Curso «Filha de Israel» Locus Mariologicus Instagram: @locusmariologicus
Centro de Pesquisa e Formação email: info@locusmariologicus.org AULA 1 «A interpretação da Bíblia na Igreja» Sumário 1 - Introdução 2 - Métodos adequados para a interpretação da Sagrada Escritura 3 - Método histórico-crítico 4 - A Tradição 5 - Problemas atuais na Exegese Mariológica Brasileira - Teologia da Libertação - Fundamentalismo 2 - Resolução: os sentidos da Escritura Inspirada 1 - Introdução A interpretação de textos bíblicos continua a suscitar vivo interesse em nossos dias, provocando discussões que, nos últimos anos, também ganharam novas dimensões. O problema da interpretação da Bíblia não é uma invenção moderna, como às vezes se gostaria de acreditar. A Bíblia atesta que a sua interpretação apresenta várias dificuldades. Ao lado de textos evidentes encontramos passagens obscuras. Lendo certas passagens de Jeremias, Daniel se perguntou por muito tempo sobre seu significado (Dn 9,2 «no primeiro ano do reinado, eu, Daniel, lendo as Escrituras, tive minha atenção despertada para o fato de que o número de anos a passar-se, segundo a palavra do Senhor ao profeta Jeremias, sobre a desolação de Jerusalém, seria de setenta anos»). 1 - Introdução Segundo os Atos dos Apóstolos, um etíope do primeiro século se viu na mesma situação em relação a uma passagem do livro de Isaías (Is 53,7-8 «Foi maltratado e resignou-se; não abriu a boca, como um cordeiro que se conduz ao matadouro, e uma ovelha muda nas mãos do tosquiador. Ele não abriu a boca. Por um iníquo julgamento foi arrebatado. Quem pensou em defender sua causa, quando foi suprimido da terra dos vivos, morto pelo pecado de meu povo?»), reconhecendo que precisava de um intérprete (At 8,30-35 «Filipe aproximou-se e ouviu que o eunuco lia o profeta Isaías e perguntou-lhe: “Porventura entendes o que estás lendo?” Respondeu-lhe: “Como é que posso, se não há alguém que me explique?”. E rogou a Filipe que subisse e se sentasse junto dele. A passagem da Escritura, que ia lendo, era esta: Como ovelha, foi levado ao matadouro; e, como cordeiro mudo diante do que o tosquia, ele não abriu a sua boca. Na sua humilhação foi consumado o seu julgamento. Quem poderá contar a sua descendência? Pois a sua vida foi tirada da terra. O eunuco disse a Filipe: “Rogo-te que me digas de quem disse isto o profeta: de si mesmo ou de outrem?”. Começou então Filipe a falar, e, principiando por essa passagem da Escritura, anunciou-lhe Jesus»). 1 - Introdução A segunda carta de Pedro declara que "nenhum escrito profético é passível de explicação particular" (2 Pd 1,20 «Antes de tudo, sabei que nenhuma profecia da Escritura é de interpretação pessoal») e observa, por outro lado, que as cartas do apóstolo Paulo contêm «nelas [...] algumas passagens difíceis de entender, cujo sentido os espíritos ignorantes ou pouco fortalecidos deturpam, para a sua própria ruína, como o fazem também com as demais Escrituras» (2 Pd 3,16). O problema é, portanto, antigo, mas com o passar do tempo acentuou-se: vinte ou trinta séculos separam agora o leitor dos fatos e ditos referidos na Bíblia, e isso não deixa de suscitar várias dificuldades. Por outro lado, devido ao progresso das ciências humanas, os problemas de interpretação tornaram-se mais complexos nos tempos modernos. Alguns métodos científicos foram implementados para o estudo de textos da antiguidade. 2 - Métodos adequados para a interpretação da Sagrada Escritura A esta questão, a prudência pastoral da Igreja há muito responde de forma muito reticente, porque muitas vezes os métodos, apesar dos seus elementos positivos, estavam ligados a opiniões opostas à fé cristã. Mas ocorreu uma evolução positiva, marcada por toda uma série de documentos pontifícios, desde a encíclica Providentissimus de Leão XIII (18 de novembro de 1893) até a encíclica Divino afflante Spiritu de Pio XII (30 de setembro de 1943), e foi confirmada a partir da declaração Sancta Mater Ecclesia (21 de abril de 1964) da Pontifícia Comissão Bíblica e sobretudo da Constituição dogmática Dei Verbum do Concílio Vaticano II (18 de novembro de 1965). A fecundidade desta atitude construtiva manifestou-se de forma inegável. Os estudos bíblicos ganharam um impulso considerável na Igreja Católica e seu valor científico tem sido cada vez mais reconhecido entre os estudiosos e os fiéis. O diálogo ecumênico foi consideravelmente facilitado. A influência da Bíblia na teologia se aprofundou e contribuiu para a renovação teológica. O interesse pela Bíblia tem aumentado entre os católicos, favorecendo o progresso da vida cristã. 2 - Métodos adequados para a interpretação da Sagrada Escritura Todos aqueles que adquiriram uma formação séria neste domínio consideram agora impossível regressar a uma fase de interpretação pré-crítica, que consideram, não sem razão, manifestamente insuficientes. Mas, ao mesmo tempo em que o método científico se tornou mais difundido, o método histórico-crítico, que é aplicado de maneira atual na exegese, inclusive na exegese católica, começou a ser posto em questão. Por um lado, pelo aparecimento de outros métodos e abordagens, e, por outro, pelas críticas de muitos cristãos que o julgam insuficiente do ponto de vista da fé. O método histórico-crítico, particularmente atento, como o próprio nome indica, à evolução histórica dos textos ou tradições ao longo da diacronia - descrição de uma língua ou de uma parte dela ao longo de sua história, com as mudanças que sofreu-, está atualmente em concorrência, em certos meios, com métodos que insistem em uma compreensão sincrônica dos textos -modo em que se encontra a língua em um determinado momento, fazendo um recorte no tempo-, seja sua linguagem, sua composição, seu enredo narrativo ou seu esforço persuasivo. 2 - Métodos adequados para a interpretação da Sagrada Escritura Por outro lado, a preocupação com os métodos diacrônicos de reconstrução do passado é substituída em muitos por uma tendência a interrogar os textos colocando-os nas perspectivas do tempo presente, de ordem filosófica, psicanalítica, sociológica, política entre outros. Este pluralismo de métodos e abordagens é apreciado por alguns como um indício de grande fecundidade do texto bíblico, mas para outros dá a impressão de grande confusão até mesmo recusa da origem divina do texto. Seja real ou aparente, essa confusão oferece novos argumentos aos oponentes da exegese científica. Segundo eles, o conflito de interpretações mostra que não há vantagem em submeter os textos bíblicos às exigências dos métodos científicos, mas que, pelo contrário, muito se perde neles. Sublinham que a exegese científica tem o resultado de provocar perplexidade e dúvidas em inúmeros pontos, até então pacificamente admitidos e que leva alguns exegetas a tomar posições contrárias à fé da Igreja em questões de grande importância, como a concepção virginal de Jesus e os milagres, e mesmo a sua ressurreição e divindade mesmo quando não conduz a tais negações, a exegese científica caracteriza-se, segundo eles, pela sua esterilidade no que diz respeito ao progresso da vida 2 - Métodos adequados para a interpretação da Sagrada Escritura Os opositores da exegese científica acusam que o método histórico-crítico em vez de permitir o acesso mais fácil e seguro às fontes vivas da Palavra de Deus, faz da Bíblia um livro fechado, cuja interpretação é sempre problemática e exige uma competência técnica que a torna um campo reservado a poucos especialistas. A estes se aplica a frase do Evangelho: «Ai de vós, doutores da Lei, que tomastes a chave da ciência, e vós mesmos não entrastes e impedistes aos que vinham para entrar» (Lc 11,52 cf. Mt 23,13). Por isso, os antagonistas do estudo consideram necessário que ao paciente esforço de exegese científica se substitua com abordagens mais simples, consideradas suficientes, ou mesmo, renunciando a qualquer tipo de estudo, a uma leitura da chamado Bíblia espiritual, significando por ela uma leitura guiada unicamente pela inspiração pessoal subjetiva e destinada a nutrir essa inspiração. 2 - Métodos adequados para a interpretação da Sagrada Escritura Alguns buscam na Bíblia sobretudo o Cristo de sua concepção pessoal e a satisfação de sua religiosidade espontânea. Outros afirmam encontrar respostas diretas para qualquer tipo de pergunta, pessoal ou coletiva. Existem numerosas seitas que propõem apenas uma interpretação como verdadeira, da qual afirmam ter tido a revelação. Convém, portanto, considerar seriamente os vários aspectos da situação atual em relação à interpretação bíblica, estar atento às críticas, protestos e aspirações expressas a esse respeito, avaliar as possibilidades abertas pelos novos métodos e abordagens e, finalmente, tentar esclarecer a situação e procurar a orientação que melhor corresponde à missão da exegese mariológica. Este é o objetivo desta lição, queremos indicar os caminhos a seguir para chegar a uma interpretação da Bíblia o mais fiel possível ao seu caráter humano e divino. Não há aqui a pretensão de tomar posição sobre todas as questões concernentes à Bíblia, como, por exemplo, a teologia da inspiração. 2 - Métodos adequados para a interpretação da Sagrada Escritura A inspiração bíblica é o impulso especial e orientado pelo Espírito Santo através do qual os livros do Sagrada Escritura se pode chamar Palavra de Deus (cf. Jo 20,31; 2Tm 3,16; 2Pd 1,19-21; 3,15-16; e também Jr 18,18; Nee 8,1). O que Deus quis dizer está no que foi dito por escritores humanos, autores genuínos e não meros estenógrafos que escreveram sob o ditado de Deus. A inspiração dos 72 livros do Antigo e do Novo Testamento faz parte da ação de Deus que trouxe a Igreja à existência plena. Portanto a Bíblia também pode ser chamada de Livro da Igreja. Propomos examinar aqueles caminhos que podem contribuir efetivamente para demonstrar todas as riquezas contidas nos textos bíblicos, para que a Palavra de Deus se torne cada vez mais o alimento espiritual dos membros de seu povo, fonte, para eles, de uma vida de fé, de esperança e de caridade, como também luz para toda a humanidade. 2 - Métodos adequados para a interpretação da Sagrada Escritura Afirma o Concílio Vaticano II no seu documento sobre a Palavra de Deus Dei Verbum, 21: «A Igreja venerou sempre as divinas Escrituras como venera o Corpo do Senhor, não deixando jamais, sobretudo na sagrada Liturgia, de tomar e distribuir aos fiéis o pão da vida, quer da mesa da palavra de Deus quer da do Corpo de Cristo. Sempre as considerou, e continua a considerar, juntamente com a sagrada Tradição, como regra suprema da sua fé; elas, com efeito, inspiradas como são por Deus, e exaradas por escrito duma vez para sempre, continuam a dar-nos imutavelmente a palavra de Deus, e fazem ouvir a voz do Espírito Santo através das palavras dos profetas e dos Apóstolos. É preciso, pois, que toda a pregação eclesiástica, assim como a religião cristã, seja alimentada e regida pela Sagrada Escritura. Com efeito, nos livros sagrados, o Pai que está nos céus vem amorosamente ao encontro de Seus filhos, a conversar com eles; e é tão grande a força e a virtude da palavra de Deus que se torna o apoio vigoroso da Igreja, solidez da fé para os filhos da Igreja, alimento da alma, fonte pura e perene de vida espiritual. Por isso se devem aplicar por excelência à Sagrada Escritura as palavras: «A palavra de Deus é viva e eficaz» (Heb 4,12), «capaz de edificar e dar a herança a todos os santificados», (At 20,32; cfr. 1 Tess 2,13)» 3 - Método histórico-crítico É o método indispensável para o estudo científico do significado dos textos antigos. Uma vez que a Sagrada Escritura, como «Palavra de Deus em linguagem humana», foi composta por autores humanos em todas as suas partes e em todas as suas fontes, o seu correto entendimento não só admite como legítimo, mas exige, o uso desse método. Os princípios fundamentais do método histórico-crítico em sua forma clássica são os seguintes: a) É um método histórico, não só porque se aplica a textos antigos, no nosso caso aos da Bíblia, e estuda o seu significado histórico, mas também e sobretudo porque procura esclarecer os processos históricos de produção dos textos bíblicos, por vezes processos diacrônicos complicados e de longa duração. Nas diversas etapas de sua produção, os textos da Bíblia foram dirigidos a diferentes categorias de ouvintes ou leitores, que se encontravam em diferentes situações espácio-temporais; b) É um método crítico, pois opera com a ajuda de critérios científicos, o mais objetivos possíveis, em cada uma de suas etapas (da crítica textual ao estudo crítico da edição), de modo a tornar o sentido dos textos bíblicos acessível ao moderno leitor, muitas vezes difícil de entender. c) É um método analítico, que estuda o texto bíblico da mesma forma que qualquer outro texto da antiguidade e o comenta como linguagem humana. No entanto, permite ao exegeta, sobretudo no estudo crítico da edição de textos, compreender melhor o conteúdo da revelação divina. 3 - Método histórico-crítico Que valor deve ser atribuído ao método histórico-crítico? É um método que, usado objetivamente, não implica em si mesmo nenhum a priori. Se o seu uso é acompanhado de tal a priori, isso não se deve ao método em si, mas a opções hermenêuticas que orientam a interpretação e podem ser tendenciosas. Orientado, em seus primórdios, no sentido de crítica das fontes e da história das religiões, o método teve como resultado a abertura de um novo acesso à Bíblia, mostrando que se trata de um conjunto de escritos que, na maioria das vezes, especialmente para o Antigo Testamento, eles não são a criação de um único autor, mas têm uma longa pré-história, inextricavelmente ligada à história de Israel ou da Igreja primitiva. 3 - Método histórico-crítico Anteriormente, a interpretação judaico-cristã da Bíblia não tinha uma consciência clara das condições históricas concretas e diferentes nas quais a Palavra de Deus se enraizou. A comparação da exegese tradicional com uma abordagem científica que, em seus primórdios, deliberadamente se abstraía da fé, e às vezes até se opunha a ela, era certamente dolorosa; mais tarde, porém, revela-se salutar: uma vez liberta dos preconceitos extrínsecos, conduz a uma compreensão mais exata da verdade da Sagrada Escritura. Por esta razão o Concílio Vaticano II afirmou: «Como, porém, Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens e à maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras. Para descobrir a intenção dos hagiógrafos, devem ser tidos também em conta, entre outras coisas, os “géneros literários”. Com efeito, a verdade é proposta e expressa de modos diversos, segundo se trata de géneros históricos, proféticos, poéticos ou outros. 3 - Método histórico-crítico Importa, além disso, que o intérprete busque o sentido que o hagiógrafo em determinadas circunstâncias, segundo as condições do seu tempo e da sua cultura, pretendeu exprimir e de fato exprimiu servindo se os gêneros literários então usados. Com efeito, para entender retamente o que o autor sagrado quis afirmar, deve atender-se convenientemente, quer aos modos nativos de sentir, dizer ou narrar em uso nos tempos do hagiógrafo, quer àqueles que costumavam empregar-se frequentemente nas relações entre os homens de então. Mas, como a Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com o mesmo espírito com que foi escrita, não menos atenção se deve dar, na investigação do recto sentido dos textos sagrados, ao contexto e à unidade de toda a Escritura, tendo em conta a Tradição viva de toda a Igreja e a analogia da fé. Cabe aos exegetas trabalhar, de harmonia com estas regras, por entender e expor mais profundamente o sentido da Escritura, para que, mercê deste estudo de algum modo preparatório, amadureça o juízo da Igreja. Com efeito, tudo quanto diz respeito à interpretação da Escritura, está sujeito ao juízo último da Igreja, que tem o divino mandato e o ministério de guardar e interpretar a palavra de Deus», (Dei Verbum, 12). Em última análise, o objetivo do método histórico-crítico é evidenciar, sobretudo de forma diacrônica, o sentido expresso pelos autores e editores. Com a ajuda de outros métodos e abordagens, abre ao leitor moderno o acesso ao significado do texto bíblico tal como o temos hoje. 4 - A Tradição Os métodos literários, seja o método histórico-crítico ou não, para uma maior atenção à unidade interna dos textos estudados, permanecem insuficientes para a interpretação da Bíblia, pois consideram cada escrito de forma isolada. A Bíblia não se apresenta como uma coleção de textos desprovidos de qualquer relação entre eles, mas como um conjunto de testemunhos da mesma grande Tradição. Para corresponder plenamente ao objeto de seu estudo, a exegese bíblica deve ter em consideração esse fato. Essa é a perspectiva adotada por várias abordagens que se desenvolveram recentemente:
1. A Bíblia como um todo
A exegese interpreta cada texto bíblico à luz do cânon das Escrituras, ou seja, da Bíblia recebida como norma de fé por uma comunidade dos fiéis. Tenta situar cada texto dentro do único desígnio de Deus, a fim de chegar a uma atualização da Escritura para o nosso tempo. 4 - A Tradição Esta perspectiva se coloca justamente contra a valorização exagerada do que se supõe original e primitivo, como se apenas isso fosse autêntico. A Escritura inspirada é o que a Igreja reconheceu como regra de sua fé. A este respeito, pode-se insistir tanto na forma final em que cada um dos livros se encontra atualmente, como no conjunto que constituem o cânone. Um livro só se torna bíblico à luz de todo o cânon. A comunidade dos fiéis é de fato o contexto adequado para a interpretação dos textos canônicos. A fé e o Espírito Santo enriquecem a exegese na comunidade; a autoridade eclesial, exercida ao serviço da comunidade, deve assegurar que a interpretação permaneça fiel à grande Tradição que produziu os textos. 4 - A Tradição Neste sentido, o Concílio Vaticano II afirmou que: «as coisas reveladas por Deus, contidas e manifestadas na Sagrada Escritura, foram escritas por inspiração do Espírito Santo. Com efeito, a santa mãe Igreja, segundo a fé apostólica, considera como santos e canônicos os livros inteiros do Antigo e do Novo Testamento com todas as suas partes, porque, escritos por inspiração do Espírito Santo (cf. Jo 20,31; 2 Tim 3,16; 2 Ped 1,19-21; 3,15-16), têm Deus por autor, e como tais foram confiadas à Igreja. Todavia, para escrever os livros sagrados, Deus escolheu e serviu-se de homens na posse das suas faculdades e capacidades, para que, agindo Ele neles e por eles, pusessem por escrito, como verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo que Ele queria. E assim, como tudo quanto afirmam os autores inspirados ou hagiógrafos deve ser tido como afirmado pelo Espírito Santo, por isso mesmo se deve acreditar que os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus, para nossa salvação, quis que fosse consignada nas sagradas Letras. Por isso, “toda a Escritura é divinamente inspirada e útil para ensinar, para corrigir, para instruir na justiça: para que o homem de Deus seja perfeito, experimentado em todas as obras boas” (cf. Tim 3,7-17)», Dei Verbum, 10. 4 - A Tradição 2. Recurso às tradições interpretativas judaicas O Antigo Testamento tomou a sua forma final no judaísmo dos últimos IV ou V séculos anteriores à era cristã. Este judaísmo foi também o ambiente original do Novo Testamento e da Igreja nascente e como tal de toda a realidade terrena de Maria. Numerosos estudos da história judaica antiga, e em particular a pesquisa desencadeada pelas descobertas de Qumran, destacaram a complexidade do mundo judaico, na terra de Israel e na diáspora, durante esse período. A interpretação da Bíblia originou-se neste mundo. Um dos primeiros registros da interpretação judaica da Bíblia é a tradução grega da Septuaginta (LXX). Os targumim constituem outro testemunho do mesmo esforço, que continua até hoje, acumulando um prodigioso conjunto de procedimentos dos eruditos para a preservação do texto do Antigo Testamento e para a explicação do significado dos 4 - A Tradição Os melhores exegetas cristãos, desde Orígenes a São Jerônimo, sempre tentaram obter com a erudição bíblica judaica uma melhor compreensão das Escrituras. Numerosos exegetas modernos seguem seu exemplo. As antigas tradições judaicas permitem, em particular, conhecer melhor os Setenta (LXX), a Bíblia judaica, que mais tarde se tornou a primeira parte da Bíblia cristã pelo menos durante os primeiros IV séculos da Igreja e no Oriente até aos nossos dias. A literatura judaica extra-canônica, chamada apócrifa ou intertestamentária, abundante e diversificada, é uma fonte importante para a interpretação do Novo Testamento. 4 - A Tradição 3. A história dos efeitos do texto Essa abordagem se baseia em dois princípios: a) um texto só se torna obra literária quando encontra leitores que lhe dão vida apropriando-se dele; b) a apropriação do texto, que pode ser individual ou comunitária e se concretiza em diversos campos (literário, artístico, teológico, ascético e místico), contribui para uma melhor compreensão do texto. 4 - A Tradição 4 - Relações entre o texto e seus leitores. A exegese bíblica só poderia se beneficiar dessa pesquisa, especialmente porque a hermenêutica filosófica afirmou, por sua vez, a necessária distância entre a obra e seu autor, bem como entre a obra e seus leitores. Nessa perspectiva, a história do efeito causado por um livro ou uma passagem da Escritura começou a ser incluída no trabalho de interpretação. Esforços são feitos para medir a evolução da interpretação ao longo do tempo de acordo com as preocupações dos leitores e avaliar a importância do papel da tradição no esclarecimento do significado dos textos bíblicos. 4 - A Tradição 5 - Abordagens através das ciências humanas Para se comunicar, a Palavra de Deus colocou as suas raízes na vida dos grupos humanos (Sir 24,12 «então, a voz do Criador do universo deu-me suas ordens, e aquele que me criou repousou sob minha tenda») e abriu-se um caminho através do condicionamento psicológico das várias pessoas que compuseram os escritos bíblicos. Conclui-se que as ciências humanas, particularmente a sociologia, a antropologia e a psicologia, podem contribuir para uma melhor compreensão de certos aspectos dos textos. 5 - Problemas atuais na Exegese Mariológica Brasileira I - A abordagem da libertação A teologia da libertação é um fenômeno complexo que não deve ser simplificado indevidamente. Como movimento teológico, consolidou-se no início dos anos setenta. Seu ponto de partida, além das circunstâncias econômicas, sociais e políticas dos países da América Latina, encontra-se em dois grandes eventos eclesiais: o Concílio Vaticano II, com seu desejo declarado de atualizar e orientar a pastoral da Igreja para o necessidades do mundo de hoje, e a II Conferência Geral dos Bispos da América Latina em Medellín em 1968, que aplicou os ensinamentos do Concílio às necessidades da América Latina. O movimento também se espalhou para outras partes do mundo (África, Ásia, população negra dos Estados Unidos). É difícil discernir se existe uma teologia da libertação e definir o seu método. É igualmente difícil determinar adequadamente a sua maneira de ler a Bíblia para então indicar suas contribuições e limites. 5 - Problemas atuais na Exegese Mariológica Brasileira Pode-se dizer que não adota um método especial, mas, a partir de seus pontos de vista sócio-culturais e políticos, pratica uma leitura bíblica orientada de acordo com as necessidades do povo, que busca na Bíblia o alimento para a sua fé e a sua vida. Ao invés de se limitarem a uma interpretação objetivante, que se concentra no que diz o texto em seu contexto de origem, buscam uma leitura que surge a partir da situação vivenciada pelas pessoas. Se vivem em circunstâncias de opressão, recorrem à Bíblia para buscar o alimento capaz de sustentá-los em suas lutas e esperanças. A realidade presente não deve ser ignorada, mas, ao contrário, enfrentada, para iluminá-la à luz da Palavra. Dessa luta brotará a práxis cristã autêntica, tendendo à transformação da sociedade pela justiça e pelo amor. Na fé, a Escritura se transforma em fator de dinamismo de libertação integral. 5 - Problemas atuais na Exegese Mariológica Brasileira Os princípios de interpretação bíblica são os seguintes: Deus está presente na história do seu povo para salvá-lo. Ele é o Deus dos pobres, que não pode tolerar a opressão ou a injustiça. Esta é a razão pela qual a exegese não pode ser neutra, mas deve tomar partido, seguindo Deus, do lado dos pobres e empenhar-se na luta pela libertação dos oprimidos. A participação nessa luta permite trazer à tona significados que só são descobertos quando os textos bíblicos são lidos em um contexto de solidariedade efetiva com os oprimidos. Como a libertação dos oprimidos é um processo coletivo, a comunidade dos pobres é o melhor destinatário para receber a Bíblia como palavra de libertação. Além disso, como os textos bíblicos foram escritos pela comunidade, a leitura da Bíblia é confiada em primeiro lugar precisamente às comunidades. 5 - Problemas atuais na Exegese Mariológica Brasileira A Palavra de Deus é plenamente atual, graças sobretudo à capacidade que alguns eventos fundadores que possuem (a saída do Egito, a paixão e a ressurreição de Jesus) de suscitar novas conquistas no curso da história. A teologia da libertação inclui elementos de valor indiscutível: ● o sentido profundo da presença de Deus que salva; ● a insistência na dimensão comunitária da fé; ● a urgência de uma prática libertadora enraizada na justiça e no amor; ● uma releitura da Bíblia que busca fazer da Palavra de Deus a luz e o alimento do povo de Deus em meio às suas lutas e esperanças. A plena relevância do texto inspirado é assim sublinhada. 5 - Problemas atuais na Exegese Mariológica Brasileira Problemas Mas uma leitura tão ocupada da Bíblia traz certos riscos. Estando ligadas a um movimento em plena evolução, as seguintes observações só podem ser provisórias. Esse tipo de leitura concentra-se em textos narrativos e proféticos que iluminam situações de opressão e inspiram uma prática que tende à mudança social; pode ser, aqui ou ali, parcial, sem dar tanta atenção a outros textos da Bíblia. É verdade que a exegese não pode ser neutra, mas também deve evitar ser unilateral. Por outro lado, o compromisso social e político não é tarefa direta do exegeta. Alguns teólogos e exegetas, querendo inserir a mensagem bíblica no contexto sócio-político, foram levados a recorrer a diversos instrumentos de análise da realidade social. 5 - Problemas atuais na Exegese Mariológica Brasileira Nessa perspectiva, algumas correntes da teologia da libertação fizeram uma análise inspirada em doutrinas materialistas e também leram a Bíblia nesse contexto, o que não deixou de levantar problemas, principalmente no que diz respeito ao princípio marxista da luta de classes. Sob a pressão de enormes problemas sociais, a ênfase tem sido colocada mais em uma escatologia terrena, às vezes em detrimento da dimensão escatológica transcendente das Escrituras. Mudanças sociais e políticas levam essa abordagem a levantar novas questões e buscar novas orientações. Para o seu desenvolvimento e fecundidade na Igreja, será decisivo o esclarecimento dos seus pressupostos hermenêuticos, dos seus métodos e da sua coerência com a fé e a Tradição de toda a Igreja. 5 - Problemas atuais na Exegese Mariológica Brasileira 2 - A Leitura Fundamentalista A leitura fundamentalista parte do princípio de que a Bíblia, sendo a Palavra inspirada de Deus e livre de erros, deve ser lida e interpretada literalmente em todos os seus detalhes. Mas por interpretação literal significa uma interpretação primária, literalista, que exclui qualquer esforço de compreensão da Bíblia que leve em conta seu crescimento no curso da história e seu desenvolvimento. Opõe-se, portanto, ao uso do método histórico-crítico para a interpretação das Escrituras, bem como a qualquer outro método científico. A leitura fundamentalista teve sua origem, na época da Reforma, de uma preocupação com a fidelidade ao sentido literal das Escrituras. Após o Iluminismo, apresentou-se, no protestantismo, como uma salvaguarda contra a exegese liberal. 5 - Problemas atuais na Exegese Mariológica Brasileira O termo fundamentalista está diretamente relacionado ao Congresso Bíblico Americano realizado em Niagara, Nova York, em 1895. Exegetas protestantes conservadores definiram então cinco pontos do fundamentalismo: 1. a ausência de erro das Escrituras; 2. a divindade de Cristo; 3. o seu nascimento virginal; 4. a doutrina da expiação vicária; 5. a ressurreição corporal por ocasião da segunda vinda de Cristo. À medida que a leitura fundamentalista se espalhou para outras partes do mundo, deu origem a outros tipos de leitura igualmente literalistas, na Europa, Ásia, África e América Latina. Este tipo de leitura encontrou adeptos cada vez mais numerosos durante a última parte do século XX e hoje também no séc. XXI, em alguns grupos religiosos e seitas e também entre os católicos. 5 - Problemas atuais na Exegese Mariológica Brasileira Enquanto o fundamentalismo tem razão em insistir na inspiração divina da Bíblia, na inerrância da Palavra de Deus e nas demais verdades bíblicas incluídas nos cinco pontos fundamentais, a sua forma de apresentar essas verdades está enraizada em uma ideologia que não é bíblica. De fato, esta leitura exige a adesão firme e segura a rígidas atitudes doutrinárias e impõe-se, como única fonte de ensino sobre a vida cristã e a salvação, realizando uma leitura da Bíblia que rejeita qualquer tipo de atitude crítica ou pesquisa. O problema básico dessa leitura fundamentalista é que, ao se recusar a levar em conta o caráter histórico da revelação bíblica, ela se torna incapaz de aceitar plenamente a verdade da Encarnação. O fundamentalismo evita a relação íntima entre o divino e o humano no trato com Deus, recusa-se a admitir que a Palavra inspirada de Deus foi expressa em linguagem humana e foi escrita, sob a inspiração divina, por autores humanos cujas capacidades e recursos eram limitados. 5 - Problemas atuais na Exegese Mariológica Brasileira Por isso, tende a tratar o texto bíblico como se tivesse sido ditado palavra por palavra pelo Espírito e não reconhece que a Palavra de Deus foi formulada em uma linguagem e fraseologia condicionada por uma determinada época. Não presta atenção às formas literárias e aos modos de pensar humanos presentes nos textos bíblicos, muitos dos quais são fruto de uma elaboração que se estendeu por longos períodos e carrega a marca de situações históricas muito diversas. O fundamentalismo também insiste indevidamente na ausência de erros nos detalhes em textos bíblicos, especialmente em questões de fatos históricos ou supostas verdades científicas. Muitas vezes historiciza o que não tinha pretensão de historicidade, pois considera histórico tudo o que é referido ou contado com verbos no passado, sem a necessária atenção à possibilidade de um sentido simbólico ou figurativo. 5 - Problemas atuais na Exegese Mariológica Brasileira O fundamentalismo muitas vezes tende a ignorar ou negar os problemas que o texto bíblico acarreta em sua formulação hebraica, aramaica ou grega. Muitas vezes, está intimamente relacionado a uma tradução específica, antiga ou moderna (Vulgata). Também deixa de considerar as releituras de algumas passagens dentro da Bíblia. Quanto aos Evangelhos, o fundamentalismo não leva em conta o crescimento da tradição evangélica, mas ingenuamente confunde a etapa final dessa tradição (o que os evangelistas escreveram) com a etapa inicial (as ações e palavras de Jesus na história). Ao mesmo tempo, um fato importante é esquecido: a forma como as comunidades cristãs compreenderam o impacto produzido por Jesus de Nazaré e sua mensagem. Em vez disso, temos ali um testemunho da origem apostólica da fé cristã e a sua expressão direta. 5 - Problemas atuais na Exegese Mariológica Brasileira O fundamentalismo distorce assim o apelo lançado pelo Evangelho. O fundamentalismo também leva a uma grande estreiteza de visão: de fato, acredita que uma cosmologia antiga ultrapassada está em conformidade com a realidade, porque se encontra expressa na Bíblia, o que impede o diálogo com uma concepção mais aberta da relação entre cultura e fé. Baseia-se numa leitura acrítica de alguns textos da Bíblia para confirmar ideias políticas e atitudes sociais marcadas por preconceitos, por exemplo racistas, completamente contrários ao evangelho cristão. Finalmente, em seu apego ao princípio de somente a Escritura, o fundamentalismo separa a interpretação da Bíblia, da Tradição guiada pelo Espírito, que se desenvolve autenticamente em união com a Escritura dentro da comunidade de fé. Falta-lhe a consciência de que o Novo Testamento foi formado dentro da Igreja cristã e que é a Sagrada Escritura desta Igreja, cuja existência precedeu a composição de seus textos. 5 - Problemas atuais na Exegese Mariológica Brasileira Por isso, o fundamentalismo é muitas vezes anti-eclesial, considerando como negligenciáveis os credos, os dogmas e as práticas litúrgicas que passaram a fazer parte da tradição eclesiástica, bem como a função de ensino da Igreja. Apresenta-se como uma forma de interpretação privada, que não reconhece que a Igreja se funda na Bíblia e desta nasce na sua vida e inspiração. A abordagem fundamentalista é perigosa, porque atrai pessoas que buscam respostas bíblicas para seus problemas de vida. Tal abordagem pode incluí-los oferecendo interpretações piedosas, mas ilusórias, em vez de dizer-lhes que a Bíblia não contém necessariamente uma resposta imediata para cada um desses problemas. O fundamentalismo convida, sem dizê-lo, a uma forma de pensamento suicida. Coloca uma falsa certeza na vida, pois confunde inconscientemente os limites humanos da mensagem bíblica com a substância divina da mensagem. 6 - Resolução: os sentidos da Escritura inspirada Os antigos admitiam que os textos devem ser lidos em diferentes níveis de significado. Quase sempre falam de dois significados, o literal e o espiritual. O sentido "espiritual" é um sentido figurado que pode receber diferentes denominações de acordo com as diferentes aplicações que dele se fazem. O livro de Êxodo conta que Deus alimenta o povo no deserto com um maná do céu. Tomar o texto literalmente é admitir que um dia caiu do céu uma substância nutritiva que permitiu aos judeus famintos se sustentarem; na maioria das vezes, esse sentido é aceito sem maiores investigações, mas apenas aprofundando-o. No sentido espiritual ou tipológico, dir-se-á que a dádiva do maná no deserto prenunciava a multiplicação dos pães narrada nos Evangelhos, quando Jesus alimentou com alguns pães a multidão que o tinha seguido ao deserto para ouvir o seu ensino. Mas também podemos dizer que o maná é a figura do sacramento da Eucaristia, pão do céu, com o qual, durante o tempo da Igreja, o Senhor continua a alimentar os fiéis no deserto da vida. 6 - Resolução: os sentidos da Escritura inspirada De fato, a mesma figura do Antigo Testamento pode receber três aplicações diferentes: no tempo da Encarnação, no tempo da Igreja e nos tempos escatológicos. Aos dois significados fundamentais, acrescenta-se um terceiro, às vezes chamado de sentido moral e que os modernos definiriam mais como espiritual, porque se aplica à vida espiritual do indivíduo a figura bíblica. De fato, o que se diz de Cristo muitas vezes pode ser dito também dos fiéis, porque Ele se encarnou para ser o primogênito de uma multidão de irmãos e é, segundo a metáfora usada nas cartas de Paulo, a cabeça do corpo que representa a Igreja, junto com os fiéis. A Escritura pode, portanto, receber múltiplos significados, todos lícitos na medida em que se conformam à regra da verdade, isto é, ao conjunto da doutrina que permanece o termo de comparação para toda exegese. Os antigos se destacaram na abordagem espiritual dos textos sagrados; e se os avanços no estudo dos textos tornaram as explicações literais pesadas e obsoletas, a exegese simbólica continua sendo um mundo fascinante em que a inventividade e a poesia corrigem o que pode não ser cativante em uma literatura comentada. GRATO PELA VOSSA ATENÇÃO TEMPO PARA AS PERGUNTAS PODEM LIGAR OS MICROS