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sumário

Prefácio à Primeira Edição 7


Prefácio à Segunda Edição 9
Capítulo 1 • PÁGINAS DA ESCATOLOGIA DO INDIVÍDUO NO ANTIGO
TESTAMENTO ANTES DA ORIGEM DA CRENÇA NA IMORTALIDADE 11
Capítulo 2 • ESCATOLOGIA DO SURGIMENTO DA DOUTRINA DE
UMA IMORTALIDADE INDIVIDUAL 47
Capítulo 3 • E A SÍNTESE DAS DUAS ESCATOLOGIAS NA DOUTRINA
DA RESSURREIÇÃO. DOUTRINA DA ALMA E DA VIDA FUTURA
ENTRE OS GREGOS 69
Capítulo 4 • RESUMO DO ENSINO DO ANTIGO TESTAMENTO
SOBRE AS CONCEPÇÕES DO INDIVÍDUO – APÊNDICE AOS
CAPÍTULOS ANTERIORES 125
Capítulo 5 • A ESCATOLOGIA DA LITERATURA APÓCRIFA E
APOCALÍPTICA NO SEGUNDO SÉCULO A.C. 133
Capítulo 6 • ESCATOLOGIA DA LITERATURA APÓCRIFA E
APOCALÍPTICA DURANTE O PRIMEIRO SÉCULO A.C. 185
Capítulo 7 • PÁGINAS DA ESCATOLOGIA DA LITERATURA APÓCRIFA
E APOCALÍPTICA DURANTE O PRIMEIRO SÉCULO D.C. 219
Capítulo 8 • ESCATOLOGIA DA LITERATURA APÓCRIFA E APOCALÍPTICA
DURANTE O PRIMEIRO SÉCULO A.D. (CONTINUAÇÃO) 239
Capítulo 9 • ESCATOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO – INTRODUÇÃO
GERAL: OS EVANGELHOS SINÓTICOS 267
6 | Vida após a Morte

Capítulo 10 • ESCATOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO: APOCALIPSE,


JUDAS, 2 PEDRO, TIAGO, HEBREUS, EVANGELHO E EPÍSTOLAS
JOANINAS, I PEDRO 297
Capítulo 11 • A ESCATOLOGIA PAULINA EM SEUS QUATRO ESTÁGIOS 329
Prefácio à Primeira Edição

A o longo deste trabalho, fui obrigado repetidamente a abandonar o cami-


nho convencional ao lidar com a escatologia do Antigo e do Novo Testa-
mento. Isso se deve em parte ao método adotado, pois ficou claro para mim há
muitos anos que, para apreender a evidência de uma passagem que lida com
as esperanças religiosas de Israel, seria necessário estudá-la não apenas em
seu contexto textual, mas também em seu contexto histórico.
Todos os estudiosos com qualquer pretensão de profundidade já reconhe-
ceram o dever de estudar uma passagem em seu contexto textual; mas muito
poucos viram que é tão necessário estudá-lo em seu contexto histórico, isto
é, em seu devido lugar no desenvolvimento do pensamento religioso. Ainda
assim, dois escritos podem ser compostos na mesma década, tendo o primeiro
um caráter reacionário e pertencer a um período anterior de desenvolvimento,
enquanto o outro pode ser espiritual e progressivo, estando na vanguarda do
pensamento religioso da época. Em tais casos, é trabalho do historiador per-
mitir que as passagens definitivas em ambos os escritos sejam consideradas
plenamente, e não as forçar a uma conformidade não-natural, espiritualizando
algumas passagens e materializando outras.
Apenas por meio de um método científico de investigação é que pode-
mos esperar chegar a conclusões válidas sobre assuntos como Universalismo,
Imortalidade Condicional ou Danação Eterna. Tais conclusões não devem ser
tiradas tanto de declarações isoladas nos livros do Novo Testamento, que po-
dem variar de acordo com os dotes espirituais do escritor; ou da consumação
para a qual o desenvolvimento escatológico do passado sem dúvida aponta;
e, acima de tudo, dessa consumação prenunciada e implícita nas grandes ver-
dades fundamentais proclamadas por Cristo e desdobradas de várias maneiras
no ensino apostólico.
Como na natureza, assim como na religião, Deus se revela no curso de
uma evolução lenta.
Um livro sobre o mesmo assunto que o presente trabalho foi publica-
do recentemente pela diretora Salmond. Como, no entanto, nosso método e
8 | Vida após a Morte

tratamento adotaram diferentes linhas, evitei me referir ao trabalho desse co-


nhecido estudioso.
Para facilitar a consulta deste livro, eu forneço um índice elaborado. Este
índice consiste em uma lista alfabética de nomes e assuntos: mas há ainda
mais, pois sobre cada assunto eu fiz uma abordagem analítica a partir da qual
o leitor pode reunir o desenvolvimento histórico da concepção particular ao
longo de quase mil anos.
Finalmente, desejo expressar meus agradecimentos aos Srs. A. & C.
Black, os editores da Encyclopaedia Biblica, e a seus editores, os drs. Cheyne
e Black, por me permitirem usar aqui o meu artigo sobre escatologia publica-
do nessa obra.
Também agradeço as muitas sugestões úteis feitas pelo Dr. Cheyne, bem
como a revisão feita pelo Dr. Black das provas, que reivindicaram muito do
seu tempo e energia.

17 Bradmore Road, Oxford, setembro de 1899.


Prefácio à Segunda Edição

N esta edição, muitos deslizes e imprecisões da primeira edição foram cor-


rigidos. As seções que tratam de algumas autoridades foram totalmente
reescritas, cujo significado e os dados eram desconhecidos na primeira edi-
ção. Mas essas mudanças e acréscimos, que totalizam sessenta páginas, não
afetaram as principais conclusões a que chegou a primeira edição e as linhas
de desenvolvimento escatológico traçadas nela.
Como os estudos escatológicos de Schweitzer não mostram conhecimen-
to de documentos originais e quase nenhum trabalho em primeira mão sobre
os documentos, e, além disso, eles não dão uma nova contribuição ao assunto,
mas nenhuma menção a ele é feita nesta edição.
A adição mais importante no presente trabalho é a que mantém os resul-
tados até agora inéditos do autor sobre a natureza da Apocalíptica, sua relação
com a profecia e as causas que, por um lado, forçaram os videntes judeus a
emitir suas visões sob o manto da pseudonomínia; e que, por outro lado, levou
os videntes cristãos a deixar de lado esse disfarce e apresentar em suas pró-
prias pessoas nas revelações que lhes foram confiadas por Deus.

24 Bardwell Road, Oxford, janeiro de 1913.


Capítulo 1
PÁGINAS DA ESCATOLOGIA DO INDIVÍDUO
NO ANTIGO TESTAMENTO ANTES DA
ORIGEM DA CRENÇA NA IMORTALIDADE

O objetivo deste trabalho é lidar com a escatologia hebraica, judaica e


cristã, ou o ensino do Antigo Testamento, do judaísmo e do Novo Tes-
tamento sobre a condição final do homem e do mundo. É geralmente assu-
mido que já estamos totalmente familiarizados com esse assunto; mas tal
suposição não é de forma alguma justificada. Ainda temos muito a aprender,
mesmo que o trabalho de pesquisa acadêmica ainda esteja longe de ser in-
frutífero nesse campo.
Este trabalho, até onde ele se refere à escatologia do Antigo Testamen-
to, tem infinitas obrigações com os estudiosos do Antigo Testamento.1 Ain-
da assim, apesar da amplitude das abordagens, ele foi obrigado a tomar
novas iniciativas e seguir caminhos próprios com frequência, no que diz res-
peito ao tema específico dessas palestras. A necessidade de tais iniciativas,
seja em relação ao Antigo Testamento, ou em relação ao Novo Testamento,
se deve à nossa tentativa de compreender todo o curso do desenvolvimen-
to escatológico desde o tempo de Moisés até o final do Novo Testamento.
A natureza dessas novas abordagens será esclarecida na sequência.
Desde o período de Moisés, o fundador religioso e político de Israel,
até a época de Cristo, podemos, com algum grau de certeza, determinar as
visões religiosas dessa nação no além-mundo. Mas os fatos costumam ser tão
isolados, e as fontes são frequentemente defeituosas, além de serem redefi-
nidas em ambientes posteriores. Sendo assim, se limitarmos a nossa atenção
apenas às ideias da vida após a morte, é possível dar apenas uma declaração

1
Particularmente para Cheyne, Stade, Robertson Smith, Schwally, Smend, Nowack e
muitos outros.
12 | Vida após a Morte

desmembrada de crenças e expectativas em grande escala. Tal se dá com la-


cunas e mudanças ininteligíveis, e sem aquela coerência e desenvolvimento
ordenado, a mente não pode ser satisfeita.
Descobrimos, no entanto, que podemos transmitir algum grau de coe-
rência e inteligibilidade ao assunto, caso consideremos o desenvolvimento
da concepção de Deus em Israel. Isso depende, em última análise, das con-
cepções religiosas de nação. Obviamente, apenas os pontos mais importantes
dessas concepções poderão ser tratados; mas tais serão suficientes para o nos-
so propósito atual.
Deixe-me dar uma ilustração da necessidade de tratar a concepção de
Deus em conexão com a noção do mundo do porvir. Como é que, no segun-
do século a.C., a concepção do mundo do porvir é principalmente moral e
retributiva, enquanto que no século IV e nos tempos de Moisés ela não é
moral, sendo de fato um traço do paganismo semítico puro? Essa mudança
de concepção deve-se principalmente ao monoteísmo, que foi apreendido,
parcialmente, pelos grandes profetas do século VIII a.C., e mais amplamente
pelos profetas do sexto século, sendo finalmente levado aos seus resultados
lógicos. Em nenhuma parte do Universo criada por Deus, em que os homens
religiosos sentiram e os homens religiosos raciocinaram, poderia ser retirada
a sua influência. Daí, no devido tempo, houve a rejeição da visão semítica
pagã de Sheol em favor de uma visão que fosse moral e retributiva. Até que o
monoteísmo fosse a crença aceita da nação, essa transformação do Sheol era
impossível de ser obtida.
Antes de entrar no assunto, eu posso pressupor que, embora eu tenha
de lidar com a anatomia do pensamento religioso do Antigo Testamento, eu
não pretendo nem acredito que seja possível explicá-lo como um desenvol-
vimento meramente natural. Todo verdadeiro crescimento da religião, seja
no passado, seja no presente, brota da comunhão imediata do homem com o
Deus vivo, ocasião em que o homem aprende a vontade de Deus e se torna, as-
sim, um órgão de Deus, uma consciência personalizada, um veículo revelador
da natureza divina, da verdade para os homens menos inspirados. A verdade
assim revelada através de um homem possui uma autoridade divina para os
outros homens. No Antigo Testamento, temos um conjunto de tais revelações.
No Êxodo, Deus tomou Israel, os semitas ainda pagãos em sua maioria, e os
ensinou na medida de sua capacidade: revelou-se desde o início a eles como
o seu Deus, o Deus de sua nação, e reivindicou Israel como seu povo. Ele não
se tornou conhecido como o Criador e Governante Moral do mundo, pois na
Vida após a Morte | 13

infância da história religiosa de Israel, essas ideias teriam sido impossíveis


de compreender. O Senhor era Deus de Israel, e Israel era o povo do Senhor.
Yahweh era um Deus justo, que exigia justiça em seu povo. A partir deste
estágio, a educação divina de Israel é levada adiante, até que em Jeremias e
no Segundo Isaías, Deus se tornou conhecido por Israel como o Criador Su-
premo, Todo-Amoroso, Único e Deus de toda a humanidade.
Nos capítulos seguintes, nossas investigações serão guiadas pelos resul-
tados das análises do Antigo Testamento. Como, no entanto, alguns desses re-
sultados ainda são provisórios, tal caráter provisório será anexado a algumas
de nossas conclusões.
Ao longo desses estudos, reverteremos para a pronúncia original do nome
divino Yahweh. Devido ao medo de usarem mal esse nome (Êxodo 22.7; Le-
vítico 24.11), os judeus evitaram pronunciá-lo com as suas vogais legítimas
e extraíram a sua vocalização do vocábulo Adonai. A palavra reapareceu em
tempos remotos com a vocalização de Elohim.
Pela ignorância desses fatos, a falsa pronúncia Jeová foi introduzida por um
estudioso do século XVI, Petrus Galatinus, em sua obra De Arcanis Catholicce
Veritatis, de 1518 (ver Marti, Gesch. D. Isr. Rel., p. 60). A verdadeira pronúncia
é atestada por Clemente de Alexandria (Ἰαουέ) e em Teodoreto (Ἰαβέ), além de
aparecer em autoridades de uma data anterior.2

I) Javismo pré-profético

Não tentaremos rastrear os vários estágios pelos quais o Antigo Israel


passou antes de se tornar monoteísta. Ainda assim, é necessário considerar o
período como amplamente dividido em dois períodos, a saber:

(i.) Javismo pré-profético, de Moisés ao século VIII a.C.;


(ii.) Javismo profético.

Nossa atenção se limitará principalmente à primeira, pois a possibilidade


de entender a escatologia hebraica primitiva é condicionada por nossa com-
preensão prévia do escopo limitado do Javismo pré-profético. De qualquer fonte,

2
Ver Ency. Bib. 3.3320ss.
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a adoração a Yahweh3 foi derivada, em última instância, pois ela é advinda


provavelmente de Moisés, pois foi com suas contribuições que o Senhor se
tornou o Deus de Israel, ou seja, o Deus nacional. Agora, uma nação se origina
não apenas através do aumento e extensão da tribo, mas através da federação
de tribos descendentes ou mesmo de diferentes ancestrais, os quais adoram
deuses tribais independentes. Essa federação pode ter surgido de uma situação
de perigo, ou de interesses comuns. Se a comunidade de interesses e ações
comuns foi assim estabelecida, e tal relacionamento é duradouro, o resultado
disso foi a formação da nação. A incorporação de diferentes tribos em uma
nação é um sinal de que a consciência tribal foi valiosa para a formação da
consciência da comunidade maior, e que, nesse processo, os deuses tribais
foram forçados a uma relação subordinada ao novo Deus da nação.
Sem dúvida, esse Deus fôra o deus da principal tribo da confederação.
Wellhausen pensa que Yahweh era originalmente o Deus da tribo de José, com
o fundamento de que a arca foi colocada no território de José; e que Josué – o
nome histórico mais antigo composto por Yahweh – pertencia a essa tribo.
Mas há grandes dificuldades nessa teoria. Não nos interessa abordar aqui es-
sas dificuldades. A origem do Javismo ainda está enterrada no mistério.
É uma questão discutível se Deus era conhecido sob o nome de Yahweh
antes da época de Moisés. Por um lado, foi argumentado por Smend
(Alttestamentliche Religionsgesch., p. 17, 18) e outros que Moisés teria ape-
lado em vão às tribos do Egito, pois ele as procurou em nome de um deus até
então desconhecido. Além disso, esse era o ponto de vista dos Javistas:

‫ּוְל ֵ ׁ֤שת ַּגם־הו֙א יַֻּלד־ֵּ֔בן ַוִּיְק ָ֥רא ֶאת־ְׁש֖מֹו ֱא ֑נֹוׁש ָ֣אז הּוַ֔חל ִלְק֖רׂא ְּב ֵ ׁ֥שם ְיה ָֽוה‬
Então os homens começaram a invocar o nome de Yahweh. (Gênesis 4.26)

Por outro lado, no Eloísta em Êxodo 3.11-14, e no Código Sacerdotal em


Êxodo 6.2-3, afirma-se que o nome Yahweh foi revelado pela primeira vez a
Moisés. A passagem diz o seguinte:

3
Informações completas sobre o desenvolvimento do Javismo sob diferentes pontos
de vista serão encontradas em Marti, Geschichte der Israelraelische Religion, 1897;
Kuenen, The Religion of Israel (traduzido do holandês); Montefiore, Lectures on the
Origin and Growth of Religion, 1892; König, Die Hauptprobleme d. altisrael. Reli-
gionsgeschichte, 1884; Smend, Alttestamentliche Religionsgeschichte, 1893; Valeton
em Chantepie de la Saussaye’s Religionsgeschichte 2.12.42-325, 1897. Davidson, arti-
go “God” no Hastings’ Bible Dictionary 2, p.199-205.
Vida após a Morte | 15

‫׃ַו ְיַד ֵ ּ֥בר ֱאֹל ִ֖הים ֶאל־ֹמ ֶ ׁ֑שה ַוּ֥יׂאֶמר ֵאָ֖ליו ֲא ִ֥ני ְיה ָֽוה‬
‫ָוֵא ָ ֗רא ֶאל־ַאְבָרָ֛הם ֶאל־ִיְצָ֥חק ְו ֶ ֽאל־ַיֲעֹ֖קב ְּבֵ֣אל ַׁש ָ ּ֑די ּוְׁש ִ֣מי ְיהָ֔וה ֹ֥לא נֹו ַ֖דְעִּתי‬
‫׃ָל ֶ ֽהם‬
E Deus falou a Moisés, e disse-lhe: Eu sou o Senhor, e apareci a Abraão, a
Isaque e a Jacó como El Shaddai, mas pelo meu nome eu não era conhecido
por eles. (Êxodo 6.2-3)

Esta última visão é fortemente apoiada pela evidência dos nomes pró-
prios. Assim, o primeiro nome próprio, sem dúvida, composto por Yahweh é
o de Josué.4 Mas como essa questão não afeta muito a abordagem do tema, é
possível passar para questões mais importantes, apenas acrescentando que o
ensino superior de Moisés deve ter tido pontos de afinidade com as crenças
pré-existentes dentro de seu povo ou tribo.
Onde quer que Yahweh possa ter sido concebido, e seja qual for a sua na-
tureza essencial,5 seja como Deus cujo nome é derivado da tempestade ou algo
semelhante, essa questão cedo se tornou parte do background, e toda a ênfase
foi colocada na pesquisa da natureza de suas atividades na nação. Portanto,
o caráter de sua religião não é, portanto, metafísico e dogmático, mas ético e
experiencial. Além disso, o próprio nome, por ser tão indefinido em conteúdo e
livre de associações que pudessem limitar o seu desenvolvimento, apresentava
uma estrutura na qual o crescimento desmedido da piedade foi possível. Esse
fato é de especial importância para o desenvolvimento do monoteísmo. A de-
rivação final do Javismo poderia, portanto, afetar apenas a forma externa: seu
verdadeiro conteúdo e caráter em Israel foram únicos.
Moisés, como observamos acima, foi o verdadeiro fundador da nação e
do Javismo. Por meio de sua comunhão pessoal com Deus, ele reanimou uma
raça escravizada que estava perecendo sob a opressão egípcia. Sua certeza de
que o Deus vivo era seu inspirador e permanência era a força impulsora em
sua ação, e nessa certeza ele carregava consigo a maior parte do povo. No
entanto, não houve ruptura absoluta com o passado. As tradições e limitações
espirituais que Israel tinha no passado em comum com seus parentes semitas

4
Sobre a possível ocorrência dos formulários relacionados Yahweh e Ya em nomes pró-
prios assírios-babilônicos ou cananeus, consulte Ency. Bib. vol. 3, 3332. Possivelmente
parece em Joquebede, Êxodo 4.20.
5
Marti, Geschichte der israelitischen Religion, p. 6l, 62; Driver, “Recent theories on the
origin and nature of the Tetragrammaton,” Stud. Bibl. I.; Ency. Bib. vol. 3, 3323.
16 | Vida após a Morte

reapareceram em suas formas primitivas do Javismo. O nome Yahweh se tor-


nou um ponto de partida, a base de um movimento religioso em que Israel se
tornou uma nação. Não foi Israel quem escolheu o Senhor para ser o seu Deus,
mas o Senhor que escolheu Israel para ser o seu povo, e se revelou a Moisés
como Deus vivo. Essa fé foi a força motivadora na formação da nação.
Como Deus nacional, o Senhor era o chefe invisível da nação. Como
tal, Ele inspirou e controlou a sua ação e moldou os seus destinos. Assim, a
religião e a história de Israel se entrelaçaram desde o início, e as inspirações
infalíveis da primeira influenciaram tanto a marcha da última que o desenvol-
vimento espiritual de Israel se tornou absolutamente único no mundo. Apesar
das frequentes interrupções e retrocessos, o seu avanço foi constante, indo de
força em força e de verdade em verdade, até que finalmente foi consumada na
revelação final da personalidade de Cristo.
A primeira revelação da intervenção do Senhor em nome de Israel está
relacionada com a libertação do Egito, e isso é muito significativo. Sua reli-
gião é assim caracterizada desde o início como uma religião de redenção:

‫׃ ָ ֽא ֹנ ִ֖כ ֙י ְיה ָ֣וה ֱאֹלֶ֑֔היָך ֲא ֶ ׁ֧שר הֹוֵצא ִ֛תיָך ֵמֶ֥אֶרץ ִמְצ ַ֖רִים ִמ ֵ ּ֥֣בית ֲעִָב ֽ֑ד ים‬
Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão.
(Êxodo 20.2).

Nisto Israel encontrou a permanência de sua fé, o fundamento de sua


confiança e o penhor de sua salvação no alvorecer dos dias maus.
O Senhor, chefe da nação, também era preeminentemente o líder de Is-
rael nas batalhas, o Deus da guerra. É nesse caráter que ele aparece princi-
palmente nos tempos mais remotos. Em nenhum lugar, a sua presença foi tão
forte quanto no campo de batalha. Ele é, como declara o poeta hebraico, “um
homem de guerra” (Êxodo 15.3), e seu povo é chamado Israel, isto é, “sol-
dados de Deus”.6 O primeiro altar erigido para o seu nome por Moisés é cha-
mado “Yahweh Nissi”, ou seja, “Yahweh é minha bandeira” (Êxodo 17.15).
Os entusiasmos religioso e nacional eram, nos tempos pré-proféticos,
quase sinônimos. Os inimigos de Israel eram os inimigos de Yahweh (1 Sa-
muel 30.26). As guerras de Israel foram as guerras do Senhor (Números 21.14;
1 Samuel 18.17). Ele é o Deus dos exércitos de Israel (1 Samuel 17.26, 36, 45).

6
Gesenius, Ewald, Kautzsch. Dillmann e E. Meyer entendem que “Deus afirma”, Bucha-
nan Gray (op. cit. 218) “que Deus afirme”.
Vida após a Morte | 17

Essas considerações nos fornecem o sentido original do nome divino


“Yahweh dos Exércitos”. O significado da expressão “Senhor dos Exércitos”
é, desde os tempos remotos, claro, como é possível constatar em 1 Samuel
17.45, em que Davi declara que sai ao encontro de Golias “em nome do Se-
nhor dos Exércitos, o Deus dos exércitos de Israel”. Não temos preocupação
com os significados posteriores7 desta frase.
Mas o Senhor não era apenas o Deus da guerra: ele também era o Deus da
justiça e da retidão. A libertação de Israel do Egito seguiu naturalmente esse
atributo divino, típico da organização interna que relaciona os dois temas.
A libertação foi realizada em nome de Yahweh, que foi reconhecido como a au-
toridade central da justiça. Seu santuário era o depositário da lei, e os seus sa-
cerdotes eram os intérpretes de sua vontade. O ensino ou a Torá dos sacerdotes
tinha um caráter ao mesmo tempo legal e moral. No decorrer de muitos séculos,
esse ensino passou a assumir uma forma estereotipada na Lei escrita no Penta-
teuco. Mas, além de ser o Deus da justiça, o Senhor era essencialmente o Deus
da pureza. Enquanto a adoração de outras divindades semíticas era caracteriza-
da por várias formas de licenciosidade, nenhuma delas jamais esteve relacio-
nada à adoração de Yahweh. Embora tenha sido concebido como uma pessoa,
Yahweh não tinha outra divindade, ou qualquer deus ao lado ou abaixo dele.
Esses elementos éticos importantes no caráter de Yahweh, que exigiam justiça e
pureza em seu povo, estão na base do Javismo primitivo e contêm a promessa
e a potência do monoteísmo posterior.
Tendo agora reconhecido duas das principais características de Yahweh,
a saber, seu caráter bélico e ético, de acordo com o qual ele moldou as
histórias externa e interna de Israel, temos de abordar as ideias de Israel
em relação aos deuses das nações vizinhas, que, em certa medida, se apli-
cavam também ao Senhor. Nestes tempos pré-proféticos, a existência real
de tais deidades independentes fora de Israel era totalmente reconhecida.
Cada nação tinha o seu próprio deus. Milcom era o deus de Amom; Astarote
era o deus dos sidônios; Quemosh era o deus de Moabe (Números 21.29;
1 Reis 9.33; Jeremias 48.46). De acordo com as crenças da época, foram
esses deuses que deram aos seus respectivos povos a seus territórios, assim

7
Mais tarde, ele foi concebido não como o Deus das hostes de Israel, mas de todos
os poderes, humanos, estelares ou angelicais. Esse desenvolvimento posterior deve-se
provavelmente a Amós. Ver: Marti, Gesch., p. 139-141; Kautzsch, Ency. Bib. 3.3328ss.
Cheyne se opõe a essa perspectiva em Ency. Bib. 1.300ss.
18 | Vida após a Morte

como Yahweh deu Canaã a Israel. Assim, em Juízes 9.24, Jefté envia a se-
guinte mensagem aos amonitas:8

‫ָל֕בֹוא ֲחַ֖מס ִׁשְב ִ֣עים ְּב ֵֽני־ ְיֻר ָ ּ֑בַעל ְוָדָ֗מם ָלׂ֞שּום ַעל־ֲאִביֶ֤מֶלְך ֲאִחיֶה֙ם ר ֶ ׁ֣שֲא‬
‫ָה ַ֣רג אֹוָ֔תם ְוַע֙ל ַּבֲעֵ֣לי ְׁשֶ֔כם ֲאֶׁשר־ִחְּז֥קּו ֶאת־ָי ָ֖דיו ַלֲהֹ֥רג ֶאת־ֶא ָ ֽחיו‬
Não possuirás o que Quemosh, teu deus, te der para possuir? Então, quem quer
que Yahweh, nosso Deus, tenha possuído diante de nós, nós possuiremos.

Não apenas o poder da divindade nacional foi concebido para ser primor-
dial em sua própria terra: todos os habitantes de um país tinham o dever de
adorá-lo. Assim, Davi reclama a Saul que ele havia sido expulso de sua própria
terra e forçado a abandonar o culto a Yahweh pelo serviço de outros deuses:

‫ְוַעָּ֗תה ִֽיְׁש ַ ֽמע־ָנ֙א ֲאֹד ִ֣ני ַהֶּ֔מֶלְך ֵ֖את ִּדְב ֵ֣רי ַעְבּ֑דֹו ִאם־ ְיהָ֞וה ֱה ִֽסיְתָ֥ך ִב ֙י ָי ַ֣רח‬
‫ִמ ְנָ֔חה ְו ִ֣אם׀ ְּב ֵ֣ני ָהָאָ֗דם ֲארּו ִ֥רים ֵה֙ם ִלְפ ֵ֣ני ְיהָ֔וה ִ ּֽכי־ֵג ְרׁ֣שּו ִני ַהּ֗יֹום‬
‫מר ֵ֥לְך ֲעֹ֖בד ֱאֹל ִ֥הים ֲאֵח ִֽרים‬ ֹ ֔ ‫׃ֵמִהְסַּתֵּ֜פַח ְּבַנֲחַ֤לת ְיהָו֙ה ֵלא‬
Ouve, pois, agora, te rogo, ó rei, meu senhor, as palavras de teu servo: se é o
SENHOR que te incita contra mim, aceite ele a oferta de manjares; porém,
se são os filhos dos homens, malditos sejam perante o SENHOR; pois eles
me expulsaram hoje, para que eu não tenha parte na herança do SENHOR,
como que dizendo: Vai, serve a outros deuses. (1 Samuel 26.19)

Assim, a soberania e o interesse das divindades nacionais eram popular-


mente considerados contrários aos que vigoravam além das fronteiras de suas
próprias terras.
Assim como Israel explicou os seus reveses nacionais recorrendo à ira
de Yahweh contra o seu povo, em Moabe ocorre o mesmo, como aprendemos
na leitura da Estela Moabita. No registro da estela, a sujeição de Moabe a
Israel é representada como o resultado da ira de Quemosh contra o seu povo.
Quando, porém, essa ira foi apaziguada, Quemosh restaurou a Moabe as suas
províncias perdidas por intermédio de Messa. Os moabitas sem dúvida consi-
deravam o poder de seu deus superior ao poder de Yahweh.9

8
Há claramente um erro no texto aqui; Milcom, e não Quemosh, era o deus dos amoni-
tas; ver 1 Reis 9.7,33; 2 Reis 23.13; Jeremias 48.7,13,46; Números 21.29, e a inscrição
de Mesha, onde Quemosh é sempre mencionado como o deus de Moabe.
9
Veja a descrição da Pedra Moabita nas Notas Guia do Texto Hebraico do Livro de
Samuel.
Vida após a Morte | 19

Apontaremos duas analogias adicionais entre Yahweh e as divindades


semíticas vizinhas. A primeira delas é que certos modos antiéticos e ininteli-
gíveis aparecem em Yahweh, como seria de se esperar de um deus nacional;
pois o deus nacional é uma personificação do gênio de um povo, a personifi-
cação de suas virtudes e de seus vícios em uma escala heróica. Assim, a ira
do Senhor é, muitas vezes, ininteligível. Ela operou, por exemplo, quando
Uzá foi destruído porque deu um passo à frente para impedir que a arca caís-
se na eira de Nacon (2 Samuel 6.6,7). Ela se manifestou igualmente contra
os homens de Beth-Shemesh que olharam a arca com muita curiosidade
(1 Samuel 6.19). Davi podia imaginar que a inimizade imerecida nutrida
contra ele por Saul era decorrente do incitamento desinteressado de Yahweh
(1 Samuel 26.19), o qual também o moveu a fazer o censo registrado em
2 Samuel 24. Não encontro dificuldade em atribuir a Yahweh uma ira apa-
rentemente irracional, uma vez que o historiador representa o Senhor como
responsável por fazer Davi contar o povo, para em seguida punir o povo
pelo pecado que ele havia causado. É digno de nota que o Cronista, ao narrar
o mesmo evento séculos depois, ele atribui essa ação não a Yahweh, mas
a Satanás:

‫׃ַו ַ ּֽיֲעֹ֥מד ָׂשָ֖טן ַעל־ ׅיְׂשָרֵ֑אל ַוָּ֙יֶס֙ת ֶאת־ָּד ִ֔ויד ִלְמ ֖נֹות ֶאת־ ׅיְׂשָר ֵ ֽאל‬
E Satanás se levantou contra Israel e levou Davi a numerar Israel.
(1 Crônicas 21.1)

Assim, a ira de Yahweh em tempos pré-proféticos não era necessaria-


mente concebida como um resultado do pecado de Israel: ela poderia surgir de
outras causas. Mas essa concepção imperfeita da ira divina não é reconhecida
pelos profetas. Para eles, a ira do Senhor nunca é inexplicável; pois é sempre
eticamente condicionada e acesa pelo pecado da nação.
A próxima analogia entre a concepção de Yahweh e a dos deuses das
nações pagãs é que, como um deus nacional, os seus interesses estavam abso-
lutamente identificados com os de sua nação. Ainda que a divindade ficasse
temporariamente alienada, ela nunca poderia abandonar o seu povo. Qualquer
que diga a respeito dessa possibilidade, comete não apenas um ato de blasfê-
mia, mas é louco. Tal era a visão popular em Israel no século VIII a.C. e até
em um período mais tardio.
Consequentemente, as reviravoltas que Israel viveu quando caiu nas
mãos das nações vizinhas foram para as massas, provas que Yahweh teria
20 | Vida após a Morte

abandonado temporariamente a sua terra. Na perspectiva dos profetas, porém,


elas eram evidências da disciplina com a qual Yahweh estava educando o
seu povo. No caso das religiões puramente pagãs, os desastres externos en-
volviam o povo e o seu deus na mesma humilhação e, finalmente, na mesma
destruição, nas mesmas catástrofes que se mostraram fatais para os deuses
pagãos diante dos quais Yahweh vindicava a sua soberania sobre a terra.
Consideremos agora as principais deficiências da concepção de Yahweh
dos tempos pré-proféticos. Essas deficiências marcam quase todo o perío-
do em que a fé de Israel não passava de uma crença monolátrica, antes de
se tornar uma verdadeira crença monoteísta. Nesse período, os israelitas
devem ser claramente vistos como descendentes de pagãos que sobrevive-
ram nos domínios destruídos pelos Javistas, processo fundamental para a
compreensão da concepção do povo por Yahweh. Essas ideias formaram as
bases da grande controvérsia do Senhor contra Israel. Nesta controvérsia,
o Senhor manifesta de forma cada vez mais clara a sua vontade e propósi-
to, que são direcionados para o enriquecimento espiritual de seu povo. Os
deuses pagãos sempre permanecem no mesmo nível moral de seus adora-
dores, os quais estão destituídos de poder para aprofundar e desenvolver o
seu caráter. Servir corretamente ao Senhor envolveu um esforço espiritual e
um sacrifício pessoal e, consequentemente, isso levou ao desenvolvimento
da justiça.
O povo mal havia atingido um certo nível religioso quando os mensa-
geiros do Senhor os exortaram a chegarem a alturas mais elevadas na vida
e no pensamento, níveis mais elevados do que eles tinham até ali. Assim,
uma a uma, as falsas visões associadas ao Senhor em Israel foram expulsas
no curso de sua educação divina. Por isso, concluímos que a superioridade
essencial do Javismo dada às religiões semíticas vizinhas residia não em seu
código moral, ou no fato de que ela era inquestionavelmente superior, mas
no caráter justo de Yahweh, que foi progressivamente revelado a seus ser-
vos. Agora, abordaremos algumas das principais características do Javismo
em seu primeiro estágio, quando ele era monolátrico; isto é, quando ele era
a verdadeira religião de Israel que afirmava: “Não terás outros deuses além
de mim”. Abordaremos brevemente no próximo estágio quando a religião se
tornou monoteísta, e o seu ensino passou a ser: “Não existem outros deuses
além de mim”.
Vida após a Morte | 21

II) Período Monoteísta do Javismo

Esse desenvolvimento aparece nos profetas dos séculos VIII e VII a.C. Es-
ses profetas não eram fundadores da religião, mas reformadores no verdadeiro
sentido do termo. A verdadeira reforma, embora retorne às crenças anteriores,
também é progressiva. Os profetas voltaram ao antigo pensamento essencial-
mente mosaico de que o vínculo existente entre Yahweh e Israel fôra resultado
de um ato livre do primeiro, atestado por sua libertação do Egito. Esse víncu-
lo passou a ser considerado popularmente por Israel, por influência cananeia,
como um de acordo com o qual deus e o seu povo se possuíam mutuamente e
não podiam existir isoladamente. Os profetas ensinaram que a relação de Israel
com o Senhor era eticamente condicionada: Israel havia sido escolhido para
cumprir os propósitos morais do Senhor. Caso Israel seja infiel, a sua proxi-
midade com o Senhor provocará um castigo proporcionalmente mais severo.
Se a sua desobediência se provar irremediável, então o Senhor deve destruir a
nação, pois a justiça é a medida de todas as coisas, e até os impérios do mundo
seguem os seus decretos. Como agente do Senhor, a Assíria destruirá Israel.
Embora fossem os pregadores da destruição da nação de Israel, os pro-
fetas se tornaram também os salvadores de sua religião. Através de sua co-
munhão viva com Deus, eles fizeram saber, em termos que nunca poderiam
ser esquecidos, que o Senhor perseguiu os seus próprios propósitos justos
independentemente de Israel. Assim, o Javismo não pereceu com a nação e
a verdadeira religião sobreviveu à destruição do Estado. Na religião assim
enfraquecida por causa das limitações nacionais, o indivíduo se tornou a uni-
dade religiosa e foi levado à comunhão imediata com Deus. Dessa maneira, o
caminho foi preparado para o advento do cristianismo.
A partir do período do exílio, existem dois desenvolvimentos paralelos do
monoteísmo. No desenvolvimento mais verdadeiro e mais nobre, como apare-
ce em Jeremias e em seus sucessores espirituais, o monoteísmo é uma doutrina
viva que molda os ensinamentos de seus adeptos sobre os deveres e destinos
religiosos, não apenas de Israel, mas também das nações. No desenvolvimento
paralelo iniciado por Ezequiel, o monoteísmo é uma doutrina viva e frutífera
para Israel, mas não para as nações. As outras nações estão absolutamente ex-
cluídas do escopo legítimo de suas bênçãos. Para elas, o monoteísmo tornou-se
um dogma sem vida. Uma concepção tão falsa da relação de Yahweh com as
nações em tempo oportuno reagiu ao monoteísmo judaico e explica em grande
medida a sua subsequente esterilidade.
22 | Vida após a Morte

Ao estudar uma grande religião, o investigador deve procurar traçar natu-


ralmente uma conexão orgânica entre as suas concepções centrais e as partes
mais remotas de seu sistema. Ele espera encontrar um certo grau de coerência
lógica entre todas as suas partes. E em suas expectativas, ele não se decepciona
ao lidar com as religiões como o cristianismo, o maometismo ou o budismo, pois
nelas a escatologia, ou o ensino sobre a condição final do homem e do mundo,
segue principalmente as doutrinas fundamentais dessas religiões. Quem estuda
escatologia não deve abordar a religião primitiva de Israel de forma desconec-
tada com tal expectativa; pois, embora exista uma conexão orgânica entre a sua
teologia e a escatologia da nação como um todo, essa conexão não se estende à
escatologia israelita individual. A escatologia do indivíduo no início de Israel
não é apenas totalmente independente do Javismo, mas na verdade perma-
nece em antagonismo implícito – um antagonismo que se torna explícito e
inconciliável nos desenvolvimentos subsequentes do Javismo, e que resulta no
triunfo final deste último. No final deste conflito, o Javismo terá desenvolvido
uma escatologia do indivíduo mais ou menos consistente com as suas próprias
concepções essenciais. Portanto, é apenas em relação à nação que se pode dizer
que o Javismo possuía uma escatologia definida até o retorno do exílio.
A explanação desse defeito na religião primitiva de Israel não está lon-
ge de ser pesquisada. O domínio de Yahweh, por ser tão circunscrito, não se
preocupava com nenhuma existência futura do homem e, portanto, não pos-
suía escatologia do indivíduo. Por conseguinte, devemos procurar em outro
lugar essa escatologia.
Trataremos da escatologia do Antigo Testamento sob três aspectos:

(i.) A escatologia do indivíduo;


(ii.) A escatologia da nação,10 isto é Israel;
(iii.) A síntese dessas duas escatologias no século IV a.C.

(i.) ESCATOLOGIA DO INDIVÍDUO

As ideias que prevaleciam nos tempos pré-mosaicos a respeito da vida


futura, e que vigoravam em algum grau até o século II a.C., eram em muitos

10
Como Israel no curso da história necessariamente entra em relações com os poderes
dos gentios, os destinos finais desses últimos são naturalmente tratados pelos escritores
proféticos.
Vida após a Morte | 23

aspectos comuns a Israel em comparação às outras nações semíticas. Natural-


mente, essas ideias não foram o resultado de uma revelação especial dada a Is-
rael, mas eram supérstites da relação entre Israel e o paganismo semítico. De
acordo com Robertson Smith, Stade, Schwally, Duhm, Budde, Marti, Lods e
outros estudiosos, essas ideias pertencem ao que é conhecido como culto aos
antepassados. Antes da legislação de Moisés, esta fase da religião dominava
em grande parte a vida dos israelitas. Mas o Javismo, desde o início, esteve
implicitamente envolvido em conflitos irreconciliáveis. Por vários séculos,
no entanto, muitos dos princípios e usos desse culto não foram afetados pelo
Javismo; pois, como já vimos, o Javismo primitivo não tinha escatologia do
indivíduo e se preocupava apenas com a existência da nação. Assim, o indi-
víduo foi deixado sob suas crenças pagãs hereditárias, e essas podem ser mas
bem interpretadas como parte integrante do culto aos antepassados.11
De acordo com essa crença, os mortos não eram considerados mortos,
mas, em certo sentido, eles viviam e compartilhavam todas suas vicissitudes
com a sua posteridade, possuindo poderes sobre-humanos para beneficiar ou
ferir alguém. Com o objetivo de manipular esses poderes, os vivos ofereciam
sacrifícios. Por esses sacrifícios, a vitalidade dos mortos era preservada, e a
honra deles no mundo seguinte era mantida. Um homem fazia sacrifícios na-
turalmente a seus próprios antepassados: os ancestrais que partiram e os seus
descendentes vivos formavam uma família. Daremos agora algumas das evi-
dências para a existência de tais crenças em Israel, sob três tópicos.
I. Os antepassados ou suas imagens, os deuses da casa, ou seja, os te-
raphim, eram honrados com sacrifícios, e o direito de oferecer esses
sacrifícios era restrito a um filho dos que partiram.

11
Conferir Schwally, Das Leben nach dem Tode, capítulo 1 “Der alte Glaube,” p. 5-74,
e Stade, Gesch. 1.387-427, a quem o presente escritor é imensamente grato por esse
assunto; Robertson Smith, Rel. Sem. 2, 1894; Lods, La Croyance & la vie future et le
culte des morts dans l’antiq. Isr. (1906), 2 vols., para uma declaração muito completa
da evidência. Hastings, Ency. of Religion 1.444-50 (artigo escrito por G. Margoliouth).
Marti, Gesch. der Israel. Religion, 22-26, 40-43, 47-49, 193; Budde sobre Juízes 9.37,
17.5; Holzinger sobre Gênesis 31, 35.8-14, 37.29-34, 38.30, e apêndice sobre a p. 269;
Duhm sobre Jeremias 31.15; Wildeboer sobre Eclesiastes 12.7; Nowack sobre Oseias
34. Essa visão foi recentemente criticada por Frey, Tod, Seelenglaube und Seelenkult
im alien Israel, 1898, mas no todo sem sucesso. Ele argumenta que, enquanto um
Seelenglaube existia em Israel, não é verdade que esse Seelenglaube tenha sido de-
senvolvido em Seelenkult. Uma linha semelhante é usada por Grüneisen em seu Der
Ahnenkultus, 1900; e por Kautzsch (Hastings’ Dictionary of the Bible 5, p. 614-615).
24 | Vida após a Morte

II. Os usos primitivos do luto em Israel são parte integrante do culto aos
antepassados.
III. As crenças a respeito dos que partiram são constituintes essenciais
do mesmo culto.

I. Nossa primeira tese, de que os ancestrais ou suas imagens, os tera-


phim, foram homenageados com sacrifícios realizados por um filho do faleci-
do, pode ser melhor tratada sob os seguintes tópicos:

(i.) Os teraphim ou imagens dos ancestrais eram os objeto de culto fa-


miliar;
(ii.) Esses sacrifícios certamente foram oferecidos;
(iii.) O direito de oferecer tais sacrifícios era limitado a um filho do fale-
cido, ou seja, um filho de seu próprio corpo, gerado ou adotado;
(iv.) Como um homem pode morrer sem ter filhos próprios ou adotados,
as necessidades do culto aos antepassados deram origem à lei do
levirato, de acordo com a qual se tornou dever de um irmão sobre-
vivente casar com a viúva sem filhos da família do falecido, a fim
de criar uma descendência masculina para o seu irmão pelo desem-
penho dos usos sacrificiais devidos a seu irmão falecido;
(v.) A família formou uma corporação sacramentalmente unida.

(i.) Primeiro, então, em relação aos teraphim. Os teraphim mencionados


em Gênesis 35.4 eram claramente deuses.12 O seu caráter sagrado é reconhe-
cido por seus ancestrais funerários, sob uma árvore sagrada, o terebinto. Eles
poderiam ser enterrados, mas não profanados, caso contrário, tal profanação
poderia provocar os poderes que representavam. Na passagem de Gênesis
35.4, eles são chamados de “deuses estranhos”, e a sua adoração é considera-
da incompatível com a do Senhor. Uma menção anterior disso é encontrada
em Gênesis 31.19, 30-35, em que Raquel rouba os teraphim de seu pai. Além
disso, eles eram deuses domésticos. Assim, a partir de 1 Samuel 19.13,16,
segue-se que eles tinham uma forma humana e também faziam parte dos bens

12
Stade (Gesch. 1. 467) e Schwally (Leben nach dem Tode, 35-37). A afirmação de que
esses teraphim são imagens de ancestrais falecidos é praticamente aceita por Budde
sobre Juízes 17.5; Holzinger sobre Gênesis 31.17; Nowack sobre Oseias 3.4, e em seu
Hebräische Archäologie, 2.23; mas disputado por Frey, 102-112; Gruneisen, op. cit.,
p. 191 se seguintes. Mas veja a questão discutida em Lods, op. cit. 1.231-236.
Vida após a Morte | 25

habituais de uma família abastada. Em seguida, provavelmente, com Stade


e Schwally afirmam, eles eram identificados com as imagens dos ancestrais;
pois eles eram consultados como oráculos. Assim, eles estão relacionados
com os ‫ ָהא ֹ֣ב ֹות‬e ‫הּי ְּדע ֹׅנים‬
ּ ַ ֠ em 2 Reis 23.24. Em Êxodo 21.2-6, temos uma pas-
sagem que atesta a adoração a esses deuses. De acordo com esta seção, havia
um deus perto da porta em casas particulares, diante de quem o escravo que
desejava entrar na família de um senhor tinha que ser trazido:

‫ְוִהִּגיׁ֤שֹו ֲאֹדָני ֙ו ֶאל־ָ֣הֱאֹלִ֔הים ְוִהִּגיׁשֹ֙ו ֶאל־ַהֶּ֔דֶלת ֖אֹו ֶאל־ַהְּמזּו ָ֑זה ְוָרַ֙צע‬


‫׃ֲאֹד ָ֤ניו ֶאת־ָאְזנֹ֙ו ַּבַּמ ְרֵ֔צַע ַוֲעָב ֖דֹו ְלֹע ָ ֽלם‬
Então, o seu senhor o levará aos juízes, e o fará chegar à porta ou à ombrei-
ra, e o seu senhor lhe furará a orelha com uma sovela; e ele o servirá para
sempre. (Êxodo 21.6)

Originalmente, esse era o processo de admissão no culto da família, com


todas as suas obrigações e privilégios. É muito errado tomar essa porta como
a do Templo, como fizeram os intérpretes mais antigos, pois essa ação sacrifi-
cial que fazia do escravo um membro da família de seu mestre não teria senti-
do a menos que a porta, na qual seu ouvido fosse perfurado pelo furador, fosse
a da casa de seu mestre.13 No que diz respeito ao uso da palavra “elohim”, ou
deus, aqui, devemos lembrar que os mortos quando invocados eram denomi-
nados elohim (ver: 1 Samuel 28.13).
Em Deuteronômio 15.12-18, essa cerimônia pagã é subtraída de todo o
seu significado religioso primitivo pela omissão do termo “deus”, e recebe um
caráter totalmente secular. Mais tarde, esses teraphim eram as imagens de Javé
(conferir Juízes 17.5 e 18.17-19; ver também 1 Samuel 19.13-16); pois dificil-
mente podemos considerar possível que Davi, um seguidor fiel da religião do
Senhor, tivesse adorado os teraphim se eles fossem deuses domésticos.

13
Schwally (p. 37 e seguintes), que, com razão, rejeita a visão mais antiga, que traz o vocá-
bulo ‫ הׇ ֱאל ֹׅהים‬a que ele se refira aos juízes (versão revisada na margem). Frey, p. 104-110,
discorda de ambas as interpretações, e propõe que ‫ אלֶ־ ֱאלֹ ִ֣הים‬em termos de prestar ju-
ramento parece ser claramente impossível. Suas palavras são (p. 109): “Liegt nichts im
Wege, die Bedeutung der Handlung nur in dem Heften des Ohres an den Thürpfosten
zu sehen, während das Bringen ‫אלֶ־אֱ לֹ ִ֣הים‬, wodurch der Handlung nur ein eidlicher
Character aufgeprägt wird, bei Wiederholung dieser Verordnung, weil nicht konstituti-
ves Merkmal, unbeschadet wegfallen konnte.” A omissão referida nas palavras finais é
encontrada em Deuteronômio 15.12-18.
26 | Vida após a Morte

Em Oseias 3.4 e Zacarias 10.2, eles mantem o caráter original dos tera-
phim como imagens de antepassados, ou como imagens de Yahweh, podendo
ser utilizados como um Éfode na consulta à Deidade. Eles são consultados por
Nabucodonosor em Ezequiel 21.26. Logo, esse culto aos deuses domésticos
(Dillmann, Alttest. Theologie, p. 90, 98) foi firmemente estabelecido na fa-
mília de Jacó antes dela descer ao Egito, e deve ter sido observado por Israel
durante toda a sua estadia no Egito, visto que floresceu entre o povo após o
seu estabelecimento em Canaã, e prevaleceu até o período mais recente da
Monarquia.

(ii.) SACRIFÍCIOS OFERECIDOS AOS MORTOS

O objetivo desses sacrifícios está evidente em Deuteronômio 26.14:

‫ְּבָטֵ֔מא ְוֹלא־ָנַ֥תִּתי ִמ ֶ ּ֖מּנּו ְלֵ֑מת ָׁשַ֗מְעִּתי ְּבקֹו֙ל ְיה ָ֣וה ֱאֹלָ֔הי ָעִׂ֕שיִתי ְּכֹ֖כל‬
‫ֲא ֶ ׁ֥שר ִצִּוי ָ ֽת ִני‬
Dos dízimos não comi no meu luto e deles nada tirei estando imundo, nem
deles dei para a casa de algum morto; obedeci à voz do SENHOR, meu
Deus; segundo tudo o que me ordenaste, tenho feito. (Deuteronômio 26.14)

Ver ainda Jeremias 16.7. Essa modalidade de adoração provavelmente


está implícita em Isaías 8.19, 19.3, textos que aludem à necessidade de um
homem que desejasse consultar os mortos, de apresentar uma oferta. Eles
são mencionados em Ezequiel 14.17: “Não faça luto pelos mortos, prenda a
sua cabeça sobre você, coloque os sapatos nos pés, e não cubra os lábios, e
não coma o pão do luto”.14 Veja também 24.22; 2 Crônicas 16.14 (ver ainda
Schwally, 16, 24, 48) e 2 Crônicas 21.19. O objetivo desses sacrifícios era dar
sustento aos mortos e conquistar seu favor.15

14
Aqui, eu acompanho Bertholet e Toy na emenda ‫ים‬viêָ‫ ֲאנ‬em ‫֜אֹו ֗ ִנים‬. Assim, em vez de
“pão dos homens”, expressão sem sentido, obtemos “pão do luto” (conferir Oseias 9.4).
Esse versículo se refere a quatro dos usos do luto: descobrir a cabeça para espalhá-la
com cinzas, tirar os sapatos, cobrir a barba e comer o pão da oferta aos mortos.
15
Ver Schwally, p. 21-25; Stade, Gesch. 1.389, p. 390; Nowack, Arch. 1.192-198; Wel-
lhausen, Isr. v. jüd. Gesch.3 100, 101, 1899; Benzinger, Hebräische Archäologie, 164-
167; Lods, op. cit. 1.160-174; 2.83-85; Hastings, Ency. 1.446. Assim como no antigo
semita, também na religião grega, foram feitas libações para ganhar ou favor dos que
Vida após a Morte | 27

Mais tarde, esse objeto foi perdido de vista e esses sacrifícios passaram a
ser considerados meros banquetes fúnebres. Mas isso não parece ter ocorrido
nem no segundo século a.C. Sacrifícios aos mortos parecem ser elogiados em
Sirácida 7.33: “De um morto, não esconda a graça”;16 Tobias 4.17, “Derrame
teu pão na tumba dos justos”. Por outro lado, esse costume é ridiculariza-
do em Sirácida 30.18,19; Epístola de Jeremias 31.32; Sabedoria 14.15, 19.3;
Oráculos Sibilinos, 8.382-384. Os sacrifícios aos mortos são referidos em Ju-
bileus 22.17 como predominantes entre os gentios.

partiram (conferir Euripides, Or. 119, 789; El. 676-683; Herc. Fur. 491-494; Sófocles,
El. 454. Ver: Rohde, Psyche,2 1.242, 243; 2.250). Mas o valor destes é questionado em
Eur., Troad. 1248-1250, onde Hector declara que ricas ofertas na sepultura não prestam
serviço aos mortos, mas apenas ministram à vaidade dos vivos:
δοκῶ δὲ τοῖς θανοῦσι διαφέρειν βραχύ,
εἰ πλουσίων τις τεύξεται κτερισμάτων:
κενὸν δὲ γαύρωμ᾽ ἐστὶ τῶν ζώντων τόδε.
Essas linhas representam a visão real de Eurípides. Mas ainda mais importante do
que essas analogias gregas são os usos semelhantes que prevaleciam na Babilônia.
As estreitas afinidades existentes entre os primeiros hebraicos e as visões babilônicas
dos que partiram estão fora do alcance do questionamento. O leito do enterro estava
cheio de vários tipos de especiarias, que eram da natureza de oferendas (2 Crônicas
16.14). Oferendas de comida e água foram apresentadas aos que partiram, não ape-
nas no momento do enterro, mas depois, em certas épocas específicas, pelos seus
parentes sobreviventes. O conforto dos que partiam dependia da recepção dos ritos e
ofertas de sepultamento adequados. Se eles fossem privados dos rituais de enterro, as
suas sombras eram forçadas a vagar sem descanso. Qualquer mutilação do cadáver
afetava a sombra de quem que partiu. Além disso, se após o enterro o corpo fosse
desenterrado, nenhum alimento poderia ser oferecido ou sacrificado à sombra. Nesse
caso, não apenas a sombra desenterrada sofria, mas também os sobreviventes; pois a
sombra assumia a forma de um demônio e afligia os vivos. Além disso, as sombras
possuíam grande poder. Eles poderiam dirigir os assuntos dos vivos. Para ganhar o
seu favor, ofertas e orações foram feitas a eles. Eles foram consultados sobre o fu-
turo. Por isso, a sua morada é às vezes chamada Shuâlu, ou “o lugar dos oráculos”
(Jastrow, p. 561, nega a explicação de Jeremias como o “local da decisão” – ver tam-
bém a p. 559). Dizem que eles moravam em Ekur, onde os deuses deveriam habitar.
Assim, os que partiram eram trazidos para uma associação estreita com os deuses. De
fato, alguns dos mortos receberam a honra da deificação. Em Israel, os que partiram
não tinham associação com quaisquer deuses.Eles foram, no entanto, tratados como
deuses por aqueles que os consultaram. Veja: Jeremias, Bab-Assyr. Vorstellungen
vom Leben nach dem Tode, p. 53-58; Jastrow, Religion of Babylonia and Assyria,
511, 512, 568, 582, 598, 599.
16
ἐπὶ νεκρῷ μὴ ἀποκωλύσῃς χάριν.
28 | Vida após a Morte

(iii.) O DIREITO DE OFERECER TAIS SACRIFÍCIOS ERA LIMITADO


AO FILHO DO FALECIDO

O culto aos antepassados permite explicar a importância do sexo mascu-


lino.17 A honra e o bem-estar dos mortos dependiam da adoração e dos sacri-
fícios oferecidos por seus descendentes. De acordo com essa crença, mesmo
no pós-vida, os homens podiam ser punidos pelo Senhor pela destruição de
sua posteridade (Êxodo 20.5; 34.7; Números 14.18; Deuteronômio 5.9), pois
com a destruição destes últimos, os sacrifícios deixaram de ser feitos. Nesta
mesma direção, um homem que destruía seu inimigo e todos os seus filhos,
fazia-o com o objetivo de privar do respeito e do culto aquele que estava no
mundo inferior.
Já observamos que os sacrifícios poderiam ser oferecidos apenas pelo
filho. Mas como não é raro um homem não ter filhos, essa dificuldade foi su-
perada pela adoção. Com a adoção, um homem passava de sua própria família
ou clã para o pai que o adotara e, assim, assumia todas as suas obrigações
inerentes. Até um escravo poderia ser adotado. Em Gênesis 15.2,3, Eliezer é
considerado o herdeiro de Abraão por ausência de herdeiro do sexo mascu-
lino. Presume-se, com Stade (Gesch. Isr. 1.391) e Holzinger (sobre Gênesis
15.2), que ele já havia sido adotado no culto da família. Assim, o direito à
herança é derivado, em princípio, do culto aos antepassados.18 Somente o filho

17
Além de Schwally e Stade, ver: Benzinger, Arch. p. 354-356; Nowack, Arch. 1.348-1350.
18
O dever da vingança do sangue pode ser atribuído originalmente à adoração dos ante-
passados. Essa obrigação estava limitada na religião grega a um corpo de relações de
três gerações (uma ἀγχιστεία), que na linha masculina relacionava o homem ao pai, avô
e bisavô. Esse mesmo esquema que normatizava o direito de sucessão. Assim como o
direito à sucessão a uma herança, a obrigação de vingar o sangue deveria respeitar as
três gerações. Nos primeiros tempos, a alma dos mortos só podia ser apaziguada pelo
sangue do assassino; mas subsequentemente, mesmo antes da era homérica, quando
a adoração dos antepassados passou em grande parte para o segundo plano, surgiu o
costume de receber compensação ou dinheiro em compensação pelo sangue derrama-
do. Nesse caso, o assunto se tornou uma transação entre os vivos, e não se leva mais
em consideração os mortos. Nos séculos imediatamente posteriores a Hesíodo, quando
houve um grande reavivamento da adoração dos mortos, o parente mais próximo era
obrigado a vingar os mortos. Sendo membro de uma comunidade organizada, ele não
era autorizado a fazê-lo com sua própria mão, mas poderia agir contra o assassino
perante um tribunal de justiça, pois o Estado se recusava a autorizar um resgate em di-
nheiro. Se o parente em questão falhava nesse dever por negligência, a alma dos mortos
o visitava com sua ira, pois tal alma não descansava até que os erros fossem vingados.

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