Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo apresentar um diálogo normativo entre a Lei nº
11.340/2006, denominada como Lei Maria da Penha e o Protocolo para Julgamento com
perspectiva de gênero/CNJ, com base na Recomendação 128 de 15 de fevereiro de
2022. Junto a outras normativas serão apresentadas com o fim de complementação,
como a Resolução nº 254/208 e a Resolução nº 255/2018, ambas do Conselho Nacional
de Justiça/CNJ. Alguns delineamentos conceituais básicos são explicitados, porém não
com agudeza e profundidade teórica, contudo abordados no Protocolo/CNJ. São esses
elementos conceituais, então, retomados no presente texto para acompanhamento lógico
e argumentativo do documento. Procurou-se, nesse estudo, aplicar, quanto à abordagem,
um método hermenêutico e, como métodos de procedimento, o histórico e o
comparativo. A tipologia da pesquisa está inserida dentro da Hermenêutica Jurídica. Ao
que se refere à pesquisa é basicamente bibliográfica uma vez que se utilizou de fontes
secundárias e para seus objetivos possui índole exploratória e descritiva, não tendo o
compromisso de ser, notadamente, explicativa. Por fim, a ideia é de sistematização
normativa para alinhar dois documentos legislativos que se complementam para a
efetiva proteção em questão de gênero dentro do Poder Judiciário.
ABSTRACT
The present work aims to present a normative dialog between Law 11.340/2006, called
Law Maria da Penha and the Protocol for Trial with a Gender Perspective/CNJ, based o
n Recommendation 128 of February 15, 2022. Together with other regulations will be p
resented with the purpose of complementation, such as Resolution No. 254/208 and Res
olution No. 255/2018, both of the National Council of Justice/CNJ. Some basic concept
ual delineations are made explicit, but not with acuteness and theoretical depth, however
addressed in Protocol/CNJ. It is these conceptual elements, then, taken up in the present
text for a logical and argumentative accompaniment of the document. The study sought
to apply a hermeneutic method to the approach and, as methods of procedure, the histor
ical and comparative method. The typology of the research is inserted within the Legal
1
Graduando concluinte do Curso de Direito do Centro Universitário do Norte – UNINORTE – Matrícula
nº 03214947. e-mail: msrdistribuidoraservicos@gmail.com
2
Mestre em Ciência e Meio Ambiente pela Universidade Federal do Pará. e-mail: marcio.
nascimento@uninorte.com.br.
3
Doutoranda pelo Programa de Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(PPGFIL/UNIOESTE). Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Amazonas/UFAM. e-mail:
robustellimaria@hotmail.com.
2
INTRODUÇÃO
Esse estudo teve início com as primeiras reflexões sobre os motivos reais acerca
do advento da Lei nº 11. 340/2006. Em primeiro momento é relevante determinar que a
lei foi sancionada em 7 de agosto de agosto de 2006 para, assim, mostrar um
encadeamento dos acontecimentos para sua instituição e promulgação. Maria da Penha
(a lei recebe seu nome) por se submeter à recorrente e a progressivas agressões de seu
cônjuge, diga-se, com duas tentativas de homicídio e, ademais, infrutíferos resultados e
inútil resposta do Poder Judiciário brasileiro que à época (década de 1990) aplicativa a
Lei nº 9099/99 para situações de violência doméstica e familiar. Nesse meio tempo,
Maria da Penha escreve um livro com o título “Sobrevivi... posso contar” narrando os
eventos praticados por seu agressor. Sendo assim, com a divulgação do livro e, em
decorrência disso, a repercussão internacional, procurou o Centro pela Justiça e o
Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa
dos Direitos da Mulher (CLADEM). Sua solicitação, então, foi encaminhada para a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados
Americanos no ano de 1998.
A partir dessa conquista legislativa e em face de um cabedal de normatizações
internacionais sobre questão de gênero e diferentes circunstâncias discriminatórias,
assim, sobretudo, a condenação do Brasil em 1998 pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos (Corte IDH) no caso de Márcia Barbosa de Souza, o Conselho
Nacional de Justiça, nessa esteira, instituiu o PROTOCOLO PARA JULGAMENTO
COM PERSPECTIVA DE GÊNERO/ CNJ/ - PORTARIA CNJ Nº 27, DE 2
FEVEREIRO DE 2021 E RECOMENDAÇÃO 128, DE 15 DE FEVEREIRO DE
2022.
O Protocolo tem por fim apresentar critérios e práticas para os magistrados e
magistradas brasileiros quando, nos casos concretos, em suas respectivas jurisdições,
precisar se deparar com questões envolvendo gênero. Desse modo sua atividade pautada
nessas premissas (como um manual) pode guiar o julgador, apresentando-lhe fronteiras
normativas para além de sua subjetividade, tentando-se evitar, condutas, avaliações,
3
4
“Mas o que é mulher? Os debates entre tendências dentro do movimento “de mulheres” revelam
diversas concepções subjacentes da relação entre sexo e gênero. [...] Uma tendência francesa, inspirada
numa dada corrente da Psicanálise, está associada ao primeiro modo de pensamento, baseado no sexo:
homens e mulheres são diferentes; o problema é que a nossa sociedade não permitiu que a mulher
“chegasse” psicológica e socialmente à sua especificidade. Mas as opções mais comuns estão no
segundo modo de pensamento, que abre espaço para a ambiguidade entre sexo e gênero: elas abordam
as modalidades de construção do gênero, concebido como elaboração cultural da diferença sexual,
analisando e denunciando as desigualdades entre os sexos a fim de rearranjar equitativamente os
conteúdos dos dois gêneros. Finalmente, uma terceira corrente conceitual da relação entre sexo e gênero
(apresentada na França pelo coletivo da revista Questões feministas, 1977 – 1980) considera que os
sexos não são simples categorias bissociais, mas classes (no sentido marxista) constituídas por e na
relação de poder dos homens sobre as mulheres, que é o próprio eixo da definição de gênero (e de sua
primazia sobre o sexo, cf. Delphy, 1991b/2001): o gênero constrói o sexo”. (HIRATA, Helena et al
(orgs.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: UNESP, 2009, p. 226).
4
Assim, a sociedade grega constituída pela polis estabelece uma distinção entre o
público e o privado, entre o espaço doméstico e um espaço da visibilidade (político),
lugares em que coloca os sujeitos e seus domínios em dois planos, o do masculino e do
feminino.
Como visto nas citações de Xenofonte (1999), acima reproduzidas, foi possível
perceber que o homem livre era o chefe de família, mas ele era livre para estar com
outros que com ele compartilhavam da mesma condição política na cidade, seja na stoa
(pórtico), na ágora em assembleia ou no banquete. Por que isso acontecia? Hannah
Arendt (A Condição Humana, 2007, p. 59-60) explica que o termo público comporta
dois termos correlatos, porém, não idênticos. O primeiro sentido importa que o público
é uma realidade constituída pela aparência, em que tudo pode ser ouvido e visto pelos
outros. Por outro lado, em outro sentido, “o fato de que algo é visto e escutado, até
mesmo as maiores forças da vida íntima” (ARENDT, 2007, p. 59) que, para a autora,
será necessário serem transformadas, desprivatizadas e desindividualizadas.
Logo, pode-se compreender que o mérito somente pode ser reconhecido na
esfera pública. A mulher restrita a um determinado espaço não teria como apresentar
sua excelência e distinção. Aristóteles assevera (A POLÍTICA, 2011, p.81) que “O
legislador disse belas coisas sobre os benefícios da sobriedade e sobre o isolamento das
mulheres para lhes impedir de ter filhos, permitindo as relações de homens com
homens”.
Desse modo, o privado é compreendido por Hannah Arendt (2007, p. 68) e
significa “privação”, por outra, uma vida desguarnecida de realidade, a realidade da
aparência (ser visto e ouvido), de realizar algo permanente. Diz a autora, na sequência
que “o homem privado não se dá a conhecer, e, portanto, é como se não existisse” e “o
6
que quer ele faça permanece sem importância ou consequência para os outros, e o que
tem importância para ele é desprovido de interesse para os outros” (ARENDT, 2007, p.
68).
Estudos sobre a atividade pública religiosa das mulheres, pertencia, de fato, a
ingerência do chefe na vida das famílias, situação que estabelecia a própria estrutura da
cidade (polis) pois que estavam sempre sob a subordinação de uma figura masculina,
pai, irmão ou marido, desse modo, sempre submetidas às tradições patriarcais da cidade.
Na modernidade as relações entre as categorias do público e do privado que se
concebeu mediante a concepção da cidadania dentro da lógica liberal da Revolução
Francesa, assim dizendo, com base no indivíduo, “que possui como características
essenciais a independência, a responsabilidade e a razão” (LAMOUREAUX, 2009, p.
210). Por que isso acontece? A resposta é econômica: “Quanto à esfera privada, ela se
reduz cada vez mais à intimidade e à família, uma vez que a economia moderna sai da
esfera doméstica para se tornar social mediante o duplo mecanismo do mercado e da
divisão social do trabalho” (LAMOUREAUX, 2009, p. 210).
Diz a autora, ainda sobre a modernidade, que será Rousseau, ao aproximar e
associar as figuras de mulher e de mãe, como uma ideia de naturalização e, portanto, na
de seu papel na sociedade, determina a permanência de sua dependência e invisibilidade
social. Para Rousseau “a mãe não pode participar do contrato social uma vez que não
pode atingir a imparcialidade necessária à constituição de uma vontade geral”
(LAMOUREAUX, 2009, p. 210).
Contudo, posteriormente, nos séculos que se seguem, dentro da construção do
papel sexual, vai introduzir a mulher no domínio público por meio do mercado de
trabalho. Nesse ponto há um discurso recorrente, acadêmico e oficial sobre a
distribuição dos papéis sociais segundo a sexualidade.
Nesse sentido, a partir do século XIX, arregimenta-se com a força feminista
promover uma ruptura com o enclausuramento e com o isolamento das mulheres dentro
do cenário familiar e doméstico e trazê-la para o âmbito público, por meio de diferentes
reivindicações, como da igualdade jurídica, acesso à educação e a condições condignas
de trabalho, a partir de que sua voz seja ouvida e de seja vista (público) por meio do
voto e da participação política.
7
5
Sobre sua história: “Maria da Penha foi agredida pelo marido durante seis anos. Por duas vezes ele
tentou assassiná-la. Na primeira com arma de fogo, deixando-a paraplégica e, na segunda, por
eletrocussão e afogamento. A punição veio depois de 19 anos. Foram dois julgamentos e duas sentenças.
No total ele teria que cumprir quase 25 anos de pena, mas o acusado ficou apenas dois anos em regime
fechado. Durante o processo escreveu o livro ‘Sobrevivi...posso contar’ (1994) e fundou o Instituto Maria
da Penha – IMP em 2009 que estimula e contribui para a aplicação integral da lei, bem como monitora a
implementação e desenvolvimento das práticas de políticas públicas para o seu cumprimento”. Disponível
em: https://www.fundobrasil.org.br/blog/lei-maria-da-penha-historia-e-fatos-principais/. Acesso em: 30
de novembro de 2022.
6
Artigo 226, § 8º, da CR/88: O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a
integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
(BRASIL. Constituição [1988]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF).
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 30 de
outubro de 2022.
8
7
Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/05042022-Lei-
Maria-da-Penha-e-aplicavel-a-violencia-contra-mulher-trans--decide-Sexta-Turma.aspx. Acesso em: 28
de outubro de 2022.
10
9
O Protocolo/CNJ expõe dois julgados do STF. ADI n. 4275 que foi decidido, por maioria, que pessoas
podem mudar seus nomes no registro civil, sem a necessidade de realização de cirurgia de resignação de
sexo ou de decisão judicial específica. A decisão de na natureza cautelar ADPF n. 527 que se garantiu o
direito de transferência de mulheres transexuais em situação de prisão para presídios femininos.
(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275. Relator: Min. Edson
Fachin, 1 de março de 2018. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 45, 7 mar. 2019. Disponível
em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7302788. Acesso em: 27 ago.
2021. Tema 761.12. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº 527/DF.Relator: Min. Luís Roberto Barroso, 29 de junho de
2018. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 153, 1 ago. 2018. Aguardando julgamento).
15
decisão judiciária abstrata, alheia à forma como essas desigualdades operam em casos
concretos, acabam por perpetuar assimetrias e assevera:
10
O Protocolo/CNJ traz a informação de que pesquisa realizada pelo Ministério Público do Estado de
São Paulo demonstrou que, em 97% dos feminicídios ocorridos em São Paulo, em 2017, a mulher não
estava sob a proteção de medidas protetivas. Isto comprova que a concessão da medida protetiva de
urgência é capaz de diminuir drasticamente o número de feminicídios. (PROTOCOLO/CNJ, 2021, P. 84
– Referência: SÃO PAULO (Estado). Ministério Público. Raio X do feminicídio em São Paulo: é
possível evitar a morte. São Paulo:MPSP. Disponível em:
http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Nucleo_de_Genero/Feminicidio/RaioXFeminicidioC.
PDF. Acesso em: 27 ago. 2021.).
19
uma proteção mais adequada à vítima, notadamente, no que diz respeito à medida
protetiva de urgência.
Outros aspectos da Lei nº 11.340/2006 devem ser abordados como a disposição
do artigo 28 que garante à mulher vítima de violência de gênero a representação em
sede policial e judicial, para além das ações de natureza patrimonial em seu benefício e
de sua filiação. Nessa perspectiva, note-se, que a vítima de violência de gênero o direito
à reparação em conformidade ao artigo 9º, § 4º de referida lei, assim como, permite a
condenação do agressor na reparação dos danos causados pela infração, considerando os
prejuízos sofridos pela ofendida.
Por fim, o sistema de proteção estabelecido pela Lei nº 11. 340/2006 oferece
instrumentos e medidas judiciais e administrativas que garantem a dignidade da vítima
de violência doméstica e familiar, exigindo, a partir desse parâmetro inédito, uma
prática jurisdicional com olhar, compreensão, interpretação e entendimento de gênero.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
propósito normativo podem, sim, em muitas circunstâncias alcançar uma justiça efetiva
com sentido de realidade.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/d10088.htm. Acesso
em: 23 de outubro de 2022.
BRASIL. LEI Nº 11. 340/2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e
familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de
Execução Penal; e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em 28 de outubro de 2022.