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E enfim, a loucura.
Minha nova profissão de segurança acabou por desembocar no segundo ofício inusitado, agora também
sou pastora, e dou sermões intermináveis a qualquer um que se apresente.
Enlouqueci, estou certa disso, muito certa, na verdade, é a única coisa que tenho por certa.
Estou plenamente convencida de que existe um vírus mortal circulando por todos os lugares. Acredito
piamente que esse vírus tem sofrido mutações genéticas rapidamente, devido à negligência criminosa
das autoridades competentes em vacinar a população em tempo hábil, aliada à total falta de
observância às regras de isolamento e distanciamento social. Tenho delírios e alucinações extremamente
reais de que enterrei amigos e familiares, e hoje ainda, agorinha mesmo, sinto a dor atroz de cada luto.
Dentro dessa bolha de insanidade, abandonei emprego, vendi bens, fiz dívidas.
Há quase dois anos não recebo visitas em casa. Não visito ninguém. Não vou a parques, não vou ao
cinema, não dou nem vou a festas de qualquer tipo. Não reúno grupos pequenos de amigos.Viagem, só
dentro da minha cabeça. Não tomo parte em protestos, não assisto shows, não frequento bares. Uso
n95, pf22, duas máscaras, cabelos preso, banho de álcool 70, lavar as mãos, tirar a roupa que usei na
rua, banho, check, check, check.
E as mensagens chegam, de outro mundo, em outra galáxia, onde vivem as pessoas sãs:
- Oiiii, quanto tempo! Que saudades de você! Então, queria te falar que meu casamento vai ser no mês
que vem e eu faço questão absoluta da sua presença!
- Po, que manero! Mas mês que vem, cê disse?
- Éééééé! Eu tô muito, muito feliz, já até chegaram as coisinhas do casamento! Olha o meu roupão de
noiva!
E manda a foto do roupão branco, de cetim, o nome gravado em letras caligrafadas em rosa intenso.
- Não é lindo??
- Então, você tinha falado que queria fotografar, posso contar com você, né?
- Agora em Junho?
- É.
Digito e apago, digito e apago, digito e apago. As palavras escapam pelos vãos dos dedos, sabe como é, a
coisa da loucura e tals:
- O problema é que minha vacina tá prevista pra Setembro. A primeira dose. Então acho que sair em
Junho, não vai rolar.
- Sei sim, ô se sei, falei e faria muito gosto. Mas escuta, cê tá ciente que estão morrendo mais de duas
mil pessoas por dia, né? E que quase ninguém foi vacinado?
- E vai dar festa de casamento mesmo assim? Pensa bem, nessa época do ano tá muito frio, cê vai
congelar no vestido de noiva, fia, corre o risco de chover e tudo mais. Por que você não casa na
primavera, com bastante Sol e flores, é muito mais romântico e glamouroso, e tem a enorme vantagem
de não matar os convidados vacinados.
- Olha Carma, se você não quer fazer, tudo bem tá, é que você falou...
- Eu tava contando com você, já tá tudo pronto, tudo certinho, eu não vou mudar a data do meu
casamento só porque você quer.
- Nada feito.
- Ow, fica brava não, Nega, sabe que te amo, né? Se não puder ir ao casamento, prometo que dou um
jeito de ir na missa de sétimo dia, nem que seja de escafandro.
A imagem circular de um jovem sorridente usando camisa florida, iluminado por raios solares, começa a
cuspir umas letras na minha tela:
- Hey, estou no Brasil! Como você tá? Quero muito te ver, porra! Dá sinal de vida!
Fiquei pensando em como é difícil emitir um sinal de vida no meio de tanto sinal de morte. Respiro. Vai:
- Opree. Perae, deixa eu entender, você acabou de chegar de Berlim? Veio de Berlim, pro Brasil, agora?
- Entendi. Você veio de Berlim pro Brasil, no auge da pandemia por aqui, sem vacina, sem teste, sem
Presidente da República, correndo o risco de não conseguir voltar pra lá porque o país já é considerado
risco sanitário pelo resto do mundo, e já fez a gentileza de exportar para o Japão, (um dos países menos
afetados pela pandemia, até então), nossa maravilhosa, exclusiva e super aditivada cepa amazonense.
Realmente, faz todo o sentido.
- Não sei.
- Bem, isso sim faz algum sentido.
- Cê tá indo em bar???
- Cê tá ligado que aqui não é Berlim, não tá? Porque não tá parecendo que tá não ó. Eu não to saindo,
pra nada. Até compras de mercado eu to fazendo online. Compro cigarro de pacote pra não ter que sair
com frequência pra comprar, saca? Tão morrendo mais de duas mil pessoas por dia bro, mais de duas
mil, não tem vacina, cê me desculpa, mas não to vivendo no mesmo mundo que tu, não. No mundo em
que eu vivo, as pessoas estão em quarentena, sem testes, preocupadas em não se contaminar e não
transmitir. Não morrer, e não matar, esse tipo de coisa.
Nunca obtive uma resposta e tampouco procurei por ela. Por causa da loucura, é evidente.
Esse tipo de loucura. A paranóia. De matar seu amigo, seu familiar, seu filho, a caixa do supermercado,
uma avó, uma mãe, um pai, um irmão, um bebê. Eu não sei quem pode ser. Ninguém sabe. São pessoas,
muitas pessoas, zipadas num arquivo compatível com a capacidade de noticiar e digerir, debaixo de um
número, hoje de 630.000 brasileiros, daqui pro fim do ano não sei. Debaixo de bandeiras na Av. Paulistas,
de manisfestos, de cartas de repúdio, de mais de 100 pedidos de imptchman engavetados, debaixo das
negociatas, das locupletações políticas, do aparelhamento ultra criminoso do Estado, debaixo das ruínas
esfumaçadas de uma pseudo democracia, debaixo do espetáculo da necropolítica, debaixo das botas
lustrosas de alguns milhares de assassinos em marcha, debaixo de uma multidão carregando bandeiras
patrióticas com a finalidade de chacinar seus concidadãos, torturar seu filhos e vilipendiar suas
memórias, debaixo de uma multidão que quer fuzilar seus vizinhos, ex-conjuges, colegas de trabalho, fãs,
familiares, "amigos". Debaixo de tudo isso tem no mínimo 630.000 PESSOAS, com famílias, sonhos,
identidade própria, banda preferida, problemas singulares, talentos extraordinários. Cada uma dessas
PESSOAS, foram contaminadas por, OUTRAS PESSOAS, e podem, por sua vez, ter contaminado muitas
outras, o que eu quero dizer é, quem não morreu nem foi entubado, mas se contaminou, ciente ou não,
pode ter matado famílias inteiras por esse mundão afora. No meu mundo, nesse em que eu vivo, eu não
suportaria tal possibilidade. Não conseguiria me olhar no espelho. Não conseguir conviver com a
hipotese de ter matado uma dezena de inocentes, destruído familias interiras, até mesmo a minha. Não.
Sem bancar a boa samaritana, mas não é o tipo de roteiro que quero escrever. Simplesmente não é
aceitável sob nenhum ponto de vista.
E porque fiquei louca e me tornei pastora e segurança e fiscal e meme, e talvez porque quis ser
anarquista numa encarnação passada, quando eu ainda tinha o necessário, que era projeto e esperança,
coisas que não sobrevivem apartadas. Em verdade vos digo, que a alma anarquista ainda me sobra nos
restos de hoje, preciso ter alguma piedade para comigo mesma, apesar da loucura, julgo que tenho
governado meu reino com justiça e generosidade, apesar da sobriedade que o trago de amargura me
traz. Não estou me sacrificando pelo povo, e nem ele por mim, nada poderia ser mais anárquico.
Eu já ia dizendo que não tenho medo do inferno, mas se for dizer pra valer, pra valer mesmo, passei a ter.
Eu que nem acredito nesse Deus alcoviteiro, chantagista e barganheiro, resolvi me declarar agnóstica, e
tentar ser o melhor ser humano possível. Melhorar, melhorar e melhorar. Decididamente, já
experimentei passar algum tempo da vida com bolsonaristas, e não quero isso pra vida eterna. Que
venham as túnicas e harpas, to assinando qualquer contrato. Porque eu sei que elas estarão por lá,
inflitradas eternamente em todas as esferas, de todos os sete pecados, e a maior parte certamente terá
acesso total e irrestrito a várias esferas. Muitos vips.
Ahhh, o bozofascinazismo tropical, esta bela criança que destrói o tabuleiro quando não ganha, esta de-
formosidade que nossa Pátria Mãe pariu, e educou, mal muito mal, carecendo de uma atenção e afeto
que nós recusamos, como pais trabalhadores, ausentes e desatentos, esse filho da Pátria Mãe cresceu e
se tornou um grande Kevin, um Leonardo Pareja continental, o Brasil virou um imenso playboy
infinitamente rico, mimado e negligenciado pelos pais cheios de compromissos, que acaba se
aventurando nas sendas da criminalidade e que muito provavelmente vai acabar assassinado por alguma
polícia do mundo. Mas não sem antes destruir e arruinar e envergonhar profundamente seus pais, que
na verdade somos nós, aquele famigerado povo brasileiro que nem consta da certidão de nascimento.
Um clássico.
Não assumimos nosso filho, não nos responsabilizamos por ele. Ele vem crescendo à revelia e sem
orientação. É um deliquente fazendo arruaça e cometendo crimes que afetam o mundo todo. Somos
representados por pessoas que matam outras pessoas, nas periferias ou no leblon. Pessoas que rezam
pela Síria, pelo Afeganistão, mas comemoram o morticínio diário de crianças e adolescentes nas
periferias. Pessoas que querem uma guerra civil, aqui.
Que querem matar, extirpar, aniquilar, fuzilar os esquerdopatas. Ou qualquer coisa ou pessoa que eles
considerem esquerdopata.
Feministas, artistas, gays, padres, papas, físicos, cientistas, Steve Jobs, Nando Moura, Mbl, Madonna,
Stephen Hawkins, Carl Sagan, a bandeira do Japão. Todos comunistas.
Descobrimos há alguns anos que nossos amigos, nossos familiares, nos querem mortos.
Irmãos pegariam em armas e matariam uns aos outros. Pais atirariam no próprios filhos, e vice versa.
Acuse-me de cética, acuse-me amarga. A realidade em que habito me prova. Eis a minha mais extrema
loucura. Matar milhares com um vírus terrível é só a entrada do Menu Macabro. É preciso mais armas,
mais mortos, mais orfãos. Tem que ter sangue, o vermelho que eles querem ver. O sangue.
Nós, esse mesmo povo, esse mesmo país, esse mesmo Brasil, construído por indígenas e imigrantes, esse
mesmo Brasil que acolheu meus ancestrais italianos, famintos, sujos, exaustos, fugindo das
consequências de uma guerra devastadora em busca de uma vida melhor em uma nova pátria próspera
e pacífica.
Esse mesmo país que recebeu os avós do meu ex-marido coreano, cujo avô veio para o Brasil para não
ser obrigado a lutar uma guerra contra seu próprio povo. O irmão dele, por exemplo, lutava no exército
inimigo.
Não os Africanos. Estes não. Os africanos nunca foram acolhidos aqui, foram traficados e profundamente
marginalizados. Importantíssimos, eu diria fundamentais, para a formação cultural, identitária, orgânica,
étnica, estrutural. Nós, como nação, estamos muito longe ainda de fazer justiça a esse povo. A dívida é
imensa, e não é de antepassado nenhum, ela continua crescendo sob a nossa má gestão. A dessa
geração, essa que é composta por todo mundo que tá aqui agora. Mas eu não sou preta, não gosto de
ficar falando porque prefiro ouvir o que eles tem a dizer, e eles tem muito a dizer, a intenção não é fazer
discurso me locupletando em cima do que não me cabe, mas cuidando pra não fazer a egípcia e mandar
aquele discurso padrão de acolhemos e tá tudo bem. Porque não está tudo bem.
Pelo menos não no meu mundo, onde esses pensamentos habitam. Esse mundo delirante no qual me
enfiei(?), fui enfiada,(?), ou ambas as alternativas estão corretas? Um exemplo clássico de quando a
ordem dos fatores não altera o produto. Estou louca, perdidamente louca, descolada da realidade.
Tenho insultado pessoas das formas mais gratuitas. Não fui desvastada pelo vírus da covid, mas pelo
vírus do ódio.
Dentro da minha distorcida percepção, tenho visto uma multidão de assassinos, andando pelas ruas
movimentadas com máscaras no queixo, lotando os bares, praias, transportes públicos. Vi pessoas
protestando pelo direito de assassinar seus funcionários. Vi pessoas pobres protestando pelo direito de
serem assassinadas. Vi pessoas exigindo o direito de enviar seus filhos, os professores deles e demais
funcionários das escolas, para a morte.
Explosões e terremotos, mega assaltos, agrotóxicos, atentados terroristas, pessoas com máscara no
queixo.
Uma starlet global dá uma festa junina de arromba, o jogador de futebol mais popular do país também,
festas cheias de personalidades pseudo importantes. Minha gastrite grita.
Não tenho nada de bom pra dizer a ninguém. Eu mesma já não me convenço.
É uma tempestade e sinto que estou perdendo o leme. Estou louca, eu e apenas eu.
Este não é um texto sobre esperança, sobre vislumbres de algum caminho mais luminoso.
Sobre rupturas catástroficas e dificilmente contornáveis. Sobre soluções práticas que já não parecem
possíveis. É sobre perder a própria humanidade.