecidos. As pessoas simplesmente passam por
nós. Eu sou azul também. Sei como é a sensação.
Balanço negativamente a cabeça e percebo que isso a incomoda.
– No meu caso, foram os meus pais – Kaya revela, com a voz
baixa de alguém que está morrendo. – Nossa família era muito
pobre. Tivemos de mudar de apartamento. Eles me levaram lá,
descarregaram todas as nossas coisas e me puseram para dormir.
Quando acordei, não estavam mais lá. Deixaram só as minhas
coisas. E um bilhete.
Suas palavras me deixam abalado. Vejo quanto é difícil para ela
falar sobre isso, quanto é difícil admitir que foi deixada para trás.
Mas, em vez de chorar, ela cerra os dentes e ergue o queixo. Fica
me encarando bem nos olhos e espera teimosamente que eu diga
algo. Não quero que ela nem ninguém nesta nave goste de mim. Só
quero ir para casa e dar um jeito no mundo que deixei para trás.
Quero salvar minha mãe, meu pai e a mim mesmo. Fazer amizades
só complica o plano.
Kaya não recua.
– Sei que aconteceu alguma coisa com você também – ela diz. –
Não precisa me dizer o que foi nem por quê. Mas quer saber por
que eu me importo? Por que gosto de você? Porque fiz uma
promessa a mim mesma quando era pequena. Se eu visse alguém
que fosse azul, como eu, nunca deixaria essa pessoa para trás.
Então não vou desistir de você só por causa de um dia ruim. Não
vou desistir porque você está com raiva de tudo. Nós não somos
mais apenas colegas de aposentos, Emmett; somos uma família. Eu
estou aqui e não vou a lugar nenhum.
Ela me encara, e só o que consigo fazer é desviar os olhos. Dá
para sentir minha armadura cuidadosamente montada cair aos
pedaços no chão. Eu não quero que ninguém conheça os meus
segredos, que consiga me enxergar dessa maneira.
– Você foi mesmo todos os dias?
– Sempre que possível.
Eu assinto com a cabeça.
– Desculpa. Hoje foi dose.
– Eu sei, mas você não está tão para trás. Eu fiz as contas,
Emmett. Não é um jogo que se define nos milhares. Ainda falta
muita coisa até a pontuação final.
– Mas cada pontinho conta.
– Você tem razão. Então vamos continuar ganhando. Podemos
treinar amanhã no sabá. Você descansou bastante na enfermaria.
Está na hora de recuperar a forma.
Olho de soslaio para ela.
– Você faria mesmo isso?
Ela dá risada.
– Você não ouviu uma palavra do que eu disse? Como você é
teimoso.
– É que eu não entendo.
Ela me pega pelo braço.
– Eu gosto de você… o que é que tem para entender?
Pela primeira vez, não contesto suas palavras. Preciso de alguma
coisa boa no momento, e essas palavras são tudo o que tenho.
Voltamos para os nossos aposentos e marcamos um horário para o
treinamento de amanhã. Antes de nos despedirmos para tomar
banho, ela mostra uma coisa em que está trabalhando. É uma
câmera fotográfica enorme, mais do que simplesmente vintage.
Reluz com o preto da nyxia.
– Minha avó tinha uma – ela diz. – Vem cá.
Ela pega a câmera e passa um braço pela minha cintura. Ponho o
meu em torno de seu ombro e nós dois sorrimos para o flash.
A câmera cospe um pequeno quadradinho de papel. Kaya o apanha,
balança um pouco no ar e entrega para mim.
– Não preciso nem ver para saber que ficou boa. Pode ficar.
Ponho o papel na cômoda e vejo a imagem ganhar vida.
A sensação é de estarmos a um mundo de distância da competição.
Parecemos amigos de verdade. Se pelo menos um banho pudesse
remover a sujeira da realidade… Fico sem roupa diante do espelho
depois. Minha cicatriz tomou a forma de uma linha de pele mais
clara logo embaixo das costelas escuras. Um mostrador de sinais
vitais ganha vida. Segundo esses números, eu perdi 5 quilos. Dá
para ver nas minhas costelas e no meu rosto. A tela do espelho
escaneia o interior do meu estômago. Tudo ganha um tom
esverdeado.
Mas tem um defeito que o espelho não consegue ver. Sinto isso
mais do que nunca.
Desanimado, pego meu dispositivo de ouvir música e abro a
tampa traseira. O cartão de acesso de Vandemeer reluz
possibilidades. Conhecendo Kaya, sei que ela vai querer ficar
acordada até tarde para lermos juntos. Amanhã é o sabá, então não
precisamos nos preocupar com a hora de dormir ou com estarmos
descansados para o dia seguinte. Mas acho que sei como tornar
nossa noite bem mais divertida. Visto minhas roupas normais e vou
para a sala de estar. Kaya está à minha espera com um livro, mas o
deixa de lado quando mostro o cartão de acesso.
– Você roubou? – ela pergunta, com os olhos arregalados.
– Faz um tempinho – respondo, enfiando a peça em um bolso com
zíper. – É o cartão reserva dele.
Kaya batuca com os dedos, apreensiva.
– Você já usou antes?
– Nunca. Quer fazer uma exploração?
Ela sorri sob a máscara.
– Vamos ver até onde chega o buraco do coelho.
Juntos vasculhamos os corredores. Nenhum sinal de Vandemeer.
Nenhum técnico da Babel circulando à noite. Os demais
competidores estão quase todos fechados em segurança em seus
aposentos. Levo Kaya até a passagem mais próxima. Ainda não
usei o cartão, mas isso não significa que não tenha feito nenhuma
pesquisa. Desde que o roubei, fiquei de olhos abertos em busca de
corredores, túneis e escadarias.
Descemos alguns lances de uma escada secundária, e eu paro
diante da minha primeira descoberta.
– Apresento a você uma parede normal – digo em um tom
dramático. – A não ser quando usada por um mágico.
Bato na lateral de um painel aleatório, que se abre. Kaya suspira
de susto quando um corredor oculto se revela.
– Legal – ela murmura ao meu lado. – Mas como você sabia que
tinha isso aqui?
– Um mágico nunca revela seus truques.
Ela franze a testa e pisa com o calcanhar no meu dedão do pé.
– Ai! Tudo bem, tudo bem! – Eu aponto para o chão. – Os
arranhados no piso. Por que haveria um arranhado neste lugar
aleatório do piso? Foi fácil.
Ela faz um ruído de apreciação quando as luzes acima ficam mais
fortes. Isso faz eu me lembrar das luminárias econômicas que
instalaram em um mercado perto da minha casa em Detroit. As
luzes ficavam bem fraquinhas quando não tinha ninguém no
corredor. A parte da seção de iogurtes quebrou, e demoraram para
arrumar. Eu sempre fingia que estava em uma missão secreta para
achar coisas gostosas para comer. O único objetivo desta missão
agora é a diversão, mas a mesma sensação surge dentro de mim.
Eu me sinto imbatível.
– Para que você acha que usam este lugar? – Kaya questiona.
– Atalhos, talvez. Com certeza tem um monte pela nave.
Nosso caminho chega ao fim, e abro outro painel. Entramos em
um corredor mais largo, que leva a uma enorme porta preta com
tranca. Pego no bolso o cartão de Vandemeer e o aproximo do
sensor. A luz verde acende, a porta desliza e nós entramos. Kaya
está com os olhos um pouco arregalados.
– Você é bom nisso – ela comenta.
Dou uma piscadinha.
– A Babel não é a única a ter segredos.
Ela dá risada, mas, à medida que seguimos em frente, Kaya
percebe algumas coisas que me passam batidas. Tal como o
tamanho gigantesco da nave e o fato de a Babel ter revestido com
nyxia as paredes e a fiação de todas as passagens. Ela sempre está
com a cabeça voltada para o contexto maior das coisas. Nunca
consegui essa visão tão distanciada. Não é surpresa que ela
sempre tenha uma estratégia para tudo. Mais adiante, a passagem
bifurca.
– A escolha é sua, Alice – digo.
Ela não responde, simplesmente segue saltitando pelo caminho da
esquerda. Aos risos, aperto o passo para alcançá-la.
– Isso é muito legal, Emmett.
– Eu estava te devendo uma. Por não desistir de mim. E meio que
espero que isso deixe a gente quites.
Não sei se ela está sorrindo.
– Eu jamais teria feito algo assim sozinha.
– Para que servem os melhores amigos, se não for para fazer
coisas idiotas?
Ela fica vermelha ao ouvir essas palavras. Mas foram sinceras.
Este lugar já é sinistro o bastante sem amigos. Eu preciso dela. Não
tinha percebido antes, mas provavelmente não tenho muita chance
de sobreviver à competição sem Kaya. Caminhamos em silêncio,
envolvidos pelo momento, e quase me esqueço das minhas próprias
regras.
– Opa – eu digo, puxando-a pelo colarinho. – De volta à parede.
Eu mostro a ela. Contorno uma quina com as costas coladas na
parede. Acima de nós há uma câmera esférica. Quando passamos
por baixo do dispositivo, dá para ver o olho vermelho robótico
piscando. Faço um gesto para Kaya ir para a parede oposta e
repetimos o processo, colando-nos à superfície para burlar outra
câmera. No fim do corredor, há mais uma porta preta.
– Como aprendeu a fazer isso? – ela questiona.
– Ataques noturnos à geladeira.
Passo o cartão de novo e sinto uma sucção forte do vento.
Entramos em uma antecâmara. Acima de nós, o ar assobia por
entre as grades de metal. Esperamos alguns segundos até os
sensores do recinto se ajustarem à nossa presença. Só espero que
a Babel não esteja vigiando em tempo real e com muita atenção as
plantas da nave. Não me surpreenderia se eles aparecessem e
acabassem com a diversão. Mas vale a pena desfrutar de um pouco
de liberdade antes que isso aconteça.
A segunda parte abre com um guincho e eu caminho até a beirada
da passagem. A sala seguinte parece um centro mecânico. Há um
monte de canos e fiações. Está tudo aceso, e tem um buraco de uns
30 metros no meio.
– Beco sem saída? – Kaya pergunta.
– Acho que não – respondo, estendendo a mão lá para dentro.
Na antecâmara é possível sentir a força da gravidade, mas, assim
que ponho a mão para o outro lado, ela fica sem peso. Kaya
observa minha mão flutuar para cima e ergue uma sobrancelha.
Eu dou risada e com um salto pulo para a gravidade zero. É de
tirar o fôlego. A leveza, a liberdade, o medo. Olho para cima
enquanto flutuo. A sala inteira é um eixo vertical. Tem uns 15 metros
de largura, mas de alto a baixo são centenas de metros. O primeiro
salto me joga para a parede oposta. Eu me seguro em um dos
suportes de metal e fico parado ali. Kaya aparece voando
graciosamente, em um ângulo mais agudo que o meu, com uma
expressão impagável no rosto. Ela ajusta o corpo no ar e segura um
suporte mais ou menos a 5 metros acima do meu.
– Onde você acha que dá este lugar? – ela pergunta.
– Vamos descobrir.
Empurro a parede e passo voando por ela. Kaya dá risada e me
segue. Vamos subindo em zigue-zague, nadando pelo ar, fazendo
danças absurdas e agindo como um garoto e uma garota pela
primeira vez na Gênesis 11. Acima de mim, Kaya chega à porta de
uma segunda antecâmara. Angulo o corpo para me colocar acima
dela. Acabo errando o alvo, mas ela me pega pela perna e me puxa
para baixo.
– Não tem lugar para passar o cartão – comento.
Kaya apoia o pé com cuidado na beirada exposta do batente da
porta e dobra o corpo. No centro da porta, há um círculo da largura
de um punho. Observo quando ela enfia a mão pela abertura e
tateia ao redor. Então ela entra em pânico. Sua mão está presa, e
seu rosto se contorce de terror. Eu a puxo às pressas pelo ombro
para tentar libertá-la, e ela cai na gargalhada.
– Te peguei – ela diz com uma piscadinha.
– Você não presta.
Empurro a parede e saio flutuando para longe. Passamos uma
hora explorando os arredores. Só há duas passagens no recinto.
Aquela por onde entramos e a outra, pela qual não conseguimos
passar. Kaya passa a maior parte do tempo olhando para a porta,
perguntando o motivo da ausência do mecanismo para escanear o
cartão, como o que existe na outra porta. Acabo conseguindo atraí-
la para longe de lá com umas jujubas que peguei no refeitório.
Contamos histórias e jogamos balas de diferentes sabores um para
o outro, rindo até passar mal.
Continuo à espera de que Defoe e os guardas da Babel apareçam
e acabem com a farra, mas isso não acontece. Mesmo quando
voltamos aos nossos aposentos, não há ninguém ali. Kaya solta
uma gargalhada empolgada quando estamos em segurança no
sofá, e curtimos o fato de que conseguimos sair ilesos de alguma
coisa aqui. Escutamos algumas músicas e jogamos baralho até
ficarmos cansados demais para pensar em qualquer outra coisa que
não seja dormir. Até toda a dor e a frustração parecerem estar a
milhões de quilômetros de distância.
DIA 50, 23h47
A bordo da Gênesis 11

Dizem que a dor é a fraqueza abandonando o corpo. Se for


verdade, nós estamos ficando fortes o suficiente para carregar o
mundo nas costas. Os dias de competição começam a se fundir.
Nós vencemos e perdemos na Sala do Coelho, mas cada corrida
parece a continuação da anterior, como se fôssemos seguir
correndo uns atrás dos outros para sempre por florestas simuladas.
As explosões virtuais de minas e os sensores de dor nos lembram
de que um dia as consequências de nossos erros serão mais do que
pixels quebrados. A Babel exige a perfeição, porque a perfeição vai
nos manter vivos em Éden. O cronograma segue um ritmo tão
previsível que só eu reparo quando há uma mudança de tom. Foi
nesse dia que comecei a aprender mais sobre meus competidores.
No quinto sabá, Hilal me convida para jogar baralho em seus
aposentos. Meu primeiro instinto é recusar, agradecer e me fechar
nos meus próprios aposentos. Mas então percebo que seria
interessante botar os pés para cima e não pensar em nada. E Hilal
não é um inimigo. Desde o primeiro dia, ele se mostrou receptivo e
gentil comigo. Aceito o convite e o sigo escada acima.
– Longwei é quem fica no outro dormitório – ele explica. – Mas ele
gosta de ficar sozinho.
A sala de estar dos aposentos dele é idêntica à do meu. A única
diferença é que a porta do dormitório de Hilal está escancarada.
Uma rápida olhada lá dentro revela suas roupas bem dobradas e
seus objetos pessoais organizados sobre o criado-mudo. Aponto
com o queixo para lá.
– Sua porta está quebrada? – pergunto.
Ele nega com a cabeça.
– Pedi para eles arrumarem um jeito de deixar aberta. Quero que
todo mundo se sinta bem-vindo.
É impossível conter o sorriso. Que garoto esquisito. Nós nos
sentamos à mesa e Hilal tira o baralho da caixa. Ele separa os
coringas e embaralha duas vezes, para garantir. Em seguida põe as
cartas de lado e olha para mim.
– Agora é só esperar os outros.
Dou uma encarada nele.
– Como é?
– Eu convidei todo mundo. Vai ser uma maravilha jogar com
bastante gente.
Tento esconder meu incômodo. Eu deveria saber. Hilal é do tipo
que não deixa ninguém de fora. Ele não passa seu tempo
acumulando inimigos, como eu. Olho para a porta e sinto um arrepio
estranho subir pela minha espinha. Hilal se levanta na primeira
batida. Jazzy entra na sala e senta-se ao meu lado.
– Eu estava morrendo de vontade de jogar – ela anuncia.
Kaya chega em seguida, e pouco depois Katsu. Tudo começa
como qualquer outra refeição ou competição. Fazemos algumas
piadinhas e damos risada, mas em pouco tempo a descontração
acaba. Jaime aparece, seguido por Isadora e Roathy. A visão deles
em um local que eu gostaria que fosse seguro faz meu estômago se
embrulhar. Todos puxam cadeiras ou sentam-se nas almofadas.
Azima é a última a se juntar a nós, e de um momento para o outro
estão todos reunidos em volta da mesa, menos Longwei.
É quando uma coisa mágica acontece.
Hilal explica qual é seu jogo favorito, distribui as cartas e exerce
um feitiço sobre nós. Toda a tensão se esvai de nossos ombros
rígidos e nossas mãos inquietas. Nós mostramos nossos full
houses, sofremos para montar nossos flushes e damos risada
quando Katsu tira uma dama da manga. Pelo menos por um tempo,
deixamos de ser competidores vagando por uma escuridão infinita.
Somos só garotos e garotas sentados no fundo da sala. O professor
concedeu algum tempo livre, que por algum motivo fica parecendo
uma coisa eterna.
Jogamos por horas. Por tempo suficiente para as conversas leves
ganharem algum peso. Jazzy é a primeira do grupo a criar coragem
para falar sobre sua casa, sobre o mundo que deixou para trás.
Enquanto escuto, meu instinto grita que tudo em sua fala é um erro
– ela está abrindo mão de seus segredos, mostrando suas
vulnerabilidades –, mas ao mesmo tempo fico encantado com sua
sinceridade.
– Meus pais sempre me colocaram em concursos de “beleza com
conteúdo”, só que eu sempre terminava em terceiro ou quarto lugar.
Depois de um tempo, minha família ficou sem grana, por causa das
viagens. – Hilal distribui as cartas para mais uma rodada. Todo
mundo olha para as mãos, mas estamos à espera do final da
história de Jazzy. – Tanto dinheiro desperdiçado. Só fomos sentir
falta de verdade quando descobrimos o câncer de mama da minha
mãe. – Todos olhamos quando ela ergue a já familiar mecha de
cabelos cor-de-rosa. – Será que dá azar se o rosa sumir
completamente?
Ninguém responde. Voltamos o olhar para as cartas nas mãos.
Depois de um minuto, Katsu solta uma enorme gargalhada. Azima
tenta silenciá-lo com uma encarada, mas ele a ignora. Nós o
observamos cambalear até a porta.
– Esperem aí – Katsu diz. – Eu já volto. Ninguém se mexe!
Azima fecha a cara, estende o braço e aperta a mão de Jazzy.
Ainda estou tentando compreender a seriedade do momento. Kaya
contou sua história de vida para mim, mas só porque nós formamos
uma equipe. Isso faz com que eu me sinta diferente de alguma
forma. Descobrimos pequenas coisas aqui e ali sobre os outros
competidores, mas eu não consigo me imaginar expondo minhas
fraquezas para os outros explorarem. Ficamos em silêncio até a
porta se abrir e Katsu voltar com uma caixa delicada nas mãos. Dá
para ver que ele está quase sem fôlego. Ele abre a caixa e a desliza
para o centro da mesa. Todo mundo se inclina para a frente e olha.
– Higashi – Katsu anuncia. – É o último que tenho. Feito com
wasanbon de verdade.
Ouço Kaya soltar um ruído de admiração. O biscoito é pequeno e
delicado. Pelo menos parece um biscoito. É moldado na forma de
um barco e tingido de verde-escuro. Jazzy ergue uma sobrancelha.
– Estou confusa – ela diz. – O que isso tem a ver comigo?
Katsu fecha a tampa da caixa.
– Roathy falou que somos todos pobres, não foi?
Todos os olhos se voltam em sua direção. Roathy simplesmente
encolhe os ombros em resposta.
– Ele tem razão – diz Katsu. – Quer dizer, está na cara que a
Babel escolheu o pessoal mais ferrado que conseguiu encontrar.
Então vamos considerar que esta é uma parte da competição.
Quem tiver a história mais triste fica com meu último higashi. Por
enquanto, Jazzy está na frente.
Ele desliza a caixa devagar na direção dela e dá um passo atrás.
Fico achando que todo mundo vai rejeitar a ideia, mas Azima se
inclina para a frente sobre a mesa, toda empolgada.
– Eu faria qualquer coisa por um doce.
Ela explica que faz parte da primeira geração do povo rendille a se
instalar de forma permanente em cidades quenianas. Antigamente,
segundo ela, não havia pecado maior para seu povo que o
sedentarismo. Eles dormiam sob as estrelas, acompanhavam o
movimento do Sol até o horizonte e iam para onde a água estivesse
à sua espera. Ela conta que seu nome, Azima, significa
“magicamente enfeitiçada para o movimento”. É um nome em geral
reservado para os garotos, mas que ela ganhou porque nunca
parava quieta quando criança.
O movimento está em seu sangue, em seus ossos, mas os
anciãos decidiram que, para sobreviver, seu povo precisaria se
tornar sedentário, entrar na vida moderna. Seus tios e suas tias se
mudaram para cidades e começaram a enlouquecer trabalhando
sentados em mesas diante de uma tela. Sua família se reduziu a
uma vida encaixotada, até chegar ao caixão. Cada parente
enterrado na cidade se torna distante como uma estrela.
– Eu tenho medo – ela diz. – Sei que esta missão é uma grande
honra para mim, mas o que vai acontecer quando eu voltar para
casa? – ela diz. – Que homem vai se arriscar a pedir minha mão
sabendo que eu viajei entre as estrelas? Minha vida nunca mais vai
ser a mesma.
Ela solta uma risada nervosa diante do silêncio que se faz depois
de sua confissão. Distribuímos mais uma rodada de cartas e
fingimos que seus medos não são tão parecidos com os nossos. Em
vez de empurrar o higashi na direção de Azima, Katsu começa a
contar sua história.
– Meu pai foi embora quando eu tinha 3 anos. Ele vive nos
Estados Unidos. Minha mãe nunca mais foi a mesma pessoa. Tenho
uma imagem permanente dela na minha cabeça, parada diante da
janela do nosso apartamento. Morei com a minha avó por um
tempo. Sei lá. Acho que não tenho muito para o que voltar.
Jaime balança a cabeça como se compreendesse. Seu movimento
captura a atenção da mesa. Ele olha para nós e para o higashi,
meio sem jeito, antes de limpar a garganta e começar a falar:
– Minha família tinha uma propriedade rural. A vida era boa. Perto
de uma cidadezinha nas montanhas. Tudo bem simples, mas
passamos por um ano ruim, e os vizinhos tinham raiva de nós.
Fomos à falência. Perdemos tudo.
Baixo meu leque de cartas ruins e espio Jaime pelo canto do olho.
Sinto vontade de acusá-lo de mentir, mas então ele saca uma
fotografia desbotada.
– Esta foi a última foto que tiramos de lá.
A imagem circula de mão em mão. As bordas da fotografia estão
tão gastas que perderam a forma. A mãe dele é uma mulher linda.
Jaime tem os olhos claros e o queixo afiado do pai. Os três estão
em um ambiente rural, com vacas pastando ao fundo. Fico olhando
para a foto por tanto tempo que não percebo que é minha vez de
apostar. Quando enfim levanto os olhos, Jaime está me observando.
Ele abre um sorriso educado, e percebo que fui um babaca esse
tempo todo. Seus pais eram mesmo pequenos proprietários rurais.
Ele disse a verdade. Hilal distribui mais uma rodada de cartas, e a
vergonha me soterra, mas sou covarde demais para pedir desculpa.
Katsu me salva do vexame. Ele dá uma gargalhada e pega a foto
da minha mão.
– Você ganhou pontos por usar um elemento visual, Jaime – ele
diz. – Mas Jazzy ainda está em vantagem. Não tem nada mais triste
que garotinhas com tiaras desfilando em um palco.
Jazzy e Jaime sorriem ao ouvir isso. Katsu empurra a caixa para
mais perto de Jazzy antes de olhar ao redor da mesa.
– Quem é o próximo? Quem vai ficar com o último higashi? Não
esqueçam que isso foi um presente da minha avó, seus palhaços. É
melhor levarem a sério. E você, Hilal? Por que convidou a gente
para vir aqui, para começo de conversa?
Não sei se Hilal gosta dessa brincadeira que estamos fazendo,
mas ele é educado demais para recusar a iniciativa de Katsu, e diz
com um sorriso:
– A hospitalidade não é opcional. É uma coisa que se espera de
todo homem honrado. Foi assim que os meus pais me ensinaram.
Foi assim que meu pai me criou para ser.
Ele descreve seu vilarejo no alto de um morro na Palestina. Dois
de seus melhores amigos eram um casal de ovelhas. Quanto mais
eu ouço, mais percebo a distância entre nós. Eu não entendo gente
como ele. Sua casa foi incendiada duas vezes. Sua família
literalmente passou fome. É impossível que alguém com essa
história de vida ainda consiga sorrir. Mas é só isso que ele faz.
Existe um paraíso dentro dele que escuridão nenhuma pode
encobrir.
Quando Hilal termina, Jazzy desliza a caixa para ele.
– Eu sei reconhecer uma derrota – ela diz.
Meu amigo passa o dedo na tampa da caixa e olha diretamente
para mim.
– E você, Emmett? – ele questiona. – Consegue tirar a caixa de
mim?
Faço que não com a cabeça.
– Duvido, cara.
– Isso é a gente que vai decidir. – Ele sorri.
Sinto o peso do olhar deles. Passei a vida toda vivendo nas
esquinas e nas quebradas. Nunca houve um palco que se abrisse
para mim, mas a atenção de Hilal me convence de que vai dar tudo
certo. As palavras deslizam com facilidade pela língua.
– Minha mãe ficou doente uns anos atrás – eu conto. – Falência
renal. Ela vai subir na lista da fila de espera por transplante por
causa da Babel, mas não está sendo fácil. Meu pai se esforça, sabe
como é, mas os chefes dele querem mais é que ele se esfole para
ganhar uma ninharia. Sei lá, cara. Tem um pessoal legal lá na minha
quebrada, mas parece que vivo num mundo onde todo mundo
prefere que eu fique na minha e aceite de boca calada o que quer
que me ofereçam. Mas a vida é assim mesmo, certo?
Encolho os ombros para mostrar que terminei. Hilal balança a
cabeça como se soubesse exatamente como me sinto. Ele começa
a empurrar o higashi para mim, mas interrompe o gesto quando
Roathy se levanta. Meio que fico esperando que ele vire as costas e
vá embora, dizendo que é uma perda de tempo. Em vez disso, ele
começa a falar.
Ele nasceu no Império Triarco, o enorme conglomerado de países
na fronteira da China que se transformaram em uma potência
econômica na última década. Roathy, porém, conta que foi uma das
milhares de crianças que viviam abandonadas nas ruas, brigando
por restos de comida nas lixeiras e nos becos.
– As piores brigas eram com os cachorros – ele diz.
À medida que ele continua seu relato, percebo que o entendo
muito melhor do que Hilal. Roathy não é do tipo que sorri para um
mundo que ignora sua existência. Eu compreendo isso, e também
sua mentalidade. A verdade o torna mais perigoso. Ele deixou para
trás uma vida para a qual não pode voltar. Quando termina de falar,
Hilal olha para nós dois, sem saber qual é a coisa mais educada a
fazer. Aponto com o queixo para Roathy.
– Acho que ele ganhou.
– Calma aí – diz Katsu. – Ainda faltam Kaya e Isadora.
Ouço um leve ruído de protesto à minha esquerda. Os olhos de
Kaya estão sérios e gelados sob a máscara. Sei o que ela vai dizer
antes mesmo de abrir a boca.
– Certos tipos de competição eu não faço questão de ganhar.
Katsu parece irritado com a resposta, mas não diz nada. A atenção
de todos se volta para Isadora. Ela fica de pé, contorna a mesa e
pega a caixa das mãos de Hilal. Um suspiro de susto se eleva
quando ela abre a tampa, pega o doce e o enfia na boca.
Ouvimos a mastigação crocante. A farinha fina se acumula em
torno de seus lábios.
– Não preciso contar minha história para saber que vou ganhar –
ela diz.
Depois disso, sai andando dos aposentos. Sua saída causa no
grupo o efeito da chegada da meia-noite em um conto de fadas. A
mágica que Hilal criou começa a se desfazer visivelmente. Roathy
vai atrás de Isadora. O restante de nós ainda fica jogando baralho,
mas ninguém volta a rir. Os cochichos sobre Isadora começam a
rolar. Ela sempre foi a pessoa mais calada do grupo, mas isso não
significa que não tenha deixado algumas pistas aqui e ali. Ao que
parece, certa vez contou a Jazzy que para ela não existe nada mais
importante que ser mãe. E de tempos em tempos ela e Katsu
reclamam do fato de que vão perder a próxima Copa do Mundo.
É só depois de levar esses fatos em consideração que a conversa
se volta para o verdadeiro mistério a respeito de Isadora: sua
tatuagem. Todos já viram o oito com a coroa em sua nuca, mas
cada um tem uma explicação diferente a oferecer.
– É o número do jogador de futebol favorito dela – fala Hilal.
Azima faz que não com a cabeça e diz:
– Ela me falou que é o dia em que sua mãe morreu.
– Pensei que tivesse a ver com ficar entre os oito primeiros –
especula Jazzy. – Não é por isso que tem a coroa?
Katsu dá risada diante dessa ideia.
– Como é que ela ia saber que precisaria ficar entre os oito
primeiros? Você acha que ela fez essa tatuagem aqui na nave?
– Ela é a caçula de oito irmãos – Kaya diz com firmeza. – Foi por
isso que fez a tatuagem. Sempre sentiu que vinha em último lugar.
Foi o que ela me disse.
Quando questionamos Isadora no dia seguinte, ela estreita os
olhos, brincalhona.
– Pensei que estivesse na cara. Oito. O número de bobos
necessários para descobrir o significado de uma tatuagem.
Uma noite jogando baralho inseriu novas cores no mundo de
escuridão que a Babel está tentando construir. Ainda ralamos e
lutamos ponto a ponto, mas agora existe algo de humano por trás
de cada máscara. Sei que não sou o único que veio de um mundo
em frangalhos e que não sou o único desesperado para dar um jeito
nisso.
Apenas Longwei continua se isolando. Mesmo com o passar das
semanas, ele continua sem conversar com ninguém. Não joga
baralho no sabá. Não conta histórias sobre sua infância. Entra em
cada competição como se fosse tudo ou nada. O fracasso não é
uma opção. O segundo lugar é a marca da vergonha. Mesmo em
silêncio, Longwei prova que a teoria de Kaya está certa. E vale para
todo mundo. Ela falou que estamos todos destruídos. Disse que
podia ver isso em nós, como uma pintura em uma tela. Ouvir a
verdade de cada um revelada em suas histórias me faz questionar
por que a Babel nos escolheu.
Eu me lembro de quando fui chamado, na aula de matemática. O
diretor me levou até a sala de reuniões. Havia três deles. Todos de
terno. Fiquei morrendo de medo.
Quando me sentei, eles empurraram o contrato inicial para o outro
lado da mesa e disseram que eu tinha sido escolhido. Não era muita
sorte minha? Fora sorteado em uma loteria com milhões de
jogadores.
E o mais curioso é que eu nem tinha comprado um bilhete.
DIA 99, 16h35
A bordo da Gênesis 11

À medida que nos aproximamos da Estação Torre Espacial,


descobrimos que a competição tem seus altos e baixos. Ossos
quebrados, articulações torcidas, músculos distendidos.
A Babel nos empurra do precipício, à espera de que todo mundo
aprenda a voar. Às vezes acontece.
Eu me olho no espelho. Não tenho mais a barriguinha para o traje
evidenciar. O abdome tanquinho desenhado na proteção de couro
agora representa o que de fato existe por baixo. A Babel e Karpinski
endureceram a minha alma nas primeiras semanas. Demorou um
pouco mais para enrijecerem o meu corpo, para me transformarem
em uma pessoa forte e durona.
Vandemeer está à espera na sala de estar com Kaya. Toda manhã
nós treinamos. Toda noite estudamos Éden e os adamitas. Todo os
dias os dois me ajudam a subir um pouco no placar. Nossa aliança
vale cada segundo investido. Depois dos agachamentos e das
flexões, Vandemeer me faz perguntas sobre o clima de Éden.
Quanto mais aprendo, mais esse mundo me parece misterioso.
Éden não é a Terra. Os adamitas não são humanos. Existem
similaridades, mas subestimar as diferenças pode ser fatal. É
importante saber que a maior parte da população dos adamitas vive
em uma única e gigantesca cidade. É importante saber que sua
expectativa de vida é mais que o dobro da nossa. Mesmo as
pequenas coisas, como o fato de que nunca se comunicam com
acenos de cabeça e gestos de mão, podem fazer diferença quando
estivermos na superfície, frente a frente com outra espécie.
Nós descemos para o café da manhã. Os outros mudaram
também. Katsu continua corpulento, mas agora tem o peito e os
braços musculosos. Kaya estava certa sobre ele. Nem sempre
Katsu consegue esconder a tristeza por trás das piadinhas. Nesses
dias, seu jeito de ser é mais sinistro e amargurado que o de
qualquer um.
Hilal chegou inclusive a crescer alguns centímetros. Está alto e
meio descoordenado agora, mas sempre sorridente. O rosto de
Jaime ficou mais fino. A mudança enfatiza os ângulos de seus ossos
faciais, faz com que se pareça ainda mais com um príncipe
medieval. Aos poucos fui perdendo a desconfiança natural que
sentia em relação a Jaime. E ele aos poucos foi me perdoando das
minhas acusações iniciais. Só Azima parece a mesma. Segundo
ela, esse tipo de caos está em seu sangue. Ela diz que nasceu para
sobreviver a condições muito mais cruéis.
Eu achava que isso valia para mim também.
O treinamento de Vandemeer não é só físico. É mental também.
Uma lição que não consigo absorver é seu pedido para que eu deixe
de ficar tão obcecado com o placar. Apesar de seus lembretes sobre
psicologia e pensamento positivo, olho para a pontuação a cada
atividade, a cada refeição, a cada passo:

1. LONGWEI 370.900 pontos


2. HILAL 363.300 pontos
3. AZIMA 362.750 pontos
4. KATSU 361.450 pontos
5. KAYA 348.050 pontos
6. JAIME 325.200 pontos
7. EMMETT 295.350 pontos
8. ISADORA 288.080 pontos
9. JASMINE 280.050 pontos
10. ROATHY 274.324 pontos

Levei semanas para tirar a diferença e consolidar minha posição.


Mas só isso não basta. Um tornozelo torcido, uma costela quebrada
ou um osso fraturado podem interromper minha pontuação a
qualquer momento. Agora o foco está voltado para abrir e manter
uma vantagem em relação aos dois últimos colocados. Se tem uma
coisa que aprendi por aqui é que ninguém está seguro. Não até os
totais serem somados e aterrissarmos em Éden.
Outra coisa que aprendi é que nenhum dos outros competidores é
a lebre preguiçosa da fábula de Esopo. Todo mundo continua
correndo. Acordamos todos os dias com um objetivo em mente.
Cada um tem uma especialidade que sempre lhe garante pontos.
Azima nunca perde na arena. Hilal e Jazzy se destacam na sala de
aula. Katsu é um dos melhores na manipulação de nyxia, e Kaya
está sempre um passo à frente nas estratégias. Jaime é mais ou
menos bom em tudo, e Longwei é de fato bom em tudo. Sei que
posso superar qualquer um deles, mas preciso dar um passo de
cada vez. É um jogo de pequenas vitórias, pequenos objetivos.
Hoje Defoe nos trouxe para um exercício de controle. De todas as
tarefas propostas pela Babel, essa é a minha favorita. Dois
competidores se colocam frente a frente diante de uma plataforma.
Defoe manipula a nyxia e a esconde sob uma toalha. Quando ele
remove o pano, nós competimos para assumir o controle sobre a
nyxia.
Assumo meu lugar diante de Hilal. Respirando fundo, afasto os
pensamentos da cabeça. Me transporto mentalmente para uma
paisagem de pedras frias e águas calmas antes de Defoe puxar o
pano.
Um relógio antigo. Hilal e estendemos o braço ao mesmo tempo,
mas eu sou mais rápido. Consigo senti-lo na minha mente, tentando
se emparelhar comigo para pegar o objeto que já está mentalmente
nas minhas mãos. Fecho os olhos e visualizo a imagem do relógio,
com seus números pretos e seus ponteiros dourados. Quando a
sinto com toda a firmeza, arranco-a das mãos de Hilal e manipulo a
substância na forma de um livro com encadernação de couro.
– Tempo esgotado – avisa Defoe.
Abrimos os olhos e minha criação está sobre a plataforma, com
título e tudo.
Hilal sacode negativamente a cabeça, mas diz:
– Bela jogada.
Os pontos são acrescentados ao meu placar. Pequenas vitórias,
lembro a mim mesmo. Eu ganho pontos, e Hilal não. Só preciso que
isso aconteça mais algumas centenas de vezes. Na maioria dos
dias, consigo vencer todo mundo, a não ser Longwei. Sua força
nesse exercício equivale à trombada de um caminhão de várias
toneladas. O cara nem sorri quando vence. Não sei nem se ele vai
sorrir quando a espaçonave o deixar nas praias enevoadas de
Éden. Talvez nem nesse momento.
Hilal e eu vamos para o fim da fila e vemos Longwei assumir sua
posição diante de Katsu. Ele fecha os olhos e mantém o corpo
totalmente imóvel. Defoe remove o pano, e em um piscar de olhos
Longwei agarra o objeto. Katsu solta um grunhido quando o
medalhão de ouro, uma marca registrada de Longwei, aparece na
plataforma. Ele não sorri nem quando Defoe declara o dia
encerrado.
– Como é que você faz isso? – Hilal pergunta. – Você sempre pula
na minha frente.
– Sei lá. É uma questão de concentração. Você não pode estar
pensando em mais nada.
Essa é uma linha que preciso traçar todos os dias. Hilal, que vem
aos meus aposentos nos sabás e me conta histórias. Hilal, que lê
para mim e para Kaya versos dos seus poemas favoritos, que nunca
deixa de sorrir para todos. Mas ele já está em segundo lugar. Então
preciso ajudá-lo? Devo responder a suas perguntas quando sou eu
que estou ficando para trás?
– Não sei você, mas eu estou exausto – Hilal comenta. – Se
amanhã não fosse sabá, eu provavelmente precisaria tirar um dia de
licença para examinar o joelho.
O joelho de Hilal está doendo faz uma semana. O médico acha
que pode ser um menisco rompido. Uma lesão como essa poderia
deixá-lo de fora por pelo menos uma semana, em caso de cirurgia.
Depois da minha passagem pela enfermaria, não desejo problemas
de saúde a ninguém. Mas todo mundo se machuca. Jazzy ficou de
molho uma semana por causa de uma torção de tornozelo. Isadora
tirou licença por causa de uma espécie de labirintite. O mecanismo
bem ajustado da Babel segue em frente com ou sem nós. Apenas
Longwei não tirou sequer um dia de folga.
Faz sentido: ele é mais uma máquina do que um humano.
– Você está em segundo – digo a Hilal. – Eu trocaria de lugar de
bom grado. Aquelas primeiras semanas me custaram um braço e
uma perna. Mal estou conseguindo manter a cabeça para fora.
– Eu só tive sorte. Me mantive no jogo, copiou?
Faço que sim com a cabeça.
– Pode acreditar que eu copiei, sim.
Copiar, virado, papo-sentado. Os bordões foram surgindo com o
passar dos meses. Uma mistura do linguajar da Terra com coisas
que nós mesmos inventamos. Todo mundo vai acrescentando
expressões de sua parte do mundo. Jaime foi o primeiro, me
chamando de virado no dia em que surtei com ele. Essa palavra e a
variante tirado são a melhor maneira de lembrar uma pessoa de que
está se comportando como uma imbecil. Eu coloquei o copiar no
bolo. Azima contribuiu com o papo-sentado. Jazzy veio com o
popularíssimo vá chupar um ovo. Eu falo a mesma língua que ela e
não sei o significado da expressão. Os novos bordões fazem nosso
grupo parecer uma família. Como a maior parte das famílias, temos
nossas rivalidades, brigas e segredinhos. Como a maior parte das
famílias, nos desentendemos mais do que nos entendemos.
– Ei, vai examinar esse joelho amanhã – digo a Hilal. – Vou
aproveitar para pôr o sono em dia, então não sei se vou ter tempo
para fazer alguma coisa juntos, a não ser tomar café da manhã.
Hilal concorda com a cabeça e trocamos um cumprimento com os
punhos fechados. Ele segue seu caminho e eu sigo o meu. Kaya
está à minha espera nos nossos aposentos.
– Por que eu fui mentir para o Hilal? Sempre me sinto culpado. É
como mentir para um anjo.
– Ele é mesmo um anjo – Kaya responde. – E por isso não é
indicado para o que vamos fazer amanhã.
Eu reviro os olhos.
– Me deixa adivinhar… outra exploração?
A competição não foi a única coisa que mudou. O interesse de
Kaya pela Babel se transformou em obsessão. Quase me sinto
culpado por isso. A descoberta do ambiente de gravidade zero só a
deixou mais curiosa. Eu sonho com subir no placar. Kaya sonha
com o que existe por trás da porta trancada da Babel.
O fato de Vandemeer ter começado a imprimir boletins
informativos para nós lermos não ajuda muito. Ele chama de
pesquisa de reforço positivo. Acha que fornecer mais informações
sobre a Babel e sobre os adamitas nos fará acreditar que vamos
descer em Éden. As leituras densas que supostamente deveriam
voltar a atenção de Kaya para Éden produziram o efeito contrário.
Ela não para de descobrir coisas que alimentam ainda mais suas
suspeitas. Está convencida de que a Babel tem alguma coisa
escondida, e acha que somos os detetives indicados para resolver a
charada. Não é difícil entender sua obsessão. Ela sempre consegue
arrumar soluções para os problemas. Aquela porta é o único
mistério que ela não conseguiu resolver.
Kaya me força a acompanhá-la até o recinto de gravidade zero
apesar de nunca conseguirmos passar pela segunda porta. A julgar
pelo olhar em seu rosto, amanhã vai ser outro dia de exploração. Na
verdade, fico surpreso sempre que voltamos sem sermos
descobertos por um militar da Babel. Vandemeer não costuma
deixar passar muita coisa. Talvez tenha notado a perda do cartão,
mas não disse nada porque sabe o alto custo das consequências
impostas pela Babel. A imagem de Karpinski amarrado e ajoelhado
me vem à mente. Se é assim que a Babel trata seus funcionários
que pisam na bola, seria mais sensato Vandemeer ficar bem quieto
por ter perdido o cartão.
– Outra exploração – confirma Kaya. – Mas dessa vez tenho uma
surpresa para você.
Eu dou risada.
– Você que sabe. Tenho marcada uma ligação para casa e vou
fazer uma sauna à tarde. Quer se encontrar no horário de sempre?
Ela assente.
– Durma bem, Emmett.
DIA 100, 10h33
A bordo da Gênesis 11

As refeições são imprevisíveis no sabá. Os horários de todos


mudam drasticamente. As pessoas comem mais tarde, mais cedo
ou nem comem. Certa vez, Katsu dormiu um dia inteiro. Acordou a
tempo apenas de encarar mais uma semana do cronograma
duríssimo de trabalho da Babel.
Então é por pura sorte que cruzo com Hilal a caminho do café da
manhã. Trocamos um bom-dia e descemos juntos. Naturalmente,
Longwei é o único outro competidor acordado a esta hora. Nosso
irritante líder do placar nem ao menos ergue os olhos quando Hilal e
eu nos servimos no bufê. As piadinhas com Hilal e me sentar com
ele à mesa para comer parecem tão normal que quase não percebo
quanto ele está esquisito. Hilal sempre foi meio estranho, mas hoje
está bem exaltado. Seus cabelos geralmente bem penteados estão
caóticos. Enquanto mastigo um pedaço de bacon, percebo que ele
está vermelho. E transpirando também.
Aponto para ele com o garfo.
– Ei, que diabos está acontecendo com você hoje?
Os olhos dele se voltam para o outro lado da mesa, na direção de
Longwei. Ele está no bufê, de costas para nós, pegando ovos
cozidos com pimenta para comer. Hilal se vira para mim, satisfeito
por saber que não vai ser ouvido por mais ninguém.
– Ontem à noite, a Azima me beijou.
Fico olhando para ele.
– Desculpa, Hilal, acho que a sua máscara quebrou. O que eu ouvi
foi que a Azima beijou você ontem à noite.
O rosto dele fica ainda mais vermelho.
– Isso mesmo.
– Azima? Beijando você?
Ele faz que sim com a cabeça.
– Na boca.
Um sorriso enorme aparece no meu rosto. Não é à toa que ele
está com essa cara de medo de que o mundo vai acabar. Hilal deve
ser o cara mais legal do mundo, mas não é difícil supor que esse
tenha sido seu primeiro beijo. Aos risos, estendo o braço para um
cumprimento. Hilal bate o punho fechado no meu, meio que rindo
também, mas depois balança negativamente a cabeça.
– Eu não deveria estar rindo. Uma pessoa honrada não faz isso.
– Um beijo? – questiono. – Cara, não tem nada de errado em dar
uns beijinhos.
Hilal sacode a cabeça de novo.
– Mas eu preciso pedir autorização aos pais dela.
– Boa sorte com isso – rebato, apontando com o polegar para trás.
– Eles estão a alguns milhões de quilômetros naquela direção.
– Pois é – Hilal responde, com a testa franzida de preocupação. –
Não é certo eu…
O som de um prato caindo o interrompe. Nós dois erguemos os
olhos, como passarinhos assustados. Longwei está de pé na
beirada da mesa, e seus ovos com pimenta agora são uma
maçaroca branca e amarela caída no chão. Mas ele não está
olhando para o prato caído nem para a sujeira que fez. Seus olhos
estão cravados em Hilal. Logo fica claro que ele também está
vermelho.
– Algum problema, Longwei? – pergunto.
Ele abre e fecha os punhos.
– Quem beijou a Azima fui eu.
O rosto de Hilal fica pálido. Os dois fuzilam um ao outro com o
olhar, e eu caio na risada. É impossível não rir. Durante todo esse
tempo, Longwei quis se mostrar como o competidor inatingível. O
mais esforçado, inteligente e veloz, mas bastaram poucas palavras
para desfazer toda essa ilusão. É difícil imaginar Longwei beijando
alguém. Em geral ele não faz nada que não renda pontos no placar.
Mas um rápido olhar para Hilal interrompe meu riso. A encarada
que ele está dando em Longwei é furiosa. A questão não é nem a
presença da raiva, na verdade. É a ausência de seu sorriso habitual.
– Escuta só, pessoal – eu digo, tentando bancar o apaziguador. –
Com certeza foi algum erro justificável.
Longwei me ignora.
– Eu beijei primeiro.
Antes que Hilal possa responder, Longwei sai pisando duro do
refeitório. Preciso me esforçar para segurar a raiva, porque fala
sério… Ele beijou Azima primeiro? Isso lá é argumento? Hilal respira
fundo, e eu procuro as palavras certas para dizer. Por sorte, ele se
manifesta primeiro.
– Como ela pôde fazer isso? – ele pergunta.
Eu encolho os ombros.
– Não estamos mais em 2020, cara. Uma garota tem o direito de
beijar quem ela quiser.
– Não, não é essa a questão – responde Hilal. – Sei que é direito
dela. Mas Longwei? Como ela pôde beijar o Longwei? Preciso de
um banho. Estou me sentindo sujo.
Ele sai andando na direção errada.
– Hilal. – Minha voz chama sua atenção. – É por ali. Você precisa
ir por ali.
Ele faz que sim com a cabeça e dá meia-volta.
– Longwei, logo quem…
Espero que ele se afaste para cair na gargalhada. Vou precisar
agradecer Azima mais tarde. Este pode ser o meu momento favorito
a bordo da Gênesis 11. Ainda me lembro de seu discurso sobre
encontrar um homem à altura dela, mas não sabia que estava
selecionando candidatos. Nenhuma de suas escolhas me
surpreende. O nome de Longwei está em primeiro ou segundo lugar
no placar desde o começo, e Hilal é a pessoa mais legal que já
conheci. E o fato de ele ser um bom competidor só colabora. Cada
um tem seu valor, à sua própria maneira, mas para mim é difícil
imaginar Azima casada com qualquer um dos dois.
Com um suspiro, faço um lembrete mental para conversar com
Hilal mais tarde. Pelo que eu o conheço, sei que jamais tentaria
alguma vingança contra Longwei, mas tenho certeza absoluta de
que ele está se debatendo com essa ideia. Quando me sirvo de um
segundo prato no bufê do café da manhã, Vandemeer vem me
procurar.
– Está pronto para ir à Sala de Contato?
Andamos juntos pelo corredor. Vandemeer também tira seus
sabás, mas às vezes prefere passar esse tempo trabalhando
conosco. Não dava para querer um médico mais dedicado. Ele está
sempre me pedindo para não me preocupar com a pontuação, mas,
quando caminhamos para a Sala de Contato, ele não perde a
chance de observar os números a cada vez que cruzamos com um
placar.
– É sabá, Vandemeer. A pontuação não vai mudar hoje.
– Eu sei – ele diz, com um sorriso. – Só estou orgulhoso do seu
progresso.
– Pois é, mas a gente não pode se empolgar ainda. Tem muita
coisa pela frente.
– Que pensamento positivo.
Vandemeer nos conduz para dentro da Sala de Contato. Um
pequeno grupo de técnicos está sentado diante de telas reluzentes.
Capturo imagens de alinhamentos lunares, tabelas solares, coisas
de trabalho. Já entrei aqui algumas vezes para fazer ligações para
casa, mas ainda não consigo entender bulhufas do que vejo.
Vandemeer aponta com o queixo para a sala de sinal e inicia uma
conversa com um dos caras da equipe técnica. Contudo, assim que
abro a porta, percebo que já tem uma conversa em andamento lá
dentro. Jazzy está sentada na cadeira da recepção. Uma mulher
preenche a tela. É extremamente magra e não tem um fio de cabelo
na cabeça. Mas o câncer não foi capaz de amenizar o brilho em
seus olhos azuis. As duas se viram para mim, e fica difícil não
perceber de quem Jazzy puxou sua aparência.
– Foi mal, Jazzy. Não percebi que ainda era tão cedo.
Faço menção de sair, mas Jazzy me chama para dentro:
– Emmett! Vem conhecer a minha mãe!
Alguma coisa em seu sorriso empolgado me atrai lá para dentro.
Só falta um minuto para o encerramento de sua ligação e ela está
me convidando para participar? Jazzy desliza para o lado para abrir
espaço e envolve meus ombros com o braço quando me sento.
– Mami, este é o meu amigo Emmett! – ela apresenta.
A mulher abre um sorriso de concurso de beleza.
– Está cuidando bem da minha menina aí em cima?
O sorriso é inevitável diante de um sotaque sulista tão simpático.
– Sim, senhora.
– Ele é um dos caras legais, mami – Jazzy diz, para minha
surpresa.
Antes que a mãe de Jazzy possa fazer mais uma pergunta, peço
licença em silêncio e me despeço. Um calor sobe pela minha nuca e
desce pelas minhas costas enquanto espero do outro lado da porta
pelo fim de sua ligação. Nunca pensei nela como uma amiga, mas
acho que Jazzy não é como Roathy ou Longwei. Ela sempre foi
legal comigo. O único problema é que ela pode ser a pessoa que vai
tirar o que é meu. Nunca a considerei uma amiga porque me
mantive firme à ideia de que ela é uma competidora, nada mais.
A ligação se encerra, e ela se levanta. Vejo que ela tira um
tempinho para se recompor. Isso é uma coisa que reparei em Jazzy.
Ela sabe como respirar fundo e ordenar a cabeça quando não está
sob os holofotes. É por isso que sempre parece tão controlada e
preparada quando chega sua vez. Ao sair da sala, ela me dá um
apertão de leve no braço.
– Que bom encontrar você aqui – murmura.
Fico me sentindo culpado. Detesto saber que, para mim, Jazzy se
resume a um nome no placar.
Vandemeer aparece ao meu lado.
– Em um minuto chega o seu sinal.
Faço um aceno de cabeça e me sento quando ele fecha a porta.
Já fiz cinco ou seis ligações para casa. Às vezes o sinal está fraco
demais para estabelecer uma conexão. Minha mãe não apareceu
nenhuma vez, porque está em tratamento. A Babel cumpriu a
promessa e acelerou o processo, mas isso significa que agora ela
está lutando com todas as forças para melhorar. Significa que está
doente e exausta demais para fazer as longas viagens até o centro
de comunicações da Babel. Isso não torna a ausência dela menos
difícil. A cada vez que a tela acende, sinto a esperança de que ela
esteja sentada ao lado do meu pai. A esperança é mesmo uma
coisa curiosa. Ainda que ela não tenha aparecido nenhuma vez,
sempre vou estar mais esperançoso na próxima.
Quando a tela carrega, só vejo meu pai.
– Meu garoto – ele diz. – Você parece ótimo, Emmett.
Deve ser verão em Detroit. Ele está usando uma regata preta em
estilo clássico, e os cabelos estão cortados bem curtos. Consigo até
imaginá-lo na cadeira da barbearia, dizendo a Terry que o verão
está chegando e que ele precisa ficar bonito, já que sua mulher está
prestes a voltar a usar seus vestidos.
– Da última vez, você disse que estava ralando forte – ele
comenta. – Valeu a pena?
Já não sei mais que detalhes revelei e quais deixei de fora da
conversa. Ele sabe que alguém foi perfurado pela lâmina de uma
espada por acidente. Mas não sabe que fui eu. Ele sabe que a
Babel ofereceu para nós bilhetes de loteria. Mas não sabe que nem
todos são premiados. Não sei se é uma coisa infantil ou sinal de
maturidade, esse meu medo. O medo de revelar a verdade nua e
crua. Só acho que está na hora de carregar meus próprios fardos
em vez de despejar todo o peso em cima dele.
– Ah, sim – digo com um sorriso. – Eu estou subindo no placar. E
indo bem.
Ele balança a cabeça, diz para eu me manter firme, sempre me
incentivando a dar meu máximo. Às vezes fico tão envolvido no que
acontece na Gênesis 11 que esqueço que tem gente na Terra
rezando, torcendo e sonhando com o que pode acontecer se eu
conseguir cumprir meu objetivo. Meu pai me disse para fazer isso
por mim, para lutar pelo meu futuro, mas não faz ideia do quanto
quero poder fazer isso por ele e pela minha mãe.
– Então está tudo bem? – ele pergunta.
– Ainda tem muita coisa pela frente, mas estou saudável e acho
que tenho chance.
Meu pai sorri para mim como se não estivéssemos a um bilhão de
quilômetros de distância. Ele parece disposto a perguntar mais –
sobre a nave, sobre mim, sobre o espaço. Mas estou cansado deste
lugar. Cansado demais para desperdiçar nossos preciosos minutos
falando de tudo isto.
– Como é que está a mamãe? – pergunto. – Estou com saudade
dela. De vocês dois.
– Ela está bem. Muito bem, filho. Os tratamentos parecem estar
dando certo.
Ele nunca diz as palavras mais temidas. Crônica, falência, morte.
Conversamos sobre a doença sem falar a respeito. Eu ainda era
pequeno quando minha mãe descobriu ter problemas renais,
quando as coisas começaram a ir por água abaixo. Meu pai assumiu
uma carga pesadíssima depois que ela teve que deixar o trabalho e
o dinheiro do seguro-desemprego acabou. Entender isso foi difícil
demais para mim. Eu me irritava por ela estar sempre tão cansada.
Quanto mais velho eu ficava, melhor entendia, mas às vezes os
rancores ainda se mantêm nos recônditos mais escuros do coração.
Eu balanço a cabeça.
– Ela não está trabalhando, né?
– Ainda não, mas sente falta daquele emprego de escritório na
Moore Square. Está tentando conseguir um jeito de voltar, sabe?
Isso a fazia se sentir normal. Por um tempo, ela voltava para casa
comentando a respeito. Você sabe como ela se sente em relação a
trabalho.
– Trabalho não é coisa que se faça em casa – digo, com um
sorriso.
Ele dá risada.
– Exatamente. Então, ela está melhor, mas ainda não pode viajar.
É por isso que não está aqui. A estação da Babel fica a seis horas
de viagem. Não sei se ela aguenta um deslocamento assim, sabe?
Mas outro dia ela me pediu para levá-la para fazer compras,
Emmett. Foi quando eu percebi que o pior está ficando para trás.
– Fazer compras?
– Ela queria comprar roupas. Cara, ela fica bem bonita de esporte
fino.
Levanto uma sobrancelha ao ouvir isso. Ele tem razão. É um bom
sinal. Nos piores momentos, ela falava em doar suas roupas mais
elegantes. Agia como se não tivesse mais uso para elas, não com o
rumo que sua vida tomava. O fato de querer comprar roupas é um
ótimo sinal.
– Tem um vestido – meu pai continua. – Uau… isso me traz
lembranças…
Solto um grunhido.
– Pai. Sério mesmo?
– Ei, esse é o motivo de você existir, para começo de conversa.
– Cinco minutos – eu lembro. – Temos cinco minutos, e é sobre
isso que você quer falar? Tem alguma coisa errada com você…
Sabe disso, né?
Ele dá risada de novo.
– Um dia você vai entender, pode acreditar. Enfim, ela está cada
dia melhor. Eu estou bem. Ela não pôde vir hoje, mas tenho uma
surpresa para você.
Vejo que ele se inclina na cadeira e dá uma batidinha em uma
porta lateral. Alguns segundos depois, PJ McQueen entra na sala,
com um sorriso que mal cabe na tela e os olhos brilhando de
empolgação.
– Eita! Olha só esse cara! – PJ se senta ao lado do meu pai, ainda
sorrindo. – E aí, Emmett? Sei que você cansou de perder para mim
no mano a mano, mas não precisava ir embora do sistema solar de
tanta vergonha, cara.
Solto uma risada que sacode meu corpo todo.
– Qual é, PJ? Você é bom, mas nem tanto.
– Certo, certo. O cara vai para o espaço, fica se achando e
esquece que levava cesta atrás de cesta na cabeça por horas a fio.
Dou risada de novo e olho para o meu pai.
– Onde você estava com a cabeça para trazer esse palhaço? Ele
precisa treinar duro, pai. As propostas de bolsas de estudos
começam a chegar no ano que vem. Já arremessou seus dois mil
lances livres hoje, PJ?
PJ faz uma careta.
– Se liga, eu posso tirar um dia de folga para conversar com uma
celebridade.
– Celebridade? Não sei o que meu pai anda dizendo, mas eu não
sou celebridade nenhuma.
– Claro que é – diz PJ. – O mundo inteiro está pirando. Um viral
sobre a Babel se espalhou na semana passada.
Eu enrugo a testa.
– Um viral? Como assim?
– Os Arquivos da Babel – ele diz. – Todo mundo na escola só fala
disso, cara. E umas garotas começaram a falar que tiveram lances
com você. Não esquenta… Dei um jeito de acabar com os boatos
para te deixar bem na fita quando voltar.
Balanço negativamente a cabeça, confuso.
– Do que você está falando?
PJ sorri e espana uma poeira invisível do ombro.
– Bom, eu disse para a maioria das garotas ir catar coquinho. Mas
acho que Shae Westwood toparia um encontro. Pode me chamar de
parceiro intergaláctico.
– Não isso, PJ – explico. – A outra coisa. Quais Arquivos da Babel
são esses?
– Uma reportagem – meu pai responde. – Eles não te mostraram?
– Não. – Eu encolho os ombros. – Estamos no espaço.
– Ah, cara – ele diz, batendo as mãos uma na outra, empolgado. –
Ficou bem legal. Tem uma página inteira sobre você. Publicaram
sua foto do anuário escolar do ano passado e entrevistaram alguns
professores.
Minha cabeça está a mil.
– Fizeram uma reportagem sobre mim?
– É, sobre você e os outros recrutas. Ficou legal. Você sempre fala
sobre esse pessoal, e agora eu sei como eles são, né? Agora tenho
um rosto para associar às histórias que você conta. E consigo
entender o que quis dizer sobre esse tal de Longwei.
– Mas – interrompe PJ –, não tem nenhuma menção aos Manos
de Elite? Que vergonha, cara. Era a nossa hora de brilhar. Espero
citações em futuras entrevistas.
Dou risada outra vez.
– Quem foi que publicou isso?
Meu pai abre a boca para responder, mas, apesar de seus lábios
se moverem, o som não chega. Escuto a vibração de um baixo,
então um gemido agudo. Sua voz volta, se mistura e emudece de
novo. Depois de 30 segundos de interferência, eu me levanto e abro
a porta.
– Ei – eu chamo a equipe técnica. – O som não está funcionando.
Uma mulher fecha a cara e olha feio para sua tela antes de se
levantar da estação. Franzindo ainda mais a testa, ela vai até a
porta. Quando chega, a tela pisca duas vezes, então a imagem
volta, assim como o som.
– … matinal ou coisa do tipo. Mas, como eu disse, as pessoas
estão pirando. – Ele faz uma pausa. – Emmett? Você está aí,
Emmett?
– Parece estar funcionando agora – a técnica diz.
Eu volto a me sentar.
– Estou. Desculpa. A conexão falhou um pouco.
– Ah, tudo bem. Enfim, como eu ia dizendo, o pessoal de Vegas
começou a aceitar apostas em vocês. Ninguém sabe em que
exatamente está apostando, mas é bem legal. E você não vai
acreditar…
A tela se apaga. No canto da sala, vejo que os cinco minutos já se
passaram. No espelho preto em que se converte a tela, eu pareço
exausto. Com um suspiro, levanto-me e saio da Sala de Contato.
Vandemeer está à minha espera. Quase compartilho com ele a
minha desconfiança, mas então me lembro de que até o confiável
Vandemeer está sendo vigiado. Ainda está com o relógio da Babel
no pulso e ainda precisa do salário que a Babel paga. Está tão à
mercê deles quanto eu. Então conto que minha mãe está melhor e
falo sobre PJ, que era titular da escola mesmo sendo calouro no ano
passado, mas não menciono a falha técnica nem minhas outras
suspeitas.
Não digo que percebi que o som falhou no momento que meu pai
entrou em detalhes sobre a reportagem dos Arquivos da Babel.
Acho que foi de propósito, porque nada nesta nave costuma quebrar
ou dar defeito. Se a Babel quiser que alguma coisa funcione, ela
funciona. Então o que meu pai poderia me contar que não querem
que eu saiba? Seja o que for, preciso estar atento. É mais uma coisa
para ficar de olho, mais uma mudança à espera no horizonte.
DIA 100, 14h45
A bordo da Gênesis 11

A melhor coisa do sabá é a sauna. Posso ficar lá dentro sem fazer


nada, sem roupa, só suando e relaxando. Faz muito frio em Detroit.
Meu prazer secreto por lá era bem simples: banhos quentes. Às
vezes eu chegava da escola e ia correndo tirar a roupa. Nem me
preocupava em passar sabonete ou xampu, só queria desaparecer
no calor. A água quente só durava alguns minutos na minha casa,
mas mesmo assim era a parte favorita do meu dia.
Os dispositivos da Babel nunca falham. Se eu quero fazer uma
sauna, vou encontrar vapor. Se quiser desaparecer no simulador e
fingir que estou nos Alpes, posso fazer isso. Não se trata de uma
empresa adepta de tecnologias falhas ou de gambiarras. Saber
disso é reconfortante e perturbador. Reconfortante porque sei que
vamos chegar a Éden. Depois de ver como tudo funciona aqui, não
tenho medo nenhum de morrer em uma explosão inesperada ou
uma aterrissagem mal planejada. Perturbador porque a Babel não é
o tipo de organização que tem um plano B. É mais provável que
tenham planos de A a Z, e não sei nem se conhecemos todo o plano
A. Tentar entender as coisas por aqui é como montar um quebra-
cabeça com 20 ou 30 peças faltando.
Quando sinto que meus dedos estão se enrugando, aperto e
seguro o botão de soltar o vapor. As escotilhas se abrem e a névoa
se dispersa mais à frente como brumas ao luar. Tomo um banho
rápido antes de voltar ao refeitório.
Esperava reencontrar Hilal, e de fato o encontro, mas ele não está
nem um pouco sozinho desta vez. Não preciso sequer chegar ao fim
da escada para começar a ouvir a conversa acalorada.
– Quer dizer que nós somos famosos – Katsu fala. – Se o mundo
todo está lendo sobre isso.
– Eu sempre quis saber como era ser uma celebridade – Jazzy
responde. – Peguei raiva dos concursos de beleza por um tempo,
mas estar no palco tem seu lado divertido.
Quando entro, todos os olhares se voltam para mim. Katsu fica de
pé em um pulo, levantando os braços como se tivesse acabado de
correr uma maratona.
– Emmett! Nós estamos famosos, cara! Pode me chamar de
Hollywood!
– Hollywood – repito, sem tirar os olhos dele. – Está falando dos
Arquivos da Babel?
Katsu me dá um soco no braço, todo eufórico, e olha para os
demais.
– Ele também ficou sabendo. É incrível.
Passo por ele e me acomodo no assento livre ao lado de Azima.
Ela está trançando os cabelos de Isadora, que está trançando os
cabelos de Jazzy, que por sua vez está desenhando uma tatuagem
no braço de Jaime. É o tipo de coisa que só acontece no sabá. São
as pausas para respirar fundo em meio a corridas intermináveis. O
único momento em que podemos pôr os pés para cima e agir como
pessoas normais.
Hilal acena para mim da ponta da mesa. Parece ter voltado ao
normal, mas ainda vejo vestígios de vermelho em suas bochechas.
Está comendo um pedaço de torta. Faço um esforço para não olhar
para Azima logo em seguida. Naturalmente, Longwei não está ali
para confraternizar. Ele tende a desaparecer sempre que um grupo
se forma. Percebo que Kaya e Roathy também estão ausentes.
– Quantos de vocês ficaram sabendo? – pergunto.
– Todo mundo – Azima responde. – De uma forma ou de outra.
Faço um aceno de cabeça.
– Queria saber por que publicaram isso.
– Que diferença faz? – Katsu retruca. – Estou famoso. Quando
voltar para o Japão, vou namorar só supermodelos. Andar em
carros esportivos. Vou ser o cara que mostram no telão em dia de
jogo, sabe? Aquele que o narrador diz quem é e fala um pouco a
respeito. Com óculos escuros e tal.
Isadora dá risada.
– Acho que a gente não está famoso nesse sentido, Katsu.
– Por que não? – ele questiona. – Nós somos tipo… astronautas
sensuais!
Jazzy faz uma careta.
– Você precisa sempre fazer tudo parecer esquisito?
– Sim – Katsu responde, orgulhoso. – Estou aqui pela esquisitice.
Todo mundo sabe disso.
– Ele tem razão – eu digo. – Sobre a parte da celebridade. Somos
as pessoas mais jovens a viajar para o espaço. Com certeza não é
pouca coisa.
– Você acha mesmo? – Hilal pergunta com a boca cheia de torta. –
Nós vamos ficar famosos?
Jazzy olha feio para ele.
– Você é o garoto mais legal do mundo, Hilal, mas tem os piores
modos à mesa que já vi.
Ele termina de mastigar e sorri.
– Minha família não tinha mesa.
– Eu não quero ser famosa – comenta Azima, antes que Jazzy
fique ainda mais envergonhada.
– Sério? – Isadora parece perplexa. – Se for famosa, você pode
fazer o que quiser. Pode ir a todas as festas. Conseguir as melhores
mesas nos restaurantes. Eu quero ser famosa.
– Pessoas famosas são corruptas – Azima rebate. – São infelizes.
Todo mundo sabe.
– Eu também não quero ser famoso – Hilal se apressa em dizer. –
Chama atenção demais.
Percebo que ele lança um olhar esperançoso na direção de Azima
e preciso me segurar para não rir. Katsu olha ao redor da mesa, em
choque.
– Então vocês dois podem ir viver escondidos enquanto eu e a
Isadora vamos às festas. Emmett? Jaime? Vocês vão dançar com a
gente ou não?
Jaime encolhe os ombros.
– Eu nem sei dançar.
Katsu solta um grunhido e se vira para mim:
– Emmett. Por favor. Por favor, diz que vai cair na farra comigo.
– No Japão ou em Detroit?
Ele dá risada.
– A gente se encontra no meio do caminho.
– Então… no mar?
– Você está oficialmente convocado para a minha festa no meio do
oceano – ele responde gargalhando. – Vamos ter as melhores
comidas, dançar nos iates e fazer sei lá mais o que os ricos fazem.
E é melhor a Jazzy ir junto, porque o tema vai ser astronautas
sensuais.
Todo mundo dá risada. Por um tempo, eles conversam sobre suas
celebridades favoritas. Hilal é vidrado em um filósofo palestino.
Isadora confessa que tem vontade de namorar a seleção brasileira
de futebol inteira. Fico escutando por um tempo e quase me
esqueço do meu outro compromisso. Peço licença e volto para os
meus aposentos, torcendo para que não tenha feito Kaya esperar
demais.
Quando entro, escuto o chuveiro dela aberto, então me sento à
mesa e pego um dos relatórios sobre os adamitas. É uma teoria de
um cientista qualquer sobre a mitologia adamita. Houve um tempo
em que eu dormiria depois de terminar o primeiro parágrafo, mas os
testes da Babel deixaram minha mente mais aguçada. Coisas que
antes eram difíceis estão se tornando mais fáceis. Fico me
perguntando que tipo de aluno eu poderia ter sido se não tivesse
tantas distrações. Se fosse para casa e passasse horas estudando
e fazendo lição de casa em vez de cuidar dos meus primos. Arquivo
esse pensamento na letra S de sei lá.
Quando Kaya fica pronta, pegamos o caminho de sempre.
Passamos pelos mesmos pontos de checagem, as mesmas
câmeras de segurança e os mesmos painéis secretos. Com certeza
a esta altura já sabemos fazer tudo isso de olhos fechados. Se a
Babel estiver vigiando, preferiram não dizer nada sobre nossas
diversões noturnas. Talvez não se incomodem se explorarmos um
pouquinho, desde que ninguém faça nada de errado. Ou souberam
o que Kaya não quer aceitar: já chegamos ao limite da nossa
capacidade de exploração.
Enquanto caminhamos, conto para ela as notícias do dia. Ela
ainda não tinha ouvido falar dos Arquivos da Babel, mas pelo jeito já
sabia do interesse de Azima por Hilal fazia um tempo. Sempre fico
surpreso ao descobrir o quanto ela conversa com os outros
competidores, mas acho que faz sentido. Quando fico sem assunto,
ela me fala sobre uma nova estratégia que desenvolveu para a Sala
do Coelho. Dou risada, porque é o tipo de plano brilhante que só
Kaya é capaz de bolar.
Esperamos na antecâmara e então entramos no ambiente de
gravidade zero. Kaya não brinca mais de quicar pelas paredes ou
atirar jujubas. A versão divertida dela foi aos poucos substituída pela
versão obcecada. Seu fascínio pela Babel a tornou toda séria.
Sempre me pego torcendo para conseguirmos atravessar a porta,
obtermos uma resposta e enfim podermos seguir em frente. Kaya
finge que é tudo uma grande aventura, mas no fundo acho que ela
só quer uma resposta para o segredo da porta. Só o que eu posso
fazer a esta altura é estar ao seu lado.
– Percebeu alguma coisa no meu colar? – ela pergunta.
Ao longo da competição, a Babel vem cedendo cada vez mais
nyxia para usarmos. Tenho três elásticos em torno de um pulso e
um anel na outra mão. Kaya é a única que mantém a sua nyxia na
forma de um colar. Pequenos pingentes se espalham pelo seu
pescoço, na forma de estrelas, corações e asas. Dou uma olhada
para a peça e aponto com o queixo:
– O girassol não está aí.
– Muito bem – ela comenta. – Precisei dele para manipular isto. –
Kaya enfia a mão no bolso e me mostra um cilindro preto de
proporções perfeitas. – Demorei algumas semanas para acertar. Vê
se funciona.
Pego o cilindro da mão dela e o coloco na abertura da porta. O
encaixe é perfeito. Kaya gesticula para que eu aperte até o fim, e
faço isso até que a extremidade da peça se emparelhe com o
restante da porta. Nós ouvimos um pequeno clique. Os mecanismos
ganham vida. Diante dos meus olhos arregalados, a porta se abre.
– Você é genial – digo, atordoado. – Genial, Kaya.
Flutuamos para dentro de uma antecâmara, e a gravidade começa
a pesar sobre nossos ombros. Caímos de joelhos, e demoramos
alguns segundos para conseguirmos nos levantar. A porta seguinte
tem fechadura.
– Será que a gente continua? – questiono.
– Claro que sim. Estou há meses imaginando o que pode ter aqui.
Juntos, entramos em um corredor novo e bem iluminado. É
parecido com todos os demais, porém nosso avanço cauteloso não
revela a presença de nenhuma câmera. O corredor segue 20
metros, então faz uma curva de 180 graus. Em seguida, uma leve
descida. Andamos mais 20 metros e encontramos outra curva de
180 graus. Não há degraus nem riscos no piso, nada.
– Eles não usaram nyxia nestes corredores – Kaya comenta.
Faço um aceno de cabeça, como se não tivesse reparado. As
paredes são de uma espécie de nanoplástico, com um ou outro
suporte de metal em determinados pontos. Alguma coisa nesse
layout me deixa preocupado. Quando estou prestes a dizer a Kaya
que é melhor irmos embora, uma porta aparece na curva seguinte.
Como no caso das paredes, não há nyxia nas molduras. Mas tem
um mecanismo de escaneamento. Paramos diante dele. A porta não
se abre.
– Finalmente – Kaya murmura, empolgada. – Finalmente vamos
poder ver o que tem aqui.
Tento parecer animado, mas alguma coisa está errada. A porta é
diferente das outras.
Ficamos meio sem jeito, então Kaya se vira para a abertura.
– Certo, vai em frente.
– Não sei se é uma boa ideia – digo. – Estou com um mau
pressentimento.
Kaya me encara como se estivesse diante de um louco.
– Emmett, nós passamos semanas, na verdade meses, tentando
entrar aqui. Parar agora seria tipo ler um livro inteiro, mas não o
final.
– Não me parece certo.
– Mas nós estamos literalmente aqui. Não dá para desistir agora.
Engulo em seco e faço que sim com a cabeça.
– Você que sabe.
O cartão é lido, e a porta se abre.
A luz forte do lado de dentro nos obriga a espremer os olhos.
Pisco algumas vezes e então começo a captar algumas formas
vagas e etéreas. Meus olhos se ajustam pouco a pouco. Braços
mecânicos articulados descem do teto alto. Cinco, dez, no mínimo
20. Pairam ameaçadoramente por todo o recinto, com brocas
afiadas e serras nas pontas. Há telas de plasma espalhadas pelas
paredes. Não consigo decifrar os diagramas e números que piscam
em verde em suas superfícies. Luzes azuis pulsam ao redor de tudo
como sangue, em volta dos painéis brancos e dos círculos metálicos
das articulações das ferramentas mecânicas.
Kaya é quem dá o primeiro passo para dentro. Ao fazê-lo, o piso
branco se torna preto. Parece que uma sombra recaiu sobre o
ambiente, como se monstros gigantescos nos cercassem. As luzes
perdem o brilho, e conseguimos ver para que serve aquele recinto.
Um homem. Três tiras atravessadas no corpo, suspendendo-o e
mantendo-o preso à parede mais distante. Um capuz semiesconde
seu rosto, até o lábio superior. Um par de cabos brancos se liga aos
cantos de sua boca. Cabos brancos similares desaparecem dentro
de seu peito nu, de seus braços e seu abdome. Logo abaixo da
garganta há uma ferida aberta. As bordas estão fumegantes e
apodrecidas. Parece até que alguma coisa estava alojada ali e
alguém decidiu arrancá-la.
Kaya e eu somos atraídos para dentro do recinto da mesma forma
como uma vizinhança é atraída por uma casa em chamas. A Babel
se esqueceu de colocar o cordão de isolamento; podemos nos
aproximar do incêndio quanto quisermos. Não há ruído nenhum
exceto o pulsar lento e constante de um monitor. As batidas são tão
espaçadas que me pego esperando um tempão pela próxima.
– Ele está vivo – murmuro. Mas quem seria? E por que a Babel o
mantém aqui como um prisioneiro?
– Veja as cicatrizes – Kaya diz com suavidade e tristeza.
A pele do homem parece argila desbotada. Em algum momento
deve ter tido uma cor bonita e viva. Em seus braços, percebo as
queimaduras. A pele tem bolhas em algumas partes e foi arrancada
em outras. O ombro esquerdo está inteiro coberto de feridas
superficiais. Não é necessário dizer, mas Kaya diz mesmo assim:
– Ele está sendo torturado.
Detemos nosso passo. Ainda não estamos perto o suficiente para
conseguir tocá-lo. Meus olhos descem um pouco. Eles o deixaram
vestido da cintura para baixo, com uma estranha armadura com
aspecto de pedra sobre os joelhos. Aponto para lá.
– O que é isso? – pergunto.
Kaya se ajoelha e solta um ruído pensativo.
– Já vi cruzes assim.
– Cruzes?
Ela estende ambos os braços.
– Cruzes.
E ela tem razão. Uma pedra central foi moldada em torno de cada
joelho. A partir dela, braços sólidos a atravessam para baixo, para
cima e para fora. Estreito os olhos para ver melhor. O metal parece
encravado na pele, quase como escamas. Dou um passo para o
lado, e Kaya respira fundo.
– Cuidado – ela murmura.
– Pode deixar.
Do ângulo que estou, o que primeiro me chama atenção é o
tamanho do homem. Não é alto, mas é robusto e musculoso. Mais
largo que a maioria dos troncos de árvores. Duvido que eu seja
capaz de fechar os braços em torno dele. Nos cotovelos vejo pedras
iguais às dos joelhos. Parecem se fundir perfeitamente à pele. Pela
primeira vez, me dou conta de que não se trata de um ser humano.
É um adamita. Aqui na nave.
– Kaya, é um deles.
– Um adamita – ela confirma. – Como puderam fazer isso com
ele?
O monitor apita, e temos um sobressalto. Nós dois notamos
nossos olhares de pânico. Em seguida há um momento de sorrisos
envergonhados. Mas então um movimento os faz desaparecer dos
nossos rostos.
Apesar da tira prendendo seu peito e seus bíceps, a mão do
prisioneiro começa a se erguer. O monitor silencia. A mão sobe
como uma ponte levadiça fantasmagórica. Estou perto o suficiente
para enxergar tudo: as veias se adensando, a mão frágil se
fechando em um punho poderoso, os lábios se afastando de leve.
Fico parado diante dele, horrorizado, incapaz de me mover, incapaz
de falar.
Os pingentes no colar de Kaya começam a tremer. Eles se erguem
no ar de uma forma que parece impossível, girando nos fechos
como pequenos planetas. Kaya olha para baixo, e eu fico
boquiaberto. Observamos quando as mãos invisíveis fazem a nyxia
subir milímetro a milímetro. Estamos ambos apavorados, mas o
instinto de Kaya enfim entra em ação. Ela põe a mão sobre os
pingentes e empurra o colar de volta para o peito.
Um estrondo quebra o silêncio.
Kaya vai ao chão e solta um grito agudo e estrangulado. Sinto uma
presença no ar, e sou empurrado para trás como se algo grande e
poderoso se colocasse na distância que nos separa. É como uma
rajada de vento, chuva e caos. Kaya começa a gritar, e eu me
esforço para chegar até ela.
Vozes ressoam em um mundo distante. O homem preso à parede
fecha o punho, e os olhos de Kaya se arregalam. O colar se
comprime, encravando-se na carne. Tento fazer alguma coisa para
ajudar, mas minhas mãos não conseguem se colocar entre a nyxia e
o pescoço dela. Ouço um clique quando um dos pingentes se solta
e se eleva no ar. O prisioneiro o manipula em forma de fumaça,
atraindo a substância para seu pulso. Estou aos berros agora:
pedindo socorro para quem quer que possa ouvir. Os olhos de Kaya
estão vermelhos e o rosto, apavorado. Suas mãos lutam e puxam,
mas nenhum de nós consegue arrancar o colar, que continua
apertando, apertando, apertando.
Estou aos prantos, e grito quando a nyxia é puxada para cima. O
corpo de Kaya se eleva no ar até seus pés mal tocarem o chão.
Tento trazê-la de volta para baixo, mas não consigo. A força
contrária é poderosa demais. Kaya para de tentar libertar o pescoço.
Uma das mãos cai imóvel junto à lateral do corpo. Depois a outra.
Escuto um gorgolejar, e berro a plenos pulmões quando a luz do
recinto pisca duas vezes. O homem na parede pragueja por entre os
dentes cerrados.
Então Defoe surge entre nós.
Seu traje preto começa a ondular. Em um momento é tecido, e no
seguinte uma armadura preta e sólida. Ele fecha as duas mãos em
torno do pulso do homem. Sombras se espalham por todas as
direções. Defoe solta um grunhido, depois bate com o ombro
protegido pela nyxia na barriga do prisioneiro. Amarrado e cego, o
homem não tem como se proteger do golpe. Defoe dá outra
ombrada, e o ar escapa com força dos lábios grossos do homem.
Com um puxão, Defoe arranca a nyxia do cativo. Com uma rápida
manipulação, a substância é absorvida por sua armadura. Ele
posiciona bem os pés e desfere mais três golpes: barriga, barriga e
virilha.
Kaya despenca no chão. Consigo enfiar os dedos por baixo do
colar e arrancá-lo. Linhas vermelhas escuras estão escavadas em
sua pele como trincheiras. Defoe se aproxima, com a nyxia outra
vez se transformando no traje habitual. Ele se agacha e levanta
Kaya com um dos braços. Apoio o restante do peso dela sobre mim
e nós a levamos para fora. A escuridão borra a minha visão
periférica.
Isso não é real; não pode estar acontecendo.
– Ela não está respirando! – grito. – Ela não está respirando!
E também não está se movendo.
– Meu Deus, ela não está respirando.
Defoe fecha a porta e a deita no chão. Ouço o som de passos.
Kaya fica olhando para o teto, com os olhos vermelhos. Vandemeer
e outros funcionários aparecem. A esperança acende dentro de
mim. Eles podem salvá-la. Precisam salvá-la. Dou um passo atrás
enquanto eles a cercam. Vandemeer começa uma respiração boca
a boca. Outro funcionário prepara o desfibrilador. A eletricidade
percorre o corpo dela. Vandemeer sopra dentro de sua boca. Sua
mão massageia o peito dela. Espero pelo final feliz. A respiração
desesperada. Os olhos abertos piscando. Uma promessa de que o
fim não chegou.
Uma promessa que não vem. Vandemeer se afasta. Sua
expressão é desolada.
– Hora da morte, 21h02.
Enquanto me levam dali, dou uma última olhada em Kaya. Ela
parece uma pétala caída, arrancada antes da hora. Ninguém fecha
seus olhos, que continuam olhando para o mundo deixado para trás.
Eu me lembro do segundo livro que lemos juntos. Uma ponte para
terras imaginárias. Lembro que os novos mundos existiam para
serem explorados juntos, mas também me recordo do astronauta
solitário e de sua amiga morta. Seu coração vazio e a ausência
aterradora dela. Não preciso fingir que entendo o garoto do livro.
Não mais.
DIA 100, 22h15
A bordo da Gênesis 11

– Tem certeza? – Vandemeer pergunta outra vez.


Faço que sim com a cabeça:
– Era um adamita.
– A bordo da maldita nave – ele diz baixinho. Seus olhos se voltam
para o relógio. Ele costuma medir as palavras com cuidado, porque
a Babel está sempre à escuta. Pela primeira vez, me dou conta de
que ele é tão vigiado quanto eu. – É a primeira vez que eu ouço
falar disso.
– Ele estava todo amarrado. Sendo torturado. Foi por isso que o
adamita matou Kaya. Pensou que ela fosse um deles. Então a
matou, para tentar fugir.
Vandemeer fica sem graça.
– Por que você estava lá, Emmett?
Não sei o que responder. Dizer que foi culpa de Kaya parece uma
traição. Foi ela que quis continuar investigando. Que quis ir até o
fim. Mas, se eu não tivesse roubado o cartão, ela ainda estaria viva.
É isso que ele quer ouvir? A culpa me domina mais e mais a cada
segundo que passa. Sem saber como me consolar, Vandemeer se
ocupa dos curativos na minha mão pela milésima vez. Centenas de
pequenos cortes se abriram quando tentei arrancar o colar de nyxia
de Kaya. Mas os verdadeiros traumas não estão na pele. Eu nunca
vou me esquecer do círculo vermelho em torno do pescoço fino
dela. Nunca vou me esquecer daqueles olhos escuros e brincalhões
tingidos de vermelho. Nunca vou me perdoar.
Dormir é impossível. Vandemeer me conecta a máquinas,
forçando-me a repousar. Pesadelos me fazem acordar gritando de
hora em hora. Drogado e exausto, não estou pronto para a visita de
Defoe quando ele aparece. Não sei em que dia estamos ou quanto
da competição já perdi. Mal consigo saber se ainda estou vivo. Ele
aparece no pé da minha cama hospitalar, e a luz rebate em seu traje
impecável.
– Emmett – ele começa. – Vim discutir sua punição.
Essa ideia quase me faz rir. Não há nada que possam fazer para
me punir. O que quer que seja, não vai ser suficiente. Ele por acaso
sabe o que Kaya significava para mim? Tem alguma noção do tipo
de pessoa que perdemos? Ele não tem o poder de me castigar nem
de me perdoar. Ninguém tem.
– A vara e a repreensão – Defoe continua. – Erone usou a vara da
disciplina. A vara diz respeito aos erros passados; a repreensão
orienta as ações futuras. Juntas elas trazem a sabedoria. Espero
que a morte de Kaya tenha ensinado a você o sentido das regras, o
objetivo por trás das limitações que impusemos.
A raiva se espalha dentro de mim. A culpa é minha, mas a Babel
não está isenta de responsabilidade nessa história.
– Ele estava sendo torturado – respondo. – Foi por isso que
atacou a gente.
– Estávamos fazendo testes – rebate Defoe. – Assim como os
adamitas fizeram com nosso pessoal.
– Ele matou Kaya porque pensou que ela era uma de vocês.
Defoe me encara. Seu rosto não revela nada.
– Então foi por culpa nossa que vocês ignoraram as regras? É isso
o que você acha?
Lágrimas escorrem pelo meu rosto. Não, não é isso o que eu
acho. Sei da minha responsabilidade em tudo. Defoe vira sua tela
portátil para mim com o placar. Minha pontuação sofreu uma
tremenda baixa.
– Subtraímos 30 mil pontos. Dez mil por roubar de seu médico.
Dez mil por desobedecer os protocolos espaciais. Dez mil por
colocar em risco a vida de todos na nave.
– Pensa que eu ligo para a minha pontuação? Acha mesmo que
faz diferença agora?
Defoe ajeita a gravata já alinhada.
– Então é assim que vai reagir? Kaya morreu e agora você está
desistindo? Pensei que a vida dela valesse mais para você. Para
sua informação, o adamita foi removido da nave. Você está proibido
de mencionar a presença dele para qualquer um. E não vai
desobedecer as regras de novo. E, se o conheço bem, sei que não
vai desrespeitar a memória de Kaya desistindo da competição. Ela
merece mais.
Ele se retira do quarto. Eu me recosto na cama, com a respiração
disparada. Pela milésima vez, a lembrança de Kaya parte meu
coração. Defoe está certo, e isso me enche de raiva. Fico com raiva
de ser ele a me lembrar de quem Kaya era e o que iria querer. Sei
que vou lutar em nome dela. Sei que vou seguir em frente, apesar
de não merecer estar aqui na ausência dela.
Defoe acha que me conhece. Sabe que não vou me perdoar por
isso, mas não percebe que tampouco vou perdoar a Babel. Por
baixo da fachada pomposa, a Babel é perigosa e sinistra como nós
sempre desconfiamos que fosse. Pela maneira como trataram a
morte de Kaya. Pela tortura do adamita. Por tudo.
Eles estão dispostos a tudo para conseguirem o que querem. Meu
coração dispara só de pensar. Pensei que nós poderíamos ficar no
controle. Se elevássemos nosso nível no jogo, poderíamos ditar os
termos para a Babel, porque somos o ingresso deles em Éden. Mas
não é verdade. Sem eles, estamos à deriva no espaço. A bilhões de
quilômetros de casa e sem um mínimo de controle sobre qualquer
coisa que nos aconteça.
A verdade é brutalmente simples: somos escravos. A Babel é dona
da comida, do dinheiro e da espaçonave. A Babel vai escolher quem
de nós vai descer em Éden. Se nos comportarmos bem, talvez
possamos voltar para casa. A morte de Kaya tornou a verdade
cristalina. Sei que só me resta uma coisa a fazer, por ela, por mim e
por toda a minha família.
Se a Babel vai nos manter acorrentados, vou para um lugar onde
eles não podem me seguir.
Vou para Éden.
DIA 101, 8h01
A bordo da Gênesis 11

A eficiência da Babel não tem limites. Na manhã seguinte, o nome


de Kaya é riscado no placar. Os demais conversam sobre isso na
mesa do café da manhã. Acham que ela desistiu. Eu não consigo
dar a notícia. Eles merecem ouvi-la de alguém que não seja da
Babel, mas estou com vergonha até de olhá-los nos olhos. Faço um
prato para matar o tempo, mas não como nada.
Defoe aparece. Seu traje preto poderia ser um sinal indicativo de
luto, mas seus olhos e sua voz não demonstram nenhuma tristeza
quando a notícia é dada. Para ele, Kaya era só uma potencial
funcionária. Fico com ódio dele.
– Ontem à noite, Kaya morreu em um acidente – diz Defoe.
A verdade cai como um raio. Os outros ficam em silêncio. Minha
boca implora para dar uma explicação, dizer que foi tudo culpa da
Babel, mas Defoe me silencia com um olhar. Ele oferece um tempo
para os demais reagirem. Isso vai servir de lição. Ninguém está
seguro. Qualquer um pode tombar, mesmo o mais inteligente do
grupo. Escuto-os cochicharem e fico com raiva de mim mesmo por
não dizer nada. Isso não está certo.
– Restam apenas nove – Defoe prossegue.
Ele faz outra pausa para absorvermos a informação. Quero sentir
raiva dele, mas pensei a mesma coisa quando acordei. Uma pessoa
a menos para tomar meu lugar. É impossível remover de mim a
sujeira por um pensamento como esse, nem com toda a água
quente disponível na Gênesis 11.
– Isso muda nossa situação. Não estava nos planos perder
ninguém antes de chegarmos a Éden. Sem Kaya, temos apenas
três garotas na competição. Nossas projeções revelam que no
mínimo três são necessárias para o funcionamento ideal da equipe.
Pensamos que isso aconteceria naturalmente ao longo da
competição, mas a morte de Kaya nos forçou a uma decisão. – A
explicação de Defoe faz Roathy dar um murro na mesa.
Estou exausto e atordoado demais para entender. Os outros ficam
tensos, então Defoe continua:
– Jazzy, Isadora, Azima… vocês vão para Éden.
As três parecem em choque. Azima provavelmente não perderia,
mas Jazzy e Isadora estão entre as quatro piores pontuações. Já
seria difícil alcançá-las depois de ser punido. Agora nem isso dá
mais para eu fazer. Olho para o placar.

1. LONGWEI 373.900 pontos


2. HILAL 365.300 pontos
3. AZIMA 364.750 pontos
4. KATSU 363.450 pontos
5. KAYA 351.050 pontos
6. JAIME 328.200 pontos
7. ISADORA 292.080 pontos
8. JASMINE 283.050 pontos
9. ROATHY 277.324 pontos
10. EMMETT 268.350 pontos

Meus pontos foram subtraídos. A punição da Babel pela minha


culpa no caso é ínfima. Estou a apenas 9 mil pontos de Roathy, mas
é como se estivesse a 90 mil. Sem Kaya por aqui, como vou
conseguir continuar?
Por um instante, fico preocupado com a vitória, com o dinheiro,
com a volta para casa. Mas passa rápido, e a preocupação acaba
assim que vejo o nome de Kaya riscado no placar. Fico com raiva de
Defoe por direcionar nossa atenção à competição em vez de pensar
nela. Odeio o fato de estarmos focados em superar um ao outro em
vez de homenagear a pessoa que perdemos. A pessoa que matei. É
o tipo de ódio e raiva que não pode ser convertido em outra coisa,
que não vira combustível.
A semana avança, e eu perco em tudo. No tanque de natação,
parece que estou me afogando. Na sala de aula, as vozes soam
distantes. Na arena, não consigo desferir um único golpe. Hilal
senta-se ao meu lado em todas as refeições.
– Se precisar conversar, estou aqui – ele diz.
Faço que não com a cabeça; ele não insiste. Não pergunta sobre
os pontos que perdi nem sobre o que aconteceu. Simplesmente
senta-se ao meu lado e honra a ausência de Kaya com sua
presença silenciosa. Não consigo encontrar palavras para
agradecer.
Defoe é o único que sabe do ocorrido e é o único que se comporta
como se nada tivesse mudado. Percebo que, para ele, nada mudou
mesmo. Arquivo esse pensamento na letra B de babaca. Ele nos
conduz à Sala do Coelho para mais um dia interminável do que
parece ser uma semana interminável. Fico imóvel como um cadáver
até ouvir Jaime dizer alguma coisa sobre a necessidade de uma
nova estratégia. Solto uma gargalhada repentina e assustadora.
Mas não consigo segurar, e me lembro da última coisa que Kaya me
falou antes de morrer. Sua nova estratégia para a Sala do Coelho.
– Certo – falo. – Vou dizer o que vamos fazer. Pela Kaya.
Azima, Isadora, Jaime e eu nos alinhamos no centro do recinto.
Defoe passa o dedo na tela portátil e a sala ganha vida. A floresta
digital aparece na tela e a corrida começa. Isadora se posiciona na
extrema esquerda, como planejamos. Ela estabelece um ritmo
estável enquanto Jaime, Azima e eu transformamos nossos anéis
de nyxia em escudos de mão. Quando o passo acelera, derivamos
para o centro da sala, onde a rede nos separa da outra equipe. A
um sinal meu, todos saltamos para o território inimigo.
– Pela Kaya! – grito.
Meu grito de batalha ecoa, e o outro time fica apavorado quando
avançamos sobre sua formação. O caos se estabelece. Dou uma
ombrada em Longwei e estendo a perna para derrubar Hilal. Jazzy
quase escapa, mas Azima a segura pelo braço, e o grupo inteiro
desaba, todos enroscados uns nos outros. O pé de alguém se
engancha no meu pescoço, mas só consigo dar risada enquanto
somos arrastados para a parede do fundo. As luzes começam a
piscar como fogos de artifício.
Mas Isadora ainda está correndo pela nossa equipe, e alguns
segundos depois a esteira para.
Defoe parece radiante e bate palmas para nós.
– Finalmente alguém pensou fora da caixinha.
Ele está olhando para mim, como se o plano fosse meu.
– Foi a Kaya – respondo com firmeza. – Foi ela que bolou tudo.
– Pela Kaya – Azima repete.
Ela passa um braço em torno de mim, e os outros se aproximam.
Eles repetem a frase enquanto saímos juntos da Sala do Coelho.
Nesta noite, fico um tempo na sala multiuso. Estou com medo de
voltar aos meus aposentos sem Kaya. Com medo de acordar para o
primeiro sabá sem minha companheira de competição e minha
amiga. Mas os outros aos poucos vão se recolhendo, e sou
obrigado a voltar para o lugar onde a conheci.
Meu traje brilha, e a porta se abre. Vou para o meu dormitório e
começo a tirar a roupa. O espelho não mostra que meu coração
está partido. Não existe um indicador que revele meu desespero. O
equipamento monitora os batimentos e conta as calorias, como se
isso fosse a única medida da vida. Eu me sento na beirada da cama
e escuto uma batida na porta. O som ecoa pelas paredes. Arrasto
meu traje até lá para abrir.
Meus amigos invadem o quarto.
Katsu está com um pote de sorvete aberto.
– Festa do pijama! – ele grita.
Hilal traz travesseiros e cobertas, que joga no chão antes de me
dar um abraço. Jazzy, Azima e Jaime fazem fila atrás dele.
– Obrigado – murmuro. – Muito obrigado.
– Foi ideia dele – diz Hilal, apontando com a cabeça para Jaime.
Jaime olha para mim e assente.
– A gente não queria que você ficasse sozinho.
Sua gentileza me deixa no chão. Eu estendo a mão, e nos
cumprimentamos.
– Me desculpa por tudo – digo a ele. – Por tudo aquilo lá no
começo.
Ele sacode a cabeça.
– Não foi nada. Já ficou no passado.
Depois que Jaime falou sobre sua ideia com os demais, Katsu
desceu para a cozinha e roubou o sorvete. Hilal encontrou filmes
para ver e Jazzy conseguiu os travesseiros extras.
A noite passa em um piscar de olhos. Comemos um pote de
sorvete enorme e vemos desenhos antigos da Disney em vários
idiomas. Todos homenageiam Kaya dizendo coisas legais sobre ela.
Fico surpreso com a quantidade de gestos gentis que ela oferecia
aos demais. No meu egoísmo, pensei que só conversasse assim
comigo, mas em questão de poucos meses ela ajudou a todos de
diversas formas.
Durmo no chão perto de Hilal. Katsu capota ao lado dele,
roncando como um motor a diesel. Jazzy e Azima ficam com a
minha cama, e Jaime vai se deitar no sofá. A ausência de Kaya une
os garotos e as garotas destruídos, mesmo que só por uma noite.
– Não é só um jornalistazinho vagabundo atrás de algum dinheiro –
explica Roman. – A reportagem saiu na Time. Alguns dos nossos
objetivos já estão comprometidos, em princípio.
Nosso coordenador de operações na Terra passa a mão nos
cabelos desalinhados. Roman Beckett está exaltado, e seu tom é de
urgência. Ele se tornou sócio porque algumas de suas decisões
operacionais iniciais colocaram a Babel Comunicações em uma rota
ascendente. Mas o brilho intenso também pode ser ofuscado, e
esse erro pode ser considerado imperdoável.
Carrego a reportagem na minha tela portátil. São 23 páginas
documentando a vida e o histórico de cada um dos competidores
que recrutamos. Informações quase tão bem apuradas como as que
temos. Em resumo, um trabalho impressionante. O fato de terem
rastreado cada casa que visitamos me cheira a traição. O trabalho
de Roman é calar os detratores e manter os segredos da companhia
entre quatro paredes, onde precisam estar. Ele não conseguiu fazer
isso, não desta vez.
No quadrado acima dele na tela, Katherine Ford prende uma
mecha de cabelos loiros atrás da orelha direita. Ela é a nossa rainha
da tecnologia e especialista em desenvolvimento. Roman passou os
últimos 30 minutos tentando transferir parte de seu fardo para os
ombros dela, o que não a agradou nem um pouco.
– Nossos programas de criptografia estavam ativos – explica
Katherine. – Isso aconteceu numa área que é de sua
responsabilidade, Roman. Não tenta envolver meu departamento.
– Sei disso, Katherine – retruca Roman. – Eles usaram uma
tecnologia à moda antiga para evitar detecção. Película física.
Máquinas de escrever. Upload de um nanossegundo direto para a
imprensa digital.
– Bando de aproveitadores – Davin Requin resmunga. – Não têm
nada melhor que fazer.
Requin. Um homem frio, mais frio impossível. Preciso me segurar
para não esfregar os olhos. Passo tempo demais olhando para
telas. Esta reunião nem deveria estar acontecendo. Faltam alguns
meses para nossa próxima teleconferência, mas a emergência
exigiu nossa atenção. Agora o mundo todo sabe que estamos
levando recrutas para o espaço. Todos os grandes veículos de
imprensa estão produzindo matérias especiais com diferentes
pontos de vista sobre o que estamos fazendo e estão elaborando
teorias sobre as ligações entre os jovens que recrutamos.
– Aproveitadores? – pergunto baixinho. – Só porque nós fomos os
espionados dessa vez, significa que eles são vigaristas? Mais uma
vez, você está vendo as coisas de uma perspectiva limitada,
Requin.
Requin dá de ombros.
– Você entendeu o que eu quis dizer. Tudo isso só serve para
alimentar os viciados em conspirações que enlouquecem com esse
tipo de coisa. Eles querem arrancar a cortina e ver o mágico. Bom
para eles. Só não sabem que temos 20 cortinas e 20 mágicos.
Temos tantas armadilhas que às vezes até eu esqueço onde estão.
Então podem ir em frente. Que fiquem pensando que sabem alguma
coisa. Não muda nada nos nossos planos. Não se esqueçam de que
estamos sozinhos aqui.
Roman assente com a cabeça, mas o olhar de Katherine é mais
afiado. Ela enxerga o mesmo que eu. Essa reportagem não é um
arranhão que vai desaparecer; é uma ferida que vai infeccionar.
– Você entende o que isso significa, não? – questiono. – Eles nos
conhecem o suficiente para saber que informações descobriríamos
e como as descobriríamos e como poderiam desviar de nós.
Aproveitadores? Acho que estão mais para potenciais funcionários.
Roman solta um risinho de deboche.
– Você só pode estar brincando.
– Claro que estou. Nem todo problema pode ser resolvido com
dinheiro. Essa reportagem colocou um microscópio sobre nós,
Roman. É uma porta aberta para as outras companhias também. Se
dois jornalistas assalariados são capazes de pôr um saco na nossa
cabeça e dar umas porradas, o que você acha que profissionais
pagos só para vir atrás de nós vão conseguir fazer?
Roman não ri desta vez. Ele bufa e diz:
– Eu vou dar um jeito nisso.
– Não vai, não. – Aciono minha tela portátil. Um círculo azul
aparece no canto da tela deles. – Anexei uma explicação oficial,
com respostas às perguntas mais previsíveis, e uma meta para
nossa equipe de teledifusão para as próximas semanas. O primeiro
passo é começar a adiantar os benefícios financeiros para as
famílias. Vamos fazer exibições públicas de generosidade. A
implementação pode começar amanhã.
Roman parece furioso, mas os três começam a fazer o download.
Setas verdes aparecem em torno dos círculos azuis, e o documento
é copiado para a memória física do dispositivo deles, e eles passam
os olhos pela sinopse e pelo sumário. Requin é o primeiro a terminar
a leitura.
– Excelente. Bom, isso resolve a questão.
Katherine concorda com um aceno.
– Da próxima vez, seria melhor se Roman resolvesse seus
próprios problemas.
– Concordo. Tenho meu próprio circo para administrar – digo.
O pescoço de Roman fica vermelho, mas desta vez ele mantém a
boca fechada, sua primeira atitude sensata do dia. Ele não está fora
do jogo, ainda não. Mas devia ter vigiado os jornalistas e devia ter
descoberto o que estava acontecendo. Quando a pessoa fica
preguiçosa, erros acontecem. Todos nós cometemos erros no
passado, mas atualmente isso vem acontecendo apenas com
Roman. A Babel não protege os mais fracos. Nós os decepamos,
reconstruímos e avançamos. Roman sabe disso, e sabe quão perto
está de ser limado.
– Por falar em circo – diz Requin, mudando de assunto com um
sorriso. – Estamos prontos para você, Marcus. A Aquavia está cem
por cento funcional. Um passeio para lá de divertido, mesmo para
um velhote.
É impossível não sorrir.
– É melhor você não estar trapaceando.
Requin solta uma risada seca.
– Não preciso trapacear, meu velho amigo. Não desta vez.
– Topa fazer uma aposta? – pergunto perigosamente.
A pergunta faz o sorriso desaparecer do rosto dele. Nossas
apostas são de dimensões planetárias. Dois anos atrás, Roman
perdeu um lote de Picassos para Katherine no Kentucky Derby.
Nunca perdi uma aposta, porque tenho o hábito de só pôr dinheiro
na mesa quando sei qual vai ser o resultado.
Requin se recosta na cadeira.
– Que tal uma aposta mais específica?
– Específica como? – questiono.
– A escolha do comandante.
Katherine sorriu.
– Posso participar dessa parada?
– Não, isso não seria justo – respondo. – É uma aposta entre
veteranos.
– Tudo bem – Katherine responde. – Vou deixar a brincadeira para
vocês. Tenho uma empresa para cuidar.
A tela dela se apaga. Roman sai em seguida, agradecido por ter
um pretexto para abandonar a conversa, e ficamos só Requin e eu
na teleconferência. Cada minuto de comunicação aqui custa
milhões, então vou direto ao assunto.
– Erone quase se libertou das amarras. Dois recrutas roubaram
um cartão de acesso. Ele pegou um pouco de nyxia, mas agi a
tempo de impedi-lo. Nós perdemos Kaya.
– Talvez você devesse ter mais cautela – Requin sugere
inutilmente. – Se ele conseguisse passar por você, teria deixado a
nave em pedaços.
– Duvido – respondo. – Se conheço Erone, ele teria mudado a rota
do voo para deixar a sua nave em pedaços. Ele gosta de mim. E
odeia você.
– Bom, fui eu que o abduzi – Requin diz aos risos.
– Mais alguma coisa?
Requin franze a testa.
– Espera, e a nossa aposta?
– Não, obrigado – respondo. – Não faço apostas sabendo que vou
perder.
– E como sabe disso?
– Eu acordo cedo toda manhã. – Enfatizo tanto quanto possível a
última palavra. Requin ri como um garotinho que é pego roubando
doces. – Você conhece o ditado sobre quem cedo madruga e tudo
mais.
– Então está admitindo a derrota.
– Sim. A não ser que eu consiga usar os ases que tenho
escondidos na manga.
– Até, então. – Requin balança a cabeça, e a tela se apaga.
DIA 188, 7h48
A bordo da Gênesis 11

1. LONGWEI 686.900 pontos


2. KATSU 633.450 pontos
3. HILAL 529.300 pontos
4. AZIMA 528.750 pontos
5. JAIME 519.200 pontos
6. JASMINE 474.050 pontos
7. ROATHY 470.324 pontos
8. EMMETT 468.350 pontos
9. ISADORA 413.080 pontos
10. KAYA 351.050 pontos

Vandemeer está à espera na sala de estar. Por algumas semanas


depois da morte de Kaya, ele e eu nos tornamos inúteis um para o
outro. Ele negligenciou seus deveres e eu, os meus. Nós parecemos
superar isso ao mesmo tempo. O compromisso dele com a Babel se
tornou secundário para mim. Por Kaya, estamos lutando juntos.
Tenho quase certeza de que Vandemeer acha que, se conseguir
me levar a Éden, vai conseguir se perdoar pela falha de não ter
protegido Kaya. Não quero ser a pessoa a lhe dizer que não vai dar
certo. As coisas não funcionam assim. A culpa nunca vai embora.
Pode ser ignorada, mas sempre vai estar lá, à espera.
Depois de fazer meu alongamento, vou até a porta do dormitório
de Kaya e baixo a cabeça. Não sei muita coisa sobre Deus ou
Jesus, mas imagino que estamos mais perto deles no espaço.
Talvez eles possam me ouvir, apesar da falta de intimidade. Eu digo
as mesmas palavras todos os dias.
Vandemeer me lança um olhar depois disso.
– Para que você reza?
– Para ter sossego.
– Para quem você reza?
– Não sei.
O café da manhã passa depressa. Nós todos nos tratamos como
amigos até sermos obrigados a ser inimigos. Esse vai e vem é mais
cansativo do que seria um ódio constante. Às vezes chego a pensar
que Longwei tem razão. Ele não quer perder tempo com amizades.
Talvez seja por isso que se sai tão bem. Todas as suas energias
estão voltadas para o tratamento de inimigo que dispensa a nós.
Pode ser mais fácil assim.
Mas a morte de Kaya me fez mudar, e mudar tudo. Não consigo
voltar a me concentrar em uma competição implacável e em vitórias
impiedosas. Não quero voltar a viver assim. Kaya nos fazia rir e
sorrir. Oferecia ajuda a quem precisasse, mesmo a quem não
tivesse coragem de pedir. Por ela, tento ser melhor. Hilal continua se
propondo a conversar, mas não sou capaz de compartilhar minha
vergonha.
A dura rotina dos meses transformou todas as competições. Novas
estratégias, novas tendências, novas formas de se ferir. A maioria
dos lugares carrega o legado de Kaya. Sua mente desmembrava
cada desafio em partes menores, que solucionava como se fossem
simples quebra-cabeças. Ver os demais copiando suas táticas
depois de tanto tempo faz a ferida no meu coração se tornar um
pouco maior e mais profunda.
Seguindo a rotina, nós nos encaminhamos para a arena. A esta
altura, todos são letais. A prática leva à perfeição, e a Babel nos
transformou em assassinos consumados. A única coisa que resta é
descobrir por quê.
O regulamento da Babel também mudou. As garotas são imunes
agora, têm vaga garantida. Vandemeer vem reclamando disso há
meses. Ele considera as novas regras antiéticas. Passou semanas
vasculhando meus contratos à procura de uma brecha para reverter
essa decisão. Mas há tantas pegadinhas escondidas nas cláusulas
da Babel que no fim ele desiste. Eu não perco meu tempo me
incomodando com o fato de a Babel ter classificado as garotas,
sendo justo ou não.
Afinal, não importa. A Babel se pronunciou. E, quando a Babel se
pronuncia, a ordem equivale a uma inscrição em pedra. Só o que
posso fazer é tentar sair vencedor, apesar de tudo. Não é fácil.
Isadora não precisa mais lutar por si, então luta por Roathy. Contra
as outras garotas, ela relaxa. Contra nós, porém, briga com unhas e
dentes para conquistar cada ponto. Os dois se isolam na maior
parte do tempo agora.
O avatar de Kaya aparece brevemente na tela. Em oito segundos,
a vitória por WO é cedida a Azima. É tempo suficiente para me
transportar àquela sala com luzes fortes e coisas obscuras. Afasto
essa visão da minha cabeça quando o avatar de Kaya é substituído.
Detesto o fato de a imagem que eu guardava dela nas minhas
lembranças ter sido trocada pela projeção digital criada pela Babel.
Ela era muito mais que isso, mais do que seria possível captar com
pixels e luzes.
A seguir aparecem Longwei e Hilal.
Por algumas semanas, Longwei tentou forçar uma rivalidade com
Hilal. Quis começar uma guerra com o meu amigo pela preferência
de Azima. Mas não há como odiar por muito tempo alguém que não
retribui a hostilidade. As chances de a rivalidade se consolidar foram
destruídas de vez quando Azima passou a acreditar que os
adamitas de Éden tinham mais potencial como candidatos a noivo.
Hilal demorou uns bons dias para superar o coração partido depois
de ouvir essa.
O primeiro e o terceiro colocados trocam uma saudação no centro
da arena. Defoe dá o sinal, e Hilal avança, mas Longwei não
demora muito para se camuflar no cenário. Nossos olhos
acompanham a ação quando Longwei usa o trampolim para saltar
até o segundo patamar e desaparecer ali. De nosso ponto de vista,
ainda conseguimos ver o alto de sua cabeça se movimentando pela
borda exterior. Em seguida Longwei pula para o terceiro nível.
Agachado, ele circula a arena quadrada junto à parede acolchoada.
Hilal está avançando com cautela no segundo patamar, vasculhando
todas as reentrâncias em que as pessoas geralmente se escondem.
Ele é mais alto que Longwei, mais visível. Todos observamos
quando as trajetórias dos dois se aproximam de um ponto de
intersecção.
Então Longwei salta.
Seu tufo de cabelos sobe de uma vez, e seus olhos se arregalam
quando ele decola. Hilal ergue as machadinhas, mas não a tempo.
O impacto arranca as duas armas de suas mãos, e ele vai
cambaleando na direção da borda do segundo pavimento. Antes
que possa se recuperar, Longwei desfere um chute em sua coluna
lombar, e Hilal sai voando pelos ares. Soltamos um suspiro coletivo
quando ele despenca lá de cima. O ângulo de seu corpo está todo
errado, e ele estende uma das pernas antes do impacto. Meu
estômago revira quando ouço o som do osso se quebrando. Hilal
está caído em uma poça vermelha. À vista de todos, o osso
branquíssimo desponta para fora do traje preto. Essa visão faz
todos enlouquecerem.
Vou correndo até lá. A dor contorce o rosto de Hilal, e gritos
agudos são despejados em volume máximo de seus pulmões. Antes
que eu possa ir atrás de Longwei, ele pula lá para baixo. Mas, em
vez de ajudar, ele baixa a espada de fio cego de nyxia para o
pescoço de Hilal. Na tela, o avatar de Hilal é decapitado. O
verdadeiro Hilal está berrando de dor, e Longwei se vira e sai
andando. A raiva tinge meu mundo de vermelho. Eu me afasto de
Hilal, ciente de que os médicos estão a postos e vão saber ajudá-lo
melhor que eu. Longwei não percebe que estou chegando. Um
segundo depois, tomo impulso e pulo em cima dele. A colisão faz
meu corpo tremer da cabeça aos pés. Saímos rolando pelo chão, e
eu acabo por cima.
– Seu maldito.
Ele tenta escapar esperneando, mas sou mais forte. Consigo
prender seus braços com meus joelhos e arrancar de seu rosto a
máscara de nyxia, que sai quicando pelo chão. Acerto um jab de
cima para baixo. A cabeça dele bate no piso. Com o nariz
sangrando, ele cospe palavras em mandarim. Eu as ignoro, afasto
sua mão e dou outro soco. Com mais dois golpes, os olhos dele
reviram.
Ainda estou gritando com ele, berrando todos os palavrões que
conheço, mas Vandemeer me puxa para longe. Consigo acertar um
chute nas costelas de Longwei antes que Vandemeer me arraste
para fora da arena. Não encaro nenhum dos outros, mas posso
sentir seus olhares sobre mim quando sou conduzido para fora do
recinto.
DIA 188, 13h13
A bordo da Gênesis 11

Vandemeer nem pega muito pesado comigo. Na verdade, me obriga


a fazer ioga. Eu inspiro, expiro, me alongo, mexo os ombros e sinto
a raiva se dissipando nos recônditos mais distantes do meu cérebro.
– Eu preciso fazer uma visita para ele – digo quando terminamos.
– Hilal? – pergunta Vandemeer.
– Quando eu estava lá, pensei que todo mundo tivesse me
abandonado. Não posso deixar que ele se sinta assim.
– Seu ferimento foi causado diretamente pela nyxia. O protocolo
proíbe visitas nessas situações. A lesão de Hilal ocorreu por vias
naturais. Você vai poder visitá-lo, sem problemas. Vou com você até
lá depois da Sala do Coelho – Vandemeer se oferece. – O que
acha?
– Acho uma merda. – Os pontos vêm antes das pessoas, é isso
que a Babel tem nos ensinado. Era assim que eu pensava antes do
que aconteceu com Kaya. – Fica parecendo que eu me preocupo
mais com a minha pontuação do que com meu amigo.
– Pensa bem, Emmett – Vandemeer argumenta, impaciente. – Ele
vai precisar passar por uma cirurgia. Não vai poder ver você, e você
não vai poder vê-lo. Só à noite. Não faz sentido desperdiçar uma
oportunidade de se manter na luta. Você se esforçou demais para
isso.
Cerro os dentes. Ele tem razão. Mesmo assim, isso faz com que
eu me sinta um virado.
– Eles ainda estão almoçando?
– Devem estar indo para a Sala do Coelho – ele diz. – Eu te
acompanho até lá.
Só o que consigo ver na minha mente é o osso de Hilal apontando
para fora do traje. Enquanto caminhamos, Vandemeer tenta me
lembrar das características climáticas que estudamos antes. Mas
estou abalado demais.
Pergunto sobre Hilal:
– Quanto tempo vai demorar para ele se recuperar?
Vandemeer faz uma careta.
– Se fosse na Terra, demoraria um ano.
– Mas e aqui? – pergunto. – Não foi um ferimento por nyxia, como
o meu.
– Não, não foi. Aqui vai ser bem mais rápido. Com placas e
parafusos de nyxia, tratamento avançado de sangue e reabilitação
muscular. Ele vai estar pronto em um mês.
– É uma eternidade.
Vandemeer me faz parar diante da Sala do Coelho.
– Sei que você gosta dele. Hilal é um ótimo garoto, com um
coração enorme. Mas restam poucos lugares para a viagem a Éden.
Estamos fazendo de tudo para que você garanta uma dessas vagas.
Não vamos desistir, certo?
Lanço um olhar cheio de culpa para ele e me junto à minha
equipe. Com Hilal na enfermaria, os dois times estão equiparados
numericamente. Não que isso faça diferença. Nos últimos meses,
nosso time vem promovendo massacres na Sala do Coelho como
um bando de tiranos. É mais uma maneira de homenagear a
memória de Kaya. Usamos as estratégias dela, e assim nunca
perdemos.
O fim da ilusão de que estamos em ambientes separados em
corridas distintas mudou tudo. Agora a rede precisa ser protegida.
Os grupos têm que saber quem mandar para o outro lado. Defoe
parou de colocar lobos digitais para nos perseguir. Agora nós
mesmos fazemos o papel dos lobos.
Uma rápida olhada revela que Longwei ainda está atordoado. Fico
surpreso por ele estar aqui. Me ofereço como voluntário para ir para
o outro lado. É sempre melhor ser agressivo contra um adversário
ferido. Jaime e Isadora vão guardar a parte anterior da separação
entre os times, e Azima é a escolhida para correr na extremidade
oposta, do nosso lado. Defoe fica na plataforma elevada como o
senhor do lugar. Com um leve movimento seu, a sala ganha vida.
Uma das nossas principais armas agora é a artimanha evasiva.
Quando a outra equipe vê um escudo, imagina que estamos
protegendo a fronteira. Quando vê as varas de salto, sabem que
vamos tentar invadir seu território. Manipulo meus anéis de nyxia na
forma de um escudo e me alinho com Jaime e Isadora. Com três
escudos em riste, nós aparentamos estar em uma formação
defensiva, na esperança de que Azima consiga se manter na corrida
por mais tempo que os integrantes da outra equipe.
Nossos olhos precisam estar sempre se deslocando entre a tela
do outro time e a nossa. Isso é bom para aguçar os sentidos em um
momento em que precisamos temer tudo o que nos cerca.
Percebemos quando Katsu e Roathy se aproximam da divisória.
Eles sincronizam os passos com os nossos, a apenas alguns
centímetros de distância, com somente a rede a nos separar. Os
dois estão com suas nyxia na forma de escudos acolchoados
padrão.
– Olha só esses virados! Eles não têm a menor chance – Katsu
grita.
– Nós ficaríamos com medo – grito em resposta – se você
conseguisse pular a rede, Katsu.
Ele solta uma gargalhada. Nossa atenção, porém, volta-se para a
frente quando os galhos baixos se materializam a partir da tela. Nos
agachamos e desviamos. Uso a distração para transformar meu
escudo em uma vara de salto. Apoio um dos joelhos no chão para
que a esteira me leve até o fundo da sala. Com um movimento
lateral fluido, invado o território inimigo.
Roathy demora alguns preciosos segundos para perceber. Ele dá
o alerta sobre a invasão, mas eu já estou do outro lado, perigoso e
faminto. Bancar o lobo é minha brincadeira favorita. Se tomar a
iniciativa cedo demais, a outra equipe pode se unir para eliminar a
ameaça. Caso entre em ação tarde demais, minha própria equipe
vai ficar em uma situação difícil. Quinze metros à frente e 10 metros
à direita, Longwei está correndo e flanqueando Jazzy. Katsu e
Roathy estão bem mais à frente. Se um deles ficar para trás, vai
parar direto nas mãos de Jaime e Isadora.
Nosso posicionamento é perfeito. A adrenalina chega ao nível
máximo quando penso em Longwei. Quero pôr as mãos nele de
novo. Minha vara de salto não foi revestida com óleo de nyxia para
se tornar inofensiva. Com um golpe bem dado, posso quebrar um
osso ou dois. Mais à frente, a trilha mergulha nos desfiladeiros.
Meus olhos se voltam para Jaime em busca de um sinal. Quando
ele começa a erguer o punho, Isadora bate nas pernas dele com o
escudo acolchoado. Ele solta um grito de dor e logo perde o ritmo,
atingindo a parede de trás antes mesmo de se dar conta do que
aconteceu. Isadora transforma seu escudo de novo em um anel e
para de correr.
Com um aceno discreto para Roathy, ela deixa que a esteira a
elimine da corrida. Resmungo um palavrão quando Roathy e Katsu
passam para o outro lado da barreira. Eles entram cambaleando no
nosso lado, e Azima os vê. Mas não há defesa possível. A traição
de Isadora é desconcertante, porque acrescenta ao jogo um
elemento que não deveria existir. Nossa equipe é nossa equipe.
Deixamos as rivalidades na porta e competimos juntos.
Mas Isadora tem um lugar garantido em Éden. Deveríamos saber
que em algum momento ela tiraria vantagem disso a favor de
Roathy. Olho ao redor e vejo que nossa situação só vai piorar. Isso
me força a acelerar o passo. Jazzy e Longwei correm por uma faixa
central bem estreita. Estão com bastões de nyxia nas mãos, como
eu. Foi Jazzy que os inventou, lembrando a vara que era usada pela
sua equipe de atletismo do colégio. As hastes flexíveis nos ajudam a
saltar distâncias que, de outro modo, seriam impossíveis de superar.
Ou então a passar uma rasteira em um competidor. Esse acréscimo
tornou o percurso da Babel mais administrável.
Com o canto do olho, vejo que Roathy e Katsu encurralaram
Azima. Eu me concentro nos meus passos e baixo minha vara de
salto ao chão. Ela enverga, enrijece e me faz saltar 2 metros no ar.
À minha direita, ouço um grito: Azima envolveu Katsu com os
braços. Os dois saem rolando na direção do abismo mais próximo, e
resta apenas Roathy do outro lado.
Quando as luzes piscam, sei que estou sozinho. Três contra um.
Meus pés aterrissam com um baque forte. Começo a correr a toda
velocidade. Com três passadas largas chego ainda mais perto de
Longwei e Jazzy. Antes que Roathy possa voltar para o nosso lado,
me posiciono na faixa central e cravo a vara de salto no chão outra
vez. Meus antebraços absorvem o impacto, e me projeto no ar. O
tempo parece parar. A nyxia escapa dos meus dedos, mas, em vez
de cair, o material se transforma. Estou perdido demais na
adrenalina do salto para dar alguma direção ao movimento.
A escuridão surge como se tivesse sido liberada por uma granada
de fumaça. Um grito de guerra ecoa dos meus pulmões, e meu
corpo fica paralelo ao chão.
Longwei está posicionando o escudo, mas a escuridão recai sobre
ele antes de mim. Minha nyxia pousa sobre seus ombros e se
prende nele como uma rede. Ele cambaleia quando eu aterrisso.
Meus ombros acertam Jazzy, mas de alguma forma conseguimos
nos manter de pé. Ela me lança um olhar apavorado antes de cravar
sua vara de salto no chão. Sei que, caso ela consiga saltar, não vou
mais alcançá-la. Desesperado, estendo os braços e dou um
empurrão com força na cintura dela. Jazzy solta um grito ao notar
que o ângulo de sua trajetória no ar vai levá-la ao desfiladeiro mais
próximo.
Pulo para a esquerda, equilibro o passo em meio às diversas
falhas que preciso saltar no caminho, e endireito o corpo. A
adrenalina me faz gargalhar. As luzes piscam, indicando que Jazzy
e Longwei estão eliminados. Sou como um titã vindo do céu. Roathy
está saltando a rede. Dou mais uma risada e me jogo sobre ele.
Roathy rola para a direita, mas com isso perde o equilíbrio e erra o
salto seguinte. Continuo correndo e ergo os punhos quando vejo
que ele fracassa.
Com mais um piscar das luzes, a esteira para. Caio de joelhos e
ergo os braços para comemorar a vitória. Jaime e Azima vêm
correndo do fundo da sala e se jogam sobre mim. Isadora me olha
feio, mas não estou nem aí. Me sinto como um conquistador das
galáxias; parece que eu também vou para Éden. Pela primeira vez
desde a morte de Kaya, sinto que mereci ganhar.
DIA 189, 2h13
A bordo da Gênesis 11

Minha animação não dura muito. O rosto pálido de Hilal me joga


para baixo. Seus raios X revelam mais implementos médicos do que
ossos. Os cirurgiões da Babel deixaram cicatrizes finíssimas em
cinco lugares diferentes. Sua perna direita foi totalmente depilada.
Nunca tinha notado o quanto ele é peludo. Como eu, está se
tornando um homem nas profundezas escuras do espaço. Como eu,
está preso a um leito hospitalar a milhões de quilômetros de casa e
das pessoas de que precisa em um momento como este.
Ele acorda com os olhos arregalados e perdidos. Mas suas
palavras saem bem claras.
– Emmett – ele diz com a voz rouca. – Ei, me faz um favor.
Pego sua mão e dou um apertão de leve.
– Qualquer coisa. O que você quer?
– Longwei. Diz que ele é um babaca por mim.
Uma risada escapa da minha garganta. Hilal consegue abrir um
meio sorriso antes de sacudir negativamente a cabeça.
– Estou brincando. Diz para ele que eu sei que foi um acidente.
Ele está perdoado.
Engulo em seco quando Hilal aperta minha mão e se recosta na
cama, fechando os olhos.
– Eu não quero que ele se sinta culpado – Hilal acrescenta, então
volta a dormir.
Não consigo fazer nada além de sorrir. Se estivesse em seu lugar,
estaria revoltado, mas Hilal é Hilal. Fico lá sentado ao lado do meu
amigo, tirando um cochilo ou outro até a manhã seguinte. Sei que
preciso ir embora ou vou perder o café da manhã.
– Eu vou voltar. Todos os dias. Como Kaya fez comigo. Prometo
que vou voltar.
Quando passo pelo placar, tento não reparar no quanto as
pontuações estão próximas. Estou um pouco à frente de Roathy
agora. Se a competição terminasse hoje, eu iria para Éden. Mas
ainda falta um bom tempo, e tenho trabalho pela frente. Mesmo com
as penalidades que a Babel aplicou contra mim pela morte de Kaya,
estou tão perto que consigo sentir o gosto da vitória. É como se eu
tivesse a mão de Kaya no meu ombro, dando-me um
empurrãozinho, dizendo-me para fazer o impossível.
E, depois do meu desempenho na Sala do Coelho, sei que mereço
ir a Éden. Que posso superar tudo. Vejo o placar de novo e sei que
um mês de ausência vai fazer Hilal afundar como uma pedra. Sua
classificação vai despencar e, mesmo se for superado por mim,
Roathy vai ultrapassar Hilal. Uma parte de mim se pergunta como
vou sobreviver em Éden sem meus dois amigos favoritos.
Longwei me dá uma encarada. Eu não desvio os olhos. Em vez
disso, busco o estrago que fiz. Ele está com o olho roxo e mais
algumas marcas de machucados. Na minha opinião, isso não basta
como castigo. Ele se vira para o outro lado e volto minha atenção
para o café da manhã. A mesa está praticamente em silêncio, sinal
de que Katsu está de mau humor. Se ele não está fazendo suas
piadinhas, ninguém conversa durante a refeição.
– E Hilal? – Azima pergunta. – Ele está bem?
– Dormiu a noite toda – conto. – Está se recuperando da cirurgia.
– Que hora para se machucar – Katsu comenta, amargo. – Mas é
bom para nós, eu acho.
– Pode parar de dar uma de virado – retruco. – A contusão dele foi
grave. Poderia ter acontecido com qualquer um de nós.
Katsu aponta o garfo para mim.
– Comigo não vai acontecer. Tenho uma estratégia secreta.
– Ah, tem? E qual é? – pergunta Jazzy, inclinando-se para a frente.
Katsu dá um tapinha na barriga. Ele emagreceu um pouco, mas
ainda tem 20 ou 30 quilos a mais que qualquer um dos
competidores.
– Manter uma proteção acolchoada, a maior possível. Assim fica
mais difícil para os ossos quebrarem.
Nós damos risada, porém não dura muito. Tem acontecido com
frequência ultimamente. As piadas não são tão engraçadas como
antes. A alegria escapa pelos nossos dedos porque estamos
sempre preocupados com outras coisas. Estamos mais que
destruídos. Agora estamos no estágio em que a Babel está juntando
os cacos e nos transformando em outra coisa. Vejo isso em mim e
também nos outros. Os planos de Defoe para nos transformar em
algo mais. Penso nos meus amigos na aula de matemática ou
dando voltas no campo na educação física. Como eles poderiam ser
tão rápidos, durões ou espertos como nós? Eles não querem o que
queremos. Não morreriam pelo que estamos dispostos a morrer.
Não viram o que estamos prestes a ver.
Mas então me lembro de Hilal. Ele não é um produto da Babel.
Tem uma alegria que ninguém é capaz de tirar.
– Longwei – digo ao me lembrar do pedido do meu amigo –, Hilal
falou que você está perdoado.
Todos ficam imóveis. Longwei se vira lentamente para mim.
– Pelo quê?
– Ele sabe que foi um acidente – respondo, tentando disfarçar o
ódio na voz. – Ele não quer que você se sinta culpado pela lesão. É
só um recado que ele me pediu para passar.
Por um instante, a fachada determinada de Longwei se desfaz.
Vejo um sofrimento mais profundo e sinistro em seus olhos, mas ele
se vira para o seu café da manhã. Os outros ficam em silêncio.
– É bem injusto que tenham passado certas pessoas na frente. –
Os olhos de Longwei se voltam rapidamente para Isadora. – Hilal é
boa gente. Se alguém merece um passe livre para Éden, é ele.
Antes que eu possa concordar, os médicos entram no refeitório.
Vandemeer está com cara de quem acabou de ser acordado com
um jato de água fria. Entro em pânico e olho ao redor da mesa.
Apenas Roathy e Hilal estão ausentes. Os demais médicos se
dirigem a seus competidores, e chego a temer pelo pior. Mais uma
morte. Mais uma Kaya.
– Que foi? – pergunto.
Vandemeer aponta com o queixo para a saída.
– A Estação Torre Espacial. Nós chegamos.
DIA 189, 20h28
A bordo da Gênesis 11

Somos reunidos nos fundos da nave, diante de uma parede preta


com o brilho característico da nyxia. Pela primeira vez, vemos a
tripulação inteira. A Gênesis 11 tem a população de um pequeno
vilarejo de astronautas e médicos, técnicos e militares. Todos
observam quando Defoe nos conduz ao recinto.
Somos enfileirados em ordem de classificação, entre a parede de
nyxia e a tripulação. Meu estômago se contrai de ansiedade. Há o
anúncio de que ainda restam 30 dias de competição e de que
estamos prontos para deixar a nave. Um novo desafio nos aguarda.
Seja qual for, sei que vai ser mais difícil. A Babel sempre exige mais,
não menos.
Meus olhos se dirigem para o placar à nossa direita:

1. LONGWEI 689.900 pontos


2. KATSU 640.450 pontos
3. AZIMA 532.750 pontos
4. HILAL 532.300 pontos
5. JAIME 520.200 pontos
6. JASMINE 478.050 pontos
7. EMMETT 473.350 pontos
8. ROATHY 471.324 pontos
9. ISADORA 415.080 pontos
10. KAYA 351.050 pontos
Oito de dez vão se classificar. Já estou à frente de Roathy, mas
não com uma vantagem que me faça dormir tranquilo à noite. Meus
olhos se voltam para a pontuação de Hilal. Ele vinha se saindo
muito bem, mas a lesão no final vai mantê-lo de fora por algumas
semanas. Sei que sou capaz de vencer Roathy, mas e se nós dois
alcançarmos Hilal? Fiz promessas a mim mesmo, à minha mãe e ao
meu pai, e à memória de Kaya. Eu vou para Éden. Se puder, vou
levar Hilal comigo.
Do lado de fora, ouço o som de metal contra metal. A nave
estremece, e consigo sentir a vibração nas minhas pernas. Defoe
está nos apresentando com alguma pompa. Embora nossos feitos
estejam estampados no placar, há outros que deixamos de lado e
esquecemos com o tempo. Somos viajantes espaciais. Astronautas.
Quando for mais velho, posso contar aos meus filhos sobre esta
viagem. Ninguém no meu bairro – nem PJ, nem os Manos de Elite –
vai ter uma história assim para compartilhar. Não vão poder dizer o
mesmo que eu.
Mas Éden ainda está fora de alcance. Mais 30 dias, penso, só
mais 30 dias.
Olho para Hilal. Seu médico o trouxe de cadeira de rodas, e está
com a perna imobilizada por uma camada rígida de nyxia, como se
fosse gesso. Mesmo nesta situação, seu sorriso ainda é visível por
baixo da máscara. Sempre sorrindo. O ruído de metal contra metal
cessa. Corrigimos a postura e endireitamos os ombros. Defoe se
separa da multidão para se colocar diante de nós. Seu traje de nyxia
brilha como a ponta de uma faca.
– Obrigado – ele diz com um gesto amplo. – À tripulação pela
precisão, aos médicos pela dedicação, aos competidores pela
resistência. Acabamos de completar uma viagem que marca o início
de uma nova era das jornadas da humanidade pelo espaço. É uma
honra estar à frente de uma missão como esta com pessoas como
vocês. O dia de hoje, os dias que o precederam e os dias que virão
serão registrados na história junto com os demais marcos do
progresso humano. Vocês serão lembrados.
Nossos médicos se adiantam para se colocar ao lado dos
pacientes. Há um espaço vazio à minha direita, onde Kaya deveria
estar. Vandemeer dá um tapinha no meu ombro quando Defoe avisa
que os astronautas e técnicos estão dispensados. Eles voltam para
as entranhas da nave e, quando seus passos se dispersam, Defoe
continua o discurso:
– Agora estamos entrando na fase seguinte da competição. São
mais 30 dias, e sem nenhum sabá. Nesse tempo, vocês vão poder
somar pontos em uma competição chamada Aquavia, em que vão
aprender a encarar condições similares às que encontrarão em
Éden. A única grande diferença é que vão fazer isso como uma
equipe.
Todos ficamos tensos. Alguns olhares de soslaio são trocados.
Nós não somos uma equipe. E, se tivermos que trabalhar juntos,
como vamos abrir vantagem? Como vamos acumular pontos e
impedir os outros de ganhar? Olho para o placar e abro um sorriso.
Será que acabei de vencer Roathy com base em um detalhe do
regulamento? Se ele não tiver como descontar a vantagem, esses
mil pontos à frente representam as condições ideais para mim.
Roathy e Isadora parecem estar preocupados com o contrário. O
rosto dele está tenso e furioso. O dela revela uma raiva mais bela e
sutil. Ótimo. Quero os dois irritados, sem foco e se sentindo sem
saída. Quero os dois distantes e desolados. Quero que paguem pelo
que tentaram fazer comigo.
– Podemos começar? – pergunta Defoe.
A pergunta nos leva de volta ao início da nossa jornada.
Percorremos um longo caminho, mas continuamos sem saber nada
do que nos espera atrás dessa parede. Ou de como Éden realmente
é. As paredes começam a se mover. Nós prendemos a respiração
quando a superfície se divide em duas. Um fio de luz separa as
beiradas de encaixe perfeito das paredes em retração. O som é de
um enorme motor em rotação. Ficamos observando e esperando a
abertura se alargar.
O ambiente diante de nós é amplo, de teto alto e bem iluminado.
Um homem se aproxima assim que a abertura se torna grande o
suficiente para permitir sua passagem. É um sujeito mais velho, e
seu um rosto tem um quê de familiar. Os cabelos são brancos, mas
desalinhados pelos movimentos constantes da mão entre os fios. Os
olhos são apagados, o nariz é torto e as rugas de preocupação são
visíveis. Seu traje de nyxia é parecido com o de Defoe. Enquanto as
paredes continuam a se dividir e ele e Defoe trocam cumprimentos,
nós os vemos pela primeira vez.
É uma visão desalentadora. Como encarar a nós mesmos na casa
dos espelhos de um parque de diversões. Os contornos básicos da
imagem são refletidos, mas os detalhes ficam distorcidos. Eles são
dez, contra nove de nós. Estão com máscaras de nyxia também,
mas os rostos e os olhos têm cores e expressões diferentes.
Ficamos encarando uns aos outros, sem reação.
Dez. Eles estão em dez. Nós éramos dez. A raiva atravessa a
minha garganta em vez do oxigênio. Não quero que essas dez
pessoas existam, porque sua presença só pode significar uma
coisa. Nós não somos os únicos lutando pela chance de participar
de uma expedição em Éden. Não somos a única Gênesis. Cada
novo rosto representa uma nova ameaça. Mais uma pessoa no meu
caminho.
A Babel mudou as regras do jogo de novo.
DIA 0, 20h42
A bordo da Estação Torre Espacial

Quero que eles sejam uma ilusão. Mas não são.


Uma garota está na frente da fila. Seus cabelos escuros caem
sobre os ombros em uma trança grossa. Os meses no espaço não
afetaram o tom moreno de sua pele. Seus olhos se estreitam, e fica
evidente que está nos avaliando, reparando nos detalhes de nosso
time. Fico à espera de uma expressão de surpresa, medo ou
preocupação, mas é como se estivéssemos diante de um novo
desafio, uma nova Sala do Coelho. É como se ela já estivesse
descobrindo como nos derrotar.
Atrás dela está uma garota ruiva alta e feia. As outras duas
meninas têm a pele e os cabelos escuros; uma parece ser da Índia,
e a outra, do Oriente Médio. Eles têm dois caras maiores que Katsu.
Um deles é uns bons 15 centímetros mais alto que eu, e bem mais
forte. Seus ombros são largos, e o rosto parece ser do tipo que um
escultor gostaria de eternizar em pedra. O outro garoto é grande e
corpulento, e seu rosto é todo sardento.
Como nós, eles também parecem ter um casal de namorados.
Ambos têm cabelos loiros e uma aparência chamativa. A menina
tem os olhos azuis mais brilhantes que já vi fora de uma capa de
revista. O garoto tem um penteado no estilo jogador de futebol. Os
dois últimos competidores estão lado a lado, mas não são nada
parecidos. Um é baixinho e invocado, um pequeno troglodita. O
outro tem cachos dourados e o rosto bronzeado. Seus olhos são tão
impressionantes que parecem ser de uma cor desconhecida, um
verde que foi engolido pelo azul. Os dois parecem opostos perfeitos,
como o médico e o monstro.
Na parede à nossa direita, alguma coisa faz um clique e um estalo.
Deixamos de nos encarar por um instante para observar a alteração
no placar. Mais dez nomes são acrescentados. As linhas se
organizam conforme as pontuações se ordenam. Diante de nossos
olhos, a competição muda:

1. MORNING 1.070.200 pontos


2. LONGWEI 689.900 pontos
3. KATSU 640.450 pontos
4. PARVIN 570.200 pontos
5. HOLLY 542.700 pontos
6. OMAR 540.000 pontos
7. AZIMA 532.750 pontos
8. HILAL 532.300 pontos
9. JAIME 520.200 pontos
10. NOOR 515.050 pontos
11. JASMINE 478.050 pontos
12. ANTON 502.290 pontos
13. EMMETT 473.350 pontos
14. ALEX 472.200 pontos
15. ROATHY 471.324 pontos
16. ISADORA 415.080 pontos
17. IDA 390.400 pontos
18. LOCHE 357.500 pontos
19. BRETT 327.000 pontos

Meu coração vem parar na boca. Não consigo absorver todas as


informações ao mesmo tempo, então as divido em partes, fazendo
com que assumam proporções mais administráveis. Para começo
de conversa, estou em 13º lugar. Não é exatamente um número da
sorte, mas parece uma boa posição.
Em segundo lugar, há números em negrito. Os líderes do placar e
as garotas estão em itálico. Depois da morte de Kaya, Defoe
garantiu a passagem delas. Mas e a minha? Está bem longe de ser
garantida. Meu nome está em negrito no placar, e é isso que
realmente importa para mim. O meu e o de mais outros oito. Somos
os últimos a ainda lutar por suas vagas. Percebo que, se meu nome
está em negrito, significa que posso perder meu lugar. No mínimo
três competidores vão ser eliminados. Estou mais próximo dos três
últimos do que gostaria. Estou em perigo.
A última informação vem na forma de uma pontada de culpa: a
Babel removeu o nome de Kaya do placar. Sua ausência quase
consegue demolir as barreiras que estou reerguendo junto com
Vandemeer. Fecho os olhos com força, murmuro uma prece e
prometo que não vou esquecê-la, mesmo que a Babel esqueça. O
recinto está em silêncio. Durante um longo minuto, ninguém abre a
boca. Sabíamos que a Babel iria mudar as regras do jogo, mas esse
tipo de alteração é inimaginável.
Longwei é o primeiro a se manifestar:
– Isso é um absurdo total.
Não consigo segurar a risada. A pontuação dele, quase
inacreditável aos nossos olhos, é pouco mais da metade que a de
Morning. Vejo esse mesmo nome no traje da garota da trança, a que
se colocou à frente dos demais de seu grupo. Ela se vira e percorre
as fileiras de sua equipe, cochichando com eles, em uma instrução
ou um chamado à ação. Está na cara que não temos ninguém
assim.
Temos Longwei, que é talentoso e ressentido. Jaime, que executa
tarefas com competência, mas nunca demonstra uma excelência
exemplar. Azima, que não se ofereceu uma única vez para liderar a
equipe em sequer uma prova grupal. Katsu, que não leva nada a
sério. E os demais, inclusive eu, não conseguiram pontos suficientes
para exigir respeito. Se Hilal não estivesse machucado, eu pensaria
nele como a pessoa mais indicada para uma posição de liderança.
– Gênesis 11, conheça a Gênesis 12 – Defoe anuncia. Demoro um
tempinho para registrar o fato de que nós somos a Gênesis 11.
Nunca nos identificamos assim porque sempre estivemos em uma
competição individual. Defoe continua: – Eles são seus
competidores. Gênesis 12, sou Marcus Defoe, CEO da Babel
Comunicações. Saibam que ambas as equipes receberam o mesmo
treinamento. Atravessaram os mesmos percursos na Sala do
Coelho, enfrentaram as mesmas batalhas na arena e realizaram as
mesmas explorações no ambiente simulado de Éden. O placar que
estão vendo é um reflexo do que vocês fizeram diante das mesmas
oportunidades. Dito isso, os números para a descida em Éden
mudaram.
O medo reverbera dentro de mim. A regra do jogo está sendo
alterada. As promessas da Babel pairam no ar.
– Uma das competidoras da Gênesis 11 morreu durante a viagem.
Foi decidido então que apontaríamos três capitães para três
unidades diferentes de mineração. Provavelmente destacaremos os
três mais bem classificados para essas posições. Portanto, mesmo
quem já estiver classificado para Éden vai precisar lutar. Nossos três
capitães vão ter seus salários dobrados, em caráter vitalício. Esse é
o incentivo para vocês. Os restantes vão ter que lutar para ir a Éden.
Cada unidade será composta de cinco integrantes, para maximizar a
extração de nyxia e a mobilidade em Éden. Isso significa que 15
entre 20 vão se qualificar.
Mais um eliminado. Olho para o placar. Estou fora dos quatro
últimos por apenas mil pontos. Está tudo desmoronando. Defoe se
afasta, e o homem grisalho assume a palavra. Sua voz é profunda
como um poço:
– Meu nome é David Requin. Fizemos o máximo possível para
simplificar o placar. Os que têm o nome em itálico estão seguros.
Sua viagem a Éden está quase garantida. Meus parabéns. – Ele faz
uma pausa e começa a listar quem não está seguro: – Jaime, Anton,
Emmett, Hilal, Alex, Roathy, Loche, Omar e Brett. Um passo à
frente.
Nós obedecemos. Cinco do lado deles. Quatro do nosso. Hilal
parece um alvo fácil, sentado na cadeira de rodas. Se precisar ficar
algumas semanas de fora, estará bem encrencado. Olho para o
placar de novo. Loche e Brett estão bem para trás. Procuro pelos
nomes nos uniformes. Loche é o namorador com os cabelos
espetados. Brett, o corpulento com o rosto coberto de sardas. Deixo
Omar de lado. Ele está muito à frente. Os outros dois, porém, são a
minha maior ameaça.
Os opostos perfeitos. Alex, com o corpo atlético e os cabelos
cacheados, está a apenas mil pontos atrás. Anton, baixinho e mal-
encarado, está bem à frente. Tenho novos inimigos para acrescentar
aos antigos.
Requin e Defoe deixam que o momento desconfortável se estenda
ao máximo. À medida que os segundos se passam, meus anéis de
nyxia começam a dançar com uma energia nervosa. Querem se
transformar em lâminas afiadas ou escudos robustos. Estou de volta
à divisão tênue entre os buracos negros. O perigo sou eu? Ou são
eles? Anton abre um sorriso malicioso que me faz decidir: são eles.
O perigo aqui vem deles.
– Vocês estão todos na disputa por vagas – Requin explica. – Os
nomes em negrito ainda estão na corda bamba. Se o seu nome
estiver em negrito, você ainda tem chances matemáticas de se
juntar aos nomes em itálico e garantir seu lugar em Éden. Mas
também existe o outro lado. Se o seu nome está em negrito, ainda é
matematicamente possível que você perca seu lugar. Nós nos
reservamos ao direito de remover qualquer um que não alcance os
padrões esperados na Aquavia. Se não conseguir trabalhar por lá,
não queremos você no planeta. Entendido?
Todos assentem. A sensação volta a ser a mesma do começo.
Todo mundo representa uma ameaça.
– Médicos – chama Defoe. – Acompanhem seus participantes aos
novos aposentos. A primeira rodada começa amanhã. Participantes,
descansem. Vocês vão precisar.
Somos conduzidos pela Estação Torre Espacial. Morning caminha
à frente de seu grupo. O restante vai atrás como um conjunto de
soldados obedientes. Não parecem derrotados nem cansados.
Alguns talvez, os retardatários, porém a maior parte do grupo
parece animada com o que está por vir. Escuto suas risadas. Nosso
grupo segue em silêncio. Nem mesmo Katsu faz suas piadinhas.
Nossos aposentos aqui são menores, dez dormitórios separados
em torno da mesma sala de estar. A equipe Gênesis 12 é colocada
em recintos idênticos no andar de baixo ao nosso. Tenho centenas
de perguntas sobre a estação, mas não faço nenhuma porque sei
que Vandemeer não tem como responder. A Gênesis 12 foi uma
surpresa para ele. É possível ver as dúvidas rondando sua cabeça.
Primeiro, o adamita escravizado. Agora, um grupo secreto de
participantes. O que mais teriam escondido dele? De nós?
Nós dois nos separamos dos demais. Vandemeer abre a porta do
meu dormitório. Ele saca sua tela portátil e aperta alguns botões.
Uma das paredes começa a se retrair como as cortinas de uma
janela.
– Trinta dias – Vandemeer me lembra. – Só para o caso de
precisar de um incentivo. É por isso que você vem lutando. É para lá
que você vai.
As beiradas da janela estão às escuras. O negrume assustador do
espaço. Mas no centro está Éden. É de tirar o fôlego. Tem um tom
de azul mais escuro do que me lembro dos retratos da Terra. Um
mar que esconde seus perigos na obscuridade. O verde e o marrom
de seus continentes são mais estilhaçados, divididos em metades,
quartos e frações por rios de leitos largos. Espirais de tempestades
brancas cobrem as montanhas e planícies, as ilhas e as florestas. É
um lugar ao mesmo tempo familiar e estrangeiro.
Vandemeer aponta com o queixo para o novo mundo.
– Não tem ninguém nesta nave que possa tirar isso de você. Só
você mesmo. Não se esqueça. Lute. Por você e por Kaya. Você vai
descer em Éden, Emmett.
DIA 1, 9h45
A bordo da Estação Torre Espacial

Formamos filas indianas e seguimos Defoe e Requin até a Aquavia.


Uma ansiedade natural percorre os dois grupos. O lado deles com
certeza parece mais organizado, mas pode ser só o efeito da
presença de Morning marchando destemida pelos corredores. Tento
imitar sua calma e concentração, mas Katsu começa com as
provocações. É uma situação tão parecida com as que eu vivia em
Detroit que começo a sorrir. Lembro de PJ se dirigindo ao centro da
quadra antes dos jogos no centro recreativo, descobrindo quem era
o melhor jogador do outro time e tentando entrar na cabeça dele.
– Olha só que belezura – Katsu comenta. – Marchando com passo
marcado como um bando de patinhos.
– Pelo menos já sabemos qual dos dois grupos é o mais bonito –
rebate Anton.
– Bonito? – Katsu solta uma risada irônica e aponta para Anton. –
Já achei coisas jogadas na sarjeta mais bonitas que você, baixote.
O rosto de Anton fica vermelho.
– Se estivéssemos na Rússia, você seria jogado em um rio, sem
barulho e sem alarde. Ia ser bem fácil. Você não parece ser do tipo
que flutua. Ia afundar direto para a lama, grandalhão.
Katsu gargalha ainda mais alto.
– Você é mesmo uma graça. Parece um bonequinho falante.
Anton fica ainda mais vermelho, mas Morning dá uma encarada
nele da frente da fila. É como o estalar de um chicote. Anton morde
a língua e segue em frente.
Defoe e Requin nos conduzem por uma rede de corredores em
forma de túneis. O caminho termina em uma enorme escotilha que
se abre depois que o cartão de acesso dos dois é escaneado. As
luzem zunem acima, refletindo as corredeiras lá embaixo.
Um rio. A Babel tem uma porcaria de um rio em sua estação
espacial. Estamos em uma plataforma de observação acima das
águas espumantes. A Aquavia tem mais ou menos 100 metros de
largura. Corre em meio a rochas artificiais e uma vegetação cerrada.
De um tom azul-escuro, percorre uns 200 metros até fazer uma
curva. Mais abaixo, há dois barcos ancorados.
Olho para o lado e fico surpreso ao ver Hilal sendo trazido para
dentro na cadeira de rodas pelo cuidador. Parece ter passado pelos
sete círculos do inferno dentro da enfermaria. Seus olhos estão
fundos e distantes, e sua silhueta é bem magra. Fico impressionado
com o fato de ele ainda estar aqui.
– Bem-vindos à Aquavia – diz Requin, levando-nos para baixo por
uma rampa estreita.
A Babel fabricou até docas e rampas de embarque. Defoe conduz
a Gênesis 11 para a esquerda; Requin encaminha a Gênesis 12
para a direita.
– Até mais, gárgula. – Katsu manda um beijo para o russo baixote.
Antes que Anton possa responder, Morning o empurra para a
rampa de embarque. É bem mais alta que ele e mais forte do que
parece. Katsu pode rir quanto quiser, mas a equipe do outro lado
parece mais concentrada que a nossa, e não é difícil concluir que é
por causa dela. Fico observando ela se posicionar no alto da rampa
enquanto os demais embarcam. Eles acenam com a cabeça em
sinal de respeito. Kaya poderia ser essa pessoa para nós se ainda
estivesse viva.
Quando subimos nossa rampa de embarque, meu estômago dá
um nó. Estamos mais encrencados do que eu pensava. Eu estou
mais encrencado do que pensava. A Gênesis 12 representa o que
Defoe poderia ter feito conosco, mas nós não nos encaixamos como
um quebra-cabeça. Nós nos voltamos uns contra os outros como
um bando de gladiadores. Existe ressentimento demais dentro do
grupo para que isso mude.
O barco é mais uma maravilha da infinita capacidade de inovação
da Babel. As amuradas são perfeitas, o piso do convés é impecável.
Embora as tábuas de madeira ainda estejam com cheiro de verniz,
rangem sob o nosso peso como se pertencessem a velhas
embarcações. No centro de tudo há um trono de nyxia. O assento
do capitão, provavelmente, mas tem um ar de realeza. As teias de
nyxia se espalham da base do assento sobre o piso de madeira,
proporcionando o acesso do trono a oito consoles de nyxia
incorporados à amurada do barco. Fico à procura de velas ou
cabos, mas não encontro nada. Apenas o assento do capitão e os
consoles.
– Bem-vindos à sua sessão tutorial – diz Defoe, atraindo todos os
olhares. – Este barco é uma réplica das embarcações que os
adamitas usam em Éden. Nos próximos 30 dias, vocês vão precisar
navegar na Aquavia, afastar predadores e participar de ataques
fluviais. Precisamos que estejam preparados para o que pode
acontecer em Éden. O deslocamento pela água é uma necessidade
no planeta. Vocês vão ser testados três vezes por dia. Todas as
competições vão ser na Aquavia.
– Quanto elas valem? – Isadora pergunta. Roathy está a seu lado
como uma sombra imóvel. Eles estão preocupados, e com razão. –
Quantos pontos?
– Vão ser duas provas em equipe por dia, valendo 3 mil pontos
cada. Isso dá um total de 180 mil pontos. Cada integrante do grupo
vencedor vai receber o bônus. O time perdedor não ganha nada. O
terceiro evento diário vai ser composto de batalhas individuais com
nyxia. É lá que vocês podem subir ou cair em suas próprias fileiras.
Copiaram?
Defoe usa nosso bordão como se fosse dele. Nós assentimos,
porque copiamos. A maior parte dos pontos vai vir do trabalho em
equipe, mas ainda restam oportunidades de sangrar alguns dos
nossos. Olho para o outro barco. Requin está parado em um canto
enquanto a Gênesis 12 explora a embarcação. Morning está
apontando coisas e direcionando sua equipe para determinadas
estações. Precisamos entrar em ação. Defoe se dá conta disso
também. Ele bate as mãos uma na outra.
– Vocês têm 30 minutos para se familiarizar com o barco, escolher
um capitão e decidir qual estação de nyxia cada um vai tripular
durante as próximas semanas. A Gênesis 12 tem um participante a
mais, então a cada dia um deles vai ficar de fora, em revezamento.
– Ele olha para Requin e baixa o tom de voz: – Escolham o capitão
primeiro. A estação traseira deve ser tripulada por quem for melhor
na manipulação da nyxia, pois exige força e resistência. Quem
estiver na estação dianteira precisa fazer o trabalho de olheiro. Os
condutores ficam à esquerda e à direita. O resto vocês descobrem
sozinhos. – Ele olha para o relógio. – Restam 20 minutos. Ao
trabalho.
– Eu deveria ser o capitão – Katsu diz.
Longwei entra na frente dele.
– Eu estou em primeiro.
– Está em segundo – retruca Katsu, apontando com o polegar
para o placar. – E os pontos não importam.
– Os pontos são a única coisa que importa – rebate Longwei.
– Você não é um líder. – Katsu olha ao redor e encolhe os ombros.
– Você nem fala com a gente. Como quer comandar alguma coisa?
Ninguém vai obedecer.
Longwei ajeita o tufo de cabelos para o lado e silencia. Seus olhos
continuam afiados e furiosos. Antes que Katsu volte a reivindicar o
assento de capitão, Jaime dá um passo à frente.
– Eu deveria ser o capitão – ele afirma. – Sou melhor em executar
tarefas simultâneas do que qualquer um aqui. E levaria o comando
da embarcação a sério. Você só quer saber de palhaçada, Katsu.
– Quem se lembrar de qualquer coisa que Jaime tenha feito
melhor do que o resto de nós levanta a mão – sugere Katsu. Os
outros hesitam, e ele sorri para o suíço. – Isso resolve a questão.
– E eu? – Azima questiona baixinho. – Eu sei liderar.
Uma nova rodada de argumentação se segue. Incomodado, olho
para a outra embarcação. Com alguns passos para a amurada do
lado direito, chego perto o suficiente para ouvir a Gênesis 12. Eles
ainda não assumiram suas estações, mas não estão discutindo
quem vai ser o capitão, porque ela já está acomodada no assento.
– Omar, você fica na estação traseira – Morning instrui. – Vou dar
uma força para você sempre que possível. Anton e Alex, para as
laterais, por favor. Vocês trabalham juntos melhor do que ninguém.
Seus comandos são acatados, nunca desafiados. Eles já
escolheram quem vai ficar de fora por hoje. Ida, uma das metades
do casal de capa de revista, desce para as docas. Os demais se
dirigem em silêncio para suas estações. Morning está prestes a dar
outro comando quando percebe que a estou olhando. Ela ergue
uma sobrancelha, me dá uma piscadinha inesperada e um aceno.
Ainda não desviei os olhos quando ela mexe um dos pulsos.
O bracelete de nyxia desliza para fora do braço. A escuridão se
espalha como fumaça, formando uma barreira entre os dois barcos.
Não vem para cima de nós nem nada do tipo, mas os sons se
tornam inaudíveis. Fora os truques de Defoe, é a coisa mais
impressionante que já vi alguém fazer com nyxia, e ela fez parecer
facílimo.
Eu me viro; nossa equipe ainda está discutindo.
– Eu vou ser o capitão – digo.
É agora ou nunca. Com um movimento de mão, faço meus anéis
de nyxia se transformarem. Eles revestem perigosamente meus
punhos fechados, deixando as juntas afiadas como aço e criando
uma proteção acolchoada no restante da mão.
– Alguém quer brigar comigo pelo posto? – A embarcação fica em
silêncio. – Katsu? Longwei? Jaime?
Eu já acabei com eles na arena. É o único lugar onde a
classificação não conta. Eles sabem o estrago que eu posso fazer.
Ninguém diz nada, então aponto para a frente do barco.
– Defoe falou que vamos precisar de olhos atentos. Jazzy mostrou
que tem a melhor visão na Sala do Coelho, sabe manter a calma e
gabaritou todos os testes de padrões. Alguma objeção?
– Nenhuma. – Jazzy concorda com a cabeça, mas não se move.
– Pode ir, Jazzy. Dá uma olhada no console frontal e vê o que a
coisa faz.
Depois de lançar um olhar apreensivo para os outros, Jazzy se
dirige para a proa. Ótimo. Em seguida aponto para Katsu e Longwei.
– Vocês são os manipuladores mais fortes. Preciso de um de
vocês impulsionando o barco e o outro como um dos condutores.
Onde querem ficar?
– Na traseira – os dois respondem.
Tento não bufar nem revirar os olhos.
– Longwei, você sempre teve a mão mais firme e foi o que chegou
mais longe nos exercícios com as formas em 3-D. Vai para o
console de força. Katsu, você é o mais rápido nas decisões
técnicas. Não tem ninguém em quem eu confiaria mais para ser o
condutor, mas precisa de um parceiro para isso. Quem você
escolhe?
Ele observa os demais. Sua raiva desaparece enquanto pensa na
minha pergunta. Oferecer uma escolha o fez esquecer que acabei
de tomar à força o assento do capitão. É uma tática que Kaya
provavelmente usaria. Uma palavra errada ou uma objeção da parte
deles e voltaríamos ao início. Eu perderia minha liderança. Espero
pacientemente enquanto ele considera cada um. Por fim, Katsu
encolhe os ombros.
– Quero Jaime.
Jaime dá um sorrisinho.
– Pensei que eu era incapaz de te impressionar.
– É exatamente por isso que quero você como meu parceiro. Para
eu ficar com toda a glória quando a gente dominar a Aquavia.
– Certo, certo. Vão para os seus postos – ordeno.
Eles obedecem. Só restam Roathy, Isadora, Azima e Hilal.
– Roathy e Isadora, querem trabalhar juntos?
– Nós não nos reportamos a você – rebate Roathy.
– Ah, não? Então nossa primeira tarefa a cada dia vai ser jogar os
dois na água. Vocês não vão ganhar nenhum ponto.
Os dois namoradinhos trocam olhares. Não sei se conseguiria
fazer a tripulação obedecer a uma ordem como essa, mas sei que
os dois estão em uma posição delicada. Isadora já está garantida
em Éden. Roathy não. Se a maior parte da competição vai ser em
equipe, ele precisa de nós para subir no placar. Eles vão ter que
seguir as regras agora, querendo ou não.
Isadora faz que sim com a cabeça.
– É melhor deixar nós dois juntos. Trabalhamos bem assim.
– Vão para a estação da direita e a da esquerda. Vocês vão ter
que descobrir o que fazer. – Meus olhos se voltam para Hilal e
Azima. – Hilal, você acha que consegue tripular uma estação?
Ele assente.
– Não consigo me mover, mas posso prender minha cadeira ao
console por enquanto.
– Certo, você e Azima vão ficar nas estações frontais ao lado de
Jazzy. Vamos lá. Já estamos cinco minutos atrás da Gênesis 12.
Vou caminhando até o centro da embarcação, surpreso por ter
conseguido fazer dar certo. Eles me deixaram mesmo ser o capitão.
Me acomodo no assento, que a princípio parece uma cadeira com
encosto frio como qualquer outra. Um calafrio sobe pelas minhas
costas, e meus braços e minhas pernas se arrepiam. Então a nyxia
ganha vida. Eu me torno consciente. Da água sob o barco, do
maquinário e das engrenagens metálicas, de cada um dos membros
da tripulação. Dá para sentir tudo pelas conexões de nyxia, como se
fizéssemos parte do mesmo corpo.
– Olá? – eu chamo.
– Um pouco mais alto, capitão – responde Hilal.
Limpo a garganta.
– Melhor assim?
As respostas afirmativas chegam de todos os lados. Minhas
palavras não são altas o suficiente para serem ouvidas do outro lado
do rio, mas estalam pelas conexões de nyxia como se estivéssemos
usando fones de ouvido sem fio. Antes que eu possa dar o primeiro
comando, a barreira sonora de Morning se desfaz. Todos viramos a
cabeça para lá quando o barco deles começa a rugir sobre água,
com os motores em alta rotação como um uma locomotiva. A Babel
manteve as embarcações amarradas para a sessão de tutorial, mas
eles estão usando o espaço que as cordas permitem para testes de
manobra. Uma fumaça preta sai do barco ao lado. A competição só
começa em 20 minutos, mas sinto que já estamos algumas voltas
atrás. Está na hora de entrar em ação.
– Vamos começar com um relatório sobre cada estação. No
sentido horário, certo? – Todos concordam. – Jazzy, o que temos aí
na frente?
Suas mãos seguram com firmeza os controles do console. Toda
estação tem algo parecido com uma trincheira na parte da frente. A
posição mais baixa a deixa em altura suficiente para que ela veja
além da amurada, mas não o bastante para bloquear meu campo de
visão.
– Tenho escaneamento por pulsação – ela responde. – Vejam só.
Ela aperta o botão. Os outros se inclinam sobre a amurada para
olhar. Uma substância fumacenta se destaca da proa do barco e se
espalha pela água como uma névoa, percorrendo 100 metros à
frente e então desaparecendo. Jazzy se move para o lado, e todos
vemos um mapeamento digital na superfície preta de seu console.
– Dá para saber o que as marcações significam? – questiono.
Ela faz que sim com a cabeça.
– É só bater com o dedo na tela que a explicação aparece.
Profundidade do rio, correnteza, essas coisas.
– Perfeito… Certo, prosseguindo em sentido horário. Azima, o que
sua estação faz?
Ela está em uma das estações posicionadas em diagonal que
Defoe não explicou. Todos vemos quando a nyxia ligada à amurada
frontal se estende para cima e para fora. Sua manipulação assume
a forma de um arpão.
– Parece que eu estou encarregada da defesa – ela comenta. –
Quer que eu atire na Gênesis 12?
Azima sorri para nós, e todos damos risada. Sorrio para ela e
respondo:
– Em breve. E você, Jaime?
– É meio confuso, porque ainda não estamos em movimento. A
primeira opção serve para operar os lemes, com certeza. Mas a
segunda fala alguma coisa sobre sucção.
Nós observamos quando ele bate na tela. Um segundo depois, o
barco dá um tranco. As cordas que nos prendem às docas
improvisadas começam a se desenrolar. Todos seguramos firme
quando o barco começa a virar para a direita, derivando contra a
corrente na direção dos enormes suportes de metal da plataforma
de observação. Os olhos de Jaime se arregalam quando o barco dá
uma guinada e começa a tombar. Com um ruído alto de sucção,
nosso barco sobe na parede. Estamos tombados para o lado em um
ângulo assustador, mas ninguém cai para fora. O fundo da
embarcação está totalmente emborcado agora. Estamos desafiando
a força da gravidade.
– Você está demitido! – Katsu grita do outro lado do barco. Todos
nós damos risada.
– Consegue nos tirar daqui, Jaime? – pergunto.
Jaime manipula sua estação, e o barco retorna suavemente para a
água. Com um impacto e uma sacudida, estamos flutuando outra
vez. Volto minha cabeça para a direita.
– E você, Roathy?
– A mesma coisa que a Azima – ele responde. – Uma estação de
defesa. Mas ela usou um dos movimentos pré-programados. Parece
que essas quatro estações podem ser transformadas em qualquer
coisa. Vejam só.
Seu console se estica por cima da amurada, projetando-se para
cima e para fora, tal como Azima fez. Mas, em vez de um arpão, sua
nyxia se transforma em uma mão gigante, que imita os movimentos
de Roathy. Ele acena e acena. Um instante depois, um dedo do
meio estica e nos manda para aquele lugar.
– Bem útil, né? – Roathy pergunta em um tom inocente.
Não consigo segurar o riso.
– Com certeza. Ótimo. Longwei?
– Passa pelos outros primeiro – ele responde. – Minha estação vai
fazer barulho, acho.
– Certo – digo. – Isadora?
– Estação de defesa – ela se limita a responder, sem entrar no
nosso jogo. Ficamos à espera de uma demonstração, mas ela
apenas nos encara com uma expressão de desafio. Eu poderia
obrigá-la, mas não importa. Meu pai me ensinou a escolher bem
minhas batalhas. Ela quer a nossa vitória, por Roathy. Não precisa
ficar de risadinhas e piadinhas desde que lute e trabalhe quando as
corridas começarem.
– Muito bem – murmuro. – Katsu?
– A estação está pronta, capitão. Estou começando a sentir a de
Jaime do outro lado pela conexão. Logo vamos entender tudo.
– Feito – digo. – E Hilal?
– Estação de defesa – ele responde, empolgado. Sua nyxia se
transforma em um canhão metálico. Ele bate com os dedos duas
vezes no painel, e um tiro duplo de lasers é lançado contra a parede
como bolas de fogo. A substância se desfaz com o impacto, mas
não sem antes deixar círculos de fumaça nas grossas plataformas
laterais da Aquavia. Katsu solta um assobio de admiração. – Não
preciso das pernas para disparar um canhão. A estação está pronta,
capitão.
– Ok, Longwei, vamos lá.
Um segundo depois, os motores ganham vida com um rugido. À
nossa direita, a Gênesis 12 gira em círculos, lançando ondas em
todas as direções. Acima deles um relógio digital aponta o tempo
que falta para a largada. Apenas sete minutos. A área de treino é
pequena, mas no momento isso é bom.
– Katsu e Jaime, nos levem até a barreira de cordas e depois
virem à direita.
Pela primeira vez, percebo como eles trabalham juntos através da
conexão formada pela teia de nyxia. Sua comunicação funciona por
outra frequência. Como capitão, eu tenho acesso. Só preciso
estender a mão e clicar em seu link. O motor ruge alto de novo, e
nós deslizamos para a frente. Jaime e Katsu seguram firme nos
controles. Nós ficamos à espera, com a respiração suspensa,
quando o barco se aproxima do limite da área demarcada com as
cordas. A frente da embarcação começa a virar, mas meio tarde
demais. As cordas se esticam uns bons 3 metros antes de voltarmos
para a área de treino. A manobra não saiu perfeita, mas já é um
começo.
– Ótimo – digo pela conexão. – Escaneamento de pulsação, Jazzy.
Ela aciona o mecanismo de novo. Um segundo depois, sua tela
acende com as novas informações.
– Embarcação a 40 metros, docas a 100 metros de distância – ela
informa.
– Longwei, direcione a potência no sentido diagonal – digo. A outra
embarcação está se movendo na mesma direção, mas podemos
chegar primeiro. – Hilal e Isadora, transformem suas estações em
mãos grandes. Se o outro barco cruzar nosso caminho, deem um
belo empurrão na direção oposta.
Jaime e Katsu se mantêm firmes nos lemes quando Longwei
acrescenta mais potência aos motores do barco. Aciono a conexão
e o encontro, esforçando-se para nos impulsionar. Não sei ao certo
o que fazer, mas volto minha mente para ele e dou uma força.
O barco salta para a frente. Percorremos o quadrado três vezes
mais rápido que antes. A Gênesis 12 muda de direção quando nos
aproximamos em alta velocidade, e passamos a uns bons 10 metros
de distância. Hilal faz um aceno quando nos aproximamos; Isadora
mostra um punho cerrado.
– Outra curva – anuncio. – Mais fechada desta vez.
Me desligo da aceleração, deixando Longwei cuidar disso sozinho.
A velocidade do barco diminui quando Katsu e Jaime nos fazem
guinar com força para a esquerda. Alguns membros da tripulação
caem de joelhos no convés, mas a curva sai perfeita, e nos viramos
para a Aquavia de novo.
– Perfeito – digo através da conexão. Olho para cima e vejo que
nosso tempo está quase esgotado. A outra tripulação está girando
em círculos em seu canto da área de treino. – Vamos para a entrada
da Aquavia. E peguem leve no uso da nyxia, para economizar
energia.
Longwei nos impulsiona lentamente até lá. Demora meio minuto,
mas o nariz do barco encosta na corda e nos posicionamos para a
largada. Me levanto do assento e caminho pela embarcação. Parece
uma coisa que um capitão faria. Digo a Jazzy que ela está liberada
para me informar a respeito de qualquer coisa a qualquer tempo.
Explico que ela vai precisar falar mais, e mais alto, do que imagina.
Lembro ao pessoal das nossas estações de defesa que a Babel não
costuma pegar leve nas competições. Nós vamos ser atacados, e
eles precisam estar prontos. Jaime e Katsu estão envolvidos em
uma pequena discussão sobre os lemes. Eu não interrompo; eles
conseguem se entender sozinhos. Por último, vou falar com
Longwei:
– Como estão as coisas aqui?
– É como andar de bicicleta. Fácil, mas dá para perceber que vai
ser cansativo.
Faço um gesto afirmativo com a cabeça.
– Você sentiu quando eu dei uma força? – pergunto.
– A velocidade quase dobrou. Com que frequência você consegue
fazer isso?
– Sempre que eu conseguir – garanto. – Quando a gente
começar…
Ouço um estrondo, e nosso barco balança inteiro. Todos erguemos
os olhos. A equipe Gênesis 12 está ancorada ao nosso lado. Alex,
com seus cachos dourados e seus olhos de cores quase irreais, faz
um aceno brincalhão para nossa tripulação. Morning está na popa
da embarcação, com a pessoa que escolheu para impulsionar os
motores, o grandalhão chamado Omar. Eles também estão
conversando. Só restam 40 segundos para a largada, mas Anton
não consegue resistir à tentação de se debruçar sobre sua estação.
– O mesmo barco – o russo grita. – O mesmo percurso. O mesmo
treinamento. Qual vai ser sua desculpa quando ficarem para trás
hoje, e amanhã, e depois de amanhã?
Meus olhos se voltam para Morning. Um sorriso leve está
estampado em seu rosto. Ela conhece Anton bem o suficiente para
saber quando a raiva dele está prejudicando somente a ele mesmo
ou quando pode ser utilizada contra os adversários. No momento,
ela bem que gostaria que ele entrasse na nossa cabeça, que nos
fizesse cometer erros. O que Kaya faria em uma situação como
essa? Quero ser um líder, mas sei que não sou ela.
– Você não deveria estar na frente do barco? – Katsu pergunta.
– Quê? – Anton olha para ele.
– As carrancas costumam ficar entalhadas na proa das
embarcações. Como conseguiu escapar?
O rosto de Anton fica todo vermelho.
– Você está provocando a pessoa errada.
Katsu dá risada.
– Já ouviu falar de Napoleão? Aquele baixinho que estava sempre
nervoso?
É tudo muito rápido. Anton faz um movimento com o dorso da
mão. Um vulto preto atravessa a distância entre as duas
embarcações, e o rosto de Katsu é lançado para trás como se
tivesse levado um tapa. Antes que alguém possa reagir, Anton
estende as duas mãos, e uma escuridão se forma em torno de
Katsu como uma prisão. Em meio ao negrume, Katsu solta um
berro. O rosto de Anton vibra de raiva e satisfação. Azima vai até lá,
tentando libertar Katsu, mas não consegue se desvencilhar da
criação de Anton. Ouvimos os gritos de novo.
Morning se aproxima da comoção, mas eu chego mais rápido.
Apoio um pé sobre nossa amurada e salto para o outro lado. O rosto
de Anton se contorce de medo quando vê que estou pulando em
sua direção. Ele tenta redirecionar a nyxia, mas não é rápido o
bastante. A colisão faz meu queixo vibrar, mas consigo segurá-lo
com os dois braços e lançá-lo no convés. Transformo meus anéis
em uma garra e encosto a lâmina em seu pescoço. Ele para de se
debater, e eu o prendo melhor entre as pernas.
– Solta ele – digo com um grunhido.
– Não – rebate Anton. – Ele merece…
Pressiono uma das juntas da mão em seu pescoço e deslizo um
pouco por sua pele. O sangue escorre. Uma voz áspera escapa dos
lábios de Anton:
– Tudo bem! Tudo bem! Mas para com isso!
Alivio o aperto apenas o suficiente para que ele possa recolher sua
criação. A nyxia se retrai no ar sobre nós, voltando aos anéis em
seus dedos. Estamos ambos ofegantes e suados. Mas eu não o
solto, não enquanto ainda estiver em seu barco e cercado por sua
tripulação. Nós nos levantamos com gestos desajeitados, com
minha lâmina afiada ainda em seu pescoço. Os outros estão nos
encarando, mas eu dirijo meu olhar para Morning.
– Se ele fizer isso de novo com alguém na minha tripulação, está
morto.
Ela inclina a cabeça um pouco para o lado enquanto me observa.
– Você não faria nada contra ele.
Abro um sorriso enlouquecido.
– Então paga para ver.
Vejo respeito em seus olhos. Dá para perceber que está surpresa.
Um segundo depois, ela assente com a cabeça.
Quando volto à amurada, empurro Anton para trás. Alex o segura,
e a Gênesis 12 observa impotente enquanto apoio o pé na amurada
e pulo de volta para meu barco. Cambaleio um pouco na
aterrissagem, mas Isadora e Azima não me deixam cair. Em um
movimento simultâneo, olhamos para o outro lado. Antes não havia
ódio, mas agora sim. Com os olhos cravados em Morning, eu dou o
comando.
– De volta às estações. Temos uma corrida para vencer,
copiaram?
Meu time responde com um grito de guerra. Eu sou o capitão. Não
sou inteligente como Kaya nem talentoso como Longwei, mas estou
disposto a pular do barco por qualquer um deles. Talvez isso baste.
Azima ajuda Katsu e está se certificando de que está tudo bem
com ele quando Defoe e Requin chegam. Uma plataforma com
gradil percorre uma das laterais da Aquavia a uns 30 metros acima
de nós. Eles observam de lá, cientes do que acabou de acontecer,
mas claramente despreocupados. O que mais querem é uma briga;
querem uma competição acirrada. Desde o início, gostam de ver
sangue. Defoe se dirige a nós, gritando:
– Uma volta! Vamos começar com uma única volta. O primeiro
time a retornar à baía do tutorial é o vencedor. Não é um exercício
de invasão, e sim uma corrida. Por favor, permaneçam em seus
barcos hoje.
Requin aciona um botão, e as cordas se recolhem.
– Manda brasa, Longwei! – grito.
O motor começa a rugir, e o barco arranca para a frente.
– Escaneamento por pulsação, Jazzy. – Não levo mais de um
segundo para me voltar mentalmente ao console de Longwei.
Quando consigo mentalizá-lo, somo a minha força à dele, e
disparamos para a frente. A conexão drena um pouco minhas
energias, mas estamos um nariz à frente da Gênesis 12 quando a
correnteza se intensifica. – O que temos aí, Jazzy?
– Pedras perto da superfície logo adiante – ela informa. –
Precisamos nos deslocar para a direita, para perto do paredão.
– Façam isso – comando.
Katsu e Jaime se conectam e começam a nos levar para essa
direção. Dou uma espiada na Gênesis 12. Sua rota não tem uma
curva tão aberta. Em pouco tempo vão estar na frente. O rio
mergulha em uma corredeira sob nosso barco, e levamos a primeira
sacudida forte. – Não pare de escanear, Jazzy.
– Emmett!
O chamado é de Hilal. Ele está apontando para a frente. Uma
escotilha se abriu em um ponto distante do teto, pouco antes da
curva do rio, ainda sem representar ameaça, mas a Babel está
tramando algo. Ficamos à espera e de olho enquanto Longwei
impulsiona o barco em meio às pedras para uma parte mais estreita
do rio. Uma coisa escura sai pela abertura, flutua e começa a voar.
– Ataque iminente! – grito. – Converter para armas de longo
alcance.
A massa escura se divide: dois dos pássaros vão na direção da
Gênesis 12, e outros dois na nossa. Jazzy dá mais um aviso de
águas rasas enquanto Hilal converte seu console em um canhão.
Nosso barco se sacode rumo ao centro da Aquavia. Mais acima, os
pássaros estão mais próximos e voando mais baixo.
– Quais são as ordens? – Hilal pergunta.
– Faça pontaria assim que puder. Roathy? Isadora?
– Os canhões estão prontos – Isadora responde.
– Fogo!
Nosso barco balança com o impacto. As partículas de laser cortam
o ar, estalando de calor, e separam os pássaros. Um consegue voar
mais baixo para evitar os tiros, mas o outro é pego em cheio por
uma segunda saraivada. Vemos suas asas abertas se fecharem, e o
bicho despenca na água. Hilal dispara de novo, mas o pássaro
remanescente desvia o curso e se afasta de nós.
– Continuem de olho nele – aviso. – E continuem atirando sempre
que estiver na mira.
– O próximo trecho é bem reto – Jazzy informa. – Ainda não dá
para ver depois da curva.
– Longwei, como estão as coisas aí?
– Vamos aumentar a velocidade – ele responde. – Me ajuda aí que
podemos pegar essa reta a toda.
Olho para a Gênesis 12. Estamos um pouco atrás, mas nada que
não possa ser revertido. Vasculho a conexão e encontro Longwei.
Juntos, aceleramos os motores, e a velocidade dispara. Defoe e
Requin estão andando lá em cima, acompanhando nosso
progresso. Parecem satisfeitos, mas é difícil ter certeza por causa
da alta velocidade e das corredeiras batendo na lateral do barco.
Em questão de segundos ultrapassamos a Gênesis 12.
Mais atrás, um canhão de laser é disparado.
– O pássaro voltou – Roathy resmunga. Mais uma saraivada pulsa
no ar. – Está indo para o seu lado, Hilal.
– Você consegue fazer uma rede? – pergunto, esforçando-me para
me concentrar. Até mesmo articular palavras enfraquece meu foco
nas conexões de nyxia. – E esperar que ele esteja mais próximo?
Hilal responde afirmativamente. Observo-o moldar a nyxia
enquanto nos aproximamos da primeira curva do rio.
– Já dá para escanear além da curva, Jazzy? – Katsu pergunta.
Ele e Jaime estão ligados. Não dizem nada, comunicam-se
apenas pela conexão compartilhada de nyxia. Jazzy tenta direcionar
o escaneamento naquela direção, mas a pulsação se dissipa antes
do fim da curva.
– Estamos navegando às cegas – ela avisa. – Faltam 40 metros.
Todos nos seguramos firme quando o pássaro mergulha do céu.
Está bem acima de Hilal, que puxa o gatilho e faz uma rede de nyxia
ser disparada com perfeição. O pássaro de aparência metálica solta
um grito de surpresa quando a rede o envolve, e um segundo
depois despenca no rio. A tripulação comemora.
– Belo tiro, Hilal – eu elogio. – Longwei, quer que eu diminua a
velocidade um pouco?
– Não – ele responde com um grunhido. – Olha o quanto estamos
na frente!
Dou uma conferida. Ele tem razão. Estamos mais ou menos a 30
metros de distância, e abrindo cada vez mais. A Gênesis 12 ainda
está enfrentando os pássaros. Nós vamos conseguir vencer, eu
penso. Mas esse pensamento se desfaz quando contornamos a
curva. Jazzy avisa sobre o perigo, e todos os membros da tripulação
se viram para olhar. Uma parede de rochas atravessa toda a
Aquavia. Do outro lado, o rio continua seu percurso sinuoso, mas
não vejo como passar.
– Desliga os motores, Longwei! – Ele obedece, mas ainda
estamos depressa demais. – Katsu e Jaime, conseguem fazer o
barco deslizar de lado até parar?
– Podemos tentar. Se segurem aí – Katsu responde. – Jaime,
quando chegar no três.
Todos se agarram aos consoles. Percebi que eu estava segurando
os braços do assento o tempo todo. Ouço um som distante de algo
sendo raspado quando os motores são desligados. Katsu e Jaime
acionam os controles ao mesmo tempo. Mas o barco vira depressa
demais, tombando para o lado de Katsu como se fosse emborcar.
– Jaime, aciona a sua sucção!
A curva faz a velocidade diminuir, mas sinto o barco ficar instável,
querendo virar. Jaime aciona seu console bem a tempo. Ouço uma
sucção fortíssima, e a embarcação se equilibra quando o lado de
Jaime chega perto das grades metálicas mais próximas em torno do
curso do rio.
Ao voltarmos à posição normal, eu digo:
– Certo, pode soltar. – Ele obedece. O resto da tripulação está
ofegante, com o pânico estampado nos olhos. – Jazzy, o que você
está vendo?
Ela se inclina para o lado e mostra a tela.
– Atravessa de ponta a ponta, sem abertura. Será que dá para
escalar com o mecanismo de sucção?
Fico de pé e dou uma boa olhada no rochedo, imaginando que
talvez possa dar certo. Mas Azima refuta a ideia.
– A superfície é irregular demais. Vamos destruir o casco do barco.
– Acho que não dá para atravessar assim – Jaime concorda com
um gesto de cabeça.
– Então como? – pergunto.
Estamos todos sem ação quando a Gênesis 12 aparece quicando
na curva. Eles já se livraram dos pássaros. Fico esperando que
vejam o rochedo, desliguem os motores e parem, como nós. Em vez
disso, eles mantêm a velocidade e navegam diretamente para o
paredão. Diante de nossos olhos, Morning dá o comando.
– Esperem! Ainda não! – Eles estão a 20 metros da face do
rochedo quando ela grita: – Agora!
O barco da Gênesis 12 mergulha de nariz. Vemos a nyxia se
espalhar dos consoles e revestir tudo como uma armadura. As oito
estações formam um domo preto que encapsula a embarcação
inteira. Ao mesmo tempo, o barco afunda como um submarino sob a
superfície da água, para debaixo das rochas e longe das nossas
vistas.
Em um piscar de olhos, eles desaparecem.
– Mas… – Katsu murmura através da conexão. – Como é que a
gente vai fazer isso?
Jazzy vasculha seu console, mas, antes que possa acionar o
botão, ouço de novo o som de alguma coisa raspando.
– O que é isso? – pergunto. – Estamos encalhados?
A resposta vem farfalhando por cima da amurada. Jazzy solta um
grito quando o primeiro pássaro cai no convés com um baque surdo.
Os olhos são vermelhos, e o corpo parece feito de metal e de
pesadelo. Ela baixa o ombro, mas não consegue se esquivar do
golpe da asa estendida do bicho. O impacto a derruba sobre a
amurada. Ela se encolhe, mas, antes que seja partida ao meio, a luz
de um canhão de pulsação o envolve. O canhão atingiu pregos no
peito da ave, lançando-a para a água.
Roathy balança a cabeça.
– Acho que desta vez acertei.
Estamos todos ofegantes quando voltamos nossa atenção para o
percurso. Jazzy encontra uma tela que não tinha visto antes, e o
domo de nyxia nos envolve. Com cuidado, Jaime e Katsu nos
direcionam para a caverna subaquática até emergirmos do outro
lado. Porém já ficamos muito para trás. A Gênesis 12 é um pontinho
distante, contornando uma curva longínqua. Deveríamos estar
orgulhosos, mas, quando cruzamos a linha de chegada, somos o
segundo colocado. Não existe orgulho se não há pontos. O placar já
havia sido alterado antes mesmo de chegarmos. Sinto vontade de
dizer alguma coisa positiva, de agir como capitão, mas, enquanto
atracamos, nada muito heroico me vem à mente. Anton nem precisa
nos provocar. A comemoração deles já é zombaria suficiente.
Voltamos para nossos aposentos tentando ignorar a vitória deles e o
nosso fracasso.
DIA 2, 8h15
A bordo da Estação Torre Espacial

Na manhã seguinte, sou o primeiro a sair para a área comum.


Parece uma coisa que um capitão deveria fazer. Acordar primeiro.
Pensar sobre como reverter a competição e contrariar as
probabilidades. Sei que só tenho 29 dias para provar que sou digno
de ir a Éden. Até o ar que respiro tem o peso de uma finalidade. É
aqui que todo meu esforço precisa valer a pena. Se eu ganhar, vai
ser o começo de algo mais.
Sento diante da janela voltada para Éden. O planeta flutua na
escuridão do espaço como uma promessa silenciosa. A visão de um
planeta alienígena me faz pensar em uma velha música do Alabama
Shakes. Vasculho no meu dispositivo até encontrá-la. Começa com
ecos leves antes de o instrumental ganhar força e a voz de Britanny
Howard colorir cada palavra.
Lembro que a música tinha um clipe também. Um astronauta
negro acorda no espaço e percebe que dormiu enquanto
atravessava o universo rumo ao vazio profundo. Ele se senta no
posto de comando e tenta contato com a Terra, mas não há nada
além de sua voz, nada além da sensação de que todo mundo
desapareceu. Então um sol desconhecido desponta no horizonte.
Não dá para saber o que acontece com ele, mas aquela luz dourada
traz uma estranha esperança.
Alguém dá um tapinha no meu ombro no momento em que volto a
música para o começo.
Fico surpreso ao constatar que é Morning. Está com seu traje, mas
sem o conversor de idiomas. Sem a máscara, ela parece outra
pessoa. A intensidade de seu olhar é amenizada pela curvatura
suave do queixo e pelo sorriso casual nos lábios. Morning aponta
para o assento vazio ao meu lado, e faço um gesto afirmativo com a
cabeça. Uma rápida olhada revela que a sala está cheia de cadeiras
vazias que ela poderia ter escolhido. A ideia de que quer sentar-se
ao meu lado me deixa curioso. Tiro um dos fones do ouvido quando
ela cruza as pernas próximo a mim, com os olhos voltados para o
distante planeta Éden.
– Nem acredito que estamos tão perto – ela comenta.
– Alguns estão mais perto que outros.
Ela assente com a cabeça. Seu lugar em Éden está garantido,
assim como o posto de capitã. Isso a deveria deixar mais relaxada,
pegando mais leve nos 30 dias finais, mas tenho a sensação de que
é a última coisa que passa por sua cabeça. Existe algo maior
pesando sobre seus ombros, um fardo que não consigo identificar.
Meus objetivos são bem mais simples: ficar entre os classificados e
voltar logo para casa.
– Você é americano? – ela pergunta.
Minha máscara está em uma mesinha ali perto. Percebo que é a
primeira vez em um bom tempo que tenho uma conversa sem ela.
– Sou de Detroit – respondo. – E você?
– San Jose. Mas já morei em um monte de lugares.
Balanço a cabeça e dou uma espiada de canto de olho em seu
crachá de identificação.
– Morning. Nunca ouvi esse nome antes.
Seu olhar se volta para Éden.
– Quem escolheu foi mi abuelita. Ela falou que eu era como o
início de um novo dia.
É uma frase tão bonita que não sei o que responder. O silêncio
permanece por mais uns 30 segundos. O Alabama Shakes ainda
está reverberando nos meus fones, alto o suficiente para Morning
perceber. Ela aponta com o queixo para o fone.
– Posso ouvir?
Ela chega um pouco mais perto quando entrego o fone solto e
volto a música para o começo. Trinta segundos atrás, era uma faixa
sobre o espaço, a solidão e mundos diferentes. Mas, enquanto
escutamos juntos a letra acachapante, cada verso parece descrever
a distância entre nós dois. No placar, estamos a galáxias de
distância. Mas aqui e agora estamos com os ombros colados e com
as cabeças balançando juntas no ritmo do rock. É o tipo de
momento que se compartilha na mesa do refeitório do colégio, não
olhando para um planeta alienígena.
Fico contente por ela não comentar que se trata de uma música
perfeita para a ocasião. Morning faz o oposto do restante das
pessoas: simplesmente escuta. Sinto meu coração disparar no peito
quando a canção termina. Tento pensar em alguma coisa para dizer,
mas ela se manifesta primeiro.
– É uma música antiga. Não ouvi nenhuma morfagem nas letras.
– Pois é – respondo. – Eu não tenho nada dessas novidades.
– É apaixonado pelos clássicos?
Abro um sorriso.
– Na verdade tenho 53 anos de idade. Só pareço ser mais novo.
Pela primeira vez, ela sorri. Não é o mesmo sorrisinho que abriu
quando entrou no recinto. Vê-la assim é como descobrir um nível
bônus em um jogo difícil. Inevitavelmente, retribuo o gesto.
– Cinquenta e três, é? – ela pergunta. – Qual é o seu segredo?
– Suco de limão. – Uns cinco anos atrás, me lembro nitidamente
de ter visto minha mãe usando suco de limão em uns sinais de
envelhecimento no rosto. Meu pai a atormentou por isso por várias
semanas. – Foi só o que eu trouxe comigo na bagagem, aliás. Nada
de roupas, livros ou qualquer outra coisa. Só um monte de limões.
Preciso me manter jovem, sabe como é.
Ela dá risada.
– Então você é bonito e engraçado? Me deixa adivinhar: eles
fizeram um anuário na nave e você foi eleito o Mister Simpatia da
Gênesis 11?
Me prendo à parte em que ela disse que sou bonito. Morning fala
tudo com naturalidade, como se fossem fatos consolidados. Como
se fosse algo que eu estivesse cansado de saber. Meu cérebro tenta
elaborar uma resposta, mas acabo me perdendo em pensamentos
sobre Kaya. Em dois minutos, Morning foi capaz de me proporcionar
a mesma sensação reconfortante que a companhia de Kaya me
passava no começo. A única diferença é que Kaya me deixava
tranquilo, enquanto Morning me faz mergulhar no caos. Minha mão
direita está tremendo tanto que preciso escondê-la.
– Sem chance que eu seria o Mister Simpatia – digo por fim. –
Hilal ficaria com esse título, acho. O garoto é tão gente boa que
ganharia todos os votos. Sendo bem sincero, essa seria a única
unanimidade na nossa tripulação. E você? É a Pessoa com Mais
Chances de Virar Presidente?
Ela fica vermelha e faz que não com a cabeça.
– Eles aceitam minha liderança porque confiam em mim. Pelo que
vi ontem, isso vale para você também. Foi por isso que eu quis vir
conversar. Eu fiquei… sei lá… Você me deixou impressionada
ontem. Protegendo sua tripulação daquele jeito. Você gosta muito
deles.
– Na verdade não – respondo, o que a faz rir. – Mas Kaya gostava.
E sempre cuidava de todo mundo. Depois que ela morreu, ficou
impossível tratar o resto do pessoal como inimigo. Pareceu errado
fingir que ela não tinha mudado nada dentro de mim, sabe?
Ela me olha como se não soubesse do que estou falando. Então
lembro que a equipe Gênesis 12 não faz ideia do que aconteceu
com Kaya. Para eles, sua morte é uma misteriosa incógnita. O
sorriso desaparece do rosto de Morning quando ela nota a
expressão no meu rosto.
– O que aconteceu?
– Um acidente. Bem feio.
Ela fica em silêncio por um tempo antes de continuar:
– E vocês dois eram próximos.
– Era ela como uma irmã para mim.
Morning estende o braço e põe a mão sobre a minha. Ela dá um
aperto de leve, e por um instante imagino um mundo em que não
precisássemos passar os próximos 29 dias lutando com unhas e
dentes por cada ponto.
Um sorrisinho se desenha nos meus lábios.
– Nossa. Por que a sua mão está tão gelada?
Ela me lança um olhar escandalizado e tenta afastar a mão, mas
eu sou mais rápido e a seguro no ar. A mão dela é fina, cheia de
calos, e tem as juntas escurecidas. Eu a pego entre as minhas e
tento transmitir um pouco de calor. Por um longo momento, ficamos
simplesmente observando minhas mãos acariciando as suas.
Nossos olhares se encontram e…
… a porta se abre. Damos um pulo de susto tão alto que quase
vamos parar no teto.
Meu fone é arrancado da orelha dela, e nós recuamos um pouco,
como se estivéssemos querendo nos afastar de uma cena de crime.
Defoe entra pela porta, batucando com os dedos na tela portátil. Ele
nota nossa postura e abre um sorriso.
– Fazendo amizade? – Nosso silêncio o faz rir. – Perdoem a
intromissão.
Ele digita algumas coisas e o alarme de despertar reverbera. Os
assistentes aparecem em seguida, e os competidores começam a
se apresentar. Morning se distancia um pouco mais e cruza os
braços em uma postura de desafio. Tento pensar em alguma coisa
para dizer, mas seus parceiros de equipe da Gênesis 12 começam a
entrar, e é como se eu tivesse desaparecido. Vou para o outro canto
do recinto e espero os meus companheiros. O momento passou,
escorreu pelos nossos dedos. Por um instante ainda tento atrair o
olhar de Morning, mas a máscara de nyxia está em seu rosto agora,
trazendo consigo aquela expressão dura e implacável.
Ela está fazendo o que eu preciso fazer. Está vestindo a armadura
e se preparando para a guerra. Mas, enquanto o pessoal da
Gênesis 11 se reúne, e até quando nos encaminhamos para a
Aquavia, não consigo tirar da cabeça a imagem da mão dela entre
as minhas.
DIA 4, 11h57
A bordo da Estação Torre Espacial

Faz mais de 48 horas que meu mundo se resume a duas coisas:


Morning e derrotas. Não tivemos mais nenhuma chance de
privacidade. Não ouvimos mais músicas juntos. Porém, o ato de
trocar olhares com ela se tornou meu esporte favorito. E tudo isso
faz com que me sinta culpado, porque meu time está perdendo
todas as competições.
A Gênesis 12 se mantém sempre um ou dois passos à nossa
frente. A distância não parece ser assim tão grande. Estamos nos
saindo bem, mas sempre cometemos um erro que acaba custando a
vitória. Enfrentamos os pássaros e as enguias elétricas. Navegamos
pelas correntezas e submergimos em cavernas escuras. Morning,
porém, sempre consegue dominar logo de cara os novos elementos
do jogo. Como Kaya, ela entende tudo de primeira e nos ensina
vencendo a competição. Isso faz com que eu sinta ainda mais falta
da minha amiga, porque neste momento preciso dela ao meu lado
como nunca.
Não temos o hábito de socializar com os inimigos, mas as poucas
conversas ocasionais são bem instrutivas. A equipe deles tem uma
semelhança bastante clara com a nossa: o recrutamento da Babel
tirou todo mundo da pobreza. Está na cara que todos os
participantes têm seus próprios motivos urgentes para querer
chegar a Éden. Não importa se são da Colômbia ou da Índia. As
histórias são as mesmas. Uma vitória mudaria tudo quando
voltassem para casa.
Apesar de sempre sair vencedora, a Gênesis 12 continua se
esforçando ao máximo. Eles fazem as refeições juntos, discutindo
estratégias, e aproveitam o tempo livre para treinar. Quando eu
sugiro fazer o mesmo, as sessões de treinamento são um fiasco
total. Roathy e Isadora são infernais. Katsu e Jaime não levam nada
a sério. Perdemos essa batalha meses atrás, percebo, por causa
das rivalidades sinistras que Defoe criou entre nós.
Mas nem tudo está perdido.
Em meio à subida dos membros da Gênesis 12 no placar, a Babel
nos dá uma chance de lutar sozinhos. Um evento em que não
dependemos de ninguém além de nós mesmos. O dia começa e
termina com os desafios na Aquavia, mas entre uma navegação e
outra nós lutamos. As armas da arena ficam todas disponíveis nas
docas. Telões gigantes descem sobre a Aquavia, e vemos nossas
versões pixeladas matarem umas às outras. A competição na água
proporciona um contato distante com a Gênesis 12. Nos duelos,
podemos conhecê-los de uma forma íntima e pessoal.
Holly, a irlandesa de cabelos ruivos, tem um gancho de direita que
é um terror. Seu jogo de pés é até mesmo um pouco melhor que o
meu. Omar, o gigante egípcio, detona Katsu no primeiro dia usando
uma maça que eu nem sei se conseguiria erguer. E tem Anton. Ele
luta com facas, joga sujo e é veloz, perigoso tanto com a direita
quanto com a esquerda. É derrotado por Azima no primeiro dia, mas
no seguinte sangra Jaime como um porco.
Por sorte, nem todos sabem lutar. Parvin e Noor claramente se
valiam do mesmo tipo de estratégia que Kaya usava na arena.
Estavam acostumados a cortar alguém e passar o restante do
tempo se esquivando e se escondendo. Mas as lutas agora
acontecem no convés instável dos barcos de nyxia ancorados nas
docas. Não há para onde correr a não ser que a pessoa saiba como
combater debaixo d’água.
Alex, o colombiano alto e de cabelos cacheados, não é um
competidor ruim. Como no caso de Hilal, sua envergadura ajuda,
mas ele não é disciplinado o suficiente para vencer os melhores. No
primeiro dia, eu encaro Brett, o outro grandão da equipe deles.
Fiquei preocupado, mas então vi como ele se move. Pesado e
desleixado. Só preciso me esquivar de um avanço sem convicção e
acertar um golpe mortal em seu queixo.
Loche, outro que está perto de mim no placar, perde os dois
primeiros duelos. Ele solta um monte de palavrões quando é
derrotado, e os conversores de idiomas da Babel têm dificuldade em
transformar suas expressões típicas da Austrália em alguma coisa
inteligível para mim. Não tenho por que me preocupar com Loche
nem com Brett, mas a sequência de vitórias de Morning nos
desafios por equipe não parece nada próxima de acabar. Alex
inclusive já me ultrapassou na pontuação. Por isso, os duelos
ganham ainda mais importância. Preciso continuar à frente de
Roathy se eu quiser ir para Éden.
A pior parte é a situação de Hilal. Cada luta que ele deixa de fazer
custa caro. Pouco a pouco, eu vou subindo no placar, enquanto ele
faz fisioterapia e tenta pelo menos ficar pronto para usar uma bota
ortopédica que vai ajudá-lo a retornar à ação. Se as coisas
continuarem assim, um de nós vai acabar não indo a Éden.
Hoje minha oponente é Morning. Somadas, suas duas lutas
anteriores duraram dez segundos. Ponho minhas manoplas e
atravesso a rampa de embarque. Ela já está à minha espera, com
as machadinhas nas mãos. Quando vê que seu adversário sou eu,
tira a máscara de nyxia e com um gesto me pede para fazer o
mesmo.
Desde aquela manhã, nós não conversamos. Morning anda
ocupada demais treinando sua equipe para a perfeição. Mas, assim
que tira a máscara, o sorriso aparece em seu rosto. É o tipo de
sorriso que se vê antes de um encontro romântico, não em alguém
disposto a decepar membros com um par de machadinhas nas
mãos.
– Eu gostei de você – ela diz baixinho. – Gostei das suas músicas.
Gostei das suas piadas. Não é nada pessoal, mas, quando
estivermos nos enfrentando aqui, você não vai me vencer.
– Eu esperava que você pegasse leve comigo.
– Jamais – ela responde. – Sendo bem sincera, eu até acharia
bom ter alguém como você em Éden, mas só se fizer por merecer.
Copiou?
Eu levanto uma sobrancelha.
– Essa gíria é minha.
– Então vem tomar de volta – ela responde, abrindo um sorriso
bônus secreto. – Se conseguir.
Nós colocamos as máscaras de volta. Eu a observo erguer os
braços em uma postura defensiva. Acompanho o movimento de
seus músculos, o posicionamento de seus pés. Sei que ela vai
atacar e que, quando fizer isso, vai ser mais rápida do que imagino
e em um local inesperado. Seus olhos não deixam transparecer
nada, porque ela não olha para onde quer atacar, um erro que
muitos costumam cometer. Seus olhos estão cravados nos meus.
Ela faz uma finta com gestos largos, troca a posição dos pés, pula
para o meu raio de ação e ataca. A contorção de seu corpo para se
esquivar do meu golpe seria digna de poesia caso o verso final não
acabasse com sua machadinha cravada no meu pescoço. Morning
gira o corpo para evitar meu segundo golpe e enfia a segunda arma
na minha barriga. No telão, meu avatar desaba. Puxa, como ela é
rápida!
– Quatro segundos – ela murmura.
Quando passa por mim, Morning me dá uma ombrada em um
gesto brincalhão. Atravesso de volta a rampa de embarque para me
juntar aos outros, tentando manter a calma. Assisto às demais lutas
sem muito interesse. Isadora vence Brett, Jazzy perde um duelo
desequilibrado com Omar e Hilal perde por WO para Anton. Só no
último combate minha atenção se volta de novo para os barcos.
Loche, o garoto do cabelo estiloso, está diante de Longwei. Antes
que a luta comece, Morning atravessa correndo a rampa de
embarque, cochicha alguma coisa para Loche e volta. O australiano
abre um sorriso tenso e avança.
Todos nós nos debruçamos sobre a grade da plataforma para ver,
como se um sussurro de Morning pudesse resultar em algum tipo de
milagre. Mas Loche parece o mesmo descoordenado de sempre.
Ele se agacha para se esquivar de um golpe da espada de Longwei,
defende o segundo por pouco e diminui a distância entre os dois.
Mas, em vez de atacar, simplesmente abraça Longwei e se joga da
amurada. Vemos os dois afundarem na água azul-escura, para
longe das vistas. As águas se acalmam, e não vemos nada além
das corredeiras.
Nossos olhos se voltam para o telão com os avatares. A figura de
Loche permanece calma, com os batimentos acelerados, mas ele
ainda está vivo. Longwei está se debatendo loucamente na tela.
Seus batimentos estão a mil, e seu nível de oxigênio está
desabando. Loche vai afogá-lo.
Passo correndo pelos outros e me posiciono ao lado de Defoe.
– Você não pode deixá-lo se afogar.
– Ele não vai se afogar. Temos um sistema de segurança em
funcionamento.
O avatar de Longwei está começando a ficar azul. A
movimentação desesperada de seus braços fica cada vez mais
fraca. Eu me viro para Morning. Por baixo da máscara, seu olhar é
duro e implacável.
– Foi isso que você disse para ele fazer? Que golpe baixo!
Morning nem pisca.
– Você também faria isso se fosse a única maneira de vencer.
Balanço negativamente a cabeça e me viro para a tela. O avatar
de Longwei está sem pulso. Os cachos dourados de Loche
aparecem fora da água. Debaixo de um dos braços, ele segura
Longwei, que está inconsciente. Mergulhadores aparecem do nada,
colocam uma máscara de oxigênio no rosto dele e o retiram da
Aquavia. Desço correndo as escadas da plataforma.
Posso não gostar de Longwei, mas ele me deixou ser seu capitão,
e isso significa estar presente em momentos como este. Fico ao seu
lado até ele ser reanimado. Seus olhos estão vermelhos, e seu
pescoço está marcado. Ele olha para as luzes lá no alto sem saber
ao certo o que aconteceu. Eu me agacho ao seu lado e ponho a
mão em seu ombro.
– Está tudo certo, Longwei – digo. – Você vai ficar bem.
O corpo dele inteiro estremece. Os médicos começam a fazer
perguntas e, enquanto estabilizam sua respiração, a mão de
Longwei pousa sobre a minha e dá um apertão. Ele não agradece
verbalmente, mas não precisa dizer nada. Quando ele é liberado,
voltamos juntos aos nossos aposentos.
– Eu perdi? – ele pergunta por fim.
Dou risada.
– Por pouco, Longwei. Por muito pouco.
Depois que o médico dele me garante pela terceira vez que vai
ficar tudo bem, saio pisando duro dos aposentos atrás de Morning.
Não sei por que estou tão irritado, mas sinto que é uma raiva
profunda. Sei que ela quer vencer e garantir à equipe da qual é líder
a viagem a Éden, mas Longwei poderia ter morrido.
Bato na porta dela por alguns minutos, sem resposta. Quando
volto à área comum, encontro Alex com um baralho na mão. Seu
olhar está voltado para os oceanos de Éden.
– Cadê ela?
Alex olha para mim.
– Quem?
– Morning. Preciso falar com ela.
Ele assente com a cabeça.
– Ela disse que você viria. Está na Sala do Coelho da Torre.
Treinando ou coisa do tipo. Me pediu para te avisar que estaria lá.
Agradeço e desço as escadas. Já usei a Sala do Coelho daqui
uma ou outra vez, para aquecer a musculatura antes das
competições do dia ou para um treinamento extra. Quanto mais me
aprofundo na estação, menos encontro militares e técnicos da
Babel. Vandemeer me explicou que os funcionários instalados aqui
são os que têm contratos mais longos. Alguns estão na estação há
quase uma década. Percorro um corredor largo que dá acesso a
passagens menores.
A distância, vejo Morning encostada na porta da Sala do Coelho,
como se estivesse me esperando há um bom tempo. Está com os
braços cruzados, e pelo jeito não estava se exercitando. Sua
máscara está pendurada no cinto de ferramentas do traje.
– Ei, preciso falar com você – aviso.
Ela se desencosta da parede e vem até mim.
– Eu também.
– Escuta só, isso que o Loche fez…
Morning me interrompe com um gesto de mão e um olhar. Quando
estou prestes a voltar a falar, ela encurta a distância entre nós a
ponto de eu sentir que estamos respirando o mesmo ar e baixa o
tom de voz para um sussurro:
– Vamos conversar longe das câmeras.
Uma sensação um tanto inebriante me domina quando ela se
afasta e me faz um gesto para segui-la. Morning entra em um dos
corredores laterais, olha para mim por cima do ombro e ingressa em
uma das salas de operações. O convite para que eu entre é
evidente, mas fico parado no corredor vazio, porque não tenho ideia
do que está acontecendo.
Morning quer conversar mesmo ou será que quer conversar? Por
mais que eu goste de ficar me gabando para os Manos de Elite,
nunca tive uma conversa desse tipo com uma garota como Morning.
Uma coisa é fazer umas gracinhas para Shae Westwood ou
Samantha Givens em uma festa no porão de alguém. Esse tipo de
conversa com garotas como elas acontece naturalmente. A coisa
nunca avançou porque éramos só crianças. Mas com Morning é
diferente. Eu me dou conta de que meu preparo para situações
como esta se limita ao que ouvi em letras de música ou vi em filmes.
Limpo o suor da testa antes de entrar.
Basta dar dois passos para dentro para uma coisa ficar clara: ela
tem outra ideia em mente.
Morning está à minha espera no fundo da sala, com as mãos na
cintura e a máscara no rosto. E não está sozinha. Anton aparece
das sombras com uma faca apontada para mim e faz sinal para eu
continuar andando, enquanto Omar bloqueia a porta. O egípcio
manipula a sua nyxia e a estende pela abertura da porta como uma
cortina. O eco no interior da sala fica mais forte, como se
estivéssemos isolados do mundo. Meu olhar se alterna entre os dois
antes de pousar sobre Morning.
– Por que essa encenação toda no estilo James Bond?
Enquanto faço a pergunta, percebo que estou irritado. Tanto por
ter me deixado levar por ela como pela vergonha de ter imaginado
um contexto tão distante da realidade. Morning nem pisca diante da
minha encarada.
– Precisamos falar com você – Morning diz. – Sem a Babel ouvir.
– É por isso que vocês estão em três e eu, sozinho?
– Omar fez questão de vir. Só estamos sendo cuidadosos.
– Certo. Então, se eu não quiser conversar, vão me deixar ir
embora?
Anton gira a faca na mão.
– Existem outras maneiras de extrair informações de você.
– Para com isso, Anton – Morning esbraveja, dando um passo à
frente. Ela volta a atenção para mim: – Se quiser ir embora, pode ir.
Trouxe você aqui porque sei que é uma pessoa de confiança. Sei
que podemos fazer algumas perguntas sem que vá correndo contar
para a Babel.
Olho feio para ela.
– Tem certeza?
– Claro que tenho – ela responde. – Já vi como você olha para
eles, Emmett.
– Então tá. – Ela tem razão, mas não estou gostando do rumo da
conversa. – O que querem saber?
– A garota – diz Morning. – Como ela morreu?
– Kaya. O nome dela era Kaya.
– Kaya – corrige Morning. – Como Kaya morreu?
– Já falei que foi um acidente.
– Tudo bem, mas existem acidentes e acidentes. A culpa foi de
quem?
As palavras ficam presas na minha garganta. Por um instante
chego a pensar em mentir, mas a memória de Kaya merece coisa
melhor.
– Foi culpa nossa. Nós dois estávamos explorando uma área
proibida da nave.
– E então? – questiona Anton. – Ela foi sugada por uma passagem
de ar?
Hesito de novo. Defoe só me deu uma ordem: não contar aos
demais sobre o adamita. Talvez eles usem o que eu disser contra
mim. Talvez queiram me ver desclassificado. Mas eu conheço
Morning o suficiente para saber que não é assim que ela deseja
vencer. Ela acha que consegue estimular sua equipe a fazer por
merecer um lugar em Éden. Morning não sacaneia, porque
consegue vencer jogando limpo. Me dou conta de que, exceto a
Vandemeer, não contei para ninguém como Kaya morreu. É um
fardo que estou carregando sozinho. Mas aqui e agora estamos
conversando longe dos ouvidos da Babel.
– Ela foi morta por um adamita.
Anton assobia por entre os dentes. O russo começa a me rodear,
inquieto, jogando a faca de uma mão para a outra. Morning reflete
sobre minhas palavras e seu significado.
– Por que um adamita a mataria? – ela pergunta. – A Babel diz
que eles adoram pessoas mais jovens.
– Ele estava vendado. Não tinha ideia de quem estava atacando.
Era mantido preso a uma parede pela Babel. Em uma sala de
tortura. Atacou Kaya porque pensou que fosse um deles.
Anton solta um palavrão. Do outro lado da sala, Omar comenta:
– Você tinha razão, Morning.
Morning assente com a cabeça.
– Então a história envolve muito mais do que a Babel vem
contando.
– Sempre envolveu – Anton comenta, raivoso. – Tem sempre uma
explicação por trás dos truques de ilusionismo. Se me autorizar,
Morning, eu posso ir mais fundo nessa história.
Ela franze a testa, mas faz que sim com a cabeça.
– Vai em frente. Mas toma cuidado.
Um sorriso sinistro se forma no rosto dele.
– Está falando sério?
Ela assente outra vez.
– Pode ir.
Ele enfia a faca no bolso e sai andando na direção da barreira que
Omar colocou na porta. O egípcio o deixa passar, e o som dos
passos de Anton se torna mais distante. Me viro de novo para
Morning.
– Que tal me contar que diabos está acontecendo?
– Você ouviu falar dos Arquivos da Babel quando estava na
Gênesis 11?
– Sim, todo mundo ficou sabendo. Uma reportagem, né? Que
alguém lá na Terra escreveu sobre nós?
– Exatamente. Você chegou a ler essa matéria? – ela pergunta.
Faço que não com a cabeça.
– Como eu poderia ler? Estamos no espaço.
– Anton – ela responde. – Ele conseguiu o arquivo. Nós lemos
juntos. A pessoa que escreveu a reportagem tem um monte de
teorias. Sobre a Babel. Sobre tudo. Você já teve a sensação de que
pode estar acontecendo alguma coisa maior por aqui?
Penso a respeito. Percebi um monte de sinais de alerta ao longo
do caminho, mas nada muito específico.
– A Babel é corrupta e poderosa. O que mais eu preciso saber?
– Nós não temos certeza – explica Morning. – Mas queremos
descobrir.
– Escuta só, fico feliz que tenham tempo para brincar de detetive,
mas eu não tenho. Você já está com a sua classificação garantida,
mas eu ainda preciso conquistar meu lugar em Éden. Seria ótimo
poder ajudar. Seria ótimo fazer justiça para Kaya. Mas no momento
preciso me concentrar na pontuação. Então, a não ser que tenha
outra coisa que queira me pedir, vou voltar lá para cima e me
preparar para o próximo desafio.
Morning me encara por um instante e faz um gesto de cabeça para
Omar. A barreira de nyxia volta a ser um anel, que ele enfia no
dedo. Depois de nos observar por um tempo, ele sai da sala. Fico
escutando até me certificar de que seus passos estejam bem
distantes. Quando Morning volta a me olhar, a frieza em sua
expressão desaparece.
– Eles são como meus irmãos. Só estão querendo me proteger.
– Não diga.
Ela estende a mão e a coloca sobre meu braço.
– Você tem razão. Não é justo pedir a sua colaboração sabendo
que tem outras coisas com que se preocupar. Mas eu estava
falando sério, Emmett. Você é a única pessoa em que confio que
veio da Gênesis 11. Sei que é honesto. E gosto disso.
Ninguém nunca me ensinou a receber elogios. Eu me limito a um
aceno de cabeça.
– Obrigado.
– Queria que você tivesse vindo comigo na Gênesis 12.
Depois de quatro dias de derrotas dolorosas, venho desejando a
mesma coisa. É impossível deixar de pensar em como teria sido. O
que teria significado para mim, para nós. Mas, se eu tivesse vindo
na Gênesis 12, nunca teria conhecido Kaya, nem Hilal, nem
Vandemeer. Nem seria quem sou hoje sem a colaboração de cada
um deles. E disso eu não abro mão.
– É tarde demais para mudar isso.
Morning aperta meu braço antes de soltá-lo.
– Quero você comigo em Éden – ela diz. – Quero mesmo, mas dei
minha palavra. Quando ficamos sabendo da existência do seu
grupo, prometi para minha equipe que lutaria todos os dias para
levar todos a Éden se eles confiassem em mim para ser sua líder. E
não vou deixar de cumprir minha palavra, Emmett. Nem mesmo por
você.
DIA 9, 18h20
A bordo da Estação Torre Espacial

Descemos o rio em silêncio. Estamos navegando pelas corredeiras


às escuras por 30 minutos – tempo demais para o meu gosto. A
Babel apagou todas as luzes da Aquavia. Segundo Defoe, para
simular as noites sem luar de Éden. A única iluminação disponível
vem da tela do sistema de sonares de Jazzy. Pequenas luzes
verdes piscando em um mar de preto. O único som audível é o do
rio. Nós nos comunicamos por meio de sussurros tão baixos que
parecem pensamentos.
– Estamos a 20 metros de uma rocha – falo baixinho. – Pre-
cisamos nos deslocar 10 metros para a esquerda para chegar ao
próximo estreito.
Sentimos uma mudança sutil de direção. Uma luz pisca a distância
e depois desaparece.
– Eram eles? – Azima murmura.
Ninguém responde. Começamos em uma direção pela Aquavia, e
a Gênesis 12 foi mandada na direção oposta. Captamos um sinal
deles no radar cinco minutos atrás, e continuamos à procura desde
então. Em algum ponto de uma passagem rochosa, nós o
perdemos. Pedi para Jazzy mandar sinais falsos de radar a cada
dez segundos. Hilal está ao lado dela no console, ajudando a
monitorar o terreno. Continuamos flutuando pela correnteza por
mais cinco minutos antes de Jazzy murmurar, toda animada:
– Achei. – Em sua tela, vejo um pontinho vermelho piscando sobre
o fundo preto. – Cinquenta metros à frente, em cima de uma rocha
enorme.
A rocha se impõe como uma sombra mais profunda e escura.
Adiante, o rio se divide em passagens menores. Por cima do ombro
de Jazzy, vejo que eles estão à espera no trecho mais estreito do
rio. A rocha em que estão fica bem no ponto de estrangulamento,
perfeito para emboscadas.
– Vamos ancorar aqui – ordeno. – Sem nenhum ruído. Jazzy,
continua escaneando a cada dez segundos.
O trabalho é feito em silêncio. Quando estamos parados perto das
rochas mais próximas, reúno a tripulação no centro do barco. Seus
rostos não são reconhecíveis em meio ao breu.
– Como saber se não é um sinal falso? – a voz de Jaime pergunta.
– Não tem como – respondo.
– É um ponto de estrangulamento – diz a voz de Katsu. – Aposto
que eles estão esperando por nós.
– Então por que não jogar uma isca para eles? – propõe Longwei.
– Podemos ir até o estreito, fazer um pouco de barulho e aparecer
prontos para a luta.
– Para quê? – pergunto. – Sabemos o que eles querem, mas não
estamos na posição mais vantajosa. Seríamos um alvo fácil.
– Então vamos nos separar – argumenta Longwei. – Olha só as
imagens escaneadas… As rochas em que estamos se conectam
com a rocha maior. Metade de nós pode ir escalando. Aí alguém
pega a bandeira deles lá no alto e finca a nossa. Assim vencemos.
– Para variar – Katsu murmura, amargurado.
– Até pode ser uma boa ideia – respondo. – Mas não estou
conseguindo ver nem a cara de vocês agora. Como vamos
conseguir chegar até lá?
Todos ficam em silêncio. Longwei responde:
– Na manha.
As risadinhas se espalham.
– Certo – digo. – Vamos fazer isso.
Combinamos que Katsu, Longwei, Hilal e Jazzy vão ficar a bordo.
Os demais se preparam para uma escalada traiçoeira e
escorregadia. Memorizamos as formações rochosas e
determinamos juntos a distância. Azima sugere usar a nyxia para
melhorar a aderência. Demora alguns minutos, mas nós
manipulamos os melhores pares de luvas que somos capazes na
escuridão.
– Todos prontos? – pergunto.
As afirmativas saem mais baixas que os barulhos do rio. Vamos
tateando as pedras e começamos a rastejar fazendo o mínimo ruído
possível. Minha barriga e meus joelhos começam a arder à medida
que avançamos. Mesmo quando o caminho se torna mais largo,
continuo me arrastando. Dá para sentir o terreno escorregadio à
direita e à esquerda. Um movimento em falso e cairemos na água.
Com certeza os mergulhadores da Babel estão a postos, mas não
quero pagar para ver.
Apesar do breu, encontramos a primeira elevação da rocha sobre
a qual o barco deles está atracado. Azima esbarra em mim por trás
quando paro para tentar em vão escrutar o cenário em busca de
alguma coisa estranha. Mas está escuro demais. Continuamos
rastejando. Ouço um farfalhar de tecido em uma rocha atrás de mim
e interrompo todos os movimentos. Ficamos parados como
estátuas, mas nada acontece. Mais 3 metros e chegamos à beirada
da rocha. A sombra mais profunda da embarcação deles se revela.
Estendo a mão para me certificar de que esteja mesmo lá.
Prendendo a respiração, rastejo na direção contrária, voltando.
Roathy e os outros estão deitados de bruços. Verifico se estão no
ângulo certo e posiciono minha lanterna no calcanhar da bota de
Azima. Pisco a luz duas vezes e volto a me deitar.
Ouvimos o leve ruído do motor do nosso barco. Jazzy estimou em
um minuto o tempo para chegar ao estreito na velocidade mais lenta
possível. Conto os segundos quando vejo a sombra se deslocar.
– Certo, Azima. Vamos saltar pela amurada – murmuro. – E você
faz a captura.
– No encosto do assento do capitão, certo? – ela pergunta.
– Isso. – Ouvimos um leve rugir de motor à esquerda. – Trinta
segundos.
Pontos verdes se elevam acima de nós. Eu pisco algumas vezes.
– O que é isso? – Azima murmura.
Os pontinhos começam a se deslocar no ar como vaga-lumes.
– Parecem olhos – Isadora comenta.
A Gênesis 12 vem para cima de nós. Alguma coisa pesada me
esmaga contra a pedra. Meus braços são puxados para trás e
minhas mãos são amarradas. Os meus colegas resistem, mas não
por muito tempo. Somos imobilizados com o rosto para baixo e
amordaçados antes de darmos o grito de alerta. O equipamento que
estão usando na cabeça brilha o suficiente apenas para diferenciar
seus rostos. Anton é quem está de pé junto a nós, com os cabelos
molhados e jogados para trás.
– Pegamos os patinhos – ele murmura. – Agora só falta a mamãe
ganso.
O brilho esverdeado dos equipamentos desaparece quando eles
voltam para o barco. Vemos as sombras sumirem pela beirada da
rocha. Um instante depois, eles soltam o mecanismo de sucção, e o
barco cai na água. Nossa tripulação é facilmente neutralizada.
Nossa bandeira é tomada. As luzes se acendem, e esperamos
pacientemente até que Anton e Omar nos desamarrem. Morning
ordena que eles desfaçam as manipulações de nyxia antes que
possamos ver os óculos de visão noturna que usaram.
Longwei e os demais nos encaram, sem saber direito o que
aconteceu. Só o que podemos fazer é encolher os ombros em
resposta. Defoe e Requin aparecem na plataforma mais acima. Eles
apontam a saída por uma passagem lateral. Na volta, passamos por
um dos placares espalhados pelo caminho, um dos vários lembretes
do nosso fracasso.

1. MORNING 1.151.200 pontos


2. LONGWEI 701.900 pontos
3. KATSU 658.450 pontos
4. PARVIN 624.200 pontos
5. HOLLY 614.700 pontos
6. OMAR 612.000 pontos
7. NOOR 572.050 pontos
8. ANTON 568.290 pontos
9. AZIMA 553.750 pontos
10. HILAL 532.300 pontos
11. ALEX 532.200 pontos
12. JAIME 529.200 pontos
13. EMMETT 494.350 pontos
14. ROATHY 489.325 pontos
15. JASMINE 484.050 pontos
16. IDA 447.400 pontos
17. ISADORA 427.960 pontos
18. LOCHE 420.500 pontos
19. BRETT 387.000 pontos

– Não está dando certo – comenta Katsu, irritado. – Sem querer


ofender nem nada, Emmett, mas não ganhamos nenhuma vez com
você como capitão. E hoje foi péssimo. Simplesmente horrível. Eles
sempre têm um plano que dá certo.
– Se você tinha um plano melhor, por que não falou? – retruco.
– Porque eu sou um condutor, não o capitão. A obrigação de ter
ideias é sua.
Os outros membros da nossa tripulação detêm o passo. A Gênesis
12 passa por nós, e Anton começa a aplaudir.
– Mais um esforço louvável! Continuem assim!
Katsu faz menção de ir atrás dele, mas Longwei e Jaime o
seguram. Quando a Gênesis 12 some das vistas, Katsu se vira para
mim.
– Não está dando certo – ele repete.
– Nós chegamos perto – digo, exaltado. – Todas as vezes. Com
mais alguns dias…
– Chegar perto não é o mesmo que vencer – rebate Katsu. –
Enfim, para mim nem faz tanta diferença. Eu sei que vou para Éden.
Mas o restante de vocês precisa dar um jeito nisso. Eles ganharam
16 vezes seguidas. São 54 mil pontos. Se a gente continuar
perdendo, vocês estão fora. Ponto final.
Ele sai pisando duro. Eu olho para os demais. Jaime está com
uma expressão solidária, mas não diz nada para me defender. Até
mesmo Hilal prefere evitar o contato visual. Decido lavar as mãos.
– Se é isso que vocês querem, então podem eleger outra pessoa –
digo. – Não estou nem aí.
Continuo parado, e irritado, enquanto os outros se afastam. Me
sinto deixado para trás, incomodado com a rejeição e quase
arruinado no placar. Loche está ganhando terreno a cada fracasso
meu. Espero alguns minutos para esfriar a cabeça antes de me
juntar aos demais. Preciso dormir para esquecer. Todo mundo
precisa. Talvez amanhã eles percebam o quanto estamos perto da
vitória.
As vozes exaltadas chamam minha atenção. Pensei que o
restante da equipe estivesse longe a esta altura, mas uma
discussão se eleva de um dos corredores laterais e ecoa na
passagem principal. Sigo as vozes até que as palavras se tornem
claras, assim como os envolvidos na briga.
– Do jeito que você fala, parece que eu não estou tentando –
acusa Roathy.
A voz de Isadora sai mais baixa, porém mais feroz:
– E está tentando? Sinceramente não sei. Parece que você
desistiu de mim. Faltam duas semanas, Roathy, e você não avançou
nada. Se não quer ficar comigo, é só dizer.
A voz dele soa irritada:
– Claro que eu quero ficar com você.
– Então mostra com atitudes – ela esbraveja. – Não vou conseguir
fazer isso sozinha. E é o que vai acontecer. Vou ter que descer lá
sem você e passar por tudo sozinha.
– Isa… eu estou tentando.
– Se esforça mais – ela resmunga. – É disso que eu preciso: que
você se esforce mais.
Há um silêncio, então o som de passos, e quase dá tempo de eu
me esconder em uma salinha adjacente. Das sombras, observo
Isadora se afastar. Espero que Roathy vá atrás, mas ele não passa
por mim. Alguns minutos depois, saio do meu esconderijo e vou
espiar.
Eles estavam em um dos casulos de relaxamento. Roathy está
parado em silêncio, olhando por uma janela para a escuridão
infinita. Fico à espera na porta de entrada. Por um instante, chego a
pensar em fazer o que Kaya faria. Conversar com ele, dar uma força
e me certificar de que está tudo bem.
Mas então ele solta um grito de frustração e joga longe todo o
conteúdo da mesinha mais próxima. As canecas de porcelana se
estatelam na parede, elevando nuvens de poeira branca no ar. Ele
não para por aí. Continua quebrando tudo, e sou obrigado a me
afastar. Sigo com passos apressados pelo corredor. Mesmo depois
que estou em segurança no meu quarto, a explosão de Roathy
continua a reverberar dentro de mim.
O jogo da Babel está chegando ao fim. Os gritos de Roathy podem
muito bem ser profecias. Quando a competição acabar, vai haver
vencedores e perdedores. Sempre pensei que as coisas ficariam
mais tranquilas quando passássemos pela linha de chegada, mas
estava enganado. Estamos todos disputando os mesmos prêmios. A
linha de chegada vai ser um caos. Nela, vão se testemunhar os
últimos esforços e as últimas tentativas dos que estão
desesperados.
E eu vou estar no meio desse bolo.
DIA 10, 8h03
A bordo da Estação Torre Espacial

Na manhã seguinte, um novo capitão é escolhido, e eu sinto o


golpe. Sei que fui um bom líder, mas no fim isso não faz diferença.
Eu não sou Kaya. Não tenho a facilidade dela para elaborar táticas
ou estratégias inteligentes. Não basta me preocupar com a equipe e
me sacrificar pelos demais. Eu fracassei.
Meu ressentimento contra Morning e a Gênesis 12 fica ainda
maior. Nos três dias seguintes à promoção de Katsu a capitão,
conseguimos nossa única vitória. Sentir esse gostinho bastou para o
restante da tripulação acreditar que ele vai fazer a diferença e que
agora vamos começar a angariar pontos.
Mas eu sei qual é a verdade. A Gênesis 12 é obrigada a deixar um
competidor de fora a cada dia, em um revezamento. Nós vencemos
no dia em que Morning não competiu. Quando ela está na jogada, a
balança pesa a favor deles. Simples assim. Precisávamos vencer a
disputa da tarde também, mas Katsu nos fez encalhar e ser
massacrados. Mesmo assim, a única vitória fez todos se voltarem
para Katsu em busca de estratégia, acreditando que vamos
conseguir virar o jogo. Uma simples olhada no placar de hoje mostra
que a liderança de Katsu é uma esperança falsa:

1. MORNING 1.184.200 pontos


2. LONGWEI 710.900 pontos
3. KATSU 667.450 pontos
4. HOLLY 644.700 pontos
5. OMAR 642.000 pontos
6. PARVIN 641.200 pontos
7. ANTON 595.290 pontos
8. NOOR 593.050 pontos
9. AZIMA 565.750 pontos
10. ALEX 556.200 pontos
11. HILAL 535.300 pontos
12. JAIME 535.200 pontos
13. EMMETT 506.350 pontos
14. ROATHY 498.325 pontos
15. JASMINE 490.050 pontos
16. IDA 468.400 pontos
17. LOCHE 441.500 pontos
18. ISADORA 439.960 pontos
19. BRETT 411.000 pontos

Ontem, os nomes de Omar e de Anton apareceram em itálico. Eles


estão matematicamente classificados, não podem ser alcançados.
Sete de nós ainda estão na briga; quatro vão ficar de fora.
Vandemeer se sentou comigo para analisar os números. Não
demoramos muito tempo para concluir que Alex está fora do alcance
também. Nem Vandemeer, nem eu temos esperança de que vamos
começar a derrotar a Gênesis 12 com regularidade daqui para a
frente. Eles vão vencer a maioria das competições restantes, talvez
todas.
Também concluímos que é pouco provável que eu alcance Jaime.
Sou melhor nos duelos que ele, mas a distância no placar é grande
demais para tão pouco tempo. É muito mais provável que eu
ultrapasse a única pessoa que não quero superar: Hilal. Ele teve um
contratempo na recuperação da perna e teve que se ausentar de
todos os duelos. Mesmo que consiga uma recuperação milagrosa,
quantas lutas vai conseguir vencer?
As únicas verdadeiras ameaças vêm de baixo: Roathy, Loche e
Brett.
Roathy está se virando bem nos duelos. Encara cada luta como se
fosse questão de vida ou morte. Só estou conseguindo me manter à
sua frente por causa das minhas vitórias. E Brett está muito atrás no
placar. A verdadeira ameaça é Loche. Sua pontuação melhora a
cada dia. O australiano nem se sai muito bem nos duelos, mas, se
as coisas continuarem assim, isso não faz diferença. A matemática
não mente.
Temos mais 17 dias pela frente. Duas competições diárias. São
102 mil pontos em disputa. Morning vai ficar de fora em dois desses
dias, portanto quatro competições. Se conseguirmos vencer essas,
vamos ganhar 12 mil pontos. Tomando como base os primeiros 13
dias, a Gênesis 12 vai ficar com os outros 90 mil pontos em disputa.
Tenho uma vantagem de 65 mil pontos sobre Loche. Em condições
normais, eu diria que é uma diferença insuperável, uma vitória
consolidada, mas não é o caso, por causa de Morning. Os duelos
tornam a pontuação imprevisível, mas, nas projeções mais otimistas
de Vandemeer, ainda consigo manter alguns milhares de pontos de
vantagem sobre Loche. Nos cenários mais desfavoráveis, posso
perder pela mesma margem. É uma situação indefinida demais para
me deixar confortável.
Portanto estou absolutamente concentrado quando subo a bordo
hoje, ciente de que estamos quase na metade da última parte da
competição. Katsu renomeou as estações. Chama Jazzy de nossos
olhos. Jaime e eu somos os quadris, uma denominação sempre
acompanhada de um sorriso. Longwei é a coluna vertebral, e as
quatro estações de defesa são os punhos. Não me interessa como
ele chama cada coisa; só quero conseguir arrancar uma ou outra
vitória inesperada. Longwei aciona o motor, e vamos até a posição
de largada. A Gênesis 12 já está lá. Anton e Alex estão na amurada
mais próxima e apontam para o placar com expressões confusas.
– Alex, você reparou alguma coisa… estranha? – Anton pergunta
com uma curiosidade fingida.
– O placar – responde Alex. – Acho que está quebrado.
– Como assim? – Anton sorri.
– Parece que só os pontos dos membros da Gênesis 12 estão
sendo somados. Que injustiça!
Nossa tripulação não responde. Até mesmo Katsu desiste das
provocações. Com um histórico de derrotas como o nosso, chega
uma hora em que não há mais o que dizer. Enquanto esperamos,
sinto a presença de Jaime na outra ponta da conexão de nyxia. Meu
console parece a tela de um computador de alta tecnologia.
Organizo meus controles em uma única fileira de ícones, pronto
para acionar a sucção, o impulso ou o mergulho a qualquer
momento. O papel de condutor é estranho. Os controles são bem
sensíveis. No primeiro dia, fiz o nosso barco deslizar desgovernado
para tudo quanto era lado. Mas agora Jaime e eu encontramos
nosso ritmo. O fato de nossa animosidade inicial ter esfriado ajuda.
Hoje, Requin aparece sozinho. Seus cabelos grisalhos estão
bagunçados, mas ele traz um sorriso no rosto. Ultimamente anda
sorrindo bastante. Está orgulhoso de sua tripulação.
– Hoje a corrida vai ter três voltas – ele anuncia.
Sem dizer mais nenhuma palavra, ele ativa a Aquavia. As cordas
desaparecem, e nós largamos bem. Jazzy lança o escaneamento de
pulsação, e ficamos esperando que ela defina o percurso. Omar e
Longwei têm desempenhos similares no acionamento dos motores.
A diferença é o que Morning consegue fazer com a potência
disponível.
– Nada de diferente no escaneamento – anuncia Jazzy.
– Estações de defesa – Katsu comanda –, estejam preparados
para tudo.
Mantemos o curso, e Jazzy volta a relatar a situação dez
segundos depois. Estamos mantendo um ritmo bom a favor da
correnteza.
– Ainda nada – ela avisa.
Olho ao redor e percebo que estamos firmes. A esta altura, já
sabemos como a Babel funciona. Quanto menor parece o obstáculo,
maior o monstro à espera na próxima curva. Continuamos pegando
velocidade e, quando contornamos a primeira curva, Jazzy continua
sem relatar nenhum obstáculo. Olho para cima e percebo que
estamos rápido demais para Requin conseguir acompanhar. Mais
uma olhada revela que ele está 200 metros para trás, à espera na
plataforma de observação. Em geral eles vão andando ao ponto de
estrangulamento mais próximo para ver como nos viramos. Hoje
não. Isso significa que…
– Mais velocidade! – grito. – Precisamos pegar a maior velocidade
possível.
Vinte metros à nossa direita, a Gênesis 12 já está se adaptando às
condições. Omar e Morning dobram a potência dos motores, e eles
já estão na frente por meio barco. Katsu está olhando para a água
com uma expressão cautelosa.
– Não quero ser pego de surpresa na próxima curva – ele diz. –
Acelerando demais, corremos o risco não conseguir evitar o que
estiver à espera.
Dou uma olhada para ele.
– Não tem nada à espera. Nenhum ponto de estrangulamento nem
obstáculo. É uma prova de velocidade.
Katsu não parece muito convencido.
– Jazzy? – ele pergunta.
– Ainda nada.
Irritado, eu me levanto da minha estação. A Gênesis 12 está
abrindo vantagem, e Katsu não consegue se decidir. Mas ainda dá
tempo. Tiro Hilal de sua estação. Katsu grita alguma coisa, mas eu
ignoro. Minhas mãos mal seguram os controles e a nyxia já se
transforma diante dos meus olhos. Uma arma de agarrar. Faço
pontaria, ajusto a mira de acordo com a velocidade e disparo. Todos
observamos o gancho preto atravessar o rio, pousar no convés do
outro barco e se prender. Há um clique distante quando o gancho se
crava na amurada de madeira.
– Eles vão perceber logo – digo pelo comunicador da conexão de
Hilal. – Precisamos estar na velocidade máxima quando isso
acontecer. É o que eles estão fazendo.
Uma rápida olhada revela que estou certo. Todas as quatro
estações dos punhos estão voltadas para dentro do barco deles.
Todas as energias estão sendo direcionadas a Morning, que
repassa para Omar. E provavelmente foi por isso que Ida não
reparou que tem um gancho preso a poucos metros de sua estação.
A Gênesis 12 está navegando três vezes mais rápido que nós, mas
o gancho nos mantém no mesmo embalo. Ouço um grunhido no
nosso barco, e Katsu me encara com os olhos estreitados.
– Certo – ele cede. – Todos os punhos precisam reverter a energia
para mim. Eu repasso para Longwei.
A tripulação dá o consentimento, e em pouco tempo nosso motor
está a toda força também. Morning olha para trás o tempo todo,
perguntando-se como conseguimos acompanhar, então Ida enfim
percebe que o gancho está lá. Furiosa, Morning manda Ida arrancá-
lo.
– Hilal, vem aqui. – Ele manca até mim. Nossa velocidade mais
alta faz a corda ficar frouxa. Eu a puxo por cima da amurada até
deixá-la um pouco mais esticada. Com um sorriso, ofereço a Hilal
um pedaço para que ele possa segurar também. – Já brincou de
cabo de guerra?
Ida demora alguns segundos para soltar o gancho da lateral do
barco. Esperamos até que ela o liberte. Quando ela está prestes a
lançar o implemento de metal sobre a amurada, nós puxamos. O
efeito não é tão dramático quanto eu esperava, mas o tranco no
braço faz seu ombro se projetarem para a frente. Ela perde o
equilíbrio e cai na água.
A tripulação da Gênesis 11 vibra. Sem Ida, os números estão a
nosso favor. Em pouco tempo estamos voando baixo pela superfície
sem obstáculos da Aquavia. A velocidade parece perigosa, mas
Katsu e os demais percebem que tomamos a decisão certa.
Completamos a primeira volta com uma boa vantagem na liderança.
– Como estão as coisas aí, Longwei? – Katsu pergunta.
– Estou bem – ele responde baixinho. – Firme e forte. Com vocês
todos me energizando, a potência fica absurda.
Contornamos mais uma curva. A Gênesis 12 está ficando para
trás. Isadora avisa que estão a 100 metros de distância. Não estão
conseguindo manter o ritmo sem Ida. Todos continuam
concentrados quando passamos de novo pela linha de largada.
– Vamos diminuir um pouco a velocidade? – questiono.
– Para quê? – Katsu rebate. – Estamos vencendo. Não vamos dar
chance para eles.
Estamos contornando a segunda curva quando a vejo. Morning
está sozinha junto às grades de metal à nossa esquerda. Seu traje e
seus cabelos estão encharcados, e suas mãos estão esticadas.
Sobre a superfície da água, ela moldou um impressionante paredão
de rochas de nyxia, que se estende por toda a largura de 70 metros
do rio, deixando apenas uma pequena abertura na extremidade da
Aquavia. Nunca vi ninguém manipular tanta nyxia. É impossível.
Katsu é o primeiro a entrar em pânico.
– Para a direita! Para a direita! Precisamos atravessar a pas-
sagem!
Os motores são desligados, e sinto o impulso de energia que
Katsu oferece para Jaime e para mim. Sua força mental é bruta, e
ele redireciona os lemes e aponta o nariz do barco para a abertura.
Morning observa enquanto nosso barco muda de direção rápido
demais, o que o faz se inclinar perigosamente e começar a virar.
Jaime aciona a sucção, mas não basta para reverter o impulso.
Todos gritamos quando o barco tomba. A água escura enche meus
pulmões. Dou várias cambalhotas dentro d’água. Meus ouvidos
doem, meus olhos se fecham e alguma coisa se gruda ao meu
corpo. Sinto uma pancada no pescoço. E um impacto nas pernas.
Sinto que vou morrer, mas então um braço me envolve pelo peito e
me puxa. Venho à tona respirando desesperadamente pela boca.
O cenário é de caos. Os mergulhadores entram pelas escotilhas
laterais e saltam na água. Todos sobrevivemos, mas o resgate
demora dois longos minutos. Vejo a Gênesis 12 contornar a curva
em alta velocidade. Até então agachada, Morning se levanta. Diante
de nossos olhos, ela caminha pela grade e põe a mão na rocha
mais próxima. Fico surpreso quando o paredão inteiro despenca
com um simples empurrão. Não eram rochas. Quando tudo cai
sobre a água, vejo que era uma espécie de divisória plana,
bidimensional, como os painéis usados como fundo de cenário no
teatro. A equipe dela passa voando rumo à vitória.
Morning sorri para nossa tripulação. Até me ver. O prazer da vitória
desaparece de seu rosto. A equação é bem simples. Quando ela
ganha, eu perco. Vejo uma pontada de culpa, mas os
mergulhadores a escondem do meu campo de visão. Não espero o
caos se dissipar porque não quero vê-la agora. Nós estávamos na
frente. Deveríamos ter ganhado e conseguido pontos cruciais, mas,
como sempre, Morning se revelou o verdadeiro obstáculo. Soltando
um palavrão, eu saio da Aquavia.
Depois do almoço, desconto minha raiva em Loche. Somos
escalados para um duelo, e ele tenta fazer comigo o mesmo truque
que usou contra Longwei. Ele quer se aproximar, me agarrar e me
jogar na água. Mas quem se aproxima de mim não sai ileso. Com
dois jabs, ele recua cambaleando. O soco seguinte o deixa de
joelhos. Estou sedento por mais, por sangue. Porém, quando vou
dar o golpe fatal, vejo a expressão no rosto de Loche.
Ele está me encarando como se eu fosse um monstro, um buraco
negro.
Alguma coisa murmura no meu ouvido para eu parar. Em vez de
destruí-lo, baixo as mãos e saio andando. Não sou um monstro. Não
vou me transformar no que a Babel quer.
Perdemos outro jogo de pega-bandeira à tarde, e me vejo na
mesma situação em que comecei o dia: perdendo terreno para a
Gênesis 12. O resto da tripulação está em frangalhos. Longwei dá
um murro em uma divisória de vidro quando voltamos aos nossos
aposentos. Ele está correndo o risco de perder seu posto de capitão
em Éden. Me sinto mal por isso, mas pelo menos ele vai estar lá.
Hilal e eu nos reunimos em seu quarto mais tarde.
Passamos os últimos dias ignorando o fato de que estamos
lutando um contra o outro pela última vaga. Sempre foi mais fácil
fingir que éramos nós contra o resto. Alguns dias depois de sua
cirurgia, o médico mostrou o vídeo de meu ataque a Longwei.
Alguma coisa indescritível se consolidou nesse momento. Ele me
olha e fala comigo como se eu fosse seu irmão. Não era isso que eu
queria. O sofrimento e a culpa são insuportáveis quando os laços se
quebram. Um galho pode ser cortado, mas as raízes continuam
profundas. Entretanto o que eu queria não importava. Quando você
é tratado como um amigo por alguém, é isso que se torna. As
palavras dele me transformaram em seu irmão. E as minhas
palavras só reforçaram essa relação.
É por isso que esta conversa com ele está sendo de cortar o
coração.
– Preciso começar a lutar logo – Hilal diz baixinho. – Mas meu
médico não liberou. Minha perna não aguenta um combate. Na
maior parte das vezes, vou perder feio. Está todo mundo me
alcançando.
Não posso fazer nada além de assentir.
– De repente você pode enfrentar os adversários mais fracos.
Ele fica em silêncio por um tempo.
– Você vai me ultrapassar.
Faço que não com a cabeça.
– Não dá para saber.
– O que tiver que acontecer vai acontecer.
– Hilal, ainda dá tempo. Talvez a nossa equipe consiga virar o jogo
contra a Gênesis 12.
– Acha mesmo? – ele pergunta.
Não. Claro que não.
– Pode ser.
Hilal balança a cabeça, como se acreditasse nisso.
– Nós podemos torcer.
– E alguém pode se machucar. Alex, talvez.
Hilal fica chocado.
– Nós podemos torcer, mas nunca por isso.
Eu torço para isso todo dia e rezo por isso todas as noites.
– Hilal, são eles ou nós. Você sabe, não?
– Não consigo desejar mal a ninguém. Eles também se esforçaram
bastante.
Faço que não com a cabeça.
– Eles não merecem tanto quanto você, que é uma pessoa boa.
Melhor que eu, melhor que eles. É por isso que merece ir, não
importa o que diga o placar.
Ele fica vermelho.
– Antes de vir para cá, eu dormia ao relento. Minha cama era um
tapete, e eu usava uma camiseta como travesseiro. Meus melhores
amigos eram carneiros, e minha família era miserável. Os
perdedores vão ser pagos também. Lembra?
Me lembro de um promessa em um pedaço de papel. Me lembro
do que a Babel nos garantiu sobre nossa estada na Gênesis 11.
Eles já descumpriram sua palavra antes, mas fico sem coragem de
dizer isso a Hilal. Respondo apenas:
– Lembro.
– É mais dinheiro do que meu pai ganhou a vida toda – Hilal diz
com um tom de voz sonhador.
Meu coração aperta só de olhar para ele. Faço uma promessa a
mim mesmo para caso consiga ir para Éden. Quando voltar, vou
levar meu pagamento para a Palestina e dividir com ele.
– O que você vai fazer com o dinheiro? – pergunto.
Seus olhos redondos estão distantes, perdidos.
– Vou comprar um rebanho para o meu pai. Vou para a escola. E
só com uma pequena parte do dinheiro dá para construir uma casa
três vezes maior que a nossa. A vida vai ser melhor.
– Eu vou visitar você – digo, apesar de parecer uma mentira. Não
existem garantias na vida, principalmente estando no espaço, à
mercê da Babel. – Vai ter que me ensinar a falar árabe.
Hilal fica com os olhos cheios de lágrimas.
– Eu torço por isso. Nem tudo está perdido, certo?
– Não – respondo baixinho. – Nem tudo está perdido.
DIA 20, 17h23
A bordo da Estação Torre Espacial

Eu sonho com Hilal. Ele está sozinho no deserto e eu sou o vento


que vem para devorá-lo.
Como Defoe prometeu, a Babel não vai conceder mais sabás.
Nesta etapa da competição, não há espaço para descanso. A
questão é descobrir quem consegue sobreviver às privações e sair
vencedor. Mas hoje é o último dia em que vamos poder falar com
nossas famílias antes de os vencedores partirem para Éden, por
isso a Babel programa ambas as competições na Aquavia para o
período da manhã e separa dez minutos de comunicação para cada
um à tarde.
Morning leva a Gênesis 12 à vitória duas vezes no intervalo de
uma hora. Depois que amargamos as derrotas e almoçamos,
Vandemeer me leva para a versão da Torre da Sala de Contato. Não
sei como dizer aos meus pais que ainda estou entre os quatro
últimos. Estou alcançando Hilal, mas ele ganhou seu primeiro duelo
ontem, contra Parvin. Ainda pode me vencer. E Loche ou Roathy
podem me alcançar. Como voltarei para casa de mãos vazias?
O cronograma das ligações é apertado, então não fico surpreso ao
topar com Morning saindo da Sala de Contato assim que chego.
Mas é uma surpresa vê-la chorando. Quando percebe que estou
parado na entrada, ela não parece envergonhada ou arrependida;
simplesmente dá um passo à frente e afunda a cabeça no meu
peito.
Acontece tão depressa que mal tenho tempo de abraçá-la. Ela
está chorando, mais alto e mais forte, e um milhão de frases inúteis
surgem na minha cabeça. Mas não sei por que ela está chorando
nem o que posso dizer. Então me limito a abraçá-la, como meu pai
fazia com a minha mãe, e como os dois faziam comigo.
Quando enfim ela se recompõe o suficiente para se afastar,
mantém uma das mãos no meu peito e usa a outra para limpar as
lágrimas. Morning funga duas vezes, respira fundo e olha para mim.
– Preciso que você me diga que vai ficar tudo bem.
– Quê?
– É só dizer. Diz que vai ficar tudo bem.
Olho bem para ela e falo as palavras bem baixinho:
– Vai ficar tudo bem.
Ela engole em seco uma vez, faz um aceno firme de cabeça e sai
da sala. Minha mente está girando a mil. Posso sentir que estou me
apaixonando por ela, mas, ao mesmo tempo, sei que é a pessoa
que tem mais chances de me mandar para casa. Um de nós vai
fracassar, e espero que seu sonho de levar toda a Gênesis 12 para
Éden acabe frustrado. Para que eu tenha esperança de ir, ela
precisa falhar.
Vou para a Sala de Contato e me preparo para a minha despedida.
Quando a tela acende, meu coração quase para de bater. Pela
primeira vez, minha mãe está sentada ao lado do meu pai. As
lágrimas escorrem pelo meu rosto, mas eu não as limpo. Seu sorriso
é como todas as alvoradas e os crepúsculos que perdi aqui na
solidão escura do espaço. Ela está usando um vestido leve azul, e o
tecido brilha em contraste com sua pele escura. Os cabelos estão
presos em um coque bonito. Seus olhos brilham de orgulho.
– Meu menino – ela diz, com uma voz mais doce que qualquer
canção. – Meu menino corajoso.
– Mãe, que saudade de você!
Meu pai está com um braço sobre os ombros finos dela. Ela se
inclina mais para perto dele e abre um sorriso ainda mais largo.
– Seu pai me contou tudo. Nosso orgulho não poderia ser maior.
Balanço afirmativamente a cabeça. Tem coisas demais que quero
lhe dizer. E sai tudo em um jorro só.
– Ainda falta um tempinho, mas acho que consigo, mãe. Acho que
vou me classificar. Quando eu voltar, vamos ser ricos e vamos sair
para jantar e comprar vestidos bonitos para você. Pai, vou comprar
um carro para você. Não um Ford. Esquece a Ford. Vou comprar
uma Ferrari ou coisa do tipo. Quando eu voltar, vai ser tudo
diferente.
Minha mãe assente com a cabeça.
– Já recebemos os primeiros cheques. Já está tudo mudando. E
meu tratamento está indo bem. Os médicos da Babel são muito
bons, Emmett. Queria que você soubesse que meu nome é o
primeiro da lista. O próximo rim que for doado para transplante vai
ser meu. É uma mudança e tanto, querido. E tudo por causa de
você. Quando voltar para casa, ganhando ou perdendo, a vida vai
ter mudado. Não vou ser mais como eu era. Você só precisa ser
esperto e bom, está me ouvindo?
– Você já é esperto e bom – meu pai acrescenta. – Então trate de
ser mais esperto e melhor.
– Ainda estou com a chave – digo em meio às lágrimas. – O que
quer que eu faça com ela?
Meu pai fecha a cara. Ele está segurando as lágrimas também.
– Enterre-a. Se você for para lá, estamos livres. Você está livre.
Vai ser o primeiro a ter um destino diferente. Enterre a chave em
Éden como um símbolo, certo? Um símbolo de que está tudo
acabado e de que estamos começando uma vida nova. Enterre a
chave por seus filhos e suas filhas.
Ele está chorando agora, e eu ainda mais. Com os olhos cheios de
lágrimas, tento mudar de assunto:
– Alguma coisa que você queira dizer para os alienígenas?
Meu pai sorri.
– Ensine futebol americano para eles por mim.
– Cante canções de amor – minha mãe sugere. – Como a gente
costumava cantar.
– Pode deixar – digo. – Pode deixar, eu prometo.
– Nunca se esqueça de onde veio – meu pai me lembra.
– Ou do quanto amamos você – minha mãe acrescenta.
– Jamais – digo.
No canto da tela, aparece o número de segundos que nos resta.
– Eu amo vocês.
– Até a lua e mais um pouco – eles respondem.
O sinal é cortado, e eu fico sozinho, aos prantos. Um técnico dá
uma espiada lá dentro, mas acha melhor me dar um tempo. Deixo
cair lágrimas boas e ruins, de saudade e de esperança. Quando
enfim consigo me recompor, cada passo meu soa como uma
promessa.
Por Kaya, pelos meus pais, por mim mesmo, por todos os Atwater
que já existiram: eu vou para Éden.
A determinação se instala em cada osso, em cada músculo. Não
consigo ficar parado. Como sei que só vamos voltar à Aquavia
amanhã, desço para correr um pouco na sala da esteira. Os
exercícios vêm funcionando como uma válvula de escape desde
que Kaya morreu. Desaparecer nos tanques para uma hora de
natação me impede de enlouquecer. Correr me distrai do esforço
mental de lutar por cada maldito ponto. E o mais louco é que meu
pai enfrenta esse mesmo cansaço há 20 anos. Eu nasci para o
trabalho pesado. Se continuar lutando, talvez consiga ser aquele
que vai quebrar as correntes.
A versão alterada da Sala do Coelho está vazia. Tiro meus anéis e
meus elásticos de nyxia, contente por estar em uma sessão de
exercícios em que não vai haver ninguém brandindo uma arma
contra mim. Com alguns toques no canto da tela, o chão começa a
se mover. Programo distâncias, elevações e velocidade. Detesto
correr em silêncio, então ligo meu dispositivo de ouvir música no
ritmo de velhas batidas. É por isso que quase não os escuto.
Nos intervalos entre as músicas, ouço o leve chiado das portas
automáticas. Meus olhos se voltam para o canto da tela. Estou
quase no fim do meu nono quilômetro. Minha respiração está
ofegante. Minhas panturrilhas queimam, e a parte da frente da
minha camiseta está encharcada de suor. Sinto vontade de desabar
no chão. Em vez disso, endireito a postura e aperto o botão de
desligar. O chão de esteira ainda me leva pela metade do caminho
até os intrusos antes de parar. Eu deveria saber que viriam atrás de
mim depois do que ouvi.
Roathy e Isadora estão um de cada lado da entrada. O objetivo da
visita está bem claro: Isadora moldou sua nyxia em uma lança de
ponta afiada. Roathy brande para mim uma de suas espadas curtas.
Nenhuma das armas parece embebida em óleo de nyxia. Olho para
os cantos da sala e vejo as câmeras de segurança. Pontinhos
vermelhos em esferas pretas. A ideia de um pedido de ajuda é
tentadora, mas decido esperar.
– E aí, Emmett?
– Vieram terminar o serviço que Karpinski deixou pela metade? –
pergunto.
Os namorados trocam sorrisinhos sinistros. Fico à espera de que
Roathy diga alguma coisa, mas é a silenciosa Isadora que responde
à pergunta. A garota guarda a maioria de suas palavras para
Roathy, quase sempre em sussurros. Desde que ele se machucou,
os dois estão sempre juntos, mas nunca imaginei que ela fosse a
pessoa dominante na relação.
– Karpinski? Ele é um zero à esquerda. – A voz dela tem um tom
frio e casual. – Só faz o que a gente manda. É um cachorrinho. Um
cachorro bonzinho às vezes, e outras vezes malvado. Mesmo
assim, só um cachorrinho.
Suas palavras embrulham meu estômago. Ela não parece uma
menina. Eu já me vi transformado pelas luzes brilhantes da Babel.
Com os olhos voltados para mim mesmo, devo ter perdido as
mudanças que aconteceram nos outros. Onde os calos se
formaram? O que a Babel matou dentro deles? Como é virar adulto
nas profundezas do espaço? Isadora gira a lança em um gesto
casual, com os olhos sérios e sem piscar sob a máscara.
– Vocês disseram para ele me matar? – pergunto baixinho.
Minhas mãos estão trêmulas. Eles percebem, mas cometem o
engano de pensar que é por medo. Não é medo; é raiva. Alguma
coisa sinistra preenche o espaço vazio do ar. Eu sou um vazio, o
princípio da mais escura das noites.
Isadora me lança um olhar de falsa solidariedade.
– Você estava no nosso caminho. É isso que importa agora. Não
podemos correr o risco de você ficar com o lugar de Roathy. Não
quando estamos tão perto.
Roathy pega minha bolsa de ginástica. Com um sorriso, joga no
corredor e sela a porta. Todos os meus anéis e elásticos de nyxia se
vão em um piscar de olhos. Eles seguram suas armas com mais
firmeza, e sei o que vai acontecer a seguir. Ele vai avançar primeiro;
ela vai vir atrás. Ele vai mirar embaixo e ela, em cima. Conheço o
bastante de seu estilo de luta para antever os primeiros
movimentos. Mas minha mente não consegue elaborar um contra-
ataque. Sem a nyxia, estou sem ação. Isadora e Roathy não são
grandes lutadores, mas não estão aqui para uma luta, e sim para
um massacre.
– Você não tem como vencer a gente sem nyxia – Roathy diz.
Antes que eles possam atacar, pego a toalha que deixei
pendurada na rede. Com gestos lentos, limpo o suor da testa. Eles
não se movem. Ainda estão parados diante dos dispositivos de
escaneamento da porta, à espera. Sem me alterar, deixo a toalha
sobre a rede e me abaixo para amarrar os sapatos. Com
movimentos rápidos dos dedos, tiro a pequena moeda preta de trás
do calcanhar. Eu a escondi ali para momentos como este. Eu a
escondi ali porque aprendi um bom tempo atrás que não posso
confiar em ninguém.
Hoje não é o dia da minha morte. Esse pensamento reverbera
como um hino no meu peito. Hoje não.
– Se vocês me matarem, eles vão saber – digo enquanto fico de
pé. – Tem câmeras aqui embaixo.
Isadora sorri.
– Não estamos aqui para matar você.
– Só para machucar mesmo – Roathy acrescenta. – O que acha
de uma perna, Isadora?
– Uma perna parece perfeito – ela concorda. – Ele e Hilal podem
ficar com cicatrizes combinando.
Eles estão brincando com a presa. Enquanto falam, começam a se
mover com passos lentos e sincronizados que os trazem para cima
da esteira, para perto de mim. Escondo a nyxia na palma da mão e
espero.
– Vocês estão cometendo um erro.
O material na minha mão pulsa e dança, faminto. Está se
alimentando da minha raiva.
– Um erro? – Isadora dá risada. – Roathy, para onde eu prometi
que iria te levar?
– Para Éden.
– E o que nós vamos fazer lá? – ela questiona.
– Começar uma vida nova.
– Eu sempre cumpro minhas promessas, né?
– Sempre.
O círculo vai se fechando como um laço. Achando que estou sem
defesa, Isadora avança. A ponta de sua lança se aproxima do meu
pescoço. Eu mexo o ombro na outra direção, e o golpe não me
atinge. A meio metro do meu rosto, é bloqueado. Vejo a ponta de
metal se contorcer no ar. O cabo da arma reverbera e se flexiona
com o impacto. Os olhos de Isadora se arregalam um instante antes
de uma onda de ar preto me envolver. É a mais escura das noites.
Ela paira sinistra e me faz uma pergunta.
Meu corpo responde que sim. O ar estala, e as luzes voltam a
chegar aos meus olhos. Isadora e Roathy ainda estão lá, mas agora
trocam olhares apreensivos. Meus pés recuam por conta própria.
Olho para a moeda na minha mão, porém não está mais ali.
É então que eu sinto. No ar que estou respirando, nos
pensamentos que estão me ocorrendo, no movimento de cada
músculo, tudo carregado de uma energia obscura. Estou em algum
canto distante, como um observador. A distância, vejo Roathy
projetar a espada contra mim. Seus golpes são desviados. Roathy e
Isadora entram em pânico. Eles atacam juntos; eu nem pisco. Não
faço absolutamente nada.
Até que minha mão se move. O preto se desloca do escudo e
cerca Roathy completamente. Seus gritos são abafados, mas
Isadora perfura o silêncio na sala como uma sirene. Quando minha
mão se abaixa, a nyxia volta a se postar à minha volta. Roathy
parece um brinquedo quebrado aos meus pés. Sua nyxia se foi,
consumida pela minha. Sinto que uma mão pesada me vira. Isadora
tem a esperteza de transformar sua lança em escudo. Antes que eu
possa atacar de novo, ela cambaleia para a direita, com uma das
mãos na barriga e a outra posicionada protetoramente sobre
Roathy.
Uma parte mais raivosa de mim quer acabar com tudo aqui e
agora. Com este poder, consigo arrebentar seu escudo e seus
ossos. A nyxia ignora. A substância percebe a brecha para chegar à
porta e me empurra para lá como se eu fosse uma marionete.
Isadora está aos prantos quando a porta se abre. Eu não olho para
trás.
DIA 20, 19h21
A bordo da Estação Torre Espacial

Vandemeer me encontra. A porta do meu dormitório se abre e ele


entra com cuidado. Seus olhos se voltam para os anéis de nyxia que
tirei da bolsa de ginástica e coloquei em segurança sobre a cômoda.
Depois do que aconteceu, estou com medo de tocá-los. Quando o
médico entra, Defoe se coloca diante da porta como uma sombra.
– Emmett – Vandemeer diz em voz baixa –, você está bem?
– Essa não é a pergunta certa.
Ele assente com a cabeça.
– Tem razão. Não é a pergunta certa. Nós vimos os dois.
– Eles vieram atrás de mim – digo. – Queriam me machucar.
Vandemeer senta-se na beirada da cama.
– Nós sabemos. Nós vimos.
– E Roathy?
– Está vivo. Se recuperando.
Um alívio toma conta de mim. Dois medos me dominaram
enquanto eu esperava. Primeiro: estou à mercê de um poder sinistro
o qual não compreendo. Segundo: estou deixando um rastro de
destruição no caminho até Éden. Kaya, agora Roathy. As palavras
de Vandemeer dissipam um desses medos. Aponto para os seis
anéis de nyxia na cômoda.
– Foi ela que me manipulou. – Dou uma encarada em Defoe. –
Vocês não fazem ideia do que seja essa coisa, né? Estão tratando
como se fosse uma peça de Lego, mas nem imaginam com que
estão lidando.
Quando voltei ao meu quarto, não foi difícil descobrir o que tinha
acontecido. A nyxia me salvou. Não como uma extensão dos meus
desejos. Ela assumiu o controle. Agiu como um ser vivo. E a parte
mais assustadora é que esse ser vivo pareceu muito maior que eu.
Já me senti indefeso antes. Na escola e em casa, aprendi o que é
ser impotente, e sei entender a diferença entre isso e o que
experimentei agora. A nyxia tomou conta do pouco que ainda
considero meu e agiu a seu bel-prazer. Sei que salvou minha vida,
mas não sou burro a ponto de achar que foi uma coisa boa. Uma
pessoa jamais deve ceder tamanho controle sobre si.
– Ela pode ser dominada – Defoe afirma com convicção. – Já
tivemos episódios como o seu. As pessoas se sentiram sob o
controle da substância. Conhecemos os riscos e fizemos testes
exaustivos. Pelo que eu tinha entendido, você queria honrar a
memória de Kaya e ser um dos competidores escolhidos para ir a
Éden. Acima de tudo. Não é mais esse o caso?
– Para de usar a lembrança dela assim – esbravejo. – Ela é mais
que isso.
Defoe encolhe os ombros.
– Então eu devo mandar preparar a papelada da sua dispensa?
– Não – me apresso em dizer, para meu próprio desgosto. – Não.
Eu não quero ir para casa.
– Tem certeza?
– Tenho. – Ele se vira para ir embora, mas a conversa ainda não
está encerrada. – Qual vai ser a punição deles?
Defoe se vira com um gesto lento, com uma sobrancelha erguida.
– Punição?
– Eu perdi pontos depois do que aconteceu. Kaya morreu por
minha culpa. Não existe punição para tentativa de assassinato?
Você viu o que eles queriam fazer.
Os lábios dele se curvam em um sorriso macabro.
– Vou buscar a espada para você. A mesma que usei para a
sentença do dr. Karpinski. Vamos fazer uma grande cerimônia de
julgamento, mas só se você estiver disposto a usar a espada.
Não sei se ele está falando sério, mas faço que não com a cabeça.
Apenas quando Vandemeer solta um suspiro de alívio percebo
quanto demorei para responder à pergunta. Minha hesitação agrada
Defoe. Estou mais perto do que nunca do que quer que ele deseja
me tornar.
– Fique tranquilo, eles não vão tentar nada do tipo de novo. A
situação foi explicada para os dois. Nenhum deles vai se arriscar a
sofrer as consequências. Você tem minha palavra.
Defoe sai do quarto, e Vandemeer e eu somos deixados sozinhos.
Ele desliga o relógio.
– Quase pedi demissão, sabe?
Dou uma encarada nele.
– Quê?
– Depois que Kaya morreu. Depois que descobri sobre o adamita.
Eu ia pedir para ser dispensado.
– E por que não fez isso?
Os olhos dele se amenizam.
– Por você. Não confio mais na Babel, mas não poderia deixar
você na mão, Emmett. Vai ser melhor se pudermos afastá-lo deles.
Se você puder ir para Éden.
Por um momento, ficamos em silêncio. Eu me deito e fecho os
olhos, mas Vandemeer não sai do quarto. Ele se senta e fica lendo
ao lado da minha cama, como se soubesse que quero ficar sozinho.
Depois de um tempo, ele fala:
– Fico contente por você ter dito não.
– Eu não.
– Um dia vai ficar. – A voz de Vandemeer é suave como uma
historinha de ninar. – Você vai ficar contente por não ser como ele.
Vai ficar contente por ter mostrado misericórdia por quem não
merecia. Observar você me dá esperança. Se vamos mandar
representantes para um novo mundo, que sejam pessoas com
misericórdia. A Babel não escolheu vocês por serem pobres. Eles
achavam que seria fácil manipulá-los. E, por duas vezes, você
mostrou que estavam errados. Por duas vezes, eles entregaram a
espada e pediram que a usasse. Quando você olhar para trás, não
vai ser da misericórdia que vai se arrepender.
Vandemeer sai do quarto, mas meu corpo não está pronto para
dormir. Meus pensamentos ainda estão acelerados demais. Fico
pensando em minha conversa com meus pais. Fico pensando no
perigo que corri. Fico pensando na Babel e em seus segredos.
Meus pensamentos por fim se voltam para o placar. Os números se
tornam mais claros a cada dia. A não ser que alguma coisa mude,
vou estar na primeira nave da Babel de volta para casa. Serei um
candidato fracassado com nada além de um prêmio de consolação
no bolso.
Isso me faz perceber que estas podem ser minhas últimas noites
com Azima, ou Hilal, ou Katsu. Caso eu não me classifique, quando
vou conseguir revê-los? Talvez depois de voltar à Terra? Por algum
motivo, acho difícil de imaginar que nossa tripulação vá topar fazer
uma reunião de reencontro. Se eu de fato fracassar, esta semana
vai compor as páginas finais de um capítulo inesquecível da minha
vida. Mas sei que ainda não estou pronto para encerrar esta história.
Meus pés me carregam para fora do dormitório. É noite, por isso
as luzes estão quase apagadas, as estrelas estão bem acesas e os
corredores estão vazios. Eu me desloco em silêncio até a porta
dela. Bato duas vezes e fico à espera, todo sem jeito. Não sei nem
se é muito tarde, ou se ela está acordada, ou…
A porta se abre.
Morning está vestida com uma regata preta e uma calça de
moletom. Os cabelos escuros estão soltos sobre os ombros. Ela me
olha como se tentasse entender por que demorei tanto.
– É uma péssima ideia – digo.
Ela concorda com um gesto de cabeça.
– A pior possível.
Antes que as razões contrárias se imponham sobre nós, encurto a
distância que nos separa e dou um beijo nela. Seus braços
envolvem meu pescoço, e eu a arranco do chão. Quase erro a cama
quando a deito, com os lábios colados aos dela, com suas mãos
puxando minha camiseta para cima. Nossos beijos se interrompem
apenas pelo tempo necessário para jogar minha camiseta no chão.
Um acordo se estabelece assim que nos agarramos de novo. Esta
pode ser nossa única vez juntos. Pode ser um fim, além de um
começo. O peso dessa verdade faz cada toque e cada beijo
parecerem colisões. Transformamos cada segundo em eternidade.
Nossas mãos e nossos lábios criam memórias volumosas o
bastante para preencher os nossos mundos. Em Éden ou na Terra,
vou levar tudo comigo aonde quer que eu vá.
Pela primeira vez, não me importo com o que vai acontecer
depois.
Para mim, basta poder mergulhar em alguma coisa nova, alguma
coisa bonita.
DIA 27, 7h33
A bordo da Estação Torre Espacial

Às vezes erros precisam ser cometidos. E às vezes precisam ser


cometidos duas, três ou cinco vezes. O único problema é que
Morning tem promessas a cumprir, e nenhuma delas foi feita para
mim.
Em 52 competições na Aquavia, nós ganhamos seis. Só uma
vitória com Morning no barco, e foi mais por sorte do que qualquer
outra coisa. Durante as três ausências de Morning, tivemos cinco
vitórias e uma derrota. Se pelo menos houvesse mais um dia de
folga dela… Com apenas quatro dias restantes, ela vai ser a capitã
da Gênesis 12 em todas as competições na Aquavia daqui até o
final. Vandemeer e eu fazemos uma última projeção de pontuações
e contextos. Hoje é o último dia de duelos. Fora isso, só restam oito
batalhas ou corridas na Aquavia. Apenas nove eventos. Vinte e sete
mil pontos em disputa.

1. MORNING 1.286.200 pontos


2. LONGWEI 755.900 pontos
3. HOLLY 737.700 pontos
4. OMAR 735.000 pontos
5. PARVIN 711.200 pontos
6. KATSU 703.450 pontos
7. ANTON 681.290 pontos
8. NOOR 662.050 pontos
9. ALEX 634.200 pontos
10. AZIMA 610.750 pontos
11. JAIME 571.200 pontos
12. HILAL 553.300 pontos
13. EMMETT 551.350 pontos
14. ROATHY 543.325 pontos
15. IDA 540.400 pontos
16. LOCHE 533.500 pontos
17. JASMINE 511.050 pontos
18. BRETT 495.000 pontos
19. ISADORA 472.960 pontos

Cinco nomes em negrito e apenas uma vaga restante. Vandemeer


analisa os números de novo. Pela primeira vez desde que o
conheci, está com a barba por fazer. E parece bem magro.
– Quatro coisas precisam acontecer.
– São coisas a mais do que o ideal – respondo. Ele não ri. Seu
semblante está pesado e pálido. Nenhum de nós tem dormido bem.
– Certo, quais são?
– A primeira é você vencer Anton hoje.
– Está feito – respondo. Já o venci duas vezes, apesar de ele
quase ter aberto uma artéria minha em ambas as ocasiões.
– A segunda é Longwei vencer Loche.
Respiro fundo e faço que sim com a cabeça.
– Vai acontecer. Ele não vai perder três vezes. Não para Loche.
Eu bem que queria acreditar nisso. Vandemeer não diz nada
porque pensa como eu. Longwei anda lutando muito mal. Está
sendo superado a cada duelo. Sua posição de capitão está
ameaçadíssima. E muitos da nossa tripulação estão na mesma
situação.
Desesperados, perdidos e impotentes.
– Qual é a terceira coisa? – pergunto.
Vandemeer espreme os olhos.
– Vocês precisam vencer na Aquavia. Só uma vez.
Nós dois olhamos pela janela. Éden se destaca contra a escuridão
do espaço. Sabemos quais são as chances de vitória. Sabemos que
não é provável, porque Morning não perde.
– O que eu posso fazer?
Vandemeer tenta parecer confiante.
– Alguma coisa incrível.
– Só para variar – digo com sarcasmo. – Certo. E a quarta coisa?
– Não depende de você.
Olho para ele.
– O que é? – pergunto.
– Hilal.
Ele não precisa dizer mais nada. O duelo final de Hilal vai ser
contra Holly. Meu amigo só venceu uma luta até aqui, e a tentativa
de competir impediu que sua perna se curasse. Holly é boa. É
improvável que ele vença, mas seu desespero é o mesmo dos
demais. Caso ele consiga uma vitória, eu não vou para Éden. É a
posição que sempre quis evitar. Tendo amigos em uma situação
como esta, em algum momento vou ter que torcer contra eles. Mas
Kaya me ensinou a ser maior que isso. Vou ficar feliz por Hilal se ele
vencer. Uma parte de mim acredita nisso.
Vandemeer fica de pé.
– Precisamos descer.
Depois do atentado, Roathy e Isadora andam calados. Não sei
qual foi a ameaça de Defoe para os dois, mas não importa. Os
números mostram que Roathy não vai chegar a Éden. Ele não tem
como me alcançar, e vai ser superado por Loche.
O desafio da manhã foi de carregamento de carga. Blocos de
nyxia transportados de um local a outro pela Aquavia. Começamos
mais rápido que a Gênesis 12, mas chegamos exaustos às
corredeiras. Eles fazem algumas submersões inteligentes no
caminho e já terminaram de descarregar quando atracamos.
Observar a vitória deles é como sentir meu futuro escapando
silenciosamente pelos meus dedos. Restam sete chances.
Estou sem estômago para almoçar, então saio andando pela
Estação Torre Espacial. Sei o que está em jogo. Sei o que preciso
fazer. O resto não depende de mim. Dou algumas voltas na estação
antes de voltar para a Aquavia. Apenas Defoe está na plataforma de
observação. Seus olhos parecem distantes, como se ele estivesse
mirando além do percurso e da estação, para Éden. Minha chegada
chama sua atenção.
– Você está adiantado – ele comenta.
– Não sabia para onde ir.
Seu olhar se volta para mim.
– Estamos chegando ao final.
– Pois é. Você vai para Éden?
Ele ri.
– Não posso. Gostaria muito, mas os adamitas não permitem.
O rio preenche nosso silêncio constrangedor com seu ruído.
– Também não sei se eu vou – digo.
– Você precisa de uma vitória na Aquavia.
Não deveria ficar surpreso por ele saber disso, mas fico mesmo
assim.
– É improvável.
– Então altere a dinâmica – ele diz. Passos ecoam atrás de nós.
Os demais estão chegando. – Altere a dinâmica. Pense como Kaya
pensava. Lembra a estratégia dela na Sala do Coelho? Vocês
precisam mudar o funcionamento do jogo. Morning sempre vence
porque altera a dinâmica primeiro. Antecipe-se a ela e talvez
consigam ganhar.
Faço que sim com a cabeça.
– Ainda preciso vencer meu duelo.
– Contra Anton? – Ele sorri. – Basta irritá-lo e fazer com que ele se
exponha.
– Por que você está me falando tudo isso? – pergunto baixinho. As
sombras se aproximam pelo corredor atrás de mim.
Defoe contorce os lábios.
– Você faz eu me lembrar de mim mesmo na sua idade, Emmett.
Eu vim do nada para chegar aonde estou hoje. Tive que ralar para
conseguir tudo o que tenho. E também acredito que a sua presença
em Éden vai ser benéfica para nossa companhia. Já observei os
outros candidatos. Morning é brilhante, claro. Mas Loche? Se for
para Éden, ele vai tratar a jornada como um período de férias. Sei
que você vai trabalhar duro, Emmett. Mais que isso: você é leal. Eu
não vou manipular os resultados da competição, mas posso torcer
para ter alguém como você lá na superfície pela Babel.
Ele endireita a postura quando os demais chegam. Que comecem
os jogos.
A Babel elaborou bem o cronograma. As primeiras lutas não são
de grande importância. Morning atropela Isadora assim como fez
com todo mundo. Ela lança um olhar para mim depois da luta, com a
mesma expressão que vejo no seu rosto há dias. Paixão, medo e
temor. Há uma guerra acontecendo dentro dela. Uma parte me quer
em Éden. A outra quer que suas promessas sejam cumpridas.
Ida tomba diante da lança de Azima, e Omar mais uma vez faz
Katsu parecer minúsculo. Parvin e Jaime caem na água durante o
duelo. Em meio ao caos, Jaime a acerta no ombro com a espada
curta. Então vem a primeira luta importante: Holly e Hilal.
Meu amigo ainda manca. Está usando uma proteção inflável
dentro da bota e visivelmente tenta proteger a perna. Não dá para
negar o medo secreto que invade meu coração quando os vejo se
colocar em posição. E se ele ganhar? E se for Hilal o responsável
por me eliminar de vez da competição?
Os dois começam com movimentos circulares. Hilal sabe que não
vai conseguir resistir por muito tempo, então luta de forma
agressiva, avançando às cegas e tentando acertar um golpe de
sorte. Mas Holly é uma boxeadora de primeira. Ela se esquiva de
seus ataques, movimenta-se soltando jabs e o castiga a cada erro.
Meu coração ao mesmo tempo vibra e se despedaça quando ela o
finaliza com um soco violento. Vejo o avatar de Hilal cair, e uma
constatação terrível se impõe em meus pensamentos.
Uma de quatro.
A luta seguinte começa, e não sei se os participantes têm ideia de
sua importância. Chego a pensar em puxar Longwei de lado para
falar sobre quais podem ser as consequências, mas ele se dirige à
área de luta antes. Não que ele esteja muito preocupado com meu
destino.
Loche parece determinado. Ida, sua namorada loira, desce para as
docas e grita para ele ser corajoso e vencer. Longwei lança um olhar
irritado para ela. Mesmo essa demonstração mínima de sentimentos
já serve para me animar. A luta começa morna. Os dois circulam um
ao outro, e Loche procura um meio de entrar no raio de ação de
Longwei. Eles trocam golpes e retomam os movimentos circulares.
Loche avança depois de uma esquiva, porém, antes que possa
projetar os braços para a frente, Longwei lhe acerta uma cabeçada.
O estalo ecoa por cima da água, e Loche cambaleia para trás, com
o nariz sangrando e as pernas bambas. Longwei não se apressa,
mas ataca de forma inclemente, fazendo cortes nas costelas do
oponente, desarmando Loche e por fim cravando a lâmina no
coração do australiano. O avatar de Loche desaba, e meu coração
comemora.
Duas de quatro.
Quando Anton e eu atravessamos a rampa de embarque, penso
no conselho de Defoe.
Basta irritá-lo e fazer com que ele se exponha, ele disse.
O russo começa a girar as facas e cantarolar uma marcha militar.
Passo por ele e me viro para a plataforma de observação. Finjo uma
expressão confusa.
– Espera aí, contra quem vou lutar? – pergunto, olhando para
Defoe.
Defoe ergue uma sobrancelha ao responder.
– Anton.
– Ah – eu digo, olhando bem para Anton. – E cadê ele?
Defoe não responde desta vez. Ouço a risada de Katsu e vejo a
vermelhidão subir pelo rosto de Anton. Espicho o pescoço para a
frente e aperto os olhos.
– Ah, você está aqui! Desculpa, eu nem vi.
Meu sorriso finaliza a provocação. É o tipo de sorriso de quem se
sente totalmente superior à outra pessoa. Não é uma coisa bonita
de se fazer, mas deixa Anton inquieto como se eu tivesse acabado
de insultar sua mãe e sua avó. Talvez até seu cachorro também.
Quando Defoe dá o sinal, ele dispara na minha direção. E, minha
nossa, como é rápido! Consigo defender os dois primeiros ataques,
mas ele gira e abre um corte no meu braço. Escuto os palavrões
que ele solta enquanto se esquiva e me ataca com as lâminas. Ele
me acerta quatro vezes no primeiro minuto. Não posso me arriscar a
olhar para os avatares, mas sei que estou perdendo e sangrando.
No fim, Defoe tinha razão.
Anton se agacha para tentar cravar a faca da mão esquerda nas
minhas costelas, e eu o acerto com um gancho demolidor. Mesmo
com a proteção de nyxia, ele cambaleia com o golpe. Dou um chute
de sola em seu peito, e o gárgula sai voando por cima da amurada.
Seu avatar está com hemorragia cerebral, e eu saio vencedor. Ele
ressurge na superfície da água gorgolejando e xingando, mas suas
palavras não me atingem.
Três de quatro, penso.
Só falta mais uma coisa acontecer para que eu vá para Éden.
Vandemeer está me esperando no corredor e, quando lhe conto o
resultado das lutas, me dá um abraço que tira meus pés do chão.
Voltamos animados para nossos aposentos, mas a parte mais difícil
ainda está por vir. À tarde, perdemos uma rodada de pega-bandeira.
Na manhã seguinte, perdemos uma corrida subaquática. Minhas
chances vão se esvaindo como palavras ao vento. Vandemeer me
segue para toda parte. Suas palavras de incentivo não parecem
muito convictas. Outra tarde chega, e desta vez a Babel simula
correntes tempestuosas. Ficamos presos em tentáculos metálicos
tão grandes que prefiro nem saber para que esse treinamento está
nos preparando. A Gênesis 12 conquista outra vitória, e Loche está
colado em mim no placar.
A ideia de que conseguiríamos vencer uma competição de equipes
parece risível.
Quatro, eu penso. Restam quatro eventos.
Uma vitória, eu penso. Um número impossível.
DIA 29, 8h44
A bordo da Estação Torre Espacial

EMMETT 554.350 pontos


HILAL 553.300 pontos
LOCHE 545.500 pontos
ROATHY 543.325 pontos

Sei o que precisa ser feito.


Não foi a intenção de Morning me oferecer ajuda, mas suas
palavras são minha resposta: Quando estivermos nos enfrentando
aqui, você não vai me vencer. Até agora foi esse o caso. Ela altera o
equilíbrio das coisas; faz a balança pesar para o outro lado. Não
ajuda o fato de nosso time não ser um time de verdade. Somos um
grupo de quem vai e quem fica, de vencedores e perdedores.
Olhando para Éden, percebo que sou o único na zona cinzenta em
nosso grupo preto no branco. O destino de todos os outros está
selado. A não ser que a Babel invente alguma pegadinha, todo
mundo sabe para onde vai.
Pego a chave de metal que meu pai me deu e a guardo em um
bolso com zíper. Dispenso o café da manhã e desço direto para a
Aquavia. Depois de subir a bordo, faço alguns testes com a nyxia.
Quando me satisfaço com as distâncias, alturas e manipulações, me
sento e aguardo. Os outros demoram, mas meu coração se alegra
quando vejo Azima e Katsu chegarem primeiro.
– E aí, Emmett? – cumprimenta Katsu.
– Não temos muito tempo, por isso não dá para explicar tudo. Hilal
vai ficar com meu lugar no quadril, tudo bem?
Katsu encolhe os ombros.
– Tanto faz.
– Tanto faz não – esbravejo. – Escuta só, você está com seu lugar
garantido, mas eu não. Preciso de uma vitória. Se a gente perder as
quatro últimas, estou fora. Nada de Éden para mim.
Azima franze a testa, mas Katsu dá de ombros. Está se sentindo
derrotado como todo o restante de nós.
– É assim que funciona o jogo – ele diz. – Eu quero que você vá,
mas fazer o quê? Morning nunca perde. Eles são mais do que
favoritos para as últimas quatro provas. Desculpa aí, cara.
– Só me promete que vai fazer tudo o que puder depois que
acontecer.
– Depois que acontecer o quê?
– Me promete.
– Claro, eu prometo.
Lanço um olhar para Azima. Ela se inclina para a frente e me dá
um beijo no rosto.
– Eu vou lutar por você.
Um fardo a menos nos meus ombros. Solto um suspiro e pego a
chave no bolso.
– Se eu não conseguir, você pode enterrar isto em Éden?
– O que é? – Azima pega a chave das minhas mãos.
– É da minha família. Se eu não conseguir, preciso que alguém
leve para mim. É a maior oportunidade que já tivemos de… – Azima
e Katsu me olham com expressões confusas. – Só leva para mim.
Azima põe a chave no bolso, e os outros chegam. Não tenho muito
que pedir a eles. Porém, tem mais uma pessoa com quem quero
falar antes da largada. Vejo Hilal no fim da fila. Quando ele
atravessa a rampa de embarque, eu o puxo de lado.
– Preciso de você.
Os olhos dele estão tristes.
– Eu perdi, Emmett. Acabou.
– Amigo – eu peço. – Meu amigo. Preciso de você hoje. Me ajuda?
Ele me encara. Por um instante, fico com medo de que ele diga
não e meu plano vá por água abaixo.
– Só desta vez – ele diz. – E, se você pedir de novo, respondo a
mesma coisa. E o mesmo vale para todas as ocasiões. Para
sempre.
Dou nele um abraço de irmão, porque é isso que Hilal é para mim.
Deixo de lado a ideia de que o nosso “para sempre” pode acabar em
poucos dias. Katsu nos posiciona para a competição. A Gênesis 12
parece tranquila e pronta quando Defoe e Requin aparecem junto às
grades. Nem mesmo Morning repara nas posições trocadas no
nosso barco. O medo invade meu peito. Fico com receio de que o
plano não funcione e que eu desperdice minha única chance. Mas
também tenho medo do que possa acontecer caso dê certo. Posso
acabar estragando algo que não vou ter como consertar depois.
– Só uma volta hoje – anuncia Defoe. – O percurso é um pouco
mais lento.
Antes de eles acionarem a correnteza do rio e darem a largada,
transformo minha estação na barreira de nyxia que Morning usou no
primeiro dia. Ela se espalha como fumaça entre os barcos e nos
esconde das vistas. Com mais um movimento de mão, os anéis de
nyxia se transformam na vara de salto que Jazzy nos ensinou a usar
na Sala do Coelho.
Recuo até o assento do capitão e miro para a direita. Quando
Defoe dá o sinal da partida, começo a correr. A vara de salto se
enverga e se flexiona, e eu sou arremessado em meio à cortina de
fumaça. Mesmo com a Gênesis 12 em movimento no rio, meu
ângulo de salto me lança por cima da cabeça de Alex. Omar dá um
grito de alerta, mas a essa altura já cheguei ao assento de capitã de
Morning. Ela é rápida e já está se esquivando com o ombro, mas eu
esperava por isso, então junto os braços em torno de seu corpo e a
arranco da cadeira. Saímos cambaleando na direção de Anton,
viramos para a esquerda e saltamos.
Morning dá um grito quando a aperto com mais força e nós dois
caímos no rio. Meus ouvidos são inundados e meu pescoço arde
com o impacto da água, mas eu não a largo. Ela dá cotoveladas,
tenta me arranhar, faz de tudo. Eu não a largo. Depois de meio
minuto, começo a rir. As bolhas sobem pela água quando eu a solto
e começo a subir. Os mergulhadores estão a postos, prontos para
nos puxar para fora. Por cima do ombro do que me resgata, vejo a
Gênesis 11 fazer a curva bem na frente da Gênesis 12. Eu fiz minha
parte. Só me resta esperar que meus amigos façam a deles.
Quando estamos em segurança junto às grades, Morning passa
por mim com a irritação estampada nos olhos. Durante esse tempo
todo, ela estava certa. Enquanto estivesse no jogo, seu time
venceria. Só o que eu precisava fazer era tirá-la de cena para que
meu time contrariasse as expectativas. Eu a sigo de volta para a
linha de largada. As grades oferecem um bom ângulo do quilômetro
final do rio. Os barcos ainda vão demorar um pouco para aparecer.
Fico olhando o azul vazio enquanto Morning anda de um lado para o
outro, ansiosa. Seus olhos se alternam entre o rio e o placar.
– Do jeito como você está, parece que isso não é bom – digo. –
Parece que você não me quer em Éden.
Os olhos dela se voltam para mim.
– Eu dei minha palavra. Você sabe.
– Você não tem como levar todos eles.
Ela se limita a sacudir a cabeça negativamente e continua olhando
para a água. Morning não para de andar de um lado para o outro, e
sei que os meus medos tinham razão de ser. Ela detesta perder.
Detesta fazer promessas e não conseguir cumprir. Desde o início,
eu sabia que meu sucesso significaria seu fracasso. Não deveria ser
assim, mas ela estabeleceu para si um parâmetro altíssimo, em que
qualquer coisa inferior à perfeição fica parecendo um desastre.
Se a minha classificação tivesse vindo nos duelos em um dos dias
em que ela ficou de fora, não significaria grande coisa. Mas pular no
barco e arrancá-la de lá tornou a coisa pessoal. Eu sou o
responsável direto por seu fracasso.
– Eles vão ganhar – ela diz. – Foram treinados por mim. Vão
ganhar assim mesmo. Sei que vão. Loche… Ele precisa vencer…
É doloroso constatar que ela também fez as contas. Isso significa
que sabe quão perto estou. Significa que escolheu sua equipe em
vez de mim. Suas palavras são uma facada no meu peito, embora
não devesse ser assim.
– Se eles perderem, quem vai para Éden sou eu.
Quando ela se vira, seu rosto está franzido. A escolha sempre foi
essa: eles ou eu. As promessas do passado ou o sonho do futuro.
Quero poder lhe dizer que vai ficar tudo bem, mas no momento não
tenho certeza. Não faço ideia de quem vai contornar a curva
primeiro. Não faço ideia do que isso vai significar para mim, para
ela, para nós. Mas já consigo ver os fragmentos estilhaçados do que
poderia ter sido.
– Não fiz promessa nenhuma para você – ela diz. – Fiz para eles.
Ela aponta. Sua tripulação é a primeira a fazer a curva. Meu
coração para de bater. A Gênesis 11 aparece atrás. Restando
apenas 500 metros, eles estão atrás. Subo nas grades para ter uma
visão melhor. Os barcos estão se aproximando, ficando maiores. A
Gênesis 12 deriva para a direita. Não dá para ver daqui, mas o leito
do rio deve estar cheio de pedras. A velocidade deles diminui, e a
Gênesis 11 aparece voando baixo à direita.
Os barcos se preparam para uma colisão. No último segundo,
porém, Katsu desvia o nosso para a esquerda. O nariz da
Gênesis 11 acerta em cheio a traseira da Gênesis 12. Mesmo a 200
metros de distância, escuto o estalo das tábuas se partindo e o som
de metal contra metal dos cascos. A Gênesis 12 se desgoverna, e a
Gênesis 11 faz a ultrapassagem. Minha tripulação deriva para a
esquerda para evitar bater em uma rocha e agora tem o caminho
livre. Levanto os dois punhos cerrados no ar.
– Vamos! – eu grito. – É isso aí! Vocês conseguiram!
Antes que a Gênesis 12 consiga controlar sua embarcação, minha
tripulação já está cruzando a linha de chegada. Desço da grade e
pulo na água. Enquanto nado para as docas, estou em parte
berrando e em parte gorgolejando. Eles descem da rampa de
embarque, e eu saio do rio ensopado e gritando como um louco.
Katsu me pega em um abraço de urso.
– Que tal minha pilotagem? – ele grita. – Capitão Katsu, a seu
dispor!
Hilal abraça nós dois.
– Aquele salto foi incrível, Emmett. Incrível.
– Você pode enterrar pessoalmente – diz Azima, devolvendo a
chave.
Estamos todos rindo quando Defoe e Requin descem a escada. A
Gênesis 12 atraca logo atrás. Eu me viro bem a tempo de ver a fúria
de Morning. Ela não me olha enquanto percorre as fileiras de sua
equipe murmurando as palavras que acabei de tornar realidade.
Loche também sabe o que a derrota deles significa. Ida está
chorando, dizendo que não vai a lugar nenhum sem ele. Um simples
olhar de Requin a silencia. Até me sentiria mal por eles, mas quem
vai para Éden sou eu. Um fardo de toneladas foi removido dos meus
ombros. Minha jornada continua. Vou ter mais uma chance de
honrar a memória de Kaya, de prestar minhas homenagens e de
ajudar minha família.
Um placar aparece atrás dos dois dirigentes da Babel. As
pontuações são oficializadas. Meu coração está tão acelerado que
nem parece o mesmo de sempre. Talvez agora eu tenha um
coração da Terra e um de Éden. Dois corações, um para cada
mundo. Os dois se entristecem, porém, quando vejo que o nome
dos eliminados não constam mais da lista. Todo o esforço que
fizeram foi em vão.

1. MORNING 1.301.200 pontos


2. LONGWEI 761.900 pontos
3. HOLLY 752.700 pontos
4. OMAR 750.000 pontos
5. PARVIN 723.200 pontos
6. KATSU 709.450 pontos
7. ANTON 693.290 pontos
8. NOOR 674.050 pontos
9. ALEX 649.200 pontos
10. AZIMA 616.750 pontos
11. JAIME 577.200 pontos
12. EMMETT 560.350 pontos
13. IDA 543.400 pontos
14. JASMINE 514.050 pontos
15. ISADORA 475.960 pontos

Defoe junta as pontas dos dedos.


– Nossa competição está encerrada. Ainda restam dois dias de
provas, mas todos os resultados possíveis já foram definidos.
Loche, Roathy, Hilal e Brett. Por favor, subam. Vocês terão a chance
de se despedir, mas agora precisamos falar com aqueles que vão
para Éden. Por favor, retirem-se com seus médicos.
Uma escotilha se abre na extremidade mais distante das docas.
Os médicos estão à espera com seus trajes brancos impecáveis.
Vejo Karpinski antes de localizar Vandemeer, que dá um passo para
o lado, sorrindo para mim. Ele tem a elegância de não comemorar
nem gritar enquanto os eliminados estão saindo, mas já ficou
sabendo, e sei que está orgulhoso de mim.
Hilal para pouco antes da saída. Seus olhos escuros estão
arregalados quando ele se vira e acena com um sorriso no rosto.
Meus dois corações se apertam quando ele desaparece no fim do
corredor. Mesmo em um momento de derrota, ele é uma pessoa
melhor que eu. Se estivesse em seu lugar, eu sairia pisando duro
sem nem olhar para trás. A escotilha se fecha. Nós estufamos o
peito, e Requin sorri para nós.
– Parabéns. Nós sabemos o que vocês passaram. Estamos
cientes das dificuldades. Mas agora é que começa a parte difícil.
Colocar todo esse treinamento na prática. Ler a respeito dos
adamitas é bem diferente de estar frente a frente com eles. No lugar
para onde vocês vão, os lobos são reais, os perigos são inúmeros e
o trabalho é exigente. – Seu sorriso se alarga. – Mas vocês estão
preparados e, ora essa, acabaram de ficar milionários. Então podem
tirar a noite para comemorar. Comam bem e durmam o quanto
quiserem. Vocês vão para Éden.
Os gritos e assobios se elevam no ar. Abraços de alegria e alívio
são trocados. Mas isso não elimina as mágoas. Morning está se
esforçando para parecer animada diante do restante da equipe, mas
dá para ver a culpa que pesa em seus ombros. Isadora e Ida estão
perdidas, aos prantos. A diferença entre elas, porém, é bem clara.
Ida derrama lágrimas como se o mundo tivesse acabado e não
houvesse nada que pudesse fazer a respeito. Já as lágrimas de
Isadora se derramam de seu rosto para os punhos cerrados. Ela
parece pronta para destruir quem cruzar seu caminho.
Morning é a primeira a se manifestar:
– Quando vamos partir?
Defoe levanta os olhos da tela portátil.
– Amanhã à noite. Os casulos vão ser liberados às nove em ponto.
Esse horário é o melhor intervalo atmosférico para sua descida.
Enquanto isso, Requin e eu vamos formar as equipes de trabalho
em Éden. Vocês vão descer equipados, vão receber suprimentos
pelos nossos satélites de cargas e vão estar em contato o tempo
todo com a Estação Torre Espacial.
– Mas vamos deixar os assuntos de trabalho para amanhã –
Requin acrescenta. – Hoje, tratem de se divertir.
DIA 30, 12h37
A bordo da Estação Torre Espacial

É estranho percorrer os corredores sem a presença dos placares. É


estranho não precisar me concentrar no próximo teste. Existe uma
liberdade que se assemelha à chegada das férias de verão. Depois
do jantar, fui atrás de Hilal. Ele não estava em seu dormitório nem
em qualquer outro lugar a que tenho acesso na Estação Torre
Espacial. Fui para a cama sabendo que teria que me despedir dele
no dia seguinte. Éden aparecia como um planeta majestoso pela
janela, contudo, nos momentos amargos antes do sono, pareceu um
prêmio de consolação insuficiente pela perda de um amigo.
Vandemeer não me acorda. Nenhum alarme é disparado. Nenhuma
luz acende para me lembrar de que já é manhã. Durmo 200 dias e
200 noites. Durmo para recuperar tudo o que perdi a bordo da
Gênesis 11 e tudo que ainda tenho a perder. Durmo e sonho com a
vitória, com cair como uma chuva de ferro em um planeta de vales
enevoados. A cada sonho recebo presentes que ninguém pode tirar
de mim.
Quando acordo, é só porque Vandemeer está remexendo nas
coisas em um canto. Ele pede desculpas, mas, quando me avisa que
já passa do meio-dia, eu é que me desculpo.
– Tudo bem, Emmett. Você dormiu a quantidade de horas
esperada. É isso que acontece em situações como esta. Uma parte
de sua mente nunca dormia na Gênesis 11. Um mecanismo instintivo
que nunca parava de pensar e planejar. Agora que isso se foi, você
relaxou completamente. Não precisa se desculpar.
– Preciso me despedir de Hilal.
Vandemeer assente com a cabeça.
– Claro. Ele não está no dormitório, mas está em algum lugar na
estação. Vamos encontrá-lo depois que você tomar o café da manhã.
Ou almoçar… sei lá.
Ele está escondendo alguma coisa atrás das costas.
– O que é isso? – pergunto, apontando com o queixo.
Vandemeer sorri.
– Eu estava guardando para mais tarde, mas já que você viu…
Ele estende a mão. Um presente. Embrulhado em velhas cartas de
navegação estelar, e ele conseguiu encontrar até uma fita para fazer
um laço. Eu abro um sorriso.
– Não precisava.
– Não mesmo, mas eu quis.
– O que é? Dinheiro?
Ele dá risada.
– Queria que fosse uma coisa que você valorizasse um pouco
mais. Pode abrir.
Rasgo o papel, e a fita vai para o chão. Afasto as abas de uma
caixa de papelão. Lá dentro tem um fio preto conectado com uma
plaquinha fina, flexível e grudenta. A outra ponta é igual à que eu uso
no carregador do meu dispositivo de ouvir música. Olho para
Vandemeer à espera de uma explicação.
– Você ia dar um jeito de resolver isso mais cedo ou mais tarde,
mas quis poupá-lo do trabalho.
– O que isso faz?
– É um carregador de nyxia. Não existem tomadas em Éden. – Ele
dá um tapinha na plaquinha grudenta. – É só colar em qualquer fonte
de nyxia e encaixar a outra ponta no seu dispositivo. Já testei
algumas vezes e funciona.
Enrolo o fio e ponho no criado-mudo.
– É o presente perfeito, Vandemeer. Sério. Perfeito. Agora posso
mostrar as músicas que eu ouço para os adamitas. E eles vão te
dever essa. Só preferiria ter sido avisado antes, para poder ter feito
alguma coisa para você também.
– Não precisa, Emmett.
Levanto o indicador como se estivesse pensativo.
– Pois é, quem me dera ter alguma coisa que pudesse te dar…
Enfio a mão por baixo do travesseiro e pego a foto. Deu um pouco
de trabalho, e Vandemeer quase me surpreendeu mexendo nela.
Não poderia me desfazer da imagem original que Kaya me deu,
então fiz uma cópia. É a selfie que ela tirou comigo tantos meses
atrás. Meu braço está envolvendo o ombro de Kaya. Seu sorriso é
como um campo de flores. A versão que copiei parece um cartão
holográfico à moda antiga. As cores retocadas e os trajes espaciais
nos fazem parecer super-heróis.
– Não está embrulhada nem nada – digo, estendendo a mão. –
Mas demorei um tempão para acertar as cores. Espero que goste.
As mãos dele tremem.
– Como sempre, você é cheio de surpresas.
– Assim nós dois temos uma lembrança dela para levar. Para
qualquer lugar que seja. Assim, nunca vamos esquecer.
Vandemeer assente. Ele põe a foto de lado e me dá um abraço.
Arquivo essa despedida na cabeça na letra T de temporária. Eu vou
vê-lo de novo. Preciso acreditar que vou vê-lo de novo. Já houve
despedidas difíceis demais. Meus pais vão ficar sem notícias minhas
por um ano. Vandemeer não tem como ir comigo para Éden. Nem
Hilal. Isso não me leva às lágrimas, mas é como uma amputação.
A Babel está arrancando partes de mim que eu nem imaginava
precisar. O Emmett que descer em Éden vai estar incompleto sem
elas.
Depois de trocar os presentes, vamos almoçar. Vandemeer me
prepara um prato com alimentos que tenham menos probabilidade
de me fazer passar mal na descida. É uma decisão que me deixa
curioso.
– Nós já estamos nos deslocando em alta velocidade pelo espaço
esse tempo todo, não é?
Ele confirma com a cabeça.
– Sim, e a Babel usou a nyxia para selar os casulos de lançamento.
Se você vomitar, não vai ser pela força causada pela descida. Vai ser
pelo impacto emocional. Você vai estar sozinho em um planeta
alienígena. Isso é suficiente para abalar qualquer um. Pode acreditar.
Depois de tanto tempo de convívio, eu acredito nele, sim. Nós
permanecemos em um silêncio confortável. Encontro um ou outro
vitorioso de tempos em tempos – Jaime inclusive vem me dar os
parabéns –, mas o resto da tarde é passado em um silêncio longo e
arrastado. Todos sabemos que é um dia solene.
Pela primeira vez, permito-me imaginar Éden. Um planeta cheio de
lugares selvagens e não mapeados. Povoado por uma espécie sobre
a qual nada sabemos. Vamos ser os primeiros humanos em muito
tempo a vagar por suas planícies e vales, a navegar por seus rios e
se deslocar por suas cidades. E, quando eu voltar para casa, tudo
vai ser diferente.
É fim de tarde, e minha procura por Hilal continua tão infrutífera
quanto na noite anterior. Ele não pode ser achado no momento, ou
então não quer. Vandemeer me acompanha na busca. As únicas
pessoas que encontramos são técnicos e militares envolvidos nos
preparativos finais para os lançamentos. Incomodado, voltamos para
o meu dormitório, onde encontramos um bilhete de Hilal.
– Acho que você não vai conseguir vê-lo antes do lançamento –
Vandemeer diz depois de ler a mensagem.
– Você tem um papel sobrando aí? – pergunto.
Vandemeer me arruma umas folhas, e faço o meu melhor para
escrever uma resposta. Quando termino, Vandemeer pega o bilhete
e promete que vai fazê-lo chegar a Hilal, custe o que custar. Sinto
vontade de vasculhar a estação de novo, porém Defoe aparece. Ele
põe uma mochila ao lado da porta e me entrega uma reluzente chave
azul. Está pendurada em uma corrente, como uma plaquinha de
identificação na coleira de um cachorro.
– Sua chave de ativação – ele explica. – Os casulos são
individuais. Vocês vão precisar da chave para entrar. Entendido?
Faço que sim com a cabeça.
– Certo.
– Os casulos não podem ser lançados sem a chave. Não podem
ser lançados com mais de uma pessoa dentro. Não podem ser
lançados sem as portas estarem bem fechadas. Lembre-se disso. –
Defoe faz um gesto para o criado-mudo. – Agora remova toda sua
nyxia.
Demoro um tempo para tirar todos os anéis. Ele guarda tudo em
um saco plástico e substitui o que eu tinha por um par de manoplas.
As juntas de nyxia estão afiadas e brilhantes, bem novinhas. Não
resisto à tentação de calçá-las e flexionar os dedos sob o couro fino.
– Recém-fabricadas – Defoe comenta. – Ao contrário do par que
você usava aqui, essas não foram embebidas em óleo de nyxia. São
afiadas o bastante para cortar até pedra. Nosso presente para você.
Ele remexe dentro da mochila.
– E mais um presente.
Meu nome está bordado na parte frontal de uma jaqueta de
aviador. Parece o tipo de peça que os pilotos usavam antigamente.
Em um dos braços, o emblema da Torre de Babel está bordado logo
acima da bandeira americana. Vandemeer me ajuda a vesti-la. O
caimento é perfeito. Defoe aprova com um gesto de cabeça.
Ele dá dois passos à frente e estende a mão. Depois de um longo
segundo de hesitação, eu o cumprimento.
– Meus parabéns, Emmett – diz ele. – Seu contrato foi efetivado, e
a Babel Comunicações vai começar a encaminhar para sua família o
dinheiro que você ganhou. Se continuar a cumprir o contrato
trabalhando em Éden, vai ganhar ainda mais benefícios, com base
no acordo que assinamos. Sua equipe vai ter metas de trabalho para
garantir esses benefícios adicionais. Se continuar se esforçando
como fez até aqui, vai viver o resto da vida como um homem muito,
muito rico. Vocês vão partir da Estação 12. Por favor chegue ao
casulo 15 minutos antes do horário de partida. Pode levar a mochila,
a jaqueta e os itens pessoais aprovados que tiver. Considere esta
suas boas-vindas formais ao estafe da Babel Comunicações. – Ele
sai e faz um aceno para Vandemeer. – Doutor, ele está entregue aos
seus cuidados. Boa sorte, senhores.
Depois disso, os minutos se arrastam como a contagem regressiva
de uma bomba-relógio. Vandemeer não diz muita coisa, nem eu.
Quando chega a hora, penduro a mochila no ombro e desço. Por
algum motivo, a estação parece um lugar desconhecido e alienígena.
Luzes azuis estão acesas aqui e ali, lançando seu brilho escuro
sobre painéis e interfaces.
Somos admitidos em uma parte da estação que eu desconhecia.
Um elevador nos leva quatro andares para baixo, deixando--nos em
um saguão de luzes brancas. O número 12 brilha em azul em uma
porta distante. Um dos técnicos da Babel me passa instruções sobre
como respirar e acionar os controles, mas o lançamento é em grande
parte automatizado.
– Minha única função – ele diz aos risos – é não morrer do coração
durante a descida. – Não dou risada da piada porque no momento
mal estou conseguindo respirar.
Estamos em um longo corredor circular. Em uma das extremidades,
vejo Jazzy. Está vestida como eu, porém sozinha. Faz um aceno,
que retribuo. Do outro lado, Morning está à espera, andando de um
lado para o outro. De tempos em tempos, lança uns olhares para
mim. Achei que ela ainda estivesse irritada pelo que fiz na Aquavia,
então fico surpreso quando gesticula para que eu me aproxime. Olho
para Vandemeer em busca de aprovação. Ele sorri e me dá o tipo de
empurrão de incentivo que PJ se orgulharia de oferecer.
Saio cambaleando na direção de Morning, que me encara com
seriedade por baixo da máscara de nyxia. Ela olha por cima do meu
ombro para Vandemeer, depois volta a me encarar. Ela tira a
máscara.
– Tenho duas coisas para falar. – Ela chega tão perto que
parecemos ser as únicas pessoas no mundo que habitamos nos
últimos dias, seja qual for. Sinto sua mão se apoiar no meu peito com
força, como se estivesse tentando escorar as paredes para impedir
que desabassem. – Eu queria que você vencesse. Desde aquele
segundo dia, quando segurou a minha mão. Eu queria você em Éden
comigo. Você… Estou feliz que seja você, certo?
Ela mexe um pouco na gola do meu traje antes de me empurrar um
passo para trás. Seu sorriso aberto aparece antes de ser escondido
pela máscara. Sei que ainda existe mágoa ali. Sei que ela considera
que falhou com Loche e o restante da equipe. Sei que vai tratar a
promessa não cumprida como um fardo, mas por ora basta saber
que vamos para o mesmo lugar juntos.
– Espera – eu digo. – Qual é a segunda coisa?
– Eu ainda estou muito brava. – Ela faz um sinal para que eu volte
para junto de Vandemeer. – Quer ver quem chega primeiro à
superfície?
Faço que sim com a cabeça. Seu sorriso não está mais lá, mas
sinto que pode ser um novo começo. Volto para meu lugar e sinto o
orgulho projetar meus ombros para cima.
Nem tudo está perdido ou destruído. Ainda resta esperança.
O técnico avisa que a porta vai se abrir em cinco minutos e volta
para o saguão. Desenrolo os fones de ouvido e vasculho minhas
músicas até encontrar a que escutei no primeiro dia. Aquela que
tanto irritou Longwei. Vou ter que fazê-lo ouvir de novo quando
aterrissarmos em Éden.
Ofereço o outro fone a Vandemeer, que aceita. Ele é um pouco
mais alto que eu, mas ficamos parados em silêncio e escutamos as
batidas quebradas e as vozes vívidas. Meu estômago está revirando,
mas é bom saber que, ao fim da música, a porta vai se abrir. E,
quando a porta se abrir, eu vou para Éden. Os fatos estão bem
definidos agora.
Uma confusão começa atrás de nós. A princípio ignoro, mas
Vandemeer se vira e o fone cai de sua orelha. As vozes se exaltam.
Vandemeer diz alguma coisa que não entendo. Quando me viro,
Karpinski está passando por um dos técnicos e entrando no corredor.
Sinto um aperto no estômago e cerro os punhos. Sua expressão
continua vazia como sempre. Por que ele está aqui? Por minha
causa? Vandemeer aponta para algo que não consigo ver. Karpinski
ergue as mãos em um apelo.
– Não estou aqui para fazer nada contra ele – Karpinski garante. –
Não mesmo.
Vandemeer fecha a cara.
– Você precisa sair daqui, Karpinski.
– Não – ele diz. – Não. Emmett precisa saber. Os outros não
sabem.
A música chega à última estrofe. Um minuto.
– Estou avisando – responde Vandemeer, irritado. – Não chega
perto de nós.
Karpinski dá alguns passos para trás.
– Tudo bem, mas Emmett precisa saber. Ele está esperando você.
Não sei por quê, mas ele está esperando você.
No meu ouvido, toca o último refrão. Os trompetes trovejam. Trinta
segundos.
– É sério, Karpinski. Você precisa sair daqui.
Karpinski continua, teimoso:
– Não acabou. Ainda existe outra chance. Na sala.
Ele aponta um dedo gordo para o 12 reluzente. Atrás de nós, a
porta se abre com um apito. Uma porta idêntica com um número
idêntico me aguarda. Uma antecâmara. A um sinal de Vandemeer,
dois técnicos seguram Karpinski e o tiram do corredor. Com o
coração disparado, devolvo o dispositivo de ouvir música à mochila.
– Cuidado – murmura Vandemeer.
– Eu venci. Vou para Éden. Não tem ninguém aí.
Vandemeer fecha a cara.
– Toma cuidado.
Uma voz robótica ecoa da antecâmara.
– A porta se fecha em dez segundos.
Eu entro. Atrás de mim, outro sibilado. Remexo na mochila quando
a porta se fecha e pego minhas manoplas de nyxia. Com a mão que
ainda está sem luva, enfio a chave azul reluzente sob a roupa. A
jaqueta de nyxia parece ganhar vida. A ventilação do teto sopra ar
para dentro do ambiente. Quando o barulho cessa, as portas se
afastam. As luzes vazam para a antecâmara. Meu corpo se contrai
de expectativa, mas o ataque não vem.
Meu inimigo me espera a distância, em um ponto menos iluminado.
Roathy está com a aparência perfeita de um demônio. Traje escuro;
lâminas escuras. Está emoldurado pela vista do espaço ao fundo,
pela promessa que lhe foi arrancada. Quando me aproximo e a
segunda porta se fecha com um sibilado, ele começa a rir e aponta
com uma lâmina curvada.
– Eu sabia que iria ser você – ele comenta. – A chance era de 25
por cento, mas eu sabia. Eles gostam de fazer joguinhos com a
gente. É bem isso. Mais um joguinho.
– Eu venci o jogo.
Ele sorri sob a máscara.
– Ah. Eles devem ter me colocado aqui por engano, então.
Eles os colocaram aqui? Não pode ser. Atrás de Roathy está o
casulo de lançamento, encravado na base da parede como uma bala
alojada em um osso. Sinto vontade de questionar por que ele foi
trazido aqui, mas é uma pergunta idiota. Ele sabe por quê, e eu
também. Roathy está aqui para finalizar o jogo proposto pela Babel.
Um último teste a superar. Uma última luta a vencer. Isso se ele
estiver dizendo a verdade.
Eu sou o recanto mais escuro e sem estrelas do espaço.
– Sei que você está com a chave – ele diz, apontando com o
queixo para o casulo. – Eles me disseram. Se eu conseguir pegar,
eles esquecem que fiquei entre os quatro últimos. Se eu conseguir
pegar, posso ir a Éden no seu lugar.
– Roathy, nem sei mais quantas vezes nós lutamos – eu aviso. –
Você nunca me venceu. Me deixe passar e nada vai acontecer.
Isadora vai estar de volta em um ano. Vocês vão se ver de novo.
O rosto dele se contorce de desgosto.
– Você está virado se pensa que é assim que vai ser.
– É sério, Roathy. Não precisa terminar assim.
– É o único jeito – ele rebate. – O único jeito, copiou? Eles querem
assim.
Paro a apenas 5 metros dele.
– Quem? A Babel?
– Lute ou morra, eles disseram. Se eu deixar você passar, o casulo
é lançado e a sala se despressuriza. Se eu deixar você passar, vou
ser sugado para o espaço. A ideia sempre foi essa. O tempo todo.
Nós não vamos voltar.
Meu coração está disparado no peito. Isso não faz sentido. As
palavras do bilhete de Hilal ecoam na minha mente. A Babel diz que
eu vou ter outra chance. Mas por que nos forçar a matar? Por que
precisa ser assim? Imagino Hilal em uma sala como esta, encarando
Anton, Jaime ou Alex. Sei que ele jamais lutaria. Ele daria um passo
atrás e deixaria o vencedor ir para Éden.
Mas e se Roathy estiver dizendo a verdade? E se esse for o plano
da Babel, no fim das contas?
Uma última luta até a morte. Matar ou morrer. Buraco negro ou
buraco negro.
– Você disse que a chance era uma em quatro. Os outros…
– A mesma coisa. Hilal, Brett, Loche… A mesma coisa. Eles podem
já estar lutando.
– Não precisa terminar assim – repito. – Eles não iriam
despressurizar a sala, Roathy. Não faz sentido. Confia em mim. É
melhor me deixar ir.
– Você acha que existe alguma coisa que a Babel não faria? –
Roathy posiciona os pés e ergue as espadas curtas. – Eu vou para
Éden. Isadora e eu prometemos isso um ao outro. Você não vai me
impedir.
Entro em posição de combate. Minha mente não deixa de
considerar a possibilidade de uma última mentira da Babel, mas o
resto do meu corpo se move por instinto. Sei como a luta vai se
desenrolar. Conheço o primeiro ataque de Roathy e meu primeiro
bloqueio. Sei como ele move os pés e como vou me posicionar em
resposta. Já fizemos essa dança vezes demais para me esquecer da
coreografia. A única diferença vai ser o sangue, a morte.
Começo a avançar, com os olhos cravados nos dele. Estou ao
alcance de sua espada quando vejo seu olhar desviar. Uma luz pulsa
atrás de nós, e o fogo me atinge nas costas, do ombro ao quadril.
Caio com um joelho apoiado no chão quando outra luz pulsa mais
acima. A espada de Roathy baixa com força, e só por um milagre
consigo erguer a mão a tempo.
Ele brande a lâmina, e uma linha de um vermelho vivo surge no
meu ombro direito. Fico de pé em um pulo e quase tenho as
entranhas perfuradas por um de seus golpes. Mas ele me acerta na
axila, e quase escorrego no sangue que se acumula sob os meus
pés. Ele vê minha morte, e eu a vejo refletida em seus olhos.
Bloqueio, bloqueio e me esquivo. Antes que ele possa rasgar meu
rosto com a espada curta, a jaqueta de nyxia ganha vida.
Não é sob meu comando, mas me salvo mesmo assim. A lâmina
dele é interceptada pela sombra que se forma. De joelhos,
sangrando e tossindo, vejo a substância me proteger de Roathy e de
seu canhão. Ele grita e golpeia em vão. A cada ataque dele, faíscas
brancas voam pelo ar. O canhão de pulsação que criou continua
disparando, mas meu escudo desvia todos os tiros. Por fim, consigo
ficar de pé, e o escudo se estica para me cobrir.
– Covarde – grita Roathy. – Vem lutar comigo.
Ciente de que a nyxia vai aguentar os ataques, tiro as manoplas e
examino meus ferimentos sem pressa. A queimadura nas minhas
costas já está dormente. Precisa ser limpa logo ou vai infeccionar. Os
cortes não são muito profundos, mas nem por isso deixam de ser
dolorosos. Retiro cuidadosamente duas faixas do escudo de nyxia.
Uma manipulação rápida as torna autoadesivas, e eu as coloco
sobre os ferimentos. Calço de novo as manoplas e estalo o pescoço.
Roathy está à minha espera.
Eu preciso matá-lo.
Mas não posso fazer isso. Se matá-lo, quer dizer que Kaya não me
ensinou nada.
Esse pensamento faz minha respiração acelerar. Se eu não posso
matá-lo, então o quê? Devo torcer para que a Babel tenha mentido?
Para que a sala não seja despressurizada, lançando no espaço seus
preciosos recursos? Meus olhos se alternam entre o canhão de
pulsação e Roathy. Avalio a situação, respiro fundo e posiciono os
pés. Com um pensamento, o escudo de nyxia se dissolve.
Antes que Roathy possa avançar, a substância se transforma em
um pássaro preto gigantesco. É parecido com o que Katsu evocou
em um dos primeiros dias, porém muito maior e mais sinistro. Uso
essa distração para me desviar para a esquerda, com as costas
voltadas para o casulo. O canhão é carregado, mas não dispara,
porque Roathy está posicionado entre mim e a arma. Ele vem para
cima, mas desta vez consigo deter seus dois golpes. Roathy está
cada vez mais furioso e descuidado. Com dois jabs meus, ele recua
para mudar o ângulo de ataque. Atrás dele, o canhão de pulsação
está em silêncio. É uma manipulação bem feita. Roathy o programou
com a minha assinatura corporal, mas a arma não dispara com ele
na minha frente.
Continuo lançando os jabs para que ele não perceba meu pássaro
de nyxia pousando sobre o canhão. As garras de metal entram fundo
e arrancam pedaços da arma. O guincho metálico chama a atenção
de Roathy, e quase enfio uma garra em seu coração. Ele gira e
recua. Eu vou atrás. Seu rosto está transformado. A sede de sangue
desapareceu, substituída pelo desespero. Ele ataca, e eu esmago
seu pulso com minha mão direita. Uma espada vai ao chão. Eu
pressiono Roathy para que não possa pegá-la. Jab, jab, gancho. O
terceiro soco arranca sangue de suas costelas. Mais atrás, meu
pássaro leva o canhão ao chão. Roathy leva a mão ao ferimento. O
sangue escorre pelos seus dedos.
Baixo as mãos, e ele morde a isca. Sua espada sobe alto, e eu a
jogo ainda mais para cima com a minha garra. Um ruído de agonia
escapa de seus lábios quando acerto um murro de baixo para cima
com a mão livre. O escudo da manopla arrebenta seu nariz e o
derruba no chão. O sangue jorra farto quando ele cai de costas e vai
deslizando até a porta de entrada. A segunda espada vai ao chão,
então chega o momento.
O sangue pulsa no meu pescoço quando me coloco de pé ao seu
lado. Tudo pode terminar aqui. Para sempre. A nyxia quer sangue,
justiça e reparação. A substância parece saber quem Roathy é e o
que ele fez. Mas Kaya me proporcionou uma coisa que a Babel não
tem como mudar. Meus pais me ensinaram a não me rebaixar a esse
nível. Vandemeer me elogiou pela minha demonstração de
misericórdia.
Eu não vou ser o carrasco que a Babel deseja.
Roathy ainda está caído e atordoado. Atravesso a sala e recolho
minhas coisas. Antes que ele possa se levantar, manipulo o pássaro
que voa pelo ar. Um quadrado preto se forma em seu lugar. Acerto
as beiradas antes de jogá-lo para o outro lado. Uma fina cortina de
fumaça divide a sala pela metade. Roathy e a entrada de um lado, eu
e o casulo do outro.
Ele já está de pé de novo. Leva uma das mãos ao nariz destruído e
com a outra esmurra a barreira que criei. Desesperado, tenta
controlar minha nyxia. Mas eu sempre fui melhor que Roathy nisso.
Minha manipulação se mantém enquanto me concentro nos toques
finais.
Quando me certifico de que está tudo certo, selo tudo e me coloco
diante dele, olhos nos olhos.
A raiva contorce suas feições. Ele apanha uma espada e golpeia a
barreira. De novo, de novo e de novo, até seus braços cederem. As
faíscas se espalham, mas é uma das melhores manipulações que já
fiz. Por fim, Roathy cai de joelhos e grita:
– Vem lutar comigo! Você é um covarde! Vem lutar comigo!
– Covarde? – questiono sem alterar o tom de voz. – Eu poderia ter
matado você, Roathy. Sabe disso, né?
– Você vai me matar! – ele berra. – Quando for embora, a sala vai
ser despressurizada!
Não digo nada, e ele tenta um novo ataque com a espada. A ponta
é retida pela barreira, mas ele continua forçando com todas as forças
que lhe restam. A barreira se sacode perigosamente, mas sei que vai
resistir. Eu a criei firme assim por essa razão.
– Eu não faria isso se fosse você.
Seus braços estão trêmulos de exaustão.
– Roathy, é um bloqueio de ar. – Dou um tapinha do meu lado da
barreira. – Em dez segundos, vou entrar naquele casulo e descer
para Éden. Se destruir isto aqui, não vai ter como se proteger do que
a Babel tiver planejado para você. Se o que eles disseram é verdade,
isto vai ser sua salvação. Adeus, Roathy.
Ele larga a espada, e seus olhos se fixam nos meus.
– Eu vou atrás de você. E vou te encontrar. Nunca vou esquecer.
Olho para o garoto devastado e faço um gesto afirmativo com a
cabeça.
– Não se esquece de nada mesmo. Não se esquece de quem
colocou você aqui nem do motivo. Não se esquece de que eu tive a
chance de matar você e não fiz isso. Não se esquece de que deixei
você viver, e que eles iam deixar você morrer.
– O casulo de lançamento será liberado em um minuto – a voz
robótica ecoa pela sala.
Deixo Roathy gritando atrás da barreira preta. Ele merece coisa
melhor, mas duvido que vá receber quando for encontrado pela
Babel. Entro no casulo e procuro a chave dentro do traje. A luz azul
brilha com força quando a enfio na fechadura, que destranca. Dou
um puxão na alavanca, deixando marcas de sangue por toda parte.
Lá dentro só há mecanismos e luzes. Enfio a mochila debaixo do
assento, e a escotilha se fecha. As plataformas de lançamento se
alinham na borda interna da estação. Dá para ver o negrume do
espaço acima e abaixo. Aros de metal cinza em círculos estreitos. Eu
me inclino para a frente, forçando o cinto de segurança, e vejo que
os outros casulos já foram lançados. Só restam os espaços vazios.
Prendo a respiração. Talvez Roathy tivesse razão. Talvez a Babel de
fato quisesse matar um de nós. Não importava o que acontecesse.
Procuro o rosto de Hilal em cada janela. Rezo e peço a quem puder
ouvir para que ele esteja vivo. Mas só resta um casulo a ser lançado.
É o terceiro à esquerda, com um fantasma à espera lá dentro.
O rosto de Isadora está em ruínas. Não por uma eventual luta
decisiva, mas porque meu casulo é o único ali. Ela deve ter
observado o lançamento dos outros para o espaço, um a um. Este
casulo era sua última esperança de que Roathy pudesse
acompanhá-la, e eu destruí de vez essa possibilidade. Olho para a
sala e vejo Roathy lá, um espelho da mesma dor, perda e mágoa de
Isadora. Mas pelo menos ele está vivo. Pelo menos minha barreira
de nyxia vai salvá-lo.
– Sequência de lançamento ativada.
Enfio a chave na abertura antes de olhar de novo para Isadora. O
casulo inteiro começa a tremer quando nossos olhares se cruzam.
Ela não sabe o que aconteceu, mas seu olhar carrega uma
acusação, uma promessa.
Então começo a cair. O negrume gira nas janelas e se agarra ao
vidro. Chamas são lançadas, e sou jogado de peito aberto no
espaço. Faço uma última oração por Hilal, e o metal começa a
guinchar. Ainda consigo ter um vislumbre dos oceanos escuros de
Éden antes de tudo se desfazer em um borrão.
AGRADECIMENTOS

Ainda me lembro de quando segurei meu primeiro livro publicado.


Estava no quarto ano e tinha escrito As crônicas de Rascal. Nossa
escola mandou imprimir e encadernar os projetos dos alunos. Fiquei
virando as páginas da história que imaginei e fiz uma promessa a
mim mesmo para nunca deixar de escrever.
Gostaria de agradecer à equipe da Crown Books for Young
Readers por elevar meu sonho de criança a um nível acima de
todas as expectativas. A Emily Easton, por ter este livro em uma
estima ainda mais alta do que eu. Contentar-se com qualquer coisa
menos que o melhor que eu poderia escrever nunca foi uma opção
para você, e sou grato por isso. Também devo minha gratidão a
Alison Impey e Regina Flath pelo design da capa, a Stephanie Moss
pelo projeto gráfico do miolo e a Alison Kolani pela edição de texto.
E também a Phoebe Yeh, Samantha Gentry e todo o pessoal da
Crown Books for Young Readers, além de Barbara Marcus, Judith
Haut, John Adamo, Kim Lauber, Hannah Black e o restante da
equipe de marketing, e Dominique Cimina e sua equipe de
assessoria de imprensa na Random House Children’s Books.
Sou muito grato à minha esposa Katie. Ela é muito mais generosa
do que eu jamais conseguiria ser, e estou sempre tentando seguir
seu exemplo. Seus esforços incessantes me proporcionaram a
oportunidade de trabalhar na escrita em tempo integral quando
estávamos fora do país. Devo esse período de criatividade e
crescimento a ela. E, o mais importante, eu conseguia rir com ela
todas as noites antes de ir dormir. O que seria a vida sem esses
breves e eternos momentos de alegria?
Devo muitas coisas à minha família. Mãe, obrigado por ler minhas
histórias muito antes de começarem a fazer sentido. Você sempre
acreditou que eu tinha algo a dizer. Pai, obrigado por mergulhar
comigo em novos mundos e por me fazer as perguntas certas. Devo
meu amor pela ficção científica e pela fantasia a meus irmãos, Matt
e Pat. As infinitas horas jogando videogames e matando dragões
finalmente renderam seus dividendos! Então, se estiverem a fim de
uma sessão no Núcleo Derretido, estou dentro. Os Zaccardo
também merecem um crédito por isso. Obrigado por me receberem
tão bem e por sempre apoiarem meus sonhos.
Um enorme agradecimento aos professores que me inspiraram ao
longo dos anos. Devo minha gratidão especialmente a Susan Letts e
Anne Dailey. Sua conspiração para me colocar nas aulas de escrita
criativa foi uma grande demonstração de fé em um jovem escritor.
Nunca me esqueci disso.
E as relações entre alunos e professores são vias de mão dupla.
Tenho uma dívida de gratidão com inúmeros alunos brilhantes pela
leitura que fizeram do livro em seus primeiros estágios. Os mesmos
adolescentes que me inspiraram a criar um personagem como
Emmett se atiraram com avidez ao papel de leitores beta por mim.
Mais de 15 alunos ofereceram seus sábios conselhos e suas
experiências de vida para me ajudar a tornar Emmett um
personagem plenamente formado. Se precisarem de um lembrete
de que são capazes de mover montanhas, só o que precisam fazer
é comparar meus manuscritos iniciais com os finais. Muitíssimo
obrigado. Espero que todos vocês continuem escrevendo, lendo e
refletindo: o mundo precisa das suas histórias geniais.
Aos membros do Cramp, obrigado. A vida é imprevisível, mas às
quintas-feiras vocês sempre estão lá, dispostos a discutir qualquer
projeto que é colocado à mesa. Os saltos que dei na minha carreira
na escrita podem parecer impressionantes para um observador
externo, mas na verdade os responsáveis foram vocês, que me
ergueram e me jogaram do precipício, por acreditarem que eu já
sabia voar.
A Daniel, Wes e Scott. Vocês são uns palhaços, mas são os meus
palhaços. Metade do que sei e do que sou tem as marcas da sua
presença. Obrigado por sempre estarem ao meu lado.
À minha agente, Kristin Nelson, obrigado por ser tão guerreira.
Desde nossa primeira conversa, percebi que na sua mente não
havia outra opção para este livro a não ser se tornar um sucesso.
Sua confiança e sua fé em mim sempre foram enormes e nunca
diminuíram em nada. Obrigado por me acompanhar nessa luta.
A mesma gratidão deve ser estendida ao restante da incrível
equipe da Nelson Literary Agency e suas afiliadas: Angie Hodapp,
Jamie Perischetti, Kassie Evashevski e Jenny Meyer.
Por fim, as pessoas sempre me perguntam o que faço da vida. Em
um esforço para parecer remotamente normal, digo que sou um
escritor, mas na verdade sou um subcriador. Como tal, meu maior
agradecimento sempre vai ser para Deus. Olho para nosso mundo,
que Gerard Manley Hopkins descreveu como um lugar carregado de
Sua grandeza, e fico atordoado com a imensa criatividade que vejo.
É um prazer pegar tudo o que Ele inventou e usar para tentar
compor meus personagens, minhas histórias e meu mundo. Existe
alegria na subcriação, mas sempre com uma reverência a Deus,
que foi genial a ponto de criar os babuínos:
“E vocês? Vocês vão ter a bunda em forma de chiclete…”
SUA OPINIÃO É MUITO IMPORTANTE
Mande um e-mail para opiniao@vreditoras.com.br
com o título deste livro no campo “Assunto”.

1ª edição, jun. de 2018

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