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A condição humana

ROBERT CUMMINGS NEVILLE


(org.)

A condição humana
Um tema para religiões comparadas

PAULUS
2001, State University of New York, Albany
ISBN 0-7914-4780-4
The Human Condition: A Volume in the Comparative Religious Ideas Project
The portuguese translation of this book is made possible by permission of the State University of
New York Press and may be sold only in Brazil.
A tradução em língua portuguesa deste livro foi feita com a permissão da Editora da Universidade de
Nova Iorque e somente pode ser comercializada no Brasil.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (Cl P)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

A condição humana: um tema para religiões comparadas


/ Robert Cummings Neville (org.). — São Paulo: Paulus, 2005.
Título original: The human condition.
Vários tradutores.

Bibliografia.
ISBN 85-349-2328-0

1. Religião – Filosofia 2. Seres humanos I. Neville, Robert Cummings.

05-3712 CDD-291.22

índices para catálogo sistemático


1. Condição humana: Religião comparada

Tradução Márcia Cabral Meireles


Eduardo Rodrigues da Cruz (org.) Maria Cecília Domezi
Alessandra Sterzi de Carvalho Maria Cristina Mariante Guarnieri
Antônio Francisco da Silva Maria Marta Alcântara de Oliveira
Cecília Cintra Cavaleiro de Macedo Martina Maria Eudosia Gonzalez Garcia
Eduardo Rodrigues da Cruz Patricia Carla de Melo Martins
Eulálio Avelino Pereira Figueira Regina Soares Jurkewicz
Gina Valbnao Strozzi Nicolau Teodoro Hanicz
Lourenço Stelio Rega Yuri del Carmen Puello Orozco

Editoração
PAULUS

Impressão e acabamento
PAULUS

PAULUS – 2005
Rua Francisco Cruz, 229
04117-091 – São Paulo (Brasil)
Fax (11) 5579-3627
Tel. (11) 5084-3066
www.paulus.com.br
editorial@paulus.com.br

ISBN 85-349-2328-0
Para
William Eastman, Editor
Quem, como diretor da State University of New York Press,
incentivou a extraordinária variedade e profundidade
dos estudos das religiões mundiais, e a carreira de jovens pesquisadores
trabalhando com abordagens originais,
o que tornou possível ambiciosas pesquisas comparativas
tais como a que aqui se apresenta.
PREFÁCIO
À EDIÇÃO BRASILEIRA

Muitos têm sido os livros publicados em tempos recentes so-


bre Religiões Comparadas no Brasil. Alguns de boa qualidade, ou-
tros não, alguns destinados ao público especializado, mas a maioria
é obra de divulgação. Em geral, entretanto, recaem em duas catego-
rias: ou são obras de um autor, um erudito que fala um pouco de to-
das as religiões, sem ser especialista em nenhuma delas (ou somente
em uma); ou são coletâneas com vários especialistas, escrevendo so-
bre algum tema em suas religiões, às vezes de maneira proselitista.
Com honrosas exceções, padecem de vários defeitos, como distor-
cer alguma das tradições estudadas ou apresentá-las como compar-
timentos estanques, e assim o leitor não tem uma possibilidade real
de comparação. Aquele que se propõe a estudar religiões em uma
perspectiva comparativa, portanto, não achará muitos materiais re-
levantes em língua portuguesa.

O volume ora apresentado ao público brasileiro dá um salto


qualitativo na direção do estudo acadêmico da religião em nos-
so país. Ele representa o resultado de um projeto de longo termo,
conduzido na Universidade de Boston, onde especialistas e gene-
ralistas, de várias disciplinas acadêmicas, reuniram-se para um sé-
rio trabalho comparativo sobre religiões. Para tanto, dedicaram um
tempo considerável a discussões metodológicas (que ocupam uma
parte significativa do presente volume) e à pergunta de fundo: o que
significa comparar uma religião com a outra? As respostas que têm
sido encontradas são freqüentemente insatisfatórias, tendo-se em
mente o exemplo máximo de Mircea Eliade, principalmente em
. - - PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA
8---=----

seu Tratado de história das religiões (Ed. Martins Fontes). Assim uma
outra preocupação foi delimitar com consciência e rigor o objeto
de estudo: apenas seis tradições religiosas (que produziram textos)
foram analisadas neste momento, e em torno de três categorias bá-
sicas: condição humana, realidades últimas e verdade na religião. A
escolha destas mostra também uma preocupação dos autores de se
afastarem de uma abordagem positivista do religioso, ou enquadrar
este apenas nos interesses de costume das ciências sociais. Assim, as
questões ontológicas também ganharam destaque.
O autor principal, Robert Cummings Neville, apesar de pou-
co conhecido entre nós, é um respeitado intelectual norte-america-
no. Escreveu um grande número de obras, atravessando disciplinas
como teologia, filosofia e ciências da religião, dentro da tradição do
Pragmatismo de seu país de origem. Isto não significa que a presen-
te obra seja pragmatista, mas esta influência pode de fato ser nota-
da. Neville esteve no Brasil há poucos anos, participando de um
congresso internacional sobre pragmatismo, e na ocasião tivemos
oportunidade de encontrá-lo e aprender mais sobre o projeto de
Boston. Os volumes produzidos a partir deste último (A condição hu-
mana, Realidades últimas e Verdade religiosa), publicados em 2001 pela
SUNY Press de Nova Iorque, pareceram-me deveras interessantes.
Assim sendo, propus uma disciplina no Programa de Pós-gra-
duação onde trabalho, o de Ciências da Religião da PUC-SP, com o
objetivo de percorrer de maneira sistemática o primeiro volume do
projeto. Dada a dificuldade de alguns alunos com a língua inglesa,
aos poucos fomos traduzindo alguns capítulos. Ao final do semes-
tre, sugeri aos alunos que completássemos o trabalho, produzindo
uma tradução confiável do livro como um todo. Fizemos a propos-
ta de publicação à Editora Paulus, que acolheu entusiasticamente o
projeto. Os alunos que se interessaram se dividiram em pares, cada
qual responsáVel por uma parte do livro. Dada a sua extensão e a sua
dificuldade intrínseca, gostaria de agradecer a todos eles, listados
que estão nos créditos deste volume. Coube a mim a supervisão do
trabalho e a revisão final, no esforço de produzir um texto marcado
pela fidelidade ao original, pelo estilo fluente e pelo uso de expres-
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PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA-=-

sões consagradas no meio acadêmico brasileiro. Gostaria de agra-


decer também a Maria Marta, a Renata Cataldi e especialmente a
Élcio, que se juntaram posteriormente ao projeto e ajudaram na sua
produção final. Desnecessário dizer que qualquer erro na tradução é
de minha exclusiva responsabilidade.
Algumas escolhas foram feitas, como a Bíblia de Jerusalém
para certas citações bíblicas, e a tradução direta, no caso de outros
textos. Optamos também por manter o termo Self sem traduzi-lo,
dada sua ampla utilização em diversas áreas do conhecimento no
Brasil. Quanto à divisão da história entre "antes de Cristo" e "depois
de Cristo", o texto original usa uma nova convenção, já consagra-
da no mundo de língua inglesa: "BCE" (Before Common Era) e "CE"
(Common Era). Optamos por manter o tradicional em português,
"a.C." e "d.C.". Notas do tradutor foram inseridas aqui e ali, para expli-
car alguma situação pouco conhecida do leitor. Reconhecemos que
existem em português alguns dos textos religiosos originais citados
pelos autores, mas não tivemos oportunidade de cotejar as diversas
edições, às vezes pela dificuldade de saber qual seria a mais adequa-
da. Se algumas passagens divergirem da prática literária de algumas
religiões no Brasil, pedimos desculpas e acolhemos sugestões.
Contamos com que este volume seja útil para o estudo acadê-
mico da religião no Brasil, superando (esperamos!) a tradicional re-
partição entre livros para o uso interno das instituições eclesiais e
outros para o uso interno das instituições seculares. E, sem dúvida
alguma, a presente obra pode ser também de grande interesse para
o leitor que deseje ir além das informações preliminares sobre a re-
ligião, encontradas em livros de mais fácil acesso.
Eduardo Rodrigues da Cruz
Outubro de 2004
APRESENTAÇÃO
Peter L. Burger

O presente volume, que contém os resultados do primeiro ano


de um projeto de três, concebido e dirigido por Robert Nevilie da
Universidade de Boston, constitui uma contribuição inovadora ao
estudo comparativo de tradições religiosas. Como tal, ele sem dúvi-
da atrairá a atenção de estudiosos do campo. E poderia ser de inte-
resse para um público mais amplo? As observações que se seguem
procuram dar uma resposta positiva a esta questão.

O processo de modernização, que no momento tem afetado


de maneira radical virtualmente a todas as sociedades no planeta,
tem como uma de suas consequências mais importantes a situação
comumente chamada de pluralismo. O termo significa, em seu ní-
vel mais simples, que pessoas com crenças, valores e estilos de vida
os mais diversos passam a viver juntas de maneira próxima, e são
forçados a interagir uma com a outra, e portanto se vêem diante da
alternativa ou do confrontamento, ou de alguma forma acomodar
as diferenças entre elas. Pluralismo neste sentido é com freqüência
aplicado à coabitação de diferentes grupos raciais, étnicos ou lin-
güísticos, mas as diferenças que dão ao pluralismo o seu nome são
usualmente de caráter religioso. O pluralismo religioso não é uma
característica única da modernidade. Existiu no mundo helênico-
romanico ao longo das grandes rotas de comércio da Ásia central,
em centros urbanos do mundo islâmico, e em outros lugares. O que
é distinto no pluralismo moderno é sua ubiqüidade, tanto geográ-
fica e sociologicamente. Geograficamente, há poucos lugares que
sobram hoje nos quais alguma tradição religiosa mantenha um mo-
12 - APRESENTAÇÃO

nopólio indisputável. Onde a tentativa é feita de manter ou restau-


rar tal monopólio em condições de contemporaneidade, termina-se
por requerer uma coerção dura, e mesmo então ela é constantemen-
te ameaçada por forças pluralizantes ou pela modernidade (notada-
mente pelos modernos meios de comunicação de massa). O desti-
no da Espanha de Franco, que procurou restaurar o monopólio do
catolicismo tradicional, é instrutivo a este respeito. Tentativas mais
recentes, como a revolução Islâmica no Irã, enfrentam dificuldades
muito semelhantes. E sociologicamente, o pluralismo moderno dei-
xa de fora de seus efeitos corrosivos poucos grupos dentro de uma
sociedade. Grupos cosmopolitas, como mercantes ou intelectuais
muito viajados, com muita freqüência foram afetados em períodos
anteriores. Assim, por exemplo, a mistura religiosa característica da
"espiritualidade nova-era" de hoje, tem várias similaridades com as
idéias sincréticas que perpassavam as classes educadas no Império
Romano tardio. Hoje, entretanto, tais idéias são provavelmente tão
adotadas por secretárias e motoristas de caminhão quanto por pes-
soas com curso universitário.

O encontro com tradições religiosas alheias pode ser fascinan-


te, intelectualmente estimulante, e talvez conducente a maior to-
lerância. Pode ser também muito perturbador, na medida em que
com quase certeza pode minar certezas longamente assumidas, e
assim ameaça os padrões pelos quais as pessoas organizam vidas sig-
nificativas para si próprias. Posto de maneira simples, o pluralismo
relativiza. O que em tempos precedentes foi uma crença assumida
com convicção absoluta, agora se torna uma opinião ou questão de
gosto — utilizando a interessante frase do pluralismo norte-ame-
ricano, ela se torna uma "preferência religiosa". Esta relativização é
freqüentemente experimentada em um primeiro momento como
uma grande liberação; passado um certo tempo, ela pode vir a ser
vivenciada como um pesado fardo. Surge então uma nostalgia, um
anseio pelas certezas reconfortantes do passado. O pluralismo, antes
liberador, agora se torna um inimigo, o "grande Satan" que deve ser
combatido em nome de verdades imutáveis. Este processo sócio-
psicológico desencadeia uma dialética curiosa entre o relativismo e
APRESENTAÇÃO 13

o fanatismo. O resultado final da relativização pluralista é uma ati-


tude de total tolerância, na qual nada sobra das crenças originais de
alguém, onde vale qualquer coisa, e onde a única virtude à qual se
adere é, paradoxalmente, aquela de uma tolerância ilimitada. À me-
dida que esta atitude se torna onerosa para os indivíduos (afinal de
contas, o niilismo não é uma visão de mundo prática para a maioria
de nós), estes se tornam disponíveis para conversões — quer dizer,
inclinados a aderir a qualquer reafirmação fanática de uma verdade
intransigente que cruze seus caminhos. O relativista infinitamen-
te tolerante agora se torna o fanático com demandas cognitivas e
morais não negociáveis. Esta dialética não precisa terminar aí. Todo
fanatismo é vulnerável à relativização, assim como todo relativismo
pode ser tolhido por esta ou aquela "experiência de Damasco",

Mesmo que estas duas posições sejam opostos psicológicos e


sociológicos, elas compartilham uma importante premissa cogniti-
va: tanto o relativista quanto o fanático crêem que não pode haver
comunicação razoável alguma entre visões de mundo diferentes,
nenhuma busca que valha a pena por critérios de verdade mutua-
mente aceitáveis pelos quais as diferenças possam ser discutidas.
Dada esta premissa, não há um meio termo entre colocar coisa al-
guma em dúvida no que os outros tem a dizer, e golpear os outros
até que eles se rendam ou desapareçam. Entretanto, a experiência
ordinária mostra que esta premissa de não-comunicabilidade não se
sustém universalmente. Têm havido muitos casos nos quais surge
uma comunicação significativa entre pessoas com crenças e valores
altamente diferenciados, e como resultado disso estabeleceu-se efe-
tivamente um meio termo tal que os variados grupos podem coexis-
tir amigavelmente sem apresentar nem conflito aberto, ou tampou-
co o abrir mão do que é valioso nas respectivas tradições. De fato, a
historia do pluralismo religioso na sociedade norte-americana, com
algumas exceções lamentáveis, tem sido nos termos acima uma de
considerável sucesso. Tal sucesso raramente ocorre como resultado

* NT — O autor se refere aqui à experiência de conversão de São Paulo a caminho de Damasco,


tal como narrada em Atos 9,1-9.
14-=-----=
-- APRESENTAÇÃO

de negociações entre teólogos ou outros acadêmicos autorizados. Os


acordos cognitivos e morais tem sido trabalhados ao invés duran-
te horários de almoço de companheiros de trabalho, entre donas-
de-casa sobre muros entre casas vizinhas, ou por pais entrando em
contato por causa de preocupações compartilhadas a respeito das
atividades escolares ou recreativas de suas crianças. Entretanto, toda
esta comunicação implica um princípio filosófico — algo próximo
da "razão natural" que, por exemplo, o missionário jesuíta Matteo
Ricci assumiu como provendo um terreno comum para cristãos e
confucionistas. É interessante que a premissa acima mencionada,
compartilhada por relativistas e fanáticos — ou seja, que não pode
haver comunicação razoável entre adversários cognitivos, e portan-
to nenhuma busca comum da verdade — tem um curioso correlato
ao nível de academia em particular. A história recente da academia
no ocidente, e em especial nos Estados Unidos, tem assistido a um
assalto massivo sobre qualquer noção de verdade objetiva. Toda pro-
posição sobre o mundo é supostamente determinada pela situação
da pessoa na história e na sociedade, e não há método pelo qual esta
determinação possa ser sobrepujada ou mesmo minimizada. Tem
havido várias versões desta perspectiva — neo-marxista, neo-freu-
diana, e mais recentemente feminista e "multiculturalista"; o termo
"pós-modernismo", algo dúbio, tem sido usado para cobrir todas es-
tas versões. Na área de estudos da religião, isto envolve implicações
práticas e teóricas. No nível prático, ela tem mudado as intenções
do diálogo entre tradições religiosas: enquanto anteriormente havia
com freqüência a expectativa que tal diálogo levasse a novas percep-
ções em nível de verdade, esta expectativa deve agora parecer fútil.
Ao invés, tudo o que se pode esperar é um grau de empada com
aqueles outros e talvez, como resultado, atitudes mais amigáveis em
relação a eles. As implicações teóricas são ainda mais abrangentes:
qualquer noção de verdade na área da religião é abandonada, e da
mesma maneira qualquer tentativa de comparar o modo pelo qual
diferentes tradições lidam com a verdade; tudo o que pode aconte-
cer é que alguém conte sua própria "narrativa" (a história do como
a pessoa veio a mirar o mundo sob um certo enfoque), e que escute
às "narrativas" dos outros com tanta empatia quanto a pessoa possa
APRESENTAÇÃO 15

reunir. As tradições religiosas agora surgem como tipos de "môna-


das" leibnitzianas, impenetráveis a alguém de fora, soberanamente
impermeáveis a conceitos generalizantes.
Este ponto de vista é bastante vantajoso para os supostos por-
ta-vozes desta ou daquela religião ("ninguém pode falar pelo meu
pessoal exceto eu") e, de maneira um pouco mais branda, para o es-
pecialista estreito ("ninguém entende a minha área exceto eu — e
não preciso ouvir ninguém de fora dela"). Ele expressa,é claro um
relativismo extremo, legitimado aqui e ali em termos de uma teoria
epistemológica. É interessante, entretanto, observar que este rela-
tivismo, longe de levar à tolerância, leva sim ao seu fanatismo pe-
culiar, seja ele ideológico (a forma mais política) ou metodológico
(para aqueles menos interessados em mudança social do que negar
efetivação àqueles dos quais discordam no departamento universi-
tário).
Este não é o lugar para justificar porque tal ponto de vista é in-
teiramente equivocado. Basta dizer que as suas conseqüências, tanto
práticas quanto teóricas, são devastadoras. A balcanização da teoria
leva logicamente a uma política similar." E se não há "razão natural"
alguma, com base na qual idéias diferentes podem ser comparadas e
avaliadas, então não pode haver algo como a "ciência": podemos ape-
nas iniciar conversas paralelas até que, frustrados por tal exercício,
comecemos a nos dar cabeçadas. O presente projeto é acadêmico.
Não pretende ter objetivos práticos imediatos, tal como um diálogo
mais profundo entre tradições religiosas ou relações mais amisto-
sas entre seus aderentes. Mesmo assim, indiretamente, ele é rele-
vante para ambos os propósitos. Ele pressupõe a possibilidade de
entendimento e comparação objetivos, o que também implica em
um meio termo entre o relativismo total e o fanatismo. Ainda que
Robert Neville, um acadêmico impecavelmente irenista, não tenha
tido nenhuma intenção polêmica, há aqui uma rejeição implícita
das premissas "pós-modernistas" mencionadas anteriormente. Tan-

*(NT) Esta expressão, pouco usual no português, refere-se à fragmentação da península dos
Bálcãs após a Primeira Guerra Mundial.
16i --- -=- - APRESENTAÇÃO

to o método do projeto como o título deste volume dão testemunho


disto. Com uma exceção (ligada a um aspecto prático), cada tradição
religiosa foi interpretada por um pesquisador que não era aderente
dela. Isto implica, é claro, que isto pode ser considerado como váli-
do, e que portanto põe fé na possibilidade da razão científica, que
sabe fazer frente à epistemologia "pós-modernista". E falar de uma
"condição humana" ainda implica que todos os seres humanos, e as-
sim todas as tradições religiosas, compartilham um mundo objetivo
comum que fornece pelo menos algumas categorias pelas quais di-
ferentes visões dele possam ser comparadas e avaliadas.
Estas observações não implicam necessariamente em um con-
senso sobre estes assuntos dentro do projeto. Muito provalvelmen-
te não. A intenção é apenas mostrar porque este participante pensa
que o projeto possa ser de interesse para além da área de estudos da
religião propriamente dita.
PREFÁCIO
Robert Cummings Neville

O Projeto de Idéias em Religião Comparada, baseado na Uni-


versidade de Boston, ocorreu do outono de 1995 até a primavera de
1999, na forma de seminários em um total de vinte e cinco dias.
Seus resultados são publicados em três volumes: A Condição Huma-
na, Realidades Últimas e Verdade Religiosa. Uma conferência em maio
de 1999 foi a conclusão do projeto, na qual participantes dele tive-
ram a companhia de distintos pesquisadores em religiões mundiais,
incluindo Anne Birdwhistell, Jose Cabezon, Julia Ching, Jordan
Pearlson, Arvind Sharma, Jonathan Z. Smith, Max Stackhouse, Tu
Weiming, e Lee Yearley, que não estiveram envolvidos no projeto,
salvo Stackhouse e Tu, como mencionado abaixo. A Conferência re-
fletiu sobre rascunhos dos volumes e produziu percepções valiosas
sobre o que havíamos feito ou não, com o insubstituível instrumen-
tal de perspectivas externas mas experientes.
Dois propósitos motivaram o projeto; desenvolver e testar uma
teoria referente à comparação de idéias religiosas, e fazer algumas
importantes comparações sobre idéias religiosas da condição huma-
na, realidades últimas, e verdade religiosa. Estes dois objetivos estão
intimamente ligados: a teoria não pode ser testada sem colocá-la a
serviço fazendo comparações, e não se pode confiar nas compara-
ções sem uma reflexão justificada de segunda ordem sobre a nature-
za da comparação.
No estudo da religião em culturas ocidentais hoje, fazer-se com-
parações entre religiões sobre tópicos como os nossos não é novo ou
surpreendente. A despeito do fato de que pesquisadores estão pre-
18 PREFÁCIO

ocupados a respeito do imperialismo das categorias interpretativas,


comparações são corriqueiras em cursos universitários sobre reli-
gião — de que outra maneira as pessoas podem aprender sobre re-
ligiões que são novas para elas? Além disso, ignorância das grandes
religiões mundiais é simplesmente inaceitável hoje em qualquer
ramo dos estudos da religião, mesmo em teologias confessionais,
ainda que apenas para manter preconceitos imperialistas sob sus-
peita. As esferas mais amplas da política, economia, e comunicação
cultural são profundamente moldadas pelo como as religiões rela-
cionam-se comparativamente, freqüentemente com concepções
que são desnecessariamente ignorantes e provincianas. Assim o que
nos propomos a fazer é oferecer algumas comparações melhores em
torno de tópicos religiosos muito importantes, e melhores porque
foram refinadas através dos métodos comparativos da teoria.

A apresentação cuidadosa de uma teoria de comparação elabo-


rada para idéias religiosas, por contraste, é bastante surpreenden-
te em ciências da religião hoje e, se bem sucedida, também uma
contribuição significativa. Precisamente porque temos uma maior
consciência sobre o imperialismo de comparações e teorias de com-
paração anteriores, abordagens teóricas à religião e especialmente à
comparação são altamente suspeitas. A teoria como tal é impopular.
Nosso objetivo menos usual, portanto, é apresentar uma teoria da
comparação e coloca-la em operação. Este propósito mesmo trouxe
algumas sérias qualificações e limitações ao projeto, como será indi-
cado em breve.

A concepção do projeto foi a de agregar um grupo de trabalho de


pessoas da grande Boston, consistindo tanto de especialistas em dife-
rentes tradições religiosas e generalistas de diversos tipos, juntamen-
te com estudantes pós-graduados. O grupo então começou a trabalhar
comparativamente, discutindo os três grandes tópicos de idéias reli-
giosas em termos de suas estruturas, um em cada ano, com um quar-
to ano dedicado às tarefas editoriais dos três volumes mencionados.

O grupo de trabalho do projeto foi selecionado para colocar em


tensão duas tendências contrárias no pensar sobre a comparação de
PREFÁCIO 19

idéias religiosas. Uma é a tendência de ver cada religião, talvez mes-


mo cada texto dentro de uma tradição intelectual religiosa, como
sendo única e especial — e assim em perigo de distorção quando
sujeita a comparações. Para este propósito recrutamos seis especia-
listas em diferentes religiões com um forte compromisso com a
especificidade histórica: Francis X. Clooney, S.J., perito em hindu-
ísmo; Malcolm David Eckel, perito em budismo; Paula Fredriksen,
perita em Cristianismo; S. Nomanul Haq, perito em islamismo; Lí-
via Kohn, perita em religião chinesa; e Anthony J. Saldarini, perito
em Judaísmo. A página dos colaboradores em cada volume fornece
as particularidades de suas afiliações. É claro que cada um destes
pesquisadores se especializa em apenas algumas das ramificações de
suas tradições, e em períodos específicos, usualmente o antigo ou o
medieval. Além disso, para enfatizar a diferença entre o objetivo de
comparação acadêmica e o nobre porém diferente propósito do diá-
logo inter-religioso, estes pesquisadores foram indicados porque suas
tradições de especialidade são diferentes das tradições com as quais
eles primariamente se identificam, com apenas uma exceção (Haq).

Cada um destes pesquisadores foi ajudado por um doutoran-


do assistente, algumas vezes chegando à co-autoria das contribui-
ções; trabalhando com estes pesquisadores, como listados acima,
estiveram Hugh Nicholson (com Clooney), John Thatamanil (com
Eckel), Tina Shepardson no primeiro ano, e Christopher Allen nos
outros dois (com Fredriksen), Celeste Sullivan (com Haq), James
Miller (com Kohn), e Joseph Kanofsky (com Saldarini). O propó-
sito de incluir os doutorandos como parceiros plenos no grupo de
trabalho foi não apenas facilitar a pesquisa e a redação, mas também
desenvolver maneiras de ensiná-los pesquisa colaborativa em ciên-
cias da religião a nível de doutorado. Enquanto as ciências naturais
patrocinam projetos colaborativos no qual especialistas de diversos
campos abordam juntos um problema em comum, o costume em
ciências da religião, especialmente em seu lado humanístico assim
como na pesquisa textual, tem sido o de juntar especialistas como a
mesma mentalidade ou formação. Inspirado pelas ciências naturais,
nosso projeto persegue explicitamente a diversidade.
20 PREFÁCIO

A outra tendência que nós buscamos para o grupo de trabalho


foi a de integração, síntese e generalização, um esforço de levantar
novas questões para cada tradição que foi trazida em perspectiva
comparada. Quatro de nós representou esta abordagem, cada um de
diferentes maneiras: Peter Berger, um sociólogo; John H. Berthrong,
um historiador das religiões; Wesley J. Wildrnan, um historiador,
teólogo sistemático e filósofo; e eu, um filósofo, teólogo e teórico
sobre comparação. No primeiro ano de nosso estudo, pensamos
este segundo grupo como os "comparativistas" e o primeiro grupo
como os "especialistas". Rapidamente tornou-se claro, no entanto,
que os especialistas comparavam de suas próprias maneiras e que
os generalistas tinham perspectivas religiosas especializadas por
de trás de seus trabalhos de integração. Agrada-nos perceber agora
que todos nós engajamo-nos em comparação, cada um de maneira a
refletir nossas tendências iniciais, mas ainda mais o que estávamos
aprendendo um do outro no trabalho de colaboração. Além disso,
à medida em que o grupo tornou-se consciente de si como tendo
uma identidade integrada, com hábitos de linguagem e pensamen-
to desenvolvidos através do tempo investido em conjunto, viemos
a pensar nosso projeto em termos de comparações para o qual to-
dos contribuímos, ao invés de meramente termos as comparações
que cada um faz influenciadas pelos outros. Este processo não está
de maneira nenhuma completo, mas é perceptível e de fato descri-
to, em cada um dos volumes, nos apêndices de Wildman, "Sobre o
processo do projeto". Na formulação original do projeto tínhamos
como claro que as maneiras com que o grupo trabalhava junto te-
riam que se desenvolver ao longo do tempo. O que não antecipamos
na formulação original do projeto foi a importância do secretário,
Wildman, que produziu as minutas dos seminários e nos alertou
continuamente para a avaliação do que tínhamos obtido, e para quão
estáveis são nossas hipóteses comparativas de um lado e tão tentati-
vas de outro.

Em adição ao grupo de trabalho, o projeto teve um comitê de


consultores-sênior, que revisou o plano inicial e se encontrou com o
grupo de trabalho ao final do primeiro ano e na conferência de con-
PREFÁCIO ------=
=- 21

clusão. Este grupo incluía Julia Ching, Jordan Pearlson, Max Stac-
khouse, e Tu Weimig. Os consultores externos auxiliaram a trazer
nosso trabalho compartilhado a perspectivas novas e mais críticas.
A idéia era que, ainda que tanto especialistas quanto generalis-
tas comparam de uma maneira ou de outra, os especialistas preveni-
riam generalizações comparativas muito fáceis, enquanto os genera-
listas manteriam os especialistas em diálogo comparativo um com o
outro. Houve alguns momentos desencorajadores em que nós per-
cebemos o quão difícil é aprender a pensar juntos sem cair em um
mínimo denominador comum, ou ceder a pressões de consenso, ou
rapidamente concordar em discordar, sem levar a argumentação tão
longe quanto possível. A laboriosa tarefa de aproximar estes dois
tipos de abordagem é aparente no progresso ao longo destes três
volumes. No A Condição Humana os especialistas discutem o que
seus textos ou tradições separados dizem sobre o tópico, e a "con-
clusão" dos generalistas mapeia este e outros pontos em uma grade
de comparação. Em Verdade Religiosa, o último volume, as compara-
ções tomam lugar dentro dos capítulos dos especialistas, e as "con-
clusões" dos generalistas são de fato sumários e daí reflexões sobre
tópicos importantes que emergiram das comparações. O volume do
meio, Realidades últimas, é verdadeiramente intermediário, com a
grade removida mas com as conclusões formadas mormente pelos
generalistas. Depois de muita discussão, e com o encorajamento dos
colaboradores externos na conferência de conclusão, decidiu-se dei-
xar o formato de colaboração progressiva como aconteceu de fato,
e comenta-lo mais explicitamente em apêndices para cada volume.
Estes volumes refletem assim o processo de aprendizado do grupo
de trabalho.

-_-
-"="---

Porque estudar a condição humana, realidades últimas, e ver-


dade religiosa ao invés de outros tópicos? Ainda que cada escolha
seja explicada, e sua importância apontada nos respectivos volumes,
em um certo sentido a seleção é arbitrária. Nossos pedidos iniciais
de auxílio apresentaram seis tópicos, dos quais estes são apenas três.
22 PREFÁCIO

Salvação, cozinha e dieta, ritual, jornadas religiosas, cosmologias


religiosas, comunidades religiosas, doença e saúde, bem e mal, a
natureza de práticas religiosas tais como meditação, o papel das mu-
lheres, estratificação social, violência religiosas, crenças religiosas
como construções sociais — estes e muitos outros tópicos foram
sugeridos em vários momentos e bem poderiam ser escolhidos. A
maioria destes mereceram alguma discussão em um ou mais dos vo-
lumes, mas cada um poderia ser tratado como uma categoria maior.
Em outro sentido a escolha dos tópicos não é arbitrária, porque
estes três prestaram-se muito bem para a investigação, enquanto
trabalhávamos para desenvolver estratégias de colaboração efeti-
vas e para testar nossa teoria de comparação. As grandes tradições
religiosas possuem cada uma literaturas a respeito destes tópicos,
construídas de maneira variada. Estes tópicos também estiveram
em discussão no mundo acadêmico ocidental por mais de dois sé-
culos, e há aqui também um corpo crescente de textos. Pudemos,
portanto, limitar nosso trabalho a examinar textos, e faze-lo dentro
das tradições acadêmicas de interpretação destes ou outros textos
similares. Sabemos, é claro, que há muitas expressões não textuais
de idéias, mas simplificamos nosso trabalho de maneira a não ter
que lidar com elas aqui.
Sobre a questão se estes tópicos e as categorias que os explicitam
são de fato justificados, a resposta é mais complexa. Eles certamente
são justificados na medida em que possuem uma trajetória de análise
acadêmica na qual nós ingressamos com três volumes de posterior
reflexão, que avançam muito no sentido de redefini-los. Mas será
que mostramos que a realidade é tal que a condição humana, reali-
dades últimas e verdade religiosa nela identificam elementos muito
importantes? Em Realidades Últimas, capítulo 7.1, e novamente no
capítulo 8.6, Wildman e eu dizemos que pelo menos quatro tarefas
são requeridas para justificar nossa espécie de categorias. Primeiro,
identificar possibilidades plausíveis e relevantes para comparação; a
segunda é explorar as estruturas lógicas e conceituais das categorias
e justificar este trabalho conceitual ou filosófico; a terceira é lançar
mão de uma análise genética dos símbolos religiosos que são com-
PREFÁCIO 23

parados, e relacionar isto com as categorias comparativas, incluindo


dentro desta análise abordagens da evolução histórica, social, psico-
lógica, neurofisiológica e ambiental; e a quarta é uma análise apro-
priada das circunstâncias que acompanham as mudanças chaves na
representação simbólica durante a história das idéias religiosas. O
Projeto de Idéias Religiosas Comparadas centrou-se quase que total-
mente no primeiro passo de justificação; quase todos nossos debates
foram a respeito da plausibilidade e a relativa importância das cate-
gorias. Realidades Últimas introduz uma teoria da contingência no
cap.8, e Verdade Religiosa apresenta uma teoria da verdade religiosa
no cap.8, ambos os quais começam a tratar da abordagem da justifi-
cação através de análise lógica e filosófica. Mas estas não avançam
o suficiente para justificar nossas categorias. O terceiro e o quarto
passos estão quase que totalmente ausentes, exceto por uma aborda-
gem genética ocasional da história das idéias. O campo inteiro das
ciências da religião está a décadas de distância de uma justificação
abrangente de quaisquer categorias neste sentido mais pleno. De
quando em quando nos aproximamos o suficiente para ver o que
uma justificação real significaria, e recuamos em face da enormidade
do projeto. Nossa contribuição aqui é assaz simples e fragmentária.

Porque escolhemos estas seis "tradições", e como nós as estuda-


mos? As tradições religiosas estudadas e comparadas neste projeto
são, em ordem alfabética, Budismo, religião chinesa, cristianismo,
hinduismo, islamismo e judaísmo. A anomalia óbvia nesta lista é a
religião chinesa, porque poderíamos esperar uma distinção entre
taoísmo e confucionismo, e talvez budismo chinês. Afinal de con-
tas, pesquisadores contemporâneos dividem suas competências,
estilos intelectuais e lealdades profissionais em estudos taoístas,
confucionistas e budistas chinês, respectivamente. Em nosso gru-
po, Lívia Kohn é uma especialista em taoísmo e John Berthrong em
confucionismo, assim a tentação de distinguir a religião chinesa em
subtradições é genuína. Por outro lado, tanto Kohn como Berthrong
têm um interesse mais forte em budismo chinês do que David Eckel,
nosso especialista em budismo cujas competências lingüísticas re-
caem nas línguas hindus e tibetanas, e isto sugere que o budismo
24 —
=----- PREFÁCIO

chinês é pelo menos tão chinês quanto budista. Além disso, o confu-
cionismo e o taoísmo compartilham uma cosmologia chinesa antiga
que é também vital para as religiões populares chinesas, e é uma
importante influência no budismo chinês. Assim, pareceu-nos que
as principais tradições escritas dentro da religião chinesa deveriam
ser consideradas em conjunto.
Para fins de comparação das idéias das religiões sobre nossos
tópicos, é altamente vantajoso ser-se capaz de analisar alguns textos
particulares em detalhe. Porém estes textos são significativos ape-
nas quando nós também temos à mão algumas caracterizações mais
gerais das religiões. E então, é claro, os textos representam a religião
da qual eles são uma parte apenas em certa medida, e outros textos
talvez representem o desenvolvimento da religião em uma direção
bem diferente: Sto. Agostinho, que tem alguns de seus textos em
nossa discussão, interpreta a visão cristã da condição humana dife-
rentemente de Orígenes, por exemplo, ou de Mary Baker Eddy." As-
sim nossa estratégia apresenta-se como se segue.
Para as caracterizações gerais das tradições religiosas nós usa-
mos seus textos e motivos centrais. Estes são escrituras antigas e
clássicos, com eventos ilustrados neles como o êxodo e a revolta
confuciniana contra a desordem, ou padrões de pensamento como
a complementaridade Yin-Yang e a busca por uma unidade subja-
cente. Tradições religiosas se formam ao redor e tomam suas identi-
dades iniciais destes textos e motivos centrais, de uma tal maneira
que todos os desenvolvimentos subseqüentes tem que se defrontar
com eles. Tradições religiosas, tais como as conhecemos, são extre-
mamente diversificadas internamente, muitas vezes de maneira
contraditória, e ocasionalmente beligerante. Mesmo assim todas
as variantes do hinduismo aceitam a importância, e mesmo a auto-
ridade, dos Vedas, que são seus textos centrais. O budismo, que se
origina no mesmo ambiente da Ásia do sul, não compartilha isto.
Seus textos e motivos centrais, ao invés, tem a ver com os sermões
e outros ensinamentos de Buda, estórias primitivas de sua vida, e o

*Norte americana, fundadora da "ciência cristã" no séc. XIX.


PREFÁCIO 25

entendimento da autoridade em termos de Buda, Darma e Sangha.


Tanto o taoísmo quanto o confucionismo se baseiam na cosmologia
yin-yang da China antiga e nos textos clássicos da Primavera e do
Outono, e do período dos estados combatentes. O I-Ching é tanto
confucionista quanto taoista, e cumpre um papel central em ambos
através de suas histórias. Muçulmanos xiitas e sunitas lutam entre
si, mas ainda se definem como islâmicos, baseando-se no texto cen-
tral do Corão. Cristãos ortodoxos, católicos romanos, protestantes e
da reforma radical, assim como as igrejas cristãs independentes da
África, identificam-se a si próprios através da maneira como inter-
pretam a Bíblia, não importando quão diferentes estas maneiras são.
Judeus ortodoxos, conservadores, reformados e reconstrucionistas
assumem posturas muito diferentes em relação à Tora e o resto da
bíblia hebraica, mas são todos eles formas do Judaísmo porque aque-
le é o seu texto central, especialmente em virtude de seu motivo do
êxodo e a formação do povo de Israel.
Nossa estratégia é de um lado considerar as seis tradições reli-
giosas em termos de seus motivos e textos centrais, e de outro lado
considera-las em termos do como elas se relacionam com estes
textos e motivos. Assim evitamos as armadilhas de tentar descre-
ver a "essência" de uma tradição religiosa, mas ainda podendo fazer
caracterizações gerais baseadas nos motivos e textos centrais, e nas
diversas maneiras como eles têm sido interpretados.' Assim tam-
bém levamos em conta o nervosismo de nossos especialistas a res-
peito do fazer comparações sem o auxílio de textos específicos, e as
suas cuidadosas delimitações ao comparar o conteúdo destes textos.
Há duas vantagens adicionais em relação a esta estratégia de
textos específicos mais textos e motivos clássicos e centrais. A pri-
meira é que ela convida outros pesquisadores a tratar outros textos
como diferentes representações de idéias religiosas dentro de uma
religião, e a fazer comparações entre diferentes autores. A limitação

'Ver o argumento de M. David Eckel no "The Ghost in the Table", Joumal of the American
Academy of Religion 63 (1995): 1085-1110, no sentido de que é possível de se falar sobre o que
é essencial no sentido de necessário para uma tradição religiosa, sem que se pressuponha uma
"essência".
=----- PREFÁCIO
26—

dos textos que efetivamente discutimos aqui é um exemplo do cará-


ter fragmentário de nossa tarefa, em face do qual nosso modelo con-
vida suplementações. A segunda é que ela torna nossos argumentos
vulneráveis a correção quando incitamos críticas de nossas repre-
sentações dos textos centrais, de nossas interpretações de como os
textos específicos se relacionam com elas, e de nossas comparações.

Já deveria estar claro porque nós escolhemos examinar seis


tradições religiosas que possuem longas tradições intelectuais. Cada
uma delas possui um rico acervo de textos e motivos, e longas e
complicadas histórias de interpretações diversas deles. Em contras-
te, nós não temos textos centrais para as religiões indígenas ame-
ricanas que tenham sido complementados por longas tradições de
interpretação variada, mesmo que tenhamos motivos centrais para
estas religiões que, com o avanço da interpretação acadêmica, pode
em breve tornar estas religiões candidatas para o nosso tipo de com-
paração de idéias religiosas. Dentro dos limites das seis tradições
representadas, portanto, as idéias religiosas que desejamos compa-
rar podem ser entendidas em termos de suas histórias e qualidades
polissêmicas.
Os especialistas em nosso grupo dedicam-se todos aos períodos
antigo ou medieval de suas tradições, atingindo desenvolvimentos
até o primeiro milênio de nossa era. Dependemos dos especialis-
tas para enfatizar os detalhes históricos e textuais. Os generalistas,
ao invés, tendem a possuir interesses mais filosóficos e uma tole-
rância maior para com generalizações. Assim uma tensão saudável
está presente em nosso trabalho, entre a preocupação do historiador
pelas identidades antigas das religiões, e o viés mais filosófico ou
sociológico da preocupação do generalista para com aquilo que é
realmente importante.

O núcleo de nossa concepção de um empreendimento com-


parativo é que este é um processo contínuo, sempre partindo de
premissas comparativas, formulando comparações como hipóteses,
-="
PREFÁCIO- -- 27

tornando as hipóteses vulneráveis a correções e modificações, até


que elas pareçam firmes e qualificadas propriamente, apresentando-
as então para correções posteriores enquanto se as aceita como no-
vas premissas comparativas. Esta abordagem pragmática à pesquisa
estruturou o plano do projeto, o curso efetivo de nossas discussões,
e a composição editorial de nossos livros.
A esta ênfase pragmática no processo e vulnerabilidade é
associada uma concepção particular de como uma comparação é
feita, ou seja, através de uma categoria "vaga"" como a condição
humana, que pode ser especificada de modo variado por diferen-
tes concepções da condição humana. As diferentes especificações
são traduzidas na linguagem da categoria vaga, com três momen-
tos ou elementos resultantes: a categoria vaga como tal, a plurali-
dade de diferentes especificações, e a reiteração da categoria vaga,
agora enriquecida com estas especificações. A comparação e seus
problemas são acompanhadas de perto com a tradução"" e seus
problemas. Estas questões de processo e teoria em comparação são
discutidas, algo informalmente, em A Condição Humana, cap. i,
que é tudo em termos de metodologia que o leitor necessita para
adentrar nos capítulos comparativos específicos deste livro ou do
Realidades Últimas ou Verdade Religiosa. Mas para aqueles interessa-
dos em uma elaboração mais explícita e defesa desta abordagem,
veja Realidades Últimas, capítulo 8, "Sobre a Comparação de Idéias
Religiosas", capítulo 9, "Como nossa abordagem à Comparação se
relaciona com outras", e capítulo io, "A Idéia de Categorias em uma
Perspectiva Histórica Comparativa". Para o como estas considera-
ções metodológicas relacionam-se com uma teoria da religião, ver
Verdade Religiosa, capítulo 9, "Sobre a Natureza da Religião: Lições
que Temos Aprendido".
A estrutura dos três volumes do Projeto de idéias religiosas
comparadas é a seguinte. Cada um é escrito para ser lido como um

*(NT) — No original não há aspas, mas para evitar mal entendidos, na medida em que só depois
os autores explicam o porque do uso do "vago", é que as colocamos na primeira vez em que a
palavra aparece.
**(NT) Entre as várias tradições religiosas, bem entendido.
28 PREFÁCIO

todo, contendo um ensaio extenso, multidisciplinar e comparativo


sobre o respectivo tópico, qual seja, a condição humana, realidades
últimas ou verdade religiosa, e situada com uma metodologia auto-
consciente. Cada um possui uma introdução ao tópico que também
explica a estrutura do livro. Contém seis capítulos escritos pelos es-
pecialistas, cada qual fornecendo parte de uma perspectiva da tradi-
ção a respeito do tópico, seguidos de um ou mais capítulos de con-
clusões e ensaios sobre tópicos relacionados à comparação ou aos
tópicos estudados. Cada volume possui um apêndice descrevendo o
processo do projeto e uma ou mais listas de sugestões anotadas para
leitura de aprofundamento.

Autoria é um assunto complicado para um projeto comparti-


lhado. Nada nestes volumes está isento de influência pelas discus-
sões colaborativas do grupo de trabalho, e usualmente não é possível
citar as origens das idéias e influências. Mesmo assim, cada capítulo
é da responsabilidade primária (senão exclusiva) de algum dos au-
tores. Os seis especialistas tiveram diferentes relações de trabalho
com seus assistentes pós-graduados de pesquisa, e em vários casos os
assistentes contribuíram com textos para os capítulos, como autores
secundários. Estes estão indicados no Sumário com a fórmula "X
com Y", onde X é o autor primário especialista, e o segundo o assis-
tente de pesquisa que colabora. A colaboração entre eu e Wildman
cresceu dramaticamente através do projeto. Eu fui o autor primário
dos capítulos de metodologia e de resumo. Ele crê não ter feito uma
contribuição suficiente para o segundo capítulo de resumo no A
Condição Humana para ser listado como um autor secundário, mes-
mo que eu pessoalmente conheço a influência de suas idéias. Ele é
um importante autor secundário em todos os outros, e de fato aque-
les escritos depois mostram sua mão quase tanto quanto a minha.
Os dois capítulos dos quais ele é o autor primário e eu o secundário,
Realidades Últimas, cap. 9, e Verdade Religiosa, cap.9, são quase todos
seus, e estão orientados a relacionar nosso projeto para o trabalho
comparativo contínuo de escopo mais largo. Não fizemos nenhuma
PREFÁCIO 29

tentativa de disfarçar as diferenças em temperamento, abordagem,


ou convicção entre nossos autores.

Algumas limitações importantes deste projeto precisam ser


discutidas porque elas derivam de escolhas feitas a respeito do pró-
prio plano do projeto* (estas se somam a limitações resultantes de
nossa incompetência ou pura estupidez, que não estamos prepara-
dos para admitir).
Limitar nossas fontes a tradições escritas entre as "religiões
globais" significa que nós nos distanciamos de idéias de outras
tradições sobre nossos tópicos que dizem respeito à condição hu-
mana, realidades últimas e verdade religiosa. Estamos limitados às
religiões da Era Axial," por exemplo, e alguns pesquisadores estão
agora dizendo que o estudo da religião precisa ir além do domínio
destas religiões e buscar fontes de inspiração de povos nativos, re-
ligiões tradicionais ou Nova Era. Isto é particularmente importan-
te à luz de preocupações ecológicas, por exemplo. Mesmo que não
estejamos tentando comparar idéias religiosas contemporâneas em
particular, nosso foco nos torna vulneráveis à crítica de que algumas
tradições orais teriam sido muito mais importantes para os nossos
tópicos do que estamos indicando. Nós reconhecemos que este tal-
vez seja o caso.
Limitar nossas fontes a seis religiões mundiais letradas signi-
fica também que nos distanciamos dos métodos e tipos de entendi-
mento que procedem de disciplinas que lidam primariamente com
tradições não-letradas, como por exemplo, antropologia e outras
ciências sociais, estudos de ritual, arte-e-religião, estudos de religião
popular, folclore e o restante. Nos concentramos nas antigas abor-
dagens dos estudos textuais, análise literária, pesquisa histórica, fi-
losofia, e a própria metodologia. Esta foi uma escolha deliberada de

*(NT) Trata-se, é claro, de uma ironia dos autores.


**(NT) Termo cunhado pelo filósofo Karl Jaspers para designar a época (fim da antiguidade) em
que surgiram as grandes religiões mundiais.
30—-- PREFÁCIO
=--

nossa parte com o fito de desenvolver uma colaboração efetiva. Se a


colaboração pareceu para nós difícil e por vezes desnorteante, pen-
sem o que aconteceria se tivéssemos que incluir o vasto repertório
de abordagens das ciências da religião. O fato de não as incluir não
significa que nós as rejeitamos, nem que depreciemos a importância
delas. Ao invés, significa que nossa abordagem às idéias religiosas
que cobrimos é fragmentária. Também significa que nossas análises
e conclusões são vulneráveis a poderem ser qualificadas e derruba-
das quando estas outras abordagens são finalmente trazidas para um
trabalho colaborativo. A força de nossa abordagem para este assun-
to, entretanto, esta precisamente aqui: temos clareza sobre os limi-
tes do que nossos métodos literários podem fazer, e será um grande
avanço quando nossas comparações sejam corrigidas pelo que surge
de fora destes limites.
Limitar nossa discussão das relações entre idéias religiosas di-
ferentes sobre nossos tópicos a comparação não faz justiça ao proble-
ma da tradução. A extensa bibliografia sobre tradução, e a história das
traduções européias de textos religiosos no século dezenove, atinge
muitos de nossos problemas de outro ângulo. De maneira alguma
tradução é o mesmo que comparação, mas há muitas analogias e
preocupações que se sobrepõe. Uma diferença é que, pelo menos de
acordo com nossa teoria de comparação, uma categoria comparativa
vaga possui um momento de quase neutralidade relativamente às
coisas específicas que são comparadas, e podem ser avaliadas nesse
sentido, enquanto a tradução não emprega uma terceira linguagem
que faça a mediação entre as duas que estão sendo relacionadas. A
tradução exibe de fato aquilo que jonathan Z. Smith chama de "má-
gica", quando uma pessoa bilíngüe "sabe" o que falar em uma língua
aquilo que a outra diz e como aquilo por vezes não pode ser dito. Em
nossa teoria, desenvolvida em Realidades Últimas, cap. 8, a tradução é
uma parte apropriada da comparação, mas enquadrada em um pro-
cesso mais amplo de verificação.
A limitação de nosso projeto ao comparar "idéias básicas" como
a da condição humana, realidade última e verdade religiosa, torna
muito difícil e sensível o registrar muitos dos pontos feitos pela
PREFÁCIO 31

"hermenêutica da suspeita". A maioria dos autores de nossos textos


religiosos tem sido homens e refletem o ponto de vista masculino.
As feministas têm argumentado corretamente que uma abordagem
baseada em textos como a nossa fica assim separada do que as mu-
lheres em torno dos homens estavam pensando, e provavelmente o
pensamento das mulheres seria importante para moldar as realida-
des religiosas. As feministas também têm apontado corretamente
que nossa abordagem reforça a premissa patriarcal genérica de que
o importante na religião são as opiniões dos homens, expressa em
textos, e que este reforço é pior na medida em que a nossa abor-
dagem for mais eficaz. Outras perspectivas liberacionistas, falando
pelas vozes e movimentos religiosos marginalizados, podem cor-
retamente criticar nossa escolha por lidar apenas com as religiões
mundiais "centrais". Nossa resposta a estas formas de hermenêutica
de suspeita é dupla.
Primeiro, já pedimos desculpas à luz da dificuldade da tarefa de
comparação. Precisamos começar com as exposições e comparações
mais elementares e diretas que nós pudermos a fim de sermos capa-
zes de começar. A menos que possamos trazer uma maior autocons-
ciência e um procedimento de autocorreção à tarefa de comparação,
os julgamentos comparativos permanecerão no nível de curiosida-
de e preconceito.
A segunda resposta procede da primeira. A única maneira de
progredir na comparação, do ponto de vista da hermenêutica da sus-
peita, é possuir hipóteses firmes e bem formuladas que possam ser
criticadas. Será que a hermenêutica da suspeita derruba estas com-
parações? Suplementemos elas por comparações em favor das mu-
lheres e marginalizados? Reconstruamos as fronteiras intelectuais
de causalidade? Para responder sim a cada uma destas questões e
justificar a resposta afirmativa permitiria um progresso firme e im-
portante. Nossas comparações são estabelecidas de forma a serem
vulneráveis precisamente a estas correções. (As formas das herme-
nêuticas de suspeita que consistem em um reducionismo científico
e teorização anti-colonial são mencionadas através dos textos de to-
dos os volumes).
32 PREFÁCIO

Uma das limitações mais sutis deste projeto foi apontada na


conferência de conclusão por Jose Cabezon. A estrutura mesma do
projeto, com um diretor, co-diretores, pesquisadores-senior e dou-
torandos, com a autoria compartilhada como primária e secundária,
reflete o que chamamos de abordagem hierárquica cartesiana. Ele
quis dizer não apenas a organização hierárquica óbvia, mas também
a suposição da importância da clareza, ordem e classificação. Um
budista não teria procedido deste modo. Outros no projeto haviam
apontado ainda antes o que eles chamaram de orientação Confuciana
do próprio projeto, assim como na forma de expressar as conclusões.
Sou um confuciano de Boston, e assim esta reclamação foi feita de
bom humor, mas de fato na mesma linha da observação de Cabezon.
Este concentrou-se no que ele tomou como sendo nossa tentativa de
reduzir comparação ao preenchimento de uma grade comparativa.
Ele acredita que nosso procedimento sugere que uma hipótese com-
parativa funciona por encaixar coisas em seus lugares cartesianos.
Com relação a isso, eu primeiro admito que de fato o projeto
é organizado hierarquicamente, que eu francamente não conheço
outra maneira de obter auxílios de agências de fomento que querem
que alguém seja o responsável, e eu como confuciano acredito que é
a responsabilidade daqueles com idade e poder de promover aqueles
que estiverem abaixo dele passo a passo. Além disso, deve ser regis-
trado que através dos quatro anos, uma constante restrição foi que
eu deveria ser mais diretivo, não deixando o seminário prosseguir
guiado apenas por seu formato. Ainda que seja meio vergonhoso de
admitir isso, a maioria dos participantes acreditava que o processo
acadêmico poderia se beneficiar de um papai confuciano.
Mas Cabezon estava certo que tudo isto empurra o processo
em direção à ordem e definição. Em defesa deste arranjo, nós acre-
ditamos que é este o caminho que permite o progresso do trabalho.
Se nossas hipóteses tivessem uma definição que falseie a realidade,
isso poderia ser detectado. Uma hipótese sem definição não é passí-
vel de crítica. Se o próprio processo gera suas conclusões, então isso
pode ser apontado mostrando-se um outro processo possível. Este
foi um tema recorrente de nossas discussões a partir do primeiro
PREFÁCIO -==- 33

ano, quando foi proposto que nós relacionássemos as narrativas ao


invés de compará-las de nossa maneira, ou que nós suspendêssemos
a definição em favor de um não direcionamento. Mas em geral não
conseguimos organizar as alternativas. Isto significa que nosso pro-
cedimento é vulnerável, e possivelmente mal dirigido, mas alguém
outro precisa dizer o como isso ocorre e como fazer melhor. Para nós
(ou pelo menos para a maioria de nós), nosso procedimento permi-
tiu o avanço da comparação, e assim oferecemos estes volumes para
ser usado e criticado.
AGRADECIMENTOS

...............•

O projeto foi patrocionado por verbas generosas do Fundo


Nacional para as Humanidades e da Fundação Henry Luce, assim
como pela co-participação da Universidade de Boston. Somos pro-
fundamente gratos a esses patrocionadores, sem os quais o projeto
teria sido impossível.

Também somos gratos à Dra. Susan Only, que foi administrado-


ra do Projeto pelos quatros anos de sua duração, e que supervisionou
as finanças e as providências com grande habilidade. Agradecemos a
Ms. Shirley Budden, gerente financeira da Escola de Teologia da Uni-
versidade de Boston, e ao Escritório de Programas Financiados da
mesma universidade, especialmente na figura de Ms. Phyllis Cohen,
por seu cuidadoso trabalho em favot do Projeto. Em vários momentos
Christopher Allen, Raymond Bouchard, Mark Grear Mann e James
Miller realizaram serviços editoriais valiosos na preparação de nos-
sas publicações, e assim merecem um significativo agradecimento.

Diversas pessoas externas ao Projeto leram parte ou todas as


versões dos três volumes que sumarizam seus resultados, e agra-
decemos a todos por seu conselhos úteis que guiaram as revisões.
Elas incluem Anne Birdwhistell, Jose Cabezon, Julia Ching, Jordan
Pearlson, Arvind Sharma, Jonathan Z. Smith, Max Stackhouse, Tu
Weiming e Lee Yearley. Ching, Pearlson, Stackhouse e Tu foram as-
sessores-senior do Projeto desde o início.

Nossos colegas da Editora da Universidade de Nova York


(SUNY Press) têm sido auxiliares extraordinários no trazer nossas
36----=-
----- INTRODUÇÃO

publicações à luz, começando com o nosso diretor de aquisições.


Ms. Nancy Ellegate. Também agradecemos nossa editora de produ-
ção, Ms. Marilyn Semerad, e a diretora de marketing, Dana E. Yanu-
lavich. Dedicamos estes volumes a William Eaastman, cuja ousadia
em publicar na área de estudos da religião tornou possíveis projetos
como este.
INTRODUÇÃO
Robert Cumming Neville
e Wesley J. Wildman

Para entender a condição humana nos seus aspectos mais profundos e


misteriosos, nós certamente devemos levar em conta a religião. Esta ajuda
a formar estruturas imaginativas e elementares sobre como nos orientamos
ou deveríamos nos orientar no cosmos. A religião dá forma e ensaia no
ritual nossos mais importantes laços, uns com os outros e com a natureza, e
provê a lógica tanto ao porquê destes laços serem importantes como ao o que
significa estar comprometido com eles. Ser humano é estar sob obrigação
de algum modo e a religião nos permite imaginar e desempenhar isso em
detalhes. A religião aborda as questões mais básicas do sentido da vida ou
de sua falta de sentido, do embasamento individual e do destino, da reali-
zação pessoal ou derradeira frustração, dor e sofrimento últimos. A religião
articula o que há de mais real, harmonioso e ideal sobre a vida humana,
assim como por que os seres humanos sofrem tanto de ilusão ou desejos
doentios, de falta de equilíbrio e desarmonia, de injustiça social e pecado
pessoal. Quando queremos fazer algo acerca deste triste contraste entre o
lado normativo da condição humana e seu usual fracasso na realidade, a
religião nos confere mapas (mitos), modelos (santos e rituais), e métodos (de
crescimento espiritual), mesmo que estes signifiquem apenas uma orienta-
ção para que nos resignemos.
Com certeza, muito sobre a condição humana não está diretamente
relacionado à religião. Nós precisamos de um planeta com um nicho eco-
lógico favorável, condições gravitacionais e atmosféricas dentro de uma pe-
quena margem de tolerância e recursos de alimento e abrigo. Nós temos de
lidar com nossos pais, suportar a adolescência, e darmo-nos bem uns com os
outros para não sermos atirados aos lobos. As comunidades são vulneráveis
à destruição e ao deslocamento. A maior parte das pessoas adoece e todos
38 - INTRODUÇÃO

morreremos um dia. A condição humana é uma aventura na busca pela


beleza e excelência; ela requer instituições de governo, educação e justiça; ela
envolve a busca do conhecimento por si próprio e para fins utilitários; e ela se
entrelaça com problemas de maturidade pessoal e social, de cultivo da pros-
peridade e da defesa do lugar de cada um. Todos estes aspectos da condição
humana envolvem dimensões não religiosas da vida, tais como manuten-
ção biológica, relações interpessoais, simples sofrimento e dor, expressividade
humana, artes, política, leis, educação e aprendizado, psicologia, economia, e
o uso bem-sucedido da força. Quão tolo seria tentar tratar todas estas dimen-
sões da condição humana como funções da religião! Mesmo assim, quando
qualquer uma dessas outras dimensões da condição humana é ameaçada ou
questionada de uma forma radical, ou quando ter de enfrentá-las empurra
até seus limites as instituições que trabalham com tais dimensões e além
delas, estas últimas levantam uma vez mais os temas referentes ao lugar do
ser humano no cosmos, da natureza e justificação dos laços elementares, e do
significado e identidade da vida humana — e estes são os aspectos religiosos
da condição humana.
Ai, ai de nós, os dois parágrafos precedentes são lamentavel-
mente simplistas e enganadores. É ainda mais lamentável porque o
que eles afirmam é em grande medida verdadeiro, e seria aceitável
como sabedoria sensata por quase todos que os compreendam e não
sejam estudiosos treinados para apontar a sua ingenuidade.
A principal razão dessa ingenuidade é que existem muitas re-
ligiões, não somente a "religião em geral", e os adeptos dessas reli-
giões não necessariamente dizem a mesma coisa. Se estas concor-
dam ou não sobre as generalizações apresentadas acima em nome
da "religião", não poderá ser conhecido até que descubramos o que
cada uma diz em seus textos e debates acerca dos aspectos da con-
dição humana em questão, e até que comparemos estas afirmações.
Não saberemos e não poderemos afirmar de modo responsável se
concordam ou não e em quais aspectos, até que as comparemos.
Dessa forma é perigoso, ou ao menos ingênuo, falar demais sobre
aspectos da dimensão religiosa da condição humana em geral. Ern
vez de dizer "religião é isto e aquilo", deveríamos ser capazes de dizer
"algumas religiões são isto e aquilo", e "algumas religiões são ainda
INTRODUÇÃO=-
--= 39

aquilo outro". A distinção mesma entre as dimensões religiosas e


não religiosas da condição humana é complexa.
A outra razão para esta ingenuidade é que a linguagem desses
dois primeiros parágrafos emerge de um contexto intelectual e so-
cial particular, especificamente, a situação existencial da moderni-
dade tardia nas culturas ocidentais caracterizadas pelo colapso da
Cristandade. As sementes desse colapso foram semeadas pela críti-
ca renascentista da religião — que iniciou a privatização desta e sua
contínua retirada da vida pública. A Primeira Guerra Mundial de-
monstrou que a "Civilização Cristã" na Europa foi uma contradição,
e bastante perigosa. Samuel Huntington detalhou recentemente as
questões levantadas pelos críticos da Ásia oriental, do sul da Ásia
e do mundo Islâmico ao Cristianismo decadente, como sendo este
moral e espiritualmente falido, a despeito das críticas do existencia-
lismo.' As respostas intelectuais e culturais da civilização européia
ao colapso da cristandade têm sido diversas e, de certa forma, histé-
ricas. Paul Tillich talvez seja a figura européia central para interpre-
tar o colapso da cristandade em termos da condição humana.
Na tradição da teologia da mediação desde Schleiermacher,
Tillich perguntava a quais dimensões mais amplas da religiosida-
de humana que o Cristianismo deve dirigir-se. O passo de Tillich
foi explicitamente filosófico, levantando questões que ele julgava
serem mais gerais (ou vagas) do que as preocupações particulares
do Cristianismo, do Judaísmo e da cultura secular européia e que,
de fato, foram perguntadas de forma particularmente veemente em
todas as religiões. Em vez de usar categorias tais como, "pecadores
entregues ao julgamento", Tillich falou sobre a condição humana e
sobre Deus corno o fundamento do ser que torna possível a condi-
ção humana. O Cristianismo foi interpretado como uma expressão
de um fenômeno maior, ou como uma resposta religiosa específica
(e para Tillich, unicamente correta) para uma necessidade religio-
sa maior. A sua explicação disto utilizou largamente o vocabulário

'Ver, de Samuel P. Huntington, The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order
(New York: Simon & Schuster, 1996).
40 -----_
--- INTRODUÇÃO

espiritual profundo do existencialismo europeu. Mas o seu poder


não ficou limitado a isso. Estudiosos japoneses da escola de Quio-
to, assim como intelectuais cristãos ortodoxos influenciados por
Dostoievski, sondaram as profundezas da angústia (Angst) existen-
cial moderna tardia, e mantiveram um diálogo com as categorias de
Tillich, tais como a condição humana.
Talvez as categorias de Tillich caracterizem muito do que é
importante sobre a sociedade moderna tardia em geral, incluin-
do aquelas culturas não européias que reagem à modernização ou
estão quase o fazendo. Em qualquer caso, a noção de "condição hu-
mana", assim como as referências associadas à literatura existen-
cialista, à arte, à ética, e à critica da religião tradicional mediante
generalização, é uma idéia do século XX. Possui uma origem euro-
péia e uma disseminação global por meio dos efeitos da moderni-
dade. Como pode um conceito histórico e culturalmente limitado
servir para revelar algo básico sobre a religião em geral ou sobre
algo importante, comum a todas ou à maioria das religiões? O Cris-
tianismo do século VIII não reconheceria mais o discurso de "a
condição humana" do que o Budismo, Islamismo ou Vedanta do
mesmo século. Não seria ingênuo falar então, como nos parágrafos
iniciais desta seção, sobre "a condição humana" em geral, se eles
pretendem fornecer explicações para a "religião" ou mesmo "todas
as religiões"?
As críticas à ingenuidade, entretanto, são de segunda categoria.
Como Ricoeur e outros realçaram, um pouco de realismo requer a
aquisição de uma "segunda ingenuidade".2 Por meio da atenção às
criticas, da insistência em que as dúvidas estejam baseadas tanto
em evidências concretas quanto em asserções positivas, e do enga-
jamento disciplinado com o assunto realmente em discussão, mais
do que em rumores generalizados sobre o assunto, uma via legítima
é aberta para uma abordagem substantiva deste assunto guiada pela

2 Ver, de Paul Ricoeur, Finitud y Culpabilidad (Madrid: Taurus Ediciones, 1982), especialmente

a conclusão, "El Símbolo da que Pensar". Ver também os ensaios na Parte IV do seu O conflito de
interpretações: ensaios de hermenêutica (Rio de Janeiro: Imago, 1978).
3 "Doutrina do senso comum crítico" (Critical Commonsensism) é o titulo que Charles Sanders

Peirce deu à sua filosofia. Por "crítico" ele quis dizer que qualquer reivindicação ao conhecimento
--=- 41
INTRODUÇÃO-

"doutrina do senso comum crítico".3 Deste envolvimento vem um


novo conhecimento que é, no mínimo, uma melhoria sobre tanto o
que é alegado na "primeira ingenuidade" como o que sobrou depois
da rejeição cética. Tudo isso serve para dizer que, à parte das suspei-
tas auto-infligidas, nós sabemos bastante sobre a condição humana,
e sobre religião e religiões. Não precisamos perguntar se sabemos
o suficiente do que é confiável para iniciarmos, pois já iniciamos.
O que precisamos perguntar é como tornar aquilo que pensamos
saber vulnerável à correção. Uma maneira importante de fazer isso
é comparar o que as pessoas religiosas e seus textos sagrados dizem
sobre a condição humana.
Iniciando com o tema vago da condição humana, os especialis-
tas do nosso seminário do projeto usaram suas aproximações seleti-
vas no sentido de determinar como a condição humana é concebida
em cada uma das seis religiões estudadas.4 Então perguntamos quais
subcategorias articulam relações comparativas importantes dentro
das tradições ou subtradições que os nossos especialistas analisa-
ram. A discussão foi bem ampla com dezenas de possíveis hipóteses
sendo consideradas, que usualmente surgiram da retórica do texto
específico que estava sendo discutido. Era óbvio desde o inicio que
uma idéia, ou termo comum a diversas tradições, tais como o self,
freqüentemente tem significados muito diferentes. Isto fez com que
fôssemos mais claros sobre o quanto uma categoria é vaga na medi-
da em que é especificada de maneira diferente nas várias tradições,
e como é especificada diferentemente quando tornada concreta nos
termos destas. A discussão envolveu um constante ziguezague entre
as formulações vagas e as específicas.

tinha de ser qualificado como hipótese e ser vulnerável à correção quando houvesse razões para
tanto; ele atribuía esse tema filosófico a Kant, que usou, porém, o termo "crítico" de forma diferen-
te. Por "doutrina do senso comum" ele referia-se aos filósofos do senso comum escoceses Thomas
Reid e Dugald Steward, e adotou daí a tese de que o pensar está sempre no meio da vida, nunca
no seu início ou na sua base. Daí que nós estamos assumindo, e legitimamente, muito do que nos
diz o senso comum, até que haja uma razão concreta para duvidar dele. Os pontos cruciais para
Peirce são determinar no que consiste uma boa razão para dúvidas, quais as ocasiões e como tornar
o processo de vida reflexiva vulnerável à correção. Ver os diferentes artigos com "doutrina do senso
comum crítico" como título no volume 5 dos Collected Papers of Charles Sanders Peirce, ed. Charles
Hartshorne e Paul Weiss (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1934).
4 Para os significados técnicos de "vagueza" e "especificidade", ver 1.2 adiante; referências

cruzadas neste volume são para capítulo e seção.


42 =
- - INTRODUÇÃO

No final — realmente no final, nas últimas revisões deste


manuscrito — nós concordamos com um esquema de categorias
que expressa aquilo que mais queríamos dizer a respeito de como
as tradições religiosas se comparam no que diz respeito à condição
humana. As comparações ocorreram sob três tópicos abrangentes:
dimensões cosmológicas, dimensões pessoais e dimensões sociais da condi-
ção humana.
Os temas que se referem ao cosmos, no que pese a condição hu-
mana, foram agrupados em torno da interpretação do cosmos em
quatro direções principais: a unidade do cosmos (incluindo Deus
mais o mundo nas tradições que os distinguem), a ontologia ou os
problemas da existência, o valor do cosmos e das coisas relativas a
ele, e a causalidade ou os padrões de origem e de mudança em sen-
tidos que dizem respeito à condição humana. As dimensões sociais
e pessoais por vezes pareceram ser muito distintas umas das outras,
como quando discutimos a doutrina budista da não-individualida-
de, para a qual os assuntos sociais não parecem ter muita importân-
cia, ou a noção judaica do povo de Israel, para a qual as sutilezas da
individualidade ou não individualidade parecem ser fora de contex-
to. Mas, no final, verificamos que a distinção era intoleravelmente
artificial e assim tratamos aqui das dimensões pessoais e sociais con-
juntamente. Interpretamos estas em quatro aspectos comparativos,
na medida em que eles dizem respeito à condição humana: como
definem identidade pessoal, incluindo problemas de comunidade,
substancialidade, continuidade, e relações corpo-mente-alma; como
os seres humanos estão sob obrigação, com uma ênfase nas maneiras
bem diferentes pelas quais as culturas religiosas articulam o que é
normativo, ideal, ou mandatório; como a condição humana envol-
ve uma aflição* a que as religiões se dirigem como um problema; e
como tudo acima é função em parte das afiliações humanas com ou-
tras pessoas, com grupos sociais enquanto tais, com instituições de
diferentes tipos e com a natureza diversamente encontrada.

N.T. Como será explicado mais adiante, o termo predicament será traduzido por "aflição" e,
algumas vezes, também como "dilema".
INTRODUÇÃO 43

Obviamente, algumas dessas categorias são mais conaturais


para alguns textos e tradições do que para outros. Por exemplo, ade-
quar a categoria "obrigação" ao Budismo requer um importante salto
de interpretação, ainda que a categoria inclua importantes temas bu-
distas. Novamente, questões de ontologia são tipicamente secundá-
rias nos textos e pensamento judaicos, mesmo que a categoria ainda
seja necessária para cobrir importantes idéias judaicas. De modo ge-
ral, concordamos que as categorias por si só, a seqüência que coloca
a categoria cosmológica em primeiro lugar, e até mesmo a propen-
são de apresentar as categorias de forma esquemática, foram bastan-
te confucionistas em caráter. Como desejamos mostrar no restante
do livro. de qualquer forma, resultados importantes podem vir deste
esquema, e a sua tendência à distorção pode ser posta à prova pela
submissão de todo resultado a uma dialética de correção. Afinal, ne-
nhum esquema estará livre de lealdades implícitas, e este particular
esquema é pelo menos tão rico em termos de abrangência e capaz
de registrar idéias diversas sobre a condição humana quanto outros
que nós consideramos.
Somente no final, devemos sublinhar, este esquema ficou sufi-
cientemente solidificado para ser contado como um resultado pro-
visório de um processo em andamento. Ele não foi um guia para a
discussão dos rascunhos dos capítulos do começo ao fim, embora
candidatos anteriores estavam em operação desde o início. Os capí-
tulos 2 a 7 não deveriam ser lidos como ilustrações para o esquema
de categorias, mas como aquilo que forneceu a discussão de onde o
esquema emergiu. Os capítulos 8 e 9 expressam hipóteses compa-
rativas nos termos do esquema que emergiu dos capítulos anterio-
res, das discussões dos seminários e das análises de seus próprios
autores. O aspecto tentativo tanto do esquema como da organiza-
ção das hipóteses comparativas deve ser salientado; mas o processo
comparativo tal como nós entendemos torna o esquema vulnerável
a nuanças e correções.

O experimentalismo do esquema e as comparações que nele se


incluem são ilustradas da seguinte forma: notamos, logo de começo,
que uma abordagem alternativa da condição humana poderia ser ge-
44- -- INTRODUÇÃO
-=---

rada a partir de uma leitura narrativa dessa distinção na qual a vida


humana inicia-se em algum lugar, vai para algum lugar, e encontra
diversas situações ao longo do percurso. Esse tipo de formulação
narrativa da condição humana é particularmente coerente com a ên-
fase budista. Também reconhecemos que o modelo "cosmos-socie-
dade-indivíduo" ressoa especialmente com as ênfases chinesas; na
realidade este modelo emergiu de nossas discussões sobre o traba-
lho de Kohn para este livro. O modelo de categorias "cosmos-socie-
dade-indivíduo" foi adotado por aquilo que nos parece agora serem
diversas razões: em parte, porque a maioria dos nossos especialistas
preferiu esse tratamento; em parte, porque entendemos que estava
mais direcionada para os tópicos cósmicos e sociais; e em parte, tam-
bém, por causa da disposição confucionista (não diagnosticada pre-
viamente) entre a maioria dos generalistas do projeto. Tornar-nos
conscientes acerca do contraste entre esse tipo de aproximação e a
proposta mais narrativa antes descrita ajudou-nos a entender que a
nossa decisão tinha uma historia específica e um contexto. Isto, por
sua vez, ajudou-nos a encontrar caminhos para superar as limitações
de perspectiva associadas à abordagem adotada para este livro. Títu-
los inevitavelmente convidam-nos a limitações de perspectiva; o se-
gredo é evitar ficar preso nessas limitações, encontrando caminhos
que enriqueçam a perspectiva.
Mas tudo isso suscita a comparação. A comparação de idéias
religiosas é tema deste livro tanto quanto a condição humana. Ini-
ciamos com uma introdução ao problema da comparação e à teoria
que guia a nossa abordagem.
1
SOBRE O COMPARAR IDÉIAS RELIGIOSAS

Robert Cummings Neville


e Wesley J. Wildman

1.1. Sobre o comparar: por que isso é importante?

Entender uma outra pessoa, fechar um acordo de negócios, re-


solver uma disputa de comércio, evitar uma guerra, gerar soluções
intraculturais e factíveis para problemas ecológicos globais, cultivar
hábitos de tolerância em uma comunidade local — estas todas são
atividades nas quais as pessoas devem perceber o que é importan-
te para o outro, em termos tais que todos os participantes possam
entender. Considere-se a complexa tarefa de forjar resistência in-
ternacional à tortura, por exemplo. Tortura pode ser repudiada por
uma pessoa com base em um direito inalienável à segurança pessoal,
por outra por causa da dignidade da vida humana, divinamente ga-
rantida, por outra por causa de preocupações pragmáticas de longo
alcance pela estabilidade social, ou ainda, por outra, porque a tortu-
ra destrói a honra de todos os envolvidos. Não obstante isso, todos
podem atingir um entendimento que possa ser expresso em termos
suficientemente gerais para abranger as interpretações particulares
de cada um. Tal acordo pode ser expresso dizendo-se que a "tortu-
ra é errada e deve ser impedida". Cada um dos termos-chave nessa
sentença ("tortura", "errado", "deve", "impedido") é vago, porque cada
um é entendido diferentemente por pessoas variadas que o afirmam.
Entretanto, a sentença como um todo e cada termo dentro dela são
significativos.
Isso ilustra o valor de uma terminologia comum para o enten-
dimento mútuo e a solução de problemas em termos intraculturais.
A terminologia não precisa ser univocamente aplicada a todas as si-
46 SOBRE O COMPARAR IDÉIAS RELIGIOSAS

tuações que ela deve dar conta; nem ela precisa ser equívoca, porque
assim nenhum entendimento mútuo ocorreria. Ao invés, tal termi-
nologia comum deve ser vaga na medida correta. Vaga o suficien-
te para ser especificável de maneira diferente em cada caso que ela
descreve, mas não tão vaga que fique sem sentido. É muito comum
que termos com o grau adequado de vagueza ainda não existam an-
tes que um problema prático chame a atenção da necessidade deles.
Nesse caso, um trabalho diligente pode fornecer novos conceitos,
ou talvez alterar as nuanças da linguagem antiga para criar a termi-
nologia necessária.
O componente central de tal trabalho consistente é a com-
paração, pois esta é requerida tanto para detectar a necessidade
de uma terminologia melhor, quanto para gerar e testar a termi-
nologia proposta. Entretanto, a própria comparação requer uma
terminologia comum, e assim um processo dialético complexo
está implícito aqui: na medida em que a terminologia é aperfei-
çoada, a comparação fica mais matizada; e na medida em que a
comparação é mais adequada, a terminologia se torna mais pre-
cisa. Evita-se que este processo dialético se torne um círculo vi-
cioso pelo caráter específico das coisas ou abordagens que são
envolvidas na comparação, e para as quais os termos se aplicam.
Que o processo de comparação seja dialético nesse sentido
significa que as comparações nunca são fixas ou completas, e sim
provisórias, pois são dependentes da estabilidade subseqüente da
terminologia comparativa. Além disso, uma asserção particular de
uma comparação é uma parte que se abstrai do processo dialético
mais amplo de desenvolver e criticar os limites da terminologia. Esta
necessita assim entender não apenas seu sentido estipulado, como
também a história de seu desenvolvimento. A comparação é um pro-
cesso de se fazer, avaliar e corrigir afirmações comparativas, e não sim-
plesmente tais asserções destacadas do processo. O processo critico
torna a terminologia vulnerável, assim como o faz para as afirmações
no seu interior. Talvez o tema metodológico mais importante deste
livro seja o de que a comparação é um processo que é tanto melhor
quanto mais for vulnerável a correções. O projeto de investigação,
ROBERT CUMMINGS NEVILLE E WESLEY J. WILDMAN ----=
=--- 47

do qual este livro é uma expressão parcial, gira em torno do processo


crítico de detectar vulnerabilidades da comparação que é objeto da
pesquisa.
No presente livro, o objeto de estudo são as idéias religiosas so-
bre a condição humana. A comparação é utilizada para desenvolver,
asseverar e melhorar terminologias vagas apropriadas, a maior parte
das quais (como na própria expressão "condição humana") é herdada
de discussões passadas, e então adaptada semanticamente. A termi-
nologia sobre a condição humana, produzida desta maneira, é apre-
sentada aqui pronta para servir a três propósitos principais: apro-
fundar o entendimento mútuo das tradições religiosas, discutidas
por meio de descrição acurada; elaborar um entendimento compa-
rativo de tradições religiosas que nos permita dizer o como elas são
similares (ou diferentes) em relação à condição humana; e ampliar
tradições bem estabelecidas de interpretação da condição humana
em uma perspectiva transcultural. Outros objetivos para essa termi-
nologia multifacetada e flexível podem ser facilmente imaginados,
mas não figuram explicitamente neste livro. Por exemplo, detectar o
que é importante em termos religiosos sobre a condição humana co-
nota um tipo de interrogação sistemática e normativa sobre a condi-
ção humana, o que está para além do escopo deste livro. Presumivel-
mente, a terminologia produzida aqui por uma comparação diligente
pode ser útil para outros, que talvez queiram dedicar-se a tal tarefa.'
Mais deve ser dito aqui sobre o que se deseja comparar neste
volume, ou seja, idéias religiosas sobre a condição humana. As reli-
giões envolvem muito mais do que idéias, e de fato é difícil encon-
trar uma situação na qual as idéias religiosas são consideradas como
mais importantes do que seus propósitos práticos. Representantes
típicos de tradições com grande intensidade filosófica, como o "bu-
dismo madhyamaka" e a cristandade européia medieval diriam que
as idéias religiosas cumprem a missão de guiar a prática, por vezes
de maneira paradoxal. Dessa forma, "religiões comparadas" é um

'Pode se recorrer ao cap. 8, do livro Ultimate Realities, para discussões mais aprofundadas da
natureza e propósito da comparação, da terminologia especial que ela pode produzir, e dos seus
pressupostos históricos e filosóficos.
48 SOBRE O COMPARAR IDÉIAS RELIGIOSAS

projeto muito mais abrangente do que "comparação de idéias re-


ligiosas", nosso tópico aqui. Para aquelas tradições que se sintam
confortáveis com o termo "teologia", a disciplina concernente é
"teologia comparada", e para aquelas tradições que não se sintam
assim, a comparação é entre idéias e maneiras de pensar, que ou
tomam o lugar da teologia ou excluam a teologia e seus análogos.
Uma afirmação mais exata do que cai dentro da categoria de "idéias
religiosas", considerando-se tradições diversas de religiões globais,
é ela própria parte da interrogação do projeto (ainda que ela se en-
caixe dentro da pesquisa pensada para o terceiro ano). Temos esco-
lhido comparar as idéias religiosas em vez de muitos outros fenô-
menos e práticas religiosos que possam ser comparados, com o fito
de delimitar melhor o projeto, e de sermos capazes de empregar
disciplinas tradicionais de análise, as quais possuem uma história
autocrítica, qual seja, a análise de textos em várias tradições. Como
notado no Prefácio, essa abordagem das idéias religiosas limita as
tradições existentes às que possam ser estudadas com tradições
intelectuais bem estabelecidas — ainda que, com certeza, pessoas
de religiões tradicionais e primitivas, e de grupos religiosos popu-
lares e marginalizados, tenham idéias religiosas interessantes para
serem comparadas. Quaisquer conclusões a que cheguemos devem
ser qualificadas pelo reconhecimento do caráter fragmentário do
projeto: idéias são apenas uma pequena parte da realidade religiosa,
e tradições religiosas com extensa literatura são apenas um frag-
mento da realidade religiosa.

1.1.1. Método comparativo

"Método comparativo" significa pelo menos três coisas. Uma é


a noção de comparação, no que a comparação consiste, o que conta
como uma comparação. Uma outra é o processo contínuo de compa-
ração pelo qual comparações são propostas como hipóteses, refina-
das, testadas de tantas facetas quanto possível, e relacionadas umas
com as outras. Uma terceira coisa, por fim, é o procedimento que
nosso projeto seguiu, o caráter de nossas discussões nos seminários,
e o escrever e rescrever os textos.
ROBERT CUMMINGS NEVILLE E WESLEY J. WILDMAN 49

Jonathan Z. Smith sugeriu a muitos que não há método com-


parativo, apenas um salto "mágico" de imaginação, e que portanto o
falar de um método comparativo, tal como aquele no qual nos aven-
turamos neste projeto, é necessariamente auto-enganoso.' Que o
argumento de Smith não serve às finalidades daqueles que exorciza-
riam a comparação das ciências da religião, é evidente a partir do fato
que ele próprio faz comparações instigantes, por vezes dentro de um
mesmo volume. De qualquer forma, um desafio é lançado para aque-
les como nós que defenderiam a possibilidade de comparação metó-
dica. De fato, a objeção de Smith é pronunciada mais vigorosamente
contra a comparação enquanto ciência no sentido de uma Geisteswis-
senschaft, algo que não pretendemos de maneira alguma. Entretan-
to, há um vasto território entre a comparação como uma ciência
específica e a comparação como um salto mágico, e nosso projeto
tem cultivado um pouco do terreno neste território intermediário.
Para ser claro, concordamos com Smith que a comparação de
fenômenos religiosos é mal servida por um método que ofereça
um algoritmo, para se mover de premissas que sejam demonstra-
velmente verdadeiras, para uma conclusão que, assim, também seja
demonstravelmente verdadeira. Descartes defendeu largamente
aquela concepção de método em relação a todos os modos de in-
vestigação no Discurso sobre o método e em Meditações. Anteriormen-
te, tanto Aristóteles como Boécio também conceberam o método
dessa forma lógica e estreita. Era compreensível que a discussão de
métodos de investigação em um primeiro momento não distinguia
claramente método de lógica, contentando-se em colocar em foco
debates sobre quais formas de argumento eram realmente bem su-
cedidas em estender a verdade de premissas à conclusão, só pela
virtude da estrutura formal do argumento. Mas lógica no sentido
estrito é meramente o aspecto do método que lida com a validade da
argumentação. Debates correntes em lógica indicam sua importân-
cia: os lógicos desejam que a validade da argumentação seja descrita
corretamente pela lógica, sem referência ao campo no qual a argu-

2 Ver "In Comparison Magic Dwells", in Imagining Religion: From Babylon to Jonestown (Chi-

cago: University of Chicago Press, 1989).


50 SOBRE O COMPARAR IDÉIAS RELIGIOSAS

mentação é utilizada. O método para investigação, por contraste,


deve estar ligado aos aspectos específicos de cada campo de saber,
incluindo dados relevantes, modos de interpretação e estratégias
para a correção de propostas. A lógica é meramente o começo do
método. Portanto, concordamos com Smith de que concepções de
método estritamente lógicas não são úteis para guiar a comparação
de fenômenos religiosos, elas são meramente o começo e não o fim
das discussões do método comparativo. Para nós, o método compa-
rativo deve ater-se fielmente às complexidades e às frustrações ine-
rentes ao comparar idéias religiosas.

1.1.2. Vulnerabilidade e estabilidade


Comparar as idéias religiosas é algo que se inicia confusamen-
te, com similaridades comparativas verbais que talvez sejam enga-
nadoras, e vieses interpretativos dos quais há boas razões para se sus-
peitar. Começando in media res, o método comparativo imagina, por
mecanismos variados, hipóteses novas e potencialmente melhores
sobre a comparação, e então procede refletindo sobre elas e as testa
de muitos pontos de vista diferentes. O estatuto final das hipóteses
não é o de que elas são garantidas pela estrutura de algum método,
mas sim o de que elas são formuladas de tal maneira a serem vul-
neráveis a correções. Qualquer que seja a estabilidade e a justifica-
ção que elas possuam, isso deriva-se do como elas foram testadas
até o momento. O valor delas depende de sua vulnerabilidade, que
é o grau de sustentabilidade e correctibilidade por novos testes e
perspectivas, como as que foram colocadas em jogo. Em nossa abor-
dagem pragmática, uma hipótese comparativa que pareça ter sido
garantida pelo método pelo qual foi produzida tende na verdade a
ter sido feita de forma um tanto que invulnerável à correção. Uma
hipótese invulnerável sofre com o fato de que suas limitações e sua
possível falsidade são obscurecidas, talvez como resultado do fascí-
nio ou alívio de se possuir algo aparentemente firme para se segurar,
enquanto se está no meio do mundo genuinamente desconcertante
das idéias religiosas. Se Jonathan Z. Smith é por vezes mal entendi-
do como se opusesse a toda comparação de fenômenos religiosos, o
ROBERT CUMMINGS NEVILLE E WESLEY J. WILDMAN 51

é normalmente por aqueles que desenvolveram uma alergia profun-


da ao obscurecimento da vulnerabilidade de hipóteses comparati-
vas por vieses ideológicos sub-reptícios. Compartilhamos a alergia,
mas defendemos um método para comparação que auxilie a manter
a vulnerabilidade e diagnostique o viés.

Nosso método comparativo se destina a produzir hipóteses


comparativas estáveis, sem colocar em perigo a virtude da vulnerabi-
lidade, uma matéria de delicado equilíbrio. Por um lado, precisamos
apresentar hipóteses suportadas por boas razões, a fim de tomá-las
seriamente para estudo posterior. A vulnerabilidade a correções fu-
turas, dessa forma, não pode significar que as hipóteses sejam tão
estúpidas que qualquer tolo possa prevê-las. Por outro lado, as hi-
póteses comparativas talvez venham a ser radicalmente corrigidas
no futuro, ou mostrem possuir limitações significativas que não são
imediatamente aparentes, ou que se revelem ser mais projeções de
conceitos dos comparativistas do que características genuínas dos
fenômenos. A estabilidade não implica que não haja exceções: ao
contrário, uma hipótese é estável se muitas exceções a ela forem
notadas e mesmo assim, no final das contas, mantenha-se o argu-
mento comparativo. Descobrimos que quase tudo em uma tradição
religiosa possui algo análogo em outras tradições e que, mesmo se
a configuração e o valor relativo dos elementos variem entre as tra-
dições, distinções comparativas em geral estáveis podem ser feitas
entre tradições e textos, pelo menos para o propósito de futuras ex-
plorações. Assim, parte do sentido da estabilidade é o de que a com-
paração pode ser desestabilizada pela atenção aos detalhes, sem que
isso cause sempre o colapso de toda uma hipótese. O reparar e re-
configurar pode ser o caminho para se registrar a complexidade dos
fenômenos, enquanto se preserva a intuição da hipótese remanes-
cente. Quando isso falha, requer-se o abandono ou a substituição da
hipótese. O método comparativo é um processo de estabelecimen-
to de hipóteses estáveis, colocando-as em questão de uma maneira
adequadamente empírica, corrigindo-as e recuperando a estabilida-
de quando possível, e removendo a hipótese em favor de uma nova
idéia quando chegar o momento.
52 SOBRE O COMPARAR IDÉIAS RELIGIOSAS

1.2. Categorias vagas

Quando duas ou mais coisas são comparadas, elas o são com a


mesma referência. Chamamos a referência da comparação de "ca-
tegoria vaga", qual seja, uma categoria usada de maneira que seja
vaga o suficiente para deixar espaço para a coexistência de diferen-
tes coisas em sua abrangência. Uma categoria é vaga se ela permite
em seu seio coisas que se contradizem; uma categoria é meramente
geral se ela requer que as coisas em seu seio sejam mutuamente
consistentes.3 Assim, para comparar nossas seis tradições religiosas
com referência ao que seus representantes pensam sobre a condi-
ção humana, temos de lidar com "a condição humana" enquanto
categoria vaga. Justamente o que as várias tradições dizem sobre
a condição humana são as maneiras pelas quais elas especificam a
categoria vaga. O que elas dizem pode estar em contradição entre
si, mas ainda recai sob a categoria vaga da condição humana. Uma
categoria vaga, portanto, tem pelo menos dois modos, momentos
ou níveis: o vago e o especificado (há um terceiro que será discuti-
do em breve).
Ser claro sobre esta distinção é extremamente importante, e
desafortunadamente essa clareza não é comum nas tradições com-
parativas dos séculos dezenove e vinte. O que tem sido comum é
tomar uma tradição, usualmente o cristianismo, para ser a fonte das
categorias vagas, e então elaborar todas as outras tradições como
especificações destas categorias, enquanto determinadas por esta
tradição fundamental, e nesse processo o cristianismo recebe trata-
mento preferencial e todas as tradições (incluindo o cristianismo)
são distorcidas. Esta é uma descrição literal das comparações de
Hegel, ainda que não na ordem de sua exposição.4 A categoria vaga
propriamente não deve ser mais enviesada para com uma especifi-
cação do que para com outra. Portanto, parte do processo de compa-
ração consiste na reformulação contínua da categoria como vaga, de

3A linguagem da "vagueza" provém da filosofia de Charles S. Peirce, e será discutida, com as

referências a Peirce, em Ultimate Realities, cap.. 8.


4Ver, por exemplo, suas Lectures on the Philosophy of Religion, 3 vols., ed. Peter C. Hodgson

(Berkeley: University of California Press, 1984, 1985, 1987).


ROBERT CUMMINGS NEVILLE E WESLEY J. WILDMAN 53

modo a ser neutra quanto às idéias comparadas dentro dela. Quase


todas as categorias vagas possuem raízes históricas particulares "a
condição humana" é fortemente influenciada pelo existencialismo
do século XX — mas a categoria precisa ser abstraída e purificada de
modo a ser tão neutra quanto possível ao registrar o que é para ser
comparado por meio dela.
Outro engano comum tem sido contentar-se com o aplicar a
categoria vaga a tradições que estão sendo comparadas, sem se preo-
cupar em tornar claro como cada tradição especifica a categoria
vaga de sua própria maneira. Isto nos cega em relação aos detalhes,
o que é desastroso, porque as nuanças são com freqüência as mais
importantes características de uma tradição. Dizer que as tradições
da Ásia ocidental e muitas do sul da Ásia são "teístas" é vagamen-
te verdadeiro; mas isto não diz como ou em que sentido quaisquer
dessas tradições são teístas, e nenhuma tradição é teísta de modo
geral, nem mesmo o deísmo do iluminismo ocidental. Nada do que
está aqui presume que os detalhes das idéias religiosas são sempre
mais importantes ou mais reais do que as categorias vagas que elas
especificam. De fato, em certos contextos explicativos o fato rela-
tivamente vago que todas estas religiões são teístas, em contraste,
digamos, ao confucionismo, pode ser bem mais importante do que
as diferenças entre elas, e isto que têm em comum pode apontar
para uma realidade mais fundamental em termos metafísicos. Em
geral, fazer progresso em comparação requer que se mova para trás
e para diante entre os detalhes e o que há de comum e que também
é mais vago. Mesmo que as coisas precisem ser comparadas de uma
forma comum, de maneira a que as diferenças possam ser notadas,
se o que as coisas comparadas têm em comum é vago, a questão mais
fundamental é se, e a partir daí, como elas são diferentes ou simila-
res em relação a isso. É crucial a clareza em relação ao locus lógico do
relativamente vago e específico.
A comparação requer um terceiro passo lógico, modo ou mo-
mento, além de articular categorias vagas, e como cada uma das
tradições comparadas as especificam em variadas formas. As especi-
ficações precisam ser traduzidas na linguagem da categoria compa-
54 SOBRE O COMPARAR IDÉIAS RELIGIOSAS

rativa vaga. Ou seja, o que quer que os comparativistas decidam que


sejam especificações da condição humana, precisa ser traduzido na
linguagem da condição humana. Assim, a linguagem que expressa
a categoria vaga se enriquece e se preenche de modo a registrar as
distinções nas mais variadas especificações. À medida que este pas-
so avança, a própria categoria torna-se mais rica e complexa, expres-
sando como todas as tradições comparadas a articulam. Deste ponto
de vista, tanto a categoria articulada vagamente, como suas distintas
especificações, são abstrações daquilo que os comparativistas agora
sabem sobre a condição humana, expresso em hipóteses que sejam
estáveis, pelo menos no momento.
Apenas quando as especificações são traduzidas na linguagem
da categoria vaga, enriquecendo aquela linguagem, é que se torna
possível fazer comparações. Só então é possível verificar se as tradi-
ções dizem as coisas do mesmo modo, ou diferindo radicalmente,
sobrepondo-se parcialmente, ou de modo contraditório, ou ainda de
modos virtualmente incomensuráveis. Dizer que as várias religiões
colocam-se sob a mesma categoria vaga ainda não é comparação.
Dizer que as especificações estão lado a lado também não é com-
paração. Esta é dizer de que modo as especificações são similares
ou diferentes em termos da categoria a respeito das quais elas são
comparadas.
Ser claro, dessa maneira, sobre o que seria uma comparação
bem-sucedida não é automaticamente estabelecer que comparações
bem-sucedidas são possíveis. Nosso julgamento sobre a perspectiva
de uma comparação bem-sucedida de idéias religiosas pode ser re-
sumido em uma afirmação triplamente condicional, como se segue:
se uma categoria vaga sob consideração é de fato um referencial co-
mum para a comparação, se as especificações são feitas com cuidado
para evitar a imposição de vieses, e se o ponto da comparação é le-
gítimo, então as traduções das especificações na linguagem da cate-
goria podem permitir comparações genuínas. Deve-se enfatizar que
mesmo esse julgamento condicional é um resultado provisório, em-
pírico, e não algo garantido em abstrato por alguma teoria sobre o
quanto os seres humanos podem saber sobre os assuntos religiosos.
ROBERT CUMMINGS NEVILLE E WESLEY J. WILDMAN 55

Os reais desafios a uma comparação bem-sucedida, entretanto, são


as três condições acima, e o teste de qualquer método comparativo
é se tal método auxilia a detectar coisas em comum, sem vieses, para
um propósito legítimo. Enquanto alguns pensadores têm compro-
missos filosóficos em favor ou contra as possibilidades de se preen-
cher estas condições, nós não as temos. Nosso método comparativo
não garante que as três condições podem ser mantidas; ele apenas
otimiza o processo de comparação. É a nossa experiência, e não nos-
sos compromissos filosóficos, que sugere que as três condições po-
dem de fato ser cumpridas em alguns momentos e que, portanto,
comparações genuínas podem por vezes ser feitas.

1.3. Critérios para o sucesso

O sucesso em comparar idéias religiosas é um objetivo mais


fugaz do que o sucesso na comparação de outros aspectos do nosso
mundo, como carros, políticas econômicas, ou mesmo personali-
dades humanas. O problema pode ser expresso em termos de três
condições que precisam ser cumpridas antes que comparações bem-
sucedidas possam ocorrer.
Primeiro é difícil dizer, com relação a idéias religiosas, se temos
ou não algo genuíno em comum nas categorias vagas pressupostas
em uma comparação. A principal razão para isto tem dois aspectos.
De um lado, as idéias religiosas podem ser interpretadas descriti-
vamente, como afirmando algo acerca da realidade. Por outro, elas
podem ser interpretadas em termos das qualidades com as quais elas
carregam o que é importante em seus referentes para os seus intér-
pretes. "Obtendo uma verdadeira descrição" é um tipo de tal carga.
Mas conformar nossa alma a Deus, abrir mão de apegos, moldar li-
turgias para seus efeitos adequados, causar mudanças na vida mo-
ral de uma comunidade — todos estes são potencialmente cargas
"verdadeiras" que não são usualmente descritivas.5 Com freqüência

'Em Religious Truth, nós distinguimos três tipos de verdade, ou ainda três problemáticas para
o entendimento da verdade: epistemológica, escriturística (revelada) e prática. A última tem a ver
com o fazer acontecer a verdade, tornar-se verdade, manifestar a verdade, viver na verdade. Ver
especialmente caps. 7 e 8.
56 SOBRE O COMPARAR IDÉIAS RELIGIOSAS

temos notado a importância dos fins soteriológicos das idéias reli-


giosas, em contraste com seus fins descritivos. Símbolos usados de
forma não descritiva dizem algo sobre seus referentes, mas muitas
vezes é difícil determinar o que isto significa, para fins de compa-
ração, mesmo quando uma interpretação descritiva do símbolo for
piegas ("Deus é a rocha de minha salvação"). Assim sendo, precisa-se
tomar um cuidado especial quando traduzir idéias altamente simbó-
licas na linguagem da categoria comparativa.
Segundo, o investimento pessoal em assuntos religiosos torna
o evitar vieses mais difícil do que em muitas outras áreas de compa-
ração. Mesmo com as melhores das intenções, as convicções religio-
sas são profundas e são múltiplas, invisíveis, conectadas a critérios
que influenciam julgamentos de muitos tipos. E por vezes a vontade
fica aquém do ideal, mesmo entre os comparativistas. Um cuidado
especial é também requerido aqui, e nosso método comparativo é
um trunfo para detectar e corrigir vieses.
Terceiro, a legitimidade dos propósitos da comparação é mui-
tas vezes difícil de ser julgada. As razões de praxe das pessoas que
comparam idéias religiosas são: satisfazer uma curiosidade, incre-
mentar o entendimento, além de servir outros propósitos teóricos,
como a construção de teorias da religião ou teorias das realidades
religiosas. Mesmo que haja outras razões, algumas talvez mais no-
bres e outras menos, problemas surgem mesmo com as razões de
praxe, e aqui dois são apresentados. Primeiro, a comparação levanta
questões das idéias religiosas das tradições, que estas não levantam
para si. Mesmo quando a tradição envolve-se na tarefa comparati-
va, as questões que fazemos podem ser formuladas de maneira di-
ferente. Deixando de lado como os fiéis se sentem a esse respeito,
isso pode ser uma preocupação para alguns dos pensadores, porque
o próprio ato de comparação altera no mínimo a expressão, se não
a própria substância de textos ou tradições específicos. Segundo, o
comparar idéias religiosas pode ter implicações para a própria exis-
tência daquele que compara, e distorções ocorrem quando a busca
de imparcialidade tira das idéias sua própria relevância original para
transformar a vida das pessoas, mesmo quando as pessoas em ques-
ROBERT CUMMINGS NEVILLE E WESLEY J. WILDMAN 57

tão são aquelas que comparam as idéias em um plano mais acadêmi-


co. Este é a intrigante contradição do problema do viés: a distorção
pode ser também o resultado do esforço para não ser afetado pelas
idéias que comparamos. Quão sérios são esses dois problemas? Nos-
so entendimento provisório é que, caso seja feito cuidadosamente e
de maneira vulnerável, permitir questões comparativas para extrair
implicações e revelar novos aspectos do assunto pode ser útil para
tudo e todos que estejam envolvidos — fiéis, conhecimento, vidas
pessoais. A comparação é um ato que modifica as coisas, e susten-
tamos que nosso método comparativo nos auxilia a assumir a res-
ponsabilidade por essas mudanças. Se a validade de nossos fins ao
comparar idéias religiosas justifica ao final tal distorção ou mudan-
ças como as que podem ocorrer no processo resultante de tradução
e avaliação, trata-se de uma matéria de julgamento moral informado
pela experiência. Julgamos que nossos propósitos têm validade su-
ficiente em nosso contexto para justificar a comparação. Podemos
imaginar contextos, entretanto, nos quais nossa bússola moral apon-
taria na direção oposta.
A meta do sucesso na comparação de idéias religiosas é ver-
dadeiramente aventurosa. Ela é problemática em pelo menos essas
três maneiras apresentadas que, no entanto, são problemas próprios
de tal empreendimento. Nossa conclusão, com bases empíricas,
continua a ser a de que todos os três problemas podem ser adminis-
trados com o auxílio de um bom método comparativo, e que uma
comparação bem-sucedida é possível.

1.4. Processo e estratégia

Do que tem sido dito, torna-se aparente que o trabalho de se


chegar ao entendimento de idéias religiosas em termos comparati-
vos é um processo, dentro do qual uma apresentação como a deste li-
vro é um registro em andamento. Isso não deve ser visto como signi-
ficando que os mesmos autores ficarão revisando e revisando, nunca
fixando ao final o que eles dizem. Ao contrário, o processo deve ser
tornado público quando os comparativistas julgarem que eles fize-
ram o melhor possível com o material à mão. Correções posterio-
58---–=
-:-- SOBRE O COMPARAR IDÉIAS RELIGIOSAS

res serão feitas quando novas perspectivas, novas questões, e novos


dados surgirem, e freqüentemente isso terá de ser feito por outros.
Que este é um registro em processo significa que nosso projeto é
parte de um empreendimento comparativo cultural mais amplo.
Um projeto comparativo particular, lidando com um conjunto
finito de assuntos como aqui em nosso estudo, necessita ser consi-
derado como parte de um meio social e intelectual mais abrangente,
como começamos a fazer anteriormente ao refletir sobre a moralida-
de de comparar idéias religiosas. Há muitas premissas sobre outros
tópicos comparativos que estão em jogo à medida que estudamos a
condição humana, e nós assumimos idéias sobre outras partes de
religiões das que estão sob uma discussão mais focalizada aqui. Em
qualquer momento há pressuposições que moldam o pano de fundo
das comparações, com freqüência, únicas a cada um dos campos re-
presentados — estudos chineses, hindus, judaicos, sociologia do co-
nhecimento, metafísica, história da teologia cristã, e assim por dian-
te. Ainda que os conjuntos de premissas de fundo sejam facilmente
passíveis de interlocução, eles não são claramente expostos, exceto
quando a atenção se volta do tópico em foco diretamente para eles.
Porém, o fato de sermos provocados pelo nosso labor compartilhado
sobre o material em processo de comparação também serve para pôr
em questão e alterar nossas premissas de fundo, especialmente na
medida em que aprendemos uns dos outros. A longo prazo, talvez
os testes mais críticos para as idéias vulneráveis surjam não quando
elas próprias forem o foco da atenção, mas sim quando elas se tor-
narem elementos críticos ao fundo de um projeto que esteja envol-
vido com algo diferente. Os testes pragmáticos sólidos, matizados
de hipóteses, surgem quando estas são colocadas em jogo em um
contexto mais amplo.
Tendo dito todo o precedente sobre o lugar de nosso estudo no
processo corrente pelo qual a sociedade vem a entender e relacio-
nar-se com suas várias culturas, mais pode ser dito sobre o processo
de comparação interno de nosso projeto. O processo começa com a
afirmação metodológica de que várias disciplinas diferentes são ne-
cessárias para se progredir, e que uma abordagem multidisciplinar
ROBERT CUMMINGS NEVILLE E WESLEY J. WILDMAN 59

é melhor levada a efeito em conjunto do que por qualquer um de


nós trabalhando sozinho. O processo então retoma alguns tópicos
comparativos óbvios, como por exemplo, a condição humana, rea-
lidades últimas, e verdade religiosa, que quase todos concordariam
que percorrem a maioria das religiões, e com respeito aos quais elas
podem ser comparadas. Mas, então, o processo encontra entendi-
mentos diferentes desses tópicos, mesmo em nível vago, o que pre-
cisa ser melhor discutido. As diferenças entre os especialistas vêm
da tendência de se ver a categoria vaga em termos dos exemplos
ou especificações prima faie em suas respectivas tradições e textos.
Para os generalistas, as diferenças provêm das culturas de suas dife-
rentes disciplinas. Porém, todos nós operamos no mesmo mundo
genérico, acadêmico da modernidade tardia, de maneira que estas
discussões se movam rápida e produtivamente.
O processo comparativo então se encaminha para a discussão
explícita das especificações da categoria comparativa proposta pe-
los especialistas em cada tradição. As sugestões são consideradas e
criticadas. A crítica possui, usualmente, uma dupla face em busca
de duas questões, com freqüência as duas simultaneamente. Uma é
se alguma idéia religiosa é realmente um exemplo especificador da
condição humana. A outra, à luz das ambigüidades ou embaraços
concernentes à primeira questão, é se nós dissecamos corretamen-
te a situação humana em nível vago. Nesse ponto, é útil repartir a
categoria comparativa principal em subcategorias, e assim chegar
a um entendimento multidimensional das categorias vagas, como
os aspectos cosmológicos, sociais e pessoais da condição humana.
Tal divisão então requer novas tentativas de localizar e relacionar
especificações, e assim estabelecer uma dialética crítica que vai e
volta constantemente, vagarosamente chegando a articulações mais
firmes das categorias vagas e das especificações estabelecidas.
Ainda outra dimensão do processo é a tradução do que é apren-
dido mediante a especificação das categorias vagas na linguagem das
próprias categorias, como por exemplo, a condição humana. Ern ne-
nhum momento o processo comparativo está inteiramente isento
desse procedimento de tradução no qual a comparação efetiva é ex-
60 SOBRE O COMPARAR IDÉIAS RELIGIOSAS

pressa. Mas o processo de tradução se torna mais sistemático e pleno


à medida que as hipóteses comparativas são formuladas e testadas.
A vulnerabilidade dentro desse processo caracteriza cada uma
das etapas. Poderíamos descobrir que nós formulamos mal a catego-
ria vaga, ou identificamos e descrevemos mal a especificação, ou tra-
duzimos errado o significado daquela especificação para a categoria
vaga e as outras especificações. Em nossas próprias conversas, assim
como no processo mais geral de comparação que tem florescido por
pelo menos dois séculos, é às vezes difícil de identificar precisamen-
te o que está errado: a categoria para comparação, a identificação e
análise de uma especificação, ou o desenvolvimento de uma lingua-
gem para tratar as especificações em uma perspectiva comparativa
relativa à categoria. É mais fácil, sem ser fácil, no contexto da auto-
consciência sobre a natureza da comparação tornada possível por
um método comparativo.
Nesse processo, tentamos construir não apenas a crítica dialéti-
ca entre especialistas e generalistas, mas também aquela da contínua
reavaliação das categorias vagas enquanto bases para a comparação, a
seleção e interpretação de especificações das várias tradições, e a tra-
dução interpretativa das especificações na linguagem da condição
humana e na obtenção de conclusões comparativas. Acreditamos
que esta é a lógica do quão adequado o trabalho de comparação se
torna na conversação mais ampla ao se comparar religiões. Tenta-
mos operacionalizá-la e condensá-la nos procedimentos do projeto.
Esta já é uma antecipação suficiente para direcionar os leitores
ao que se seleciona nos seis capítulos seguintes. Essa seletividade
será enfatizada uma vez mais no início do capítulo oito.
2
RELIGIÃO CHINESA
Livia Kohn

2.1. Considerações Gerais

A religião chinesa foi dividida em várias tradições diferentes, a


ponto de diversos estudiosos falarem mais em religiões chinesas no
plural do que em um sistema religioso singular da China.' As maio-
res tradições normalmente consideradas são as assim chamadas
grandes religiões: o confucionismo e o taoísmo, às quais vem mais
tarde se juntar a crença estrangeira do budismo, sob uma forma alta-
mente adaptada à China, e complementada pela religião popular, as
crenças do dia-a-dia e as práticas do povo chinês. Ainda que ambos,
os chineses e os estudiosos, distingam essas quatro tradições como
entidades singulares e estudem-nas em suas formas particulares,
elas têm interagido continuamente umas com as outras e formado
um sistema religioso integrado que compartilha de certos princí-
pios fundamentais da cosmologia clássica chinesa, apresentando-se
unidas numa visão unicamente chinesa do universo.
Nesse sistema, a condição humana é entendida normativamen-
te a partir de um ponto de vista altamente afirmativo: é bom estar
vivo, é muito precioso ter nascido humano; é não somente possível,
mas desejável, realizar-se humanamente no mundo e por meio do

10 debate é antigo e remonta ao século dezenove, quando J. J. M. DeGroot publicou pela

primeira vez seu livro The Religious System of China (Leiden: E. Brill, 1892). O atual lournal of
Chinese Religions usa a abordagem múltipla do tema, mas mais recentemente estudiosos pre-
ferem novamente uma visão singular, como exemplificado no livro de Jordan Paper, The Spirits
are Drunk: Comparative Approaches to Chinese Religion (Albany: State University of New York
Press, 1995).
62 RELIGIÃO CHINESA

mundo. Uma segunda característica saliente da condição humana


na religião chinesa é que ela está em estreita relação com os demais
seres como plantas, animais, pessoas, e mesmo fantasmas e espíritos,
e ainda outros níveis de existência. O indivíduo na China nunca
está sozinho — alguns estudiosos vão inclusive mais longe, negan-
do a existência de uma real individualidade na China tradicional'
—, e sim movimenta-se sempre em inter-relações com os demais
em um contexto social, com as forças da natureza e com o divino
numa dimensão sobrenatural. Essa faceta da condição humana na
China está diretamente relacionada ao fato de que a visão de mundo
chinesa é, em geral, mais orientada para o processo do que para a
substância, e que ela está mais focalizada nas correlações e sincroni-
cidades do que nas entidades e causas últimas.
Essas características básicas geram determinadas conseqüên-
cias para a maneira pela qual as aflições humanas são vistas na re-
ligião chinesa. A primeira é que os chineses são deveras autocons-
cientes da divisão entre o cosmos, os assuntos humanos (sociedade)
e o indivíduo (céu, terra e humanidade), distinguindo a cada passo
as formas e processos inter-relacionados no interior desses níveis e
entre eles. A segunda é que dedicam muita atenção à mente humana,
já que a consciência ativa da inter-relação, a adaptação consciente ou
o desvio dos modelos interativos de corpo, sociedade e cosmos sus-
tentam a chave da obtenção ou perda da harmonia — sendo esta de-
finida como o estado ideal e original dos seres humanos no mundo.
A religião chinesa oferece assim uma visão da condição huma-
na amigável para o mundo; uma visão que privilegia a interação e
o processo em detrimento da individualidade e substância, e uma
visão de unidade corpo/mente, na qual a percepção consciente de
si mesmo e do mundo determina o grau do empreendimento hu-

2 Essa visão é especialmente comum entre os estudiosos alemães, que escreveram de modo

variado sobre o assunto. Por exemplo, Wolfgang Bauer, "Icherleben und Autobiographie im alteren
China", Heidelberger Jahrbücher 8 (1964): pp. 12-40; e Rolf Trauzettel, "Individuum und Hetero-
nomie: Historische Aspekte des Verhãltnisses von Individuum und Gesellschaft in China", Saeculum
28.3 (1977): pp. 340-64. Para uma discussão, ver meu "Selfhood and Spontaneity in Ancient Chine-
se Thought", Selves, Peoples and Persons, Ed. Leroy Rouner, Boston University Series in Philosophy
and Religion, Vol. 13 (South Bend, Ind. University of Notre Dame Press, 1992), pp. 123-40.
LIVIA KOHN 63

mano. A tarefa humana no mundo é manter o equilíbrio: manter-se


em uma interação contínua e harmoniosa consigo mesmo, com os
demais, com a natureza e com o cosmos, de modo a não perturbar
os diferentes sistemas, e até mesmo remediando eventuais pertur-
bações que talvez até já tenham surgido. A harmonia é sempre um
objetivo atingido parcialmente e continuamente a ser trabalhado
— mas nem por isso um objetivo menos real. É algo que é sentido
e experimentado de tempos em tempos na vida de todos, em maior
ou menor grau.
Junto com esta avaliação intramundana e fundamentalmente
positiva da condição humana, a religião chinesa possui também um
nível transcendental, uma ao outro mundo. Esse aspecto do grande
quadro do mundo, estimulado pelo budismo e explorado ativamen-
te pelos taoístas religiosos durante a Idade Média (22o-96o d.C.),
tornou-se parte importante da corrente principal da cultura chine-
sa, manifestando-se no neoconfucionismo e na religião popular a
partir da dinastia Song (96o-126o). Essa dimensão propõe um nível
idealizado do primordial, um estado fundamental anterior à criação
que representa o estado ideal do ser. A aflição humana, nessa visão,
significa então a perda desse estado puro de preexistência. Conse-
qüentemente, a tarefa humana fundamental é recuperá-lo por meio
da busca pelas esferas superiores. O objetivo é abandonar as correla-
ções do domínio da harmonia e encontrar um lugar na fonte da cria-
ção cósmica e centro da vida, tornar-se parte de algo maior, outro e
latente; algo que está presente no mundo mas não é idêntico a ele.
Todas as três religiões da China compartilham dessa visão de
transcendência que se encontra realizada no nirvana budista, na
imortalidade taoísta e na sabedoria confucionista. Elas também
concordam com a importância continuada do domínio da harmo-
nia, tanto que qualquer um que tenha atingindo as altas esferas pode
retornar ao mundo para ajudar outros seres — como um mestre bu-
dista, um imortal taoísta ou um sábio confucionista. Esta camada
superposta de transcendência, originalmente importada junto com
uma religião estrangeira e consistindo numa dimensão completa-
mente diferente do modelo clássico, não diminui ou altera funda-
64 RELIGIÃO CHINESA

mentalmente a visão básica chinesa da condição humana, mas a


enriquece, elevando-a a um nível mais divino, e abrindo novos ca-
minhos e visões de mundo na China tradicional.

2.2. O mundo chinês e a aflição humana

O universo chinês, em sua dimensão normativa, é fundamen-


talmente bom e inerentemente harmonioso. Criado numa seqüên-
cia de transformações e sem uma quebra ativa do Tao puro e informe,
manifesta-se numa maravilhosa e misteriosa combinação de várias
forças e seres que trabalham juntos para constituir um cosmos per-
feitos — tornado possível se e quando cada um realizar sua natureza
como sendo originalmente parte do Tao. A base essencial para esse
mundo inerentemente harmonioso é a energia conhecida como Qi
(ch'i, ki), a força de vida, respiração vital, pneuma interno de toda a
existência. O Qi, como parte do Tao anterior à criação, chamado de
"Qi primordial" (yuanqi), traz as qualidades inerentes a todas e cada
uma das coisas vivas, determina sua natureza e suas atividades. Ele é
a matriz da vida, o DNA da estrutura genética do Universo.
A visão chinesa sobre a raiz de toda a vida é monística e orienta-
da para a unidade: tudo é definitivamente um, e o Uno está manifes-
tado em tudo. A esse respeito, temos um claro exemplo do que Ma-
ria Colavito chamou de "modelo mítico do Urn",4 oposto ao modelo
do Zero. Em um mundo radicado no Um, "todas as coisas manifes-
tadas seriam necessariamente uma cópia daquilo que existe dentro
do Um... com o Um que é o único original".5 Conseqüentemente,
qualquer objeto ou ser participa do Um, ainda que não possa jamais
ser o Um em si, o qual permanece informe na raiz da criação. Todas
as coisas possuem sempre apenas um acesso parcial à unidade do
original, jamais atingindo a totalidade. As culturas centradas no Um

3 Um pensador que expressa essa visão mais claramente e conscientemente é Guo Xiang, o co-

mentador do Zhuangzi, do terceiro século. Isso moveu Isabelle Robinet a descrever sua abordagem
como "Kouo Siang ou lê monde comme absolu", T'oung-pao 69 (1983): pp. 87-112.
Waria M. Colavito, The New Theogony: Mythology for the Real World (Albany:State Univer-
sity of New York Press, 1992), p. 13.
'Ibid., p. 15.
LIVIA KOHN 65

geralmente baseiam seu pensamento integralmente no Um e lutam


pelo retorno à totalidade e completude. De acordo com isso, os chi-
neses contam tudo a partir do número um (eles têm um ano de idade
no nascimento), vêem a criação como uma divisão do Um, como se
fosse uma ameba (Tao de jing 42: "O Tao produz o Um; o Um produz o
dois; o dois produz o três..."), e lutam pelo retorno à unidade original.6
Os seres humanos nesse mundo são ainda uma manifestação
parcial da unidade — manifestações fenomenais específicas do ver-
dadeiro Um (Tao) que tudo abrange, situado no centro. Dado que
os seres humanos possuem essa natureza em comum com todas as
demais coisas (estrelas, montanhas, governos), segue-se que sua es-
trutura inerente espelha exatamente, ou é isomórfica com, a orga-
nização de todas as demais coisas. Em outras palavras, um pensar
correlativo é fundamental para todo o pensamento chinês. Os mo-
vimentos e as manifestações do Qi nos seres humanos são estrutu-
ralmente idênticos àqueles que ocorrem na sociedade, no mundo
natural e nas estrelas. Como resultado, o corpo humano é usado
como metáfora predominante para as realidades institucionais, geo-
gráficas e astronômicas — e vice-versa. O corpo humano é descrito
como uma organização administrativa que inclui o governante, mi-
nistros civis e exército; como uma paisagem natural completa com
montanhas, rios e lavradores no plantio; e como uma réplica das es-
trelas no firmamento! Os deuses e os espíritos, e mesmo os demô-
nios que habitam o mundo selvagem, estão igualmente presentes
no corpo humano, de onde eles se comunicam facilmente com suas
contrapartes nas estrelas, com as montanhas e os rios, e com as famí-
lias e as comunidades humanas.

6As culturas do Zero, ao contrário, assentam-se sobre dois princípios básicos: "cada coisa é in-
dependente em si mesma; e cada qual é o que manifesta" (ibid., p. 18). Num mundo baseado nestes
princípios, o papel e a importância de todas as coisas só são determinados por eles mesmos; eles
trabalhariam somente para seus próprios interesses; não haveria necessidade de justificar nenhuma
ação; e "se as coisas podem ser feitas, ou criadas, elas seriam feitas" (ibid., p. 18). Como a morte não
seria um retorno para a verdadeira morada no Um, mas o fim de toda a existência, haveria uma luta
infindável pela estabilidade e a solidez, encontradas apenas nas coisas desse mundo.
'Para textos, especialmente da tradição taoísta, documentando todas essas visões, veja meu
The Taoist Experience: An Anthology (Albany: State University of New York Press, 1993), pp. 161-
88. Uma discussão mais geral sobre as visões chinesas do corpo pode ser encontrada no meu "Ta-
oist Visions of the Body", lournal of Chinese Philosophy 18 (1991): pp. 227-52; e em Kristofer
Schipper's "The Taoist Body", History of Religions 17 (1978): pp. 355- 87.
=--
66—--- RELIGIÃO CHINESA

Existem, entretanto, quatro áreas da vida: o corpo, a socie-


dade, a natureza e o céu. Todas elas estão igualmente assentadas
no mesmo Um original. E tendo o Qi como seu constituinte co-
mum, elas seguem os mesmos princípios organizacionais. Além
disso, elas reverberam por meio de uma íntima interação mútua,
causando reações e desenvolvimentos como partes de um mesmo
movimento de "impulso e resposta" que tudo abrange.' Na física
contemporânea, tal modelo de universo tem sido comparado a
uma enorme "jujuba", na qual existem vários elementos conden-
sados, todos formados a partir do mesmo material primordial, mas
colocados em posições diferentes e que vibram em freqüências
diferentes, ainda que harmônicas. Estes fornecem uma clara con-
tribuição ao todo, e uma vez distorcidos, afetam subitamente a
totalidade do sistema.9 A noção de freqüências de vibração é útil
aqui e foi utilizada já, como metáfora musical, pelos próprios chi-
neses.' Ela expressa como a unidade subjacente e a diversidade
manifestada podem ser encontradas num mesmo sistema. Todas
as freqüências de vibração são, em última instância, provenientes
do mesmo material (vibrações), ainda que possam zunir em velo-
cidades diferentes (altas ou baixas). Da mesma forma, tudo ressoa
no universo chinês, mas algumas coisas o fazem mais intensamen-
te que outras. Em outras palavras, o Qi tem vários níveis de den-
sidade e velocidade de fluxo, cada um apropriado para entidades
específicas, e que se modificam de acordo com o tempo e o espaço.

.0 termo chinês para isto é ganying. Uma discussão ampla pode ser encontrada em Charles Le
Blanc, "Ressonance: Une Interpretation Chinoise de La Realité", in Mythe et Philosophie à l'aube
de la Chine Imperial: Études sur le Huainan zi, ed. Charles Le Blanc e Rémi Mathieu (Montréal: Les
Presses de l'Université de Montréal, 1992), pp. 91-111.
'Uma teoria física correspondente é proposta por Itchak Bentov no seu Stalking the Wild Pen-
dulum: On The Mechanics of Consciousness (New York: Dutton, 1977). Para a "jujuba", veja es-
pecialmente a página 20.
'Baseada na observação de que se dois alaúdes são colocados um ao lado do outro, e a corda
de uma é puxada, a mesma corda da outra começa a vibrar, o modelo tem sido aplicado à variedade
de seres na terra. Zhuangzi, cap. 2, diz: "[O céu] sopra nas dez mil coisas de diferentes formas,
assim cada uma pode ser ela mesma" (Burton Watson, The complete Works of Chuang-tzu [New
York: Columbia University Press, 1968], 37). Para uma discussão geral, veja DeWoskin, A Song for
One or Two: Music and concept of Art in Early China (Ann Arbor: Centro de Estudos Chineses da
Universidade de Michigan, 1982). Uma nota sobre o uso taoísta da metáfora pode ser encontrada
no meu Taoist Mystical Philosophy: The Scripture of Western Ascension (Albany: State University
of New York Press, 1991), p. 104.
LIVIA KOHN 67

Isso, por sua vez, significa que o Qi pode ser muito espesso ou
muito fino, fluir muito rápido ou lentamente. Os chineses, tendo
codificado os movimentos do Qi em todos os níveis e em todos
os nichos da vida, proporcionaram sua análise mais sofisticada no
que se refere ao corpo humano, expressa no contexto de sua medi-
cina tradicional. Aqui, as variações de densidade do Qi são expres-
sas como "cheio e vazio" (xushi), mais tecnicamente chamadas de
"excesso e deficiência", enquanto as diferenças na velocidade de
fluxo são descritas em termos de temperatura, como sendo "quen-
te e frio" (rehan)."
Qualquer entidade, e isso inclui tanto pessoas como casas e
particularidades da paisagem, comunidades e instituições, indica-
ções climáticas e constelações estreladas, pode, entretanto, desviar-
se de seu curso ou freqüência inerente fornecida pelo Um, exibindo
uma irregularidade. Essa é a chave para definir as aflições humanas
no mundo chinês. Um desvio começa tipicamente com uma ten-
dência à perfeita harmonia que é levada longe demais. Por exemplo,
a cautela, que é a atitude a ser cultivada no frio do inverno, pode ser
levada a extremos e tornar-se uma emoção de medo excessivo. O
planejamento futuro e o estoque de bens, que são ações a serem rea-
lizadas durante o outono, podem sair do controle e transformarem-
se em ganância. De modo similar, tomando agora um exemplo de
uma área diferente, o movimento das placas tectônicas, que é uma
ação gradual e natural da terra, pode se intensificar em um abalo
súbito e resultar num terremoto. Ganância, medo e terremotos, as-
sim como todas as outras negatividades e infortúnios (ódio, inveja,
doenças, guerras, levantes políticos etc.) são entendidas igualmente
como desvios do Qi. No sistema chinês, a causalidade é assim enten-
dida como um impulso do Qi — seja ele bom ou ruim, harmônico
ou desviante.

"Para uma discussão ampla das várias formas do Qi e seus modos de movimento, ver de Ted
Kaptchuk, The Net That has no Weaver: Understanding Chinese Medicine (New York: Congdon
& Weed, 1983), especialmente página 178. Outra área na qual os chineses codificaram os padrões
universais é na arte da adivinhação. Em especial, o / Ching (Livro das Mutações) dá conselhos de
quando agir da forma mais harmoniosa possível. Para uma tradução e estudo, veja Richard Wilhelm,
I Ching or the Book of Changes, Bollingen Series XIX (Princeton: Princeton University Press, 1950)
(tradução brasileira: / Ching, O livro das mutações. São Paulo: Ed. Pensamento, 1996).
68 RELIGIÃO CHINESA

Essa visão leva a duas observações como seqüência: a primeira


é que o desvio do Qi em um nível — relembremos as vibrações da
jujuba cósmica — emite um impulso que estimula irregularidades
nos outros níveis. Assim, um terremoto ou um eclipse torna-se uma
expressão, ou um presságio, por exemplo, de uma grande revolta so-
ciopolítica. Um exemplo recente foi o terremoto de 1976, o maior do
século na China, e que foi imediatamente relacionado com a morte
de Mao Tse-Tung, ocorrida algumas semanas mais tarde. A segun-
da é que, enquanto todas as entidades naturais como os planetas, as
placas tectônicas e até mesmo os rios que inundam, experimentam
irregularidades temporárias e depois tendem a retornar a seu curso
normal sem maiores problemas, os seres humanos, por terem cons-
ciência e memória, tendem a perpetuar os traços de irregularidade
para além das situações de crise. Um primeiro surto de ganância
ou de medo, trazido à tona numa situação particular, é aliviado de
maneira apropriada por meio da aquisição de bens ou do acalmar
dos nervos, mas depois pode ser relembrado, tornando-se parte do
repertório de reações do indivíduo. Assim, a aflição humana aflora
com emoções e desejos os quais, em contrapartida, influenciam o
pensamento consciente e produzem julgamentos das coisas como
lucrativas ou danosas, boas ou más. Essas emoções, desejos e julga-
mentos conscientes, que se autoperpetuam, são muito mais difíceis
de ser removidos do que adquiridos. Longe de serem apenas picos
temporários de desvios, tornam-se cristalizados e sólidos, tomando
o controle do pensamento e do comportamento da pessoa — um
constante espinho na carne do universo, uma dissonância sem fim
nas vibrações cósmicas.
Uma resposta universal à aflição humana assim definida é a
advertência "saber quando parar" (zhizu), que pode ser encontrada
em fontes chinesas de todas as tradições, e consiste em aprender a
fazer as coisas no tempo e na medida corretos. O grande clássico di-
vinatório do I Ching especifica bem quando cita que "a perseverança
favorece" quando é auspicioso "atravessar a grande água"» Os con-

12 Wilhelm, I Ching, op. cit.


- 69
LIVIA KOHN--=

fucionistas expressam a mesma idéia como sendo a capacidade que


o ministro tem de comandar e servir no tempo certo, aposentando-
se quando sua tarefa estiver terminada, sem se agarrar à sua posição.
Os taoístas, ao apelar para a intuição inata das pessoas, acham esta
idéia no sentido natural de quanto esforço devem despender em
determinado projeto e até que ponto ele deve ser despendido. Por
último, a tradição popular a possui nas detalhadas regulamentações
do calendário, que dizem às pessoas exatamente quando se deve
plantar e semear (e por quanto tempo) e quando colher e armazenar
(e quanto).
Entretanto, uma vez que a inclinação às emoções e desejos
tenha sido estabelecida, não é suficiente "saber quando parar", e
uma batalha deve ser travada para restringir, controlar e suprimir
as forças desviantes. Para tal finalidade, as diferentes tradições têm
sugerido vários métodos: os confucionistas recorrem à adequação
(li), o comportamento correto com relação às hierarquias existentes
e o cumprimento das obrigações sociais na comunidade; os taoístas
advogam uma moderação nos estímulos sensoriais e ações exterio-
res, num estado de tranqüilidade e "não-ação" (wuwei); os legalistas
encontram a solução em uma série de leis detalhadas que punem os
excessos e obrigam as pessoas a seguirem na linha; os cosmologistas,
finalmente, estabelecem um sistema de "mandamentos sazonais"
que organizam cada detalhe da vida de acordo com a progressiva
interação yin/yang (aspectos da atividade do Qi), descrita numa se-
qüência de cinco fases (madeira ou yang menor, fogo ou yang maior,
terra ou yin/yang em equilíbrio, metal ou yin menor, água ou yin
maior).'3
A cultura popular desenvolveu em adição a isso uma infinida-
de de mecanismos de controle, incluindo ambos os modos de entrar
em acordo com os ritmos cósmicos inerentes, bem como meios de

13 Para discussões sobre esses pontos de vista, veja Fung Yu-lan e Derk Bodde, A History of
Chinese Philosophy, 2 volumes. (Princeton: Princeton University Press, 1952). Uma descrição deta-
lhada desses mandamentos sazonais dos cosmologistas pode ser encontrada também em John Major
Heaven and Earth in Early Han Thought: Chapters Three, Four, and Five of the Huainanzi (Albany:
State University of New York Press, 1993).
=-----
70— - RELIGIÃO CHINESA

remediar um desvio já existente. Nesse aspecto, são preventivas a


adivinhação com a ajuda dos sonhos, a leitura das feições do ros-
to, presságios naturais e a geomancia, ciência de dispor as tumbas
e casas para atingir o máximo da harmonia do Qi, representando
a tentativa de se resguardar de influências maléficas e permanecer
no lado correto do padrão universal. Por outro lado, a medicina e
os rituais prestam-se a restabelecer a regularidade, estimulando ou
bloqueando o fluxo do Qi com a ajuda da acupuntura, moxibustão,
exorcismo e orações.
Abandonando essa compreensão da condição humana antiga e
que tudo penetra, os taoístas religiosos fizeram sua a tarefa de fazer
retornar o estilhaçado Qi humano à sua morada original na Uni-
dade da criação. Para fazê-la, propuseram uma visão de mundo que
expandisse o Tao puro e informe à raiz de tudo, numa manifesta-
ção primordial na essência da criação — uma manifestação que é
ainda pura, mas já não mais tão informe. Céus de incerteza, mate-
riais reluzentes, deuses que modificam sua forma constantemente,
e escrituras que se fundem para dentro e para fora da existência em
cavernas celestiais, constituem esse mundo divino. Nele, a Unidade
está ainda intacta, e todos os céus, os deuses e as escrituras partici-
pam dela completamente e não apenas em parte. Eles têm portanto
a capacidade de mergulhar novamente no princípio informe, assim
como podem ir adiante, tornando-se materializados em aparências
mundanas (por exemplo, escrituras que surgem em caracteres hu-
manos nas paredes de cavernas).
Nessa perspectiva, a tarefa humana é muito mais onerosa: não
somente abandonar todos os desejos e julgamentos conscientes
para retornar ao equilíbrio pessoal do Qi, não apenas manter e ser-
vir a esse equilíbrio com as melhores qualidades de cada um, mas
ir muito além e recuperar a pureza original do Tao, e estabelecer-se
firmemente nos céus, atingindo um estado "tão imortal quanto o
céu e a terra, vivendo tanto quanto o sol e a lua". Esse processo de
cura e transcendência necessita a completa transformação dos seres
humanos em todos os aspectos: físicos, sensoriais e de consciência.
O "Eu" socialmente determinado e definido pelos desejos deve dar
LIVIA KOHN --= 71

lugar a uma União cósmica, indeterminada e informe com o Um,


estado no qual a identidade imortal é apenas uma metáfora para o
nível de puro "assim sendo", que não pode ser manifestado ou ima-
ginado pelos métodos comuns. Para este fim, os taoístas prescrevem
dietas que eliminam comida comum, ginásticas e exercícios respi-
ratórios que tornam o corpo mais flexível e mais leve, meditações
e transes que elevam o nível de alerta interior, e visualizações de
deuses e céus que permitem ao adepto ver os detalhes de sua nova
morada.'4 Assim, por meio da transformação de uma existência físi-
ca e sensorial para uma de divindade eterna e informe, promove-se
o retorno da parte ao derradeiro Um.

2.3. Resolução da aflição humana

2.3.1. Um exemplo textual

Muitos textos, de modos diferentes e enfocando diferentes


aspectos desse sistema complexo e bifurcado, descrevem a aflição
humana na China e oferecem várias formas de resolvê-la. Alguns se
concentram inteiramente nos caminhos e meios de refrear os dese-
jos e emoções tanto no contexto social como no individual; outros
enfatizam os melhores métodos para manter a harmonia inerente;
outros ainda, especialmente os taoístas religiosos, dão prioridade à
transcendência e detalham as vias que levam da vida comum à imor-
tal. Há ainda alguns que descrevem o sistema como um todo e, entre
eles, há um conjunto de dois textos taoístas que datam da Dinastia
Song (960-1260), e fornecem um exemplo abrangente de como os
trabalhos de harmonia e transcendência são descritos em termos
nativos. Esses textos têm títulos paralelos: "A maravilhosa escritura
da prática diária exterior do venerável senhor" e "Da prática diária
interior" (Taishang Laojun wai/nei riyong miaojing) e aparecem em
seqüência no Cânon taoísta (DZ 645 e 646). Fazem parte da famosa
"harmonização dos três ensinamentos" (confucionismo, taoísmo, bu-
dismo) que dominou o pensamento chinês durante a Dinastia Song

14Ver Livia Kohn, "Transcending Personality: From Ordinary to Immortal Life", in Taoist Resour-

ces 2.2 (1990): pp. 1-22.


72 RELIGIÃO CHINESA

e contêm tanto princípios confucionistas como budistas, enquanto


seguem uma alquimia interna que era a prática taoísta dominante na
época. A escritura da "prática exterior" especifica assim um total de
quarenta e sete regras de conduta que permitem a dissolução dos de-
sejos e o estabelecimento da harmonia, enquanto que sua contrapar-
te, a "prática interior" descreve exercícios meditativos que, por meio
das mudanças das energias do yin/yang ou da água/fogo no corpo,
resultam na criação de um elixir da imortalidade ou "a grande me-
dicina" que irá transformar o adepto em imortal. Vejamos os textos:

Taishang laojun wai riyong miaojing


("A maravilhosa escritura da prática diária exterior
do venerável senhor", DZ 646)
Respeita a terra e o céu
Honra o sol e a lua
Teme a lei da terra
Segue no caminho dos reis
Obedeça a seu pai e sua mãe
Sê honesto e reservado com os seus superiores
Sê harmonioso e suave com seus inferiores
Faz todas as coisas boas
Abstém-se de todas as coisas más
Aprende com as pessoas perfeitas
Evita pessoas imorais
O alto conhecimento é perigoso
A sabedoria profunda é enriquecedora
Fica calmo e sempre em paz
Sê controlado e sempre contente
Sê cauteloso sem temer
Sê paciente sem se envergonhar
Abandona toda a luxúria
Devota -se à perfeição
Esconde as falhas dos outros
Admira as virtudes dos outros
Pratica ações significativas
E ensina sua vizinhança
Sê amigo dos sábios e dos bons
LIVIA KOHN-
-= ---- 73

Mantém-se longe dos sons e imagens


Na pobreza, mantém-se no seu lugar
Na riqueza, faz caridade
Na ação, sê equilibrado e cuidadoso
No repouso, confia nos outros
Combate sempre seu ego
Nunca se permita o ciúme e o ódio
Reduz a ferocidade e a gula
Desiste da dissimulação e da esperteza
Ajuda a liberar aqueles que são oprimidos
Àqueles que acumulam tenta mudar
Nunca quebre suas promessas
Fala sempre a verdade
Pensa nos pobres e nos órfãos
Dá ajuda aos desabrigados e indigentes
Salva os que estiverem em perigo e com problemas
Acumula méritos secretos
Pratica sempre a compaixão
Nunca mate um ser vivo
Ouve palavras de lealdade
E está livre de corações astuciosos
Segue estas regras
E ascende ao transcendente

Taishang laojun nei riyong miaojing


("A maravilhosa escritura da prática diária
interior do venerável senhor", DZ 645)
Agora, a respeito da prática diária,
Mantenha sua comida e bebida rigorosamente sob controle,
E sente-se silenciosamente em meditação,
Jamais deixando surgir nem um único pensamento.
Enquanto os dez mil afazeres são totalmente esquecidos,
Você poderá visualizar os deuses e fixar sua intenção.
Mantenha os lábios perto um do outro,
E os dentes suavemente encostados.
Seus olhos nada vêem,
Seus ouvidos nada ouvem.
74 RELIGIÃO CHINESA

Então, sua mente estará unificada e focalizada.


Agora, harmonize sua respiração num ritmo regular,
Deixe que ela fique mais e mais sutil, expirando suavemente,
Quase como se ela não estivesse ali
E sem a menor interrupção.

Então, naturalmente, o fogo de seu coração


mergulhará na água de seus rins,
E subirá para a cavidade de sua boca,
Onde uma doce saliva surgirá por si mesma.
Então o perfeito numinoso irá sustentar seu corpo,
E espontaneamente você saberá o caminho para a vida eterna.

Durante todas as doze horas duplas do dia,


Sempre mantenha a pureza e a tranqüilidade.
Deixe a planície numinosa de seu coração livre de todos os afazeres:
isso é a pureza.
Impeça qualquer pensamento de surgir em sua mente:
isso é a tranqüilidade.

O corpo é a residência terrena da energia Qi,


A mente é o refúgio do espírito,
Quando a intenção se move, o espírito está agitado;
Quando o espírito está agitado, a energia se dispersa.

Do mesmo modo,
Quando a intenção é estável, o espírito permanece firme;
Quando o espírito está firme, a energia Qi se aglutina.
A energia perfeita das cinco fases
Aglutina-se assim e forma um concentrado (de pura essência).

Então, naturalmente no corpo,


O som pode ser ouvido ativamente.
Então, sentado e deitado, torna-se ciente
De um movimento no corpo como o sopro do vento,
De um rumor no estômago como o estrondo de um trovão.
A energia harmoniosa torna-se soberba,
E seu doce creme escorre suavemente para o alto.
Então com facilidade você poderá beber da pura essência
E seus ouvidos começarão a ouvir os acordes dos imortais.

Elas são melodias nunca produzidas pelas cordas,


Soando espontaneamente sem aplausos,
Reverberando por si só sem percussão.
LIVIA KOHN ---=
— 75

Espírito e energia então se combinam,


Como formando uma criança no útero.
Se você puder reconhecer em seu reino interior,
O espírito começará a falar com você
Da verdadeira morada do vazio e do não-ser,
Onde você pode morar facilmente com todos os sábios.
A seguir, refine a combinação em nove transmutações
E você irá produzir o grande elixir de cinábrio.'
O espírito irá sair e entrar livremente
E seus anos irão coincidir com aqueles do céu e da terra.
O sol e a lua juntar-se-ão para iluminá-lo
E você estará liberto da vida e da morte.
Para cada dia que você não praticar isso,
Você perderá uma parcela de seu poder.
Então, durante todas as doze horas duplas do dia,
Sempre mantenha a pureza e a tranqüilidade.
A energia é a mãe do espírito o Espírito é o filho da energia.
Como uma galinha chocando um ovo,
Assim você visualizará espíritos/deuses e nutrirá a energia —
Então, como você pode permanecer longe do Maravilhoso?
Misterioso e novamente misterioso —
No corpo humano, existem sete tesouros.
Use-os para sustentar esse estado e acalentar as pessoas,
Cultive-os na totalidade de sua essência, energia e sangue.
A essência é mercúrio (prata);
O sangue é ouro (ouro);
A energia é jade (lápis-lazúli);
A medula é cristal (cristal);
O cérebro é areia numinosa (ágata);
Os rins são anéis de jade (rubis);
E o coração é uma pedra cintilante (cornalina).
Mantenha esses sete tesouros firmemente em seu corpo,
Nunca deixe que eles se dispersem.
Purifique-os na grande medicina da vida —
E entre os dez mil deuses
Eleve-se até os imortais.

"(NT) Cinábrio: composto alquímico - sulfeto de mercúrio.


76 RELIGIÃO CHINESA

2.3.2. Obrigação para com a natureza e a sociedade


O primeiro desses dois textos curtos responde à aflição huma-
na apontando um caminho no sentido de viver de maneira harmo-
niosa com mundo natural e a sociedade, de interagir corretamente
por meio do cumprimento da obrigação de cada um para com todas
as entidades que o cercam. Em círculos concêntricos cada vez mais
restritos, partindo do "respeito ao céu e à terra", ao sol e à lua, "te-
mendo a lei da terra" e o caminho dos reis, chega-se à obediência "ao
pai e à mãe" e ao comportamento correto em relação aos superiores
e aos inferiores. Mais especificamente, o adepto é exortado a honrar
as relações sociais e obedecer à ordem social, fazer o bem e abster-se
do mal, distanciar-se dos imorais e aprender com os puros. Nesse
ponto, como em muitos outros, os textos refletem uma visão confu-
cionista tradicional, na qual, enquanto os planetas e as forças univer-
sais são reverenciados, o comportamento humano é determinado,
em larga medida, no contexto da obrigação familiar e da hierarquia
social. Aqui, a sociedade como um todo é uma comunidade religio-
sa, um locus para a obtenção da harmonia, e o caminho para resolver
a aflição humana é a perfeição das relações sociais.
Os confucionistas concentram assim seu ensinamento em
cinco relações: governante e ministro; pai e filho; marido e mulher;
irmão mais velho e irmão mais novo; e amigo e amigo. Eles enco-
rajam a busca das cinco maiores virtudes, assim chamadas: persis-
tência da humanidade, retidão, honra, sabedoria e lealdade» Juntas,
as relações e as virtudes, associadas às regras sazonais e prescrições
detalhadas de vestuário e conduta formal, constituem as normas
centrais do sistema confucionista, estabelecidas nos clássicos a par-
tir da autoridade dos sábios da Antiguidade, ainda que não derivem
de uma fonte divina. Elas também não são apresentadas na forma
de leis inalteráveis, mas como linhas mestras, cujo significado de-
pende das circunstâncias (assim como alguém pode ser em algum
momento pai e em outro irmão mais novo) e do grau de probidade

15Para uma discussão a respeito disso no neoconfucionismo, ver Wing-tsit Chan, Neo-Confu-
cian Terms Explained (New York: Columbia University Press, 1986), p. 17.
LIVIA KOHN-
-= -- 77
--

alcançado (algumas pessoas podem considerar mais fácil do que ou-


tras abandonar os proveitos materiais em nome da retidão). Assim,
estabelecendo um padrão para as relações formais e para o compor-
tamento na natureza e na sociedade, os chineses definem a obriga-
ção como um exercício de reciprocidade entre um superior e um
inferior, entre o indivíduo e o grupo, entre os seres humanos e as
forças naturais e espirituais do mundo. As normas nesse sistema são
guias para um ideal de harmonia interativa, algo para manter terna-
mente no coração e exercer da melhor forma as capacidades de cada
um num esforço contínuo que dura a vida inteira.'
Por essa razão, todos os preceitos centrais do confucionismo
regulam as relações humanas e o comportamento," e atividade sal-
vífica mais importante da tradição consiste num aprendizado his-
tórico consciente. Aprender sobre o mundo e os grandes homens
do passado faz com que as pessoas se tornem mais virtuosas, incre-
menta sua consciência sobre a harmonia natural e social, e ainda
proporciona o conhecimento necessário de como fazer a coisa certa,
no tempo certo e na medida certa.
Este tipo de conhecimento também aparece no nosso texto
sobre a "prática exterior", no qual é descrito como profundo e "enri-
quecedor" em contraposição a um conhecimento "elevado" e "peri-
goso", que gera a ilusão de poder e de independência do ego. Como
é descrito no texto, este conhecimento profundo revela ainda uma
total liberdade das emoções, manifestada numa calma difusa e mo-
deração, sendo "cauteloso sem temer" e "resignado sem desonra". A
fim de assegurar que o equilíbrio não fora apenas alcançado, mas
mantido, o texto alerta novamente contra "todo o luxo" e encoraja a
devoção à "perfeição", palavra que é utilizada neste contexto como
sinônimo de harmonia. Além disso, essa harmonia na sociedade é
mantida sendo-se atencioso para com os demais, jamais apontando
seus erros, sempre louvando suas virtudes, e comportando-se apro-

16Ver Tu Wei-ming, "The Confucian Perception of Adulthood", in Adulthood, ed. Erik Erikson
(New York: W.W. Norton, 1978).
"Ver Michael Kalton, To Become a Sage: The Ten Diagrams on Sage Learning by Yi T'oegye
(New York: Columbia University Press, 1988), p. 103.
78 RELIGIÃO CHINESA

priadamente em diferentes situações, resignando-se na pobreza,


sendo generoso na riqueza, ponderado nas ações e grato pela ajuda
alheia.
A harmonia, ainda que tenha imperado, está sempre na imi-
nência de sua destruição; o fluxo do Qi, tão firme quanto possa ser,
pode facilmente desviar-se. Por essa razão, o texto, em estrita resso-
nância com outros documentos confucionistas, enfatiza que o adep-
to deve estar "sempre numa batalha contra o ego" e alerta firmemen-
te contra os desejos, as emoções e os traços desagradáveis de caráter
que se desenvolvem tão facilmente, porém em última instância
irão se abater sobre sua paz interior: ciúmes e ódio, mesquinharia
e avareza, malícia e dissimulação. Enquanto estiver lutando contra
todas essas negatividades internas, o adepto deve mostrar um com-
portamento exterior socialmente responsável. Este comportamento
não é apenas a chave do confucionismo, mas, nesse texto, também
exibe tons claramente budistas. Ser sempre honesto no tratamento
aos demais, sempre verdadeiro com as palavras, ajudar o pobre e o
oprimido — estas são máximas que ambas religiões defendem. Mas
"aqueles que acumulam tentam mudar" reflete a compreensão de
que os ricos e os opressores também precisam de ajuda, estão so-
frendo por tensões internas e constituem assim um perigo para a
harmonia geral por causa de seus fortes desejos e emoções. Da mes-
ma maneira, a idéia de que ajudar o pobre e o atormentado irá "acu-
mular méritos ocultos", assim como o estímulo a "sempre exercer a
compaixão" e "nunca matar qualquer ser vivo", reflete claramente a
influência budista." Mesmo assim, o texto ainda retorna a uma nota
mais confucionista ao enfatizar novamente as virtudes de lealdade e
honestidade, antes de indicar no verso final, que isto não é para ser
praticado apenas para salvaguardar a harmonia na terra, mas para
"ascender ao transcendente".

18Enquanto a idéia do "mérito secreto" é claramente budista e indica a noção de que boas

ações, embora sem recompensas óbvias agora, irão gerar frutos cármicos auspiciosos no futuro, o
conceito de mérito e demérito ou recompensa e punição divina é muito antigo na China. Ela reflete
a transposição sobrenatural dos trabalhos da administração burocrática e é conhecida desde o século
quarto a. C. (Donald Harper, "Ressurrection in Warring States Popular Religion", in Taoist Resources
5.2 [1994]: pp. 13-28). Normalmente calculado em pontos, os méritos resultam numa longa expec-
tativa de vida na terra, enquanto os deméritos acumulam causas para uma morte prematura.
LIVIA KOHN 79

A "prática exterior", nesse escrito taoísta, conforma-se assim


de perto ao entendimento dos seres humanos enquanto partes de
um intrincado sistema de normas e obrigações definidas pelas re-
lações e interações, alcançando, a partir das diferentes tendências
do indivíduo, por meio da família, da comunidade e do estado, as
forças cósmicas do céu. Quanto mais as partes trabalharem harmo-
niosamente em conjunto, mais as freqüências de vibração se man-
terão, mais auspicioso ficará o mundo e melhor será a fortuna para
todos. Entretanto, essa harmonia está continuamente sob perigo de
desalinhar-se, e o adepto não deve guardar-se apenas das emoções e
desejos internos, como também dos comportamentos externos in-
desejáveis e opressivos. Seguir as regras sociais, desenvolver altos
padrões morais e virtudes positivas constituem parte importante no
estabelecimento da harmonia, tão importante quanto o controle dos
desejos — embora a primeira seja impossível sem a última. Em últi-
ma instância, as regras sociais nada são além da expressão dos mes-
mos padrões universais do Qi, que tanto se expressam na natureza
quanto no indivíduo. Assim, qualquer desvio interno (onde é mais
provável acontecer) irá traduzir-se na extinção deles. A harmonia,
em todos os níveis, depende do ser humano, colocando-o em uma
condição não somente de ligação última, mas também num papel
de grande responsabilidade."

2.3.3. Realização da unicidade com o cosmos

Num nível mais cósmico ou celestial, a aflição humana fun-


damental é solucionada por meio da transformação do ser humano
novamente em um ser puramente cósmico. Isso é alcançado me-
diante "prática interior", a qual começa quando a "prática exterior"

19Isto é refletido claramente na visão ideal do ser humano no confucionismo, como descrito
na caracterização do Mestre Mingdao de Zhu Xi, descrito na tradução de Wing-tsit Chan, Reflec-
tions on Things at Hand: The Neo-Confucian Anthology Compiled by Chu Hsi e Lü Tsu-ch'ien
(New York: Columbia University Press, 1967), pp. 299-302. Isso vem à tona de novo, numa
perspectiva diferente, na insistência confucionista de que o melhor estado é estar preenchido
com o cosmos, "vendo o céu, a terra e a miríade de coisas como um só corpo, o mundo como
uma família, e o país como uma pessoa". Ver Wing-tsit Chan, lnstructions for practical Living
and Other Neo-Confucian Writings by Wang Yang-ming (New York: Columbia University Press,
1963), p. 272.
80--=-- RELIGIÃO CHINESA

termina. Assim sendo, o segundo dos dois textos, num primeiro


momento, admoesta o praticante a manter sua comida e sua bebida
cuidadosamente controladas para evitar influências perturbadoras
do Qi pela nutrição. Num contexto técnico taoísta, isso significa
períodos de jejum e a substituição das comidas mais corriqueiras,
especialmente os grãos, pelas ervas puras e os minerais do Tao, den-
tre os quais os favoritos são pinhões, mica, e os "fungos numino-
sos". A seguir, especifica um exercício de concentração meditativa
durante o qual o adepto senta-se silenciosamente e "jamais deixa
que um único pensamento se manifeste". Esse nível de controle
interno da mente, assim como a modificação da dieta do corpo, está
além do esforço de harmonização da "prática exterior", atingindo
um patamar superior no equilíbrio e na integração dentro do do-
mínio do informe. Apenas nessa condição purificada, livre dos "dez
mil afazeres" do mundo, os puros deuses do Tao irão surgir nas vi-
sualizações.
Para estabelecer comunicação com eles, o corpo deve estar
firme e quieto, e os sentidos completamente recolhidos. Assim
como a mente também está em repouso e unificada, a respiração
torna-se tão sutil que dificilmente é notada. Então a atenção pode
ser direcionada para as manifestações interiores do Qi cósmico;
sente-se despertar a energia Qi/fogo do coração, uma energia
quente de natureza yang, que entra em circulação com a energia
Qi/água dos rins. Por intermédio dessas energias, o corpo partici-
pa dos movimentos cósmicos do Qi e torna-se parte de um nível
de existência mais puro, mais celestial. Sustentado pelas forças do
Tao, o "perfeito numinoso", o adepto pode então manter o estado
de calma interna e aprofundar a meditação informe sobre a circu-
lação de energias.
Prosseguindo nesse estado, com a intenção estável e o espírito
firme, as energias circulantes, revolvendo-se no padrão das cinco
fases, irão coagular e formar uma substância pura, o primeiro "con-
centrado" do elixir da imortalidade. Descrito freqüentemente em
termos de união sexual, é chamado de "pérola misteriosa" e forma
o núcleo do embrião imortal que irá crescer no útero divino do
LIVIA KOHN --,=== 81

adepto." Se sua coagulação tiver sido bem sucedida, o praticante


sentirá algo como um profundo estremecimento no corpo, o pri-
meiro movimento independente do Qi primordial agora reinte-
grado nos seus aspectos yin e yang. Ainda que seja parte da tradi-
ção clássica, esse fenômeno ocorre ainda hoje, como demonstra o
relato de 1914 de Jiang Weiqiao, conhecido também como mestre
Yinshi. Tendo sido ele mesmo uma criança frágil e abatida por di-
versas doenças, viu como último recurso os métodos de alquimia
interna e prática meditativa chamada de "sentar quieto" durante a
qual focalizava sua atenção no baixo abdômen, local no qual podia
sentir depois de certo tempo uma "onda de poder quente". Num
determinado ponto, o Qi começa a mover-se — um tanto inespera-
damente. Ele assim descreve:
Então, no vigésimo-nono dia do quinto mês, durante a meditação do
poente, começou a acontecer: repentinamente havia esse intenso mo-
vimento de tremor no campo do cinábrio em meu baixo abdômen. Eu
estava sentado em meditação silenciosa como era usual, mas havia algo
que eu realmente não podia controlar. De maneira incontrolável, fui sa-
cudido para frente e para trás. Então uma energia incrivelmente quente
começou a surgir na base da minha espinha, subindo mais e mais até
chegar no topo de minha cabeça. Eu fiquei abismado e alarmado."

O que o mestre Yinshi testemunha aqui e que, sendo ele um


homem moderno com interesse em bioquímica, quase não pode
acreditar, foi o estabelecimento da assim chamada órbita microcós-
mica durante a qual o Qi sobe pela coluna, passa através da cabeça
e desce novamente para o abdômen.22 Isso ocorre em um ciclo pri-
mordial que aumenta a pureza do corpo inteiro e dá lugar a mais e
melhores gotas do elixir divino. Sorvendo deste, o adepto começa

20Para uma descrição do processo interno alquímico e do desenvolvimento do embrião, ver

Farzeen Baldrian-Hussein, Procédés secrets du ioyau magique (Paris: Les Deux Oceans, 1984) e Lu
Kuan-yu, Taoist Yoga - Alchemy and lmmortality (London: Rider, 1970).
21A tradução é retirada de meu "Quiet Sitting with Master Yinshi: Medicine and Religion in
Modern China", in Zen Buddhism Today 10 (1993): p. 86.
22Esta prática, com nomenclatura moderna e com o propósito expresso de "transformar stress

em vitalidade" é ensinada nos Estados Unidos por Mantak Chia, um imigrante chinês da Tailândia.
Ver, por exemplo, seu Awaken Healing Energy Through the Tao (Huntington, N. Y.: Healing Dao
Books,1983), ou seu Taoist Ways to Transform Stress into Vitality (Huntington, N. Y.: Healing Tao
Books, 1985).
82—----
=- RELIGIÃO CHINESA

a desenvolver qualidades imortais, seus sentidos agora se harmoni-


zam com as esferas puras do Tao, ou conforme o texto: "E seus ou-
vidos começarão a ouvir os acordes dos imortais. Elas são melodias
nunca produzidas pelas cordas, soando espontaneamente".
A pureza mais elevada alcançada por este ciclo, por sua vez, for-
ma a base da evolução do embrião imortal o qual, como representan-
te do espírito puro do adepto, irá se tornar sua persona divina e servir
como veículo para o reino dos imortais. Isso é atingido mediante
contínua revolução de energias, a "transmutação do elixir cinábrio",
e resulta na imersão completa do adepto na Unicidade, no princípio
do universo. Isto, por sua vez, fará dele um verdadeiro imortal: vi-
vendo tanto quanto o céu e a terra, alegremente juntando-se ao sol e
à lua e "totalmente liberto da vida e da morte".
Tendo ultrapassado o mais alto ponto do treinamento do adep-
to, que consiste no mergulho de retorno na Unicidade e a completa
transcendência dos ciclos do mundo, o texto conclui com uma série
de advertências. Em primeiro lugar, adverte contra a negligência e
a preguiça, exortando os estudantes a manterem a prática "durante
as doze horas duplas do dia", ou o que chamaríamos "noite e dia". A
seguir, reafirma a relação entre energia e espírito, a manifestação
pessoal do Qi e o aspecto divino do indivíduo, descrevendo o pri-
meiro como a mãe do segundo. Em outras palavras, não pode haver
imortalidade sem a base física do corpo, e somente por intermédio
da purificação e transformação da energia Qi, pode o espírito ser
livre e retornar à primordialidade do Tao.
A título de conclusão, uma terceira nota enfatiza uma vez mais
o alto valor atribuído ao corpo humano, descrevendo suas diferen-
tes partes como sendo os "sete tesouros". Esta é uma noção origi-
nariamente budista (sapta ratna), de que existem sete substâncias
preciosas — metais finos e gemas — que são indestrutíveis e de ele-
vada pureza. Os taoístas adaptam essa noção, inserem seus próprios
metais e minerais no lugar daqueles citados pelos budistas (que no
texto aparecem entre parênteses), e relacionam essa lista com as di-
ferentes partes do corpo humano. Preservando as substâncias bási-
cas do corpo, como essência, sangue e medula, e afirmando o cora-
LIVIA KOHN :1= 83
ção e os rins como as fontes das energias puras yang e yin, o adepto
é conduzido a refinar o elixir e atingir, na raiz de todas as coisas, a
imortalidade celestial.

2.3.4. Harmonia e transcendência


Tomados em conjunto, os dois textos, o da "prática exterior" e
o da "prática interior", apresentam uma descrição geral do caminho
humano na religião chinesa. A partir de uma situação de desvio dos
padrões cósmicos, eles treinam os adeptos, por meio de um conjun-
to de encorajamentos morais, no controle de suas emoções e dese-
jos e numa vida de indivíduos socialmente responsáveis, plenos de
compaixão por todos os seres viventes. Uma vez que este estado po-
sitivo de alinhamento com o fluxo universal tenha sido atingido, os
adeptos são ensinados a ir além de todas as manifestações exteriores
e desenvolver uma percepção interna do informe. O corpo é afasta-
do da comida normal como a mente é libertada dos pensamentos;
as energias puras do Tao são assim vislumbradas numa forma mais
primordial do que aquela pela qual ela aparece no mundo exterior.
A circulação dessas energias em níveis cada vez maiores de pureza,
forma internamente um elixir divino e um embrião imortal, essên-
cias centrais da energia da Unidade. Juntando-os completamente o
adepto atinge a imortalidade, primeiro ouvindo e vendo o que é fun-
damentalmente sem som ou imagem, e então ascendendo aos céus e
participando de uma vida tão eterna quanto o próprio universo.
Enquanto que a primeira parte da prática pode ser descrita
como a recuperação ou o retorno a um estado harmonioso de vida
em estreita interação com todos os seres viventes, a segunda parte
representa tanto um retorno como uma progressão: a recuperação da
unidade primordial e a criação de uma nova entidade transcenden-
te. O que antes era uma imersão inconsciente do espírito na energia,
agora emerge como a realização imortal consciente do espírito. Os
céus e deuses do Tao primordial e informe, no início de tudo, são
também o ponto final de uma revelação cósmica do espírito que se
transforma enquanto retorna. O espírito do imortal elevado, tendo
passado através das impurezas da vida mundana e pelas dificuldades
84 RELIGIÃO CHINESA

do treinamento taoísta, é agora uma parte mais sublime do universo.


Ele vibra, por assim dizer, numa freqüência mais alta e mais pode-
rosa, e ele é capaz de enriquecer o universo, de sustentar uma parte
significativamente maior da vagem cósmica em harmonia. É por
causa desse poder fortalecido de harmonização que os sábios taoís-
tas — imortais que atingiram os mais altos estágios, mas ainda não
ascenderam —suportam uma grande parcela de responsabilidade
social e são vistos pela tradição como os mensageiros da prosperida-
de e harmonia, num estado de grande paz universal. O objetivo final
do universo taoísta não é somente a transformação dos indivíduos
em imortais, mas também a criação de um cosmos harmonioso de
dimensões celestiais, o estabelecimento de mansões celestiais na
terra, por intermédio da completa transcendência de tudo. O ideal
de harmonia, dominante tanto no pensamento culto chinês quanto
no popular, jamais é perdido mesmo no mundo taoísta; ele apenas é
realizado a partir de um ângulo diferente.

2.4. Categorias para comparação

A condição humana na religião chinesa é vista basicamen-


te de uma forma afirmativa. É bom ser humano, é natural ser hu-
mano, é real ser humano. Nesse modelo, a vida humana é descrita
primariamente como sendo um processo constante de aglutinação
e interação. Os seres humanos são parte do universo e funcionam
exatamente da mesma forma que todas as outras coisas existentes:
não são separados da existência natural, não foram criados especiais,
e não são diferentes em estrutura e princípios organizacionais. Se
funcionassem de acordo com a maneira pela qual foram idealmente
concebidos, ou seja, inteligentes, mas não direcionados aos julga-
mentos, suscetíveis às mudanças na natureza, mas sem criar distúr-
bios, o mundo iria fluir numa harmonia perfeita para o benefício de
todos. •
Entretanto, esse ideal normativo descrito não corresponde à
vida real, cotidiana. A aflição humana, o que diferencia as pessoas do
restante da criação, é a consciência. E mais, a consciência emerge da
LIVIA KOHN 85

memória, por intermédio da qual os desvios temporários de Qi são


fornecidos como reações úteis à vida. Estes são ativados em várias
ocasiões, mesmo quando não são chamados, ocasionando o incre-
mento do desvio do fluxo de Qi e da perturbação da harmonia. De-
saprender estas reações, chamadas normalmente de emoções e de-
sejos, mas que incluem também os julgamentos conscientes como
gostos e desgostos e considerações acerca de perdas e ganhos, é ta-
refa central para grande parte do pensamento chinês, enquanto as
práticas populares tendem a focalizar preferencialmente a retenção
dos danos após o fato (por meio de curas, exorcismos e confissões).

As categorias-chave nessa visão da condição humana podem


ser divididas em três níveis: cosmológicas, sociais e individuais. Va-
mos observar cada uma delas, em separado.

2.4.1. Categorias cosmológicas

Entre as categorias cosmológicas, temos que é da natureza


do cosmos chinês ser uno, basicamente dinâmico e inerentemen-
te harmonioso. Para começar, a unicidade pode ser contraposta ao
Zero e ao Múltiplo. O Zero é o tipo de pensamento que não admite
a existência de uma força ou espírito subjacente na raiz da criação;
o Múltiplo é a diversidade da existência manifestada. Enquanto o
Um e o Zero são claramente opostos, o Uno e o Múltiplo são com-
plementares, dado que o Uno reaparece em todos os aspectos singu-
lares do Múltiplo, e o Múltiplo em sua combinação total compõe o
Uno. Acrescentamos que o Um pode ainda ser contraposto ao Dois,
que pode ser expresso como sendo a divisão entre a unidade e a dua-
lidade, ou monismo e dualismo. Neste caso, os chineses voltam-se
firmemente para o lado do Uno, não admitindo separação alguma
entre criador e criação. Sua visão é fundamentalmente diferente
daquela encontrada no ocidente teísta ou nas tradições hindus, nas
quais se afirma uma distinção entre a deidade e o mundo criado.
Outra categoria-chave em relação ao cosmos é dinâmico versus
estático. Isto pode ser expresso também como o contraste entre o
fluxo natural das coisas e sua substancialidade, ou o entre o tornar-
86 - RELIGIÃO CHINESA

se e o ser. No universo chinês não há "substâncias" no sentido grego


do termo, não há entidades indissolúveis que existam desde o co-
meço e permaneçam para sempre. Toda a vida consiste num fluxo
contínuo de interação da energia dinâmica (de acordo com as cinco
fases) que nunca acaba e está sempre em movimento, numa direção
ou noutra, e que pode se manifestar por meio de um ou outro con-
junto de características. Esta categoria tem importantes conseqüên-
cias para o universo chinês, dado que a restauração da pureza não é
o retorno a alguma substância original, mas o restabelecimento de
um fluxo uniforme e harmonioso. Isto significa também que gran-
de parte da visão de mundo chinesa é mais sincrônica do que causal,
fato enfatizado especialmente nos estudos de medicina chinesa, na
qual a diagnose não busca uma causa subjacente, mas observa as re-
lações entre os sintomas manifestados num momento dado.23 Em
outras palavras, a causalidade não é entendida como o estímulo li-
near de uma série de entidades firmes e fechadas, como as tradições
ocidentais tendem a compreendê-la; mas é uma difusão simultânea
de impulsos Qi através do mundo inteiro, que consiste por si mesma
de vibrações e fluxo de energia; é uma rede intrincada e interligada,
e não um conglomerado de substâncias.
Uma terceira categoria geral e importante é a que trata de har-
monia versus desarmonia, a aceitação de um estado puro e real de
fluxo natural que pode ser abalado — freqüentemente por excesso
ou deficiência, torrentes ou obstruções. A chave para essa categoria,
não muito diferente da segunda, é a cooperação íntima e a suave in-
teração de um grande número de entidades individuais (todas par-
ticipantes do fluxo). Por meio dela, não apenas a condição humana
ideal não é estática, como também não é solitária. O ser humano,
para ser verdadeiro consigo mesmo, deve interagir com os demais
— outras pessoas, forças naturais, o Tao divino. É esta interação que
é central, e não o ser em si. A desarmonia pode ser causada natural-
mente por excessos ou deficiências ocasionais no Qi, mas também
pode ser o resultado de uma ação humana intencional ou obstina-

"Para uma discussão mais teórica sobre isto, ver Manfred Porkert, The Theoretical Foundations
of Chinese Medicine (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1974).
LIVIA KOHN 87

da. O poder de pensar e agir de modo desarmônico é o que difere


o ser humano do restante da criação. Por ser potencialmente uma
grande fonte de desarmonia no cosmos, a humanidade não apenas
está numa posição de importância central, mas também de grande
responsabilidade. Terremotos, inundações e tornados são de nossa
inteira culpa, indicações de que nem tudo está bem nas vidas das
pessoas e nos governos das nações. A categoria de harmonia inclui
assim as noções de interatividade e de responsabilidade para com a
situação mundial. Notamos aqui, novamente, outro forte contraste
com as noções ocidentais de indivíduos únicos e separados e com as
idéias hindus de entidades-alma. A realização pessoal na China não
é, portanto, inteiramente pessoal, mas sempre interativa, residindo
tanto na obrigação para com a sociedade como na busca da unicida-
de com o cosmos, dependendo do nível de harmonia atingida.

2.4.2. Categorias sociais


No nível das associações humanas, a visão chinesa da condição
humana é claramente hierárquica em oposição a igualitária, mais
focalizada nos grupos e nos compromissos das pessoas com eles
do que nos direitos e na autonomia dos indivíduos, e também vê
a atividade humana determinada pelas leis cósmicas em vez de vê-
las pelas decisões pessoais. Aqui a visão confucionista predomina,
especialmente quando associada à cosmologia chinesa na dinastia
Han, tornando-se a forma líder de pensamento social na China tra-
dicional.
As cinco relações-chave do confucionismo assim represen-
tam um complexo sistema que classifica as pessoas de acordo com
a idade e a proximidade dos laços familiares. O status e as atividades
no mundo são determinados por esta estrutura hierárquica, na qual
não existe a noção de igualdade. O mesmo pensamento hierárquico
também se aplica ao homem frente aos animais, sendo o homem
considerado a mais "numinosa" de todas as criaturas sem que, no
entanto, seja considerado dono delas. A continuidade de toda a
vida e sua manifestação em diferentes padrões do Qi assegura uma
clara estrutura de níveis, enquanto, ao mesmo tempo, reafirma a si-
88 RELIGIÃO CHINESA

milaridade de atributos básicos entre todas as coisas vivas. A estru-


tura hierárquica assegura que toda a obrigação esteja firmemente
circunscrita pelo status do indivíduo, enquanto a interatividade do
sistema faz com que as virtudes sejam predominantemente sociais
(lealdade, afeição filial) muito mais do que traços pessoais de caráter
(honestidade, perseverança).24
Em todos os sentidos, os grupos predominam sobre os indi-
víduos na sociedade chinesa. Isso significa que qualquer um é, em
primeiro lugar, um membro de uma família, de um clã, de uma ci-
dade ou de um Estado, antes de ser um indivíduo com necessidades
e desejos. A justiça é, portanto, um assunto do grupo; é considerado
comum, quando da traição de um membro, famílias inteiras serem
executadas, e é típico que grupos de cinco famílias fiquem respon-
sáveis pela ordem na vizinhança. Intenções individuais de cometer
uma infração podem ser ignoradas em favor do efeito de ações que
contribuam para a harmonia do todo. Nos códigos legais formais, o
assassinato de um pai não é julgado de acordo com suas condições
acidentais, discutindo-se a culpa ou dolo, mas, ao contrário, é enten-
dido como uma grande fratura na coesão social e deve ser punido de
acordo com isso.25 A tragédia pessoal, no sentido como a entende-
mos no Ocidente, é desconhecida dos chineses — os conflitos en-
tre duas inclinações internas contraditórias é resolvido geralmente
pela maior correção social de uma em comparação com a outra.
Acima e além da retidão social estão os "mandamentos sazo-
nais", um conjunto de regras e regulamentos que detalham quais
ações devem ser realizadas em determinadas épocas do ano. Dividi-
dos de acordo com os doze meses do ano, eles explicam exatamente

'Honestidade neste contexto ainda é uma virtude, mas mais interativa do que propriamente de
caráter. Em vez de referir-se ao compromisso de uma pessoa a uma realidade geralmente objetiva e
irreversível, ela indica o melhor comportamento possível à luz da harmonia social. Por exemplo, "se
um anfitrião japonês é pego pelo seu hóspede de calças abaixadas, não há desculpas ou confusão,
ao invés disso, há um acordo social que isso nunca aconteceu". Ver Robert A. Paul, "The place of
Truth in Sherpa Law", lournal of Anthropological Research 33 (1977): p. 172. Da mesma forma, o
Sherpa Tibetano reescreve a história em favor da harmonia social muito mais do que extrair uma
verdade objetiva que possa, como absoluto, "existir somente no reino do Buddhahood" (ibid., p.
173).
25Para uma discussão mais aprofundada deste aspecto da cultura Chinesa, veja Derk Bodde and

Clarence Morris, Law in Imperial China (Philadelphia: University of Pensylvania Press, 1973).
LIVIA KOHN 89

qual cor deve ser usada, qual o tipo de comida ingerida, quais me-
didas administrativas devem ser tomadas (as execuções só podem
acontecer no outono, quando a própria natureza está matando sua
vegetação), quais debilidades físicas são esperadas, quais tabus de-
vem ser observados e assim por diante. Muito da vida prática do
povo é mantida de acordo não apenas com seu grupo social, mas
também com os ritmos maiores do ano, reduzindo as decisões pes-
soais ao mínimo. O sistema, desenvolvido na China antiga e obser-
vado ao menos parcialmente durante a maior parte de sua história,
ainda se encontra bastante ativo no Japão, onde uma pessoa não
pode aquecer sua casa ou usar botas antes da metade de novembro,
quando ocorre o tradicional início do inverno (as estações na Chi-
na atingindo o seu máximo e não o seu início nos solstícios e equi-
nócios), embora já possa fazer muito frio. Da mesma maneira, há
grandes estoques de alimento disponível somente durante certos
meses do ano, e é ideal que uma refeição formal durante uma esta-
ção do ano qualquer deva ser organizada de modo a refletir o sabor
e a cor predominantes daquela estação (azedo e verde na primavera,
por exemplo). O efeito dessas medidas práticas é uma certa rigidez
na vida cotidiana, mas elas também criam uma consciência sazonal
ativa e um seitido de correção em viver de acordo com os padrões
da natureza.
No plano das associações humanas, o entendimento chinês
da condição humana mostra uma certa similaridade com outras
religiões socialmente direcionadas, como por exemplo o judaísmo,
o islamismo ou o hinduísmo. A realização religiosa é atingida por
intermédio de uma vida saudável permeada por leis em relação à
sociedade. Visto que a comunidade religiosa é a mesma que a social,
muitos aspectos da vida cotidiana (vestimentas, alimentação, ritos)
são definidos por regras, e a autoridade religiosa principal é exercida
por homens sábios ou sacerdotes que idealmente exerceriam tam-
bém funções no governo do Estado, como legisladores, ministros
ou conselheiros. Em contraste com outras religiões, por outro lado,
as normas na China não são derivadas de uma fonte divina, mas de-
pendem do ciclo da natureza e dos modelos de interação humana;
--
90------ RELIGIÃO CHINESA

os seus mandamentos principais não são leis imutáveis, mas regras


gerais que são ajustadas de acordo com circunstâncias variáveis.
Além disso, objetivo principal das obrigações sociais é a obtenção da
harmonia, tanto na natureza quanto na sociedade, e não a obediên-
cia a uma deidade ou ao aprimoramento do karma, o que faz do con-
ceito chinês de obrigação semelhante, mas ainda diferente, dos que
encontramos em outras religiões.

2.4.3. Categorias pessoais


No nível pessoal, isto é, no âmbito do eu da pessoa, um "eu" que
a sociedade e o cosmos estão tentando reduzir ao mínimo, há a com-
preensão de que o corpo é estruturado exatamente do mesmo modo
que o restante do mundo; e também de que existe uma dicotomia
básica entre a energia e o espírito, que também pode ser expressa, e
tem sido assim na China, como a ruptura entre corpo e mente, ou al-
mas yin e yang, e que existem duas grandes formas de conhecimen-
to: o conhecimento avaliativo sobre o mundo e a sabedoria intuitiva
em relação ao seu funcionamento interno.
Em primeiro lugar, como já foi anteriormente mencionado,
o corpo humano é descrito como uma organização administrativa
que inclui governante, ministros civis e forças armadas; como uma
paisagem natural completa com montanhas, rios e lavradores; e
como uma réplica das estrelas no firmamento. É habitado por uma
variedade de almas (yin e yang) por deuses corporais e espíritos, bem
como por demônios parasitas que desejam sua morte. Todos os di-
versos aspectos e dimensões do mundo mais amplo estão presentes
no corpo, o qual, por sua vez, é a metáfora privilegiada para as des-
crições do universo e da sociedade — o governante é a cabeça, os
vários órgãos internos são os ministros, e assim por diante. O cor-
po humano, maravilhoso e fascinante como pode ser, não é algu-
ma coisa especial, mas repete num plano microcósmico o que está
presente por toda parte. Os seres humanos não são substancial ou
essencialmente diferentes do restante da criação, mesmo ocupando
uma posição chave nela. Isso é significativamente diferente das no-
ções ocidentais que conferem à humanidade o lugar de governante
LIVIA KOHN ----=
=-- 91

de toda a criação e vêem no corpo humano um projeto inspirado


pela divindade.
O mesmo é aplicável à dicotomia corpo-mente, estabelecida
comumente nas religiões ocidentais e indianas. Ainda que os chine-
ses estabeleçam uma distinção entre corpo e mente, a divisão básica
que eles traçam não é exatamente entre uma entidade material, físi-
ca, e uma alma ou espírito, mas entre o corpo e o Qi físico, a mente
versus o espírito. Isso significa que, à luz da visão geral monística
dos chineses, o espírito é apenas uma outra forma da energia Qi (e
assim também a mente do corpo), ainda que uma energia mais sutil
que se move a uma velocidade muito mais alta. Por essa razão, não
existe diferença essencial ou substancial entre a mente e o corpo,
os quais são meramente diferentes aspectos da mesma força básica
subjacente. Por outro lado, os seres humanos, como participantes
do puro Qi da criação, consistem numa força mais grosseira (física)
chamada physis (xing), e uma força mais sutil (espiritual) chamada
espírito (shen).
Essas duas, em última instância provenientes da mesma fonte e
intimamente inter-relacionadas, desintegram-se sob o impacto dos
desejos e da consciência avaliativa em corpo (shen) e mente (xin),
termos carregados negativamente que indicam as versões persona-
lizadas, egocêntricas da coagulação de energia pura que os seres hu-
manos são originariamente.26 O principal contraste na cultura não é,
portanto, entre corpo e mente, mas entre estes como uma unidade,
e a physis e o espírito como outra. O esforço da prática religiosa em
qualquer nível é reduzir, minimizar ou mesmo erradicar o corpo e a
mente como desvios personalizados e restaurar a physis e o espírito
em seus plenos poderes — os confucionistas e os adeptos de práti-
cas populares concentrando-se na redução, e os taoístas preferindo
a sua eliminação total em benefício da transcendência.27

26 Kohn, Taoist Mystical Philosophy, p. 99.


27 0 mesmo padrão se sustenta para os dois tipos de almas — yin e yang, material e espiritual.
Enquanto os sete yin ou almas materiais (po) são energias da terra que representam necessidades
físicas e comportamento instintivo, os três yang ou almas espirituais (hun) pertencem ao céu e
representam boa moral e aspirações espirituais elevadas das pessoas. Elas vêm juntas no nasci-
92 =----- RELIGIÃO CHINESA

Intimamente relacionada com essa divisão do ser humano


entre physis e espírito é a dicotomia entre conhecimento e sabedo-
ria. O aspecto material da pessoa, que necessita de alimentação e
sustento do mundo exterior, sente desejos e ansiedades e faz julga-
mentos sobre os benefícios e danos potenciais de diversas pessoas
e objetos. Isso dá lugar a um conhecimento que é analítico, divisí-
vel e avaliativo, que trabalha em pares de opostos e tem apenas um
objetivo: a satisfação e o engrandecimento do indivíduo centrado
em si. Este tipo de conhecimento é avaliado negativamente e deve
ser controlado, seja por meio da colocação de interesses da comu-
nidade e outros em um nível de equilíbrio (mediante ensinamento
confucionista), seja sujeitando-o aos conselhos divinatórios (por
intermédio de xamãs populares), seja por meio de sua completa er-
radicação (mediante quietismo taoísta).

A sabedoria, pelo contrário, significa "saber quando parar",


estar consciente de si mesmo num contexto mais amplo da socie-
dade e do cosmos e ter um senso inerente, aprendido ou intuitivo,
do que é correto ou adequado ao momento, qualquer que seja ele.
Isso requer uma grande sensibilidade ao contexto social (atributo
confucionista), aos movimentos do Qi no ciclo sazonal (medicina
e sabedoria popular) e ao caminho que a natureza destinou para si
(espontaneidade taoísta). Em todos os casos, a ação intencional ins-
tigada pelos anseios do ego deve ser evitada e a benevolência (ação
centrada nos outros) ou a não-ação (ação não intencional) são prefe-
ridas. A memória das atividades de auto-engrandecimento deve ser
reduzida, enquanto a atenção às circunstâncias presentes inter-rela-
cionadas deve ser incrementada. A sabedoria, seja ela socialmente
consciente e aprendida, seja internamente centrada e intuitiva, faz
com que as pessoas abandonem o ego e as ajuda a desempenhar o
esforço de equilíbrio de ser humano em um universo altamente in-
ter-relacional e centrado no processo.

mento para formar um indivíduo e se dispersam novamente na morte: po retornando para a terra
por meio do funeral do corpo, hun retornando ao céu por meio da instalação do falecido como
um ancestral.
LIVIA KOHN-
-=--=
-- 93

Essa distinção entre conhecimento consciente e sabedoria in-


tuitiva é uma noção familiar a outras religiões, nas quais o conheci-
mento é associado à prática e a sabedoria aos aspectos espirituais da
vida. Entretanto, o que é específico do entendimento chinês com re-
lação a essa distinção é a noção de que o conhecimento tende a ser-
vir ao self, enquanto a sabedoria leva ao desapego de si, e que o desa-
pego de si é sempre preferível a qualquer forma de individualidade.
Em outras tradições, tanto o conhecimento quanto a sabedoria são
colocados a serviço do self, a última permitindo níveis mais elevados
e espirituais de "auto-realização" do que o primeiro, mas sem negá-
lo ou destruí-lo. A concepção chinesa, favorecendo a harmonia e
pensando em processos energéticos inter-relacionados mais do que
em substâncias e indivíduos, nada vê sobre o "si-mesmo" que o reco-
mende e, em última instância, enxerga as categorias pessoais de um
modo assaz negativo. Em outras palavras, a afirmação da vida huma-
na, no contexto do universo mais amplo significa, portanto, a nega-
ção das formas pessoais de existência individual e de auto-realização.

Em resumo, a condição humana na religião chinesa é carac-


terizada por um esforço contínuo de equiparar a evolução sempre
mutável das circunstâncias e fatores nos planos individual, social
e natural. É um ato progressivo de equilíbrio, longe da acumulação
estática e egoísta, no sentido de uma interação suave com os de-
mais, com a natureza e com o Tao. O cosmos, a sociedade e o indi-
víduo, entendidos como as três dimensões centrais da vida, podem
e vão viver em perfeita harmonia, com a condição de que todos
realizem sua parte — sendo indivíduos, mas interativos; conscien-
tes, mas sábios; humanos, mas não autocentrados. Como resultado,
isso demanda categorias de comparação que levem em considera-
ção os diferentes níveis de vida e sejam altamente conscientes da
interação e do papel da mente humana. Essas idéias não podem
ser facilmente relacionadas com as noções ocidentais de uma dei-
dade totalmente transcendente, de um "eu" substancial ou de uma
distinção rígida entre corpo e mente, e qualquer tentativa de apli-
car estes conceitos ocidentais pode gerar confusão e levar a uma
desvalorização da cultura chinesa. O mesmo pode ser dito quanto
94= --- RELIGIÃO CHINESA

à ótica eminentemente negativa do budismo com relação à condi-


ção humana, a qual não pode ser aplicada de maneira frutífera ao
caso chinês: o que quer que não seja, é por definição "não", e dessa
forma, não é de interesse para uma cultura que vê os processos da
vida e a interação de uma maneira afirmativa e como centrais para
a condição humana.
3
IGNORÂNCIA SEM INICIO
Um ponto de vista budista sobre a condição humana

Malcolm David Eckel


com John J. Thatamanil

3.1. Introdução

A tradição budista oferece muitas possibilidades para um estu-


do comparativo das abordagens religiosas da condição humana. Se
você pensa que o maior problema na vida humana é simplesmente
a ignorância, os budistas têm muita coisa a dizer sobre os mal-en-
tendidos que levam as pessoas a um ciclo perpétuo de desejo, frus-
tração e morte. Se você preferir centrar o foco na possibilidade de
uma ordem moral, com suas regras e obrigações concomitantes, a
visão budista de lzarma e responsabilidade moral tornam atraentes
pontos de contraste e comparação. Se você acha que o problema da
vida humana reside na sua fragilidade ou contingência, os budistas
têm muito a dizer sobre a impermanência e a qualidade condicio-
nada da existência humana. Se você preferir abordar a característica
do humano como impureza, doença ou desequilíbrio, os budistas
podem lhe contar muitas coisas sobre as maneiras de curar seus ma-
les, remover as impurezas da mente, ou procurar equilíbrio entre os
extremos. Se você preferir abordar a condição humana por meio das
suas possibilidades em vez das dificuldades, os budistas podem lhe
contar muitas coisas sobre as possíveis metas da vida humana, va-
riando de um entendimento clássico do nirvana como cessação do
desejo às visões de Mahayana do Vazio e da Terra Pura. O problema,
frente a essas ricas possibilidades, é saber por onde começar.
Em deferência à tradição budista vamos começar pelo ponto
em que os próprios budistas consideram ser o início. Esse início não
é o momento da criação ou o começo do tempo. Autores budistas
96 - UM PONTO DE VISTA BUDISTA

não se preocupam muito com a origem do cosmos ou mesmo da


própria vida humana. O início que eu tenho em mente é o da tra-
dição budista, o momento em que Siddhârtha Gautama encontrou
cinco de seus amigos no Deer Park em Sarnath e relatou como se
tornou um Buda. As narrativas tradicionais sobre esse evento na
vida do Buda costumam apresentar uma das mais básicas e autoriza-
das afirmações doutrinais da atitude budista em torno da condição
humana. Eu vou começar com um relato dessa fórmula doutrinal,
depois eu irei recuar e considerarei as implicações das atitudes bu-
distas sobre a vida para nosso projeto comparativo sobre a condição
humana, não meramente para complementar ou modificar a cres-
cente lista das "categorias vagas", mas para refletir, a partir da pers-
pectiva budista, sobre o que constitui uma categoria útil no estudo
comparativo da religião.

3.2. Primeira evidência da doutrina


— As quatro nobres verdades

A tradição canônica budista fornece o seguinte relato do pri-


meiro sermão' do Buda:
Assim ouvi. O Abençoado estava vivendo no Deer Park em Isipatana ("O
reduto dos profetas") perto de Bãrânasi (Benares). Lá, ele se dirigiu ao
grupo de cinco monges:
"Monges, há dois extremos que não devem ser praticados por quem já
se afastou da vida mundana. Quais são eles? Há uma devoção de entrega
aos prazeres dos sentidos, que é inferior, comum, a maneira das pessoas
comuns, indigna e sem valor; e uma devoção para a automortificação,
que é penosa, indigna e sem valor.
Evitando esses dois extremos, o Tathâghata realizou o Caminho do Meio:
ele dá visão, oferece conhecimento e leva à tranqüilidade, ao insight, à
iluminação e ao Nirvana.
A Nobre Verdade do sofrimento (dukkha) é esta: o nascimento é sofri-
mento; o envelhecimento é sofrimento; a doença é sofrimento; a morte
é sofrimento; tristeza e lamentação, dor; pesar e desespero são sofrimen-

'Samyutta Nikaya 56.11. A tradução é citada de Walpola Rahula, What the Buddha Taught, 2°
edição (New York: Grove Weidenfeld, 1974), pp. 92-94.
MALCOLM DAVID ECKEL 97

tos; a associação com o desagradável é sofrimento; a dissociação do agra-


dável é sofrimento; não adquirir o que deseja é sofrimento — em suma,
os cinco agregados do apego são sofrimentos.
A Nobre Verdade sobre a origem do sofrimento é esta: é essa sede (forte
desejo) que produz o re-existir e o re-tornar-se, ligada à cobiça desenfrea-
da. Ela encontra novo deleite ora aqui, ora ali, a saber, sede de prazeres
dos sentidos, sede de existir e de tornar-se; e sede de não existir (auto-
aniquilamento)...
A Nobre Verdade do Caminho que conduz à Cessação do sofrimento
é isto: é simplesmente o Nobre Caminho Óctuplo, a saber, visão certa;
pensamento certo; fala certa; ação certa; sustento certo; esforço certo;
atenção certa; concentração certa...
Enquanto minha visão do verdadeiro conhecimento não foi totalmente
clara nesses três aspectos e nesses doze constituintes,' relativos às Quatro
Nobres Verdades, eu não afirmei ter realizado a Iluminação perfeita que
é suprema no mundo com seus deuses, com seus Mãras e Brahmas, no
mundo com seus reclusos e brâmanas, com seus príncipes e homens... E
uma visão do verdadeiro conhecimento surgiu assim em mim: a entrega
do meu coração é inatacável. Este é meu último nascimento. Agora não
existe mais re-tornar-se (renascimento)."
Isso foi o que o Abençoado disse. O grupo de cinco monges ficou con-
tente, e eles se regozijaram em suas palavras.

Esse sumário básico da iluminação do Buda é feito quase sob


medida para uma investigação comparada da condição humana. Ele
começa com a afirmação sobre a natureza do sofrimento, que apregoa
que o sofrimento tem uma origem e uma cessação, indicando que
existe um caminho que leva o sofrimento a um fim. O texto também
mostra a estreita conexão entre a concepção budista tradicional da
condição humana e a doutrina indiana da transmigração ou renas-
cimento. Sede ou desejo ardente produz nova existência e retorno.
O próprio Buda, ao compreender e promulgar sua compreensão das
Quatro Nobres Verdades, foge do processo de retornar-se. Sua pai-
xão se foi, ele não renasce mais, ele atingiu o nirvana.

2 0 texto explica que com relação às Quatro Nobres Verdades, o Buda compreendeu a verdade
em si, que se deve realizar uma determinada ação de acordo com essa verdade, e que ele mesmo
tinha realizado essa ação.
98:
-----
----- UM PONTO DE VISTA BUDISTA

Analisando esses conceitos doutrinais mais profundamente,


é tentador perguntar como o processo de morte e renascimento
se iniciou: como a pessoa passa a estar na condição de sofredor?
Uma resposta para essa questão pode ser encontrada elaboran-
do-se a segunda das Quatro Nobres Verdades. De acordo com o
sumário padrão páli da seqüência de doze partes da Originação
Dependente (paticca-samuppãda), a ignorância (aviljã), promove a
volição (samkhãra), a vontade promove a consciência (vitirlãna), a
consciência promove os fenômenos mentais e físicos (nãrnarúpa),
os fenômenos mentais e físicos promovem os cinco sentidos
agregados (sal-ãyatana), os cinco sentidos agregados promovem
a sensação (phassa), a sensação promove o sentimento (vedanâ), o
sentimento promove o desejo ardente (tanhã), o desejo ardente
promove o apego (upãdãna), o apego promove o retorno (bhava),
o retorno promove o nascimento (jãti) e o nascimento promove
a decadência e a morte (jarãmarana). Não seria errado interpretar
essa seqüência de causas como um sinal de que a raiz das causas do
sofrimento é a ignorância. Ignorância é a instância primeira se al-
guém deseja desenrolar essa cadeia e escapar dos seus efeitos. Mas
os budistas insistem que a seqüência da Originação Dependente
é menos um processo linear que um círculo. Ignorância promove
outros elementos da cadeia e eles tornam a promover ignorância.
Quando pediam para os budistas indianos explicarem qual era a
origem primordial do sofrimento, eles simplesmente respondiam
que era a "ignorância sem início".

A noção da ignorância sem início levou a tradição budista a


evitar especulação desnecessária sobre a origem das coisas e en-
focar, em vez disso, em como fazê-las melhor. Há uma história
bem conhecida nos cânones páli sobre o discípulo chamado
Malunkyaputta, que se aproximou do Buda e fez-lhe dez per-
guntas: O universo é eterno? O universo não é eterno? O uni-
verso é finito? O universo é infinito? A alma é idêntica ao
corpo? A alma é diferente do corpo? O Buda existe após a mor-
te? O Buda não existe após a morte? Ele tanto existe como não
existe após a morte? Ele nem existe nem não existe após a mor-
MALCOLM DAVID ECKEL 99

te?3 Sem dar respostas diretas, o Buda respondeu com uma estória:
— Suponha que alguém seja ferido por uma flecha envenenada
e ao trazerem o médico ele dissesse: "Eu não permitirei que esta
flecha seja arrancada antes que você me diga qual a casta da pessoa
que me acertou, que altura tinha, qual a cor de sua pele, que arco
ele usou para atirar, qual a qualidade da corda do arco, de que era
feita a flecha, e assim por diante. Se ele insistisse morreria antes
de receber todas as respostas. O mesmo é verdade nas questões de
Mâlunkyaputta sobre coisas como a finitude do universo. Elas não
são úteis para a tarefa a ser feita, de arrancar a flecha do sofrimen-
to aplicando os insights das Quatro Nobres Verdades ou o Nobre
Caminho Óctuplo".4

Um modo mais útil de explorar as categorias doutrinais das


Quatro Nobres Verdades é esmiuçar o conceito do sofrimento. Uma
análise comum do conceito do sofrimento (encontrada no páli
Abhidamma e no sânscrito Abhidharma) divide-o em três catego-
rias separadas: o sofrimento que é nitidamente sofrimento (dukkha-
dukkha), o sofrimento que é próprio da mudança (viparinãrna-
dukkha), e o sofrimento que consiste nos estados condicionados
(sainkhãra-dukkha). Os dois primeiros tipos de sofrimento são
fáceis de interpretar. A primeira categoria refere-se à sensação ou
sentimento (vedanã) cuja identidade é clara: envolve dor física ou
mental. O segundo tipo de sofrimento é a sensação de perder algo
prazeroso. A tradição do Abhidharma fala-nos que o terceiro modo
de sofrimento é mais sutil e pode ser percebido claramente apenas
pelos santos:
O homem não sente um cílio quando este está na palma de sua mão,
mas quando ele entra nos olhos causa desconforto e dor. O homem tolo
é como a palma da mão: ele é tão insensível ao sofrimento dos estados

3 "Cula-Malunkya Sutta", in Majjhima Nikaya 63. Um resumo da estória encontra-se em Rahu-

la: pp. 12-15.


40bserve que o exemplo da flecha enfoca uma situação no passado que causou sofrimento no
presente, enquanto as perguntas de Malunkyaputta enfocam o futuro. A sugestão é de que qual-
quer forma de especulação, tanto sobre o passado quanto sobre o futuro, podem distrair a pessoa
do desafio de remover o sofrimento do presente.
-- UM PONTO DE VISTA BUDISTA
=----
100--

condicionados quanto a um cílio. O sábio é como o olho: ele é profunda-


mente perturbado por este [sofrimento].,

Para aqueles que ainda não estão incluídos entre os santos, os


textos apenas sugerem o que eles querem dizer sobre o sofrimento
dos estados condicionados. No comentário sobre O tesouro do Abhi-
dharma (Abidharrnakoa). Vasubandu disse que mesmo que a sen-
sação não esteja carregada de dor ou prazer, ela continuará sendo
sofrimento, porque ela passa: "Se algo não é permanente pelo fato
de ser condicionada causalmente, é sofrimento".6
Para entender que os estados condicionados significam sofri-
mento, ajuda designar os três tipos de sofrimento na lista das três
características (lakkhana) da existência: tudo é sofrimento (sabbarn
dukkham), tudo é impermanente (sabbarn aniccam), nada tem self
(sabbam anattã).7 As duas primeiras características correspondem
aos primeiros dois tipos de sofrimento: uma diz respeito às sensações
diretamente dolorosas. A outra diz respeito às sensações agradáveis
que se tornam penosas depois de passarem. A terceira característi-
ca leva-nos a um outro reino do pensamento budista. Não somente
as coisas causam sofrimento agora ou no futuro, elas não são o que
parecem ser: elas não têm identidade ou self (ãtman). Aqui a análise
da Primeira Nobre Verdade converge com a análise da Segunda. A
cadeia duodécupla da Origem Dependente começa com a ignorân-
cia. No que o homem é ignorante? Certamente é importante evitar
o erro de pensar que alguma coisa é permanente, mas a mais impor-
tante e mais fundamental forma de ignorância é o erro de atribuir
um self às coisas, incluindo, naturalmente, a si mesmo.
O que significa dizer que as coisas não têm self? Nós encon-
tramos uma consideração útil sobre esse conceito no texto semi-

5A citação do versículo encontra-se em Abhidharmakosabhasyam of Vasubandhu, editado por

P.Pradhan, Tibetan Sanskrit Works Series 8 (Patna: K.P.Jayaswal Research Institute, 1975), referente
versículo 6.3. É também citado por Candrakirti em Prasannapada, editado por L.de La Vallée Poussin,
Bibliotheca Buddhica (St. Petersburg, 1903-13), p. 476. A mesma comparação aparece no comentá-
rio sobre o Yogasutra 2.15. Cf. The Yoga System of Patahjali, traduzido por James Haughton Woods,
Harvard Oriental Series 17 (Cambridge: Harvard University Press, 1927), p.132.
6 Pratyayabhisamskaranad yad anityam tad duhkham: comentário de vs.6.3.

7 Anguttara Nikaya 1, p. 286.


MALCOLM DAVID ECKEL 101

canônico de páli conhecido como As perguntas do Rei Milinda.8 Em


um dos capítulos, um rei chamado Milinda (em grego: Menander),
localizado em algum lugar do que é hoje o Afeganistão, perguntou
ao monge budista chamado Nãgasena o que significava para ele o
não-self. Nãgasena respondeu com outra pergunta: "o rei veio a pé ou
de carruagem?" O rei disse que veio de carruagem. Nãgasena per-
gunta: "a que se refere a palavra 'carruagem'? Ela se refere às rodas, ao
chão, às rédeas, ou a alguma outra parte da carruagem?" O rei disse
que a palavra 'carruagem' é uma designação convencional (vohãra)
ou termo (pariliatti) que depende de (upãdãya) todas essas partes
juntas. Nãgasena repete assim as palavras do rei e diz que a palavra
"Nãgasena" também é uma designação convencional que se refere a
componentes diferentes e mutáveis de sua personalidade. Não exis-
te um particular e permanente "self" chamado "Nãgasena".
Aqui, na forma rudimentar, temos os componentes da clássi-
ca teoria do budismo do não-self. A investigação começa com uma
pergunta referente à palavra: existe uma realidade permanente, uni-
ficada a qual uma palavra como "carruagem" ou "Nãgasena" possa se
referir? A resposta é não, por duas razões. Primeiro, as duas palavras
carruagem e Nagasena são entidades complexas: elas consistem em
partes. A combinação (sarnghâta) que resulta dessas partes não cons-
titui em si uma entidade real. As palavras não se referem a nenhu-
ma parte individualmente e a "combinação" das partes é uma ela-
boração imaginária que "depende" (upãdãya) das partes individuais.
Segundo, as partes mesmas estão em constante mutação. Embora
possa parecer que exista alguma continuidade na personalidade de
Nãgasena, as partes da personalidade, como as partes da carruagem,
estão constantemente em fluxo. A palavra Nãgasena não se refere
apenas à uma única elaboração imaginária no espaço, mas à uma
elaboração imaginária no tempo: o "fluxo" (santãna) da personalida-
de de "Nãgasena". Seria correto dizer, então, que a teoria do não-self
envolve a teoria da linguagem encaixada numa teoria da realidade.
Para ser literalmente verdadeiro, as palavras devem se referir às coi-

'The Questions of King Milanda, traduzido por T.W.Rhys Davids (1890-94; edição reimpressa.
New York: Dover Publications, 1963).
-=--
--
102- UM PONTO DE VISTA BUDISTA

sas permanentes e unificadas, mas como as "coisas" estão sempre em


constante fluxo, não há coisas permanentes nem unificadas. Esse
ponto é expresso ao se mostrar que palavras são simplesmente uma
forma de uso convencional (vohâra), convenção (sammuti), ou desig-
nação (NI-Viciai), mas não se referem à realidade definitiva (paramat-
tha) das coisas. Em outras palavras, existem duas verdades. A verda-
de convencional e a verdade definitiva, e as palavras pertencem ao
reino da verdade convencional.
Alguém com espírito argumentativo sobre esse ponto poderia
perguntar se as palavras do parágrafo precedente são convencionais
ou definitivas e, também perguntar, se essas palavras são simples-
mente convencionais, como elas podem expressar urna verdade
definitiva. As perguntas do Rei Milinda não se referem diretamen-
te a essas questões, mas sugerem uma resposta desenvolvida mais
extensamente nos textos escritos posteriormente. Palavras que ex-
pressam a distinção entre as duas verdades pertencem, como todas
as palavras, ao reino da verdade convencional, mas elas podem ter
uma função útil para remover conceitos errôneos sobre a natureza
da realidade. Os escritores Mahãyâna costumam dizer que as pala-
vras funcionam como ilusões para remover outras ilusões, e as maio-
res ilusões são aquelas que também removem as ilusões sobre elas
mesmas. A força motriz por trás desse processo de desilusão não é
mera curiosidade sobre a natureza das coisas. O processo cresceu a
partir da análise tradicional da origem do sofrimento mapeado pela
corrente da Origem Dependente. Se a raiz das causas do sofrimen-
to é a ignorância, remover a ignorância é o passo mais básico que
a pessoa pode dar na direção da cessação do sofrimento. Sabedoria
(parillã), o entendimento do não-self, remove a causa do sofrimento
e leva eventualmente à cessação do sofrimento, que é conhecida na
tradição budista como nirvana.
Nem todos os budistas estão de acordo com essa análise do
não-self. Ela veio da combinação das últimas fontes dos cânones páli,
com alusão à teoria das duas verdades da Madhyamaka, para ilumi-
nar algumas das suas mais importantes implicações. O vocabulário
representa a condição da tradição nas fontes páli e sânscrito sobre o
MALCOLM DAVID ECKEL 103

período zoo d.C., quando o budismo se tornou bem estabelecido em


todo o sudoeste da Ásia, e foi estabelecida a primeira conexão budis-
ta importante entre Índia e China. A divulgação do budismo para o
Japão e Tibete teve de esperar outros seiscentos anos, assim como
muitos desenvolvimentos filosóficos importantes na Índia e China.
Mas não é exagero dizer que muitos budistas cujas tradições remon-
tam a esse período reconhecem a importância dessa complexidade
de temas: sofrimento, impermanência, ignorância, desejo ardente,
não-self, sabedoria, nirvana. Eu suspeito que eles chegariam a admi-
tir que a coisa mais importante que uma pessoa poderia saber sobre a
condição humana — seria reconhecer a profundidade da dificulda-
de na vida humana e se preparar para mudá-la — é a idéia do não-self.
A importância da doutrina do não-self não torna o processo de
comparação um assunto fácil. O budismo oferece muitos conceitos
úteis que levam a pensar sobre vários aspectos da condição humana,
mas na essência da tradição budista repousa um conceito que outros
acham enigmático e problemático. De fato, os budistas pretendem
que esse conceito seja enigmático e problemático. Eles põem em
prática a doutrina do não-self como um princípio crítico para mui-
tas das categorias que outras tradições religiosas prezam. Quando o
filósofo hindu Udayana bateu com seu punho na porta do templo e
disse a Deus: "embriagado com o vinho de sua própria natureza divi-
na, você me ignora, mas quando os budistas estão aqui, a sua existên-
cia verdadeira depende de mim",9 ele não estava fazendo um insulto
gratuito. Ele havia se envolvido numa amarga disputa com budistas
sobre a existência de Deus e era um dos principais defensores da teo-
logia hindu contra a crítica dos budistas. O budismo na Índia usava
a doutrina do não-self, rejeitando o valor epistêmico da escritura e da
importância da doutrina do self nas Upanishades. A doutrina baseia-
se precariamente no estabelecimento da teologia comparativa.
Um modo de lidar com a dificuldade da doutrina do não-self se-
ria seguir o exemplo que Nomanul Haq nos deixou na sua resposta

9 Aisvaryamadamatto 'si mam avafflaya vartase / upasthitesu bauddhesu madadhina tava sthi-
tih, apud. George Champarathy, An Indian Rational Theology: Introduction to Udayana's Nyayaku-
sumahjali (Viena: De Nobili Reearch Library, 1972), p. 28.
-------- UM PONTO DE VISTA BUDISTA
104-

à posição de Vivelzaciidãmani. Dr Haq disse que a critica Vedãnta da


separação do divino-humano "poderia ser considerada esquiva, pura
e simples" e ele acrescentou uma nota de advertência sobre o desti-
no de al-Hallãj, com receio de que negligenciássemos a importância
de tais acusações. É possível que a doutrina do não-self coloque o que
os cristãos certa vez chamaram com orgulho de "escândalo" teoló-
gico sobre o qual outras tradições religiosas não tiveram escolha a
não ser tropeçar. Eu estou mais inclinado, portanto, a seguir uma di-
ferente estratégia comparativa: perguntar se a doutrina budista nos
permite olhar de um modo novo as tradições que estudamos, vendo
nelas coisas que são genuinamente significativas, mas que não nos
afetariam como tendo a mesma importância se não as considerás-
semos através dos olhos do budismo. Os budistas parecem estar nos
dizendo que a coisa mais importante para os seres humanos enten-
derem a si próprios não é o que eles são, mas sim o que não são.
Essa pode ser uma pergunta útil para antecipar a discussão sobre a
condição humana?
Em algumas considerações comparativas, a doutrina budista do
não-self pode suscitar importantes repercussões de tradições religio-
sas do Ocidente. No verão de 1981, fui solicitado a apresentar o Dalai
Lama em uma serie de palestras de filosofia budistas no Emerson
Hall, em Harvard." Para preparar a cena, eu contei a historia da ins-
crição na entrada norte do edifício. Foi-me dito que quando o edifí-
cio foi originalmente construído, o departamento de filosofia pediu
ao arquiteto que inscrevesse no portal as seguintes palavras: "O ho-
mem é a medida de todas as coisas". Durante o verão, quando apenas
turistas e administradores são vistos em Harvard Yard, o presidente
mudou a inscrição para: "O que é homem para dele te lembrares?"
(Salmo 8,4). Para transmitir a força dessas palavras para o Dalai Lama,
traduzi-as para o tibetano em palavras que poderiam ser assim ditas:
"A que você está se referindo quando usa a palavra 'homem'?" A pala-
vra que usei para "homem" (gang zag, sânscrito pudgala) era um meio
para trazer de volta a controvérsia budista sobre um aspecto da per-

10As palestras foram publicadas em His Holiness the Datai Lama of Tibet, Tenzin Gyatso, The

Dalai Lama at Harvard, traduzido e editado por Jeffrey Hopkins (lthaca: Snow Lion, 1988).
MALCOLM DAVID ECKEL 105

sonalidade conhecido como pudgala (comumente traduzido como


"pessoa", mas literalmente significa "homem") que alguns budistas
pensam poder continuar existindo na próxima vida. A doutrina da
pudgala tem desde então deixado de ser vista como uma legítima op-
ção na filosofia budista, mas sua memória sobrevive como um sím-
bolo do clássico erro a ser evitado quando se pensa sobre a natureza
do self. Isto é, como já era, a heresia fundamental da tradição budista.
A pergunta "o que é o homem para dele te lembrares?", especialmen-
te quando é usada para desafiar a asserção dos filósofos sobre a im-
portância do "homem", estabelece uma estranha ressonância com a
questão básica budista sobre o uso da palavra "homem": "Ao que você
estaria possivelmente se referindo quando usa a palavra 'homem'?
Qual é a relação entre essas duas perguntas? As duas pedem a
mesma coisa? É muito difícil de imaginar, do ponto de vista budis-
ta, o que pode ser considerado como uma resposta afirmativa a essa
pergunta. Não existe definitivamente "coisa" para essas duas pergun-
tas. Mas a justaposição delas possibilita algumas linhas úteis de in-
vestigação comparativa. Existem negações comparáveis em outras
tradições? Se existem, o que elas significam? Nomanul Haq nos deu
dois fascinantes exemplos da negação em narrativas islâmicas sobre
a condição humana. O shahâcla começa com uma partícula negativa:
"Não existe deus, mas Deus". Sejam o que forem os seres humanos,
eles devem saber que não são Deus. Dr. Haq ajudou-nos a entender
como a negação do shahâda ecoa outra partícula negativa no Pacto
Primordial entre Deus e os seres humanos: "E quando teu Senhor
tirou, dos lombos dos filhos de Adão, seus próprios descendentes,
e perguntou-lhes: 'Não sou vosso Senhor?' Sim, sim, responderam,
somos testemunhas" (Corão 7,172-73). O Vivekacüdãmani (cita-
do por Francis Clooney) é tão remoto quanto o mundo teológico
do Corão, mas ele também começa com negociação fundamental:
"[Deus é] o objeto da doutrina de todo o Vedãnta, e ele não é um obje-
to" (sorva-vedãnta-siddhãnta-gocaram tam agocaram)." A distinção
entre gocaram (`objeto') e agocaram (`não-objetd) estabelece a dialé-

"Vivekacududamani of Sri Sankaracarya, traduzido por Swami Madhavananda (Calcutta: Ad-


vaita Ashrama, 1992).
-=-
---
106- - - UM PONTO DE VISTA BUDISTA

tica que eventualmente reconhece a consciência não-dualista (ad-


vaita) de Brahman. Lívia Kohn poderia ter chamado nossa atenção
para a linha inicial do Tao-Te King na sua dissertação sobre a filosofia
chinesa. Ela também começa com uma negação bem conhecida: "O
Caminho que pode ser contado não é o Caminho eterno".
São essas negações meramente acidentais, ou elas gozam em
comum de uma significante função comparável? Um fenomenólo-
go da religião poderia dizer que a força negativa dessas declarações
está longe de ser acidental. O sagrado manifesta-se diferentemente
do profano e a mais fundamental forma de consciência religiosa é
a negação diferenciada, o senso de que o sagrado ou santo é consi-
derado separado de outros, como não sendo o profano. Mesmo as
tradições não dualistas não são duais em oposição às dualidades do
entendimento comum. Mas não é necessário assumir o caráter de
um fenomenólogo para reconhecer que há alguma coisa significa-
tiva nessas negações. As tradições que fluem dessas afirmações cul-
tivam uma consciência de que a condição humana é insatisfatória
e, ao mesmo tempo, abrem uma certa condição para a possibilidade
da transcendência. Dizer "não há um deus, mas Deus" sugere o jul-
gamento radical para qualquer inclinação humana a fim de elevar
alguma coisa (inclusive a nós mesmos) ao status de Deus, mas tam-
bém sugere que "Deus está em seu paraíso — Tudo está bem com o
mundo". Dizer que o "objeto" da Vedãnta é "não-objeto", nega o uso
comum da linguagem e o conceito que materializa o divino e tenta
trazê-lo para dentro da esfera da consciência humana comum; mas
as palavras também sugerem que Deus não é objeto, mas sujeito, isto
é, que Deus é idêntico ao entendimento individual próprio. No caso
do budismo a doutrina do não-self criticou toda tendência humana
no que se refere ao apego às coisas deste mundo, mas também inicia
a possibilidade de liberdade, da cessação do sofrimento e nirvana.
Saber que não existe self é ser livre para mudar e descartar os hábitos
da mente e coração que levam ao ciclo do renascimento.
Nas sessões do seminário, freqüentemente temos nos pergun-
tado se a condição humana é melhor definida como um dilema no
qual a vida religiosa começa ou como o objetivo na qual ela termina.
MALCOLM DAVID ECKEL 107

Nossa resposta inicial a esta questão era dizer que o primeiro ano
do seminário seria relativo aos inícios e manteria o foco no dilema
humano, mais do que na possibilidade humana. Mas mostrou-se ser
impossível deixar de lado considerações sobre o esforço humano —
impossível, em outras palavras, falar o que são os seres humanos sem
falar do que eles esperam se tornar. Eu me pergunto se isso não seria
uma característica fundamental do que nós chamamos de "condição
humana". Poderia ser que a condição humana fosse precisamente
definida nesse ponto de equilíbrio, onde se está consciente do que
não se é, mas que ainda não se tornou o que se espera ser? Sendo as-
sim, isto se aproxima do que os budistas entendem por consciência
do não-self, a consciência que alguém não está preso pelo que foi e
está livre para evoluir para alguma coisa nova.

3.3. A forma da narrativa budista — O caminho do meio


Na minha apresentação para este seminário no semestre de
outono, eu argumentei que a investigação doutrinal das atitudes
budistas em torno da condição humana seria apenas um ponto de
partida. A doutrina tem seu valor, mas a tradição budista revela es-
sas nuanças mais plenamente nas histórias budistas sobre seus san-
tos e, finalmente, nas histórias que eles contam sobre eles mesmos.
Para indicar o que essa mudança da atenção poderia significar, não
é necessário olhar para além do texto do primeiro sermão de Buda.
O sermão não é simplesmente um discurso doutrinário: ele relata
uma história. Ou melhor, ele fala de uma série de histórias, ligadas
de forma seqüencial e encaixadas entre si. A estrutura da narrativa é
fornecida pela transmissão oral embutida dentro da formula: "Assim
eu ouvi". Escutar as palavras do texto (em vez de lê-las no papel) é
participar no ato da "tradição", o ato de ouvir e transmitir as palavras
do mestre. Dentro dessa estrutura repousa a história do encontro
do Buda com os cinco monges, pregando o sermão, e a resposta dos
monges às suas palavras. No sermão está contida a história resumida
da jornada, um "Caminho do Meio" que leva à experiência do nirvana.
O que os budistas entendem como Caminho do Meio? O tex-
to explica que ele é o abandono de dois extremos: o extremo entre
108 UM PONTO DE VISTA BUDISTA

autotolerância e autonegação. Por trás da fórmula, baseia-se a histó-


ria sobre a disciplina que levou Siddhãrtha Gautama a se tornar um
Buda." Quando o futuro Buda deixou o palácio e veio a ser um re-
nunciante, ele praticou uma disciplina de extrema ascese e de mor-
tificação. Como diz o sermão, ele achou essas práticas "dolorosas,
não dignas e não proveitosas": elas não o levaram ao objetivo que ele
estava buscando. Então ele aceitou o alimento de uma jovem mulher
e percebeu o equilíbrio entre afirmação e negação. De acordo com
a tradição budista, sua meditação floresceu e ele atingiu a ruptura
meditativa que constituiu seu "despertar" (bodhi), o despertar que foi
expresso nas Quatro Nobres Verdades. Dessa narrativa fundamental,
o conceito de Caminho do Meio foi levado para muitas outras áreas
da vida e do pensamento budista. Uma importante escola filosófica
do Mahâyâna é chamada de Madhyamaka ou Escola do "Meio", não
só porque visa um equilíbrio na disciplina mas porque visa um equi-
líbrio cognitivo entre excessivas negações e excessivas afirmações.
De acordo com o Madhyamaka, a completa negação da realidade das
coisas leva a um niilismo estéril, e a afirmação completa leva ao fa-
talismo paralisante. Se a verdade não está em nenhuma delas, ela se
encontra no afastamento dos dois extremos.
A idéia de "caminho" difundiu-se mais profundamente na ci-
vilização indiana. Os budistas adotam o conceito geral indiano de
sarrtsãra como um "passeio" pela floresta ou pelo oceano do renas-
cimento. O desafio da vida religiosa é "atravessar" (tr) o oceano do
renascimento para chegar a salvo na outra margem. O salvador,
como a deusa Târâ, é alguém que ajuda na travessia, e um bodhisat-
tva é freqüentemente definido como alguém que já realizou a "tra-
vessia" e retornou para "levar os outros na travessia"» Quando o
sarnsãra é visualizado como floresta ern vez de oceano, o desafio é

"Edward J. Thomas, The Life of the Buddha as Legend and History, 3. edição (London: Rou-
tledge and Kegan Paul, 1949), p. 62.
13 Por exemplo o Madhyamakahrdayakarika de Bhavaviveka 1.8.: "[O bodhisattva] vê que o
olho da sabedoria do mundo inteiro foi escondido e quando ele mesmo atravessou o terrível in-
ferno do renascimento, fez com que [o mundo] também atravessasse." (lokam alokya sakalam
prajfialokatiraskrtam / samsaramedhyapatalat tirtva tarayitum svayam). O sânscrito é citado de
V.V.Gokhale "Madhyamakahrdaya Tarkajvala", Miscellanea Buddhica, editado por Chrlindtner
(Copenhague, 1985), p.88.
MALCOLM DAVID ECKEL 109

achar a rota adequada, um processo que é intimamente relaciona-


do com achar um guia (nãyaka) e desenvolver a visão para encon-
trar o próprio caminho. Um dos primeiros textos do Mahãyâna, o
Ratnagunasarncayagãthã, deu um vívido retrato do relacionamento
entre o caminho e a clara visão:
Como pode um grande grupo de pessoas, que está cego desde o nasci-
mento, não tendo guia, e não conhecendo o caminho, sempre achar seu
caminho dentro da cidade? Sem sabedoria, as cinco perfeições são cegas,
não têm guia e não podem alcançar a iluminação.
Quando eles alcançam a sabedoria, eles recebem a visão e podem ser
chamados pelo nome ["perfeição"]. Eles são como uma pintura que está
totalmente terminada, exceto pelos olhos: [o pintor] não recebe o paga-
mento até pintar os olhos»

Aqui a sabedoria funciona como um guia: ela ajuda a achar o


caminho e evita que outras virtudes budistas se percam no cami-
nho. Sabedoria é também como o ato final na pintura de uma divin-
dade: acrescentando os olhos na pintura, ela ganha vida e o pintor
recebe seu pagamento.
Howard Nemerov descreveu uma metáfora como "a forma
compacta, alusiva de uma história ou fábula"» As metáforas budis-
tas não são exceções. Elas relatam uma história sobre o caminho para
a condição de Buda e sobre a disciplina usada para mapear o cami-
nho. Dizer que a sabedoria é um "guia" para o caminho, por exemplo,
sugere que a prática é gradual e se move através de series de estágios.
Ela também sugere que o entendimento apropriado para um estágio
pode não ser apropriado para outro. Falar sobre sabedoria como for-
ma de visão (darana) sugere uma relação hierarquizada entre ver e
ouvir. Na filosofia budista (que também pode ser entendida como
"visão"), existe uma preferência para a visão direta e analítica em
relação à experiência de ouvir o ensinamento de outro. Na narra-

"Os versículos em sânscrito encontram-se em Prafha-paramita-ratna-guna-samcaya-gatha,


editado por Akira Yuyama (Cambridge: Cambridge University Press, 1976), p. 35. Observe que o
versículo citado do Bhavaviveka também começa com uma imagem de cegueira.
"Howard Nemerov, "On Metaphor", A Howard Nemerov Reader (Columbia: University of
Missouri Press, 1991), p. 232.
110 UM PONTO DE VISTA BUDISTA

tiva do primeiro sermão de Buda, o movimento de ouvir ("assim eu


ouvi") para ver ("visão, conhecimento, calma, interiorização") refle-
te uma progressão budista comum da recepção das palavras de um
mestre para o cultivo da interiorização direta.'
É útil perguntar se essas simples seqüências narrativas de se-
guir um caminho ou desenvolver uma clara visão das coisas repre-
sentam o que o lingüista cognitivo Mark Johnson chama de "a base
material do significado, imaginação e razão"." Certamente o fato
básico da condição humana é que a humanidade toda tem corpos.
Como outros pensadores em outras tradições, filósofos budistas
descrevem processos cognitivos em imagens extraídas do corpo. Sa-
ber é ir e ver. A verdade é elevada, o erro é condenado e assim por
diante. Mas essas imagens básicas corporais são difíceis de separar
de uma prática cultural mais complexa. Textos budistas geralmente
referem-se aos praticantes como iogues, e estipulações sobre a práti-
ca da filosofia são geralmente ligadas à disciplina de ioga de postura
e respiração. O processo budista do cultivo mental também pode
ser baseado na conexão simbólica entre o corpo humano e o cos-
mos. Budistas indianos compartilham a imagem geral indiana do
iogue como uma ilha de estabilidade e imobilidade em um mar de
mudanças. Templos indianos, tanto budistas quanto hindus, repre-
sentam a montanha da realidade, o palácio da divindade, e a forma
de um corpo humano. A prática da ioga pode ser entendida como
uma maneira de realizar a estabilidade da montanha e o palácio do
cosmos em um único "corpo e mente". Mesmo a imagem da ioga da
estabilidade, entretanto, é simples demais para captar a complexida-
de do Caminho do Meio. Entre outras coisas, isto contradiz a dou-
trina do não-self, que nos conta, se é que nos conta alguma coisa, que
uma tentativa de se agarrar às realidades desta vida como estáveis e
imóveis estará destinada ao fracasso. Na aplicação real, o Caminho
do Meio envolve uma série de opostos muito mais dinâmica e com-

l'Eu explorei esse assunto mais extensamente em To See the Buddha: A Philosopher's Quest
for the Meaning of Emptiness (São Franscico: Haper-Collins, 1992: edição reimpressa: Princeton:
Princeton University Press, 1994).
17Mark Johnson, The Body and the Mind: The Bodily Basis of Meaning, lmagination, and Rea-
son (Chicago: University of Chicago Press, 1987).
MALCOLM DAVID ECKEL 111

plexa, com estabilidade no meio da instabilidade, realidade no meio


do irreal e afirmação no meio da negação.
Para ilustrar esse ponto, deixem-me voltar para o trabalho do
filósofo indiano do sexto século chamado Bhãvaviveka. Ele repre-
senta a Escola Madhyamaka. ("Meio") do budismo Mahâyâna. Ele é
um seguidor de Nãgârjuna e fonte principal para discutir a condi-
ção de Buda no meu livro, To See the Buddha. Bhãvaviveka começa
a mais detalhada narrativa de sua própria filosofia com uma longa
declaração sobre a meta de sua busca filosófica. As imagens de visão
são entremeadas não somente com imagens de movimentação e es-
calada, mas com grande número de outras expressões metafóricas
da disciplina cognitiva budista.

Obter os olhos da sabedoria e nenhum outro é ver [verdadeiramente].


Uma pessoa inteligente procura o conhecimento da realidade.
Uma pessoa inteligente, mesmo cega, vê todo o universo sem obstrução.
Ela vê qualquer coisa que deseja ver, mesmo se estiver longe, sutil, ou
escondida.
Sem inteligência, mesmo [Indra] quem tiver mil olhos, é cego. Ele não
pode ver o caminho certo e errado para o céu e a libertação.
Abrir os olhos da sabedoria é evitar cair nas seis perfeições como se elas
fossem espinhos envenenados com um desejo para diferentes formas
de resultados.
Ser disciplinado nas perfeições é ser puro em três caminhos, motivado
pela compaixão e onisciência como objetivo, ainda que a mente não es-
teja fixada (sthita) nesse [objetivo].
A sabedoria é um manjar que traz satisfação, a lâmpada cuja luz não pode
ser obscurecida, os passos no palácio da libertação e o fogo como um
combustível da profanação.
Existem dois tipos de inteligência, de acordo com as duas verdades. [A
sabedoria] relativa correta tem a ver com a discriminação das coisas reais.
A sabedoria convencional preenche os pré-requisitos do mérito e co-
nhecimento, começando com generosidade, ela possibilita discriminar
as causas e características das [coisas].
Também leva seres conscientes ao amadurecimento por meio da prática
de grande solidariedade e compaixão.
A sabedoria definitiva requer a negação de toda rede de conceitos e ela
se move sem movimento no céu claro da realidade.
112 ==- UM PONTO DE VISTA BUDISTA
Ela é pacífica, diretamente experimentada, não-conceitual, imperecível,
nem uma nem muitas.
É impossível escalar a torre do palácio da realidade sem os passos da
[sabedoria] relativa correta.
Se alguém focaliza sua inteligência com a verdade relativa, então analisa
as características individuais e universais das coisas.
Uma pessoa inteligente deve se disciplinar em concentrar a mente e
também o conhecimento que vem em escutar [as escrituras] porque [o
conhecimento que vem ao escutar] é a causa para alcançar um outro co-
nhecimento.
É impossível ver uma face na água turva e turbulenta, e é impossível
[ver] realidade na mente em que falta concentração e está repleta de obs-
truções.
Quando a mente se afasta do caminho correto como um elefante, ela
deve ser ligada ao objeto [da meditação] com a corda da conscientização
e trazida lentamente sob controle com gancho da sabedoria.
Quando [a mente] está agitada, deve-se acalmá-la com pensamentos da
impermanência. Quando a atenção é muito curta, deve-se prolongá-la
praticando em um objeto mais amplo.
Quando ela está distraída, deve-se focalizá-la, considerando as causas da
distração. Quando a mente está deprimida, deve-se animá-la mostrando
os benefícios da coragem.
Quando a mente está enlameada pela paixão, ódio e desilusão, e fora de
controle, deve-se limpá-la com a água da meditação sobre os objetos im-
puros, com bondade e com origem dependente.
Quando alguém conhece isolamento, estabilidade, paz, concentração no
objeto, habilidade e flexibilidade, deve ser indiferente.
Quando a mente está concentrada, deve-se investigar com sabedoria.
Deve-se analisar se a identidade das coisas que são alcançadas conven-
cionalmente é definitiva. Se assim for, isto é realidade. Se não, a [realida-
de] deve ser buscada em [algum outro lugar]."

Bhãvaviveka viu claramente seu próprio trabalho como se-


guindo um caminho para um objetivo. Mesmo Indra, o deus de mil
olhos, não pode ver a diferença entre o caminho certo e o errado,

18 Madhyamakahrdayakarika 3.1-21. O sânscrito foi editado por Yasunori Ejima em Develop-


ment of Madhyamaka Philosophy in índia: Studies on Bhavaviveka (Tóquio, 1981). A tradução é
minha [Eckel].
MALCOLM DAVID ECKEL 113

mas o Bodhisattva que pratica o Mahãyâna e tem olhos de sabedoria


não somente vê o caminho correto, mas penetra-o sem estar pre-
so aos espinhos do desejo. Para estar no caminho correto, o Bodhi-
sattva precisa não só de visão, mas de concentração (samãdhi) para
resguardar a mente da digressão. Para que não se pense que esse
processo é fácil, Bhãvaviveka nos lembra que a mente é como um
elefante selvagem e tem de estar amarrada ao seu poste com a cor-
da da conscientização e o gancho da sabedoria. O movimento tem
lugar em todas essas imagens, ao que parece, no plano horizontal.
Ele responde à imagem da condição humana como um processo de
digressão sem finalidade e tenta dar a essa digressão direção e pro-
pósito. Superposta a essa imagem de movimento horizontal, existe
uma imagem da ascensão. Tornar-se sábio é usar as categorias da sa-
bedoria convencional para escalar a torre do palácio da realidade e
alcançar o céu claro acima.

A metáfora da visão também tem duas dimensões: o olho da


sabedoria mostra à pessoa como achar o caminho correto, mas ela
também olha para cima, dentro do céu claro da realidade no topo
da torre do templo. Aqui o propósito da disciplina do filósofo não
é simplesmente estar em outro lugar, mas remover os obstáculos
ou coberturas que obstruem os olhos, que tornam impossível ver as
coisas claramente. Os obstáculos não podem ser identificados nessa
seqüência de versos, mas a referencia à água turva ou turbulenta dá
a sugestão do que eles podem ser. Aqui a mente é como água e tem
de ser purificada removendo as coisas que a "cobrem" ou a obscure-
cem. A mesma imagem de "cobertura" reaparece nas narrativas de
Madhyamaka sobre a iluminação como a cura de uma doença dos
olhos nos quais "camadas" são removidas do olho para que a pessoa
possa ver claramente. A literatura que comenta a respeito, explica
que essas "coberturas" (ãvaratja) têm duas formas: de "profanação"
(klda) que é discutida na literatura budista tradicional (consistindo
principalmente em paixão, ódio e ignorância) e as "coberturas" que
obscurecem os objetos da cognição (jriãeya). Estas parecem ser bar-
reiras cognitivas e limitações que impedem a pessoa de experimen-
tar a onisciência do Buda.
114 -=-- UM PONTO DE VISTA BUDISTA
Como Bhãvaviveka desenvolveu esse argumento, as imagens
do sólido palácio e o olho que discrimina assumem uma aparência
diferente. A torre do palácio que aqui requer uma gradual e diligen-
te ascensão vem a ser o palácio visto em um sonho no qual o desafio
não é subir a torre, mas acordar do sonho.
Alguém que se sente sonolento e cai adormecido vê tais coisas como
homens jovens, mulheres e um palácio, mas eles não existem quando
ele acorda.
Do mesmo modo, alguém que abriu os olhos da sabedoria, interrompeu
o sono da ignorância e acordou não vê coisas como elas são vistas con-
vencionalmente."

Nesse segundo estágio do argumento, a correta visão do pa-


lácio é a não-visão: ele é visto melhor quando não é visto de modo
algum. Bhãvaviveka chega a esse lugar por uma elaborada análise
da versão Mahãyâna do não-self a doutrina do Vazio. Ele mostra que
todas as categorias da doutrina tradicional do budismo, desde os
elementos gerais até os constituintes da personalidade e nirvana,
são vazios de qualquer identidade (svabhãva). Depois que ele mos-
tra o Vazio de todas as coisas existentes (bhãva), ele faz o mesmo
para sua ausência (abhãva) e termina com a demonstração do "Va-
zio do Vazio". Para entender que tudo isso (e constatar que nada
é para entender) é para acordar do sono da ignorância e não ver
absolutamente nada.
Mas isso tampouco é o final da história. Bhãvaviveka conti-
nua sua exploração da imagem da visão com o que pode ser melhor
descrito como o vislumbre de retorno de Bodhisattva. Após cons-
tatar que o palácio da realidade não é nada mais do que um sonho,
Bodhisattva olha para trás, sobre o mundo, e derrama lagrimas de
compaixão.
[O Bodhisattva] escalou o pico da montanha da sabedoria e está livre da
dor, mas olha com compaixão para as pessoas comuns que sofrem e são
envoltas pela dor.

19 Ibid., 3.253-54.
MALCOLM DAVID ECKEL 115

Então, com olhos cheios de compaixão [o Bodhisattva] vê que as pessoas


comuns estão cobertas por uma imaginária rede criada pela arte do pen-
samento conceitual.
A delícia da realidade, a feliz cessação da diversidade conceitual, está
clara como o céu de outono. Mas as mentes [das pessoas comuns] se
movem na escuridão e elas não percebem.2°

A visão do Bodhisattva não pára por aí. O Bodhisattva também


lança um olhar para a frente, em direção ao Buda, e derrama lagri-
mas de devoção.
Ofertando benefícios para o mundo [o Bodhisattva] cultua a perfeita ilu-
minação despertando os Budas com os [olhos] úmidos com devoção e os
louva continuamente com hinos."

Nessa altura, o palácio do Bodhisattva também assume uma


face nova da realidade. Não é mais o palácio sólido que aparece no
início do texto, nem o palácio do sonho do qual o Bodhisattva acor-
dou. Ele é um objeto de devoção que é criado pelo poder da imagi-
nação do Bodhisattva, com bonitas decorações e oferecido como ato
de devoção ao Buda.
A combinação de imagens do estágio final do texto é a mes-
ma que finalmente torna clara a força do Caminho do Meio. O pri-
meiro estágio, com seu palácio-torre e visão real, funcionou como
o extremo da afirmação. O segundo estágio, com a sua imagem do
palácio de sonho, funcionou como o extremo da negação. Aqui os
olhos que choram por causa da não-realidade da ilusão dos outros e
a imaginação que cria oferendas de devoção para o Buda pairam na
fronteira entre realidade e não-realidade, entre afirmação e negação.
Seguindo a lógica do Vazio, é precisamente porque os Bodhisattvas
concebem a não-realidade dessas coisas que eles são capazes de res-
ponder com seu único senso de poder ou compaixão. Eles alcança-
ram o estado que é chamado a aprati4johita-nirvana, o nirvana que é
instável ou não está localizado em um lugar em oposição ao outro."

29bid., 3.296-97, 300.


21Ibid.,3.340.
22 0 conceito de apratisthita-nirvana é discutido em To See the Buddha, p. 172-75.
116 UM PONTO DE VISTA BUDISTA

Eles não deixam o sarnsãra, mas estão livres do mal do sarnsãra, e


não atingem o nirvana, mas é como se eles estivessem localizados
nele. A importância do Caminho do Meio encontra-se precisamen-
te na instabilidade da consciência. É impossível colocar os pés tanto
na afirmação como na negação não-qualificada. Ambas precisam ser
mantidas juntas e estar juntas em uma experiência que é tanto séria
como divertida. Juntar as duas é experimentar o senso da dinâmica
dos opostos que fornece a tradição Mahãyãna tal energia e ampli-
tude. É um caminho para ser sábio e compassivo, ser despojado e
engajado e, acima de tudo, ser livre.
Na primeira seção deste capitulo, eu argumentei que o conceito
de não-self pode fornecer uma categoria comparativa útil para esbo-
çar as implicações da negação em outras tradições religiosas. O mes-
mo poderia ser dito a respeito do Caminho do Meio? Felizmente,
Bhãvaviveka salvou-nos do perigo que Paula Fredriksen chamou de
comparação "especulativa e fictícia", embutindo seu próprio mode-
lo de discurso comparativo dentro do seu próprio texto. Por razões
complicadas demais para explicar, relacionadas com um obscuro
lectio difficilior na tradução tibetana do texto do Bhãvaviveka e meu
próprio mal-orientado esforço de revisão, minha relação interpreta-
tiva com esse texto não terminou quando eu publiquei minha tra-
dução. Ao rastrear a origem de uma palavra particularmente proble-
mática, eu fiquei ciente do relacionamento geral mais poético entre
Bhãvaviveka e a tradição hindu, particularmente a Bhagavad Gitâ.
Bhãvaviveka colocou a relação em movimento no segundo capítulo
(chamado de "Voto de um Asceta"), no qual ele descreve o Bodhi-
sattva sob o aspecto de um asceta brâmane. O Bodhisattva banha-se
na água da moralidade, veste paciência como um círculo branco de
cânhamo, amarra seu cabelo emaranhado com fortaleza. Ele carrega
compaixão como a pele escura de um veado, fé como jarro de água e
tolerância como uma manta de junco e ele reverencia o sol na forma
do Buda perfeitamente iluminado» Nos capítulos que se seguem,
Bhãvaviveka fala sobre o Bodhisattva como um praticante de ioga.

"V.V.Gokhale, "The Second Chapter of Bhavya's Madhyamakahrdaya (Taking the Vow of an


Ascetic)", Indo-lranian Journal 14 (1972): pp. 40-45.
MALCOLM DAVID ECKEL 117

Como Arjuna na Gitâ, o Bodhisattva lança mão de acontecimentos


de compaixão (krpã) e pesar (soba). A meta do Bodhisattva é cha-
mada brahmacaryã.24 No nível mais alto do caminho, o Bodhisattva
derrama lágrimas de bhakti. O clímax do texto de Bhãvaviveka che-
ga com a grande visão do Buda, como a visão de Kr§na no capítulo
onze da Gitâ, mas atacado neste caso pelo Úri e Lak5mï (na forma de
característica primárias e secundarias do corpo de Buda)."
Por que Bhãvaviveka deveria jogar tão agressivamente com as
categorias hindus em sua narrativa sobre o caminho de Bodhisat-
tva? Achei alguma orientação útil no artigo de Emiko Ohnuki-Tier-
ney sobre a imagem do macaco como uma imagem de self na socie-
dade japonesa.26 Ela argumenta que há uma oscilação no significado
entre identificação metafórica e metonímica de macacos e seres
humanos. Em uma (a metafórica), o macaco é tratado como uma
categoria diferente de seres (animais que são opostos ao humano)
que compartilham algumas similaridades com o homem. Na outra
(a metonímica), tanto os macacos como os humanos são tratados
como membros da mesma categoria, e uma é usada para substituir
ou representar a outra. Ohnuki-Tierney diz que a tensão entre re-
lacionamento metafórico e metonímico fornece às autodefinições
japonesas um sentido distinto de fluidez. Você pode apontar para
diferenças em anatomia entre o macaco e o humano e dizer "eu sou
humano porque isso não sou eu". Mas você pode também olhar para
o macaco como uma criatura aparentada e visualizar os seres huma-
nos como parte de um único cosmos sagrado com animais e deuses.
Poderia o Bhãvaviveka estar engajado em um jogo comparável de
similaridade e diferença?
Sob uma perspectiva, o projeto filosófico de Bhãvaviveka,
com sua elaborada descrição da escola filosófica rival, pode ser vis-
to como uma tentativa de se inserir no mapa da filosofia indiana,

24 To See the Buddha, pp.172-88.


25 Ibid., p.192.
26 Emilko Ohnuki-Tierney, "Embedding and Transforming Polytrope: The Monkey as Self in Ja-

panese Culture", Beyond Metaphor: The Theory of Tropes in Anthropology, editado por James
W.Fernandez (Stanford: Standfoprd University Press, 1991), pp.159-89.
-"
118- UM PONTO DE VISTA BUDISTA

para dizer que a tradição Madhyamaka merece um lugar entre as


outras escolas reconhecidas do pensamento indiano. Mas sua aná-
lise agressiva da posição das escolas rivais também reivindica uma
posição de predomínio intelectual. Talvez mais que qualquer outro
filósofo que tenha surgido antes dele, ele deu definição sistemática
para as diferenças entre as escolas indianas e preparou o campo no
qual cada uma contestaria a outra. Uma dimensão do seu trabalho
(o metonímico) consistia em dizer que todos, incluindo ele mesmo,
eram representantes da mesma categoria e, sempre que símbolos
ou práticas pareciam importantes para outras seitas ou outros mo-
vimentos, eram aqueles que ele compartilhava. Era como se ele esti-
vesse dizendo "se você carrega uma pele de veado e a água do jarro,
e se você venera Brahma ou o sol, assim nós o fazemos. A diferença
entre nós, porém, é que eu posso definir a diferença, e defini-la de
tal maneira que nossa relação é meramente metafórica: nós pode-
mos ter a impressão de carregar a pele de veado ou o jarro d'água,
mas eles, na verdade, são as virtudes da compaixão e da fé".
A relação entre metonímia e metáfora ou similaridade e di-
ferença é particularmente clara no tratamento de Bhãvaviveka da
relação entre o Buda e Brahma. Neste ponto da sua discussão so-
bre o Buda, ele pergunta se o Vazio (referido aqui como o Corpo
de Dharma do Buda) é o mesmo do que o supremo Brahma (param
brahman) dos Upanishades. Ele responde que sim.27 Mas acrescenta
que os deuses Siva, Vi§r?u, Brahmã não entendem isso assim. Só os
mais altos Bodhisattvas, Avalokitávara, Maitreya, Samantabhadra
e Mariãjtárï o veneram de maneira correta e eles o veneram sem
venerar. Aqui a aparente asserção de similaridade muda para uma
asserção de diferença. Bhãvaviveka diz que as duas tradições podem
parecer ser membros da mesma classe, mas elas diferem em um
aspecto crucial. Bhãvaviveka pertence à classe de pensadores que
percebem a verdade e os outros não a alcançam. Mesmo assim, aqui
o fundamento não é estável. Dizer que Siva, Viwu e Brahmã não
entendem o supremo Brahman é dizer que eles o entendem corre-

'To See the Buddha, pp.169-71.


MALCOLM DAVID ECKEL 11 9

tamente — não o entendendo. Eles apenas necessitariam entender


o significado de seu "não entender". A verdade está no jogo da dife-
rença e similaridade, em lugar de um lado excluir o outro.
Indo além dos limites do texto do Bhãvaviveka, mas permane-
cendo dentro das fronteiras históricas da própria tradição budista,
poderíamos usar o mesmo modelo para explorar a ressonância entre
o Caminho do Meio no budismo Mahâyâna e os conceitos de equilí-
brio e harmonia nas tradições religiosas da China. Os chineses eram
certamente capazes de ouvir a música no conceito do Caminho do
Meio. Muito do dinamismo no Ch'an budismo e mais tarde no Zen
veio do que Arthur F. Wright chama de "uma complexa amálgama
das idéias do budismo e do taoísmo".28 Quanto disso é "budista" e
quanto é "taoista"? Superficialmente parece possível identificar
vários empréstimos e transformações. Mas em um nível mais pro-
fundo, no qual as duas tradições aplicam suas críticas de categorias
reais e estáveis, os rótulos "budismo" e "Taoísmo" cessam de ter um
significado claro. Ser chamado "budista" poderia ser a última coisa
que alguém desejaria que lhe ocorresse se estivesse seguindo o mo-
vimento dinâmico do Caminho do Meio. A chave para essas compa-
rações é reconhecer que os budistas visualizam a condição humana
como sendo "no caminho", e o "caminho" é definido mais por uma
atitude ou abordagem da vida do que pelas condições concretas da
própria vida.

3.4. O que torna uma categoria útil


na Teologia Comparativa?

Que conclusões nós podemos tirar dessa breve e seletiva inves-


tigação das atitudes budistas em torno da condição humana?
Primeiro, eu tentei mostrar que não é suficiente meramente
coletar categorias, como se a somatória de todos os termos relevan-
tes pudesse fazer sentido à uma declaração comparativa séria sobre

'Arthur F.Wright: Buddhism in Chinese History (Stanford: Stanford University Press, 1959),
p. 78.
120 UM PONTO DE VISTA BUDISTA

a condição humana (no singular ou no plural). Nós temos de fazer


escolhas interpretativas e identificar elementos-chave nas tradições
em questão. Temos de perguntar, nas palavras de Nomanul Haq, so-
bre a "peça adequada": não apenas o que encontramos sob a capota
que se parece com uma roda, mas também o que é a roda que faz
movimentar o carro. No caso do conceito do "sofrimento", existem
muitas linhas possíveis de investigação comparativa: sofrimento
vem da ignorância; ele tem relação com o anseio e o desejo; ele é
conectado à doutrina do renascimento, e assim por diante. Eu argu-
mentei, porém, que existe uma idéia principal atrás de todas essas
idéias: a doutrina do não-self. Ignorância é ignorância sobre o self. as
pessoas tornam-se vítimas do anseio e do desejo por um sentido er-
rado sobre a importância do self, e o processo do renascimento é diri-
gido pelo sentido do self. O budismo pode dar respostas fascinantes
para qualquer número de questões comparativas interessantes sobre
a condição humana, mas a matéria na qual os próprios budistas ten-
tariam focalizar o questionamento está no sentido do self.
Segundo, eu tentei ilustrar que o conceito de "categoria" não
deve incluir meramente o que pode ser chamado de simples termos
descritivos, tais como "obrigação" ou "lealdade", mas princípios inter-
pretativos ou orientações. A doutrina do não-self parece, a principio,
dar nome a uma reivindicação concreta sobre a natureza da persona-
lidade humana: "seres conscientes não têm identidade permanente".
Mas na tradição budista isso significa uma maior aproximação em
direção à negação em geral, que tem mais em comum, no sentido
estrutural ou no sentido fenomenológico, com negações em outras
tradições, mesmo com negações que têm um conteúdo doutrinal
radicalmente diferente. Esse ponto é ainda mais verdadeiro no con-
ceito do Caminho do Meio. Sua importância não pode ser limitada a
um julgamento particular do valor da autonegação e da auto-indul-
gência. Ele dá nome a um principio interpretativo que, para os bu-
distas, aplica-se a todos os aspectos da vida e do pensamento huma-
no, incluindo as relações com seus vizinhos e com eles próprios.29

29Respondendo à tentativa de Wesley Wildman de nomear os tipos de categorias que nós

utilizamos (minutas 26/2/96, sessão 5.2), pode ser útil especificar o tipo de categoria indicado pelo
MALCOLM DAVID ECKEL 121

Terceiro, eu espero ter sugerido, implicitamente se não direta-


mente, que o empreendimento comparativo necessita ele próprio
ser informado pela interiorização e técnicas interpretativas das tra-
dições em estudo. Essas tradições não são objetos para serem anali-
sados e dissecados em microscópios a serviço de uma classificação
comparativa, mas temas que podem ter respostas. Quando é permiti-
do à tradição budista falar por si própria, ela dirige uma crítica a toda
tentativa de criar categorias substanciais e estáveis que almejem, em
algum sentido definitivo, tanto excluir como incluir. As melhores
categorias são aquelas que colocam em jogo tanto as similaridades
como as diferenças, sem tentar resolver as questões de uma maneira
ou de outra.
A esse respeito, o componente da tradição budista que eu ten-
tei elucidar aqui tem muito em comum com o argumento que, por
meio de Jonathan Z. Smith, veio a dominar muito do pensamento
teórico entre os "comparativistas" na American Academy of Reli-
gion [Academia Americana de Religião]. No ensaio "In Comparison
a Magic Dwells", Jonathan Z. Smith argumentou que o velho pro-
jeto comparativo que visa conseguir uma determinação científica
das similaridades que ligam entre si tradições religiosas diferentes

termo "Caminho de Meio". Madhyamakakarika 24.18 diz: "Origem Dependente é o que cha-
mamos de o Vazio. É uma designação dependente (upadaya prajfiapati) e é o Caminho de Meio
(pratipad madhyama)". O versículo nos diz que seus três primeiros termos (Origem Dependente,
Vazio e Caminho do Meio) são "designações dependentes". A palavra "carruagem" em As Ques-
tões do Rei Milanda também foi uma "designação dependente": referiu-se apenas a uma série de
componentes. A diferença na Madhyamaka não é a noção da dependência ou referência secundária,
mas a idéia de que qualquer análise da referência poderia basear-se em "componentes" reais. Os
termos nesses versículos (bem como todos os outros termos) são "meros nomes" (namamatra) e
seus significados dependem apenas de outros termos iguais a eles mesmos. A palavra "caminho"
(pratipad) na expressão "Caminho do Meio" adquire seu sentido de uma raiz que significa "ir".
"Ir" em sânscrito pode significar tanto "mover" quanto "saber". Uma tradução mais precisa para o
sentido que Bhavaviveka atribuiu ao termo "Caminho do Meio", incorporando ambos os significa-
dos, seria "Abordagem do Meio", sugerindo que o caminho não é uma estrada para se atravessar
a floresta do samsara, mas "a maneira", "a abordagem", ou "o procedimento cognitivo" pelo qual
a estrada é percorrida. Isso é uma das razões pelas quais é comum, na literatura do Mahayana,
eliminar a distinção entre "caminho" e "objetivo": ter encontrado a abordagem correta para a
vida já está muito próximo de ter chegado ao objetivo. Do ponto de vista comparativo, há simila-
ridades interessantes entre o conceito de "abordagem" correta e o conceito aristotélico de orthos
logos como "principio racional" ou "razão correta" por meio do qual se encontra o meio (Ética a
Nicômaco,1103b31). Em meu livro sobre o Buda, argumento que o conceito que o Madhyamaka
tem de estágios de consciência e princípios racionais, pode-se dizer, cristalizam-se na consciência dos
próprios seres vivos. Não seria inconcebível fazer, até mesmo, uma leitura de João 14,6 em termos
de orthos logos de Aristóteles.
122 UM PONTO DE VISTA BUDISTA

estava baseado em uma falácia cognitiva. Isso não era ciência, mas
mágica, dentro do sentido delineado por J. G. Frazer, quando ele
afirmou que "mágica homeopática é baseada na associação de idéias
por similaridade".3° Isso para dizer que o projeto antigo de deter-
minação de "similaridades" comparativas está apenas a um pequeno
passo do projeto de espetar agulhas na imagem de um inimigo para
que ele tenha dor de cabeça. Mas como um bom budista, Smith vê
o outro lado da palavra "mágica" na palavra "imaginação". No ensaio
final de Imagining Religion, "The Devil in Mr. fones", ele explorou
ressonâncias entre o suicídio em massa em Jonestown, cultos dio-
nisíacos em As bacantes de Eurípides e os cultos "cargo"" nas Novas
Hébridas, todos a serviço de remover de Jonestown o que ele chama
"o aspecto do único".3' Esses fenômenos são iguais? São diferentes?
As distâncias radicais entre eles, em termos de espaço, história e
conceito, tornam as perguntas particularmente estranhas. Mas es-
ses fenômenos iluminam um ao outro em sua similaridade, assim
como em suas diferenças, e este processo de iluminação mútua é
digno de ser perseguido por todos que pretendem interpretar um
fenômeno para grupos de observadores que compartilham mais que
a identidade de uma única disciplina. O termo "condição" na expres-
são "condição humana" tem sua origem no latim condicio, e significa
"estipular, estar de acordo, falar sobre coisas conjuntamente". Isso é
uma etimologia que o budismo acharia adequada. Faz parte da "con-
dição" humana discutir e descobrir o tamanho da lacuna existente
entre as palavras e as "coisas" as quais presumivelmente elas se refe-
rem, e descobrir no processo um sentido de sabedoria e compaixão
que é, se não uma herança humana comum, pelo menos uma possi-
bilidade humana comum.

30Jonathan Z.Smith, Imagining Religion from Babylon to lonestown (Chicago: University of

Chicago Press, 1982), p. 21.


*Nota do tradutor. Cultos milenaristas de grupos na Melanésia, ligados aos navios de carga
europeus nos séculos de colonização.
31 lbid., p. 111.
4
SER OUVIDO E FEITO,
MAS NUNCA COMPLETAMENTE VISTO
A condição humana de acordo com Vivekacúclãmãrli

Francis X. Clooney, S.J.


e Hugh Nicholson

4.1. Introdução: o texto e seu desafio

O Viveltacgãmani é um texto sânscrito na tradição Advaita


Vedãnta da Índia Hindu, escrito depois do ano 800 d.C. Como sans-
crítico, é um documento refinado e disciplinado destinado para a
pequena minoria de indianos, na sua maioria homens, que podiam
ler sânscrito; como um texto vedântico, ele combina a atenção ao an-
tigo Upanishads (900-300 a. C.) com as sistematizações posteriores
dos ensinamentos upanishadic sobre ritual, self e realidade, um siste-
ma mais importantemente formalizado nos Uttara Mimãmsã Siitras
de Bãdarãyarja; como advaitico, ele insiste na unidade última da rea-
lidade interior (o ãtman, self) e a realidade cósmica última (brahman);
como um texto que mostra o caminho para a verdade última sobre
nós e nosso mundo e felicidade duradoura, ele é relevante, em prin-
cípio, para todos os seres humanos que procuram o conhecimento
e a felicidade. É, na verdade, um produto da condição humana, uma
reflexão dominadora sobre ela, e um esforço corajoso para mudá-la.
Ao longo deste capítulo, usarei o Vivelzacúdãmaryi como o ins-
trumento de um questionamento dentro da visão hindu da condição
humana — como "hindu", e portanto como inerentemente diversa
e passível de múltiplas construções que não precisam ser reduzidas
a um único ponto de vista. O VivekacCidãmaryi é representante de vi-
sões hindu largamente compartilhadas em relação ao que o mundo
é, e como se pode compreendê-lo e a ele responder. É uma mistura
- o VIVEKACCJDÃMANI
-----
124-

pragmática do pessimismo triste e da esperança articulada que se


encontra freqüentemente nos textos hindus. No entanto, como um
texto Advaita Vedãnta que é explicitamente elitista, ele se apresenta
como completamente diferente dos outros textos hindus, marcando
uma visão muito diferente do que é o mundo e o que se deve fazer
sobre ele. Mas mesmo nessa auto-apresentação, como tendo pouco a
ver com a corrente comum da identidade hindu e da prática religio-
sa, ele é bastante parecido com os outros textos hindus que também
se encantam em apresentar restrições à sua audiência em potencial.

O Vivelzactidãmatyi é dividido em duas partes principais. A


primeira descreve e analisa o não-self, como o mestre mostra a seu
discípulo tudo o que ele parece ser, mas na realidade não é. A se-
gunda oferece uma descrição e análise comparável da natureza do
verdadeiro self, juntamente com a instrução sobre a necessidade
de superar o conhecimento profundamente enraizado e habitual
erro que cometemos para compreender a nós mesmos. Como tal,
o Vivekacgãmani é um texto advaita bem escrito, mas de maneira
nenhuma único. Dentro da tradição advaita, o Vivelzacüdãmani é
mais adequadamente comparado com o Upadesasahasri ("Mil ensi-
namentos") de Samkara. As duas primeiras das três seções de prosa
que concluem o texto anterior tomam a forma de instruções de um
discípulo pelo seu professor, e o segundo tem o sentimento e o tom
do Vivelzaciidãmani; os dois textos têm o mesmo objetivo duplo de
dar uma visão correta de uma ampla variedade de assuntos religio-
sos e filosóficos, e também de ilustrar a instrução apropriada, clara
e eficaz do discípulo. No entanto, o Vivelzaciidãmani é muito mais
desenvolvido e retoricamente mais amplo e eficiente; é talvez mais
memorável devido à sua construção narrativa, que nos mostra tanto
o estilo de ensino quanto o efeito que ele tem no discípulo ideal. O
Vivelzacüdãmani invoca esforços conjugados para pensar seu signifi-
cado; oferece uma agenda prática, e pergunta a seus leitores não so-
mente se eles entendem, mas também se eles querem ou não mudar.
Como um texto específico e especializado, no entanto, ele também
sugere que se deve ser educado apropriadamente para que se possa
entender a condição humana e o que ela significa. À medida que
FRANCIS X. CLOONEY 125

prosseguimos, devemos nos lembrar da universalidade e da limita-


ção da escolha que fizemos ao focalizar esse texto.
No início do Vivelzactidãmaryi, o discípulo procura o mestre em
desespero, e o ensinamento que se segue em resposta é apresenta-
do como um grande ato de compaixão que resgata o discípulo da
conflagração do mundo. Seu discurso apresenta efetivamente seu
tormento na sua situação aflitiva, o mundo como um lugar de dor,
samsãra: o oceano no qual se afoga, ou do qual se é salvo, e o fogo
pelo qual se definha e morre:
Ó mestre, ó amigo daqueles que se curvam diante de ti, tu és um oceano
de misericórdia, eu me curvo diante de ti; levanta-me, caído como estou
neste mar de devir, com um simples olhar de teu olho, que verte com-
paixão suprema como néctar.
Salva-me da morte, afligido como estou pelo fogo inextinguível da cha-
ma de samsãra, e sacudido violentamente pelos ventos de alguém não
merecedor, aterrorizado e portanto, procurando refúgio em ti, pois eu
não conheço nenhum outro homem com quem procurar abrigo. (35-36).
Ó senhor, com tua palavra como néctar, adoçada pelo prazer dessa feli-
cidade de brahman, semelhante a um elixir, pura, refrescante até certo
ponto, lançada em vapores dos teus lábios como de uma jarra, e suave
ao ouvido — asperge-me, pois sou atormentado por aflições mundanas
como pelas chamas de um fogo na floresta. Abençoados são aqueles nos
quais apenas um olhar de seus olhos toca, aceitando-os como seus.
Como atravessar esse oceano de devir? Qual deve ser meu destino? Que
meios devo adotar? Em relação a esses, eu não sei nada. Tende piedade
de mim, senhor, e leve a um fim a miséria de samsãra.
Ele fala desta maneira, e se refugia, chamuscado pelo calor do fogo de
samsãra... (39-41a).'

O texto fecha com o esclarecimento do discípulo, seu alcance


da felicidade, e a partida de ambos, discípulo e mestre, para peram-
bular livremente sozinhos pelo mundo.
Por intermédio da primeira parte maior do texto, o projeto in-
telectual de comunicar uma consciência do não-self é acompanhado

'No decorrer deste trabalho eu uso a tradução de Swami Madhavananda, de 1921, com leves
modificações: Vivekacúclãmaryi of Sri Sankarãcãrya (Calcutta: Advaita Ashrama, 1992).
126-
-- O VIVEKACÜDÃMANI

pelo de inculcar uma repugnância sentida pelo corpo corruptível e


seus muitos defeitos; o não-self deve se sentir repugnante:
Este corpo nosso é o produto de comida e inclui nossa camada material.
Ele vive de comida e morre sem ela; ele é uma massa de pele, carne,
sangue, ossos, e sujeira e não pode nunca ser eternamente puro, um self
existente por si só.
Como pode este corpo, sendo um pacote de ossos, sujo com carne, cheio
de sujeira e altamente impuro, ser o self existente por si só, o conhecedor
que nunca está distinto dele?
É o homem tolo que se identifica com uma massa de pele, carne, gor-
dura, ossos e sujeira, enquanto o homem treinado em reflexão conhece
a si mesmo, a única realidade que existe, como distinta do corpo. (154,
158-59)

E perto do final,
Realizando o self, o eterno, conhecimento puro e felicidade, jogue fora
essa limitação que é o corpo, inerte e sujo por natureza. Então não se
lembre mais dele, pois algo que foi vomitado excita, mas enoja quando
é lembrado. (414)

O Vivekacúdãmarti é uma obra-prima pedagógica com a inten-


ção de preparar leitores competentes para reconhecer e se apropriar
das grandes reivindicações que ele apresenta — ou diretamente,
ou mais provavelmente por adotar a vida disciplinada de discípulo
elogiada nos seus versos. Ele é repleto de repetições e refrões que
marcam a dimensão persuasiva de sua agenda; pontos são repetidos
para inculcar a maneira certa de pensar no discípulo. Mesmo se o
leitor brâmane erudito for capaz de aprender o verdadeiro significa-
do de Vedãnta, ainda assim, ele precisa ser convencido a continuar
na sua agenda prática de tal maneira que garanta sua apropriação
pessoal duradoura. Por extensão, leitores preparados, privilegiados,
são convidados a se identificar intelectualmente e emocionalmente
com o discípulo que vem ao professor, para trabalhar por meio da in-
dagação intelectual altamente delicada apresentada aqui, e também
para viver de uma maneira tal que conduz ao estado idealizado que
ocorre no final da conversa.
FRANCIS X. CLOONEY 127

Aqui está um breve resumo do VivelzacCjãmani, que será uma


referência útil ao longo das nossas considerações:

A. Introdução narrativa: o discípulo procura um mestre (#I-7o).


B. O ensino preparatório do não-self (#71-2n)
1. O ensinamento do não-self;
2. A prática da discriminação: mapear o caminho para o self real
de acordo com uma análise das camadas do não-self, baseado
no Taittiviya Upanigiad 2, concluindo com uma consciência
rígida do vazio do não-self.
C. O ensinamento maior da compreensão do verdadeiro self, na teo-
ria e na prática (#2I2-478)
I. A nova questão em relação ao verdadeiro self,
2. Resposta: não dualismo na teoria;
3. O significado e a aplicação da grande correlação, "que você
é", no Chãndogya UpanOlad 6;
4. O não-dualismo na prática;
5. Resumo do ensinamento maior;
6. No final do ensinamento maior sobre o self, o discípulo atin-
ge a instrução.
D. Conclusão narrativa: a liberação do discípulo e a troca final
(#479-577)

4.2. A condição humana, percebida e real

Nossa primeira tarefa será a de traçar um entendimento do


Vivekacgãmani, observando como cada uma das suas dimensões-
chave é distinta ao mesmo tempo que é comum, compartilhada com
outros sistemas; eu irei fazer isso examinando várias dimensões do
texto. Primeiro, sua declaração da natureza percebida e real da con-
dição humana, pela atenção a mãyã, o problema humano e advaita, o
não-dualismo que marca a verdadeira condição humana. Em seções
subseqüentes, irei examinar o papel de viveka, como conhecimento
discriminativo que expõe as falsidades de mãyã; e o processo prático
de bhãvanã, a inculcação do entendimento correto.
128 O VIVEKACÚDÃMANI

4.2.1. Mãyã: o problema humano


É mais fácil começar como o vivekactidãmani começa, com
uma declaração do problema humano, apesar de que, como ve-
remos, na realidade não existe tal problema. Nós já vimos o tor-
mento que incita o discípulo a procurar um mestre, e de certa
maneira o vivekactidãmani é dedicado a suavizar tal tormento.
Para apresentar isso persuasivamente, no entanto, ele deve pri-
meiro generalizar o problema para que este possa ser compreen-
dido e solucionado: confusão pessoal é sintomática de mãyã, e
mãyã subsiste naquele sombrio não-self que constitui o processo
ordinário da natureza humana.
O Vivekaciiciãmani sugere que o problema da existência
angustiada pode ser formalizado como o problema de uma ig-
norância que é tanto epistemológica quanto ontológica. Esta-
belecendo o problema da existência humana, pode-se lidar sim-
plesmente com o fato epistemológico da ignorância, avidyâ, mas
o vivekacfidãmani reformula isso como o problema de mãyã, a
confusão epistemológica, mas também ontológica e experimen-
tada, à qual a natureza humana está sujeita.'
Durante a explicação sobre os corpos grosseiros e sutis —
que compreendem o não-self o mestre refere-se muitas vezes à
ignorância, particularmente ao poder aparentemente substancial
de mãyã. Mãyã é apresentado como incluindo as três linhascons-
tituintes (guria) que por sua vez compreende as três realidades
material-psicológicas das quais as realidades complexas são fei-
tas: lucidez (sattva), paixão (rafas) e inércia sombria (tamas).
A ignorância, também chamada de não-diferenciada, é o poder do Se-
nhor. Ela existe sem começo, é feita das três linhas constituintes (guna)

2 A compreensão proeminente e desenvolvida de mãyã, evidente no Vivekacticlãmaril é uma

das principais razões para distingui-la do trabalho normativo de Sankara, anterior a quem foi tradi-
cionalmente atribuído. Mãyã, mais que avidyã, é uma característica distintiva de uma sistematização
particular de advaita. Da mesma forma, esta distinção tem principalmente tratado da descrição
do problema humano como uma complexa distorção da realidade, que é tanto ontológica quanto
epistemológica — e que por isso irá exigir um certo tipo de viveka e, mais importante, a prática que
é bhãvanã. Sobre mãyã no Advaita Vedãnta, veja Paul Hacker, "Distinctive Features of the Doctrine
and Terminology of Samkara", Philology and Confrontation: Paul Hacker on Traditional and Mod-
em Vedãnta, ed. Wilhelm Halbfass (Albany: State University of New York Press, 1995), 78-85.
FRANCIS X. CLOONEY 129

e é a mais alta. Ela dever ser deduzida por alguém com intelecto claro
somente por meio dos efeitos que produz. Ela é mãyã, por intermédio da
qual todo o universo é criado. (Ia)
O mundo é a produção de mãyã:
O corpo, os órgãos, a respiração, a mente, o ego etc., todas as modifica-
ções, os objetos de sentido, o prazer e o descanso, os elementos gros-
seiros tais como o éter, o universo inteiro, de fato, até mesmo a matéria
não-diferenciada, tudo isso é o não-self.
Da matéria-prima até o corpo, tudo é mãyã e efeito de mãyã. Conheça
esses e o próprio mãyã como o não-self, e portanto irreal, como uma mi-
ragem no deserto. (122-123)

Por meio da escuridão (tamas) e da paixão (rajas), mãyã distorce


a realidade, escondendo sua verdade não-dual e projetando no lugar
dela uma versão errada e enganosa da maneira como as coisas são:

Tamas tem o poder de esconder, o que faz as coisas parecerem ser algo
que não são. É isso que causa as repetidas transmigrações humanas e
começa a ação do poder de projeção.
Rajas tem o poder de projeção, que é a natureza de uma atividade, e da
qual o fluxo primevo de atividade tem surgido. Modificações mentais
tais como afeiçoamento e dor são continuamente produzidos a partir
disso. (113, in)
Alguém que seja sobrepujado pela ignorância confunde uma coisa pelo
que ela não é; é a ausência de discriminação (viveka) que faz com que se
confunda uma cobra com uma corda. Grandes perigos o dominam quan-
do ele a pega a partir dessa noção errada. Portanto é o fato de confundir
coisas transitórias com as reais que constitui uma escravidão — escute,
meu amigo!
Esta força velada, compreendida de tamas, cobre o self...
Quando seu próprio self, dotado do mais puro esplendor, é escondido da
vista, um homem, por meio da ignorância, falsamente se identifica com
esse corpo, que é o não-self. E então o grande poder de rajas, chamado de
poder projetante, dolorosamente o aflige com os grilhões da luxúria, da
raiva etc. (138-40)

Até mesmo a lucidez, a preponderância a qual conduz alguém


em direção do que é mais claro e melhor, é parte de mãyã:
130 O VIVEKACÜDÃMANI

Sattva puro é como água, mas em conjunção com aquelas duas (rajas e
tatuas), ela serve para transmigração. A realidade do self torna-se refletida
em sattva assim como o sol ilumina o mundo inteiro da matéria. (117)

Diferença — como objetiva, como projetada pela mente — é


resultado de mãyã (238); é o poder do Senhor experimentado como
mundo material de um lado, e personificação do outro (243). O
mundo como o conhecemos é conhecido somente dentro e através
de mãyã:
Toda essa dualidade se consiste de mãyã, e é na realidade uma
não-dualidade; assim diz a escritura, e assim nós a experimentamos no
sono profundo. (4o5)3
Certamente aqui é possível uma grande quantidade de nuan-
ças, comparado com os significados conferidos a mãyã por uma
grande quantidade de hindus. No Gitã e em outros textos relatados,
por exemplo, mãyã é o poder maravilhoso do Senhor. No Gitã, a ex-
periência de assombramento vem à tona, em vez da de "confusão"
ou "ilusão":
Apesar de que eu mesmo sou não-nascido e imortal, apesar de que sou o
senhor das criaturas, e considero a natureza como minha propriedade, e
existo através de mãyã do meu próprio self. (Bhagavad Gitã 4.6)
Divino, composto das qualidades da natureza, minha mãyã é difícil de
escapar; mas os que procuram refúgio em mim atravessam essa mãyã.
(Bhagavad Gitã 4.6)

Em contextos teísticos, assim como no Advaita, mãyã repre-


senta tanto uma condição subjetiva quanto um problema, e uma
dimensão cosmológica ou ontológica do mundo como tal: nossa ig-
norância nunca é somente mental, e nunca é somente uma proprie-
dade privada. Devido à sua grande extensão, ela é considerada mais
terrível, e ao mesmo tempo mais amena a soluções que possam ser
resolvidas pelas pessoas em geral.
O tormento do discípulo baseia-se no fato de que ele está
vivendo de acordo com essa distorção que afeta não somente sua

3 \leja também os versos 67, 324, 345, 391, 496, 514, 569, 573.
FRANCIS X. CLOONEY 131

maneira de pensar, mas também sua maneira completa de ser: sua


ignorância é mãyã. Até que ele encontra seu mestre, seus esforços
para encontrar soluções são muito estreitos e privados, e somente
piora sua situação. Vedãnta, é claro, oferece uma solução para essa
situação, que acontece em duas fases: por meio de uma mudança na
maneira de pensar e, conseqüentemente, por meio de uma mudan-
ça na maneira de viver.
Já se escreveu muito sobre mãyã e outras formas de "ilusionis-
mo hindu" no Ocidente. A idéia de que os orientais consideram o
mundo como um sonho tem sido popular por muito tempo. De uma
maneira geral, essa visão é assaz errônea, porque até mesmo a teoria
de mãyã que encontramos aqui não se traduz diretamente em uma
visão prática, diária de que o mundo é somente uma ilusão; estamos
falando de teoria, não uma desvalorização entorpecida da realida-
de ordinária. Mas uma porção central desse conceito errôneo pode
ser retida, já que mãyã tem raízes ontológicas; ela sempre lida com
quem e o que nós e nosso mundo somos, assim como com o que
pensamos e dizemos. Mãyã é ignorância com o corpo e com o poder;
é amplo, funcionando em níveis múltiplos, como uma força podero-
sa que desfigura o mundo que precisa de uma resposta comparável.
Mas a solução é possível, precisamente porque a ignorância não é
essencial à natureza humana; é um erro que pode ser corrigido, eli-
minado. Como isso acontece é a verdade de advaita.

4.2.2. Advaita como um não-dualismo simples:


a verdadeira condição humana

Eu comecei com o problema da existência humana para faci-


litar nossa abordagem à questão em pauta. De fato, a maneira mais
direta de apresentar a condição humana na Não-dualista — Advaita
— Vedãnta é de declarar que há uma unidade que inclui tudo que
é subjacente à realidade. Não há nenhum problema; nós somente
pensamos que há.
Como um texto Advaita Vedãnta, o VivelzacCiAmaiyi sustenta
que há uma original e eventual identificação completa do conhe-
– - O VIVEKACCJDÃMANI
----=
132="-

cedor e do conhecido, uma realização que inevitavelmente e sem


demora contraria a consciência ordinária:
É essa suprema unidade (parama advaita), que em si mesma é real, já que
não é nada além do self. Na verdade, não existe nenhuma outra entidade
independente no estado de realização da verdade mais alta.
Por meio da ignorância, todo esse universo aparece em formas diversas;
mas não é nada mais que brahman, que é absolutamente livre de todas as
falhas da imaginação (bhãvanã-ado a).
"Esse universo é verdadeiramente brahman", tal é o pronunciamento
augusto do Atharva Veda. Portanto, esse universo não é nada mais que
brahman; pois o que é superposto em algo não tem uma existência sepa-
rada de seu substrato.
"Não é isso, não isso" — porque tais coisas são imaginadas e não reais.
Elas são como a serpente que é vista como uma corda, e como sonhos.
Eliminando perfeitamente o mundo objetivo dessa maneira, mediante
raciocínio, deve-se em seguida perceber o ser único que é subordinado
tanto ao senhor quanto ao self. (226, 227, 232, 246)

E, perto do final do texto, a ausência de diversidade é procla-


mada sem parar:
É cheia, sem começo ou fim, imensurável, imutável, é somente um, não
dois, brahman; aqui não há nenhuma diversidade.
Não deve ser evitado nem considerado nem aceito nem confiado; é so-
mente um, não-dual, brahman; aqui não há nenhuma diversidade.
Existe sem qualidades ou partes, sutil, invariável, sem cor; é somente um,
não-dual, brahman; aqui não há nenhuma diversidade. (464, 46 7, 468)

Advaita é reconhecido pelo Vivekacildãmani como a verdade


original implícita à condição humana.
Devido a várias convergências históricas, Advaita Vedãnta,
apesar de difícil e raro, é o sistema de pensamento hindu que
atraiu o interesse do Ocidente, que sempre foi fascinado com teo-
rias de panteísmo e monismo, que parecem similares a Vedãnta.4

4No final do século XIX, Swami Vivekananda trouxe advaita para um público mais popular no
Ocidente. Assim como há muito tempo o clássico Mysticism East and West de Rudolph Otto, e re-
centemente o Theo-monistic Mysticism: A Hindu-Christian Comparasion de Michael Stoeber (New
FRANCIS X. CLOONEY 133

Certamente, a alegação de que o não-dualismo é a verdade mais


profunda da condição humana — e que não deve ser personali-
zado como um ser divino — dá uma referência clara para com-
paração e contraste com várias visões de mundo judaicas, cristãs
e muçulmanas. Se esse é verdadeiramente um ponto inicial, e
não uma conclusão, nós temos aqui o primeiro passo para a com-
preensão da visão Vedãnta da condição humana — e, portanto,
uma entrada honrada e legítima para as visões hindus da con-
dição humana. Mas há mais a ser dito, mesmo no contexto do
Vivekaaidãmani, antes que o "não-dualismo" possa se tornar uma
ferramenta útil num projeto comparativo.

4.3. A função do conhecimento certo (viveka)


na percepção da verdade da condição humana

A análise anterior sobre mãyã e advaita é abstrata, mesmo como


apresentação da condição humana como problema a ser resolvido.
Ninguém lucra, de fato, com a simples postulação da unicidade e
seu obscurecimento. Preferivelmente, advaita deve ser conseguida,
realizada, por intermédio de um processo disciplinado de entender
o mundo diferentemente, tudo o que não somos e tudo o que somos.
O VivekactiOmani é, portanto, um texto hindu tipicamente prag-
mático: a condição humana nunca é melhorada simplesmente por
postulações sobre o que é, o que deveria ser, o caso, pois a condição
humana é construída de maneira a suscitar certo tipo de entendi-
mento, que é por sua vez certo tipo de ação.
O remédio prático oferecido por Vivekadidãmarti é antes de tudo,
o projeto indicado no seu título: a prática de discriminação especializa-
da, uma separação (viveka) que avança ao distinguir as coisas umas das
outras, tornando mais importante o self do que todo o resto, o não-self.
Uma convicção firme de que o brahman é verdadeiro e o universo, erra-
do: que é designado como discriminação (viveka) entre o permanente e
o não-permanente. (2o)

York: St. Martin's Press, 1994), numerosas comparações acadêmicas têm sido feitas entre advaita e
várias versões do monismo e do misticismo unitivo no Ocidente.
134 - - O VIVEKACúpikMANI

O VivekacCuMmani é comprometido com a possibilidade e o


valor do verdadeiro conhecimento, e especifica esse conhecimento
como viveka: conhecimento exato, discriminatório como a chave do
poder transformador e libertador da vida humana. Conhecimento
sutil e discernente é a ferramenta principal, pela qual se pode des-
cobrir as distorções de mãyã da realidade e da mesma maneira tor-
nar evidente a verdade fundamental de advaita. O mestre explica ao
discípulo:

É verdadeiramente por meio de sua conexão com a ignorância que


você, que é o supremo self, encontra-se ligado ao não-self, enquanto
sozinho prossegue o fluxo deste mundo (samsrti). O fogo do conhe-
cimento, alimentado pela discriminação (viveka) entre esses dois (self
e não-self), deveria queimar os efeitos da ignorância juntamente com
suas raízes.
Agora eu vou dizer tudo o que você precisa saber sobre a discriminação
entre o self e o não-self. Escute e confirme no seu próprio self. (47,71)
A discriminação é o meio para a destruição de mãyã:
Mãyã pode ser destruído pela realização do brahman puro, em um ins-
tante, exatamente como a idéia errada de que uma serpente é removida
pela discriminação da corda... (1'o)
O cativeiro não pode ser destruído nem pelas armas, nem pelo vento,
nem pelo fogo, nem por milhões de ações — por nada, exceto a grande
espada do conhecimento, que é a discriminação, afiada pela graça do se-
nhor. (147)
A cessação da sobreposição acontece mediante conhecimento perfeito,
e de nenhuma outra maneira. O conhecimento perfeito (samyak jriãna),
de acordo com a escritura, consiste na realização da identidade do self e
brahman.
Essa realização é obtida pela discriminação perfeita entre o self e o não-
self; portanto deve-se discriminar entre o self individual e o self verdadei-
ro. (202-3)
Quando algo invocado em erro é sujeito à discriminação, então é nada
mais que isso (brahman) e nada diferente disso. (253)
A discriminação perfeita conseguida pela realização direta distingue a
realidade daquele que vê a partir do objeto visto, e corta a conexão da
decepção criada por mãyã; e não há mais experimentação deste mundo
para quem tem sido libertado disso. (345)
FRANCIS X. CLOONEY 135

O que em si é imaginado como existente pelo erro é, mediante dis-


criminação, aquela coisa em si mesma, e não distinta dela; quando o
erro desaparece, a realidade da serpente percebida falsamente se torna
a corda; similarmente, tudo isso tem como sua natureza própria o self
(387)

Viveka é mais proeminentemente mostrado na primeira


parte do Vivekactidãmani, em que é um processo de questiona-
mento cuidadoso e inquisitivo que pode ser feito somente pela
pessoa culta e com autocontrole, que gradualmente aprende
como ver as coisas — objetos de sentido, impressões mentais
e idéias desenvolvidas, sonhos e fantasias, as palavras e injun-
ções e práticas da vida religiosa — exatamente como elas são,
nada menos ou mais. Esse é um tipo de observação que, mos-
trando a realidade como ela é, elimina as compreensões erradas
de cada objeto de conhecimento. Viveka é primariamente útil
na desconstrução do não-self, descrito na primeira seção maior
do Vivelzactidetmani.
Examinemos um exemplo-chave de viveka no vivekacCujã-
mani, no qual ele é usado para descobrir, uma por uma, as cama-
das do não-selt Essa tentativa é baseada na leitura do Taittirfya
Upanishad, que fala das cinco camadas do (não-) self. Na segunda
parte desse velho upanishad, somos conduzidos através de cin-
co camadas materiais e psicológicas que também são camadas do
self. comida, self vital, mente, intelecto, felicidade. No upanishad,
a meditação simplesmente deposita essas cinco camadas do self
cada vez mais interiores, convidando o meditante para viajar para
dentro, de uma para a outra. Com a quinta camada, o processo
simplesmente pára; o inquiridor é deixado com o conhecimento
de que o núcleo mais profundo do self brahman, no brahman
— é repleto de êxtase. O fato enigmático de que cada um desses
"selves" está no formato de um pássaro é explicado por uma nota
adicional: o upanishad está psicologizando o fogo de cinco cama-
das do velho sistema sacrificial, no qual tijolos foram colocados
geometricamente num altar de cinco camadas, cada camada com
o formato de um pássaro, porque o altar em si é o pássaro que leva
--=-_ - O VIVEKACIJDÃMANI
---
136=

o sacrifício ao céu. No upanishad, enquanto o movimento de che-


gar lá é um tipo de ritual meditativo, o caminho é especulativo e
conduz diretamente ao self interior.5
No VivekaciiPmaryi, o todo do ensinamento no não-self é cons-
truído em torno desse texto Taittiriya, apesar de que as diferenças
são evidentes. A estruturação arquitetônica do altar do pássaro de
cinco camadas e sua cosmologia mítica foram postos à parte, para
uma análise racional. Dessa maneira, também, a transformação do
pássaro de cinco camadas, e os níveis mais profundos do self cor-
respondentes em uma série de cinco camadas de não-self, indica
uma saída da confiança "upanishadica": a de que pode haver uma
continuidade positiva na procura pela interioridade. Mais que uma
série de reivindicações de que há "ainda mais", no VivekacCtOmani,
o desafio é mais uma série de "nãos". O processo foi racionalizado e
reduzido; ele é menos imaginativamente acessível, mas rende mais
ao trabalho da mente racional. Ern vez de altares, encontramos uma
série de análises e argumentos sobre o porquê do corpo, self vital,
mente, entendimento e experiência de êxtase não podem ser o ver-
dadeiro self Cada um dos cinco argumentos conclui com um verso
que resume o motivo pelo qual essa versão da auto-identidade não
é adequada:
1. Comida: esse corpo nosso é o produto de comida e contém
nossa camada material. Ele vive de comida e morre sem ela;
é uma massa de pele, carne, sangue, ossos e sujeira, e nunca
pode ser o eternamente puro, self autônomo. Ele não exis-
te antes do nascimento ou depois da morte, e nasce num
momento, morre num momento, é mutável por natureza;
ele não é um, ele é inerte, um objeto de sentido, como uma
jarra; como ele pode ser o próprio self, o conhecedor de mu-
danças no ser? (154-55)

'Ver Francis X. Clooney, Theology after Vedãnta: An Experiment in Comparative Theology


(Albany: State University of New York Press, 1993), capítulo 2; e também "From Anxiety to Bliss:
Argument, Care and Responsibility in the Vedãnta Reading of Taittiriya 2.1 — 6.," Authority, Anxiety
and Canon: Essays in Vedic Interpretation, ed. Laurie Patton (Albany: State University of New York
Press, 1994), 139-69.
FRANCIS X. CLOONEY 137

2. Self vital: a camada vital não é o self, porque é uma modifica-


ção de ar, e como o ar está dentro e fora, e porque nunca co-
nhece seu próprio bem ou mal ou aquele dos outros, sendo
eternamente dependente um do outro. (166)
3. Mente: a camada mental também não pode ser o selfsupremo,
porque tem um começo e um fim, é sujeita a modificações, é
caracterizada pela dor e sofrimento, e é um objeto; ao passo
que aquele que vê não pode nunca ser visto como o objeto
de visualização. (183)
4. Intelecto: essa camada de conhecimento que estamos discu-
tindo não pode ser o self supremo pelas seguintes razões: é
sujeita a mudança, é inanimada, é algo limitado, é o objeto
da visualização, e não está constantemente presente. O im-
permanente não pode ser considerado permanente. (zo6)
5. Êxtase: nem é a camada de êxtase o self supremo, porque é do-
tada de atributos mutáveis, é uma modificação da natureza
material, é o efeito de boas ações passadas, e está localizada
dentro das outras camadas que são modificações. (209)
Uma análise cuidadosa é tanto necessária quanto possível se
se quer entender e eliminar o não-self inteiramente. Essa realização
é a conquista de viveka; as camadas da cebola foram gentilmente re-
tiradas, e não há nada dentro delas. É uma realização mais imediata
e pessoal do mãyã e a futilidade das postulações humanas feitas em
relação a suas identidades. Viveka alcança seu objetivo "vedantico"
primário, para descobrir o não-self na sua multiplicidade enganosa;
como uma prática intelectual, ele portanto inclui uma série de jul-
gamentos sobre o que o self é e o que ele não é.
Será que ficou assim o Vedãnta mais acessível ao leitor inte-
ressado? Sim e não. Apesar de que esse não é um racionalismo re-
dutível, o VivekacCu4mani confia na habilidade dos humanos em
separar a realidade intelectualmente e ver a condição humana como
ela realmente é. Nós vimos que viveka marca a dimensão insistente-
mente racional de Vedãnta. Há uma maneira de pensar, que a pessoa
culta pode usar, que irá resistir e eventualmente conquistar o poder
de mãyã. A razão pode expor o self aparente, o não-self, e também
---==. o VIVEKACOÃMANI
138--

pode fazer uso inteligente da escritura para atingir a compreensão


do verdadeiro self. Suponho que possamos dizer que a maioria das
tradições religiosas, particularmente aquelas com tradições longas
e literatas, são comprometidas com uma confiança moderada na
razão. Não há reivindicação nem evidência no Vivekaciidãmani de
que viveka é uma versão totalmente peculiar ou idiossincrática do
raciocínio, mesmo se o estilo de raciocínio visto no VivekacCidãmani
depende de suposições contextuais retiradas do Upamishad e gera-
ções de leituras do Upanishad, é um pensar cuidadoso, uma seleção
cuidadosa do que é e do que não é.
Mas viveka não é suficiente. Mediante raciocínio, o discípulo
classifica o que está diante de seus olhos e elimina todas as ilusões.
No final da primeira parte importante do texto, o discípulo é deixa-
do com uma realização inflexível: viveka o levou a ver que nada disso
é self, nada disso importa. Tudo que resta a ele é esperar por uma
nova resposta do mestre, que pode levá-lo para além do dilema em
que ele caiu. Este discernimento do não-self termina em perplexida-
de, na formulação de uma nova pergunta, corno o discípulo diz:
Depois que todas essas cinco camadas foram eliminadas como falsas,
mestre, eu não encontro nada aqui além da ausência de tudo! Que enti-
dade resta com a qual o sábio conhecedor do self deva compreender sua
identidade? (2.12)

Apesar de Vedãnta ser uma tradição intelectual comprometida,


a apreensão clara desejada do não-self não pode em si mesma consti-
tuir a experiência libertadora que o discípulo procura: porque mãyã
não é somente ignorância, mas também uma maneira distorcida de
ser, seu remédio pode ser uma transformação da maneira de alguém
tornar-se humano. Portanto, tern-se a necessidade da segunda parte
importante do Vivekacticlãmani, que procura descrever como alguém
deve integrar a si mesmo no autoconhecimento. Para alcançar uma
percepção positiva do que é, passos devem ser tomados, além das
realizações de viveka, para a reintegração da mente e da vida no self.
Viveka é realmente muito exigente; seus pré-requisitos são im-
pressionantes — angústia em relação ao mundo como ele é, e uma
FRANCIS X. CLOONEY 139

certa austeridade e separação. É um procedimento intelectual que


exige uma prática cuidadosa; se levada da maneira certa, como na
primeira parte do Vivekacüdãmani, ela deixa o discípulo com uma
sensação rígida de não-self. Como textos mais amplos e menos ire-
nístico que o Vivekaniciãmani indicam, não é fácil de entender cla-
ramente a natureza do corpo e da mente, e as diferenças de opinião
são obstinadas. Porque o problema é abrangente, a solução não pode
ser simplesmente epistemológica; deve-se cultivar essa maneira de
conhecimento correto e estendê-lo, gradualmente transformando-
o até a sua própria identidade.

Agora deveria ser óbvio que esse tipo de conhecimento é muito


racional; não há nada esotérico sobre ele, de tal maneira que ele iria
se sustentar sozinho, separado das maneiras nas quais outros seres
humanos em outros tempos e locais pensaram, discerniram e distin-
guiram realidades aparentes e mais profundas. Pode-se sugerir que,
como um tipo de conhecimento, viveka pode ser aprendido e prati-
cado por qualquer um de nós. No entanto, aqui também há limites
ao significado dessa conquista: no Vivekaciielãmani, viveka não forne-
ce uma simples informação sobre a realidade; e um regime de viveka
não conclui em seus resultados que pode ser resumido e passado
adiante. Na verdade, é uma maneira de reabrir a questão do próprio
self, começando — como no caso do discípulo angustiado — com
os descontentamentos, ansiedades e pressuposições particulares das
pessoas. Já que viveka aqui é apresentado como frutífero no contexto
do relacionamento mestre-discípulo, também deve haver alguma
avaliação da sociologia desse tipo de conhecimento: entre quem
pode acontecer, como mostrado aqui? Voltaremos a essa questão na
sessão 4.5, mas antes precisamos cuidar melhor da agenda que é im-
posta à pessoa que pratica viveka e entende para onde ela a leva.

4.4. A transformação da vida humana


e o projeto de transformação (bhãvanã)

O formato narrativo do Vivekaciidetmani marca sua preocupação


com a mudança do leitor. Sua análise da condição humana — alie-
140 O VIVEKACCJDÃMANI

nação ontológica e epistemológica da nossa identidade verdadeira,


sempre presente — exige que ela também instrua o discípulo sobre
a transformação real do self, em direção a uma apropriação real da
vida que os textos ensinam; aqui eu me refiro a esse projeto de trans-
formação por somente um dos termos distintivos para ele, bhãvanã
("fazendo-ser", "produzindo uma maneira de ser").
A transformação é primária na agenda de quase metade do tex-
to, a seção longa do verso 264 até o verso 463. Imperativos são usados
bastante liberalmente nessa seção. Por exemplo, cada verso do 277
até 285 termina com o comando, "Acabe com essa superimposição",
ou seja, pare de se confundir com fatores extrínsecos, que distraem:
A mente do yogi perece, estando constantemente estabelecida em si
mesma; portanto segue a cessação de impressões. Portanto, acabe com
essa superimposição do self!
Por meio da escritura, do raciocínio, e de sua própria realização, realize
seu self como o Self de tudo, mesmo se um traço continuar; acabe com
essa atual superimposição do teu self! (277, 281)

O verso 286 é um comando para pensar, e os 287-90 levam o


leitor a se tornar um certo tipo de pessoa. A visão Vedãnta de que
há uma obrigação no coração da escritura é recente; sua grande pre-
decessora intelectual, a teoria ritual Mirnãrpsã, havia construído
sua exegese inteira em torno da idéia de que há comandos centrais
nas escrituras, em referência aos quais todo o mais é entendido. É
lógico, os "vedãntins" têm de achar seu caminho cuidadosamente
aqui — encorajando um tipo de ação enquanto desencoraja a noção
de que o conhecimento pode ser garantido por qualquer conjunto
previsível de ações.
A seção do VivekacCtOmani sobre o verdadeiro self é direciona-
da por de uma apresentação do famoso tat tvam asi — "o que você
é" — do Chãndogya Upanigiad 6. No contexto do Upanishad, como
é entendido tradicionalmente, "o que você é" é explicado por uma
série de imagens evocativas e comparações que um pai apresenta a
seu filho para fazê-lo entender a verdade mais simples e maior. O
UpaniAad repete tat tvam asi oito vezes, cada uma de acordo com
FRANCIS X. CLOONEY 141

uma ilustração diferente. A seção 6.8 oferece o ensinamento como


a conclusão de um raciocínio sobre o sono e a morte. Em 6.8.6,
tudo está baseado no brahman, para o qual se volta por meio da
morte, revertendo o processo de criação; é então que a correlação
é feita: tat tvam asi, (Svetaketu, você é aquele Self, aquela Realida-
de". Em 6.9-16, cada exemplo contribui para o entendimento de
vetaketu:
As essências de flores diferentes se tornam um só mel... rios não man-
têm sua identidade quando alcançam o oceano... a seiva está em toda
a árvore... a melhor semente da qual a árvore cresce é invisível... o sal
dissolvido na água, apesar de ser invisível, pode ser sentido... um ho-
mem abandonado e vendado na floresta pode encontrar seu caminho
para casa...o homem moribundo se recolhe em si mesmo, perdendo a
consciência mundana... um homem honesto não é queimado pelo ma-
chado quente...

O padrão para todos os oito é dado no primeiro:


"...aquele que é a melhor essência — esse mundo inteiro a tem como sua
alma. Essa é a realidade. Esse é o self. Isso é você, vetaketu". "Senhor,
faça-me entender ainda mais." (6.8.9 parte)

O uso do texto Chãndogya no Vivekacüdãmani é marcado por


três estágios.
Primeiro, há um processo de racionalização semelhante ao
que nós já vimos em relação ao texto Taittiriya; aqui também, um
velho ensinamento "upanishadico" é removido de seu contexto mi-
tológico e de seu contexto pedagógico, e apresentado como um en-
sinamento estritamente racional e acessível. Os oito exemplos são
removidos, e nenhuma menção é feita deles, enquanto o tópico é
generalizado, abstraído. Em vez disso, o VivelzacCujcimarti estabelece
uma tensão lingüística formal e simples entre o tat ("que", brahman)
e o tvam ("você", self individual), e enfatiza as possibilidades criativas
provocadas pela tensão entre eles:

O sábio percebe a realidade mais alta que é destituída de conhecedor, co-


nhecimento, e conhecido, que é consciência infinita, não-diferenciada,
pura e não-dividida.
142 o VIVEKACCJIISMANI

É aquilo que não pode nem ser jogado fora nem guardado, que está além
do alcance da mente e da fala, imensurável, sem começo nem fim, brah-
man, a plenitude, o "Eu", o grande; se isso é verdade, então o texto, "Que
você é" repetidamente estabelece a identidade absoluta de brahman e o
self, denotado pelos termos "que" e "você", respectivamente, separando
esses termos de suas associações relativas; é a identidade dos seus signi-
ficados inferidos, e não literais, que devem ser inculcados; porque eles
são contrários em seus atributos, como o sol e um vaga-lume, como o rei
e um servo, o oceano e um poço, Monte Meru e um átomo. (239-42)
Conseqüentemente, esses dois termos devem ser considerados cuidado-
samente de acordo com seus significados inferidos, para que sua iden-
tidade absoluta possa ser estabelecida. Nem o método de rejeição total
nem o de retenção completa servirão. Deve-se deduzi-lo por meio de um
processo que combina os dois. (247)

Mostrando como a razão ajuda a sobrepujar as diferenças evi-


dentes entre o tat e o tvam, o VivekacCujãmani modela uma maneira
vedântica desenvolvida de raciocínio, que pode ser examinada tam-
bém em outros importantes textos Vedãnta, como o Upaddasashãsrf
e o Vedãntaparibhãsã.
Em segundo lugar, há o apelo para que o discípulo refaça sua
maneira de ser. A verdade simples da identidade de brahman e o self
deve ser gradualmente inculcada e, desse modo, realizada. Uma vez
que a verdade do não-dualismo é anunciada, faz-se o tema de uma
série de apelos para interiorização. Num ponto-chave do ensina-
mento maior, encontramos um refrão de io versos que encorajam
o bhãvanã, o "fazendo-ser" ou inculcação dentro de si mesmo dessa
nova atitude em direção ao self , ao mundo e à brahman — brahma
tat tvam asi bhãvaya ãtmani, "você é aquele brahman; estabeleça essa
atitude no seu se lf :
Aquele que existe além da casta e do credo, família e linhagem; destituí-
do de nome e forma, qualidade e defeito; transcendendo espaço, tempo e

objetos de sentido você é aquele brahman; estabeleça essa atitude no seu self;
aquele brahman supremo que está além do alcance de toda a palavra, mas
acessível ao olho da realização pura; o qual é puro, a incorporação do
conhecimento, a entidade sem início — você é aquele brahman; estabeleça
essa atitude no seu self;
FRANCIS X. CLOONEY 143

aquele que é livre de nascimento, crescimento, desenvolvimento, des-


perdício, doença e morte; que é indestrutível; que é a causa da projeção,
manutenção, e dissolução do universo — você é aquele brahman; estabeleça
essa atitude no seu self.
aquele além do qual existe nada, o mais alto que o altíssimo, o mais ínti-
mo self da essência unitária, o real, consciente, alegre, infinito e imutável
— você é aquele brahman; estabeleça essa atitude no seu self. ( 2 54, 255, 258,
263)

O que se racionaliza por meio de apelos aos significados infe-


ridos, secundários de tat e tvam, deve ser, mesmo assim, inculcado
gradualmente, praticado até que se torne habitual.
Em terceiro lugar, o restante dessa exposição positiva do self
(até 463) é um yoga vedântico; o apelo imediato para estampar na
mente de uma pessoa a verdade da alegação de Chãndogya é elabora-
do como um processo meditativo e uma maneira de vida que objeti-
va mudar a mente mesmo nos seus níveis habituais mais profundos:
essa mudança é induzida no discípulo como a maneira de interiori-
zar e apropriar a verdade que na teoria só está disponível devido à
natureza do self e a clareza da escritura. A realização da nova atitude
indica uma noção rica de viveka como racional numa forma cheia e
personificada, já que mãyã é mais que um problema epistemológico.
Os objetivos desse yoga vedântico é o projeto de concentração e uni-
dade integral última (samãdhi); uma série de versos, 352-66, descre-
vem a disciplina vedântica em torno do princípio de samãdhi, como
esses versos sugerem:
A reflexão deve ser considerada como cem vezes superior ao ato de es-
cutar, e a meditação cem mil vezes superior até mesmo à reflexão, mas
(integração) sem diferenciação (nirvikalpa) é infinita.
Por integração sem diferenciação, a realidade de brahman é claramente e
firmemente realizada, mas não de outra maneira; porque então a mente,
sendo instável por natureza, estaria misturada com outras percepções.
Portanto, com os sentidos controlados, integre (samãdhatsva) [você
mesmo] continuamente, com a mente aquietada e voltada para dentro;
destrua a escuridão produzida pela ignorância sem princípio vendo sua
unidade com o ser. (364-66)
---- o VIVEKACOÃMANI
144-=-

Essa obtenção integral do self deve ser cultivada como um


modo de vida, mediante meditação:
Esse mundo imaginário tem sua raiz na mente, e nunca persiste depois
que a mente for anulada. Portanto integre (samãdhehi) a mente no self
supremo, que é a sua essência mais íntima.
O sábio percebe isso no seu coração, por meio da total integração (sa-
mâdhi), o infinito brahman, que é da natureza do conhecimento eterno
e êxtase absoluta, que não tem um exemplar, que transcende todas as
limitações, nunca está livre e nunca sem atividade, e que é como o céu
ilimitado, indivisível, absoluto. (407-8)
Com a mente integrada (samãhitãntahlzarartah), segure no seu self o Self, a
glória infinita, e elimine sua dependência perfumada com os perfumes
de nascimentos anteriores; lute para conseguir o fruto de seu nascimen-
to como homem.
O Self é destituído de todos os adjuntos limitantes, de existência, cons-
ciência, êxtase, em um instante: firmemente estabeleça seu self dentro
do Self, e você não deverá vir nesta direção.
Realizando o Self, o eterno, conhecimento puro e êxtase, jogue fora essa
limitação que é o corpo, inerte e sujo por natureza. Depois não se lembre
mais dele, pois algo que foi vomitado excita, mas enoja quando lembra-
do. (4.11-12, 414)

No final do apelo e resumo do Vivekacúclãmani do ensino teóri-


co e prático sobre o self, o discípulo atinge o esclarecimento, quando
a verdade do self o ilumina completamente; então ele se levanta e
começa um hino de elogio e alegria:
Percebendo a verdade suprema por meio dessas instruções do guru, a
autoridade das escrituras, e seu próprio raciocínio, com seus sentidos
acalmados e sua mente integrada, ele se tornou imóvel em forma e per-
feitamente estabelecido no self.
Tendo integrado sua mente por algum tempo no brahman supremo, ele
se levantou e com êxtase supremo falou o seguinte:
Minha mente se aniquilou, e toda sua atividade derreteu, porque eu re-
alizei a identidade do self e do brahman; eu não sei nem isso nem aquilo,
nem o que nem quanto é esse êxtase infinito (479-81).

Sua maneira de ser e sua maneira de pensar são transformadas,


pois a equipe poderosa de viveka e bhãvanã quebrara o poder epis-
-7-
FRANCIS X. CLOONEY- =
--- 145

temológico e ontológico de mãyã. O restante do Vivekacticiãmani


é dedicado a elogiar esse estado novo, totalmente livre. Da mesma
maneira em que a experiência de mãyã foi revelada como totalmen-
te repugnante, uma vida do autoconhecimento percebido é agora
tornada tão atraente como possível. O mestre responde com uma
longa descrição do modo ideal de vida do homem muito sábio que
continua a viver nesse mundo que agora é êxtase, não mais miséria.
Esses dois versos indicam o tom e o objetivo do mestre:
O homem sábio vive sozinho, desfrutando dos objetos de sentido ao
mesmo tempo em que é a personificação da falta de desejo; ele está sem-
pre satisfeito com seu próprio self, e ele mesmo é estabelecido como o
self de todos; às vezes um tolo, às vezes um sábio, às vezes possuído de
esplendor real, às vezes se comportando como uma serpente imóvel, às
vezes com uma expressão benigna, às vezes honrado, às vezes insultado,
às vezes desconhecido--assim vive o sábio, sempre feliz no mais alto êx-
tase.

Se mãyã era a ignorância e a deformação do mundo, a realiza-


ção do self é uma clareza mental e uma transformação do mundo.
Porque o discípulo não realizou o self, sua experiência da condição
humana foi totalmente transformada, em sabedoria e comporta-
mento, pessoalmente e em interação social; ele se tornou o que ele
sempre havia sido, sem saber.
As dimensões retórica e narrativa distinguem o VivekacCidãmani
entre os textos Vedãnta. A realidade humana implícita (advaita) é
terrivelmente obscurecida (por mãyã), mas a aplicação da razão dis-
cernente (viveka) por uma pessoa persistente na autotransformação
e vulnerável às implicações do conhecimento pode recobrar aquela
experiência implícita e libertadora — depois da qual, se nós pres-
tarmos atenção ao final da narrativa do Vivelzadiclãmani, a vida sim-
ples como conhecemos estará terminada para sempre. Se o texto for
compreendido apropriadamente, ele será posto em prática; se for
praticado de maneira apropriada, a vida do indivíduo será mudada.
O significado da vida não está simplesmente lá para ser observado
e consentido; antes, é um projeto a ser enfrentado para se obter um
reconhecimento ainda mais profundo.
146 - O VIVEKACIJDÃMANI

É lógico que a busca para manter juntos o uso árduo da razão


e a transformação do coração não é exclusiva nem do Vedãnta nem
da tradição hindu, apesar de que a matriz dos termos relevantes se-
ria diferente em outros exemplos que se acrescentasse. A princípio
parece que o Vivekaciidãmaryi convida à comparação — conversa,
iluminação mútua, mudança real — de maneira mais confortável
com tradições religiosas nas quais a sabedoria integral está em ques-
tão — por exemplo, a tradição cristã medieval, a tradição rabínica,
a tradição taoísta, muitas das tradições de meditação budista — e
menos com as tradições analíticas, especulativas e comparativas da
academia moderna. Depois que se chega a uma compreensão preli-
minar do texto, talvez o próximo item na agenda seja discernir onde
estamos em relação a nossas próprias comunidades potenciais de
aprendizado, religião, filosofia, academia, e para onde as várias sabe-
dorias elogiadas por essas comunidades parecem se dirigir.

4.5. Exclusões e a força do texto

Por mais que o Vivekacklãmani seja convidativo, no final en-


frentamos os obstáculos que ele coloca no nosso caminho; desde
o início, ele limita severamente sua audiência. A maioria dos seres
humanos é considerada basicamente despreparada para conduzir o
grande projeto de autoconhecimento libertador, e incapaz de reme-
diar sua falta de preparação para esta vida.
A exclusão mais impressionante que marca o Vivekacii ciãmani é
a de todos, exceto a dos homens brâmanes. O Vivekanigtmani não nos
convida — quer dizer, aqueles dentre nós que não nasceram homens
brâmanes — a lê-lo. Mesmo quando o lemos, nos dizem que sua men-
sagem não nos pertence na realidade, porque não podemos fazer o
que ele sugere, a não ser que sejamos homens brâmanes interessados:
O nascimento humano é raro entre os nascidos; ser homem é ainda mais
raro; ser brâmane, mais raro. Além disso está o foco no trajeto do dharma
védico, enquanto o conhecimento está além disso. Distinguir entre o self
e o não-self, a experiência do seu próprio self, firmeza em ser brahman,
libertação: isso não pode ser atingido sem boas ações feitas em bilhões
de nascimentos. (2)
FRANCIS X. CLOONEY --= - 147
- "=-

O conhecimento pode parecer universalmente disponível, mas


a condição humana é tal que a maioria das pessoas são simplesmen-
te incapazes, nesse nascimento, e o poder de conhecimento não é
aumentado, imaginando-se que ele esteja realmente disponível para
todos. A pessoa qualificada é um ser raro e solitário; enquanto a clas-
se inteira de formas de vida é analisada desde o início, as possibilida-
des reais são inevitavelmente limitadas a uma ou duas pessoas que
possam na realidade tirar vantagem do que o Vivekacriclãmetni dispo-
nibiliza. A vida é marcada materialmente e socialmente, de modo
intrínseco desde o início, e o conhecedor é sempre um conhecedor
personificado, definido em termos de certas possibilidades e impos-
sibilidades realísticas propostas e determinadas pela sociedade. De
acordo com o Vivekacficlãmani, ser um brâmane e ser homem são
paralelos realisticamente necessários de ser um conhecedor poten-
cialmente bem sucedido.
O ponto é acentuado ainda mais nos próximos versos, que in-
duzem esses homens brâmanes a levar a sério a única oportunidade
que eles têm diante deles:
É difícil de se obter essas três coisas que têm como sua causa o favor divino:
ser humano, desejar a libertação, e se refugiar com um grande homem. (3)
Mesmo se se obtém o nascimento humano, que é difícil de se obter, e se
é homem e se tem o plano das escrituras, a pessoa tola que não luta pela
libertação de seu próprio self é um suicida, destruindo a si mesmo por
abarcar o que não é real. (4)

A descrição/prescrição do discípulo — e portanto do leitor


— continua durante toda a introdução do VivekacCtOmaryi, inter-
calada com a descrição da natureza ardente e torturante desse
mundo mencionada no início deste capítulo.
No seu comentário moderno do Vivelzacückimani, Chandra-
sekhara Bharati6 diz que o verso dois — "o nascimento humano é
raro entre os nascidos, ser homem é mais raro, ser um brâmane,

6No seu comentário sobre o verso dois, no Vivekacúdãmani of Sri Sankara Bhagavadpada

(Bombay: Bharatiya Vidya Bhavan, 1988), como traduzido por P. Sankaranarayanan.


----
148=---- o VIVEKACCJDÀMANI

mais raro..." — adequadamente resume o vivekaciidãmarp inteiro.


Ele presta atenção fielmente a cada restrição indicada no verso,
defendendo sem hesitação o papel privilegiado dos homens brâ-
manes, que sozinhos terão o tempo e a devoção para explorar o self.
Ele cita o sábio Vasistha: "Este corpo de um brâmane não foi feito
para desfrutar de prazeres dos sentidos. Ele tem que ser submetido
a disciplinas estritas aqui, o que o levará a um êxtase ilimitado de-
pois da morte." (6-7) Outros, ele sugere, podem definitivamente re-
nascer como brâmanes.(i 3) Já que os que não estão preparados não
iriam, tradicionalmente, ser prováveis leitores do VivekacCidãmani,
o verso dois está convidando seus já leitores de elite para refle-
tir sobre seu status especial e tirar vantagem de suas vantagens.
Fazendo isso o Vivekacüdãmani lida com temas antigos de pre-
paração e exclusão, alinhando-se com outros sistemas hindus que
similarmente restringem sua audiência elogiando a raridade dos
ouvintes realmente merecedores — com a linhagem certa, com
conhecimento suficiente, com devoção suficientemente intensa.
Tanto as semelhanças quanto as diferenças entre as restrições dos
vários sistemas são instrutivas. A questão é tradicionalmente ex-
pressa pelo termo adhikãra do sânscrito, que significa aptidão, pre-
paração: quem é competente para esse ato ou conhecimento, e quais
são as qualificações que devem ser colocadas em primeiro lugar? No
reino da prática ortodoxa (a vaidika, que é apresentada de maneiras
diferentes por praticantes de ritual, os teoristas de ritual Mirnãrhsã,
e as Leis de Manu), há uma preocupação em limitar a prática ritual
ortodoxa dos nascidos duas vezes, e na realidade aos brâmanes.
A extensão das restrições de ritual a conhecimento foi quase
imediata. O texto primário Vedãnta, o Uttara Miniãrhsã sútras de
Badarayana, preparou o caminho para o Vivekacüçlãmani insistindo
sobre a exclusão dos sidras do estudo dos Upani§had, mesmo que
pareça que o conhecimento deva ser sujeito a menos restrições. O
argumento aqui procura um equilíbrio entre uma simples reaplica-
ção da exclusão ritualística que iria alinhar demais o conhecimento
e ritual libertadores, e uma visão universalista do conhecimento,
que iria tornar esse conhecimento disponível a todos e portanto
--=--
FRANCIS X. CLOON EY- 149

impediria a consideração das qualificações por conhecimento. O


Vivekacticlãmani está reafirmando a posição Vedãnta anterior, ainda
que realçando-a com mais força ao colocar a restrição no conhecedor
no início de sua exposição: o conhecimento é o modo humano de li-
bertar; humanos têm a capacidade de saber; poucos estão realmente
prontos para esse conhecimento, ou para seguir o que ele representa.
O Vivekacticlãmani é comparado no assunto de exclusividade
com o Bhagavad Gitã, um texto altamente admirado por sua abran-
gência. No capítulo 9, Krishna declara que até mesmo as mulheres,
os de castas inferiores e os que praticam maus atos podem alcançá-lo;
na realidade, é impossível de evitar alcançar o Krishna, que é a refe-
rência final de cada caminho humano. Enquanto o Vivekacii0maryi
se abre no que parece ser o conhecimento universalmente acessível
do self, o Gitã apresenta um Deus que abrange tudo e se permite ser
alcançado por todos. Esses são dois caminhos de devoção, bhakti: no
Gitã, o prêmio é o amor de Deus, e a solução está na graça divina;
no Vivekacficlãmaryi, o prêmio está no desejo pelo verdadeiro self, e
seu conhecimento cuidadosamente praticado que conduz à solução.
Em ambos, no entanto, há um reconhecimento realístico das difi-
culdades, mesmo que o Vivekacticlãmani torne impossível o acesso
para a maioria do povo, em qualquer vida. A condição humana é tal
que o otimismo tem uma base bem sólida, mesmo que as prospecti-
vas imediatas sejam sempre menos favoráveis. No Gitã, o guerreiro
Arjuna, o discípulo, é gradualmente transformado mediante seu en-
contro com o cocheiro divino, Krishna. Mas mesmo o Gitã, reveren-
ciado por sua universalidade, tem uma visão restrita sobre quem é
realmente capaz de receber o conhecimento que oferece a todos:
Poucos entre milhares lutam pelo sucesso, e daqueles que são bem suce-
didos poucos realmente me conhecem. (7.3)
Mesmo no final do Gitã, há uma advertência sobre receber bem os ob-
servadores casuais:
Você não deve falar disso para alguém que não tenha devoção e não pratique
a penitência, ou que o faça para ouvir, ou que encontre erro comigo. (18.67)

Mesmo quando eles procuram melhorar a condição huma-


na, os textos hindus são normalmente sóbrios e céticos, estabele-
150---=-
-=---- O VIVEKACCJDÃMANI

cendo um preço alto para a admissão.? O Gitã e o Vivekacii ciãmani


têm isso em comum.
Por meio do resto da introdução do VivekacCtOmani, há ver-
sos adicionais que reforçam a intenção de exclusão do segundo
verso, ao mesmo tempo em que torna claro que mesmo um
homem brâmane não é em si mesmo a solução total.
Primeiro, bhakti — que normalmente seria entendido como
devoção a uma divindade como Krishna, e que iria portanto ser
grandemente popular — é redefinido como um comprometi-
mento ao autoconhecimento, perseguido com um mestre:
Entre as coisas que conduzem à libertação, a devoção é a mais honrada.
Procurar a forma real de sua natureza é chamado de "devoção".
Outros dizem que a busca pela verdade de seu próprio self é devoção.
A pessoa que busca a verdade do atman, que é possuída dos meios de
obtenção mencionados acima, deveria buscar um mestre sábio, que con-
fere emancipação da dependência. (31-32)

Mesmo assim, o culto de um guru — mesmo o mestre no


Vivekaciidcimani — também é inaceitável:
A verdadeira natureza das coisas é de ser conhecido pessoalmente, por
meio do olho da iluminação clara, e não por meio dos sábios; a verda-
deira natureza da lua deve ser conhecida através de seus próprios olhos.
Podem os outros explicá-la?
Quem, a não ser a própria pessoa pode se livrar da dependência causada
pelos grilhões da ignorância, desejo, ação e o gosto, sim, mesmo em bi-
lhões de ciclos? (54-55)

Qualquer caminho articulado e estabelecido ao divino é neces-


sariamente relegado a um segundo lugar, como são os padrões de
aproximações sistemáticas.
Nem pelo yoga nem por cálculos (sãmkhya), nem pelos ritos nem pelo
conhecimento, mas somente por intermédio da percepção de sua iden-

'Talvez por causa das severas restrições anunciadas no início do texto, no entanto, o Viveka-
cGdãmani pode permitir-se ser menos restritivo no final: "Então pelo caminho do diálogo entre o
mestre e o discípulo, a natureza de atman tem sido apurada pela fácil compreensão daquele que
procura a libertação ... Para aqueles que estão aflitos ... aqui está uma triunfante mensagem de
Sankara que aponta, dentro do fácil alcance, o suavizante oceano de néctar, Brahman, aquele sem
um segundo, para conduzi-los à libertação (578, 580; ênfase de Clooney).
--=
FRANCIS X. CLOONEY--- 151

tidade com brahman é possível a libertação, e por nenhum outro meio.


(54-56)
Embora o Vivelzacticlãmarti seja um texto exegética mesmo a
escritura não é um guia certo, em si mesma:
O estudo das escrituras é infrutífero enquanto a verdade mais alta não é
percebida, e é igualmente infrutífero quando a verdade mais alta já foi
percebida. (59)
Mesmo um compromisso com uma leitura cuidadosa não é um cami-
nho certo para o texto.

O VivekacCidãmani é surpreendente em suas conclusões. De


um lado, ele enfatiza advaita, conhecimento simples e direto sobre a
maneira como que as coisas realmente são. De outro, quer definir a
habilidade real e a limitação real, em situações da vida real: a verdade
é universal, o conhecimento é possível para todos, mas somente os
homens brâmanes preparados para um modo de vida disciplinado,
árduo, conseguirão conhecer as coisas como elas realmente são; a
vida do brâmane é o caminho certo para o conhecimento, mas nada
naquela vida pode ser inteiramente confiável. Apesar da fragilida-
de de cada restrição, não anunciá-las não iria servir bom propósito
algum. O tema da exclusão é, portanto, central ao VivehacaPmani,
pois traz o problema da condição humana como experimentada
normalmente, e limita sua própria audiência, o conjunto dos que
são capazes de reagir à situação. Grande parte da experiência huma-
na, e grande parte da experiência hindu, tem de ser excluída; o que
resta não é confiável. Tal é a exigência da condição humana e como
nós somos compelidos a pensar sobre ela; e tal é o Vivelzacticlãmaryi,
que é, portanto, notavelmente caracterizado pelo que exclui e nega.

4.6. Atos integrais de aprendizagem


através de fronteiras culturais e religiosas:
ouvir, saber, fazer, mas não especular

Vejamos agora onde tal estudo deste simples texto nos deixou.
O Vivelzacü0mani não é um texto misterioso. Suas palavras e con-
ceitos individuais, tal como mãyã, advaita, vivelza, e bhãvanã, têm
152 o VIVEKACCJDÃMANI

significados bem claros, e podemos começar a compará-los e con-


trastá-los com outras coisas que conhecemos. O Vivekacúdãmaryi
traz à tona reivindicações inteligíveis: há uma maravilhosa verdade
básica na existência humana: a não-dualidade; nós somos aliena-
dos da nossa realidade verdadeira e não sabemos mais quem so-
mos; essa ignorância deturpa tanto o nosso conhecimento quanto
o nosso modo de ser; a solução é o pensamento claro, o cultivo da
concentração, e a perseverança no caminho para o conhecimento;
mas também há restrições prudentes a esse conhecimento que de-
vem ser cultivadas e aprendidas gradualmente, já que nem todos
são capazes de começar a apreendê-lo ou de viver de acordo com
ele.

Muito do Vivekaciidãmani pode ser compreendido mesmo por


pessoas fora de Advaita, Vedãnta, tradições hindus, contanto que
elas saibam sânscrito ou confiem em traduções. Todos os tipos de
comparações grandes ou pequenas podem ser feitas. É óbvio, por
exemplo, que advaita pode ser comparado com vários tipos de mis-
ticismos e monismos, uma vez que a idéia da não-dualidade parece
compreensível por meio de fronteiras culturais. Mas a idéia de ad-
vaita é enganosamente simples, e um corretivo vigoroso é neces-
sário se quisermos entendê-la apropriadamente contra seu fundo
sanscrítico e bramânico, e em relação a uma ou outra versão de
monismo etc. O Vivekacüdãmani oferece seu próprio tipo de não-
dualismo como uma verdade a ser apreendida e uma realidade a ser
construída de uma maneira ordenada: advaita é acessível racional-
mente, radicalmente transformativa, baseada nos Upan4hads, mas
somente em termos do processo de aprendizado; ela é aprendida
melhor no contexto de um relacionamento entre guru e discípulo;
ela é acessível somente a homens brâmanes que aproveitam a opor-
tunidade causada pelo seu descontentamento. Porque esse não-dua-
lismo ocorre somente no contexto de uma compreensão necessa-
riamente concomitante de mãyã — e os remédios correspondentes
que devemos procurar — não há nenhum valor nas comparações
seletivas comuns. Por exemplo, não ajuda muito comparar o não-
dualismo com o monoteísmo — "humanos como finitos e criados",
FRANCIS X. CLOONEY 153

com "humanos como brahman" — e depois decidir que essas são


idéias muito diferentes, até mesmo irreconciliáveis.
O ponto precedente pode ser generalizado da seguinte manei-
ra. Mesmo que os elementos individuais sejam inteligíveis, Advaita
Vedãnta — ou qualquer outro discurso desenvolvido — deve ser
aproximado como um sistema, e não simplesmente como uma co-
leção de conceitos interessantes. Advaita, mãyã, viveka, bhãvanã são
inteligíveis individualmente, mas é somente juntos que eles real-
mente distinguem o Vivekacgãmani, mesmo entre os textos Advai-
ta que são comparáveis em caráter. Se qualquer um dos termos da
matriz for alterado, os outros também deverão sofrer uma modifi-
cação significativa, mesmo se mantiverem muito de sua identidade
original: Os termos formam um contexto integral; eles precisam um
do outro, e não fazem sentido nem parecem úteis quando analisa-
dos separadamente. Se um termo for mudado, todo o conjunto de
categorias deverá ser ajustado. Se a realidade tivesse de ser definida
de maneira teística, e a advaita efetivamente descartada, o problema
marcado por mãyã deveria ser reformulado, e depois a ação coopera-
tiva de viveka e bhãvanã deveria ser reformulada em outros termos,
por exemplo, uma abordagem ao conhecimento verdadeiro de Deus
ou um ideal científico de conhecimento.
Além disso, a matriz representa uma pauta. Definindo o pro-
blema humano e a possibilidade humana em termos dessa matriz de
conceitos, o Vivekactidãmaryi propõe um conjunto de tarefas a serem
desenvolvidas, levando os leitores para maneiras específicas de res-
ponder, agir, viver; em seguida, eles chegam a uma vida totalmente
transformada e livre, na qual todos os hábitos anteriores e maneiras
habituais de ver o mundo se tornam impossíveis. O leitor ideal — o
homem brâmane — é desafiado para mudar sua vida: primeiro, para
que ele possa entender; e segundo, porque ele já começou a enten-
der. Se não se quer envolver, é somente porque não se entende su-
ficientemente.
Para o VivekacCtOmani, urna apreensão reflexiva da condição
humana é, portanto, em parte, marcada pela inabilidade atingida de
permanecer à distância, de observar a realidade e explicar a existên-
154 =—o VIVEKACOÃMANI

cia humana especulativamente, sem agir. A vida, em suas várias ma-


nifestações e construções culturais, nunca é um espetáculo para ser
meramente observado e discutido de uma posição privilegiada, fora
ou acima dela. A experiência é um todo integral, a ser ouvido, escu-
tado, participado, obedecido — e especulado somente no contexto
dessas atividades. Advaita como teoria faz pouco para aliviar a con-
dição humana, pois mãyã vai muito fundo para ser descartada por
boas idéias; viveka é um tipo de conhecimento engajado que muda
a realidade, levando a uma transformação radical do sentido de self
de uma pessoa; mas o viveka também pode ser meramente destruti-
vo — a percepção de um sentido extremo do "que não é" — se não
for complementado por uma outra tarefa, o projeto bhãvanã. Já que
persuadir o discípulo a ver a realidade diferentemente e interagir
com ela diferentemente é a chave para o VivekacCidãmani, sua expo-
sição da condição humana é retoricamente "quente", e é direcionada
para atingir uma maneira de viver transformada.
Enquanto é obviamente um erro confundir a visão do mun-
do de Advaita Vedãnta com a "visão hindu" mais geral, a combi-
nação do Vivekacficlãmani de reivindicações amplas e acessíveis
(todos nós podemos ser confusos, todos podemos conhecer) mais
por algumas exclusões incrivelmente estreitas (somente brâmanes,
somente homens), representa a maneira tipicamente hindu de re-
flexão organizada sobre a condição humana como uma pauta antes
de uma conclusão. Como um documento pertinente e idiossincrá-
tico que não representa uma visão principal da condição humana, o
Vivekacticlãmani, apesar de tudo, representa o tipo de ponto de vis-
ta específico a partir do qual os hindus olham para a vida: ou seja,
em somente uma de muitas maneiras, sempre excluindo outras, e
sempre dentro do formato de um programa específico de ação. Uma
visão generalizada de como os hindus consideram a condição hu-
mana deveria ser por si inadequada, a menos que a força enviesada
e parcial de sua visão do mundo, junto com suas expectativas, man-
tenham-se claras.
Infelizmente, o comparatista pode confundir um entendi-
mento preliminar e necessariamente incompleto com uma apreen-
FRANCIS X. CLOONEY --= 155

são adequada que forneça uma base suficiente para discursos sobre
Vedãnta, hinduísmo, a condição humana etc. Mas então, o esforço
para entender o VivekacCujãmani iria se tornar nada mais que um
ato elegante de canibalismo intelectual, já que várias partes e peças
dele são retirados e consumidos, e fazem parte de um outro sistema
intelectual, seja um tradicional, seja um novo sistema comparativo
que consome tudo que estuda. Ou, talvez, o VivelzacaPmani possa se
tornar um local turístico, a ocasião para algumas fotos memoráveis e
então uma lembrança de viagem. Mas no processo esse "outro" mui-
to interessante irá morrer, à medida que os consumidores de idéias
religiosas simplesmente se tornem mais e mais deles próprios. Isso
pode ser desastroso, já que o valor distintivo de Vivekacüdãmani está
na matriz e na transformação radical da consciência ordinária — a
rendição do não-self — que isso demanda de seus leitores.

No final, o Vivelzacagimani não irá fornecer nenhuma "vi-


são hindu fácil da condição humana" que possa ser fundida numa
compreensão enriquecida e pós-comparativa da condição humana.
Não há paraíso para cornparatistas no final desse caminho, nenhum
ponto de vista melhor, mais panorâmico; as alegrias e intuições de
comparação terão de ser obtidas aqui, lá, e acolá, também, durante
os vários atos individuais de considerar "o outro" seriamente, com
discriminação, porque queremos saber. Se alguém lê cuidadosamente,
este é exposto a uma visão hindu particular, rarefeita, mas ainda as-
sim emblemática da condição humana; e este é também levado a um
debate com o autor do Vivelzacticlãmar,li sobre a natureza da condição
humana e como se deve reagir a ela. Decisões fundamentais preci-
sam ser feitas, sobre como sabemos, e como vivemos nossas vidas,
e essas precisam ser declaradas de maneira aberta, de algum lugar,
para alguma audiência particular. Pode-se, no final, rejeitar a visão
do mundo do Vivelzacaçlãmani ou aceitá-la, ou mesmo decidir que
ter uma visão estabelecida e coerente não é uma boa idéia, porque

iria exigir muito de nós. Mas tais perdas ou ganhos — são atingí-
veis somente por meio de uma série de envolvimentos específicos,
e não por intermédio de aderência a um esquema geral que iria ex-
plicar tudo o que importa, antecipadamente ou de cima:
--=---- - O VIVEKACOÃMANI
-
156--

Uma doença não é curada se alguém simplesmente diz o nome de um


remédio sem tomá-lo, não se pode ser liberado por palavras sem brah-
man, sem percepção direta.
Sem fazer o mundo aparente desaparecer e sem conhecer a realidade do
self, como podem os homens conseguir liberação como um resultado do
meramente falar sobre brahman? (62-63)
5
DIMENSÕES RELIGIOSAS
DA CONDIÇÃO HUMANA NO JUDAÍSMO
Lutando com Deus em um mundo imperfeito

Anthony J. Saldarini
com Joseph Kanofsky

5.1. Introdução

As "Dimensões religiosas da condição humana" no judaísmo


devem ser buscadas dentro da complexa teia de camadas múltiplas
da sua literatura tradicional, que se inicia com a coleção de narra-
tivas bíblicas, leis, profecias e escritos de sabedorias, a maior parte
dos quais editados nos séculos V e VI a.C, e se estende pelas nar-
rativas, leis, comentários, visões místicas, instruções e orações que
foram compostas até o presente. A categoria "condição humana" não
é nem nativa ao pensamento tradicional judaico, nem uma questão
fundante, geradora que, na literatura religiosa judaica, seja tratada
independentemente. Assim, suposições e análises sobre a condição
humana deverão ser desentranhadas da discussão de uma varieda-
de de tópicos que são importantes à tradição, incluindo Deus como
criador e soberano no mundo; a revelação de Deus na Bíblia e os
mandamentos (coletivamente chamados de Torá) que guiam o viver
humano; a resposta humana a Deus, mediante a fidelidade, obediên-
cia e estudo da Torá; responsabilidade e fraqueza humanas em face
da tentação; desobediência humana a Deus mediante o pecado; e a
justiça e misericórdia de Deus na punição do pecado.'

1A natureza humana e a condição humana têm sido tratadas em uma variedades de sínteses do

pensamento tradicional judeu, mas a solução e o problema é comumente influenciado, fortemente,


pelas preocupações modernas. Ver Samuel Belkin, In His image: The Jewish Philosophy of Man as
Expressed in Rabbinic Tradition (Westport, Conn.: Greenwood Press, 1960); George Foote Moore,
Judaism in the First Centuries of the Christian Era (3 vols.; Cambridge: Harvard University Press,
1927-30), vol. I, 445-552, trata o Homem, o Pecado e expiação sob uma variedade de tópicos
158 JUDAÍSMO

Uma seleção de temas salientes e passagens, relacionados à con-


dição humana, proporcionarão o material para uma comparação de
visões religiosas sobre esta condição. Textos ilustrativos serão retira-
dos dos períodos do Segundo Templo, rabínico primitivo, e moder-
no. O período do Segundo Templo (séc.V a.C. até séc. I d.C.) assistiu
ao desenvolvimento de narrativas, leis, comentários, visões apocalíp-
ticas, orações e instruções baseadas na tradição bíblica. A Sabedoria
de Ben Sirac, também chamada de Sirácide ou Eclesiástico, incorpo-
ra muitos temas do judaísmo do Segundo Templo e será tratado pri-
meiro. Depois da destruição do Templo de Jerusalém pelos romanos
em 7o d.C., tradições anteriores alcançaram uma importante síntese
nos trabalhos legais e exegéticos da literatura rabínica inicial (séc. II
a VI d.C.). Algumas poucas passagens relevantes representarão esta
literatura. Limitações de espaço fazem com que a rica variedade de
comentários, códigos, reflexões místicas, ensaios filosóficos, exorta-
ções morais e tratados instrucionais, compostos durante o período
medieval e começo do moderno, sejam omitidos. Entretanto, uma
breve sinopse das respostas contemporâneas judaicas ao Holocaus-
to, a destruição de seis milhões de judeus sob Hitler, e a dizimação
do judaísmo europeu darão algum senso de vitalidade da tradição
hoje. Esses textos seletos representam as preocupações centrais da
tradição judaica e proporcionam uma entrada neste sistema simbó-
lico auto-referencial, firmemente interligado, em que narrativas,
leis, oráculos e imagens construídos e conflitantes um com o ou-
tro, funcionam como um todo imaginativo dinâmico e intelectual.'

5.1.1. A condição humana compreendida


como obrigação sob a Torá
Uma análise judaica da "condição humana" depende direta-
mente da compreensão judaica de Deus. Vida humana e condição hu-

tomados da Teologia Sistemática Cristã, assim como o faz Kaufman Kohler, lewish Theology Sys-
tematically and Historically Considered (New York: Ktav, 1968; original de 1918). Ainda que E.E.
Urbach, The Sages: Their Concepts and Beliefs (2 vols.; Jerusalem: Magnes, 1975) e Solomon Sche-
chter, Some Aspects of Rabbinic Theology (New York: Macmillan, 1909) usem categorias rabínicas
originais, a organização desses tópicos é fortemente influenciada pelo ocidente moderno.
2 Para uma análise de como os símbolos trabalham e significam, ver Robert C. Neville, The Truth

of Broken Symbols (Albany: State University of New York Press, 1996), 87-90; 132-33.
ANTHONY J. SALDARINI ---,--
--
---—-, 159

mana, em toda sua complexidade, podem ser definidas como vida sob, em
relação com, e em resposta a Deus, ou como um desvio desta relação divina
)rdenada. Fidelidade, obediência e amor mantêm o relacionamento
de Israel (nome pelo qual o judaísmo se define) com Deus de modo
saudável e ordenado. Pecado, desobediência e fraquezas humanas
causam desordens, sofrimento e o mal. Para a maior parte dos cinco
primeiros livros da Bíblia (o Pentateuco ou Torá), suportados pelos
Profetas Anteriores (Livros Históricos) e Profetas Posteriores, inter-
pretam-se os aspectos positivos e negativos da vida humana em ter-
mos da ordem e instruções divinas. Os humanos ou cumprem e des-
frutam os favores de Deus com seu conseqüente sucesso, ou pecam
pela desobediência a Deus, levando ao fracasso e ao desastre inter-
pretado como punição divina. Por contraste, análises do Ocidente
moderno sobre a condição humana enfatizam aspectos negativos da
existência, tais como alienação e morte. A teologia Cristã compreen-
de os seres humanos como fatalmente pecadores e necessitados da
salvação divina por intermédio de Jesus Cristo. Mas nem a fraqueza
humana nem a antropologia existencial moderna são pontos tradi-
cionais de partida para uma consideração sobre as "dimensões reli-
giosas da condição humana" no judaísmo. Por exemplo, o rabi Jose-
ph Soloveitchik, que foi o líder espiritual e intelectual do judaísmo
ortodoxo moderno, respondeu às filosofias kantianas, românticas e
existenciais deste século com a concretude da Torá, como constitu-
tiva do judeu e como a cura do fracasso humano.3 O termo "Torá"
(literalmente "instrução") é aqui um símbolo abrangente que inclui
o Pentateuco (os primeiros cinco livros da Bíblia) e toda a tradição
exegética, legal e instrucional subseqüente, que dá forma à vida e ao
pensamento judaicos. A Torá é em última instância revelação divi-
na, e assim tem prioridade sobre a razão e a experiência humanas.
Soloveitchik trata a angústia e o arrependimento somente no final
de seu tratado, Halakic Man, à luz da Torá, como aquele arrependi-
mento é a reconstituição do self e a retificação do relacionamento
humano-divino.

'Joseph Soloveitchik, Halakic Man (Philadelphia: Jewish Publication Society, 1983; original do
hebraico alsh Ha-Haiaka, 1944).
160 - JUDAÍSMO

As raízes da síntese moderna de Soloveitchik sobre a tradição


judaica podem ser vistas na literatura do judaísmo primitivo. Para
antecipar o curso deste estudo em consideração às tarefas compa-
rativas, a tradição judaica orienta todas discussões sobre o humano
para o ponto da referência última, Deus, que representa a infinita
realidade que transcende a experiência observável da vida humana.
As incertezas da vida são usualmente resolvidas em favor da ordem
cósmica, articulada por meio de narrativas e metáforas da criação , a
partir do caos e governo divino, e cuidado pela humanidade. Em-
bora questões sobre justiça divina surjam, por exemplo, no Livro de
jó, tais questões não se desenvolvem na insistente paixão moderna
em compreender completa e racionalmente Deus e o mal ("Como
pôde Deus permitir...?"). A identidade humana e a sociedade deri-
vam da comunicação e do relacionamento humano-divino simbo-
lizado pela Torá, e a imagem e os mandamentos divinos definem o
que é usualmente chamado "natureza" humana. Transtornos sociais
e deficiências humanas neste sistema surgem da infidelidade ao re-
lacionamento humano-divino, resultando em pecado e mal.

5.1.2. A condição humana como relacionamento com Deus


A tradição judaica, analisada de acordo com as categorias com-
parativas do capítulo i, afirma uma ordem cosmológica regida por
um Deus justo e providencial. O ser humano participa neste mun-
do como um todo social e comunitário e, entre os humanos, Israel
possui um lugar especial constituído pela escolha de Deus do povo
de Israel, e a resposta obediente de Israel para com Deus. A autoper-
cepção de Israel como povo de Deus e seu conhecimento mesmo
de Deus e de como viver humanamente estão profundamente en-
raizados na memória comunal das ações de Deus em favor de Israel,
especialmente o Êxodo do Egito e a auto-revelação de Deus a Israel
no Monte Sinai. Israel e toda a humanidade experimentam uma na-
tureza humana comum e conflitante, que sofre várias limitações no
mundo, algumas naturais e outras causadas pela maldade humana.
Embora a justiça de Deus tenha sido questionada, algumas vezes se-
veramente na tradição judaica, no fim, o governo de Deus sobre o
ANTHONY J. SALDARINI 161

mundo e a boa vontade com respeito aos humanos são afirmados


de diversas maneiras. Finalmente, e o mais importante, o símbolo
central do judaísmo Rabínico é a Torá, ou seja, a revelação de Deus
na Bíblia e o subseqüente ensinamento judeu. A Torá é entendida
como lei que obriga Israel (e toda humanidade em menor alcance)
a um padrão de comportamento e a um relacionamento comunal
com Deus (a aliança). Desordem na sociedade, e na vida humana,
deriva do fracasso de responder positivamente aos mandamentos
de Deus e à inabilidade em manter-se fiel à aliança com Deus. Com
a orientação da Torá, entretanto, Israel pode viver em harmonia com
Deus e o universo, e tratar efetivamente com as tensões e contradi-
ções da vida humana.

5.2. Sirac (Eclesiástico)

A sabedoria de Jesus Ben (filho de) Sirac, também conhecida


por Livro de Sirac ou do Eclesiástico, resume habilmente muitos
temas da tradição bíblica. É reconhecido como um livro canônico
da Bíblia pelos cristãos Ortodoxos e Católicos, mas não pelos judeus
e protestantes. Parte do original hebreu, datando do início do século
II a.C., sobreviveu em vários manuscritos junto com uma tradução
grega completa do mesmo século. O autor, Ben Sirac, sintetizou,
mas também interpretou vigorosamente os ensinamentos da Bíblia
e sua tradição de sabedoria para os judeus de Jerusalém durante o
período helenístico. Ele é típico de muitos intérpretes judeus e nos
proporciona um bom ponto de partida para explorarmos a condição
humana.

5.2.1. Harmonia dos opostos na Vida humana

Todos os homens vêm do solo,


da terra é que Adão foi formado.
Em sua grande sabedoria o Senhor os distinguiu,
e diversificou os seus caminhos.
Abençoou alguns,
consagrou-os, colocou-os junto de si;
---- JUDAÍSMO
=-
162—

Amaldiçoou outros, humilhou-os


e derrubou-os de seus lugares.
Como argila na mão do oleiro,
Que a molda a seu bel-prazer,
assim são os homens na mão de seu Criador,
que lhes retribui segundo o seu julgamento.
Diante do mal está o bem;
diante da morte, a vida;
diante do piedoso, o pecador.
Contempla, pois todas as obras do Altíssimo,
Duas a duas estão todas uma diante da outra.
(Sirac [Eclesiástico] 33,10-15)

Vivendo em Jerusalém em paz (c. 18o a.C.), ele poderia confi-


dencialmente atribuir as iniqüidades e ininteligibilidades da vida a
um criador divino, bom e providente, e sustentador do mundo. Os
desígnios e decisões de Deus determinam os elementos e o curso do
universo. Pela simples observação, pares de opostos, mesmo do bem
e mal, parecem naturais e inevitáveis. Mal e morte acompanham a
boa vida. Os fatos da vida são atribuídos à sabedoria divina, não ao
acaso, leis naturais independentes ou esforços humanos. Conheci-
mento do bem e do mal é meramente uma parte da sabedoria e um
presente de Deus. Para Ben Sirac, o modelo contínuo da providência
e criação divinas domina a história judaica. Ele acentua a continui-
dade e consistência do poder último no universo como aquele que
garante a harmonia natural e social.

5.2.1.1. Adão reabilitado


O mundo sereno de Ben Sirac encara desafios exegéticos e
históricos. Seu exame, quase despreocupado das tensões e contra-
dições da vida sob a soberania de Deus, contrasta ironicamente com
os cadáveres dos judeus assassinados em batalhas e torturados pelo
governante Selêucida na Síria, Antíoco IV Epifânio, vinte anos de-
pois. Por razões obscuras, Antíoco procurou introduzir o culto de
deuses da tradição sírio-palestina no templo de Jerusalém e supri-
mir o modo de vida judaico encontrado nas leis e costumes bíblicos.
Este ataque histórico ameaçou o mundo de Ben Sirac e a confiança
ANTHONY J. SALDARINI-
-=:- 163

de seu elegante, equilibrado e confiante poema. Isto causou ajustes


significativos na perspectiva de vários grupos judeus. A afirmação
de Ben Sirac de Deus e a bondade da existência humana são uma
reinterpretação radical da história sobre a origem e a situação huma-
na aparentemente inócua no Gênesis 1-3, como o poema seguinte
mostra. Ainda que sua aceitação e interpretação benigna e confiante
da tradição bíblica não seja cega ao fardo e às inconsistências da vida
humana (40,1 — 41,13), ele incorpora experiências humanas nega-
tivas no fluxo da vida e procura justificá-las como previstas para os
humanos por Deus. Fazendo isso ele se afasta do relato bíblico sobre
a desobediência e o pecado humano de maneira a afirmar a visão e
responsabilidade divinas.
Uma enorme dificuldade foi criada para todos os homens,
um pesado jugo para os filhos de Adão,
desde o dia em que saíram do ventre materno,
até o dia em que voltarem para a mãe comum.
O objeto de seus pensamentos, o temor de seu coração,
é a espera angustiosa do dia da morte.
Desde o que está sentado no trono, na glória,
até o miserável sentado na terra e na cinza,
desde o que traz a púrpura e a coroa,
até o que se veste com o linho cru,
não é senão furor, inveja, perturbação, agitação,
e medo da morte, e ressentimento, e lutas.
E na hora do repouso, no leito,
o sono da noite apenas muda as preocupações:
apenas iniciado o repouso,
imediatamente, ao dormir, como em pleno dia,
ele é agitado por pesadelos,
como quem fugiu da linha de batalha.
No momento de salvar-se, acorda,
admira-se de que nada havia para temer.
Assim sucede com toda criatura, do homem ao animal,
mas para o pecador é sete vezes pior,
a morte, o sangue, a luta e a espada,
a miséria, a fome, a tribulação, a calamidade!
Tudo isso foi criado para o pecador
e foi por causa deles que houve o dilúvio.
164 - - JUDAÍSMO

Tudo o que vem da terra volta à terra


e o que vem das águas volta ao mar.
(Sirac 4o: F.' 1)

Neste poema as dificuldades da vida humana, do nascimento


à morte (vs. 1 e II), especialmente as angústias e medos causados
pelo semelhante, amontoam-se um aos outros. O primeiro humano
simboliza a condição humana comum (Gênesis 3,17-19), mas não é
culpado por causar o que Ben Sirac torna como dado: todos os hu-
manos estão nascendo e morrendo, trabalhando e sofrendo entre
conflito e medo.4 Contrário ao ensinamento explícito do Gênesis
(3,19) morte e trabalho pesado não são tratados como punição ao
pecado de Adão. Esse poema sutilmente debilita a visão bíblica dos
primeiros humanos no Jardim do Éden (Gênesis, 2-3). Ben Sirac su-
prime as ressonâncias simbólicas profundas do desejo de Adão e Eva
pelo conhecimento e imortalidade, sua conseqüente desobediência
ao mandamento de Deus para não comer da árvore do conhecimen-
to do bem e do mal, seu exílio do paraíso e a perda da árvore da vida,
ou seja, a imortalidade (Gênesis 3). Uma visão mais positiva da vida
e das potencialidades humanas substitui a história de perda e puni-
ção no Gênesis. Mesmo a morte é domesticada como uma libertação
natural do fardo da vida para o bem, ainda que isso também possa
funcionar no seu papel tradicional como uma punição aos perver-
sos (cf. 4o,8-Io).

5.2.1.2. Conhecimento afirmado

Compatível com esse poema, a revisão saliente de Ben Sirac


sobre os heróis passados de Israel (capítulos 44 a 50) apresenta Adão
não como aquele que desobedeceu a Deus, que foi expulso do Jardim
do Éden e que trouxe a morte para o mundo, mas como uma criatura
elevada: "Acima de todos os outros seres vivos criados estava Adão"
(Gênesis 1,26; Sirac 49,14-16 [grego]). O hebraico é ainda mais des-
critivo: "Acima de todas as coisas vivas estava o esplendor de Adão".

4Contrariamente à tradição cristã, a literatura judaica usualmente não culpa Adão pelo pecado
das gerações posteriores, mas antes atribui-lhe a punição bíblica para o pecado e a morte. (Gênesis
3,19).
ANTHONY J. SALDARINI 165

Ben Sirac oferece aprovação irrestrita para o ancestral de todos os


humanos e assim para a humanidade em geral, apesar das histórias
de desobediência e punição no Gênesis 3. Sua interpretação positiva
de Adão e da humanidade, e sua aceitação do mal como uma parte
constitutiva da vida, são explicitamente articulados em outro poema
(17,1-24) em que Deus "preencheu-os [humanos] com conhecimento
e entendimento, e mostrou a eles o bem e o mal" (17,7). Este quadro
piedoso do conhecimento como presente divino contrasta fortemen-
te com Gênesis 2-3, em que Deus proíbe os primeiros humanos de
comer da árvore do bem e do mal, e os bane do jardim quando eles
assim o fazem, porque estão muito perto de tornarem-se como Deus
e sua corte celestial (Gênesis 3,22-23; cf. 3,4-5). A reversão do Gênesis
de Ben Sirac, e a aceitação do conhecimento do bem e do mal como
parte da vida, é baseada numa apreciação abrangente da sabedoria di-
vina desde o poema de abertura sobre a sabedoria (Y,1-io) até o poe-
ma final autobiográfico sobre a busca do autor pela sabedoria (50,13-
3o). Ben Sirac aconselha respeito a Deus ("temor do Senhor") e o
bom comportamento como caminho para uma vida boa, assim como
faz o Gênesis, mas não pode conceber nenhum tipo de sabedoria
("o conhecimento sobre o bem e o mal") como uma desvantagem.

5.2.2. Sabedoria cósmica e ordem

Ben Sirac postulou um enquadramento transcendente e cós-


mico com um propósito e uma estrutura inteligíveis para a vida hu-
mana. Ordem no universo leva à ordem moral e intelectual na vida
humana. Ben Sirac, escrevendo no mundo helenístico, foi provavel-
mente influenciado (indiretamente?) pelas virtudes gregas baseadas
na natureza humana. O pensamento clássico grego antigo enfatizou
o governo divino do mundo e a subordinação humana ao destino.
Combinados com a tradição bíblica sobre um Deus beneficente, os
sofrimentos e incertezas da vida são subordinados a uma ordem su-
perior. Ben Sirac une sabedoria com o Livro da Lei (24,23) e, assim,
integra as obrigações derivadas dos mandamentos nas obrigações
incumbentes aos humanos como parte do universo criado e natu-
ral. O dilema humano, seja entendido como tolice, perversão ou de-
166 =— JUDAÍSMO

sobediência pecaminosa aos mandamentos, pode ser seguramente


superado por conhecimento e aquiescência de uma ordem cósmica
previsível (cf. também os poemas em Sirac 39-43).

5.2.2.1. Tendências humanas ao mal

A ênfase na sabedoria supra-humana e numa ordem cósmica


segura criam uma tensão entre o poder último no universo, atividade
humana responsável e conflitos, com a experiência humana do mal
e sofrimento. Na perspectiva monoteísta da tradição judaica, o mal
e o pecado inexplicados, causados pela deficiência humana, inevita-
velmente levantam os problemas da teodicéia, ou seja, da justiça e do
poder de Deus. Ambos, Ben Sirac e tradição rabínica, reconhecem a
tendência humana ao mal, mas não atribuem ao pecado de Adão no
Jardim os efeitos catastróficos atribuídos a ele na tradição cristã pela
doutrina do "pecado original". Ao invés, Ben Sirac responde a esses
problemas com uma seqüência de poemas e diatribes que mediam as
obrigações mútuas entre Deus e humanos, e o relacionamento entre
ordem e desordem, bem e mal (15,11-18,14). Por exemplo, a acusação
de que Deus leva os humanos ao pecado (15,11-z2) provoca uma du-
pla afirmação peremptória a respeito da retidão de Deus e da respon-
sabilidade humana, "O Senhor odeia toda espécie de abominação; e
nenhuma é amável para os que o temem" (15,13), seguida por uma
explicação sobre a situação humana no relacionamento com Deus.
Desde o princípio ele criou o homem
e o abandonou nas mãos de sua própria decisão.
Se quiseres, observarás os mandamentos:
a fidelidade está no fazer a sua vontade....
Diante dos homens está a vida e a morte,
ser-te-á dado o que preferires.
(Sirac 15,14-17)

Essa passagem tem resumido vários debates sobre a natureza


humana e o governo divino do universo. A criatividade de Deus em
fazer humanos no versículo 14 (cf. Gênesis 1-2) é completada no
versículo z 5 pela criatividade humana em fazer a vontade de Deus
(ambos os verbos são poieo em grego). "Homem" no versículo 14 é o
ANTHONY J. SALDARINI 167

genérico adam em hebraico e anthropos em grego, assim são incluí-


dos os próprios indivíduos, mas estes não são limitados ao primeiro
Adão (o primeiro ser humano), que causa o pecado, mais do que só o
primeiro Adão. Deus havia abandonado o humano "nas mãos de sua
própria decisão (diaboulios)", ou seja, livre. Entretanto, essa expres-
são grega esquisita, que traduz o idiomatismo hebraico "nas mãos
de seu próprio impulso (yetzer)", contém as tensões que Ben Sirac
procura resolver. A palavra yetzer vem do verbo criar ou designar e,
assim, refere-se aos pensamentos e intenções do criador. Ben Sirac
entende o termo no seu sentido mais neutro como uma livre esco-
lha humana. Como Deus, o criador, o homem como planejador cria
sua própria vida. Entretanto, a tradição antes e depois de Ben Sirac
acentua o conflito e a tendência ao mal na livre escolha humana. No
Gênesis, yetzer é tratado como uma intenção malévola da mente (6,5;
8,21) que conduz inevitavelmente ao pecado, e na literatura rabínica
é a poderosa tendência ou impulso não racional para o mal (veja a
seguir). Ben Sirac reconhece que a escolha humana é crucial, isto é,
uma escolha de vida ou morte (15,17, uma alusão ao Deuteronômio
30,15-20), e ele coloca a responsabilidade para o mal no humano,
não em Deus: "Ele não ordenou a ninguém a ser perverso, e não deu
permissão a ninguém para pecar" (15,20). Embora esta conclusão
possa parecer piedosamente inevitável num sistema com um Deus
bom, o Livro de Jó e o Coélet (Eclesiastes) na Bíblia Hebraica desa-
fiam isto, e a literatura rabínica, com grande sofrimento e debate,
atribui a Deus maior responsabilidade para o mal e pecado do que
Ben Sirac, fazendo de Deus o autor da "inclinação ao mal" nos seres
humanos. Ben Sirac escolhe a tática oposta aqui, neutralizando as
tendências "naturais" humanas e colocando peso extra na vontade
e responsabilidade humanas, ou seja, nos humanos compreendi-
dos como "mentirosos" sob o jugo do criador e soberano do mundo.

5.2.2.2. Sabedoria e Torá

Embora Ben Sirac atribua sérias conseqüências à vida e decisão


humanas, ele ainda mantém a realidade última, Deus e o Cosmos,
no centro de seu mundo por meio do símbolo da autoridade da lei
168 JUDAÍSMO

revelada (Torá) que se mantém presente nas recitações e memórias,


afirmadas comunitariamente, de Israel. Concretamente, Ben Sirac
funda sua compreensão de uma sábia e boa vida humana na Torá
(lei) revelada por Deus a Moisés e Israel no Monte Sinai. Desta ma-
neira, ele combina a afirmação racional da ordem cósmica com a tra-
dição revelatória dominante da Bíblia, e liga Israel a Deus por meio
de mandamentos obrigatórios que fortalecem o relacionamento en-
tre eles, estabelecido quando Deus libertou Israel da escravidão no
Egito (Êxodo De acordo com a interpretação de Ben Sirac da
aparição de Deus a Israel no Monte Sinai (Êxodo 19-24):

Concedeu-lhes o conhecimento,
. repartiu com eles a lei da vida.
Fez com eles uma aliança eterna
e deu-lhes a conhecer seus julgamentos.
Seus olhos viram a grandeza de sua majestade,
seus ouvidos ouviram a magnificência de sua voz.
E disse-lhes, "Guardai-vos de toda a injustiça",
deu a cada um mandamentos para com o próximo.
(Sirac 17,11-14)

A expressão "lei da vida" refere-se à interpretação deutero-


nômica da revelação no Sinai (Deuteronômio 30,11-20), segundo
o qual a lei de Deus trará vida se ela é obedecida, e morte se ela é
quebrada. O mesmo ponto é feito no poema sapiencial no Livro de
Baruc (provavelmente século II a.C.), que pode ser dependente de
Sirac: "[Sabedoria] é o livro dos mandamentos de Deus, a lei que
resistirá para sempre. Todos que a guardarem firmemente viverão,
e aqueles que a renunciarem morrerão" (Baruc 4,1). A identificação
da sabedoria com a revelação de Deus e a lei de Deus no Sinai na
passagem de Baruc é também o auge de um poema sapiencial em
Sirac: "Toda esta [sabedoria] é o livro da aliança do Deus Altíssimo, a
lei que Moisés nos ordenou como herança para as congregações de
Jacó" (Sirac 24,23). Ben Sirac enfatiza os efeitos positivos da Torá em
Israel, e toca de leve o problema do pecado e da morte. Somente o
verso final da primeira seção do poema de Ben Sirac (17,14) insinua
o mal e o pecado. Os versos seguintes de Sirac 17, que na visão de
ANTHONY J. SALDARINI 169

alguns comentadores formam um outro poema, afirmam o conhe-


cimento de Deus sobre as ações humanas e a justiça de Deus em res-
posta a elas. Entretanto, Ben Sirac suaviza a ameaça da justiça divina
ao manter explicitamente o que ele subentendeu ao usar a imagem
do Sinai acima: Israel tem um status especial diante de Deus. Deus
conhece os maus atos de Israel, mas bons atos como a esmola (17,22)
e o arrependimento (17,24) ganharão o favor de Deus. As referên-
cias ao pecado, punição, justiça divina e maldade humana em Sirac
são tocadas tão de leve que um editor posterior do texto grego inter-
polou três versos que reconhecem o mal humano de maneira mais
franca e enfatizam a misericórdia de Deus mais claramente que o
autor original e o tradutor fizeram (Sirac 17,16.18.21).

5.2.3. Sirac em contexto


Ben Sirac introduz muitas preocupações e temas que ecoam
por intermédio das literaturas rabínica e do Segundo Templo. Sua
identificação da sabedoria com a Torá conduz com o tempo à ado-
ção rabínica da Torá como o símbolo central do conhecimento
humano de Deus, do relacionamento divino-humano, e da vida e
comportamento humanos. Ben Sirac "retrabalha" tanto a tradição
sapiencial de Israel, como o relato do pecado e mal humanos no
Gênesis, para sustentar sua visão otimista e ordenada da vida huma-
na e da providência divina, de acordo com a qual os humanos têm
a responsabilidade e a oportunidade para escolher Deus, as leis de
Deus e a vida, porque Deus deu a eles a dádiva da sabedoria. Peca-
do e mal correspondem a fatos da vida que são neutralizados pela
fidelidade humana aos mandamentos, pela sabedoria, pela justiça e
providência divina. Impulsos humanos para pecar e punições por
pecar, como a morte, são reinterpretados e integrados num plano
mais amplo de pares equilibrados, preparados por um benevolente
criador.
A síntese de Ben Sirac da tradição bíblica é classicamente con-
servadora ao confirmar o domínio de Deus como o ponto de refe-
rência última e como a causa de tudo que existe. Natureza huma-
na, relações sociais, metas, conhecimento, comportamento e vida
- - - JUDAÍSMO
----
170-

tomam forma na relação com Deus concretizada como a sabedoria


que é especificada na Bíblia. A aliança e a lei bíblicas, como comu-
nicação divinamente autorizada, guiam o pensamento e o compor-
tamento de Israel. Assim, o humano idealmente maduro responde
à autocomunicação transcendente de Deus, que incorpora a ordem
natural e a social. Deficiências humanas, transtornos sociais e desor-
dem (do ponto de vista humano) natural são submetidos ao esque-
ma de ordem cósmica ou reduzidos a epifenômenos subordinados à
realidade última, Deus. A lei de Deus guia a vida humana para longe
das tensões do pecado e da morte, e em direção a relações vitais den-
tro da sociedade humana e com Deus.

Na síntese de Ben Sirac, a velha sabedoria da tradição do Orien-


te Próximo é nitidamente focalizada por intermédio da tradição ju-
daica. A humanidade como um todo se funde gradualmente em Is-
rael à medida que a sabedoria se torna co-extensiva com a lei ou Torá
revelada no Sinai. Por exemplo, no poema de Sirac 17 parcialmente
citado acima, Ben Sirac inicia falando de todos os seres humanos
sendo criados da terra (Sirac 17,1), mas no meio do caminho, sem
anúncio explicito, os sujeitos do poema ("eles") tornam-se israelitas
que receberam a aliança bíblica e a lei de Deus. Ser completamente
humano, ou seja, plenamente relacionado a Deus, necessita a recep-
ção e a aceitação da divina lei revelada. Outras nações em que faltam
tal revelação e a aliança com Deus são conhecidas por Deus, mas ca-
recem do relacionamento próximo de Israel e Deus. Conseqüente-
mente, os gentios (não-judeus) tendem a ser vistos no pior dos casos
como maus ou no melhor dos casos como marginais ao relaciona-
mento especial de Israel com Deus. Na tradição judaica, não-judeus
representam um tópico periférico que surge ocasionalmente, à me-
dida que leis são formuladas ou posturas apologéticas elaboradas.
Este foco estreito aumenta a coerência e o impacto da interpretação
de Ben Sirac em seu universo de recepção, mas limita-a explicita-
mente aos seguidores de sua tradição. Sua visão continua na literatu-
ra rabínica, que na maior parte trata os gentios como parte do pano
de fundo social, como uma ameaça social ou política, ou como uma
categoria limite com implicações sobre como a lei judaica deve ser
ANTHONY J. SALDARINI 171

aplicada. Não-judeus não representam um tópico maior de interesse


independente na maior parte da literatura rabínica judaica, porque
a maior parte das leis bíblicas aplica-se somente a Israel, ou seja, aos
judeus.5 A literatura rabínica posterior desenvolveu uma posição
legal para os gentios por meio de sete mandamentos noabitas, ou
seja, mandamentos aplicáveis a todos os humanos que descendem
de Noé (Gênesis 6-9). O conteúdo dos mandamentos noabitas varia
ligeiramente nas fontes (assassinato, roubo, incesto, blasfêmia etc),
mas proporciona uma armação conceitual para pensar sobre os gen-
tios.6 Entretanto, o foco da tradição judaica e o deste capítulo é em
Israel no mundo, não em toda a humanidade.

5.3. Literatura rabínica

O judaísmo rabínico começa a surgir no final do século I d.C.,


e sua influência perdura até o presente. Sua vasta literatura incor-
porou muitos temas bíblicos e do Segundo Templo — tais como
aqueles que acabamos de rever no Sirac —, mas submetendo-os a
um exame e a um desenvolvimento posteriores. Tratados e coleções
rabínicas contêm materiais diversos, incluindo ditos aforísticos,
com freqüência em nome de um sábio, histórias sobre sábios, pa-
rábolas, narrativas bíblicas reescritas, exegeses isoladas, citações de
textos probatórios da Bíblia etc. A literatura rabínica não é sistema-
ticamente organizada de acordo com critérios gregos ou modernos,
mas é altamente auto-referencial. Uma coleção limitada de concei-
tos, metáforas, símbolos, ensinamentos tradicionais, leis, regras her-
menêuticas, interpretações escriturísticas, narrativas, leis, práticas,
e mestres são usados e reusados, citados e citados novamente numa
variedade de contextos para diferentes propósitos, aparentemente
em combinações ilimitadas. Eles formam um mundo de pensamen-

5Gary Porton, Goyim: Gentiles and Israelites in Mishná-Tosefta (Atlanta: Scholars, 1988); Sa-
cha Stern, Jewish ldentityy in Early Rabbinic Writings (Leiden: Brill, 1944)
'Para um estudo completo, ver David Novak, "The image of the Non-Jew in Judaism: An his-
torical and Construtctive Study of the Noahide Laws" (Toronto Studies in Theology 14; New York e
Toronto: Edwin Meilen Press, 1983). Para os primeiros estágios nesta linha de pensamento, ver Ma-
rkus Bockmuehl, "The Noachide Commandments and New Testament Ethics with Special Reference
to Acts 15 and Pauline Halakhah," Revue Biblique 102 (1995): 72-101.
--_ - JUDAÍSMO
--=
1727--

to autocontido e coerente, com amplo espaço para questionamen-


tos, desacordos, e teses conflitantes.

5.3.1. Torá como símbolo central

De acordo com a visão rabínica, a vida humana sob Deus é


constituída pela Torá. Os rabis afirmaram a contínua relevância do
poder, amor e a escolha de Israel por Deus. Após a destruição do
Templo de Jerusalém pelos romanos em 7o d.C., eles reconstituíram
a comunidade de Israel mediante um compromisso renovado para
com a Torá. Esta serviu aos rabis como símbolo central abrangente,
que incluía Deus, a criação, a revelação, a história, a vida e o compor-
tamento humano. Eles tornaram a Torá presente pela dedicação e
estudo detalhado e a observância entusiástica de suas demandas.
Embora a palavra Torá seja comumente traduzida como lei, tem
um sentido muito mais amplo que o vocábulo em português. "Lei"
deriva da palavra mais restrita do latim, lex, e é mais comumente
associada com o sistema legal ou hipóteses empíricas científicas. O
nome Torá vem da raiz verbal hebraica yrh, que significa ensinar ou
instruir. Na Bíblia, ela é usada para instruções dadas por um sacerdo-
te, por um profeta, ou por um mestre sábio. Ela também denota um
grupo de leis, por exemplo, a lei ou instrução para celebrar o Pessach
(Êxodo 12,49). Na literatura rabínica, a Torá é o Pentateuco, os cinco
primeiros livros da Bíblia. Mas a Torá é mais freqüentemente usada
para o ensino dos rabis contido na literatura rabínica, especialmente
o Mishnah e Tosefta, que são coleções sistemáticas de leis e disputas;
midraxes, que são interpretações dos livros e passagens bíblicas; e
os dois Talmudes, que tomaram forma gradualmente na Palestina e
Babilônia nos séculos III a VI d.C. Os Talmudes comentam ostensi-
vamente a Mishnah, e de fato contêm muitas histórias, provérbios,
exegeses das escrituras, apologética, polêmicas, disputas etc. Nos
períodos medieval e moderno, a Torá abrange todos os comentários
sobre os Talmudes, os códigos legais que sistematizam seu conteú-
do, e qualquer outra literatura congruente. Uma pessoa devotada ao
"Talrnude Torá", o estudo da Torá, é devotada, pelo menos em princí-
pio, ao conteúdo de toda a tradição.
ANTHONY J. SALDARINI=---
--=
- 173

No pensamento rabínico, Israel deriva sua própria identidade


por meio da Torá, e o indivíduo israelita masculino, idealmente um
sábio erudito, também alcança uma identidade pessoal mediante a
identificação com a Torá. Nesse sentido, sem a Torá Israel não existe,
e sem a obediência à Torá, Israel está fora do contato com Deus e
assim é pecador. A inclinação humana com relação ao pecado, que
é a desobediência à lei de Deus, e implicitamente rejeição de Deus,
é o problema central da condição humana a ser resolvido pelo reco-
nhecimento do jugo de cada um à Torá de Deus e da obediência aos
seus mandamentos.

5.3.2. Tratado Abot

O tratado Abot da Mishnah (também chamado de Pirke Abot)


com seu comentário, o "Os padres de acordo com o Rabbi Nathan"
(existente em duas versões), empresta uma certa lógica ao caminho
de vida rabínico, que consiste em estudo e observância da Torá, e
liga vários aspectos da Bíblia, ensinamentos rabínicos e vida a estes
temas. Ele contém uma concentração particularmente densa de en-
sinamentos, exegeses e exortações que podem ser associados à con-
dição humana. O tratado Abot consiste em cinco capítulos7 e, em
sua forma final, provavelmente data da metade do século III quando
a literatura rabínica em geral iniciou, de maneira autoconsciente,
a defender sua interpretação da lei e vida judaica, ou seja, a Torá,
e identificá-la com uma Torá oral recebida por Moisés no Sinai e
passada fielmente através das gerações, de Moisés até os Profetas, e
aos sábios rabínicos do período greco-romano (Abot i: i).8 Os sábios
preservam e desenvolvem a tradição mediante estudo e prática da
Torá.

'Um sexto capítulo, Qinyan Torá, foi adicionado para versões posteriores porque lia-se um
capítulo por semana de Pirke Abot durante os seis Sabbaths entre as festividades de Pessach e
Pentecostes.
.Alguns ditos e seções provavelmente datam do primeiro e segundo séculos. O mesmo pode
ser dito das duas versões de "Os padres segundo o Rabi Nathan", que é um comentário sobre o
Abot. Embora eles contenham um material claramente tardio, certos blocos de dizeres e comentários
parecem anteriores. A versão do Abot sobre a qual o "Os padres segundo o Rabi Nathan" comenta
é diferente e provavelmente mais nova do que a versão autorizada encontrada na Mishná. Então a
raiz do comentário remonta ao final do primeiro e ao segundo séculos.
174 JUDAÍSMO

5.3.2.1. O fundamento tríplice da época


O mundo dos sábios é ancorado em alguns poucos símbolos
bíblicos centrais, que são encontrados no segundo provérbio do
Tratado de Abot. Significativamente, o provérbio é atribuído a Si-
meão (II), o Justo, o alto sacerdote do início do século II a.C., que
foi idealizado por Ben Sirac (Sirac so). Sob Simeão, na visão de Ben
Sirac, o culto era conduzido como deveria ser, na base da Torá, e
a sociedade judaica, que não havia ainda sido assolada pela guer-
ra civil e a perseguição imperial, foi guiada pelos mandamentos e
os comportamentos indicados pela Bíblia.9 Os rabis sintetizaram
a visão clássica de Ben Sirac num provérbio essencial atribuído a
Simeão: "Em três coisas esta era se sustenta: na Torá, no serviço ao
Templo e nos atos de piedade" (Abot 1:2). Nesta tradução, olam re-
tém o sentido bíblico "era" mais do que o sentido rabínico posterior
"mundo", e gemilut hasidim é interpretado como "atos de piedade"
prescritos pela Torá em relação aos semelhantes, mais do que o mais
geral "atos de bondade amorosa".' O provérbio de Simeão tipifica
a estabilidade da Judéia antes da guerra. Israel está estabelecida em
um triplo fundamento tradicional: a Torá (o Pentateuco), o culto
sacrificial prescrito no Templo de Jerusalém, e expressões tradicio-
nais de piedade para Deus e os semelhantes. Esta tríade de núcleos
simbólicos (Torá, Templo e obediência aos mandamentos) atravessa
os séculos de Ben Sirac em Jerusalém até o Mishnah (por volta do
século II d.C.) após o templo e Jerusalém terem sido destruídos.
Uma porção substancial da Mishnah é devotada para leis concer-
nentes aos festivais, sacrifícios e pureza no Templo, mesmo que o
Templo já tivesse desaparecido por mais de um século quando ela
foi escrita. Idealmente, a sociedade e religião judaicas formam um
mundo sem costura em que sacerdotes, sábios e pessoas, todos cum-

9 Logo depois do tempo de Simeão e Ben Sirac (200-180 a.C.), a família de Simeão, os Onias,
foi derrubada pelos sacerdotes helenizantes, que foram, por sua vez, derrotados por uma família
sacerdotal subordinada, os Asmoneus. Judas Macabeu e seus irmãos guiaram uma série de bem
sucedidas lutas militares e diplomáticas com os governantes Selêucidas na Síria de 167 a 140 a.C., o
que levou a uma relativa autonomia para a Judéia.
10Ver Judah Goldin, "The Three Pillars of Simeon the Righteous" , PAAJR 17 (1958): 43-58,
para o significado do ditado, quando aplicado ao tempo de Simeão. Goldin considera o ditado como
vindo do tempo de Simeão, uma proposição que é duvidosa.
ANTHONY J. SALDARINI 175

prem seus deveres com Deus e para com o outro, sob a orientação da
lei revelada de Deus.

5.3.2.2. O fundamento tríplice do mundo

Assim o provérbio de Simeão pode ser lido com uma nuança


diferente e retraduzido como "Em três coisas o mundo se sustenta:
na Torá, no servir ao Templo e em atos de bondade amorosa". Uma vez
que o estado judeu não mais se mantém, os símbolos centrais da
comunidade são relacionados ao mundo exterior com suas muitas
nações e o Império Romano. Como o comentário no tratado Abot
coloca, "Desde o princípio o mundo foi criado somente com bon-
dade amorosa", pois assim foi dito, "Pois disseste, o amor [bondade
amorosa] está edificado para sempre; firmaste tua verdade no céu
(Salmo 89, 3[BJ])"." Como a Torá e o Templo, à bondade amorosa é
designada uma função fundante e cósmica, que volta no passado até
a criação e continua durante os períodos bíblico e do Segundo Tem-
plo, e também até o primeiro período rabínico. A obrigação munda-
na de fazer "atos de bondade amorosa" tem um papel ampliado com
a cessação dos sacrifícios bíblicos mandatórios após a destruição do
Templo de Jerusalém em 7o d.C. De acordo com uma famosa his-
tória, Johanan Ben Zakkai, um mestre do final do primeiro século,
estava deixando Jerusalém quando um de seus estudantes lamentou
a destruição do Templo onde os pecados eram expiados. Johanan
respondeu: "Temos outra expiação tão efetiva como esta. E o qual
é ela? São atos de bondade amorosa, como diz a Escritura, 'Eu de-
sejo a bondade amorosa e não o sacrifício' (Oséias 6,6)"." Na ausên-
cia do templo, a Torá e a obediência da Torá, o estudo e a prática da
bondade amorosa expiarão os pecados. Assim como a comunidade
de Qumrã podia entender-se como expiadora dos pecados de Israel
pela sua vida comunitária,' 3 Johanan compreende a observância fiel
das normas sociais bíblicas, no lugar dos rituais perdidos do Dia da

"Abot de Rabi Nathan (The Fathers According to Rabbi Nathan), versão A, cap. 4.
12Ibid. Uma interpretação similar de Oséias 6,6 aparece no Evangelho de Mateus 9,13 e 12,7,
do final do século I.
"'A regra da comunidade (1QS), 8-9.
---- - JUDAÍSMO
-=-
176:="

Expiação, como expiadores dos pecados de Israel.'4 A obrigação de


fomentar relações sociais apropriadas substitui os rituais mandató-
rios do Templo.
A Torá é também um remédio para a perda do Templo. Entre
os sacrifícios do templo, a oferenda pelo fogo [holocausto] é o sa-
crifício mais amado por Deus, mas de acordo com Oséias 6,6, Deus
deseja "conhecimento de Deus no lugar de oferendas incineradas".
Conhecimento de Deus vem do estudo da Torá, que é a auto-revela-
ção de Deus assim como consta: "o estudo da Torá é mais amado por
Deus do que oferendas incineradas. Pois se um homem estuda a
Torá ele vem a apreender o conhecimento de Deus, como está dito:
`Logo você entenderá o temor do Senhor, e encontrará o conhe-
cimento de Deus' (Provérbios 2,5). Portanto, quando um sábio se
senta e expõe à congregação, a Escritura credita isso a ele como se
tivesse ofertado gordura e sangue no altar"» Ainda que o mundo
e a época em que os autores rabínicos devam ser baseados na Torá,
nos atos de bondade amorosa, e sobre o serviço do Templo, a Torá
é tão importante para Deus e tão essencial para a ordem do mun-
do e sua história que seu mero estudo pode compensar a perda do
ritual do Templo. O estudo da Torá leva ao conhecimento de Deus,
que é pré-requisito para o culto e a observância dos mandamentos,
que constitui o bom comportamento e promove "atos de bondade
amorosa" que estabeleçam e fortaleçam a ligação entre os humanos
e Deus.

5.3.2.3. Templo e Torá como símbolos geradores

Por trás das observações no Tratado de Abot e seus comentá-


rios, esconde-se um complexo simbólico gerador com Deus em seu
centro, e o Templo e a Torá desempenhando funções abrangentes. A
Torá é a sabedoria, plano e instrumento divino da criação (Abot 3,14;

14 Originalmente, os sacrifícios e o bode expiatório do dia do Perdão (Yom Kippur), em Leví-


tico 16, serviam para remover as impurezas causadas por infrações não intencionais dos rituais do
Templo, mas cada vez mais o festival foi associado com arrependimento pelos pecados relativos ao
comportamento social.
l'Abot de Rabi Nathan, versão A, op. cit., cap. 4.
ANTHONY J. SALDARINI ---===
- 177

Gênesis Rabbah 1,1; Sifre Deuteronômio 48). A Torá e seu reconhe-


cimento por Israel no Sinai preservam o mundo do caos (cf. Shabbat
88a). O templo em Jerusalém foi central para muitas das compreen-
sões bíblicas de Israel, crucialmente importante em grande parte
da literatura do Segundo Templo, e, mesmo depois de ser destruído
pelos romanos, central para a visão dos primeiros rabis da vida de
Israel de acordo com a Lei. Mesmo a perda do Templo, um membro
da base da tríade não podia destruir o judaísmo porque o estudo de
todas as leis dadas por Deus, mesmo aquelas que não podiam ser
aplicadas, e a aceitação delas como a ordem própria do mundo, le-
varam à existência continuada do mundo e de Israel. As leis da Torá
não são assim apenas obrigações práticas exigidas dos que aderem
ao judaísmo, mas expressões da ordem subjacente ao universo. A
pessoa humana, a sociedade e o conhecimento de realidades últi-
mas são todos constituídos pela Torá, em toda sua complexidade e
profundidade, e ativados pela conformidade consciente para com a
autoridade da Torá e as obrigações que ela implica.

5.3.3. A comunidade da Torá

A elaboração desta visão integral da vida humana sob Deus tem


lugar em uma comunidade de eruditos masculinos, os sujeitos por
excelência da maioria dos mandamentos, dentro de uma sociedade
centrada na Torá que os sustenta. Mas o caminho para uma socieda-
de centrada na Torá e sua manutenção é acossado por dificuldades e
perigos. Para guiar eruditos e pessoas ao longo do caminho certo, o
Tratado de Abot e seus comentários promovem o estudo da Torá, o
relacionamento mestre-discípulo, colocando a Torá acima de todo o
resto, o estudo comunitário, métodos para esclarecer incertezas nas
Escrituras e nas leis, um modo racional de prosseguir um discurso,
bons atos baseadas na Torá, as virtudes ordinárias da hospitalidade,
generosidade, compaixão, refreio sexual e paciência. Estes nos ad-
vertem contra os vícios que alienam uma pessoa da Torá, de Deus,
e de seus semelhantes. Por exemplo, o primeiro de cinco pares que
lideram na corrente da tradição designaram uma coleção de provér-
bios equilibrados entre os ideais do estudo e da prática.
178 - JUDAÍSMO

Jose Ben Joezer de Zeredah e José Ben Johanan de Jerusalém


retomaram a partir deles.'
José Ben Joezer diz:
Deixe sua casa ser um local de encontros para os sábios, e
sente-se no pó mesmo sob seus pés, e
beba com sede em suas palavras.
José Ben Johanan de Jerusalém diz:
Deixe sua casa ser totalmente aberta, e
deixe os pobres serem membros das pessoas da casa e
não fale em demasia com mulheres.

Nos dois provérbios, a casa, que é o centro da atividade e da


vida, é para ser aberta à comunidade. Os eruditos deveriam ser bem
vindos e ouvidos para que a Torá fosse aprendida." Os necessitados
devem ser bem recebidos e cuidados para que a Torá seja praticada.
Juntos, eles constituem a sociedade religiosa visada pela Torá.

5.3.3.1. Uma "sebe"' contra o pecado

A cláusula final do provérbio de José Ben Johanan revela o tra-


dicional mundo do Oriente Médio, centrado no masculino, no qual
as mulheres são confinadas ao cuidado da casa, vistas como uma
distração dos assuntos públicos importantes, especialmente o estu-
do da Torá, e olhadas com suspeitas como a fonte do "mal" (pecados
sexuais?). Mais fundamentalmente, este e vários outros provérbios
em Abot contrastam pecado, tentação, punição e o perigos da fra-
queza humana com o ideal de uma comunidade humana e piedosa,
devotada à Torá. Mesmo com a melhor das intenções, as fraquezas,
desejos e mesmo inadvertência humanos podem facilmente levar a
infrações contra a lei. Como um remédio para esta condição huma-
na de fraquezas e pecados, "o homem da Grande Assembléia", um le-
gendário grupo de transição que liga o período bíblico aos primeiros

16 Eles receberam a Torá de seus predecessores e a passaram para a geração seguinte e suas

sucessoras, assim mantendo a cadeia da tradição intacta.


"Na Antiguidade, grande parte da instrução era realizada no lar. Estudos mais avançados to-
mavam a forma de alguns estudantes lendo, declamando e discutindo com um professor que era
usualmente suportado por ricas famílias.
*N. do T. Hedge, no original.
ANTHONY J. SALDARINI ------=
---
-- 179

sábios, aconselha os mestres a "fazer uma sebe em torno da Torá" (cf.


Abot 1,2), ou seja, criar leis e costumes ("uma sebe" ou "cerca") que
promovam a observância das práticas ordenadas na Escritura. Uma
história didática vívida do Talmude palestino (Shabbat 1,6[3b]), que
cita o Tratado de Abot, ilustrará a sebe, usando novamente as paixões
sexuais masculinas como simbólicas da infindável suscetibilidade
humana para a tentação.
Lá (na Mishná) nós fomos ensinados:18 "Não confie em você mesmo até
o dia de sua morte" (Abot 2:4).19
Existe uma história20 sobre um homem piedoso acostumado a sentar-se e
a recitar: "Não confie em você mesmo até chegar à idade avançada". (Ele
pensou:) Como eu.
Um espírito (feminino) veio e o tentou (e ele cedeu).21 Então ele come-
çou a lamentar-se. Ela [o espírito] disse a ele: "Não se preocupe. Sou um
espírito".22 Vá e seja atencioso com seus semelhantes.23

Esta história liga a resistência à tentação com a orientação dada


pelos ensinamentos rabínicos, e desvaloriza qualquer sabedoria que
discorde ou mitigue instruções autoritativas. Assim, o homem pie-
doso que havia prudentemente desconfiado dele, mesmo até sua
idade avançada, no final falhou em resistir à tentação, porque ele
havia modificado os ensinamentos ("a sebe") dos sábios. A pequena
vinheta sobre a tentação do sábio na velhice encerra muito do ensi-
namento rabínico sobre o mal. Primeiro, não importando qual a ida-
de ou motivação, a fraqueza humana levará para uma inadvertida ou
proposital infração da Torá. Deve-se sempre levar em conta a incli-
nação humana ao pecado, simbolizada pela "inclinação ou impulso
para o mal" (veja a seguir). Segundo, o antídoto para esta tendência
inata para o mal é a Torá (significando a revelação, mandamentos de

"A expressão Aramaica taman teninan tem um significado técnico no qual "lá" é compreendi-
do como sendo a Mishná, a coleção autoritativa sobre a qual o Talmude está comentando.
'Este dito é um dos vários atribuídos a Hillel, no Tratado Abot.
2°"Há uma história" (ma'ase b - ) é uma introdução técnica para uma narrativa, histórica ou
ficcional, que autoriza a precedente ou ilustra uma regra da Mishná.
21A implicação não dita é a de que ele de alguma forma cai na tentação sexual.

22 Uma vez que o espírito não é um humano real, o suposto ato sexual do piedoso homem não

foi uma violação do mandamento que lida com os atos entre humanos.
23 0u seja, recita o dito da maneira como o resto dos sábios o fazem.
180 JUDAÍSMO

Deus, estudo da Torá, e obediência à Torá).24 O sábio deve estudar e


aceitar os mandamentos de Deus e desenvolver a disciplina para ob-
servá-los rigorosamente» Somente então poderá a tendência para
o mal ser controlada.26

5.3.3.2. Responsabilidade divina e humana pelo mal

A imagem do humano ideal, responsiva às obrigações deriva-


das da natureza da criação, os mandamentos explícitos revelados
por Deus e ativamente relembrados nas tradições da comunidade
judaica, é qualificada fundamentalmente pela tendência humana
onipresente para a rejeição de um vasto conjunto de obrigações e
da Torá e Deus. Este dilema humano, paradoxal e conflituoso so-
licita uma reflexão séria e sustentada sobre a origem, natureza e o
poder do mal na vida humana, especialmente o mal moral. Embora
os rabinos tenham um convicto senso da fragilidade humana e da
prevalência do pecado, suas atribuições de responsabilidade pelo
pecado, tentação e fraquezas humanas variam de acordo com as am-
bigüidades da vida. Deus corno criador dos humanos é tanto cul-
pado como isento em relação aos males na vida humana. Os rabis
reclamam sobre os planos de Deus para os humanos, especialmente
sua criação do impulso para o mal que os leva ao pecado e ao com-
portamento destrutivo, ainda que eles concordem com relutância
que Deus é justiça. Eles adotam plenamente a liberdade e respon-
sabilidade humana para o pecado, mesmo quando eles lamentam
amargamente os inexoráveis conflitos entre o bem e o mal na vida
humana.

5.3.3.2.1. Cooperação divino-humana


A história do pecado de Adão no jardim do Éden serve como
paradigma para a condição humana, mas, contrariamente à teologia
Cristã, não como causa do mal, do pecado e do sofrimento huma-

24b. Bab. Bat. 16'; b Kidd. 30b; Sifre Deuteronomio 45.


2513. Suk. 51b-52a.
26 Steven D. Fraade. "Ascetical Aspects of Ancient Judaism", Jewish Spirituality from the Bible

to the Middle Ages, ed. Arthur Green (New York: Crossroad, 1986), 252-78.
ANTHONY J. SALDARINI 181

nos.27 Antes, a inevitabilidade e a onipresença do mal suscita o pro-


blema da teodicéia para os rabinos. Um bom sumário das ambigüida-
des da existência humana pode ser encontrado no Tratado Berakot
("Bênçãos"), que ensina sobre os momentos e formas de bênçãos, ou
seja, orações. Orar ou abençoar implica relacionamento ativo entre
Deus e o devoto. As bênçãos santificam numerosas ocasiões e reco-
nhecem o interesse e a atividade de Deus na vida humana. Mas as
coisas más que acontecem às pessoas suscitam a questão da teodicéia
que é tratada ao final do tratado Berakot.
Uma pessoa está comprometida a abençoar [Deus] para o mal mesmo
que ele abençoe para o bem, como diz a Escritura, "Tu deves amar ao Se-
nhor seu Deus com todo seu coração e com toda sua alma e com toda sua
força" (Deuteronômio 6,5). "Com todo seu coração" significa com ambos
os seus impulsos, como o bom impulso e com o mau impulso; "com toda
sua alma" significa que mesmo que [Deus] leve sua alma; "com toda sua
força" significa com toda sua abundância. Outra explicação: "com toda
sua força" significa que, qualquer que seja a medida com que [Deus]
meça você, agradeça a Ele imensamente (cf. Berakot 9,5)•28

Essa exegese bíblica comprime a situação humana em três es-


tágios. Primeiro, nós humanos experimentamos o bem e o mal na
vida e não podemos controlar completamente os resultados, porque
o coração humano, que é o lugar do pensamento, das mais elevadas
emoções e da vontade, está dividido entre tendências tanto para o
bem como para o mal, simbolizadas como o bom e o mau impulsos.
Segundo, o mal constantemente ameaça a alma, que é o princípio
da vida, com a morte. Terceiro, preservar a vida e resistir ao mal e à
tentação requer uma força divina que deve ser concedida e que está
além da força humana. Assim, de acordo com Berakot, o piedoso, o
suplicante acredita em Deus e agradece a Deus por aquilo que Deus
enviar, tanto o bem quanto o mal. A solução para as tensões na na-

27Adão aparece como uma figura positiva na literatura judaica do Segundo Templo da literatura

judaica. Ver John R. Levison, "Portraits of Adam in Early Judaism from Sirach to 2 Baruch" (JSPSS 1;
Sheffield: JSOT Press, 1988).
28As palavras hebraicas para "força", "medida", "obrigado" e "grandemente" são todas ou

bem soletradas ou pronunciadas similarmente, assim esta interpretação é baseada no jogo de pa-
lavras.
182 =— JUDAÍSMO

tureza humana e o caminho para a integridade madura ("identidade


pessoal alcançada") requer um relacionamento ativo com Deus.
Mas esta resposta geral muito vaga não explica adequadamente
o problema do mal humano, porque a fraqueza humana e o pecado
não são questões simples. A desobediência de Adão a Deus no Jar-
dim do Éden (Gênesis 3) não explica a origem do mal e do pecado,
mas apenas proporciona um exemplo da fragilidade humana. A des-
peito de seu fracasso, Adão — o primeiro humano — é apresentado
com mais freqüência numa visão positiva na literatura do Segundo
Templo e na rabínica, seja como uma figura cósmica ou como o hu-
mano arquetípico criado por Deus.29 A tendência de Adão ao mal e
ao pecado levanta tanto questões sobre Deus quanto sobre Adão.

5.3.3.2.2. Responsabilidade divina pelo bem e pelo mal


Os rabinos elegem Deus, não Adão, como responsável pelo es-
tado geral da vida humana com suas ambigüidades e o mal, e assim a
complexidade da vida deveria ser explicada por intermédio da com-
plexidade em Deus. No próprio ato da criação, Deus viu-se diante
de um paradoxo:
Na hora que o Santo, abençoado seja Ele, veio criar Adão, ele viu pessoas
justas e perversas surgindo deste. Deus disse: "Se eu o criar, pessoas per-
versas surgirão dele; se eu não o criar, como poderão os justos resultar
dele?".
O que fez o Santo, abençoado seja Ele? Removeu o caminho dos maus
de sua frente, e associou a ele a qualidade da misericórdia e o criou
[Adão].3°

Por que os humanos inevitavelmente produzem o mal acompa-


nhado do bem, Deus governa o mundo (e mesmo a criação) seguin-
do duas normas complementares: justiça e misericórdia. Se Deus

29Ver Levison (citado anteriormente) para Adão nas narrativas e exegeses do Segundo Templo.

Para Adão como uma figura cósmica na literatura rabínica, ver Susan Niditch, "The Cosmic Adam:
Man as Mediator in Rabbinic Literature", llS 35 (1982-74): 137-46.
30Gênesis Rabbah 8,4. Gênesis Rabbah é um comentário rabínico do Livro do Gênesis, aproxi-

madamente do século V. Ele contém numerosos comentários sobre palavras e versos bíblicos, breves
sermões, histórias, ditados e outros materiais. As datas originais dos materiais reunidos em Gênesis
Rabbah são muito difíceis de serem estabelecidas.
ANTHONY ). SALDARINI 183

governasse somente com justiça, o mundo perverso seria condena-


do e destruído. Se governasse somente com misericórdia, o pecado
e o mal dominariam. Assim Deus joga com as realidades do mundo
para possibilitar a existência do ser humano. Deus tem aceitado e
deve continuar aceitando o mal humano, e tem moderado justiça
com misericórdia, porque "desde o princípio mesmo da criação do
mundo, o Santo, abençoado seja Ele, previu os atos do justo e os atos
do perverso" (Gênesis Rab. 3,8). Bem e mal são constitutivos dos hu-
manos e do mundo humano desde o início, inevitavelmente e de
acordo com a decisão divina.

5.3.4. A inclinação para o mal


O conflito dinâmico nos humanos, entre tendências e com-
portamentos bons e maus, é simbolizado pela metáfora de uma in-
clinação ou impulso bom (yetzer ha-tov), e uma inclinação para o mal
(yetzer ha-ra'). Mas mesmo aqui, a inclinação para o mal não é todo o
mal. Entendida como desejo, motiva pessoas ao cultivo, a construir
casas e ter famílias.3' Alguns textos dramatizam seus efeitos destru-
tivos nos humanos, e mesmo personificam-na como um espírito
mau, enquanto outros colocam uma significativa responsabilidade
pelo impulso para o mal em Deus. O "impulso para o mal" não é uma
teoria do mal organizada e coerente, mas uma resposta imaginativa
e evocativa a ele. Várias soluções são propostas para controlar a in-
clinação para o mal, especialmente o estudo e observância da Torá.
À medida que a tradição se desenvolve, propõe o arrependimento
como a solução para a inevitabilidade do mal, em conjunto com res-
tituição aos semelhantes. Tanto a situação de Israel no exílio como
da vida humana num mundo mau recebem um desenvolvimento
detalhado. Alguns provérbios da literatura rabínica esboçarão as li-
nhas principais deste complexo metafórico32 que dirige-se à natu-

31Gênesis Rabbah 9,7.

"As muitas e variadas histórias, interpretações e ditados que dizem respeito à inclinação ao
mal são reunidas e interpretadas em Frank C. Porter, "The Yecer Hara: A Study in the Jewish
Doctrine of Sin", Bíblica! and Semitic Studies: Critica! and Historical Essays by the Members of
the Semitic and Biblical Faculty [sic] of Yale University (New York and London: Scribner's/Arnold,
1901), 91-156; E.E. Urbach, The sages: Their Concepts and Beliefs (Jerusalem: Magnes, 1975),
184 JUDAÍSMO

reza dos humanos, e suas buscas para alcançar uma integridade e


identidade pessoal madura.

5.3.4.1. Os efeitos da inclinação para o mal


A idéia de uma tendência, impulso, ou inclinação (yetzer em
hebraico) para o mal vem principalmente de duas afirmações sobre
a corrupção humana no Gênesis. Antes do dilúvio que destruiu qua-
se toda a humanidade, "Iahweh viu que a maldade do homem era
grande sobre a terra, e que era continuamente mau todo desígnio de seu
coração" (Gênesis 6,5). Depois do Dilúvio os sobreviventes, Noé e sua
família, ofereceram a Deus um sacrifício. Em resposta "Iahweh res-
pirou o agradável odor e disse consigo: 'Eu não amaldiçoarei nunca
mais a terra por causa do homem, porque os desígnios do coração do ho-
mem são maus desde a sua infância; nunca mais destruirei os viventes,
como fiz'. (Gênesis 8,21). O impulso ou inclinação para o mal, de
ytzr, cuja raiz significa criar, fazer, moldar, refere-se aos impulsos
corporais, emocionais e pessoais para atingir metas humanas. Em-
bora o termo possa ser usado com neutralidade, é mais inclinado
para as paixões humanas, como a necessidade sexual e a ira, e que
podem facilmente tornar-se egoístas ou destrutivas. No tratado
de Abot, o rabi Joshua alerta sobre três perigos para as relações so-
ciais: "O olhar mau, o impulso mau e o ódio da humanidade põe
uma pessoa fora do mundo" (Abot 2,I I). Depois, Ben Zoma define
a pessoa forte como aquela que "subjuga seus impulsos" (Abot 4,1).
Ben Zoma cita Provérbios 16,32, que diz respeito à raiva como uma
maneira de caracterizar o impulso mau. O provérbio do Rabi Joshua
implica que uma tendência para inveja e a cobiça ou cupidez destrói
a sociedade humana. Outros textos relatam a inclinação para o mal
da luxúria (veja a história do Talmude Palestino acima, e b. Berakot
6ia) e da idolatria (b. Yoina 69b)."

471-83; Solomon Schechter, Some Aspects of Rabbinic Theology (New York: Macmillan, 1909),
242-92. Ver Roland E. Murphy, "Yeser in the Qumran Literature," Bíblica 39 (1958): 334-44; A.
P. Hayman, "Rabbinic Judaism and the Problem of Evil", Scottish Journal of Theology 29 (1976):
461-76.
33 Michael L. Satlow, "Shame and Sex in Late Antique Judaism", Ascetism, ed. Vincent L. Wim-

bush and Richard Valantasis (New York: Oxford University Press, 1995), 535-43.
ANTHONY J. SALDARINI 185

5.3.4.2. Combatendo a inclinação para o mal

Em geral, o impulso ou inclinação para o mal é concebido


como poderosamente resistente e crescente, se não for combatido
com resistência firme. É tratado como uma força negativa que deve
ser contida pelo esforço humano e o auxílio divino incorporado
nas obrigações dos mandamentos. Alguns textos ligam a origem
do impulso mau ao momento do nascimento. Ano após ano, ele
aumenta em força e subjuga a boa inclinação.34 Somente disciplina,
vigilância e devoção à Torá podem neutralizar sua influência. Mas,
mesmo se o mau impulso inevitavelmente causa o pecado e de-
sordem, os humanos são responsáveis por seus comportamentos.
Num famoso provérbio em Abot, Aqiba ensina "Tudo é previsto,
porém a liberdade de escolha é concedida. O mundo é julgado com
a bondade [divina] e tudo será de acordo com preponderância dos
atos". (Abot 3a .5). Para os sábios rabínicos, a ordem moral comuni-
cada por meio da Torá era fundamental para a natureza de Deus e
do mundo. Negar que Deus julga entre bem e mal seria equivalente
a negar a realidade de Deus. Neste mundo, os humanos, presos en-
tre o mau impulso e a Torá, são livres para escolher. Eles escolhem
certo se são fiéis às obrigações que lhes são incumbidas como hu-
manos, e são fieis se aprendem e obedecem aos mandamentos de
Deus.

5.3.4.3. A necessidade da inclinação para o mal

Embora o impulso para o mal seja freqüentemente tratado


como um inimigo da bondade e da vida humana, os rabinos o re-
conheceram como necessário para a vida, e assim não totalmente
mal. Os sábios explicam que "sem o impulso do mal um homem
não construiria uma casa, não teria esposa e filhos." E Salomão veri-
fica isto: "E eu vi todo labor e toda a habilidade no trabalho, que ele
é a inveja de uma pessoa para com seu vizinho" (Gênesis Rab 9,7).
O mais "natural" estado dos humanos, como formar uma família,
procede dos desejos sexuais que são necessários para a sobrevivên-

34
b. Suk. 52a-b; Abot de Rabi Nathan, versão A, cap. 16 e versão B, cap. 30.
-=
--- JUDAÍSMO
186-

cia humana. A "natural" coexistência do bem e do mal no mundo,


encontrado antes em Ben Sirac, é afirmada por intermédio de uma
interpretação forçada de Gênesis 1,31, "Deus viu o que tinha feito: e
era muito bom", uma frase dita originalmente do mundo criado. Esta
afirmação sumária, que diz respeito à bondade da criação de Deus,
poderia parecer excluir o impulso para o mal, mas o hebraico con-
tém a partícula conectiva "nós-" significando "e". Na hermenêutica
rabínica, esta partícula pode ser entendida como incluindo algo não
obviamente subentendido. Nesse caso, os sábios interpretam essa
partícula como inclusiva do impulso para o mal, que foi também
obra de Deus (Gênesis Rab. 9,7). Uma história talmúdica captura a
ambigüidade dos desejos humanos de forma mais perspicaz que a
de Gênesis Rabbah. Israel foi autorizado a aprisionar o impulso para
a idolatria em um pote de chumbo porque a idolatria havia levado
à destruição do Templo, e Jerusalém ao exílio de Israel. (Note que
o impulso é personificado por um espírito do mal.) Mas com o im-
pulso aprisionado, nenhum ovo foi posto porque o impulso do mal
também motiva a atividade reprodutiva entre animais (e humanos).
A produção da comida humana e da vida humana requer o impulso
do mal. Conseqüentemente, Israel libertou o impulso e assim a vida
pode continuar, mas somente depois de deixá-lo cego para reduzir
sua força (cf. Yoma 69b).

5.3.4.4. Integrando a inclinação para o mal na ordem criada

Mesmo com o impulso do mal, num sistema monoteísta Deus


é o responsável último por ambos, bem e mal. No Gênesis 8,21,
Deus admitiu que "toda inclinação do coração [da humanidade] é
mal que vem da infância". Em resposta, um comentador rabínico
disse com escárnio: "Quão miserável deve ser a massa quando o pró-
prio padeiro declara esta ser pobre!" (Gênesis Rab. 34,10). Em um
outro provérbio Deus lamenta ter criado o impulso do mal devido a
todos os problemas causados por ele (cf. Suk.5213). Gênesis Rabbah
explora a trama da criação boa de Deus posta com as tendências ao
mal e ao pecado, por meio da história bíblica. O próprio ato da cria-
ção encerra os pecados da humanidade.
ANTHONY J. SALDARINI 187

"E a terra era o informe e o vazio (tohu va-vohu), e a escuridão estava


sobre a face do abismo" (Gênesis 1,2). Rabi Judah, filho do Rabi Simeon
interpretou o texto como referência às gerações."
"E a terra era o informe (tohu)" refere-se a Adão (Gênesis 3), que foi
reduzido ao completo nada (pela sua desobediência a Deus).36 "E o va-
zio" refere-se a Caim (Gênesis 4), que desejou levar o mundo de volta
ao informe e ao vazio (pelo assassinato de seu irmão).37 "E a escuridão"
refere-se à geração de Enós38 (Gênesis 5,6-11): "E seus trabalhos estão
no escuro" (Isaías 29,1 5).39 "Sobre a face do abismo" refere-se à geração
do dilúvio (isto é, a maioria da humanidade destruída por um dilúvio
decorrente do pecado e da corrupção — Gênesis 6-9): "No mesmo dia
todas as fontes do abismo foram rompidas" (Gênesis 7,11). (Gênesis Ra-
bbah 2,3)

Frases subseqüentes do Gênesis são associadas com os patriar-


cas fundadores de Israel, e a próxima seção do comentário (2.4) con-
tinua a história de Israel através de quatro impérios maléficos do
mundo (Babilônia, Média [Pérsia], Grécia e Roma) à espera do Mes-
sias (um líder ungido por Deus) como salvador da nação no fim dos
tempos. Desde o início da criação, Deus previu a construção do Tem-
plo, sua destruição, e sua reconstrução na era messiânica (2.5). Bem
e mal, ordem e pecado são firmemente ligados um ao outro desde
a criação através da história até o fim do mundo, de uma maneira
reminiscente de Sirac, anteriormente citado. O relato da criação e
a criação em si contêm o padrão subjacente da história, que é um
relacionamento com Deus rompido pelo pecado e restaurado pelo
arrependimento. O mal está sempre presente, mas submetido pela
boa criação por um bom criador.

35A última linha dessa primeira história da criação diz em conclusão: "Esta é a história [gerações]
do céu e da terra, quando foram criados" (Gênesis 2,4a). R. Judah toma gerações como "geração
humana" e lê Gênesis 1 como um código para a humanidade até Jacó/Israel.
"Lemah we-lo' Kelum. Tohu, em outros lugares da Bíblia, significa algo que é em vão ou nada.
Supostamente o nada é por causa do pecado.
370 fratricídio de Caim trouxe o caos.
38 Enós é o filho de Set e neto de Adão (Génesis 5,6-11). Nada é dito sobre sua geração em
Gênesis 5. Uma vez que Adão pecou na primeira geração e Caim na segunda, o autor assume que
havia pecado na terceira geração, que ele conecta com as trevas no Gênesis 1,2.
"Is 29,15 diz "Ai dos que procuram refugiar-se nas profundezas, a fim de ocultar a lahweh os
seus desígnios, e realizam suas obras nas trevas e dizem: 'Quem nos verá? Quem nos conhecerá?".
Tais pessoas são zombadas por pensarem que podem enganar a Deus, que os criou.
188 - JUDAÍSMO

5.4. O período moderno

Percepções judaicas da condição humana, especialmente so-


bre o mal e o sofrimento, desenvolveram-se notoriamente no Oci-
dente moderno4° devido à ênfase iluminista na razão humana e às
perseguições anti-semitas medieval e moderna, que culminaram na
destruição da maior parte das comunidades judaicas européias por
Hitler durante a Segunda Guerra Mundial. Escritos tradicionais so-
bre o sofrimento e a perseguição, freqüentemente impulsionaram
a aceitação destes eventos como decretos divinos misteriosos ou
como punição pelos pecados. Eles questionaram os propósitos de
Deus e seus sofrimentos, na maneira como o Talrnude lutou com a
destruição romana do Templo e a dominação da vida judaica. Alguns
autores, como Joseph Soloveitchik (citado no início deste estudo),
quase não levantaram o problema do sofrimento ou do Holocausto,
mas continuam a buscar o que a Torá exige que o judeu faça em to-
das as circunstâncias, até as mais trágicas.

5.4.1. Teodicéia pós-Holocausto


Mas, após o iluminismo, muitos judeus começaram a questio-
nar o sofrimento de uma maneira que presume uma realidade fora
de Deus, tanto que o sofrimento e o mal, e até mesmo Deus, deve-
riam ser avaliados de acordo com critérios externos e objetivos. A
reflexão sobre o holocausto alcançou, talvez, seu maior ponto de im-
pacto quando Richard Rubenstein declarou que à luz do holocausto
Deus estava morto (no senso nietzcheano), ou seja, o mito ou a idéia
tradicional de que Deus não seria viável por muito tempo.4' Emil
Fackenheim, em contraste, advertiu aos judeus para não dar a Hi-
tler uma vitória póstuma ao deixar de viver como judeus.42 Judeus

40 Este estudo de algumas tendências no moderno judaísmo é baseado na pesquisa e nos co-

mentários críticos de Joseph Kanofsky.


41 Ver seus ensaios em After Auschwitz: Radical Theology and Contemporary Judaism (New

York: Bobbs-Merrill, 1966). Sua segunda edição, significativamente diferente e intitulada After Aus-
chwitz: History, Theology and Contemporary Judaism (Baltimore: Johns Hopkins, 1992), é mais
conciliadora para com a tradição, mas ainda enfatiza o imanente em preferência a um DetÉ trans-
cendente (por exemplo, pp. 171-74).
42 Emil Fackenheim, To Mend the World: Foundations of Future Jewish Thought (New York:

Schocken, 1982), 299.


ANTHONY J. SALDARINI 1 89

observantes têm expressado sua aflição e esperança em elegias e la-


mentos que têm sido incorporados nas preces diárias e em festivais
anuais, especialmente o Dia da Expiação e o Nono de Av, que come-
mora a destruição do Templo e por extensão muitos outros desastres
da história judaica. Assim uma resposta central da tradição tem sido
relembrar e incorporar o bem e mal na história judaica (veja a análi-
se de Berakot 9,5 anterior).

5.4.2. Respostas racionalistas e tradicionalistas


Duas amplas aproximações ao problema do mal e do sofrimen-
to têm sido desenvolvidas desde o Holocausto. Uma coloca o pro-
blema franca e insistentemente do sofrimento e do mal à luz dos
horrores do Holocausto, exigindo uma resposta satisfatória de Deus,
da razão ou da história. Esta abordagem reflete a confiança do ilumi-
nismo que a razão humana pode responder qualquer questão, abran-
ger qualquer problema, e implicitamente, compreender completa-
mente Deus e o universo. A outra, mais similar à tradição talmúdica,
coloca a questão do sofrimento e do mal em todo seu paradoxo e
ambigüidade sem exigir uma resposta. A primeira protesta insisten-
temente para ou contra Deus, ou pelo menos, contra a tradicional (e
inadequada) figura divina que não pode responder à questão. A se-
gunda trata a questão do mal como qualquer outra questão talmúdi-
ca que provoca uma pluralidade de respostas e escapa a uma solução
decisiva. Aproxima-se da verdade por meio do estudo sofisticado da
questão e da luta contra respostas conflitantes. Nas palavras de um
velho provérbio, "A questão continua uma questão, mas nós vamos
seguindo". Essa segunda abordagem pode ser resumida sucinta e
poeticamente em Gates of the Forest, de Elie Wiesel. O protagonista,
que é um sobrevivente do Holocausto, encontra um Rebbe Hassí-
dico (um líder carismático espiritual) e pergunta a ele: "Depois de
tudo que aconteceu conosco, como pode você acreditar em Deus?".
O Rebbe olhou profundamente em seus olhos e respondeu, "E como
pode você não acreditar em Deus depois de tudo que aconteceu?"43

Wiesel, Gates of the Forest (New York: Holt, Rinehart, Winston, 1966), 194.
=--- JUDAÍSMO
190 —

5.4.2.1. O desafio tradicionalista de Wiesel para a tradição

Mas por mais consoladora que a proposta tradicional possa ser,


com sua mobilização da oração e do estudo, a pesquisa e os recursos
centrais da tradição ortodoxa, a questão do mal e do sofrimento, do
valor e do significado da vida humana, ainda confrontam os judeus
modernos, sejam tradicionais ou liberais. Elie Wiesel, um judeu eu-
ropeu e órfão sobrevivente dos campos de concentração nazistas,
voltou-se à narrativa, o mais poderoso gênero bíblico, a fim de cha-
mar Deus à terra para prestar contas dele mesmo e de seu cuidado
de Israel como povo eleito. Em Night, sua memória intensamente
reflexiva e simbólica do seu tempo no trabalho e campos de con-
centração na Europa, Wiesel conta a história da execução de três
pessoas suspeitas de resistência.44
As três vítimas colocadas juntas sobre as cadeiras.
Os três pescoços foram colocados no mesmo momento dentro das cor-
das de forca.
"Vida longa à liberdade!", gritaram os dois adultos.
Mas a criança estava silenciosa.
"Onde está Deus? Onde está ele?", alguém atrás de mim perguntou.
Ao sinal do chefe do campo, as três cadeiras tombaram.
Total silêncio atravessou o campo. Sobre o horizonte, o sol se colocava.
Então o desfile começou. Os dois adultos não estavam mais vivos. Suas
línguas inchadas penduradas, tingidas de azul. Mas a terceira corda con-
tinuava se movendo; sendo tão leve, a criança continuava viva...
Por mais de meia hora ele continuou lá, lutando entre a vida e a morte,
morrendo em lenta agonia sobre nossos olhos. E nós tivemos que olhá-
lo de cheio em sua face. Ele ainda estava vivo quando passei em frente
dele. Sua língua continuava vermelha, seus olhos ainda não estavam vi-
drados.
Atrás de mim, escutei o mesmo homem perguntando:
"Onde está Deus agora?"
E escutei uma voz atrás de mim responder a ele:
"Onde está ele? Aqui está Ele — Ele está pendurado aqui na forca..."
Naquela noite a sopa tinha gosto de cadáveres.

E1i Wiesel, Night (New York: Bantam, 1982), 61-62.


44
ANTHONY J. SALDARINI --=
= =" 191

Em sua própria vida, Wiesel primeiro respondeu à desumani-


Jade do genocídio nazista e de Deus com um silêncio de dez anos,
lurante o qual ele não publicou. Então ele publicou Night, que con-
tém esta história horrorizante, desafiante e evasiva. Para Wiesel, au-
tor judeu maduro pós-Holocausto, o que está em jogo é maior que
Ben Sirac — com quem começamos este estudo —, mas as respos-
tas são mais evasivas. O Deus de Wiesel é mais ambíguo e perigoso
que o de Ben Sirac. Um Deus que serenamente preside sobre o bem
e o mal num mundo racional (Sirac 33, anteriormente) não servirá
em Buna, o campo de trabalho escravo que mata seus prisioneiros
inocentes. Nem a sutil crítica de Coelet sobre Deus e a tímida acei-
tação de uma vida confortável sem o conhecimento real de Deus
satisfaz ou conforta o mundo desumanizado de Birkenau (vivo nas
memórias de Wiesel), onde bebês eram queimados num fosso.45
'Nunca conseguirei esquecer aquelas chamas que consumiram mi-
nha fé para sempre... Nunca conseguirei esquecer estes momentos,
que assassinaram meu Deus e minha alma, e transformaram meus
sonhos em pó".46 Nesta crise, o Deus da tradição judaica deve res-
tabelecer seus relacionamentos com seu povo de Israel e ficar com
suas mãos sujas com o sofrimento e a dor da humanidade, se ele
quiser manter sua aliança com seu povo. Wiesel encontra-se numa
longa linha de contadores judaicos de histórias, que data do Livro
de Jó, da interpretação midráxica das Escrituras e do Talmude babi-
lônico, que confrontam Deus ao forçá-lo para a vida humana. Mas
mesmo aqui, Wiesel flexibiliza os limites. Os campos de extermínio
estavam cheios de judeus, os quais os nazistas procuravam erradi-
car. Mas de uma forma profunda e irônica, a execução dramática do
garoto, que provoca a pergunta sobre Deus, dirige-se a todos os hu-
manos e não somente aos judeus que foram o objeto particular do
5dio nazista. O garoto, servidor de um acampamento holandês que
Foi descoberto resistindo aos alemães, não é especificamente iden-
tificado como um judeu ou gentio (assim como a identidade de Jó
deixada vaga). Ele, os judeus no campo e também os prisioneiros

45 Ibid., 30.
46 Ibid., 32.
192 JUDAÍSMO

gentios, todos eles pertencem a Deus, o criador — ou será que per-


tencem? pergunta Wiesel.
Uma voz dentro de Wiesel responde à pergunta do prisioneiro
anônimo: "Aqui está Ele — Ele está pendurado aqui na forca..." Os
cristãos podem ser inicialmente confortados pelo paralelo superficial
com Jesus na cruz, mas eles não escutaram a voz. É a voz de Deus ou
de Wiesel? A voz fala a verdade? Se Deus fala a verdade para Wiesel,
Deus foi também superado pelo mal como seu povo o foi? É a criança
estrangulada, pendurada na forca, um testemunho e um sinal do des-
tronamento de Deus como o rei poderoso e providente do universo?
Deus morreu com a criança? Ou é a presença de Deus um sinal de sua
misericórdia, ou é a ambígua e perturbada memória de Wiesel, sua
história do campo de morte, seu Night, um prelúdio para uma nova
ou mais profunda apreensão de Deus, crescendo da tradição judaica
para abranger mais uma vez a tragédia e a vitalidade da vida huma-
na?47 A presença de Deus no campo dos israelitas no Êxodo protegeu
a fuga dos escravos hebreus dos exércitos do Faraó (Êxodos i 3-15),
mas não na Alemanha em 1944. A "presença" de Deus nos campo
de trabalho forçado e na forca levanta perguntas, mas não soluciona
nada definitivamente. A omissão no fim da sentença ("Ele está pen-
durado aqui nesta forca...") é uma parte não dita da declaração de Wie-
sel, deixando-a aberta, inacabada e incerta. E mesmo se a voz falou a
verdade, respondeu à questão silenciosamente dentro de Wiesel. O
prisioneiro atrás de Wiesel, que fez a questão em voz alta, e aqueles
que escutaram sua pergunta, não podiam escutar a voz de dentro de
Wiesel. E então, a despeito da voz, "naquela noite a sopa tinha gos-
to de cadáveres", e no fim de Night, após sua libertação, Wiesel olha
no espelho e vê um cadáver olhando fixamente de volta para ele.48

5.4.3. Wiesel dentro da tradição judaica

Mais de trinta anos depois, Wiesel explicitamente reafirmou


sua raiva por Deus, tanto que em seus livros "a presença de Deus

'Richard Rubenstein respondeu que o Deus da tradição está morto. Ver seus ensaios em Atter
Auschwitz: Radical Theology and Contemporary ludaism (New York: Bobbs-Merrill, 1966).
48Wiesel, Night, op. cit., 109.
ANTHONY J. SALDARINI-=," 193

é acompanhada por um protesto, e eu espero que enquanto viver


possa de alguma forma ser capaz de formular, de articular este pro-
testo. Mas de dentro de mim, não de fora".49 Wiesel, assim como Ben
Sirac e muitos autores da tradição rabínica, dois mil anos antes dele,
encerra, desafia, e estende a tradição judaica. Ben Sirac racionalizou
a tradição judaica em face da cultura e da filosofia grega no período
helênico do ocidente mediterrâneo. Os rabinos costuraram a tradi-
ção bíblica em um mundo rico e nutritivo, que sustentou os judeus
por séculos. Wiesel combate a irracionalidade destrutiva dos des-
cendentes da tradição helênica e questiona as certezas do mundo
talmúdico. Tudo luta com Deus, um mundo imperfeito dependente
de Deus e a tendência humana para o mal, tudo está inexoravelmen-
te associado com Deus, para o melhor ou para o pior.
No período moderno, o cosmos supostamente ordenado e sua
divindade dirigente têm estado sob críticas mais inquisitivas e per-
sistentes do que o foi na literatura rabínica. O mundo que deveria
sustentar a sociedade humana tornou-se caótico, e o Deus que de-
veria proteger o judeu (ou humano) responsável e obediente, tor-
nou-se menos digno de confiança e mais perigoso. Com o desvane-
cimento do pano de fundo cósmico e a desintegração da sociedade
humana, o indivíduo humano tem sido deixado sozinho, o centro da
atenção, mas enfraquecido pelas ambigüidades e ameaçado de den-
tro e de fora. As memórias comunitárias que sustentavam a identi-
dade pessoal e social, que têm levado os mandamentos autoritativa-
mente revelados, têm enfraquecido de forma que o prisioneiro que
levantou a questão em voz alta não teve resposta pública, nem uma
voz autorizada do Sinai dando direção aos prisioneiros no campo.
Ao contrário disto, um indivíduo escuta uma voz interna ambígua
e sem interpretação, de autoridade duvidosa, (os outros escutaram
alguma coisa também?) e que a cada noite, trinta anos depois, ainda
sente o gosto da morte. A urgência e a depravação da condição hu-
mana atiram-se sobre o leitor, mas as questões, o ultraje, e a doloro-

. "Questions and Answers: At Brandeis-Bardin, 1978", [um instituto em Simi Valley, California]
em Against Silence: The Voice and Vision of Elle Wiesel, ed. Irving Abrahamson (New York: Holo-
caust Library, 1985), vol. 3, p. 246.
194--- - JUDAÍSMO
-=--=

sa busca por uma resposta, ainda têm lugar dentro das complexas e
multiformes tradições da comunidade judaica.

5.5. Conclusão

Na tradição talmúdica, que tornou-se normativa para a comu-


nidade judaica até o iluminismo, um judeu é identificado e consti-
tuído pela Torá, a própria revelação de Deus, que articula a forma da
vida humana por meio da lei. Por trás das aborrecidas particulari-
dades de uma vida observante da Torá, permanece Deus, o criador
e soberano do universo, que garante a unidade e ordem do cosmos
no qual o judeu vive. A comunidade judaica, por sua vez, é ligada a
Deus e ao universo pela Torá, especificamente pelas obrigações con-
cretas que guiam todos os aspectos da vida de seus membros. A or-
dem do universo, espelhada na vida ordenada dos judeus, assegura a
ascendência da bondade. A aliança que liga Israel a Deus define o lu-
gar de comunidade no universo e minimiza as inevitáveis rupturas
no relacionamento entre o céu e a terra. As limitações, frustrações,
sofrimentos e males da vida humana estão mais do que equilibrados
pela vida integral e autêntica da Torá, que é a sabedoria de Deus e a
estrutura racional do universo.
A paz ideal de um Israel vivendo de acordo com a Torá tem sido
freqüentemente rompida pelos males característicos da condição
humana na terra. O pecado, entendido como a recusa em seguir fiel-
mente as estipulações da aliança entre Deus e Israel, rompe a harmo-
nia da sociedade humana, assim como também o mundo de Deus. A
rejeição à obrigação, ou seja, a desobediência aos mandamentos de
Deus, prejudica diretamente Israel e rompe seu relacionamento pro-
tetor com Deus. O sofrimento, a morte, a destruição e a alienação de-
correm daí. Desde o início, na história do Jardim do Éden (Gênesis 3),
por interrnpedio do símbolo rabínico da inclinação para o mal, e até
a desumanidade chocante do Holocausto, a tradição comunitária e
intelectual judaica tem lutado para entender, responder e reconciliar
o poder cósmico, a presença e a preocupação de um Deus que se de-
dica à ordem, com a propensão persistente, dolorosa e intratável para
a desordem e a destruição nos desejos e comportamentos humanos.
6

ENCARNAÇÃO E REDENÇÃO
A condição humana no cristianismo antigo

Paula Fredriksen
com Tina Shepardson

6.1. Introdução

Explorar a história do antigo cristianismo é já se engajar no


estudo comparativo da religião. Uma subespécie vigorosa do judaís-
mo tardio do Segundo Templo, o novo movimento logo cruzou as
fronteiras de seu contexto de origem — rural, de base aramaica, es-
magadoramente judeu — em direção às comunidades das sinagogas
urbanas, de língua grega e etnicamente miscigenadas do Mediter-
râneo oriental. A primeira documentação que temos desse período
— as cartas de Paulo, escritas por volta da metade do primeiro sécu-
lo — atesta o dinamismo de um novo mundo social e religioso, em
construção, para uma rica variedade de interpretações de símbolos
e tradições comuns que competiam entre si, e para uma situação de
extrema contenciosidade interna. Esses traços caracterizam a nova
religião desde o início, continuando sem diminuição através de seu
período clássico (do séc. I ao séc. V) e além.
Neste capítulo, pretendo primeiramente examinar uma gama
de idéias cristãs sobre a condição humana, particularmente enquan-
to estas se encontram expressas na reflexão teológica sobre a nature-
za e o status do corpo. Prosseguiremos por meio de vários pensadores,
textos e movimentos em uma ordem mais ou menos cronológica:
primeiro, o apóstolo Paulo, na metade do primeiro século; em segui-
da, vários cristianismos dualistas e as respostas católicas a eles (do
final do primeiro ao segundo século); depois Orígenes, por meio
196 CRISTIANISMO ANTIGO

de sua teologia sistemática, Peri archon ("Sobre os primeiros princí-


pios"; início do terceiro século); e, finalmente, Agostinho e De civi-
tate Dei (A cidade de Deus, 413-427)! Minha descrição compreenderá
também uma comparação contínua entre esses diferentes tipos de
cristianismo nos termos de suas categorias teológicas próprias: pe-
cado, redenção/ressurreição, Cristologia, cânon etc. Minha segunda
— e menor — seção examinará nosso terreno mediante termos que
emergiram da discussão em grupo sobre outras tradições: memória,
obrigação, lealdade, transformação e visão utópica. Qualquer con-
clusão posterior é deixada aos teóricos que editam esse volume.

6.2. Paulo

Paulo proclama fervorosamente para as suas comunidades de


gentios o Crucificado e o Ressuscitado, o Filho de Deus prestes a
vir novamente. Essa mensagem de salvação, tão urgentemente alar-
deada, traz com ela uma avaliação necessariamente sombria das
circunstâncias em que os ouvintes de qualquer forma se encontra-
riam. O termo "condição" designa de forma excessivamente neutra
o objetivo da dramática redenção aqui prevista: a humanidade en-
contra-se, na visão de Paulo, em uma aflição tão terrivelmente es-
magadora, tão triste e grave, que nada menos do que a intervenção
divina — Deus enviando seu Filho —, poderia mudar o rumo das
coisas.' É na observação dos relatos paulinos sobre aquilo que Deus
operou em Cristo que encontramos, espalhadas, suas visões sobre a
condição humana.
As pessoas vivem em um ambiente sinistro, aprisionadas no do-
mínio do "deus deste mundo" ('Cor 4,4); de deuses pagãos, que são

'Minha lista é idiossincrática. Estou negociando entre minha obrigação de apresentar uma ge-
neralização abrangente de vários séculos, meu instinto pedagógico de tornar claras minhas posturas
pelo uso de casos altamente contrastantes e meu desejo de me concentrar naqueles pensadores
que acho mais interessantes — daí Paulo, Orígenes e Agostinho. Fique essa declaração como minha
apologia por não incluir outros teólogos pertinentes (Atanásio e os Padres Capadócios, como os
ausentes mais conspícuos).
2 Ver especialmente E. P. Sanders, Paul and Palestiniam ludaism (Filadélfia: Fortress Press,
1977), 442-511, para entender a soteriologia paulina como um exemplo da "solução" (i.e., Cristo)
precedendo o "problema" (do que Cristo deve salvar a humanidade).
PAULA FREDRIKSEN 197

demônios (iCor 10,20; Gl 4,8-9); das forças astrais inimigas (iCor


15,24; Gl 4,3), dos elementos do universo (Rrn 8,38-39); de gover-
nantes cósmicos tão poderosos que chegaram até a crucificar "o Se-
nhor da glória" (isto é, Cristo, ICor 2,8); do pecado, da decadência e
da morte. Mas enquanto Paulo fala especificamente aos gentios que,
como ex-idólatras, tinham tramado sua própria escravidão a "seres
que por natureza não são deuses" (Gl 4,8), sua caracterização abran-
gente da humanidade como universalmente atolada na futilidade
deve contemplar igualmente aquela comunidade que Deus santifi-
cou, pelo dom da Lei, para si próprio: Israel. Seria a Lei, ela própria,
pecado (Rm 7,7)? Será que a promessa redentora de Deus a Israel,
registrada na Escritura e incorporada na Torá, havia sido revertida
ou anulada (cf. Rm 11,29; i5,8)? "Impossível", responde Paulo. Mas
a própria Lei, embora boa porque de Deus, havia caído sob a terrível
influência do Pecado, operando por meio da carne (Rrn 7 passim; 8,2-
3). A Carne, o Pecado e a Morte haviam comprometido mesmo a Lei
de Deus: para derrotar esses males, Deus finalmente teve de mandar
seu próprio Filho (Rm 8,3).
Como judeu — na verdade, fariseu (Fl 3,6) — Paulo susten-
tava que Deus era o Criador único que, após ter feito o mundo e
tudo o que nele está, proclamara que todas as coisas eram "boas" (Rm
1,20; Gn 1,3-31). Como, então, tinha a Criação chegado a esse ponto?
Paulo dá a entender que o cosmos em geral, e a humanidade em
particular, haviam sido negativamente transformados pelo pecado
de Adão: "Eis por que, como por meio de um só homem o pecado
entrou no mundo e, pelo pecado, a morte (...) Assim como pela falta
de um só resultou a condenação de todos (...) pela desobediência de
um só homem todos se tornaram pecadores" (Rm 5,12.18.19). Ele
não desenvolve essa visão em nenhum lugar, nem esclarece porque
Deus permitiu que as coisas caminhassem nessa direção por tanto
tempo. Ele se concentra, pelo contrário, nas formas que Cristo tem
e terá para colocar as coisas no lugar.
Em algumas passagens das cartas de Paulo, Cristo desfaz o mal
de Adão comportando-se de forma oposta: Adão foi desobediente,
Cristo obediente; Adão trouxe a morte, Cristo trouxe a vida, e as-
198 --=--
- - CRISTIANISMO ANTIGO
sim por diante. Ern outro lugar, Paulo apropria-se da linguagem de
culto do Templo, pela qual, por intermédio da oferta de sua morte
— a medida definitiva da obediência —, Cristo serviu como uma
forma de sacrifício de sangue, expiando o pecado por seu sangue
(Rm 3,25), tornando os homens, desse modo, "justos" ou "justifica-
dos" (dikaiothentes) (5,9). Por meio de sua vinda na carne (ou algo
semelhante a ela),3 e sua morte na carne, Cristo iniciou uma trans-
formação do cosmos e da humanidade. O cosmos, sujeito à futili-
dade e à decadência, "geme em trabalho" na medida em que espera
a consumação da redenção iniciada na — e pela — ressurreição de
Cristo (Rm 8). Uma vez que ele retorne para completar seu trabalho
— descendo dos céus "ao sinal dado, com a voz do arcanjo e ao som
da trombeta divina" (rTs 4,16) — Cristo derrotará os poderes cósmi-
cos4 que escravizaram todas as coisas,5 inclusive e especialmente o
último inimigo, a própria Morte (iCor 15,26).
Enquanto isso, aqueles que estão "em Cristo" experimentam
uma libertação proléptica mediante infusão do Espírito de Deus, ou
de Cristo, seja pelo batismo (e unindo-se, então, ao corpo cósmico
de Cristo, a Igreja)6 ou comendo seu corpo e bebendo seu sangue
na ceia eucarística (iCor II, 23-37 — que feita com uma atitude er-
rônea pode resultar em morte punitiva [v.30]). A união a esse corpo
significa, para o crente, que ele "morreu" com Cristo para as forças

'Paulo é especialmente obscuro nesse ponto. Onde o imaginário do sacrifício do Templo preva-
lece, ele fala sem complicação do "sangue" de Cristo (novamente, Rm 3,25; 5,9) e de sua "morte"
(p. ex., Rm 6,3; 1Cor 15,3; 2Cor 4,10 passim; cf. sobre o seu nascimento, GI 4,4: "Deus mandou
adiante seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob a Lei"; carnalmente descendente, Rm 1,3).
Em outros lugares, entretanto, Cristo é uma figura cósmica pré-existente, cuja descida em obediên-
cia requer que ele assuma uma forma humana (morphos; Lat. forma) ou semelhança humana (en
homoiomati anthropo; Lat. in similitudinem; Fl 2,7-8), aparecendo "numa carne semelhante à do
pecado" (Rm 8,3). Cristologias posteriores, como veremos, resolvem essa ambigüidade rejeitando
alguma de suas implicações.
'Para uma lista variada de quem ou quais são tais poderes, Rm 8,38-39; 1Cor 15,24-26.
'Novamente, escravizadas, mas por desígnio divino: "pois a criação foi submetida à vaidade,
não por seu querer, mas por vontade daquele que a submeteu na esperança" (Rm 8,20). Presumi-
velmente essa submissão está de algum modo ligada com o pecado de Adão, mas Paulo não explicita
essa conexão. Meu ponto é que Paulo, ao escrever que as forças do "bem" e do "mal" se dispõem
umas contra as outras, não é dualista: o Deus Supremo único da Bíblia permanece supremo.
6 Recebendo o Espírito pelo batismo, e.g., 1Cor 1-3 (em que Paulo segue o imaginário do Tem-
plo, desta vez aplicado ao crente que, como o templo de Jerusalém, é também templo de Deus,
porque "o Espírito de Deus habita em vós" 3,16; cf. 6,19); 12,4-29 ("Ora, vós sois o corpo de Cristo
e sois seus membros, cada um por sua parte", v.27).
PAULA FREDRIKSEN 199

do mal espalhadas no mundo — para o pecado (Rm 7, 20-22), para a


Lei (8, 1-3), para a carne (G15,24) — podendo, assim, olhar confiante
para o futuro finalmente, para a transformação de seu próprio corpo
por ocasião da Segunda Vinda de Cristo (iTs 4, 13-18; ICor is; Rm
6,5). A infusão do Espírito de Deus alcançada por esses meios deve
levar a uma transformação moral e social no breve momento, no
qual a ekklesia age como um corpo (Gl 3,28; ICor 12,13), e os indiví-
duos não pecam mais — especialmente, e o mais importante, com
respeito à má conduta sexual (porneia) e à idolatria, os "pecados da
carne", por excelência, em uma perspectiva judaica. Mas o batismo
não realiza por si essa transformação, como Paulo bem sabe: suas
cartas expandem-se com exortações, ameaças, repreensões e conde-
nação, à medida que vários membros da ekklesia não conseguem vi-
ver moralmente da forma como Paulo acha que eles deveriam.' Sua
reta conduta, em conjunto com seu batismo em Cristo, garante que
eles serão poupados da ira iminente de Deus.'
A condição humana, então, de acordo com Paulo, está cheia de
perigo e corrupção, destinada à destruição pela ira do Todo-Pode-
roso. Os salvos em Cristo, no breve período antes que seu retorno
derrote o mal e destrua os trabalhos da carne, podem apenas "ge-
mer" enquanto aguardam sua "adoção como filhos" — e, de maneira
mais especifica, a redenção de seus corpos (Rm 8,23). O que isso
significa? A transformação da condição humana será marcada, na verdade
efetivada, pela transformação do corpo do crente. A "ressurreição como
[a de Cristo]", que o crente terá merecido por sua morte mimética
e moral para esse tempo pecaminoso no e pelo batismo (Rm 6,5),
significa que a carne de seu corpo "inferior" mudará para um corpo

'1 Cor 1-3, censurando os coríntios por suas divisões; 5,1-7, condenando a porneia dentro da
congregação; 5,11, alertando-os a não se associar "com alguém que traga o nome de irmão e,
não obstante, seja impudico ou avarento ou idólatra"; 6,12, novamente contra a porneia, espe-
cificamente o sexo com uma prostituta; 10,14-22, mais avisos contra a idolatria; 11,2-16, delírios
confusos contra uma notória quebra de etiqueta no culto; Cl 5,19-24, outra lista de pecados (os
"trabalhos da carne"): "os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne com suas [carne] paixões
e seus desejos". Por meio de Romanos, a última carta que dele temos, Paulo fala dessa conduta
moral desejada, distintamente, não em termos de "liberdade do pecado", mas como "escravidão à
justiça" em 6,20-22.
'Sobre a ira, condenação e destruição daqueles que as merecerão no Dia do Senhor, 1Cor 1,18;
2Cor 2,15; 4,3; Fl 3,19; cf. Rm 1,18 e a advertência geral em 1Cor 10,6-12.
200 CRISTIANISMO ANTIGO

"glorioso" ou "espiritual" (Fi 3,21; iCor 15,44). Na medida que Paulo


sustenta que a ressurreição dos mortos será somática, ele é tipica-
mente farisaico; na extensão que ele afirma que o corpo ressurrecto
é espiritual, antes que carnal, ele imprime sua convicção com a sua
própria experiência do Cristo Ressurrecto (iCor Is, 7). A carne e o
sangue pertencem à humanidade como constituída no antigo tem-
po; no novo, não há lugar para eles. "A carne e o sangue não podem
herdar o Reino de Deus" (Is, go).
As idéias de Paulo — episodicamente comunicadas nas cartas,
apaixonadamente sustentadas e inconsistentemente expressas —
servem como um comentário apocalíptico peculiar sobre o livro do
Gênesis: as primeiras figuras na Escritura, de Adão e Abraão, Isaac e
Ismael, são todas relidas à luz de suas novas convicções sobre Cristo.
Gerações posteriores, tanto gnósticas como católicas, cada uma rei-
vindicando com justiça o legado paulino, iriam, forçosamente, tam-
bém reler o Gênesis. Suas visões sobre Deus, a criação física, Jesus, a
redenção, e sobre o próprio Paulo, iriam marcar duas maneiras diferen-
tes, embora coordenadas, de compreensão da condição humana.

6.3. O dualismo cristão e o Deus supremo

Em um esforço para tornar Paulo consistente e — dentro de


um contexto cada vez mais grego e gentio — coerente, alguns cris-
tãos posteriores a ele interpretaram sua condenação da conservação
de elementos judaizantes (a controvérsia em Gálatas), seu repúdio
da "carne" (e, portanto, da circuncisão como uma maneira de glori-
ficação na carne, Gl 3,3), e suas descrições da subversão da Lei por
meio do pecado, como uma condenação do judaísmo tout court. Des-
sa forma, eles também poderiam endossar a visão do universo caído
sob o poder do pecado, e Cristo como o agente de Deus enviado para
realizar o resgate da humanidade. Mas sua visão, diferente daquela
do Paulo histórico, complicou as idéias paulinas de várias e interes-
santes maneiras.
Era axiomático, na cultura erudita grega, o princípio teológico
de que o Deus Supremo (i.e., "o Uno", ou "O Pai de Todas as Coisas")
PAULA FREDRIKSEN 201

não poderia estar envolvido em mudanças. O Uno era "perfeito,


livre de paixão, livre de mudança"9 — e, por conseguinte, livre de
qualquer envolvimento direto no universo físico. Partindo daí, e le-
vando em conta a condenação paulina do deus desse mundo, e o Gê-
nesis, os cristãos dualistas concluíram que o deus da Septuaginta que
formou esse cosmos não era, não podia ser Deus, pai de Cristo. O pai
de Cristo era o Deus acima de Deus, oculto antes de todos os tem-
pos, puro espírito, puro amor. O Deus atarefado, ciumento e cheio
de opiniões, do Gênesis — o deus evidentemente incorporado dos
judeus — era um criador subalterno, inferior. Deus Pai havia man-
dado seu filho a esse cosmos inferior na aparência da carne, na forma
de um homem (FI 2,7-8) a fim de trazer o conhecimento redentor
e transformador de um Deus cuja revelação não poderia nunca ser
inferida a partir da criação.

6.3.1. Gnose

Essa revelação de um conhecimento escondido (gnose) salvou


o conhecedor, despertando-o para quem ele realmente era, e qual
era de fato a sua situação») Quem poderia receber tal conhecimen-
to? Somente aquele a quem o Deus Supremo elegeu, ou chamou,
ou predestinou: aqueles a quem Paulo designou "os perfeitos" (te-
letoi, iCor 2,6). Assim como nem todos são escolhidos, nem todos
são redimíveis. O ponto não é a escolha, mas a natureza: somente
o homem espiritual pode entender as coisas de Deus. Apenas ele
pode saber e entender que seu verdadeiro eu, uma centelha divina
ou espírito mais elevado, estava capturado no cosmos do deus infe-
rior, colado à carne, essencialmente estranha a ele. Mas aqueles em
Cristo, como Paulo tinha prometido, poderiam se libertar do poder

9Salustiano, Peri Theon kai Kosmou ("Sobre os deuses e o mundo"), I.


'Todos os gnósticos eram dualistas, mas nem todos os dualistas eram gnósticos. Marcião, um
paulinista radical (fl. por volta de 140), repudiava a interpretação alegórica e, portanto, a Septua-
ginta, avançando a idéia de que os cristãos deveriam ter seu próprio e novo cânon: mais sobre isso
a seguir. Os gnósticos como Valentino incitavam a uma interpretação esotérica da Septuaginta e
compuseram muitos evangelhos e revelações carismáticos, bem como comentários. Dada a sua pola-
rização mútua espírito/carne, Deus Superior (Espiritual)/Deus Inferior (judeu, carnal), as cristologias
de ambos eram necessariamente docetistas: o Filho divino não poderia nunca estar intimamente
justaposto a algo tão degenerado como a carne.
202 -
- CRISTIANISMO ANTIGO

da carne. Essa teologia implicava uma ética de ascetismo (discipli-


nas alimentares, abstinência sexual) na tentativa de transcender o
corpo tanto quanto possível enquanto ainda nele. Podemos ver a
abstinência sexual como um tipo de escatologia realizada: uma vez
ausente a atividade sexual, dentro do corpo de Cristo, não deverá
mais existir "nem homem nem mulher" (Gl 3,28). A salvação, em úl-
tima instância, não seria meramente da morte física — é óbvio que
a carne morre —, mas salvação da ignorância, do torpor, da morte
espiritual, da existência bata sarka, "de acordo com a carne". Uma vez
liberta a alma de seu ambiente material imediatamente hostil, o cor-
po carnal, o "eu" do verdadeiro gnóstico poderia ascender às esferas
astrais, cujos poderes estariam vencidos por Cristo, e ficar unido a
este em um céu mais elevado, espiritual.

6.3.2. Antidualismo, antidocetismo


Os últimos escritos do cânon do Novo Testamento atestam, em
sua hostilidade a ele, que esse modo de entendimento da mensagem
cristã cedo apareceu. Epístolas pseudônimas escritas no nome, e
portanto, baseadas na autoridade dos apóstolos da primeira geração,
condenam rudemente uma ética universal do celibato (iTm
cf. 6,2o, contra "a gnose, assim chamada falsamente"), e alertam que
os escritos de Paulo contêm "coisas difíceis de se entender" e facil-
mente suscetíveis de interpretações heréticas (2Pd 3,15-16). Aque-
les cristãos que negam a vinda de Cristo na carne não são "de Deus"
(IJo,2), sendo de fato o Anticristo (2Jo,7). Aqueles que dizem que a
ressurreição já aconteceu (i.e., já foi realizada espiritualmente) "des-
viam-se da verdade" (2Tm 2,18).
O ramo antidualista e antidocético do cristianismo ganhou
eventualmente a batalha da interpretação, estabelecendo-se retroa-
tivamente como "ortodoxo" (daí os escritos antidualistas do cânon).
Mas os heresiólogos e apologistas clássicos — Justino, o Mártir,
Tertuliano, Irineu, Hipólito — também permaneceram dentro da
corrente mais ampla da alta cultura grega e, assim, também divi-
diam muito da sensibilidade ascética e filosófica dos seus oponentes
cristãos. Eles também liam o Evangelho de Paulo como fundamen-
PAULA FREDRIKSEN 203

talmente antijudaico; eles também usavam "carne" e "espírito" para


indicar orientação moral tanto quanto a ontológica; e também sus-
tentavam aquela mesma definição do Deus Supremo como imutá-
vel, assomático, perfeito. Mas na insistência de que a Septuaginta era
também — realmente, de fato — Escritura cristã," esses teólogos
uniram a realidade criada e carnal mais diretamente à construção
deles de Deus, do Cristo, e da salvação. E embora sua avaliação da
condição humana corrente não fosse mais rósea que aquela dos dua-
listas, a decisão por eles imaginada enfatizava aspectos da Escritura
e de Paulo que os dualistas haviam forçosamente abandonado.

6.3.3. A salvação do cosmos


Se o Deus Supremo fosse em última instância a fonte da Cria-
ção, então a Criação, mesmo decaída, não poderá ser essencialmente
estranha a Deus. Diferentemente do dualista, então, cuja soteriologia
contemplava uma passagem individual e espiritual por um cosmos
mau, refratário à transformação por Cristo, o católico imaginava a
redenção como a transformação do próprio cosmos. O sofrimento,
a ignorância e o mal que marcavam a condição humana, prolepti-
camente superados para aqueles no interior da (verdadeira) igreja
pelo dom do espírito, seriam pública, histórica e comunitariamente
superados na Segunda Vinda de Cristo, quando a própria Criação
seria curada do dano persistente de Adão e a carne, ela mesma, redi-
mida. O próprio Cristo, portanto, tinha realmente um corpo, e tinha
mostrado em sua própria ressurreição o que a carne humana iria se
tornar." Assim também na sua parusia, os santos erguer-se-iam em
seus próprios corpos, para reinar com ele por mil anos na gloriosa
Nova Jerusalém da terra redimida e transformada.'

"E.g., muito conhecido, Justino, Diálogo com Trifão 29, no qual Justino, argumentando com um
judeu, refere-se às "suas Escrituras" e então corrige a si próprio: "na verdade, não suas, mas nossas".
"Esses teólogos estavam lendo documentos a que Paulo não teve acesso, a saber, evangelhos
que insistiam que Jesus tinha sido ressuscitado não simplesmente corporalmente, mas com um corpo
carnal — daí ter Ele se alimentado de peixe em Lucas (24,37-43) e forçado Tomé a tocar suas feridas
em João (20,27-29). Paulo, como foi visto, sustentava a redenção do corpo, mas não da carne por
si. Para a engenhosa solução de Agostinho para esse problema, ver a seguir.
"E.g., Justino, Trifão 81, referindo-se especificamente a Isaías 65 e Ap 20,4-5; Irineu, Adv.
Haer. 5.26.1 e 30,3; Tertuliano, Adv. Marc. 3. Para um breve exame dessas tradições, P. Fredriksen,
204 CRISTIANISMO ANTIGO

Enquanto os dualistas haviam assumido moral e metafisica-


mente o contraste paulino entre o Homem Velho e o Homem Novo,
os católicos recuperaram igualmente sua ênfase sobre o tempo e a
história. Contra a rejeição dualista (Marcião) ou a contra-leitura (Va-
lentino) da Septuaginta, os católicos priorizaram um entendimento
temporal do contraste entre Antiga Aliança/Nova Aliança na forma
de uma superação cristã: a "velha era" dos judeus, ou Israel de acordo
com a carne, deu lugar à "nova era" da Igreja, Israel de acordo com
o Espírito. E em sua leitura dos profetas clássicos contidos naquele
que eles agora reivindicavam como seu livro próprio, esses cristãos
construíram suas próprias tradições do reino cristão apocalíptico,
baseados nas antigas visões judaicas de uma sociedade justa: esse
Reino iria ter agricultura, arranjos sociais, casamento e mesmo nas-
cimentos, bem como convocações massivas em Jerusalém. Deus
tinha criado a carne; Cristo a tinha assumido para a salvação do ho-
mem. A salvação não se realizaria, portanto, até que a própria carne
fosse redimida.

6.4. Orígenes

Uma boa parte da escrita cristã do final do primeiro século e


do segundo século é o equivalente intelectual de uma briga de rua:
aqueles autores se esforçavam para fazer valer seu ponto de vista
contra as comunidades bem-estabelecidas que eles tinham como
rivais — judeus, com relação à Bíblia; pagãos tradicionais, em rela-
ção à Paidéia —, enquanto sustentavam suas polêmicas contra uma
miríade de outros grupos também cristãos. Chegando em Orígenes
(185-254), nós entramos em um mundo diferente. Com sua enor-
me (e bem posicionada) autoconfiança intelectual, seu domínio
criativo da filosofia tradicional, e sua autoridade sobre toda a gama
de textos bíblicos, Orígenes demarcou uma nova maturidade no
desenvolvimento da tradição católica. A medida plena dessas exce-
lências aparece em conjunto no seu ambicioso Peri archon ("Sobre

"Apocalypse and Redemption. From John of Patmos to Augustine of Hippo", Vigiliae Christianae
45.2 (1991): 151-83.
PAULA FREDRIKSEN 205

os princípios primeiros"), a primeira teologia sistemática da Igre-


ja.14 Em quatro livros — Deus (I), O Mundo (II), A Liberdade Mo-
ral (III) e A Revelação Bíblica (IV) — ele propõe uma exposição
coerente, e mesmo convincente, da redenção cristã; entremeado
nela está um poderoso diagnóstico e uma descrição da condição
humana. Para vislumbrá-los, comecemos no ponto em que ele co-
meça: com Deus.

6.4.1. Deus como Trindade

Deus, definido como Trindade, presidia sobre um universo


eternamente existente de seres racionais. Esses seres racionais,
embora co-eternos, eram contingentes a Deus, e distintos uns dos
outros pelo "princípio único da diferenciação": o corpo. Deus, en-
tretanto, é unicamente asomaton, não-corporal» (As pessoas que
entendem, a partir da Escritura, que Deus tem um corpo, somente
expõem seu infeliz baixo nível de entendimento, uma vez que lêem
kata sarka — "de acordo com a carne", ou "de uma maneira carnal"
— e assim não conseguem vislumbrar o significado verdadeiro e
mais elevado do texto kata pneuma, "de acordo com o espírito".)16
Uma característica crucial que define esses seres racionais é seu
livre-arbítrio. Uma vez que eram contingentes, tinham como que
uma inerente tendência à distração," mas isso era compensado por
sua independência, a liberdade da vontade que define o ser racio-
nal. No tempo antes do tempo, um desses seres, inteiramente por
sua própria livre escolha, amou Deus tão intensamente que, com

"Essa obra-prima foi vítima da controvérsia póstuma que rodeou a herança teológica de Orí-
genes nos séculos após sua morte. Como resultado, o próprio texto ficou em farrapos, a edição
científica em Griechischen Christlichen Schriftsteller (22, Ed. P. Koetschau, Leipzig, 1913) um pas-
tiche de vários fragmentos gregos, textos de Justiniano e do segundo Concílio de Constantino-
pla anatematizando Orígenes em 553, e um tratado latino do início do quinto século, de Rufino,
composto com o objetivo de proteger Orígenes das objeções que seu trabalho já estava atraindo.
Minhas observações sobre seus argumentos, por conseguinte, serão muitas vezes tentativas. Eu sigo
a tradução inglesa de G. W. Butterworth da edição Koetschau, On First Principies (N. York: Harper
and Row, 1966; orig. 1936).
15 E.g., 1.2,2; II. 2,2.

16A abertura de Orígenes, 1. 1,1.

"Na linguagem da teologia tradicional (pagã e, eventualmente, cristã), somente Deus é perfei-
to, e portanto imutável; seres contingentes, por definição, são suscetíveis a mudanças.
206 CRISTIANISMO ANTIGO

efeito, fundiu-se com a deidade: esse foi o Cristo.18 Todo o resto,


não suficientemente atento, decaiu, cada um para a sua "distância"
particular de Deus.

6.4.2. A dupla criação: eterno e espiritual, temporal e carnal

Para acomodar estes níveis de mérito, distintivos e individuais,


em suas criaturas, e também para colocá-las em uma situação pro-
pedêutica por onde elas pudessem chegar a escolher, livremente,
retornar a ele, Deus, graciosamente, e partindo do nada chamou à
existência o mundo da matéria.i9 Almas racionais assim se acham
em corpos carnais apropriados à sua situação, com respeito às es-
colhas feitas antes da vida no corpo. O sol, as estrelas, os anjos, os
demônios, os principados, as potestades, e os humanos, todos são
exemplos encarnados de uma contínua falha moral — o pecado de
se afastar de Deus. Pensar a "condição humana" então, para Oríge-
nes, é pensar pequeno demais. O cosmos visível inteiro é uma fra-
ternidade em uma "condição", por meio da qual Deus graciosamente
procura redimir cada um.
Nós devemos aqui fazer uma pausa para considerar como essa
teologia satisfaz brilhantemente alguns dos mais complexos proble-
mas tanto da filosofia como da teologia cristãs. A doutrina de Orí-
genes da "dupla criação" — uma espiritual e eterna; outra temporal
e carnal — ao mesmo tempo em que dialogou com as formulações
clássicas da imutabilidade essencial de Deus (ele foi sempre eterna-
mente Pai e Criador), afirmou seu senhorio absoluto sobre o cosmos
físico (uma vez que ele o criou a partir do nada), e transferiu o pro-
blema do uno e do múltiplo para a esfera ética. Além disso, sua insis-
tência contínua na absoluta justiça de Deus e a absoluta liberdade da
vontade permitiu a Orígenes apropriar-se do melhor do pensamen-

18 "Mas enquanto que, por causa da faculdade do livre-arbítrio, a variedade e a diversidade to-
maram conta das almas individuais, (...) essa alma (...) colando-se a Deus desde o início da Criação
e para sempre em uma união inseparável e indissolúvel (...) tornou-se com ele em um grau preemi-
nente um espírito (...) É, portanto, certo que essa alma (...) porque recebeu o Filho de Deus comple-
tamente dentro de si, possa ser chamada, ela mesma (...) o Filho de Deus", II. 6,3; também II. 8,2.
19 11. 1,4-2,2.
-- 207
PAULA FREDRIKSEN --=
-

to platônico e estóico para o serviço da teodicéia cristã: a vontade


era livre; cada alma deveria exercitar sua mente na procura de uma
excelência moral definitiva, o amor de Deus; e o mal histórico, situa-
cional — crianças nascidas cegas, doenças congênitas, o sofrimento
de inocentes — diminui na perspectiva da eternidade para tornar-
se uma situação de aprendizado temporário para a alma."

6.4.3. A carne

Ademais — e sem surpresas, diante do forte comprometimen-


to de Orígenes com um cristianismo bíblico — o status da "matéria"
ou da "carne" é elevado. O cristão dualista e Orígenes podem pare-
cer fazer afirmações similares: a vida na carne é um fardo, a medida
do pecado, uma punição; esse mundo não é o lar nativo da alma; o
corpo carnal não é uma parte essencial do self. Mas, enquanto o dua-
lista denegriria a carne como uma causa do pecado da alma, e esse
cosmos inferior como o trabalho de um deus inferior e hostil, Orí-
genes louva a carne como o meio da redenção, e um radiante indício
da engenhosidade de um Criador generoso e amoroso.'

6.4.4. A salvação universal

Pois Deus quer a redenção para todas as suas criaturas — even-


tualmente, pensava Orígenes, mesmo o Diabo seria recuperado — e
ele tem todo o tempo do mundo. O imenso escopo requerido pelo
poder dessa ambiciosa visão foi motivado em parte pela insistência
de Orígenes em entender Deus em termos de seus dois grandes atri-
butos bíblicos: justiça (todas as criaturas são criadas exatamente do
mesmo modo, e são todas livres moralmente) e misericórdia (Deus
ama todas as suas criaturas, e trabalha por sua redenção). Porém, esta
visão tem o efeito curioso de minimizar elementos-chave na histó-

201. 8,1.
21 "[Essa/sua] matéria, que é tão grande e maravilhosa a ponto de ser suficiente para todos
os corpos no mundo, (...) Deus desejou que existisse, e estivesse ao chamado e serviço do Criador
em todas as coisas para o feitio de quaisquer formas e espécies que ele desejasse, recebendo em si
as qualidades que ele tivesse desejado conferir a ela", II. 1,4. Cf. sua discussão em III. 1,4, sobre o
desejo sexual e a causa fundamental (aitia) do pecado, que é a escolha.
208 CRISTIANISMO ANTIGO

ria bíblica. O "pecado de Adão" é reduzido a uma figura para o lapso


pré-histórico da espécie inteira e a ressurreição de Cristo, reduzinda
a um exemplo, em vez de um evento epocal transformador em si
mesmo. Embora a história instigue a salvação, ela não a define.

6.4.5. Salvação como educação

A impulsão toda do argumento de Orígenes é intelectual, em


direção à educação da alma racional; e é em termos de esclareci-
mento que ele entende o severo contraste paulino entre a Morte e a
Vida. Paulo havia colocado sua descrição da derrota apocalíptica da
Morte dentro de sua visão da transformação do corpo, a mudança
do corpo carnal para o espiritual por meio do qual tanto os vivos
como os mortos iriam se juntar a Cristo no Reino de Deus (ICor is).
A variação de Orígenes sobre o tema paulino também manteve os
corpos redimidos, mas estes não têm absolutamente nada a ver com
a carne, que pertence intrinsecamente à ordem secundária, tempo-
rária. O corpo da alma a distingue das outras almas, e de Deus, que
não tem corpo, mas esse corpo é literalmente metafísico. A derrota da
Morte, nesse contexto, significa a derrota do falso entendimento, da
ignorância; a vida bata pneuma significa entender e, portanto, amar
a Deus. Seu foco não é (como em Paulo) a transformação do corpo,
carnal ou de outro tipo, mas a transformação do nous, a mente da
alma.
Daí a preocupação primordial de Orígenes com a interpretação
textual e a imensa massa de comentários que ele produziu." Viver
a kata pneuma era conhecer a maneira correta de ler e, portanto, en-
tender a Bíblia, ou seja, de acordo com seu significado espiritual,

"Com a exceção da teologia sistemática, e um outro importante trabalho de apologética anti-


pagã, o Contra Celso, virtualmente todo o imenso legado escrito de Orígenes concentrou-se direta-
mente na interpretação bíblica, seja para estabelecer um texto científico da Septuaginta (o objetivo
de seu trabalho de análise textual, o Hexapla), ou para comentar os próprios textos. Ele escreveu
sobre todos os livros do Antigo e do Novo Testamento, algumas vezes em uma larga escala: o
comentário sobre João se estendeu a pelo menos 32 livros, oito dos quais são bastante volumo-
sos; sobre Mateus, 25 livros, oito dos quais sobrevivem; sobre Romanos, 15 livros; 13 livros sobre
Gênesis, 46 sobre quarenta e um salmos; 30 sobre Isaías, e assim por diante — mais ou menos 2000
tratados ao todo, de acordo com Jerônimo. Veja o item em J. Quasten, Patrologia (Westminster: The
Newman Press 1953) 2. 37-100.
PAULA FREDRIKSEN 209

que revela as verdades atemporais de Deus. Pois o Peri archon não


enfrentava somente os cristãos dualistas; ele atinge, de vez em quan-
do, um inimigo mais íntimo, aqueles dentro da Igreja que entendem
seus ensinamentos e suas escrituras bata sarna. Estes são os que, len-
do a Bíblia de forma incorreta, pensam que Deus tem um corpo (I.
',I), que os santos, fisicamente ressurrectos, irão adorá-lo em Jeru-
salém (I. 1,4), que nessa cidade resplandecente em pedras preciosas
irão comer, casar-se e celebrar (II. II, 2-3). Tal pensamento, suspira
Orígenes, é virtualmente judeu, o anúncio patético de um intelecto
e uma espiritualidade empobrecidos (loc. cit.). Mas Deus não é fun-
damentalista; e para aqueles presos no tempo, ele escreveu um texto
cuja aparente simplicidade requer que a mente busque seus signifi-
cados alegóricos. "A letra mata, mas o Espírito vivifica" (2Cor 3,6), ou
seja, ele transforma o leitor e, assim fazendo, remove o véu entre ele
e a Lei de forma que "nós devemos ver, com a face desvelada, a glória
de Deus nas sagradas escrituras" (I. Ia).

6.5. Agostinho

Ninguém, por volta de 390, teria adivinhado que Agostinho


seria o próximo grande arquiteto de um sistema teológico inovador.
Àquela altura, ele tinha coberto pessoalmente todas estas posições
precedentes: criado por uma mãe católica fundamentalista, abraçan-
do uma seita herética paulina dualista, havia flertado brevemente
com o ceticismo filosófico antes de se estabelecer em um catolicis-
mo alegorizante e cosmopolita, vendido por Ambrósio e dissemina-
do por Orígenes. Seus primeiros escritos pós-conversão são modela-
dos em diálogos filosóficos; seu primeiro comentário bíblico refuta
o dualismo maniqueísta com as ferramentas típicas da interpretação
alegórica.
Mas a inquietação intelectual que compeliu Agostinho a uma
década de intensa reorientação religiosa não abrandou com. o batis-
mo. Retornando da internacional Milão para o mais limitado mun-
do do Norte da África, interpelado em público por um interlocutor
maniqueu a enfrentar a verbosidade de seu próprio entendimento
210 CRISTIANISMO ANTIGO

sobre o mal — especialmente aquele mal tão evidentemente mani-


festo na condição humana — Agostinho mergulhou em um pro-
longado estudo das cartas de Paulo.23 Suas novas visões sobre a rela-
ção entre a graça e a vontade, o pecado e a salvação, que emergiram
desse período, iriam definir a tendência do cristianismo ocidental
pelos próximos quatorze séculos. Encontramos sua afirmação mais
abrangente sobre esses temas em sua grande obra-prima, A cidade de
Deus.

6.5.1. Criação carnal, queda carnal, salvação carnal


Quando Deus criou o homem no Éden, disse Agostinho, ele o
criou macho e fêmea, com corpos de carne unidos ab inibo ao espíri-
to ou alma. Dessa leitura do Gênesis aparentemente simples, Agosti-
nho tirou conclusões radicais para a sua tradição. A escolha soberana
de Deus de fazer os humanos assim — com corpos carnais divididos
em gêneros — não só implicou claramente que a carne era o habitat
natural e desejado por Deus para a alma, mesmo antes da Queda; isto
significou também que Deus sempre pretendeu que os humanos
fossem sexualmente ativos, que "dessem frutos e se multiplicassem"
precisamente pela união sexual entre o macho e a fêmea. Por que
outro motivo teria Ele se incomodado com o gênero? O sexo pa-
radisíaco, porém, teria sido diferente do que o sexo tem sido desde
então. Agora a união sexual, e portanto a procriação, fundamenta-se
em uma perda de controle sobre o orgasmo e, ainda antes, uma per-
da da racionalidade, pois a mente (sempre o primeiro órgão sexual,
para Agostinho) precisa ser movida pela luxúria.24 Então, porém,
sem a condição mórbida da libido, os órgãos sexuais, como os demais,
mover-se-iam ao arbítrio da vontade e o marido fundir-se-ia no regaço
da esposa com tranqüilidade de ânimo, sem o estímulo do ardor libidi-

23 Para uma revisão de seu trabalho sobre Paulo durante esse período, P. Fredriksen, "Beyond

the Body/Soul Dichotomy: Augustine on Paul against the Manichees and the Pelagians", Recherches
Augustiniennes 23 1988: 87-111, esp. 89-98.
24 "A luxúria (...) perturba o homem por inteiro (...) Tão intenso é o prazer que quando ele

atinge o clímax há uma quase total extinção do estado de alerta mental; as sentinelas intelectuais
são, por assim dizer, esmagadas (...) e por vezes o desejo congela no corpo enquanto está fervendo
na mente" (XIV, 16).
PAULA FREDRIKSEN 21 1

noso, guiando-o e sem a corrupção de sua integridade.... Então, o sêmen


viril poderia ser injetado na esposa, sem romper-lhe a integridade, assim
como agora a virgem pode, sem violá-la, ter a menstruação. (A cidade de
Deus, XIV, z6).

O que aconteceu? Embora o homem tivesse uma completa li-


berdade em sua vontade, e fosse capaz de escolher livremente não
pecar, ele desobedeceu a ordem divina. Deus, então, o atingiu justa-
mente no agente ofensor, a própria vontade; e, uma vez que a alma
e o corpo permanecem intimamente ligados no mesmo continuum,
essa injúria à mente ou alma manifestou-se instantaneamente na
carne: "(...) fez-se sentir nos movimentos do corpo desavergonhada
novidade. Tornou-se, por isso, indecente a desnudez, fê-los cons-
cientes e cobriu-os de confusão" (XIV, 17). Enquanto que, antes da
Queda, a capacidade de prazer físico teria sido coordenada com a
vontade, tal capacidade escapou, após aquela, do controle conscien-
te. Essa desconexão básica entre o corpo e a alma produziu uma des-
conexão suplementar com a qual a espécie, em todas as gerações, foi
amaldiçoada: pois a alma, embora criada para abraçar e amar o corpo
assim como os parceiros matrimoniais foram criados um para o ou-
tro, seria arrancada, contra a sua vontade, do corpo na morte.
De Adão em diante, então, a humanidade tem se encontrado
em uma condição penal de ignorância e mortalidade, a aflição de
sua vontade quebrada sendo transmitida, precisa e necessariamente,
por meio da mórbida condição da luxúria. Pior: não somente a von-
tade não mais controla o corpo; como Paulo lamenta em Romanos
7, ela não pode nem mesmo controlar-se mais a si própria: "Faço o
mal que não quero" (7,19). Ferida, dividida, sem forças, a vontade
— este termo que funciona, para Agostinho, como um código para
a afetação da alma — está voltada para si mesma. Embora a alma
naturalmente anseie por amar a Deus,25 ela se contorce, sofrendo o
impacto de si mesma. A Queda transformou o amor dei natural da
alma em amor sui, o irreparável narcisismo humano que transforma

25Um ponto belamente invocado nas linhas que abrem as Confissões: "vos nos criastes para
Vós, e o nosso coração vive inquieto enquanto não repousar em Vós" (I. 1,1).
--=-
---_- CRISTIANISMO ANTIGO
212-=-

todo esforço para amar genuinamente o próximo em exercício de


(no melhor das hipóteses, encoberta) exploração. A prerrogativa de
Adão de não precisar pecar (posse non peccare) foi substituída por uma
dilacerante, mas não menos culpável, inabilidade: a humanidade
não pode não pecar (non posse non peccare). A natureza humana, corpo
e alma, é agora "carnal", está carnalmente orientada em direção à ig-
norância e à morte. A raça inteira é uma massa damnata, literalmente
um "amontoado de perdição".26
Deus condenou de forma justa a raça inteira. Mas ele miseri-
cordiosamente escolheu eleger alguns indivíduos para a salvação.
Ele assim o faz inteiramente por sua própria iniciativa (grafia), e por
suas razões próprias, profundamente ocultas (occultissima). Colocan-
do de outra forma: Deus não salva os justos ou os corretos, pois há
apenas pecadores. Para Agostinho, a prova exemplar desse princí-
pio é o próprio Paulo, um assassino e perseguidor da Igreja, a quem
Deus inexplicavelmente chamou para o Evangelho.

Mas mesmo aqueles que receberam a graça ainda lutam com


o pecado; mesmo aqueles que Deus elegeu para a salvação morrem.
Como então, e quando, irá Deus solucionar as terríveis tensões que
marcam a aflição humana; como, e quando, ele irá salvar? Aquele
que souber ler a Bíblia, responde Agostinho, poderá descobrir a res-
posta.

6.5.2. A leitura da Bíblia


A Bíblia deve ser lida tanto por seu significado espiritual (se-
cundum spiritum) como por seu significado histórico (ad litteram).
Aqui Agostinho aparece com argumentos de uma originalidade im-
pressionante. Contra os maniqueus que, como seus predecessores
dualistas do segundo século, renunciaram ao Antigo Testamento e
ao judaísmo como carnais, e contra a tradição católica anterior, que
manteve o Antigo Testamento apenas lido secundum spiritum, mas
denunciava os judeus como carnais, Agostinho insiste que o Novo

A imagem, novamente de Paulo, Rm 9,19-23, de Deus como oleiro e os homens como vasos.
26
--
==
PAULA FREDRIKSEN- 213

e o Antigo Testamentos, como a alma e o corpo, estavam íntima,


fundamental e essencialmente ligados. Os judeus estavam certos ao
manter a Lei secundum carnem, literalmente e não figurativamente;
a primeira geração dos apóstolos e o próprio Paulo tinham perce-
bido isso, e eles, assim como o próprio Jesus, tinham sido judeus
observantes da Torá. Por meio de sua observância real e efetiva da
Lei, todo o povo de Israel, como um grande profeta, predisse Cristo
não somente em palavra (i.e., por meio das Escrituras), mas também
em ato, por seus rituais — ofertas de sangue, leis sobre alimentos,
Sabbath e, acima de tudo e especialmente, a circuncisão.

6.5.3. De onde vêm os salvos, a carne e tudo mais?

Esta última [a circuncisão], de forma muito especial, anun-


ciou a redenção de Deus. Ao colocar seu "selo de justiça", como o
Apóstolo a designou (Rm 4,11), naquele membro e órgão da geração
humana mais carnalmente recalcitrante, Deus fez com que Israel
incorporasse o mistério fundamental do cristianismo: a regeneração
da humanidade por meio da revelação de Deus na carne, na Encar-
nação e Ressurreição de Cristo.27 Agora na Igreja, aqueles a quem
Deus escolheu experimentam a primeira ressurreição dos santos,
que é espiritual, a regeneração efetivada mediante batismo. A segun-
da ressurreição, entretanto, será física, quando Deus erguerá toda a
humanidade, corpo e alma, para o julgamento, reinando finalmente
com os seus santos em seu Reino eterno (XXII, 3o).
Somente esse último ato da história servirá para finalmente
resolver a condição humana. A ressurreição, por conseguinte, deve
ocorrer com um corpo feito de carne: somente reunida à carne
pode a alma verdadeiramente ser completa. O que falar, então, do

'Agostinho esclarece os detalhes desse argumento em seu contra Faustum. Este serve como
fundamento para sua apresentação mais sumária do papel de Israel na redenção, na Civitate Dei
XV-XVIII. Sobre a novidade dessa leitura do judaísmo, e as maneiras com que eia criativamente
articula seu próprio programa teológico, P. Fredriksen, "Excaecati occulta iustitia Dei: Augustine on
Jews and Judaism", lournal of Early Christian Studies 3 (1995), 229-324; idem, "Secundum carnem:
God, history, and Israel in the Theology of Augustine", The Limits of Anciente Christianity — Essays
on Late Antiquity Thought and Culture in honor of R. A. Markus, ed. W. Klingshirn and Mark Vessey
(Ann Arbor: University of Michigan Press, 1999), 26-41.
214-=
- --- CRISTIANISMO ANTIGO

pronunciamento de Paulo, de que "carne e sangue não podem her-


dar o Reino de Deus" (iCor 15,50)? Paulo estava certo, é claro, diz
Agostinho. Mas por "carne" ele quis dizer orientação moral, e não
substância física. O corpo carnal dos salvos' será erguido e tornado
espiritual, ou seja, com a ferida da vontade fechada e a alma curada,
o corpo carnal irá, novamente, sem esforço, seguir os ditames do
espírito em todas as coisas: o homem não será mais capaz de pecar
(non posse peccare).
Para onde esses corpos de carne guiados pelo espírito vão?
Onde é a morada dos santos? Os cristãos milenaristas, especialmen-
te aqueles inseridos na própria tradição do Norte da África de Agos-
tinho, ao insistirem na redenção do corpo carnal, tinham do mesmo
modo insistido em uma terra redimida, especialmente uma Jeru-
salém redimida, como o novo lar dos santos. Aqueles que tinham
abandonado as visões da beatitude terrestre eram os dualistas, que
repudiavam o reino material em sua totalidade como inimigo do
Deus Verdadeiro; ou Orígenes que, embora não sendo ele mesmo
dualista, sustentou que a carne era um lugar de habitação providen-
cial e temporária do ser racional decaído: a volta a Deus, para ambos,
significava um permanente adeus ao mundo material, aí incluída a
carne humana.
Não assim para Agostinho. O ser humano é criado com seu
corpo carnal; mas ele irá morar nos céus, com Deus. A terra não é
redimida; somente os seres humanos o são." Diante dos protestos
de que tal visão era simplesmente um disparate científico — como
poderiam os pesados elementos da carne ascender a uma esfera
além da lua? — Agostinho contrapôs o milagre recíproco do nas-
cimento:
Todavia, a terra está cheia de espíritos que vegetam os membros terrenos
em estreita e misteriosa união. Por que, pois, se apraz a Deus, Criador des-
ses animais, não poderá elevar corpo terreno a corpo celeste, se a alma,

28 0s corpos dos malditos também serão ressuscitados carnalmente, é claro; porém, tomarão o
rumo do tormento eterno.
29 Daí sua interpretação de Rm 8,8-24 tomando a creatura que geme esperando a redenção
assim como o próprio homem, Propositiones ex epistula ad Romanos 53,4.
PAULA FREDRIKSEN 215

superior a todo corpo e, portanto, também ao celeste, pôde ser unida a


corpo terreno? (...) O estado presente das coisas (...) tem sido depreciado
pela assiduidade e pelo costume, mas (...) é de fato muito mais mara-
vilhoso que aquela translação que nossos filósofos acham incrível. Por
que não nos maravilha muito mais ver unidas a corpos terrenos as almas
incorpóreas, superiores ao corpo celeste, que ver sublimados a moradas
.celestes, embora corpóreas, os corpos, embora terrenos? (XXII, 4).

6.6. Sumário

Isso completa nossa rápida caminhada pelo terreno muito


variável do antigo cristianismo. Como vimos, as interpretações da
mensagem cristã, e especialmente da condição humana, diferem
significativamente. Alguns pontos são constantes: os seres huma-
nos estão neste mundo em uma situação terrível, causada de algum
modo por uma antiga queda; o Deus Supremo realizou a redenção
dessa situação mandando seu Filho para desfazer essa queda; final-
mente, ao menos alguns — para Orígenes, todos — serão salvos.
Mas a situação é descrita e imaginada de maneira variada, assim
como a própria definição de "humano".

6.6.1. Queda e redenção


Para Paulo, toda a criação decaiu e toda a criação será redimida
quando Cristo retornar para derrotar todo poder hostil e mesmo a
própria morte (Rm 8, ; iCor is). Para os dualistas, a criação material
está fora do escopo da redenção de Cristo, uma vez que o próprio
Deus se preocupa exclusivamente com aqueles a quem chamou, os
homens espirituais (pneumatikoi), que podem receber o conheci-
mento da salvação. Seu Cristo não tem realmente um corpo carnal
nem, em certo sentido, o homem espiritual: o corpo é um incidente
temporário, o self é a alma. Também para Orígenes essa esfera ma-
terial não é objeto da salvação, mas todas as inteligências racionais
decaídas, sim. Daí que Orígenes, como Paulo, sustenta que toda a
criação, não somente os humanos, será salva. Uma vez que a alma
está viva eternamente, e que o ser racional é na realidade sua alma, o
inimigo que Cristo derrota não é a morte física, mas a morte intelec-
216 CRISTIANISMO ANTIGO

tual, a morte que vem do não conhecimento de Deus. Para Agosti-


nho, os seres humanos são, por definição, carne e alma em um todo;
Cristo assume realmente a carne, e ao fazer isso morre e ressuscita
de fato, apontando de uma vez por todas a redenção da carne. Mas
sua soteriologia é estreitamente androcêntrica: somente os homens
(e, pode-se dizer, somente alguns homens) são o objeto do amor de
Deus. O resto da criação é deixado para trás; o que permanece, no
fim, é Deus e o homem.

6.6.2. Renúncia prática

O que me surpreende, diante dessas diferentes orientações


ideológicas sobre a encarnação, é o quão similar foi a ação de todas
aquelas comunidades. A grande inovação social do cristianismo
antigo, sempre descrita, mas nunca adequadamente explicada, é a
prática de uma renúncia sexual permanente, em uma larga escala.
É esse comprometimento que reúne todos esses grupos, tornando-
os comportalmente muito mais assemelhados do que diferenciados.
De onde vem o apelo, e a institucionalização da renúncia sexual?3°
Paulo a endossou em iCor 7, mas somente como uma medida tem-
porária, em concordância mútua dos esposos, para a concentração na
oração preparatória para o Fim iminente. Marcião insistiu que todos
os membros de sua igreja fossem celibatários e não batizava aqueles
não preparados para dar esse passo. Diferentemente dos Shakers, os
marcionitas floresceram, tornando-se uma das primeiras comuni-
dades cristãs especificamente tidas como alvo para perseguição por
parte de Constantino, após a conversão deste último (Eusebius, A
vida de Constantino 64).

300 estudo completo mais recente é o de Peter Brown, The Body and Society. Men, Women,

and Sexual Renunciation in Early Christianity (New York, 1990) [tradução brasileira: Corpo e So-
ciedade - O homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo (R. Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1990)]; também extremamente valioso, Robin Lane Fox, Pagans and Christians (New
York: Knopf, 1987), especialmente seu capítulo "Living like Angels". Em 1965, E. R. Dodds tentou
usar a psicologia psico-analítica [sic] para entender o ascetismo cristão, em Pagan and Christian
in an Age of Anxiety (New York: Norton, 1965) [tradução portuguesa: Os gregos e o irracional
(Lisboa: Gradiva, 1988)]. Em última análise, esse esforço é falho - a teoria necessariamente lançou
mão de evidência não-obrigatória, e a estrutura cronológica vacilou; mas o pequeno esforço de
Dodds (138 páginas) foi em boa parte provocador das mais de 1200 páginas dos dois livros citados
anteriormente.
PAULA FREDRIKSEN 217

A piedade católica foi igualmente povoada por virgens herói-


cas e abstinentes por toda a vida. Tão serenamente controlado era
Orígenes, que alguns de seus companheiros de religião invejosos
deram impulso a rumores grosseiros de autocastração e drogas ini-
bidoras da libido.3 ' Agostinho correlacionou de forma bem especí-
fica o unir-se à Igreja com o tornar-se e permanecer celibatário.32
Como muitos ideais perfeccionistas, o celibato universal era, evi-
dentemente, mais honrado em sua violação; entretanto, de maneira
notável, o ideal permaneceu. O encorajamento do casamento por
parte da igreja romana —especificamente contra os maniqueístas,
e conduzido por homens celibatários — era tipicamente ambiva-
lente. O casamento era louvado como sendo de Deus; mas o modelo
do casamento cristão era a Sagrada Família, Maria e José, no mariage
blanc arquetípico.

Talvez, se em Cristo a carne devesse ser já de alguma forma


descartada, o celibato para todos aqueles diferentes cristãos era uma
maneira de transcender a existência Inata sarna. Renunciar à ativi-
dade sexual — como por exemplo renunciar aos laços normais de
família para entrar em uma nova e fictícia família escolhida, a Igreja
— era escapar da condição humana mesmo que continuando preso
a ela no período anterior à parusia. O celibato dentro do tempo nor-
mal, então, é a expressão social do paradoxo do "agora/ainda não" da
escatologia cristã — o paradoxo que é ele mesmo a ocasião das cartas
de Paulo, a fonte das confusões sobre o comportamento de suas con-
gregações e a medida do grau do quanto o estabelecimento da condição
humana por parte de Deus permanece no centro da esperança cristã.

6.7. Pos-scriptum: termos de comparação do seminário


Até agora, comparei diferentes formas de cristianismo em ter-
mos nativos a todos os tipos. Como podemos considerar essa reli-
gião à luz das categorias geradas pela discussão do grupo?

31 Eusébio, História Eclesiástica, 6.8, para a história da castração; Epifânio, Panarion 64.3.11-12,
para o qual a famosa castidade de Orígenes se devia às drogas.
'Confissões 6.12, 21 — 15. 25; 8: 6,13 e passim.
218 CRISTIANISMO ANTIGO

6.7.1. Obrigação
Dadas as atitudes complicadas diante de conceitos como "lei"
advindas da leitura antijudaica de Paulo e dos evangelhos que mar-
caram o cristianismo ortodoxo, o vocabulário do movimento [cris-
tianismo nascente] tem como protagonista o louvor da "liberdade"
— da Lei, dos vínculos com o pecado e com a ressurreição antecipa-
da (como quer que seja imaginada), dos vínculos da morte e da deca-
dência. Um discurso de obrigação permanece presente no comporta-
mento ético mais do que na retórica teológica enquanto tal. O cristão
é, pois, obrigado a cumprir o mandamento de amar a Deus e a seu
próximo, radicalmente estendido no Evangelho de Mateus a amar ao
inimigo igualmente (5,44). Os apologistas cristãos do segundo século
(e muitos estudiosos do Novo Testamento do século XX!) dividem a
Lei em mandamentos éticos e "rituais", argumentando que os rituais,
enquanto especificamente judeus, eram irrelevantes para os cristãos;
somente os éticos eram ainda obrigatórios. Eventualmente, a cultura
cristã desenvolveu seu próprio ethos de obrigação ritual — dias de
festa, o ano litúrgico, a obrigação sacramental, a Quaresma, e assim
por diante; as comunidades monásticas, como seria de se esperar, ar-
ticularam e regularam esse ethos a um nível bastante elevado.

6.7.2. Lealdade
Eu não havia pensado sobre as antigas comunidades sobre as
quais trabalho dessa forma, e isso ocasionou alguns reagrupamen-
tos interessantes. As auto-identidades dos grupos podem ser vistas
como uma função da lealdade a um conjunto progressivamente par-
ticular dos textos. Primeiramente, a grande divisão era sobre o status
da Septuaginta: qual grupo cristão a considerava tão sagrada quanto
reveladora, quais grupos meramente como reveladora. Lealdades
textuais posteriores ajudaram a formar o primeiro cânon cristão: as-
sim, o dualista Marcião tomou o corpus paulino (as sete epístolas au-
tênticas, mais Efésios e Colossenses) como o verdadeiro patrimônio
textual do cristão, juntamente com um evangelho (talvez alguma
versão de Lucas: não sabemos). Outros cristãos depositavam fideli-
dade a um cânon maior — as cartas de Paulo mais outras deutero-
PAULA FREDRIKSEN 219

paulinas (1 e 2 Timóteo, Tito, 2 Tessalonicenses; Hebreus); quatro


evangelhos, outras cartas, um apocalipse, e toda a Septuaginta. Mas
como se poderia interpretar esses textos e organizar as comunida-
des? Assim surgem os credos.
Duas observações interessantes. Primeiro, a lealdade a um câ-
non escriturístico não produziu uma lealdade similar a um cânon de
comentário e interpretação autoritativos, como é o caso do judaísmo
rabínico e do confucionismo. A autoridade dó comentário — e, por
conseguinte, a lealdade a ele — ficava com o prestígio do comen-
tador. Logo, as lealdades variavam de local para local, assim como
de época para época: um bom comentário no segundo século (por
exemplo, o de Irineu) seria ultrapassado pelo quarto (daí o "reescre-
ver" passivo do quinto livro milenarista do Contra todas as heresias de
Irineu, pelo simples expediente [adotado pela igreja ocidental and-
apocalíptica] de tirar aquela seção ao copiar os manuscritos). O pres-
tígio de Agostinho no Ocidente não lhe garantiu nada no Oriente. A
Cristandade nunca teve nada como o Mishná e a Gemara.
Segundo, os credos acabam se tornando um tipo de juramento
de lealdade. Nesse aspecto, eles falham: Atanásio ficou furioso por-
que o Credo Niceno, formulado necessariamente de forma vaga para
passar pelas comissões, podia ser endossado pelos arianos: digam o
que quiserem, ele sabia que eles estavam pensando sobre a Cristologia
diferentemente. E mesmo os credos com uma suposta importância
e aplicação universal se defrontavam com recepções variáveis e inte-
resses locais (em Nicéia, em meio às centenas de bispos do Oriente,
encontramos apenas dois do Ocidente latino).
As lealdades podiam cobrar alinhamentos em torno de um ritual
correto: a igreja do Norte da África, por exemplo, dividiu-se notoria-
mente por causa de um desentendimento sobre a admissibilidade de
um segundo batismo. Os donatistas são, de fato, o exemplo-padrão
da obsessão da Igreja com a lealdade de grupo e a uniformidade inte-
lectual. Os católicos do Norte da África e os donatistas não estavam
divididos por quaisquer diferenças doutrinais. Eles dividiam exa-
tamente os mesmos sacramentos, o mesmo calendário, os mesmos
santos; na verdade, em detrimento da harmonia local, eles reivin-
220 CRISTIANISMO ANTIGO

dicavam os mesmos templos e praticavam seus cultos nos túmulos


dos mesmos mártires. O que os separava era seu pensamento sobre
os sacramentos, e daí sua prática do (segundo) batismo para os que
voltavam a cair. A obsessão cristã com uma lealdade universal às mi-
núcias particulares de interpretação refletiu-se lingüisticamente na
carreira do termo hairesis, e eventualmente ameaçou uma das forças
mais conservadoras da cultura latina tardia, isto é, a lei romana: como
um pensamento pode se tornar — se alguém pensasse erroneamen-
te, isto é, deslealmente em relação à Igreja — uma ofensa de estado.
Finalmente, a lealdade no cristianismo (católico e gnóstico) era
lealdade à nova e fictícia família dos membros da comunidade, não à
família biológica de alguém com quaisquer obrigações que esta ade-
são supõe. O herói cristão transcende os limites da família, na verda-
de renuncia a eles, mesmo se ele (e, com muito menos oportunidade,
ela) renuncia igualmente ao poder e à posição social: esse é o tema
maior das histórias de conversão. O bispo é "pai", o chefe dos monges
é "abba", os membros da comunidade são a verdadeira "mãe, irmãos
e irmãs", como o próprio Jesus de Marcos havia pregado. (3,33-35)•

6.7.3. Visões utópicas


Após Adão, a sociedade, muitos cristãos católicos concorda-
riam, não tem sido lá muito marcada por justiça, paz e harmonia. As
exceções foram imaginadas ou permitidas. A elzklesia primitiva, de
acordo com Paulo, ao menos deveria agir corno um corpo, com um
acordo. Cipriano argumentou que a igreja, como a única arca da sal-
vação, deveria ser uma comunidade ordenadamente obediente, su-
jeita à autoridade de seu bispo. Ordens de virgens, padres do deser-
to (e madres), homens santos extravagantemente ascéticos, o retiro
literato erudito do otium liberale que eventualmente evoluiu para
o perfeccionismo livresco dos monastérios do Ocidente — todas
essas sociedades se viram como segmentos prolépticos do paraíso,
com seus membros individuais transformados pela ética partilhada,
propriedade comunitária (daí a pobreza individual) e o celibato se-
xual, em uma communio sanctorum. Como tal, enquanto ainda nesta
vida, o indivíduo que se unia em um tal esforço de grupo poderia
PAULA FREDRIKSEN -=-
-= 221

driblar a espiral da condição humana enquanto ainda, entretanto,


estivesse presente no corpo.

6.7.4. A memória
Seja-me permitido aqui concentrar em Agostinho, porque ele
muito faz com esse termo e essa idéia. O próprio fato de nós termos
memória é, para Agostinho, um sintoma da Queda, pois ela é a medi-
da da distensão da alma no tempo. Pela memória, o disperso Qi dos
amores relembrados é reagrupado e assim compromete as escolhas
da alma — "meu amor, meu peso". O hábito constrói a memória dos
amores, levando a escolhas compulsivas e, portanto, inapropriadas
— o argumento mais destacado de Agostinho para a falta de liberda-
de da vontade e a radical necessidade da graça. A saída dessa aflição
é só a graça, que não pode ser solicitada por nenhuma disciplina, ne-
nhum estudo, nenhum esforço efetivo por parte do indivíduo que,
aparte a graça, não pode ser senão mal conduzido. (As Confissões são,
nesse sentido, sua demonstração da verdade dessa afirmação pelo
uso de informações de sua própria vida: ele não pôde se direcionar a
Deus até que Deus viesse, Ele mesmo, em sua direção.)

6.7.5. A transformação

Esse é o termo que abrange as formas mais dinâmicas e dramá-


ticas da abordagem cristã de sua construção da aflição humana. A.
transformação negativa primitiva do pecado de Adão, passado de ge-
ração a geração como o Pecado Original, pode ser revertida somente
pela transformação curadora da graça de Deus por meio de Cristo. O
que isso significa no nível do ritual, da lealdade comunitária e da obri-
gação? Para os iniciantes, a pessoa deve pertencer à comunidade cor-
reta: extra ecclesiam, nulla salus, em que 'extra ecclesiam' quis dizer, origi-
nalmente, fora da igreja de Cipriano. Os sacramentos por onde a graça
é mediada podem ser dados somente pelo meio humano correto —
urn homem da igreja (por mais moralmente imperfeito que ele seja)
ordenado no Espírito porque ordenado pela correta hierarquia epis-
copal. Constantino e Teodósio somente complicaram essa questão,
mas ela existia na Igreja bem antes que o Estado por ela se interessasse.
222 CRISTIANISMO ANTIGO

As transformações moral e espiritual disponíveis na ecclesia são


uma mera sombra, é claro, da transformação definitiva da carne na
ressurreição dos santos. Aqui o cristianismo ortodoxo produziu o
seu bolo milenarista e o comeu também — enquanto renunciava ao
milenarismo. O contexto original para a proclamação da ressurrei-
ção do corpo é o querigma da igreja primitiva, um movimento judeu
apocalíptico. Passados muitos séculos e grupos étnicos, o tipo de
orientação ao tempo, capturado de forma embaraçosa no cânon — as
cartas de Paulo, Marcos, o Apocalipse — tinha sido condenado pela
hierarquia como herético e interpretado fora dos textos. Mas a trans-
formação da carne como a medida definitiva da redenção, a resposta
à precariedade humana, ainda assim permaneceu. Sem ela, a encar-
nação de Cristo perderia importância, sua ressurreição iria flertar
com o gnosticismo. Malgré lui, a Igreja a manteve e o Cristo ressur-
recto, por sua vez, permaneceu como o modelo da humanidade salva.
Finalmente, a escatologia cristã espera igualmente a transfor-
mação da alma. Paulo falou não somente de estar "em Cristo"; ele
também falou sobre Cristo estar em Paulo: "Eu fui crucificado com
Cristo; não sou mais eu que vivo, mas Cristo vive em mim" (Gl 2,20).
Os seres racionais de Orígenes, uma vez redimidos, voltarão a con-
templar a face de Deus, livres de todos os particulares incidentais
— gênero, raça, classe — da vida no cosmos material (nem judeu
nem grego, nem escravo nem livre, nem homem ou mulher). Os re-
dimidos de Agostinho, em contraste, são enfaticamente individuali-
zados, erguidos com a mesma carne com que viajaram pela história,
ainda com seus gêneros, identificáveis como indivíduos. Porém a
orientação essencial de seus egos terá mudado, o que permite en-
tender o fato de que não serão mais capazes de pecar: o amor do self,
aquela marca registrada do homem decaído, terá sido substituído
pelo amor de Deus. Deus substitui o ego. Talvez, então, nas especula-
ções escatológicas desses três pensadores tão diferentes — o judeu
apocalíptico, o teólogo especulativo, o antigo bispo romano — nós
encontremos algo próximo a uma doutrina do não-self.
7
A CONDIÇÃO HUMANA NO ISLÃO'
Sharra e obrigação

S. Nomanul Haq

7.1. Reflexões preliminares

No campo dos estudos comparados das religiões, é comum en-


contrar asserções acadêmicas explícitas de que dois sistemas religio-
sos dados exibem, a partir de uma análise comparativa acurada, uma
notável comunhão de idéias e doutrinas e de que não são tão apar-
tados quanto pareciam à primeira vista. Há não muito tempo, Ignaz
Goldziher foi homenageado pelo que foi considerado uma feliz e
rigorosa conclusão, segundo a qual o misticismo islâmico não passa
de sombra do budismo.' Mais recentemente, Leo Schaya justapôs
os dois primos semitas, o islamismo e o judaísmo, e falou de uma
associação doutrinal muito próxima entre o pensamento místico de-
les, algo que pouco surpreende e que tem sido explorado em termos
gerais e específicos por muitos outros estudiosos antes e depois.'
Então, entre tantos estudos comparativos, recebemos o meticuloso
estudo de Sachiko Murata, Tao of Islam,3 com um prefácio entusias-

*De Medina, na Arábia.


'Ver, por exemplo, T. Duka, "The Influence of Buddhism Upon Islam". Journal of the Royal
Asiatic Society of Great Britain and Ireland, janeiro de 1904, pp. 125-41.
'L. Schaya, "Contemplation and Action in Judaism and Islam", Contemplation and Action in
World Religions, org. Y. Ibish e I. Maculescu (Seattle: University of Washington Press, 1977). Um
exemplo representativo dos primeiros estudos deste tipo é Abraham Katsh, Judaism and the Qur'an
(New York: Barnes and Company, 1954). Para trabalhos relativamente recentes ver, por exemplo,
K. Cragg, The Privilege of Man: A Theme in Judaism, Islam and Christianity. Londres: University
of London Press, 1968; E E. Peters, Judaism, Christianity and Islam: The Classical Texts and their
Interpretation (Princeton: Princeton University Press, 1990).
3S. Murata, The Tao of !siam. Albany: State University of New York Press, 1992.
224 ISLÃO

orado de Annemarie Schimmel — a mesma autora bem conhecida


que antes organizara, nessa mesma linha, um volume intitulado We
Believe in One God: The Experience of God in Christianity and Islam.4
Além disso, os estudiosos da religião também estão familiarizados
com os muitos escritos de W Cantwell Smith, do mesmo gênero
— podendo-se facilmente multiplicar esses exemplos.
O próprio corpo de contribuições deste volume oferece mui-
tos materiais bons para quem busca similaridades doutrinais entre
o islamismo e outros sistemas religiosos, similaridades que às vezes
parecem residir num nível teórico tão fundamental que tendem a
tornar os aspectos coincidentes praticamente indistinguíveis. Por
exemplo, o relato de David Eckel da condição humana no budismo,
em que ele oferece uma exposição da teoria da "visão" (dadana) na
filosofia budista.s Pode-se perceber nesse relato que, no sistema fi-
losófico budista, a visão e todos os seus cognatos conceituais — ver,
olhar, testemunhar etc. — funcionam como categorias ao mesmo
tempo cognitivas e experienciais; e essas categorias são tão centrais
para os filósofos budistas que seu sistema inteiro "também recebe o
nome de visão". A sabedoria, ficamos sabendo, é uma forma de visão;
na verdade, "conhecer é... ver".6 Lembremos aqui a declaração islâ-
mica de fé, o primeiro pilar (rutin) do credo muçulmano, que é pre-
cisamente uma declaração de Shahãda, assim conhecida na tradição
islâmica — Kalimat Al-Shahãda — ou seja, uma declaração de ver ou,
alternativa e equivalentemente, de testemunhar, atestar ou ter a vi-
são: "Ashhadu [eu vejo, ou testemunho, atesto etc., da raiz SH-H-D] de
que não há divindade exceto Alá e vejo [ou testemuho, atesto etc.; a
mesma palavra] que Maomé é Sua criatura e Seu Apóstolo". Lembre-
mos também a Aliança Primordial Corânica:7 "E quando teu Senhor

4Com a colaboração de F. Abdoldjavad. New York: The Seabury Press, 1979.

'Ver a discussão de Eckel no capítulo 3, esp. 3.3


6 Ibid.

'Ao citar o Alcorão neste capítulo, usei várias fontes de tradução [para o inglês] indicadas por
abreviaturas-padrão depois da especificação do capítulo [surata] e versículo. Assim, A = A. Y. Ali. The
Holy Quran. Brentwood, Md.: Amana Corporation, 1983; Ae = Ali revisado por mim; R = F. Rahman.
Major Themes of the Quran. Minneapolis: Bibliotheca Islamica, 1980; Re = Rahman revisado por
mim. Quando não se especificam fontes, as traduções são minhas. Todas as datas são especificadas
em termos da Era Comum (d.C.).
S. NOMANUL HAQ 225

extraiu das entranhas dos filhos de Adão seus descendentes e os fez


testemunhar a si mesmos [alternativa e legitimamente: e os fez ver a
si mesmos, fez que tivessem uma visão de si mesmos etc.] dizendo:
Não é verdade que sou vosso Senhor? Disseram: Sem dúvida sois,
testemunhamo-lo [ou vemo-lo, temos a visão etc.]..." (7:172[-173]).
Mas a semelhança é aqui mais ampla e profunda, porque pa-
rece que a visão é a categoria ontológica fundamental da metafísica
religiosa islâmica. Observamos que a língua árabe, da qual o Alcorão
se tornou a fonte tanto histórica como literária, tem uma proibição
inerente de traduzir o conceito de "existência", a não ser por meio do
nome Wujild, que vem morfologicamente da raiz verbal W-J-D, que
significa literalmente "encontrar/descobrir", e é cognato do verbo
"ver". Assim, ser é ser encontrado/descoberto e ser encontrado/des-
coberto é ser visto. Em última análise, portanto, ser é ser visto. A vi-
são é pois a categoria primordial do ser. E, deixe-me apontar, essa
não é uma análise fabricada e desconhecida da tradição, porque na
literatura religiosa islâmica Deus é muitas vezes designado como
Shãhid (Aquele Que vê, testemunha, olha etc. — mais uma vez da
raiz SH-H-D), e escritos doutrinas sufis estão repletos de discursos
sobre a visão, seus níveis e estações, sua tipologia, suas capas e véus.
Em nosso século [XX], o poeta-filósofo Iqbal certa vez implorou
pungentemente numa súplica:
Ó, Aquele Que vê (Shãhid)
Fazei-me ser visto (mashhtid)!
Com um só olhar —
Fazei-me ser!'

Observe-se que aqui, tal como no caso dos filósofos budistas,


"visão" funciona nos níveis cognitivo e experiencial; mas, além dis-
so, funciona no nível ontológico primário — lançar um olhar é con-
ferir existência.
Para ilustrar outro caso do que denomino "sobreposição local",
permita-me examinar brevemente o caso da condição humana na

.Kulliyãt-i Iqbal (Farsi). Lahore: Ghulam Ali Publishers, 1973.


226---=
- ISLÃO

religião chinesa apresentado neste volume por Livia Kohn. Apren-


demos com Kohn que a concepção chinesa da raiz de toda a vida é
orientada para a unidade: "Tudo é em última análise Um e o Um se
manifesta em todos."9 E, um pouco adiante: "Todo objeto ou ser...
participa do Um, mas nunca pode ser o próprio Um, que permanece
informe na raiz da criação. Tudo sempre tem assim apenas acesso
parcial à unidade do original, nunca é plenamente íntegro.' Mais
uma vez, podem-se aplicar essas asserções, virtualmente sem ajus-
tes formais, ao islamismo. Na verdade, "Tudo é Ele!" e "Ele é Um!"
são conhecidas exclamações dos místicos muçulmanos e o próprio
Alcorão diz: "Para onde quer que nos voltemos, aí está o Rosto de
Deus" (2:109)." Do mesmo modo, como vou discutir a seguir, um
desafio sério e essencial enfrentado por teólogos e místicos muçul-
manos consiste em equilibrar a transcendência de Alá com Sua ima-
nência, dado que essa tensão básica advém da crença muçulmana
fundamental de que todo objeto e todo ser "participam do Um, mas
nunca pode ser o Próprio Um Ele próprio".
Kohn também diz que o mundo chinês se acha centrado
no Um, sendo a cultura chinesa "Uno-centrada" (em oposição a
"zero-centrada"). Ora, embora o islamismo seja monoteísta, em
oposição a monista, ele é tão radicalmente arraigado no princípio
do Tauhid (considerar Deus o Um), um princípio tão firmemente
assentado no próprio núcleo de sua fé, que a cultura islâmica pode
muito bem qualificar-se como Uno-centrada — essa é a tendên-
cia das declarações "Tudo é Ele!" e "Ele é Um!". Por fim, parece
haver também outras regiões de sobreposição dos mundos chinês
e islâmico. Uma delas é a noção de virtude, em ambos os casos
amplamente definida em termos sociais; outra é a admissão nos
dois sistemas da vontade humana, a saber, "o poder de pensar e
agir de maneira desarmoniosa [para o islamismo, leia-se: violan-
do a Sharra]... [que] aparta os seres humanos do resto da criação";

'Ver Kohn, 2.2.


10Ibid.

"Para uma pesquisa acadêmica da tradição mística islâmica, ver A. Schimmel. Mystical Dimen-
sions of Islam. Chapei Hill: University of North Carolina Press, 1975.
S. NOMANUL HAQ ---= 227

outra ainda está nas idéias islâmica e chinesa de memória, que em


ambos os casos define a consciência — o termo islâmico é dhikr;"
e assim por diante.

7.2. Ambigüidades na comparação

Mas qual o sentido desses tipos de semelhança? Se simples-


mente as indicarmos sem mais análise, no máximo contamos ape-
nas parte da história mais ampla; e, na pior das hipóteses, o que
dissemos pode sequer ser "parte adequada" da história; e se, como
o fazem alguns estudiosos e muitos (bem-intencionados) autores
populares, extrairmos dessas semelhanças conclusões ecumênicas
apressadas, teremos enganado nosso público; porque é certo, quan-
do considerado em sua totalidade, que o islamismo é bem diferente
em sua tendência fundamental tanto do budismo como da religião
chinesa. A primeira parte do capítulo de Eckel é neste caso muito
instrutiva, trazendo uma mensagem que se pode resumir numa só
frase: o que quer que se procure sobre a condição humana está no
budismo. Na verdade, é em princípio possível mostrar, por exem-
plo, que, no contexto da questão da condição humana, o islamismo
partilha de algumas preocupações básicas até dos Vedas; ou, para for-
necer provas de que a idéia da autoridade sacerdotal cristã, conce-
bida funcionalmente como meio de entender a condição humana,
tem estreitos vínculos com a instituição do Shri Imãmate; ou então
para demonstrar a ironia de que — e muitos autores do período mo-
derno fizeram justo isso — em termos da concepção histórica da
condição humana, o islamismo tem muito em comum com o socia-
lismo. Nessa linha, portanto, pode-se dizer de maneira equivalente
que: o que quer que se procure sobre a condição humana está no
islamismo.
Abordagens desse tipo, ainda que possam nos trazer algum de-
leite, padecem da falha básica de não reconhecer que mesmo dou-

12Ver "Dhikr", s. v. Encyclopaedia of Islam, New Edition. Org. por H. A. R. Gibb et al. Leiden:

E. J. Brill, 1954-.
---
228--- ISLÃO
trinas, teorias ou idéias semelhantes ou mesmo idênticas, muitas
vezes funcionam de maneiras totalmente distintas em diferentes
sistemas; têm carreiras diversas em diferentes ambientes religiosos,
gerando estruturas sociais e morais que diferem entre si e gerando
atitudes emocionais e intelectuais típicas de seus próprios e respec-
tivos contextos. Analisando a noção de culturas "uno-centradas",
Livia Kohn fala de algumas características que essas culturas tipi-
camente apresentam, usando o exemplo chinês como ilustração»
Mas na medida em que também o islamismo atende aos critérios de
tal cultura, e eu tendo a pensar que à sua própria maneira ele o faz,
ele não partilha de nenhuma dessas características; nem tampouco
partilha dos elementos afirmados de culturas "zero-centradas". O
destino da unocentricidade islâmica é simplesmente distinto.
Falando historicamente, idéias que nos parecem semelhantes se
desenvolvem em complexos solos históricos, tornando-se tradições
esposadas tenazmente, a tal ponto que essas tradições adquirem uma
vida própria, plenamente diferenciada e praticamente independen-
te das fontes primárias que são as portadoras da idéia original. Não
há como prever como a semente de uma dada doutrina religiosa vai
germinar num dado solo, que tipo de grupo social ela vai gerar e qual
vai ser a natureza de seus frutos culturais. Não há aqui espaço para o
essencialismo. A idéia fundamental de visão, por exemplo, teve no
Islão uma carreira que tem pouco em comum com o budismo; e a
unocentricidade muçulmana gerou uma sociedade de característi-
cas bem distintas da chinesa; e ainda um aiatolá iraniano (ãyat Allah)
hoje pouco se parece com um sacerdote cristão. A explicação de tudo
isso está nas sutilezas e complexidades do processo histórico.
Filosoficamente, toda essa questão de similaridade ou dissimi-
laridade de dois corpos dados de doutrina é deveras problemática.
Deixe-me invocar outra vez aqui a teoria das "peças adequadas".14
Isolada da totalidade de que é elemento integrante, uma dada idéia
pode parecer semelhante a outra igualmente isolada de outra tota-
lidade. O botão redondo da minha camisa parece com o volante re-

13 Kohn, 2.2.
"Sou grato ao Professor A. I. Sabra pela inspiradora orientação quanto a este ponto.
S. NOMANUL HAQ 229

dondo de meu carro. Mas a função do botão no sistema chamado


"camisa" não se assemelha à do volante no sistema automobilístico
"carro". Logo, a pura rotundidade não constitui, neste caso especí-
fico, o caráter definidor de uma parte própria. O botão e o volante
só se assemelham em isolamento, e a isso denomino "similaridade
(ou dissimilaridade) local". Da mesma maneira, por exemplo, não é
qualquer pedaço de borracha que forma uma peça própria de meu
carro; quando vou à loja de autopeças, peço um pneu, uma junta ou
um tubo, e não qualquer pedaço de borracha. Em outras palavras,
uma peça própria é em si mesma um todo integral, um subsistema
de uma totalidade diferenciada. Logo, nas comparações temos de
examinar em primeiro lugar como dois elementos dados de dois sis-
temas funcionam no sistema respectivo a que pertencem e se cada
um desses elementos é uma peça própria desse sistema — só então
teremos condições de compará-los de maneira significativa.
Isso, no entanto, não significa que as semelhanças entre o is-
lamismo e outras religiões que observei anteriormente sejam todas
necessariamente semelhanças em isolamento; pelo contrário, pare-
cem tão notáveis que abrigam a promessa de ser muito úteis em um
estudo comparativo. Mas fazer um julgamento categórico numa ou
na outra direção é perigosamente prematuro. Toda a minha tese é
simplesmente a de que a tarefa de identificar "peças próprias" de sis-
temas religiosos ainda precisa ser feita pelos comparatistas, e que a
relação entre o corpo de doutrinas fundamentais (por exemplo, tex-
tos normativos) de um sistema religioso e de sua tradição desenvol-
vida (crenças, credo, rituais etc.) ainda espera uma pesquisa históri-
ca exaustiva em perspectiva comparada. E é isso precisamente que,
no meu entendimento, o Comparative Religious Ideas Project (Projeto
de Idéias Religiosas Comparadas) promete fazer.

7.3. A condição humana no Islão

A busca sustentada que fez Robert Neville de categorias com-


paradas é de fato a busca daquilo que tenho chamado de peças pró-
prias, e sua concepção de vagueza e generalidade dessas categorias,
entre tantas de suas outras características que ele apreende e articula,
230 ISLÃO

promete de fato garantir à nossa escolha de categorias um alto grau


de flexibilidade. Esta lhes permite absorver, sem cair por terra, no
processo de análise comparada, o desenvolvimento histórico variado
por que passaram [categorias] em várias culturas — em outras pala-
vras, a meta é evitar explicações essencialistas e o vazio histórico. É
essa minha compreensão que constitui o quadro metodológico de
minha abordagem.

7.3.1. A obrigação

As formulações de Neville — "A condição humana é viver sob


obrigação" e "Ser humano é estar sob obrigação"'s — funcionaram
muito bem no caso do islamismo. Na verdade, verificou-se que elas,
em termos de sua vagueza e generalidade, têm suficiente poder ex-
plicativo para conferir certo grau de coerência a algumas doutrinas
essenciais aparentemente incongruentes da fé islâmica, tal como
essas doutrinas aparecem nos textos normativos, dentre os quais o
Alcorão tem status supremo. Porém, mais do que isso, essas formula-
ções específicas parecem ter uma natureza tal que as faz permanecer
perfeitamente inteligíveis ao fiel, abrigando portanto a promessa de
uma comparação intercultural não apenas sensível ao texto como
também à tradição. Mas deixe-me agora fazer uma análise mais detida.

7.3.2. A história e a ordem moral

A noção islâmica de obrigação faz pouco sentido se vista isola-


da do conceito cósmico corânico de história — história sendo aqui
a arena da vida real, aquela que tem um começo e um fim tempo-
rais, em que os fenômenos naturais se processam com naturalidade,
aquela em que as relações humanas se manifestam. O Alcorão nos
diz que o propósito da criação da humanidade e, com efeito, de todo
o cosmos, é implantar por meio da orientação de Deus uma ordem
moral aqui na terra. Ou seja, uma ordem moral na história. Assim, a
saída — saída ou separação, não queda — de Adão do jardim equiva-
le ontologicamente à criação da história.

15 Robert C. Neville. Normative Cultures. Albany: State University of New York Press, 1995, p. 143.
S. NOMANUL HAQ-
--=--
'
---- 231

A ordem moral de que fala o Alcorão existe no mundo não-


humano somente por meio do amr de Alá — o mandato divino que
é o princípio constitutivo fundamental de cada entidade criada, que
a põe sob a obrigação de assumir o lugar que lhe cabe no todo cós-
mico mais amplo. Esse amr dota o mundo dos fenômenos de uma
"natureza" (tabra, funcionalmente idêntica, mas metafisicamente
distinta da ousia de Aristóteles) ou, como a prefere caracterizar a
maioria dos teólogos muçulmanos, um "costume" (ada, noção que
nega explicitamente o princípio da causalidade natural precisamen-
te da maneira como o fez Hume) que nunca é violado.r6 No mundo
humano, por outro lado, a ordem moral tem de surgir, mais uma vez
aqui na terra, pelo cumprimento da obrigação humana: a de observar
a Lei de Alá (Sharra). Mas é possível uma violação da Sharra porque
os seres humanos têm livre-arbítrio, e é essa liberdade humana que
proporciona o escopo moral e lógico da Justiça de Alá — ou seja,
o escopo da recompensa ou punição últimas no fim da história. E
nesse contexto emerge a escatologia corânica.
O Alcorão dota de realidade histórica tanto a natureza como a
humanidade, pondo-as ambas sob a obrigação que se manda que rea-
lizem no mundo real — a primeira existindo sem a faculdade da von-
tade e, portanto, sem ônus moral a suportar e, por conseguinte, sem
merecer recompensa nem punição; a segunda, por sua vez, tem a capa-
cidade de escolher e, portanto, de ser moralmente responsabilizada.
Em outras palavras, o amr da natureza é a obrigação de observar a Lei
da Natureza criada (tabr a ou 'ãda), e o amr da humanidade é a obriga-
ção de observar a Lei de Deus (Sharra) — sendo amr o princípio cons-
titutivo fundamental de toda a coisa criada. Assim, é compatível com
a doutrina islâmica dizer que ser humano é estar sujeito à obrigação.

7.3.3. Sharra e Fiqh


Mas qual a precisa natureza da Sharra que a humanidade tem
a obrigação de observar? E, mais fundamentalmente, qual a fonte

16Para uma discussão mais ampla do problema teológico islâmico da causalidade, ver meu

"Tabra", s.v. Encyclopaedia of Islam.


.-=--- ISLÃO
232—

última da Sharra? A bem dizer, a busca, a articulação, a sistematiza-


ção e a codificação da Sharra — sendo todo esse processo designa-
do como fiqh (literalmente "entendimento") — ocupa o centro do
desenvolvimento da tradição religiosa islâmica. Na verdade, o sum-
mum bonum da produção intelectual islâmica está precisamente no
campo da fiqh, que a literatura ocidental menciona freqüentemente
como Lei ou Jurisprudência islâmica. Essa disciplina conheceu per-
sonagens tão imponentes, e veio a ser tão abrangente, que se tornou
a articulação de todo o Islão como uma função.'7
Deve-se observar que Sharia e fiqh se distinguem conceitual-
mente: aquela é o imperativo moral que permanece depois da en-
trada de Deus na história por meio da Revelação; esta é, como se
indicou, o processo de entendimento desse imperativo moral.' Mas,
no desenvolvimento histórico das coisas, a Sharia veio a ser pratica-
mente identificada com os resultados da fiqh. Logo, depois do período
de formação da tradição religiosa islâmica (séculos VII-X), a Sharra
tem sido considerada o corpo codificado de material de caráter ju-
rídico escrito pelos (ou advindo dos) mestres da fiqh, um material
que inclui em seu bojo formulações e definições legais, bem como
corpos legislativos que, em princípio, abrangem toda a gama do agir
humano — privado, público, individual, social, doméstico, pessoal;
especifica regras que vão do uso do palito de dente à realização do
Hajj; de regras do corte de unhas e dos cabelos a leis sobre contratos
e códigos de taxação do Estado. Pode-se descrever legitimamente
esse grande corpo de lei islâmica como a busca muçulmana de uma
compreensão e codificação funcionais da obrigação.'9
Observe-se que, no contexto da Sharra, temos de ver a obri-
gação em termos funcionais, o que confere a essa categoria uma di-

"Uma elucidação altamente erudita da noção de Shari`a está no capítulo de F. Rahman, com
este título, em seu livro Islam. Chicago: University of Chicago Press, 1979.
18Tenho de reconhecer que me apóio aqui, amplamente, no excelente artigo de Kevin Reinhart,

"Islamic Law as Islamic Ehics". Journal of Religious Ethics, n. 11.2, 1983, pp. 186-203. Claro que se
aplicam aqui as reservas de sempre.
19 0s muçulmanos sunitas, a vasta maioria no mundo islâmico, pertencem a uma ou outra das

quatro escolas legais cujo nome vem de seus mestres: Abei Hanifa, f. 757 (escola Hanafi); Mãlik ibn
Anas, f. 795 (escola Maliki); al-Shafi'i, f. 820 (escolha Shãfi) e Ibn Hanbal, f. 855 (escola Hanbali).
S. NOMANUL HAQ —=--
- "="-- 233

mensão mais definida e prática. O objetivo da fiqh, a compreensão


humana, não é senão concretizar a obrigação — ou seja, traduzir o
amr em ahkam (ordens, regras, estatutos, legislativos) e esses ahkam
constituem transitoriamente a substância da Sharia. Digo "transito-
riamente" porque a posição islâmica dominante sobre isso é que os
ahkãm, ainda que tenham de ser derivados por meio do procedimen-
to correto, continuam a ser produtos de um esforço humano sujeito a
erro; assim, as leis da fiqh permanecem epistemologicamente suspei-
tas e mesmo assim, até serem substituídas por uma fiqh melhor, têm
valor legal impositivo para cada um e para todos os muçulmanos."
Os alykãm que a fiqh produz não são simplesmente, deve-se ob-
servar, um corpus de proscrições ou códigos penais. Eles constituem
antes, e primordialmente, uma matriz da vida muçulmana, personi-
ficando uma hierarquia e uma taxonomia consideradas como abran-
gendo todo comportamento humano concebível. Logo, todos os
atos humanos se enquadram numa das cinco classes: fard (obrigató-
ria); harãm (proibida), mubãh (permitida); mustalyabb (estimulada) e
makrüh (desencorajada). Eis todo o islamismo em termos funcionais.

7.4. Alá, a fonte última da Sharra:


o monoteísmo e a dualidade Criador-criado

O princípio de Tauhãd constitui, como já indiquei, o próprio


âmago do islamismo; trata-se de um princípio que torna essa religião
abraâmica radicalmente monoteísta. Alá, em Si Mesmo, e nada além
Dele, é a fonte última da Sharra, que a humanidade tem a obrigação
de seguir. E Alá, em Si Mesmo, e nada além Dele, é Deus, o Criador;
todas as outras coisas são criadas por ele. Não pode haver meio-ter-
mo aqui. Na verdade, o pilar fundamental do Islão, a Shahãda, nada
é senão uma retumbante declaração dessa crença: "Testemunho [ou
vejo] que não há divindade a não ser Alá, e testemunho [ou vejo] que
Maomé é sua criatura e mensageiro". Examinemos esse testemunho
muçulmano primordial.

Cf. Reinhart, op. cit.


20
234 ---- ISLÃO
-
O testemunho começa com uma radical negação de todas
as divindades, exceto Alá — sendo a partícula de negação aqui la,
descrita pelos filólogos como a negação universal ou enfática, em
comparação com outras partículas de negação da língua árabe. Na
segunda metade, a Shahãda declara a entrada de Deus na história
por meio de Suas revelações trazidas por Seus mensageiros — Mao-
mé é um desses mensageiros que transmite a mensagem de Deus,
sua Sharra, à humanidade. Mas um ponto fundamental a observar
é que o mensageiro é aqui considerado explicitamente apenas uma
criatura, sem nenhum atributo ou autoridade divinos. Manifestando
a radical tendência monoteísta do islamismo, esse primeiro passo de
fé muçulmano personifica um compromisso estrito com o princí-
pio da dualidade Criador-criado — ou seja, o princípio da disjunção
divino-humano.

O Profeta, ainda que tenha recebido a Sharia por revelação


divina direta, em tudo permaneceu humano, isto é, sua existência
é histórica e não transcendente. Os mensageiros de Deus não são
deuses; como todos os outros seres humanos, têm as mesmas obri-
gações de seguimento da Sharia. Por outro lado, a entrada de Deus
na história consiste apenas na Revelação; a substância de Deus ou
Sua essência (Dhat) não se manifesta neste mundo natural — ou
seja, Deus permanece transcendente. Uma característica profunda-
mente reveladora da fórmula de fé muçulmana é que ela ao mesmo
tempo vincula e separa o transcendente e o histórico. A primeira
metade da fórmula dá testemunho do transcendente ("Não há di-
vindade a não ser..."); a segunda metade, do histórico ("Maomé é Sua
criatura..."); a primeira tem a ver com a peculiaridade singular do
Criador e a segunda se refere a um ser criado que é membro da fértil
pluralidade de criaturas. Mas as duas metades das fórmulas são uni-
das pelo conectivo "e" e, além disso, a primeira metade está semânti-
ca e inextricavelmente ligada à segunda pelo possessivo "Seu/Sua".
Com efeito, para os muçulmanos, a Shahãda não admite divisões, e
constitui um todo integral; toda separação das duas de suas frases
(gramaticalmente) completas só pode ser efetuada para fins de aná-
lise.
S. NOMANUL HAQ 235

7.4.1. A disjunção entre Deus e Outro-que-não-Deus: Shirk


Mas essa análise destaca sobremaneira muitos aspectos fun-
damentais de uma ampla gama de doutrinas islâmicas, explicando
também a tendência do desenvolvimento histórico da tradição do
islamismo. Explica, por exemplo, por que shirk (associar o outro-
que-não-Deus a Deus/admitir alguma divindade a não ser Alá) é o
pecado capital no islamismo — o Alcorão está repleto da condena-
ção iracunda do shirk; na verdade, em termos de freqüência, inten-
sidade e força retórica, dificilmente existe um tema no Alcorão que
se aproxime do shirk. Num dos capítulos do Alcorão relativamente
bem conhecido, que se dirige de modo evidente a cristãos e seu tri-
nitarismo, e significativamente intitulado "Pureza [da Fé]", a ques-
tão é tratada de maneira incisiva:
Dize: Ele é Deus,
O Uno e Único;
Deus, o Eterno, o absoluto;
Ele jamais gerou,
Nem foi gerado;
E não há quem
Se compare a Ele.
(112:1-4, A)

7.4.2. O Alcorão: criado ou eterno?


Quanto à tradição islâmica, vê-se nela o que se pode descrever
como obsessão com o shirk, atitude que se manifesta na literatura re-
ligiosa do islamismo, constituindo a preocupação central e candente
de todos os seus teólogos. De fato, pode parecer curioso que as duas
escolas de teólogos muçulmanos divirjam primordialmente sobre a
questão do caráter criado do Alcorão, a questão do Khalq al-Qur'ãn,
famosa e historicamente escandalosa: é o Alcorão uma criatura de
Deus? Ou é co-eterno com Deus? A primeira das escolas, a mutazili-
ta, tomou como seu projeto teológico fundamental a demonstração
de que o Alcorão — mesmo o Alcorão, A Palavra de Deus (Kalãm
Allah) — é apenas uma criatura de Deus e não partilha de Seus atri-
butos essenciais de ser eterno e absoluto. Mas, no seu devido con-
236 ---- ISLÃO
--
texto, isso faz sentido, porque os mutazilitas se preocupavam que o
Livro se tornasse, se não fosse assim, outra divindade além de Deus,
o que equivale a cometer shirk. Claro que a fonte última da Sharia
era o Deus Eterno Único: admitir uma pluralidade de divindades
significaria uma multiplicidade de fontes da Sharia, além de criar o
problema metafísico de ter de admitir uma pluralidade de eternos.
Não admira que os mutazilitas tenham dado a si a designação Ahl
al-Taulyid (Os Adeptos da Unicidade de Deus)."
Dado o texto do Alcorão, um monoteísmo absoluto faz surgir
suas próprias tensões internas e desafios racionais; e toda a questão
tem ainda dimensões históricas contingentes. Parece muito prová-
vel que o foco teológico muçulmano inicial na questão da Palavra
de Deus tenha muita relação com o encontro do islamismo com o
cristianismo. Lembremos que, no Evangelho segundo João, Deus é
identificado com a Palavra (Verbo — logos), a Palavra Que "se fez car-
ne e viveu entre nós" (I:14) — ou seja, manifestou-Se na história.
Também o Alcorão se refere a Jesus como a Palavra:
Eis que os anjos disseram:
"Ó Maria! Deus te manda
Novas felizes de uma Palavra
Que vem Dele:
Seu nome será Jesus Cristo..."
(3:45, A)

Mas logo descarta rapidamente alegações de status divino com


respeito a Jesus:
Jesus Cristo, o filho de Maria,
Foi tão-somente
Um apóstolo de Deus,
E Sua Palavra,
Com a Qual agraciou Maria,
Por meio de um Espírito que procedeu

21Em anos recentes, tem havido uma renovação do interesse acadêmico pela teologia islâmica.

Para estudos especializados, o leitor deve consultar as obras de, por exemplo, R. Frank e J. van Ess.
Para uma pesquisa introdutória, a obra-padrão ainda é W. M. Watt. Islamic Philosophy and Theolo-
gy. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1962.
S. NOMANUL HAQ 237

Dele. Crede, pois,


Em Deus e em Seus apóstolos.
E não digais "Trindade!"; abstende-vos
Disso que será melhor para vós:
Porque Deus é Uno...
(4:171, A)

Na verdade, se se admite que a Palavra de Deus é uma substância


divina, faz-se dela algo co-eterno com Deus; assim, se Jesus é a Pala-
vra de Deus — como o próprio Alcorão diz — então Jesus também é
co-eterno com Deus, participa da Divindade. Mas isso era shirk puro
e simples, introduzindo uma multiplicidade de fontes da Sharra e
obliterando a disjunção divino-humano." Diante de tudo isso, não
causa surpresa que se tenha desenvolvido na tradição islâmica um
corpo amplo e impressionantemente sofisticado de literatura teo-
lógica, metafísica, filológica e polêmica sobre a Palavra (Kalima, da
raiz K-L-M); na verdade, toda a disciplina da teologia islâmica rece-
beu o nome de "Ilm al-Kalãm (Ciência da Fala/do Discurso) ou sim-
plesmente Kalãm (Fala/Discurso, da mesma raiz), sendo os teólogos
designados por um particípio ativo derivado morfologicamente,
mais uma vez, da mesma raiz, mutakallimún (singular: mutakallim),
praticante da Kalãm.23

7.4.2.1. A posição mutazilita

A posição mutazilita é que a Palavra de Deus, que aqui signifi-


ca especificamente o Alcorão, é um acidente (farad, no sentido de
Aristóteles); como toda palavra, ela se compõe de "letras organiza-
das em série e sons articulados separadamente", que Deus cria numa
ou noutra estrutura corpórea. E uma vez que Deus tenha criado uma
palavra num certo corpo, é esse corpo que vai ser o agente de sua
pronúncia resultante. Mas o falante não é "aquele em que a palavra

22 Ver A. H. Mathias Zahniser. "The Word of God and the Apostleship of 'Isa' [Jesus]: A Nar-

rative Analysis of AI lmran (3): 33-62". loumal of Semitic Studies, 37, n. 1, primavera, 1991, pp.
77-107.
"Introduções acadêmicas a esses aspectos da tradição intelectual islâmica estão nos verbetes
"Kalãm" e "Ilm al-Kalãm" da Encyclopaedia of Islam.
-------- ISLÃO
238-
reside, mas aquele que a produz".24 O Alcorão "fala" por meio da tinta
que dá corpo a suas palavras e da superfície em que é escrito, ou por
meio da articulação fonética de sons — todos eles acidentes. Em vir-
tude desse raciocínio, é descartada a divindade do Alcorão, tal como
a de Jesus. Para os mutazilitas, a expressão "Palavra de Deus" significa
que Deus criou em seres contingentes palavras e frases para poder
comunicar no mundo histórico Sua Sharia, a qual a humanidade
tem a obrigação de seguir.

7.4.2.2. A posição asharita

A escola contrária de teólogos muçulmanos, a asharita, rejeita a


teoria do caráter criado do Alcorão. Mas embora de fato afirme que a
Palavra de Deus é co-eterna com Deus, os asharitas produzem um ar-
tifício para evitar ter de admitir que o corpo físico do Alcorão, enun-
ciado por escrito ou verbalmente, é eterno — porque, mais uma vez,
isso seria shirk. Assim, distinguem entre a Palavra que subsiste na
divina Essência, que é sem fala/discurso, e sua expressão por meio
de letras ou sons num corpo concreto. É a primeira que é eterna
por ser um atributo divino — uma disposição de Deus, ainda que não
uma substância divina separada. A última é criada e contingente.'s
Mas então a dúvida é: se o Alcorão, tal como chegou a nós, não
é eterno, mas contingente, por que deve ele ser seguido por todo o
porvir? E se ele deve ser seguido, por que as outras revelações de
Deus, a Torá e os Evangelhos, por exemplo, não são seguidas? A res-
posta-padrão é a de que o Alcorão sobrepuja todas as revelações ante-
riores, abrangendo-as, da mesma maneira como a árvore sobrepuja a
semente da qual vem, e abrange em si o princípio desta. Além disso,
as escrituras anteriores existiam apenas numa condição corrupta,
porque Deus nunca prometeu preservá-las, ao contrário do caso do
Alcorão, sua mensagem final. Observe-se a visão evolutiva que tem
o islamismo da revelação de Deus, mas no sentido teleológico, não
darwiniano.

24qu. D. Gimaret, em seu "Mudazila" Encyclopaedia of Islam, p. 788.


25Cf. Gimaret, op.cit.
S. NOMANUL HAQ-
--
-=
-= 239

Quanto à questão da não-eternidade do corpo concreto do Al-


corão, a resolução-padrão na tradição islâmica madura é que o Livro
é o surgimento na história da Mensagem (final) de Deus, e embora
não sejam substâncias eternas, suas letras escritas e sons enunciados
são um veículo imutável e peculiar de algo eterno; porque a Mensa-
gem de Deus é de fato eterna, atributo de Deus que é. Esse veículo
— a forma corpórea do Alcorão — leva à compreensão da Sharra, se
os seres humanos a buscarem sinceramente de acordo com sua fitra
(natureza primordial), se a buscarem com sinceridade e verdade, se
refletirem e ponderarem. Entra aqui a doutrina corânica do esforço
humano — os seres humanos têm de seguir o amr de Deus; e esse é
todo o sentido do encargo moral da humanidade:
[Juro] pela personalidade do homem e por aquilo pelo qual foi formada,
que Deus nela gravou seu mal e seu bem. Que será venturoso quem fizer
[um esforço para tornar] sua personalidade pura, ao passo que quem a
corrompe será desventurado. (91:7-1o, Re).

O sucesso do esforço humano é garantido porque o bem foi


impresso na alma humana. Além disso, há uma aliança primordial
entre Deus e os seres humanos:
E quando teu Senhor extraiu dos filhos de Adão — de sua medula —
toda a sua progênie e os fez testemunhar a si mesmos [ou os fez ver a
si mesmos], dizendo: "Não sou eu vosso Senhor?" E eles responderam:
"Sem dúvida Tu és, testemunhamo-lo [ou vemo-lo]". [O Senhor fez isso]
para que não dissésseis no dia do Julgamento/Ressurreição: "Não estáva-
mos cientes disso". Ou não dissésseis: "Tudo o que aconteceu foi que os
nossos pais cometeram shirk [idolatraram]..." (7:172-73, Re).

Nessa aliança, está a teoria islâmica da consciência humana.

7.5. Mantendo a disjunção divino-humano

A doutrina islâmica da disjunção divino-humano nem sempre


foi fácil de manter. O Alcorão, sem dúvida, fala com vigor e abundân-
cia da transcendência de Deus, mas também diz, e mais de uma vez,
que depois de moldar os seres humanos, Deus soprou "Meu próprio
- - ISLÃO
-=--
240-

espírito" neles (15:29; 38:72; 32:9); assim como diz que Deus está
mais próximo dos seres humanos do que sua "veia jugular" (50:16),
bem como que, como já vimos, para onde quer que nos voltemos
"aí está o Rosto de Deus". Isso cria uma tensão que afetou muitos
pensadores religiosos e todos os místicos muçulmanos. Deus é as-
sim ao mesmo tempo transcendente e imanente. Em verdade, não
pode haver obliteração da separação divino-humano, porque isso
seria obliterar a Sharra: porque se o Comandante e os comandados
se fundirem — o termo técnico é aqui hulfil, a dissolução de um no
outro —, não permanecem nem os comandados nem o Comandan-
te, nem, em verdade, o Comando. E, no entanto, Deus está no âmago
de todo ser humano, pois todos trazemos o próprio espírito de Deus.
Os místicos sufis que sentiram a presença de Deus nas
profundezas de seu ser chegaram mesmo a cair no panteísmo e no
monismo. Ao me referir à religião chinesa, destaquei o axioma-pa-
drão sufi de que se pode participar do Uno, isto é, pode-se — e se
devem fazer esforços para — desenvolver em si atributos de Deus,
mas nunca se pode vir a ser o Uno ou fundir-se nele. De fato, o de-
safio fundamental de toda a teoria sufi é precisamente o de equili-
brar a imanência e a transcendência de Deus; e os sufis têm lidado
com essa tensão de maneira muito criativa. Mas nem todos podem
manter-se nesse delicado limiar; muitos tenderam para um ou outro
lado e alguns tiveram um fim trágico. Bãyazid de Bistãm exclamou
"Glória a mim!". Foi considerado como sofrendo de teopatia (shath).
Sabe-se que o destino do grande sufi al-klallãj: em seu enlevo, que
declarou extaticamente "Eu sou a Verdade" e foi impiedosamente
executado no ano 922. Foi acusado entre outras coisas de shirk. O
místico andaluz Ibn al-Araba foi acusado de wahdat al-wujtici (mo-
nismo antológico) e foi desde então implacavelmente condenado.'
Esses sufis haviam relaxado a tensão.
A tradição baseada no Alcorão da Ascensão do Profeta (Mirãj)
tem particular relevância aqui. Diz a tradição que ele ascendeu pe-

26Cf. Shimmel, op. cit. Para excelentes estudos sobre al-Hallãj, ver os escritos de L. Massignon,

que ainda não foram sobrepujados. Para um relato introdutório da vida e das doutrinas de al-Hallãj,
ver minha introdução em Divan-i Ffallãi. M. lqbal, trad. por Karchi: Maktaba-i-Daniyal, 1977.
S. NOMANUL HAQ 241

las sete esferas celestiais na companhia de Deus, e estava apenas a


uma distância de "dois arcos" de Deus, ou até mais próximo; mas não
olhou para Deus, apenas viu Seus sinais — e voltou à terra:
Quando estava na
Parte mais alta
Do horizonte,
Então se aproximou dele
Estreitamente,
Até uma distância
De dois arcos,
Ou menos [ainda]
(...)
Não desviou o olhar
Nem transgrediu!
Em verdade, presenciou
Os Sinais de seu Senhor,
O Excelso!
(53:17-18, Ae).

Esse retorno do Profeta é considerado na tradição islâmica


uma mensagem profética fundamental que exibe dimensões tan-
to morais como ontológicas: a dualidade Senhor-servo tem de ser
mantida; a obliteração dessa dualidade é uma impossibilidade me-
tafísica; e isso resume a lógica da condição humana. Mesmo lallãj
se empenhou em não borrar o nexo Criador-criado, algo que seus
inimigos políticos recusaram-se a reconhecer.

7.6. A ligação entre o transcendente e o histórico

Mas o Deus transcendente do Islão não age no plano histórico.


Logo, a saída de Adão para a terra não foi essencialmente uma puni-
ção por alguma espécie de Pecado Original: Deus planejara mandá-
lo para baixo antes mesmo de o ter criado — "Vou criar um khalifa
(vice-gerente) na terra" (Alcorão, 2:30). A saída humana do Jardim
foi assim um fenômeno ontológico semelhante ao nascimento na-
tural — uma criança saindo do ventre da mãe, um pássaro quebran-
--=– ISLÃO
242---

do a casca do ovo ou um botão brotando num ramo. Com efeito, tal


como a natureza, Adão teve de se desenvolver, moral, espiritual e
intelectualmente — tal como o bebê até a idade adulta e a semente
que se torna frondosa árvore.
Isso explica por que a condição humana no Islão não consiste
num processo de recuperação a partir de uma queda, nem, portan-
to, de resgate de alguma glória original; consiste, antes, em cumprir
perpetuamente uma série de obrigações, "para fruir o bem e afastar o
mal", e enquanto cumpre suas obrigações, a humanidade conquista
glórias sempre novas. Na verdade, tanto o bem como o mal foram
fornecidos ao mundo, e a humanidade foi colocada num estado de
tensão moral; mas foi uma tensão criativa, porque, para evitar o mal
sempre presente, a humanidade teve de ficar escutando com aten-
ção o socorro de Deus, e por ele suplicando — luta que manteve
intacta uma ancoragem moral transcendente na vida humana. De
fato, é nessa mesma luta que reside a realização do potencial moral,
espiritual e intelectual da humanidade. Observe-se quanto a isso
que, tal como o bem, o mal é igualmente considerado como estando
a serviço de um propósito divino; e é esse o motivo de a imagem
de Satanás (Iblrs) no islamismo despertar simpatia, não condenação,
particularmente em círculos sufis.27
A ligação do transcendente com o histórico também explica
duas atitudes mais fundamentais do islamismo. Em primeiro lugar,
a atitude islâmica com relação à natureza: a natureza é real, é criação
de Deus como tudo aquilo que é Outro-que-não-Deus; a natureza
é boa porque segue o amr de Deus sem ter nunca a possibilidade
de violá-lo. Os fenômenos naturais são ãyãt (singular: ãya, sinais) de
Deus, e essa é a mesma palavra que designa os versículos do Alco-
rão, de modo que há uma espécie de equivalência significativa entre
a natureza e a Palavra de Deus. O Alcorão, é claro, está repleto de
referências a fenômenos naturais — chuvas, nuvens, estrelas, pé-
rolas, trovões, tardes, madrugadas, alvoreceres, o sol e a lua, árvores,

'Ver sobre 'buis P. Awn. Satan's Tragedy and Redemption: Iblis in Sufi Psychology. New York:
Columbia University Press, 1987. Existe com efeito uma análise incisiva em L. Massignon. La Passion
de Husayn lbn Mansur al-Hallaj. 4 vols. Paris: Gallimard, 1975.
S. NOMANUL HAQ-
-=- - 243
--

jardins e pomares e assim por diante. Na verdade, o homem é uma


criação natural: no que se crê ser a primeira revelação ao Profeta, o
Alcorão diz:
Recita!
Em nome de teu Senhor
Que criou;
Criou o ser humano,
De uma gota de sangue coagulada.

(96:1-2)

A outra atitude islâmica fundamental explicada pela ligação


transcendente-histórico é a que existe com relação à história e às
forças históricas. O Islão não admitia dicotomia entre o secular e o
religioso, nem oposição sagrado-profano, nenhum problema men-
te-corpo. Se a história é a arena da atividade divina, as forças históri-
cas têm de ser empregadas para atingir um fim moral — vindo daí
a justificativa para a jihãd [guerra santa]. É sobremodo importante
ter em mente que toda a noção de profetismo no Islão manifesta
uma ligação transcendente-histórico: a condição de profeta exibe
dois elementos: a revelação (o elemento transcendente) e o sucesso
no estabelecimento de uma comunidade sócio-econômica aqui na
terra (o elemento histórico). Logo, um profeta tem praticamente a
obrigação de ter sucesso na história. Um eremita, por mais piedoso
que possa ser, não pode ser um profeta no sentido islâmico. Como
o diz Rahman:
Um Deus para quem, em última análise, é indiferente Sua eficácia ou
não na história, certamente não é o Deus de Maomé e do Alcorão.28

E, além disso:
O propósito islâmico tem de ser realizado, como imperativo absoluto,
e para isso é necessário não só pregar, como controlar e dirigir forças
sociais e políticas. É precisamente por isso que a carreira medinense* do
Profeta [durante a qual nasceu o Estado islâmico], longe de ser um com-

"Rahman, op. cit., p. 21.


--- ISLÃO
244 ----

prometimento do islamismo com a política, é uma realização inevitável


da Tarefa Profética de Maomé.29

Essas atitudes não apenas são peculiarmente islâmicas, mas


também, como uma questão de fato histórico, têm entrado em con-
flito com as atitudes de outras fés.
Parece-me, portanto, que a obrigação é uma categoria compa-
rativa bastante promissora no caso do islamismo. Ela dá impressão
de ser uma "peça própria", e, conseguindo rastrear por meio desta
categoria as doutrinas islâmicas nucleares e sua carreira histórica no
âmbito do islamismo, espero ter sido capaz de proporcionar alguns
elementos básicos para uma análise comparada exaustiva."

lbid., p. 22.
29

*Eu gostaria de agradecer a Celeste Sullivan, doutoranda do programa de antropologia da


Brown University, por sua ajuda neste capítulo.
8
HIPÓTESES COMPARATIVAS
Categorias cosmológicas para a condição humana

Robert Cummings Neville


com Wesley J. Wildman

8.1. Introdução

Nossas hipóteses de conclusão são antecedidas por algumas ob-


servações preliminares de caráter tanto explicativo quanto avaliativo.
Iniciamos pelo resumo e avaliação das principais linhas de argumen-
tação que estivemos buscando seguir, e terminamos pela explicação
do modo como estão organizados nossos capítulos conclusivos. En-
tre uma e outra destas tarefas, fazemos um apanhado do progresso
de nosso projeto e descrevemos as limitações dos resultados obtidos.

8.1.1. Três linhas de argumentação


Este capítulo e o próximo visam concluir as três linhas de ar-
gumentação que vêm perpassando este livro. Em primeiro lugar, e
de modo mais fundamental, nosso projeto tem sido realizado nos
termos de uma teoria comparativa específica. Esse entendimento da
comparação serviu de base para as discussões nos seminários sobre
a condição humana realizados no decorrer do ano; ele é descrito no
prefácio, na introdução e no primeiro capítulo, sendo examinado a
partir de uma multiplicidade de ângulos em Ultimate Realities [Rea-
lidades Últimas], capítulo 8. Suas implicações para a discussão pro-
priamente dita são analisadas no Apêndice A, de Wildman, tendo
influenciado a concepção e a apresentação do trabalho dos especia-
listas apresentado nos capítulos 2 a 7. A teoria de comparação define
a ligação essencial entre os capítulos dos especialistas e estas conclu-
-------- CATEGORIAS COSMOLÓGICAS
-
246-

sões. Os capítulos 8 e 9 procuram consolidar nossa argumentação


em favor dessa teoria de comparação ao tornar explicitamente pre-
sente a dialética entre vagueza e especificidade, que vincula nossas
categorias comparativas hipotéticas aos fenômenos religiosos ana-
lisados ao longo do livro. A estrutura desses capítulos, apresentada
adiante, reflete esse objetivo.
Em segundo lugar, propusemos um esquema categoria) para
facilitar a comparação entre as seis tradições religiosas examinadas.
Outros esquemas poderiam ter servido igualmente bem, como o
dissemos no prefácio, especialmente levando-se em conta a manei-
ra dinâmica como são entendidos os esquemas no âmbito da teo-
ria de comparação que estamos utilizando. De qualquer forma, os
capítulos de conclusão buscam confirmar a utilidade do esquema
que adotamos de duas maneiras. Por um lado, o esquema registra
muitas das comparações que já se acham bem estabelecidas na atual
literatura da religião comparada; se essas comparações se afiguram
evidentes aos nossos leitores, tanto melhor para os fins da tese que
defendemos. Por outro lado, as categorias do esquema ensejam no-
vas hipóteses comparativas, relevantes caminhos de comparação
que ainda não foram bem percorridos.
Em terceiro lugar, empenhamo-nos em fazer comparações en-
tre os modos pelos quais a condição humana é concebida em certo
número de textos e sub-tradições das seis tradições religiosas que
selecionamos. Nesse nível, nossa argumentação tem duplo aspecto:
alegamos que as comparações que fazemos são as mais importantes,
e que os julgamentos comparativos que elas expressam são verda-
deiros. É especialmente nesse nível que nossas hipóteses compara-
tivas exibem por vezes um caráter bastante experimental. Mas como
nossa meta neste livro não é a apresentação de comparações defi-
nitivas, mas antes um instantâneo de um processo, autocorretivo
de comparação, assumimos sem meios-termos o risco de descrever
neste livro o ponto a que chegamos depois de um ano de projeto.
Nosso trabalho subsequente já nos fez ir bem mais além, resultando
em correções àquilo que aqui apresentamos. Mas esse é um tópico
para futuros volumes.
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 247

8.1.2. Avaliação do primeiro ano do projeto


Os capítulos 8 e 9 são para nós uma oportunidade de avaliar
publicamente até onde chegamos no estabelecimento de nossas três
linhas de argumentação. E qual é o resumo executivo do relatório
de progresso? Em poucas palavras, estamos confiantes que a teoria
de comparação vem sendo em grande parte confirmada por nosso
trabalho. Estamos relativamente menos confiantes quanto ao valor
de nosso esquema de categorias, mas ainda satisfeitos com o modo
pelo qual ele deu conta dos dados e foi enriquecido pelo contato
com estes e com os testes a que o submetemos. E estamos ao mesmo
tempo encantados e ansiosos a respeito das comparações específicas
que propusemos.
É especialmente neste aspecto que nosso trabalho se encontra
mais claramente em seus estágios iniciais. É preciso expor mais de-
talhadamente as razões para essa ambivalência com respeito às hipó-
teses comparativas específicas, e boa parte desta seção introdutória
será dedicada a esse objetivo. As observações a serem feitas neste
sentido, em parte avaliativas e em parte explanatórias, vão servir
igualmente para orientar os leitores que pretendem ler este livro
de trás para a frente, ainda que sejamos enfáticos acerca da impro-
priedade desta abordagem para uma correta compreensão do que
buscamos alcançar com este projeto.
Dissemos que as análises feitas nos capítulos 2-7 são altamente
seletivas. E temos consciência de que é possível mostrar que cada
uma das hipóteses comparativas aqui propostas admite exceções. Pa-
receu-nos, por vezes, que todo juízo comparativo pode ser destruído
por milhares de qualificações. Não obstante, por mais provisórias
e esquemáticas que elas sejam, as hipóteses que fomos capazes de
propor acerca das idéias das seis religiões sobre a condição humana
são amplas em termos de alcance e sugestivas em suas indicações
para um futuro aprofundamento. Sua autoridade resulta delas terem
surgido a partir do projeto, estando, pois, prontas para futuras corre-
ções. Estas hipóteses constituem uma fase particular na construção
da dialética da comparação. Mais precisamente, elas refletem, de um
lado, um grande desenvolvimento das categorias comparativas e, de
248 CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

outro, um intenso trabalho de análise das diferentes maneiras de es-


pecificar as categorias, reconhecendo que estudos futuros poderão
corrigir tanto as categorias como a maneira em que as especificamos.
Ao construir nossas hipóteses, com freqüência fomos além
dos termos pré-existentes da discussão. Com efeito, nenhum dos
capítulos anteriores apresenta uma discussão bem fundamentada
sobre como moldar as categorias ou sobre a maneira em que as espe-
cificações diferem umas das outras, e estes capítulos de conclusão
apresentam generalizações mais abrangentes do que estava previsto
nos seminários. Reconhecemos que isso exprime a experiência dos
seminários de uma curva de aprendizagem dolorosamente íngre-
me, manifesta quando tentamos dominar as habilidades necessárias
para trabalhar a dialética entre vagueza e especificidade. Os espe-
cialistas tiveram de aprender a fazer comparações e a explicitar as
categorias nelas pressupostas. Os generalistas tiveram de aprender
a segurar a ernpolgação e atentar mais para os detalhes. Os alunos
de pós-graduação tiveram de observar e contribuir para esse proces-
so de recondicionamento mútuo, aprendendo a procedê-lo em si
mesmos. No tocante a isso, caminhamos bastante no primeiro ano
e, a partir de então, avançamos ainda mais. Admitimos, porém, clara-
mente que a distância entre nossas hipóteses comparativas e os ter-
mos dos capítulos anteriores exprime o nível de nossas habilidades
de grupo em um primeiro estágio.

8.1.3. Seletividade do Estudo


Nossas hipóteses são vulneráveis à correção e à melhoria sob
vários aspectos. O tipo mais óbvio de vulnerabilidade é a possibilida-
de de nosso próprio projeto vir a falseá-las. Será que as comparações
propostas são inviabilizadas pelos materiais contidos nos capítulos 2
a 7? Ou haverá outras provas que as sustentem? Em princípio, tudo
o que foi dito nos capítulos 2-7 deveria ser interpretável ou como
especificações ou como categorizações mais vagas dos julgamentos
comparativos aqui propostos. A espécie mais importante de vulnera-
bilidade é expressa pela necessidade de que os juízos comparativos
aqui propostos sejam mantidos (ou reformulados) mediante o cui-
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 249

dadoso tratamento de muitos textos, motivos e tradições diferentes


daqueles estudados neste livro. Assim, é importante rever, de modo
preliminar, a seletividade de nosso estudo e a diversidade de nossas
abordagens.
De um lado, cada uma das religiões tem sido abordada a par-
tir de alguns de seus textos e motivos essenciais sobre a condição
humana, e, do outro, a partir de certos textos-chave ulteriores que
interpretam esses elementos mais antigos. A sustentabilidade de
nossos juízos sobre ambos os elementos depende de uma futura
interpretação dos textos e motivos-chave selecionados a partir de
outros ângulos. Cada um dos especialistas, com a possível exceção
de Haq, no capítulo 7, aborda seu objeto com a intenção delibera-
da de confundir as comparações esperadas, que refletem o viés das
concepções ocidentais sobre as religiões. É precisamente isso que
faz com que essas comparações se constituam em bons testes para
o nosso método, ainda que elas dêem origem a representações não
usuais das tradições religiosas.
Nesse sentido, Kohn, mais do que os outros, propõe represen-
tações gerais das religiões chinesa, se isso de uma perspectiva predo-
minantemente taoísta, com apresentações do confucionismo ou do
budismo chinês em segundo plano. Os textos que ela examina em
detalhe não são os clássicos taoístas antigos mais conhecidos, mas
tratados práticos medievais. Além disso, diferentemente dos outros
autores, ela expõe suas representações gerais mais sob o aspecto de
motivos essenciais do que de textos fundadores.
Eckel começa com as Quatro Nobres Verdades do Buda, mas
passa rapidamente para um texto escolástico do século VI, de Bha-
vaviveka, pertencente à escola Madhyamaka de Nagarjuna, dando
ênfase a uma espécie de caminho do meio epistemológico, interme-
diário entre a referência pura e simples e a fantasia subjetivamente
determinada, tudo isso eivado de motivos soteriológicos. Assim, essa
ênfase seletiva subordina — e talvez até negue — temas cosmoló-
gicos conhecidos como o karma, os universos do Buda, as Idades do
mundo e a Terra Pura, que muitos tomam como afirmações típicas
do budismo. Na linha budista particular que Eckel percorre (ao lado
250 - CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

de outros autores), tais "afirmações" são problematizadas. Os juízos


comparativos feitos no presente capítulo a respeito do budismo tra-
balham com a representação que essa linha faz do budismo e não
com as concepções cosmológicas mais costumeiras e previsíveis, a
não ser quando indicado.
Clooney é, dentre nossos especialistas, o menos disposto a fazer
representações gerais do hinduísmo. Embora ele cite textos funda-
dores pan-hindus como os Vedas, os Upanishades e o Bhagavad Gitã,
ele o faz de maneira deveras estrita, a partir do ponto de vista do
desenvolvimento especial do Vedãnta Advaita, no Vivekacudamani.
Foi difícil decidir se chamaríamos as hipóteses comparativas cons-
truídas sobre sua contribuição de "hinduísmo", "Vedãnta Advaita"
ou a "Posição do Vivelzactidãmaryi", boa parte do que ele escreve não
pode ser generalizado nem como Advaita, muito menos hinduísmo.
Não se trata de ser intransigente: que estudioso ocidental deixaria
Orígenes, Agostinho, Tomás de Aquino ou Lutero falar simples-
mente e sem qualificações em nome do cristianismo? O capítulo 4
ilustra com muita nitidez a nossa tese de que a identidade das tradi-
ções intelectual-religiosas (ou vice-versa) não reside numa essência
geral, mas em textos e motivos nucleares que recebem variadas in-
terpretações e são elaborados em camadas, com desenvolvimentos
subseqüentes e, com freqüência, divergentes. No tocante aos títu-
los, contudo, em paridade com as outras tradições, mantivemos a
designação geral "hinduísmo", com a ressalva de um detido exame
do nosso texto para verificar até onde chegam os juízos comparati-
vos nessa tradição. Estes últimos são sempre vulneráveis no tocante
à sua extensão; a maioria dos juízos comparativos aqui usados em
relação ao hinduísmo são vagos no que se refere ao Vedãnta Advaita
e à vertente particular do VivekacCidãmani, usando este último para
ilustrar pontos de aplicação mais ampla.
Saldarini propõe suas generalizações no contexto de uma dis-
cussão histórica da emergência do judaísmo na forma em que o co-
nhecemos a partir do início do Segundo Templo. Ele pouco diz so-
bre o principal texto nuclear, a Torá, em especial a história de Adão e
Eva no Gênesis, mas estabelece seu relato histórico do judaísmo por
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 251

meio do exame de uma seqüência de interpretações desse núcleo.


Ele não tem nenhuma pretensão de propor uma história total. O que
o distingue, porém, dos outros autores, é ele proceder a uma análise
do estágio atual dessa trajetória histórica à luz do Holocausto.
Fredriksen começa observando que o cristianismo é uma outra
forma do judaísmo do Segundo Templo, concentrando-se naquilo
que o Jesus de Paulo, ao redimir a condição humana, supostamente
teria vindo corrigir nesta tradição. Em seguida, ela filtra sua inter-
pretação do desenvolvimento histórico do pensamento cristão so-
bre a condição humana pela discussão do problema da "carne" versus
"alma" ou "espírito" nas controvérsias docetistas e nos escritos de Orí-
genes e Agostinho. Como boa parte do pensamento cristão a partir
de Bultmann e Tillich tem sido antidualista, essa identificação das
idéias cristãs sobre a condição humana com o dualismo corpo-alma
poderia parecer, aos olhos de muitos em nossa época, perder de vista
o essencial do cristianismo, concentrando-se naquilo que se tornou
apenas uma questão secundária. Mas este é precisamente o objetivo
de Fredriksen: tornar o cristianismo estranho aos nossos olhos mo-
dernos e ocidentais. E, afinal de contas, Bultmann e Tillich não vi-
veram na Antiguidade tardia; Paulo, Orígenes e Agostinho viveram,
e eles se preocuparam intensamente com o conhecido problema da
carne versus espírito. Aqui, nossos juízos comparativos aceitam este
foco da Antiguidade tardia, não abrangendo as posições antidualis-
tas (ou dualistas) modernas. Nós (Neville e Wildman) fazemos uma
interpretação da divergência existente entre as duas formas do ju-
daísmo do Segundo Templo, o cristianismo e o judaísmo Rabínico,
uma interpretação que não é encontrada nos capítulos 5 e 6.
A abordagem de Haq não é histórica, como algumas das outras,
mas a mais explicitamente comparativa de todas; ela é também a
mais explicitamente cosmológica, no sentido de analisar a condição
humana tal como criada por Alá e como o contexto no qual os seres
humanos se relacionam com Deus.
Como resultado dessa diversidade e seletividade de aborda-
gens, o alcance das hipóteses comparativas resumidas neste capítu-
lo não é tão amplo como se poderia esperar — e isso em mais de
252 CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

um aspecto. Em primeiro lugar, não há comparações simples entre


algumas tradições — como, por exemplo, entre o hinduísmo e o ju-
daísmo. Em segundo, às vezes as comparações feitas aqui se baseiam
nos capítulos 2 a 7 em apenas um aspecto, como quando 8.3.6 esboça
comparações vagas entre o islamismo e o cristianismo a respeito do
papel do Verbo/Palavra na relação entre Deus e o mundo, fundan-
do-se em afirmações sobre o islamismo feitas por Haq que não têm
paralelo com coisa alguma do capítulo de Fredriksen. Assim somos
nós (Neville e Wildman) que fornecemos as referências às tradições
filosóficas do aristotelismo e neoplatonismo, comuns ao pensamen-
to das duas religiões. Em terceiro, para rearticular os pontos isolados
dos capítulos 2-7 de modo a torná-los aptos a um comparação, nós
(Neville e Wildman) por vezes tivemos que ajustar suas apresenta-
ções para torná-las mais gerais ou mais específicas, ou então suple-
mentá-los com materiais que não se encontram nos capítulos pre-
cedentes. De modo geral, reunimos aspectos das diversas tradições
para compará-los num nível ligeiramente mais vago do que aquele
presente nos capítulos 2-7, abordando então seus aspectos específi-
cos a fim de distingui-los.
Vagueza e especificidade são noções relativas. As comparações
vão sempre além da mera especificação de relações; elas implicam
dizer que as especificações são semelhantes e diferentes. Contudo,
cada especificação que articulamos, é ela mesma vaga, devendo ser
ainda mais especificada. Nosso julgamento está sempre vulnerável
à crítica de que ele lida com as questões somente num nível vago
e de que um julgamento mais preciso exigiria uma melhor discri-
minação. Nossos capítulos de especialistas diferem entre si quanto
ao nível de especificidade: Clooney tenta dizer pouco sobre o hin-
duísmo ou o Vedãnta Advaita em geral, e falar apenas do muito es-
pecífico Vivekacudamani, ao passo que Kohn e Haq trabalham com
caracterizações mais vagas e abrangentes de suas tradições, apenas
as ilustrando com textos específicos.
Naturalmente, todo juízo comparativo se expõe à crítica de que
não leva em conta este ou aquele desvio da especificação identifica-
da — por exemplo, um pensador chinês que crê que o universo é
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 253

demasiado caótico (hun-tun) para ser Uno, ou um budista que crê


num eu substancial. Apesar de todos os nossos esforços para dizer
apenas o que queremos dizer e para escrever numa postura de pre-
caução com respeito a eventuais objeções, esperamos que estas nos-
sas hipóteses acerca dos juízos comparativos sejam interpretadas
com imaginação e simpatia, capazes tanto de acrescentar detalhes
confirmadores quanto de questionar os limites destes juízos com
dados que os falsifiquem.
Ern resumo, este capítulo faz juízos comparativos de quatro
modos diferentes: (i) uma repetição dos tópicos apresentados nos
capítulos 2 a 7 ou nas discussões dos seminários, muito próximo de
seus próprios termos; (2) uma re-elaboração de um ou mais aspectos
da comparação, com o propósito de exprimir os tópicos ao modo de
especificações de uma categoria comparativa mais vaga; (3) a tradu-
ção de um ou mais aspectos da comparação em um nível mais vago
ou mais específico a fim de tornar possível a comparação; e (4) o de-
senvolvimento de juízos comparativos não discutidos previamente,
com base no que o conjunto cumulativo de juízos aparentemente
exige.

8.1.4. A estrutura dos capítulos 8 e 9

As hipóteses deste e do próximo capítulo tomarão a forma de


um apanhado do que foi aprendido acerca da especificação das ca-
tegorias referentes à condição humana, relacionadas na introdução.
Além disso, nossas descobertas serão apresentadas, na medida do
possível e do relevante, em termos sujeitos à correção de acordo
com 4 dos .5 pontos de análise fenomenológica, estabelecidos em
detalhes em Realidades últimas, capítulo 8. São eles: (i) o intrínse-
co, ou as idéias expressas e analisadas em seus próprios termos; (2)
o perspectivo, ou as maneiras com que as idéias determinam uma
perspectiva mais ampla sobre a vida em aspectos religiosos rele-
vantes; (3) o teórico, ou as maneiras com que as idéias levam a con-
siderações teóricas mais amplas; e (4) o prático, ou as implicações
das idéias para a prática. A singularidade das idéias, as qualidades
especiais que resistem a toda e qualquer análise não são, por defi-
254 CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

nição, passíveis de comparação e não serão discutidas. Apreende-se


as idéias em sua singularidade, adquirindo-se competência em seu
uso, e elas se tornam acessíveis por meio de metáforas, referências
indiretas e pelo ato de nomear (para quem conhece os nomes). Se,
no entanto, tivéssemos certeza de que a paciência do leitor é infini-
ta, poderíamos falar sobre os elementos incomparáveis e singulares
das idéias religiosas, com o único propósito de indicar o que não
pode ser enquadrado em categorias mais abrangentes de compara-
ção. Pois não pretendemos dizer que tudo nas idéias de uma religião
possa ser expresso adequadamente em hipóteses comparativas.
A retomada das idéias a partir de todos os pontos de análise
fenomenológica testa nossos julgamentos ao expô-los a pelo menos
4 ângulos diferentes de representação e compreensão. Ainda que pa-
reça mecânica, a retomada a partir dos 4 pontos é um procedimen-
to que aprimora a vulnerabilidade. É também o procedimento que
mais freqüentemente nos levou a desenvolver juízos comparativos
que não nos tinham ocorrido durante os seminários ou na redação
dos capítulos 2 a 7. No presente capítulo, com freqüência abrevia-
mos as discussões dos pontos fenomenológicos quando estes são
repetitivos, óbvios ou desinteressantes, e as discussões do capítulo 9
vão abreviar ainda mais esta segunda análise dos pontos.
A estrutura desse sumário de hipóteses comparativas visa dis-
cutir cada uma das quatro principais categorias cosrnológicas. Sob
cada categoria, discute-se primeiro a religião chinesa; começa-se
por suas representações internas, passa-se às idéias perspectivas, às
implicações teóricas e, por fim, às implicações práticas. Discute-se a
seguir o budismo, nos termos de cada um dos pontos fenomenoló-
gicos, comparado em todos os casos com o budismo chinês. O hin-
duísmo, em sua variedade Vedanta Advaita, é o objeto de discussão
seguinte, segundo os mesmos termos, sendo comparado com a reli-
gião chinesa e com o budismo. E o mesmo sucede com o judaísmo, o
cristianismo e o islamismo — com a multiplicidade de comparações
assumindo graus crescentes de complexidade à medida que a dis-
cussão avança. Embora nem toda religião seja comparável a todas as
outras em todos os aspectos, nossa meta é articular as comparações
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 255

importantes e dignas de nota que conseguimos identificar. À medi-


da que a discussão se processa, as categorias cosmológicas vagas vão
sendo especificadas, de diferentes modos passíveis de comparação,
pela maioria das tradições em grande parte dos aspectos.
Nosso método comparativo requer que se vá além das várias
especificações de uma categoria menos específica e se proceda a
uma rearticulação da categoria de acordo com suas manifestações
concretas. Isso exigiria a elaboração de uma espécie de sumário
exaustivo de como as várias especificações são acrescentadas umas
às outras. Assim, seria conveniente ter, em cada uma das discussões
a seguir, uma sétima seção que sumarizasse, respectivamente, as
idéias de unidade, ontologia, valor e causação. Como porém nossas
comparações são demasiado fragmentárias e seletivas para compor
caracterizações integrais dessas categorias, limitamo-nos às compa-
rações feitas nas discussões de cada tradição.
As categorias cosmológicas consideradas relevantes para a
compreensão das dimensões religiosas da condição humana são as
que articulam a unidade, o status ontológico e o valor do cosmos,
bem como a idéia de causação, isto é, a maneira como atuam no cos-
mos elementos religiosamente relevantes. Todas essas categorias
envolvem concepções do cosmos expressas em importantes símbo-
los de cada tradição, e nosso foco aqui é o modo pelo qual essas con-
cepções cosmológicas incidem sobre o entendimento da condição
humana. Dada a interligação das idéias e com o objetivo de facilitar
a apresentação, as discussões de várias das primeiras categorias são
mais extensas do que as outras, e antecipam inúmeras afirmações
que poderiam ter sido feitas mais tarde. Também por esse motivo o
capítulo 9 será menos extenso do que o 8.

8.2. Unidade

"Unidade" é um conceito extremamente vago, atualizado de


muitas maneiras diferentes no âmbito de cada uma das tradições
religiosas aqui estudadas, bem como de distintas formas caracte-
rísticas de tradição para tradição. No tocante à condição humana,
=---- CATEGORIAS COSMOLÓGICAS
256--

no nível vago, "unidade" significa a possível coerência que marca


o contexto abrangente inclusivo ou ambiente da vida humana. Há,
entre as religiões, diferenças efetivamente dignas de atenção quanto
ao que deve ser incluído nesse ambiente abrangente, bem como aos
tipos de coerência que os elementos incluídos podem ter. Descrita
dessa maneira vaga, prévia a especificação, "unidade" pode dar a im-
pressão de ser meramente cosmológica e não relevante do ponto de
vista religioso. As especificações vão ajudar a elucidar os aspectos
religiosos da unidade, de modo que, no final, a categoria vaga que
vem a ser especificada das várias maneiras indicadas vai ter um cará-
ter bem mais informativo.

8.2.1. Idéias chinesas de unidade

Kohn (2.2) mostra com extraordinária clareza que a religião


chinesa se acha firmemente e, em quase todos os casos, explicita-
mente, assentada na concepção de que o cosmos é uno e unificado.
Miller, no comentário a uma versão anterior deste capítulo, observa
que o foco chinês na unidade se desenvolveu em resposta a questões
de diversidade, e que é "mais apropriado falar de um impulso sincré-
tico em direção à unidade que acabou por produzir uma cosmologia
unificada de elite, capaz de reunir idéias taoístas, confucionistas e
budistas numa visão de mundo pan-chinesa. Essa visão de mundo é
essencialmente taoísta, posto que elaborada a partir de comentários
do Daode jing e do Zhuangzi, mas, no processo, o Taoísmo se trans-
forma, o confucionismo se torna metafísico e o budismo é naciona-
lizado". Nós (Neville e Wildman) concordamos com esse relato da
evolução das noções chinesas de unidade, mas também concorda-
mos com a afirmação de Kohn da centralidade que elas têm desde
tempos imemoriais. Kohn cita a distinção metafórica de Colavito
entre religiões do Um e religiões do Zero. As religiões chinesas se
acham fundadas nas suposições míticas do Um, de uma massa an-
cestral de Qi que alcança a diferenciação em movimentos do yin e
do yang como padrões vibratórios que permanecem como processos
e harmonias funcionais no interior da gigantesca "jujuba" da reali-
dade cósmica. Trata-se de um motivo conceitual nuclear que está na
ROBERT CUMMINGS NEVILLE --===
- 257

base de todos os desenvolvimentos históricos da religião chinesa,


sobre o qual incidem em variados graus as interações entre Taoísmo,
confucionismo e budismo.
A esfera humana no âmbito do cosmos pode ser delimitada por
meio de processos em escala humana; mas esses processos estão em
continuidade com processos das outras escalas, e não há nada na
condição humana que não seja uma condensação ou rarefação de
processos que estão formando de outras maneiras a totalidade cós-
mica. O aspecto religioso do cosmos unificado é dado pelo fato de os
homens serem considerados em continuidade essencial com todas
as outras coisas, não estando, por conseguinte, nunca seriamente
alienados do processo maior. A ênfase na unidade é uma representa-
ção do cosmos intrínseca às religiões chinesas.
O entendimento "perspectivo" da concepção chinesa da uni-
dade se configura no fato de que os vários aspectos do mundo são
processos que tanto exprimem quanto buscam a harmonia. Logo, a
condição humana deve ser entendida como assentada sobre as har-
monias do processo físico, biológico, social e pessoal. E quando a
condição humana passa por alguma crise, a causa é que algo se des-
viou da harmonia e precisa ser devolvido a ela. A resolução da cri-
se é a restauração da harmonia e o retorno da vida humana à plena
participação na unidade do cosmos, o Um. Esse retorno à harmonia
como condição para o retorno à unidade adquire diferentes especi-
ficações no Taoísmo, no confucionismo e no budismo chinês (2.1,
2.3.2).
A compreensão teórica da unidade cósmica nas religiões chi-
nesas é dada pela concepção segundo a qual as coisas do mundo se
distribuem em classes harmonicamente entrelaçadas ou conjuntos
de mudanças equilibradas.' Considere-se, por exemplo, a classifica-
ção das coisas de acordo com os movimentos do yin e do yang, com

'Ver John S. Major, Heaven and Earth in Early Han Thought: Chapters Three, Four of the Huai-
nanzi (Albany: State University of New York Press, 1993); David L. Hall and Roger P. Ames, Thinking
through Confucius (Albany: State University of New York Press, 1987); e Anne D. Birdwhistell, Tran-
sition to Neo-Confucianism: Shao Yung on Knowledge and Symbols of Reality (Stanford: Stanford
University Press, 1989).
258 - =-=- --- - CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

as quatro estações, os cinco elementos e direções, e assim por diante.


De acordo com esse esquema, os problemas humanos são compreen-
didos como a saída das coisas de seu estado natural de equilíbrio: a
Qi se movendo com demasiada rapidez ou muito devagar, a dieta
sendo quente demais ou fria em excesso, os projetos sendo empreen-
didos na estação errada e assim por diante (2.2).
A compreensão prática das religiões chinesas decorre dessa
concepção da vida como um projeto de harmonização voltado para
a manutenção da continuidade com a unicidade do cosmos. Assim
corno a medicina chinesa busca restaurar o equilíbrio perdido, e a
estratégia militar busca proceder às suas operações na estação cor-
reta, sabendo quando parar, assim também a religião chinesa usa o
ritual para trazer as discórdias de volta à harmonia. Com isso, advo-
ga práticas voltadas para a harmonização da pessoa com o céu e a
terra, a sociedade, a família e outras especificidades da vida pessoal,
tal como expressas, por exemplo, no The Venerable Lord's Wondrous
Scripture of Exterior Daily Practice ["As prodigiosas escrituras da práti-
ca diária exterior do Venerável Senhor"] (capítulo 2.3.1). A vida inte-
rior — ver Scripture of Interior Daily Practice ["As escrituras da prática
interior" (2.3.1)] — também deve ser gerida de modo a transformar
a pessoa num ser em perfeita união com o Uno.'

8.2.2. Idéias Budistas de Unidade


A situação é bem diferente no caso do budismo, em particular
nas espécies de budismo Indiano analisadas por Eckel. No tocante
não só à unidade, mas também a todas as outras categorias cosmo-
lógicas, o budismo tem em primeiro lugar que contar a história (ver
3.1) da pergunta do Buda sobre a flecha envenenada, proferida como
resposta a uma série de poderosas questões metafísicas. É claro que
os budistas têm pressupostos a respeito do cosmos, pressupostos
diversamente característicos em suas épocas e culturas. Mas esses
pressupostos cosmológicos não são uniformemente relevantes para

2 Ver também Edward J. Machie, Nature and Heaven in the Xunzi: a Study of the 'Tian Lun'

(Albany: State University of New York Press, 1993).


ROBERT CUMMINGS NEVILLE 259

a dimensão religiosa da condição humana. Eckel e Thatamanil es-


creveram o seguinte, num comentário a uma versão anterior deste
capítulo:
Julgamos que a coisa "mais importante" que os budistas têm a dizer sobre
a condição humana é que os seres humanos sofrem e buscam fazer cessar
esse sofrimento. Isso não significa que os budistas não desenvolveram
concepções do cosmos, seja no sentido moral (nos seis domínios do re-
nascimento) ou no sentido físico (como uma configuração de continen-
tes ao redor de uma montanha central ou algo assim). Nem significa que
falte a essas concepções do cosmos uma significação "religiosa", como se
vê na preocupação de progredir no sentido de um melhor renascimento
ou, na meditação tântrica, a busca pelo ponto imóvel da mandala.

Não obstante, a linhagem Madhyamaka admite as concepções


cósmicas como função do interesse do indivíduo em libertar-se do
sofrimento, em vez de interpretar o interesse do indivíduo como
derivado de algum tipo de unidade cósmica primordial. Ou, para
colocar as coisas com maior precisão em comparação com a religião
chinesa, enquanto esta enfatiza o caráter objetivo do cosmos e a im-
portância religiosa da conformação ou harmonização com ele, os
budistas dessa linha Madhyamaka Mahãyãna explorada no capítulo
3 vêem a importância religiosa do cosmos como rigidamente de-
pendente das necessidades religiosas dos indivíduos, segundo cons-
ta, por exemplo, das Quatro Nobres Verdades. Não que os budistas
precisem negar objetividade ao cosmos quando adequadamente
descrito — a doutrina do "não-eu" [não-se]] discutida no capítulo 3
é afirmada como uma descrição da maneira como as coisas são; eles
apenas afirmam que o cosmos não é importante para fins religiosos
a não ser enquanto uma função desses fins.
Assim, por exemplo, com relação à unidade do cosmos, o bu-
dismo da linha Madhyamaka analisada por Eckel e Thatamanil é in-
diferente a questões como totalidade e integração, com as quais os
chineses tanto se preocupam, exceto, talvez, para aplicar uma dialé-
tica negativa quando elas parecem conter uma referência demasiado
substancialista; outras formas do budismo assumem a retórica opos-
ta, como está mostrado, por exemplo, na obra de Garma C. C. Chang,
260 - CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

The Buddhist Teaching of Totality: The Philosophy of Hwa Yen Buddhism


["O ensinamento budista sobre a totalidade: a filosofia do budismo
Hwa Yen"]. O budismo da linha que estamos analisando transforma
a questão da unidade na questão do que é relevante para a condição
humana como descrita nas Quatro Nobres Verdades. Afirmações
universais como "tudo está em constante mutação", "nada tem uma
natureza própria", "todas as experiências são sofrimento", e assim por
diante, são admitidas. Ainda assim, estas afirmações não são tanto
descrições objetivas da realidade quanto indicações para encará-la
de modo a que a flecha envenenada possa ser removida com rapidez.
Comentando um rascunho inicial desse capítulo, Thatamanil
ressalta algumas qualificações necessárias à comparação desses dois
tipos de budismo:
Embora seja provavelmente verdadeiro que os budistas Yogãcãra pos-
sam negar a objetividade do mundo no sentido de uma realidade extra-
mental, para os Mãdhyamikas o problema é a substancialidade ou a rei-
ficação. Em outras palavras, enquanto é possível ler o Yogãcãra como um
tipo de "idealismo subjetivo" ou ao menos "idealismo", não é possível ler
o Madhyamaka da mesma maneira. Ainda que seja verdadeiro dizer que
a imposição da natureza intrínseca (svabhãva) é uma construção mental,
isto não quer dizer que os filósofos Madhyamaka neguem os fenômenos
extra-mentais. A esse respeito, o Yogacara é ao mesmo tempo muito rei-
ficatório ao postular a mente como realidade única (samaropa) e muito
negativo (apavada) ao negar a realidade convencional dos fenômenos.
No tocante à "unidade", é possível que a ênfase Madhyamaka na
pratãtyasamutpãda tenha suas implicações para o conceito. Negar que o
mundo seja composto de entidades com natureza própria ou individual
é advogar uma experiência do mundo muito mais unificada e não-dua-
lista do que aquela possível num universo de entidades auto-subsisten-
tes. Entretanto, falar de um universo ou realidade "unificados" de tal
modo que o todo possa ser dito reificado, torna o discurso da unidade
problemático.

Para alguns tipos de budismo, como o Huayen, a concepção


da unidade do mundo é de tal modo considerada uma função da
imaginação religiosa que muitos mundos poderiam ser imaginados
como realidades alternativas completas em si mesmas ou, quiçá, tão
-=
ROBERT CUMMINGS NEVILLE--:--
--- 261

intensamente concentradas que todo um mundo budista poderia


estar contido numa partícula de poeira debaixo de uma cama exis-
tente num outro mundo budista. Enquanto os chineses são capazes
de imaginar paraísos e infernos como múltiplas partes do Mundo
Único, localizadas na cosmografia por sua relação particular com o
Reino do Meio (na medida em que existe somente um mundo no
qual todos elas devem se encaixar), os budistas, mesmo os budistas
chineses, imaginam realidades alternativas cuja verdade reside em
sua função libertadora para a imaginação, em vez de fazerem uma
simples asserção de correspondência com alguma parte determina-
da da realidade. Em resposta à pergunta acerca de como o cosmos
está unificado, os Madhyamaka e muitos outros budistas poderiam
responder alguma coisa do seguinte tipo: a unidade do mundo resi-
de no fato de ele ser susceptível às idéias de unidade com as quais
se consegue compreender os objetivos da salvação, e esta suscep-
tibilidade não deve ser testada a não ser em termos do sucesso ou
fracasso do processo de libertação religiosa. Enquanto as escolas
Madhyamaka têm a tendência de enfatizar o caráter não objetivo
da imaginação, as escolas Yogacara tendem a enfatizar as qualidades
positivas dos mundos imaginados.3
Minimizando os conceitos importantes do ponto de vista
religioso na idéia de uma unidade cósmica objetiva — no caso de
Nagarjuna, refutando-os —, os budistas indianos Madhyamaka não
consideram a vida com base nessa idéia. Ao contrário, para eles a
unidade que existe no cosmos resulta da perspectiva subjetiva do
indivíduo. Isso não quer dizer que o cosmos não seja objetivamente
unificado, se é que se pode saber algo sobre isso; mas apenas que um
cosmos objetivo de per se não é algo interessante no sentido religioso.
Em contraste com a visão chinesa da objetividade das coisas
como expressão da unidade harmoniosa do cosmos, os budistas in-
dianos do feitio de um Bahãvaviveka fazem poucas afirmações obje-
tivas que não sejam desconstruídas pela dialética negativa discutida

3 Garma C. C. Chang, The Buddhist Teaching of Totality: The Philosophy of Hwa Yen Buddhism
(University Park: The Pennsylvania State University Press, 1971); e Francis H. Cook, Hua-yen Bu-
ddhism: The Jewel Net of Indra (Universty Park: Pennsylvania Sate university Press,
262---
- CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

no item 3.3. Em conseqüência, o budismo, muito mais do que a anti-


ga religião chinesa e, com efeito, do que a maioria das outras religiões
comprometidas com uma visão estruturada da importância reli-
giosa de uma unidade cósmica, tolera a existência de cosmologias
variadas em seu seio. O budismo demonstra muito mais tolerância
com a cosmologia da ciência moderna, por exemplo, do que aquelas
religiões tradicionais comprometidas com uma visão específica da
estrutura do mundo, precisamente porque o budismo encontra pou-
ca importância religiosa nessas visões objetivas, a não ser quando
elas são enunciadas com demasiada objetividade.
A conseqüência prática desse não comprometimento do bu-
dismo Mahãyãna com uma visão objetiva da unidade do mundo
acha-se muito bem expressa na doutrina das duas verdades discu-
tida no item 3.1, e na discussão da visão (3. 3; ver também o 3.4 na
negação das categorias comparativas). A verdade convencional ex-
pressa qualquer unidade e estrutura tomadas como visões objetivas
do mundo. Isto inclui coisas como as leis de responsabilidade cár-
mica, a percepção de que nada mantém sua integridade em épocas
de confusão social, englobando, ainda, a visão de mundo da ciência
moderna. A verdade última sobre a questão diz que essas verdades
convencionais não são realmente objetivas, mas apenas meios prag-
maticamente factíveis ou não factíveis de projetar idéias e, por meio
delas, organizar a realidade. E a doutrina das duas verdades diz que
as verdades convencionais são, em seu sentido próprio, tão verda-
deiras quanto a verdade última, pois é necessário viver nesse mun-
do convencional de samsãra. Até mesmo a vida religiosa não pode
deixar de ser vivida nesse mundo. Um adepto Madhyamaka dá-se
conta de que o mundo convencional é o único lar que se tem: aqui o
nirvana é sarnsãra; mas um adepto da doutrina da Terra Pura já tem
um outro ponto de vista sobre o assunto.

8.2.3. Idéias de unidade no hinduísmo


A questão da unidade cósmica recebe, no hinduísmo, um en-
foque diferente de qualquer religião chinesa ou do budismo. A ques-
tão hindu se refere à unidade do eu pessoal com o eu divino subja-
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 263

cente ou Brahma; assim, a idéia de que existe uma multiplicidade a


ser unificada é vista ou bem como uma distinção fictícia entre o eu
pessoal e o eu divino, ou bem como a diversidade do mundo enten-
dida enquanto mãyã (4.2.1). Não obstante, como observa Clooney
no item 4.6, uma afirmação como esta deve ser tida como extrema-
mente vaga, tendo em vista que o modo em que ela é especificada
por um texto como o Vivelzacridãmaryi, da tradição Advaita Vedanta,
é bastante diverso de suas especificações em outras escolas, ou no
Bhagavad Gitâ ou até mesmo em outros textos da própria tradição
Advaita, a exemplo daqueles compilados no Sankara. A exposição
do Vivehactidãmani no capítulo 4 faz referência explícita ao Athar-
va Veda, à Taittirâya e aos Chandogya Upanilhades, textos essenciais
para grande parte da tradição hindu, referindo-se também a temas
ancestrais, como as três tamas, rafas e sattva; esses textos e temas es-
senciais são desenvolvidos de maneira bastante diversa por outros
ramos da tradição hindu. As generalizações comparativas feitas aqui
precisam, assim, ser entendidas de modo nuançado, de acordo com
as referências nelas contidas aos textos e temas vagos centrais, ou às
especificações presentes no próprio Vivehacúdãmaryi (4.6).
A unidade do self pessoal com o Brahma é especificada pelo
Vivekaciidãmani por meio de uma série de argumentos que visam
demonstrar que aquilo que é passível de ser concebido como um self
pessoal separado não é o self real. Assim, o corpo que se alimenta, o
selfvital, a mente, o intelecto e o self sensual não são o verdadeiro self,
e o self verdadeiro, aquilo que resta depois de todas estas negações,
nada mais é senão o próprio Brahma (4.3). Isto é afirmado positiva-
mente de acordo com a especificação racionalmente acessível e não
mítica do Advaita trazida pelo clássico tat toam asi (4.4): qualquer
tentativa de distinção ou separação de alguma coisa real do Brahma
está errada. Daí a ênfase da doutrina na negação, a não-dualidade.
Em contraste com a noção intrínseca de unidade na religião
chinesa, segundo a qual os seres humanos são partes organicamente
relacionadas com o todo e internamente ligadas à unidade cósmica
em suas origens incipientes e atávicas, a noção Advaita nega toda
e qualquer diversidade possível no interior de Brahma ou entre o
264 CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

Brahma e o self pessoal. Em contraste com a concepção budista da


unidade enquanto função do sujeito da experiência, a concepção
do Advaita toma a realidade ontológica do Brahma como a única
realidade deste sujeito, uma realidade passível de ser discriminada
somente quando os mecanismos experimentais do self pessoal são
transcendidos pelo discernimento e pela transformação. Enquanto a
abordagem budista aqui estudada coloca entre parênteses as questões
referentes à unidade objetiva do cosmos ou do ser com a finalidade
de concentrar-se sobre o sujeito da experiência, a abordagem Advai-
ta ensina meios de colocar entre parênteses todos os elementos des-
te sujeito que sejam funções da mudança, de mãyã, com a finalidade
de se concentrar exclusivamente na unidade cósmica ou ontológica,
o Brahma. (Deve-se ter em mente que o Advaita Vivelzacúdãmani, do
século IX, é posterior ao budista Bhavaviveka, do século VI e aos
outros escritores nos quais Eckel baseou sua argumentação: a posi-
ção Advaita é concebida no contexto de uma resposta ao budismo.)
Esse conceito da unidade self-Brahma presente no Advaita Ve-
dânta rejeita a diversidade das coisas no mundo como mãyã (4.2.1-
2). Mãyã é problemático porque as pessoas sem discernimento po-
dem ser enganadas por ele. Mas a compreensão bem sucedida do
caminho do Advaita Vedãnta pode levar à discriminação apropriada,
podendo mesmo consistir no despertar sucessivo das capacidades
de discriminação, de modo que se deixe de ser enganado (4.4). Da
perspectiva da teoria da unidade do Advaita, o mundo é visto não
como um campo de processos em potencial harmonia ou desarmo-
nia, como acontece com os chineses, mas antes como um campo de
ilusões potenciais que teriam o efeito de reforçar a falsa percepção
de que as coisas que não são Brahma têm realidade.
A concepção do mundo como expansão de mãyã, presente na
versão Vivelzacüdãmaryi do Advaita Vedãnta, não implica a crença de
que lhe falta estrutura ou de que não seja possível relacionar-se prag-
maticamente com as necessidades humanas. Com efeito, as leis do
karma governam o samsãra na imaginação antiga, assim como as leis
da ciência podem ser aceitas pela imaginação moderna. A irrealida-
de de mãyã consiste em sua aparição como dualidade, na medida
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 265

em que a realidade das coisas reside em sua não-dualidade (4.2.2).


Enquanto na religião chinesa o campo dos processos harmonio-
sos representa um espaço para ações religiosamente relevantes, o
campo de mãyã tem, no Advaita, apenas uma importância religiosa
preliminar, ainda que bastante relevante também: as escrituras, as
meditações dos mestres e toda a jornada religiosa que leva ao conhe-
cimento da não-dualidade fazem parte de mãyã, como aponta Thata-
manil num dos comentários feitos durante o seminário. O mãyã não
é irreal no sentido de que o filho de uma mulher infértil pode ser
chamado de irreal, para usar uma citação de Thatamanil, e portanto
nós (Neville e Wildrnan) o chamamos de arreai." Em contraste com
o mundo dos budistas, unificado pelas experiências das pessoas, os
adeptos do Advaita consideram a unidade real, quer dizer, a não-
dualidade do mundo como a verdade que está por trás de quaisquer
discriminações, elas mesmas dualismos provenientes de mãyã.

A conseqüência prática da visão do Advaita Vedãnta da unida-


de do self com o Brahma pode parecer paradoxal. Pois, embora a ver-
dade seja a não-dualidade do self e do Brahma, a maioria das pessoas
vive efetivamente em mãyã sem dar-se conta disso. Assim, a ques-
tão prática é transformar o eu por meio dos processos descritos, no
VivelzacCjãmani, por exemplo, adquirindo os poderes de discrimina-
ção (4.4). É uma questão de trabalho sério, envolvendo estudo e o
modo de vida rigoroso do discípulo; na tradição do Vivelzaciidãmani,
o projeto está limitado aos brâmanes do sexo masculino, homens in-
teligentes e interessados que têm os textos e os mestres à disposição.
A esse respeito, o Advaita está muito mais próximo do projeto chi-
nês de manter e consertar a relação harmoniosa de uma pessoa com
o todo do que da mudança de atitude ou da compreensão do Cami-
nho do Meio exigidas pela prática budista. Por um lado, é uma ilu-
são acreditar que exista um problema religioso na condição humana
(4.1), mas demanda muito trabalho, o projeto de uma vida inteira (ou
de muitas vidas), desmentir essa ilusão. Um dos pontos mais impor-

**N. do T. O original inglês joga com as expressões unreal e irreal. Preferimos traduzir este
último por "arreai".
266 CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

tantes assinalados por Clooney é a distinção entre a verdade abstrata


da não-dualidade e a sua realização concreta na experiência (4.6).
Embora ainda existam muitas qualificações por fazer a respeito
das generalizações comparativas entre o hinduísmo, as religiões chi-
nesas e o budismo, conforme expõem os comentários de Eckel,Thata-
manil e Miller aos rascunhos anteriores a esse capítulo, estes mesmos
comentários mostram que, no balanço final, as hipóteses comparati-
vas que apresentamos se referem ao centro de gravidade da questão.

8.2.4. Idéias de unidade no judaísmo


Em contraste com as religiões chinesas, o budismo e o hin-
duismo, as três religiões monoteístas da Ásia Ocidental concordam
vagamente entre si ao estabelecer um dualismo entre Deus e o mun-
do, a despeito de especificar diversamente esse dualismo, tanto em
si mesmas quanto umas em relação às outras. Saldarini (5.I. z) faz,
em relação ao judaísmo, uma afirmação que se aplica também tanto
ao cristianismo quanto ao islamismo: "a vida e a condição humana
em toda a sua complexidade pode ser definida como uma vida sob
Deus, em relação com Deus, e que responde a Deus, ou como um
desvio desta relação divinamente ordenada". Por mais vagamente
dualística que seja a afirmação, as três religiões da Ásia Ocidental de
fato concebem uma totalidade que inclui Deus e o mundo, com uma
relação de assimetria entre os dois pólos.
Considerando por um momento a afirmação vaga de que Deus
criou o mundo, o caráter particular da unidade nessa totalidade
Deus-mundo varia em grande parte de acordo com o sentido em
que a responsabilidade humana de responder a Deus ou se desviar
dele é interpretada. Embora as religiões da Ásia oriental e meridio-
nal reconheçam a desarmonia e a ignorância como problemas reli-
giosos cruciais no sentido existencial, elas minimizam o significado
ontológico desse aspecto, assim como a responsabilidade humana
por ele, pelo menos quando comparadas com as religiões ociden-
tais. Mas o fato de minimizarem esse aspecto não quer dizer que
elas o rejeitem. Como disse Thatamanil num de seus comentários,
"a questão do lugar da ignorância, uma questão com a qual os advaís-
- 267
ROBERT CUMMINGS NEVILLE --=-

tas pós-sankara estão constantemente preocupados, é ousadamente


ontológica. O lugar da ignorância é o Brahma ou a alma individual?
Se a alma individual é ela própria produto da ignorância, como ela
pode ser ao mesmo tempo o lugar da ignorância?". No Ocidente, a
ênfase na moralidade e na conformidade com a vontade divina foi
colocada em conjunto com uma problematização da liberdade hu-
mana, de tal modo que se torna inevitável perguntar se uma pessoa
é capaz de estar em oposição ontológica a Deus. Ou seja, será que a
totalidade dualística Deus-mundo tolera uma ruptura séria na to-
talidade? As três tradições compartilham alguns textos essenciais
como, por exemplo, as narrativas da criação e da queda no Gênesis.
O interessante é, com efeito, ver como elas desenvolvem esses tex-
tos de maneiras diferentes.
O judaísmo afirma que Deus é o criador justo e a Providência
do cosmos (5.1.2). Ainda que tenham existido movimentos místi-
cos no interior do judaísmo que afirmavam a impropriedade de se
falar de Deus como pessoa, a corrente maior da tradição tem tratado
Deus como pessoal e intencional, de modo que é sempre apropriado
perguntar por que Deus faz ou permite coisas que são ou parecem
más. Com exceção de alguns poucos expoentes como Richard Ru-
benstein (5.4.1 — este afirma acreditar que o caráter de horror do
mal no mundo, especialmente no Holocausto nazista, requer sim-
plesmente a negação da existência de Deus), pensadores judeus,
de Ben Sirac a Eli Wiesel (estes de um modo crítico), afirmam que
Deus exerce um controle justo e providente sobre o cosmos inteiro
(5.1.2). O mundo como um todo está nas mãos de Deus, e, portanto,
o mal constitui um problema para o entendimento humano, o que
não seria o caso se a Providência e a Justiça de Deus fossem tidas
como parciais. O cosmos é unificado porque foi criado e está sendo
providencialmente governado pelo Deus Único. A unidade do todo
é dada assim como o dualismo de um criador justo, providente e
pessoal e a criação, que inclui pessoas livres e por vezes más, assim
como uma grande dose de sofrimento.
Da perspectiva da unidade dualista no judaísmo, entre um
Deus criador, justo e providente, e o mundo, a condição humana é o
268 CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

campo no qual vivemos perante Deus, afirmando e adorando a pes-


soa divina. Saldarini revela alguns desenvolvimentos extraordiná-
rios deste tema essencial, interpretado principalmente em termos
de como Israel, e não toda a raça humana, se relaciona com Deus.
No pensamento de Ben Sirac, esse campo é geralmente uma ordem
bem governada na qual a Torá (5.2.2) fornece os meios pelos quais
o povo de Israel pode viver corretamente perante Deus, e em nome
dos quais Deus geralmente mantém a ordem. A estabilidade do Es-
tado judaico na época de Ben Sirac permitiu o florescimento do
culto dos sacrifícios no templo e o vagar necessário para as práticas
piedosas, transformando-se numa interpretação tripla do caminho
dos judeus até Deus por meio desse campo que abrange a condição
humana. Até mesmo depois da destruição do Segundo Templo, os
rabinos continuaram a interpretar os acontecimentos humanos em
termos de sua relação com o sacrifício no templo. Mas, lentamente,
o estudo da Torá assumiu o primeiro plano como a chave para o que
é importante na vida. A Torá é a revelação do criador justo e de sua
Providência; ali, as questões cruciais da vida não se referem à har-
monia, como na religião chinesa, ou à libertação dos desejos, como
no budismo, ou ainda à discriminação das ilusões, como no Advaita,
mas à obediência e à ação de graças, conforme definidas pela Torá.

As idéias teóricas sobre a maneira correta de se viver diante de


Deus na unidade dualista do judaísmo estão ligadas à problemática
da liberdade de viver obediente ou desobedientemente diante Dele.
Se Deus é o criador justo e providente, será Ele o responsável pela
criação das tendências malignas na vida humana? Se assim é, como
o judaísmo tem geralmente afirmado, então como os indivíduos ou
a coletividade podem ser responsáveis por seus atos bons e maus,
como o também o judaísmo tem geralmente afirmado? Saldarini
destaca que as questões da bondade e unidade de Deus corno cria-
dor providencial, tomadas em contraste com a capacidade dos seres
humanos de se rebelarem contra as ordens divinas, raramente são
reconciliadas com clareza. Elas podem tanto ser minimizadas por
um Ben Sirac, quanto invertidas pelos escritores pós-Holocausto, de
modo a sugerir a pergunta sobre como Deus poderia permitir o mal
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 269

(5.2.2.1). Mas, em geral, estas questões não podem ser respondidas


pela rejeição de nenhuma das duas dimensões.
Exceto em algumas de suas correntes místicas, o judaísmo é, na
prática, francamente dualista, tanto abstrata quanto concretamen-
te. Abstratamente, Deus é justo, mas cria um mundo no qual o mal
existe, e os dois lados (Deus-Mundo) têm a sua integridade (5.3.3.2).
Concretamente, Deus se relaciona com essa dualidade praticando a
justiça e a misericórdia: se qualquer um desses dois atributos é con-
siderado em isolamento, a pessoa de Deus não poderia se relacionar
com o mundo criado. Do lado humano, as pessoas são instadas a se
relacionar com Deus pelo arrependimento, reconhecendo sua pró-
pria responsabilidade e obedecendo e dando graças pela Torá, o que
inclui tanto o reconhecimento da justiça e da misericórdia de Deus
como a decisão de seguir mais de perto sua lei (5.3.4)•

A unidade dualística do judaísmo é passível de comparações


bastante diversas com a religião chinesa, o budismo e o Advaita
Vedãnta. No que diz respeito a esta afirmação da justiça e misericór-
dia de Deus para com o mundo, há muito pouca analogia possível
com estas três religiões, pois nenhuma delas apresenta imagens tão
fortes de intenção pessoal num deus. O tema de um deus criador é
forte em muitas formas de hinduísmo, mesmo quando ele é rapida-
mente transcendido como no Advaita; mas mesmo na piedade teísta
hindu, tal como expressa no Bhagavad Gitã ou no Saívismo, não há
uma ênfase tão grande na unidade capaz de transformar o problema
da reconciliação entre a justiça e a misericórdia de Deus numa ago-
nia tão grande, como acontece no judaísmo.

8.2.5. Idéias cristãs de unidade

O cristianismo nasce evidentemente a partir dos mesmos tex-


tos e temas essenciais de que nasce o judaísmo, começando, com
completo conhecimento de causa, como um dos muitos movimen-
tos do judaísmo do Segundo Templo. Mas ele se diferencia radical-
mente dos outros movimentos do judaísmo da época e de tempos
posteriores pela afirmação de que Jesus é o Messias, uma questão
270 CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

discutida no capítulo de Fredriksen e que analisaremos mais dire-


tamente aqui.
Essa diferença reflete-se claramente na concepção cristã da
unidade da totalidade Deus-mundo. Jesus foi visto por seus discípu-
los como alguém extraordinariamente ligado a Deus, mas que, como
descreve o Evangelho, morreu jovem, decepcionando seguidores e
alunos, vítima de uma luta política entre Jerusalém e Roma que pou-
co dizia respeito à sua missão, crucificado de maneira humilhante:
de acordo com esses parâmetros históricos, Jesus foi um fracasso.
Mais do que isso: apesar dos discípulos terem testemunhado sua res-
surreição dos mortos, ele não voltou à vida ordinária como Lázaro,
de modo a poder, talvez, arregimentar um exército para derrubar
Roma e restaurar Sião: ao contrário, ele deixou o mundo histórico
para subir aos céus. Com a subida de Jesus, de acordo com os Atos
dos Apóstolos, é prometida a vinda do Espírito Santo para defen-
der e guiar as pessoas, mas não para levá-las à vitória histórica. Em
vez disso, como consta dos "discursos de despedida" no Evangelho
de João, a função do Espírito Santo é consolar e modelar suas vi-
das fragmentadas, não raro perseguidas, e levá-las finalmente para
Deus. Assim, em total contraste com a maioria das outras formas do
judaísmo, que vêem num Messias alguém que traz a paz e a justiça
para a Terra, restaurando Israel por um longo período, o cristianis-
mo, a partir de seus textos fundadores no Novo Testamento, vê a
vida sempre finita e cheia de frustração e sofrimento. Aqui, a realiza-
ção religiosa consiste em relacionar-se com Deus nesta vida e talvez
até mesmo depois, de modo a satisfazer-se na glória de Deus e não
da história.
O cristianismo já teve muitas maneiras de especificar essa vi-
são da história e da realização humana. Um tipo de especificação,
bem próximo das imagens judaicas de Deus na história, é a apocalíp-
tica, que concebe o fim dos tempos como um juízo final; ou como o
fim de um tempo histórico em que as forças do mal perdem poder
e uma cidade celestial vem à terra; ou mesmo uma visão milenarista
capaz de combinar estas duas imagens apocalípticas (como escreveu
Fredriksen em 6.3.3, 6.4.4, 6.5.6, 6.7.5). Outro tipo de especificação,
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 271

a "escatologia consciente", interpreta a realização como a eternidade


divina agora, não necessariamente no além, supondo que a própria
história nada mais é que uma dimensão parcial da realidade verda-
deira, que inclui a possibilidade de participação na eternidade divi-
na; veja-se os "discursos do despedida" supramencionados ou a carta
aos Colossenses 2,8 a 3,4.
O cristianismo também já conheceu muitas maneiras de espe-
cificar a concepção de um Deus criador. A imagem do Deus pessoal
proveniente da Bíblia Hebraica sempre foi preservada. Ainda assim,
mais influenciado do que o judaísmo pelos gregos e, depois, por toda
a tradição européia da filosofia especulativa e metafísica, de manei-
ra tão decisiva no caso de Orígenes (6.4), o cristianismo elaborou
várias interpretações filosóficas diferentes para o que está na base
daquela imagem personalista ou antropomórfica de Deus. Agosti-
nho, por exemplo, disse que Deus cria o tempo e portanto não está
no tempo, exceto no caso de uma ação específica de intervenção.
O cristianismo neoplatônico identifica Deus com o Uno que está
além de toda determinação; Tomás de Aquino disse que Deus é puro
Ato do Ser (esse), certamente não um indivíduo pessoal no sentido
ordinário; Paul Tillich, no século XX, diz que Deus é o fundamento
do ser, de modo algum "um ser".
Assim, com respeito à questão da unidade no cristianismo em
sua relação com a condição humana, importa distinguir os aspec-
tos existenciais dos metafísicos segundo os quais a unidade é in-
terpretada. Metafisicamente, o cristianismo tem ganhado expres-
são em posições dualistas muito semelhantes ao judaísmo, com a
afirmação da integridade das diferentes realidades, Deus e mundo,
e toda a equivocidade de relações assimétricas e simétricas entre
eles (ver 8.3.4, 8.4.4, e 8.5.4, sobre simetria e assimetria). Mas o cris-
tianismo também foi objeto de representações em que o mundo é
visto como parte da natureza divina criadora e providencial, com
nenhuma integridade própria à parte de Deus, como ocorreu nas
teologias neoplatônicas; outras representações cristãs afirmaram
que Deus enquanto Deus não tem uma natureza independente da
criação do mundo, como em algumas teologias da criação ex nihilo.
272 - CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

Essas duas últimas abordagens, não muito discutidas no capítulo


6 ou durante o seminário, estão mais próximas do monismo que
do dualismo, ao afirmar que a condição humana jamais pode ser
considerada independentemente de Deus, mesmo em seus estados
mais deploráveis.4 Na pior das hipóteses, para estas posições razoa-
velmente monistas, a condição humana é má simplesmente porque
a atenção do homem está "voltada na direção errada", para usar uma
metáfora comum a Platão, Plotino e Agostinho; neste ponto, essa
espécie de cristianismo está mais próximo do Advaita Vedãnta que
dos monoteísmos dualísticos em sua versão particular da separação
entre as pessoas e Deus como resultado de uma perspectiva ou ati-
tude equivocadas
Existencialmente, o cristianismo encontra a unidade somente
em Deus e numa vida divina ou celestial que transcende a história
no sentido ordinário do termo. A perspectiva cristã sobre a história
em seu sentido ordinário a toma como o espaço da crucificação; a
ressurreição é a transcendência real (6.i, 6.6), integralmente cor-
pórea do plano histórico tal como o conhecemos. O cristianismo
envolve assim um dualismo existencial em que a história é vista
em oposição à realidade plena, na qual os seres humanos são exis-
tencialmente unidos a Deus. Este dualismo existencial é suavizado
quando o plano ordinário da história é visto como mero resulta-
do de uma falha de interpretação da realidade maior, um sonho do
qual as pessoas deveriam acordar (como nas parábolas do "desper-
tar" presentes no Evangelho de Mateus). Mas, com freqüência, o
Paraíso é interpretado como um lugar diferente para o qual as pes-
soas vão mais tarde, ou o curso da história é visto como objeto da
transformação ontológica e não meramente histórica da segunda
vinda de Jesus. Para o cristianismo, não há unidade existencial no
plano da historia, como há, ou deveria haver, no judaísmo apresen-
tado por Saldarini.

'Ver Robert C. Neville, Eternity and Time's Flow (Albany: State University of New York Press,
1993)
5Ver Thatamanil, Non-duality and Ecstasy: Sankara and Tillich on Theological Anthropology.
Ph.D. dissertation, Boston University, 2000.
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 273

A perspectiva cristã do mundo, derivada deste peculiar dua-


lismo existencial, é expressa pela seguinte frase: "no mundo, mas
não do mundo". Para o cristianismo, o homem deve viver entusiasti-
camente no mundo sob a orientação e o consolo do Espírito Santo,
deparando-se decerto com obstáculos, mas continuamente bus-
cando, com todo o coração, ser justo e santo (6.6.2), e nada mais
esperando, no plano da história, do que a morte e a derrota final.
O gnosticismo não se sustentou como uma corrente cristã por ter
abandonado a noção fundamental de uma vida plena no mundo
(6.3.1-3). De outro lado, Fredriksen (6.4) cita o ataque de Orígenes
aos materialistas cristãos que interpretam as Escrituras "segundo a
carne" e esperam por uma ressurreição material em Jerusalém pro-
piciada por um Deus corpóreo. Ao mesmo tempo, para Orígenes, a
verdadeira identidade humana é uma função da unidade existencial
e purificada com Deus, não fazendo parte "do mundo".
Com relação à unidade, a experiência cristã tem muito da pers-
pectiva prática sobre o mundo presente no judaísmo: por um lado,
deve-se amar a Deus, pois aí reside a verdadeira identidade huma-
na; e por outro, a luta para ser justo e santo, se não por intermédio
da Torá, ao menos por meio de algo muito semelhante a ela. Mas o
cristianismo não espera a justificação da carne na história, na res-
tauração da justiça e da piedade universal; em vez disso, ele espera
a transformação e justificação da carne na unidade com Deus. Pelo
menos este é o impacto do tema da crucificação-ressurreição na
maior parte da tradição cristã (a moderna teologia da libertação por
vezes retorna a uma visão da unificação divina da história consoante
com o judaísmo, ainda que lhe falte o sentido da tragédia histórica,
presente, por exemplo, em Wiesel.). A preocupação com a histó-
ria coloca tanto o judaísmo quanto o cristianismo em oposição ao
budismo e ao Advaita Vedãnta; o judaísmo insiste na realização de
Deus na história, o cristianismo diz que a história deve ser transfor-
mada para realizar-se em Deus.
Os cristãos abordam o dualismo existencial entre Deus e his-
tória e a unidade da vida humana como uma relação exclusiva com
Deus por meio de uma concepção teórica de Jesus como o Cristo.
274 CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

Jesus foi o paradigma de como viver no mundo sem ser do mun-


do; os Evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) ressaltam sua
devoção e ministério; João se concentra na maneira com que Jesus
baliza o caminho para Deus a partir desta vida. Debates posteriores
sobre o significado da transformação corpórea na união com Deus,
como aqueles expostos no capitulo 6, referiram-se principalmente à
interpretação desses textos fundadores sobre Jesus. As controvérsias
trinitárias elaboraram as questões principais num sentido filosófico.
Com respeito à definição de um curso apropriado para a vida hu-
mana em acordo com o paradigma de seu fundador, o cristianismo
tem muito em comum com a teoria do avatar no budismo e com o
seguimento do caminho de Buda. Porém, ao fim e ao cabo, mais do
que todas aquelas tradições, o cristianismo, principalmente em suas
modalidades antidocetistas, tem enfatizado a importância de uma
vida e de uma ação plenas no mundo.

Desde cedo, os cristãos conceberam as conseqüências práti-


cas do dualismo existencial e da unidade da verdadeira identidade
humana com Deus em termos de pecado e graça. A graça é a ação
divina que mantém em aberto a opção existencial de unidade com
Deus, e o pecado é a ação humana ou a condição limitadora que a
ela se segue impedindo ou inibindo a união santificante. São Paulo
intensificou de tal modo a noção judaica de inclinação para o mal
que, depois dele, ela veio a significar um enfraquecimento dos pode-
res humanos que obstrui ou impede o retorno à unidade com Deus,
uma unidade por ele interpretada nos termos da aliança da Torá
(6.2). O mesmo Paulo interpretou Jesus Cristo como o homem en-
viado por Deus, o filho divino, como o meio suficientemente pode-
roso para transformar a natureza humana. Corno relata Fredriksen
(6.2), de acordo com Paulo o primeiro homem, Adão, corrompeu a
natureza humana e Jesus, o segundo Adão, restaurou-a. Portanto,
essa pratica da vida "no mundo, mas não do mundo" é a prática dos
seres humanos se apropriando dos diversos meios da graça, o que
para os cristãos tem significado eminentemente tornar-se discípu-
lo de Jesus, num ou noutro sentido historicamente condicionado.
Como diz Fredriksen, o cristianismo apresentou muitas maneiras
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 275

de conceber o problema da entrada conjunta de corpo e alma na


vida divina ou celestial.

8.2.6. Idéias islâmicas de unidade

O Islã, a exemplo das outras religiões monoteístas, apresenta


um enfático dualismo entre Deus e mundo (7.4-7.5). Ao mesmo
tempo, muito mais que o cristianismo e até mais que o próprio judaís-
mo, o Islã enfatiza a unidade ou a unicidade do Deus criador. Haq
vai ainda mais longe quando sugere uma profunda similaridade en-
tre a ênfase islâmica na unidade e a religião chinesa do Um (7.1).
Três pontos principais especificam a abordagem islâmica da
unidade cósmica. Em primeiro plano está a absoluta unidade de
Deus testemunhada na "visão" primordial, elaborada especialmente
em oposição a qualquer tipo de politeísmo e ao cristianismo trinitá-
rio (7.4.2). A preocupação islâmica com a shirk, a idolatria, é menos
uma tentativa de cavar um abismo entre Deus e o mundo do que
uma maneira de negar qualquer multiplicidade no interior da dei-
dade (7.4.1).
Em segundo lugar, porque o Deus unificado de forma absoluta
cria da mesma forma o mundo em sua totalidade, o próprio mundo
possui um alto grau de unidade. A unidade do mundo consiste no
amr, "o mandamento divino, princípio constitutivo fundamental de
cada entidade criada, que a coloca na obrigação de ocupar o lugar
designado no conjunto cósmico" (7.3.2). É neste aspecto de que cada
coisa tem um lugar especifico e harmônico no esquema maior, que
o Islã pode ser visto como semelhante à religião chinesa. Para o Islã,
as coisas naturais nada mais podem fazer que exercer seus papéis
conforme definidos pelo amr, mas os seres humanos têm a liberda-
de de seguir no sentido contrário, e por isso o amr significa, para os
humanos, uma obrigação que pode não ser cumprida. Precisamente
porque o amr dos seres humanos, elaborado na Sharra e proclamado
no ahkãm, implica numa vida sujeita a obrigações (sobre este assun-
to veremos mais no capítulo 9), o mundo tem sua unidade derivada
da absoluta unidade de Alá (7.3.1,7.4,7.6).
--=--- CATEGORIAS COSMOLÓGICAS
276=--

Em terceiro lugar, a unidade de Alá com o mundo, que ultrapas-


sa o dualismo, é consumada quando o primeiro é reconhecido como
a fonte única do segundo. Isto será elaborado mais adiante quando
discutirmos a categoria cósmica de estatuto ontológico (8.3.6). Aqui
assinalamos a tensão descrita por Haq (7.5), que resulta em tendên-
cias místicas de dissolução do self na divindade ou de encontro com
a divindade no interior de si, ambas atitudes caracterizadas como
shirk, malgrado serem praticamente inevitáveis no âmbito da rela-
ção Criador-criatura.
Neste ponto o Islã, em sua referência objetiva a Deus, o mundo
e sua unidade, afirma-se em forte contraste com o budismo, pelo
menos com a corrente Madhyamaka descrita no capítulo 3. Ao en-
fatizar a pluralidade real unificada do mundo natural e social, o Islã
se alinha com o judaísmo, o cristianismo e a religião chinesa contra
o tema de mãyã do Advaita Vedãnta.
Essa ênfase islâmica na unidade, tanto divina quanto mundana,
dá origem a uma perspectiva da vida das pessoas livres em sociedade
como um campo de obrigações. Haq (7.3.2) descreve o desenvolvi-
mento da noção islâmica de lei como mandamento divino, articu-
lando os elementos normativos que Alá estabelece na natureza e na
sociedade. Além disso, o campo da obrigação é tido como um campo
unificado.
O judaísmo e o cristianismo compartilham da perspectiva de
que a vida é um campo de obrigações, mas a especificam de manei-
ras bastante diversas. O judaísmo, pelo menos depois de Ben Sirac
(5.2.3), teima em reconhecer uma espécie de recalcitrância do mal,
assim como uma tragédia permeando a esfera das obrigações. O tema
messiânico no judaísmo diz que Deus e as pessoas de bem deveriam
ser capazes de triunfar na história, e que Deus, em sua Providência,
trabalha neste sentido; entretanto, a unidade da intenção divina ao
longo da história, o cumprimento das promessas, não é evidente. À
semelhança do Islã, o judaísmo vê as forças do mal como parte da
criação, sendo assim subservientes ao propósito divino (7.6). Mas
este propósito parece obscuro, ou pelo menos não obviamente rea-
lizado nos acontecimentos. O Islã passou por seu período formativo
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 277

quando suas aspirações políticas estavam em ascensão, em contras-


te com o judaísmo rabínico do Segundo Templo, constituído numa
época em que o baixo status de Israel como entidade política estava
deteriorando-se ainda mais, culminando com a completa destruição
do templo e o abandono da falsa pretensão a um estado judaico de
fachada que vigorava no período imediatamente anterior. O Islã tem
uma obsessão triunfalista bem mais acentuada do que o judaísmo
em relação à unidade divina na esfera das obrigações, a ser expressa
pelo exercício político da práxis islâmica (7.6)
A perspectiva islâmica sobre a unidade da esfera das obrigações
contrasta também com a perspectiva cristã de que as obrigações de-
vem ser cumpridas na expectativa de que a vida neste mundo seja
uma sucessão de cruzes. Na visão cristã, a unidade é realizada ape-
nas pela unificação das pessoas com Deus, que abrange a existência
histórica fragmentada na transcendência da história. O Islã está, é
claro, cheio de visões do paraíso, mas não de um paraíso em radical
descontinuidade com a existência histórica; a esse respeito, o Islã
concorda com a posição chinesa de que existe somente um mundo,
ainda que ele contenha mais do que é aparente à nossa consciência
comum. O cristianismo vê o Reino dos Céus ou a vida perante Deus
como uma transformação e transvaloração da existência histórica
comum.
O Islã concorda com todas as outras religiões estudadas no
entendimento da vida como uma esfera de responsabilidades, espe-
cificadas no Islã como obrigações no sentido expresso pela Sharra
(7.3.3). O budismo especifica a esfera de responsabilidades como
ocasiões para a libertação dos apegos induzidos pelo ego, e o Advaita
Vedãnta como ocasiões para aprender e praticar a arte de discrimi-
nar, tornando manifesto o não-dualismo subjacente à multiplici-
dade. As dimensões pessoais e sociais dessa esfera serão discutidas
mais tarde (9.3.6).
A principal implicação teórica da abordagem islâmica da uni-
dade, especialmente da unidade do mundo, é a convicção de que o
mundo é racional e de que, portanto, a ciência é não somente possí-
vel, mas uma parte do fiqh, o processo de compreensão da palavra di-
278.--- --=.- CATEGORIAS COSMOLÓGICAS
z---

vina (7.3.3). A ênfase teórica na palavra divina, compartilhada com o


judaísmo e o cristianismo, ainda que diversamente interpretada, en-
tende a ciência e a investigação racional como virtudes importantes.
Assim, ao passo que o budismo do tipo estudado aqui e o hinduísmo
vedântico são tolerantes e vêem a ciência como não interferindo
com a religião, o Islã promove a investigação racional com positivi-
dade, entendendo-a como uma das virtudes piedosas.6
A conseqüência prática da visão islâmica de unidade é um
entusiasmo pelo engajamento numa vida de obrigações, com um
sentido de que tudo está na verdade realizando o desígnio único de
Deus. A religião chinesa, o judaísmo e o cristianismo estão todos
comprometidos com a noção da bondade da vida, porém com re-
servas. Os chineses entendem que a busca por harmonias pode ser
frustrada porque os processos desarmoniosos participam de harmo-
nias mais vastas que estão fora do nosso alcance. O sentido judaico
de sofrimento e tragédia significa que o entusiasmo deve ser contra-
balançado por visitas ao Muro das Lamentações. E a visão cristã da
inevitável fragmentariedade da vida em suas dimensões humanas
significa que os compromissos práticos para com as responsabilida-
des da vida devem ser sempre acompanhados e suplementados pelo
envolvimento voluntário com o Deus transcendente.

8.3. Estatuto Ontológico

A categoria vaga de estatuto ontológico relativa à condição hu-


mana tem a ver com a contingência da existência humana e sua in-
terpretação no contexto do cosmos. O estatuto ontológico está rela-
cionado à unidade do cosmos de muitas maneiras, mas não pode ser
reduzido a ela. Como ou por que o mundo existe (tenha ele unidade
ou não)? Qual é seu poder de existência? As tradições especificam
estas questões de modos à primeira vista muito diversos, mas que
têm mais continuidade entre si do que se poderia esperar ao tomá-
las enquanto especificações da questão ontológica. "Ontologia" é,

6Syed Nomanul Haq, Names. Natures and Things: The Albhemist Jabir ibn Hayyan and his Kitab

aI-Ahjar (Book of Stones) (Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1994).


ROBERT CUMMINGS NEVILLE 279

obviamente, uma categoria da filosofia ocidental e a "questão onto-


lógica" é uma expressão de Heidegger apropriada teologicamente
pelo cristianismo a partir de Tillich. Usamos "ontologia" em um sen-
tido muito mais vago do que este, em um sentido no qual a tradição
ocidental é apenas uma linha de especificação, como uma noção
vaga que se relaciona com o como e o porquê das coisas existirem,
com contingência, poder e outras idéias do gênero. O caso chinês é
provavelmente o teste mais difícil para a relevância desta categoria
no entendimento da interpretação religiosa da condição humana
em sua relação com o mundo.

8.3.1. Idéias ontológicas chinesas

O estatuto ontológico do cosmos nas religiões chinesas, consi-


derando o tema mítico do Um, é determinado pela noção de que o
ser do mundo plural surge do interior da unidade, e não de alguma
fonte transcendente a ela. Kohn (2.2) cita o Tao Te Ching: "O Tao pro-
duz o Um; o Um produz o dois; o dois produz o três..." Nesse caso, o
Tao é a unidade primeva ou incipiente que está presente em todas as
partes do mundo plural como fundamento unificador da existência
e das conexões da diversidade manifestada. Uma observação seme-
lhante pode ser dirigida às representações posteriores do Wangbi
ou de Zhou Dunyi7: um não-ser fazendo surgir o ser ou o Grande
Último e daí as coisas plurais: o mundo unificado de mudanças ma-
nifestadas não depende ontologicamente de nenhum outro Um de
qualquer gênero, mas de um princípio de produção ontológica in-
terior na própria unidade do mundo uno, não uma de suas partes,
mas uma incipiência que produz de maneira auto-suficiente sua
própria unidade diversificada.' Neste capítulo, enfatizamos mais do
que Kohn as diferenças existentes entre o problema ontológico e o
problema da unidade.
A concepção ontológica chinesa de incipiência conduz a uma
profunda apreciação da espontaneidade nas coisas e nos negócios

7Wing-tsit Chan, A Source Book in Chinese Philosophy (Princeton: Princeton University Press,

1963), 321, 463.


'Ver também Zhuxi's "Treatise on Jen" in Chan, ibid., 593-596.
280 CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

humanos. Certamente os chineses também têm um apreço profun-


do pelos padrões e processos causais da natureza, dos quais a vida
humana, social e pessoal, é parte integrante. Mas a relação entre o
fluxo de causalidade temporal e a espontaneidade ontológica nos
temas centrais do pensamento chinês é bastante diferente daquela
encontrada no pensamento iluminista europeu (2.4.3). Na visão de
mundo científica, européia e moderna, os processos da natureza são
não raro concebidos em termos de determinismo mecânico, em re-
lação ao qual a espontaneidade representa uma quebra na legalidade
do processo, algo como a visão de Hume sobre os milagres; o pro-
cesso determinista da natureza também pode ser visto como com-
prometido por ilhas de indeterminação com relação ao futuro, em
cujo contexto a espontaneidade significa a decisão individual que
determina aquilo que de outro modo seria apenas uma opção inde-
terminada, como acontece na filosofia do processo de Whitehead.
O conceito ontológico chinês é diferente: nessa perspectiva, toda
ocorrência natural tem continuidade em relação a outros processos,
ao mesmo tempo em que é ontologicamente espontânea, nascendo
do Tao, o Um incipiente.9

9A linha de interpretação da cosmologia chinesa discutida por Kohn neste volume, e seguida na

maioria de seus aspectos por Neville e Wildman, contrasta, pelo menos no sentido retórico, com a
linha que deriva dos estudos de A.C. Graham (Cf., Disputers of the Tao: Philosophical Arguments in
Ancient China [La Salle, III.: Open Court, 19891); e desenvolvida com riqueza de detalhes por Roger
T. Ames and David L. Hall in Thinking through Confudus (Albany: State University of New York
Press, 1987); idem., Anticipating China: Thinking through the Narratives of Chinese and Western
Culture (Albany: State University of New York Press, 1995) e idem., Thinking from the Han (Albany:
State University of New York Press, 1998). De acordo com Hall e Ames, noções como transcendên-
cia, causalidade linear, ser e verdade têm uma origem exclusivamente ocidental e não se aplicam
sem prejuízo à cultura chinesa. Uma das defesas mais maduras e intensamente argumentadas deste
ponto de vista encontra-se no capítulo 9 de Thinking from the Han. Nós (Neville e Wilman) acre-
ditamos que o contraste retórico entre as duas linhas de interpretação é mais aparente do que real.
Nosso próprio projeto comparativo emprega, com efeito, categorias comparativas cuja origem é
exterior à tradição chinesa, da mesma forma que todo comparativista propõe questões acerca de
textos e tradições que podem não ser colocadas em seu ambiente de origem. Assim, necessitamos
ser especialmente cuidadosos para não importar erroneamente elementos estrangeiros para dentro
de representações internas, no caso para dentro da religião chinesa; ironicamente, dentro de nosso
projeto somos acusados (Neville especialmente) de enfatizar demais uma dada estrutura chinesa,
notadamente confucionista, em detrimento das outras no desenvolvimento da comparação. Hall
e Ames, por sua vez, estão fortemente comprometidos com a rejeição de noções como transcen-
dência, causalidade linear, ser e verdade, o que os leva a enviesar sua representação do caso chinês
com aquilo que Whitehead chamaria de "apreensões negativas", determinando as visões ocidentais
de modo muito estreito para identificá-las posteriormente com os desenvolvimentos presentes ou
contemporâneos desta tradição (quer dizer, para identificá-las com nossas - Neville e Wildman - pró-
prias visões). Existem, talvez, dois casos de um desacordo substantivo entre as duas visões. Um é
dado por nossa crença de que Hall e Ames enfatizam demasiadamente a causalidade correlativa no
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 281

Para a religião chinesa, a implicação teórica da ontologia do


mundo incipientemente uno afirma a condição humana como par-
te da unidade do cosmos em dois sentidos. Um dos sentidos tem
relação com um harmonizar-se com os processos que compõem o
todo. O outro sentido tem relação com o encontrar a si mesmo situa-
do nesses processos como ao mesmo tempo produto espontâneo e
agente do nascimento ontológico do mundo, a dimensão de profun-
didade da existência humana. Para a religião chinesa, a espontanei-
dade não compete com os processos de causalidade natural. Pelo
contrário, é possível para o homem encontrar a própria profundida-
de e espontaneidade harmonizando-se mais estreitamente com as
forças unificadoras que permeiam o cosmos. Aqui, espontaneidade
não significa voluntarismo, mas a fusão da vontade com os princí-
pios de harmonização inerente aos processos da natureza ou da so-
ciedade. Melhor dizendo, a espontaneidade requer uma desconstru-
ção das motivações egoístas que nos colocam em oposição com as
harmonias do Um, assim como uma abertura da vontade (para usar
por hora um termo filosófico ocidental) de modo a conformá-la aos
princípios de harmonização do cosmos, uma mensagem presente
tanto no Grande aprendizado e na Doutrina do meio quanto no Tao Te
Ching e no Zhuangzi (2.3.3 a 4).
Entre as conseqüências práticas da idéia ontológica chinesa, en-
contram-se os procedimentos para cultivar a abertura e o sentimento

pensamento chinês com o objetivo de excluir a causalidade linear presente em muitas de suas raízes
e ramificações, como por exemplo na referência ética para localizar falsos princípios e romper cone-
xões em desenvolvimento, o desejo positivamente constante de estar centrado, na medida em que
do centro fluem conseqüências benéficas para as tarefas a serem realizadas. Hall e Ames reconhecem
as muitas referências chinesas deste fenômeno, mas não lhes concedem a dignidade de um estilo
de causalidade diferente do correlativo, semelhante àquele desenvolvido pelo pensamento ocidental
(ainda que, reconhecidamente, este estilo nada tenha que ver com a idéia ocidental de lei). O outro
desacordo substantivo diz respeito ao nominalismo professado em sua abordagem, à sua afirmação
de que existem somente particulares em conexão com particulares, com a conseqüente negação de
que exista alguma outra coisa por trás ou no interior dos particulares à nossa disposição. Contra isso,
argumentaríamos que, para o chinês antigo, os particulares de uma dada situação exibem modelos
subjacentes tais como os descritos no Yijing ou nas interações entre yin e yang; pensadores poste-
riores como Wangbi e Zhou Dunyi desenvolveram hierarquias de níveis de realidade supostamente
subjacentes, articulando com eles a trajetória do incipiente —das dez mil coisas aos cinco elementos,
daí para o yin/yang e deste o Grande Último e o Não Ser (Wuji). Se a querela epistemológica nomi-
nalismo versus realismo for levantada em relação ao caso chinês, uma querela ela própria bastante
ocidental, poderíamos afirmar que os chineses são realistas de várias formas. Ver Ames e Hall, op.
cit., esp. Capítulo 9.
282 CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

de que se está fundamentado na espontaneidade ontológica da exis-


tência. Os taoístas assim procedem em relação à alquimia interior dis-
cutida em 2.3, os confucionistas pelo modo em que cultivam o sen-
tido do paraíso e seu mandato (e os neo-confucionistas, com o culto
do Principio), e os budistas chineses pela disciplina para a preserva-
ção de uma mente vazia e aberta à dimensão espontânea das coisas.

8.3.2. Idéias ontológicas budistas


Enquanto o budismo na maior parte de suas formas, espe-
cialmente aquela aqui estudada, não considera religiosamente im-
portante a idéia de um mundo objetivo e unificado cujo estatuto
ontológico estaria em questão, ele representa como sendo de ex-
traordinária importância a contingência ontológica de tudo o que
acontece, como se pode ver em 3.1. Não se trata de contingência no
sentido de uma falta de determinação pelo passado. Nem uma con-
tingência baseada em algo exterior, como acontece com alguns te-
ísmos, muito menos em algo interior, como se pode ver na religião
chinesa discutida anteriormente. Em vez disso, para o budismo cada
coisa no mundo é contingente no sentido de não ter seu próprio
ser, não ter seu próprio self, como diz Eckel em 3.2. Todas as coisas, o
que inclui as pessoas, são meros estados de elementos em constan-
te mutação, identificados e nomeados em seu conjunto apenas por
convenção. Devido ao constante fluxo dos elementos, não há coisas
estáveis no mundo a serem referidas pelas palavras; ou, dito de outra
forma, a realidade das coisas estáveis é contingente na referência
das palavras, mas não na própria natureza das coisas. Qualquer coi-
sa determinada a qual uma palavra possa referir-se é redutível aos
componentes causais que se sucedem uns aos outros no objeto de
referência. Desse modo, as coisas do mundo são ontologicamen-
te contingentes em dois sentidos para o budismo, especialmente
o budismo do tipo Madhyamaka. De um lado, qualquer objeto de
nossa experiência é contingente na referência convencional que a
ele fazemos para distingui-lo dos outros objetos em fluxo; de outro,
qualquer objeto é contingente por ser completamente redutível à
corrente de suas causas ontológicas condicionais.
ROBERT CUMMINGS NEVILLE=-=
--- 283

Com uma ontologia tão diferente da chinesa, talvez pareça sur-


preendente que a perspectiva ontológica do budismo sobre o mun-
do seja semelhante a ela precisamente nesse ponto: a contingência
radical das coisas em suas condições de origem e em sua designa-
ção convencional preenche o mundo com aberturas para a ação da
liberdade. Ou, conforme expresso em 3.2, atingir a consciência da
inexistência de uma identidade própria das coisas significa que não
há necessidade de deixar-se levar por qualquer tipo de apego a falsas
noções de identidade do eu ou das outras coisas. Da perspectiva da
contingência ontológica presente no budismo Mahayana, a vida é
um campo de oportunidades para a espontaneidade. A esse respeito,
a descoberta budista da liberdade como espontaneidade em meio ao
condicionamento causal é notavelmente semelhante ao sentido de
espontaneidade da religião chinesa que desperta em meio ao pro-
cesso temporal.
A ontologia budista da contingência radical considera o mun-
do numa perspectiva que Eckel caracteriza como Caminho do meio
(3.3). Isto é, as coisas são reconhecidas ou abordadas com uma ati-
tude de negação das descrições pelas quais elas são designadas ou
compreendidas. O fato de que a referência putativa está sujeita à
mudança torna essa atitude compreensível: dizer que um objeto
tem esta ou aquela característica quando na realidade ele está a ca-
minho de se transformar em outra coisa é estar sempre disposto a
voltar atrás no que foi dito. Mas a mudança propriamente dita não é
a única razão para encontrar o caminho do meio entre as negações.
A própria falta de identidade própria nas coisas e nos sujeitos que a
elas se referem demanda um modo elíptico de expressão composto
de afirmação e negação.
Assim, existem dois níveis de contraste comparativo entre a
religião chinesa e o budismo no tocante às suas ontologias. Ambas
religiões concordam em enfatizar a mudança e negar algo como
uma substância aristotélica com identidade própria e permanente.
Os chineses, entretanto, fazem descrições positivas das coisas exa-
tamente como mudanças, como transformações, como proporções
mutantes de yin e yang, a mudança — e não as coisas substanciais —
284 CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

é o referente do discurso. Diferentemente, os budistas supõem que


o objeto de referência deveria ser composto de coisas estáticas como
as palavras e por isso se vêem obrigados a recuar das descrições posi-
tivas para as formas elípticas de referência por meio da afirmação e
da negação. Talvez a origem sânscrita do pensamento budista tenha
profundas afinidades com as outras línguas indo-européias, as quais
levaram muitos pensadores da Ásia ocidental a acreditar em subs-
tâncias com propriedades autônomas assim como em sujeitos com
predicados próprios. Eckel e Thatamanil, comentando sobre um dos
rascunhos desse capítulo, advertem-nos a não tornar a comparação
muito rígida: "no sentido convencional, os budistas estão contentes
em fazer uso de palavras. Eles criticam o significado literal quando
as palavras são vistas como a derradeira perspectiva sobre as coisas.
Convencionalmente, não há necessidade de ser elíptico. Mas, em
última instância, não há também necessidade de fazer referências".
Seja como for, ainda assim é mantido o contraste comparativo entre
o budismo e a disposição chinesa de referir-se a coisas concretas em
todos os níveis. Este é apenas um nível de comparação.

O outro nível de comparação entre a religião chinesa e o budis-


mo diz respeito à referência. Vistas em conjunto com a totalidade
do universo harmonioso, para a religião chinesa as capacidades refe-
renciais (isto é, lingüísticas) de uma pessoa e a estrutura do conhe-
cimento humano precisam ter uma continuidade natural com os
processos causais inerentes ao objeto do conhecimento. Conhecer,
na religião chinesa, é uma maneira cultivada de estar em harmonia;
de se estar de um lado conectado ao resto do cosmos e de outro à
espontaneidade de suas profundezas; de acordo com a concepção
chinesa de harmonia, o conhecimento é tanto uma disciplina práti-
ca quanto uma intuição (2.3.3). Em contraste, as noções Mahayana
de referência relacionam-se problematicamente com os processos
naturais. Porque as coisas na natureza não têm uma forma simples
— positiva (de mudança) —, a referência torna-se uma função da
delimitação convencional do sujeito; num outro sentido, ela se liga
à ilusão de tomar essas convenções por algo mais do que realmente
são. Para o budismo, tal como explicitado no capítulo 3, até mesmo
ROBERT CUMMINGS NEVILLE- - 285
----'
--=

o conceito de "mundo" é resultado de uma leitura específica tanto


da referência quanto da natureza. Enquanto a abordagem budista da
referência ensina a referir-se de modo a libertar o sujeito do sofri-
mento, a abordagem chinesa ensina a referir-se de modo apropriado
à compreensão da natureza para que o sujeito possa, assim, tornar-se
capaz de reconectar-se a ela harmoniosamente.
Neste ponto, o budismo chinês segue a mesma linha do bu-
dismo indiano, quer dizer, o cultivo prático da apreensão da espon-
taneidade das coisas, da noção de sua não-independência ou vazio.
A contingência ontológica radical presente na Madhyamaka e na
Yogacara indianas afirma que as pessoas precisam se dar conta da
liberdade inerente às coisas para exercer sua própria liberdade. As
práticas da disciplina budista têm por objetivo esta realização.
No nível prático, verifica-se uma chocante diferença entre as
religiões chinesas e o budismo que se origina de suas diferentes on-
tologias. A inclinação chinesa para a prática vai na direção de uma
conexão e harmonia mais intensas, com respeito aos processos do
mundo e ao retorno em profundidade ao Um. A inclinação budista
dirige-se em parte à desconexão, à fuga das conexões que aprisio-
nam e que resultam da reificação das unidades e identidades con-
vencionais, tudo isso considerado do ponto de vista da libertação.
Por outro lado, é claro, o budismo inclina-se para a conexão. Como
descreve Thatamanil, "a compaixão sem limite dos bodhisattvas se
fundamenta na consciência da co-originação dependente. Dar-se
conta do vazio é também perceber a co-dependência mútua. Con-
seqüentemente, há tanto um distanciamento das conexões baseadas
na reificação quanto uma aproximação de todas as criaturas e seu
sofrimento comum". Os neoconfucionistas eram extremamente crí-
ticos em relação à tentativa budista de atingir, por intermédio da
meditação, o vazio completo do não-ser; do ponto de vista neocon-
fucionista, isso significaria deixar o Um por uma pura ficção, algo
inteiramente contrário à meta religiosa de maximizar a harmonia.
(Isto nos leva a imaginar como seria para um sábio Song treinar seus
discípulos na prática da meditação sentada, acompanhado de um
bodhisattva em plena Academia Hanlin).
-----
286--- --- CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

8.3.3. Idéias ontológicas hindus


Uma das principais preocupações do Advaita Vedãnta é onto-
lógica, a saber, discriminar o que é de fato real num contexto em
que a vida está eivada de ilusões (4.1). Embora tenha sido comum
no Ocidente associar o Vedãnta à filosofia perene,'° uma escola
muito semelhante ao neoplatonismo com seus níveis de realidade
em escala ascendente até a unidade, a tese do Advaita é a de que
simplesmente não existe qualquer outra realidade além de Brah-
ma, seja ela menor ou maior. Certo, existem níveis de discrimina-
ção; mas qualquer coisa dual é mâyâ. A distinção ontológica se dá
entre o Brahma, a realidade plena, e mãyã, a não-realidade. A reli-
gião chinesa, em contraste, não distingue significativamente entre
a realidade verdadeira e o vasto campo de mãyã, embora reconheça
que as pessoas podem ser enganadas por seu próprio egoísmo e por
não adquirirem prática no discernimento do Tao. Para alguns, o bu-
dismo pareceria compartilhar com o Advaita a visão de que o reino
de samsâra tem um caráter ilusório, enganador e aprisionante. Mas
a única coisa religiosamente verdadeira para o budismo é a expe-
riência do não-self subjetivo; a realidade de todo o resto desperta
apenas a indiferença religiosa, ao passo que o verdadeiro e o real
para o Advaita é Brahma, em relação ao qual o self subjetivo, quando
toma a si mesmo como diferente, é irreal. Para os Mãdhyamakas,
conforme aponta Eckel num outro comentário, toda realidade é
convencional, "incluindo a experiência subjetiva do vazio". Mas
nem todas as realidades convencionais são tão importantes religio-
samente quanto esta.
Para o Advaita, somente Brahma é real, e isto significa que to-
das as aparências em contrário são mãyã. Desse modo, o campo da
experiência a partir da perspectiva ontológica de Brahma está pron-
to para o trabalho de discriminação (4.3). As pessoas inconscientes
consideram o mundo dessa perspectiva, sendo levadas a acreditar
que ele é real. A pessoa consciente simplesmente desfruta do mun-

wVer, por exemplo, Huston Smith, Forgotten Truth: The Primordial Tradition (New York: Harper
Row, 1976); and Frithjof Schuon, The transcendent Unity of Religions (Wheaton, III: The Theoso-
phical Publishing House, 1984), esp. a Introdução de Huston Smith.
ROBERT CUMMINGS NEVILLE --
--=
"=- 287

do como ele é, feliz, conforme descrito pelos dois últimos dois ver-
sos do Vivekanidãmani citados em 4.4.
As idéias teóricas da ontologia do Advaita distinguem mãyã da
realidade, como exposto em 4.2.1. Deste ponto de vista, tudo o que
é religiosamente interessante a respeito do mundo é representado
como peças de um quebra-cabeças, os lugares em que algum ele-
mento particular de mãyã é tomado como real e, assim, como pas-
sível de ser desvelado, como cobras que depois se descobre serem
cordas (4.3). Clooney analisa uma dessas peças do Vivelzacgãmani
em sua discussão das cinco camadas do não-self que comumente são
tomadas pelo self verdadeiro (4.3). Isso difere em muito da ontologia
exterior da religião chinesa, que identifica pontos de ação como o
lugar em que as harmonias podem ser mudadas para melhor, por
vezes com a descoberta de alguma profundidade espontânea. A teo-
ria Advaita é semelhante em muitos aspectos à ênfase budista em
aprender a não conceber erroneamente a experiência por causa da
ignorância existencial. Com ressonâncias mútuas, o budismo coloca
a ênfase na remoção das causas da ignorância que aprisiona, isto é,
os desejos que supõem permanência e identidade própria, enquan-
to o Advaita se concentra em identificar os erros e desenvolver a
capacidade de discernimento necessária para distinguir em todas as
coisas o verdadeiro Brahma do falso ou dual. Neste sentido, escreve
Thatamanil em comentário a um esboço anterior deste capítulo:
Depois de tudo, tanto os Mãdhyamakas quanto os Advaitanes enfatizam
a remoção de um hábito cognitivo errôneo. Para os primeiros, este erro
consiste na atribuição de existência intrínseca ou ser-próprio ao self e
às coisas. Para os últimos, o erro é a justaposição (adhyasa) do não-self
sobre o self. Estes erros constituem a causa básica para a perpetuação das
impurezas (Mesa) ou erros que marcam a aflição humana. No Madhya-
maka, essas impurezas são raga, dvesa e moha. Essa lista, com variações,
é também encontrada nos textos Advaita. Ambas as tradições acreditam
que a ignorância fundamental é responsável por estes problemas, discor-
dando, entretanto, acerca da natureza dessa ignorância.

A meta buscada pelo budismo é a libertação da ignorância. A


meta para o Advaita é a liberdade advinda da identidade total com
288 CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

Brahma, a plena compreensão da verdade, deixar para trás os erros


de mãyã. Como conseqüência prática da ontologia Advaita Vedãnta,
há o caminho do discípulo que une o brâmane do sexo masculino
a um guru, talvez numa comunidade de discípulos, lendo textos e
trabalhando no sentido da transformação necessária para atingir um
nível cada vez maior de discriminação entre mâyâ e a realidade. O
Capítulo 4.4. analisa esta prática como bhavana. A prática do Avaita
Vedãnta partilha esse tema de transformação com a religião chinesa
e com o budismo, embora enfatize menos que a maior parte das reli-
giões chinesas a transformação do mundo e esteja mais preocupado
com o refinamento da percepção da verdadeira realidade do que o
budismo, que não faz afirmações objetivas sobre a verdadeira reali-
dade.

8.3.4. Idéias ontológicas judaicas


Para o judaísmo, o estatuto ontológico do mundo reflete-se
obviamente na afirmação de que o mundo é inteiramente criado
por Deus e não existiria sem Ele. Este tema o judaísmo partilha
com o cristianismo, o islamismo e também com muitas formas de
hinduísmo. O judaísmo é diferente em sua afirmação da existência
de um estatuto ontológico especial para o povo de Israel, situado no
interior do estatuto ontológico maior da ordem da criação. Israel é
ontologicamente especial porque definido em relação à Tora — a
revelação de Deus que, em certas formas do judaísmo, é pré-exis-
tente ao mundo, sendo o meio de sua criação (5.1.2). Isto implica
uma real diferença ontológica de Israel, não apenas uma superiori-
dade de civilização, como em algumas religiões chinesas, ou uma
aptidão especial de certa classe de pessoas para receber a revelação,
como é o caso dos homens brâmanes, com seus mestres e textos à
disposição.
A perspectiva sobre o mundo resultante da ontologia judaica
da criação e do estatuto especial de Israel representa o mundo como
um problema. O problema consiste em que, enquanto do ponto de
vista humano somos livres e responsáveis, do ponto de vista divino
tudo o que somos, bons ou maus, é dom de Deus (5.3.3.2). Existe, no
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 289

entanto, um outro modo de expressar a mesma coisa. Do ponto de


vista da ontologia da criação, há uma relação assimétrica entre Deus
e mundo, de modo que Deus é responsável por tudo. Do ponto de
vista da condição ontológica de Israel, e mesmo do resto dos povos,
existe uma relação simétrica de reciprocidade entre o mandamento
divino e a obediência ou desobediência humana, entre a justiça e a
misericórdia divina e o arrependimento e a retomada da aliança, e
assim por diante. Na medida em que Israel é ordenada a ser respon-
sável, ela trata Deus simetricamente como um Outro perante quem
ela é responsável, e isto é problemático porque a ontologia da cria-
ção é assimétrica. Quando estes diferentes pontos de vista entram
em conflito ou dão origem a questões relativas à interpretação da
Pessoa de Deus, geralmente a relação assimétrica da criação predo-
mina, mas sem nunca negar a simetria interativa entre mandamen-
to (na Torá) e resposta (5.3.4.4)•

Uma das idéias teóricas da ontologia de Israel foi já menciona-


da, a saber, a necessidade de entender o mundo como um campo de
responsabilidades, incluindo a responsabilidade pelas próprias ações
faltosas, reconhecendo, ao mesmo tempo, que Deus é soberano so-
bre tudo. Isto é enfatizado pela concepção da vida segundo a Torá, de
maneira que qualquer ocasião para a obediência é ao mesmo tempo
uma oportunidade de decisão para a liberdade responsável e de reco-
nhecimento da soberania criativa de Deus. O judaísmo partilha com
a religião chinesa uma inclinação para ver o mundo como pontuado
de oportunidades de decisão para o exercício da responsabilidade.
Mas há muito pouco na religião chinesa que corresponda à visão
judaica de que nossa responsabilidade é julgada por um Deus en-
tendido de maneira tão pessoal; mesmo as divindades taoístas, que
pesam e recompensam as ações humanas, são representadas mais à
maneira de funcionários burocráticos do que de um Deus altamente
individual com uma história pessoal com Israel. A ênfase judaica
na conformação com a Torá, em especial o mandamento de amar
a Deus de todo o coração, entendimento, alma e forças, para des-
se modo agradá-lo, tem pouca ressonância no budismo ou no Ad-
vaita Vedãnta do Vivekacgãmaryi, que não dão muito espaço para a
- - CATEGORIAS COSMOLÓGICAS
290 ----- -=

existência de deuses a quem importaria agradar. Em algumas outras


formas de religião hindu, há uma espécie de ênfase inversa no fato
de os seres humanos terem prazer em Deus, assim como os sábios
judeus que têm prazer em estudá-lo na Torá.
No sentido prático, pode-se inferir da ontologia judaica da cria-
ção uma grande ênfase na adoração de Deus. Este culto de adoração
reflete o dualismo da ontologia. De um lado está a comunicação di-
reta e franca com Deus na devoção e oração; do outro a adoração que
se exprime pela prática da Torá e na difícil travessia da complexida-
de da vida, resultante da relação interativa e simétrica com Deus,
problemas que dizem respeito eminentemente à responsabilidade
pelo mal e pelo bem no mundo.

8.3.5. Idéias ontológicas cristãs

O cristianismo partilha com o judaísmo o tema ancestral da


criação do mundo inteiro por um Deus Uno. Talvez mais do que
o judaísmo, o cristianismo interpretou esse tema de acordo com
uma grande variedade de construções filosóficas. A elaboração de
Orígenes foi analisada em 6.4. O tema da criação é comum a mui-
tas formas de hinduísmo, e a dependência do mundo manifesto
de uma fonte original tem casos análogos na religião chinesa. O
elemento ontológico especial na maioria das correntes do cristia-
nismo tem a ver com o papel de Jesus, que o prólogo do Evange-
lho de João identifica como a encarnação do Logos, por meio do
qual se dá toda a criação. Certamente houve muitas especificações
a respeito do que isto poderia significar, muitas vezes envolvendo
complexas doutrinas de Deus como Trindade. Todavia, a posição
ontológica particular ao cristianismo afirma que, sendo o mundo
constituído pelo Logos divino, ele não pode ter uma existência in-
dependente, acima ou contra Deus, ao modo deísta. Com efeito, o
caminho para a unidade entre os seres humanos e Deus é estabe-
lecido pelo Logos. Em termos práticos, supõe-se que seguir Jesus
como a encarnação do Logos conduz o fiel a uma harmonia apro-
priada com Deus. Esse traço ontológico particular ao cristianismo
tem, surpreendentemente, uma estreita correlação com a concep-
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 291

ção ontológica chinesa de um mundo que se origina de seu próprio


fundamento interno incipiente; mas enquanto a religião chinesa
enfatiza o mundo e seu fundamento, o cristianismo enfatiza, ao
contrário, Deus como Criador, cuja ação criadora é precisamente
o mundo, formado pelo Logos e guiado temporalmente pelo Espí-
rito Santo.
A perspectiva do mundo na maior parte das formas de onto-
logia cristã diz que tudo no mundo é potencialmente interpretá-
vel como o Logos ou Deus e, assim, como um ponto de conexão
na potencial unidade existencial entre Deus e o ser humano, espe-
cialmente na medida em que cada coisa tem um modo próprio de
pureza. O cristianismo neoplatônico postula uma teoria filosófica
específica sobre a maneira de encontrar Deus no mundo. Todavia,
em quase todas as correntes do cristianismo antigo, medieval e mo-
derno, verifica-se um jogo ontológico com o duplo sentido do nome
Jesus Cristo: de um lado, o Jesus histórico a partir do qual a Igreja
Cristã data sua existência; de outro, o Logos ou princípio cósmico,
que Jesus teria encarnado e que subseqüentemente é entendido de
acordo com os símbolos de Jesus Cristo. Colocada em outro quadro
simbólico, a perspectiva cristã do mundo o afirma como a plenitude
divina, uma noção central para a mente científica de Isaac Newton
e, como vimos em 8.2.6, para a noção islâmica da racionalidade do
mundo.
A perspectiva ontológica cristã do mundo, como plenitude
divina ou como formado pela divindade criadora, guarda notáveis
paralelos com algumas formas de hinduísmo, como por exemplo o
Bhagavad Gitâ, capítulos 8 a io. Esse paralelismo não é enfraque-
cido pelo fato de o cristianismo reconhecer apenas uma encarna-
ção, enquanto o hinduísmo reconhece muitas. Há também algum
paralelo com a perspectiva chinesa do mundo como um campo de
possibilidades harmônicas nas quais a liberdade espontânea pode
ser exercida: o paralelo é dado pelo fato de que a liberdade espon-
tânea provém de um fundamento incipiente, do mesmo modo que
os cristãos acreditam que a ação responsável exprime a divindade
interior ao homem. Enquanto a ontologia cristã leva com freqüên-
292 =— CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

cia a equacionar a liberdade humana com a ação divina (a moderna


teologia do processo é um exemplo contrário a esta tendência), fa-
zendo da busca da responsabilidade uma maneira de intensificar
a união com Deus, o cristianismo não partilha com o budismo a
idéia de que o livre exercício da responsabilidade seja a meta da
vida prática.
O cristianismo partilha com o judaísmo a concepção do mun-
do como uma esfera de responsabilidades para com o amor de Deus
e a realização da justiça. Não obstante, mais do que o judaísmo, o
cristianismo vê as responsabilidades como oportunidades de ligação
com Deus, na medida em que estas oportunidades são constituídas
em sua estrutura pelo Logos, sendo, portanto, capazes de assumir a
responsabilidade à maneira do Cristo. Daí o entendimento cristão
da prevalência da graça: embora a responsabilidade seja humana, é
Deus quem age na pessoa responsável (6.5.3).
Daí também a forma extrema do pecado, em contraste com o
judaísmo: afastar-se de Deus, como pensa Agostinho, cujo Logos
constitui o próprio ser da pessoa, é algo realmente muito sério, uma
denegação ontológica mais séria e debilitante do que simplesmente
aceder à inclinação para o mal.
Embora partilhe com a religião chinesa a idéia do mundo como
um campo de oportunidades para a ação responsável, o cristianis-
mo acentua a possibilidade de alienação em relação ao mundo e seu
fundamento, mais do que é comum na religião chinesa. Metáforas
de desarmonia destrutiva e mesmo autodestrutiva servem para des-
crever o mal no contexto chinês; as metáforas cristãs dizem respeito
à contradição ontológica interior ao eu e à contradição da unidade
entre o eu e Deus.
A conseqüência prática da ontologia cristã revela-se na bus-
ca da santidade pela aquisição da graça divina neste mundo. Para a
maioria, isto significa viver dentro da Igreja, que transmite a graça
sob a forma de encontros simbólicos com Jesus, com os santos, com
os tempos e lugares sagrados, nos sacramentos e assim por diante.
Mas adquirir a graça significa também encontrá-la na natureza e nos
ROBERT CUMMINGS NEVILLE ----=
=-- 293

acontecimentos da vida social, respondendo a ela pelo crescimen-


to na santidade. Este traço cristão é notavelmente parecido com o
projeto neoconfucionista de tornar-se sábio pela aquisição do prin-
cípio inerente a todas as coisas. As práticas efetivas de santidade no
cristianismo podem ter várias semelhanças com as do budismo, in-
cluindo meditação, vida monástica e mesmo o ascetismo; algumas
seitas budistas pregam o celibato, como as seitas cristãs discutidas
em 6.6.2. A ênfase ontológica cristã na presença gratuita de Deus no
mundo auxiliando os seres humanos é diferente da não-ontológica
— mas piedosa — ênfase budista sobre a graça do Senhor Buda,
em que ela é normalmente representada como meramente um meio
conveniente de pensar.

8.3.6. Idéias ontológicas islâmicas

A principal idéia ontológica islâmica, com efeito a idéia prin-


cipal de todo o Islão — tão importante é a questão ontológica aqui
— diz que o mundo inteiro é totalmente dependente de Deus, seu
criador. A dialética interna do Islão envolve a definição das frontei-
ras do mundo por meio de "casos-teste" de idolatria, shirk. A disputa
entre Mu'tazilitas e Ash'aritas exposta em 7.4.2.1 a 2, concernente à
natureza criada ou incriada do Corão, talvez seja o caso-teste central.
Uma das questões fundamentais é a negação da multiplicidade em
Deus, e isto significa negar partes determinadas de Deus que seriam
diferentes umas das outras. Por isso, mesmo os Ash'aritas afirmaram
que a Palavra do Corão expressa em palavras ditas e escritas é con-
tingente e criada, ao passo que a Palavra eterna de Alá é um manda-
mento sem multiplicidade interna (7.4.2.2).
O islamismo e o judaísmo concordam vagamente que o mun-
do inteiro seja contingente diante do Deus criador, partilhando
textos centrais a respeito deste tema. Mas por causa da sua feroz
insistência na unidade de Alá, o Islão especifica que o criador é
não-múltiplo ou simples, pelo menos tanto quanto isso pode ser
concebido (7.4). O judaísmo, em contraste, concebe o criador
muito mais em termos pessoais, com propósitos e pesares e, em
especial, com uma tensão entre justiça e misericórdia; para os ju-
--- CATEGORIAS COSMOLÓGICAS
=--
294—

deus, dizer que o Senhor é Um, é afirmar a integridade e a orga-


nização da Pessoa divina, não defender uma não-multiplicidade
interna. O judaísmo foi menos influenciado do que o islamismo e
o cristianismo pela tradição filosófica helenística, com suas inter-
pretações conceituais abstratas da natureza do criador e da relação
criador-criatura.
O islamismo e o cristianismo partilham profundamente do
compromisso com a posição ontológica que afirma o mundo como
criação de Deus, sendo ambos também formados pela dupla corren-
te originada do pensamento semítico da Bíblia hebraica e da filoso-
fia grega antiga e helenística." Diferentemente da enorme pressão
retórica do Islão sobre a unidade divina, a retórica cristã tem sido
trinitária, afirmando uma multiplicidade de Pessoas divinas no inte-
rior da deidade. Com efeito, numa das linhas do pensamento cristão
que enfatiza a "Trindade imanente", as três Pessoas são vistas como
interiores à divindade, eternamente separadas do mundo e da ati-
vidade criadora de Deus; esta linha dominou os grandes concílios
do quarto século e foi recebida como a posição ortodoxa pelos pri-
meiros pensadores islâmicos. Todavia, outra linha do pensamento
trinitário, chamada "trinitarianismo econômico", atribui a distinção
de três Pessoas à relação entre o Criador e o mundo criado. Recente-
mente, Catherine Mowry La Cugna sustentou que esta foi a posição
mais difundida durante todo o período patrístico."

O elenco de concepções filosóficas que articulam o trinitaria-


nismo econômico superpõe-se de muitos modos interessantes ao
elenco das concepções islâmicas da relação Criador-criatura, com os
debates sobre o estatuto do Verbo como Segunda Pessoa da Trindade
lembrando o outro debate entre Mu'tazilitas e Ash'aritas. A insistên-
cia de Aristóteles sobre a simplicidade auto-suficiente, as metáforas
neoplatônicas da criação como transbordamento da plenitude e os
diferentes modelos de creatio ex nihilo competiram, tanto no isla-

"Haq, op. cit.


'Catherine Mowry LaCugna, God for Us: The Trinity and Christian Life (San Francisco: Harper
Collins, 1991).
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 295

mismo quanto no cristianismo, para oferecer conceitos adequados


da dependência do mundo em relação ao Deus-Criador, ao mesmo
tempo defendendo também que Deus é genuinamente revelado em
um Verbo divino expresso no mundo. O islamismo, é claro, nunca
identificou essa Palavra no mundo com uma pessoa que a encar-
nasse, como afirma o cristianismo a respeito de Jesus. Mas, no que
tange à relação Criador-mundo, os paralelos (talvez surpreendentes)
entre as dialéticas islâmica e cristã são expostos na teologia de To-
más de Aquino. Influenciado pela interação direta com os filósofos
islâmicos bem como pelos elementos neoplatônicos e aristotélicos
de sua própria tradição de origem, Tomás começa a sua Summa com
uma discussão da existência e da unidade simples de Deus, relegan-
do as distinções trinitárias a uma posição secundária, tornando-as
filosoficamente negligenciáveis.' 3 Tomás concebia as disposições de
Deus como não-múltiplas no interior da simplicidade divina, múl-
tiplas somente enquanto expressas na criação. Deus pode conhecer
criaturas separadas, conhecendo sua simples origem dentro da dis-
posição criativa, não por distingui-las por meio de atos separados de
conhecimento. Assim, em muitos aspectos a posição de Tomás tem
mais em comum com o Islão Ash'arita do que com o trinitarianismo
imanente dos concílios cristãos do quarto século. Ainda que nossa
discussão de seminário não tenha explorado em detalhe os aspectos
filosóficos da relação Criador-mundo nem no islamismo nem no
cristianismo, ela indicou que esta linha de investigação é capaz de
render muitos frutos para a pesquisa comparativa.
O Islão partilha com o Advaita Vedãnta a idéia ontológica de
que o mundo múltiplo é totalmente contingente em relação a Deus
como Criador. Daria outro projeto de pesquisa interessante explorar
os usos vendânticos das concepções de I'svara como criador, e da
distinção entre Saguna Brahma (com qualidades) e Nirguna Brahma
(sem qualidades) como tentativas hindus de afirmar a total depen-
dência do mundo, ao mesmo tempo em que a possibilidade de algum
conhecimento do criador no mundo criado, um projeto semelhante

"Ibid., cap. 5.
--=- - CATEGORIAS COSMOLÓGICAS
-
296-

ao do Islão. A grande diferença entre o Islão e o Advaita Vendãta


nessa questão tem a ver com o mundo. O Islão tem uma visão for-
temente realista e objetiva do mundo da natureza e da sociedade,
demonstrando pouca paciência com concepções da experiência or-
dinária como mãyã. A principal tese do Advaita Vedãnta, acerca da
importância em discriminar o Brahma não-dual no interior do cam-
po dual de mãyã, desloca a questão religiosa central precisamente
para aquilo em que o Islão tem dificuldades, quer dizer, a manuten-
ção do limites do humano em relação a Deus, e o combate às reivin-
dicações pessoais de uma presença divina, ambas modalidades de
shirk; veja 7.5 sobre o problema dos místicos sufis. Em outras plavras,
a afirmação vaga comum da relação Criador-mundo é especificada
dualisticamente no Islão e não-dualisticamente no Advaita Vedãnta.
A ontologia da religião chinesa é epistemologicamente realista,
como a do Islão, mas sem a preocupação em definir uma transcen-
dência para o fundamento criativo, como este último, por meio de
uma forte distinção cujos limites são marcados pelo shirk (ou ido-
latria) potencial. Ao contrário, a religião chinesa internaliza o fun-
damento da Unidade do cosmos, fazendo dele um nível mais pro-
fundo da multiplicidade incipiente. De fato, em algumas expressões
centrais da religião chinesa não há uma única distinção entre o fun-
damento e o mundo múltiplo, mas uma série de ordens incipientes
em latência; nesse sentido, Zhou Dunyi descreveu o não-ser (wuji),
o ser (taiji), o yang, o ying, os elementos e as dez mil coisas como
gerando uns aos outros sucessivamente, correspondendo somente
o último termo à expressão do mundo múltiplo dos processos orgâ-
nicos.' 4
Dado que a corrente budista Mâdhyamaka aqui estudada atri-
bui os temas ontológicos às funções subjetivas da experiência hu-
mana, ela não dá ocasião para comparações interessantes com o Is-
lão no nível ontológico, exceto neste único ponto: uma ontologia
realista não é, em última instância, importante para esta abordagem
budista da condição humana.

14 Chan, op.cit., 463.


ROBERT CUMMINGS NEVILLE ------- 297

A perspectiva da vida derivada da ontologia islâmica, da total


dependência do mundo em relação a Alá como criador, tem o que se
pode chamar de três dimensões. A primeira e mais óbvia dimensão é
dada pela completa e total dependência de cada pessoa e dos grupos
sociais, como a família e o Estado, em relação a Alá, reconhecendo
e testemunhando devidamente essa dependência (7.1). A segunda
dimensão é o compromisso de seguir a Shari'a em todas as ações,
pessoal e politicamente. Como escreve Haq (7.3), ser humano é vi-
ver sob a tutela da obrigação, encarando, portanto, a vida como uma
esfera de obrigações. Essa dimensão faz parte da primeira enquan-
to um dos meios de submeter-se a Alá. A terceira está associada ao
sufismo e significa encontrar e adorar Alá no seio do mundo, com
todos os riscos de shirk que isso implica (7.s a 6).
Todas as religiões que estudamos consideram a vida como uma
esfera de ocasiões para a responsabilidade, e esta vaga concordân-
cia de perspectivas deriva tanto de suas idéias de unidade, valor e
causalidade, quanto de suas idéias de ontologia. Diferentes aspectos
das diversas especificações do tema responsabilidade são discutidos
neste capítulo, nos contextos apropriados. O ponto a ser enfatizado
aqui, que diz respeito à perspectiva originada das idéias ontológicas
do Islão, é que o fundamento e a meta da exigência de responsabili-
dade é a relação ontológica entre os seres humanos (o mundo, mais
genericamente) e Alá, seu criador. Esta consideração não é de muita
importância para a religião chinesa e o budismo, pelo menos não
para as modalidades que estudamos. Várias formas de hinduísmo,
inclusive o Advaita Vedãnta, reconhecem que o fundamento da obri-
gação e o conteúdo contingente das obrigações de cada pessoa têm
origem na contingência da vida humana em geral em I'svara como
Criador; há, com efeito, um elemento religioso na obrigatoriedade
da obrigação de uma pessoa, como descobriu Arjuna no Bhagavad
Gitâ. Mas a busca da obrigação não é o coração e a alma da religio-
sidade advinda do estatuto ontológico humano, como o é no Islão.
Judaísmo, cristianismo e islamismo partilham de certos temas
derivados da concepção comum de Deus e do mundo criado. Estão
de acordo em que se deve amar o Criador com o coração, a mente,
=----
298— - CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

a alma e as forças, submetendo-se inclusive à vontade divina, a pri-


meira dimensão. Concordam que a vida social deve ser estruturada
sobre a Palavra de Deus, especificando diversamente esta Palavra
como Torá, Cristo-Logos e Alcorão-Sharra, a segunda dimensão. E
suas correntes místicas concordam que Deus pode ser encontrado
no mundo e na alma humana, ainda que o tema seja diversamente
especificado em cada uma das tradições, a terceira dimensão.
Mas o Islão ressalta mais do que outros que a ênfase na obri-
gação é definidora do estatuto ontológico dos seres humanos (7.3).
As outras duas tradições monoteístas não negariam este ponto, mas
amenizariam a sua força. Neste sentido o judaísmo atribui a Deus
alguma responsabilidade sobre o mal, enquanto que o Islã tende a
transformar o sentido do mal, afirmando que ele serviria ao propó-
sito de Deus como parte do processo de maturação dos seres huma-
nos (7.6). O cristianismo ameniza o peso dessa questão ao dizer que
mesmo o fiel cumprimento das obrigações pode ser fragmentado e
frustrado, devendo ser ele entendido em termos de uma relação com
Deus, ao passo que o islamismo não tem dúvida de que os propósitos
de Deus estejam sendo cumpridos na história. Na perspectiva judai-
ca, a vida moral histórica é uma questão embaraçosa; na cristã, algo
em nada recompensador; na perspectiva islâmica, entretanto, ela é
triunfante.
A implicação teórica da ontologia islâmica a respeito da condi-
ção humana determina que deveria ser racionalmente possível (por
meio da figh) conformar-se a um plano divino consistente (7.3.3).
Sem desconsiderar a ambigüidade da casuística e a natureza falível
dos julgamentos especificamente jurídicos, o Islão busca conceber
o mundo como a expressão consistente de uma Vontade moral.
Como já foi observado anteriormente, isto representa um impor-
tante impulso para a investigação científica. O judaísmo partilha
da fé do Islão na Providência de Deus, mas se debate com o fato
de que as instâncias que contradizem uma moral ontológica fun-
damental são tão fortes, de acordo com a sua própria interpretação,
que se torna difícil simplesmente explicá-las como propósitos ocul-
tos: a liberdade humana é um piso em falso para a concepção de
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 299

um universo ontologicamente moral e divinamente ordenado. O


cristianismo diz que o plano histórico ordinário do cosmos não é
moral, por mais que as pessoas se vejam obrigadas a torná-lo assim,
afirmando que a providência de Deus implica a transcendência des-
te plano histórico.
No nível prático, a ontologia do Islão implica, decerto, inten-
sa disciplina de adoração — oração cinco vezes ao dia para todos, e
não apenas para monges e freiras — e a conformação moral da vida
com a Lei. Esta prática tem paralelos no judaísmo e no cristianismo,
acompanhada, entretanto, com freqüência, pelo reconhecimento de
que tal intensidade está reservada para os heróis, não para o conjun-
to dos fiéis.

8.4. Valor

A categoria do valor do cosmos e do ser humano como parte do


cosmos é especificada por diferentes abordagens no interior das tra-
dições religiosas. Mas, no que tange à condição humana, o sentido
vago de valor relaciona-se com o modo de tornar boa a vida humana,
dada a estrutura de valor do cosmos.

8.4.1. Idéias chinesas de valor


A concepção chinesa de valor em nível cosmológico é expressa
pelas metáforas de harmonia e unidade (2.1). Uma coisa é boa em
virtude de sua capacidade de harmonização com o todo. As coisas
são tão melhores quanto mais estejam em harmonia com o processo
cósmico que articula o Um (2.2). Comentando um esboço anterior
deste capítulo, Miller coloca a questão enfatizando o conceito de
natureza:
A coisa mais importante a dizer, eu creio, é que, devido à identidade de
constituição existente entre todos os processos humanos e o resto da na-
tureza, não há uma distinção significativa entre humanidade e natureza.
Conseqüentemente, o mais alto valor estético é colocado sobre coisas
que refletem mais de perto os padrões naturais e promovem a harmonia
do homem com o animal. Como conseqüência disto, a vida em todas as
300 - CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

suas modalidades é intrinsecamente valiosa e boa simplesmente porque


é natural. A natureza não é amoral, selvagem, perigosa e bela, mas exce-
lente quando plenamente harmonizada com os seres humanos.

A perspectiva da condição humana derivada da concepção


chinesa do valor cósmico como harmonia afirma que a vida é ba-
sicamente boa porque ela não pode deixar de ser um elemento da
harmonia maior. Mesmo quando as coisas saem erradas e as pessoas
sofrem, este sofrimento só é possível na medida em que é tolerado
pelos processos cósmicos, processos que podem estar, num nível lo-
cal, em oposição à harmonia, inclusive porque a consciência huma-
na tem a capacidade de obstruir aqueles movimentos da natureza e
da sociedade que em si mesmos são bons (2.3.3).
A conseqüência teórica para a condição humana das idéias
chinesas do valor como harmonia é dada pela articulação de uma
visão de mundo prática, que sublinha o significado pragmático de
ocasiões concretas para a realização da harmonia ou da desarmonia
(2.3.2). Coisas agradáveis assim o são porque criam, exercem ou ce-
lebram a conexão com a harmonia e o equilíbrio interior, refletindo
de modo particular padrões naturais na vida humana; a música e o
ritual, a arte e a poesia, a vida familiar e a culinária, por exemplo,
são articuladas como expressões da harmonia. Contrariamente, as
dores da vida são articuladas na visão de mundo chinesa como ele-
mentos de desarmonia, ruptura e desequilíbrio interior. A partir da
idéia ontológica chinesa de uma unidade incipiente e eterna, a har-
monia é interpretada tanto horizontalmente, como uma sucessiva
harmonização dos processos ao longo da cadeia cósmica, quanto
verticalmente, como uma abertura e uma sinceridade espontâneas
em relação às raízes ontológicas (2.3.3).
As conseqüências práticas para a condição humana desta vi-
são do valor como harmonia têm relação com as práticas religiosas
de cumprir ou restaurar as harmonias externa e interna, conforme
discutido em 2.3. O propósito prático é fazer com que seja possível
desfrutar de harmonia tanto com o resto do cosmos como também
com os fundamentos espontâneos do próprio ser.
ROBERT CUMMINGS NEVILLE --
--=-- 301

8.4.2. Idéias de valor no budismo

A abordagem budista acerca do valor é bastante diferente da


chinesa. Mais do que tratá-lo como característica das coisas no mun-
do ou do mundo como um todo, que em geral os chineses percebem
como bom, budistas de quase todas as escolas enfatizam os mecanis-
mos subjetivos de criação de valor.
A primeira abordagem de valor na análise budista examina os
valores impostos por nossos apegos. Estes, em especial, são falsa-
mente entendidos como valores, sendo de fato "desvalores" ou va-
lores negativos e danosos. Há, finalmente, três espécies de valores/
"desvalores" derivados do apego, correspondentes aos três níveis de
sofrimento analisados em 3.2. No primeiro nível, encontram-se os
simples prazeres ou dores que agradam ou machucam; no segundo, os
valores e "desvalores" assim concebidos e designados pelo fato de sua
impermanência; e finalmente, no terceiro nível, aqueles valores que
provêm do aspecto profundamente ilusório da identidade pessoal.
Uma segunda abordagem budista do valor implica uma reava-
liação instrumental das coisas, vistas como meios ou impedimentos
para a libertação. O que pode ser bom para a libertação de algumas
pessoas pode ser prejudicial para outras: o valor de uma coisa é ins-
trumental e contextual. Essa abordagem instrumental explica algu-
mas das mais curiosas avaliações associadas ao budismo, como por
exemplo o trabalho servil e enfadonho que quebra o ego nos mostei-
ros Chan ou os "excessos" do tantrismo sexual.
Uma terceira abordagem do valor no budismo afirma que, de-
pois que todas as análises e práticas subjetivas apontadas acima são
reconhecidas, ainda há bens e males mais ou menos objetivos neste
mundo, e se deve prestar atenção neles na hora de definir o próprio
rumo na vida. Por exemplo, o "nobre caminho octuplo" afirma a im-
portância de uma vida moral e "limpa" como condição para o desen-
volvimento espiritual. Tendo em vista as condições sociais, a justiça
é melhor do que a injustiça, a liberdade pessoal é melhor do que a
prisão política, a saúde é melhor do que a doença. Os budistas de-
vem estar comprometidos com esses valores, mesmo sabendo que,
302 CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

no caminho para a liberdade plena, a opressão, a prisão e a doença


podem ser instrumentos tão salutares quanto os seus opostos, con-
forme vimos anteriormente na segunda abordagem do valor. Para o
budismo, uma pessoa perfeitamente livre terá maior discernimento
sobre o que é pública e objetivamente um valor do que uma pessoa
confundida por fortes apegos. Mas o budismo, em contraste com
o pensamento chinês, não vê na análise de tais valores objetivos
nenhuma relevância religiosa. Um budista pode envolver-se numa
discussão meta-ética sem reconhecer, entretanto, qualquer relevân-
cia religiosa na discussão.
Do ponto de vista do budismo, atribuir valor às coisas signifi-
ca deixar-se enredar pelas estruturas do apego. O budista vê as coi-
sas no caminho da libertação, como tendo um valor ou "desvalor"
instrumental para sua própria libertação e para a libertação dos ou-
tros seres sensíveis. Os budistas que forem suficientemente livres
para reconhecer a importância da responsabilidade na vida pública
olham para o valor real das coisas num sentido objetivo, mesmo se
estes valores desempenham um papel especial na escravidão ou li-
berdade espiritual.
O fato de que as duas primeiras abordagens encaram o valor
como projeção humana ou em seu aspecto instrumental já expressa
uma visão teórica de como o mundo cresce em valor por causa da
subjetividade humana. Este é um modo de dizer que, para o budis-
mo, em contraste com a maioria das outras religiões, a apreciação
valorativa intrínseca à religião é função da subjetividade e não de
um caráter objetivo do mundo.
O aspecto mais íntimo da abordagem budista do valor aparece
na dimensão prática. A prática budista, como incluída nas Quatro
Nobres Verdades, especialmente a quarta, tem a finalidade de dis-
solver os valores que derivam do apego. Ela assim o faz buscando
e evitando coisas cujo valor instrumental para a libertação seja res-
pectivamente positivo ou negativo, concluindo com uma aprecia-
ção pública ou de senso comum das coisas como boas ou más para a
vida, quando encarada do ponto de vista da iluminação. Enquanto a
prática chinesa tem como finalidade transformar as verdadeiras co-
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 303

nexões da pessoa com o resto do mundo e sua unidade subjacente,


as práticas budistas objetivam transformar a atitude da pessoa com
relação ao mundo para que as coisas sejam estabelecidas em seus
devidos lugares (3.3).

8.4.3. Idéias de valor no hinduísmo

A exemplo do budismo e diferentemente da religião chinesa,


o Advaita Vedãnta do Vivekacúdãmaryi não se coloca como tarefa o
questionamento da razão do valor ou "desvalor" objetivo das coisas.
O Advaita reconhece os vários elementos atuantes na experiência,
relacionado-os ao problema religioso e à sua solução.
O capítulo 4.1 menciona a apreensão do discípulo diante do
tormento do fogo de samsâra e o quanto ele anseia pela doce fala
do guru. Mas todos estes valores são funções de mãyã (4.6), dos dua-
lismos que devem ser deixados para trás pela verdade do Advaita.
Mas isto não quer dizer que não exista em mãyã uma distinção real
de valores. Isto significa apenas que, quando corretamente percebi-
das como Brahma, as coisas de valor não devem ser dualisticamente
separadas do "desvalor". Assim o adepto fica em paz com Brahma a
despeito das manifestações deste em mãyã (4.6). Todavia, Brahma
não é neutro ou vazio no que diz respeito aos valores. Ele é a bem-
aventurança, assim como o ser e a consciência (satcitananda), na me-
dida em que a experiência da beatitude não é dada pelo próprio self
do sujeito, posto que é transcendente (4.3) o self verdadeiro; Brahma
é beatitude pura, de modo que muitas formas de misticismo cristão
e sufi, por exemplo, o identificariam como um meio específico de
gozar da plenitude da bondade em Deus.
Segundo o Advaita Vedãnta (4.2.1), as pessoas comuns, viven-
do dentro do mundo que discrimina valores, dentro de mãyã, são
infelizes mesmo a despeito das melhores intenções, na medida em
que estão alienadas de seu verdadeiro self Para o brâmane do sexo
masculino, o projeto de realizar o verdadeiro self ern Brahma resulta
do despertar para o caráter ilusório do mundo em sua dor e aliena-
ção, e da promessa de uma realidade maior, visível no guru. Essa
304 CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

perspectiva sobre o mundo, que encara os valores ordinários como


funções problemáticas da ignorância, é semelhante, em sua percep-
ção do prazer e da dor, à primeira abordagem budista. Mas enquanto
o budismo interpreta o erro como a imperrnanência enganosa e fal-
ta de identidade vazia das coisas, o Advaita Vedãnta vê o erro como
a não discriminação entre a realidade não-dual e os dualismos apa-
rentes de mãyã. O mundo do Advaita Vedãnta convida a uma cor-
reta compreensão; para o budismo, o mundo convida à cessação do
desejo de compreendê-lo em seus próprios termos. Como foi men-
cionado anteriormente, o Advaita Vedãnta olha para a estrutura de
valor do mundo de mãyã como uma oportunidade de desenvolver o
discernimento, mas não como uma chance de melhor harmonizar
as coisas, como é o caso dos chineses.
O Advaita Vedãnta diria que o valor não tem nenhum caráter
intrínseco a não ser quando relacionado à beatitude de Brahma, se é
que isto conta. Antes, os valores das coisas no mundo são funções de
más discriminações dualísticas que constituem o mundo de mãyã.
Para os que não tomaram consciência do caráter não-dualístico da
realidade, aqueles valores são aparentemente reais, norteando todas
as suas atividades, desde cuidar da casa até assumir a vida religiosa.
Mas para o adepto de uma "teoria de vida" baseada na verdade não
existe nenhuma teoria religiosamente interessante sobre os dife-
rentes valores das coisas e sua importância. Pelo contrário, o adepto
vive em contínua discriminação, "ouvindo, sabendo, fazendo, mas
não especulando" (4.6).
A conseqüência prática da abordagem Advaita do valor diz
respeito à orientação de uma pessoa apropriada (um homem brâ-
mane inteligente, com os textos necessários e um guru à dispo-
sição) para o abandono das considerações pragmáticas da vida,
determinadas como são por mãyã, e a dedicação ao estudo do
Vedãnta. O estudo visa transformar o próprio self de tal modo que
ele não seja nem obstruído nem ajudado pelos valores de mãyã,
capacitando-o para ver Brahma por meio deles. Assim é possível
viver no interior daquilo que os outros vêem como mãyã sem ser
enganado por ele.
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 305

8.4.4. Idéias judaicas de valor


O judaísmo concorda com a religião chinesa na consideração
do mundo e seu conteúdo como bons. Isto se dá porque o mundo é
visto como o produto de um criador bom (5.1.2). O valor do mundo
reside no mundo e não é imputado a ele meramente porque Deus o
criou. Como diz o primeiro capítulo do Gênesis, Deus olha para as
coisas criadas e vê que elas são boas. A bondade do mundo reflete a
bondade de seu criador. Assim o mundo pode ser visto como uma
expressão da bondade, beleza e glória divina. O judaísmo não está
associado a uma teoria filosófica particular da natureza da bonda-
de, como por exemplo a teoria chinesa do valor como harmonia.
Na maior parte dos casos, a bondade do mundo é medida pela sua
adequação ao desenvolvimento da vida humana. Mas a bondade do
mundo não é limitada ao espaço domesticado pela habitação huma-
na. Os céus por si mesmos proclamam a glória de Deus. O judaísmo
valoriza as coisas no mundo de modo real e objetivo, não se mos-
trando especialmente preocupado com projeções ou ilusões.
A abordagem judaica do valor do mundo dá origem a uma po-
derosa perspectiva sobre o mundo que, de um lado, deve ser desfru-
tado como obra pessoal de Deus e um dom para a vida humana e, de
outro, deve ser encarado de acordo com as determinações da Torá.
A vida vivida pelos judeus em acordo com a Torá é em si mesma um
louvor a Deus pela bondade do mundo. Ao mesmo tempo, o foco
rabínico sobre o estudo da Torá reconhece como são complexos os
valores do mundo e o quão complexas precisam ser as respostas das
pessoas a eles. O capítulo 5 acompanha a crescente complexidade
que perpassa a tradição. Assim, enquanto o judaísmo partilha da
apreciação geral do mundo presente na religião chinesa, ele acres-
centa a dimensão reveladora da Torá como guia para a navegação
através do mundo. A tradição rabínica de analisar detalhadamente
os valores vividos e as respostas permitidas às diferentes situações
que se apresentam, é bastante semelhante à análise detalhada da
experiência com vistas à identificação de projeções egocêntricas
presente no budismo, assim como às detalhadas discriminações dos
seguidores do Advaita a respeito das ilusões. A problemática judaica
306 ----
-----=-- CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

não se refere, entretanto, à ignorância fundamental ou às projeções


ou ilusões do ego, mas antes a uma preocupação com o egoísmo,
a agressividade, a parcialidade e a falta de sabedoria, bem como ao
perigo implicado em leituras equivocadas da Revelação.
A conseqüência teórica da idéia judaica de valor, isto é, a idéia
de que o mundo é bom, é a de que a vida deve ser encarada com es-
perança de satisfação e felicidade. Isto significa que a vida deve ser
abraçada vigorosamente e com entusiasmo, e também com trabalho
árduo, para fazer com que as coisas boas aconteçam. Não há sinal
no judaísmo da noção de uma vida ilusória ou neutra em relação
aos valores, de modo que somente projeções experienciais pudes-
sem fazê-la ter a aparência de valor. Pelo contrário, para o judaísmo a
vida deve ser objeto de todas as energias do sujeito. E quando a vida
contiver mais problemas ou sofrimentos do que seria normal, surge
então a questão de saber o que é que está errado, uma questão de exa-
me de consciência ou de conduta ou mesmo uma discussão sobre o
verdadeiro propósito de Deus no caso em questão (5.3.3.2).
A conseqüência prática da abordagem judaica do valor, é claro,
constitui para o judeu no lançar-se na vida por meio da fiel obe-
diência à Torá. As prescrições para esta vida dizem respeito não so-
mente a modos positivos de considerar as coisas boas da vida, de
trabalhar para liberá-las, preservá-las e usá-las no louvor do Cria-
dor, mas também à restauração da aliança moral e da pureza ritual
quando estas são espoliadas. Embora todas as tradições religiosas
contenham cuidadosas prescrições práticas que procedem da sua
visão própria acerca dos valores do mundo, o judaísmo, talvez até
mais do que as outras com exceção do Islão, faz destas prescrições
a forma principal de sua prática religiosa geral. Para o judaísmo,
a idéia de que o mundo é bom, inclusive nós mesmos (ainda que
com algumas más inclinações), e de que esta bondade demonstra
a bondade de Deus, desdobra-se na afirmação de que deveríamos
viver na Aliança definida pela Torá para desfrutar, louvar e cumprir
nosso papel. As religiões chinesas acentuam mais a importância da
contribuição humana para a criação desse valor, não meramente
cumprindo os papéis determinados na Aliança, mas os papéis cons-
-- 307
--:--
ROBERT CUMMINGS NEVILLE==

titutivos do valor enquanto tal. Muito mais do que o budismo e o


Advaita Vedãnta, os pensadores judaicos acentuam a importância
religiosa de aproveitar, promover, reparar e resguardar as coisas
boas da vida, concebidas realística ou objetivamente, protegendo-
as contra o mal (5.3.3.1).
Embora os pensadores judaicos acenem para muitas situações
em que há uma valorização errônea das coisas, e discutam interna-
mente sobre a verdadeira medida e extensão da bondade do mundo
(conforme discutido no capítulo 5), eles veriam como impiedade a
interpretação budista de toda valorização da experiência como uma
projeção derivada do self, ou a interpretação chinesa do valor como
ilusão. Uma suspeita indevida acerca dos bens sensíveis do mundo
denega a bondade do Criador neles manifesta, assim como a bonda-
de do propósito divino para com a vida humana.

8.4.5. Idéias cristãs de valor

O cristianismo concorda em sua maior parte com as religiões


chinesas e com o judaísmo a respeito da bondade do mundo (6.1), e
sua história tem sido poderosamente moldada pelo tema platônico
de que simplesmente ser é ser bom. O cristianismo sublinha espe-
cialmente que a bondade do mundo não é um mero reflexo do cará-
ter do criador, a questão principal do judaísmo, mas a presença real
do criador neste mesmo mundo; este tema ligado à Encarnação foi
logo examinado pelo Evangelho de São João, tornando-se gradual-
mente um tema universal no ambiente cristão.
Da perspectiva cristã de valor, o mundo não é somente a mani-
festação, mas a presença viva de Deus, do espírito de Deus residindo
na natureza, na sociedade e nas pessoas. Por essa razão, o projeto
científico inicial da modernidade de tratar o mundo como algo isen-
to de valor teve um efeito devastador sobre a sensibilidade cristã. O
deísmo foi o primeiro passo em retirada, abandonando o princípio
de que o Logos reside no mundo enquanto criador de suas formas.
Mais do que isso, o valor passou a ser visto como meramente es-
tético e não cognitivo e, portanto, subjetivo, ou como constituído
308 CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

pela vontade moral humana (Kant); em qualquer destes casos, como


algo não revelado. Grande parte do cristianismo moderno floresceu
ou em formas que enfatizam sua dimensão moral, por vezes acom-
panhada de um misticismo estético, ou em formas que destacam o
simbolismo cristológico e pneumatológico de liturgias e outras prá-
ticas que não consideram as dimensões cognitivas da ciência como
algo religiosamente interessante.
A interpretação teórica cristã do valor corresponde à visão ju-
daica no que diz respeito à importância de um envolvimento profun-
do com a vida, enfatizando ainda a importância deste envolvimento
como uma forma de participar da presença de Deus no mundo.
As conseqüências práticas da idéia cristã de valor incluem
aquelas já mencionadas com respeito ao judaísmo, com os mesmos
contrates em relação às outras religiões. O contraste cristão com o
judaísmo na esfera prática é que o cristianismo não supõe que o valor
do mundo possa ser abraçado com total satisfação ou que o projeto
humano será devidamente recompensado na história. Ao invés dis-
so, o cristianismo considera que o valor das coisas no mundo é dado
simplesmente pelo que lhes é intrínseco, assim como pelo fato de
que elas levam à verdadeira realização humana na unidade com Deus.

8.4.6. Idéias islâmicas de valor

O islamismo concorda vagamente com a religião chinesa e o


cristianismo na noção de que o cosmos (assim como a vida huma-
na) é fundamentalmente bom, ainda que cada religião especifique
o tema de maneiras bastante diversas. O islamismo concorda com a
religião chinesa no ponto muito menos acentuado pelas outras reli-
giões de que há uma unidade para o bem do cosmos, que os seres hu-
manos participam de forma singular no bem cósmico, espelhando o
todo de alguma forma em suas vidas. A religião chinesa proporciona
um relato naturalista desta bondade cósmica enquanto o islamismo
atribui ambos, a bondade e a unidade do mundo, a seu criador. O
islamismo, o judaísmo e o cristianismo estão de acordo ao atribuir
especificamente a bondade do mundo a seu criador.
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 309

Como já foi observado, o islamismo tem muita mais confiança


do que o judaísmo em que o mal e o sofrimento aparentes no mun-
do estejam integrados numa bondade divina maior. O judaísmo, nas
formas estudadas aqui, salvo em alguns pensadores do século XX,
continua a afirmar a fé em Deus apesar da incompreensibilidade do
mal, incluindo nesta fé a confiança de que Deus de alguma forma
manterá as promessas que fez. O islamismo, à luz de sua crença na
onipresença de Deus, está menos disposto a admitir a incompreen-
sibilidade do mal e do sofrimento. Para o muçulmano, cada coisa na
criação, mesmo o mal, participa de Deus (7.6).
O islamismo partilha com o cristianismo não somente a crença
de que o mundo é bom porque Deus o criou, mas também muito da
tradição filosófica européia derivada de Platão de que meramente
ser é já ser bom. No esquema neoplatônico, embora os elementos
materiais do mundo estejam muito distantes na escala da existên-
cia do Uno e da Alma, eles ainda transbordam de bondade: o mal
não tem realidade positiva. O cristianismo, na maioria de suas ela-
borações filosóficas, insiste que a bondade natural do mundo, sua
beleza e nobreza são finitas e fragmentadas, e que a vida humana
encarada somente a partir deste plano não tem qualquer garantia
de realização, por mais belas, graciosas e satisfatórias que sejam suas
partes; quando tomada na relação apropriada de transcendência em
relação ao amor do Criador, a vida humana participa da glória divina
que aperfeiçoa a vida na história. O Islão enfatiza mais a bondade
própria do mundo devido à presença de Deus nele. O islamismo
e o cristianismo partilham de uma série de interpretações místicas
de Deus no mundo e do mundo em Deus conforme relatado em
7.5, com um pequeno inconveniente, por parte do cristianismo, em
relação ao problema da idolatria. Ao menos para algumas formas de
cristianismo, especialmente aquelas interiores ao catolicismo roma-
no e ortodoxo, o mundo pode ser concebido sem idolatria como um
sacramento de Deus (um aspecto em relação ao qual a tradição cristã
reformada ou protestante demonstra alguma tensão).
A idéia islâmica de valor molda o mundo de maneira muito
semelhante ao judaísmo; quer dizer, o mundo deve ser saboreado
-
--= CATEGORIAS COSMOLÓGICAS
310-

pOr sua beleza e pela presença de Deus, e as pessoas devem trabalhar


ao máximo para seguir a guria e cumprir sua parte no plano. Mais
estético do que o primitivo ascetismo cristão ou o calvinismo, este
mais rigoroso e orientado para a ação do que muitas das formas do
catolicismo romano, o islamismo combina deleite e ação de graças
em sua perspectiva sobre o mundo com uma visão extremamente
rigorosa de que as pessoas são definidas por suas obrigações.
As implicações teóricas desta atitude incluem uma ênfase so-
bre a apreciação do mundo como beleza e expressão da divindade,
porém não em formas idolátricas. Assim como o cristianismo, o isla-
mismo enfatiza a ciência, incomodando-se entretanto com a moder-
na concepção ocidental de uma ciência sem valores.
As implicações práticas já foram mencionadas e comparadas
com as outras, a saber, uma abordagem estética da vida acompanha-
da de rigorismo moral.

8.5. Causalidade

A categoria de causalidade é difícil de ser definida vagamen-


te, exceto segundo a maneira aristotélica de concebê-la, quer dizer,
como algo que responde à questão do "por quê?". A suposição é a de
que a pergunta "por que?" se refere a mudanças, à ocorrência de um
padrão preferivelmente a outro, à composição, ao lugar existencial,
a propósitos, a valores, à existência, enfim, a qualquer coisa passível
de ser concebida como diferente do que é. Mesmo nessa expressão
vaga é necessário lembrar que a "coisa" a ser explicada é problemá-
tica em si mesma, como mostra a ênfase budista sobre o nada das
asserções sobre as coisas. Há muita diferença entre as maneiras
como as tradições religiosas compreendem a causalidade em rela-
ção à condição humana. A categoria de causalidade, como resposta à
pergunta do "por quê?", inclui a causalidade correlativa quando esta
é tomada em sua acepção explicativa, assim como causalidade linear
ou ontológica.

* N. do T. Optamos por traduzir "causation" por causalidade, para evitar o incômodo "causação" .
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 311

8.5.1. Idéias chinesas de causalidade


A compreensão chinesa de causalidade é extremamente im-
portante para o entendimento da condição humana, porque a es-
fera humana necessita ser harmonizada causalmente com o resto
do cosmos e com seus fundamentos espontâneos. Há duas formas
de metáforas para a causalidade tal como a considera a religião chi-
nesa. Uma é a explicação da mudança temporal em cujo processo
se encontram e divergem uma multidão de formas, não tanto num
estilo linear, mas em equilíbrio sincronizado (2.2). Esta explicação
analisa a causalidade como função dos intercâmbios entre os movi-
mentos elementares yin e yang, organizados como os 5 elementos,
os quais, por sua vez, se combinam e recombinam para formar as dez
mil coisas. A forma ondular da extensão yang e do retorno yin ense-
ja variações de amplitude e freqüência, dando lugar ao surgimento
de padrões diferentes, mutáveis, interativos e vibratórios (2.2). Al-
gumas dessas mudanças temporais são regulares, cíclicas mesmo,
como aquelas ligadas ao movimento das estrelas e da rotação das es-
tações, e os chineses levam esta concepção das seqüências naturais
até o ponto em que os elementos se transformam uns nos outros. A
causalidade correlativa, como analisada por Graham, Hall e Ames,'s
é deste gênero temporal, definindo temporalidade em termos de
padrões de processos simultâneos. Outras mudanças temporais são
irregulares e acidentais tais como os inesperados terremotos ou a
repentina aparição de bárbaros na montanha. Especialmente impor-
tantes para a dimensão religiosa da condição humana são as irregu-
laridades provenientes do egoísmo e da desarmonia. Miller, num
trabalho apresentado em seminário, escreveu:
Foram os cosmólogos de... Han quem primeiro conseguiram regulari-
zar os padrões de correspondência entre céu, terra e humanidade em
termos de cinco fases, um ciclo hierárquico eterno de ascensão e deca-
dência. O que tornou isto possível foi a compilação de histórias (a maior
figura intelectual e literária do Han, Sima Qian, foi um historiador) de
cuja análise puderam ser deduzidos padrões de interação entre céu, terra

'Ver Graham, op. cit.; e Hall e Ames, op. cit.


312 CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

e humanidade. Na cosmologia Han, mais interessante que a observação


da causalidade entre dois acontecimentos temporais sucessivos foi a ob-
servação da correspondência entre duas situações diferentes, mas tem-
poralmente simultâneas.

Correspondência mais que causalidade é o princípio essencial


da investigação, e um universo continuamente inter-relacionado
em vez de uma contigüidade temporal de objetos discretos é sua
pressuposição metafísica.
(Miller usa o termo "causalidade" num sentido mais estrito
do que o "Por que?" com o objetivo de contrastá-la com "correspon-
dência".)
A outra linha de causalidade na religião chinesa é a ontológica,
segundo a qual o fluxo temporal total, como analisado no parágrafo
anterior, resulta ele mesmo do ser ou Taiji, o qual por sua vez resul-
ta do não-ser. Dito de outro modo, a unidade primitiva do nada dá
origem à unificada e indiferenciada plenitude do ser que é articula-
do nas diferenciações entre yin e yang. Esta "linha" de causalidade é
geralmente expressa de maneira seqüencial, mas seqüências tempo-
rais reais não ocorrem fora das transformações yin e yang, e daquilo
que elas compreendem. Assim, essa segunda linha de causalidade é
expressa como espontaneidade, passível de ser apreciada em qual-
quer parte da seqüência temporal de causalidade (2.3.3). Isso é tema-
tizado pelos vários usos do termo sheng, que significa "dando origem
ou nascimento a".
As linhas de causalidade espontâneas e temporais são cruciais
para a compreensão da condição humana nas religiões chinesas.
A primeira articula a quebra da harmonia com as outras coisas do
cosmos assim como o mecanismo causal de reparação da harmonia,
conforme descrito na Prática diária exterior (2.3). A segunda articula
a relação dos seres humanos com a unidade do cosmos, com efei-
to a unidade primordial da qual depende a dança dos movimentos
produzidos espontaneamente; a alquimia taoísta, certos projetos de
sabedoria confucionista e certas meditações budistas visam reco-
nectar o indivíduo com o Um, como se dá na Prática diária interior
(2.3.1, 2.3.4). As linhas de causalidade temporal e espontânea não
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 313

podem ser separadas realmente porque cada coisa ou movimento


deve ser apreendido em ambas ao mesmo tempo. Essa unidade das
duas linhas de causalidade é em si mesma uma idéia vaga, porque as
várias escolas chinesas a descrevem de modo diverso.
A partir da compreensão chinesa de causalidade como tem-
poral e espontânea, a condição humana deve ser compreendida
primordialmente como um projeto. O projeto deve manter-se em
harmonia ao longo de ambas as linhas causais e, se esta harmonia é
quebrada, cabe a ele repará-la. O projeto pelo qual pode ser definida
a vida humana não implica necessariamente um empreendimento
agressivo ou criativo, mesmo que alguns elementos da religião chi-
nesa defendam de fato esta posição. Os confucionistas (2.3.2), por
exemplo, acreditam que os seres humanos precisam criar a civiliza-
ção baseados em convenções que definem a vida familiar, a respon-
sabilidade política, a amizade e outras coisas mais, com isto comple-
mentando e atualizando os excelentes potenciais fornecidos pelo
céu e a terra; de modo semelhante, os indivíduos necessitam ser
cautos e agressivos para criar seu próprio caráter. Outras correntes,
entretanto, enfatizam os elementos negativos do projeto humano,
a eliminação de preocupações e apegos egoístas, por exemplo, que
inibem a harmonização com as outras dez mil coisas e o retorno ao
Tao unificado no todo. O que está em questão nessa visão da vida hu-
mana como um projeto é a idéia de que, se cada coisa está constante-
mente mudando, o sujeito deve se engajar no constante movimento
de re-equilíbrio, ainda que seu propósito seja permanecer estável.
Esse é um dos pontos cruciais em que a linha espontânea de causa-
lidade coincide com a temporal: ser humano requer uma constate
atividade para manter-se estável em meio às incessantes mudanças
do cosmos.
As implicações da compreensão chinesa de causalidade tem-
poral e espontânea para a concepção teórica da condição humana
têm a ver com a observação da vida e a identificação das mudanças,
tanto regulares como irregulares. Como aponta Kohn (no caso japo-
nês 2.4.2), as datas de entrada e saída das estações são mais importan-
tes do que a temperatura na determinação do momento correto de
314 - CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

acender o forno. No momento de decidir o que fazer, determinar a


localização das coisas nos processos ativos e reconhecíveis da natu-
reza é da mais alta importância. Talvez mais do que qualquer disputa
metafísica acerca da prioridade do processo sobre a substância no
sentido aristotélico, a visão chinesa da vida no contexto da harmo-
nia e desarmonia dinâmica dos processos expressa um sentido bási-
co de causalidade.
No sentido prático, a idéia chinesa de causalidade determina a
adoção e execução de práticas que sustentam ou aprofundam a har-
monia da pessoa com a natureza, a sociedade e a harmonia original,
ou que servem para reparar a harmonia nesses aspectos. Música,
dança e ritual são exercícios de harmonização, que trazem concor-
dância e ressonância mútuas. Ginástica, dieta e a arte da medicina
chinesa são formas de recompor o equilíbrio. As técnicas do confu-
cionismo e do taoísmo mencionadas acima têm o objetivo de reali-
zar mudanças entendidas de acordo com a compreensão chinesa de
causalidade, incluindo a causalidade correlativa. Num comentário,
Miller escreve que "o que o chinês considera interessante no sentido
religioso é a relação entre terremotos, revoluções, pragas de insetos
e uma sarna no couro cabeludo".

8.5.2. Idéias budistas de causalidade


A questão da causalidade é também central para o budismo,
mas de maneira completamente diferente do papel que ela desem-
penha na religião chinesa. Elaborado nas mais primitivas escolas
para articular a impermanência das coisas, o conceito adquiriu
sua expressão metafísica detalhada na Madhyamaka de Nãgãrjuna
como a doutrina da pratãtyasamutpãda ou co-originação dependen-
te, sendo mais tarde ainda mais desenvolvido pelas escolas de Yo-
gâcâra para expressar a constante mutabilidade e instabilidade até
mesmo das idéias concebidas pela mente. Algumas das escolas mais
antigas admitiram a existência de uma continuidade no seio da
mudança, mesmo para a realidade idêntica a si mesma (Self-iden-
tical) de alguns elementos do darma. Mas, gradualmente, no tem-
po do florescimento do budismo nos primeiros séculos depois de
---
ROBERT CUMMINGS NEVILLE --:-=- 315

Cristo, analisados por Eckel no capítulo 3, a doutrina da causalidade


foi elaborada como se segue. De um lado, tudo muda e nenhuma
identidade é permanente. De outro, a mudança em si é literalmente
inconcebível se as coisas são compreendidas como tendo qualquer
espécie de identidade ou de ser próprio, uma das questões mais im-
portantes da metafísica de Nãgãrjuna. Portanto, a mudança tem de
ser compreendida de tal maneira que cada coisa que possa ser objeto
de investigação ou de referência verbal, possa ser reduzida às múl-
tiplas causas das quais depende; e cada causa é passível por sua vez
de ser decomposta ad infinitum. Assim, cada coisa, incluindo o todo,
está vazia de identidade própria. Os seguidores do Yogãcãra abando-
naram inclusive a referência aparentemente objetiva às coisas mu-
táveis presente no Madhyamaka (o argumento de Nãgãrjuna não
estava realmente comprometido com a referência objetiva, a não ser
hipoteticamente: se você acredita que as coisas substanciais mudam,
reflita mais uma vez), postulando a doutrina da co-originação de-
pendente até mesmo para a experiência mental que dentre todas é
a única acessível à análise. Conforme observado no capítulo 3 e an-
teriormente neste capítulo, a noção budista de causalidade é central
para a interpretação fundamental das Quatro Nobres Verdades.

O primeiro e mais óbvio ponto de comparação da doutrina


budista da causalidade é que, malgrado sua centralidade e desen-
volvimento, ela nunca foi transformada numa metáfora ontológica.
A religião teísta usa metáforas para dizer que Deus cria o mundo;
o hinduísmo, de uma forma ou de outra, diz o mesmo, admitindo
variantes interessantes, como a de que o mundo é o corpo ou dança
da divindade ou Brahma; mesmo a religião chinesa afirma que a
passagem temporal da causalidade analisável enquanto movimen-
tos yin e yang é em si mesma "gerada" por um Tao mais profun-
do ou o Um original. A noção budista de causalidade não só não
se estende nesta direção metafórica, como afirma aquilo que, em
muitos aspectos, é o seu oposto: a pratãtyasamutpãda é concebida
de tal modo que não há criação ontológica real ou dependência.
A causalidade não é invocada pelos budistas Madhyamaka como
um recurso explicativo do porquê das coisas serem como são, nem
316---- - - CATEGORIAS COSMOLÓGICAS
-----

como um princípio de razão suficiente, mas para desconstruir a


solidez das realidades vistas como tendo uma identidade-própria
aparentemente estável.
Um segundo ponto de comparação com a religião chine-
sa pode ser dado pela atitude budista de moldar as interpretações
causais a fim de afrouxar as conexões entre as coisas e assim criar
um espaço para a liberdade, como mencionado anteriormente. O
chinês, pelo contrário, olha para a causalidade com o objetivo de
identificar maneiras de acentuar conexões harmoniosas. Enquanto
ambas as religiões; a religião chinesa e o budismo, afirmam a in-
terconexão completa, a primeira toma esta observação como par-
te da apreensão de uma totalidade orgânica da realidade, ao passo
que a segunda deixa resolutamente de fazer esta inferência. Mesmo
para o budismo Hauyen, segundo o qual as jóias contidas nos nós
da Rede de Indra refletem-se umas às outras num espelhamento
mútuo infinitamente simétrico,' não existe qualquer sentido em
dizer que as jóias tenham um contato palpável com o resto do cos-
mos: entre elas há somente o espaço vazio e o novelo do karma. Para
a maioria das formas do budismo Mahãyãna, exceto a Theravada, e
em contraste com muitas formas de hinduísmo vedântico, também
o karma é vazio.
Da perspectiva da doutrina budista da co-originação depen-
dente, a vida humana, ao contrário do que pensa a religião chinesa,
não é um projeto. Acreditar numa identidade própria do sujeito,
necessária para organizar a vida como um projeto, é, para o budis-
mo, precisamente onde está o problema, na medida em que incor-
pora todos os erros implicados nos apegos que levam ao sofrimento.
Mais precisamente, para o budismo o indivíduo deveria aprender a
deixar de entender a vida na perspectiva de um ou vários projetos
humanos e alcançar a objetividade de ver a vida como ela é — um
vasto enxame de mudanças determinadas pela co-originação de-
pendente. Bem entendido, os budistas devem perseguir boas me-

16Ver Francis Cook, Hua-yen Buddhism: The Jewel Net of Indra (University Park: Pennsylvania
State University Press, 1977).
ROBERT CUMMINGS NEVILLE —==— 317

tas, como ter uma boa educação, construir uma casa ou tornar-se
um budista melhor. Com efeito, todo o sistema simbólico do bodhi-
sattva, segundo o qual aquele que faz o voto de tornar-se Buda deve
adiar o cumprimento de sua missão até que todos os seres cons-
cientes sejam auxiliados no caminho da iluminação, está voltado
para a realização de coisas no mundo. Apesar do voto, entretanto,
o caminho bodhisattava só pode ser trilhado se o sujeito abandonar
qualquer noção de um self comprometido com o voto; a idéia é a
de que ele se esqueça de seu self e transforme o voto num imenso
sentimento de compaixão pelos outros. Como disse Sung-bae Park,
a chave para o voto bodhisattva é a "fé patriarcal" de que já se é um
Buda e, portanto, alguém completamente cheio (ou vazio) de auto-
esquecim ento.' 7
Do mesmo modo, no nível teórico, a noção budista de causali-
dade implica na concepção dos acontecimentos do mundo como in-
trinsecamente relacionados a condições causais. Neste ponto, a pers-
pectiva budista não reivindica uma maior harmonia, mas o recuo e
o olhar para as atitudes das pessoas em relação às coisas mutáveis.
Mais exatamente, na descrição e apreciação das conexões causais a
ênfase budista está na abordagem da afirmação-negação, o caminho
do meio. Desde um ponto de vista religioso, a preocupação budista
não é criar ou romper as conexões causais, mas vê-las como vazias e,
portanto, como aberturas para a liberdade espiritual.
No sentido prático, as idéias budistas de causalidade conduzem
a práticas que rompem o apego aos projetos baseados na identidade
própria e que cultivam uma atitude de liberdade iluminada capaz
de considerar as coisas como elas são e reagir a elas apropriadamen-
te. Diferentemente das conseqüências que a religião chinesa extrai
de sua concepção de causalidade, que conduz à atividade, as conse-
qüências budistas têm a ver com o estabelecimento de uma nova
relação com o processo causal, incluindo aquele interior à própria
pessoa, para ser livre.

17Sung-bae Park, Buddhist Faith and Sudden Enlightenment (Albany: State University of New

York Press, 1983).


318 CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

8.5.3. Idéias hindus de causalidade


No Advaita Vedãnta, o tema da causalidade não ocupa um
lugar em nada semelhante à centralidade religiosa que ele tem na
religião chinesa e no budismo, na medida em que para os hindus
a causalidade faz parte do dualismo de mãyã. No interior de mãyã,
naturalmente, percebe-se muitos tipos de causalidade. O Advaita
Vedãnta (4.2.1) aceita a teoria das três gunas da mudança natural e
da causalidade, um tema ancestral claramente expresso no sãmkhya,
isto é especificamente diferente da (mas em geral paralelo à) con-
cepção chinesa de mudança e causalidade na natureza como a dança
de yin e yang entendidos como modelos vibratórios de Qi. A exem-
plo do budismo, os pensadores do Advaita Vedãnta acreditam no po-
der causal do karma e entendem o sucesso religioso como libertação
desse poder, ainda que num sentido diferente da libertação do bu-
dista. Como na religião chinesa, os pensadores vedânticos discutem
a problemática da criação ontológica do mundo, ponderando acerca
do que Brahma deve ser como Usvara para dar origem a um mun-
do material. Diferentemente da religião chinesa e do budismo, que
afirmam a universalidade da mudança causal e o caráter provisório
e convencional das identidades estáveis, o Advaita Vedãnta supõe
que a mudança causal é uma máscara da unidade e substancialidade
últimas e estáveis.
A força propulsora do Advaita, talvez em contraste com o Vi-
sistâdvaita Vedãnta, dirige-se ao aprendizado e discernimento da
verdadeira realidade não dual de Brahma em todas as dualidades
implicadas na causalidade natural, kármica e ontológica. Até a causa-
lidade pedagógica envolvida no projeto de transformação (bhavana)
é preliminar à discriminação da verdade não dual consumada pela
transformação. Nada disso significa que o Advaita esteja completa-
mente livre de modos causais, pois afinal se trata de uma escola de
realização pessoal. No entanto, sua interpretação da causalidade re-
jeita a dualidade que a causalidade parece implicar: para o Advaita a
causalidade é em realidade somente Brahma, uno e imutável.
O Advaita Vedãnta concorda com a religião chinesa, em con-
traste com grande parte do budismo (tendo em conta a ambigüi-
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 319

dade do projeto bodhisattva), na noção de que a vida pessoal é um


projeto sério, ao menos para os brâmanes do sexo masculino. O pro-
jeto consiste na compreensão, com implicações pessoais, sociais e
intelectuais, da verdadeira identidade entre a pessoa e Brahma. O
projeto de despertar para a verdadeira identidade resulta da perspec-
tiva acerca da vida gerada pela abordagem Advaita da causalidade.
Mas, naturalmente, a feliz realização do projeto elimina o dualismo
até em "perspectiva". A exemplo da "fé patriarcal" cultivada pelo bo-
dhisattva de que ele já é, desde o princípio, o Buda, a convicção do
seguidor do Advaita é que ele é e sempre foi somente Brahma; as-
sim, a exterioridade ou o dualismo implicados em ter um "projeto"
devem ser entendidos diferentemente, isto é, à luz da finalidade (a
iluminação), como não-duais.
No interior do reino de mâyâ, o Advaita Vedãnta aceita explica-
ções causais em relação à natureza e à sociedade apropriadas ao en-
tendimento das mudanças naturais e à manutenção das instituições
sociais que sustentam a vida familiar nas castas. Além disso, estas
explicações servem a uma cuidadosa pedagogia institucionalizada,
dirigida àqueles que participam do caminho Advaita Vedãnta. O
Vivekacúdãmani é um extraordinário instrumento pedagógico, como
descreve o capítulo 4. Os elementos causais da transformação pes-
soal que leva à compreensão da própria identidade com Brahma são
específicos do caminho Advaita Vedãnta. Mas eles permanecem ca-
racterísticos da dualidade de mâyâ. Em si mesmo, Brahma, entendi-
do como realidade única, não está sujeito a nenhuma transformação.
A prática dos seguidores do Advaita é tão engajada quanto a
busca dos taoístas pela unidade pessoal com o Tao ou mesmo quanto
o projeto confucionista de aquisição da sabedoria. É menos seme-
lhante à compreensão budista da iluminação, à idéia de uma mudan-
ça de atitude frente às coisas com o objetivo de evitar o sofrimento
e o aprisionamento causado por elas; ou à combinação do caminho
do meio entre afirmação e negação: para o Advaita Vedãnta existe
uma clara, convincente e unívoca verdade que, embora inexprimí-
vel, a não ser em termos dualistas e ilusórios, é ainda passível de ser
atingida. Ainda que falte ao Advaita Vedãnta o impulso da religião
320 - CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

chinesa para a transformação do mundo e sua harmonização, ele


partilha com ela e com o budismo a compreensão de que um adepto
plenamente consciente é plenamente livre e se sente em casa no
mundo.

8.5.4. Idéias judaicas de causalidade

O judaísmo nunca esteve vinculado a nenhuma teoria filosó-


fica religiosamente importante de causalidade natural, como acon-
tece com a teoria yin-yang dos chineses ou com a co-originação de-
pendente do budismo Mahãyãna. Desse modo ele sempre esteve
livre para pensar a causalidade nos termos da filosofia helenística,
da teoria alquímica medieval européia ou mediante categorias da
ciência moderna.
A questão de interesse para o judaísmo é a maneira com a qual
Deus interage com a esfera humana. Já tocamos algumas questões
referentes ao papel de Deus na criação das condições de sofrimento
e da inclinação humana para o mal. Neste ponto entra também a
questão dos milagres, intervenções divinas para a realização daquilo
que de outro modo, isto é, sem elas, não aconteceria. Mesmo pensa-
dores modernos do judaísmo, que acreditam no determinismo ou
quase determinismo da ciência moderna, ainda se perguntam como
Deus pôde permitir algo tão horrível como o Holocausto. Como
Deus pôde permitir um mundo em que as leis deterministas do san-
gue e da psique levam à produção do nazismo? Como Deus pode
permitir um mundo em que o povo de Israel é objeto de genocídio?
Enquanto pensadores não religiosos ou aqueles provenientes de re-
ligiões não monoteístas podem responder a essa questão dizendo
que o Holocausto foi simplesmente um trágico acidente, o resulta-
do de uma desastrosa e aleatória conjunção de várias formas sociais
e psicológicas de causalidade, os pensadores judeus são perseguidos
pela idéia de que Deus ou bem está envolvido na tragédia ou bem
simplesmente não existe (5.4.1). O envolvimento de Deus deve ser
entendido de acordo com ambos os relatos da criação assimétrica e
da aliança simétrica discutidos anteriormente no item referente à
ontologia.
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 321

A vida, para o judaísmo, certamente consiste num projeto de


viver de acordo com a Torá, com o objetivo de louvar a Deus e des-
frutar da criação. Para o judaísmo, a perspectiva causal, tanto no sen-
tido pragmático como no sentido de causalidade natural, tem duas
dimensões. Uma é viver perante Deus com uma conduta apropria-
da. Saldarini descreve a evolução desta conduta indo da integração
das três práticas, o sacrifício no templo, o estudo da Torá e as obras
de piedade, na direção de enfatizar de modo mais exclusivo o es-
tudo da Torá. O padrão desta causalidade comportamental é viver
conforme a lei. A outra dimensão, que perpassa a primeira mas não
se limita a ela, fala de um encontro mais direto com Deus, no qual as
coisas que acontecem nesse mundo são tomadas como atos divinos
intencionais e significativos, aos quais o ser humano responde. Essa
segunda dimensão de causalidade assume o aspecto de uma intera-
ção pessoal. Quanto à primeira dimensão, o judaísmo assemelha-se
a muitas religiões que frisam uma vivência conforme a lei ou darma.
Quanto à segunda dimensão, porém, o judaísmo difere das tradições
não monoteístas e concorda com as monoteístas segundo as quais o
relacionamento pessoal com Deus é visto como elemento crucial da
piedade. Naturalmente, há muitos modos de especificar "o relacio-
namento pessoal com Deus" e talvez o judaísmo raramente se apro-
xime dos extremos antropomórficos presentes em algumas formas
do cristianismo protestante. No entanto, a persistência da indagação
do "por quê" do desígnio divino marca a importância para a piedade
judaica do relacionamento pessoal entre Deus e seu povo.

No judaísmo, a idéia teórica religiosamente significativa de


causalidade dá origem a uma concepção da vida humana como um
engajamento com Deus. Isso envolve tanto a noção de Aliança como
uma conduta regrada segundo a Torá, na qual a relação com Deus se
dá pelo louvor, obediência e arrependimento quanto à interpretação
mais direta da saga coletiva e individual, que fala do sentido de todos
os projetos e frustrações em termos de sua interação com Deus. Ern
relação à primeira noção, a tradição rabínica enfatizou a concepção
da vida como um processo de conformação à Torá ou como uma bus-
ca por adaptação a situações problemáticas. Quanto à segunda no-
322 CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

ção, o judaísmo, muito mais do que as outras religiões monoteístas,


faz uso da narrativa para dar sentido à vida; no judaísmo, o relacio-
namento com Deus se dá em meio ao que é narrado. Especialmente
nos tempos modernos, a questão da conformidade de Israel ou do
indivíduo com a Torá é determinada pelo contexto mais amplo da
narrativa, em vez de ser determinante em relação a ela, quer dizer,
em vez de ter seus modelos de obediência e desobediência abstrata
e exteriormente concebidos "representados" pela narração.
Ainda que a liberdade seja um valor importante no judaísmo,
tanto no sentido político quanto pessoal, ela ainda não o é tanto
quanto a excelência e fidelidade da vida piedosa segundo a Torá. A
exemplo da religião chinesa, do budismo e do hinduísmo Advaita, o
judaísmo faz uso de rituais, orações e práticas comunitárias para cul-
tivar e reforçar a excelência e fidelidade da conduta religiosa. Além
disso, o judaísmo partilha com o Advaita Vedãnta a noção da im-
portância espiritual do estudo da Sagrada Escritura, uma dimensão
muito menos destacada na religião chinesa e no budismo. O capí-
tulo 5 descreve em detalhe o desenvolvimento dessa característica.

8.5.5. Idéias cristãs de causalidade

A exemplo do judaísmo e diferentemente da religião chinesa


e do budismo, o cristianismo e o islamismo não têm uma teoria es-
pecial de causalidade natural. As teorias adotadas pelos pensadores
cristãos e islâmicos têm sido funções de teorias filosóficas ou cien-
tíficas mais amplas sobre a natureza surgidas nos mais variados con-
textos!' Como o judaísmo, tanto o cristianismo quanto o islamismo
demonstram um interesse especial na investigação do modo de in-
teração entre Deus, o mundo e os seres humanos; este é, em ambas
as religiões, o primeiro sentido de causalidade especificamente rela-
cionado com a condição humana.
A afirmação vaga cristã de que Deus se relaciona com o mundo
na qualidade de criador foi especificada de modos bastante diversos

'"Ver, e.g., Richard Sorabji, Time, Creation, and the Continuum: Theories in Antiquity and the
Early Míddle Ages (Ithaca, N. Y.: Comei, University Press, 1983); e Haq, op. cit.
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 323

ao longo da história. Desde seus primórdios até hoje, as metáforas


bíblicas sobre a pessoalidade de Deus, uma pessoa com quem as pes-
soas humanas interagem, têm sido muito poderosas no pensamento
cristão. Neste sentido, o cristianismo tem partilhado com o judaísmo
o enigma e a perplexidade originados tanto das relações causais de
assimetria (Deus cria o mundo totalmente contingente) como de si-
metria (a interação entre Deus e as pessoas humanas). Como aponta
Fredriksen, desde suas origens o cristianismo incorporou a convic-
ção helenística de que o Deus Altíssimo, como se dizia na época, é
eterno e imutável; além disso, se a individuação de certa forma está
ligada à corporeidade, por mais que se a entenda no sentido espiri-
tual (Orígenes), o Altíssimo (ou Deidade) não é um indivíduo (uma
questão tratada de maneiras diversas por cristãos tão distantes entre
si quanto Tomás de Aquino e PaulTillich). Esta concepção helenistíca
contribui para acentuar fortemente a noção de uma assimetria causal
entre Deus e o mundo. A realidade eterna de Deus deve então ser vis-
ta como algo que, num ato único, ao mesmo tempo cria o mundo, o
enche de graça, reage à Queda e predestina os eleitos (alguns poucos
ou toda a humanidade). O capítulo 6 apresenta variações sobre como
este ato é tratado no pensamento de Paulo, Orígenes e Agostinho.

Por conta da diminuição da simetria das relações causais inte-


rativas entre Deus e o mundo, o cristianismo foi obrigado a interpre-
tar as narrativas dos conflitos dos patriarcas e outros personagens
bíblicos com Deus em chave metafórica e inclusive alegórica. O
cristianismo enfatizou uma coleção diferente de metáforas para a
relação causal entre o homem (e o mundo) e a divindade, como por
exemplo, aquelas relacionadas à conversão e ascensão para Deus.
Nestas metáforas, a mudança se dá apenas do lado humano ao passo
que Deus é representado segundo a imagem do ato criativo, ao mes-
mo tempo singular e multifacetado, atraindo subseqüentemente a
pessoa e o mundo para a união, o gozo ou o conhecimento não ativo
do divino — a visão beatífica. O capítulo 6 descreve várias formas de
especificar esse ponto. O caráter interativo e agônico da vida espiri-
tual cristã está intimamente relacionado à figura de Jesus, o parceiro
ou modelo da vida do cristão.
324 CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

Obviamente há um segundo sentido de causalidade religiosa-


mente importante para o cristianismo, aquele que envolve a liber-
dade humana. A maior parte dos temas referentes à liberdade serão
discutidos detalhadamente no capítulo 9. O que se segue enfatiza
apenas os aspectos cosmológicos da condição humana. Em uma
vaga concordância com outras religiões, cada qual com sua maneira
particular de especificar a questão, o cristianismo reconhece que a
vida é um campo de oportunidades para o comportamento respon-
sável, no qual as pessoas, apesar de dever fazer o melhor, podem fa-
zer — e às vezes fazem — o pior, e no qual os limites da liberdade
são dados por condições variáveis (a concretude de uma prisão, a
relevância do conhecimento, treinamento etc.).
Numa concordância vaga com o budismo e o Advaita Vedãnta,
mas não com a religião chinesa, o judaísmo ou o islamismo, o cris-
tianismo acredita que a vida ordinária impõe uma inibição religiosa
especial à liberdade, uma servidão especial em relação ao pecado e
aos "poderes" do mundo (6.2). O estado ordinário do homem é assim
um estado "caído" em comparação com o que deveriam ser as con-
dições normais da liberdade finita, e nesse estado caído as pessoas,
por mais habilidosas que possam ser ao exercitar a responsabilidade
num sentido mais geral, revelam-se impotentes para lidar com esta
inibição especial da liberdade: o capítulo 6 trata das várias formas de
especificar essa concepção da queda. Assim, a restauração do pleno
sentido de liberdade religiosa requer uma transformação gratuita,
pela qual as pessoas são convertidas ou trazidas para Deus em algum
tipo de união; e na medida em que se trata de uma questão de liber-
dade de conhecimento, vontade e ação, é o "todo da pessoa", corpo e
alma, que necessita de restauração; Fredriksen explora estas concep-
ções centrais ao discutir o problema da "ressurreição corporal".
A perspectiva sobre a vida resultante das idéias cristãs de cau-
salidade na ação divina e na liberdade humana é desse modo menos
um modelo de interação entre Deus e os seres humanos, como no
judaísmo dos textos e temas estudados, do que um modelo de duas
vias: a transcendência humana do mundo por meio do voltar-se para
ou unir-se com Deus de alguma maneira, e o compromisso humano
ROBERT CUMMINGS NEVILLE-
-="-
-= 325

em exercer responsavelmente a liberdade no mundo sem nenhuma


garantia de sucesso neste mesmo mundo. Mesmo onde o ascetismo
e a abstinência sexual são professados com o objetivo de modelar a
transcendência na vida imanente ao mundo, mantém-se a distinção
entre transformação transcendente do humano, corpo e alma, e prá-
tica histórica. Às vezes, como em Orígenes (6.4), a transformação
transcendente não é do corpo carnal, mas do corpo espiritual eter-
no, definido pela intelecção.
O cristianismo partilha com a religião chinesa, especialmente
com o Taoísmo medieval, a ênfase na transformação corporal. Mas
enquanto a religião chinesa supõe um cosmos unificado dentro do
qual a transformação do adepto taoísta está em continuidade com o
processo do universo, a concepção cristã de transformação é tanto
transcendente quanto imanente. Para o cristianismo, somente por-
que o ser humano tem a capacidade de voltar-se (ou retornar) para
Deus e desse modo não ser mais escravo dos poderes do mundo e
seu caráter fragmentário e frustrante, somente por isso ele pode vi-
rar as costas para o mundo com um compromisso amoroso e uma
liberdade espiritual santa, apropriada. Um estudo comparativo mais
extenso da compreensão chinesa e cristã de transformação seria de
grande relevância. Se, como diz Fredriksen (6.6), apesar de toda a
diversidade ou mesmo contradição, no interior do próprio catoli-
cismo e entre o catolicismo e as correntes gnósticas e docetistas do
cristianismo, se apesar disso suas práticas de disciplina corporal fo-
ram tão notavelmente semelhantes, as diferenças entre as transfor-
mações cristã e chinesa podem também não ser tão grandes tanto na
prática quanto na teoria.
As implicações práticas e teóricas das idéias cristãs de causali-
dade já foram explicadas detalhadamente.

8.5.6. Idéias islâmicas de causalidade

Como já observado diversas vezes, o islamismo partilha com


o judaísmo e o cristianismo a compreensão vaga de que Deus cria o
mundo e o mundo é inteiramente dependente dele, numa relação
326 CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

causal de assimetria. O islamismo consideraria uma relação intera-


tiva forte e simétrica entre Alá e os seres humanos como shirk e, a
exemplo do cristianismo, interpreta metaforicamente as expressões
populares da interação humano-divina. Como o cristianismo, tam-
bém o islamismo afirma que Alá, o Altíssimo, é imutável em razão
de sua unidade.
Como no cristianismo, os pensadores islâmicos acreditam que,
quando devidamente voltada para Deus em submissão, a pessoa é
livre para agir no mundo segundo os ditames da Sharra, levando a
seu devido termo o próprio destino no mundo divino (7.3.3)• Mas
a maioria dos pensadores islâmicos não concorda com a interpreta-
ção extrema de que o cristianismo fornece da queda (6.1, 7.7), não
supondo, conseqüentemente, que uma escravidão religiosa especial
necessite ser removida para que a liberdade humana propriamente
dita se torne possível. Mais exatamente, para o islamismo a queda
é uma parte boa da criação: "A saída do homem do Jardim é vista
então como um fenômeno ontológico, semelhante ao nascimento
natural... Com efeito, como na natureza, Adão teve de evoluir moral-
mente, espiritualmente, intelectualmente — como um bebê torna-
se um adulto, e uma semente se transforma numa grande árvore"
(7.6). Ver mais a respeito no capítulo 9.
Mesmo concordando vagamente com as outras religiões mono-
teístas acerca da noção das matrizes causais como resultados da vonta-
de criativa de Deus, o islamismo enfatiza o triunfo da vontade divina
nas ocupações mundanas, especialmente na história. Por causa dis-
to, a vida religiosa deve ser também uma vida política (7.6). O pensa-
mento judaico, pelo contrário, de acordo com Ben Sirac, reconhece o
poder do mal e do sofrimento como fatores que obstruem, ao menos
temporariamente, a intenção divina de recompensar os justos; para
o pensamento cristão, a história não é a plena expressão da bondade
divina, a qual também requer a transcendência humana na unidade
com Deus. Muito mais que as outras religiões monoteístas, o islamis-
mo acentua a criação como totalidade unificada que expressa a bon-
dade de Alá, uma totalidade dentro da qual o processo causal históri-
co e natural desempenha papéis significativos no sentido religioso.
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 327

A perspectiva sobre a vida e a conseqüência teórica decorren-


tes do acento islâmico sobre a totalidade unificada do mundo e seu
processo causal é a noção de que todas as dimensões da vida são
religiosas, oportunidades de submissão a Alá e de seguimento da
Shari'a. Numa grande variedade de sentidos, todas as religiões que
temos estudado alegam que cada aspecto da condição humana tem
uma dimensão religiosa. Mas nenhuma outra manteve a alegação
tão consistentemente quanto o islamismo, para o qual cada coisa na
vida, de manicuras à política, é governada pela obrigação religiosa
(7.3.3). Essa consistência é produto da ênfase na unidade em sua
concepção cosmológica causal. Estudiosos contemporâneos têm
criticado a noção ocidental de religião como paroquiana, uma noção
que refletiria a privatização européia da religião e a divisão da vida
em dimensões relacionadas, mas distintas, parcialmente separáveis
e autônomas; uma concepção como essa, argumenta-se, não é capaz
de oferecer uma abordagem justa do islamismo, porque no islamis-
mo não há distinção entre vida secular e religiosa. Mas o problema
não se resume à afirmação de um preconceito inerente à epistemo-
logia ocidental; ele é também uma função das diferentes maneiras
com que os pensadores das tradições religiosas compreendem a co-
nexão causal do mundo. A religião pode ainda ser uma dimensão da
vida entre muitas outras dimensões, mas que se relaciona com elas
de diferentes modos segundo a concepção de causalidade de cada
tradição individual. Para o islamismo, diferentemente da maioria
das outras tradições, a totalidade causal do mundo como expressão
de Deus é afirmada com tal intensidade que não há obrigação que
não seja religiosa. Para mais informações sobre obrigação, ver o ca-
pítulo 9.

As implicações práticas da abordagem islâmica da causalidade


já foram observadas, especialmente os imperativos de testemunhar
e adorar Alá (7.1) e viver a vida como seguimento da Shari'a. A sin-
gularidade da compreensão islâmica de causalidade é dada por sua

19Por exemplo, Talai Asad, Genealogies of Religion: Discipline and Reasons of Power in Chris-
tianity and Islam (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1993).
328 CATEGORIAS COSMOLÓGICAS

extraordinária unidade, que implica não somente a coerência do


mundo e sua história, mas a coerência deles com a ação criativa de
Deus. Com efeito, a maior parte do que pode ser dito sobre as espe-
cificações islâmicas das categorias cosmológicas para a condição hu-
mana deriva de sua especificação da primeira categoria, a unidade.
Por esta razão, as comparações importantes que fizemos com outras
religiões já foram discutidas.
Ainda restam muitas comparações fascinantes a fazer acerca
da causalidade na condição humana. Por exemplo, aquelas que se
ligam à presença totalizante do criador no mundo, de acordo com
o islamismo; seria interessante relacionar essa noção com o modelo
de mundo como corpo de Deus, tal como pensado pelo Anti-Advaita
Vedãnta de Râmânuja, uma compreensão igualmente totalizante do
mesmo tema essencial. Enquanto o islamismo enfatiza fortemente
a liberdade de escolha, acentuando dessa forma a obrigação de fazer
a vontade divina, o modelo de mundo como corpo de Deus enfatiza
a presença de Deus nos indivíduos, capacitando-os para o conheci-
mento beatificante e a ação santa — dançar a dança de Deus. Qual
a diferença entre as duas noções? Esta questão ultrapassa os limites
estabelecidos para este estudo. Nosso trabalho comparativo conti-
nua no próximo capítulo, com a apresentação das elaborações vagas
e específicas das categorias sociais e pessoais da condição humana.
Muitos destes tópicos, relacionados especialmente à liberdade e à
obrigação, já foram discutidos aqui de modo preliminar.
9
HIPÓTESES COMPARATIVAS
Categorias pessoais e sociais para a condição humana

Robert Cummings Neville

...........

9.1. Introdução

A condição humana é moldada não somente pelo lugar do ho-


mem no cosmos, mas também pelas condições que definem o ser
humano, tanto individualmente quanto como pessoas em interco-
nexão social. A discussão do nosso seminário variou significativa-
mente a respeito dos detalhes possíveis nos quais as religiões podem
ser comparadas sob o aspecto da condição humana em níveis social
e pessoal. Num certo momento, tivemos vinte e nove categorias
comparativas. Uma primeira versão deste livro tinha duas categorias
cosmológicas e vinte e três sociais e pessoais, tratando de assuntos
tais como memória e autoridade. Mas, à medida que a discussão pro-
grediu, percebemos que nossas hipóteses comparativas agrupavam-
se em torno de quatro grandes abordagens da condição humana:
identidade pessoal, obrigação, os sentidos nos quais a condição humana
é uma aflição à qual a religião é uma resposta, e os modos pelos quais
as afiliações humanas atravessam essas questões.
O procedimento neste capítulo é o mesmo do capítulo 8, dis-
cutir cada uma das categorias comparativas. Dentro da discussão de
cada categoria, vou esquematizar como a religião chinesa especifica
isso, acrescenta -se o budismo em comparação com a chinesa e, de
maneira similar, hinduísmo, judaísmo, cristianismo e Islão. As fon-
tes para estas hipóteses incluem os capítulos 2 a 7, a discussão do se-
minário e as reflexões do autor deste capítulo, as quais surgiram do
330 - CATEGORIAS PESSOAIS E SOCIAIS

processo de reunir tudo isso. Assim como no capítulo 8, para cons-


truir as hipóteses aqui, foi necessário algumas vezes simplesmente
repetir comparações feitas nos capítulos ou na discussão anteriores;
reformular pontos dali para colocá-los na linguagem da categoria
comparativa; tornar os pontos mais vagos ou mais específicos para
trazê-los à comparação nos seus aspectos relevantes; ou desenvolver
hipóteses que anteriormente não tinham recebido nossa atenção,
para nos dirigirmos a assuntos estruturais levantados ao expormos
as especificações das nossas quatro categorias principais.
As quatro categorias discutidas no capítulo 8 obviamente ultra-
passam e interceptam umas às outras de modos interessantes, e isso
é verdade para o que discutimos aqui também. De fato, as discussões
anteriores de status ontológico e valor antecipam a discussão sobre
"obrigação" aqui. A categoria aqui de "afiliação" atravessa "identidade
pessoal" (definida social e individualmente), "obrigação" (conjunta
e individual), e "aflição" (comunitária e pessoalmente existencial).
Ainda assim, o assunto da definição relacional da condição humana
possui sua própria unidade, então o tratamos separadamente.
O que se segue são hipóteses para projetos comparativos, jul-
gamentos comparativos propostos que merecem uma maior explo-
ração e qualificação. Talvez esses julgamentos comparativos estejam
simplesmente errados, não meramente sujeitos a qualificação e
maior especificação, mas errados. Mais provavelmente, uma maior
exploração traria detalhes surpreendentes. Com certeza, maiores
especificações mudarão seus tons afetivos. Tentei formular as hipó-
teses comparativas de modo a torná-las mais atraentes para estudos
posteriores, não tão gerais a ponto de parecerem clichês ou obvia-
mente tolas, nem tão específicas a ponto de parecerem desinteres-
santes para aqueles que lidam com diferentes textos e abordagens.

9.2. Identidade pessoal

A categoria vaga de identidade pessoal tem a ver com o como


os pensadores nas tradições religiosas entendem assuntos tais como
diferenciação entre os indivíduos, continuidade da vida individual
-="---
ROBERT CUMMINGS NEVILLE- 331

através do tempo, existência mental e física, valor moral, subjetivi-


dade e objetividade, e individuação nas relações com outros, com
grupos e com aspectos do ambiente natural, e tudo como aspectos
genéricos da condição humana. Desta maneira, a categoria é vaga o
suficiente para tolerar as respostas "não Self" dos budistas para estas
questões, assim como as respostas contundentes do substancialista
ocidental, "ãtman é Brahman", e respostas transmigratórias cármi-
cas. Nosso interesse aqui não é tanto as diferenças antropológicas
registradas nas diferentes culturas religiosas, mas em como usam es-
tes tópicos para articular a dimensão religiosa da condição humana.

9.2.1. Idéias chinesas da identidade pessoal


A ênfase mais importante que encontramos ao discutirmos a
abordagem chinesa à identidade pessoal é a de que "os grupos pre-
dominam sob todos os aspectos sobre os indivíduos na sociedade
chinesa. Isto quer dizer que qualquer pessoa é primeiramente um
membro de uma família, clã, cidade, ou Estado antes que ele ou
ela seja um indivíduo com necessidades e desejos. A justiça, con-
seqüentemente, é uma questão de grupo; freqüentemente, famílias
inteiras são executadas pela traição de um e tipicamente grupos de
cinco famílias ficam responsáveis pela ordem de um bairro" (2.4.2).
O senso de identidade pessoal nas religiões chinesas está, assim,
intimamente relacionado com o seu sentido de afiliação, discutido
em 9.5.1.
Os próprios indivíduos são harmonias complexas do grande
número de processos no cosmos chinês; alguns desses processos
passam rapidamente dos indivíduos para o meio ambiente maior,
e outros têm ligação com órgãos e modos de comportamento in-
terno ao indivíduo, com muitos espelhamentos de padrões, gran-
des e pequenos. A forma da identidade pessoal tem relação com o
crescimento através dos estágios da vida e seus papéis apropriados
na família, vizinhança e, por vezes, vida pública, individualizando a
pessoa nesses papéis relativos às instituições e pessoas envolvidas,
por exemplo, por meio dos papéis que mudam na composição fami-
liar. Muito é ritualizado nestes diversos papéis e o ritual ajuda a de-
332 CATEGORIAS PESSOAIS E SOCIAIS

finir a integração dos papéis numa dança complexa da qual muitos


indivíduos participam de maneiras variáveis.
Aspectos morais de identidade são também predominante-
mente sociais, dimensionando como os indivíduos cumprem com
suas obrigações nos seus papéis sociais. Então, lealdade e piedade
filial são mais importantes do que as virtudes mais pessoais de ho-
nestidade e perseverança (2.4.2), apesar das virtudes pessoais esta-
rem presentes também. É neste contexto de orientação social para
moralidade que os modelos contra-culturais do taoísta recluso ou
do neoconfucionista comprometido com a vida interior de perfei-
ção sábia, devem ser entendidos. Miller, num comentário sobre um
rascunho anterior deste capítulo, sugere que "talvez se possa con-
trastar aprendizagem (xue) como a aquisição de identidade pessoal,
do lado confucionista, e esquecimento (wang) como a não realização
da identidade pessoal, do lado taoísta; o primeiro, sendo o desenvol-
vimento pleno da raiz; o último, regressão total à raiz". Sobre esta
idéia comentou que conceitos tais como xue e wang são conceitos
de gênero, apesar dos sinais literais não estarem lá. Então a astuta
distinção confucionista/taoísta de Miller é referente somente aos
homens, ou pelo menos primariamente.
Com respeito à mente e ao corpo, o fato das suposições chi-
nesas a respeito do universo conterem várias modulações de Qi
ditam uma concepção monística, com atividades mentais sendo
modulações mais velozes do que as físicas. Os processos físicos
(xing) e os espirituais (shen) ião ambos manifestações do puro Qi
de criação (2.4.3). Quando desejos especiais e consciência de valor
desenvolvem a centralidade do ego, mente e corpo são motivados
separadamente no comportamento pessoal, parte da aflição huma-
na. Os chineses distinguem conhecimento consciente de sabedoria
intuitiva. Uma vez que algumas outras religiões colocam sabedoria e
conhecimento a serviço do self, a chinesa até certo ponto pensa que
o self é uma má idéia, e enfatiza, ao invés, a pessoa concretamente
incorporada nas relações e afiliações.
A perspectiva da vida derivada deste sentido complexo de iden-
tidade pessoal é fortemente orientada para a participação nas redes
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 333

de relações com outras pessoas, instituições formais e informais, e


na natureza em várias escalas; veja a discussão sobre afiliação em
9.5.1. Isso exige uma teoria ou uma visão de realidade que expresse
padrões harmoniosos de família, sociedade e natureza, nos quais se
participa e um senso articulado de como essa participação acontece.
Também envolve um entendimento de participação na qualidade
de raiz da conexão do indivíduo com a unidade e base ontológica do
cosmos. As implicações práticas, em contraste com os sentidos de
self característicos de tantas outras culturas, envolvem não o desen-
volvimento de um self substancial, mas o desenvolvimento da espe-
ra enquanto se é orientado para, e participativo em, todas as várias
redes de relação dentro das quais se deve estar em harmonia.

9.2.2. Idéias budistas de identidade pessoal

A primeira abordagem da noção budista de identidade pessoal


precisa iniciar com a discussão de Eckel sobre a doutrina do não-
self. Ern contraste com toda as tradições que vêem pessoas, selves,
ou almas como substâncias contínuas que sofrem ou estão prontas
para considerar mudanças, o budismo, no texto central amplamente
compartilhado, Questões do Rei Milinda, e em outros, sustenta que a
identidade de uma pessoa é apenas uma designação convencional,
como "carruagem" designando as peças da carruagem. Cada parte
do self é somente um agrupamento convencional de peças, e assim
por diante. A continuidade da pessoa através do tempo é, de modo
similar, uma questão de designação convencional.
As designações convencionais de identidade pessoal contínua
seriam ótimas para propósitos convencionais, em contraste com a
verdade última, se as pessoas não sofressem tanta dor por isso. Acre-
ditando que o self pessoal contínuo é fundamentalmente real, as
pessoas consomem-se na ignorância que dá origem ao sofrimento
(3.2). Elevando-se à altura da sabedoria da verdade última, a pessoa
vê as coisas como elas são, sem distinções conceituais ou agregações
convencionais. A verdade real, no entanto, para o Budismo do estilo
tratado por Eckel, não é nem o extremo da verdade convencional
nem aquele da verdade última, mas o caminho do meio (3.3), uma
334 CATEGORIAS PESSOAIS E SOCIAIS

trilha tecida por meio de ambos, convencional e verdade última,


para a liberdade.
Assim, a abordagem budista mais profunda à questão de iden-
tidade pessoal reside na metáfora da jornada, sustentada pela análise
filosófica complexa esboçada no capítulo 3. Uma pessoa é um via-
jante num trajeto. Muitas pessoas perambulam perdidas, mas bodhi-
sattvvas encontraram o Caminho do Meio para a liberdade genuína.
Eckel e Thatamanil indicam que muito do Caminho do Meio é ne-
gativo, isto concorda com as discussões cosmológicas observadas no
capítulo 8. A doutrina do não-self é parte desta abordagem negativa,
e muito da jornada da identidade pessoal é livrar-se da ignorância e
da bagagem que esta arrasta consigo. Ao mesmo tempo, a identidade
pessoal pode ser vista como a conquista de objetivos, do nirvana, ou
o alcance da Terra Pura.
O contraste do tipo de budismo que estudamos com a religião
chinesa acerca de identidade pessoal não é tão grande quanto se
poderia supor. Para ter certeza, ao passo que a maioria (mas não to-
dos) dos pensadores religiosos chineses presume uma abordagem
positiva e objetiva da realidade, e a toma como fundamentalmente
boa, os pensadores budistas freqüentemente se evadem de afirma-
ções com negativas, tratam designações convencionais como fun-
ções de subjetividade e enfatizam o tema do sofrimento. Onde a
religião chinesa trata a identidade pessoal muito como uma questão
de relacionamentos com outros, com a sociedade, com a natureza
e com os elementos da própria pessoa em si, o budismo tem um
enfoque muito mais individualista, apesar de uma ênfase ideal na
compaixão. Mas há uma similaridade inesperada na afirmação de
ambas as tradições de que a identidade pessoal é uma questão de
harmonizar partes e relações. A religião chinesa põe um movimento
muito positivo na harmonia, ao passo que o budismo Madhyamaka
parece dizer que a vida não é nada além de harmonia (co-origem
dependente). A significância prática da vida como um projeto de
harmonização traz ambas as tradições a uma conexão. Não é difícil
ver porque, a este respeito, o budismo poderia facilmente entrar na
religião chinesa. Claro, à medida que o Budismo enfatiza o aspecto
---==--
ROBERT CUMMINGS NEVILLE- 335

negativo da doutrina do não-self, não pode conceber a vida como um


projeto. Mas, à medida que enfatiza a busca do Caminho do Meio,
é um projeto de libertação. Thatamanil, num comentário em rascu-
nho anterior, opõe-se a esta distinção porque "o contraste entre o
não-self e o Caminho do Meio não é garantido. A verdade do não-self
é o Caminho do Meio". Talvez à moda hegeliana a verdade da doutri-
na do não-self seja idêntica ao Caminho do Meio; no entanto, pode
ser usada negativamente, como foi por Nãgãrjuna, para bloquear a
crença em progresso ou no esforço causal, e ainda alternativamente
para recomendar a viagem espiritual do Caminho do Meio. Eckel
acrescenta no mesmo comentário a questão de que "liberdade do
ciclo da morte e renascimento pode parecer um projeto muito po-
bre para uma tradição que procura a vida eterna (cristianismo), mas
isto não a torna menos importante no contexto da visão indiana do
sarnsãra".

9.2.3. Idéias hindus de identidade pessoal

A idéia Advaita principal de identidade pessoal é "a unidade


última da realidade interior (o ãtman, self) e a realidade cósmica úl-
tima" (4.1), e este ponto é comum a muitas formas do hinduísmo,
sendo mesmo tema já em alguns Upanishades do princípio. Por que
a identidade do self com Brahma não é obvia? Porque o self, de modo
ignorante, identifica-se com o não-self (4.3). Assim, há dois passos
para a realização da identidade do self com Brahma, a discriminação
ou aprendizado para distinguir o self do não-self e a transformação
prática da vida para perceber o verdadeiro self (4.4).
Em um nível é verdade que só Brahma, um e indiferenciado, é
real, e que os selves humanos finitos não são nada mais do que isso,
diferentes somente como uma função de mãyã (4.2.1). Mas no nível
mais importante para definir identidade pessoal, o self é suficien-
temente complexo a ponto de ser capaz de ter o projeto, primeiro,
de aprender a discriminar o self do não-self e, segundo, de alcançar
integração prática (samâdhi). O self não é unidade indiferenciada,
mas sim trazido à realização plena por meio de audição, leitura, re-
flexão, meditação, e integração (4.4). Mas a identidade pessoal nesse
336 CATEGORIAS PESSOAIS E SOCIAIS

segundo sentido está incluindo mãyã. Muitos dos assuntos que to-
mamos para constar do tópico de identidade pessoal — continui-
dade, subjetividade e objetividade, identidade moral — são o que
Vivelzacüdãmaryi poderia chamar de o não-self o corpo e suas cone-
xões materiais, o self vital, a mente, o intelecto, até mesmo a realiza-
ção da felicidade (4.3). Todos estes são não-self porque eles mudam e
são múltiplos.
Então, uma vez que o Advaita Vedãnta admite os tipos de ele-
mentos discriminados de identidade pessoal reconhecidos em ou-
tros lugares, desqualifica-os para o self verdadeiro. No fundo, identi-
dade pessoal não é um tópico real ou interessante para o Advaita. O
tópico interessante é Brahma.
O contraste marcado entre religião chinesa e Advaita Vendãnta
a respeito de se a realidade última é constantemente mutável ou
imutável, manifesta-se nas suas abordagens da identidade pessoal.
Para a chinesa, a identidade pessoal, definida por meio de afiliações,
é o lugar privilegiado da abordagem do indivíduo em direção à rea-
lidade última: viver melhor é aprimorar a serenidade ao equilibrar
relacionamentos e harmonias. Para Advaita, o senso de identidade
pessoal é prejudicial e deve-se, ao invés, abster-se da identificação
com envolvimentos e concentrar-se na integração e identidade
com Brahman. Onde o budismo Madhyamaka nega qualquer ele-
mento imutável e substancial na base da identidade pessoal, Advaita
Vedãnta utiliza este como o verdadeiro critério de realidade.
Talvez o mais interessante contraste comparativo tenha a ver
com o que o adepto realizado se parece. Para a religião chinesa, se-
ria a pessoa comprometida mais profundamente com, e requinta-
damente sensível às, harmonias mutáveis do cosmos, e conectada
de modo transcendente com os princípios subjacentes ao cosmos.
Para o Budismo, o adepto seria livre e capaz de se ocupar das coisas
do mundo sem apegos. Para o hinduísmo na sua forma Advaita, es-
pecialmente conforme analisado no Vivelzacúdãmaryi (4-4), "o sábio
vive só, apreciando os objetos sensoriais e sendo ainda assim a cor-
porificação da ausência de desejos; ele sempre se satisfaz com o seu
próprio self, e ele mesmo é estabelecido como o self do todo".
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 337

9.2.4. Idéias judaicas de identidade pessoal

Diferentemente da religião chinesa, do budismo Mahãyãna, e


do hinduísmo Advaita Vedãnta, o judaísmo não tem uma história
metafísica ou cosmológica importante para contar sobre identidade
pessoal. Mais precisamente, o que é importante sobre a identidade
pessoal para o judaísmo é (i) o relacionamento do indivíduo com
Deus; (2) a vida moral e as dimensões morais de identidade; e (3)
pertença (para os judeus) à comunidade judaica e o que isso implica
enquanto um povo que vive sob a Torá, como se desenvolveu desde
o final do período do Segundo Templo. O último ponto será discuti-
do sob o tópico "afiliações" em 9.5.4.

"Lutando com Deus em um mundo imperfeito", o subtítulo do


capítulo 5, uma referência à história de Jacó lutando contra Deus ou
um anjo (Gênesis 32,24-32), demarca habilmente o sentido de que
a identidade pessoal humana judaica está alicerçada no relaciona-
mento com Deus. Conforme foi notado no capítulo 8, este relacio-
namento é difícil, pois é tanto assimétrico quanto simétrico. O ele-
mento assimétrico é que Deus cria o mundo inteiro, incluindo nele
as pessoas na sua totalidade; e que o mundo também inclui a dor e o
mal. O lado simétrico é a interação de maneira humana entre Deus
e os seres humanos. Quando o primeiro elemento é acentuado, a
esfera humana é subordinada à divina, como no Islão ou, digamos,
nas correntes neoplatônicas do cristianismo. Quando o outro lado é
acentuado, Deus é representado de modo muito antropomórfico, e
os seres humanos podem reclamar com Deus sobre a dor e o mal no
mundo, sua aparente injustiça. O judaísmo, especialmente na linha
rabínica discutida no capítulo 5, mantém ambas as ênfases, não dei-
xando nunca uma suplantar completamente a outra.

Agora, a identidade pessoal para os seres humanos, neste re-


lacionamento duplo com Deus, é aquela personalidade que ideal-
mente é formada pelo reconhecimento e adoração de Deus como
criador do mundo e de Israel, ao mesmo tempo em que se insiste no
julgamento independente do bem e do mal e no direito de aplicar
este julgamento a Deus: por que existe este mal quando não deveria
338 CATEGORIAS PESSOAIS E SOCIAIS

existir? E por que está dentro de nós? O capítulo 5 segue a crescente


seriedade desta luta, de Ben Sirac até Elie Wiesel.

O resultado dessa formação de caráter durante uma relação


que se desenvolve com Deus, tanto assimétrica quanto simétrica,
é uma profundidade interior extraordinária da personalidade de
ambos, Deus e seres humanos, uma profundidade capaz de conter
contradições e ainda afirmar bondade fundamental em ambos os
lados. Isto não é para sugerir que não há profundidade na identida-
de pessoal em outras religiões estudadas; cristianismo e islamismo
seguem particularmente o judaísmo neste ponto, apesar de enfati-
zarem o lado assimétrico da relação. E a religião chinesa descobre o
Tao no coração da pessoa (descrito diversamente pelo confuncionis-
mo, taoísmo, budismo Chinês, e o neoconfuncionismo). O budis-
mo encontra a contradição entre desejo e liberdade no (não-)self. O
hinduísmo Advaita encontra a contradição de mãyã causando a ex-
periência falha da realidade não-dual. Mas na concepção judaica da
identidade pessoal se esconde a suspeita de que a contradição inte-
rior esteja entre duas vontades: para os humanos a vontade de bem
e obediência versus a vontade de agressão e mal; para Deus a vontade
de criar e daí controlar completamente versus a vontade de envolver
as pessoas em interações responsáveis, quase como iguais.
O outro elemento verificado acima na abordagem judaica da
identidade pessoal é que os seres humanos (judeus) vivem sob as
obrigações da Torá, ou seja, em comunhão com Deus e com os ou-
tros conforme definido pela aliança. A Torá é a revelação de Deus,
e então as pessoas são aquelas, e em especial as judias, em quem e
para quem Deus revela o mandamento divino. Todas as religiões
aqui estudadas observam que os seres humanos são especiais. A re-
ligião chinesa, pelo menos na forma confucionista, diz que os seres
humanos formam uma trindade com o céu e a terra, completando
o que a natureza não consegue fazer sozinha. Porém, os seres huma-
nos, para os chineses, são feitos dos mesmos processos e substância
que o resto do universo, e podem não ser tão rápidos e inteligentes
quanto deuses e outros seres superiores. Os budistas preocupam-
se também com todos os seres que sentem, não somente os seres
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 339

humanos; mas os humanos têm a capacidade do uso de signos e,


conseqüentemente, podem ser objetos de pregação sobre as Quatro
Verdades Nobres. Os Vedantins Advaita dizem que o que é especial
acerca dos seres humanos é que eles são Brahma (não que isso os
distinga de qualquer outra coisa), não somente criaturas de ou como
Brahma, mas idênticas a este. Mas o judaísmo, enfatizando a auto-re-
velação de Deus e a iniciativa em estabelecer o mandamento, afirma
que Deus faz os seres humanos especiais, em particular os de Israel,
como aqueles que foram trazidos a uma relação especial com Deus,
receptores da revelação. O cristianismo e o islamismo seguem o ju-
daísmo aqui em seus próprios termos.

9.2.5. Idéias cristãs de identidade pessoal


A primeira abordagem cristã da identidade pessoal, especial-
mente em Paulo, é muito semelhante ao enfoque judaico na relação
com Deus, e a contradição do bem e do mal dentro da alma, com
pelo menos estas duas diferenças que seguem.
Em primeiro lugar, na relação entre Deus e os seres humanos, o
lado assimétrico é realçado em relação ao simétrico, e o elemento de
disputa interativa é direcionado às interações humanas com Jesus
e o Espírito Santo, ambos sendo representados como se estivessem
(num ou noutro momento) na arena de combate mundial. À época
do terceiro e quarto séculos, as preocupações em fornecer uma con-
cepção metafísica da Trindade (com relação à qual tanto Jesus quan-
to o Espírito Santo estão localizados mais na trindade imanente do
que na terra) fizeram com que os símbolos ou ícones das pessoas
da Trindade funcionassem como parceiros nas interações. Tanto em
Orígenes (6.4) como em Agostinho (6.5), as ações salvadoras da gra-
ça de Deus são associadas com o ato criativo do início (daí as preocu-
pações com a predestinação) mais do que com interações no tempo.
Ern segundo lugar, a respeito da contradição interna do bem
e do mal. Enquanto o judaísmo atribui a Deus a origem de ambos
nos seres humanos, o cristianismo em Paulo atribui a origem do mal
humano só aos seres humanos, na queda de Adão (6.2). Isto protege
a assimetria da relação entre o criador e a criação. Também permite
---- CATEGORIAS PESSOAIS E SOCIAIS
340 ----
----

uma disposição da contradição num grau diferente. Por um lado, se


Deus não é a origem do mal humano, então talvez Deus não tenha
personalidade naquele sentido profundo que envolve contradição
intencional; os pensadores cristãos estão mais prontos do que os
judeus a subordinar caracterizações pessoais de Deus a caracteriza-
ções "superiores às pessoais", como por exemplo, Luz, Amor, Cria-
dor de pessoas, Ato de Ser, Fundamento do Ser. Por outro, em Pau-
lo os seres humanos são postos na existência como internamente
contraditórios ao extremo! Há um outro sentido, para a maior parte
do cristianismo (se bem que talvez não para Paulo), no qual Deus é
realmente a origem do mal, isto é, envolvido na criação de um mun-
do de natureza e história não preenchido pela justiça divina, mas
fragmentário e finito.

Um segundo elemento no tratamento cristão da identidade


pessoal é a problemática de alma e carne, tema apresentado no ca-
pítulo 6. Entender isso requer uma referência à abordagem cristã
da aflição humana (9.4.5). Por um lado, a salvação é cósmica (6.3.3,
6.4.4, 6.5.6), e por outro, a vida histórica é um punhado de cruzes —
elas testemunham Jesus como o paradigma. A forma mais fácil de
reconciliar estes pontos é retirar a alma do corpo e salvá-la enquanto
se deixa o corpo para a história, para o sofrimento sem redenção e a
morte; este foi o modo desenvolvido pelo gnosticismo e o docetis-
mo, mas rejeitado pelo cristianismo católico (6.3). A posição católi-
ca, daqui em diante ortodoxa, é que a salvação é da pessoa como um
todo, carne e tudo, imaginada de alguma forma após a história, ou
acima dela, ou uma combinação das duas; Orígenes (6.4.2) e Agosti-
nho (6.5. 1-3) têm posições brilhantes sobre esse tema. O cristianis-
mo freqüentemente ressalta uma dimensão eterna para Deus, uma
criação eterna (por exemplo, tanto em Orígenes como em Agosti-
nho), proporcionando um lugar trans-ou-não-temporal para a "res-
surreição do corpo". Onde a separação entre salvação da natureza
comum e da história é muito forte, um supernaturalismo teológico
se segue (6.5.6). Alguns pensadores, contudo (por exemplo, Oríge-
nes), apenas expandem a escala da natureza e da criação para que o
"nosso mundo" seja uma pequena parte de um todo maior.
-=
ROBERT CUMMINGS NEVILLE---=
---- 341

A tentação cristã de separar alma e corpo (o gnosticismo foi


declarado não ortodoxo, mas não desapareceu) não tem um paralelo
com as concepções chinesas que vêem tais distinções apenas como
questões de grau de atividade vibratória do Qi, salvo talvez nas ten-
tativas alquímicas e meditativas taoístas de desenvolver a alma em
relação ao resto mais ordinário do corpo. Nern há qualquer paralelo
sobre a problemática da salvação dentro-e-fora da natureza e a his-
tória na religião chinesa; as concepções taoístas medievais de um
cosmos em camadas têm similaridades interessantes com os níveis
de esferas da realidade de Orígenes, ambos afirmando em geral um
único mundo.

O cristianismo pareceria ter pouca ressonância com a concep-


ção Budista de não-self, enfatizando como o faz a salvação dos selves
incorporados. No entanto, há paralelos interessantes. Paulo (Roma-
nos 6-7) diz que o mal nele não é realmente ele, mas pecado, e o bem
nele não é ele, mas Deus, e ele mesmo não possui realidade integral;
mas para Paulo isto é um problema, e não simplesmente um fato
como seria para o budismo, a partir do qual se faz inferências prá-
ticas. O budismo condena o ascetismo estrito como contraditório
ao Caminho do Meio, e assim faz boa parte do Cristianismo; mas
ambas as tradições de fato enfatizam uma disciplina extrema e por
vezes celibato e mortificação (6.6.2).

O cristianismo católico, especialmente na forma de Agostinho,


não teria nada a ver com uma distinção hindu entre mãyã e a realida-
de verdadeira da identidade do self com Brahma. Mas as correntes
gnósticas do cristianismo na realidade possuem algum paralelo se
mãyã puder ser construída como uma forma de realidade "inferior e
mais vulgar", algo estritamente impossível numa base Advaita.

9.2.6. Idéias islâmicas de identidade pessoal

O islamismo está mais próximo do cristianismo do que do ju-


daísmo na ênfase à assimetria da relação entre o criador e o mundo,
incluindo os seres humanos. Mas está mais próximo do judaísmo do
que do cristianismo ao atribuir a origem do mal a Deus. Esses dois
342----
----= - CATEGORIAS PESSOAIS E SOCIAIS

pontos são reconciliados na sua visão de que o mal em si é parte do


propósito de Deus e resultará em bem (7.6). Então, enquanto o ju-
daísmo e cristianismo concordam vagamente que os seres humanos
estão à mercê do mal, e portanto a identidade pessoal não pode ser
definida exclusivamente em termos de identidade moral, o islamis-
mo pode na realidade dar um papel central à identidade moral.
Então Haq diz que, para o Islão, ser humano é estar sujeito a
obrigações (7.3.1). Isto é uma função do simplesmente ser criado em
um mundo moldado pela lei divina, amr, "o mandamento divino que
é o princípio constitutivo fundamental de cada entidade criada, colo-
cando-a sob a obrigação de tomar o seu devido lugar no todo cósmico
maior" (7.3.2). Esta obrigação é trivial para criaturas que não conse-
guem agir de outra forma. Mas para os seres humanos que conseguem
de fato agir de outro modo, é o que define sua identidade pessoal:
sua carreira cumulativa como agentes morais vivendo perante Deus.
O judaísmo e o cristianismo dividem com o Islão a concepção
de identidade pessoal que inclui a identidade moral do indivíduo
perante Deus. Eles diferem deste último, no entanto, ao enfatizar o
senso de contradição, quase que necessário, na identidade pessoal
entre as vontades de bem e mal, e o senso peculiar de profundidade
que isso dá. Um agente moral, para o Islão, pode conter impulsos
contraditórios, e na realidade o faz quase como um meio de cres-
cimento (7.6); mas não precisa ser uma contradição que define, a
menos que a pessoa assim a torne, apenas como instrumental para
os propósitos de Deus. Pois em qualquer situação, para o Islão, os
propósitos de Deus são atendidos.
Apesar de que tanto o budismo como o hinduísmo Advaita re-
conhecerem a identidade moral e a importância do esforço moral
para a disciplina religiosa e para viver uma vida plena, para nenhum
deles ela está no centro de uma identidade pessoal que a define, como
é para o Islão. A religião chinesa toma a identidade moral como cen-
tral, mas a interpreta de uma forma de certo modo diferente da do
Islão, enfatizando o trabalho de harmonizar de maneira apropriada
(yi, justiça). O Islã elabora o dever de modo a envolver harmonia, ou
percorrer até o fim "o lugar designado no todo cósmico maior" do
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 343

indivíduo. Mas a parte importante do dever para o Islão, em termos


religiosos, é que ele é parte da obediência ou submissão a Deus.

9.3. Obrigação

Obrigação é uma categoria mais vaga do que a própria conota-


ção pode parecer. Nós a usamos para nos referir a qualquer sentido
de ideal ou norma para o comportamento humano, qualquer sen-
tido no qual seria melhor fazer (ou ser) uma coisa em vez de outra.
Assim, é muito mais geral do que imperativos categóricos ou obe-
diência à lei com os quais o termo tem sido algumas vezes associado
na filosofia ocidental. Obrigação também vai além das questões de
comportamento moral. No nosso uso vago da categoria, esta é uma
obrigação de estar em harmonia e não em desarmonia, de acordo
com a religião chinesa, ser iluminado em vez de ignorante ou iludi-
do. Obrigação, desta maneira, quer dizer aquilo que as religiões acre-
ditam que define a forma ideal ou normativa da condição humana e
as religiões diferem nisso.

9.3.1. Idéias chinesas de obrigação

Conforme mencionado, para a religião chinesa a obrigação é


estar em harmonia e promover a harmonia dos processos nos quais
se participa. Isto naturalmente tem muitas dimensões. Kohn, em
2.1 e passim, distingue o mundano do transcendente; ver a discussão
em 2.2 sobre harmonia e em 9.5.1 sobre afiliações que expressam a
diversidade ou harmonias relevantes nas quais há participação ideal.
Ao mesmo tempo em que a harmonia é normativa, Kohn aponta
que um espírito avaliativo e julgador é um vício (2.4.3). Até certo
ponto, o senso de obrigação deveria ser intuitivo para pensadores
como Meng Tzu e Zhuangzi, uma questão de sabedoria profunda,
em vez de aprendizado sofisticado e de cálculo; um pensador como
Xunzi cercaria o elemento intuitivo com treinamento sólido.
A perspectiva de a vida derivar da idéia de que a harmonia é
boa e obrigatória é complexa. Primeiro, a vida em si é percebida
como boa; na realidade todo o cosmos é bom, pois é fundamental-
344 CATEGORIAS PESSOAIS E SOCIAIS

mente um e harmonioso (2.1.2). A estima é assim uma parte vasta da


perspectiva chinesa. Segundo, porque há muitos pontos nos quais
as pessoas podem afetar os processos harmoniosos em que partici-
pam; as pessoas precisam cultivar tanto o discernimento do que é
harmonioso ou não como as competências para fazer o que é certo.
Ambos os textos em 2.3.1 tratam do cultivo nesse sentido. Terceiro,
na medida em que a maior parte das pessoas não é de adeptos cujos
ajustes a mudanças sutis da harmonia sejam precisos e instintivos,
relacionamentos ideais devem ser codificados em princípios e ri-
tuais. Miller, em um comentário, enfatiza o fato de que os rituais
(li) "não são regras ou leis no sentido Ocidental, mas até certo ponto
estilos de representação performativa pelos quais a obrigação pode
ser expressa. O que preocupou Confúcio não foi quais normas eram
verdadeiras, mas como realmente interpretá-las na sua vida". Dessa
maneira, a perspectiva da vida de cada um é enfocada e estereotipa-
da para levantar temas tais como "os cinco relacionamentos"; há, é
claro, muitos outros relacionamentos humanos, mas a estes cinco é
dado status paradigmático em termos do qual os outros são percebi-
dos (2.3.2). Quarto, porque a harmonia é tão importante e a desar-
monia é tão ofensiva ao todo, uma cobertura de leis rígidas encobre
a perspectiva de vida da Ásia Oriental, o que é ilustrado de forma
divertida na recusa em ligar o aquecedor até o início oficial do inver-
no; qualquer que seja o frio. (2.4.2).
Uma implicação teórica importante do sentido de obrigação
como harmonia da religião chinesa é a análise do modo como as
coisas funcionam e devem ser classificadas em sistemas causais in-
terativos e sincrónicos (2.4.1). Vejam a discussão em 8.5.1 sobre a
abordagem chinesa da causa. O lado prático disso é o discernimento
e o cultivo do que se direciona à harmonia, freqüentemente uma
questão de contrabalanço.

9.3.2. Idéias hindus de obrigação


Há muitos tipos e camadas de obrigação no hinduísmo; a dis-
cussão no Bhagavad Gitâ é um dos mais famosos tratamentos do
tema "dever" em toda a literatura universal. O nosso próprio inte-
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 345

resse na Vivekacgãmaryi foi muito limitado e enfocado no senso de


obrigação envolvido na distinção entre estar preso em mãyã e viver
de forma a realizar a identidade do self com Brahma. Clooney apre-
senta isto de uma forma dual, como um tema de discernimento ou
iluminação (4.3) e como uma forma de transformação e atualização
(4.4)• O ideal para essa corrente do Advaita Vedãnta é ser ilumina-
do de forma a não ser enganado por mãyã e praticar um viver com
a realização da própria identidade ou não-dualidade com Brahma.
Ver 4.2.1 e 4.2.2 para discussões sobre mãyã e a verdadeira condição
humana. O ideal Advaita é viver na verdade da não-dualidade. Essa é
uma especificação de uma concepção hindu um tanto vaga do ideal
de se viver numa realização adequada sobre o que é verdadeiramen-
te real, como oposição a viver na ignorância do que é real.
Comparado à obrigação de se participar harmoniosamente,
que está no centro da religião chinesa, o Advaita tem uma distin-
ção radical entre o real aparente e aquele verdadeiro, que tem pouca
contrapartida efetiva na China antiga. Os chineses, é lógico, reco-
nhecem erros e entendem o auto-engano;' eles também entendem
que há níveis mais e mais profundos de realidade para serem discer-
nidos pelos sábios. Mas os níveis mais profundos da realidade são
interessantes porque eles exibem níveis de harmonia nos quais as
pessoas podem participar, mas que comumente deixariam escapar:
Tao que pode ser nomeado não é o verdadeiro Tao".2 Como já foi
dito, a participação nas harmonias de todas as coisas com as quais as
pessoas são afiliadas (9.4.1) pode ser corrigida e intensificada, feitas
mais individualizadas para pessoas; mas isso não uma questão de sair
um compromisso com a ignorância para o que meramente parece
ser real, e daí para a realização de uma identidade mais profunda. O
projeto medieval daoísta de transcendência ou retorno a uma unida-
de com a origem do universo carrega em si uma similaridade prática
com o Advaita Bhavana, como uma forma de disciplina (2.3.3). Mas

'Veja Roger T. Ames e Wimal Dissanayake, eds., Self and Deception: A Cross-cultural Philo-
sophical Enquiry (Albany: State University of New York Press, 1996).
'Esta é a linha de abertura do Tao de ling, conforme traduzido por Chan em A Source Book in
Chinese Philosophy (Princeton: Princeton University Press, 1963)
346 CATEGORIAS PESSOAIS E SOCIAIS

o projeto daoísta é o de fazer a si próprio um ser espiritual, que toca


na emergência de forma no fundamento da criação do mundo; isto
não é tornar atual o que uma pessoa já realmente é. A obrigação Ad-
vaita é para ser verdadeiro, não para transformar alguém em alguma
coisa nova.
Com o intento de clareza, é importante aqui relembrar que nos-
so uso amplo de obrigação estende-se além do que a palavra pode-
ria ser usada na maior parte do pensamento Advaitico. Thatamanil
indica em comentário de uma versão anterior, o seguinte contexto
para o uso das palavras:
A tradição Advaita, particularmente o Sankara, rejeita a noção de que
liberação pode ser objeto de obrigação. Obrigações requerem ação (kar-
ma). No entanto, a liberação não pode ser produzida por qualquer ação.
Além do mais somente pessoas que se pensam como agentes é que são
obrigadas a agir, e é precisamente a noção de agência que o Advaita pro-
cura dispersar. Âtman não se altera e portanto não é um agente. Não so-
mente as obrigações não se aplicam ao ãtman, mas uma vez que o ãtman
é liberado eternamente, nenhuma ação ou obrigação é necessária...
Textos escriturais que parecem impor injunções tais como "O self é para
ser ouvido, deve-se refletir sobre ele, deve-se meditar sobre ele" (Brhad
II. iv.$) são apresentados pelos opositores como indicação de que a libe-
ração requer que se realize uma ação. Sankara responde: "Nós dizemos
que eles foram pensados para desapegar um indivíduo de objetos para
os quais ele se inclina naturalmente... esses [textos] desviam-no dos ob-
jetos, que atraem naturalmente o seu corpo e sentidos etc., em direção
a eles [textos], e então eles o guiam ao longo da corrente do self residen-
te". Em termos técnicos, esses textos não são injunções, mas meramente
eulogísticos (arthavãda) e servem somente para motivar as pessoas para
que fiquem longe de seus apetites naturais (BSBh I.i.4).

Por um lado, o voto de um bodhisattva é: "Que eu possa al-


cançar iluminação para o bem de todos os seres conscientes". Por
outro, o budismo Mahãyãna assume como obrigação fundamental
a de alcançar libertação, mesmo que seja para outros antes mesmo
que para si. Em muitos aspectos, isso não é muito diferente do ideal
Advaita Vedãnta, particularmente como expressão nas linhas fi-
nais do Vivekactidãmaryi (mencionado em 4.4). Mas para o Advaita,
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 347

a libertação vem de alcançar um verdadeiro discernimento e a atua-


lização da realidade fundamental do indivíduo, e para a maioria das
formas do budismo Madhyamaka não há nada como uma realidade
fundamental, apesar de algumas vezes "até os Mãdhyamikas usam
tal linguagem como metáfora para o vazio", como Eckel aponta em
comentário de um rascunho anterior a este. Assim, para o Advaita o
discernimento e a realização são resultados ontológicos, realizações
de um estado ontológico; nós os alcançamos ao superar a ignorância
ordinária e efeitos práticos corruptíveis de mãyã; não há obrigação de
realização ontológica no budismo Madhyamaka, só o objetivo pes-
soal de libertação e o subproduto do dever de exercitar compaixão.

9.3.4. Idéias judaicas de obrigação


A obrigação no judaísmo é estabelecida por vontade divina,
um mandamento pela justiça para todo o mundo e o mandamento
estabelecendo Israel na aliança do Sinai. Como Saldarini a descreve
(5.3.2.1), a tradição rabínica encontrou três idéias na aliança: a Torá
e seu estudo, o ritual e atos de piedade. Apesar do ritual envolvido
não ter sido o ritual sacrificial efetivo do templo desde a destrui-
ção do templo em 7o d.C, aquelas três permanecem centrais para
as concepções judaicas de obrigação. Certamente, a tradição judaica
desenvolveu uma concepção de moralidade universal, que tem in-
fluenciado extraordinariamente outras religiões ou culturas secula-
res. Mas, estritamente falando, essa moralidade universal é manda-
tória para judeus por causa do seu envolvimento na aliança.
Obrigação, como especificada de várias formas na religião
chinesa, budismo e Advaita Vedãnta, tem o fator vago comum de
ser um ideal que deve ser atingido. É simplesmente melhor estar
sintonizado e harmonizado, ser liberado dos desejos que causam
sofrimento, ser iluminado com discernimento e transformado para
realizar Brahma. Com o judaísmo, por contraste, estar obrigado pela
relação do indivíduo com Deus e por estar na aliança, é simplesmen-
te o que cada um é. Cumprir as obrigações não enaltece o humano
ou alcança virtudes especiais, na medida em que é uma resposta
cheia de gratidão à criação e auto-revelação de Deus. É uma forma
---=-_ - CATEGORIAS PESSOAIS E SOCIAIS
348-----

de tomar posse do dom humano de uma relação especial com Deus.


Os seres humanos não podem negar as suas obrigações, mesmo que
possam não cumpri-las: as suas obrigações os definem como seres
humanos. É sempre possível para as pessoas aquiescer as suas desar-
monias, sofrimentos e ignorância.
Assim as perspectivas judaicas sobre a vida, derivadas dessas
idéias de obrigação, tomam a vida como o campo no qual os seres
humanos desenvolvem relacionamento pessoal com Deus, e isso é
feito pelo cumprimento de suas obrigações.

9.3.5. Idéias cristãs de obrigação

As idéias cristãs de obrigação são muito parecidas com as ju-


daicas, salvo que a noção de aliança é um tanto diferente. A aliança
universal (simbolizado por aquela de Noé) e a aliança mosaica da
Torá não estão deterioradas apenas porque dão margem a impul-
sos maus ou por falharem nas rubricas de pureza, de acordo com o
cristianismo, mas porque a natureza humana decaiu seriamente e
interiorizou a quebra da aliança. Daí a obrigação, definida pela lei
divina, mesmo que obrigatória, pode ela mesma provocar o pecado
(6.2).
A obrigação mais ampla, então, é a de restaurar a possibilidade
de cumprimento das obrigações, e isto não pode ser feito pela hu-
manidade decaída sozinha. Por esta razão, de acordo com são Paulo,
Deus enviou Cristo para tirar do caminho a natureza decaída, das
maneiras como Fredriksen cita em 6.2. O cristão então que segue
Cristo, ou está "em Cristo", dirige-se a dois sentidos de obrigação.
Um é seguir uma vida normal de moralidade o máximo possível,
incluindo o imperativo de trazer outros para uma relação com Cris-
to. Mas esta vida moral nunca pode ser satisfeita ou cumprida por
si própria não importa o quanto nos esforçamos. Por essa razão, o
segundo significado de obrigação é "participar" em Cristo para com-
partilhar a sua transcendência (ressurreição) em relação ao mundo
para se juntar com Deus. Essa participação em Cristo é o único ca-
minho, para o cristianismo paulino e de Agostinho, no qual o ser
=
ROBERT CUMMINGS NEVILLE- --- 349
-=

humano pode completar o seu status de criatura, de outra forma ar-


ruinado por uma queda internalizada.
O cristianismo assim compartilha com o budismo Mahãyãna
e o Advaita Vedãnta, mas não tanto assim com as outras religiões es-
tudadas, uma aproximação de dois níveis de obrigação: um nível é a
moralidade de uma vida normal, e o outro é a remoção dos constran-
gimentos definidos existencialmente para a simples busca da mora-
lidade de uma vida normal. Para o budismo, a ignorância tem de ser
removida com a liberação do desejo, antes que a moralidade normal
possa ser assumida como tal, e a identidade religiosa é uma função
para remover essa ignorância. Similarmente, para o Advaita Vedãnta,
os seres humanos são normalmente cegador e distorcidos por mãyã,
e não podem encontrar a si próprios de tal maneira a permitir uma
moralidade ordinária como tal, sem aprender a discriminação e a
atualização pessoal Advaita. O budismo Advaita e o cristianismo
dão diferentes relatos específicos do segundo nível do problema
de obrigação. Para a religião chinesa, o judaísmo e o Islão, há uma
continuidade entre a moralidade normal e a obrigação última.

9.3.6. Idéias islâmicas de obrigação

Conforme discutido em 9.2.6, a idéia islâmica de obrigação


é que há uma parte criada do mundo, o divino amr de acordo com
o qual cada coisa é expressão da vontade do criador. A obrigação
torna-se especialmente operativa no caso de seres livres, tais como
humanos, que podem fazer de outra forma. A obrigação é expressa
no Alcorão e na Sharra, na qual é entendida como um padrão de
vida.
A singularidade central da idéia islâmica de obrigação é o ob-
servar a distinção entre Alá e tudo o mais, e a falha em fazer isso é
idolatria ou shirk (7.4.1). Isso expressa o aspecto do Islão ainda mais
central, ou seja, o testemunho de Deus corno o criador uno e abso-
luto.
Comparações da idéia islâmica de obrigação com outras já fo-
ram feitas sob o título de identidade pessoal (9.2.6).
--- ---- -
.=
350— CATEGORIAS PESSOAIS E SOCIAIS

9.4. A aflição humana

Todas as religiões que estudamos supõem que a condição


humana inclui uma aflição." Alguma coisa está errada na condi-
ção humana, em um nível básico que parcialmente define a di-
mensão religiosa, e a religião lida com esta aflição. A aflição da
condição humana é manifestada de diversas maneiras, em desar-
monia e desorientação, em sofrimento físico e emocional e num
comportamento destrutivo e imoral. As religiões diferem entre si
pelo que elas assumem ser a raiz da aflição e no que dizem que se
deve fazer a respeito.

9.4.1. Idéias chinesas da aflição humana

A aflição humana na religião chinesa, com certeza, é desarmo-


nia, alguma falha para estruturar parte da vida humana seguindo os
grandes padrões do cosmos e se manifesta em relações políticas e so-
ciais fraturadas, relações humanas quebradas, doenças psicológicas e
físicas e falhas de descendência ou identificação com o Um (2.2). Por
causa da concepção chinesa do cosmos como unificado e compos-
to de processos harmoniosos inter-relacionados, é difícil entender
como é possível essa desarmonia. A resposta é que o todo tolera algu-
mas harmonias cuja integridade é destrutiva para outras harmonias.
No caso humano, isto consiste usualmente de alguma tendência, que
em outras circunstâncias seria harmoniosa, sendo muito amplifica-
da (2.2). Por exemplo, cautela devida tornando-se medo, acúmulo
razoável tornando-se ganância. Kohn mostra que os seres humanos
diferem da maior parte das coisas naturais por virtude da consciência
e memória, dentro das quais reações extremas tornam-se "parte do
repertório individual de reações. Assim a aflição humana surge com
emoções e desejos, os quais por sua vez influenciam o pensamento
consciente e dão lugar a avaliações das coisas como vantajosas e ou
danosas, boas ou más. Por si só perpetuantes, estas emoções, desejos

*N. do T. Optamos traduzir predicament por "aflição", mesmo sabendo que este último possa
de início levar o leitor a alguma confusão. Mas a leitura em seu contexto dissipará, a nosso ver,
qualquer dúvida quanto ao significado.
ROBERT CUMMINGS NEVILLE -=-
--
---
-= 351

e avaliações conscientes são mais difíceis de serem expelidas do que


assumidas" (2.2).
As respostas da religião chinesa para a aflição humana são
variadas e necessitam ser estudadas com especificações diferentes
da restauração da harmonia. O capítulo 2.2 cita a ponderação con-
fucionista, maneiras daoístas de diminuir os impulsos sensórios e
a respectiva prática da não-ação, leis legalistas, "mandamentos sa-
zonais" dos cosmologistas e os mecanismos de controle populares
para se ligar a "ritmos cósmicos inerentes". Os daoístas medievais,
influenciados pelo budismo e influenciando o neoconfucionismo,
enfatizaram o cultivo de um caráter que retorna à Unicidade básica
da criação, ao ponto-pivô de onde a forma emerge do sem forma.

9.4.2. Idéias budistas sobre a aflição humana

A aflição humana para o budismo é expressa explicitamente


no primeiro sermão de Buda, que inclui não somente uma análise
da aflição, mas também prescrições sobre o que fazer com isso. A
discussão sobre sofrimento promovida por Eckel (3.2) começa por
mostrar como surge complicada e profunda a noção sobre sofrimen-
to. Ele faz distinção entre o sofrimento simples, o sofrimento devido
a mudança e o sofrimento "que consiste de estados condicionados".
A religião chinesa, mesmo aquela não inclusiva ou influencia-
da pelo budismo, reconhece o sofrimento físico e psicológico, as-
sim como as desgraças da comunidade. Isso é similar ao sofrimento
simples (dukkha-dukkha) do budismo. Miller, em um comentário
sobre esse assunto, exorta-nos a não fazer muito sobre isso:
Sofrimento não é realmente um problema que a religião chinesa vai
atrás para resolver. Talvez o seja na teoria política confucionista, ou na
teoria médica daoísta, mas penso que é razoável dizer que isso não con-
jura na imaginação chinesa o tipo de miséria generalizada que aflige a
consciência ocidental. Confúcio disse que ser um cavalheiro significa
não se magoar quando alguém não lhe reconhece. Zhuangzi escarneceu
dos que se preocupavam com seu nome e reputação. Mas isso é o máxi-
mo a que se chega.
- - CATEGORIAS PESSOAIS E SOCIAIS
352--

Os chineses (exceto os chineses budistas) não veriam a mu-


dança por si própria como causa do sofrimento, no entanto, por que
as coisas estão sempre mudando de qualquer forma, o que é um fato
que oferece oportunidades para melhora e ganhos, como também
para perdas. Nem seria o caráter condicionado ou a ignorância da
vacuidade das coisas visto como sofrimento profundo ou causa do
sofrimento. Sob a abordagem budista do sofrimento há uma fome
por estabilidade e auto-afirmação substancial, uma fome não tão
importante na antiga religião chinesa, a qual espera, pelo contrário,
mudança e problemas de harmonização. Os chineses, é verdade, as-
sociariam desordem com sofrimento, apesar de que nem toda mu-
dança é desordem. Trabalhando em cima desse assunto, em rascu-
nho anterior, Eckel escreve:

"Fome" é uma metáfora interessante. Você está absolutamente certo


quando diz que a única solução que a tradição indiana aceita é uma que
seja permanente e livre da mudança e sofrimento do samsãra. Esta é a
razão porque os budistas não aceitam nada menos que um cessar perma-
nente de um processo que é caracterizado completamente por mudança.
Esta é também a razão pelo qual os budistas Mahãyâna inseriram clan-
destinamente a palavra "eterno" (nitya) quando falavam sobre o Buda,
apesar de ser axioma fundamental na tradição o fato de que nada é eter-
no (sarvam anityam). Alguém pode ser tentado a concluir disso que o
Buda não é nada. Na realidade, isso não está longe da verdade. Para se
levar esse ponto ainda além, no entanto, você tem de reconhecer um
nível mais alto de cessação: não meramente a cessação de samsâra, mas
também o cessar da distinção entre samsãra e nirvana.

A diferença na perspectiva entre o budismo indiano e a reli-


gião chinesa tem muito a ver com tonalidade, na medida em que
ela é uma função de diferentes visões da aflição humana. Mesmo
quando as coisas estão ruins, a religião chinesa tem uma profunda
confiança nas harmonias maiores e mais altas do cosmos; ainda que
a vida de alguém esteja desordenada, com sofrimento psicológico
ou físico, esta vida é ainda vista como estando em continuidade com
as harmonias maiores. O budismo indiano tem um lado duro: a vida
é como viver com uma flecha envenenada encravada na carne, cuja
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 353

remoção coloca em questão o discurso aprazível de pensadores so-


bre o caráter imponderável do universo.

9.4.3. Idéias hindus da aflição humana


A aflição humana de acordo com o Vivelzacgãmarii é mãyã,
e a análise de mãyã nesse texto não corresponde meramente à ig-
norância epistemológica, mas sim ao que Clooney chama de uma
condição ontológica (4.4.4)• Especialmente os três gunas, tamas,
rajas, e sattva, nas suas próprias funções materiais, escondem, pro-
jetam e guiam cognitivamente o self, para que este viva em confu-
são; assim, a sociedade é confundida. Mãyã é o criador do mundo
material: "Diferença — como objetiva, como projetada pela mente
— deve-se a mãyã (Viveizacúdãmani 444); é o poder do Senhor, ex-
perimentado como o mundo material de um lado, e carnalidade
de outro (444)• O mundo tal como o conhecemos é cognoscível
somente em e por meio de mãyã" (4.2.1). Mas não se necessita expe-
rimentar o mundo como objetivo e cheio de diferenças, tomando
isso como real. "Mãyã é a ignorância com o corpo e com o poder; é
abrangente, funcionando em níveis múltiplos, como uma poderosa
força desfigurante para o mundo, que requer uma resposta à altura.
Mas a solução é possível, precisamente porque a ignorância não é
essencial à natureza humana; ela é um erro que pode ser remedia-
do, descartado" (4.2.1).
Muito da comparação com a religião chinesa no que se refere à
obrigação aplica-se aqui também, obrigação sendo relativa à aflição.
Em contraste com a profunda distinção metafísica Advaita Vedãnta
entre mãyã por um lado e por outro viver com discernimento e
realizar sua identidade com Brahma, os chineses constroem a afli-
ção humana como consistindo simplesmente de desarmonias que
bloqueiam os processos naturais de vida e inibem o tipo de trans-
cendência que constitui um nível mais alto de harmonia. Para os
chineses, os processos da natureza são fundamentalmente bons e
a desarmonia humana é possível somente porque nós sem querer
podemos jogar pequenas harmonias contra as maiores, deixando
cair objetos pesados em nossos pés ou tornando cautela em covar-
- - CATEGORIAS PESSOAIS E SOCIAIS
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354-

dia. Para o Advaita Vivelzaciidãmaryi, esses processos naturais são já


irreais e enganadores. Experimentar o mundo como multiplicidade
é natural e errôneo, levando-nos a uma profunda angústia.
O budismo e o Advaita não compartilham uma análise comum
da condição humana. Para o primeiro o problema é pensar que algu-
ma coisa é real no sentido permanente, quando não é; para o segun-
do, o problema é pensar que alguma coisa mudando é real, quando
somente o permanente é. Para o primeiro, a aflição é que as coisas
são de fato vazias, se apenas nós compreendêssemos de maneiras que
discernem; para o segundo, a aflição é que as coisas são de fato ple-
nas, puro Brahma, se nós apenas pudéssemos ver além da aparência
enganadora de mãyã. O budismo e a o Advaita compartilham muitas
das mesmas respostas praticas à aflição humana, ou seja, aprender a
discernir o que é real (ou não é) e transformar-se de modo a viver à
luz desse discernimento. Discernimento e transformação são temas
para uma análise comparativa mais profunda.

9.4.4. Idéias judaicas da aflição humana


Apesar da bondade de Deus e da criação divina, os seres hu-
manos estão em situação difícil porque essa criação inclui impulsos
para o mal. Assim a aflição é também criada por Deus. "Os rabis têm
a Deus, e não a Adão, como responsável pelo estado geral da vida
humana, com suas ambigüidades e males, e assim a complexidade
da vida deveria ser explicada por intermédio da complexidade em
Deus" (5.3.3.2.2). Mesmo assim os seres humanos são obrigados a
ser bons, e portanto devem trabalhar arduamente contra as suas in-
clinações más (5.3.4.2). Mais ainda, Deus por um lado será justo e
recompensará o bem e a luta contra o mal, por outro lado será mi-
sericordioso para aqueles que praticam o mal, mas se arrependem.
O período moderno não tem sido tão bom para a convicção ju-
daica de que a aflição humana não é tão ruim tal que esforço árduo e
um Deus misericordioso não tragam recompensas que alguém possa
esperar de um bom e providente Deus. O Capitulo 5.1.1 mostra que
o líder do judaísmo ortodoxo moderno, rabi Joseph Soloveitchik,
reafirmou a centralidade e a suficiência de vida sob a Torá, com as
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 355

preocupações modernas sobre arrependimento e angústia servindo


para reconstituir o self e reparar o relacionamento humano-divino.
Mas escritores modernos pós-Holocausto questionam como Deus
pode ser ainda concebido como bom e providente à luz das atro-
cidades nazistas. E as atrocidades específicas contra os judeus não
são os únicos sinais de que Deus não parece ser nem justo nem mi-
sericordioso. Então, parte da aflição humana moderna para judeus
tanto quanto para cristãos e escritores laicos é a de que o Criador e
Deus Defensor pessoal parece ter abandonado a cena humana. Em
face disso, uma interpretação de descontinuidade radical da aflição
humana atrai muitos pensadores judeus, ou seja, que não existe um
Deus pessoal e que a crença na providência divina, justiça e miseri-
córdia é simplesmente errônea.
Nem a religião chinesa, nem o budismo, muito menos o hin-
duísmo Advaita entendem a aflição humana como uma complica-
ção do relacionamento entre um Deus criador pessoal e pessoas. Há
vários temas de criação nessas religiões (talvez menos no sofisticado
budismo Mahãyãna) e surgem todos os tipos de complicação entre
as pessoas e o que é realmente real. Mas nenhuma delas interpreta
a aflição humana como o fracasso, ou pelo menos quebra inevitá-
vel de uma aliança. Assim como todas as outras religiões estudadas
aqui, o judaísmo afirma a importância do esforço para se posicionar
contra e corrigir impulsos maus, comportamento egoísta, desejos
degradantes e perversões ignorantes da realidade. Mas ao contrário
delas, o Judaísmo encontra uma parte mais profunda da aflição hu-
mana no âmbito da responsabilidade divina para o mal.

9.4.5. Idéias cristãs da aflição humana


A aflição humana para o cristianismo é complexa, rodeadas
como as pessoas estão pelos demônios e poderes deste mundo, e tor-
nadas impotentes pelas suas próprias naturezas decaídas (6.2). Mas
a aflição humana não se restringe a somente essa situação difícil. O
cristianismo primitivo logo desistiu desta interpretação da aflição,
quando Jesus não voltou tão rápido para acertar as coisas no decorrer
da história. Mais propriamente, como dito anteriormente, na época
356 -= CATEGORIAS PESSOAIS E SOCIAIS
dos últimos evangelhos como o de Lucas, a ressurreição de Jesus não
mais era pensada para avida ordinária travar batalhas contra o mal, mas
sim para o preparar-se para uma futura ascensão aos céus, para junto
de Deus, mostrando aos seres humanos o caminho para lá e envian-
do de volta o Espírito Santo para guiar as pessoas na sua vida na terra.

Então a aflição humana é que a vida finita por si só é fragmen-


tária, e que as recompensas e castigos morais não somam na história
cotidiana, nem mesmo para os salvos. Nesse sentido, o mal é sim par-
te da criação, cuja fonte é Deus. A salvação requer fazer o melhor que
as pessoas possam na vida cotidiana, mas também se associar com
Deus, conexão tornada possível pelo Cristo. Como mencionado an-
teriormente, este contraste tanto com o judaísmo, o qual espera pela
redenção na história a despeito da preocupação sobre o porquê isso
parece não estar acontecendo, quanto com o Islão, que confia na re-
denção na história e em conexão com o Céu, parte da grande ordem
criada, sem muitas preocupações quanto à recalcitrância do mal. O
cristianismo junta-se ao budismo e ao Advaita Vendãnta, numa for-
ma vaga, ao entender a vida cotidiana como nunca se preenchendo
por si própria. Ao invés, a atitude própria para a vida cotidiana deve
ser tomada de uma perspectiva fora daquele contexto ordinário,
como dizendo, uma transubstanciação de valores. É lógico que o
cristianismo, o budismo e o hinduísmo especificam este ponto de
maneiras bem diferentes.

9.4.6. Idéias islâmicas da aflição humana

Como fica claro no capítulo 7, a aflição humana para o Islão


vem do fato de que há uma lei divina e os seres humanos são livres
para desobedecê-la. Ademais, o mundo apresenta tentações para tan-
to, apesar de não haver a necessidade de desobediência. Mais ainda,
por intermédio de Maomé, Alá revelou a lei divina no Alcorão, de
forma a não precisar haver confusão sobre ela, especialmente à luz
do desenvolvimento da tradição jurídica.
O problema central na aflição humana, tão importante que
Haq o chama de uma obsessão (7.4.2), é a idolatria, shirk. A idolatria
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 357

não é um simples erro acerca de Deus, nem uma mera expressão


do egoísmo humano, narcisismo ou grandiosidade, muito embora
possa ser uma dessas coisas. Mas, precisamente por causa da rela-
ção imediata e assimétrica entre o Criador e a criação, discutida no
capítulo 8, não há nenhum anteparo entre Deus e o mundo. Assim,
Deus é imediatamente presente para os seres humanos, mais perto
do que a sua própria veia jugular. Ou do ponto de vista dos místicos,
o êxtase místico pode levá-los a Deus ou preenchê-los da presença
divina, dependendo de como você vê isso. Haq (7.5) discute a
grande dificuldade que os Sufis enfrentam em evitar shirk en-
quanto apreciam Deus. Esta é a parte mais difícil da aflição humana.
Muito do cristianismo, por contraste, celebra a "idolatria" bem
sucedida como religião que assume a encarnação ou theosis, a divini-
zação dos seres humanos. Para tal cristianismo, a revelação em Cris-
to não necessita de ser classificada como eterna e totalmente divina,
ou temporal e totalmente criada, apesar destes terem sido termos
em famosas controvérsias. Pelo contrário, Jesus e o Espírito Santo
são tanto interpretados como extensões de Deus para o mundo, ma-
nifestados de formas criaturais, quanto "compartilhando ambas as
naturezas" como as discussões sobre a Trindade o colocam. Assim, a
convicção vaga compartilhada de que Deus cria totalmente o mun-
do, que é dependente por completo de um ato divino de criação, é
especificada de duas maneiras bem diversas: no Islão, há uma que-
bra bem marcada entre Deus e as sua criaturas; já no cristianismo, o
ato da criação provê continuidade, ainda que a direção da ação seja
•ainda assimétrica.
A principal diferença entre o islamismo e o judaísmo no que se
refere à aflição humana, como já tem sido mencionado várias vezes,
tem a ver com o significado do mal. Enquanto ambos concordam
que a perversidade humana é parte da criação divina, o judaísmo,
em especial nos seus desenvolvimentos posteriores (5.4), não pode
afirmar facilmente que isso possa ser justificado somente por ser
colocado a serviço do bem. A religião chinesa, o budismo e a Advai-
ta Vedãnta não têm muito que seja similar à problemática Islâmica
do shirk, ou da concepção Islâmica da necessária vitória de Deus.
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358- - CATEGORIAS PESSOAIS E SOCIAIS

9.5. Afiliações

Sob a categoria das afiliações ficam aqueles aspectos da con-


dição humana que devem ser entendidos primariamente como re-
lações. Por exemplo, sociedades nas suas dimensões religiosas são
afiliações definindo a condição humana, da mesma forma que são
interações de indivíduos e grupos com elementos no ambiente na-
tural. Apesar de todas as religiões que estudamos reconhecerem in-
divíduos e aspectos religiosamente importantes da individualidade,
às vezes a mais importante "unidade" para a condição humana é um
grupo, comunidade ou relação.

9.5.1. Idéias chinesas acerca de afiliações

Como estudado no capítulo 2 e no decorrer dos capítulos 8


e 9, a religião chinesa refere-se à condição humana como prima-
riamente associativa, e a afiliação está com os cosmos por inteiro,
não meramente uma sociedade humana ou o ambiente. Além do
mais, afiliações que sejam importantes em termos humanos assim
o são com muitas coisas e com diferentes escalas, com freqüência
agrupadas hierarquicamente. Por exemplo, a Prática exterior diária
(2.3.1) defende uma afiliação harmoniosa apropriada, primeiro com
a esfera mais abrangente, o céu e a terra, depois com a mais próxi-
ma do sol e da lua, depois com a lei da sociedade, depois o modelo
de reinado, e então os familiares, mais próximos à casa. Com res-
peito à cada escala das coisas, há um tipo apropriado de harmonia
envolvido na afiliação apropriada: com aqueles mencionados eles
são respeito, honra, medo, seguimento e obediência. Estes são todos
exemplos de deferência num sentido vago, mas são deferências de
um tipo apropriado — você não pode "obedecer" céus e terras como
o faz com familiares. Esse texto segue listando muitas outras coisas
ou pessoas, a afiliação com o qual se define a condição humana, a
afiliação harmoniosa definindo virtude, e a afiliação desarmoniosa
constituindo alguns aspectos da aflição humana: superiores, inferio-
res, boas coisas, coisas ruins, pessoas perfeitas, pessoas debochadas,
conhecimento erudito, conhecimento profundo, luxo, perfeição
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 359

humana, os defeitos dos outros, as virtudes alheias, meios habilido-


sos, a vizinhança de alguém, o sábio, o bom, espetáculos importados,
pobreza, riqueza, ação, repouso, o próprio ego, inveja, ódio, sovinice,
ganância, esperteza, os oprimidos, poupadores, promessas, verdade,
os pobres, os órfãos, os sem-teto e indigentes, aqueles em perigo e
atribulados, mérito oculto, compaixão, assassinato, corações cheios
de intriga e o transcendente. Algumas dessas coisas são externas e
outras, como o ego de alguém, são internas; mas todas são coisas
com as quais devemos assumir algum tipo de orientação ou relação.
Porque todas as coisas na religião chinesa, incluindo o indiví-
duo, são harmonias de processos e participam em muitos padrões
harmoniosos correntes, que terminam na unidade do processo cós-
mico, o como cada um se relaciona com o seu próprio ego, conheci-
mento, ou tendência a esquematizar, são todos para ser entendidos
como assumindo ou consertando afiliações. As implicações teóricas
da abordagem chinesa às afiliações têm a ver com a concepção de
que tudo é composto de e participante em harmonias. A implicação
prática para a dimensão religiosa da vida tem dois lados. Por um lado,
precisa-se apreender cada uma das afiliações de maneira correta, e
muitas (se não todas) podem ser problemáticas. Por outro, precisa-se
integrar ou manter em balanço harmonioso todas nossas diferentes
afiliações. Esse outro lado é onde a harmonia pessoal ou interior de
alguém espelha a unidade profunda ou transcendente do cosmos; o
daoismo, confucionismo e o budismo chinês especificam tudo isso
de diversas maneiras.

9.5.2. Idéias budistas acerca das afiliações


Ern meio às idéias religiosas significativas sobre afiliações
em quase todas as formas de budismo, estão aquelas que têm rela-
ção com o Sangha, e não tocamos nesse tópico em detalhe algum.
A idéia monástica, entretanto, coloca-se em contraste nítido com a
religião chinesa, exceto o budismo chinês. Retirada do mundo para
um monastério ou para uma comunidade fechada, era vista como
uma afronta pelos confucionistas, que criticaram os Budistas por
negligenciar suas famílias e deveres cívicos. Os taoístas podem ser
360-
--=---
- CATEGORIAS PESSOAIS E SOCIAIS

mais tolerantes quanto à reclusão, e o taoismo medieval representa-


do nos textos do capítulo 2 incluía a fundação de templos e monas-
térios, com o propósito de aperfeiçoar a vida meditativa, incluindo
a sua dimensão transcendente. Mas mesmo no taoismo medieval há
a injunção para se afiliar de maneira apropriada com os céus, com o
sol e a lua, a lei, o rei, os familiares, e todos os tipos que encontramos
ao longo da vida, ilustrados nos textos sob discussão em 2.3.1.
Um verdadeiro bodhisattva livre estará em uma harmoniosa
relação com as cercanias humanas e naturais. Mas, aprimorar a afi-
liação a alguém não é o estofo mesmo da vida budista na maioria de
seus ramos, assim como o é para a religião chinesa. No budismo, é
possível ver as afiliações como ânsias, a fonte do sofrimento, e estas
devem ser abandonadas antes que a liberdade seja alcançada e afilia-
ções não escravizantes sejam possíveis.

9.5.3. Idéias hindus acerca das afiliações

Se for verdade o que foi sugerido em 9.4.1, que a religião chi-


nesa entende a condição humana primariamente como associativa,
o oposto é verdade para o Advaita Vedãnta do tipo apresentado no
VivelzacCielãmarvi. Precisamente, porque a diferença por si só é mãyã,
a afiliação também é mãyã. Então no nível da verdadeira e não-dual
realidade, só há Brahma do qual ninguém é diferente e portanto não
há afiliações reais.
Dentro do domínio de mãyã, no entanto, existem as afiliações
da vida diária, com a estrutura da família brâmane para a comuni-
dade de Vivelzacüdãmani, uma estrutura política e social, e relações
diversas com o ambiente natural. Ademais, o adepto pode viver den-
tro de todas estas afiliações, sem as confundir como dualistas: "por
vezes um tolo, por vezes um sábio, por vezes possuindo um esplen-
dor real, por vezes comportando-se como uma pyton imóvel, por
vezes apresentando uma expressão benigna, por vezes honrado, por
vezes insultado, por vezes desconhecido — assim vivem os sábios,
todos felizes no mais elevado êxtase (Vivelzacúdãmani 542; citado
em 4.4).
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 361

Clooney enfatizou os aspectos excludentes do VivekacCuRtmaryi


e sua comunidade. Esta comunidade religiosa particular era limita-
da aos brâmanes homens, que eram alfabetizados e podiam estudar
e que desejavam perseguir o caminho descrito no texto. Como uma
comunidade fechada, devotada ao estudo com o propósito de dis-
cernimento e transformação, essa comunidade Advaita apresenta
alguma similaridade com os monastérios budistas e taoístas, ainda
que as diferenças mereçam um estudo mais acurado.

9.5.4. Idéias judaicas acerca das afiliações

Como já mencionado, a afiliação é um componente primeiro


e central da identidade pessoal para a maioria das formas de judaís-
mo, um ponto que este vagamente divide com a sensibilidade chi-
nesa, ainda que a especifique em termos da Aliança. Para o judeu, ser
uma pessoa é estar em aliança com Deus. As afiliações envolvidas na
aliança incluem aquelas com Deus dos tipos mencionados acima,
com outros judeus dentro do Povo de Israel, com não judeus, com o
habitat humano, e especialmente com a terra de Israel como o lugar
para os judeus, conforme estipulado na Aliança.
O senso judeu de obrigação como aliança é também intensa-
mente afiliativo. Diferentemente, digamos, de uma interpretação
kantiana de mandamentos e imperativos categóricos, que podem
ser formulados como máximas universalizáveis, a Torá conjuga a
adoração de Deus, o participar com outros no ritual, o interagir com
os outros de modo moral e piedoso e, como desenvolvido posterior-
mente (5.3.1), o estudo em comum. Esses são compromissos comu-
nitários positivos.
A importância especial do povo de Israel é tão grande, na maio-
ria dos períodos do judaísmo, que é quase como se Israel, mais do
que os indivíduos, representasse o sujeito humano interagindo com
Deus. Grupos monásticos taoístas e budistas, escolas confucionistas
e vedânticas, são comunidades especiais no seio das quais as pessoas
praticam a religião. Mas com o judaísmo é praticamente o contrário:
Israel relaciona-se com Deus por intermédio de humanos cumprin-
362 CATEGORIAS PESSOAIS E SOCIAIS

do diversos papéis. Esse ponto necessita de uma qualificação acen-


tuada, é lógico, pois é o indivíduo judeu que se preocupa com o Povo
de Israel. Mesmo assim, na religião chinesa, no budismo Mahãyãna
e no hinduísmo, especialmente o Advaita Vedãnta, as comunidades
são situações e instrumentos para a religião pessoal. No judaísmo, a
religião constitui-se de atos de indivíduos definidos na relação de
um para com o outro pela Aliança, incluindo relações com os não
judeus.

9.5.5. Idéias cristãs acerca das afiliações


Os primeiros cristãos transformaram a idéia da comunidade
da aliança Mosaica, Israel, para a idéia da Igreja, o Novo Israel. Ha-
via assim duas grandes divergências no judaísmo tardio do Segundo
Templo com relação à herança de Moisés. O judaísmo na sua forma
rabínica definia a comunidade da aliança primariamente (ainda que
não exclusivamente) de forma étnica e de parentesco relativa à Torá,
enquanto o cristianismo definiu a mesma em termos voluntários,
como a Igreja relativa a Jesus. O cristianismo transformou os termos
do parentesco em outros universais, de forma que todas as pessoas
sejam irmãos e irmãs, e que Deus seja Pai de Todos.
Esta diferença entre o cristianismo e o judaísmo manifesta-se
na diferença entre as formas como elas (estas duas religiões) rela-
cionam as suas comunidades da aliança primárias com a sociedade
à sua volta. Para o judaísmo, tal relação idealmente deve ser como
uma família vivendo em meio a outras famílias, todas sob Deus, mas
tendo tarefas especiais para a família de Israel. Para o cristianismo,
todas as pessoas pertencem a uma mesma família de maneira final,
e aqueles que não são parte da Igreja são irmãos e irmãs não salvos;
daí o grande impulso ao proselitismo. Isto não é dizer que o cristia-
nismo necessariamente tenha de negar que a Salvação seja possível
fora da Igreja; nossos irmãos e irmãs poderiam encontrar outros ca-
minhos para Deus, e não há princípio algum no cristianismo que
possa limitar a graça de Deus. Jesus acreditava que o judaísmo "fun-
cionava", mesmo que Paulo tivesse suas dúvidas (6.2). Até mesmo
Paulo apelou à ética da lei natural estóica e para o Deus desconhe-
ROBERT CUMMINGS NEVILLE 363

cido dos gregos. Mas o cristianismo tem sido na maioria das vezes
exclusivista, por causa do seu ponto de vista de que todos os seres
humanos devem ser entendidos como uma só família sob Deus.
O cristianismo compartilha com a religião chinesa, o judaísmo
e o islamismo a forte convicção de que o mundo criado é fundamen-
talmente bom, ainda que contendo sofrimento e maldade. A boa
"imagem de Deus" permanece mesmo na natureza humana decaída.
Daí a obrigação de afiliar-se com a natureza de modo apreciativo. A.
modernidade de alguma forma eliminou isso, representando a natu-
reza como isenta de valoração; isto proporcionou o individualismo
Cristão e uma atitude instrumental para com a natureza, mais do
que uma apreciação dela enquanto parte da boa criação de Deus.

9.5.1. Idéias Islâmicas acerca das afiliações

O islamismo compartilha com o cristianismo, em oposição


ao judaísmo, a convicção de que todas as pessoas são uma família e
de que a mesma lei serve para todos, ou deveria assim ser se todos
tivessem conhecimento disso. Como no Cristianismo, disto segue
um forte compromisso para o proselitismo. Da confiança islâmica
na clareza do propósito de Deus e na inevitabilidade da expressão
divina na história, segue-se uma expressão política muito forte (7.6).
De fato, o islamismo não tolera a distinção entre ordem política e
islamismo como uma religião. O cristianismo por vezes seguiu a
mesma linha, apesar de reconhecer a qualidade fragmentária e ca-
rente da história, como no contraste de Agostinho entre a cidade do
homem e a cidade de Deus. Para o cristianismo, a imagem do Cristo
crucificado como paradigma para a condição humana deveria colo-
car em causa a coincidência da religião e da política; o islamismo dá
a Jesus um lugar de grande importância, mas nega que tenha sido
crucificado (Alcorão 4,157-58) porque isso não seria digno de um
dos profetas de Deus.
O ideal Islâmico para a comunidade humana é o de que ela seja
unida em um todo pelos preceitos da Sharia. A afiliação social
ideal assim assume a forma de regras ou princípios que interligam
-=-. -
364---=- CATEGORIAS PESSOAIS E SOCIAIS

os papéis. A forma de afiliação social sendo o seguir um padrão de


regras ou princípios, então é comum de modo vago ao confucionis-
mo, muitas sociedades tradicionais hindus e o judaísmo, na medida
em que isso se aplica a Israel sob a Torá. Isso contrasta com o modelo
de afiliação, primariamente orientado à missão, do ideal bodhisattva
do budismo Mahãyãna e do cristianismo. As comunidades monásti-
cas de qualquer religião concebem suas afiliações como governadas
por regras, mas em alguns casos, por exemplo no cristianismo e no
zen-budismo, como uma comunidade definida por regras que é ins-
trumento para uma missão ou propósito mais amplos.
O senso islâmico de afiliação com a natureza tem dois lados.
Em um lado, ele procura distinguir natureza e Deus, de modo a evi-
tar shirk. Em outro, vê a natureza como expressando Alá, o divino
amr, e pode vir assim mais perto do misticismo da natureza, espe-
cialmente na vida sufi. Este senso bi-partido de afiliação com a na-
tureza distingue a sensibilidade islâmica, pelo menos em algumas
partes, do senso do judaísmo e do cristianismo. Em outras partes,
porém, todas se juntam para celebrar a bondade da criação.

9.6. Pós-escrito

Deveria ser dito uma vez mais que as comparações apresenta-


das no capítulo 8 e aqui resultaram de nosso estudo para um exame
posterior. Elas serviram para mostrar como diferentes religiões divi-
dem uma idéia comum de modo vago, mas especificam-na diferen-
temente. Por vezes, as comparações tiveram origem nas diferenças
e procuraram uma maneira comum para comparação; e, noutras
vezes, resultaram de similaridades vagas, e daí evoluíram para as di-
ferenças. A enormidade da tarefa de levar até o fim as comparações,
de conferir as especificações, e especificações de especificações, de
refinar a afirmação de parâmetros comuns nos quais as comparações
podem ser feitas e de cruzar as categorias é verdadeiramente assom-
brosa.
Mas esperamos ter mostrado (1) que comparações são feitas
pela articulação tanto dos sentidos vagos para comparação, os quais
--=
ROBERT CUMMINGS NEVILLE----2 365

as coisas comparadas sustentam vagamente em comum, como das


diferentes especificações em virtude das quais as diferenças são re-
gistradas. As comparações consistem em mostrar o que são as simi-
laridades e diferenças. Esperamos também ter mostrado (2) que a
nossa discussão colaborativa fez um progresso real na identificação
de como as religiões, pelo menos nas variantes que estudamos, de
fato tenham elementos comparativos vagos em comum, e os espe-
cificam diferentemente em algo parecido com o que apresentamos.
Tudo isto ainda está sujeito a investigação posterior. De fato, a audá-
cia de nossas hipóteses comparativas teve a intenção de provocar es-
tudos posteriores mais sistemáticos. Ao expressar nossas hipóteses
de categorias interconectadas de unidade, status ontológico, valor,
causalidade, identidade pessoal, aflição, obrigação e afiliações, espe-
ramos tê-las feito vulneráveis à correção. Podem ser aproximadas de
diferentes ângulos de comparação, em termos de diferentes ramos
das tradições que estudamos, e em termos de diferentes textos. Es-
sas mesmas categorias podem ser abordadas criticamente do ponto
de vista de outras categorias, e na realidade elas o serão em nosso
próximo livro sobre realidades últimas.
APÊNDICE A
SOBRE O PROCESSO DO PROJETO
DURANTE O PRIMEIRO ANO

Wesley J. Wildman

O Projeto de Idéias Religiosas Comparadas, ou CRIP, como ca-


rinhosamente o chamamos, poderia bem ter sido chamado de Pro-
cesso de Idéias Religiosas Comparadas. O projeto foi concebido em
cima do pressuposto de que não é possível implementar e avaliar
uma metodologia cooperativa e autocorretiva para a comparação
de idéias religiosas sem criar, ao mesmo tempo, uma comunidade
de estudiosos para servir de meio e laboratório. Os membros des-
sa comunidade teriam de ensinar uns aos outros, escrever com os
colegas em mente, criticar uns aos outros e serem tirados de seus
modos usuais de trabalho para adotar abordagens desconhecidas.
Enfim, tudo o que envolve excitação e desconforto intelectual, tem-
po, muitas refeições em comum, discussões inacabáveis, escrever e
rescrever artigos, momentos de alegria, frustração, desentimento,
exaustão, satisfação e percepções reveladoras.

Os três volumes do projeto correspondem à produção formal


do grupo. Em sua maior parte, eles foram escritos em seqüência e,
a despeito das mudanças editoriais posteriores, é fácil constatar que
os três volumes são bastante diferentes uns dos outros, o que sugere
um processo de desenvolvimento. Sobre esse processo, há uma his-
tória fascinante a ser contada, uma história que ilumina o aspecto
coletivo crucial do método adotado no projeto. Este apêndice é o
primeiro de três, cada um será anexado respectivamente no final
de cada um dos volume, que em conjunto buscam expor este pro-
=------- DURANTE O PRIMEIRO ANO
368—

cesso de desenvolvimento ao escrutínio dos estudiosos de religião


(ou cientistas da religião) interessados no método comparativo. Os
três apêndices foram primariamente concebidos para serem lidos
em conjunto, devendo também fazer sentido individualmente. To-
dos os três apêndices foram escritos depois do processo inteiro es-
tar completos. Constituem-se, portanto, em análises retrospectivas do
processo, em vez de simples descrições do que aconteceu. Baseiam-
se numa grande quantidade de atas (as quais são ocasionalmente
citadas) distribuídas aos membros do projeto no decorrer dos anos
de reunião como uma espécie de feedbach: auxiliar o grupo a refletir
sobre as discussões e tomar pé na direção geral tomada pela inicia-
tiva. A análise retrospectiva constante desses apêndices é também
em grande parte minha própria leitura do processo do grupo, infor-
mada por discussões mais ou menos extensas travadas com os parti-
cipantes e por um envolvimento total de minha parte. Com efeito,
mais de um participante desse projeto estaria disposto a argumentar
que minhas atas foram em grande parte derivadas de minha própria
leitura do ocorrido em nossas reuniões, em vez da pura e simples ob-
jetividade! A dimensão subjetiva de tais atas e análises é, com efeito,
inevitável. Assim sendo, o estilo de objetividade aqui buscado não é
o do biólogo ao dissecar suas plantas, ou o do arquiteto ao conceber
sua construção, mas aquele do escritor (idealmente) imaginativo e
observador que procura iluminar a realidade plural de um processo
grupal complexo de modo a despertar, embora limitado e relutan-
te, o consenso dos envolvidos. Daí este conjunto de apêndices fazer
parte tanto do processo do grupo quanto dos eventos e desenvolvi-
mentos discutidos.

Por diversas vezes foi debatida a possibilidade de tornar o pro-


cesso do grupo, ocorrido nos bastidores das publicações, mais trans-
parente aos leitores, talvez pela inclusão das atas das reuniões nos
volumes ou pela sua disponibilização por meio da Internet. Fran-
camente, estávamos preocupados com a possibilidade de que essas
estratégias não surtissem efeito; as notas trazem alusões a muitos
dos momentos interessantes do trabalho, mas o leitor precisaria ter
participado das reuniões para estabelecer as conexões necessárias.
WESLEY J. WILDMAN 369

Frustrados pelo problema de traduzir para a escrita algo tão visce-


ralmente importante para o método, e tendo já se lançado em duas
tentativas nesse sentido, resignamo-nos a contar com as muitas
descrições do método espalhadas pelos três volumes. Afinal, essas
descrições sublinham a importância de uma comunidade de inves-
tigação e, além do mais, e conforme foi assinalado por Frank ao fi-
nal do primeiro ano, "Projetos anteriores desse tipo não foram bem
sucedidos ao tentar iniciar os leitores no processo do trabalho". Não
obstante, permanecemos inquietos com essa solução, e essa inquie-
tação foi confirmada por nossos conselheiros durante a conferência
de conclusão do projeto. Todos eles insistiram na importância vital
de retratar o processo do grupo para o público leitor desses volu-
mes. A argumentaram que descrever a importância do processo em
capítulos filosóficos dedicados ao método jamais conseguiria comu-
nicar a natureza particular deste aspecto metodológico do projeto.
Assim confirmadas nossas suspeitas, estávamos convencidos de que
algo tinha de ser dito a respeito. Não obstante, essa confirmação não
nos deixou mais próximos de uma maneira satisfatória de dizê-lo, e
continuam nos faltando palavras para tanto.

Esta série de apêndices adota uma abordagem razoavelmente


experimental para o problema de transmitir o contexto social do
CRIP. Dois desafios precisam ser encarados. Primeiro, ao passo em
que o corpo principal de cada volume permanece uma fotografia
razoavelmente fiel do ponto em que nos encontrávamos ao final de
cada ano de projeto, a descrição do contexto social demanda uma
abordagem diferente — ela não pode ser comprometida pelas limi-
tações bem reais de percepção de que fomos acometidos ao longo
do caminho. A abordagem retrospectiva pretende responder a este
desafio. Nossa perspectiva ao fim do projeto também necessita de
enriquecimento, é claro, mas é significativamente mais adequada,
devido ao próprio processo que a produziu, do que nossa autocom-
preensão em qualquer ponto anterior à culminação de nosso traba-
lho em conjunto. Em segundo lugar, o contexto social precisa ser
transmitido de modo a permitir que a personalidade e o humor dos
envolvidos sejam entrevistos. Para tanto, os apêndices fazem uso
-- - DURANTE O PRIMEIRO ANO
370.----=- -=

freqüente do estilo narrativo e da linguagem pitoresca necessária


para comunicar o colorido do processo grupal. O objetivo é convi-
dar a imaginação do leitor a penetrar no trabalho e nas disputas que
marcaram as discussões do grupo.

Assim, depois destas observações introdutórias, eu passo à des-


crição e à análise do processo que produziu o Projeto de Idéias Reli-
giosas Comparadas.

O cenário

Imagine uma sala de aula comum na Avenida Commonwealth,


Universidade de Boston. É ali que o CRIP se reúne na maioria das
vezes. No meio da sala, uma grande mesa retangular circundada por
dezesseis cadeiras de forro vermelho-escuro. Nos dias de reunião,
um pequeno carrinho com itens de café da manhã é colocado numa
das extremidades da mesa por Susan Only, a coordenadora, contro-
ladora de tráfego, faz-tudo e tesoureira do CRIP. Ali, ao alcance de
todos, pode-se encontrar bules de café, garrafas de vidro de suco de
laranja, garrafas de plástico de água mineral e uma grande variedade
de rosquinhas de Dunkin-Donuts, algumas cobertas de glacê colorido
(minhas favoritas). Bob Neville, o pesquisador-chefe, sempre apare-
ce mais cedo para dar uma espiada; se a sala ainda está vazia, volta
correndo pelo corredor até seu escritório para ditar rapidamente
uma ou duas cartas, ansioso para aproveitar ao máximo o tempo li-
vre. Pouco antes das nove da manhã, as pessoas começam a chegar.
Frank Clooney (especialista em hinduísmo) e Tony Saldarini (judaís-
mo) aparecem cedo, vindo juntos desde o Boston College. Sauda-
ções amigáveis são trocadas com quem por ventura já esteja na sala.
O pessoal da Universidade de Boston aparece logo depois, normal-
mente anunciado pelo outro pesquisador-chefe, John Berthrong,
vestido elegantemente de chapéu e com um novo estoque de histó-
rias e piadas. David Eckel (budismo) e Livia Kohn (religião chinesa)
quase sempre chegam na hora exata e enquanto Paula Fredriksen
(cristianismo) um pouquinho depois. As saudações se multiplicam
como numa tapeçaria, enquanto as pessoas vão se amontoado em
WESLEY J. WILDMAN 371

torno da comida. Peter Berger, o outro investigador-chefe, freqüen-


temente se atrasa, mas quando chega, aquece a sala com seu largo
sorriso quando chega. A este também não faltam piadas e histórias.
Nomanul Haq (Islão) mora longe e, estando assim mais à mercê dos
deuses do transporte do que o resto de nós tem uma chegada menos
previsível. Mas as chegadas mais difíceis de serem previstas são as
dos seis estudantes de doutorado, cujas vidas ainda não encontraram
a estabilidade trazida pela idade ou por uma necessidade imperiosa
de sono, capaz de criar hábitos matinais consistentes (ou tarefas ma-
tinais consistentes, pelas mesmas razões). Este que vos fala chega
cedo, naturalmente, porque a mim cabe sentar no computador para
escrever a ata e começar a editar o documento com o registro de
minhas observações sobre o dia de trabalho. Mas ainda me sobra
tempo para comer rosquinhas demais e uma garrafa inteira de suco
de laranja, enquanto cumprimento aqueles que vão chegando.
Ah, comida e saudações! Não fosse pela comida jamais podería-
mos ter trabalhado juntos. A contar pela nossa experiência, comida
é a pré-condição número um para o sucesso de um trabalho coletivo
de religião de comparação. Freqüentemente especulávamos sobre
os grandes tópicos mais apropriados para um quarto ou quinto volu-
me (Deus nos livre!), mas sempre terminávamos voltando à comida.
Comida não é somente um dos temas centrais em todas as religiões;
compartilhá-la foi a nossa experiência mais espiritual. Esta prática
nos reuniu e nos manteve juntos de um modo que somente a aven-
tura intelectual sozinha não poderia ter feito. Nesse sentido, as co-
midas e bebidas servidas por Susan Only serviram de parteiras no
estranho nascimento da identidade de nosso grupo, ou talvez de sa-
cerdotisas para os sacrifícios calóricos que, a muito custo, nos arran-
caram certo tipo de união dos deuses das Ciências da Religião, que
tão amiúde parecem preferir a dispersão e a incompreensão mútua.
Chegamos, temos comida e bebida e nos preparamos para a
nossa tarefa coletiva com o combustível social composto de sauda-
ções e sorrisos. É claro que, por alguma razão, alguém pode faltar e, à
medida que o tempo vai passando, sentimos essas ausências mais in-
tensamente. Mesmo os silenciosos estudantes de doutorado fazem
372 DURANTE O PRIMEIRO ANO

falta, talvez especialmente, pela assiduidade com que normalmente


comparecem. Mas, nas mais diferentes configurações — todo mun-
do na maior parte das ocasiões durante o primeiro ano — chegamos.
Trabalhamos por uma hora e meia e fazemos um intervalo para
mais comida, bebida e socialização. Alguém sai para procurar Susan
a respeito de alguma questão administrativa. Outro alguém me en-
contra e diz que descaracterizarei uma observação sua em minha ata
da reunião anterior, dando-me a oportunidade de fazer uma corre-
ção. Um aluno de doutorado levanta uma questão para um pesqui-
sador. Negócios acadêmicos são realizados. Então, o trabalho reco-
meça. Mais outros noventa minutos e é hora de parar para o almoço:
comida de excelente qualidade — inexplicável, considerando sua
natureza institucional. Batemos papo enquanto esperamos na fila
das saladas e sanduíches. Refeições Kosher numa prateleira ao lado;
biscoitos no final da mesa; bebidas no balde de gelo — mas era
preciso chegar cedo para tomar refrigerante de laranja. Num dado
momento, uma reclamação a respeito da escassez de refrigerante de
laranja chega aos ouvidos de Susan e, como não poderia deixar de
ser, mais refrigerante de laranja apareceu na reunião seguinte. Os
membros do grupo que trabalham na Universidade de Boston apro-
veitam os últimos minutos de intervalo para checar mensagens de
telefone antes de retornar para a sessão vespertina. Frank come rapi-
damente para deixar algum tempo para a sua caminhada de praxe em
torno do rio Charles. Se alguém estiver disposto a ir com ele, deve
caminhar rápido; ele inclusive colocará a rapidez no caminhar como
uma condição para compartilhar da sua companhia. Frank leva suas
caminhadas muito a sério. Quando o acompanhei tive de diminuir
um pouco meu passo normal, mas nunca deixei que ele percebesse.
Quando terminamos de almoçar, a galera estudantil do outro
lado do campus, embora pouco sabedora da existência do CRIP, sente
o cheiro de comida. Reunidos em torno das migalhas, timidamente
eles se aproximam do refeitório, às vezes incentivados por seus pro-
fessores ou uns pelos outros. Depois do almoço, o mesmo padrão da
manhã é repetido, com duas sessões de uma hora e meia separadas
por um intervalo de trinta minutos. O intervalo da tarde tem um
WESLEY J. WILDMAN 373

sabor diferente. Os biscoitos remanescentes do almoço — quando


os há — são resgatados do refeitório antes de serem consumidos por
estudantes famintos e assim preservados para a hora do chá — mas
às vezes não há muito o que comer. Em geral, a esta hora, o colori-
do suco de laranja não existe mais, sobrando somente garrafas de
água para beber, fora a xícara de café vespertina. As pessoas estão
cansadas depois de três sessões de intensa reflexão e discussão. Às
vezes estão confusas ou frustradas; às vezes desejam esclarecer uma
determinada questão com um colega. O nível de energia está mais
baixo. As pessoas começam a pensar em ir para casa. Mas todos bus-
camos energia lá no fundo para os últimos noventa minutos e, para
nossa própria surpresa, às vezes a última sessão do dia é maravilhosa.
Alguns têm de sair mais cedo, mas a maioria permanece para pensar
até o tricentésimo sexagésimo minuto de sessão. Chegado o fim do
dia, completado o percurso do trabalho, a dispersão é rápida. As des-
pedidas são abreviadas em comparação com as saudações da manhã
e o pessoal se dirige rapidamente para sua próxima obrigação.
Por vinte e cinco vezes assim fizemos, oito vezes durante o ano
devotado à Condição humana, 1995-1996. Em algumas poucas oca-
siões recebemos convidados, inclusive durante a reunião final do
primeiro ano, quando os conselheiros, Rabi Jordan Pearlson, de To-
ronto, e o Prof. Max Stackhouse, do Seminário Princeton, juntaram-
se a nós. Foi estranho receber gente de fora, gente que não havia
sido formada pela comida e bebida e pelo ritmo dos dias como o res-
to de nós. Mas eles foram bem-vindos e nos fizeram pensar sobre o
que estávamos fazendo a partir de novas perspectivas. O fato de que
pudesse haver uma "estranheza" em relação a visitantes dizia muito,
pelo menos para mim: apesar de nossas diferenças, estávamos nos
transformando num grupo com uma identidade centrada no fato de
estarmos realizando um trabalho significativo juntos.

A diversidade

Gente de imaginação perversa, eu presumo que principalmen-


te Bob Neville, concebeu o grupo de trabalho. Talvez alcovitando
--------- DURANTE O PRIMEIRO ANO
374-
o supramencionado desejo de caos e incompreensão mútua dos
deuses das Ciências da Religião (Religious Studies), os arquitetos do
projeto justapuseram gente com estilos de trabalho profundamen-
te diferentes. Mesmo que o desígnio do grupo de trabalho já tenha
sido abstratamente descrito no prefácio geral e em outros lugares,
ainda restam detalhes vitais a transmitir.

Há seis especialistas em tradições religiosas específicas, cada


um devotado a detalhes históricos e nuanças lingüísticas e, desse
modo, alérgicos tanto ao anacronismo histórico em todas as suas
formas sutis — e outras nem tão sutis assim — quanto a generaliza-
ções que obscurecem a diversidade ou passam por cima de fatos em-
baraçosos. Tendo por anos trabalhado na pesquisa do Jesus histórico,
Paula já viu muitos intérpretes contemporâneos projetarem seus in-
teresses em figuras do passado, e isto a fez desenvolver uma alergia
aguda ao anacronismo histórico. Frank e David há muito têm se
interessado por teologia comparada; não obstante, ambos têm uma
sensibilidade bem afinada para a maneira com que as generalizações
sobre idéias religiosas mascaram todas as importantíssimas diferen-
ças. Frank é rápido em assinalar que nossos próprios interesses estão
subrepticiamente presentes nas comparações que fazemos, que elas
de fato se constituem numa espécie de generalização e que é ne-
cessário estar consciente disso para um entendimento correto das
questões. A imersão de David na corrente Madhyamaka da filosofia
budista o sensibilizou para os perigos dos rótulos usados nas gene-
ralizações; nomear é sempre também uma produção de realidade
que distorce a percepção. Noman, Livia e Tony desenvolveram sen-
sibilidades similares em relação ao anacronismo e à generalização,
mas são menos extremas. Tony gosta de fazer generalizações sobre
o judaísmo (quando elas se sustentam), demonstrando, entretanto,
uma aguda percepção do quanto as comparações são capazes de fa-
zer o judaísmo parecer com alguma outra religião, ao passo em que
a diversidade interna da religião judaica nunca é levada em conta na
comparação. Livia é tão sensível aos detalhes quanto qualquer outro,
mas não tem tempo para ficar pisando em ovos em torno de com-
parações; ela vai direto ao ponto e diz com rara coragem a que vem
WESLEY J. WILDMAN - 375

a religião da China; sua ousadia provou-se extremamente proveito-


sa para o grupo. Noman está determinado a comunicar as nuanças
dos termos e distinções-chave árabes, de sua especialidade, lendo
para nós em árabe e ajudando-nos com transliteração das palavras;
não obstante, seu trabalho com uma tradição que possui um sentido
relativamente claro de identidade, lhe confere grande presteza em
fazer generalizações e construir comparações.
Nenhum desses seis representantes de tradições encontra-se
pessoalmente afiliado à religião que estuda, exceto Noman. Esta
é outra característica da composição do trabalho, cujo valor ou re-
sultados para o grupo é difícil determinar, na medida porque não
conhecemos outro grupo de feição diferente com o qual possamos
comparar nosso processo a esse respeito. É possível notar que No-
man era o mais preocupado entre todos os especialistas em trans-
mitir ao grupo a visão hipotética do fiel desta ou daquela religião
("O Islão é o que os islâmicos dizem que é", ele diria); esta posição
é aparente em seus capítulos para os três volumes. Entretanto, essa
preocupação era apenas mais aparente em Noman do que nos ou-
tros especialistas, e eu não fui capaz de discernir nenhum impacto
no processo ou nos resultados do grupo por causa dela.
Quatro outros estudiosos que, pelo menos no projeto, repre-
sentam os interesses do estudo comparativo complementam os seis
especialistas e seu compromisso com a fidelidade da descrição. Bob
é o metafísico arquetípico, inventando sete teorias antes do café da
manhã, na linguagem abstrata de seu fertilíssimo sistema filosófi-
co. Entretanto, de maneira chocante para um metafísico, ele quer
testar e aperfeiçoar sua teoria de comparação. Peter é o sociólogo
arquetípico, trazendo à mesa um olho treinado em generalizações
plausíveis, junto com o dom intelectual de propor questões elegan-
tes, que conduzem consistentemente ao âmago de uma discussão
que confude, nos levam ao coração do problema. John é um híbri-
do: formado em religião chinesa, com especialização em confucio-
nismo, ele complementa os conhecimentos de Livia em taoísmo,
trabalhando também ativa e ecleticamente no estudo comparativo
de idéias religiosas. Quanto a mim, minha formação em teologia,
376 r - DURANTE O PRIMEIRO ANO

filosofia e ciência contemporânea fez de mim, além de secretário,


o representante de uma inesperada sétima tradição: o naturalismo
científico do Ocidente moderno.
Os seis estudantes de doutorado, um para cada especialista,
foram convidados tanto para ver o que acontece quando seis es-
tudiosos e meio, preocupados com o perigo das generalizações,
trabalham juntos com três estudiosos e meio, para os quais as ge-
neralizações são a base da vida intelectual (conto John como per-
tencendo 50% a cada lado da mesa), quanto para envolver-se no
processo. Por incrível que pareça, apenas um dos seis estudantes
(seus nomes estão listados no prefácio geral) desistiu durante todo
o percurso do projeto. No começo, a maioria dos estudantes fica-
va calada a maior parte do tempo. Eventualmente, no correr das
reuniões, no entanto, alguns passaram a falar ou foram obrigados
a falar em virtude de apresentações encomendadas pelos especia-
listas que acompanhavam. Por vezes, as correntes confusas do de-
bate pareciam frustrar um ou mais dentre eles e, segura de que não
poderia fazer pior, uma estudante se arriscava nas águas tormen-
tosas para resgatar os eruditos em apuros. Raras vezes foi de gran-
de ajuda, porque suas opiniões eram normalmente recebidas com
condescendência pelos que estavam atolados na confusão; mesmo
assim, boas intuições surgiram, a confiança foi estabelecida e ritos
de iniciação foram ultrapassados. Ocasionalmente, um estudan-
te entrava em confronto com seu mentor ou mentora, o que era
especialmente excitante e gratificante. Por exemplo, o estudante
mais ativo do projeto, John J. Thatamanil, hoje ocupado com seus
próprios alunos, tentou num dado momento da primeira reunião
manter viva a possibilidade de uma realidade (transcendente) que
levaria as idéias religiosas a se manifestarem de um determinado
modo. O argumento foi uma reação ao que John percebia como
uma inclinação exagerada — estilo Madhyamaka — de David em
ver todas as categorias como construções. Eis como o debate foi
registrado na ata:

David expressou a importância de uma certa imprecisão nas categorias


comparativas ao sugerir que a busca por tais categorias tinha de ser en-
WESLEY J. WILDMAN 377

tendida como uma busca de "conceitos provisórios" nas representações


sistemáticas de tradições religiosas. Em resposta, Thatamanil enfatizou a
perspectiva de que a busca da verdade é inerente à condição humana, de
modo que esses "conceitos provisórios" corresponderiam a articulações
da própria realidade, e que a realidade dessas articulações serve como
a condição de possibilidade para a comparação transcultural das idéias
religiosas.

O que a ata não registrou foi a energia do debate, incluindo di-


versas réplicas mais incisivas. Esse caso ilustra como o CRIP serviu
como um espaço de exploração e amadurecimento para os estudan-
tes de doutorado.

A primeira perplexidade

Num grupo com essa diversidade, aparece por vezes a incom-


preensão mútua. Com efeito, a estrutura do grupo propicia a per-
plexidade, mas também sua superação gradual à medida que os par-
ticipantes passam a conhecer a maneira de pensar de seus colegas
oriundos de diferentes formações e disciplinas. O primeiro caso
de perplexidade não demorou a ocorrer. De fato, no primeiro dia
de reunião, a perplexidade em larga escala foi despertada pela lei-
tura obrigatória do dia: a teoria comparativa de Bob em Normative
Cultures. A maior parte das pessoas realmente não entendeu o que
leu. Eles sabiam que Bob era inteligente e que provavelmente tudo
aquilo devia fazer algum sentido; mas, para muitos, a experiência
daquela leitura equivalia à descoberta da Pedra de Roseta: o livro é
escrito num tipo estranho de código e interpretá-lo corretamente
parecia algo completamente fora de questão. Naturalmente, no pri-
meiro dia, dizê-lo à queima roupa também parecia completamente
fora de questão. Então, nos lançamos na batalha com polidez. Os sin-
tomas usuais de uma situação desse tipo estavam todos presentes: o
grupo raramente se detinha sobre um ponto técnico da teoria, con-
centrando-se ao invés disso em questões relevantes que haviam sido
bem entendidas antes de antes de falar sobre a teoria comparativa. O
resultado não foi muito diferente de uma entrevista, com Bob discu-
378 DURANTE O PRIMEIRO ANO

tindo uma objeção ou preocupação atrás da outra, tentando expor o


aspecto de sua teoria que tratava do tema.
A situação pode ser divertida para alguns — sorrio ao lembrar-
me disso agora —, mas, sentado em meio à toda aquela polidez, eu
estava me convencendo da impossibilidade do projeto como um
todo, de que o grupo era heterogêneo demais para chegar em algum
lugar, de que o método era impossível de ser testado, e de que jamais
ficaríamos suficientemente confortáveis uns com os outros para
dizer que não tínhamos entendido alguma coisa. E duvido que eu
tenha sido o único a pensar assim. Peter pode ser muito encorajador
em momentos como esse, porque ele é, provavelmente, o membro
mais autoconfiante de nosso grupo, e quase com certeza aquele mais
inclinado a dizer: "Bob, eu acho que discerni o teor geral de seu li-
vro, mas, com sinceridade, não entendi muita coisa dessa sua teoria
comparativa. Não consegui penetrar o suficiente nessa linguagem
especializada para saber se a minha percepção do teor geral estava
ou não correta". Infelizmente, Peter também esteve acanhado nessa
ocasião, embora eu acredite ter descrito corretamente a sua visão
pessoal do momento. Em ocasiões posteriores essa sua franqueza vi-
ria a ser de grande ajuda.
Depois da reunião eu fui para casa e trabalhei duro na elabora-
ção dessa primeira ata, tentando transmitir o que Bob queria dizer
com sua teoria comparativa numa linguagem menos especializada,
mais acessível a um conjunto mais amplo de estudiosos, o que Bob
queria dizer com sua teoria comparativa. Eu estava ligeiramente de-
sesperado, talvez com medo de que o CRIP naufragasse ainda antes
de deixar o porto. Temia que minhas explicações não fossem mais
claras do que aquelas fornecidas por Bob durante a reunião, mas
continuei refinando minhas anotações. Era o começo de meu papel
(sugerido por mim mesmo) no grupo como aqule que permanece
tentando ajudar todo mundo a se entender. Mas é um papel que eu
provavelmente não precisaria ter exercido; exercê-lo deveu-se ao
instinto de controle do jovem estudioso — do jovem em si —, por-
que, como qualquer pessoa experimentada sabe, grande parte das
boas coisas num grupo acontece a despeito das tentativas de con-
WESLEY J. WILDMAN 379

trolar o processo. Boas coisas ainda aconteceriam com esse nosso


pequeno grupo de estudiosos aventureiros, mas, nesse primeiro dia,
tivemos somente perplexidades e excesso de educação. No tocante a
ambos os pontos, as coisas só poderiam melhorar dali para frente.

A possibilidade de comparação

A primeira reunião também teve suas dimensões encorajado-


ras, quando as questões clássicas com que todos os estudiosos de re-
ligião estão familiarizados foram debatidas. Rapidamente surgiram
reservas em relação à comparação, não somente enquanto discutía-
mos especificamente a teoria comparativa de Bob, mas também em
relação à questão bem mais geral da própria possibilidade de com-
paração. Praticamente cada faceta do problema foi levantada, desde
as questões relativas às relações de poder "Quem decide, quem é
beneficiado e quem fica de fora?", até a dimensão biográfico-moti-
vacional de "Por que este projeto nesse momento de sua vida?" (uma
pergunta memorável dirigida por Frank a Bob, que provocou uma
resposta intrigante). No que segue, teço alguns comentários sobre
três dimensões do problema da possibilidade de comparação levan-
tadas naquela primeira reunião e discutidas diversas vezes ao longo
do primeiro ano ou mesmo depois.

Em primeiro lugar, há o problema das grandes categorias que


determinam o tópico geral para cada um dos três anos do projeto:
condição humana, realidades últimas e verdade religiosa. Cada ca-
tegoria se ajusta a algumas tradições mais naturalmente do que a
outras, e existe sempre a preocupação de que alguma agenda sub-
reptícia esteja sendo servida ao se permitir que tais categorias de-
terminem a direção do trabalho. Tony, por exemplo, assinalou que
começar pela condição humana é um pouco forçado em se tratando
de judaísmo, ainda que não haja nenhum problema com a categoria
em si. Mais tarde, Paula perguntou aos outros especialistas que cate-
goria eles escolheriam para começar, confessando que tinha gosta-
do bastante de começar pela condição humana. As respostas foram
as seguintes: Tony, Deus ou a Criação; Noman, história; Frank, co-
380 - DURANTE O PRIMEIRO ANO

mida ou ritual; Livia, cosmologia (David não estava presente neste


momento). As respostas demonstram que o problema se divide em
dois: a ordem em que as categorias deveriam ser discutidas e a es-
colha das categorias a serem utilizadas. Todos sabíamos que há um
grau considerável de arbitrariedade na escolha dessas categorias,
em parte pela necessidade de escrever pedidos de financiamento
antes do início do projeto. E também sabíamos que todas as catego-
rias usadas na descrição e comparação de fenômenos religiosos têm
uma origem questionável. Algumas emergem de traduções antigas
de textos sagrados que persistem; outras de trabalhos pioneiros no
estudo da religião. O que é ainda mais preocupante, algumas cate-
gorias parecem tão óbvias que não somos capazes de dizer ao certo
de onde vêm ou que influências são desencadeadas pelo seu uso.
Discutimos e rediscutimos essas questões e nos demos conta de que
uma das premissas do método de comparação que estávamos usan-
do é correta: como disse David; "Começamos o processo de compa-
ração de idéias religiosas pelo meio, considerando que já possuímos
categorias comparativas (à revelia, em traduções e tradições de dis-
cussão). A meta deve ser corrigir, refinar e ampliar o conjunto de
categorias, em vez de começar tudo de novo, do início." É como a
decisão estratégica de plantar ou não plantar um gramado: é impos-
sível conseguir um solo puro com uma semente pura; a não ser em
casos extremos, quase sempre é mais aconselhável ir melhorando a
grama que se tem à disposição, gradualmente.

Em segundo lugar, a "condição humana" é uma categoria tão


vaga que fomos forçados a nos perguntar se quaisquer comparações
significativas poderiam ser feitas por meio dela. Tivemos um monte
de discussões sobre a vagueza de categorias gerais e sobre a maneira
com que estas categorias podem adquirir conteúdo específico por
meio das comparações que são realizadas a partir delas. Tudo isso
é parte do método formal que nos cabia testar e refinar, tal como
descrito em inúmeras passagens e de inúmeros modos ao longo dos
volumes do projeto. Na prática, entretanto, estávamos todos lutan-
do para encontrar uma maneira de dar conteúdo específico para a
"condição humana" sem incorrer numa arbitrariedade indevida. As
-=-- 381
WESLEY J. WILDMAN-

atas registram que "Tony frisou a dificuldade envolvida na tentati-


va de se passar de categorizomparativas a descrições detalhadas de
situações específicas e vice-versa, citando dois problemas comuns
em apoio de sua posição e ilustrando cada um deles com referência
a Eliade. Primeiro, as categorias comparativas são com freqüência
demasiadamente condicionadas por uma tradição religiosa particu-
lar, normalmente a tradição a que pertence o estudioso. Segundo,
as próprias categorias simplesmente não funcionam bem no nível
dos detalhes". Essa observação está intimamente relacionada com
os problemas da tradutibilidade e comensurabilidade tão familiares
a antropólogos quanto a estudiosos de religião. Um antropólogo faz
comparações entre culturas por meio da categoria vaga "casamen-
to" ou "família" somente ao decidir o que conta como casamento ou
família em cada cultura estudada; e esta decisão é tão reconhecida-
mente perigosa que grande número de antropólogos desistiram dela,
optando pela tese da incomensurabilidade das formas culturais. Os
especialistas de nosso grupo estavam profundamente conscientes
desse problema, receosos de decidir o que conta como "condição
humana" em todas as tradições sob consideração.
Terceiro, havia a questão da justificativa moral de embarcar
numa iniciativa comparativa. As atas registram o seguinte debate
em torno da teoria de Bob:

Noman perguntou se o escopo do projeto admitia o questionamento da


própria conveniência da comparação entre religiões. Frank observou que
em alguns grupos havia inclusive objeção religiosa à comparação, espe-
cialmente no ponto em que ela era percebida como uma ameaça ou como
algo depreciativo ou insultante. Bob respondeu que a estratégia do projeto
é prosseguir com essa questão aberta, a ser resolvida empiricamente. Ele
concordou que o interesse em comparar é primordialmente característi-
co da cultura pluralista do Ocidente (ainda que não somente dela). Não
obstante, ele está preparado para argumentar que, no final das contas, a
comparação é desejável. Em apoio a essa posição, ele enumerou três ra-
zões: (i) não podemos nos entender sem entender os outros; (z) uma sau-
dável interação política entre culturas exige diálogo civilizado e enten-
dimento mútuo; e (3) a vida pessoal requer orientação frente ao mundo,
e as orientações que mais valem a pena são de difícil aquisição, exigindo
-
382 --- DURANTE O PRIMEIRO ANO

o trabalho de comparação. Esse argumento moral em favor da compara-


ção supera, assim pensa Bob, a obrigação de respeitar a alergia religiosa
à comparação entre tradições individuais, sem entretanto conferir carta
branca para bisbilhotar onde este tipo de curiosidade não é bem-vindo.

O grupo se viu repetidas vezes tendo de passar por cima dessas


e outras questões relativas à conveniência de se gastar tempo com-
parando idéias religiosas de diferentes culturas. A justificativa mo-
ral da comparação, em particular, foi uma preocupação que simples-
mente jamais se dissolveu na consciência do nosso grupo.

A luta para comparar

Nessa primeira reunião, determinamos uma rotina que se


manteve firme por todos os três anos de trabalho. Foram oito reu-
niões por ano, quatro no primeiro semestre (outono) e quatro no
segundo (primavera). A primeira reunião do ano apresentou e dis-
cutiu o tópico para aquele ano — para o primeiro ano, a "condição
humana". Nas três reuniões restantes do primeiro semestre, os seis
especialistas, dois de cada vez, apresentaram esboços de artigos e en-
caminharam as discussões, com os textos sendo previamente lidos
pelo grupo. Estes textos exploratórios almejavam expor o que cada
tradição tinha a dizer sobre a condição humana. As primeiras três
reuniões do segundo semestre seguiram o mesmo padrão, exceto
pelo fato de que o segundo conjunto de textos apresentados deveria
levar em conta e sintetizar o que fora apresentado no primeiro se-
mestre, com o objetivo de traçar comparações onde fosse possível.
A reunião final se constituiu numa discussão geral, contemplando a
estruturação do volume relativo àquele ano.
Esse arranjo fez com que os especialistas, mesmo aqueles céti-
cos quanto à possibilidade ou ao valor da comparação, não somente
representassem a sua tradição frente aos outros estudiosos, como
também trabalhassem eles próprios na direção de uma abordagem
comparativa. Não seriam somente os outros a fazer as comparações;
os próprios especialistas as fariam, conforme exigia o método. Mas
comparar implica fazer generalizações, aventurando-se a incorrer
WESLEY J. WILDMAN --= 383

em anacronismo, e ir contra a convenção corrente nas ciências da


religião de deixar as comparações para autoridades geniais com ex-
periência profissional suficiente para arriscar a notoriedade associa-
da a este tipo de empreendimento. Nenhum estudioso ou estudiosa
de religião constrói sua reputação profissional mediante trabalho
comparativo, tanto quanto um psicólogo não inicia sua carreira pu-
lando direto para um estudo experimental do comportamento se-
xual humano. Primeiramente, trabalha-se com textos, traduzindo
e interpretando, até que seja de conhecimento geral que se sabe o
que está fazendo, pelo menos no que diz respeito a uma tradição
ou subtradição. Aí, e somente aí, se tanto, o estudioso pode aventu-
rar-se a fazer comparações. Comumente, os especialistas estão no
meio da carreira, com pelo menos dois ou três livros publicados e
um bom número de artigos no bolso em seus respectivos campos
de especialidade. Profissionalmente, estão na posição de considerar
fazer comparações de idéias religiosas em público, se é que já não o
fizeram. Mas há ainda uma relutância compreensível por diversas
razões.
Em primeiro lugar, na maioria dos casos os especialistas não
estavam acostumados a fazer os gêneros de comparação exigidos.
Eles estavam perfeitamente conscientes de que mesmo suas descri-
ções e traduções de tradições individuais utilizam inevitavelmente
categorias comparativas. Além disso, todos eles fazem comparações
entre textos ou situações próximos, temporal e culturalmente, em
geral com alguma conexão causal direta entre eles, com o objetivo
de fornecer à comparação uma base histórica sólida para a compa-
ração. Mas uma comparação que atravessa distâncias culturais tão
grandes, freqüentemente entre tradições sem contato significativo,
é uma tarefa para a qual poucos estão preparados por formação ou
experiência acadêmica.
Em segundo lugar, a base para esse tipo de comparação de lon-
ga distância era obscura. Comparações do tipo "esta idéia do hin-
duísmo é bem semelhante àquela idéia do judaísmo" é uma receita
para o desastre; não precisamos de mais nenhuma opinião sobre
semelhanças. Mas também o projeto não estava adotando nenhu-
384 =- DURANTE O PRIMEIRO ANO

ma das propostas-padrão para fornecer um fundamento de com-


paração — digamos, uma teoria dos arquétipos ou de desenvolvi-
mento evolutivo. O pior de tudo é que tínhamos apenas uma idéia
confusa da maneira com que devíamos fazer bom uso da massa de
detalhes que estavam emergindo de nossas discussões. Mas a situa-
ção não era tão sinistra assim; fizemos avanços. Por exemplo, tínha-
mos ultrapassado a abordagem por "impressão de semelhança"; por
termos descrições detalhadas à nossa disposição, fomos capazes de
refutar impressões iniciais de semelhança na medida em que mais
detalhes foram sendo introduzidos no quadro interpretativo. Con-
seguimos tornar nossas comparações vulneráveis à correção reu-
nindo detalhes que as comparações, pensadas como instrumentos
de interpretação, precisavam levar em conta de maneira apropria-
da. Assim, por vezes éramos capazes de dizer quando uma categoria
era vaga demais, e por isso arbitrária em sua aplicação, ou quando
uma categoria não era vaga o suficiente, distorcendo desse modo a
realidade em sua aplicação (normalmente porque estava ligada de-
mais a uma tradição em particular). Desse modo, fomos capazes de
rejeitar muitas categorias comparativas como inúteis. Com efeito,
é impressionante o número de categorias que foram levantadas, ex-
ploradas e depois rejeitadas como insuficientemente iluminadoras;
somente uma pequena porção daquelas que foram registradas nas
atas sobreviveram até os volumes publicados, e mesmo as atas não
fazem menção de todas as categorias levantadas e discutidas. Estes
avanços são importantes, e rapidamente se tornaram evidentes no
trabalho coletivo. Mas, nesse estágio, não éramos capazes de expli-
car satisfatoriamente porque fazia sentido rejeitar uma categoria
como "insuficientemente iluminadora", "arbitrária" ou "deturpado-
ra". Questão filosoficamente sutil, arcando com a justificação de ca-
tegorias que não foi tratada satisfatoriamente no trabalho anterior
de Bob sobre a teoria comparativa. e com implicações importantes.
Basicamente, e ainda que isto possa parecer um tanto duro, eu acho
que todos estávamos um pouco confusos nesse ponto, inclusive
Bob. Ele dava instruções, usando termos como "vulnerabilidade"
e expressões como "dialética entre vagueza e especificidade", que
não se traduziam em tarefas concretas e gerenciáveis para aqueles
WESLEY J. WILDMAN 385

que tinham de segui-las. O problema acabou se dividindo em dois.


De um lado, como diz a Introdução do Realidades últimas, não tí-
nhamos completado nosso próprio procedimento metodológico
ao traduzir comparações na terminologia da categoria vaga, o que
significa, em outras palavras, que não estávamos usando as compa-
rações para infundir significado no conceito de condição humana.
Depois decidimos que precisávamos desenvolver uma teoria da
"condição humana" que expressasse o que tínhamos aprendido do
grande número de comparações detalhadas, mas tudo o que tínha-
mos era uma lista de categorias, subcategorias e comparações. Por
outro lado, não havíamos isolado teoricamente o que era necessá-
rio para justificar categorias comparativas como "adequadas". Em
termos de adequação, confiávamos na descrição fenomenológica
das coisas comparadas, mas ainda não tínhamos nos dado conta de
que havia outras dimensões importantes na tarefa de justificar ca-
tegorias comparativas. Conceberíamos as respostas a estas questões
mais tarde, no segundo ano, na medida em que nosso trabalho co-
letivo foi sendo aperfeiçoado.

Ern terceiro lugar, as subcategorias que guiavam a discussão da


"condição humana" — cósmicas, sociais e pessoais (cada qual com
suas subcategorias) — não emergiriam até um estágio bem avança-
do do segundo ano, enquanto terminávamos a revisão do primeiro
volume. Perceptivelmente chinesas em tom e origem (Livia as pro-
pôs e as usou primeiro), elas se apresentaram como uma maneira
atraente de especificar a categoria vaga de "condição humana", mas
chegaram tão tarde no processo que os especialistas tiveram pouco
tempo para trabalhar com elas. Além disso, houve outras propostas
de subcategorias para especificar a categoria de "condição humana".
David defendeu com brio uma abordagem narrativa que sublinhas-
se a maneira com que chegamos de algum lugar e nos deparamos
com várias situações a caminho de outro lugar, uma abordagem ine-
rente ao budismo e seu foco sobre o problema da condição humana
e sobre o caminho de sua resolução. Esta proposta teria levado a um
conjunto de subcategorias comparativas que configurariam as idéias
religiosas das diferentes culturas de modo muito diverso do que o
---
---DURANTE O PRIMEIRO ANO
386---

conjunto recomendado por Livia. O grupo levou algum tempo para


decidir o que fazer, e parece provável que ambas as abordagens te-
riam funcionado bem. Mas o momento em que a proposta foi feita
tornou problemática sua utilização pelos especialistas. Esse foi o
lado negativo de algo bastante positivo: um procedimento genuina-
mente empírico conduzindo ao consenso em torno de um conjunto
de subcategorias tido como mais apropriado para tornar significati-
vos os dados reunidos sobre a "condição humana".
Em quarto lugar, o escopo das discussões dos especialistas era
dramaticamente diferenciado, o que tornava a comparação muito
difícil. Reproduzo aqui um trecho das atas sobre esse problema,
discutido em diversas ocasiões e mencionado na Introdução ao Rea-
lidades últimas. O trecho revela tanto a encantadora franqueza de Pe-
ter quanto o senso de humor agradável e irônico de Frank:
Peter: Eu gostaria de dar um passo atrás para olhar o volume como um
todo por um momento. Eu acho que é ótimo para nós, como estudio-
sos considerados individualmente, desenvolvermos nossas reflexões
em relação às visões que gozam de representações bastante diversas
em nossas respectivas tradições — Livia pode trabalhar a partir de
uma cosmologia que ela pensa ter noventa por cento de representa-
ção na China, e Frank a partir de um texto com uma representação
de o.i por cento na Índia. No entanto, o livro vai parecer um pouco
esquisito se os capítulos sucessivos forem tão diferentes na maneira
com que contrabalançam juízos generalizantes sobre tradições e in-
terpretações específicas de textos.
Frank: Talvez devêssemos pedir a nosso eventual editor para impri-
mir o livro com os capítulos destacáveis. Assim, os capítulos que não
forem do agrado do leitor poderão ser jogados fora com eficiência.
Agora, falando sério, um modo de conceber o projeto é pensar que te-
mos um problema comum e que estamos todos procurando soluções
para esse problema. Por outro lado, pode ser que estejamos tentando
resolver problemas completamente diferentes.
Peter: Se uma pessoa faz algo diferente, tudo bem. Mas se todo mundo
faz coisas completamente diferentes, então o projeto fracassou.

A questão geral, aqui expressa de forma extrema, tem a ver com


a dúvida a respeito de se os especialistas deveriam buscar caracte-
WESLEY J. WILDMAN 387

rizar tradições inteiras ou concentrar o foco em textos específicos.


No primeiro ano, a diversidade de gêneros e escopos das análises
dos especialistas dificultou o trabalho comparativo tanto para eles
quanto para os generalistas encarregados de tirar conclusões. Este
problema estava destinado a suavizar-se nos dois anos subseqüen-
tes, à medida que a maioria dos especialistas tentava justapor carac-
terizações de tradições como um todo e a análise do texto ou tema
particular recortado pela pesquisa, atendendo à abordagem prescri-
ta pelo método. Alguns dos especialistas sentiam-se profundamen-
te desconfortáveis com caracterizações de tradições inteiras como
contraponto para suas análises mais detalhadas, enquanto outros,
embora conscientes do perigo, mergulhavam no trabalho com ousa-
dia. A seguinte passagem da ata da última reunião do ano ilustra essa
questão, inclusive com a participação de nossos dois conselheiros.
Bob: Na última reunião concordamos em que cada capítulo do livro
deveria combinar concepções generalizadas de uma tradição com
análises de um ponto de vista ou texto específico. Livia encontrou
uma maneira de fazer isso enfatizando as generalizações.
Frank: Mas as grandes concepções de uma tradição não precisam ser
generalizações categóricas, abrangentes; até certo ponto, elas podem
ser induzidas a partir das análises mais específicas.
Bob: Por certo — e também não temos de concordar exatamente com
as abordagens que adotamos individualmente.
Jordan: Ao criarmos maneiras de olhar para essas tradições por meio
de generalizações cuidadosas, devemos sempre nos manter próximos
de nosso conhecimento a respeito das realizações fatuais, em tempos
e lugares historicamente determinados, de cada tradição.
John B.: A posição de Livia é ousada e provavelmente será atacada de
muitas maneiras, mas ela é particularmente útil por forçar os estu-
diosos a se engalfinharem com questões de larga escala. Por exemplo,
existe uma visão de mundo pan-chinesa em relação com a qual qual-
quer cosmologia chinesa pode ser articulada?
Max: Como você articularia, por exemplo, essa objeção que você ante-
cipa à abordagem proposta por Livia?
John B.: A crítica afirmaria que a visão de Livia distorce muito do que
realmente aconteceu ao determinar um paradigma dominante dentro
do qual certas visões majoritárias aparecem com facilidade enquanto
outras são efetivamente suprimidas.
--
388- DURANTE O PRIMEIRO ANO

Bob: Neste grupo, até aqui, o instrumento teórico para considerar essas
questões tem sido o de "categorias vagas". Livia aventou uma hipótese
digna de ser testada; se as generalizações se mostrarem muito rígidas ou
estreitas, então isto servirá como crítica da vagueza das categorias, no
sentido de que elas não são suficientemente vagas da maneira correta.

Finalmente, e em íntima relação com este último ponto, ha-


via a preocupação de qzue a abordagem comparativa levasse ao ana-
cronismo, abstraindo as idéias de seus contextos históricos. Paula
tomou a frente desse movimento de resistência ao longo dos três
anos de projeto, resistindo a cada tentativa de caracterização do cris-
tianismo como um todo e concentrando sua atenção no episódio
ou pensador específico sob investigação. Desde a primeira reunião,
ela externou suas preocupações com o anacronismo, como ilustra a
passagem seguinte:
Paula descreveu o critério de "anacronismo" que é usado (com pouquíssi-
ma freqüência, de acordo com ela!) para julgar a ausência de profundida-
de na pesquisa histórica. Considerando que a história das religiões pode
sempre recorrer, como história, a esse critério, o que poderia funcionar
de modo semelhante em relação a comparações? A filosofia, em particu-
lar, parece singularmente insensível ao problema do anacronismo; e isto
é preocupante, levando em conta que freqüentemente são os filósofos
que assumem o papel de generalistas no trabalho de comparação.
Bob fez uma réplica a esta expressão nada velada de preocupação com o
próprio destino do projeto, em parte aceitando a acusação feita contra a
filosofia, mas defendendo a sensibilidade de algumas tradições filosófi-
cas ao condicionamento histórico das idéias, fornecendo um exemplo
de como o anacronismo pode ser detectado na iniciativa comparativa.
Foi um momento de genuína excitação intelectual: a historiadora ar-
quetípica encontra-se frente a frente num diálogo crítico com o filósofo
arquetípico. É tão excitante quanto o embate entre o historiador e feno-
menólogo, ou entre o especialista e o comparativista/generalista.

Os esboços do primeiro volume

O primeiro volume reflete as intrincadas complexidades des-


sa luta para comparar, que durou o primeiro ano. Com a exceção
do material introdutório, ele é composto de capítulos individuais
WESLEY J. WILDMAN 389

fascinantes, escritos por especialistas, que descrevem com riqueza


de detalhes a "condição humana" a partir de muitos pontos de vista,
fornecendo poucas comparações. Seguem-se os dois últimos capí-
tulos que (i) procuram montar o cenário para as comparações (para
superar o problema da diversidade de escopos descrito mais acima),
(2) fazer comparações (em vez de apenas enumerá-las), (3) reuni-las
numa trama enorme (de acordo com a meta muito debatida para
o primeiro volume), (4) sem, finalmente, sintentizar demais o pro-
blema da "condição humana". Esses capítulos de conclusão também
tiveram de fazer malabarismos para considerar inúmeras subcate-
gorias e situações fenomenológicas de importância, o que os tornou
extraordinariamente difíceis de redigir. Com efeito, uma confissão
se faz necessária aqui: eu simplesmente não fui capaz de fazê-lo.
Apesar de ter produzido a maior parte do material introdutório para
as conclusões, como co-autor desses capítulos eu estava sobrecarre-
gado pela tarefa de aperfeiçoar os esboços de Bob. Fui incapaz de dar
conta de todas as variáveis e gerenciar os diferentes escopos das des-
crições específicas, sem ficar paralisado pela necessidade de abrir
milhares de parênteses e notas de rodapé para os quais não havia
espaço. Bob, ainda mais ciente da necessidade desses esclarecimen-
tos do que eu, de alguma forma conseguiu dar conta desse processo
em nome do cumprimento das metas estabelecidas pelo grupo para
o primeiro volume. Pessoalmente, eu fiquei espantado com Bob, as-
sim como me espanto com aqueles que ganham a vida escrevendo
dicionários ou com qualquer outro estudioso capaz de, por meio de
disciplina mental, e sem sofrer ameaças externas contra sua segu-
rança pessoal ou a de sua família, submeter-se, como uma máquina,
à agonia de escrever capítulos como esses. Eu sei que ele achou o
trabalho uma agonia, apesar dos poucos momentos de excitação e
satisfação — e ele teve de fazer tudo isso duas vezes mais nas revi-
sões posteriores. Entretanto, não foi somente um ato de espantosa
disciplina, mas também de enorme autoconfiança, para não dizer
hybris, comparar tudo com tudo mais sob múltiplos pontos de vista
e em inúmeros aspectos. E a cada comparação realizada, Bob voltava
para casa preocupado com o destino do projeto, porquanto ele não
390 DURANTE O PRIMEIRO ANO

estava apenas enumerando as comparações dos especialistas, mas


tendo de realizá-las por si mesmo.
Seja como for, a introdução do Realidades últimas traz uma des-
crição apropriada dessas dificuldades, e eu não vou tratar delas mais
do já fiz até aqui. Ao invés disso, farei uma análise retrospectiva dos
pontos fortes e fracos do primeiro volume e depois tentarei transmi-
tir algo das reações do grupo em relação ao mesmo.
Com respeito à análise, as fraquezas do volume são eviden-
tes. Primeiramente, os capítulos produzidos pelos especialistas
fazem algumas comparações interessantes, mas não estão sincro-
nizados entre si no que diz respeito ao escopo e por vezes ao tó-
pico comparado. Em segundo lugar, as conclusões formam uma
trama de relações que não se presta a uma leitura palatável, além
de estar superdimensionada em relação ao grau de nosso controle
sobre as informações específicas trazidas pelos dados, indicando
uma sutil arbitrariedade (ainda que possivelmente desnecessá-
ria) nas subcategorias utilizadas. Em terceiro lugar, a ligação en-
tre os capítulos específicos e as conclusões é construída em sua
maior parte nos capítulos finais, baseada nas conversas do grupo
e na imaginação de Bob, ao passo que sua construção deveria ter
se iniciado já na discussão das tradições específicas. Em quarto,
e mais sutilmente, as categorias usadas nas comparações só são
justificadas implicitamente pela sua suposta capacidade de tornar
significativo o conjunto de dados, uma garantia insuficiente, tal
como enxergamos o problema depois de trabalhar no segundo e
terceiro volumes. Quinto — e isso é o resultado de uma decisão
deliberada, conforme demonstram as desculpas apresentadas por
nossas diferenças de foco —, o volume negligencia quase que
completamente algumas questões da maior importância no atual
estudo da religião, especialmente análises das relações de poder
presentes em textos e tradições, que poderiam sair em busca das
vozes perdidas e das experiências e idéias suprimidas no decorrer
do processo histórico.
Esses e outros pontos fracos são de fácil indicação, e nós es-
tivemos mais dolorosamente conscientes deles do que quaisquer
WESLEY J. WILDMAN 391

outros. Mas nós batalhamos para seguir em frente, impulsiona-


dos por alguns pontos fortes menos óbvios no primeiro volume,
pontos raros na literatura especializada na comparação de idéias
religiosas e diretamente relevantes para a nossa meta de utilizar
e aperfeiçoar um método específico de comparação. Primeiro, os
capítulos produzidos pelos especialistas são fascinantes e trazem
importantes contribuições ao estudo da "condição humana" den-
tro de cada tradição e nas Ciências da Religião em geral. Segun-
do, o caráter sistemático das conclusões é bastante incomum e
valioso, a despeito de tornar o texto de difícil leitura. Particular-
mente importante é o procedimento de utilizar as cinco situações
fenomenológicas de importância (na verdade somente quatro
foram usadas, considerando que a quinta é intrinsecamente ina-
dequada ao trabalho comparativo). Tudo isso, juntamente com a
comparação exaustiva de cada par de tradições no âmbito de cada
subcategoria, permite que o problema da "condição humana" seja
apresentado a partir de um grande número de ângulos. As com-
parações arriscadas são apenas a ponta do iceberg, é claro, mas elas
são capazes de provocar reflexão e enriquecer nossa interpretação
da "condição humana", expondo-a ao progressivo escrutínio de
outros estudiosos. Essa abordagem sistemática estava fadada a de-
saparecer nos volumes subseqüentes, permanecendo entretanto
uma virtude que não deve ser menosprezada. Terceiro, as subcate-
gorias subordinadas à categoria geral de Condição Humana foram
concebidas de um modo genuinamente empírico, num estágio
avançado do processo de discussão dos dados, mediante levanta-
mento de hipóteses acompanhado de seu refinamento ou rejeição.
Isto é inquestionavelmente raro e genuinamente revigorante no
âmbito das Ciências da Religião, que tendem a ser contaminadas
por tentativas de descrição que fingem estar livres das categorias
comparativas ou pelo uso de categorias arbitrárias, invulneráveis à
correção. Recomendamos com entusiasmo essas categorias para a
comunidade de especialistas em Ciências da Religião e, malgrado
sua justificação tenha sido incompleta mesmo em nosso projeto,
representamo-nas como consideravelmente menos arbitrárias do
-----
392- -- DURANTE O PRIMEIRO ANO

que as alternativas correntes, além de bem melhor posicionadas


para lucrar com eventuais correções. Tudo isto é uma prova do va-
lor positivo tanto do trabalho coletivo dentro de grupos hetero-
gêneos de estudiosos quanto do método específico utilizado em
nosso grupo.
Agora, com respeito às reações do grupo ao primeiro volu-
me na medida em que ele foi tomando corpo, sobrou-me espaço
para apenas algumas poucas observações. Muito embora os parti-
cipantes de nosso grupo tenham sempre se mostrado educados,
mesmo quando não faziam cerimônia, acho que os especialistas
e mesmo outros participantes de nosso intrépido bando ficaram
quase sem palavras quando puseram os olhos no primeiro tra-
tamento dos capítulos de conclusão. Interpretei a reação como
indicação das limitadas possibilidades da boa educação nestas
circunstâncias. Em retrospecto, é bem divertido. Minha sensação
era a de que os especialistas acreditavam que deveria existir uma
maneira melhor de fazer aquilo. O ponto de vista de Bob era o de
que certamente havia, e foi o que aconteceu nos outros volumes,
especialmente o terceiro, no qual as conclusões realmente apenas
enumeraram e resumiram as comparações já estabelecidas pelos
especialistas.
Como grupo, sentíamo-nos extremamente tentados a aban-
donar a estrutura dos capítulos finais e produzir algo mais colo-
rido, energético e menos sistemático. Alguns teriam achado mais
prudente, do ponto de vista profissional, fazer isso mesmo! Agora,
olhando para trás, sorrio ao lembrar do quão gentis foram os es-
pecialistas nas horas em que sua vontade era provavelmente a de
gritar de horror. Eu acho que foi David quem fez a observação de-
cisiva, sugerindo que desistíssemos da meta de fazer comparações
em conjunto para o primeiro volume e deixássemos os generalis-
tas dizer o que quisessem nas conclusões, contanto que fossem
precisos, enquanto os especialistas se contentariam em assumir a
responsabilidade somente por seus próprios capítulos. A sugestão
trouxe uma bem-vinda sensação de liberdade para todos, para nin-
guém mais do que Bob, agora liberado da maldição de ter de ligar
WESLEY J. WILDMAN 393

fielmente suas conclusões com os diferentes escopos e conteúdos


dos capítulos de seus colegas. Mas ela indicava também uma falha
parcial de nosso método. Apesar de termos sido capazes de retifi-
car até certo ponto o fracasso da autoria conjunta das conclusões,
abandonando a abordagem sistemática e o uso de situações feno-
menológicas de importância no segundo e terceiro volumes, ja-
mais cumprimos completamente a meta de trabalho cooperativo
que nos formou enquanto grupo: trabalhar juntos desde a coleta
de dados até a construção de conclusões consensuais. Tivemos
consenso no processo somente até a construção das comparações
usadas para a formulação das conclusões (o que não é pouca coisa),
mas nada para além disso. As conclusões permaneceram sujeitas
a críticas vindas de dentro do grupo, no tocante à sua proprieda-
de e precisão; mas, depois do fracasso parcial experimentado no
primeiro ano, nenhum mecanismo foi introduzido para buscar e
obter um consenso em torno destas conclusões.

Quanto à tentação de abandonar a estrutura sistemática dos


capítulos de conclusão, mesmo para o primeiro volume, resistimos
a ela motivados por um desejo real de proceder empiricamente. Du-
rante o primeiro ano, o grupo discutiu diversas vezes as metas para
as conclusões em termos de uma rede formalizada de categorias,
juntamente com um comentário sobre a maneira com que cada tra-
dição especifica cada categoria e subcategoria, buscando infundir
nas grandes categorias o conteúdo específico dos dados reunidos.
Foi precisamente isto o que conseguimos nos dois capítulos finais,
então vale como um registro razoável de nossa autoconsciência na-
quele ponto do processo. Além disso, ainda que todos nos sentísse-
mos insatisfeitos com o resultado em termos de estilo, fragmentá-
rio e opressivo mesmo na versão publicada, o fato de a categoria de
"condição humana", assim como as subcategorias pelas quais ela é
elaborada, deverem ser usadas em abordagens comparativas futu-
ras, de modo a serem refinadas e testadas, constitui-se num argu-
mento poderoso para a comunidade das Ciências da Religião. Neste
sentido, havia muito com que estar satisfeito. Entretanto, nós ape-
nas tínhamos começado a trabalhar coletivamente e, à medida que
394 DURANTE O PRIMEIRO ANO

esta dimensão do projeto fosse se aperfeiçoando, mesmo a despeito


da decisão de abandonar as conclusões consensuais, a força do mé-
todo comparativo que estávamos utilizando viria a se tornar mais
evidente.

O Fim de Um Ano

Houve dois finais do primeiro ano: a oitava reunião e o final


da primeira rodada de revisões do primeiro volume, ocorrido mui-
to tempo depois. Entre esses dois finais, nosso grupo de trabalho
teve de se submeter à dor de confrontar o duplo problema dos
capítulos especializados sem muita comparação e das conclusões
que pouco diziam sinteticamente (e ainda menos esteticamente)
a respeito da condição humana. Não obstante, em si mesmos os
dois finais se constituíram em eventos bastante positivos, com
um ar de celebração e, penso eu, uma tranqüila determinação de
melhorar, mesmo quando ainda persistiam dúvidas em relação ao
projeto.

Não mencionei muitos temas que vieram à tona durante o


primeiro ano. Preocupações-padrão nas Ciências da Religião foram
levantadas repetidamente nas discussões; "não obstante", "todavia",
aparecem raras vezes, se tanto, no primeiro volume. Foram muitas
histórias e piadas, debates cruciais a respeito do modo de conceber
o projeto ou organizar o primeiro volume, e muitas preleções bri-
lhantes de valor duradouro registradas apenas nas atas que prova-
velmente nunca verão a luz do dia, exceto talvez no trabalho de um
estudante da graduação que guarde e releia estas atas ou que tenha
feito suas próprias anotações. Felizmente, estes apêndices não têm
como meta a abrangência. Seu propósito é descrever e analisar a
maneira com que nosso variegado grupo de estudiosos fez uso de
um método cooperativo para comparação. Por certo, o método nem
sempre foi claramente compreendido, sendo transformado pelo uso
— pontos abordados aqui e a serem considerados num outro apên-
dice — mas ele foi utilizado e produzido, de fato, resultados. Esses
resultados foram ampliados à medida que os especialistas ousavam
WESLEY J. WILDMAN - 395

mais nas comparações, os generalistas tornavam-se mais atentos


aos detalhes e todo mundo participava mais com suas opiniões. E
por meio de tudo isso, tão improvável quanto possa parecer dados
os níveis de diversidade e controvérsia, acabamos por afeiçoar-nos
uns aos outros, aprendendo a encarar nossas diferenças como novas
oportunidades de crescimento.
APÊNDICE B
SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR

O projeto de idéias em religião comparada foi planejado para


envolver estudantes, seja como participantes nos seminários seja
nas tarefas de base. Um dos projetos deles que foi uma façanha foi
o desenvolvimento de um conjunto de doze bibliografias comenta-
das sobre uma variedade de temas relevante ao projeto. Estas biblio-
grafias são sugestões para uma leitura mais aprofundada sobre cada
tema coberto. Sou grato aos alunos envolvidos no processo de co-
mentário: Marylu Bunting, John Darling, Greg Farr, Andrew Irvine,
He Xiang, Mark Grear Mann, Matt McLaughlin, David McMahon,
Glenn Messer, James Miller e Kirk Wulf. Também sou grato pelas
sugestões de livros para comentar que recebemos dos Profs. Jensine
Andresen, John Berthrong, Frank Clooney, Jonathan Klawans e
Frank Korom. A bibliografia deste volume contém sugestões para
leitura posterior sobre o tema do volume: a condição humana.

— Wesley J. Wildman

Bibliografia comentada: A condição humana

Alter, Michael J. What is the purpose of Creation? A Jewish Anthology.


Northvale, NJ: J. Aronson Inc., 1991.
Esse trabalho reúne muitas fontes primárias da tradição judai-
ca. Todas se concentram na questão "Qual o propósito da criação e da
vida?" A coleção começa com um exame crítico do Tanakh e inclui
398 - SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR

excertos dos trabalhos de pensadores de destaque tais como Fílon,


Moisés Maimônides, Baruch Spinoza, Moisés Mendelssohn, Albert
Einstein e Abraham Joshua Heschel.

Amy, William O. e James B. Recob. Human nature in the Christian


tradition. Washington, DC: University Press of America, 1982.
Essa obra é uma coletânea das dez palestras introdutórias sobre
o tema da natureza humana na tradição cristã. Estas palestras foram
dirigidas a estudantes de graduação do Otterbein College. Os au-
tores exploram a natureza humana, referindo-se aos conceitos cris-
tãos, inclusive a imagem de Deus, salvação, pecado e a natureza do
ser humano enquanto relacionada ao tempo e à eternidade.

Angell, J. William e E. Pendleton Banks, (orgs.). Images of Man: Stud-


ies in Religion and Anthropology. Programa Luce sobre Religião e Crise
Social, vol. I. Macon, GA: Mercer University Press, 1984.
Esse volume reúne ensaios que promovem investigação com-
parativa entre teólogos e antropólogos. Oito contribuições estão
incluídas. Os ensaios descritivos iniciais da coleção incluem os se-
guintes tópicos: "imagens do homem na tradição hebreu-judaico-
cristã", "ordem e desordem na casa do Islã" e "imagens de homem,
natureza e o sobrenatural no esquema budista de salvação". Vários
teólogos cristãos estão representados e a gama de contribuições des-
tes vai desde um argumento da teologia como uma chave de leitura
indispensável à antropologia (Edward Farley) até um exame das for-
mas culturais da religião pós-secularização (Harvey Cox). James L.
Peacock propõe uma visão da "vida boa" a partir da reflexão sobre o
método antropológico.

Aune, David Edward e John McCarthy, (orgs.). The Whole and Di-
vided Self. New York: Crossroad Publishing Co., 1997.
Essa obra combina as fontes de reflexão bíblicas e teológicas
para se referir ao que os autores vêem como um rompimento na
concepção moderna de self, seja como um ideal de integridade ou
como um marcador de posição que está dividido de modo inesca-
SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR -
-
--
--"2 399

pável. Em um ensaio introdutório, Robert A. De Vito e William


French esboçam o desenvolvimento do conceito moderno de self
por meio de uma consideração de As fontes do self, de Charles Taylor.
Seis ensaios temáticos seguem lidando com o conceito de self nas
escrituras hebraicas como imbuído na comunidade, em Paulo como
um microcosmo ou o macrocosmo, nos Salmos como utilizado por
Agostinho, nas biografias de dois monges da Idade Média, e como
necessitando de uma reavaliação fundamental em teologia à medi-
da que os teólogos se tornam suscetíveis às questões ecológicas. Os
dois capítulos finais contêm a décima primeira Preleção Gifford,
ainda não publicada de Paul Ricoeur, "O self no espelho das Escritu-
ras" ainda não publicada de Paul Ricoeur, e uma transcrição de uma
entrevista de 1994 com o próprio.

Belkin, Samuel. In His Image: the Jewish Philosophy ofMan as Expressed


in Rabbinic Tradition. Ram's Horn Books, Londres, Nova Iorque:
Abelard-Schuman, 1960.
Belkin explica as bases religiosas das definições legais do ju-
daísmo para o homem e a sociedade. A tese central dele é a de que
a filosofia judaica é essencialmente teocrática. Todas as doutrinas
e leis encontram seu significado com referência a Deus enquanto
criador. Belkin está preocupado com como a teocracia deve ir até
o fim nas situações humanas e explora como seu ponto de vista se
aplica a igualdade, comunidade, consciência pública e lei. Ele con-
clui: "Deve ser reconhecido que mesmo nosso amor pelo homem
em última instância é dependente do nosso amor por Deus".

Brandon, S.G.F. Man and his destiny in the great religions: an histori-
cal and comparative study containing the Wilde Lectures in Natural and

Comparative Religion delivered in the University of Oxford, 1954 1957.
Manchester: University Press, 1962.
O estudo de Brandon prossegue por meio de capítulos exten-
sos sobre a arte paleolítica da caverna, as religiões antigas do Oriente
Próximo, e do Sul e do Leste da Ásia. Brandon conclui que todas as
religiões evidenciam um "distanciamento de atenção da experiência
-------
400- -- SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR

imediata" caracteristicamente humano, em favor da percepção da


existência temporal. Tal existência está descrita nas religiões de vá-
rios modos: como demarcada pelos limites da vida física, ou como a
vida de uma alma que possui um ou outro tipo de parentesco com a
divindade. De modo similar, os deuses podem esgotar sua relevân-
cia para os humanos dentro das atividades do mundo físico (ex: eles
podem ser relevantes apenas com relação ao julgamento numa pós-
vida), ou o divino pode ser considerado um princípio impessoal ao
qual os humanos devem se conformar. Para Brandon, todas as reli-
giões expressam um esforço coletivo para obter segurança pessoal e
comunitária contra as mudanças trazidas pela passagem do tempo.

Burrell, David B. Freedom and creation in three traditions. Notre Dame,


IN: University of Notre Dame Press, 1993.
Esse livro, uma continuação do Knowing the unknowable God do
autor, toma o problema da liberdade humana enquanto relacionada
à doutrina da criação ex nihilo e como este problema é tratado por
três representantes medievais das chamadas tradições abraâmicas:
Ibn Sina, Maimônides e Tomás de Aquino. A abordagem compara-
tiva explícita de Burrell exibe as vantagens do pensamento no in-
terior de uma tradição e da provocação de questionamento mútuo.
Burrell conclui que cada tradição arca com uma doutrina de criação
constituída em torno de três elementos: uma fonte de todo o ser e
significado (Deus), a palavra da revelação apontando para Deus na
qualidade de criador e a comunidade recebendo a palavra. Além dis-
so, o reconhecimento desse núcleo comum mostra como cada tradi-
ção distinta pode corrigir as outras com respeito à ênfase excessiva
em um elemento focal na interpretação dos outros dois.

Burtt, Edwin A. Man seeks the divine: a study in the History and Com-
parison of religions. 2a. ed. Nova Iorque: Harper & Row, 1964.
Nesse trabalho, Burtt argumenta que devemos de preferência
ver a religião sob a perspectiva de como as pessoas pensam sobre o
divino, mais do que sob a perspectiva da verdade das questões di-
vinas, que ele vê como inescrutáveis em larga escala. Afirma que
SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR 401

tal perspectiva humanista é bem fundamentada e prática, já que "a


religião revela melhor as forças profundamente assentadas que de-
finem o curso dos eventos humanos". Ele propõe uma metodologia
dúplice de "apreciação compreensiva" e "imparcialidade inclusiva"
ao abordar cada tradição religiosa. Afirma que, caso não se aprecie
como as religiões funcionam para dar significado aos crentes indi-
vidualmente, não se pode ter esperança de entender a crença reli-
giosa. Na mesma medida, Burtt defende que se é útil entender uma
religião, é ainda mais útil entender muitas. Na linha desta argumen-
tação, Burtt começa sua exploração das tradições taoísta, confucio-
nista, budista, cristã e islâmica.

Carter, John Ross. (org.). Of Human bondage and divine grace: a global
testimony. La Salle, IL: Open Court, 1992.
Esse livro contém vinte contribuições, surgidas de palestras
dadas a alunos da graduação em 1981. Os ensaios primariamente
se dirigem a temas centrais do interior de uma tradição, e não im-
plicam comparação léxica e teológica detalhada. Mostram que os
termos "servidão" e "graça" exibem uma variedade considerável de
posições de importância relativa para a prática religiosa, de focada a
equivocada. Perspectivas delineadas a partir das devoções a Shiva e
Vishnu, caminhos budistas Theravâda e Mahâyâna, xintoísmo, reli-
gião grega antiga, judaísmo, cristianismo ocidental e oriental e Islão,
todas estas.

Cenkner, William. (org.). Evil and the response of world religion. IR-
FWP Congress Series. St. Paul, MN: Paragon House, 1997.
Os dezenove ensaios que constituem esse livro estão agrupa-
dos em quatro categorias: "Respostas das religiões do livro", "Res-
postas das tradições asiáticas", "Respostas das religiões tradicionais
africanas" e "Respostas contemporâneas". As perspectivas hebraica,
cristã, islâmica, budista, hindu, iorubá e unificacionista estão incluí-
das, assim como ensaios com interesses liberacionista [da Teologia
da Libertação], ecológico, metafísico processual e inter-religioso. O
mal é uma preocupação tradicional e importante em cada uma das
402 =
- ---- SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR

religiões, mas nenhuma definição de mal, da sua fonte e do seu sta-


tus metafísico, ou do seu remédio, consegue ainda obter aprovação
universal.

Chirban, John T. Personhood: Orthodox Christianity and the connections


Between body, mind and soul. Westport, CT: Bergin & Garvey, 1996.
Esse trabalho apresenta um diálogo entre cristianismo ortodo-
xo, psicologia e medicina. Seus colaboradores argumentam que em-
bora cada disciplina deva se concentrar no seu próprio ponto forte,
todas podem e devem trabalhar em complementaridade para aju-
dar indivíduos a crescer em direção à integralidade. Argumentam
também que o compromisso de cada disciplina para o crescimento
das pessoas humanas constitui um alicerce para a cooperação. Os
tópicos cobertos incluem: "Discernimento espiritual e diagnóstico
diferencial", "Identidade em psicologia e religião", e "Adaptação que
causa dependência" entre outros.

Coakley, Sarah. (org). Religion and the body. Cambridge Studies in


Religious Traditions, vol. 8. Cambridge: Cambridge University
Press, 1997.
Esses ensaios cuidadosos emergem de preocupações ociden-
tais contemporâneas, mas buscam também rever e corrigir estas
mesmas preocupações. A Parte I faz um balanço das perspectivas
contemporâneas ocidentais sobre "o corpo", suas origens e orienta-
ções. A Parte II reorienta o panorama contemporâneo por meio de
um exame da herança religiosa ocidental a respeito do corpo, lega-
da pelo judaísmo e pelo cristianismo — esses ensaios estão espe-
cialmente envolvidos em desmascarar caracterizações apressadas
do cristianismo, ou religião ocidental de maneira mais geral, como
"negativos" a respeito do corpo. A Parte III olha as atitudes em rela-
ção a corpos e suas respectivas construções nas tradições religiosas
orientais.

Cobb, John B. e Cristopher Ives, (orgs). The emptying God: a Bud-


dhist-Jewish-Christian conversation. Faith meets faith. Maryknoll,
SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR 403

NY: Orbis Books, 1990. Ensaios por Masao Abe, com reações de sete
escritores judeus e cristãos.
Masao Abe tem sido um líder diligente no diálogo inter-reli-
gioso desde os anos 6o. Esse livro contém a principal declaração teo-
lógica de Abe, "Deus kenótico e Sunyata dinâmica", junto com as
sete reações dos teólogos judeus e cristãos. Questões metafísicas fi-
guram de maneira proeminente, mas há uma perspectiva experien-
cial fundamentando várias das investigações: por exemplo, "Sobre o
aprofundamento do budismo" de Cobb, a reação de Catherine Kel-
ler, "Sobre a teologia feminista e o auto-esvaziamento dinâmico", e
"Fé em Deus e a realização do vazio", de Schubert Ogden.

Collins, Steven. Selfless persons: Imagery and thought in Therâvada


Buddhism. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. Origi-
nalmente apresentado como tese de doutorado do autor sob o tí-
tulo Personal continuity in Therâvada buddhism. Oxford University,
1979.
Esse livro foi escrito para ajudar projetos comparativos, reve-
lando os papéis histórico, filosófico, sociológico e religioso na dou-
trina do não-Self Therâvada. Além disso, Collins é capaz de tratar
da aparente disjunção entre desconstrução escolástica e cuidado
ritual dos selves como forma de "estratégia soteriológica". Não-self é a
existência mais alta da verdade, mas significa coisas diferentes para
pessoas em diferentes estágios ao longo do caminho da existência.
Além do mais, essa diferenciação está refletida na tradição textual,
dando origem à doutrina das duas verdades. Todavia, conceitos di-
versos de self e não-self são também harmonizados por intermédio de
imagens, incluindo imagens de rios correndo, vegetação em cresci-
mento e casas decadentes.

Cragg, Kenneth. The privilege of man: a theme in judaism, Islam and


Christianity. Palestras Jordan sobre religião comparada, vol. 8. Lon-
dres: Athlone Press, 1968.
"O privilégio do homem" é o papel divinamente instituído
da humanidade de ter domínio da natureza, ou ser califa de Deus
404 -=-
----- - SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR

no mundo. O livro expõe esse tema da "humanidade sob Deus" do


modo como tem sido desenvolvido em cada tradição, mas com a
preocupação de Cragg de que a humanidade esteja se perdendo por
causa da possessão tecnológica. A primeira palestra apresenta essa
preocupação. As palestras centrais meditam sobre três aspectos da
experiência de Abraão, correspondentes a ênfases distintas de cada
tradição. Duas palestras conclusivas oferecem o tema do "privilégio
do homem" como esperança na situação contemporânea. Esse livro
compreende as oito palestras Jordan, proferidas em 1967.

De Silva, Lynn A. The problem of the Self in Buddhism and Christianity.


Colombo: Study Centre for Religion and Society, 1975.
De Silva argumenta que a doutrina budista Therâvada do anat-
ta (não-self) e o ensinamento cristão sobre o pneuma (espírito) são
recursos religiosos mutuamente enriquecedores. A primeira parte
do livro contempla o pensamento Theravadin sobre o anatta, con-
cluindo que há problemas nesse pensamento que requerem uma
doutrina de Deus para a sua resolução. Tendo em mente esse pro-
blema, De Silva lança nova luz nos temas bíblicos com relação ao
Self. O espírito não é uma substância imortal, mas relacionalidade
dada e mantida divinamente. De Silva adianta uma noção sintética
de anatta-pneuma, como "relacionalidade não egocêntrica ou mutua-
lidade sem ego".

Duffy, Stephen. The dynamics of Grace: perspectives in theological an-


thropology. New Theology Studies, vol. 3. Collegeville, MN: Liturgi-
cal Press, 1993.
Duffy escolhe a "teologia da graça" como seu tópico porque esta
"se dirige a questões axiais: o que significa ser uma pessoa humana,
como Deus é experimentado pelos humanos e como Deus, huma-
nos e suas histórias estão inter-relacionados e feitos um em Cristo".
O Capítulo I considera as raízes do pensamento sobre a graça na
Bíblia Hebraica e no Novo Testamento. Essa investigação é então
seguida por uma revisão detalhada de alguns períodos e figuras cen-
trais na tradição teológica cristã (por exemplo, primeiras antropo-
-- 405
SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR-=-

logias cristãs, Agostinho, Tomás de Aquino, Lutero, o Concílio de


Trento, Rahner e teologias da Libertação). Duffy considera que as
teologias e filosofias modernas, que enfatizam uma visão de seres
humanos como agentes livres, confundem finitude com pecado e
salvação com auto-realização. A graça não deve ser então conside-
rada a justa liberdade de um sujeito autoconstituído, mas sim um
encontro divino-humano transformador.

Eliade, Mircea. O mito do eterno retorno. Lisboa: Edições 7o, 1999.


[19591 Tradução do Le mythe de l'eternel retour.
Eliade explicita a diferença fundamental que ele vê entre o
homem arcaico e o homem moderno. Caracteriza o homem arcai-
co de acordo com a ontologia arcaica que está construída em mitos
de participação e arquétipos que tornam esta participação possível.
Para o homem arcaico, Eliade argumenta, a realidade vem por meio
da participação nos arquétipos. Por intermédio dos arquétipos, o
todo do cosmos e da sociedade humana é atraído ao domínio do sa-
grado. Para o homem moderno, por outro lado, a realidade vem da
participação na história. Diante do "terror da história", ou seja, da
necessidade de justificar ou explicar grandes tragédias na existência
humana, o homem moderno acha necessário depender de um deus
onipotente. O cristianismo, na visão de Eliade, é ainda a religião do
homem moderno porque lhe dá uma estrutura significativa dentro
da qual encontra o sentido da história como processo significativo
da queda à encarnação, à salvação e ao julgamento final.

Fingarette, Herbert. Confucius: The secular as sacred. Nova Iorque:


Harper & Row, 1972.
Fingarette, um distinto filósofo, é cuidadoso ao identificar o
verdadeiro ensinamento de Confúcio por meio de uma análise con-
centrada dos primeiros quinze livros dos Analectos. Enfatizando a
execução ritual dos códigos morais, Fingarette começa com a tese
da comunidade humana enquanto rito sagrado e termina com uma
metáfora confuciana: a pessoa nobre é um vaso sagrado. Esse traba-
lho é um dos primeiros estudos ocidentais modernos a sugerir que
406 SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR

"o caminho confuciano" pode fazer grandes contribuições para nos-


so entendimento contemporâneo do mundo e da sociedade.

Friedman, Maurice S. To Deny our Nothingness: contemporary images of


man. zaed. Chicago: University of Chicago Press, 1978 [1967].
Nesse estudo de trinta e dois pensadores, Friedman persegue
a hipótese de que a imagem do humano estudada em cada autor pos-
sui relevância por causa de suas implicações para a filosofia moral.
Argumenta que a filosofia moral deveria preocupar-se com os valo-
res autênticos nas vidas humanas. Entre aqueles autores levantados
estão Steinbeck, Bergson, Huxley, Weil, Jung, Dewey, Tillich, Ber-
dyaev, Buber e Wiesel.

Goodman, Lenn Evan. judaism, human rights, and human values.


Nova Iorque: Oxford University Press, 1998.
Goodman sustenta uma filosofia judaica da justiça baseada na
metafísica do "merecimento". O merecimento de cada ser é propor-
cional e idêntico às suas reivindicações, em equilíbrio com as reivin-
dicações dos outros seres. Localiza o desenvolvimento da idéia de di-
reitos nas fontes judaicas e aplica sua metafísica do merecimento às
questões do aborto, da liberdade pessoal e da independência da nação.

Graff, Ann Elizabeth O'Hara. In the embrace of God: Feminist approach-


es to theological anthropology. Maryknoll, NY: Orbis Books, 1995.

Essa coleção de ensaios lida com o assunto da antropologia


teológica numa perspectiva feminista católica. As autoras são fe-
ministas brancas, hispânicas e asiáticas que discutem subterras de
antropologia relacionados tais como sexualidade, aprendizagem,
sofrimento, pecado, ecologia, escatologia e o repensar da imagem
de Deus. A metodologia geral flui da percepção de que os humanos
vivem, movem-se e têm seu ser em Deus. As autoras tiram as impli-
cações do fato de que, apesar desta vida comum em Deus, elementos
de posição social afetam a experiência de cada indivíduo.

Greenspahn, Frederick E. (org.). The human condition in the Jewish


and Christian traditions. Hoboken, NJ: Ktav Publishing House, 1986.
SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR 407

Esse volume faz parte de uma série originada nos simpósios


patrocinados pelo Centro de Estudos Judaicos da Universidade de
Denver. O método não é explicitamente comparativo; em vez dis-
so, justapõe interpretações judaicas, católicas e protestantes dos três
temas: natureza humana, pecado e expiação, e esperanças escatoló-
gicas. Na sua Introdução, Greenspahn proporciona um panorama
histórico útil sobre as ênfases distintas que diferenciam judaísmo e
cristianismo.

Gregory, Peter N. Inquiry into the origin of humanity: an annotated


translation of Tsung-Mi's Yuan Jen Lun with a modere commentary.
Clássicos no budismo do leste asiático. Honolulu: University of Ha-
waii Press, 1995.
Tsung-Mi foi um mestre budista do século nove na China. A
Invetigação dele é um panorama sistemático e uma classificação dos
maiores ensinamentos dentro do primeiro budismo chinês e, como
tal, oferece uma percepção do diálogo confucionista, taoísta e bu-
dista contemporâneo. Nela, Tsun-Mi desenvolve um relato sobre a
natureza humana enquanto caída de sua verdadeira identidade, lo-
calizando a natureza búdica na raiz de toda experiência. O budismo,
então, é visto como promotor dos meios para a libertação. A discus-
são da inculturação do budismo na China e sua subseqüente expan-
são para Coréia e Japão é também de importância central nesse texto.
Gregory proporciona uma valiosa introdução seguida de comentá-
rio, assim como um glossário e um guia para leituras suplementares.

Hamilton, Sue. Identity and experience: the constitution of the human /m-
ing according to Early Buddhism. Londres: Luzac Oriental, 1996.
Embora muito da produção acadêmica tenha se dirigido à
formulação doutrinal budista do anatta ou não-self, Hamilton argu-
menta que pouco dessa produção se dirigiu exatamente ao que o ser
humano é quando se pode dizer que possui não-self. O corpo princi-
pal do trabalho dela é devotado à análise detalhada das cinco partes
constituintes (corpo, sentimentos, apercepção, volição e consciên-
cia) que Buda viu como constitutivas do ser humano. Ela descreve
408 - SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR

cada uma destas em detalhes, referindo-se ao cânon Pali, e dedica


atenção cuidadosa às suas raízes na religião bramânica. Conclui que
Buda não estava preocupado com o status ontológico dessas partes
ou da pessoa humana, mas sim buscava explicar como o funciona-
mento mútuo delas produzia a ilusão de um self mediante processo
de origem dependente.

Hefner, Philip J. The Human Factor: evolution, culture and religion. The-
ology and the sciences series. Minneapolis: Fortress Press, 1993.
Hefner, um teólogo luterano e participante entusiasta no diá-
logo entre ciência e religião, incita a uma reavaliação da antropo-
logia cristã tradicional à luz da ciência e à luz da destruição que os
humanos produziram no ecossistema por seu uso da tecnologia. Ele
vê os humanos como co-criadores criados, cujo propósito é criar o
futuro mais íntegro possível para os humanos e o ecossistema no
qual habitam. A religião, do ponto de vista dele, é um mecanismo
evolucionário adaptável da cultura humana que veio para, e deveria
ajudar, os humano a entender e agir responsavelmente no mundo.
Ele busca desafiar, em bases teológicas e científicas, qualquer antro-
pologia que separe os humanos da natureza.

Helminiak, Daniel A. The Human core of Spirituality: mind as psyche


and spirit. Albany: State University of New York Press, 1996.
O autor busca um enfoque científico da espiritualidade que
seja aplicável fora do confinamento das tradições religiosas. Ele ar-
gumenta que a espiritualidade é fundamentalmente uma qualidade
humana, que é uma função da consciência. Como tal, a espirituali-
dade reside no domínio da psicologia e tem ligação com a procura .
de vida mais autêntica e autoconsciente. Helminiak segue Loner-
gan ao ver o humano como uma composição de espírito, psique e or-
ganismo, no sentido de que estes determinantes são distintos, mas
elementos inseparáveis da pessoa humana inteira.

Hersch, Jeanne. (org.). Birthright of men: a selection of texts. Paris:


UNESCO, 1969.
SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR 409

Esse trabalho comemora o vigésimo aniversário da Declaração


Universal dos Direitos Humanos. Contém citações de diversas épo-
cas e culturas correspondendo de maneira aproximada ao conteúdo
dos principais temas da Declaração.

Hick, John. An Interpretation of Religion: human responses to the Tran-


scendent. Basingtoke: Macmillan, 1988. (Macmillan: UK, 1989)
Argumentando de uma perspectiva kantiana, John Hick de-
fende a posição de que todas as religiões são expressões humanas
das suas experiências da mesma realidade última, que ele denomina
o "Real". Para Hick, o Real é análogo aos noumena de Kant, enquanto
as tradições religiosas são análogas aos phenomena. Hick faz uma apo-
logia à realidade da experiência religiosa, argumentando que quem
crê na religião pode confiar que sua experiência é de algo existente,
isto é, o noumenal ou o Real. Além disso, defende o ponto de vista
de que a pluralidade religiosa pode ser afirmada, baseando-se em
que todas as tradições religiosas verdadeiras não apenas se referem
a uma experiência do mesmo Real, mas são também salvificamente
eficazes para os participantes humanos nessas tradições.

Holm, Jean e John Westerdale Bowker (orgs.). Natureza humana e


destino. Europa-América, 1996. (Human nature and destiny. Themes
in Religious Studies Series. Londres: Pinter Publishers, 1994.)
Uma coletânea de ensaios introdutórios que delineiam a antro-
pologia de várias tradições religiosas. Esse trabalho busca ilustrar a
diversidade de crenças sobre a condição humana e os fins humanos,
tanto no interior como entre as tradições religiosas que são descritas.
Os autores abordam estes tópicos não apenas por meio de descrições
históricas das crenças nas tradições, mas também tratando especial-
mente questões contemporâneas, tais como gênero, raça e classe.

Holm, Jean e John Westerdale Bowker (orgs.). A mulher na religião.


Europa-América, 1999.
Esse é um texto introdutório que lida com o papel e o status das
mulheres, historicamente e no presente, no budismo, cristianismo,
410 SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR

hinduísmo, islamismo, judaísmo e siquismo, assim como nas tradi-


ções chinesa e japonesa. Os organizadores notam dois fatos salientes
que atravessam esses estudos. Primeiro, a igualdade entre homens
e mulheres era em grande parte maior nos primeiros períodos do
desenvolvimento de cada religião. Isto, em parte, é atribuído ao fato
de que os iniciadores das religiões eram muito mais radicais com re-
lação a gênero do que suas culturas ou seus seguidores. Segundo, na
maioria das tradições, há grande disparidade entre os ensinamen-
tos centrais que no todo advogam igualdade de gênero e a prática
da discriminação pelos adeptos dessas tradições. Alguns sinais de
esperança também são notados. Rita Gross, escrevendo a seção so-
bre budismo, nota que conforme o budismo se estabelece mais no
Ocidente, muitas mulheres são treinadas como líderes e assumem
papéis de destaque nas comunidades praticantes.

Jacobs, Louis. Religion and the individual: a Jewish perspective. Cam-


bridge Studies in Religious Traditions, vol. L Cambridge: Cam-
bridge University Press, 1992.
Jacobs busca retificar o que ele vê como uma ênfase exagera-
da no papel do grupo no judaísmo contemporâneo em detrimento
do respeito pelo indivíduo do judaísmo tradicional. Tomando como
referências a Mishná, o Talmud e a literatura rabínica, segue as pis-
tas do respeito tradicional pelo indivíduo desde as primeiras fontes
judaicas até o presente.

Kennedy, Leonard A. et al. (orgs.). Images of the human: the philos-


ophy of the human person in a religious context. Chicago: Loyola
University Press, 1995.
Uma antologia de seleções, de Platão e Aristóteles a uma varie-
dade de pensadores do século vinte, homens e mulheres, propondo
diversas visões do que é ser humano. Treze professores universitá-
rios se responsabilizam, cada um, por um(a) personagem em parti-
cular. Cada seleção é precedida por uma visão geral da pessoa e seus
escritos, assim como dicas e/ou questões para ajudar os leitores a se
ocuparem da seleção reflexivamente. Um comentário e sugestões
para mais leitura concluem cada seção.
SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR 411

King, Sallie B. Buddha nature. Série de estudos budistas da SUNY.


Albany: State University of New York Press, 1991.
A autora faz uma exposição detalhada da "natureza búdica" de
acordo com o Fo Xing Lun ("Tratado da natureza búdica") chinês de
meados do século sexto, e o interpreta à luz do pensamento ocidental
sobre o ser e a existência das pessoas e o desenvolvimento da tradição
budista no Ocidente. O livro começa com uma introdução à história
e à importância tradicional do motivo da natureza búdica e do Fo Xing
Lun. Os capítulos seguintes apresentam a teoria do texto chinês da
natureza búdica no que diz respeito à soteriologia, self, ontologia, cul-
tivo espiritual e implicações para o pensamento religioso ocidental.
Central à interpretação da autora é o caráter não substancial da natu-
reza búdica, quer dizer, é ação, ela configura-se como ação salvadora.

Kippenberg, Hans G.; Y. Kuiper; e Andy E Sanders (orgs.). Concepts


of person in religion and thought. Religião e razão, vol. 37. Berlim:
Mouton de Gruyter, 199o.

Esse volume explora o conceito de personalidade a partir de


diversas perspectivas disciplinares, incluindo antropologia, herme-
nêutica filosófica e sociologia, e em vista das perspectivas religiosas
egípcia, judaica, cristã, hindu, islâmica, indiana antiga, Hopi e da
África Ocidental. Ao mesmo tempo em que está claro para os or-
ganizadores que o conceito de personalidade é um conceito trans-
cultural, eles buscam demonstrar nesse trabalho que diversos sig-
nificados foram anexados a esse conceito nos diversos contextos, e,
conseqüentemente, um acordo prematuro sobre um entendimento
universal de personalidade deve ser evitado.

Krejcí, Jaroslav e Anna Krejcová. The human Predicament: its chang-


ing image: a study in comparative religion and history. Nova Iorque: St.
Martin's Press, 1993.

Há cinco paradigmas básicos, associados a cinco eixos culturais,


pelos quais os seres humanos deram sentido às suas vidas e mortes
de acordo com o autor. Esses paradigmas incluem Teocentrismo
-
--
412--- SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR

(Mesopotâmia antiga), Tanatocentrismo (Egito faraônico), Antro-


pocentrismo (Grécia clássica), Psicocentrismo (Índia "através das
eras") e Cratocentrismo (China). A partir desses cinco paradigmas,
Krejcí oferece explicações a respeito do desenvolvimento e forma
de pelo menos sete religiões mundiais, em termos de "encontro",
"flerte" e "mutação". Os dois últimos capítulos consideram o futuro
das religiões e seu significado para as relações globais.

Krishna, Daya. The problematic and conceptual structure of classical In-


dian thought about man, society and polity. Delhi: Oxford University
Press, 1996.
Krishna dirige seu livro contra duas concepções equivocadas:
a de que o pensamento indiano esgotou sua criatividade e utilida-
de numa tradição de comentários repetitiva; e a de que modos não
ocidentais de conhecimento foram suplantados pelos modos oci-
dentais. A pessoa humana, "como ser autoconsciente, encontra-se
encravada tanto na natureza como na sociedade e ainda assim se con-
sidera separada delas num sentido essencial... Uma situação similar,
apesar de num nível mais sutil, existe em termos de sua relação com
a realidade como um todo, em ambos os aspectos transcendental e
imanente". Krishna articula os meios pelos quais esta problemática
de um self empírico e verdadeiro foi tratada nos textos antigos — es-
pecialmente por meio da formulação de um esquema de estágios da
vida e objetivos da vida — e demarca as estruturas conceituais que
deram sentido e conexão às varias soluções.

Lauer, Eugene J. e Joel Mlecko (orgs.). A Christian understanding of


the human person: basic readings. Nova Iorque: Paulist Press, 1982.
Essa antologia contém excertos de teólogos contemporâneos
relativos ao conceito cristão de ser pessoa. Os organizadores afirmara
que a pessoa cristã é essencialmente relacional e envolve quatro re-
lações básicas: com Deus, com o mundo material, com outras pes-
soas humanas e consigo mesmo. Quatro seções desse trabalho estão
organizadas em torno destas quatro relações e estão ligadas a duas
seções adicionais, que discutem o papel da religião no "tornar-se hu-
SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR 413

mano" e Jesus como uma pessoa idealmente relacionada. Seleções


de Ninian Smart, Huston Smith, Harvey Cox, Karl Rahner, Wol-
fhart Pannenberg, Thoman Mann e Elizabeth Kubler-Ross, entre
outras, estão incluídas.

Lawson, E. Thomas e Robert N. McCauley. Rethinhing religion: con-


necting cognition and culture. Cambridge: Cambridge University
Press, 199o.
Os autores do trabalho buscam uma estrutura explanatória e
interpretativa para as religiões. Concentram-se nos rituais como fa-
ceta auto-limitante das religiões e, conseqüentemente, mais pron-
tamente analisável no plano teórico. Aproveitando-se de idéias da
lingüística e da ciência cognitiva, propõem uma nova visão intelec-
tualista da religião, na qual esta é um fenômeno mental análogo à
linguagem e o participante no ritual, análogo aos falantes de uma
língua (materna) cujas intuições sobre as regras do ritual ou lingua-
gem podem não ser precisas, mas são, contudo, confiáveis. Os auto-
res, então, buscam princípios universais da estrutura ritual.

Munro, Donald J. Images of human nature: a Sung portrait. Princeton,


NJ: Princeton University Press, 1988.
Munro argumenta que a teoria da natureza humana de Zhu Xi
pode ser entendida como relacionada a imagens particulares, tais
como o riacho, a planta e o espelho, que ocorrem repetidamente
nos trabalhos de Zhu. Essas imagens, Munro afirma, ajudam Zhu
Xi a ligar duas polaridades fundamentais da condição humana, a
saber: dever com a família versus dever com o Estado, e autodes-
coberta da verdade moral versus obediência a regras objetivas. As
imagens que Zhu Xi emprega servem a ambas as funções: estru-
tural e emotiva, dando à audiência de Zhu Xi um sentido de como
as relações humanas trabalham e por que elas deveriam trabalhar
desse modo. Munro conclui explorando como as idéias de Zhu Xi
podem ser relacionadas com aquelas da filosofia ocidental e como
elas continuam a ressoar na sociedade e na teoria moral chinesas
contemporâneas.
---=
414-- SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR

Neufedt, Ronald W (org.). Karma and rebirth: post-classical develop-


ments. Albany: State University of New York Press, 1986.
As contribuições visam à compreensão do karma e do renas-
cimento na Índia moderna, assim como em Sri Lanka, Sudeste da
Ásia, Tibete, China, Japão e Ocidente. A Parte I considera a influên-
cia das figuras e dos movimentos da Renascença Hindu na Índia nos
séculos dezenove e vinte. A Parte II olha as concepções de harma em
ambas as tradições budistas: Therâvada e Mahâyâna. A Parte III olha
os desenvolvimentos intelectuais ocidentais incluindo teosofia e
novos movimentos religiosos.

Neville, Robert C. Soldier, sage, saint. Nova Iorque: Fordham Univer-


sity Press, 1978.
Esse estudo filosófico desenvolve uma teoria de liberdade
espiritual, liberdade em honra ao divino, em termos de três mode-
los de perfeição humana. Cada um tem seu terreno filosófico em
um dos componentes platônicos da alma: assim, vontade-soldado,
intelecto-sábio, desejo-santo. No entanto, os modelos são também
oferecidos como um modo de teologia comparativa, sendo encon-
trados entrelaçados aos símbolos de perfeição religiosa e humanida-
de normativa nas tradições religiosas vivas. Diz-se que a prática do
soldado, sábio ou santo faz reivindicações específicas ao praticante,
levando o aspirante a dedicar-se ao contraste último entre o mundo
contextual e a possibilidade condicional de que exista mesmo um
mundo. Todas essas práticas, apesar de distintas, salientam a liberda-
de responsável no mundo.

O'Flaherty, Wendy Doniger e J. Duncan Derrett (orgs.). The concept


of duty in South Asia. Nova Delhi: Vikas Publishing House, 1978.
O apelo de Arjuna a Krishna no Baghavad Gitâ é para "demons-
trar onde meu dever se encontra". A Parte I dessa coleção de ensaios,
"O período antigo: dever e Dharma", examina o dever por meio da
lente conceitual do dharma, e traça a noção de dever desde suas apa-
rências mais antigas na literatura védica e primeiras interpretações
budistas até a hermenêutica legal. A Parte II, "O período medieval e
SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR 415

moderno: conceitos de dever muçulmano, britânico e nacionalista",


evidencia a compreensão rica e variável de dever, que tal confluên-
cia cultural elaborou na Índia.

O'Flaherty, Wendy Doniger e Comitê Misto sobre o Sul da Ásia.


(orgs.). Karma and rebirth in classical Indian traditions. Berkeley: Uni-
versity of California Press, 1980.
Os ensaios nesse volume consideram as origens e o estabele-
cimento das teorias do karma na Índia. Nenhuma falta de tensão se
evidencia na relação das teorias do karma com os estágios religiosos
variados que uma pessoa pode passar através da sociedade hindu, ou
durante a vida (ou vidas) dele ou dela. Questões são levantadas e di-
rigidas a partir de uma variedade de perspectivas metodológicas. A
Parte I estuda a emergência e o desenvolvimento da idéia de karma
nas raízes literárias do hinduísmo, tanto a Ariana (do norte) e como
a Tamil (do sul). A Parte II observa as abordagens budista e jainista
do karma. A Parte III reflete sobre as tradições filosóficas e suas con-
tribuições para um entendimento do karma.

O'Shaughnessy, Thomas J. Creation and the teaching of the Qur'ãn.


Biblica et Orientalia, vol. 4o. Roma: Biblical Institute Press, 1985.
O enfoque primário desse trabalho é o desenvolvimento do
conceito de criação no Qumran, com referência especial à influên-
cia de outras tradições religiosas. Por meio de um estudo cuidadoso
dos verbos e substantivos utilizados em relação à criação, especial-
mente à criação dos humanos, O'Shaughnessy tenta traçar o desen-
volvimento da idéia da pessoa humana no pensamento de Maomé.
O autor dá atenção especial às fontes sírio-cristãs, rabínicas e polite-
ístas que podem ter influenciado o desenvolvimento do pensamen-
to de Maomé durante os vinte e dois anos da escrita do Qumran.

Organ, Troy Wilson. The Hindu quest for the perfection of man. Athens:
Ohio University, 197o.
Organ começa esse longo livro caracterizando o hinduísmo
como uma busca, que os capítulos subseqüentes especificam como
416 SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR

uma busca por realidade, espiritualidade, integração e libertação.


O ideal do homem que se torna perfeito é discutido em termos de
relação com o mundo adjacente, sociedade, divindade e como rea-
lização enquanto prática. O autor é muito influenciado por moder-
nistas hindus como Roy, Tagore e Vivekananda. Conclui com uma
recomendação do hinduísmo como uma "religião católica" para toda
a humanidade.

Panikkar, Raimundo e Scott Eastham. The cosmotheandric experience:


emerging religious consciousness. Maryknoll, NY: Orbis Books, 1993.
Panikkar, que tem doutorados em filosofia, religião e ciência,
une seus conhecimentos destas três disciplinas no seu argumento
de que o mundo é e deve tornar-se significativamente inter-relacio-
nado, porque a destruição ambiental, a superpopulação e a má dis-
tribuição dos recursos colocam sérios desafios para a sobrevivência
dos humanos, assim como para muitas outras espécies. Afirma que
"divino, humano e terreno ... são as três dimensões irredutíveis que
constituem o real", e argumenta que sua visão de "espiritualidade
cosmoteândrica", que junta cosmos, theos e andros, oferece uma op-
ção viável que poderia inspirar ação apropriada.

Park, Andrew Sung. The wounded heart of God: the Asian concept of Han
and the Christian doctrine of sin. Nashville: Abingdon, 1993.
Park defende que a noção cristã de pecado falhou em perceber
por completo a dor que se acumula nas vítimas de pecado. Utiliza
a noção coreana de han para elaborar sobre esta profunda dor e a
amargura causadas pelo pecado. Assim como a tradição cristã vê o
pecado como fundamental à condição humana, Park argumenta que
han é também fundamental. Portanto, han deveria também ser trata-
da em qualquer concepção de salvação. Park vê terreno para o diálo-
go inter-religioso com o budismo, hinduísmo e judaísmo, enquanto
tradições que já desenvolveram análises implícitas ou explícitas de
han. Finalmente, argumenta que para se ter urna visão holística da
salvação, deve-se incluir não apenas o perdão, mas também a reso-
lução do han. Park chama as pessoas religiosas a se unirem contra a
SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR 417

discriminação cultural, que ele vê como os perpetuadores primários


do han hoje.

Park, Sung-bae. Buddhistfaith and sudden enlightenment. Série SUNY


de estudos religiosos. Albany: State University of New York Press,
1983.
Park explora as relações entre fé e iluminação repentina na tra-
dição budista Mahâyâna, particularmente a escola Rinzai coreana de
Ch'an (Zen). Ele traça a diferença fundamental entre "fé doutrinal" e
"fé patriarcal". A primeira está alicerçada na fé de que alguém pode
se tornar Buda por meio de um longo processo de aprendizagem
e prática. A última está alicerçada na fé de que alguém já é Buda.
Enquanto a iluminação é assim gradual na primeira, é imediata e
repentina na última. Para Park, a fé patriarcal é a verdadeira fé do
Budismo Mahâyânaa, que consiste em reafirmações meditativas
contínuas da natureza essencial búdica de um indivíduo. Ao longo
do texto, Park traça paralelos entre estas duas noções budistas de
fé e as noções cristãs de fé utilizando como fontes particularmente
Tillich e Kierkegaard, com uma seção especialmente interessante
sobre a "relapsia".

Ricoeur, Paul. Fallible man. Ed. rev. Nova Iorque: Fordham Univer-
sity Press, 1986 [1965]. Tradução de rhomme faillible.
Esse trabalho é o segundo volume na série de Ricoeur sobre a
Filosofia da vontade, que inclui Liberdade e natureza e O simbolismo do
mal. Nesse volume, Ricoeur explora a fenomenologia da falibilida-
de humana. Ele argumenta que a falibilidade é inerente à natureza
humana em virtude da "desproporção" fundamental da existência
humana. Porque os humanos sempre têm uma experiência pré-fi-
losófica, pré-reflexiva da existência, a sua autoconsciência é sempre
uma reflexão em segundo plano. É esse frágil "defeito" permanente
na tensão entre pré -reflexivo e reflexivo, pré -filosófico e filosófico
que abre espaço para a falibilidade e, conseqüentemente, de acordo
com Paul Ricoeur, empresta à natureza humana a "capacidade para
o mal".
418 - SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR

Rouner, Leroy S. (org.). Is there a human nature? Estudos da Univer-


sidade de Boston em Filosofia e Religião, vol. 18. Notre Dame, IN:
University of Notre Dame Press, 1997.
Essa é uma coletânea de ensaios que enfocam a questão da
natureza humana. Os autores expressam várias posições. Bhikhu
Parekh argumenta que a natureza humana tem um caráter triplo
— universal, cultural e auto-reflexivo. Ele nota que esta concepção
tripartida leva em consideração as concepções de natureza _ Numa-
na ocidental (universal), chinesa (cultural) e hindu (auto-reflexiva).
Daniel Dahlstrom argumenta que a compaixão se apóia no reconhe-
cimento da humanidade de alguém pelos outros. Aponta a dispa-
ridade econômica, desejo de superioridade e xenofobia como cor-
rentes que militam contra tal reconhecimento. Tu Wei-Ming sugere
uma reconsideração da piedade filial confucionista dentro do con-
texto da crise ambiental global. Argumenta que uma concepção de
natureza humana relacional deve ir além das relações humanas para
incluir a terra. Outros autores são Lisa Cahill, Ray L. Hart, Robert
Neville, Stanley Rosen e Sissila Bok.

Sachs, John Randall. The Christian vision of humanity: basic Christian


anthropology. Zacchaeus Studies. Collegeville, MN: Liturgical Press,
1991.
Um trabalho introdutório breve cobrindo as visões bíblicas e
tradições católicas a respeito da natureza humana. Os tópicos in-
cluem a imagem divina, liberdade, individualidade e comunidade,
gênero, corpo e alma, pecado, graça, morte e ressurreição, destino e
vida cristã. Sugestões de leitura acompanham cada capítulo.

Schimmel, Solomon. The seven deadly sins: Jewish, Christian, and Clas-
sical reflections on human nature. Nova Iorque: Free Press, 1992.
Schimmel, um psicoterapeuta e professor de educação e psi-
cologia, reflete sobre a situação humana contemporânea no diálogo
com os textos clássicos das três tradições apontadas no subtítulo.
Os autores desses textos são "psicólogos profundos", cujas percep-
ções sobre a persistência do pecado podem corrigir o que o autor
SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR 419

vê como a amoralidade da profissão psicológica e a arrogância do


cientista. Sete capítulos tratam de orgulho, inveja, raiva, luxúria,
gula, ambição e preguiça. Schimmel conclui com uma consideração
sobre pecado e responsabilidade.

Segundo, Juan Luis e Centro Pedro Fabro de Montevidéu. Grace and


the human condition. Maryknoll, NY: Orbis Books, 1973. (Trad. bras.,
Graça e condição humana São Paulo: Ed. Loyola, 1976).
Segundo argumenta no trabalho em favor da concepção dinâ-
mica de antropologia cristã. Vê a graça como o agente libertador na
vida humana. É uma "força irresistível" que liberta pessoas de modo
que elas possam participar na "tarefa comum" de criar uma "histó-
ria do amor em toda a sua plenitude." A graça é a força que liberta
a humanidade para buscar sua verdadeira condição como livre em
qualquer forma dinâmica que esta liberdade tome.

Shari'ati, A. Man and Islam: lectures. Danishgah-i Mashhad, vol. 103.


Mashhad, Iran: University of Mashhad Press, 1982. Trad. por Ghu-
lam F. Fayez de Insan va Islam.
Shari'ati, que foi ativo no movimento de libertação e renovação
iraniano dos anos 7o e também exilado e assassinado em 1977 por
causa deste envolvimento, argumenta nesse texto que a resposta aos
problemas iranianos não será encontrada na ocidentalização (que
ele chama de "ocidentemania") ou conservadorismo religioso, mas
numa compreensão renovada da antropologia bidimensional do Is-
lão. O humano no Islão é ambos: "argila" e "espírito", nesse mundo e
no outro. Shari'ati vê o Islão como superior nessa formulação, tanto
à ênfase ascética e no outro mundo do cristianismo, como à ênfase
histórica e nesse mundo do judaísmo. Conclui que qualquer estado
islâmico deve equilibrar essas duas dimensões, não apenas respei-
tando as tradições religiosas, mas também o livre-arbítrio (vontade
e escolha) do indivíduo.

Shari'ati, A. On the sociology of Islam: lectures. Berkeley: Mizan Press,


1979. Trad. do persa por Hamid Algar.
420 - SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR

Shari'ati argumenta a partir do conceito de tauhid, ou da uni-


dade de Deus (implicando também a unidade do cosmos enquan-
to criação de Deus), que "as massas" são o fator mais fundamental
e consciente na determinação da história e da sociedade. Ele vê o
Islão como único tanto em propor essa unidade como em perceber
a importância sociológica das massas para qualquer movimento ou
mudança.

Sharma, Arvind. (org.). Women in world religions. Estudos McGill de


História das religiões. Albany: State University of New York Press,
1987.
Essa coletânea examina o papel das mulheres no mundo e nas
religiões primitivas. As tradições que as autoras cobrem incluem:
hinduísmo, budismo, confucionismo, taoísmo, cristianismo, isla-
mismo e religião primitiva australiana. Os contribuintes empregam
as abordagens histórica e fenomenológica, utilizando textos sagra-
dos como fontes primárias. O trabalho contém uma introdução útil
de Katherine Young, que examina em termos gerais como e por que
essas várias tradições se tornaram patriarcais.

Soloveitchik, Joseph Dov. Halaithic Man. Filadélfia: Jewish Publica-


tion Society ofAmerica, 198 3.Trad. do Ish ha-halalzhah, galui ve-nistar.
Soloveitchik descreve a visão de mundo do homem halachai-
co (pessoa formada na Torá) em contraste com o que ele chama de
homo religiosus e homem cognitivo. Enquanto o homo religiosus busca
fugir do mundo material para o eterno, o homem halachaico bus-
ca trazer o eterno para o reino material, para fazer da realidade o
ideal. Onde o homem cognitivo disseca a realidade em benefício
dela mesma, Soloveitch afirma, o homem halachaico, pelo contrá-
rio, disseca a realidade com as categorias a priori da Torá. O objetivo
do homem halachaico é ver a correspondência entre o ideal da Torá
e o real. Soloveitch conclui que o homem halachaico representa um
potencial criativo singular, já que o seu objetivo último é moldar o
mundo que se apresenta todo dia de acordo com a imagem ideal da
Torá que ele possui.
SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR 421

Soper, Kate. Humanism and anti-humanism. Problems of modern


European thought. Londres: Hutchinson, 1986.
Soper oferece uma visão geral da antropologia humanista e
anti-humanista recente. Dedica-se à questão "o humano realmente
faz história?" enquanto defende o humanismo (embora um huma-
nismo qualificado, com visões limite de agência e individualidade).
Ela provê uma análise concisa das raízes das posições humanistas
em Hegel, Marx, Husserl e Heidegger, assim como das raízes das
posições anti-humanistas em Levi-Strauss, Foucault, Althusser, La-
can e Derrida.

Thangaraj, M. Thomas. The crucified guru: an experiment in cross-cul-


tural Christology. Nashville: Abingdon Press, 1994.
Thangaraj, um tamil do sul da Índia ensinando nos Estados
Unidos, argumenta que sua concepção de Jesus como o guru cru-
cificado tem o potencial de transpor a diferença entre a cristologia
tradicional e a tradição saiva do hinduísmo, que é praticada em sua
região natal. Ele critica cristologias cristã e hindu do avatar porque
fracassaram em falar tanto a hindus tamil, que vêem a encarnação
como inimiga dos avatares, como a cristãos tamil, que viram as cris-
tologias avatares como minimizadoras da humanidade de Jesus. Por
outro lado, o guru, um revelador humano do divino, permanece ver-
dadeiro tanto para sua origem hindu como para o equilíbrio entre
humano e divino na ortodoxia cristológica. Além do mais, Thanga-
raj argumenta, a visão de Jesus como guru enfatiza o papel da comu-
nidade de seguidores ou sisya, que é ordenada não só a seguir, mas
também a realizar a mensagem do guru no mundo. De modo geral,
o livro fornece um exemplo detalhado de uma cristologia compara-
tiva, transcultural e contextuai.

Tu, Wei ming. Confucian thought: Selfhood as creative transformation.


Ed. rev. Série SUNY de Filosofia. Albany: State University of New
York Press, 1985.
Por meio dos nove ensaios recolhidos nesse livro, Tu Wei-ming
tenta responder a questão colocada a ele por Robert Bellah: "O que é
-
--= SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR
422-

o self confuciano?". Levando a sério a centralidade do cultivo do self


na tradição confuciana, Tu Wei-ming explora as muitas dimensões
sutis do pensamento confuciano, tentando entender Confúcio à luz
dos escritos de Meng-tzu e o pensamento de Meng-tzu em relação
ao ensinamento de Wang Yangming.

Ward, Keith. Religion and human nature. Oxford: Clarendon Press,


1998.
Ward busca explorar, criticar e melhorar a visão cristã da natu-
reza humana no encontro genuíno com a visão da natureza humana
em outras tradições religiosas. Ward categoriza os conceitos da na-
tureza humana em dois grupos. Há aqueles que argumentam que o
self é urna ilusão, uma manifestação da única realidade espiritual, e
há aqueles que argumentam que o self é um único, particular a uma
única realidade individual, material ou espiritual ou uma combina-
ção de ambos. Em diálogo com os principais mestres delas, Ward
dialoga com a Sociedade Internacional para a Consciência Krishna,
Ramakrishna, budismo therâvada e tibetano, judaísmo e islamismo.
Então, argumenta a favor de uma visão cristã da natureza humana re-
vista e melhorada, que ocupe o terreno médio entre as perspectivas
de não-self(religiões védicas) e "selfincorporado" (religiões semíticas).

Warne, Graham. J. Hebrew perspectives on the human person in the Hel-


lenistic era: Philo and Paulo. Série da imprensa bíblica Mellen, vol. 35.
Lewiston, NY: Mellen Biblical Press, 1995.
Esse trabalho examina os conceitos grego e hebraico de per-
sonalidade humana por meio de uma exploração do conceito de
"alma" em Fílon e Paulo. Warne tenta julgar quanto o entendimento
de Platão da alma influenciou a ambos. Ele não encontra uma visão
unificada da alma nem em Fílon, nem em Paulo, porém conclui que
traços de idéias gregas e também hebraicas podem ser encontrados
em cada um desses escritores. O trabalho fornece uma análise de-
talhada dos cenários social, religioso e político no primeiro século,
assim como um estudo etimológico em profundidade dos grupos de
palavras relacionados à alma em grego e hebraico.
SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR 423

Weingart, Peter et al. (org.). Human by nature: between Biology and the
Social Sciences. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum Associates, 1997.
Esse trabalho é uma reavaliação e um experimento na relação
entre a biologia e as ciências sociais. Traça o desenvolvimento his-
tórico dessas duas disciplinas, assim como o desenvolvimento da
mútua desconfiança entre elas. Em dois conjuntos de estudos, um
baseado na homologia (o humano é um animal) e outro baseado na
analogia (o humano é como um animal), revê concepções atuais do
humano e explora o benefício potencial de um "pluralismo integra-
tivo" no qual os métodos, tanto da ciência social como da biologia,
poderiam ter influência no desenvolvimento de uma visão com
mais nuanças da conexão dos fatores biológicos e culturais que dão
forma aos indivíduos e comunidades humanas.

Wetehrilt, Ann Kirkus. That they may be many: voices of women, echoes
of God. Nova Iorque: Continuum, 1994. •

Wethrilt argumenta a favor da transformação das estruturas de


autoridade, epistemologia e práxis, de modo que vozes diversas pos-
sam ser ouvidas eficazmente no discurso teológico. Ela argumenta
que o discurso teológico deveria ser chamado corretamente "discur-
so teo-ético", dado que deveria ser um exemplo da promulgação de
uma ética inclusiva. Propõe que as mulheres desafiem as estruturas
tradicionais de autoridade e assumam suas próprias vozes e meios
de expressão. Ela argumenta que a epistemologia deve ser trans-
formada para acomodar maneiras de conhecer sejam incorporadas
sejam de outros modos a partir da pessoa. Finalmente, incita a trans-
formação da práxis individualista em coalizões de práxis que teriam
o efeito de combater a unilateralidade do conhecimento, limitado e
localizado socialmente, de indivíduos solitários.

Wilson, Edward Osborne. On human nature. Cambridge: Harvard


University Press, 1978. (Trad. bras.: Da natureza humana. São Paulo:
T a Queiroz, 198o)
Ele argumenta que os humanos e sua sociedade, com suas ins-
tituições sociais concomitantes, devem ser vistos primariamente
-- SUGESTÕES PARA LEITURA POSTERIOR
424----
como produtos da evolução biológica. Argumenta que coisas tais
como agressão, altruísmo, religião e esperança têm sua base última
no esforço evolucionário de preservar a espécie. Além do mais, ele
faz um apelo pela união da ciência biológica e social para que a base
biológica da natureza humana, individual e cultural, possa ser me-
lhor compreendida e assim contribua para uma escolha mais infor-
mada dos tipos de instituições e valores que serão verdadeiramente
benéficos para a humanidade.
COLABORADORES

PETER L. BERGER é professor universitário emérito de sociologia


da religião na Universidade de Boston e diretor do Instituto para o
Estudo da Cultura Econômica. É autor de vários livros amplamente
aclamados no campo da sociologia da religião.

FRANCIS X. CLOONEY, S.J., professor titular de teologia compara-


da no Boston College, é ex-presidente da Sociedade de Estudos Hin-
du-cristãos. Especializa-se em algumas tradições sânscritas e tamil
do pensamento hindu e suas implicações para a teologia cristã.

MALCOLM DAVID ECKEL é professor titular de História da Re-


ligião na Universidade de Boston, pesquisa e ensina budismo.

PAULA FREDRIKSEN é professora da cátedra William Goodwin


Aurelio de Compreensão de Escritura, e professora de Novo Testa-
mento e Primeiro Cristianismo na Universidade de Boston. Ela tem
interesse particular na pesquisa de Agostinho de Hipona e também
publicou nas áreas de judaísmo helenístico, origens cristãs e estu-
dos paulinos.

S. NOMANUL HAQ integra atualmente o corpo docente da Uni-


versidade Rutgers e é professor visitante na Universidade da Penn-
sylvania. Tem publicado muito na área geral de história intelectual
islâmica, incluindo teologia, filosofia e ciência.
426 - COLABORADORES

JOSEPH KANOFSKY concluiu recentemente seu doutorado na


Universidade de Boston. O objeto primário de seu trabalho são os
estudos judaicos.

LIVIA KOHN é professora titular de Religião e Estudos Leste-


asiáticos na Universidade de Boston. Ela é especialista em taoísmo
medieval.

ROBERT CUMMINGS NEVILLE é professor titular de Filosofia,


Religião e Teologia, e reitor da Escola de Teologia da Universidade
de Boston. Neville é ex-presidente da Academia Americana de Re-
ligião, da Sociedade Internacional de Filosofia Chinesa e da Socie-
dade de Metafísica da América.

HUGH NICHOLSON é doutorando no Departamento de Teologia


do Boston College e está atualmente escrevendo sua dissertação re-
lacionando o pensamento filosófico indiano e as questões teológi-
cas e filosóficas e preocupações do Ocidente cristão.

ANTHONY J. SALDARINI é professor titular no Departamento de


Teologia do Boston College. Dá cursos de judaísmo e cristianismo
primitivos, e publica na área das relações judaico-cristãs iniciais.

TINA SHEPARDSON é doutoranda na Universidade de Duke, es-


pecializando-se em estudos sobre o cristianismo primitivo, e está
atualmente escrevendo sua dissertação sobre o pensamento de San-
to Agostinho.

JOHN J. THATAMANIL é membro do corpo docente de Ciências


da Religião no Millsaps College e recentemente completou sua dis-
sertação comparando o pensamento de Paul Tillich e Sankara.

WESLEY J. WILDMAN é professor associado de Teologia e Ética


na Universidade de Boston. Ensina e pesquisa nas áreas de teologia
cristã contemporânea, filosofia da religião e religião e ciência.
ÍNDICE DE NOMES

Abhidharma, 99, mo Belkin, Samuel, 157


Abraão, em São Paulo, 200 Ben Sirac, 161-70, 274, 286, 191-193, 267-
Abú Hanifa, 232 68, 276, 326, 338
Adão, 162-67, 280:82, 187, 197-200, 203, Ben Zoma, 184
211-212, 220-21, 225, 230, 241-42, Berger, Peter, 20, 37 2, 375, 378, 386
250, 274, 326, 339, 354; para o cris- Berthrong, John H., 20, 370, 375-76,
tianismo católico, 220; o oposto de 387
Cristo, 197; no Islão, 23o-32; apre- Birdwhistlell, Anne, 17, 332
sentado positivamente no judaísmo Bockmuehl, Markus, 171
do segundo templo e rabínico, 182, Boécio, 49
354; o pecado de, no cristianismo, Buda, ver Siddhârta Gautama
197-20o; no judaísmo comparado ao Bultmann, Rudolf, 251
cristianismo, 280-88; diminuído em
Orígenes, 208; descendência de na Cabezon, José, 17, 32
espinha dorsal, 239; transformado, Caim, 187
221-22 Candrakirti, 200
Akiba, 285 Chandraskehara Bharati, 147
Al Hallâj, 104, 240-41 Chang, Garma C. C., 259, 26o
Al-Shâfi'i, 232 Chia, Mantak, 81
Ames, Roger T., 28o, 257 Ching, Juba, 17, 21
Antíoco IV Epifânio, 262 Cristo, ver Jesus de Nazaré
Aquino, (São) Tomás, 250, 271, 295, 323 Clooney, Francis X., 19, 105, 136, 252,
Arjuna, 117, 149, 297 263, 266, 287, 345, 353, 361, 369, 37o,
Aristóteles, 49, 120, 231, 237, 294, 310 374, 379-82, 386-87
Atanásio de Alexandria, 219,196 Colavito, Maria, 64, 256
Agostinho (Santo) de Hipona, 24, 134, Confúcio, 344, 35 2
139, 143, 245, 196, 209-17, 222-22, Constantino, 226, 222
250-51, 271-72, 292, 3 23, 340-42 , 363 Cipriano (São) de Cártago, 220-21

Bâdarâyana, 123, 248 Dalai Lama, 104


Bhâvaviveka, 108-9, 112, 113-14, 115, Descartes, René, 49
116-119, 120, 249, 261-62 Dostoievski, Fyodor, 40
428 ÍNDICE DE NOMES

Eckel, Malcolm David, 29, 23, 224, 258, Kanofsky, Joseph, 188
259, 266, 282-84, 315, 333-35, 344, Kant, Immanuel, 41, 308, 361
347, 351-52, 370, 376-77, 385, 392 Kohler, Kaufman, 257
Enosh, 187 Kohn, Livia, 19, 23, 44, 106, 226-28, 249,
Eurípedes, 122 252, 256, 279, 280, 313, 343, 350, 370,
Eusébio, 226 374-75, 385-88
Eva, 164, 250 Krishna, 117, 149-50

Fackenheim, Emil, 188 LaCugna, Catherine Mowry, 294


Frank, R., 236 Lakshmi, 117
Frazer, J.G., 122 Levinson, John R., 280, 282
Fredriksen, Paula, 19, 226, 203, 250-52, Lutero, Martinho, 250
270, 274, 323-25, 370, 374, 379, 388
Macabeu, Judas, 174
Goldziher, Ignaz, 223 Mâlik ibn Anas, 232
Graham, A.C., 280 Mâlunkiaputta, 98-99
Maomé, 224, 233-34, 240-42, 243-44, 356
Hall, David L., 257, 28o Mao Tsetung, 68
Haq, S. Nomanul, 29,203-05, 249, 251-52, Márcião, 202, 204, 216, 218,
275-76, 297, 342, 371, 374-75, 381 Maria (mãe de Jesus), 236
Hegel, G. F. W, 24 Massignon, L., 24o, 242
Heidegger, Martin, 279 Metido, 343
Hillel, 179 Mestre Ming-dao, 79
Hipólito, 202 Milinda (Menander), 202
Hitler, Adolf, 158,188 Miller, James, 256, 266, 299, 311-12, 314,
Hume, David, 231, 28o 332, 344, 352
Huntington, Samuel, 39 Moore, George Foote, 257
Moisés, 168
Ibn al-Arabâ, 240 Murata, Sachiko, 223
Iqbal, 225
Irineu (Santo) de Lyon, 202, 203, 219 Nâgarjuna, 222, 249, 261, 314-15, 335
Isaac, em São Paulo, 200 Nâgasena, 101
Isaías, 208 Nemerov, Howard, 209
Ismael, em São Paulo, 200 Neville, Robert C., II, IS, 158, 229-30,
Ishvara, 295-97, 318 369, 373-79, 381-82, 384, 387-90,
392
Jerônimo (São), 208 Newton, Isaac, 291
Jesus de Nazaré, 159, 196-222, 198-99, Niditch, Susan, 182
203, 236-38, 269-74, 290-95, 323, 339- Noé, 171, 184
40, 348, 355-57; como um apóstolo no Novak, David, 171
Islão, 236-7; ver também Cristo
Ohnuki-Tierney, Emiko, 2.17
Johanan ben Zakkai, 175 Only, Susan, 371-72
Johnson, Mark, 110 Orígenes de Alexandria, 24, 295, 204-09,
Jose ben Joezer de Zeredah, 178 214-15, 217, 222, 250-51, 271-73, 290,
Joze ben Johanan de Jerusalém, 178 323, 325, 339-42
Justino Mártir, 202, 203 Otto, Rudolph, 232
-- 429
ÍNDICE DE NOMES --===-

Park Sung-bae, 317 Salomão, Rei de Israel, 285


Paulo (São) de Tarso, 195'204, 208, 210- Soloveitchik,RabiJoseph,159-60,188,354
18, 220-22, 251, 274, 323, 339-41, 348, Sri, 117
362 Stackhouse, Max, 17, 373, 387
Pearlson, Jordon, 17, 21, 373 Steward, Dugald, 41
Peirce, Charles S., 4o, 52 Stoeber, Michael, 132
Platão, 272-72, 309 Svetaketu, 141
Plotino, 272 Swami Madhavananda, 225
Porter, Frank C., 183 Swami Vivekananda, 232

Rabbi Joshua, 184-85 Tara, 208


Rabbi Judah filho de Rabbi Simão, 183, Tertuliano, 202-203
287 Thatamanil, John J., 259, 265-66, 284-85,
Rahman, F., 232, 243 287, 334-5, 346, 376-77
Râmânuja, 328 Teodósio, 221
Reid, Thomas, 41 Tillich, Paul, 39, 40, 251, 271, 279, 323
Ricci, Matteo, 14
Ricoeur, Paul, 40 Udayana, 103
Robinet, Isabelle, 64 Urbach, 257
Rubenstein, Richard, 188, 192, 267
Rufino, 205 Vasubandhu, roo
Valentino, 201, 204
Saldarini, Anthony, 19, 250, 266, 272, Van Ess, J., 236
347, 370, 374, 379-381 Vasistha, 148
Samkara, 124
Sanders, E.P., 196 Wangbi, 279, 28o
Sankara, 125, 128, 147, 150, 263, 266-67, Watt, W. M., 236
346 Weiqiao, Jiang (Mestre Yinshi), 81
Satã (Iblis), o grande, 12, 242 Whitehead, Alfred North, 28o
Schaya, Leo, 223 Wiesel, Elie, 190-93, 267, 273, 338
Schechter, Solomon, 157 Wildman, Wesley J., 20, 28
Schimmel, Annemarie, 224, 226 Wright, Arthur F., 119
Schleiermacher, Friedrich, 39
Seth, 187 Yearly, Lee, 17
Sharma, Arvind, 27
Sidhârta Gautama (Buda), 24, 96, 107-08, Xiang, Guo, 64
228, 120, 249, 258, 293, 319, 351-53 Xunzi, 344
Sima Qian, 311
Simão (II) o Justo, 174 Zhou Dunyi, 280, 296
Smith, Jonathan Z., 17, 30, 49-50, 121 Zhu Xi, 79
Smith, W. Cantwell, 224 Zhuanzi, 343, 351
ÍNDICE DE ASSUNTOS

I COríritiOS, 197-200, 198,199, 208, 214-16 parativa, 358; idéias intrínsecas de, no
I João, 202 budismo, 360-62; na religião chine-
I Tessaloniensses, 198, 199 sa, 358-59; no cristianismo, 362-363;
I Timóteo, 202, 218 hinduísmo, 360-6I; Islão, 363-64; ju-
2 Coríntios, 196, 198, 199 daísmo, 361-62; idéias práticas de, na
2 João, 202 religião chinesa, 359-6o; idéias teóri-
2 Pedro, 202 cas de, na religião chinesa, 359-6o
2 Tessalonicensses, 219 Aflição,330, 364; humana, na religião chine-
2 Timóteo, 202, 219 sa, 62-70, relativa à obrigação, 353; idéias
Abstinência, sexual, no cristianismo, 202; intrínsecas de, 326; no Advaita Vedanta,
Ver também celibato 353-54; no budismo, 351-52; religião
Ação, divina, 274, 324 chinesa, 350-52; cristianismo,355-56;
Âda, no Islão, 232 Islão, 356-57; judaísmo, 354-55; idéias
Adeptos, 8o, 303-04, 325; no Advaita Ve- perspectivas de, no budismo, 352
dânta, 32o; na religião chinesa, 76; Agregados, cinco, no budismo, 96
comparação entre religião chinesa, Ahkâm (normas legislativas), no Islão,
budismo, e Advaita Vedanta, 336 233, 275
Advaita(não-dualismo), '06, '33-34,152-54 Alá, 22 4-243, 252, 276, 293, 297, 326-27,
Advaita Vedânta, 205, 223-24, 250, 254, 349; ver também Deus
263-69, 287-288, 303-04, 307, 328-29, Alegoria, em Orígenes e Agostinho, 209
322, 339, 341-42, 349, 356-57, 360-62; Alerta, na religião chinesa, 70-7I
comparado com budismo e religião Aliança, 329; comparando cristianismo e
chinesa em causalidade, 318-19, com judaísmo, 334-35; no judaísmo, 239-
o Islão, 276-77, 295-96; sobre obriga- 42, 166, 277-79; primordial, no Islão,
ção, 345-47; sobre ontologia, 286-88; 296-97, 212
como hinduísmo paradigmático para Alienação, 294; no cristianismo compa-
o Ocidente 230-32; e processo, 252-53; rado com outras religiões, 292; no Vi-
como um sistema, 253 vekacudâmani, 239-46
Afiliações, 37, 62, 33o, 364-65; na religião Alma, 55; no Cristianismo, o local da ig-
chinesa comparada com as outras, norância, 267; transformação da, 221-
87-89; definida como categoria com- 22; yin e yang, 9o, 91
432 .= ÍNDICE DE ASSUNTOS

Alquimia, 281-82, 320; interior, 72 Âtman, 346, ver também Self


Altíssimo, Deus, 323, 326 Atos dos Apóstolos, 270
Amizade, neste Projeto, 393-94 Autocorreção, em comparação, 246
Amor, 175-76; no Cristianismo, Deus Auto-engano, 345
como, 201, 340; de Deus, próximo, e Autoria, desses capítulos, 19-20, 28
inimigo, 218; no judaísmo, 289-90 Avaliação, do primeiro ano de Projeto,
Amr (mandamento divino), no Islão, 231, 247-48
239, 275, 342, 364; e Ahkâm, 233 Avatares, 274
Anacronismo, 382, 388; alergias ao, 374
Análise, do self, no Advaita Vedânta, 136- Bacchae, 122
39 Bagvad Gitâ, 116, 129-30, 149-50, 250,
Analogias, entre tradições religiosas, 50- 263-266, 269, 291, 297
51 Bárbaros, 311
Androcentrismo, em Agostinho, 216 Barreira (sebe), contra o mal, no judaís-
Angústia, 40 mo, 178-81, 305-06
Ante-ser, na religião chinesa, 63 Baruc, livro de, 168
Antidualismo, no cristianismo, 202 Batismo, no cristianismo, 198-99
Antigo Testamento, para os maniqueus, Beatitude, 303-04; no hinduísmo, 123,
212 125, 135-39
Anti-semitismo, 188 Beleza, 38
Antropologia, 29, 381 Bem e mal gravados nos humanos por
Antropomorfismo, 337; no cristianismo Deus, no Islão, 239; triunfo do, no Is-
protestante, 321 lão, 308-09
Apego, 56, 336, 363; no budismo, 96-107; Bênçãos, de Deus para o Mal e para o
e causalidade, 316; e valor, 301-02 Bem, no judaísmo, 181-82
Apenas-mente, no budismo Yogacara, 260 Berakot, 184
Apocalipse, 158; no cristianismo, 202-03; Bhakti, redefinido no Vivekacudâmani, Is()
no cristianismo e no judaísmo, 270 Bíblia, 167, 168; para Agostinho, 212-13;
Apologética, no cristianismo, 202; no ju- no cristianismo antigo, 25; Hebraica,
daísmo, 171 204, 294; no judaísmo, 157, 161
Aprendizado, na religião chinesa, 332 Bispos, no cristianismo antigo, 220-22
Arbitrariedade, nas categorias, 380-81, Bodhisattva, 1o8, 113, 116, 117, 284-85,
384-85 317-19, 346-47
Áreas da vida na religião chinesa: corpo, Bolo, milenarista: ter, comer, mas renun-
sociedade, natureza, céu, 66 ciar, no cristianismo ortodoxo, 222
Arianismo, 219 Bondade, da criação, 364; no judaísmo,
Arrependimento, nojudaísmo, '59,183-85 cristianismo, e Islão comparados, 305-
Artarva Veda, 263 Io; do mundo e da vida na religião
Arte, 29, 38 chinesa, 61-63
Ascensão do Profeta, 240 Boston College, 370
Ascetismo, 202, 325; cristão comparado Boston University, como espaço deste
com o Islão, 310 projeto, 370-73
Asharita, Escola, no Islão, 238-39, 293-95 Brahma, 116-7, 123, 141-47, 263-64, 286,
Ásia Ocidental, religiões da, 53 295-96, 303-04, 318-19, 331, 335-39,
Assimetria, 357; no cristianismo, 323; 341, 345, 353-54, 361; comparado com
na criação versus simetria na Aliança, o Buda, 118; tudo o que existe, no
32o; na relação Deus-mundo, 266, Advaita Vedânta, 132; como lugar da
267, 326, 337 ignorância, 267
ÍNDICE DE ASSUNTOS 433

Brâmane, como sendo do sexo mascu- Categorias, comparativas, 27-8, 22-23,


lino, letrado, discípulo interessado 381-82; definição, 51-55; critérios de
requerido para a comunidade Viveka- para o budismo, 117-122; história das,
cudâmani, 126, 146-51, 265, 288, 303- 53-54; e princípios interpretativos,
04, 319, 360-61 (Brâmane) estrutura 119-21; interpretadas neste Projeto,
familiar, 360-61 279-80; estabilidade das, criticada pelo
Briga de rua, como metáfora para a escri- budismo, 121-22; e subcategorias, 41-
ta do Cristianismo primitivo, 204 42; limpeza de, 384; ver também vague-
Buda, 107-08, 115-17; Dharma, Sangha, 25 za e especificidade
Buda, mundos de, 249, 260-61 Categórico, imperativo, 343, 361
Budismo, 19, 23-25, 40, 42, 71, 254, 268- Catolicismo, romano, 310, 3 25-26, 340-41
69, 278, 293, 307, 310, 322; e Advaita Causalidade, 42-42, 365; no budismo, line-
Vedânta comparados na condição hu- ar e circular, 98-99; não uma metáfora
mana, 354; sobre valor, 304; categorias ontológica, 316-16; na religião chinesa,
e questões vindas de, para comparação, 62-63, 67, 280, 310; sincrônica e inte-
204-5; categorias inadequadas para a rativa, 344, pela difusão de vibrações
religião chinesa, 94; chinês, 61-63, 78, mais do que seqüência linear, 86; como
82, 119-20, 256-58, 260, 282, 312, 384; categoria comparativa, 310; idéias
na China, Tibete, e Japão, 103; pressu- intrínsecas de, no Advaita Vedanta,
postos cosmológicos nem sempre im- 313-16, budismo, 318, religião chinesa,
portantes para a religião, 259-62; idéias 311-12, cristianismo, 324, Islão, 327-28,
de afiliações no, 359-60, de causalida- judaísmo, 320-22; idéias perspectivas
de, 311-17, de aflição humana no, 351- de, no Advaita Vedanta, 318-19; budis-
52, de obrigação no, 276-78, 344, de on- mo, 315-17; religião chinesa, 312-13;
tologia, 282-85, de identidade pessoal cristianismo, 324; Islão, 327-28; juda-
no, 333-35 de valor no, 301-02; e igno- ísmo, 320-22; idéias práticas de no bu-
rância, 287-88; indiano, 98-99; compa- dismo, 317, religião chinesa, 344, cris-
rado com o Islão, 223; tornado chinês, tianismo, 325, Islão, 327-28, judaísmo,
256-57; sobre a sabedoria, 145-46; ver 321; idéias teóricas de, no budismo, 327,
também, Ch'an, Huayen, Madhyamaka, religião chinesa, 313-14, cristianismo,
Mahâyâna, Terra Pura, zen budismo 325, islamismo, 327-28, judaísmo, 321
Celibato, 293, 325; no budismo e cristia-
Calma, 77 nismo, 341; no cristianismo antigo,
Calvinismo, comparado com o Islão, 310 216-17
Caminho do Meio, no budismo, 96, 107- Certeza, em religião, 12-13
120, 249, 283, 317, 333-35, 342; a visão Cessação, do sofrimento, no budismo, 97
budista deste projeto, 380; como cate- Céu, 275, 311, 358, para Agostinho, 214-
goria comparativa, 226-2o 15; na religião chinesa, 70-72, 282; no
Cânone, das Escrituras Cristãs, 196-222 cristianismo antigo, 220; e Terra, na
Cargas de importância, 55 religião chinesa, 72, 76; e infernos, no
Carne, no cristianismo antigo, 197-99, budismo, 261; como o fim do sacrifí-
251, 273, 3 25, 340; como moral e on- cio, no hinduísmo, 136
tológica, 202-03; redenção da, 203-04 Céus, forças do, na religião chinesa, 79
Carruagem, identidade da, no budismo, Ch'an, budismo, 119
101, 333 Chândogya Upanishad, 127, 140-43, 263
Cartesianismo, 32 Chinesa, religião, 18, 23-24, 61-94, 254,
Casa, central, no judaísmo, 178 268-69, 278, 287-88, 308, 315-16, 322,
Categorial, esquema, 246-47 341-42, 344-45, 349-50, 353, 357-
434 ÍNDICE DE ASSUNTOS

58, 360, 363, 375; comparada com Comida, como categoria comparativa,
o budismo sobre ontologia, 283-86; 379-80; na religião chinesa, 71, 80-82;
como uma categoria em oposição ao no cristianismo, 201; no hinduísmo,
confucionismo, taoísmo etc, 61-63; 135-36; neste projeto, 370-73
estudada de uma perspectiva predo- Compaixão, 347; no budismo, 44, 114-18,
minantemente taoísta, 249; difere das 122; do mestre, no Vivekacudâmani,
religiões ocidentais e hindus ao não 125
enfatizar a dualidade entre deidade e Comparação, alterando as tradições com-
mundo criado, 84-85; idéias, de afilia- paradas, 56-57; no mundo antigo, i;
ções na, 357-59, de ontologia na, 279- no cristianismo antigo, 195; propon-
82, de identidade pessoal na, 331-32, do novas questões às tradições, 56-57;
de aflição humana na, 350-52, de valor quadro categorial de, 21; concepção
na, 299-300; ontologia da, comparada de, 48-51; ilusória a não ser quando os
COM outras, 278-81, 296-97; compara- itens são comparados num contexto
da com o sufismo, 240; representação sistemático, 227; importância da, 45-
intrínseca de unidade, 257-58; repre- 48; método de definição, 48-51, 230;
sentação perspectivista de harmonia, modos de, 253-54; justificação moral
257-58; representação prática do res- da, 381-82; pela negação no pensa-
tabelecimento da unicidade, 257-58; mento budista, 104-06; teoria de Ne-
representação teórica de padrões e ville, 377-79; como panorama, 155;
equilíbrio, 257-58 como processo, 26-27, 46-47, 48-51,
Chineses, estudos, 58 54-55, 57-60; progresso na, 30-31, 32-
Cidade de Deus, 196, 211 33; como ciência, 48-50; simplificação
Ciência, 32o; da religião, is; um valor no da, 22-24; como feita por especialistas
Islão, 277 neste projeto, 382-83; teoria da, 17-19;
Ciência moderna, budismo em boas rela- avaliada, 245-53
ções com a, 262 Comparadas, Projeto de Idéias Religiosas
Cinco, relações na religião chinesa, 76, descrição, 17, 32; narrativa analítica
343-44; fases, na religião chinesa, 69; do processo, 367-95; propósitos do,
virtudes no confucionismo: humani- 17-18; estrutura do, 49
dade, retidão, propriedade, sabedoria, Comparadas, religiões versus idéias reli-
e fidelidade, 76 giosas comparadas, 47-48
Circuncisão, para Agostinho, 213-14; no Comparativas, hipóteses, escopo das, 251;
cristianismo, 200 estrutura das, 254
Clareza, como vício cartesiano, 32-33 Comparativos, estudos, semelhanças ocul-
Classificação, como vício cartesiano, 32; tas reveladas nos, 223-24
na religião chinesa, objetiva compara- Completude, na religião chinesa, 65
da com o budismo, 261-62 Comunicação, 18; entre visões de mun-
"Coberturas", no Budismo, 113 do, 13
Colaboração, história do Projeto de Idéias Composição, 310
Religiosas Comparadas, 367-94; nas Comunidades, 42; no Advaita Vedânta,
ciências da religião comparadas com 146-51; na religião chinesa, 79; exclu-
as ciências naturais, 20 sivas, 221; vida moral das, 55- 56; reli-
Colocação, existencial, 310 giosas, 22
Colossensses, Carta aos, 218 Concentração, no budismo, 113; na ioga
Comensurabilidade, 381 vedântica, 243-44
Comentários, no cristianismo, 219; no Concentrado, do elixir imortal, no Taois-
judaísmo, 157; rabínicos, 172 mo, 8o-81
ÍNDICE DE ASSUNTOS 435

Concepção, no budismo, 215 Coração humano, inclina-se para o bem e


Condição de depravação, no judaísmo, para o mal, no judaísmo, 181-86
193 Corão, 25, 105, 224-25, 293, 298, 349, 356;
Conexão versus desconexão, comparando na essência e na manifestação para a
budismo e religião chinesa, 284-85 escola Asharita, 238-39; a questão de
Confissões (santo Agostinho), 221 sua condição de criatura, 235-39
Conformação, do intérprete ao objeto, 55 Corpo, 82; como estrutura administrati-
Confucionismo, 23-25, 53, 61-63, 68-69, va, na religião chinesa, 90-91; como
71-72, 76-78, 249, 256-57, 312-14, 319, fundamento de sentido, imaginação;
332, 338, 352, 362-64, 375; como in- razão, no; na religião chinesa com-
fluência na concepção deste projeto, parada com o Ocidente, 90-94; no
32, 43-44; sobre obrigação coletiva e cristianismo, 251; como expressão da
hierarquia, 87 condição humana no cristianismo an-
Confucionismo de Boston, 32-33 tigo, 195-222; metafísico em Orígenes,
Conhecedor e conhecido, identificados e também carnal, 208-09; microcosmo
no Advaita Vedânta, 132 na religião chinesa, 90-91; e mente,
Conhecimento, 38; como binário versus 43, 90-93; padrões em, para a religião
sabedoria como monístico, na religião chinesa, 90-91; e alma, separados na
chinesa, 90-93; no judaísmo, como morte, para Agostinho, 211-12; trans-
dom divino, 165-66; como piedade, formação do, no cristianismo, 198-200
176; como realização e não meramen- Correção, 380
te epistemologia, no Advaita Vedânta, Correlação, na religião chinesa, 62-63, 65,
138-47; soteriológico, na religião chi- 311, 314-15
nesa, 77-79 Cosmologia, chinesa, 61-69, 311, segundo
Consciência, 84-85; no budismo, 97; nas Hall e Ames, 3 27-28; os budistas pou-
noções chinesas de identidade, 332 co preocupados com a, 96, 261-62;
Consenso, neste projeto, 21, 393-94 na comparação, 252; unidade da, no
Conservadorismo, de Ben Sirac, 169 budismo indiano, 257-62 na religião
Consistência, 52 chinesa, 257-62
Contingência, I;. no budismo, 9S; com- Cosmológicas, categorias, 41-44; na reli-
parado com outras, 282-85; entre as gião chinesa, 85-87
religiões comparadas, 295; teoria da, Cosmos, 37; na religião chinesa, 62; or-
23 dem do, no judaísmo, 170
Continuidade, 42; entre Deus e mundo, Couro cabeludo, sarna, relativa a terre-
Islão e cristianismo comparados, 107- motos, revoluções e pragas, 314
o8; entre obrigação ordinária e supre- Crenças, n, como construções sociais,
ma, 349; entre especialistas e genera- 21-22
listas neste Projeto, 389-91 Criação, 166, 347; dupla (espiritual e ma-
Contradição, tolerada pela vagueza, 52-53 terial), em Orígenes, 206; ex nihilo, 271,
Convencional, verdade, 262; no budismo, 294; bondade da, 364,110 cristianismo,
202-07, 112; comparada com a religião 197; no cristianismo e judaísmo com-
chinesa, 282-85, versus a verdade últi- parados, 290-91; no Islão comparado
ma, 333-35 com as outras religiões, 293-99; dos
Convenções, no confucionismo, 323 humanos como detentores de gênero,
Conversão, 13 para Agostinho, 210-12; no judaísmo,
Co-originação dependente, 12-17, 98, 187; por mâyâ, no hinduísmo, 128-30;
202, 260-61, 320, 334; enquanto cate- origem da, 70-71; Qi na, 332; nas reli-
goria, 220 giões da Ásia Ocidental, 266-67
436--- ÍNDICE DE ASSUNTOS

Criatividade, humana e divina, no judaís- Deísmo, 53, 290, 307


mo, 166-167 Demônios, no cristianismo, 196-97
Cristandade, colapso da, 39 Densidade, no Qi, 66-67
Cristão, trinitarianismo, no Islão, 2 35 Desarmonia, 35o; comparada entre as re-
Cristianismo, 19, 23-25, 39-40, 251, 254, ligiões, 266-68
337-39, 342, 357, 363-64, 388; católi- Desejo (ardente), no budismo, 113
co, em Orígenes, 204-09; primitivo, Desejos, 79; escravizantes, na religião
contrastado com outras formas de ju- chinesa, 7o; espinhos dos, 113
daísmo do Segundo Templo, 195, 251; Desenvolvimento, histórico, de catego-
oriental e ocidental, 219; e liberdade, rias comparativas, 22-23
comparado com outras religiões, 324- Desestabilização, no teste de hipóteses,
25; idéias, de afiliações no, 362-64, de .51
causalidade no, 322- 25 de aflição hu- Desfrute, no judaísmo, 305-07
mana no, 355-56 de obrigação no, 348- Deslocamento, 37
56 de ontologia no, 290-92; de identi- Desobediência, 264
dade pessoal no, 339-41, de valor no, Desordem, 24
307-08; no Islão, 235-37, comparados Despertar, do Buda, 108
em relação ao mal, 309; comparado Desvio da harmonia, na religião chinesa,
com o judaísmo, 159-60; Europeu Me- 68
dieval, 47-48; ortodoxo, 39-40; orto- Determinismo, 280, 320
doxo, católico romano, protestante e Deus, 39, 42, 55-56, 105-06, 153, 251-52,
reformado radical, 25; como fonte de 291-92, 361-64; como Ato do Ser, 270-
categorias comparativas, 50-54; sobre 71, 339-40; incorpóreo, para o cristia-
sabedoria, 145-46 nismo, 202-03, para Orígenes, 205-06;
Cristo, 297-98, 328-29; agente de Deus, como autor das inclinações para o
200-02; estar em, 197-201; uno com mal, no judaísmo, 176-77; como um
Deus, em Orígenes, 206; oposto de (não-)ser, 270-71; beneficente, no ju-
Adão, 197; Ressuscitado, 196-97; se- daísmo, 164-65; oferendas de fogo a,
gunda vinda de, 196-97, 203-04; como 176- 77; no centro do complexo sim-
praticante da Torá, para Agostinho, bólico, no judaísmo, 176-77; consis-
213 tência de, no judaísmo, 162-63; como
Cristologia, 196-222 criador, 315, 355, 379, no cristianis-
Critérios, para comparações bem-sucedi- mo, 194, 197, 198, no Islã, 235-43, no
das, 55-57 Judaísmo, 157, 266-69; julgado por cri-
Crucificação, 196-97 térios externos, no judaísmo pós-ilu-
Cultura, relação entre sociedade e, 59 minista, 188-89; absolutamente justo,
Cura, no budismo, 95-98; na religião chi- em Orígenes, 206; como pai, 362; sem
nesa, 62-94, em oposição à desarmo- fundamentalismo, para Orígenes,
nia, 86-87; no cristianismo, 220, da 209; acima de Deus, para o cristianis-
criação, 204; na terra, em oposição à mo dualista, 201; como fundamento
transcendência, 79; como meta, na re- do ser, 271; abordagem celeste a, no
ligião chinesa, 84-94; com a natureza e Islão, 240-41; o supremo, 323, 326, no
a sociedade, 76- 79 Cristianismo e nas religiões mediter-
râneas, 199-204, no judaísmo, 169-70;
Darma, 314, 321 ; corpo do Buda, 118 no hinduísmo, 149; cuja relação defi-
Decoro, no confucionismo, 68-70, 351- ne a condição humana, no judaísmo,
52 158-61; e interação humana, 320-22;
Deferência, 358 imagem de, 363; no judaísmo, 158-
ÍNDICE DE ASSUNTOS ---=
.-- 437

94, 266-68; como justo e providente, com a libertação, no Advaita Vedanta,


no judaísmo, 160-71; como Senhor 277; como conhecimento reto no Vi-
do Cosmos, em Orígenes, 194; a ser vekacudâmani, 133-39
amado, 273-74; mais íntimo das pes- Disjunção divino-humana, na crítica mu-
soas que sua veia jugular, 240, 356-57; çulmana do Vedanta, 104
como Uno, 260-01; Unicidade de, e o Disjunção, entre Deus e mundo (huma-
Corão, 236-39; como pessoal, no cris- nos), 239
tianismo, 322-23, 339-41, no judaísmo, Dissonância, na religião chinesa, 68
290, 305-06, 354-55; presença de, na Distorção, da realidade, no hinduísmo,
modernidade, para o judaísmo, 191- por mâyâ, 129
93; como providencial, no judaísmo, Distração, na condição humana, para Orí-
266-68; como referente último, no ju- genes, 205
daísmo, 127-28, ,6o, 369-70; em rela- Diversidade, ausente no Advaita Vedânta,
ção a quem a identidade pessoal é de- 132
finida, 337; não confiável e perigoso, Divindade, na religião chinesa, 64, 71, 79
193; resposta a, 157; somente os sinais Divino, espírito, nos seres humanos, no
são visíveis, no Islão, 241; intimado a Islão, 240
prestar contas, no judaísmo moderno, Docetismo, no cristianismo, 202, 274,
190-93; como Trindade, em Orígenes, 325, 340-41
204-09; imutável, em Orígenes, 206; Doença, 21, 37-38; no budismo, 95-97,
unidade de, no Islão comparado com 231
outras, 275-77; relação com o mundo, Donatismo, 219
no Advaita Vedãnta e no Islão, 295-96, Doutrina do Meio, 281-82
no judaísmo, no cristianismo e no Is- Doutrina, no budismo, 96-204; em oposi-
lão, 322-23; o mundo como corpo de, ção à narrativa, 107
no Rãmânuja, 327-28; deste mundo, Dualismo, 303; na religião chinesa, 84;
no cristianismo, 196-97 no cristianismo, 195, 199-04, 209,
Deuses, 118; na religião chinesa, 65, 70- 214; entre senhor e servo, no Islão,
71; no taoísmo, 79, 83-84; das ciências 241-42; nas religiões da Ásia Ociden-
da religião, 374-76, sírio-palestinos, tal, 266
162; do transporte, 371 Duas naturezas, de Cristo, 357
Devoção, I50-51; no budismo, 115 Duas verdades, convencional e última,
Dhât (essência divina), no Islão, 234 no budismo, 102, 262, 333-35
Dia da reconciliação, 189 Dúvida, 43-44
Dialética, na comparação, 46; do vago e
do específico, 59-60 Eclesiastes, livro do (Coelet), 167, 191
Diálogo inter-religioso, 13-16, 18-19 Ecologia, 37; e religião, 29-30
Diferença, vem de mâyâ, no hinduísmo, Economia, ciência da, 18, 38
130 Educação, 38; motivada pelo tormento,
Dinamismo, como oposto de stasis, na re- no hinduísmo, 128-31
ligião chinesa, 85-86 Efésios, Carta aos, 219
Dionisíacos, cultos, 122 Ego, a ser combatido, na religião chinesa,
Discernimento, 344 78
Disciplina, necessária para combater o Egoísmo, na religião chinesa, 93
mal, no judaísmo, 185 Elementos, imutáveis, não encontrados
Discriminação, no budismo e hinduís- na religião chinesa, 86
mo, 264; na ontologia hindu compara- Elitismo, no Advaita Vedânta, 124
da com as outras, 286-88; comparada Elixir, 83
438 - ÍNDICE DE ASSUNTOS

Embriaguez, da divindade, 102-04 Essencialismo, 228


Embrião, no Taoísmo, 79-83 Estabilidade, no budismo, 222; em hipó-
Emoção, 79; na religião chinesa, 67, 350 teses comparativas, 50-51, 352
Empatia, com religiões que nos são estra- Estado, na religião chinesa, 79
nhas, 13-14 Estilo de vida, 22
Empirismo, neste Projeto, 386 Estoicismo, 362; em Orígenes, 207
Encarnação, para Agostinho, 223; no Is- Estremecimento, no abdômen, sinal de
lão, 236-37 concepção imortal, 80-82
Energias, no taoísmo, 80; em oposição ao Estudos literários, 29-30
espírito, na religião chinesa, 90-91 Eternidade, 323, no budismo, 352; em
Entendimento e mudança, no Viveka- Deus, 340; do Corão, 237-39
cúdâmani, 123-24 Ética, 40
Éons, novos e velhos, em são Paulo e no Eucaristia, no cristianismo, 198
cristianismo católico, 204 Evangelho (Escritura Cristã), no Islão, 238
Epistemologia, 25; em contraste com on- Evolução, da revelação, no Islão, 238
tologia, no Vedânta, 140, 144-45 Excelência, 38
Era Axial, 29-30 Excesso, e deficiência, na religião chine-
Eras de mundos, 249 sa, 67, 71, 86; na negação e na afirma-
Escala, de padrões na religião chinesa, ção, no budismo, 107-08
256-58 Exclusões, da comunidade para aprender
Escatologia, cristã, 217, 271; no Islão, 231 o Vivekacudâmani, 146-51; da partici-
Escopo, das discussões dos especialistas, pação no judaísmo, 177-78; da salva-
386-87 ção, no cristianismo, 221-22
Escrituras, 172; budistas e hindus a res- Existência, características da, no budis-
peito de, 1o3; cristãs, 203; no judaís- mo: sofrimento, impermanência, não-
mo, 277; para Orígenes, 2o9; no Vi- self, Ice
vekactidâmani, 140, 151 Existencialismo, 38-40, 53; comparado
Especialistas, neste projeto, caracteriza- com o judaísmo, 260
dos, 374-77, nas tradições religiosas, Êxodo, o, 24-25, 260, 168
18-20, 59-60, 374-75; estilos e aborda- Experiência, 266
gens comparados, 250-53 Exterior, prática, 71-73, 79-80
Especificação, de categorias comparati-
vas, 27, 54 Face de Deus, ubíqua, no Islão, 240
Especificidade, ver vagueza Faltas, esconder-se das, 77-78
Especulação,pouco útil, para °budismo, 98 Família, 331; na religião chinesa, 79; no
Espera, estável, 322-3, 332-33, 335-36 cristianismo, 220, 363
Espírito Santo, 273 Fanatismo, e relativismo comparados,
Espírito Santo, no cristianismo, 270, 357 22-26
Espírito, no cristianismo, 198-200, 221; Fariseu, são Paulo como, 197-200
Deus como, 201-02; como moral e Fé, 228
ontológico, 203; procedendo de Deus, Feminismo, 13-16
no Islão, 236-37 Fenomenologia, neste projeto, 385; da
Espíritos, na religião chinesa, 65 religião, 206
Espiritual, disciplina, 37 Fenômenos, mentais e físicos, no budis-
Espontaneidade, no budismo, 283; na mo, 98
religião chinesa, 279-82, causalidade Filho de Deus, no cristianismo, 196
na, 311-13 Filipenses, carta de são Paulo aos, 197-
Essência, da religião, 25-26, 33- 34 201
ÍNDICE DE ASSUNTOS- --=-- 439

Filosofia, no budismo, 227-33, dentro da Gnose, 200-04


filosofia indiana, 117-18; em compa- Gnosticismo, 273, 32 5, 340-42
ração grega, 294; em Orígenes, 204- Cocaram, los
o6; na religião, 39, 47 Governo, 38
Fiqh (entendimento), no Islão, 232-33, Graça, 274, 292; para Agostinho, 212, 221;
277,298 no cristianismo, 362
Fitra (natureza primordial), no Islão, 239 Grande aprendizado, O, 281
Flecha venenosa, no budismo, 99, 258- Grande último, O, na religião chinesa, 279,
61, 352 28o
Floresta, no budismo, 108; no hinduís- Grécia, pensamento clássico da, 165-67
mo, 125 Grupos em oposição a indivíduos, na reli-
Fogo, no Vivekacudamani, 125 gião chinesa, 331-32
Fome, no budismo e na religião chinesa, Gunas (tamas, raia, sattva), no hinduísmo,
352 228-30, 263, 328, 353
Fonte, da criação e da vida, na religião
chinesa, 63 Hábitos de colaboração, 20
Forças, inimigo astral, no cristianismo, Harmonia, 333, 342-44, 353; nas afilia-
197 ções, 358-59; na religião chinesa, 281,
Formato, deste Projeto, 382-83 299-300, 311-14, comparada com bu-
Fragmentariedade, e aflição humana, dismo e hinduísmo, 264; e sofrimen-
355-56; do nosso estudo, II, 23-26, to, as religiões comparadas sobre, 278;
29-30 tolerante à desarmonia, 350
Fraqueza humana, contrastada com a for- Hebreus, livro dos, 219
ça da comunidade, no judaísmo, 178 Helenismo, 32o; no cristianismo, 271-72,
Freudianismo, 14 323, e Islão, 294; no judaísmo, 161,
Fundamento do ser, 339-40 193, 276-77
Fungos, numinosos, na dieta, com agu- Heresia, como ofensa contra o Estado, no
lhas de pinho e mica, 8o; ver também cristianismo romano, 220
comida Hermenêutica da suspeita, 30-31
Futilidade, humanidade refletida na, para Heresiologia, no cristianismo, 202
são Paulo, 197 Hierarquia, nas relações sociais chinesas,
87-89, determinado a estrutura deste
Gálatas, Carta aos, 196-202, 222 projeto, 32
Gemara, 219 Hinduísmo (freqüentemente, mas nem
Generalistas, 59-60 sempre limitado ao Advaita Vedanta
Generalização, dificuldades da, 382-83; neste estudo), 19, 23-25, 249-50, 254,
de nosso estudo, 24-26, 29-30, 47-48; 269, 292, 315-16, 341, 361-62, 383; e
em oposição à especialização 20-21; Bhâvaviveka, 104-06; categorias com-
suspeitas em relação à, 374-76 parativas do, no Bhâvaviveka, 226-18;
Gênesis Rabbah, 284, 2 95 comparações com, 254-55; como defi-
Gênesis, livro do, 163-65, 169, 283-84, nir, 25o; como diverso, 223-24; idéias
294,197,201,208,250 de afiliações no, 360-61, de causalida-
Genocídio, 320 de no, 318-20, de obrigação no, 344-47,
Gentios, no cristianismo, 196; no judaís- de ontologia no, 286-88, de identidade
mo, 170-73 pessoal no, 335-36, de aflição humana
Geomancia, na religião chinesa, 7o no, 353-54 de valor, 303-04; pragmatis-
Ginástica, na religião chinesa, 71, 314 mo no, 133; sobre a unidade, compara-
Glória, Senhor da, no cristianismo, 197 da intrinsecamente, perspectivamen-
440 .==
- --- ÍNDICE DE ASSUNTOS

te, praticamente e teoricamente, com 31; no Islão, 223-43; no judaísmo, 193,


a religião chinesa e o Budismo, 262-65 como um tópico não explícito, 257,
Hipóteses comparativas, 20-21, 246, 330, como um ponto de partida compara-
dentro do processo, 31, 57-60, desen- tivo não essencial, 379, não negativa
volvidas in media res, 50 como no cristianismo e existencialis-
História eclesiástica (Eusébio), 217 mo, 258-60; elementos negativos na,
História, 379; visões cristã, budista, Ad- preparados por Deus, 163-164; cate-
vaita e judaica, comparadas, 272-74, gorias comparativas pessoais e sociais
355-56; da teologia cristã, 58; no Islão, da, 329-32; não há aflição real da, no
241-44, causalidade na, comparada Advaita Vedanta, 131-32; subcatego-
com outras, 326-27; o meio porém rias da, 41-43; entendida pela religião,
não a definição de salvação, 207-08; e 37-38; insatisfatória porém aberta à
salvação, no cristianismo comparado transcendência, 206
com outras tradições, 340 Humana, conduta, e fiqh, no Islão, 232
Holocausto, nazista, 158, 188-94, 267, Humana, natureza, no judaísmo, 160
320, 355 Humana, ordem, microcosmo da ordem
Homem (pugdala) na teoria reencarna- cósmica e divina, no judaísmo, 294
cionista budista, 104 Hun-tun (caos), na religião chinesa, 252-53
Homens, como estudantes da Torá, 273,
277 I-Ching, 68, 280
Huayen, Budismo, 260, 316 Idéias práticas, de afiliações na religião
Humana, aflição, causada pela consciên- chinesa, 290; de causalidade no bu-
cia, na religião chinesa, 84; definida dismo, 318, religião chinesa, 314, no
como categoria comparativa, 35o; de- cristianismo, 325, no Islão, 327, no
senvolvimento da, na religião chine- judaísmo, 321; de obrigação, na reli-
sa, 67-68; causada pela perda do não- gião chinesa, 344; de ontologia, no
ser primordial, na religião chinesa, budismo, 285, no Cristianismo, 292,
63; ver Aflição no hinduísmo, 288, no Islão, 299, no
Humana, condição 17, 22, 27-28, 30, 40- judaísmo, 29o; de identidade pessoal,
44, 47, 57-59, 379-82, 385-86; no budis- no budismo, 334-35; na religião chi-
mo, 95-122, possibilidades em contras- nesa, 332; de unidade, na religião chi-
te com dificuldades no, 95, iniciando nesa, 258; no cristianismo, 273-74, no
aflição em contraste com cumprimen- Islão, 278, no judaísmo, 269; de valor,
to uma meta, 106-07; a categoria de, no Advaita Vedanta, 304, no budismo,
53-54, de Paul Tillich, 39; na religião 302, na religião chinesa, 300, no cris-
chinesa, boa, 61-62, 84, ligada a coisas tianismo, 308-09, no judaísmo, 305-06
não humanas, 62-63; no cristianismo Idéias, como descritivas, 55-56; religio-
antigo, 195-222, definida pela aflição, sas, 47-48; expressões não textuais de,
215-16, tão ruim que só Deus pode dar 22; religiosas, não exaustivamente ex-
jeito, 296-99; comparada em diferen- pressas pelas hipóteses comparativas,
tes perspectivas, 246; dimensões da, 253-54
38-39; caída na necessidade do pecado, Identidade, no budismo, 100-01; pessoal,
para Agostinho, 211-121; como vida 332-42; da tradição nos textos e moti-
vivida diante de Deus, 266; como har- vos essenciais, 250-52
monia e re-harmonização na religião Idólatras, gentios como, 197
chinesa, 257; no hinduísmo, 123-55, Idolatria, 349; no cristianismo, 199, 356;
limitações na visão de mundo da, 254- no Vedânta, para os muçulmanos,
55, problemática mas não tanto, 227- 203-04
ÍNDICE DE ASSUNTOS 441

Ignorância, 152-54, 345; no budismo, 95- Indra, incompetente para captar a cons-
107, 113, 333-34, 349; sem começo, ciência budista, 112
98, superada pelo conhecimento reto, Inércia, negra (Tamas), 128-31
134; comparada entre as religiões, Ingenuidade, em comparação, 38-41; se-
266-67; e discriminação, 287-88; no gunda, 40-42
Hinduísmo, epistemológica (avidyâ) Intelecto, no hinduísmo, 235
em contraste com a ignorância onto- Intenção, em Deus, 321
lógica (mâyâ), 128-31; em Orígenes, Interação, na religião chinesa, 62, 87
207-08; da religião, 18 Interior, prática, 79-82
Igreja, para Agostinho, 212-13; no cris- Interiorização, do não-dualismo, 242-46
tianismo antigo, 198-99, 204, 220-22 Intrínsecas, Idéias, de afiliações no bu-
como voluntária, 362 dismo, 360-61, religião chinesa, 358-
Igrejas independentes africanas, 25-26 61, cristianismo, 357-59, hinduísmo,
Igualdade, não é um valor na religião chi- 360, Islão, 363-64, judaísmo, 361-62;
nesa, 87-88 de causalidade, no Advaita Vedanta,
Iluminação, no budismo, 97-107; Euro- 318-19, budismo, 314-15, religião chi-
péia (ilustração), 280; e a condição hu- nesa, 311-12, cristianismo, 322-23, Is-
mana, no judaísmo, 188-89; em Oríge- lão, 326, judaísmo, 320; de obrigação,
nes, 208-09; no Vedanta, /44 no Advaita Vedanta, 345-47, budismo,
Ilusões, 264; no budismo, para remover 344, religião chinesa, 343-44, cristia-
as ilusões, 102; no hinduísmo, 131-32 nismo, 348-49, Islão, 349, judaísmo,
Imaginação, 37; no budismo, 261 288-89; de ontologia, no Advaita Ve-
Imortalidade, 63, 82; no taoísmo, 80-81; danta, 287; budismo, 282-88, religião
elixir da, 72 chinesa, 280-81, cristianismo, 290-91,
Imparcialidade, como viés, 56 Islão, 293-94, judaísmo, 288-89; de
Imperialismo, nas categorias comparati- identidade pessoal, no Advaita Vedan-
vas, 17-19 ta, 335-36, budismo, 33-35, religião
Impérios, do mal, no judaísmo, 187 chinesa, 331-33, cristianismo, 339-4.1,
Impermanência, como sofrimento, ioo Islão, 341-42, judaísmo, 337-39; de
Importância, no vago em contraste com aflição humana, no Advaita Vedanta,
o específico, 53-54 353-54, budismo, 352, religião chine-
Incipiência, na religião chinesa, 281 sa, 350-51, cristianismo, 355-56, Islão,
Inclinações, para o mal, 18I-86; para o bem 356-57, judaísmo, 354-55; de unidade,
e mal comparados,nojudaismo,284-85 na religião chinesa, 256-58; de valor,
Incomensurabilidade, nas comparações, no Advaita Vedanta, 303, Budismo,
54 301-02, religião chinesa, 299-300, cris-
Incompreensão, superação da, neste Pro- tianismo, 307-08, Islão, 308-09, judaís-
jeto, 377-78 mo, 305-06
Indeterminação, na criação, 63-65, 69-70, Intrínseco, lugar da análise fenomenoló-
83-84 gica, 253-55
Indianos, Estudos, 58 Investigação, 48-49; comunidade de, nes-
Individuação, 323 te Projeto, 369
Individualismo, no budismo, 334; na reli- Islão (Islã), 19, 23-25, 40, 223-44, 254,
gião chinesa, 61; no dualismo cristão, 337-38, 363-64; comparado com o cal-
203-04 vinismo, 309-10; dualismo no, 257-58;
Indivíduo, na religião chinesa, 62,79 in- condição humana no, 223-44; idéias,
terativo, comparado com o individua- de afiliação no, 363-64 de causalidade
lismo ocidental e hindu, 86 no, 325-28; de aflição humana no, 356-
442 ÍNDICE DE ASSUNTOS

57; de obrigação no, 292-93, 348-49, de 282-83, em Deus, 169, para Orígenes,
ontologia no, 293-99, de identidade 207
pessoal no, 342-42 de valor no, 308-20; Justificação, de categoria religiosa, em
e judaísmo comparado na personifi- são Paulo, 198
cação de Deus, 293-94
Israel, 25, 42, 170-71, 337-38, 361-62; Kalam (teologia), 237
cristianismo como, 204; paz de, 294; Karma, 249, 262, 264, 318, 331; no budis-
especial entre as nações do mundo, mo, 95-96
260-62, 288-89 Khalifa (vice-gerente), Adão como, no
Islão, 242
Jardim, saída de Adão do, no Islão, 241 Kyoto, escola, 40
Jihâd, no Islão, 243
Jó, Livro de, 160, 167, 191 Lealdade, 296; ao cânon, credos, ritual, no
João, Evangelho de, 220, 203, 205, 208 cristianismo, 218-20
Jocosos, comentários, 368-69, 371; neste Legalismo, como escola chinesa, 69, 351
projeto, 394 Lei, 38; no cristianismo, 197; no taoísmo,
Jogo, de diferença e similaridade, no bu- 69; no Islão, 356; no judaísmo, 257; da
dismo, II9 vida, no Deutoronômio, 168; escolas
Jonestown, 222 da, no Islão, 232; como pecado, 197
Jornada, no budismo, 335 Leis de Manu, 148
Jornadas, religiosas, 22 no hinduísmo, Liberacionismo, 17
236 Liberdade, no budismo, 335, e na religião
Judaicos, estudos, 58 chinesa comparada, 283, 316; no cris-
Judaísmo, 19, 23-25, 39, 43, 254, 278, 342, tianismo, 324-25, da lei, do pecado, e
349, 363-64, 383; como carnal, 212; da morte, 228; no Islã, 232, 275, com-
e cristianismo, comparado, 252-52, parada com outras, 299; no judaísmo,
298-99; no cristianismo antigo, 203- 167, relativa à competência e à fide-
04; explicado historicamente, 250-52; lidade, 322; no Mahayâna, 226; para
condição humana no, 257-94; idéias, Orígenes, 206; resultante da doutrina
de afiliações no 361, causalidade no, do não-self, no budismo, 106
320-26, obrigação no 347, idéias onto- Libertação, 148-51, 346-47; no budismo,
lógicas no 288-90, identidade pessoal 262, 302, comparado com o Advaita
no, 337-39, aflição humana no, 354- Vedanta, 277
55; de valor no, 305-07; comparado Limitações, deste projeto assim como
com o Islão; ortodoxo moderno, 293- planejado, 20, 29, 32, 389-91
96; em Origines; 209; ortodoxo, con- Linguagem, teoria da, no budismo, 202
servador, reformado e reconstrucio- Literatura, das grandes religiões, 22; ju-
nista, 25; em Paulo, 200-01; origens daica, 157
rabínicas do, 272; sobre a Sabedoria, Liturgia, ver ritual
145-46 Livro da Lei, 165
Judeu, são Paulo como, 297 Lógica de categorias comparativas, 22-23;
Judeus, europeus, 158 distinta de método, 49-50
"Jujuba", modelo do cosmos, na religião Logos, 298; no cristianismo comparado
chinesa, 66-68 com a religião chinesa, 290-91
Jurisprudência no Islão, 232-33 Louvor, 116-17; do vazio, 118-19; no Islão,
Justiça, 38, 220, 331, 340; divina, no ju- 327-28; no judaísmo, 174-75, 289-90
daísmo, 257; e misericórdia, como Louvor, no judaísmo, 321
princípios governantes no Judaísmo, Lucas, Evangelho de, 203, 228, 356
ÍNDICE DE ASSUNTOS ---= 443

Lucidez (Sattva), 128-31 36, 342, 345-49, 353, 360; não apenas
Lugares, de análise fenomenológica, 254, ignorância, mas maneira de ser distor-
389-90; ver também idéias intrínsecas... cida, 237-46
idéias perspectivas..., idéias práticas..., Medicina, chinesa, 79-80, 86
idéias teóricas... Meditação, 22; dentro do Caminho do
Luxo, 77 Meio, 208
Mediterrâneo, mundo, religiosamente
Macaco, como imagem do self, 117 novo na Antiguidade, 195
Madhyamaka, 47,95,202, 208-21,113,128, Memória, em Agostinho, 196, 221; com-
249, 259, 262-62, 282-84, 287, 296, 314- parada na religião chinesa e no Islão,
15, 334, 336, 347, 374; e Islão compara- 226-27
do, 276; e Yogacara comparado, 260-61 Mente, na religião chinesa, 62; no hin-
Mágica, em comparação, 29-30, 49, 121- duísmo, 135-36; como órgão sexual
22 primeiro, para Agostinho, 210-11; em
Mahayana, 95, 102, 108-09, 111-16, 254, repouso, 8o
283, 320, 346-49, 352, 362; e harmonia Mérito, budista, na religião chinesa, 78;
em religião chinesa, 119 escondido, 78
Mal, 274, 337; ambigüidade do, e propó- Messianismo, no judaísmo, 276
sito divino, no judaísmo moderno, Messias, no cristianismo, comparado
29o; em Agostinho, 210-14; no cristia- COM o judaísmo, 269-70
nismo católico, 203-04; na liberdade Mestre, culto do, 150-51; discípulo, re-
humana, 167; vindo de Deus, 354; no lação, 304, no Advaita Vedanta, 139,
Islão, 277-78, comparado com outros, comparado com o budismo, 287-88,
298-99, servindo ao desígnio divino, no cristianismo, 273-74, no judaísmo,
242-43, 341-42; no judaísmo, 267 (o 179, no Vivekactadámani, 125
Holocausto), para judeus e cristãos, Metafísica, 58; no budismo, 258; no con-
192, o impulso para é fonte de cria- fucionismo, 256; da visão no Islão,
tividade, 183-86, inclinações para o, 225-26
282-86, responsabilidade pelo, em Deus Metáfora, caracterizada, 109; no cristia-
e nos homens, 180-87 ameaça os ho- nismo, 323; e metonímia, 117-18; para
mens com a morte, 181-82 captar a singularidade, 254
Mandamento, 361; divino, no Islão, 240; Metas, no budismo, 317; na religião chi-
no judaísmo, 159-61 nesa, 63-64
Maniqueísmo, 209-12 Método, em comparação, 48-49, 367-95;
Maravilhosa escritura da prática diária ex- no pensamento rabínico, 171
terior do Venerável Senhor, 71-73, 258, Midraxe, 172
312,30 Milagres, em Hume, 280
Maravilhosa escritura da prática diária in- Mimansa, teoria ritual do, 140, 248
terior do Venerável Senhor, 71-75, 258, Misericórdia, equilibra o pecado, no ju-
312 daísmo, 282-83; no hinduísmo, 125;
Marcos, Evangelho de, 219-22 divina, no judaísmo, 157, 269; justiça,
Marginalização, 17 como princípios dirigentes divinos,
Marxismo 13-14 no judaísmo, 282-83, em Deus, para
Mateus, Evangelho de, 208, 218, 272 Orígenes, 207; enfatizada em Ben Si-
Matrimônio, 204; ambivalente no cristia- rac, 169
nismo romano, 217 Mishná, 272-74, 179, 229
Mâyâ, 127-31, 233-34, 151-54, 263-65, Misticismo, 357; no Advaita, 152; no
276, 286-88, 296, 303-04, 318-19, 335- Islão, 239-40, comparado com o cris-
444 - ÍNDICE DE ASSUNTOS

tianismo, 309-20; no judaísmo, 157, Não-ação, no taoísmo, 69


comparado com o Islão, 223; nature- Não-dualismo, 227-33, 263, 319; como
za, 364 dualismo negando o dualismo, 206;
Mito, 37, 263; modelo mítico do Um, 64 no hinduísmo, 223; não personaliza-
Modernidade, 363; tardia, 38-40; no ju- do, 131-33; simples, 230-33; ver tam-
daísmo, 192 bém Advaita
Modernização, 22-22 Não-self, 42; no budismo, 101-07, 226,
Mônadas (leibnizianas), 25 120, 259, 262, 304, 309-20, 324-27,
Monasticismo, 359-60 342; comparado com outros, 283, e
Monismo,232,I52; na religiãochinesa,64- identidade pessoal, 333-35
72; no cristianismo, 272; no Islão, 290 Não-self, no hinduísmo, 224, 227-32, 287
Monoteísmo, 224-43, 236-39, 272, 321 Não-ser, na religião chinesa, 279, 280, 296
Moralidade, no budismo, 95-97; na reli- Narrativa, 24, 257; no budismo, 207-29;
gião chinesa, 87-88; no Cristianismo, como forma de comparação, 32-33,
348-49; em comparação, 57-58; no Islã, 385; no judaísmo, 322
tensão moral no, 242; mandamentos, Nascimento, no budismo, 98
naturais versus morais, 232-32; no Naturalismo, científico, a sétima tradição
Judaísmo, para a identidade pessoal, neste projeto, 376
337; no judaísmo, Cristianismo e Islã, Natureza, afiliações com, 363-64; na re-
comparada, 342; nas religiões da Ásia ligião chinesa, 62-62, 299-300, 353;
Ocidental, 267 na continuidade humana com, 84-85;
Morrer para o pecado, no cristianismo, no Islão, 243; vivendo de acordo com
197-98 seus ritmos, 90
Morte, 38, 297-200; no budismo, 95-99; Negação, 329; no budismo, 120, 249; na
no cristianismo, 297-98; no hinduís- religião chinesa, 68; na comparação,
mo, 140-41; intelectual, não conhecer 205; na dialética, 262; no Islão, 234
a Deus, segundo Orígenes, 215-26; no Neoconfucionismo, 63, 293, 332, 338,
judaísmo, 264-65; oposta à vida, em 351; crítico do budismo, 285
Paulo e Orígenes, 208 Neoplatonismo, 271, 286, 291; 294, 309,
Mudança, 310; no Advaita Vedanta e re- 337: no cristianismo, 272-72
ligião chinesa comparados, 336; na Niceno, Credo, 219
concepção aristotélica, 283; no budis- Niilismo, 22-23
mo, 313-16, e religião chinesa compa- Nirvana,64,95-97;202-03;206-07,224;para
rados, 283; como causa de sofrimento os bodhisattvas, 272; versus samsara, 352
no budismo e na religião chinesa, 68- Nobre caminho óctuplo, 97-99
1o3; na religião chinesa, 313-15 Noé, mandamentos de, 171
Mulheres, no judaísmo, 178-79; na reli- Nominalismo, em Hall e Ames, 28o
gião, 21 Nono de Av, 289
Multiculturalismo, 13-14 Novo Testamento, 202
Multidisciplinares, estudos, 59
Multiplicidade, no hinduísmo, 263-66 Obrigação, 79, 294, 296, 327, 330, 365;
Mundo , comum, 16; na religião chinesa, na religião chinesa, 76-79, 343-44,
62-63; no Islão, não humano, 231, uni- para grupos mais do que direitos ou
dade do, 275-76 autonomia, 87; no cristianismo, 218;
Música, 324; no budismo, 225; dos imor- codificada, 233, como categoria com-
tais, no taoísmo, 82 parativa, 244, 343-49; campo da, para o
Mutazilita, escola, no Islão, 235-38, 293-96 judaísmo, cristianismo e Islão, 276-77;
Mutualidade, na religião chinesa, 77 ideal versus real, religiões comparadas
ÍNDICE DE ASSUNTOS 445

sobre, 347-48; idéias intrínsecas de, Original, pecado, no cristianismo, 221;


no Advaita Vedanta, 344-48, budismo, no judaísmo, 1----7;110
AA Islão, 241
344-45; religião chinesa, 343-44, cris- Ortodoxo (oriental), cristianismo, 309;
tianismo, 348-49; judaísmo, 347-48; judaísmo, 355
no Islão, 2.75-77; definindo a condição Oséias, Livro de, 175-76
humana, 343, como ontológica, 298; Outros mundos, 260-61
no judaísmo, 158-61, a partir de man-
damentos versus a partir da natureza, Padrão, 310-II; na religião chinesa, 362-
276-78; estando sob, 37, 42, 167-77; 63, 66-7o; vibratório, 256
idéias perspectivas de, na religião chi- Paganismo, no cristianismo antigo, 204
nesa, 343-44, judaísmo, 347-48; idéias Pai, Deus como, 361-2
práticas de, na religião chinesa, 344; Pais, 36o; obedecer aos, na religião chine-
idéias teóricas de, na religião chinesa, sa, 345-46
343-44; na aflição, 353 Paixão (Rajas), 128-31
Obstáculos, para visão no budismo, 84-113 Palavra (Verbo) divina, 252, 294-96; no
Oceano, no budismo, 108; no Vivekacuda- Islã, 235-39, 241-43; no Evangelho de
mani, 125 João, 236-37
Onisciência, no budismo, 113 Pali, Cânone, 101
Ontologia, 42-43, 128; da criação no ju- Pan-chinesa, visão de mundo, 256
daísmo, cristianismo e Islão, 288-89; Pano de fundo social, deste projeto, 369-
categoria mais importante no islã, 74
292-94; mâyâ em 13o-31; no Vedânta, Panteísmo, 132; no Islão, 240
139-40, 2 44-45 Paraíso, no Islão, 277; ver também Céu
Ontológico, estatuto, 365; como catego- Parentesco, 362
ria comparativa, 278-79; idéias intrín- Parousia (ou parusia), 203
secas de, no Advaita Vedanta, 328-19, Parque do Cervo, primeiro sermão budis-
no budismo, 282-83, religião chinesa, ta, 96
279, cristianismo, 29o, Islão, 293-96; Participação, na religião chinesa e no Ad-
judaísmo, 289; idéias perspectivas de, vaita Vedanta, 344-46; em Cristo, 348;
no budismo, 283, na religião chinesa, em harmonias, 358-59
279, no cristianismo, 291, no hinduís- Patriarcal, Fé, no Budismo, 317-19
mo, 286-89, no Islão, 298, no judaís- Patriarquia, 3o-31
mo, 288; idéias práticas de, budismo, Paz, 76, 220
284-85, Cristianismo, 293, hinduís- Pecado, 39, 194, 274, 324; no cristianis-
mo, 286-89; Islão, 298, judaísmo, 288; mo, 197-222; no judaísmo, 157-71; em
idéias teóricas de, no budismo, 285, Orígenes, 206
religião chinesa, 279-82, cristianismo, Peças apropriadas, de um sistema religio-
291, hinduísmo, 286-88, Islão, 298-89, so, 228
judaísmo, 288-90 Pedagogia, no Vivekacudamani, 126
Opostos harmonizados, no judaísmo; Pentateuco, 172
161-65 Perene, filosofia, 286
Oprimidos, a serem ajudados, na religião Perfeito, o, no budismo, io9; na religião
chinesa, 78 chinesa, 76-78, 8o
Oração, no Islão, 299 Permanência, no budismo, 95-97
Órbita, de Qi, 79-81 Personificação, no judaísmo, 266-68
Ordem cósmica, e Torá-Templo-Piedade, Perspectivas, idéias, de causalidade, no
no judaísmo, 175-78; e desordem, no Advaita Vedânta, 319, no budismo,
judaísmo, 166-67 315-17, na religião chinesa, 313, no
446 ÍNDICE DE ASSUNTOS

cristianismo, 324, no Islão, 327 no Pragmatismo, 27, 50, 58


judaísmo, 320-21; de obrigação, na re- Prática, rabínica, 272-73
ligião chinesa, 343-44, no judaísmo, Prático, local de análise fenomenológica,
347-8; de ontologia, no budismo, 283, 254-55
na religião chinesa, 279-81, no cristia- Pratittyasamutpada, ver Co-originação de-
nismo, 292-92, no hinduísmo, 286-88, pendente
no Islão, 297, no judaísmo, 288-89; de Prazer sexual, dissociado da vontade, para
identidade pessoal, no budismo, 333- Agostinho, 210-12
35, na religião chinesa, 332-33; de Preferência religiosa, 2 2-2 3
unidade, na religião chinesa, 257, no Princípio, no neoconfucionismo, 293
cristianismo, 272, no Islão, 276-78, no Privatização, da religião, 39
judaísmo, 267-68; de valor, no Advai- Processo, na religião chinesa, 84-85, 331;
ta Vedanta, 303, no budismo, 302-02, de comparação, 26, 57-60; de controle,
na religião chinesa, 300, no cristianis- neste projeto, 378-79; filosofia, 280;
mo, 307, no Islão, 308-2o, no judaís- versus produto neste projeto, 367-70;
mo, 305-06 versus substância na religião chinesa,
Pessimismo versus esperança, nos textos 62-63
hindus, 124 "Profanação", no budismo, 213
Pessoais, categorias, 42-43; na religião Profetismo, revelatório e agencial, no Is-
chinesa, 90-94 lão, 243
Pessoal, identidade, 42, 365; definida, Projeto, taoísta comparado com o Advaita
como categoria comparativa, 330-31; Vedanta, 345; vida como, 335; de auto-
idéias intrínsecas de, no Advaita Ve- identidade no hinduísmo, 335-36
danta, 335-36, budismo, 333-39, re- Propósito, 31o; na comparação, 56; cós-
ligião chinesa, 331-37, cristianismo, mico, no judaísmo, 265-6; divino, 288-
339-42, Islão, 342-42, judaísmo, 337- 89, 363-64
39; não metafísica no judaísmo, 337; Provérbios, livro dos, 284
idéias perspectivas de, no budismo, Pública, vida, 332
334, religião chinesa, 332-33; idéias Punição, pelo pecado, no judaísmo, 2 59-
práticas de, no budismo, 334-335, na 6o
religião chinesa, 332-33; idéias teóri- Pureza, no budismo, 95; na religião chi-
cas de, no budismo, 334, na religião nesa, como retorno para o fluxo har-
chinesa, 332-33 monioso, e não como uma substância
Piedade, no judaísmo, 2 74, 347, 362 original, 86; no taoísmo, 82-84
Platonismo, 307; em Orígenes, 207
Plausabilidade, de categorias comparati- Qi, 64-70, 78, 86-87, 67, 318, 332, 342;
vas, 22-23 em Agostinho, 222; na vida interior,
Plenitude divina, no cristianismo, com- cósmica e individual, 80-2; massa do,
parado com outras, 292 256-58; mãe da divindade humana,
Pluralismo, 21-16 82
Pobreza, 78 Quadro, de categorias comparativas, 32,
Poder, sentido, no taoísmo, 8o-82 390-93
Polidez, boa educação, levada ao limite, Quatro Nobres Verdades, As, 96-203, 208,
389-92 249-60, 302, 325
Política, 28; ordem política e religião no Que você é (tat tvam asi), 140-46
Islão, 363 Queda, teoria agostiniana da, 211; no
Popular, religião; chinesa, 62-63 cristianismo, 323, 348-49, 355; no Is-
Pós-modernismo, 24 lão, 242, 326
ÍNDICE DE ASSUNTOS 447

Questions of King Milinda, The, 101-02, Ressonância, 66


333 Ressurreição, 324, 340; no cristianismo,
Quieto, o sentar, 81 273, corporal, 222, de Cristo, 298; para
Agostinho, 213-16, para Orígenes,
Rabinos, 268; literatura rabínica, 167-87, 208-09 e a aflição humana, 355-56
158; período rabínico, 258 Retidão, na religião chinesa, 342; no cris-
Racionalização, do Upanishad no Viveka- tianismo, 198
cúclâmani, 136, 241 Retorno à unicidade, na religião chinesa,
Ratnagunasamcayagâthâ, 109 64-65, 69-70
Razão natural, 13-16 Revelação, 157, 307, 333; como gnose,
Realidade fundamental, no Advaita e no 201-03; no judaísmo, 260-62, compa-
budismo, 347; no hinduísmo, 123; ver rada com outras, 305
Última, realidade Revelação, livro da, 222
Realismo ontológico, na religião chinesa, Riqueza, 78
budismo e Islarados, 296 Ritmos cósmicos, 352
Realização, humana e mundana na reli- Ritual, 2 2, 37, 56, 307, 331, 344, 379-80;
gião chinesa, 61-64; pessoal e interati- no cristianismo, 228; exclusões do,
va na religião chinesa, 87 248-49; no hinduísmo, 223; no judaís-
Redenção, no cristianismo, 196-222, de Is- mo, 347, 361
rael, 297; do cosmos, em Orígenes, 206 Ritual, estudos de, 29-30
Reducionismo, 31 Romanos, carta de são Paulo aos, 196-99,
Reencarnação, e presteza para a liberta- 213-15, 198-99, 208, 212, 214, 341
ção, 146-51
Referência (maneira) de comparação, 5 2- Sâmkhya, 318
5 5., 364-65 Sa'ngha, 359
Referência, no budismo, 101, e religião Sabedoria, 1o3; no budismo, 109-2o; na
chinesa comparadas, 282-85, no Ma- religião chinesa, 92-93; no hinduís-
dhyamaka e Yogacâra, 315-16 mo, integral comparada com outras,
Regras, no Islão, para afiliações, 363-64 245-46; no Sirácide, 168-71; tradição
Reino de Deus, no cristianismo, 200 de, no oriente próximo, 270
Reis, 72, 76 Sabedoria de Ben Sirac (Sirácide, Ecle-
Religião, 153-55; estudo acadêmico da, siastes), 158, 161-71
22; conceito de, criticado, 328; como Sábios, 63, 274-86, 285, 313, 332; no ju-
dimensão da vida, 38; não apenas daísmo, 171-73, 178-79; no Viveka-
idéias, 47-48; versus religiões, 38-9 cúdâmani, 145
Religião,Ciênciasda, 319-20,15-16, 277-78 Sacerdotes, no cristianismo, e Imã, no Islã,
Religiões, 12-13, 25-26, 47, 195; tradicio- comparados, 227-29; no judaísmo, 174
nais, 29 Sacramentos, 292
Religiões Americanas Nativas, 25-30 Sacrifício de sangue, no cristianismo,
Religiões da Nova Era, 29-30 198; calórico, 371; fogo, no hinduís-
Religiosa, verdade, 23, 30, 59, 379 mo, 136; imagética, em são Paulo, 298;
Renascimento, no budismo, 120 no judaísmo, 268, 321
Resignação, 37 Sagrado versus profano, 206
Responsabilidade, 79, 157; comparada Salvação, 2; para Agostinho, 212; no cris-
entre religiões, 266; campo de, 277-78, tianismo comparado com outras, 339-
293-94, 324-25 no cristianismo, 308, 40; como dualista, 202, 215; universal
no Islão comparada com outras, 297- para Orígenes, 207-08
98; ver também vida, como campo Salvador, no budismo, 208
= --- - - ÍNDICE DE ASSUNTOS
448-

Samâdhi, 143-44, 335 também Assimetria; no cristianismo,


Samsâra, ro8, 303, 335, 352; para os bo- 323; no Islão, 326; no judaísmo, 290;
dhisattvas, 116 nas relações Deus-homem, 337
Sânscrito, leitura do, 123-24 Similaridades, em comparação, com fre-
Santidade, no cristianismo, comparado qüência funcionam diferentemente
com outras tradições, 293 nas religiões, 227-29; doutrinal, do Is-
Santos, 37, 292; no budismo, 98-too lão com outras religiões, 224-25
Satan (Iblis), o Grande, 12, 242 Sincronicidade, na religião chinesa, 62
Saúde, 21-22 Singularidade, dos fenômenos religiosos,
Sazonais, mandamentos, na religião chi- 253-54
nesa, 88-89, 313 Sirac, Livro de, 168-69, 171, 187
Secular, cultura, 39 Sistema, hinduismo como, 153-55 no ju-
Segunda vinda de Cristo, 195, 199 daísmo, i58
Segundo templo, 158, 171, 195, 251, 268- Sobre os primeiros princípios (de Orígenes),
69,277,362 204-09
Seletividade, no projeto, 248-53 Sobrenatural, na religião chinesa, 61, 78
Self, no Advaita Vedânta, 303-04, 335-36; Sociais, categorias, 41-44; na religião chi-
no budismo, 114, 252-53, ver não- self, nesa, 88-89
na religião chinesa, não valorizado à Sociais, Ciências, 29, 58
parte de interações, 92-93; como ca- Sociais, grupos, 358-64
tegoria comparativa, 41; no hinduís- Sociedade, estratificação religiosa na, 21-
mo, 123, 126-27, 263-64, 346; para 22
o Taittiriya Upanishad, 135-39; na Sociologia do conhecimento, 58
tradição upanixádica, 202-03; no Vi- Sofrimento, 37, 344, 350; três categorias
vekacúdâmani, 124-07, 133-39, 143- de, no Abhidarma, 98-roo; no budis-
44, 287-88 mo, 96-107, 120, 259-60, 333-35, 351-
Senhor, O, no hinduísmo, 130 52; no cristianismo, 270, para Oríge-
Senso comum crítico, 4o; definição, 44 nes, 207; uma situação de aprendizado
Sentidos, no budismo, 97; no taoísmo, 69; temporário para almas eternas, em
retirada dos, 8o Orígenes, 207
Sentimento, no budismo, 97 Solução de problemas, e terminologia co-
Septuaginta, 201-04, 201, 208, 219 mum, 45-48
Seqüência, na causalidade, 312 Soteriologia, 56, 249; ver também Salvação
Ser-próprio, 315, 352 Submissão, a Deus, 343
Servidão, da vontade, 324-25 Substância, 42; contrastada com a reli-
Sexo, no Cristianismo, 199-201; no taoís- gião chinesa, 93-94; no pensamento
mo, 8o; antes e depois da queda, para ocidental, 283, 331
Agostinho, 210-12; no judaísmo, 177- Südras, 148
79, e mal, 184-85 Sufis, 240-41, 357
Shahâda (primeiro princípio do Islão), Sul, Ásia do, 24-25, 53
105, 224, 233 Sunita, Islão, 25-26
Sharia (lei), no Islão, 226, 231-41, 275-77, Superimposição, 134, 140, 287
297-98, 310, 326-27, 363
Shirk (idolatria), no Islão, 235-43, 276, Tabia, no Islão, 231
296, 349, 356-7, 364; e os sufis, 240 Taiji, 312
Símbolos, religiosos, 22-23, 56, 6o Taittiriya Upanishad, 127, 135, 263
Simetria, 357; e assimetria nas relações Talmud, 172; Babilônio, 191; Palestino,
entre Deus e o mundo, 271-74, ver 179,184
ÍNDICE DE ASSUNTOS 449

Tao Te King, 65, 256. 279-81 Terminologia, desenvolvida para compa-


Taoísmo, 23-25, 62-64, 69, 71, 79-80, 91- ração, 45-57
93, 256-57, 312-14, 329, 325, 332, 338, Terra pura, budismo, 95-6, 249, 262
341, 345-46, 351, 356-60, 361, 375 o Terra, não redimida, para Agostinho, 214-
Tao informe expande-se na manifes- 5
tação primordial, 70-71; sobre a sabe- Testemunho, no Islã, 327, 349
doria, 146 Testes, 55; de comparações, 46-49; de hi-
Tao, 64-65, 286, 313, 315, 345; primordial, póteses comparativas, 249-53; relati-
82; pureza do (Tao), restaurada, no vos a vulnerabilidade, 50-51
taoísmo religioso, 70 Textos e motivos essenciais, 24-26, 249
Tauhid (manter que Deus é uno), no Is- Textos, usualmente escritos por homens,
lão, 226, 233 31; versus tradições neste projeto, 18-
Teísmo, 53; comparado ao Advaita,131 19, 386-88
Templo (judaico), reconstruído na era Theósis, 357
messiânica, 187-88 linguagem de lou- Tito, Carta de 219
vor em são Paulo, 198 Tópicos para comparação justificados,
Tempo, criado por Deus, no Cristianis- 21-23
mo, 271 Torá, 25, 157-60, 168, 170, 172-73, 177-78,
Tentação, 157 194, 250, 268-69, 273-74, 288-90, 298,
Tentativo, caráter, do esquema de catego- 305-07, 321-22, 337-38, 347-48, 361-62;
rias comparativas, 43-44; nas hipóte- caracterizada, 172-73; com símbolo
ses comparativas, 246 central após a destruição do Segundo
Teodicéia, Cristã, em Orígenes, 2o7; ra- Templo, 171-72; no Cristianismo, 196-
cionalista, no judaísmo moderno, 189 97; como sebe contra o mal, 178-80;
Teologia, 24; comparativa, 48; confessio- no Islão, 238
nal, 18; escândalo na, 103-05 Tosefta, 172
Teoria, de comparação, ver Comparação, Totalidade, na religião chinesa, 65
teoria de; da religião, 15, 56 Totalidade, questões de, no Madhyamaka,
Teóricas, idéias, de afiliações na religião 259
chinesa, 359; de causalidade, no bu- Tradicionalismo, no judaísmo moderno,
dismo, 317, na religião chinesa, 313- 189-93
14, no cristianismo, 325-26, no Islão, Tradições, no budismo, 107; não-letradas,
327, no judaísmo, 321; de obrigação, 29; estudadas aqui, 23-27
na religião chinesa, 343-44; de onto- Tradução, 59-60, 381; em hipóteses com-
logia, no budismo, 284-85, na religião parativas, 53-55 em comparação, 27,
chinesa, 279-82, no cristianismo, 291- 30
82, no hinduísmo, 286-87, no Islão, Tragédia, pouco na religião chinesa, 88
298-99, no judaísmo, 288-89; de iden- Transcendência, 345-46; no budismo,
tidade pessoal, no budismo, 334-35, taoísmo e confucionismo, 63-64; na
na religião chinesa, 332-33; de valor, religião chinesa, 63, 70; da deidade,
no Advaita Vedanta, 304, no budismo, não registrada na religião chinesa, 93;
301-02, na religião chinesa, 299-300, e história, no Islão, 234-43; e imanên-
cristianismo no judaísmo comparado cia, no Islão, 226, equilibrada no Islão
com outras, 305-06; unidade, no cris- sufi, 240; treinando na, na religião
tianismo, 272-73, no Islão, 278, r10 ju- chinesa, 70-71
daísmo, 267-68 Transformação, 196, 265; no Advaita Ve-
Teórico, lugar de análise fenomenológi- danta, 138-46, e budismo, 354; não
ca, 2 53-55 do corpo material mas da alma, em
450 - ÍNDICE DE ASSUNTOS

Orígenes, 208-09; na religião chinesa, da nas seis tradições comparadas, 256-


64; no cristianismo, 221-22, e taoísmo, 78; definida de maneira vaga, 255-56;
32.5, do cosmos por Cristo, 198-99, do idéias teóricas de, no cristianismo,
cosmos e do corpo no cristianismo 272, Islão, 277-278, judaísmo, 267-69
católico, 198-200 de categorias com- Universais, no Madhyamaka, 259-60
parativas, 22-23 Upadesasahasri, 124, 142
Transmigração da alma, no budismo e na Upanishades, 103, 118, 123, 250
religião hindu, 97, 331 Utopia, 196
Tratado Abot, 173-81,184-85 Uttara Mimâmsâ Sutras, 123, 148
Tratado Berakot, 181-86
Treasury of the Abhidarma, The, 100 Vagueza, nos acordos por diferentes ra-
Três ensinamentos, harmonização dos, 71 zões, 45-46; em categorias comparati-
Trindade chinesa, do céu, terra e do ho- vas, 41, 5 2-55, 59; importância de, 46;
mem, 338; cristã comparada com ou- como uma estrutura lógica em cate-
tras, 295, negada no Islão, 237 gorias comparativas, 26-27; em Peirce;
Tripla fundação da era, e do mundo, para e especificidade, 41, 52-55, 229-30,
O judaísmo, 174-76 neste projeto, 380; dialética da, 246-
Triunfalismo, no Islão e judaísmo, com- S3; diferente entre especialistas, 251-
parado, 277 53 e tradução, 53-54
Turbulência, no budismo, 112-14 Valor, 365; em causalidade, 31o; como
uma categoria comparativa, 299; idéias
Última, verdade, 262 intrínsecas de, no Advaita Vedanta,
Ultimação, na religião chinesa, 62-71 303, budismo, 301-02, religião chine-
Últimas, realidades, 17, 22-23, 30, 59, 167, sa, 299-00, cristianismo, 307-08, no
365, 379 Islão, 308-09, no judaísmo, 305-06;
Ultimate Realities, 245, 253, 385-86, 390 idéias perspectivas de, no Advaita Ve-
Um, o, na religião chinesa, 64-65, 79-84, danta 303-04; no budismo, 301-02, re-
281, 315, comparado com o Islão, 225- ligião chinesa, 299-300, cristianismo,
26; versus culturas zero, 64-68, 85, 65- 307, Islão, 308-1o, judaísmo, 305-06;
66, 256 idéias práticas de, no Advaita Vedanta,
Unidade, 365; no Advaita Vedânta, 131- 304, budismo, 302, religião chinesa,
32; como categoria, 42; no budismo, 299-00, cristianismo, 308, judaísmo,
de referentes, 101-02; na religião 305-06; idéias teóricas de, no Advaita
chinesa, 64-71, 225-26, comparada ao Vedanta, 304, budismo, 301-02, reli-
Islão, 226, e o nada, 312; no Cristianis- gião chinesa, 300, cristianismo, 307,
mo, comparado com o judaísmo, 269- judaísmo comparado com outras,
74; no hinduísmo, 123, do self com 305-06
Brahma, 262-66; idéias intrínsecas de, Valores, 11, 42; como instrumentos para
na religião chinesa, 257; no Islão, 275- a liberação no budismo, 301-02; trans-
78, comparado com outras, 294-95, valorizados, 356
326-28; no judaísmo, comparado com Vazio (vacuidade), 114, 118, 285, 315-16,
outras, 266-69; metafísica e existen- 347; no budismo, 95-96; como catego-
cial, 270-73; idéias perspectivas de, na ria, 120; no judaísmo, 186-87
religião chinesa, 257-58, cristianismo, Vedânta, 40, 104, 106, 361-62
272, Islão, 267-68, judaísmo, 239-40; Vedântaparibhâsâ, 142
idéias práticas de, na religião chinesa, Vedas, 24, 227-28, 250
257, no cristianismo, 273-74, Islão, Verdade, como descrição e portadora de
276-78, judaísmo, 267-68; especifica- importância, 55-56; epistemológica,
ÍNDICE DE ASSUNTOS 451

escritural e prática, 55; objetiva, 12- 20, 336, 346, 353-54, 36o-61; esquema
16; busca da verdade em religião, 377; do, 126-27
última, no hinduísmo, 123 Volitionais, estados, no budismo, 98
Vibratórios, movimentos, 79, 341, 311- Vontade fraturada, para Agostinho, 210-
21, 318; como metáfora na religião 12; em contradição, 338
chinesa, 66 Vulnerabilidade, de hipóteses compara-
Vida, como um campo de responsabilida- tivas, 248-53; a correção, 26-27, 29-33,
des, 289, 348; sentido da, 37 41-44, 46, 195-96, 384-88, 391; em va-
Viés, 54-56; na comparação, 50-51 gueza e especificidade, 6o, 132
Violência, religiosa, 22
Vir-a-ser, 225; no budismo, 97-98 Xiita, Islão, 25-26
Virtudes, na religião chinesa, 88; externa
e interna no taoísmo religioso, 72-76; Yin-Yang, 24-25, 69, 72, 82-83, 90-93, 256,
resultante do aprendizado, no confu- 283, 296, 311-13, 315
cionismo, 77-78 Yoga, no budismo, n6-17; no Vedânta, 143
Visão, 262; beatífica, 323; no budismo, Yogâcara, 284, 314-18, e Madhyamaka,
209-26, comparado com o Islão, 224- comparado, 260
25; no Islão, 2 75 Yogis, 110
Visistâdvaita Vedânta, 318-19, 327-28 Yoma, 1.85
Visualização de deuses, no taoísmo, 79-81
Vital, Self, no hinduísmo, 134-37 Zen budismo, 119, 364
Viveka, 151-54 Zero versus Um, culturas, 256; chinês e is-
Vivekacúdâmani, 104, 205, 123-55, 151- lâmico, 225-26; ver também Uno, o,
55, 250-52, 263-66, 287, 290, 303, 319- Zhuangzi, 256, At
ÍNDICE

Prefácio à edição brasileira 7

Apresentação II
Prefácio 17
Agradecimentos 35
Introdução
Robert Cumming Neville e Wesley J. Wildman 37

1 Sobre o comparar idéias religiosas


Robert Cummings Neville e Wesley J. Wildman 45
I.I. Sobre o comparar: por que isso é importante? 45
1.2. Categorias vagas 52.
1.3. Critérios para o sucesso 55
1.4. Processo e estratégia 57

2 Religião chinesa
Livia Kohn 61
2.1. Considerações Gerais 61
2.2. O mundo chinês e a aflição humana 64
2.3. Resolução da aflição humana 71
2.4. Categorias para comparação 84

Ignorância sem início


3 Um ponto de vista budista sobre a condição humana
Malcolm David Eckel com John J. Thatamanil 95
3.1. Introdução 95
3.2. Primeira evidência da doutrina
— As quatro nobres verdades 96
454 ÍNDICE

3.3. A forma da narrativa budista — O caminho do meio 107


3.4. O que torna uma categoria útil
na Teologia Comparativa? 119

Ser ouvido e feito,


4 mas nunca completamente visto
A condição humana de acordo com Vive/ma-41~73i
Francis X. Clooney, S.J. e Hugh Nicholson 123
4.1. Introdução: o texto e seu desafio 123
4.2. A condição humana, percebida e real 127
4.3. A função do conhecimento certo (viveka)
na percepção da verdade da condição humana 133
4.4. A transformação da vida humana
e o projeto de transformação (bhãvanã) 139
4.5. Exclusões e a força do texto 146
4.6. Atos integrais de aprendizagem
através de fronteiras culturais e religiosas:
ouvir, saber, fazer, mas não especular isi

Dimensões religiosas da condição humana


5 no judaísmo
Lutando com Deus em um mundo imperfeito
Anthony J. Saldarini, com Joseph Kanofsky 157
5.1. Introdução 157
5.2. Sirac (Eclesiástico) 161
5.3. Literatura rabínica 171
5.4. O período moderno 188

Encarnação e redenção
6 A condição humana no cristianismo antigo
Paula Fredriksen com Tina Shepardson 195
6.1. Introdução 195
6.2. Paulo 196
6.3. O dualismo cristão e o Deus supremo 200
6.4. Orígenes 204
6.5. Agostinho 209
ÍNDICE 455

6.6. Sumário 215


6.7. Pos-scriptum: termos de comparação do seminário 217

condição humana no Islão


7 ASharra e obrigação
S. Nomanul Haq 223
7.1. Reflexões preliminares 223
7.2. Ambigüidades na comparação 227
7.3. A condição humana no Islão 229
7.4. Alá, a fonte última da Sharra:
o monoteísmo e a dualidade Criador-criado 233
7.5. Mantendo a disjunção divino-humano 239
7.6. A ligação entre o transcendente e o histórico 241

Hipóteses comparativas
8 Categorias cosmológicas para a condição humana
Robert Cummings Neville, com Wesley J. Wildman 245
8. I . Introdução 245
8.2. Unidade 255
8.3. Estatuto Ontológico 278
8.4. Valor 299

Hipóteses comparativas
9 Categorias pessoais e sociais para a condição humana
Robert Cummings Neville 329
9.1. Introdução 329
9.2. Identidade pessoal 330
9.3. Obrigação 343
9.4. A aflição humana 3.50
9.5. Afiliações 358
9.6. Pós-escrito 364

Apêndice A
Sobre o processo do projeto durante o primeiro ano
Wesley J. Wildman 367

Apêndice B
Sugestões para leitura posterior 397
-= ÍNDICE
456=-

Colaboradores 425

Índice de Nomes 427


Índice de Assuntos 431

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