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ILHADOS

Lucas Santana
Copyright © 2024 Lucas Santana

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Os personagens e eventos retratados neste livro são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas
reais, vivas ou mortas, é mera coincidência e não é intencional do autor.

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por qualquer meio, eletrônico, mecânico, fotocópia, gravação ou outro, sem permissão expressa por
escrito do autor.

Capa e ilustração interna: Giann Carlos


Revisão e preparação: Luciana Fauber

“É sol de meio-dia entre dois,
suor de meio-dia entre jovem e marinheiro.
E partem.
Partem-se em partes quando o barco some aguardando pelo embate.”

LUCIANA FAUBER

Ao Sol e ao Mar, e a tudo que há entre eles.


PARTE I

TERRA
1 ✹ A SUNGA

E
stava deitado ao lado de Elisa sob o sol, naquela praia meio deserta
que era nossa favorita. Ninguém gostava daquela praia, a água era
gelada demais, escura demais, muito perto do rio, preferiam as praias
do outro lado da ilha. Mas gostávamos dela assim, vazia e gelada. Era uma
daquelas praias com a faixa de areia extensa, imensa, que do começo mal se
dava para ver o mar. Deitávamos no meio, nem muito perto da água, nem
muito perto da pequena mata que separava a praia da cidade, e nos
sentíamos como duas formigas minúsculas sob a lupa de uma criança
entediada que queria nos queimar. Duas salsichas sobre a grelha de uma
churrasqueira. Eu adorava aquela sensação, como se a minha pele estivesse
borbulhando de calor.
Virei-me de lado, para Elisa. Ela estava deitada com a barriga para
cima na esteira de bambu. A cabeça coberta pelo grande chapéu de palha,
os braços estendidos ao lado do corpo. Uma das pernas, a esquerda, mais
perto de mim, estava dobrada, o joelho apontado para o céu. Observei seu
corpo, a pele negra contrastando com o biquíni azul-turquesa, quase da cor
do mar, mas não daquele mar, outro mar, um de águas calmas, paradas.
Pequenas gotículas de suor se formavam em todo o trajeto que percorri com
os olhos. No cume do joelho havia uma gota um pouco maior, ainda não
grande o suficiente para escorrer sobre a coxa e cair até sua virilha. Decidi
ajudar aquela gota, cumprir o papel da gravidade, pus meu dedo sobre ela,
estourando-a e puxando-a para baixo. Elisa deu um leve tremor quando a
toquei e a ouvi sorrir. Aquele era nosso código. Percorri a sua coxa com a
ponta do dedo, descendo levemente até encontrar o biquíni. Nessa hora ela
já havia tirado o chapéu do rosto e estava virada para mim. Beijou-me.
Naquela praia deserta era onde explorávamos nossos corpos.
Estávamos sozinhos e podíamos fazer o que quiséssemos. Tiramos a roupa
de banho, e, sob o calor do sol, unimos nosso corpo em um só, fervente,
ensopado de suor e empanados por terra. A praia era grande o suficiente
para nos proteger de curiosos, se alguém entrasse por ela pela mata,
veríamos a tempo de nos vestirmos antes que se aproximassem demais. Ao
nosso lado estava o rio que desembocava no mar, e do outro, depois de
muitos metros de areia, pedras difíceis demais de serem atravessadas. Elisa
sempre tirava uma camisinha de dentro de sua bolsa de palha, a minha
sunga, a parte de baixo do biquíni, e sentava em cima de mim. Nunca tirava
o sutiã, dizia que não queria perder a marquinha de bronze, então nunca
cheguei a ver seus seios.
Quando terminávamos, exaustos, amolecidos pelo sol e pelo
cansaço, corríamos, sem roupa mesmo, para o rio, e mergulhávamos na
água turva e gelada. Aquela era minha parte favorita da manhã: o choque
térmico. Meu corpo fervente, cheio de calor da praia, do sol e do corpo de
Elisa, de repente envolvido pela água gelada do rio. Era como se a água me
tirasse de um torpor, me levasse de volta para a realidade.
Ficávamos brincando no rio por cerca de meia hora, mergulhando,
boiando, jogando água na cara do outro, fingindo afogamento. Eram longos
minutos de risadas. Nossas pernas, em agitação para nos mantermos
flutuando, se tocavam, nos excitávamos novamente, colocava minha mão
em suas partes íntimas e ela, nas minhas.
— Ei, olhe! — disse Elisa, apontando para o mar, enquanto minha
mão ainda explorava seus pelos pubianos.
Olhei. Eram duas dúzias de barcos, veleiros, vindos do mar e
aproximando-se do rio, em direção ao centro da cidade. Entre eles,
catboats, como chamavam as embarcações menores, de apenas um mastro e
uma pequena vela, que comportavam até duas pessoas. Também havia
alguns maiores, com cabines completas, quarto, banheiro e cozinha, dois
mastros e grandes velas, os ketch boats. Observei, atento e animado, as
bandeiras que se agitavam em alguns conveses. Itália, França, Suíça, Costa
do Marfim, África do Sul, Brasil. Eu adorava aquele colorido, aquela
diversidade de cultura. Conhecer novos costumes, idiomas, ouvir histórias
daqueles estrangeiros aventureiros.
Adentraram o rio, o vento favorecendo a navegação. Eu e Elisa
estávamos animados, a temporada dos velejadores começava. Naqueles dias
eu não olhava mais o calendário, apenas curtia dia após outro, sem saber
números nem em que dia estávamos — a beleza do verão. Alguns dos
marinheiros estavam sobre o convés, rindo e assoviando, acenando para
nós. Estranhei, geralmente eles ignoravam os habitantes locais em seus
primeiros dias, até se acomodarem. Quando olhei para o lado, entendi: Elisa
havia tirado a parte de cima do biquíni e boiava com o rosto para cima,
expondo seus seios para aqueles estrangeiros. Senti raiva, dela e dos
homens. Eu sabia que ela desprezava tudo que era da nossa ilha, mas não
sabia que eu era uma dessas coisas.
Um dos barcos me chamou a atenção, um catboat, um simples, com
uma pequena cabine, que provavelmente só continha uma minúscula cama
para uma única pessoa. Em seu casco, com tipografia vernacular, estava
pintado de azul-marinho a palavra SOTAFORD. Mas o que me chamou
atenção não foi o nome excêntrico do barco, e sim seu velejador, que estava
sozinho, ao contrário das outras embarcações, com sempre dois ou mais
homens. Ele não olhava para o corpo nu de Elisa, mas olhava para mim,
diretamente em meus olhos. Quando viu que eu o olhava, deu um sorriso
com um canto da boca, acenou com a cabeça e virou-se para o outro lado,
guiando o leme. Suas costas brancas e cheias de sinais estavam
avermelhadas, queimadas pelo sol dos dias que passaram atravessando o
oceano. Quantos dias será que levaram? Semanas? Não estava ventando
muito ultimamente, o que explicava um menor número de embarcações do
que o normal. Naquela época do ano, favorecidos pela corrente e pelo
vento, vintenas de veleiros, fazendo suas travessias de oceano, dando voltas
no mundo, paravam em nossa ilha por alguns dias, às vezes semanas. Era
como um porto seguro, para abastecimento, noites de sono confortáveis,
bebida e sexo.
Observei-os, não todos, apenas o Sotaford, passar por nós e seguir
rio adentro até a marina, no centro da cidade, onde alugariam quartos de
pousadas e passariam no máximo três semanas fora do mar, aproveitando as
férias, curtindo a vida, que para nós era monótona, mas para eles era
agitada, do nosso arquipélago. Ainda observava as costas do velejador do
Sotaford, largas, os músculos retesados com a força ao manejar o leme,
músculos definidos pelo esforço constante que fazia para guiar o barco.
Desci meus olhos e observei sua sunga, laranja, na parte de trás costurada a
palavra Dortnellas, seja lá o que fosse aquilo, acompanhando a curva de sua
bunda. Um traje de banho horrível.
— Ai, tô toda queimada — queixou-se Elisa, ao meu lado.
Olhei para ela, pela primeira vez vendo seus seios. Em comparação
à sua pele escura, eram brancos, nunca antes expostos ao sol, e agora
estavam num tom vermelho vivo. Parecia doloroso.
— Bem feito. — Foi o que falei.
Ela jogou água na minha cara e nadamos até a praia para nos
vestirmos.

Nunca levávamos toalha para a praia, não precisávamos nos secar, o


sol e a brisa davam conta disso. Quando saíamos do rio, o caminho
atravessando a faixa de areia até a mata era suficiente para nos deixar secos.
Os cachos de Elisa, molhados e grudados ao rosto, logo voltavam a ter o
movimento e volume usuais.
Pegamos nossas bicicletas, que estavam apoiadas em coqueiros, e
seguimos a trilha que cortava a mata. Era estreita, tínhamos que ir um atrás
do outro. Elisa vestia uma blusinha de rede, que deixava à mostra, por entre
os furinhos, suas costas e seu biquíni. Enquanto andávamos, fiquei
observando o movimento de sua bunda. Por alguma razão, não me excitei
naquele dia, geralmente voltávamos a transar ali naquela trilha, sobre as
folhas secas. Naquele momento, eu pensava na bunda do marinheiro, aquela
da sunga horrorosa escrita Dortnellas. Devo estar impressionado com a
feiura daquele laranja aguado, era o que eu pensava. Afinal, quem diabos
usaria uma sunga laranja?
Atravessamos a mata em cerca de dez minutos. A trilha dava para
uma estradinha de barro, e lá montávamos nas bicicletas e fazíamos o resto
do caminho pedalando. Aquela parte da ilha era mais pobre e menos
populosa, com algumas vilas de pescadores. A estrada era cercada por um
descampado, algumas árvores esparsas, plantações de hortaliças, pomares
— as pessoas ali viviam basicamente de agricultura de subsistência —, e
casinhas simples aqui e acolá, afastadas da estrada. Em algum lugar por ali
havia um criadouro de camarão.
A estrada deu lugar a uma rua mais larga de paralelepípedos e as
casas foram ficando cada vez maiores e mais frequentes. Em alguns
minutos, chegamos ao centro da cidade, que não passava de uma dúzia de
ruas e quarteirões, com prédios pequenos de no máximo quatro andares,
cheios de lojas de artigos esportivos, de artesanato, quitandas e pousadas.
Passamos pela loja da minha mãe, que vendia roupas de banho, na rua
principal, a única asfaltada. Não a vi, apenas seu funcionário, que atendia
uma cliente no balcão, mas ele não me viu. Os velejadores já deviam ter
ancorado na marina e estavam explorando a cidade, percebi ao ver meia
dúzia de homens com a pele queimada, alguns sem camisa, perambulando
na calçada e olhando para os lados, sorrindo. Entre eles não vi o
marinheiro-da-sunga-laranja-Dortnellas.
— Tô a fim de um suco de laranja — disse Elisa ao meu lado.
Concordei, estava realmente com sede.
Paramos as bicicletas em frente a uma lanchonete que gostávamos,
na rua principal. Subimos uma escadinha até um terraço de madeira, com
balaustradas de bambu, e sentamos nas mesinhas que tinham vista para o
movimento da rua.
— Queria dois sucos de laranja, por favor — falei, quando a
garçonete veio nos atender.
Quando ela retornou com os copos, Elisa esperou a atendente se
afastar e tirou da bolsa uma garrafinha de vodka, que despejou em seu suco.
— Não é nem meio-dia — acrescentei, olhando para o meu relógio.
Elisa deu de ombros e revirou os olhos.
— Férias — falou, como se ela não estivesse sempre de férias.
Depois virou o rosto para a rua, seu cabelo agitando-se com o vento, os
olhos acompanhando dois marujos que passavam conversando na calçada
logo abaixo da gente.
Três homens, falando em italiano, haviam se sentado à mesa ao lado
da nossa e pedido sanduíches. Elisa conversava comigo exageradamente,
aumentando a voz, gesticulando, falava sobre assuntos banais, sem poupar
os sorrisos e as jogadas de cabelo para trás. Vez ou outra via seu olhar
desviar para os homens atrás de mim.
— Esse drink é maravilhoso — afirmou, bebericando seu copo
ainda pela metade depois de vinte minutos. O canudo de papel já devia estar
mole. — Acho bom que tenha bastante no teu aniversário — falou, dando
uma gargalhada.
Elisa tinha vinte e quatro anos. Eu completaria a mesma idade em
duas semanas. Pensar no passar do tempo me deprimia, mas ela amava
festas. Ainda mais no verão, quando podia conhecer gente nova, de férias
por ali. Turistas, gente que tinha casa de veraneio, velejadores… E lá estava
ele, de novo, o velejador do Sotaford dominando os meus pensamentos.
Os homens pagaram a conta, se levantaram e foram embora, sem
nem bater os olhos em Elisa. Eu já havia terminado meu suco, e o drink
dela ainda estava em um terço do copo.
— Vamos embora — falou, bruscamente. — Meu drink esquentou.
Paguei nossa conta e pegamos as bicicletas, que havíamos deixado
na calçada, encostadas em um poste. Nos despedimos, dei um beijo em sua
bochecha, e cada um seguiu seu caminho. Ela morava ali no centro mesmo,
com a família, mais à frente, cerca de quatro ruas atrás da principal, num
apartamento pequeno em cima da loja do pai, que vendia, consertava e
alugava bicicletas.
Queria chegar logo em casa, estava fascinado, curioso, ansioso por
abrir meu computador e pesquisar o que significavam aquelas palavras
desconhecidas que, por algum motivo, haviam ficado na minha cabeça:
Sotaford, Dortnellas.
Eu morava no lado oeste da ilha, lado oposto à praia que estávamos.
Era mais afastado do centro, um bairro pouco populoso, entre as casas havia
grandes descampados e bosques, ninguém tinha um vizinho muito próximo.
A bicicleta chacoalhava muito ali, a rua era de pedras irregulares, e a sela
ficava se chocando contra a minha bunda. Geralmente eu ia a pé,
empurrando a bicicleta. Mas tinha pressa, não queria esquecer as palavras.
Repetia em minha cabeça Sotaford-Dortnellas, Sotaford-Dortnellas,
Sotaford-Dortnellas. Então continuei pedalando, quase em pé, para não me
machucar. Ao menos a rua era cercada por árvores — àquela altura meus
ombros estavam queimados demais, e a sombra era refrescante. Havia
grandes mansões ali, algumas desabitadas, seus proprietários apareciam vez
ou outra, de férias, outras eram alugadas no verão para celebridades, ou
artistas, como músicos e escritores, que procuravam sossego. Às vezes até
grandes famílias, frustradas, que não encontravam mais vagas nos resorts da
Ilha Grande e todos os seus luxos, mas acabavam se encantando com nossa
simplicidade aconchegante. Aquela área ainda estava vazia, na maior parte
do ano as casas eram desocupadas, mas o verão havia acabado de começar,
e, nos próximos dias, esperava-se a chegada de muita gente.
Nossa casa era mais simples, herança da minha família, há muitas
décadas naquela ilha. Sempre moramos ali e nunca saímos, com exceção do
meu irmão mais velho, que no ano anterior havia se casado e se mudado
para o continente. Saí da rua de pedra, passei pelo portão, que ficava
sempre aberto, e atravessei o caminho que cortava o longo gramado,
pontuado por grandes árvores, até chegar em casa.
Sotaford-Dortnellas, repetia em minha cabeça. O nome do barco e o
nome escrito em sua sunga. Repetia como se fosse o nome dele, como um
mantra. Esperava estupidamente que, quando digitasse aquilo em um site de
busca na internet, aparecesse seu rosto e toda a sua vida. Eu queria saber
quem era aquele homem que olhara em meus olhos e sorrira, de um jeito
que ninguém jamais havia feito. Queria saber de onde ele vinha, do que
gostava, o que o fazia velejar atravessando o oceano, enfrentando
tempestades e monstros marinhos jamais vistos.
O carro do meu pai, uma caminhonete vermelha encardida e velha,
estava estacionado na garagem, que não passava de quatro colunas e um
telhado, sem paredes, separada da casa. Larguei minha bicicleta no terraço e
entrei em casa. A porta estava aberta. Minha mãe estava parada perto da
escada, e ao lado dela, duas malas. Meu pai estava no corredor, encostado
na parede. Eles iam viajar? Não conhecia aquelas malas, não eram nossas. E
nem costumávamos viajar. Talvez fosse meu irmão que viera nos visitar,
finalmente, depois de quase um ano. Ou eles estavam indo visitá-lo? Por
que ninguém me avisou nada?
— Querido, leva as malas do moço lá pra cima, por favor? — disse
minha mãe, de um jeito carinhoso que não era dela, apontando para as duas
malas.
Franzi o cenho.
— Que moço?
Minha mãe fez uma cara de surpresa, então olhou, fechando a cara,
para o meu pai. Falou, em tom de recriminação:
— Você não avisou a ele?!
— Um hóspede acabou chegando mais cedo que o previsto. Vai
ficar no quarto do teu irmão por dois dias até ajeitarmos a pousada — disse
meu pai sucintamente, dando de ombros.
Ouvi um barulho de descarga vindo do banheiro, o pequeno
embaixo da escada, então a torneira da pia. A porta se abriu, e quem saiu de
lá, é claro, me deixou completamente estático.
Era o senhor Sotaford-Dortnellas.
2 ✹ A VISTA

E
le tinha cerca de trinta e cinco anos, talvez mais, trinta e sete, podia
notar pelas suas rugas de expressão, um vinco profundo em sua testa,
entre suas sobrancelhas grossas, sinal de que, provavelmente, era uma
pessoa séria e mantinha em sua cara, frequentemente, uma expressão
austera. Tinha uma barba espessa, que não recebia tratamento há meses, e
um bigode que chegava a cobrir seus lábios. A barba e o bigode eram da cor
dos seus cabelos, um loiro escuro, esverdeado pelo sol, e perto das
costeletas estavam ficando cinza. Vestia uma regata de algodão lilás,
folgada e cavada. Podia ver os pelos, abundantes, mas curtos, do seu peito.
A regata estava torta, então o peito estava parcialmente à mostra, podia ver
parte do mamilo, coberto por pelos loiro-acinzentados.
— Prazer, sou Arnaud. Enchanté — disse ele, estendendo o braço
para eu apertar sua mão, com um sotaque pronunciado. Sorriu para mim,
evidenciando as rugas pé-de-galinha no canto dos olhos castanho-
esverdeados, que lhe davam o charme da maturidade.
Eu devo ter ficado congelado o encarando por alguns segundos, pois
senti uma cotovelada do meu pai em minha costela. Dei-me conta do meu
vexame e rapidamente apertei a mão do senhor Sotaford-Dortnellas, que
agora eu sabia se chamar Arnaud. Arnô, em seu sotaque.
A mão dele estava quente, pegando fogo, ou talvez a minha
estivesse gelada demais. O que era estranho, já que eu havia acabado de sair
do sol. Torci para ele não me reconhecer, para ele não dizer ei, você é
aquele garoto que eu vi nadando no rio, com aquela garota pelada. Minha
mãe iria morrer, ela não gostava que eu fosse para aquele lado da ilha. O
mar era violento, e a correnteza do rio, muito forte, dizia. Se soubesse que
eu estava com Elisa, pelada, seria outro infarto. Minha mãe não gostava
dela, dizia que aquela minha amiga era muito relaxada, sem pretensões para
o futuro. Para minha sorte, ele não disse nada. Talvez nem se lembrasse, ou
não tivesse me reconhecido. Apertou minha mão com firmeza e pensei tê-lo
visto dar uma piscadela em um olho. Soltou minha mão e se curvou para
pegar suas malas.
— Pode deixar que Nico leva lá pra cima — adiantou-se minha mãe,
e olhou para mim, levantando as sobrancelhas, sinal para eu me apressar.
— Não precisa, já sou grandinho — brincou ele, e pegou as malas.
Minha mãe riu, divertida com a descontração do homem. — Ele pode me
mostrar onde é o quarto — disse Arnaud, olhando para mim.
— Sim, acompanhe ele, Nico. Os lençóis já estão trocados e tem
uma toalha limpa em cima da cama. Mostre a ele onde é o banheiro lá de
cima — falou ela, sorridente como sempre. — O almoço fica pronto daqui a
pouco — acrescentou, retirando-se e indo para a cozinha.
Eu morava em uma casa de dois andares, branca com janelas azuis,
toda coberta por trepadeiras, com um amplo terraço que a circundava. No
térreo, apenas uma sala, uma grande cozinha, um banheiro e o escritório do
meu pai. No piso superior ficavam os três quartos, o meu, o do meu irmão,
que estava vazio, e o dos meus pais. Além de dois banheiros. Cada quarto
também tinha sua varanda, separadas, e tinham vista para a parte de trás da
casa, para o mar.
Tínhamos uma vista privilegiada. Não havia praia ali, entretanto,
apenas uma encosta escarpa e cheia de pedras. No alto da casa havia uma
caixa d’água de concreto, onde podíamos subir por uma escada. Funcionava
como uma pequena laje, ou um mirante. De lá podíamos ver as grandes
montanhas ao sul da ilha. Ao norte, à noite, dava para se ver as luzes da Ilha
Grande, no horizonte, à distância, e seu céu alaranjado pelas luzes da
metrópole. Aqui, ao menos, podíamos enxergar as estrelas, sem toda aquela
poluição luminosa dos resorts e arranha-céus da cidade grande. Chamavam
aquela ilha de Ilha Grande devido à sua grande cidade, que beirava
trezentos mil habitantes, população essa que dobrava na alta estação. Mas a
nossa ilha era a maior do arquipélago, que somava cerca de sete ilhas.
Éramos protegidos por leis ambientais, e a maior parte da ilha era coberta
por florestas e montanhas. Nossa cidade, então, era pouco desenvolvida,
com menos de dez mil habitantes, sem resorts, sem cassinos ou cabarés,
apenas pequenas pousadas e bares. A criminalidade era quase nula, e acho
que era isso que atraía os velejadores. Pessoas que passavam meses na
imensidão e calmaria do oceano certamente almejavam tranquilidade. Isso
não os impedia, embora, de visitar a Ilha Grande vez ou outra.
Não falei nada enquanto subia a escada com Arnaud, estava
encabulado. Sentia-me uma criança, um adolescente inexperiente, por ter
ficado todo aquele tempo encarando o corpo dele enquanto ele esperava
para apertar a minha mão. E se ele tivesse notado? Por que eu estava
encarando o corpo de um homem, de toda forma?
De um lado, o corredor tinha duas portas. Primeiro, o quarto do meu
irmão, que agora seria o quarto de Arnaud por dois dias. Depois, a porta do
meu quarto, que ficava em frente ao banheiro. No fim do corredor ficava o
quarto dos meus pais, uma suíte. Entramos no quarto dele, amplo e pouco
mobiliado. Apenas uma cama de solteiro (será que ele era solteiro?), um
guarda-roupa preenchido apenas por cabides vazios e uma mesa, sem
cadeira. Um tapete redondo era a única decoração. Na parede oposta à porta
ficava uma grande janela e uma outra porta, que dava para a varanda. Ele
foi até lá conferir a vista.
— Uau — falou, dando de cara com a imensidão do oceano, meio
azul-turquesa, como o biquíni favorito de Elisa, meio verde-esmeralda.
Entre a casa e a encosta do mar havia um pequeno gramado com
uma piscina e uma banheira de hidromassagem, mas ele pareceu não notar.
Ao lado, perpendicular à nossa casa, e de frente para a piscina, ficava a
pousada do meu pai. Era uma pequena construção que ele havia colocado
de pé naquele mesmo ano, com a minha ajuda, e nesse verão abriria pela
primeira vez. Tinha apenas quatro quartos, dois embaixo, com terraços que
davam para o gramado, e dois em cima, com varandas iguais às nossas.
Cada um com seu próprio banheiro e uma pequena cozinha, muito embora
os hóspedes pudessem se sentir livres para comer na nossa casa.
Eu estava terminando um curso técnico de turismo e um de inglês.
Ali, não tínhamos muitas opções de estudo. Após o ensino médio só havia
três escolhas: ir para uma universidade pública no continente, ir para uma
faculdade particular na Ilha Grande, ou trabalhar ali na nossa ilha. Eu não
obtive notas suficientes para passar numa universidade pública, nem muito
menos meus pais tinham dinheiro para me bancar numa faculdade particular
da Ilha Grande, então passei alguns anos vagabundando com Elisa até que
meus pais me obrigaram a fazer o curso técnico para que os ajudasse na
pousada.
— Se quiser uma rede, dá pra armar uma aqui — falei, apontando
para a varanda.
Ele olhou para mim com os olhos brilhando. Reparei que eram da
cor do mar, não aquele azul-esverdeado cristalino que atraía os turistas ao
nosso arquipélago, mas aquela do mar revolto, turvo como a água do rio
que desembocava na minha praiazinha secreta.
— Seria perfeito — respondeu.
Voltamos para o quarto, ele acomodou as malas em cima da cama e
se espreguiçou, erguendo e esticando os braços. Sua regata levantou e pude
ver um pedaço da sua barriga, perto da virilha, onde os pelos finos e loiros
do abdome começavam a se misturar com os pentelhos mais grossos e mais
escuros.
— E o banheiro, onde fica? — indagou, olhando para mim. Eu
rapidamente desviei o olhar e fingi encarar o mar.
— No final do corredor — falei, e com a mão gesticulei para ele me
seguir. Lá, abri a porta do banheiro e falei: — aqui. — Ele não respondeu.
Olhei para trás, para ver se havia me entendido, mas ele estava de costas
para mim, olhando para meu quarto, que estava com a porta aberta.
— Aqui é o seu quarto? — perguntou, com seu sotaque engraçado.
Tive vergonha, meu quarto estava bagunçando, provavelmente tinha
uma cueca suja jogada em cima da cama. Geralmente eu arrumava minha
cama pela manhã, mas naquele dia eu e Elisa tínhamos saído cedo para a
praia e não tive tempo.
— Gosto musical interessante — falou, referindo-se aos pôsteres
colados na parede atrás da cama.
Não sabia o que ele queria dizer com interessante.
— O almoço tá pronto! — gritou minha mãe lá de baixo, e nossa
atenção foi rapidamente desviada. Eu estava faminto.
— Estou faminto! — exclamou ele, sorrindo e dando tapinhas na
barriga.

Na mesa, meus pais quase não deixaram o hóspede falar, falaram


por ele. Disseram-me que ele vinha da França, estava dando uma volta ao
mundo, mas era encantado por nossa cultura e idioma — era raro algum
estrangeiro dominar nossa língua tão bem como ele —, então resolvera dar
uma pausa por três semanas aqui na ilha (a maioria dos velejadores fazia
isso, alguns até estendiam a estadia, alegando estarem esperando os ventos
certos para seguir viagem). Sabia que a Ilha Grande era cheia de turistas, e
ele preferia uma coisa mais local e mais calma. Por isso optara por uma
minúscula pousada nos fundos da casa de moradores nativos, em vez de
uma pousada mais adequada no centro da cidade. Queria comer nossa
comida e aperfeiçoar o idioma. Meus pais estavam bajulados. Aproveitaram
para falar que os outros hóspedes chegariam na semana seguinte. Ele se
desculpou, novamente, por ter chegado antes do previsto. Os ventos, afinal,
são imprevisíveis, e às vezes a viagem pode ser mais longa ou mais curta.
Meus pais repetiram que aquilo jamais seria um incômodo, e que era um
prazer recebê-lo.
Não falei muita coisa, sentia-me intimidado por ele. Lá na nossa ilha
era todo mundo meio antiquado, e ele parecia... exótico. Assim, eu estava
desconcertado com aquele estranho na nossa casa. Também era raro um
velejador querer se misturar assim com a gente, estava acostumado a vê-los
à distância, dando em cima das meninas, bebendo entre si nos bares e
enchendo a nossa única boate, no único período que ela tinha clientes o
suficiente para abrir as portas. Eu nunca havia conversado com um deles,
sempre ouvia suas conversas de longe, ouvindo-os falar em línguas
desconhecidas ao passar na rua, na praia, aquela ao norte da ilha, que era a
mais lotada, mais próxima ao centro, ou num restaurante, quando sentavam
perto de mim. Também, vez ou outra, um deles entrava na loja da minha
mãe e trocava algumas palavras com ela. Me recusei por muito tempo a
aprender uma língua estrangeira. Sentia que estava traindo a nossa ilha.
Tinha raiva dos meus amigos que se esforçavam o máximo que podiam nos
estudos para sair dali o mais rápido possível. Ouvia as histórias dos
estrangeiros pelas minhas amigas, como uma história lida em um livro, ou
um filme. Mais do que suas histórias, elas se interessavam por eles, que as
beijavam e as levavam para seus barcos às escondidas. As meninas depois
me contavam de onde eles vinham, países longínquos, grandes metrópoles,
há quanto tempo atravessavam o mar, as aventuras que passaram nos
oceanos. Aquilo me fascinava, era um mundo tão perto, mas ao mesmo
tempo tão distante de mim...
— Nico pode te mostrar a ilha depois — disse minha mãe,
recolhendo nossos pratos.
— Seria perfeito! Que tal amanhã? Hoje eu gostaria de relaxar um
pouco — falou, levantando-se da cadeira.
— É claro, você deve estar muito cansado! — Ela continuava a falar
as frases com uma dicção exagerada, lentamente, como se falasse com um
idoso quase surdo.
— Mãe, ele nos entende perfeitamente, não precisa falar assim.
— Cale a boca e venha me ajudar — ralhou ela.
Eu sorri, com vergonha da rispidez dela. Olhei para ele e ele
também sorria.
— Você pode deixar isso aí — acrescentou ela, quando viu que
Arnaud começava a pegar os pratos para levar à pia.

Subi para o meu quarto e deitei na cama, com os braços dobrados


sob a cabeça, encarando o teto. Estava apenas de sunga, esperando minha
vez para tomar banho. Podia escutar o chuveiro do banheiro ligado, do
outro lado do corredor, onde Arnaud tomava banho. Minutos depois a porta
do banheiro se abriu, fiquei olhando o corredor, esperando-o passar para o
quarto. Em vez disso, ele apareceu em minha porta.
Estava enrolado com a toalha na cintura, o torso nu. Seu peito e
braços eram bem definidos, não musculoso, ele era magro, mas tinham
aquela definição de quem pratica algum esporte, sem fazer musculação.
Ainda estava molhado, os pelos grudados na pele branca cheia de sinais.
Também estava avermelhado, mas não muito queimado. Uma pessoa que
passava semanas velejando no mar com certeza tinha cuidados para não se
queimar sob o sol.
— E aquela rede que você me falou? — perguntou, sorrindo, com
sua voz grave e sotaque acentuado.
Armei a rede em sua varanda, enquanto ele ficou escorado na porta
atrás de mim. Senti seus olhos me observando e me arrependi de não ter
vestido uma roupa. De sunga, me sentia quase nu. Quando terminei, me
virei para trás, mas ele não estava lá na porta, estava sentado na cama
escrevendo alguma coisa num pequeno caderno. Senti-me bobo, pensando
que aquele homem estava secando meu corpo. Claro que não estava. Ele
tinha mais o que fazer. E eu nem sabia se ele era gay. Quase nunca via gays
por ali na nossa ilha. O destino favorito deles era a Ilha Grande. Por que eu
estava pensando sobre isso, afinal?
Quando estava saindo do seu quarto, para finalmente tomar meu
banho e tirar meu cochilo da tarde, ele falou:
— Depois me mostre onde comprar roupa de banho por aqui. Gostei
da sua sunga. — Piscou o olho cor de mar revolto e sorriu com aqueles
dentes brancos perfeitos.
Voltei para meu quarto, sentindo minhas bochechas ruborizarem. Ele
estava, afinal, me observando enquanto eu armava a rede?
Quando fechei a porta, fiquei de cara para o espelho, colado na porta
do guarda-roupa. Observei meu corpo, quase sem pelos, meu rosto liso,
meu cabelo crespo, com os cachos estragados pela falta de cuidados, pelo
sol e pelo mar, meu torso reto, sem curvas ou músculos. Não tinha pelo,
exceto por poucos, finos, nos braços e pernas, alguns em torno dos
mamilos, embaixo do umbigo e os pubianos. Passei a mão no meu peito,
imaginando como seria ter pelos ali, como Arnaud tinha. Como deveria ser
um peito como o dele, o músculo desenvolvido, aquela divisão no meio,
devia ser duro feito pedra. Quando percebi, eu estava excitado.
Aquilo me deixou confuso, nunca havia feito isso antes, tocado meu
corpo assim, pensando em outro homem. Geralmente me aliviava assistindo
pornô ou pensando em Elisa. Ela tinha sido a única garota com quem eu
tinha transado. Bem, ela e outra menina da escola, Joana, no último dia dela
ali na ilha, logo após nossa formatura. Mas tinha sido um desastre, eu era
virgem e gozei antes mesmo da penetração.
Deitei-me na cama, tirei a sunga. Toquei meu corpo pensando no
corpo de Arnaud. Passei a mão no peito imaginando como deveria ser
passar a mão no corpo dele. Pensei em sua barba desgrenhada, em seu olhar
sério e sugestivo, em sua voz grave penetrante, na veia que saltava de seu
bíceps quando ele levava o garfo à boca. Pensei no mamilo, escondido entre
uma fina camada de pelos loiros, aparecendo em sua regata torta.
Levei o travesseiro ao rosto para abafar meus ruídos quando cheguei
ao clímax, afinal, ele estava no quarto logo ali ao lado. Passada a euforia,
chegou o arrependimento. Senti vergonha do que havia acabado de fazer, e,
acima de tudo, estava confuso. Eu não era gay, nunca fui, nunca sequer
cogitei a possibilidade, e agora me via enlouquecido e descontrolado,
excitado pela presença súbita de um homem que nem conhecia. Talvez eu
ligasse para Rebeca, minha melhor amiga e única pessoa gay que conhecia,
talvez ela pudesse esclarecer minhas dúvidas. O que estava acontecendo
comigo era uma fase, um fato isolado, ou algo muito maior que só tenderia
a crescer, como uma nuvem acinzentada que se aproximava no horizonte e
rapidamente tomava conta da Ilha, numa tempestade enfurecida que
arrancava telhados e árvores antigas?
Eu não tinha como saber, não àquela altura. Dormi agitado naquela
noite, como um mar revolto numa tempestade de verão, separado de Arnaud
apenas por uma parede. No dia seguinte o levaria para conhecer a ilha e isso
me deixava nervoso. E se eu agisse estranho? Ele sabia o efeito que causava
em mim? Que efeito era esse, afinal? Parecia uma praga vinda do além-mar
trazida pelos navegadores estrangeiros. Bom, só havia um jeito de
desvendar esse mistério: explorando. E nada como passar um dia inteiro
com ele para compreender o que eu sentia pelo homem. Talvez eu até
perguntasse o que significavam aquelas palavras que haviam me intrigado
tanto: Sotaford-Dortnellas.
O dia seguinte seria interessante.
3 ✹ A CAPELA

N
o dia seguinte, coloquei na cabeça que fazer aquilo seria só uma
obrigação do meu trabalho. Minha primeira obrigação do meu
primeiro trabalho, como funcionário da pousada do meu pai. Era isso.
Eu estava nervoso porque era minha primeira tarefa, e não porque eu ia
levar Arnaud para conhecer a ilha, só eu e ele. Ou pelo menos foi isso que
fiquei repetindo mentalmente.
Iríamos às partes habitadas da ilha, pois, como eu ainda não tinha
licença para fazer trilha na reserva, não poderia levá-lo às áreas mais
inóspitas. Meu pai estava indo para o centro da cidade, então nos deu
carona até lá em sua caminhonete. Fomos na parte de trás, juntos com
minha bicicleta, sob o sol, o cabelo de Arnaud agitando-se ao vento e seus
olhos escondidos atrás dos óculos escuros de lentes avermelhadas. Ele
olhava a paisagem, calado, com um esboço de sorriso na boca. Eu olhava
para ele, quando ele não estava olhando para mim, querendo ver suas
expressões ao admirar nossa paisagem, vendo as plantações de coqueiros,
os bosques, as mansões das celebridades, as casinhas brancas com janelas
azuis que estampavam cartões-postais.
Passamos pela entrada da casa de Rebeca, minha amiga, e pensei em
chamá-la para ir conosco, pois ela havia acabado de chegar de viagem e
ainda não a tinha visto. Mas eu poderia vê-la depois, mais tarde ou no dia
seguinte. Naquela manhã eu queria ficar sozinho com Arnaud. Era minha
obrigação de trabalho.
Meu pai nos deixou em frente à loja do pai de Elisa, onde Arnaud
alugou uma bicicleta. Fiquei aliviado por Elisa não estar lá, pois, por
alguma razão, sentia-me constrangido em ter que apresentá-la a Arnaud, ou
apresentá-lo a ela. Seguimos pelas ruas estreitas do centro, ruas tão estreitas
que o sol não nos alcançava, com paralelepípedos escorregadios que
brilhavam à noite, refletindo a luz amarelada dos postes públicos,
empurrando nossas bicicletas por debaixo de sacadas e marquises antigas,
as casas brancas, amarelas e azuis, as roseiras e bougainvilles que subiam
pelas paredes, as orquídeas penduradas nas janelas, e o constante cheiro de
sal, mar e peixe fresco.
Paramos em uma ou duas lojas de artesanato, que vendiam coisas
sem graça, que se encontravam em qualquer outro lugar do mundo,
chaveirinhos de coqueiro, de prancha de surf, muito embora ninguém ali na
ilha surfasse, já que não tínhamos grandes ondas, garrafinhas com
esculturas de areia, barquinhos dentro de garrafas. Passamos por uma
pequena livraria, a única da nossa cidade, e Arnaud parou em frente,
observando a vitrine.
— Não vale a pena, só vendem porcaria aqui. As livrarias boas
ficam na Ilha Grande — falei, enquanto ele percorria com os olhos as capas
de livros com conteúdo de qualidade duvidosa.
Passamos ao lado da marina, lá havia mais barcos chegando e
atracando, marinheiros saindo de seus veleiros, velas sendo içadas e outras,
guardadas. Passei um olhar rápido procurando pelo barco dele, numa
desculpa para perguntar o que significava Sotaford, mas não encontrei,
havia barcos demais. A marina era um de meus lugares favoritos da cidade,
bem ali no centro, com os barcos que chegavam pelo canal estreito, abrindo
espaço entre os prédios antigos e trazendo um pedacinho do mar para
dentro da ilha. Era barulhento e movimentado, o chão escorregadio,
marinheiros subindo e descendo, gritando ordens e sei lá mais o quê, com
suas línguas estranhas e jargões, pescadores oferecendo seus produtos e
gente anunciando, aos berros, vagas em albergues. Ao redor, restaurantes
baratos, o cheiro de peixe assado se misturando ao do peixe fresco, e
pássaros que se acumulavam ao redor, numa algazarra à procura de comida
fácil.
Levei-o até a praça da cidade, rodeada por bares, pizzarias e mais
pousadas, onde molhamos nosso rosto com a água da fonte, localizada no
centro da praça. No fundo da fonte, moedas brilhavam sob o sol, provas
concretas da constante insatisfação humana, que tudo possui, mas sempre
deseja algo a mais. No centro da fonte se erguia uma estátua de muito mau
gosto. Aquela estátua foi o pesadelo de toda criança que cresceu ali na ilha.
Era um Poseidon, o guardião da ilha e dos mares, de dois metros de altura,
portando um tridente, e um golfinho pulando aos seus pés. Da boca do
animal saía a água da fonte. Antigamente, aos seus pés, existiam lâmpadas
avermelhadas e, à noite, quando se acendiam, o deus adquiria um aspecto
de demônio. Hoje em dia as lâmpadas eram mais modernas, brancas, de
LED, posicionadas em um canto melhor, e à noite a estátua não ficava mais
tão assustadora.
A igreja da cidade ficava a poucos metros dali e fomos até lá,
subindo a rua, numa parte onde o relevo se elevava um pouco, formando
uma pequena colina. Eu nunca fui muito religioso, nem meus pais, mas
admitia a beleza da arquitetura dela. Era a maior construção da nossa ilha,
ocupando o espaço de alguns quarteirões. Erguia-se sobre os prédios,
destacando-se no céu. O branco das paredes, brilhando naquela hora do dia,
quase chegava a cegar. Seus detalhes eram pintados de azul, combinando
com a maioria das casas da ilha. Duas torres esguias erguiam-se nas laterais,
com as pontas pintadas de azul, onde os sinos tocavam a cada duas horas. A
vista da sala do sino era espetacular, podia-se ver toda a ilha, olhando a
cidade do alto. As montanhas eram o ponto mais alto da nossa ilha, mas
eram longe, ao sul. Naquela porção do território, a igreja era o ponto mais
alto. Mas não se podia entrar lá, subi apenas uma vez, escondido com meus
amigos durante o casamento de um casal de atores famosos, que havia
chamado toda a atenção da ilha. Entre essas duas torres, um pouco mais
atrás, erguia-se outra, ainda maior e mais larga, com uma cúpula azul que
ostentava o poder da Igreja. No alto da cúpula, uma pequena cruz dourada
virava-se para o mar.
— Um belo lugar para se casar — observou Arnaud.
Perguntei-me se Arnaud era casado, se tinha filhos, se planejava
casar. Imaginei como seria a família dele, se tinha pais, se eles protestaram
quando ele falou que ia atravessar o oceano, se tinha irmãos, se tinha um
cachorro que havia deixado no continente aos cuidados do seu melhor
amigo. Se ele tinha amigos, namoradas, namorados.
— Eu costumava namorar escondido nos fundos da igreja da minha
cidade quando era adolescente. Tenho certeza que vocês fazem o mesmo
por aqui — disse ele, sorrindo.
Sorri e admiti. Fazíamos isso, especialmente quando éramos ainda
mais jovens e brincávamos com essa ideia de proibido. Hoje namorávamos
na praça ou na praia, sem vergonha. A rua atrás da igreja era deserta e
pouco movimentada, cercada de um lado pela parede cega da construção e
do outro pelo muro do cemitério. À noite, durante a missa, em meio ao
cheiro de mijo que exalava dos muros, e da áurea macabra do cemitério,
beijávamos no escuro. Imaginei como Arnaud devia ser na adolescência,
quem ele beijava, como ele beijava, o que ele fazia, qual era seu gosto
musical, literário, que filmes ele viu naquela época, qual sua comida
favorita.
Aquela parte do centro da cidade era a mais antiga da ilha,
remetendo ao período da colonização, e a maioria dos prédios, corroídos
pelo tempo e pela maresia, era desocupada. O único movimento naquelas
ruas era nas horas antes e depois das missas. Descemos a rua silenciosa da
igreja até uma pequena praia localizada entre grandes rochas, uma pequena
faixa de areia escondida, de onde saía um caminho estreito de cerca de
duzentos metros de comprimento, feito de pedra, erguido sobre a água, em
direção ao mar, como uma ponte. No fim do caminho havia uma pequena
ilha rochosa, ocupada apenas por uma capela branca.
— Vou te mostrar o lado da nossa ilha que os turistas não conhecem
— falei, animado, aquele era um dos meus pontos favoritos da cidade. —
Não espalhe pra ninguém.
​Ele passou os dedos teatralmente nos lábios, selando-os como que
fechando um zíper.
Deixamos nossas bicicletas na praia e seguimos o caminho em
direção ao mar, com as ondas se agitando ao lado, um pouco abaixo dos
nossos pés. Deixei Arnaud ir à frente, o cabelo bagunçado, a camisa de
linho verde aguado, com uma mancha de suor nas costas, esvoaçando atrás
de si. Observei sua perna, peluda, os músculos da panturrilha se contraindo
e relaxando enquanto ele caminhava. O barulho da sandália batendo contra
o calcanhar enquanto ele caminhava sobre as pedras úmidas. Estava de
costas para mim, mas eu sabia que aquele seu esboço de sorriso estava lá.
A capela não tinha portas nem janelas. Elas haviam sido retiradas há
muitos anos, restando-se apenas os espaços onde antes ficavam.
— Não tem nada aqui — exclamou ele, surpreso, ao entrar.
Sorri, era exatamente a reação que eu esperava dele. A capela era
uma pequena sala de poucos metros quadrados completamente vazia, sem
nenhum móvel ou ornamentação, apenas a parede branca desbotada.
— Construíram essa capela centenas de anos atrás. Os colonizadores
acreditavam que a ilha era governada por demônios, então construíram o
templo aqui, afastado da ilha, onde acreditavam que seu deus ia protegê-los
— expliquei, passando a mão na parede embolorada, que clamava por uma
restauração. — Acontece que nos anos seguintes a maresia, a ressaca do
mar ou as tempestades sempre arruinavam a capela, deixando apenas as
paredes, então um dia cansaram de reconstruí-la, tiraram as coisas de dentro
e a abandonaram. Alguns anos depois construíram a igreja grande.
Arnaud havia tirado os óculos escuros e os havia pendurado na
camisa que, com o peso do objeto, era puxada para baixo, aumentando o
decote e expondo ainda mais o peito peludo, e me observava, com aqueles
olhos verdes de banzeiro em fascínio, prestando atenção em minha história.
— Mas não foi por isso que te trouxe aqui — falei, e ele franziu o
cenho, ainda sorrindo, mas intrigado com o enigma. — Olhe pra janela.
A construção possuía quatro janelas, ou melhor, buracos, onde
deveriam estar as janelas, dois do lado esquerdo e dois do lado direito. Os
do lado esquerdo davam para o mar, aquela imensidão a se perder de vista,
uma beleza espetacular. Mas não era isso que eu queria que ele visse, pois o
mar ele já conhecia demais. Eu queria que ele conhecesse a minha ilha.
Então o mandei olhar pela janela do lado direito, virada para a cidade. Ele
colocou a cabeça para fora e ficou olhando por alguns segundos.
Então virou-se de volta para dentro e exclamou, olhando para mim,
com os olhos brilhando como uma criança encantada pelo presente de natal:
— Uau!
A parede da capela era larga, então sentamos no vão da janela, que
era grande o suficiente para nós dois. Ficamos com os pés para fora,
balançando-os. Nossas pernas, lado a lado, estavam quase se tocando, e o
turbilhão de vento nos soprava o rosto. Bebemos água compartilhando a
mesma garrafa, eu provando a sua saliva quando levava a garrafa à boca, e
ele provando a minha.
— Você tem uma vida incrível aqui — falou em certo momento,
após um silêncio de contemplação.
— Um pouco monótona, mas eu gosto — concordei. Turistas
geralmente costumavam falar isso, como nossa ilha era incrível. Antes de se
cansarem da nossa monotonia após alguns dias. Nada acontecia aqui.
Estavam acostumados à agitação e a todos os excessos do continente. E nós
ao marasmo, com algumas tempestades aqui e acolá. Além disso, eles
conheciam nossa ilha apenas no verão, seu período de maior brilho.
— O que você gosta de fazer? — perguntou, parecendo subitamente
interessado em minha vida.
— Além disso? — sorri, apontando para o mar ao nosso redor.
— Além disso — ele insistiu.
— Quando não estou no curso, leio, vejo filmes, acampo. Saio com
meus amigos também, mas gosto de ficar sozinho. Também escrevo e ajudo
meus pais no trabalho — disse, expondo quase completamente a minha vida
inteira, muito embora ainda não soubesse nada sobre a dele.
Ele arqueou uma sobrancelha, surpreso.
— Você escreve? Tem que me mostrar algum texto seu um dia.
— Talvez — falei, envergonhado. Não gostava de mostrar meus
textos a ninguém. Era como se despir de minha pele e mostrar minha alma a
todos. Por isso, guardava minhas histórias apenas para mim.
Ele havia parado de balançar as pernas, e sua mão, apoiada na
janela, estava a apenas alguns centímetros da minha. Eu podia sentir a
tensão entre nossos dedos, como uma força magnética, nos puxando, nos
atraindo. Aquela força era tão forte que fiquei sem fôlego, com o coração
acelerado, tentando resistir ao impulso de colocar a mão sobre a dele e
sentir o toque de sua pele. Queria saber qual era a sensação de segurar uma
mão tão diferente da minha, que contrastava em cor, tamanho, textura,
força. De repente, ele afastou a mão e tirou o caderninho do bolso. Tentei
imaginar o que era aquilo, mas achei indiscrição perguntar. Enquanto ele
escrevia, seja lá o que fosse, dei um gole na água, tentando disfarçar a
ansiedade com calor. Mas logo me arrependi, pois instantaneamente minha
bexiga começou a implorar para ser esvaziada.
Eu só tinha duas opções para fazer xixi ali: ou voltava para o
caminho de pedras e despejava minha bexiga no mar, ou descia da janela e
fazia isso na frente de Arnaud. A faixa de pedras era bem mais estreita nas
outras laterais da capela, e não comportava uma pessoa. Apenas ali, entre o
mar e a parede onde estávamos sentados, eu poderia ficar em pé e mijar no
reino de Poseidon.
— Preciso mijar — ele disse, interrompendo meus pensamentos.
Trinquei os dentes, tentando suprimir o riso. Às ironias da vida só me
restava rir. — Acho que não tem banheiro nessa capela, não é?
— Claro que tem. Vem — falei, tomado por uma coragem que não
sabia de onde vinha, talvez motivado pelo deus dos mares, e pulei da janela
sobre as pedras que nos separavam do mar. Abri os botões do meu short,
apontei meu pênis para a água e abri a torneira.
Atrás de mim, ouvi Arnaud dar uma risadinha. Então ele repetiu
meus movimentos, pulando nas pedras e posicionando-se ao meu lado.
Mantive o olhar fixo no horizonte, minha cabeça imóvel, enquanto ouvia
seu zíper abrir e sua urina encontrar o mar. O vento estava ao nosso favor, o
mijo projetava-se longe, o amarelo se fundindo ao azul, e com o canto do
olho eu podia ver o arco de urina que saía de Arnaud, quase formando um
arco-íris. Desejei que a direção do vento mudasse, que seu líquido quente
fosse soprado sobre mim, que molhasse meus pés e eu sentisse o calor que
saíra do seu corpo, eu então fingiria choque e repulsa, olharia para ele
surpreso e, com a rapidez do momento, veria o que havia guardado em sua
cueca, antes que ele escondesse novamente.
Mas isso não aconteceu, continuei paralisado, quase em pânico,
olhando para frente, meus olhos só viam o mar. Ao meu lado, Arnaud
também parecia imóvel, calado, só ouvíamos o barulho do vento, do mar e
do nosso mijo. Esforcei-me ao máximo para segurar meu globo ocular,
impedi-lo de girar para baixo e encarar as partes dele. Eu não conseguia
entender. Quantas vezes eu já não tinha mijado ali mesmo naquelas pedras,
ao lado de meus amigos, Américo e Augusto, e nunca senti nenhuma
vontade de olhar para seus pênis, e, nas vezes que acidentalmente os vi,
nada me causou? Parecia que eu estava longe de descobrir que efeito era
esse que o homem causava em mim, e isso me desesperava. Para piorar, eu
não sabia se eu causava algum efeito nele. Será que ele também sentia uma
vontade desesperadora de olhar em minha direção?
Com o canto dos olhos, vi Arnaud se agitar ao meu lado, e então
ouvi o barulho do seu zíper fechar.
— Que bela vista você me trouxe para ver, hein — falou. Engoli em
seco.
Ajeitei a cueca, fechei o short e, lentamente, olhei para ele,
inclinando um pouco minha cabeça, já que ele era mais alto que eu. Ele não
olhava para mim, seu pescoço estava esticado, quase tenso, e seu rosto
virado para frente. Olhava para o horizonte. Acompanhei o seu olhar.
Ao longe, víamos a enseada da praia do centro da cidade, cheia de
coqueiros, guarda-sóis, banhistas, lanchas e os quiosques ao fundo, com
seus bares e restaurantes caros.
— Aquela é a praia mais movimentada, mas não é a melhor — falei,
pensando se um dia eu chegaria a mostrar a Arnaud todas as praias da nossa
ilha. Aquela minha praia secreta.
— Um dia você me mostra as melhores — ele disse, olhando
finalmente para mim, com seu sotaque que parecia cada vez mais fraco,
como se ele já estivesse se adaptando à nossa ilha, e sua voz grave e firme,
porém gentil, que, cada vez mais que eu a ouvia, começava a me dar
arrepios na nuca. Não arrepios ruins, aqueles de pavor. Talvez sim, de
pavor, pois a sensação de prazer que eu tinha ao ouvi-lo falar me apavorava.
Ele estava novamente com os óculos escuros, mas era como se eu pudesse
ver seus olhos.
4 ✹ O TOQUE

H
avia passado um ano inteiro ajudando meu pai com a construção da
pousada. Faltava um dia para ela ser oficialmente aberta, mas havia
alguns pequenos ajustes a serem feitos. Retoques na pintura,
lâmpadas, tomadas e interruptores a serem instalados. Passei aquela manhã
com meu pai, ajudando-o. Rebeca, minha vizinha, uma garota da minha
idade, estava na beira da piscina, balançando os pés na água, observando-
nos. Ela era minha melhor amiga, mas eu só a via naquela época do ano.
Morava no continente, cursava jornalismo numa universidade prestigiada de
lá, e apenas passava as férias de verão ali na ilha, na casa da avó, nossa
vizinha. Conheci Rebeca quando éramos duas crianças entediadas e sem
amigos. Meus pais, amigos da avó dela, traziam ela para brincar em nossa
piscina. E assim, eu esperava todo ano pela melhor de todas as estações, o
verão, trazendo o sol e Rebeca. Ela era descendente de japoneses e suas
bochechas, claras, estavam avermelhadas por causa do calor. Ali no sol,
seus cabelos lisos pareciam ainda mais pretos.
— Tu deveria nos ajudar em vez de ficar aí só olhando —
resmunguei, enquanto ela bebericava o chá gelado que minha mãe havia
servido. Rebeca estava de maiô, frequentemente vinha até a nossa casa
tomar banho de piscina, já que na da avó não tinha. Muitas vezes ela
chegava sem avisar.
— Eu não — sentenciou, então colocou o copo de lado, sob a
sombra de um guarda-sol, e mergulhou na piscina.
Apressei-me, queria me jogar na água com ela. O sol estava
escaldante e o ar, extremamente quente e abafado. Havia começado o
trabalho vestido, mas, àquela altura, encharcado de suor, já havia tirado a
camisa e trabalhava apenas de short. Por baixo do short, porém, vestia uma
sunga, pronto para me jogar na água.
— Tome banho antes de mergulhar, tá todo sujo de tinta —
observou meu pai, quando terminei de instalar os interruptores e verifiquei
se todos funcionavam.
— E suado! — gritou Rebeca, fazendo uma cara de nojo.
Na borda da piscina, mármore fervente, tirei meu short, joguei em
uma cadeira espreguiçadeira que ficava ali ao lado e corri até o chuveiro.
Aquela água fresca e gelada correndo sobre minha cabeça quente era a
melhor sensação do mundo. O choque térmico. Olhei para a minha pele,
preta, brilhando sob o sol, avermelhada com o calor: parecia brasa.
Pulei na piscina, recebi uma reprimenda do meu pai por ter molhado
tudo ao redor, e me aproximei de Rebeca, que tinha na cara um risinho
desconfiado.
— O que foi? — perguntei. Achava que ela tinha feito algo errado.
— Não fizesse xixi na piscina não, né?
— Quem é aquele boy lá em cima? Não olhe! — disse, apontando
com o polegar para trás de si, onde estava a varanda do quarto do meu
irmão.
— É um hóspede novo, chegou antes do previsto. Vai ficar lá na
casa enquanto não terminamos aqui — expliquei.
— Ele tava te olhando agorinha, quando tu tomava banho. Acho que
é... — ela disse, gesticulando a mão, dobrando o punho, ainda com o risinho
sapeca.
— Primeiro, não, ele não tava — neguei prontamente, mesmo sem
ter visto. Não queria deixar dúvidas em minha própria cabeça. Estava? —
Provavelmente ele tá te olhando. E, segundo, tu é a última pessoa que
deveria estar julgando os outros.
— Não tô julgando, querido, tô apenas afirmando — retrucou,
pomposa, jogando o cabelo molhado para trás. — Tu que está perdendo, um
homão desses...
— Não faz meu tipo, e nem muito menos o seu, que eu saiba —
brinquei, muito embora começasse a questionar aquela afirmação. Eu me
considerava, até o momento, heterossexual, não notava os homens e nunca
os olhara com desejo. Arnaud, entretanto, estava despertando em mim
sensações que eu não conhecia.
— Eu sei, mas... Não tem sapatão nessa ilha, vou morrer seca aqui.
Minha sorte é essa piscina. — Rebeca jogou-se para trás, pondo-se a boiar.
Nadei até a borda da piscina e peguei o copo dela de chá gelado,
dando um gole enquanto discretamente verificava se Arnaud realmente
olhava para mim. Mas ele não estava mais na varanda.
— Vai pro centro hoje à noite? — ela perguntou, tomando o copo de
volta da minha mão.
— Acho que não — respondi. Com a primeira leva de velejadores
na ilha, naquela noite, uma sexta-feira, o centro da cidade estaria muito
movimentado, com os bares cheios e a boate aberta, depois de todos aqueles
meses juntando poeira. As meninas estariam ocupadas, suas atenções todas
voltadas para os novos aventureiros, e os meninos, carrancudos, com
ciúmes, procurando briga. Eu não estava a fim de presenciar esse festival.
— Também não — disse, colocando o copo vazio de volta à borda
da piscina. — Parece que sobramos só nós dois — acrescentou. — E tu e
Elisa, como estão? — perguntou ela, de repente, nadando até o meu lado.
​— Como tu sabe? — Estava surpreso, eu e Elisa transávamos há
mais de dois anos, mas nunca passou disso, entre nós era só sexo, e nunca
contamos a ninguém. Era como uma brincadeira pra gente, apenas uma
experiência, nada sério. Éramos diferentes demais, tínhamos gostos e
objetivos diferentes, então nossa relação nunca passou disso. Nunca contei
a Rebeca, temia que ela me julgasse ou achasse ridículo. Sabia que ela não
era a maior fã de Elisa.
​— É um pouco óbvio, todo mundo sabe.
​Todo mundo quem?
​— Não importa — retruquei. — De todo modo, ela vai encontrar
algum turista hoje no centro e se ocupar dele o resto do verão. Como todo
mundo faz.
​— E fugir com ele depois.
​— Ela não faria isso... Faria?
​Peguei-me olhando de novo para a varanda ao lado do meu
quarto, inconscientemente, ou não, esperando encontrar Arnaud ali. Para
minha surpresa, me senti decepcionado ao não vê-lo, com sua regata torta
que deixava o peito exposto e o short acima dos joelhos, na altura certa para
mostrar a divisão dos músculos da coxa.
Ali, olhando para a varanda vazia, lembrei do nosso caminho de
volta para casa, no dia anterior, quando saímos da capela. Nossa conversa
sobre a vida, sobre o mundo, livros e músicas, enquanto pedalávamos
lentamente sob o sol. Apesar de, naquele momento, eu saber um pouco mais
sobre ele, queria saber muito mais. E que ele soubesse ainda mais sobre
mim. Contei para ele quais eram meus livros favoritos, esperando
impressioná-lo, e tive a impressão de ter mesmo conseguido, já que
tínhamos gostos parecidos. Falamos sobre nossos livros favoritos, Crusoé,
O processo, O estrangeiro, O cortiço, falamos de Stephen King, Machado,
Saramago, Murakami, Agatha Christie, Elena Ferrante. Falamos da
supervalorização do Apanhador no Campo de Centeio e em como
odiávamos Lolita. Falamos de música também, as clássicas, as eruditas, os
rocks, os pops, as folclóricas, falamos de algumas músicas da minha região
que ele conhecia e de algumas francesas que eu amava.
Até as nossas diferenças nos completavam. Eu era do cinema falado;
ele, do mudo. Preferia os de cores, e ele, os monocromáticos. Meu estilo era
mais Xavier Dolan, enquanto ele, Jean-Luc Godard. O contemporâneo e o
clássico. Na mitologia grega era o contrário, ele preferia o contemporâneo,
Percy Jackson, e eu, a clássica, Odisseia. Nas comidas, eu preferia doce; e
ele, o salgado. “Um dia eu te faço uma tartiflette tão deliciosa que você
nunca mais vai querer comer doce na vida”, ele disse. E eu soube que a
partir daquele momento sonharia eternamente com o dia em que ele
cozinharia batatas com bacon para mim. Continuamos assim, trocando
figurinhas (muito embora nosso álbum ainda estivesse cheio de espaços a
serem preenchidos), fascinados com nossas descobertas, pedalando para
casa distraídos, com o vento bagunçando nossos cabelos, olhando um para o
outro, sorrindo, jogando conversa fora e quase atropelando pedestres ou
tropeçando em pedras, até que nosso caminho acabou e nos despedimos,
“obrigado pelo passeio, Nico”, ele disse e foi para o quarto dele, e eu, para
o meu.
Arnaud, onde estava você? Eu precisava de mais figurinhas. Por que
não estava ali na varanda, como Rebeca havia me dito, me olhando? Eu
queria que ele me olhasse do mesmo modo que eu o olhava. Na verdade,
nem sabia que modo era esse que eu olhava para ele. Era desejo,
curiosidade, admiração? Não sabia o que era, mas era aquele olhar que me
causava um embrulho engraçado no estômago, aquele mesmo olhar que ele
me lançara quando chegou na ilha em seu barco a vela, o Sotaford. Era um
olhar que eu nunca antes vira em alguém, e nem para ninguém eu assim
havia olhado. Nem para Elisa. O que era que aqueles olhos cor de mar
revolto queriam dizer? Eu estava intrigado.
​— Tais bem? — perguntou Rebeca. Olhei para ela. Eu havia passado
muito tempo encarando a varanda. — Tá meio avoado.
​— Cansado — respondi.
​ as meu cansaço passou instantaneamente assim que vi Arnaud
M
chegar. Ou melhor, ouvi. Reconheci seus passos, o barulho das sandálias se
chocando contra o piso de pedra molhada e em seu calcanhar.
​— O que fazem? — perguntou ele, sentando-se numa
espreguiçadeira sob o guarda-sol, ao lado da piscina. Ele segurava um
pequeno prato com uma toranja, uma colher e uma faca, e os colocou sobre
a mesinha de plástico ao lado de sua cadeira.
​— Prazer, Rebeca — disse ela, estendendo o braço para fora da
piscina.
Arnaud era alto, e sem nem mesmo precisar levantar da cadeira,
esticou o braço e apertou a mão molhada dela.
— Enchanté — respondeu.
— Ui, que chique — disse Rebeca, dando uma de suas risadinhas.
— Anchantê, Arnô. Nico falou muito bem de você — acrescentou, e eu a
fuzilei com o olhar.
— Vocês aceitam? — ofereceu Arnaud, após um sorriso educado e
desconcertado, apontando para a toranja ao seu lado. — Não quero comer
uma inteira. — Rebeca recusou, agradecendo e se afastando da borda da
piscina para ir nadar.
— Aceito — respondi. Eu não podia recusar a oferta de uma toranja,
fruta rara na nossa casa. Era cara, importada do continente, e minha mãe só
comprava quando tinha visitas. Ainda mais se era oferecida por Arnaud, eu
tinha que aceitar.
Ele partiu a toranja no meio e, em vez de me entregar a banda dali
de onde estava, levantou-se da cadeira e sentou-se na borda da piscina,
colocando os pés na água, ao meu lado.
— Só trouxe uma colher — falou, desculpando-se, entregando a
minha metade da fruta. — Vamos ter que dividir. Se você não se importar...
— Não me importo — respondi prontamente, quase que exasperado.
Desesperado. Eu poderia comer sem a colher, mas comer uma toranja dessa
forma não era nada bonito. O suco vermelho escorrendo pela boca... Não,
eu queria compartilhar a colher de Arnaud.
Ele sorriu, os pés de galinha surgindo ao redor dos seus olhos verdes
que tinham brilho do mar ao meio-dia. Saí da piscina e sentei ao lado dele,
com as fatias de toranja entre nós dois. Olhei para a pousada, para saber se
meu pai estava ali nos observando, como se eu estivesse fazendo algo
errado e não quisesse ser pego em flagrante. Mas ele não estava, devia ter
entrado em um dos quartos para consertar alguma coisa.
A fruta estava suculenta, com aquele sabor cítrico que me lembrava
verão, ácida e doce, com um amargo no final. Comemos a toranja em
silêncio, observando Rebeca nadar, compartilhando a colher enquanto o sol
queimava nossos ombros. Ele, com o short enrolado na coxa para não
molhar, os pelos da perna submersos, balançando com a agitação da água, a
camisa de botões completamente aberta, o suor escorrendo no peito. Eu, de
sunga, ainda molhado, as gotas d’água que sobreviveram à evaporação
ainda escorrendo na pele, me dando arrepios quando o vento me tocava.
Ele, entretanto, não me tocou, enfiava a colher na sua metade da
toranja, e então levava à boca, passando-a entre os lábios, me entregando
logo em seguida, sem tocar seus dedos nos meus, e eu repetia seus
movimentos, levando a colher umedecida com sua saliva à boca, um toque
indireto, um beijo indireto.
— Não é fácil comer toranja — disse ele, observando seus dedos
lambuzados com o suco pegajoso e vermelho da fruta.
Eu, inconscientemente, ou não, levei um dedo, o meu, não o dele, à
boca e chupei, limpando com a língua o resquício de suco que havia
grudado à minha pele. Ele pareceu não reagir, ficou paralisado observando
enquanto eu colocava o dedo na boca e lentamente tirava, deixando um
filete de saliva entre os dois, e então, num sobressalto, como se tivesse
levado um choque, levantou-se, pegou as cascas da toranja que já havíamos
terminado de comer e falou:
— Vou tomar um banho. — E caminhou depressa em direção à casa,
batendo a porta atrás de si ao entrar.
Fiquei estático, observando a porta fechada, me arrependendo da
estupidez que eu havia acabado de fazer. Eu realmente havia chupado meu
dedo olhando para ele? Olhei para Rebeca, para ver se ela havia visto
alguma coisa, mas ela parecia distraída no celular, na borda da piscina, de
costas para mim. Mergulhei na água, para me esfriar, o corpo e a mente, e
fiquei boiando, o sol queimando minhas pálpebras, a água gelada nas costas
e o barulho do mar se chocando contra as pedras à distância.

​ ão muito tempo depois, minha mãe gritou para entrarmos e


N
irmos almoçar. Meu pai, que ainda estava na pousada, largou o trabalho, eu
e Rebeca nos enxugamos e fomos todos para a mesa, na cozinha. Arnaud
estava lá, ajudando minha mãe. Ele havia tomado banho há pouco tempo,
eu podia perceber pelo seu cabelo loiro penteado para trás, ainda molhado,
dividido pelos dentes do pente. Ainda usava o mesmo short, o branco,
aquele que deixava aparecer a divisão da sua coxa. Não calçava nada nos
pés, andávamos descalços na minha casa. Observei até o seu pé, cheio de
veias e tendões, queria conhecer o corpo dele inteiro. Usava uma camisa de
botões de tecido leve, florido, folgada e esvoaçante, talvez de um tamanho
maior que o dele. Os três primeiros botões estavam abertos, mostrando,
novamente, seu peito. Os pelos estavam secos, bagunçados, podia-se ver a
divisão do peitoral, os músculos duros, mas não tão grandes. A pele branca
dele estava avermelhada, mas não demais, e senti vontade de perguntar se
ardia.
​Ele pôs a mão na abertura da camisa e coçou o peito. Teria o dedo
dele roçado no mamilo? Os mamilos dele eram sensíveis, tais como os
meus? Ele se excitava quando o dedo roçava ali? Começava a me perguntar
se ele estava fazendo aquilo de propósito, para me provocar. Ele sabia,
afinal, que eu estava olhando? Quando seus olhos encontraram os meus,
deu o mesmo sorriso e piscadela de sempre.
​Sentamos à mesa. Era uma mesa grande e redonda de madeira
maciça, meus pais sentaram do lado oposto ao meu, e eu fiquei entre
Rebeca e Arnaud. Assuntos diversificados saíam da boca de todos enquanto
nos preparávamos para comer, passando para lá e para cá as travessas de
comida. Meu pai pedia desculpas a Arnaud pelo atraso da pousada, Arnaud
falava que não era atraso, ele que estava adiantado. Minha mãe interrogava
Rebeca sobre a universidade no continente e perguntava se ela não tinha
vontade de voltar para a ilha. Rebeca dizia que não, pois ali não tinha nada
para fazer. Minha mãe se ofendeu e disse que ela não comeria sobremesa.
Rebeca ficou feliz, pois estava de dieta, de qualquer forma. Minha mãe
então disse que uma moça da idade dela não deveria fazer dieta e que ela
seria obrigada a comer a sobremesa.
​Arnaud apenas ria, da gente e com a gente. Com meu ouvido
direito eu escutava a sua risada, meio séria, contida, educada e grave.
Sexy.
— Passa mais salada, por favor — pediu Rebeca em certo momento.
​Comecei a esticar meu braço para pegar a tigela com as folhas,
mas Arnaud já tinha se adiantado. Estava mais próxima a ele, de todo
modo. Não sei se foi de propósito ou apenas um ato sem pensar, mas
Arnaud não passou a tigela para mim, para eu passá-la então para Rebeca.
Ele esticou-se sobre a mesa para entregar a tigela diretamente a ela,
prostrando-se sobre mim, que estava entre os dois. Seu pescoço ficou quase
colado ao meu rosto. Se me movesse um pouco para frente, podia beijá-lo.
Nunca havia beijado outro homem, exceto meu pai, na bochecha.
Perguntava-me como seria a sensação. Naquela distância eu podia sentir seu
cheiro, não de perfume, mas um cheiro natural, misturado com o frescor do
banho que ele havia acabado de tomar. Suave, adocicado, frutado. Era um
cheiro familiar, mas ainda não conseguia lembrar onde eu já o havia
sentido.
​Ele entregou a tigela a Rebeca e voltou para seu lugar. No
caminho, enquanto voltava, seu braço roçou no meu. Bem de leve, quase
que imperceptível. Talvez para qualquer pessoa aquilo passasse, sim,
despercebido. Nossas peles nem sequer tocaram. Mas eu percebi. Os pelos
do meu braço, que eram quase inexistentes, tocaram suas pontas na parte de
baixo do antebraço dele. Não toquei sua pele, mas meus pelos tocaram, em
frações de milésimos de segundos. Tempo que pareceu uma eternidade,
pareceu ter congelado. É possível sentir inveja de uma parte de seu próprio
corpo? Pois eu senti inveja de meus pelos.
​Não sei se aquilo foi realmente importante. Não sei se foi mero
acaso, acidente ou um ato deliberado e premeditado. Não sei se minhas
dúvidas eram na verdade desejos e esperanças. Mas depois daquele toque
entrei num transe, não escutava mais ninguém falar, nenhuma conversa
importava mais. Todas aquelas palavras e olhares trocados, os sorrisos, nada
disso chamava minha atenção. Tudo fora ofuscado diante daquele instante.
Aqueles milésimos de segundos em que nossos braços ficaram tão
próximos que... As pontas de nossos pelos se tocaram. E, naquele silêncio
que durou todos os milésimos de segundos do pequeno contato, segundos
que pareciam horas, fui torturado por meus pensamentos — o que será que
ele pensava? Será que havia sentido também? — Aquele arrepio, aquela
sensação de proximidade que foi quase um beijo. Poderia ser um beijo.
Poderia ter sido mais. Os pelos se aproximando, mais e mais, roçando,
esmagando um ao outro até chegar ao toque da epiderme. O ápice, o
encontro máximo de dois corpos: o toque.
Então reconheci o cheiro familiar que ele emanava. Era meu
sabonete. Ele havia tomado banho com o meu sabonete.
5 ✹ O SABONETE

E
squadrinhei meu sabonete minuciosamente, à procura de evidências
que comprovassem o crime. Que me confirmassem que Arnaud
realmente havia tomado banho com ele. E lá estava ela: a
comprovação daquele ato libidinoso, da profanação, do sacrilégio. Meu
sabonete fora violado por aquele homem, e a prova disso era um fio, fino e
quase imperceptível, de cabelo loiro colado na espuma seca do sabonete.
Não havia ninguém com cabelos loiros naquela casa, além dele.
​Pensei em jogá-lo fora. Eu era extremamente higiênico e um
pouco individualista, não gostava que usassem minhas coisas,
especialmente quando se tratava de itens de higiene pessoal. Uma vez meu
irmão usou meu sabonete e o joguei no lixo, enojado. Mas aquele sabonete
ali, o usado por Arnaud, que o havia passado em todo seu corpo, em vez de
jogá-lo fora, eu o cheirei. Queria saber qual cheiro era mais forte, o do
sabonete ou o do corpo dele.
​Entrei debaixo do chuveiro e, quando menos esperei, estava
esfregando aquele pedaço de sabão no meu corpo. No rosto, descendo pelo
pescoço, peito, roçando nos mamilos, pela barriga, até a virilha. Estava
quase sem fôlego, dando longas e profundas aspiradas de ar, com os olhos
fechados, esfregando o sabão em meus pelos pubianos e pênis, formando
uma espessa espuma. Fui escorregando pela parede até me sentar no chão, o
mesmo chão que há poucos minutos Arnaud estivera em pé, nu, por onde
havia escorrido a sujeira do corpo dele. Eu pensava no corpo dele, as partes
que eu havia visto, e as partes que não, pensava naquele sabonete, e por
onde ele havia percorrido. Queria pegar as células mortas da pele de Arnaud
que haviam ficado ali naquela espuma e esfregá-las em mim, queria ter uma
parte do seu corpo no meu.
​Quando ejaculei, tentei fazer silêncio, a porta era fina, alguém no
corredor poderia escutar, mas deixei escapar um gemido, não resisti, um
gemido longo, exausto, desesperado. Um gemido de quem há muito tempo
era privado de prazer. Um gemido de alguém que ansiava por um prazer
que nunca havia tido.

​ aí do banho enrolado na toalha. Meu cabelo ainda estava


S
molhado, pingava sobre o ombro e escorria pelo tronco. Em dias quentes
como aquele, gostava de terminar de me secar com o vento que soprava
pela varanda.
​Arnaud estava lá, parado no meio do meu quarto, de costas para a
porta, encarando minha estante de livros. O que ele estava fazendo ali?
Bisbilhotando? Pior, ele havia me escutado no banheiro?
​Pigarreei, anunciando minha presença. Esperava que ele virasse
de supetão, assustado, pego de surpresa, ladrão pego em flagrante, primeiro
maculando meu sabonete, depois praticando atos de voyeurismo com meus
livros. O pior dos criminosos. Dali, o levaria para a cadeira elétrica. Não,
para a forca. Guilhotina. Cortaria sua cabeça fora e a veria rolando ladeira
abaixo. Mas não, ele virou a cabeça lentamente, seus olhos indo de encontro
aos meus. Seguro de si como se aquele fosse o seu quarto, e eu, o invasor.
Então abriu um sorriso, aquele sorriso contido, educado. Tornou o corpo
para mim. A camisa não mais tinha três botões abertos, tinha quatro, podia
ver a depressão que marcava o início do seu abdome. O caminho de pelos
que desciam até...
​— Desculpe ter entrado sem pedir. Sua mãe disse que eu poderia
entrar e pegar um livro seu. Estava esperando você sair do banho — ele
falou. Gelei. Definitivamente ele havia me escutado gemer, especialmente
levando em consideração o silêncio que pairava ali. Tornou a sorrir e
voltou-se para a estante. — Li todos os livros que trouxe comigo no mar.
Você tem uns bons exemplares aqui — acrescentou, passando a mão sobre
as lombadas dos meus livros.
​Quem lhe dera aquele direito de tamanha intimidade?
​— Pode pegar o que quiser — falei. Decidi deixá-lo escolher, não
quis sugerir nenhum. Afinal, queria ver qual seria sua escolha. Nada melhor
como o gosto literário para se conhecer alguém.
​Enquanto ele vasculhava a biblioteca, com a cabeça curvada a ler
os títulos, enquanto assentia silenciosamente a cabeça para uns, emitia um
suave “hmm” para outros, deixando escapar um “intéressant” vez ou outra,
e retirando alguns exemplares para averiguar as capas e os guardando de
volta, e eu ficava pensando o que ele achava de meus livros, senti um
impulso louco, selvagem, primitivo, exibicionista.
​Queria ver, de uma vez por todas, se ele realmente olhava para
mim como, às vezes, eu olhava para ele. Abri o guarda-roupa, à procura de
algo para vestir. O móvel ficava na parede oposta à da estante, então
estávamos de costas um para o outro. Desfiz o nó da toalha e a deixei cair.
Deixei-a cair com força, queria que ela fizesse barulho de tecido molhado
ao tocar o chão, queria que ele escutasse aquele barulho e soubesse que eu
havia tirado a toalha e estava ali, nu, atrás dele. Quando ele se virasse, veria
minha bunda, esbranquiçada, a marca da sunga, do bronze, enquanto eu me
abaixava para pegar uma cueca numa gaveta baixa. Perguntei-me se ele
ouviu, assim como havia escutado, também, o meu gemido no banheiro.
​Desejando que ele me visse, excitado pela possibilidade de ele
realmente estar olhando, tive outra ereção. Senti vergonha, me apressei e
vesti logo a cueca. Ao fazer isso, escutei o barulho de livros sendo
derrubados. Virei-me, sobressaltado, pelo barulho e pela súbita ereção, e lá
estava ele, recolhendo os livros que havia derrubado, com o rosto virado
para todas as direções, menos para a minha. Ele olhou para mim, depois
olhou para os livros no chão, pegou um deles, guardou o restante na
prateleira de qualquer jeito, agradeceu rapidamente, falando que o
devolveria assim que lesse e saiu.
​Fechei a porta do quarto após ele passar, encostando-me nela.
Arquejava. Olhei para baixo e vi o volume em minha cueca. A ereção ainda
estava ali. Será que ele havia visto?
​Estava estarrecido com o que havia acabado de acontecer. Arnaud
havia me causado uma ereção e possivelmente havia visto. Eu não era gay.
Era? E se ele não fosse gay? Falaria para meus pais? Me atacaria quando eu
estivesse dormindo? Pior: e se fosse? Acharia que eu era gay também e,
quando eu menos esperasse, me imprensaria contra a parede do corredor e
me beijaria? Ou iria para seu quarto morrer de rir do jovem de hormônios
descontrolados que havia ficado excitado com ele, e depois contaria a
história para seus amigos maduros e todos ririam da minha cara durante um
jantar a base de um pinot noir e bœuf bourguignon em Paris? Ele teria pena
de mim?
​Meu deus, eu estava ficando louco.
​ stava encostado na porta, o volume ainda protuberante na cueca,
E
o cheiro do sabonete ainda exalando da minha pele, quando alguém bateu à
porta. Era minha mãe. Coloquei minha cabeça para fora e perguntei o que
ela queria.
​— Teu pai falou que a pousada já tá pronta, vá ajudar Seu Arnô a
levar as coisas dele pra lá — disse e saiu.
​Fechei a porta e suspirei fundo. Quando eu iria conseguir me
livrar daquele homem? Se é que realmente queria me livrar dele. No fundo,
havia uma pontada de tristeza por ele estar indo embora. Indo embora dali
do quarto ao lado para o quarto do outro lado da piscina. A distância entre
nós ia aumentar. Olhei rapidamente para a estante, vendo o buraco onde
antes ficava o livro que fora emprestado. Uma boca sem um dos dentes.
Cerrei os olhos, tentando me recordar qual livro ficava ali, pois, na agonia
do momento, esqueci de prestar atenção em qual livro ele levara.
​Era um livro de poemas, Submergir, de uma autora chamada
Luciana Fauber. Sorri, surpreso e admirado. Não esperava que ele levasse
aquilo, não achei que fizesse seu tipo. Eram poesias contemporâneas, de
verso livre, introspecções sentimentais e profundas. Achei que ele fizesse o
tipo mais clássico. Uma nova figurinha no meu álbum de informações sobre
Arnaud.
​Vesti minha roupa e saí, decidido a fingir que nada havia
acontecido. Arnaud já havia descido com as duas malas. Carregava uma
para dentro da pousada e a outra ficou aguardando na porta da nossa casa.
Quando ele voltou para pegá-la, eu a estava carregando, já pronto para subir
as escadas. Ele havia reservado um dos quartos de cima, esperto, afinal
eram os que tinham a melhor vista para o mar.
​— Eu levo — disse ele, agarrando sua mala.
​— Pode deixar — falei. Eu já estava ali mesmo, não custava nada
subir até seu quarto.
​— Já falei que eu levo — retrucou, rispidamente, puxando a mala
de minha mão. O vinco entre suas sobrancelhas estava pronunciado. Subiu
o resto das escadas com passos pesados, sumiu no corredor e então ouvi sua
porta batendo.
​Fiquei ali embaixo, largado no pé da escada, sem reações e ferido.
Ferido? Por que eu estava magoado? Eu estava habituado ao seu tom
educado de sempre, naqueles dois dias que ele estivera ali, ao sorriso
contido, às rugas em torno dos olhos quando sorria, à voz grave e suave, ao
andar lento e descompromissado, como se tivesse todo o tempo do mundo a
sua frente. Daquele Arnaud ali, ríspido e grosso, eu não havia gostado.
​Meus olhos ficaram marejados, sentia algo preso em minha
garganta, como se tivesse comido uma laranja, ou uma toranja, inteira, e ela
tivesse ficado ali entalada. Sentia-me ridículo. Outras pessoas já haviam me
tratado mal antes, falado grosso, gritado comigo. Com nenhuma delas me
deu vontade de chorar. Corri até a frente da casa, peguei a minha bicicleta e
saí. Meu pai, que estava deitado em uma rede, pendurada entre duas árvores
do jardim, gritou, perguntando aonde eu ia. Não respondi.

​ ão havia muros entre nossas casas, mas para ir até a casa de


N
Rebeca, que era minha vizinha, eu precisava sair do nosso terreno, ir até
aquela rua de pedra que machucava a bunda, pedalar alguns metros e então
pegar o caminho que levava até a casa dela, pois entre nossos terrenos havia
um pequeno trecho de mata. Tinha apenas alguns metros, mas a vegetação
era densa, cheia de pedras e arbustos, e não dava para passar de bicicleta ali,
e a pé você corria o risco de sujar seus calçados de lama e se cortar com os
galhos secos.
​— Você está bem, querido? — perguntou sua avó, ao abrir a porta
para mim. Pelo visto eu estava deixando transparecer minha angústia.
​— Sim, dona Kazuko — respondi, colocando minha bicicleta ao
lado da porta. Cumprimentei-a, curvando meu corpo. Dona Kazuko era
japonesa, mudara-se para a ilha há muitos anos, quando, em lua de mel com
seu marido, se apaixonara pelo lugar, por sua beleza e tranquilidade. Havia
perdido o seu sotaque japonês e falava nossa língua perfeitamente, mas
ainda mantinha alguns costumes de sua cultura. — Rebeca tá em casa?
​— No quarto dela — falou, abrindo caminho para eu passar.
​Rebeca não falou nada quando entrei, mas podia ver pela sua cara
que ela sabia que havia algo errado. Aquilo era o que eu mais gostava de
Rebeca, ela sabia as coisas certas para falar, e a hora certa. Sentou-se na
cama, encostada na cabeceira, e fez sinal para eu me sentar ao lado dela.
Sentia-me tonto e fraco, quase sem ar, então, em vez disso, deitei-me na
cama, colocando minha cabeça sobre suas pernas.
​— Não tô conseguindo respirar — falei.
​Ela não respondeu, ficou fazendo cafuné em minha cabeça.
Enquanto ela passava os dedos por entre meus cachos, fui me acalmando.
Quando meu coração não estava mais acelerado e eu conseguia respirar
normalmente, ela perguntou:
​— O que aconteceu?
​— Acho que sou gay — falei de uma só vez. Estava evitando
pensar naquilo, não querendo me afogar em meus próprios pensamentos,
então resolvi cuspir de uma vez só, sem hesitar, mesmo sem ter certeza
daquilo que estava dizendo.
​Rebeca apenas riu, um riso rápido, debochado.
​— Tá rindo de quê? — perguntei, furioso, e me levantei. Não era
a reação que eu esperava. Queria que ela dissesse que estava tudo bem, que
era só uma fase, que eu estava mal-acostumado com uma figura masculina
na minha casa, um homem tão sensual que despertava o desejo de todos, até
dela, que era lésbica. Esperava que ela dissesse que não, eu não era gay, que
era impossível se descobrir gay depois de tanto tempo, quem já viu virar
gay aos vinte e três anos, era heterossexual, mais másculo impossível,
comedor de bucetas, Elisa estava ali para provar.
​— Você tem um crush no francês, né? — Eu começava a
suspeitar que Rebeca tinha uma câmera no meu quarto.
​— Não! — neguei. — Só... Okay, sim — admiti. Não via sentido
em mentir. Rebeca já sabia.
​— Cai de boca — ela disse. Fiquei horrorizado. Achava que ela
estava brincando, mas sua expressão era séria, como se dissesse algo óbvio.
​— Primeiro, ele deve ser uns quinze anos mais velho que eu.
Segundo, está na pousada do meu pai. Terceiro, nem sei se sou gay mesmo.
​— Tu olha pra ele quando ele não tá olhando, fica nervoso e
agitado quando ele tá presente, tua voz falha quando vai falar com ele. Eu
vi quando tu se tremeu todinho quando ele te tocou no almoço. Aposto que
passa o dia inteiro pensando nele, sonha com ele de noite. Deve até ter
batido punheta pensando nele — falou a desbocada. — Não sei se tu é gay.
Mas é fato que tá atraído por ele. Se isso te faz gay, bi, ou seja lá o que for,
cabe a você descobrir, e na verdade não importa, são apenas rótulos. E
sobre a idade: e daí? Não é crime. Tu já é crescidinho demais. Quem não
gosta de um daddy?
​Sentei-me na cadeira. O que ela dizia fazia sentido. E eu
precisava escutar aquilo. Parecia que eu estava entrando num mundo novo,
do qual não conhecia nada. Morávamos numa cidade minúscula, morei ali a
vida inteira. A única pessoa gay que conhecia, que eu sabia, era Rebeca. E
nunca havia visto ela ficar com uma menina antes. Como ela disse, era
difícil encontrar garotas que gostavam de garotas ali naquela ilha. A Ilha
Grande, pelo contrário, era um paraíso LGBTQIA+, havia boates, bares,
praias gay-friendly por todos os lados. Nas poucas vezes em que havia ido
àquela ilha com meu pai — não a frequentávamos muito, exceto para coisas
muito importantes que não encontrávamos na nossa, como hospital, em
caso de doenças mais graves — havia visto casais gays nas ruas. Uma vez,
quando tinha uns quinze anos, vi, pela primeira vez, dois homens se
beijando em público, e os fiquei encarando, curioso. Só parei de encarar
quando meu pai me cutucou com o cotovelo, mandando parar de olhar.
Quando voltei para casa naquele dia, pesquisei na internet sobre casais
gays, e passei horas vendo imagens de homens se amando. Cheguei até a
assistir um vídeo pornô gay, mas aquela fora a única vez. Nem cheguei a me
excitar. Mas também não senti repulsa, como esperava. Apenas curiosidade,
talvez admiração. Aquilo era uma contravenção, um ato de rebeldia, que
fugia do senso comum. E isso me fascinava.
​— O que eu faço? — perguntei. Rebeca sempre sabia o que fazer.
​— E eu sei lá — respondeu.

​ ormi mal naquela noite. Estava nervoso e ansioso. Minha


D
cabeça era um turbilhão de pensamentos e meus sonhos eram uma confusão
de imagens. Para piorar, estava calor, não ventava, como se uma tempestade
de verão se aproximasse. Abri a porta da varanda, em vão tentando deixar o
vento entrar. De manhã, acordei com a claridade do sol, pois as cortinas
estavam abertas. Acordei suado, estava realmente calor. Costumava dormir
de camisa, pois na nossa ilha fazia frio à noite, devido ao vento intenso que
vinha do oceano, mas naquele dia acordei apenas de cueca, descoberto, por
cima dos cobertores.
Minha cama ficava encostada no canto da parede oposta à da
varanda, ao lado da porta e, antes da construção da pousada do meu pai, dali
da minha cama eu via o mar. Mas agora o prédio de dois andares bloqueava
minha vista. Para ver o mar eu precisava ficar diretamente em frente à
varanda. Daquele ângulo que eu estava só se via aquela porra de pousada.
Então, ao acordar, não me dei o trabalho de me virar para a janela, pois não
havia nada para ver. Fiquei virado para a parede por alguns minutos até
minha mente clarear e eu acordar. Quando me virei, ainda na cama, e olhei
para fora, Arnaud estava em pé na varanda do quarto dele, apenas de short e
óculos escuros, fumando um cigarro e segurando uma xícara de café.
Olhava para mim, e, quando olhei para ele, nem se deu ao trabalho de
desviar o olhar. Continuou me encarando por debaixo dos óculos escuros.
​Levantei-me, me espreguicei, de costas para ele. Então tirei
minha cueca. Pelado, caminhei até minha mesa, expondo minha frente para
Arnaud, peguei a sunga que estava pendurada na cadeira e a vesti
lentamente. Quando olhei para a varanda do outro lado da piscina, ele,
protegido por seus óculos escuros, vertia a caneca de café, ainda virado para
mim. Sem dizer nada, nem acenar, nem sorrir, deu as costas e voltou para
seu quarto, fechando a porta da varanda e a cortina por trás dela.
6 ✹ O PROVADOR

E
ra sábado, o que significava que era meu dia de trabalhar na loja da
minha mãe. Ela trabalhava lá durante a semana, alternando turnos com
seu funcionário, que era uns cinco anos mais velho do que eu, e no
sábado os dois folgavam, ficando para mim a responsabilidade de abrir a
loja e ficar lá como único atendente. Ao menos aos sábados a loja só abria
pela manhã. Meus amigos, os que não estavam trabalhando na loja dos pais,
como eu, iam para a praia naquela hora, e, no caminho, passavam lá para
me cumprimentar, ou só me fazer raiva mesmo, tentando despertar inveja. E
eu tinha inveja. Nem Rebeca me poupava dessa humilhação.
​Estava sozinho na loja, com a cabeça baixa, encarando o meu
celular e vendo as fotos que meus amigos publicavam na internet em tempo
real, da praia, quando o sininho da porta soou. Levantei os olhos para
receber o cliente. Para a minha surpresa e completo choque, era Arnaud.
​Puta que pariu, pensei. Toda vez que eu via Arnaud era como se
fosse a primeira vez. Seu sorriso galanteador, os dentes brancos e alinhados,
as marcas de expressão que lhe davam um charme, o cabelo perfeitamente
bagunçado que me tirava o fôlego. Arnaud era como uma sereia, ou tritão,
saindo do mar seminu, coberto por algas, com seu feitiço que me
hipnotizava e me atraía para o fundo do oceano.
​— Bonjour — exclamou, tirando os óculos escuros e revelando
seus olhos verde-amarronzados. — Não te vi hoje no café da manhã.
​— Bom dia — respondi. E então expliquei: — Nos sábados eu
saio cedo, pra abrir a loja.
​— Ah, bom — falou, começando a caminhar pelo ambiente,
observando os cabides.
​Vestia o mesmo short branco de algodão. Ele não tinha outra
roupa? Pelo menos era outra a camisa que vestia. Uma rosa clara, quase
branca, também de linho, folgada e de botões. Só o primeiro estava aberto.
A camisa era curta, então eu podia ver a curva da sua bunda. O short
branco, esticado pelos músculos, ficava um pouco transparente, e eu podia
ver a costura da cueca, por baixo. Suspirei ali sentado atrás do balcão.
​— Procura alguma coisa em específico? — perguntei, tentando
distrair a mente.
​A loja vendia roupas de praia, sungas, biquínis, shorts, regatas,
vestidos leves, cangas, bolsas de palha, óculos de mergulho, de sol, bonés e
assim ia. Tantas coisas que ele poderia estar procurando...
​— Uma sunga — respondeu.
​Trinquei os dentes. Não podia ser outra coisa?
​Levantei-me da cadeira e fui mostrar a ele onde ficavam as
sungas.
​— Você deve entender de moda praia melhor que eu — falou,
sorrindo. — Qual você indica?
​Só pode estar de brincadeira. Visualizei em minha cabeça aquela
sunga laranja horrorosa com a qual ele havia chegado na ilha, aquela com
Dortnellas escrito na bunda. Não era a cor certa para ele. Visualizei seu
corpo, branco, avermelhado, beijado pelo sol, suas curvas, músculos, pelos
e sinais. O cabelo liso, levemente ondulado, permanentemente emaranhado
pelo vento, volumoso. A sobrancelha despenteada — que vontade eu tinha
de lamber meu dedo e passar nela, para ajeitá-la! — a barba mal feita.
Visualizei seus olhos, imensos, do tamanho de todos os oceanos juntos, do
tamanho do Pantalassa, o oceano que banhava a Pangeia, os tons terrosos,
verde e castanho, juntando-se e formando um mar de estação chuvosa.
Sabia qual era a sunga perfeita para ele, a sunga que eu queria vê-lo usar.
Escolhi um tom verde-escuro da cor exata de seus olhos. Obviamente,
apontei despretensiosamente, fingindo não dar a mínima, fingindo não ter
pensado no assunto, como um vendedor que quer se livrar do cliente logo,
apontando para uma roupa qualquer.
​Ele pegou a sunga e foi para o provador. Ficava ao lado do
balcão. Eram duas cabines, protegidas por uma cortina. Dentro, apenas um
espelho de corpo inteiro, uma lâmpada pendurada no teto, um banquinho e
um gancho para colocar as roupas. Entrou no primeiro deles.
​Escutei ele se mexer, tirando a roupa. E então vi sua camisa e
short caírem no chão, por baixo da cortina. Da distância que eu estava,
podia ver seus pés e tornozelos.
​Ele abriu a cortina levemente, colocando a cabeça de fora e
olhando para mim.
​ Ficou pequena, pode pegar um número maior, por favor?

​Fui até as sungas e vi que ele havia pego uma de tamanho P. Era
óbvio que ele não vestia P, e não era possível que ele não soubesse disso.
Peguei uma G, que certamente era o tamanho dele. Fui até o provador e,
quando me aproximei, puxei a cortina, esperando que ele ainda estivesse
vestido com a sunga pequena. Estava pelado. Seu pênis, amolecido, pendia
entre suas coxas peludas. Percebi que, ao contrário de mim, ele não era
circuncidado.
​Desviei o olhar rapidamente (ou o mais rápido que pude) e
estiquei o braço para lhe entregar a sunga. Ele a pegou e, rapidamente,
fechou a cortina.
​— E aí, ça va? — perguntou, ao abrir a cortina novamente,
vestido com a sunga.
​Estava perfeita. Não era daquelas sungas retangulares que
escondiam as curvas do corpo. Era mais cavada, seguindo o contorno da
virilha, marcando bem o volume do seu pênis, sem esmagá-lo ou evidenciá-
lo demais. Sua coxa era grossa, e aquele formato tinha o encaixe perfeito,
era confortável para quem vestia e para quem olhava. Virou-se novamente
para o espelho, não sei se para se olhar de novo, ou para me mostrar a parte
de trás, ou os dois, mas ali também estava perfeito. A costura acompanhava
o formato da sua bunda, valorizando-a, e tive vontade de pôr a mão para ver
se era tão dura como aparentava. Era menor que sua sunga anterior, então
dava para ver uma parte da sua pele alguns tons mais clara que o resto do
corpo, coberta por uma fina camada de pelos, onde o sol ainda não havia
tocado.
​— Aham, acho que sim — respondi, seco, tentando demonstrar
indiferença. Não sei se tive sucesso. Muito provavelmente minha voz saiu
trêmula.
— Agora só preciso corrigir a marca do bronze — disse, olhando
por cima do ombro a parte branca da bunda que aparecia.
​Ele arrancou a etiqueta da sunga, vestiu a roupa por cima, pagou e
saiu, naquele seu andar despretensioso, como se ele não tivesse pressa de
chegar a lugar algum. Nunca tive tanta vontade de largar a loja e ir para a
praia como naquele dia. Eu queria ver Arnaud deitado sob o sol vestindo a
sunga que eu havia escolhido para ele. No fundo, senti ciúmes de todas as
pessoas que estavam na praia e colocariam os olhos sobre ele. Odiei minha
mãe por ter me feito trabalhar ali, ao mesmo tempo que a amei.
​ ais tarde, uma cliente, após provar uma roupa, me falou que
M
alguém havia esquecido alguma coisa na cabine. Quando fui verificar, vi
uma cueca branca jogada no banquinho. O banco também era branco, então
eu, distraído por Arnaud, não havia visto. Era a cueca dele, tinha certeza. Só
agora eu me tocava de que ele havia chegado usando uma cueca por baixo
do short e saído vestindo a sunga, sem levar a cueca. Havia feito aquilo de
propósito? Quando peguei a cueca, sem saber o que fazer com ela (levaria
para casa e entregaria a ele? Jogaria no lixo e nunca mais a mencionaria
novamente?), vi que havia uma mancha levemente amarelada no fundo,
uma mancha de suor, daquelas que não saem depois de inúmeras lavagens.
Estava úmida, suada. Sem pensar duas vezes, cheirei.
​O odor tomou conta de minha cabeça instantaneamente, fiquei
atordoado, nauseado, como se estivesse cheirando uma droga viciante.
Corri para a entrada da loja, tranquei a porta, virei a placa, informando que
a loja estava fechada, entrei no provador e fechei a cortina atrás de mim.
Com a cueca dele enfiada em minha cara, usando-a como uma máscara pós-
apocalíptica para filtragem de ar, inspirei fundo, dando longas tragadas de
ar, deixando o cheiro dele entrar não só em meus pulmões, mas em meu
sangue. Queria ficar drogado e chapado com aquele cheiro de suor, da
virilha de Arnaud. Aquele cheiro que havia atravessado oceanos e chegado
até mim. Coloquei a cueca na boca e a mordi, como uma mordaça, para
abafar o meu gemido enquanto chegava ao meu ápice de prazer.
​Quando terminei, tomado por aquele torpor da droga Arnaud,
tomei outra decisão selvagem. Vesti a cueca. Não a minha, a dele. Ficou
ridícula em mim, muito folgada, parecendo uma fralda. Precisava segurá-la
para evitar que ela caísse. Então vesti meu short por cima.
​Voltei para casa assim, ainda sentindo em meu nariz o cheiro de
Arnaud, usando a cueca dele, deixando meu suor se misturar ao dele. Levei
minha cueca no bolso. Quando cheguei, subi até meu quarto, e, com as
portas e cortinas fechadas, tirei a cueca dele, que estava úmida com meu
suor, coloquei em uma sacola e vesti a minha própria cueca. Da minha
varanda, certifiquei-me que ele já havia voltado para a pousada. Sua cortina
estava aberta e o vi de relance no quarto. Bati na porta e entreguei-lhe a
cueca, falando que ele a havia esquecido no provador.
​Ele agradeceu, pedindo desculpas pelo vexame, e fechou a porta.
Voltei para meu quarto correndo, fui até a varanda e olhei para a dele.
​Mas ele havia fechado as cortinas. Malditas cortinas.
​ u não aguentava mais aquilo, aquelas dúvidas, incertezas, aquela
E
nuvem que pairava sobre nós, como algum tipo de tensão. Eu queria falar
alguma coisa, queria que ele falasse, que desse algum sinal, algo que
indicasse que realmente estava acontecendo alguma coisa, e que tudo não
estava apenas em minha cabeça. Dormi inquieto naquela noite, como se
pressentisse que no dia seguinte, finalmente, ele daria o primeiro sinal.
7 ✹ OS SINAIS

D
omingo era o dia mais movimentado da praia. A maioria do comércio
fechava e todo mundo ia para a praia perto do centro. Também,
naquele dia, os turistas hospedados na Ilha Grande aproveitavam para
explorar as outras ilhas do arquipélago, e muitos acabavam na nossa ilha.
Então era um dia de muita movimentação na cidade.
​Aquele era meu dia favorito da semana. Todos os meus amigos se
reuniam. Os que moravam mais longe iam de bicicleta. No caminho, eu
passava pela entrada da casa de Rebeca e ela se juntava a mim. Outros se
juntavam à medida que passávamos na frente de suas casas. No centro,
encontrávamos com os que vinham de outras regiões da ilha. Nesses
assuntos, éramos pontuais. Elisa também se juntava a nós, ela morava mais
próxima àquela praia. Deixávamos nossas bicicletas na oficina do pai dela,
então íamos a pé. Naquele dia Elisa não me deu muita atenção, parecia
distraída com alguma coisa.
​— Me disseram que ela ficou podre de bêbada ontem — Rebeca
cochichou, apontando o nariz para Elisa, que ia mais à frente. — E não
voltou pra casa. Foi com um gringo pro barco dele.
​Apertei os lábios, chateado. Quantas vezes eu e Elisa não
debochamos daqueles gringos branquelos e idiotas que vinham fazer
baderna na nossa ilha, e das meninas bobas que caíam na lábia deles? Tudo
pra quê, pra dar uma voltinha num barco? Eu a estava julgando, mas
naquela altura não me dava conta de que eu mesmo estava prestes a entrar
no barco de Arnaud.

​ e praia nós éramos experientes. Chegamos cedo, quando ainda


D
não estava atolada de gente. Em uma hora, seria difícil encontrar lugar ao
sol. Pegamos o ponto perfeito, numa distância ideal entre os chuveiros, os
banheiros, o mar e o quiosque onde vendiam o coco mais barato. Ali
também era onde o mar era mais calmo, mais raso e sem correnteza.
Também era um ponto perfeito de observação, para apreciação dos corpos
que ali desfilavam, os seios que saltavam dos biquínis, as calcinhas fio-
dental enfiadas na bunda, os volumes das sungas, os abdomes trincados, as
barrigas peludas, os peitos estufados. Estendemos nossas cangas, abrimos
os guarda-sóis e as cadeiras espreguiçadeiras. Os bares ali eram caros e os
meninos levaram um isopor cheio de gelo e latas de cerveja. Também
levamos bola, raquetes de frescobol e caixinhas de som. Era um evento.
Aos poucos chegavam os turistas, alguns mais experientes, com protetor
solar e guarda-sol, outros ingênuos, exageradamente brancos e sem
proteção. Coitados, sairiam dali com insolação, vermelhos, parecendo
lagostas.
​Rebeca estendeu a canga ao lado da minha, como sempre, e ali
ficaríamos falando mal das roupas de banho dos outros. Abriram a cerveja,
dei um gole e sorri com o geladinho descendo pela garganta. Perguntei-me
se Arnaud ia para a praia. Quando saí de casa, ele ainda estava na pousada.
​— Olha! — cochichou Rebeca, e olhei na direção para onde ela
se virara.
​Um homem se aproximava, sua pele negra brilhando sob o sol, o
corpo atlético. O peito malhado, o abdome seco, que parecia tão duro que
provavelmente sua mão quebraria se você desse um soco. Chamou a
atenção de todo mundo. Aparentava ter cerca de vinte e cinco anos e vestia
uma sunga preta e branca. Elisa, que estava deitada mais à frente, ao lado de
outras duas meninas de nosso grupo, deu um pulo quando o viu, correu até
ele e o beijou, de ponta dos pés. Ela pegou sua mão e o levou até sua canga,
onde deitaram juntos.
​— Exibida — falou Américo de sua cadeira embaixo do guarda-
sol, atrás da gente, bebericando a cerveja. Não vi, mas tive certeza de que
ele revirou os olhos.
​— Um dia você chega lá, Américo — caçoou Augusto, que
estava sentado na areia, também com uma cerveja, protegido pela mesma
sombra.
​Américo não respondeu, estava ofendido. Augusto, como sempre,
cutucara seu ponto fraco: sua autoestima. Américo tinha um corpo que
causava inveja e desejo na maioria das pessoas, inclusive às vezes fazia
bico de modelo para marcas de roupa de banho na Ilha Grande. Também
tinha um canal erótico online, onde fazia shows diante da câmera para
clientes pagantes. Tinha uma legião de fãs, mas parecia sempre insatisfeito,
um caso recorrente em cidades praianas. Augusto, que ostentava com
orgulho suas curvas, desdenhava das queixas do amigo. Falava que
Américo só queria atenção e arrancar elogios, e que aquela busca constante
por um padrão estético inalcançável não era nada saudável. Eu me abstinha
daquele conflito, afinal, não éramos todos sempre insatisfeitos com alguma
coisa?
​Rebeca aproximou-se de mim, sua boca quase tocando meu
ouvido.
​— Sinceramente? Não gosto de gente muito malhada. Sempre são
muito obcecadas por si mesmas. Eu quero alguém obcecada por mim.
​Tentei fingir um sorriso. Por dentro, meu coração palpitava, e eu
não sabia precisar o motivo.

​ stava com os olhos fechados, sentindo minhas pálpebras


E
queimarem, quando ouvi um rebuliço entre as meninas.
​— Nossa. Quem é aquele? — ouvi Sâmia, uma das meninas,
perguntar.
​— É um veado que veio na nossa frota — cuspiu o acompanhante
de Elisa. O “veado” ele pronunciou com um tom pejorativo, diferente de
como Rebeca falava. — Nem se mistura com a gente, não sei nem onde tá
hospedado. — Não sabia de quem ele estava falando, mas comprimi os
lábios, irritado, sem acreditar que Elisa estava saindo com aquele idiota.
​— Desperdício — lamentou-se Sâmia.
Ouvi a risada de Elisa, que disse:
​— Ele alugou uma bicicleta na loja do meu pai.
​Rebeca me cutucou, então abri os olhos.
​Lá vinha ele, em passos lentos, desacelerado pelo tempo, que
resolvera passar mais devagar. Vestia a sunga verde da cor de seus olhos,
aquela que eu havia escolhido, e óculos escuros, arredondados e de lente
marrom. Escutava música. Tinha o celular enfiado na lateral da sunga, preso
pela sua perna, e dele saíam os fones de ouvido. Andava distraído, com os
olhos baixos, lendo um livro. O livro que pegara emprestado da minha
estante. Em um de seus ombros pendia uma bolsa de pano, talvez
carregando uma toalha e uma garrafa d’água.
​Ele estava diferente. O cabelo castanho claro continuava o
mesmo, emaranhado, bagunçado pelo vento, mas sua barba estava feita.
Continuava grande, mas ele a havia ajeitado, aparado e penteado. Não era
mais aquela coisa amorfa e descontrolada, agora estava quadrada,
acompanhando o formato da mandíbula, até a altura do pescoço. Parecia
hidratada. O bigode também estava aparado, e eu podia ver seus lábios. Era
um homem renovado, não aparentava mais ser um marinheiro que passara
meses no mar sem se preocupar com a aparência.
​Ele caminhava na areia molhada, deixando a espuma das ondas
molharem os pés. O peito, naquele sol, projetava uma sombra sobre o
abdome. Acompanhei seu tronco, as sombras das divisões da barriga, as
entradinhas da virilha que saíam da sunga... Podia ver o volume amolecido
na sunga se movendo de um lado para o outro enquanto ele caminhava, as
coxas peludas se contraindo com os passos. À medida que se aproximava,
eu ficava mais nervoso, meu coração batendo cada vez mais rápido. Ele
falaria comigo?
​Não falou, passou direto, parecendo nem ter nos visto. Não sei se
fiquei decepcionado ou aliviado. Ao mesmo tempo em que queria que ele
me notasse, não queria que ele tivesse falado comigo ali na frente dos meus
amigos. Não especialmente depois do marinheiro de Elisa ter dito que ele
era gay. Eu tive vergonha.
​— Essas mariconas já tomaram conta da Ilha Grande, agora
querem vir pra cá também? — comentou Sâmia, depois de Arnaud passar.
— Já, já não vai ter homem pra gente.
​Aquilo me irritou, me magoou. Desejei que Arnaud voltasse, se
sentasse ao meu lado, perguntasse como estávamos, Rebeca beijaria sua
bochecha, ele colocaria uma mão sobre meu ombro e Américo ofereceria
uma cerveja gelada a ele, que aceitaria de bom grado. Nos divertiríamos ali,
conversaríamos sobre tudo, sobre cinema, música, mar, combinaríamos de
sair naquela noite e jogaríamos frescobol, eu ficaria no time oposto ao dele,
pois assim eu ficaria sempre à sua frente, podendo observar seu corpo, o
peito se contraindo com os movimentos do braço, as coxas, a sunga,
visualizaria em minha mente aquilo que eu havia visto tão rapidamente no
dia anterior, no provador, e me excitaria, veria sua bunda quando ele se
virasse e se abaixasse para pegar a bola que deixara cair, no final ele
ganharia a partida, ou eu, e nos abraçaríamos, parabenizando um ao outro
pela vitória, corpos quentes e suados, meu suor se misturando ao dele,
nossas sungas se tocando, e Sâmia, na areia, se contorcendo de inveja. Não,
Sâmia, aquele não é um homem para você.
​ Se eu matar ela, tu me ajuda a esconder o corpo? — disse

Rebeca, furiosa.
​Sâmia era a escrota do nosso grupo. Não sabia como ainda
aguentávamos sair com ela. Elisa e Sâmia nasceram quase no mesmo dia e
foram criadas juntas, suas mães eram melhores amigas, e elas eram quase
irmãs. Então onde Elisa estava, a outra estava junto. Todos nós sabíamos
que Rebeca era lésbica, e mesmo assim Sâmia continuava a fazer
comentários homofóbicos na frente dela, além dos que fazia pelas costas.
Além disso, desde que seu pai se tornara prefeito da nossa cidade, ela estava
cada vez mais insuportável, comportando-se como se fosse a dona da ilha.
​Às vezes saíamos escondidos, especialmente quando Rebeca
estava na cidade, eu, ela, Augusto e Américo, sem convidar Elisa, para
evitar que Sâmia aparecesse. Elisa sabia desse nosso arranjo, pois eu, sem
querer, numa de nossas idas à praia secreta, acabei falando para ela. Elisa
disse que não se importava muito, que começava a achar que éramos
infantis demais, e ela amadurecera muito rápido. Não via a hora de sair
daquela ilha, ao contrário da gente, que não queríamos sair dali. Não fiquei
magoado, era a verdade. Vivíamos uma vida confortável ali que não nos
dava vontade de deixar. Achei que fosse apenas charme dela, afinal,
ultimamente ela adquirira uma pose de estou-velha-demais-para-isso,
sempre se passando de madura. Entretanto, eu não conseguia imaginar Elisa
vivendo em outro lugar além daquela ilha.
​— Cala a boca, Sâmia — gritou Américo, já alterado pelas
cervejas. Sâmia virou-se e o olhou por cima dos óculos, naquele seu olhar
de desprezo que não deixava sua cara. Ignorou-o, achava-se melhor que
todos nós. Depois disso, eu, os meninos e Rebeca fomos tomar banho de
mar. Não queríamos nos misturar com aquela gentalha.

​ mpurrávamos nossas bicicletas lentamente, naquele torpor que


E
nos aflige depois de horas no sol, eu, Rebeca, Américo e Augusto, logo
depois de termos nos despedido de Elisa, Sâmia e os demais, quando fomos
abordados por uma mulher em uma calçada perto da rua principal. Ela nos
entregou panfletos que nos dava um incrível desconto em uma sauna que
havia acabado de ser inaugurada ali nas proximidades.
​— Tudo que eu precisava — exclamou Américo, agitando o
panfleto no ar.
​— Acabamos de sair da praia, uma sauna a céu aberto —
retruquei. — O que eu quero é um banho de piscina com a água bem
gelada.
​— Somos um spa completo, então também temos piscina — falou
a mulher dos panfletos, que eu nem tinha percebido que ainda estava parada
ao nosso lado.
​— Espero que tenha uma lanchonete também porque eu tô
morrendo de fome — acrescentou Rebeca, quando já caminhávamos
animados em direção ao local indicado, depois de verificarmos que
realmente tínhamos dinheiro para aquilo.
​O spa era uma espécie de clube, perto da marina, com uma
pequena piscina coberta e algumas salas para massagem e saunas. Enquanto
Rebeca e os meninos foram prontamente para uma sauna, fui para a piscina,
onde fiquei relaxando alguns minutos sob a tênue luz do sol que entrava
pelas claraboias.
​Estava boiando, com os ouvidos submersos, escutando o silêncio
da água e olhando para o céu, quando o vi de relance. Ele devia ter sido
atraído pelos mesmos panfletos que nós. Ele não me viu, o observei guardar
a bolsa, tirar a camisa e ficar apenas de sunga, aquela verde, enquanto
pegava uma toalha e caminhava em direção à sauna.
​Imediatamente a piscina se tornou insuportável, quente demais,
gelada demais, molhada demais. Parecia que eu estava me afogando na lava
de um vulcão. De repente, eu tinha outro lugar para ir. Queria ir para a
sauna. Esperei alguns minutos (ou segundos?), que na verdade pareceram
séculos, para que ele não pensasse que eu o estava seguindo, e fui até lá.
​Era uma sala pequena, devia comportar no máximo dez pessoas,
com paredes e bancos de madeira, enfileirados como numa arquibancada.
As luzes eram discretas, quase dando um clima romântico ao lugar, que
estava tomado por uma densa nuvem de vapor. Augusto e Américo estavam
sentados em um canto, conversando efusivamente com uma moça
desconhecida, que sorria para ambos. No outro canto estava Arnaud,
sentado com as pernas cruzadas, uma toalha branca enrolada na cintura,
conversando com Rebeca. Pareciam amigos de longa data. Os dois riam
como se tivessem acabado de contar uma piada. Não riam alto,
gargalhando, era um riso contido, para não incomodar ninguém. Mas
duvido que alguém fosse se incomodar com o riso de Arnaud, aquele
sorriso que iluminava o próprio rosto e o rosto dos outros, iluminava até o
ambiente ao redor, os dentes perfeitos, as covinhas na bochecha, os olhos
quase fechando, com aquelas ruguinhas charmosas no canto. O que
conversavam? Do que riam? Senti uma raiva irracional dos dois, de Arnaud
por nunca ter rido daquele jeito comigo, de Rebeca por... Eu nem sabia o
porquê. Talvez fosse inveja. Inveja da capacidade de fazê-lo rir daquela
forma.
​— Finalmente, achei que não ia vir — exclamou Rebeca ao me
ver, afastando-se para eu me sentar entre os dois. Ela abriu pouco espaço,
pois havia mais gente ao lado dela. Imprensei-me entre eles, minha coxa,
coberta por uma toalha, pressionando a de Arnaud.
​— Oi, faz tempo que tá aqui? — perguntei a ele, completamente
rígido e tímido, sem saber como lidar com o fato de que ele estava seminu e
completamente suado ao meu lado.
​— Acabei de chegar, estava na praia. Rebeca falou que vocês
também pegaram o panfleto. Nada como um bom desconto — disse,
arrancando uma risada de Rebeca.
​— Falando nisso, lembrei que tô faminta. Te vejo na saída —
exclamou Rebeca, levantando-se rapidamente, sem dar tempo para que eu
protestasse, para pedir que ela ficasse ali comigo ou dizer que queria comer
também. Como se, propositalmente, quisesse me deixar a sós com Arnaud.
— Comportem-se — acrescentou, por fim, ao fechar a porta, erguendo as
duas sobrancelhas como se insinuasse algo.
​Arnaud riu e então pigarreou, ajeitando-se no banco, como se
tivesse ficado desconfortável. Ficamos em silêncio, ele não falou nada, nem
eu, não sabia o que dizer, talvez ele também não, ou não quisesse falar,
talvez estivesse ali só para relaxar, queria ficar sozinho e eu estava
incomodando. Estava difícil de respirar ali com todo aquele vapor, meu suor
escorrendo em bicas, não sei se de calor ou nervosismo, ao meu lado
Arnaud não se mexia e eu não ousava me virar para olhar para ele, muito
embora conseguisse visualizar em minha cabeça seu cabelo grudado à testa,
o suor pingando da barba, o peito completamente molhado, e a toalha... Ah,
aquela toalha... As conversas em baixo tom, as luzes fracas e amareladas, a
música ambiente que vinha do corredor, a névoa que cobria nossos rostos
parcialmente, o calor, a umidade, tudo naquele ambiente remetia a sexo e eu
ficava cada vez mais desconfortável e excitado.
Américo e Augusto se levantaram em algum momento,
acompanhados da moça que conversava com eles. Américo saiu sem olhar
para trás, mas Augusto deu um discreto aceno de despedida. Não muito
tempo depois, os senhores que estavam ao nosso lado também saíram e a
sala ficou em completo silêncio. Estava mais vazia, mas parecia menor.
Imaginei-me em um filme pornográfico, Arnaud virando-se para mim e
cochichando alguma safadeza em meus ouvidos, em francês, arrepiando-
me, e então colocando a mão sobre minha toalha. Eu passaria a mão sobre
seu peito, desceria e alcançaria sua toalha, e esse seria o momento em que
ele se levantaria e deixaria a toalha cair no chão, expondo seu pau duro na
minha frente, na minha cara, bem na altura da minha boca. Eu estava
salivando, queria saber qual o sabor daquilo, o sabor de Arnaud. Fechei os
olhos e respirei fundo.
Eu não sabia o que fazer, se ficava ali colado a ele ou me afastava.
Não sei o que seria mais esquisito. A cada minuto que passava, o ambiente
ficava mais quente, tenso, opressivo, sentia uma energia estática, uma
tensão que chegava a doer em meus ossos. Estar confinado em um espaço
pequeno com uma pessoa de energia tão imensa era difícil, senti falta da
praia, do mar, de seu ar fresco, do espaço aberto. Senti vontade de gritar e
sair correndo. Mas eu estava petrificado, e assim estava Arnaud.
O ar pesava como concreto quando, finalmente, depois de todos
aqueles milênios que passamos ali sem mexer sequer um músculo, detectei
um movimento com o canto do olho. Arnaud se mexeu, mudando de
posição, pigarreou, e, como se aquilo fosse uma pequena folha caindo em
um lago e quebrando toda a tensão superficial da água, me levantei de
supetão. Estava agitado, tenso e ansioso. Dessa vez não foi Arnaud que
fechou a cortina na minha cara, fui eu, que me levantei e saí, quase
correndo, logo depois de soltar um “até mais tarde” arfante. Fechei a porta
sem olhar para trás, e nem para a cara dele, e encontrei Rebeca tomando um
suco no bar.
— E aí, rolou? — perguntou ela, sorrindo.
Respondi apenas com os olhos e ela entendeu. Tomamos banho e
voltamos para casa.

​ quela noite foi ainda mais quente do que a anterior. Talvez até
A
mais quente do que aquela manhã, do que a sauna. Depois do jantar, fui
para o quintal e fiquei deitado na beira da piscina, apenas de sunga, minhas
costas coladas à pedra gelada, uma perna dentro da água. Escutava música
com fones de ouvido, agitando a piscina com o pé, enquanto observava o
céu estrelado. Do meu lado, uma latinha de cerveja esquentava. Sentia
cheiro de maresia e dos limões sicilianos que meu pai havia plantado abaixo
da janela de seu quarto e que começavam a amadurecer. Adorava aquela
tranquilidade, até havia deixado as luzes do quintal e da piscina apagadas,
para dar um clima de ilha deserta. Arnaud não estava na pousada e nem
havia aparecido para o jantar, perguntava-me onde será que ele estava.
​Devo ter adormecido, pois, quando abri os olhos novamente, a luz
do quarto dele, acima de mim, estava acesa. Observei-a por alguns minutos
até que ela apagou. Ouvi os passos dele descendo as escadas e então ele
apareceu com uma garrafa de vinho e duas taças. Estava de short e uma
camisa de botões completamente aberta, mostrando seu peito e barriga.
Mesmo àquela luz fraca, que vinha apenas da casa, pude ver que ele estava
bronzeado. Tentei imaginar como estava a marca de bronze da sunga nova.
Ele veio andando em minha direção e retirei os fones de ouvido.
​— Posso me juntar a você? — perguntou, já sentando-se em uma
espreguiçadeira a menos de um metro de mim. Senti o seu cheiro misturado
ao de protetor solar. — Tá muito calor hoje. — E então acrescentou,
sorrindo: — Acho que o calor da sauna ainda está em mim.
​— Sim — respondi, ainda deitado na borda da piscina, sem
querer relembrar a minha fuga da sauna. Estava calor mesmo, mas eu não
tinha certeza se era consequência do tempo, da sauna, ou dele.
​— Se importa se eu fumar? — indagou, colocando a garrafa no
chão ao lado da cadeira.
​— Fique à vontade — respondi. Não gostava do cheiro de
cigarro, na verdade odiava, mas eu não queria recriminá-lo. Talvez ele
saísse para fumar em outro lugar, e eu não queria que ele me deixasse
sozinho. Eu estava disposto a inalar aquela fumaça tóxica, cancerígena, para
estar perto dele.
​Ele acendeu o cigarro, deu uma tragada, soprou a fumaça para o
outro lado, para que ela não fosse até mim, e falou:
— Aceita vinho? Vi lá de cima que você estava aqui e tomei a
liberdade de trazer uma taça extra. Ou prefere cerveja? — Ele ergueu a
garrafa, me mostrando o rótulo. — É francês. São os melhores — disse,
piscando um olho.
— Aceito — falei, talvez rápido demais. Eu preferia cerveja naquele
calor, mas se ele estava dizendo que os franceses eram os mais gostosos,
quem era eu para recusar?
Ele nos serviu e bebemos em silêncio por alguns instantes.
​— Nico é apelido de quê? — perguntou ele de repente.
​— Não é apelido, é meu nome mesmo — respondi. Já estava
acostumado com aquele tipo de pergunta. — Em homenagem à cantora.
Meu pai era fã do Velvet Underground.
​Ele riu, deixando fumaça sair pelo nariz e escapar uma pequena
tosse.
​— É um anagrama — falou, dando outro gole no vinho.
​Sorri, ele conhecia a história. Pelo menos não sugeriu ser um
personagem de Percy Jackson e os Olimpianos, o filho de Hades. Nem fez
as tantas piadas às quais eu já estava mais que acostumado. Nicotina.
Pinico. Nanico.
​— Icon — falei. O nome da cantora era um anagrama da palavra
ícone, em inglês.
​— Você gosta dela? — perguntou, soprando a fumaça, muito
embora provavelmente já soubesse a resposta, pois na parede do meu quarto
havia um pôster dela.
​— Gosto.
​— Aposto que adivinho sua música favorita dela — disse,
brincando, com um sorriso de canto de boca.
​— Tente — falei, aceitando o desafio.
​Semicerrou os olhos de maneira teatral, curvando-se em minha
direção, apoiando a cabeça nas mãos, com os cotovelos dobrados sobre os
joelhos. Fingia ler minha alma. Tive medo de ele realmente ser capaz de
fazer isso. Senti o cheiro amadeirado do vinho que vinha da boca dele.
​— The Fairest of the Seasons — disse, depois de alguns
segundos.
​A melhor das estações. Ele acertou. Não sei se eu era previsível
demais, se foi sorte, pois era uma de suas músicas mais conhecidas, ou se
ele quis dizer algo com a escolha daquela música em particular.
​— I want to know, do I stay or do I go — ele recitou. Eu quero
saber se devo ficar ou se devo ir.
Deve ficar.
​Não falou o resto da letra, não precisou. A música passou em
nossas cabeças, pairando no ar entre nós.
​“Olhando em seus olhos,
​E vendo os meus me alertando
​ ara ler os sinais cuidadosamente”.
P
​Seus olhos continuavam parados sobre os meus, iluminados
apenas pela luz da lua. Meu coração não batia mais no peito, e sim na boca.
Eu queria ler aqueles sinais cuidadosamente.
​Ele se levantou bruscamente, dando uma tragada final no cigarro.
Jogou a piola na taça, que ainda não estava seca.
​— Melhor eu ir me deitar, já bebi demais — falou, subindo para
seu quarto. Quis chamá-lo, gritar, pedir, suplicar para que não fosse embora,
para que ficasse ali na piscina comigo, que deitasse ao meu lado e que,
juntos, olhássemos as estrelas. Mas não consegui, estava mudo, meu
coração estava entalado na minha garganta e ali palavras não passavam. Vi
sua luz acendendo e a cortina fechando.
​Rolei para o lado, deixando meu corpo mergulhar na água fria da
piscina. Queria me afogar.

◆ ◆ ◆

No dia seguinte, mais hóspedes chegaram. Iam ficar no outro quarto


do primeiro andar. Eram dois homens, um casal, e fiquei surpreso com a
naturalidade de meu pai ao recebê-los. Eram um pouco mais velhos que
Arnaud, aparentavam ter cerca de quarenta anos. Chamavam-se Bruno e
Oliver. Falaram que estavam na ilha a trabalho, eram funcionários de uma
empresa que ia começar a atuar por ali. Minha mãe, curiosa como sempre,
perguntou que tipo de empresa, já que não tínhamos muitas empresas por
ali.
​— É uma empresa de negócios ambientais — disseram. — Vamos
administrar a reserva florestal.
Meus pais se entreolharam. A reserva florestal, atualmente um bem
público, estava em discussão para ser privatizada. Nada estava certo ainda,
mas, se aqueles caras já estavam ali, quer dizer que as coisas avançavam
por debaixo dos panos. Ninguém falou mais nada.
​Nos dias seguintes, não encontrei mais Arnaud. Os novos
hóspedes comiam na nossa casa, mas Arnaud deixara de aparecer, devia
estar comendo na cidade. Eu continuava fazendo meu curso técnico de
turismo todo dia. Quando ia à cidade, me pegava olhando para os lados,
procurando por ele. Nesses dias, recebi, finalmente, o certificado que me
dava licença para fazer trilhas nas partes protegidas da ilha. Eu queria que
ele fosse meu primeiro cliente. À noite, via seu quarto com a luz acesa e as
cortinas fechadas. Certo dia, ele voltou para a pousada de madrugada. No
silêncio noturno, com a porta da minha varanda entreaberta, o escutei
esbarrando na espreguiçadeira da piscina, e lutando para conseguir abrir a
porta de seu quarto. Estava bêbado. Outra noite, o vi sentado com o casal à
beira da piscina, conversando e bebendo vinho. Não ousei descer. Eu estava
angustiado, perguntava-me o que havia feito de errado para ele me evitar,
revisava em minha cabeça todas as palavras trocadas, todos os movimentos
que eu fizera, todos os locais que eu havia batido o olho. Por quê, tão
subitamente, ele havia perdido o interesse em mim?
Eu me sentia desinteressante, minha autoestima em frangalhos,
muito embora não compreendesse a razão de querer tanto ser desejado por
ele.
​Dois dias depois chegou a outra hóspede. Uma mulher de meia-
idade chamada Margarida, uma romancista argentina. Ela parecia reservada
e séria, pediu para não ser incomodada em seu quarto, pois estava ali para
escrever. Animei-me com a ideia de ter uma escritora ali na nossa casa, pois
eu gostava de escrever, às vezes. Romances, contos. Poemas, até. Almejava,
um dia, talvez, ser um escritor. Talvez eu pudesse trocar algumas palavras e
ideias com ela alguma hora.
​Inspirado com a presença da escritora e com a mente clareada
com a ausência de Arnaud, voltei a escrever. No terceiro dia depois daquele
incidente na piscina, quando eu e Arnaud cantamos mentalmente e ele me
dera aquele sinal, escrevi feito um louco. Meu fluxo de pensamento estava
mais veloz do que nunca, tomei três canecas de café, mesmo sem gostar, e,
agitado feito um viciado em cocaína, escrevi uma peça em apenas um dia.
A história era sobre um casal que, após uma enchente, encontrava-se ilhado
por dias e ali era obrigado a discutir e rever sua relação.
​Eu havia acabado de terminar a peça quando alguém bateu em
minha porta. Quando abri, era Arnaud. É claro. A vida realmente gosta de
pregar peças.
​Meu chão pareceu desmoronar. Eu já estava me recuperando do
furacão Arnaud que havia destruído a cidade dentro de mim. A tempestade
tropical estava de volta. O tritão puxando-me de novo para as regiões
abissais do oceano. Quis fechar a porta na cara dele.
​— Vim devolver seu livro — disse ele, estendendo o braço e me
dando o livro que havia emprestado.
​ uando me passou o livro, seus dedos tocaram os meus. Foi
Q
rápido, mas aconteceu. Por um breve instante, senti que ele hesitou, como
se tivesse prolongado aqueles segundos para que nossos dedos se tocassem
por mais tempo. Mas aquele toque não foi nada comparado ao olhar que
trocamos. O mar de seus olhos estava mais agitado do que nunca,
tempestuoso, quase um tsunami. Eu caí naquele redemoinho e desapareci na
eternidade do seu olhar.
​— O que achou? — perguntei, seco, tentando manter minha voz
estável, como se eu não estivesse prestes a me desmanchar em seus pés.
​— Muito bom. Não sou muito chegado a poesia contemporânea,
mas a autora é realmente precisa em pôr no papel alguns sentimentos que às
vezes são impossíveis de se expressar — falou, sério, sem piscadela com
um olho, sem sorrisos, nem aquele educado com o canto da boca. A
tempestade de seus olhos, porém, continuava a me assolar.
​— Quer outro livro? — perguntei, abrindo mais a porta, para ele
entrar. Não adiantava mais evitá-lo, fingir que não estava acontecendo, seria
como sair da piscina ao começar uma chuva, para não se molhar.
​— Por ora não, obrigado — disse, virando-se e indo embora.
​Fitei o corredor vazio por alguns instantes, sem acreditar que
aquele furacão havia desaparecido tão rápido quanto havia chegado,
deixando para trás apenas o seu cheiro e um embrulho no meu estômago,
fechei a porta e voltei para minha cadeira. Coloquei o livro de lado e
encarei a folha que havia acabado de imprimir, com a minha peça. Lendo
agora, com meus sentimentos confusos sobre Arnaud novamente à tona,
sentindo-me perdido, inundado, ilhado e deprimido, odiei as palavras que
havia escrito. Amassei o papel e joguei na lixeira.
​Quando me levantei para guardar o meu exemplar de Submergir,
assinado pessoalmente pela autora, no lançamento que fizera em uma
grande livraria da Ilha Grande — meu pai me levara à ilha especialmente
para isso —, vi que havia um marcador azul numa página. Aquilo não
estava ali antes.
​Abri na página indicada pelo marcador. Era um poema chamado
Precipício.
​“O penhasco.
O mar.
O vento no cabelo,
a espera
que parece
​ ​ sem
​ ​ fim”.
Oh, Arnaud, quanto tempo a mais eu teria que esperar?
8 ✹ O MARIDO

O
cheiro de café invadia o corredor quando saí do meu quarto na manhã
seguinte. Na minha cabeça, as palavras do poema se repetiam. A
espera que parece sem fim. Que espera? Desci as escadas,
encontrando minha mãe servindo café aos hóspedes. Ali estavam Bruno,
Oliver e Arnaud. Margarida, a escritora, estava reclusa em seu quarto.
— Nico, os rapazes — começou a dizer minha mãe, assim que
entrei, apontando para o casal, que não eram rapazes, e sim homens adultos,
— vão fazer o tour do Seu Sebastião amanhã na base das montanhas.
Apenas ri. Seu Sebastião era um pescador do sul da ilha que, em alta
estação de turismo, fazia um bico de “guia turístico” pelas montanhas,
fazendo um percurso curto, superficial e preguiçoso por áreas que nem
tinham as melhores vistas.
— Não falei? É um charlatão — disse minha mãe, em resposta ao
meu riso irônico.
Os rapazes se entreolharam, visivelmente decepcionados. Então eu
vi ali uma oportunidade.
— Eu posso levá-los — falei.
​— Você não é muito novo para isso? — perguntou um deles. Não
sabia qual era qual, Bruno ou Oliver. Tentei não demostrar que fiquei
profundamente ofendido com a pergunta.
​Minha mãe sorriu, um sorriso de mãe orgulhosa. Foi até o meu
lado e colocou uma mão sobre meu ombro.
​— Esse rapaz só não escalou essas montanhas ainda porque não
deixei. O pai o levava pra acampar lá no pé da montanha desde criança,
faça chuva, faça sol. Hoje em dia ele acampa com os amigos, até no
inverno. E acabou de tirar uma licença da prefeitura, ele agora é trilheiro
regularizado, viu! Ninguém conhece mais essa mata que ele.
​Sorri, encabulado. Acampar nas montanhas era uma de minhas
paixões, além da praia no verão. O silêncio, o barulho do rio, dos pássaros,
dos insetos. Gostava da tranquilidade e da distância da cidade e das pessoas.
Eu ia para lá a fim de dar um tempo na vida, para escrever, e até para
estudar. Foi lá que perdi a virgindade com Elisa, em minha barraca, debaixo
da chuva. Sempre quis escalar aquelas montanhas, mas eram perigosas
demais. Era preciso ser alpinista profissional e ter autorização da prefeitura.
​— Quando você pode nos levar? — perguntaram.
​— Quando vocês quiserem. Amanhã, pode ser? — respondi, já
passando em minha cabeça a lista de coisas que precisávamos levar.
​— Amanhã, então — decidiram.
Fui ao centro da cidade comprar o material que eu precisava e
estava faltando. Por acaso, encontrei Américo na rua. Fiquei animado, fazia
alguns dias que eu não falava com ele, o idiota estava sem responder
minhas mensagens. Provavelmente ocupado fazendo lives sem parar. Ia
chamá-lo para acampar, ele gostava e devia estar precisando descansar. Mas
quando me aproximei, percebi que os homens com quem ele estava
conversando brigavam com ele. Falavam baixo, para ninguém entender,
mas com a voz agressiva. Quando um deles colocou a mão no peito do meu
amigo e o empurrou contra a parede, eu intervi.
— Ei, o que é isso?! — gritei, chegando perto. — Tá tudo bem,
Américo?
O cara me afastou com um tapa. A dor fina no lábio surgindo ao
mesmo tempo que o gosto férreo do sangue na língua. Ele usava um anel
enorme, em formato de caveira (quão caricato!) e o outro homem tirou um
canivete do bolso. O que era aquilo, um assalto?
— Nico, saia daqui — disse Américo, olhando para mim. Ele estava
sério, não tinha nem um pouco do meu desespero. — Não se meta. É
negócios.
— Não — insisti. Como ia deixá-lo ali daquela forma?
— Tô falando sério. Vá embora — ele sibilou entre os dentes, me
assustando. Nunca vi Américo daquele jeito. De repente, senti mais medo
dele do que daqueles caras.
— É, moleque, vai embora — eles falaram, avançando para cima de
mim. Dei um passo para trás e saí correndo. Não tive escolha.
Quando meu lábio parou de sangrar, e minha mão parou de tremer,
voltei para casa, já com uma desculpa pronta parar falar caso me
perguntassem como me machuquei. Afinal, nem eu sabia ao certo o que
tinha acontecido. Mais tarde, tentei falar com Américo novamente, e tudo
que ele me respondeu foi: “tá tudo bem, não precisa se preocupar”.
Naquela noite, dormi mal, sonhei com um tsunami gigante devastando a
ilha inteira.

Aquele era um passeio de, no mínimo, dois dias. Saindo de manhã,


chegaríamos lá no final da tarde, onde dormiríamos e retornaríamos no
outro dia. Então precisei acordar bem cedo. Minha mãe repassou a lista da
bagagem, como sempre fazia, muito embora eu já fosse experiente em
acampar e tivesse feito um curso sobre isso. Ela perguntava as coisas e eu
confirmava. Barraca? Sim. Repelente? Sim. Lanterna? Sim. Pilhas? Sim.
Sinalizador? Sim. Canivete? Sim. Casaco? Sim. GPS? Sim. Comida, água,
capa de chuva, saco de dormir, celular, meias extras? Sim, sim, sim. Se o
rio estiver cheio, não atravesse, fique longe dos ninhos de cobra, não entre
na mata fechada. OK, OK, OK. Se vir Seu Sebastião, mande ele se lascar.
Pode deixar. Bruno e Oliver já tinham tudo, estavam preparados para
acampar, vieram para a ilha já planejando visitar a montanha. Trouxeram a
barraca deles. E eu tinha uma barraca que bastaria para mim.
​Começamos a caminhar, nós três, atravessando o jardim, quando
ouvi um grito atrás de mim.
​— Eu quero ir também! — disse Arnaud, ofegante, correndo atrás
de nós. — Achei que não ia conseguir porque tenho alguns compromissos,
mas não quero perder a oportunidade. Dá para me encaixar nessa
expedição?
​Olhei para ele, surpreso. Não sorria, estava sério. Realmente se
oferecera para ir conosco. Não esperava por aquilo e mal tive tempo de
processar a informação.
— Sim, claro — falei, quase engasgando nas palavras.
​— Me dê dez minutos para pegar minha mochila — disse ele,
correndo até o quarto para fazer sua bagagem.
​Enquanto esperava-o, no terraço, comecei a entrar em pânico.
Ficaria com ele durante dois dias inteiros, sobre o que falaríamos? Ou, pior,
onde dormiríamos? Na mesma barraca? Espero que ele tenha uma barraca.
E se ele fizesse algum movimento, se me beijasse? E se eu o beijasse? Ou
pior, e se ele não me visse dessa forma e eu estava louco aquele tempo
todo? E se, depois que ele me conhecesse, me achasse um garoto sem graça,
feio e desinteressante? E se, dormindo ao lado dele, na barraca, eu tivesse
uma ereção? O que ele faria? E se ele tivesse uma ereção? O que eu faria, e
ele? E se ele me matasse? E se Oliver e Bruno nos matassem? E se Arnaud
matasse nós três e depois se matasse? E se, e se, e se...
Arnaud, o do vento, do cabelo, do penhasco, da espera sem fim,
apareceu na porta. Vestia botas, shorts, uma camisa de linho com mangas
compridas e nas costas uma mochila de lona. Não vi nenhuma barraca.

O caminho para as montanhas era tão lindo quanto as montanhas


propriamente ditas. Saindo da nossa casa, primeiro contornávamos a
floresta, seguindo o litoral, beirando o penhasco de pedras do lado oeste da
ilha, numa pequena trilha de cascalho, em direção ao sul. Ouvíamos o
barulho das ondas chocando-se violentamente nas pedras lá embaixo, o
cheiro de maresia tomando conta de tudo. A vontade era de parar ali e ficar
para sempre olhando a imensidão azul do mar, mas precisávamos andar
para chegarmos à montanha ainda na luz do dia.
​O casal não era de muita conversa, pareciam fechados entre eles,
então eu e Arnaud demos privacidade aos dois, andando um pouco mais à
frente, enquanto eles nos seguiam. Percebia que Arnaud às vezes parava e
anotava alguma coisa rápida num caderninho. Não tive coragem de
perguntar o que era.
​— Então você é um homem da selva — comentou ele, talvez
querendo quebrar o silêncio entre nós.
​— Sou — admiti. — E você? Achei que era um homem mais do
mar do que da terra.
​Ele sorriu.
​A trilha afastou-se do litoral e adentrou a ilha, cortando a mata.
Estávamos protegidos do sol, mas as árvores, densas e enormes,
bloqueavam o vento, então aquela era a parte que eu menos gostava da
trilha. Era quente, abafada e úmida demais. Passamos por um animal morto
no caminho. Um gavião, tinha a asa ferida, parecia um tiro. Estranhei, não
havia caçadores por ali. Os rapazes me ajudaram a cavar um buraco e
enterrei o bicho.
​Por duas vezes, vi Arnaud dar tapas em si mesmo, no pescoço,
braço e pernas. Estava sendo atacado por mosquitos.
​— Não trouxe repelente? — perguntei.
​— Esqueci — falou. Então fechou os botões da sua camisa, que,
como sempre, estava aberta, mostrando seu peito. Malditos mosquitos.
​ ei-lhe meu repelente e seguimos o caminho em direção ao sul da
D
ilha. Arnaud andava ao meu lado, quase ombro com ombro, e por vezes eu
o deixava passar na minha frente, para observá-lo caminhar, aqueles seus
passos lentos, calmos e, ao mesmo tempo, determinados. Outras vezes eu
passava na frente, para que ele me observasse. Como será que ele me
olhava? Vez ou outra ele cantarolava ou assoviava alguma música e eu, sem
sucesso, tentava identificá-la.
​À medida que nos aproximávamos das montanhas, a floresta ia se
dissipando, ficando mais rala, as árvores iam ficando menores e menos
numerosas. Não muito tempo depois, caminhávamos ao longo do rio, que
corria gelado e apressado em um leito pedregoso, entre arbustos e
gramíneas. Ali era o único ponto da ilha onde não dava para se ver o mar, o
centro da ilha. A oeste ficavam os penhascos, ao leste, as praias, distantes
demais. Ao norte, a floresta e o centro da cidade. Ao sul, na nossa frente, as
montanhas escarpas que se erguiam ao céu. Uma muralha de centenas de
metros, coberta de pedras e vegetação rasteira, cheias de minérios valiosos,
mas protegidas graças às leis ambientais rigorosas.
​Era fácil se machucar naquela trilha, tropeçando. Com aquelas
montanhas ali bem na nossa frente, acabávamos distraídos, não olhando
para onde pisávamos. Acho que cada um de nós tropeçou pelo menos uma
vez.
​— Agora que a pousada está pronta, você vai ficar trabalhando
lá? — perguntou Arnaud certo momento, quando paramos para comer
sanduíches e beber água.
​— Sim. Lá e na loja da minha mãe. Não é exatamente o que eu
queria fazer da vida, mas é o que tem pra hoje — respondi, mastigando o
almoço que minha mãe havia preparado.
​— E você queria o quê? — perguntou.
— Ir pra universidade. Estudar Letras.
— E por que não vai?
— Não tem faculdade de Letras aqui no arquipélago. Só no
continente.
​— E por que você não vai para o continente? — insistiu. Depois
balançou a cabeça e pareceu envergonhado. — Pardon, estou fazendo
perguntas demais…
​Deixar o paraíso para estudar, para sofrer numa universidade,
numa cidade feia e poluída e cheia de gente mal-educada e ônibus lotados?
Aquilo me aterrorizava. Às vezes eu ficava feliz por não ter dinheiro para
estudar lá, e assim usar isso como desculpa para ficar na ilha.
​— Gosto daqui — respondi.
​— Um homem da ilha — disse ele, sorrindo. Então não fez mais
perguntas, como se seu interesse sobre minha vida acabasse ali. Quis
perguntar algo da vida dele também, mas não soube o quê.
​Vez ou outra olhava para trás, para me certificar de que o casal
ainda nos seguia, e os via de mão dadas, às vezes trocando carícias, beijos
ou cochichos no ouvido. Várias vezes, naquele trajeto, eu me perguntei qual
seria a sensação de beijar um homem.
​Quando chegamos no local do acampamento, ainda era claro.
Tínhamos mais uma hora de sol para curtirmos a paisagem e montarmos as
barracas. Ficamos em um pequeno vale, protegidos do vento que seria frio à
noite, não muito distante do rio, de um fragmento de mata e de um lago que
ficava na base da montanha. Falei para eles que iríamos ao lago pela manhã.
Era ótimo para nadar. Aquele local não era muito conhecido, em todos
aqueles anos que eu acampara, só encontrei outros campistas três ou quatro
vezes. Estava fora da rota turística, a trilha oficialmente montada pela
prefeitura, mas, mesmo assim, era o melhor lugar de todos. No alto do vale,
poderíamos sentar sobre as pedras cobertas de musgo e observar as
montanhas, que pareciam estar a um palmo de distância, os pássaros
voando sobre nós em direção ao aconchego dos seus ninhos para passar a
noite, e as encostas das montanhas adquirindo tons alaranjados com o
crepúsculo, até sumirem.
​Ao anoitecer, acendi uma fogueira e ficamos ao redor do fogo,
cercados pela escuridão, pelo uivo do vento nas montanhas, e pelos sons
noturnos da floresta: grilos, farfalhar de folhas e cantos de corujas. Arnaud
tirou duas garrafas de vinho de sua mochila e nos ofereceu. Havia
esquecido o repelente, mas o vinho não. Franceses. Ficamos revezando a
garrafa, bebendo diretamente no gargalo. Conversamos sobre coisas
corriqueiras de nossas vidas, trabalho, estudo, hobbies, e eu me senti um
jovem imaturo que não conhecia nada da vida. Mal tinha trabalho, mal tinha
estudos, mal tinha hobbies, nem muito menos talentos. Arnaud perguntou a
Bruno e Oliver o que eles gostavam de fazer no tempo livre e, de maneira
vaga, falaram que gostavam de explorar novos lugares. Seja lá o que isso
queria dizer, e eles não pareciam a fim de detalhar, me virei para o francês e
perguntei o que ele gostava de fazer. Arnaud disse que gostava de desenhar.
Não disfarcei o sorriso. Agora eu sabia mais uma coisa sobre ele.
Além de velejar, desenhava. Queria ver um de seus desenhos. Que estilo
seria o dele? Será que me desenharia como uma de suas francesas? Senti
minha bochecha aquecer. Culpei o vinho.
​Arnaud falou que aquela era a primeira vez que velejava pelo mar
e tinha amado. Originalmente queria ir sozinho, sem a companhia de outros
barcos, queria ter a experiência de estar no meio do oceano sem vivalma.
Mas aquilo talvez fosse um plano para o futuro, já que, como ele ainda não
era muito experiente em velejar, nem muito menos em atravessar o oceano,
foi mais prudente seguir uma frota. Dessa forma eles se ajudavam caso
alguém precisasse. Se faltasse remédios ou comida, por exemplo. A maioria
dos velejadores navegava próxima entre si, para socializarem, mas ele
sempre mantinha distância.
​— Não me meti num deserto de água para ficar conversando, não
é? Teria ficado no continente — explicou-se. E aquilo fazia sentido. Era por
isso que eu gostava de acampar sozinho. Eu o entendia.
Quando a garrafa de vinho secou e os assuntos da conversa
mostravam sinais de que estavam se esgotando, Bruno e Oliver se
levantaram. Falaram que iam dormir, despediram-se e entraram em sua
barraca, fechando o zíper por dentro.

​ avia chegado o momento constrangedor. O momento que eu


H
mais temia. A hora de decidir como dormiríamos. O que eu deveria fazer,
entrar na barraca sem comentar nada? Perguntar se ele viria também? Eu
perguntaria se estava tudo bem, para ele, dividirmos a barraca? Ou essas
perguntas eram estranhas demais?
​— Durmo aqui fora e você na barraca? — ele falou,
interrompendo minhas divagações. O fogo começava a se apagar.
​Essa pergunta foi como ter me dado um tiro, pois, no fundo, eu
estava desejando dormir com ele. Queria saber como ele dormia, se sorria
dormindo, se falava, se roncava ou se babava. Mas ele havia me cortado. Eu
poderia sugerir que dormíssemos os dois juntos na barraca, pois havia
espaço para isso, mas não sabia como dizê-lo sem que ele pensasse que eu
tinha segundas intenções.
​— Você dorme na barraca, e eu aqui fora — falei, por fim. Ele
protestou, mas expliquei que eu conhecia o lugar e estava acostumado. Ele
concordou, relutante, e entrou na barraca. Mas não a fechou, como os
rapazes fizeram, deixou o zíper aberto. Era um convite?
​Reacendi o fogo e me enfiei no saco de dormir. Não estava com
sono, então me virei para o céu, para observar as estrelas. Ali, longe da
cidade, o céu estrelado era um espetáculo. Levei um susto quando não vi
nenhuma estrela, apenas o céu negro, acizentado. Antes que pudesse pensar
“porra, vai chover”, a chuva começou. Não caiu aquele primeiro pingo de
alerta, nem deu um pequeno chuvisco. O céu inteiro desabou de uma só
vez, como se estivesse acumulando água há horas e esperando o momento
perfeito para despencar, deixando-me encharcado em questão de segundos.
​— O que você está fazendo?! Deixe isso aí, tá todo molhado! —
berrou Arnaud da barraca, levantando a voz por cima do barulho da
enxurrada, ao me ver enrolando o saco de dormir.
​Abandonei o que estava fazendo e me joguei dentro da barraca,
ensopado, fechando o zíper atrás de mim. A água estava gelada e
rapidamente comecei a me tremer de frio. Tirei a toalha de minha bolsa para
me enxugar.
​— Pode tirar a roupa, não vou olhar — disse ele, rindo, achando
graça da minha tentativa vã de enxugar as roupas molhadas com a toalha.
​Aquilo me deixou nervoso. A última vez que tirara a roupa na
frente dele, tive uma ereção. Curvado, com o teto da barraca encostando em
minha cabeça, concentrei-me para isso não acontecer novamente, me despi,
deixando a toalha por cima de minhas partes íntimas e vesti uma roupa
seca. Ele realmente não olhou em nenhum momento.
​Arnaud não havia levado saco de dormir. Assim como eu,
dormiria no chão da barraca, o que não era tão desconfortável, já que a
grama embaixo da lona nos amortecia. Tínhamos cobertores, mas, dentro da
barraca, apesar da chuva lá fora, estava quente e abafado. Entretanto, por ter
tomado chuva, eu sentia frio. Arnaud vestia uma camiseta de algodão
branca, justa a seu corpo. Os pelos do seu peito saindo pela gola. Na parte
de baixo, uma calça de moletom cinza.
— Vem pra debaixo do cobertor — falou ele, vendo que eu ainda
me tremia, mesmo depois de vestido.
Ele se afastou um pouco para o lado e levantou o cobertor, abrindo
espaço para mim. Engoli em seco. Aquilo realmente estava acontecendo?
Um pouco hesitante e acanhado, na minha cabeça um monte de
pensamentos me amedrontando — o que ele faria? Me abraçaria? Me
beijaria? — deitei ao seu lado, pois a alternativa seria tremer de frio até
pegar um resfriado. Ele também entrou debaixo do cobertor, para aumentar
o calor e me aquecer mais rápido.
​Arnaud, entretanto, não me abraçou, nem sequer chegou a
encostar em mim, ficou deitado de lado, a alguns centímetros do meu corpo,
tão perto que eu podia escutar sua respiração, o calor de nós dois,
combinados, aquecendo o cobertor como uma estufa. Finalmente eu tinha
parado de tremer. Eu olhava para cima, começando a sentir o suor se formar
em minha testa, sentindo o olhar dele em mim.
​— Quem te fez isso? — ele perguntou, de repente. Seu dedo
estava esticado, perto da minha boca, apontando para o corte que
cicatrizava. Quase tocando meu lábio. Estremeci com a possibilidade do
toque.
— Eu tava indo pro centro, meu pneu furou, levei lá pra oficina do
pai de Elisa fazer um remendo, quando fui virar a bicicleta o guidão bateu
na minha bo...
— Nico — ele me interrompeu.
Olhei para ele, estava sério. As sobrancelhas de taturana franzidas,
uma encostando na outra. Estava bravo comigo?
— O que foi? — perguntei.
— Se for mentir, seja mais sucinto. Mais simples. Quanto mais
história elaborar, mais óbvio será que está escondendo algo.
— Eu não estou...
— Ok, se não quer contar, não vou insistir. Mas se estiver com
problemas e precisar de ajuda, pode contar comigo — ele disse.
Tentei não esboçar reações, por mais que meu instinto gritasse para
abraçá-lo. Eu não queria envolvê-lo naquilo, ainda mais que eu não sabia o
que tinha acontecido. Eu precisava perguntar a Américo que homens eram
aqueles. Para mudar de assunto, virei meu corpo para Arnaud e disse:
​— Posso te perguntar uma coisa?
Ele me olhou seriamente, com aqueles olhos penetrantes que me
desconcertavam. Estava claro ali, com a lanterna ligada. Meu coração
estava quase saltando pela boca e tinha certeza que ele podia ver.
Ele, deitado sobre uma toalha enrolada, que servia de travesseiro,
ergueu a cabeça, apoiando-a na mão, com o cotovelo dobrado, ficando cara
a cara comigo, nossos rostos separados por uma distância de dois palmos.
Eu podia sentir a sua respiração.
​ Oui — respondeu. Na sua boca havia um esboço de sorriso.

Qualquer outra pessoa ficaria em pânico com a terrível pergunta “posso te
perguntar uma coisa?”, mas Arnaud estava calmo e complacente como
sempre.
​— O que é Dortnellas? — perguntei, finalmente, referindo-me à
palavra escrita naquela sunga laranja horrorosa dele, a que ele estava
vestindo quando o vi pela primeira vez.
​Ele riu, seu olhar se distanciou, parecendo divagar no passado, e
então voltou a olhar em meus olhos.
​— Quer mesmo saber? — disse, sério.
​— Sim — respondi prontamente, inocente, sem esperar a resposta
que eu receberia, ávido pela solução daquele mistério que tanto me
atormentava.
​— É uma piada do meu marido.
9 ✹ O LAGO

É
uma piada do meu marido. Meu. Marido. Marido Marido Marido
Marido. Fingi não demonstrar emoção ao escutar aquelas palavras,
mas por dentro eu estava morto. Despedaçado, destruído. Foi como
um choque térmico ao sair do sol e pular no rio, só que ruim. Talvez como
sair do rio e pular no Sol. Senti um buraco enorme se abrir em meu peito.
Ou aos meus pés, como se a terra abaixo de mim tivesse sumido e eu
afundasse, aos poucos, para as regiões abissais de algum oceano
desconhecido e tenebroso. Tentei me controlar, não sorrir, não chorar, não
gritar, não sair correndo. A verdade é que eu não compreendia aquele
sentimento. Estava magoado, como se ele tivesse mentido para mim ou me
traído. Mas não, ele não mentiu, pois nunca havíamos conversado sobre
aquilo, nem sobre nada. Nem muito menos havia me traído, pois não
éramos nada, nem amigos chegávamos a ser. Ele era um hóspede do meu
pai. Ou melhor, ele era um homem. E eu não sentia aquele tipo de coisa por
homens. Sentia?
​— Ele não tem um senso de humor muito bom, então — falei,
tentando não parecer mal-humorado. A minha vontade era de me levantar e
ir embora, na chuva mesmo, abandonar ele e os outros dois ali na selva.
Que morressem de fome ou engolidos por um animal selvagem. Esperava
que ele não fosse como Rebeca, que podia ler minha alma.
​Ele riu. Foi um riso exagerado, meio nervoso, meio triste.
​— Não, ele não tinha.
​Tinha?
​— Tinha? — perguntei. No passado? Então eles haviam se
separado? Haviam brigado, o marido o expulsou de casa e ele decidira
velejar pelo mundo, parando em ilhas paradisíacas em busca de sexo?
​— Ele faleceu há dois anos. Câncer — respondeu Arnaud, me
afundando ainda mais na fenda abissal daquele oceano que me engolira. —
Acontece que o lago onde ele costumava nadar estava contaminado por
resíduos tóxicos de uma mineradora, ninguém sabia na época. Estávamos
planejando velejar pelo mundo quando ele adoeceu — continuou ele,
soturno, e eu arrependido de ter feito aquela pergunta. — Tínhamos até
comprado um barco. Usado, de um vizinho nosso que estava velho demais
para velejar. Sotaford era o sobrenome. Antes de partir, Jérôme me fez
prometer que eu faria essa travessia mesmo sem ele, uma última coisa para
me despedir de sua memória. Me preparei por quase dois anos. Ele me fez
prometer, também, que usaria a sunga mais feia que encontrasse, para que
ninguém desse em cima de mim — riu, um riso nostálgico, cheio de dor, —
e era uma piada, claro, mas quando eu estava comprando roupas para a
viagem, acabei encontrando aquela laranja, a Dortnellas. Quando a vi, por
acaso, lembrei dele e ri, soube que era aquela, a que afastaria olhares. Nem
perguntei o que a palavra significava.
​Um silêncio pairou sobre nós, um silêncio desconfortável,
mortificante. Eu não sabia como responder aquilo, e ele não tinha mais nada
a dizer. Arrependi-me profundamente de ter perguntado o que significava a
porra daquela palavra. Mas, para meu horror, senti alívio. Alívio ao saber
que o marido daquele homem estava morto. Sim, uma coisa terrível para se
pensar, e eu reconhecia isso, mas não pude evitar de sentir. Além disso,
agora eu sabia que ele era, de fato, gay. Todas aquelas sensações, o meu
chão despencando ao ouvir aquela maldita palavra, marido, o alívio ao
descobrir que aquele homem não estava mais entre nós, a excitação ao
confirmar que Arnaud era gay, tudo isso me fez compreender o que eu
estava sentindo. Eu não estava mais confuso. Pela primeira vez, no fundo
do meu ser, da minha alma, das minhas entranhas, admiti que desejava
Arnaud.
​— Bonne nuit, Nico — despediu-se, fechando os olhos e virando
as costas para mim.
​Ao menos não estávamos num silêncio ensurdecedor, pois ainda
chovia. Sentia-me pequeno, ingênuo e idiota. Arnaud era um homem
maduro, casado por sabe-se lá quanto tempo. Seu marido havia morrido e
ele largou tudo, o emprego, a casa e os deuses sabem mais o quê para fazer
os últimos desejos do homem que amara. Aquilo era amor. E eu ali, noites
revirando na cama, sem nem ao menos saber, de verdade, se era gay,
perguntando-me se ele sentia atração por mim. É claro que não sentia. O
que eu era, além de um jovem inexperiente e sem perspectiva para o futuro?
Arnaud voltaria ao mar dali a algumas semanas, e depois para o continente,
onde eu nunca mais o veria. Eu era um pequeno grão de areia perdido no
meio do universo de Arnaud. Uma gota d’água naquele temporal.

​ cabei adormecendo. Quando acordei, o sol já havia nascido. Sol.


A
Então havia parado de chover. Acordei surpreendentemente bem, como se a
noite dormida tivesse recuperado minhas energias, minha sanidade. Aquele
esclarecimento com Arnaud era exatamente o que eu precisava, agora podia
seguir minha vida tranquilamente. Talvez eu até fosse gay, ou bissexual, ou
qualquer coisa do tipo, mas Arnaud não seria o homem com quem eu
descobriria aquilo. Outros viriam. Arnaud seguiria a vida dele, e eu, a
minha. Ao menos era isso que eu repetia na minha cabeça, tentando
acreditar.
​O céu estava azul e sem nuvens, como se nada tivesse acontecido
na noite anterior. Como se a chuva fosse uma alucinação minha, ou uma
metáfora para a lavagem emocional que eu acabara de ter. Arnaud não
estava na barraca quando acordei. Quando saí, ele ajudava os rapazes a
desarmar a barraca deles.
​Chamei os três para irmos até o lago, talvez nadar um pouco, se a
temperatura da água estivesse boa. Bruno e Oliver negaram, disseram que
iam ficar por ali, explorar um pouco os arredores. Não gostavam muito de
lagos, falaram. “Quem é que não gosta de lagos?”, perguntei-me.
​Só fomos eu e Arnaud, ele assoviando uma música, e eu
arrancando algumas folhas no caminho, como distração. Sorri ao
reconhecer a música que ele assoviava. The Fairest of the Seasons, de Nico.
Ele sorriu de volta. E aquele arrepio voltou a assolar minha espinha.
​Para chegar ao lago, percorremos uma pequena trilha, cortando
uma mata. Estava calor, então tirei minha camisa, sem me preocupar com os
mosquitos. Estava acostumado. Arnaud continuou completamente vestido.
Até seus botões estavam fechados.
​— Uau — disse ele, quando a trilha finalmente acabou e a
floresta deu lugar a uma clareira, onde o lago ficava.
​A água parada refletia perfeitamente, como num espelho, as
montanhas rochosas ao fundo, suas encostas imponentes tentando alcançar
o céu. Era um lago de tamanho considerável — eu não conseguiria
atravessá-lo inteiro nadando. Chegaria até a metade, talvez, até morrer
afogado, vencido pelo cansaço. Estávamos cercados pelas grandes e
silenciosas árvores, uma muralha protegendo aquele paraíso. Os únicos
ruídos ali eram do vento que uivava entre as montanhas e os pássaros
refestelando-se nos frutos maduros e suculentos de verão. Havia um
pequeno píer de madeira ali na frente e nele sentamos, com as pernas
penduradas para fora, altas demais para alcançarem a água. Arnaud retirou
o celular do bolso e tirou algumas fotos da paisagem.
​Tirei minhas botas, deixando-as ali no píer, joguei minha camisa
por cima delas, tirei meu short e me joguei no lago, num pulo perfeito, sem
levantar muita água. Não queria molhar Arnaud.
​A temperatura da água estava perfeita. Fria na medida certa,
mesmo sob um sol escaldante. Aquele era o lugar perfeito para nadar
pelado, cercado pelas montanhas e pelas árvores, longe da civilização,
naquele lago que parecia não ter fundo. Gostava de me sentir
completamente liberto de minha humanidade, queria me sentir um bicho,
um selvagem, um homem das cavernas. Gostava de sentir a água do lago,
fresca, banhar todas as partes do meu corpo, como se eu fizesse parte dele.
A água ali era escura, ao contrário do nosso mar cristalino, então de onde
Arnaud estava ele não conseguiria ver o meu corpo submerso. De toda
forma, eu já não me sentia mais desconfortável na frente dele, agora que
tudo estava esclarecido. Provavelmente Arnaud não era o homem para mim.
E o homem para Arnaud já havia deixado esta Terra. Mas não custava nada
provocá-lo. Tirei minha cueca e a joguei no píer, bem ao lado dele.
​— Não acho que seja uma boa ideia — falou ele, olhando
rapidamente para a minha cueca molhada ao seu lado e depois me atingindo
com seu olhar tempestuoso, comprimindo os lábios.
​— O quê? — perguntei.
​— Você sabe muito bem — ele falou, com os olhos semicerrados,
num olhar recriminatório.
​Não, eu não sabia do que ele estava falando. De mim? De entrar
na água comigo ali, pelado? Mas, se ele iria continuar falando em enigmas,
eu também iria.
​— Talvez — respondi, dando um mergulho em seguida, para não
dar tempo de ele falar mais nada. Tomei o cuidado de expor minhas partes
íntimas quando virei meu corpo para mergulhar.
​Quando subisse de volta à superfície, esperava olhar para o píer e
vê-lo desabotoando a camisa, botão por botão, deixando seu peito peludo à
mostra, e então a barriga, ele tiraria a camisa, eu poderia ver o peito
estendido, os mamilos e o suvaco. Veria então ele desabotoando o short e
abrindo o zíper, sem nunca retirar os olhos dos meus, concentrado,
penetrante, eu, embaixo d’água, já estaria excitado, enquanto ele se curvava
para retirar o short, fazendo força no início, onde as curvas da sua bunda e
coxas resistiriam ao tecido. Ele ficaria só de sunga, sim, ele a levou, a
verde, da cor de seus olhos, a que eu escolhi, na frente eu veria o volume do
seu pênis, podendo estar ereto ou não, não importa, pois logo ficaria, seus
pentelhos aparecendo nas margens da costura, então ele pularia na água,
mas não saberia pular como eu, me molharia todo. Pediria desculpas pela
bagunça, por ter agitado a água inteira, se aproximaria de mim e limparia,
com as mãos, a água que caíra em meu olho. Quando eu abrisse os olhos,
seu rosto estaria colado ao meu, a um palmo de distância, meio palmo, dois
dedos, um dedo. E então ele me beijaria, sua língua dentro da minha boca,
sua barba roçando em meu rosto, numa sensação que nunca antes eu sentira.
Eu colocaria a minha mão em sua barba, queria sentir, queria ver qual era a
sensação de afagar uma barba, a barba dele. Nossas pernas, agitando-se na
água, para nos manter na superfície, se tocariam, pele contra pele, pelo
contra pelo. Ele me puxaria para perto de si, nossas virilhas se encaixariam,
e sentiria, com meu pênis, o pênis dele. Eu tiraria a sunga dele. E então...
​Quando subi à superfície ele estava, sim, se levantando. Mas não
retirou a roupa e nem pulou no lago como eu havia imaginado, em vez disso
ele deu as costas para mim e foi embora, indo em direção à trilha que
levava ao acampamento. Nadei até o píer. O que ele estava fazendo? Subi,
pelado e molhado, e vesti minha cueca. Ei, volte aqui. Vesti minhas roupas
às pressas, o short e a regata, e corri atrás dele. Por que ele foi embora sem
dizer nada?
​Ele caminhava rápido, apressado, querendo ir embora logo dali,
mas eu corria, então rapidamente o alcancei, segurando seu pulso e
puxando-o. Ele não criou resistência, então eu não precisava tê-lo puxado.
Quando fiz isso, ele se virou, e a força que eu fiz para isso fez com que ele
se chocasse contra mim.
​Eu contra ele. O homem da ilha e o homem do mar. Seco contra
molhado. Liso contra peludo. Jovialidade contra maturidade. Meu corpo fez
um splash ao se chocar contra o dele, como se eu tivesse pulado de um
trampolim de trezentos metros de altura, caindo de barriga e braços abertos
na água. Morri, traumatismo craniano, um coma perpétuo, virei vegetal, que
por favor alguém desligue as máquinas que mantêm meus órgãos
funcionando. Minha cabeça se chocou contra seu peito — ele era bem mais
alto que eu —, e, confirmei, finalmente, que seu peito era, sim, duro. Duro
até demais, pois machucou. Também senti seus pelos roçarem na lateral do
meu rosto, fazendo cócegas no meu ouvido. Caí para trás, no chão, não sei
se devido ao impacto ou se fiquei tão nervoso com aquele contato repentino
que minhas pernas amoleceram. De repente, me lembrei do que ele havia
me falado sobre o marido. De como o homem havia sido contaminado em
um lago cancerígeno. Meu deus. Era disso que ele tinha medo? Eu só queria
uma eutanásia.
​Ele riu. Um riso nervoso, desistente. Aquele riso de quando não
nos falta mais nada além de rir. Riu de mim, caído ali no chão, com cara de
desespero. Estendeu o braço e me deu a mão para me ajudar a levantar.
​— Ok, não, eu não sei do que você está falando — admiti,
limpando a terra que grudara no meu short molhado. — Desculpa.
​Ele franziu o cenho, talvez não acreditando em mim.
​— Écoute... — falou, depois olhou para a mata, para a direção do
nosso acampamento, e suspirou fundo. — Depois conversamos —
sentenciou.
​— O quê? Por quê? — perguntei. Eu nunca tinha me sentido tão
confuso. — É por causa do lago? Da água? É por causa de mim?
​— Nico... — Ele olhou para o celular, conferindo alguma coisa. O
calendário. — Seu aniversário é semana que vem, não é? Rebeca me falou...
Vai ter uma festa?
​Espera. O quê? Rebeca falou? Quando? Ele havia encontrado
Rebeca sem mim? Por quê? Onde? Rebeca, sua maldita...
​— Sim, sexta-feira — respondi automaticamente, sem saber o
motivo daquela pergunta, que parecia tão deslocada de contexto.
​— Então sexta continuamos essa conversa. Preciso resolver umas
coisas antes — disse, encerrando o assunto. Seguimos a trilha em silêncio,
encontrando Bruno e Oliver sentados ao lado das mochilas, conversando em
cochichos. Calaram quando nos viram.

​ esolvi voltar por outro caminho, pela trilha oficial da ilha. Além
R
de, dessa forma, mostrar outras paisagens, aquela trilha era mais fácil e
mais curta, chegaríamos mais cedo em casa. Ela era mais urbanizada, o
percurso era marcado por tábuas no chão, era iluminado, sinalizado, e havia
pontos com áreas de descanso e bebedouros com água potável.
Em certo ponto da trilha, ainda longe da área habitada, passamos
pela entrada de uma casa que ficava um pouco mais adentro na floresta,
escondida pelas árvores. Era um casarão antigo, datado dos primórdios da
ilha. Ninguém entrava ali. Tinham medo. Diziam ser perigoso, assombrado,
habitado por uma velha bruxa maligna. Era uma lei não oficial falada entre
os moradores: não se aproxime da casa da bruxa. Quando eu era
adolescente, claro, eu e meus amigos brincávamos de ver quem chegava
mais perto da casa. Todo moleque fazia isso. Até que um dia, um menino
que morava lá por aquelas bandas da ilha — não o conhecíamos —
apareceu morto na trilha que levava até a casa. Espancado, com as mãos
decepadas e a língua arrancada. A polícia não conseguiu descobrir o que
havia acontecido, e eu nunca mais ousei chegar perto de lá.
— A gente vai ficar por aqui — o casal falou.
Arregalei os olhos, pego desprevenido.
— Aí é a casa da bruxa — falei.
Um deles, Oliver, riu.
— Não existe bruxa — disse.
— Mas... — comecei a dizer, mas senti a mão de Arnaud pousando
nas minhas costas. Foi um toque firme, quase autoritário, como se me
mandasse calar a boca. As palavras se entalaram na minha garganta.
— Então nós vamos indo — disse Arnaud, me empurrando. — Bom
passeio para vocês dois.
​— Obrigado — disse Bruno, e os dois seguiram na direção da
casa amaldiçoada.
​Eu e Arnaud ficamos um momento parados, em silêncio,
observando eles dois desaparecendo na trilha.
​Uau, isso que é reviravolta, pensei, percebendo que havia
repetido, mesmo que mentalmente, o “uau” que Arnaud sempre falava. Ele
então colocou a mão no bolso, tirando o celular para tirar uma foto da trilha,
com o casal estrangeiro lá no fundo, pequenininhos.
— O que acabou de acontecer? — perguntei.
Arnaud deu de ombros, sério. Ficou olhando por alguns segundos a
foto que havia tirado. Depois continuou a andar. E eu o segui. Naquele
momento, tudo o que eu queria fazer era segui-lo e me perder em seus
mistérios.
Eu e Arnaud continuamos o caminho em silêncio. Por algum motivo
eu não me sentia desconfortável, mesmo havendo entre nós uma conversa
em pendência.
— Isso daria uma história interessante — disse Arnaud em
determinado momento, arqueando uma de suas sobrancelhas.
​Se isso foi apenas um comentário genérico ou se ele estava
sugerindo que eu escrevesse uma história sobre aquilo, não soube dizer.
​Nessa trilha passávamos pela vila de pescadores no lado leste da
ilha, aquela próxima à praia secreta que eu ia com Elisa. Tive vontade de
chamar Arnaud para ir até lá, queria mostrá-la a ele como quem conta seu
mais profundo segredo, abrir para ele toda a minha intimidade. Talvez
depois... Imaginei como seria se fosse ele no lugar de Elisa.
​Chegamos em casa antes do anoitecer, num horário perfeito para
encerrar o meu tour pela ilha selvagem. Chamei Arnaud para me
acompanhar, pois chegávamos na última parada da caminhada, para fechar
com chave de ouro. O sol começava a se pôr. Corri até a lateral da casa e
comecei a subir as escadas que levavam até a caixa d’água, no topo do
telhado. Ele me seguiu sem perguntar.
​A caixa d’água era um grande bloco de concreto, com o espaço
exato para nos sentarmos com as pernas arqueadas. Sentamos, nossos
ombros se tocando.
​O céu começou a adquirir tons rosados, alaranjados, à medida que
o sol ia baixando ao nosso lado, pronto para se esconder além do mar e
aquecer outras terras. Parecia uma obra surrealista, pinceladas de tons
avermelhados por todo o firmamento. Ao fundo, as montanhas. Nos
arredores, o mar. Estávamos no ponto mais alto daquele lado da ilha,
nenhuma casa subia mais alta que aquele nosso pequeno mirante
improvisado, eu me sentia o dono do mundo, do universo, o senhor dos
mares, céus e montanhas. O menino da ilha.
​Ficamos em silêncio todo esse tempo, embasbacados pela beleza
daquele céu artístico, uma beleza que eu via todo dia, mas nunca deixava de
ficar maravilhado. Imaginava o que Arnaud sentia, então, já que ele nunca
tinha visto antes. Esperei ele falar algum “uau”, mas devem ter ficado
apenas em seus pensamentos.
​Meu tronco estava levemente curvado para trás, meu rosto virado
para cima, e apoiava o peso do meu corpo com as mãos. Arnaud, por sua
vez, abraçava as pernas, que estavam dobradas exatamente como as minhas.
Nossos ombros ainda se encostavam. Ombro contra ombro, foi o máximo
de tempo que passei, até então, tocando-o. Procurei aproveitar aquele
momento ao máximo, fantasiando inúmeras possibilidades. O que será que
ele pensava daquele toque de ombros?
​O sol se pôs e as estrelas surgiram com o negro do céu. Mal
podíamos ver um ao outro. O vento soprava frio, trazendo arrepios em meus
braços. Foi quando senti uma leve movimentação em minha perna, como se
uma formiga subisse ali. Olhei para o lado e vi que Arnaud ainda estava
concentrado na paisagem, observando as estrelas, pensando sobre milhões
de coisas que eu nunca seria capaz de adivinhar, mas sua mão, que não mais
abraçava a perna, agora se movimentava. Com as pontas dos dedos, ele
acariciava minha perna, na panturrilha, roçando levemente a sua pele contra
as pontas dos meus pelos. Mexia-os, os dedos, devagar, com ternura, com
cautela, como um explorador a desvendar territórios desconhecidos, um
aventureiro a conhecer seus limites. Aquele pequeno toque carregava tanto
significado e informações que fiquei atordoado. Os olhares, os sinais, a
espera que parecia sem fim, a conversa que teríamos na sexta-feira. Tudo
fazia sentido. O que era óbvio desde o começo apenas naquele momento
pude perceber: o que eu sentia por Arnaud era recíproco.
Era minha vez de ser o explorador. De desbravar terras nunca antes
vistas. Levei a minha mão à sua, que ainda estava em minha perna, e, com
as pontas dos meus dedos, acariciei o dorso da sua mão, fazendo um mapa
mental daquele relevo, um topógrafo avaliando a textura daquela pele,
tendões, veias, pelos. Senti ele estremecer ao meu lado, ou talvez fosse
apenas eu, nervoso, em pânico, meu coração retumbando numa altura que
provavelmente era ouvida no alto daquela montanha e provocaria
avalanches se houvesse neve. Ele parou de brincar com os pelos da minha
perna e voltou sua palma para cima, juntando-a com a minha. Mantinha a
cabeça erguida, os olhos fixos no horizonte, no breu onde as montanhas se
camuflavam de céu, nas estrelas, incontáveis, acima de nós, perguntava-me
onde sua cabeça estava, se ali, comigo, ao meu lado, com a mão que
começava a entrelaçar os dedos aos meus, ou nas montanhas invisíveis, na
imensidão do oceano, do planeta, da vastidão do espaço, das galáxias.

​ icamos assim, quietos, tentando ler o pensamento um do outro,


F
de mãos dadas, por um tempo que não fui capaz de medir. Segurei sua mão
com força, firme, e ele segurou a minha, como se temêssemos sermos
levados pelo vento, como se assim, segurando um ao outro, como um barco
preso à terra por sua âncora, nunca fôssemos embora e aquele momento
duraria para sempre.
​Fiquei paralisado, temendo que a magia e a fragilidade daquele
momento fosse quebrada por qualquer movimento brusco. Não falei nada,
não virei meu rosto para olhá-lo, para perguntar o que significava aquilo, o
que estávamos fazendo, o que faríamos. Não queria afugentá-lo. Não movi
um músculo sequer e ele também não, ficamos paralisados aproveitando
aquele pouco que ousamos fazer até sermos interrompidos por uma
movimentação na entrada da casa. Era Oliver e Bruno, que chegavam.
Arnaud soltou minha mão, não bruscamente, mas devagar, como se quisesse
aproveitar cada último segundo daquele nosso contato que pareceu tão
íntimo — uma intimidade que eu nunca havia tido com alguém, mesmo
durante o sexo —, me olhou com um olhar mofino, como se pedisse
desculpas, como se lamentasse que aquela noite, aquele dia, tivesse
acabado. Despediu-se de mim e desceu as escadas, me deixando ilhado
naquela pequena caixa d’água cercado por um lago de solidão e desejo.
​— Bonne nuit, petit Nico — ele disse.
10 ✹ A CULPA

N
unca, em minha vida inteira, havia dormido tanto. Acordei quase ao
meio-dia, perdendo toda uma manhã de sol. Repeti, em meus sonhos,
a noite anterior, quando Arnaud acariciou, leve e brevemente, a
minha perna. Quando ficamos com as mãos entrelaçadas, sentindo um ao
outro, ouvindo o silêncio que tudo dizia, o barulho do vento, da noite.
Quando, imersos nas estrelas, viajamos entre as galáxias. Estava agitado,
animado, meu coração borbulhando cheio de sonhos e expectativas.
Desci as escadas e a casa estava silenciosa. Minha mãe só
trabalhava na loja à tarde, então naquele horário ela devia estar em casa.
Encontrei-a na sala, assistindo à televisão.
— Cadê todo mundo? — perguntei.
— Tô de folga — disse ela, animada. Parecia descansada. —
Margarida não vai almoçar. Bruno e Oliver foram embora essa manhã.
Pagaram em dinheiro, acredita? Saíram daqui com as malas bem cheias.
Devem ter feito a festa nas lojas da Ilha Grande. Não imaginava que eram
tão ricos. Ah, e Arnô voltou para o mar.
Tudo que ouvi foi a última frase. Meu chão caiu. Fiquei atônito,
estarrecido. Arnaud foi embora, pegou o seu barco e me largou, para
sempre, naquela ilha de merda. Deixou-me abandonado e ilhado.
Arrependi-me, na mesma hora, de ter ficado calado na noite anterior.
Deveria ter falado alguma coisa, deveria ter abraçado, beijado ele. Não fiz
nada, fiquei mudo, petrificado, fingindo que nada estava acontecendo, que
aquela informação não me afetava, como se não estivesse prestes a vomitar
meu coração naquele momento. Desperdicei uma oportunidade que nunca
aconteceria novamente, perdi a chance de fazer algo que eu esperava tanto.
Maldito seja. Droga, droga, droga.
Senti a bile subindo pelo esôfago e corri até o banheiro, vomitando
líquido. Queria vomitar Arnaud. Queria vomitar o bicho que ele implantara
no meu peito, que estava se contorcendo sem dó nem piedade.
Voltei para o meu quarto, onde fiquei no escuro, com a cortina
fechada, o resto do dia. Mal comi, apenas belisquei a comida, e minha mãe
achou que eu estava doente. Disse que eu devia ter pego algo no mato.
Certo momento, escutei um barulho na minha janela. Parecia
alguém jogando pedras. Quando fui para a varanda, quase cegado pelo sol,
Rebeca estava em pé na borda da piscina, de biquíni, com um punhado de
pedrinhas na mão.
— Tá doente?! — gritou.
Fiz que sim com a cabeça e voltei à minha cama.

No dia seguinte, uma terça-feira, Elisa me ligou logo cedo, me


chamando para ir à nossa praia. Fiquei surpreso, achei que isso nunca mais
voltaria a acontecer, depois que ela conhecera o velejador dela. O que
aconteceu? Brigaram? Não perguntei. Concordei em ir, apesar de ainda me
sentir deprimido, achando que talvez fosse uma boa distração. Desci as
escadas esperando encontrar Arnaud na cozinha, tomando café e sendo
bajulado por minha mãe. Quanto mais eu esperava, maior era a decepção ao
encontrar a mesa vazia. Maior era a dor no meu coração. A saudade. O
arrependimento por ter me reprimido, por guardar sentimentos, por ter
sentido medo. A culpa por ter lhe dado a mão, mas mantido o coração.
Encontrei Elisa no centro da cidade e fomos pedalando até o nosso
canto. Como era de se esperar, a praia estava deserta, era só nossa. Ficamos
deitados sob o sol por apenas cinco minutos, quando Elisa se virou e
sentou-se em cima das minhas pernas. Aquilo era uma novidade. Curvou-se
e me beijou, e eu a beijei de volta. Foi um beijo vazio, sem desejo nem
empolgação. Pela primeira vez eu não desejei retirar o biquíni dela.
— O que foi? — perguntou ela, vendo que eu não estava excitado.
— Acho que tô cansado — respondi, desviando o olhar.
— Então, nesse caso... — disse Elisa, desamarrando a parte de cima
do biquíni, me mostrando os seios. Ela os aproximou do meu rosto e eu
mordisquei os mamilos, enquanto ela friccionava a pélvis contra a minha.
Lá embaixo, eu continuava a não responder. Eu só conseguia pensar em
como deveria ser chupar os mamilos peludos de Arnaud, e ele chupar os
meus, roçando a sua barba em meu peito. E a saudade que eu sentia dele...
Elisa desistiu, voltou a deitar na esteira de bambu, os peitos nus
voltados para cima, sem mais se preocupar com a marca do bronze.
— Cadê o seu marinheiro? — perguntei, irônico, tentando disfarçar
a minha impotência, ou falta de desejo por ela, com ciúmes.
— Foi no encontro de velejadores lá na Ilha Grande.
Estava explicado por que me ligara. Precisava passar o tempo,
apagar o fogo, enquanto seu novo parceiro sexual não estava ali. Eu havia
esquecido completamente desse evento, que ocorria todo ano, na segunda
semana do verão. Era como um congresso de velejadores, com exposições
de barcos, workshops e palestras. Durava de quatro a cinco dias.
Elisa disse:
— Aquele francês que tá na pousada do teu pai também foi, vi ele
saindo no barco junto com os outros.
É claro! Como eu não havia pensado nisso antes? Arnaud não havia
ido embora, ele estava ali ao lado, na Ilha Grande, por alguns dias. E então
retornaria. Sexta continuamos essa conversa. Ele poderia ao menos ter dito
até logo e poupado minhas paranoias...
Fiquei excitado novamente, e Elisa percebeu, vendo o volume
crescer na minha sunga, mal sabendo ela que não era nela que eu pensava.
Colocou a camisinha em mim e voltou a sentar sobre minhas pernas, mal
sabendo eu que não era em mim que ela pensava. Penetrei-a enquanto ela
rebolava com os olhos fechados, provavelmente pensando em seu
marinheiro alto e musculoso, enquanto eu, também de olhos fechados,
pensava no meu marinheiro e seu cabelo loiro emaranhado pelo vento, os
olhos penetrantes da cor do mar revolto, seus braços, não tão grossos, mas
torneados, fortificados depois de meses controlando o leme e o mastro do
barco, o peito coberto por pelos. Os pelos que desciam por seu abdome até
a sua virilha. O cheiro da sua virilha, o suor, o calor, o toque dos seus dedos
em minha perna. Sexta continuamos essa conversa.
Gozamos, eu e Elisa, ao mesmo tempo. Foi um gozo rápido, sem
graça, incompleto, como se faltasse alguma coisa. Como se aquele sexo não
me satisfizesse mais, como se o que eu queria fosse outra coisa. Ela caiu
sobre mim, nossos corpos colados pelo suor. Ao recuperarmos o fôlego,
tomamos banho de rio. Não demoramos muito lá, ambos queriam voltar
logo para casa. Também não tínhamos muito o que falar, estávamos
cabisbaixos, encabulados, envergonhados pelo que havíamos acabado de
fazer, como se tivéssemos feito algo diferente de todas as outras vezes. Em
minha cabeça, um misto de felicidade e arrependimento. Feliz por descobrir
que Arnaud estava voltando, mas um sentimento latente sugeria que eu o
havia, de alguma forma, traído. Como se aquela troca de carícias entre
nossas mãos, na noite anterior, o havia declarado como meu, e eu, como
seu, e o fato de eu ter permitido tamanha intimidade com Elisa, naquela
manhã, fosse o ato mais perverso de traição que a natureza já testemunhara.
Voltei para casa ansioso. Ansioso pelo tempo que passara e pelo que
ainda havia de passar. O que eu faria naqueles quatro dias que ele passaria
na outra ilha (e o que ele faria lá? E se ele conhecesse alguém mais
interessante que eu? E se fizesse o que eu havia acabado de fazer com
Elisa? Era cheio de homens gays lá naquela ilha, malhados, sarados, bem
mais bonitos que eu, como aqueles que vemos em filmes...), e os dias
restantes até o meu aniversário, na sexta-feira. Meu deus, era uma espera
sem fim, ainda mais nas férias, sem nada para fazer, ajudando às vezes meu
pai na pousada, minha mãe na loja, as manhãs na praia, as tardes quentes,
monótonas e longas. As noites silenciosas que pareciam não acabar...

Chegando em casa, compenetrado pelo tédio e pela monotonia do


verão, e aflito pela expectativa de contatos íntimos com Arnaud, assisti a
vídeos pornográficos. Apesar de eu conhecer o meu próprio corpo, eu não
sabia como homens faziam sexo entre si, não sabia como se satisfazia outro
homem. Na escola, na televisão, conversando entre amigos, na
adolescência, só se falava de sexo heterossexual. Eu não sabia de nada
sobre aquele novo mundo, que ridículo eu me sentia! Será que eu deveria
perguntar a Américo? Assistir uma de suas lives? Deuses, não! Que horror!
Afastei meu amigo da cabeça e acabei me deparando, não acidentalmente,
com vídeos de homens parecidos com Arnaud, mesma idade, mesmo tipo
físico. Encontrar garotos como eu foi mais difícil, eram todos lisos demais,
novinhos demais, loiros demais, brancos demais, a bunda perfeita. Eu não
tinha nada daquilo.
Primeiro fiquei encabulado, parecia algo errado, proibido, parecia
que estava cometendo um crime ao ver aqueles vídeos. Mas eu estava
excitado, queria ver mais, queria experimentar ao vivo. Também me causou
um pouco de medo, enfiar uma coisa tão grande em algo que parecia tão
pequeno só podia ser uma coisa extremamente dolorosa. Eu nunca nem
antes havia enfiado um dedo sequer. E aqueles homens faziam com
tamanha facilidade...
Eu estava excitado vendo aqueles homens, imaginando como seria
com Arnaud, e acabei descendo minha mão até lá, onde ninguém, nem
nada, jamais havia entrado. Com as pernas erguidas, tentei enfiar um dedo,
mas parecia lacrado. Mas dali saíam coisas, então uma passagem havia.
Molhei o dedo e o cu com saliva e tentei novamente, devagar. Aos poucos,
com um pouco de desconforto, entrou. Cheguei ao ápice com o dedo ainda
enfiado ali, e acabei descobrindo mais um novo prazer. Por curiosidade,
cheirei meu dedo depois, e estava sujo e fedido. Enojado, sentindo repulsa
por meu próprio corpo e pelo que havia acabado de fazer, tomei um longo
banho, esfregando a mão por horas.
Passei o resto da noite me sentindo culpado. Culpado mesmo não
tendo feito nada errado. Quando crescemos, aprendemos sobre amor, sexo,
namoro e casamento. Intimidades entre um homem e uma mulher. Vemos
na nossa frente os nossos pais, os pais de nossos amigos, nossos amigos
com suas namoradas, vemos os casais nos filmes, nos livros. Achamos que
aquilo é tudo que existe, que aquilo é o normal. E ninguém se preocupa em
nos informar que há mais do que aquilo na vida. Quando, por fim, a
realidade joga na nossa frente dois homens juntos, ou duas mulheres, nosso
mundo entra em colapso, não entendemos, não sabemos o que é aquilo.
Sentimos medo, curiosidade, dúvidas. Então nos falam que aquilo é errado,
não-natural, um pecado, um crime, que se você beijar um homem você vai
queimar no inferno por toda a eternidade. Mas eles parecem gostar. Não
importa, é errado. Sem uma presença religiosa muito forte na nossa família,
eu não fui criado assim, pelo menos não de uma maneira tão cruel. Meus
pais não recriminavam a homossexualidade, mas evitavam falar sobre ela.
Nunca falamos sobre aquilo. De toda forma, sempre fui heterossexual,
sempre me senti atraído por meninas, sempre assisti vídeos pornográficos
heterossexuais, aquilo era o meu normal, e assim fui ensinado a seguir
minha vida. Até aquele momento.
A família de Rebeca, por sua vez, era bastante liberal, falavam
abertamente sobre sexualidade e ela anunciou sua homossexualidade sem
muitos escândalos. Mas ela não morava na nossa minúscula cidade, e sim
numa metrópole no continente. Ela me contou com cautela que era lésbica,
sem saber como seria minha reação. Foi como se eu sempre soubesse, pois
a Rebeca que conhecia desde criança, quando ela vinha passar as férias na
casa da avó, continuava a mesma. Nossos amigos reagiram da mesma forma
(ou quase todos). Talvez nossa ilha não fosse tão fechada assim.
Às vezes ela permitia algo entrar: turistas falando uma língua que
nunca antes ouvimos, um turista bêbado provocando uma briga na rua,
quebrando nossa tranquilidade, velejadores que se apaixonavam por nossas
garotas e as levavam embora, ou então ficavam, ou um certo velejador
francês, de cabelos emaranhados e olhos revoltos, que chegava de supetão
abalando a vida monótona de garotos que, até então, achavam que sabiam
de tudo sobre a vida, fazendo-os questionar os valores que lhes haviam
ensinado, fazendo-os entender que aquela culpa que sentiam não passava do
medo do desconhecido. Fazendo-os abraçar a culpa. Fazendo-os amar o
desconhecido.

​ cordei no meio da tarde com alguém batendo em minha porta.


A
Quando abri, vi que era Rebeca, com um vestido meio transparente,
mostrando o biquíni azul por baixo.
​— Tua mãe disse que tais melhor e me deixou entrar — falou,
abrindo caminho para entrar no quarto. — Faz quanto tempo que tu não
abre essa varanda? Que fedor.
​— Não tô melhor não — menti.
​— Ela disse que fosse pra praia ontem, mentiroso. Foi com quem
e por que não me chamou? — resmungou.
​— Com Elisa — admiti. Não fazia sentido prolongar a mentira.
​Ela exagerou uma expressão de choque e se sentou na minha
cama.
​— Como assim? E o boy dela? Realmente tá difícil de respirar
aqui, abre essa janela.
​Fui até a varanda e abri a janela e a porta, deixando a maresia
entrar.
​— O boy dela tá na Ilha Grande em um evento. Ela me chamou
pra praia, fomos e transamos.
​— Mas... — começou, abrindo a boca em choque. — E
Arnaud...? — perguntou, franzindo o cenho em dúvida.
​— É complicado. Precisamos conversar. — Foi o que me resumi
a dizer. Havia muita coisa a ser dita.
​Descemos e fomos até a piscina, o lugar para se conversar.
Aquecidos pelo sol, ela se apoiava em uma boia e eu nadava.
​Contei tudo para ela. O acampamento, a noite na chuva, o marido
de Arnaud, a promessa, nossa ida ao lago, meu tombo contra o peito dele,
nossa volta, nosso pôr do sol no mirante da caixa d’água, os dedos dele
roçando em minha perna. As mãos entrelaçadas. As galáxias. Contei para
ela a frase que ele havia dito, “então sexta continuamos essa conversa”.
Falei sobre Elisa e nossa ida à praia, sobre como aquilo foi a confirmação
final que eu precisava para aceitar, de vez, que a pessoa que eu desejava era
Arnaud.
​— Ele disse que você falou que meu aniversário é nesta semana.
Quando foi que vocês conversaram? — perguntei, finalmente, voltando à
minha conversa com Arnaud no lago.
​Esperava que ela arregalasse os olhos, desse um tiro na minha
cara e tocasse fogo na minha casa, para eliminar testemunhas e pontas
soltas, saísse correndo e fosse se juntar à bruxa da floresta. Mas, em vez
disso, ela deu de ombros e admitiu o crime.
​— Fui encontrar Américo e Augusto num bar... — começou a
dizer.
​— Desde quando tão se encontrando sem mim?
​— Quer que eu continue ou não?
​— Continue.
​— Então, eu fiquei sabendo que Américo tá envolvido com umas
coisas perigosas...
— Que coisas perigosas?! — exclamei, num susto. Não sabia de
nada daquilo. Imediatamente, me lembrei da cena do centro da cidade.
Aqueles caras brigando com ele...
— Nico, tu vai me deixar fofocar, ou não?
— Se você falasse de forma direta, em vez de ficar criando
suspense... Às vezes me pergunto se você faz mesmo jornalismo ou se tá
fazendo teatro escondida — rebati.
Ela riu.
— Américo tá vendendo droga. E antes que me interrompa, eu
descobri sozinha. Tu sabe que sou boa em investigar coisas. Futura
jornalista, né, querido? E não que eu seja contra os corres dele e tal, afinal
eu sou a maior maconheira que tu conhece, né, e cada um faz o que pode
pra sobreviver. Eu sei que faz tempo que não moro mais aqui na ilha, mas
eu sei que as coisas não são como eram antes. Tá ficando mais perigoso
aqui, ele tá se envolvendo com gente perigosa, vendendo droga sintética pra
gringo. A galera é barra-pesada. Falei isso tudo pra ele, como amiga, pois tô
preocupada, e tu sabe o que ele fez?
— Se levantou e foi embora — falei. Clássico Américo.
— Sim. Nenhuma surpresa. Agora vamos ao plot twist dessa peça.
A plateia está distraía, os atores bebem a cerveja calados, o teatro está em
silêncio, quando, BAM! — Rebeca exclama e dou um pulo com o susto. —
Arnaud brota de trás das coxias e se senta na mesa. Está sorrindo e bem
animado, comunicativo como eu nunca tinha visto antes, segura uma
garrafa cheia de cerveja, geladinha, mofada, e serve nossos copos. “Qual a
boa, meninada?”, ele pergunta.
Dou uma gaitada e espero Rebeca rir comigo. Ela fica séria.
— “Qual a boa, meninada?” — repito. — Ele disse isso?
— Disse. E eu fiquei tão constrangida que a primeira coisa que
pensei em dizer foi: “aniversário de Nico sexta-feira às nove da noite espero
você lá, tio”, virei o copo de cerveja e fui embora o mais rápido possível.
— Entendi. Não. Na verdade, não entendi nada. Socorro, ele é muito
imprevisível.
— O pior de tudo, Nico, é que acho ele muito familiar.
— Como assim?
— Não sei. Mais um caso pra detetive Rebeca Watanabe investigar.
Tenho que ir, prometi a vovó que ia almoçar com ela hoje.
​Rebeca saiu e me deixou sozinho. Fiquei na cama remoendo
sobre minha vida. Pensei se a familiaridade que Rebeca sentia vinda de
Arnaud era a mesma que eu sentia: para mim, era como se eu o conhecesse
minha vida inteira. Eu quase não conseguia mais visualizar minha vida sem
a presença misteriosa dela. E em pensar que alguns dias atrás eu estava
decidido sobre a vida, certo de meu futuro... Trabalharia na expansão da
pousada do meu pai, ajudaria minha mãe com a loja, envelheceria ali na
ilha, talvez casasse com alguma boa moça, teríamos filhos, eu seria um
escritor, escreveria sobre a vida no nosso arquipélago, romances em
paisagens inóspitas e bucólicas, talvez escrevesse para revistas de turismo e
hotelaria. Eu estava satisfeito com o que tinha. Tinha meus livros, meus
poucos e bons amigos, Elisa, filmes, a praia, as montanhas, era meu paraíso
e nunca achei que precisaria de mais. Arnaud mudara tudo, me fez desejar
algo que não tinha. Deixou-me curioso, ávido, foi como a mordida na maçã
proibida, a abertura da caixa de Pandora. Agora eu sabia que a ilha não era
tudo, havia mais coisas além dos mares. Tornei-me um poço de dúvidas,
inseguranças, não sabia mais o que queria. A única coisa que sabia querer
era a chegada da sexta-feira. E eu nunca havia me sentido tão ilhado.
​ espera para a minha festa foi bastante dolorosa. Arnaud não
A
voltou da Ilha Grande, muito embora o evento tivesse acabado — eu havia
conferido com Elisa que o paquera dela já tinha voltado. Eu estava em
agonia, afogado em expectativa e ansiedade.
​Estava tão aéreo que não consegui fazer nada, nem escrever,
mesmo minha cabeça estando cheia de ideias e inspirações depois do
acampamento, nem manter longas conversas. Por sorte, caso alguém
perguntasse por que eu estava tão distraído, poderia dizer que estava
ansioso pelo meu aniversário. Não deixava de ser verdade.
​Na manhã de quinta-feira fui com Rebeca até o centro da cidade,
onde tomamos sorvete no nosso lugar favorito, sentados em um banco
debaixo de uma árvore, observando os turistas que tiravam fotos na estátua
de Poseidon.
— Tu não cansa de pedir o mesmo sabor? — perguntou ela,
apontando para o meu sorvete, uma bola de maracujá e outra de pistache.
— Não. Já provei todos e esses são meus sabores favoritos.
Ela balançou a cabeça em desaprovação e continuou a tomar seu
sorvete calada.
Augusto e Américo nos encontraram ali mais tarde, pareciam
animados.
— Preparado pra amanhã, Nico? — exclamou Américo, abrindo
espaço entre nós dois, para se sentar. — Tu só pede esses sabores esquisitos
— falou para mim, virando-se e pegando um pedaço do sorvete de morango
de Rebeca. Como sempre, fingindo que nada tinha acontecido.
— Preparado? — perguntei. — O que vocês tão aprontando?
Américo, eu falei que ia ser só a gente e uma fogueira.
Augusto olhou sério para Américo e ergueu as sobrancelhas. Eu
avisei, o olhar dizia.
— Vai ser a gente, a fogueira — disse Américo, animado — y unas
cositas más.
— Que coisas? — perguntou Rebeca, dando um tapa na mão de
Américo, que tentava pegar outro pedaço do sorvete.
— Nada que seja da sua conta — disse ele, se levantando de
repente. O acompanhei com o olhar e vi que se dirigia a um homem que o
esperava atrás da estátua.
Nunca tinha visto aquele cara antes, então olhei para Augusto, para
perguntar quem era, e vi que meu amigo estava com uma cara péssima, o
cenho franzido, os lábios apertados e pálidos. Parecia que estava com
ciúmes.
Mas Américo sempre fora assim. Era o popular do nosso grupo,
conhecia a ilha inteira, falava com todo mundo, e fazia questão de expor
para a gente quão ativa era sua vida sexual. Ele chamava atenção por onde
passava. Para começar, seu corpo esguio se destacava numa multidão. Além
disso, entre nós três, ele era o esportista, jogava vôlei, praticava kitesurf e
fazia musculação. Era extremamente branco — nunca entendi como ele não
se queimava no sol —, com cabelos quase raspados e sobrancelhas
amarelas feito gema de ovo e olhos azul-turquesa, um fenótipo pouco
comum na nossa ilha. Mas o que eu mais gostava no rosto dele eram suas
orelhas. Eram grandes e para fora, orelhas de abano, cobertas de brincos,
argolas e piercings.
Augusto era o oposto de Américo. Era baixo, da minha altura, e
gordo. Era nativo de uma ilha ali perto, indígena, tinha o cabelo preto,
bastante liso e brilhante. Embora ele fosse tão bonito quanto, ou talvez
fosse até mais, que Américo, injustamente fazia menos sucesso com as
meninas, pois era mais tímido, menos descolado — usava roupas comuns,
sem o estilo roqueiro de Américo. E, claro, a beleza de Américo se
enquadrava no padrão enaltecido pela mídia.
Américo voltou, interrompendo meus pensamentos. Mas ninguém
estava com clima para conversa. Augusto permaneceu sério, de braços
cruzados, e Américo começou a falar bobagens para disfarçar o
desconforto. Quis perguntar a ele sobre aquele cara, ou sobre aqueles outros
que nos agrediram. Mas não consegui encontrar o momento oportuno. Até
que Rebeca rapidamente inventou uma desculpa para ir embora e me puxou
junto.
◆ ◆ ◆

Era uma dessas tardes tediosas, no banzo pós-almoço, estava eu na


beira da piscina, lendo um livro qualquer, sem prestar atenção às palavras,
sob a sombra de nuvens que cobriam o céu. O dia estivera ensolarado desde
cedo, quando fui com Rebeca tomar sorvete, e achei que seria só uma
nuvem passageira, mas começou a chover. Corri até a pousada, que estava
mais próxima do que minha casa, para não molhar o livro, e me abriguei no
terraço do quarto desocupado abaixo do de Arnaud. Fiquei ali lendo por
alguns minutos, sentado no chão, até me entediar e ter uma ideia louca.
​ eus pais não estavam em casa. Minha mãe estava trabalhando,
M
meu pai tinha ido comprar peixe na vila de pescadores e Margarida ainda
estava enclausurada. Na fachada da pousada, meu pai instalara grades de
madeira que serviriam para as trepadeiras que ele plantara se apoiarem. Elas
ainda não haviam crescido o suficiente, tinham cerca de um metro de altura,
então a grade servia como uma escada. Verifiquei se a madeira aguentaria
meu peso e subi até a varanda de Arnaud. Imaginei que ele deveria ter
trancado a porta do quarto, mas não a da varanda. Todo mundo esquece de
trancar a porta da varanda.
Eu estava certo, ele a havia deixado aberta.
​O quarto tinha seu cheiro. Cigarro, perfume, maresia. Estava
perfeitamente arrumado, a cama feita, sem nenhuma dobra. A cadeira, sem
nenhuma roupa jogada sobre ela, estava posicionada na escrivaninha, onde
alguns papéis estavam amontoados, mas organizados.
​Enquanto a chuva caía lá fora, deitei-me sobre a cama dele,
olhando para o teto. Aquela era a visão que ele tinha ao acordar. Virei-me
de lado, sentindo o cheiro do seu cabelo no travesseiro, uma mistura de mar
com as frutas artificiais do seu xampu. O barulho da chuva me deu vontade
de mijar e fui até o banheiro. Pensei em não dar descarga, deixar ali o
cheiro do meu xixi, como um cachorro que mija para marcar um território,
mas desisti e apertei o botão. Quando me virei para sair do banheiro, vi ali,
pendurada em um gancho, a sunga verde-escura que eu havia escolhido
para ele. A sunga laranja, a feia, não estava lá.
​De volta ao quarto, resolvi olhar os papéis que estavam em cima
da mesa. A maioria era folhas em branco, mas havia alguns desenhos.
Grande parte não era nada muito elaborado, apenas esboços, traços rápidos,
rabiscos. Num deles, o que mais me intrigou, dois olhos ocupavam a folha
inteira, tinham um daqueles olhares de que tudo se vê mas nada via, de
quem pensa em tudo e nada ao mesmo tempo, um brilho fascinante, que
parecia não acabar nunca, estendendo-se até os confins das galáxias. Eram
olhos de uma alma cheia de riquezas, histórias e conhecimentos, mas, ao
mesmo tempo, era triste, trancafiada, como uma pessoa que sonhara demais
e a haviam reprimido.
​O resto dos desenhos era praticamente de paisagens, o lago que
visitamos, a trilha, as montanhas, e em um deles eu aparecia, de costas,
nadando no lago. Em outro, estávamos nós dois sentados na janela da
capelinha do mar, também de costas. À nossa frente, a exuberância da ilha,
marcada com a sombra da nossa silhueta. Ele também havia me desenhado
deitado na espreguiçadeira da piscina, bronzeando-me de olhos fechados.
Pelo ponto de vista do desenho, supus que ele havia desenhado aquilo da
varanda. Perguntei-me quando será que tinha sido. Passando as folhas,
percebi que os desenhos ficavam mais antigos, de quando ele chegara na
ilha. Vi seus companheiros de navegação, a pousada do meu pai. Num dos
desenhos, meu pai aparecia limpando a piscina. Em outro, distingui
Américo e Augusto jogando frescobol na praia. Esses desenhos me
lembraram aqueles artistas que ficavam no tribunal registrando os
julgamentos com ilustrações extremamente precisas.
​A chuva havia passado enquanto eu estava ali admirando a arte
dele. Organizei as folhas de volta no lugar e me principiei a sair, quando vi
que a cama estava levemente desarrumada, o tecido amassado marcando o
local onde eu havia deitado. Decidi não arrumar, deixando-a daquele jeito.
Queria deixar um sinal sutil, discreto, marcando que eu estivera ali. Um
serial killer que deixa uma mensagem para a polícia. Não sabia se ele ia
perceber e entender os sinais, ou se ia apenas esquecer que a cama estava de
outro jeito quando saiu, mas eu sempre saberia que havia deixado minha
marca no quarto dele. Saí de lá esperançoso, temeroso, prestes a enfrentar
um destino desconhecido: o futuro. A espera que agora parecia ter um fim.
Arnaud voltaria no dia seguinte para o meu aniversário, para a nossa
conversa, e eu esperava que ele estivesse tão ansioso quanto eu. Que aquela
espera tivesse sido tão torturante para ele quanto foi para mim. E que ele
fizesse valer a pena.
Quase não consegui dormir naquela noite, absorto em minhas
paranoias e inseguranças, repetindo em minha cabeça o meu mantra
favorito: e se, e se, e se... E se ele não voltasse? E se ele se esquecesse? E se
não fosse nada de mais? E se ele aparecesse na minha festa? As inúmeras
possibilidades se manifestavam em agonia, em reviradas na cama, em suor
na testa. Depois que eu havia admitido meu desejo por Arnaud, tudo havia
mudado. Parecia outra pessoa. O que será então que mudaria quando ele
admitisse seu desejo por mim? O que mudaria quando pronunciássemos
essas palavras de desejo um para o outro, além dos olhares conectados e
dedos entrelaçados? O que aconteceria quando consumássemos esse desejo
que havíamos reprimido até então? Maldito tempo que não passa. Que nos
faz esperar. Maldito seja o tempo que arrastou essa noite, fazendo a espera
pelas respostas, que viriam logo no dia seguinte, se arrastar tanto. Queria
logo me aventurar pelo desconhecido, pelo futuro, pelas surpresas que o dia
seguinte me trariam. Ah, como eu ansiava pelas surpresas...
11 ✹ A BANANA
G
ostaria de dizer que naquela noite eu havia dormido feito um bebê
dopado pela mãe, que havia dormido cedo e acordado tarde, fazendo
com que a sexta-feira chegasse logo, e que acordei com Arnaud
batendo na porta do meu quarto e entrando com uma cesta cheia de maçãs e
toranjas. É claro que isso não aconteceu. Amanheci o dia com olheiras
enormes após uma noite mal dormida, suando, me revirando na cama, tendo
pesadelos e pensando sobre o dia que se sucederia.
Eu não estava habituado a ter conversas com ninguém. Nunca tive
namoradas, apenas algumas meninas com quem eu ocasionalmente saía,
apenas alguns encontros, beijos, idas ao cinema. Nenhuma conversa muito
profunda. Com meus pais, o mesmo: meu pai não era muito falador, para
ele apenas um olhar de reprimenda bastava. Minha mãe era curta e grossa,
preferia economizar palavras.
Eu também nunca havia ficado com alguém tão mais velho que eu,
ainda mais um homem. E por que ele queria ficar comigo? Eu não tinha
experiência de vida, morava numa cidadezinha cercada por léguas e mais
léguas de oceano, isolado do restante do mundo, e meu contato com a
riqueza de conhecimentos humanos se resumia à minha biblioteca, meus
filmes e à internet. Eu imaginava que deveria ser essa a sensação de quando
se procura o primeiro emprego, mas todas as empresas exigem um mínimo
de experiência. Como ter experiência se essa chance nunca lhe foi ofertada?
Arnaud seria a minha chance? Uma startup no mundo da
homossexualidade, romances proibidos e diferenças de idade? Seria eu seu
mais novo estagiário?
Meu deus, e se, na verdade, a conversa que ele queria ter comigo era
só para dizer que não estava interessado em mim?

Ninguém me esperava para cantar parabéns e jogar confetes em


mim quando desci a escada. Não esperava isso, é claro, minha família não
tinha muitos hábitos comemorativos. Meu pai estava sentado no terraço
lendo seu jornal, vi o topo da sua cabeça pela janela, e minha mãe estava na
cozinha preparando alguma coisa no fogão. Ela conversava com alguém e
meu coração disparou com a possibilidade de ser, finalmente, Arnaud. Ele
me daria parabéns? Ele me ignoraria? E se eu ficasse nervoso e minhas
pernas começassem a tremer e tropeçasse na mesa e derrubasse a caneca de
café quente na cara dele? E a conversa? Seria agora? Ele pediria permissão
à minha mãe para beijar minha boca? Minha mãe com certeza jogaria o café
quente na cara dele.
Ao entrar na cozinha, vi que era Margarida sentada à mesa,
comendo uma salada de frutas. Minha mãe veio até mim e beijou minha
bochecha, dando-me parabéns.
— Vinte e quatro, não é? — falou Margarida, e eu agradeci quando
ela me parabenizou. — Sua mãe disse que você escreve, e muito bem.
Deveria me mostrar algo seu, posso te dar algumas dicas.
Eu estava extasiado. Não era todo dia que uma escritora profissional
hospedada em sua casa lhe oferecia dicas literárias. Também não era todo
dia que minha mãe me elogiava para alguém.
— A senhora deve estar ocupada com seu livro — falei, tímido.
— Ah, não — respondeu, abanando a mão no ar, dispensando o
pensamento. — Estou cansada do meu livro, preciso dar um tempo.
Sorri, às vezes eu também precisava dar um tempo no que estava
escrevendo, para sair de um bloqueio criativo, descansar a cabeça, ou
procurar mais referências e inspirações. Mas não sabia que alguém mais
experiente também fazia isso. Foi quando me toquei que eu não conhecia o
trabalho de Margarida, nunca havia escutado falar dela, nem sabia o que ela
escrevia. Fiz uma nota mental para lembrar de pesquisar sobre ela mais
tarde.
— Amanhã vou fazer um passeio de barco — continuou ela. — Pra
finalmente conhecer esse arquipélago e, quem sabe, me inspirar. Se quiser,
pode deixar seu manuscrito na minha porta que eu pego quando chegar.
Concordei. Tinha vergonha de mostrar o que eu escrevia para quem
me conhecia pessoalmente, como se eu despisse minha alma e mostrasse
demais, mas Margarida não me conhecia, então eu queria sim saber o que
ela achava do que eu tinha escrito.
Ouvi a porta da frente abrir e virei sobressaltado. Era meu pai. Ele
se aproximou de mim e me parabenizou, dando tapinhas na minha cabeça.
— Vai fazer o quê hoje pra comemorar? — perguntou, indo até o
balcão para ajudar minha mãe.
— Aparentemente Américo organizou uma festa. Um luau, eu acho
— respondi, sem muito interesse.
Minha mãe me olhou com desconfiança, com os olhos semicerrados,
e então tornou-se para meu pai, que deu de ombros. A conversa então foi
encerrada.

​ sol já havia se posto, eu havia acabado de jantar e estava


O
deitado na rede da minha varanda. Curtia a brisa fria da noite, ouvindo
alguma música bucólica e praiana, quando Rebeca entrou no quarto batendo
a porta e quase me matou do coração.
​— Bora, teu pai já tá no carro esperando a gente.
​Saí de casa olhando para trás, procurando, em vão, Arnaud.
Queria que ele tivesse aparecido de repente, dito “me esperem, vou com
vocês”, ou “vão na frente que já, já eu apareço”, mas ele não apareceu.
Colocamos nossas bicicletas na carroceria da caminhonete e entramos na
cabine. Como era noite e fazia frio, meu pai nos levaria até o centro de
carro. Planejávamos voltar só quando amanhecesse, por isso levamos
nossas bicicletas. Por baixo da roupa estávamos de sunga e biquíni, pois o
banho de mar ao amanhecer era certo.
​Como combinado, os meninos nos esperavam na praça, sentados
no chafariz de Poseidon. Estavam acompanhados por Sâmia (quem
convidou ela?!), Elisa e seu paquera. Elisa estava com um vestidinho curto,
e me perguntei se ela não sentiria frio. Nos cumprimentamos, eles me
abraçaram e me parabenizaram, e seguimos até o local da festa, percorrendo
as ruas estreitas, silenciosas e amareladas com a iluminação tênue dos
postes. Ao contrário deles, caminhei sem empolgação. Sentia que estava
indo na direção errada, não era aquele caminho que eu queria seguir. Não
queria ir até a praia, dar sorrisos falsos para quem eu mal conhecia, beber
até perder o controle das próprias ações, queria fazer o caminho oposto,
voltar para casa, contorná-la e ir até a pousada, esperar Arnaud, ter aquela
nossa conversa. Não era até hoje que eu teria que esperar?

​ luau era naquela pequena praia descendo a rua da igreja, onde


O
ficava a capelinha no meio do mar, para onde levei Arnaud há o que parecia
ser séculos. Enquanto descíamos a ladeira, já se podia ouvir a música e as
risadas das pessoas dançando em volta da fogueira. Cerca de vinte pessoas
já estavam lá, bêbadas e drogadas, eu conhecia todos de vista, da rua, praia
ou da época da escola, mas ninguém com quem eu já tivesse tido uma
conversa profunda. Por sorte, aquela região era desabitada, então não
incomodaríamos ninguém com o barulho. Secretamente, entretanto, eu
esperava que incomodássemos alguém, sim, que os moradores chamassem a
polícia e que a festa fosse encerrada o mais rápido possível, para que eu
pudesse ter uma desculpa para voltar para casa.
​Sentei-me com Rebeca próximo à fogueira, sob a luz
tremeluzente do fogo, enquanto Américo e Augusto foram procurar bebidas
e Elisa se escondeu nas sombras para namorar. Sâmia se perdeu entre as
pessoas, ainda bem. Fiquei calado por alguns minutos, desanimado, não
estava no clima para festa. Enquanto os outros dançavam, bebiam,
fumavam, conversavam e se beijavam, eu só conseguia pensar em Arnaud
lá no quintal da minha casa, e em como eu queria estar com ele.
​— Cadê ele? — perguntou Rebeca depois de um momento de
silêncio.
​— Não sei — respondi, suspirando. — Acho que ainda não
voltou da Ilha Grande.
​— Talvez ainda apareça — ela disse. — Tá cedo.
​— Verdade — retruquei. Mas não queria passar a festa inteira
pensando naquilo, esperando... Queria me distrair.
​— Feliz aniversário! — disse Américo, me entregando um
saquinho de plástico com uma cartela de selos coloridos dentro.
— Tô fora — disse Rebeca, se levantando. — Hoje não quero ficar
doida, quero pegar alguém.
​— O que é isso? — perguntei a Américo.
— Uma passagem pra um lugar maravilhoso — ele respondeu,
tomando o saco de mim. Tirou a cartela e destacou os selos. Entregou um a
Augusto, colocou um na língua e me deu um terceiro.
Olhei para Augusto, que era mais sensato, e ele já colocava o
papelzinho na boca.
— Pode confiar na gente — disse Américo. — Vai dar tudo certo. É
como um mergulho bem gostoso. Aproveita tua noite.
​Sem pensar duas vezes, enfiei o papelzinho na boca. Que mal
podia fazer? Eu já me sentia na pior. Queria parar de pensar em Arnaud e
aproveitar a companhia dos meus amigos.
— Cuidem dele — disse Rebeca, quando fomos dançar em torno do
fogo, junto a outras pessoas. — Vou ali naquela menina que tá me
encarando desde que cheguei — falou, apontando para uma garota de pele
negra e cabelos curtos do outro lado da fogueira, soltou um beijo no ar para
mim e sumiu.
​Olhei para o lado, na escuridão, e vi Elisa. Podia ver apenas uma
sombra, o contorno do seu corpo, mas sabia que era ela pois era o mesmo
lugar para onde ela tinha ido quando chegamos. Estava deitada e por cima
dela estava seu marinheiro, beijando-a e fazendo movimentos intensos de
vai-e-vem. Moviam-se no ritmo da música. Ou era a música que tocava no
ritmo deles? Pareciam feitos de água, seus corpos movendo-se em estado
líquido, ondas escuras agitadas pelo vento frio da noite. Tornaram-se um só,
pareciam uma grande geleia, e comecei a rir. Olhei para Américo, para
perguntar se ele também estava vendo aquilo, e não o achei.
— Cadê Américo?! — perguntei, assustado, a Augusto. — Temos
que procurar ele! Ele pode ter se escondido dentro da fogueira! Se ele se
queimar, não vai mais conseguir trabalhar como modelo!
— Ele foi vender o resto dos doces, relaxa.
Comecei a rir, imaginando Américo vendendo doces. Com um pau
sobre o ombro, um monte de sacos de algodão-doce pendurados. Queria
algodão-doce. Sentir o algodão murchar na boca, o gostinho do açúcar se
desfazendo na língua, a mão grudenta. Olhei para as minhas mãos, estavam
vermelhas, em chamas, pegando fogo, mas não doíam nem ardiam, era uma
sensação gostosa, a mesma de quando Arnaud entrelaçara os dedos nos
meus. Senti o fogo arder no meu peito, dentro do meu coração, que tinha
encolhido, era pequenininho, pequeninho, do tamanho de uma trufa, de uma
bala azedinha, fiquei com vontade de chorar, com pena do meu coração,
tadinho, tão pequeno, tão azedo, o bichinho, coloquei a mão no peito,
querendo tirá-lo de lá, queria chupá-lo, não, queria jogá-lo na fogueira, feito
um marshmallow, não, feito uma bruxa, meu deus, eu era uma bruxa, não,
Arnaud era uma bruxa! Desgraçado, me enfeitiçou, fez bruxaria, devia estar
com um bonequinho com o meu rosto, enfiando uma agulha no meu
coração, era por isso que eu sentia essas pontadas, maldito, desgraçado,
havia me transformado num boneco de pano, e era por isso que eu me sentia
todo mole, sem ossos, cheio de espuma dentro, cheio de algodão-doce, eu
precisava encontrá-lo e acabar com o feitiço antes que descobrissem que eu
era feito de doce e tentassem me comer, precisava alertar alguém, alertar a
cidade, tinha um bruxo na ilha, precisava pegar as foices e martelos e ir
atrás dele, não, foice e martelo era outra coisa, qual era mesmo o nome do
negócio que usavam para ir atrás de bruxas, os garfos gigantes, e as tochas,
não importava, eu ia subir na igreja e bater o sino, mas eu não tinha a chave,
cadê o padre, alguém havia chamado o padre para a minha festa, meu deus,
preciso me esconder, e se o padre me visse ali, e se ele contasse para a
minha mãe que eu segurei a mão de Arnaud, eu precisava me esconder,
precisava entrar na fogueira, era um portal, o fogo estava disfarçando a
entrada mágica para o mundo maravilhoso, era isso, Américo disse, tinha
um duende ali dentro, estava explicado, tudo fazia sentido, por isso eu
sentia minhas bochechas queimando quando eu me aproximava do bruxo,
do feiticeiro, era um encanto, vou entrar no fogo, é isso.
— NICO!!!! — Américo segurou meus braços. Ele tinha cara de
duende, a pele verde e as orelhas pontudas, e comecei a rir. — TÁ
DOIDO?!!! Venha comigo.
Olhei para o duende Américo e ele estava sério, preocupado, com
raiva, talvez frustrado porque encontrei o esconderijo dele, mas logo ele
começou a rir também, e saímos correndo juntos, de mãos dadas, pois a
areia da praia era movediça, estava nos engolindo aos poucos, e havia mãos
enterradas, aquele povo do deserto de Duna, guerreiros revolucionários,
queriam nos matar pois éramos invasores daquele planeta, e logo nos
afastamos da fogueira, ou era o sol? Estávamos perdidos na escuridão do
universo, no vácuo, no silêncio absoluto, e eu esqueci como se respirava, e
de repente estávamos numa ponte, não mais no deserto, Américo
gargalhava e me puxava sobre as pedras que avançavam sobre o reino de
Poisedon, caminhávamos sobre as águas, miraculosos e bíblicos, talvez se o
padre me visse ele se orgulhasse de mim, olhei para trás para ver se o
homem de deus estava nos seguindo, mas não havia mais ninguém ali,
apenas o barulho das ondas, e como se adivinhasse meus pensamentos
sacros, Américo me levou para dentro da capela.
A capela estava toda decorada com balões, velas, tapetes e
almofadas. No meio, havia uma cesta com comidas e bebidas. Américo me
deu uma garrafa de água gelada, e pela primeira vez notei que ele estava só
de sunga, o corpo desnudo dele, todo esculpido em carrara, mudando de cor
de acordo com o movimento da chama das velas, era um camaleão, um
lagarto, era mesmo, eu podia jurar pelos olhos dele arregalados para mim
que ele era um predador. Bebi a água em goles ávidos, sedentos, apagando
o fogo que crepitava em mim e Américo disse, a voz dele parecia uma onda
salgada quebrando sobre as rochas:
— Feliz aniversário, Nico. E obrigado por ter me defendido naquele
dia.
​Eu não fazia ideia do que aquele reptiliano que havia tomado o
corpo do meu amigo queria dizer. Mas eu não queria ser abduzido, não
queria ser levado embora do meu planeta, mas eu já estava dentro da nave,
as igrejas não eram naves? E eu sorri e disse, deixando a água dentro da
minha boca escorrer pelo queixo:
— Eu sempre vou te defender, Américo. Eu te amo, caralho! — A
exclamação soou mais alta do que esperava, o eco batendo nas paredes e
voltando para dentro de mim. Eu o amava, eu amava todos os meus amigos,
e sempre os defenderia. Nunca escondi isso, sempre os abraçava e declarava
meu amor por eles, mas ali eu menti, estava com medo, não achava que
aquilo era Américo, e sim outra pessoa disfarçada e quando eu ia dizer que
estava pronto para ir embora, ele me empurrou contra a parede e me beijou.
Senti a língua comprida e áspera de réptil dele entrar pela minha
boca, pelo meu esôfago, revirar o meu estômago, o que será que ele
procurava ali dentro de mim, eu tentei afastá-lo, mas não consegui, as
escamas dele eram ásperas e as garras me machucavam, me prendiam
contra a parede da nave espacial, e eu escutei as estrelas se movendo lá
fora, já tínhamos zarpado, meu deus, não pude me despedir dos meus
amigos, da minha família, da minha casa, da minha cama, de Arnaud, eu
queria voltar, eu quero voltar, eu quero voltar, eu repetia para mim mesmo,
e tentava falar, mas a língua do lagarto Américo estava preenchendo minha
boca e me penetrava cada vez mais, eu já a sentia no intestino, eu ia
explodir, minhas tripas se contorciam, as entranhas querendo sair, e de
repente tudo começou a girar, talvez fosse a nave entrando num buraco de
minhoca, e o espaço-tempo se embaralhou todo, senti o vômito subindo, eu
não estava acostumado a viagens espaciais, minha vista escureceu e eu,
finalmente, apaguei.
◆ ◆ ◆

Acordei no dia seguinte apenas de sunga em minha cama. Não sabia


como havia voltado para casa e nem muito menos quem havia me colocado
no quarto.
​ dor de cabeça era horrível. Quando tentei me levantar, senti
A
ânsia de vômito e me joguei de volta à cama. Queria morrer, queria que
alienígenas me abduzissem e me levassem embora para longe. Memórias da
noite anterior, as de antes de passar mal, voltavam em flashes. Elisa
transando na praia. O papelzinho se dissolvendo na língua, Américo me
puxando para a fogueira. A capela toda decorada. O lagarto.
​Virei-me para fora da cama e vomitei. Alguém havia colocado um
balde ali no canto, mas quando o vi era tarde demais, vomitei no chão.
​Ouvi alguém bater na porta. Três batidas rápidas e leves. E então
a voz. A voz séria, grave, penetrante, que me fazia tremer inteiro. Que fazia
as famigeradas borboletas do estômago se agitarem. A voz que me trouxe
de volta à sanidade, que levou embora meu enjoo e minha ressaca. Uma voz
curiosa, preocupada, com um leve sotaque francês:
​— Çá va? Como está se sentindo?
​Eu não sabia o que Arnaud estava fazendo na porta do meu
quarto, mas uma coisa era certa: eu não queria que ele me visse naquele
estado.
​— Estou ótimo! — exclamei, com a voz rouca.
​Ouvi seus passos se distanciarem e descerem a escada. Então,
ainda me sentindo fraco e enjoado, me levantei, limpei o vômito, tomei
banho e voltei à cama. Sentia que precisava comer, mas achava que não ia
conseguir descer todos aqueles degraus e muito menos segurar alguma
coisa no estômago. Puta merda, o que eu fiz?

​ ão sei quanto tempo se passou, eu estava suando frio na cama,


N
tremendo, desejando a morte e me arrependendo de ter bebido tanto, ao
mesmo tempo em que me perguntava onde estavam meus pais e como eu
tinha voltado para casa. Pensei em ligar para Rebeca, mas só o pensamento
de ter que me levantar e ir até a mesa pegar meu celular me deixava
nauseado.
​— É melhor você comer alguma coisa — disse Arnaud, entrando
devagar no meu quarto, pedindo licença. Segurava um copo d’água numa
mão e na outra uma banana.
​— Se eu comer vou vomitar — falei. Ainda me perguntava o que
ele estava fazendo ali, mas não sabia como perguntar isso sem parecer rude.
​— Se não comer, vai continuar passando mal — ele disse,
estendendo o braço para me entregar o copo.
​ entei-me na cama, encostando-me na cabeceira. Quando
S
terminei de beber a água, ele se sentou na ponta oposta da cama e me deu a
banana. Vestia um short curto, e, quando se sentou, o short subiu e formou
um volume na sua virilha que não pude evitar de olhar. Sua camisa, branca
com grossas listras verticais verde e laranja, estava com os três primeiros
botões abertos, como sempre, e pude ver os pelos cobrindo seu peito. Dali,
enquanto descascava a banana, eu podia sentir seu cheiro adocicado, meio
amadeirado, o aroma distante de cigarro, e quis enfiar o nariz no seu peito e
cheirar seus pelos.
​— Coma devagar — ele disse, e eu obedeci.
​A banana era grande e grossa, então levaria bastante tempo para
terminar de comê-la. O que era ótimo, pois assim eu estenderia aquele
momento. De toda forma, eu realmente não conseguiria comer mais rápido
do que aquilo. Dava pequenas mordidas e mastigava até o pedaço virar uma
papa em minha boca. Só assim eu conseguia engolir, bem devagar. Antes de
dar outra mordida, me certificava de que o pedaço anterior permaneceria no
meu estômago.
​— Daqui a pouco você vai estar se sentindo melhor — falou,
olhando em meus olhos ao mesmo tempo em que eu enfiava a banana na
boca para dar outra mordida.
Ele desviou o olhar rapidamente, desconcertado. Eu, envergonhado,
olhei para baixo, temendo ter insinuado alguma coisa por acidente. Temia
que ele resolvesse ter aquela conversa naquele instante. Eu ainda não estava
pronto. E se eu vomitasse quando ele falasse que queria me comer?
Ele então se levantou, deu uma última olhada para mim e falou:
— Volto mais tarde para saber como você está.
Quando ele começou a sair do quarto, passando pela porta, um
pensamento rápido cruzou minha cabeça — por que ele estava cuidando de
mim, me vigiando, verificando se eu estava bem? Ele, apenas ele, sozinho
—, então exclamei:
— Espere! Cadê meus pais?
— Você não lembra? — perguntou, colocando a cabeça de volta no
quarto.
— Não — respondi, confuso.
Ele não respondeu, apenas riu e foi embora. Maldito.
Quando acordei, mais tarde (nem lembrava de ter dormido de novo),
o dia estava escurecendo. Sentia-me bem melhor, apenas com uma leve dor
de cabeça, mas sem enjoo. Tomei banho e comi um sanduíche na cozinha.
Ninguém estava em casa, nem Arnaud.
Havia uma coisa que eu gostava de fazer quando não tinha ninguém
em casa, o que era uma raridade. Meu pai não gostava que usássemos a
banheira de hidromassagem, gastava energia demais, segundo ele. Havia
sido comprada para o uso dos hóspedes e ficava ali escondida, num canto,
coberta por uma lona. Mas eu estava cansado, sozinho e com dor de cabeça.
Ia usá-la sim. Ela ficava lá fora, entre a piscina e a casa, debaixo de um
pequeno alpendre. Iluminado apenas pelo crepúsculo e rodeado pelo
silêncio do mar e da casa vazia, abri a torneira, deixei fazer espuma, acertei
a temperatura ideal, morna, e entrei. Como era relaxante...
Talvez atraído pelo barulho da água borbulhando, Arnaud apareceu,
descendo a escada da pousada.
— Hidromassagem, hein? Très chic — falou, com um meio sorriso.
— Talvez deseje um vinho, monsieur? Champagne?
— Não pelos próximos vinte anos — retruquei, rindo, com o
estômago revirando apenas com o pensamento de beber mais álcool. Ele riu
também, provavelmente com pena de mim.
Antes que o silêncio que se instalara entre nós ficasse constrangedor
demais, falei alguma coisa, por impulso, sem pensar:
— Não quer entrar? Tem espaço para nós dois. — Foi o que saiu da
minha boca. Era verdade, a banheira comportava duas pessoas
confortavelmente, uma de frente para a outra, e três um pouco apertadas.
— Não sei — ele disse, coçando a nuca, indeciso.
— Vamos, assim você me conta o que eu não lembro da noite
passada — insisti, sem ter coragem de mencionar que ele estava me
devendo aquela conversa. Será que ele ainda lembrava, afinal?
O sorriso no canto da boca apareceu, junto com as rugas no canto
dos seus olhos cor de mar revolto. Aquela visão que me deixava sem
fôlego.
— Très bien. Vou vestir algo mais adequado — falou, por fim, ainda
um pouco hesitante. E se dirigiu ao seu quarto, me deixando com o gosto da
sua voz em meus ouvidos e com o seu cheiro, que se espalhou pelo ar.
Ouvi sua porta se abrir e engoli em seco. Era agora. A hora daquela
conversa. Eu e ele, sozinhos, numa piscina de hidromassagem.
Ele voltou do quarto apenas de sunga. A verde. Caminhou
apressado, sério e olhando para baixo, com aquele vinco de seriedade entre
suas sobrancelhas grossas e bagunçadas. Apoiou-se na borda da banheira
com um braço, seu tríceps saltando, as veias pronunciadas. Colocou uma
perna, sua coxa coberta por pelos adentrando a mesma água em que eu
estava. Ficou em pé dentro da banheira, o volume da sunga na altura da
minha cabeça. Eu estava hipnotizado, não consegui desviar o olhar, e
certamente ele percebeu. Entre minhas pernas começava a sentir um
formigamento, eu estava ficando ereto. Por sorte, a espuma cobria tudo que
estava submerso. Ele se sentou devagar, observei seu abdome se contraindo
à medida que ele se curvava, e seus olhos, finalmente, ficando na altura dos
meus. Sentado, eu só via, acima da espuma, seu peito coberto por pelos
molhados.
— Então você não se lembra do que aconteceu?
— A última coisa de que eu lembro é de vomitar na ca... Na praia.
— Cheguei tarde da Ilha Grande e achei melhor não me intrometer
na sua festa. Desculpa por isso. Queria ter te visto ontem, dado parabéns.
Mas eu estava realmente muito cansado. Depois de comer, fiquei um pouco
no terraço com seu pai, conversando. — Conversando o quê? Perguntei-me
mentalmente. — Ele estava tomando vinho e eu fumando. Então o telefone
tocou. Era Rebeca, pedindo para ele ir buscar vocês, disse que você estava
passando mal. — Porra, Rebeca. — Seu pai tinha bebido, estava quase
adormecendo, então me ofereci para ir. — Por que ele não estava bebendo?
Estava me esperando? — Ele me explicou como chegar lá e me deu a chave
do carro. Quando cheguei, vocês estavam completamente loucos. Rebeca
estava embriagada e você aos prantos falando que um lagarto queria abduzir
você.
Coloquei a mão na boca, mortificado.
— Eu falei isso? E chorei?!
— Sim, veio o caminho inteiro com a cabeça apoiada aqui — ele
disse, sorrindo, dando um toque no próprio ombro. — Encharcou minha
blusa.
— Meu deus. Desculpa.
— Tudo bem. Eu achei fofo. Falei que ia te proteger do lagarto e
você parou de chorar. Quando chegamos em casa, já estava roncando.
Espera. O quê?! Ele me levou para a cama? E quem tirou minha
roupa? Ele? Ou eu mesmo?
— E onde estão meus pais? — foi o que perguntei. Não tinha
coragem de fazer as outras perguntas em voz alta.
— Foram na Ilha Grande, disseram que precisavam comprar coisas
para a loja.
Assenti, surpreso por meus pais terem deixado a casa, a pousada e o
filho inconsciente nas mãos de um completo estranho. Mas, no fundo, eu os
entendia. Eles, assim como eu, haviam caído no feitiço de Arnaud, o
homem do mar. Seu charme, seu sorriso, sua voz grave e profunda, seus
olhos que mais pareciam um oceano. O jeito como ele falava, sempre
educado, contido, simpático na medida certa, seu leve senso de humor, tudo
nos levava a confiar nele. E eu confiava. Era como o feitiço de um tritão.
Estávamos sentados um de frente para o outro, com as pernas
dobradas. Nossas costas sendo massageadas pelos jatos d’água. Como eu
estava relaxado... Descansei uma perna, esticando-a, e, acidentalmente, ou
não, tocando a perna de Arnaud. Ele reagiu olhando em meus olhos
seriamente e se ajeitando, deixando seus mamilos emergirem, cobertos de
espuma. Estiquei ainda mais minha perna, deixando ele perceber que havia
feito isso propositalmente, tocando em sua coxa.
— O que você está fazendo? — ele perguntou, engolindo saliva logo
em seguida, seu pomo de adão subindo e descendo. Estava nervoso. Talvez
mais do que eu. Coçou a barba, sujando-a de espuma. Tive vontade de me
aproximar e limpar.
— Não sei — respondi, falando a verdade. Eu não fazia a menor
ideia do que estava fazendo.
Ele relaxou as pernas, esticando-as, deixando seus pés tocaram
minhas coxas, enquanto os meus tocavam as dele. Meu pau, apertado pela
sunga, doía.
— Também não sei o que estou fazendo — ele disse, quase
sussurrando, talvez não para mim, mas para si mesmo.
Arnaud fechou os olhos e curvou a cabeça para trás, apoiando-a na
borda da banheira. Também ergueu os braços, apoiando-os na borda,
abertos, como se esperasse um abraço meu. Ele parecia relaxar, ou pensar,
não sei. Com o peito aberto daquele jeito, suas axilas pareciam me chamar e
senti um impulso de enfiar a cara ali e inspirar até perder o fôlego, inalando
o seu cheiro. Resisti, e, em vez disso, também apoiei meus braços na borda
da banheira e alcancei sua mão. Com a ponta dos meus dedos percorri os
dele, acariciando-o levemente.
Ele voltou a erguer a cabeça, olhando diretamente em meus olhos.
Eu estava mergulhado não na banheira, mas no oceano de seu olhar. Meus
batimentos cardíacos estavam tão intensos que eu podia ouvi-los, podia
sentir meu coração preso na garganta, prestes a saltar. Suas mãos estavam
sobre as minhas, e era ele que me acariciava, as pontas dos seus dedos
roçando suavemente sobre minha mão, causando arrepios que percorriam
todo o meu braço, subiam pelo pescoço, passavam pela nuca e desciam toda
a minha espinha.
— Eu trouxe um presente para você — ele falou, sua voz mais grave
que nunca, mais intensa que nunca, penetrando meu canal auditivo como se
fosse seu espírito possuindo a minha alma. — Lá da Ilha Grande.
Sobre nós, o céu estava completamente escuro. Estávamos
iluminados apenas pelas luzes que saíam da casa e pela lua que refletia na
superfície da piscina, logo ali ao nosso lado.
— O quê? — perguntei. Minha voz parecia entorpecida, amolecida,
como se eu estivesse drogado. Dopado pelo toque dele. Eu não precisava de
presente, tudo que eu queria estava ali naquela banheira comigo.
— Daqui a pouco eu pego — ele disse, voltando a fechar os olhos e
a inclinar a cabeça sobre a borda da banheira.
Seus dedos pararam de me acariciar, e ele apenas deixou a mão
imóvel sobre a minha, como que me segurando ou certificando-se de que eu
ainda estava ali. Observei a mão dele, que era quase o dobro do tamanho da
minha, seus dedos grossos, as unhas bem-feitas, acompanhei seu braço com
os olhos, brancos e avermelhados, com pelos finos e numerosos que o
cobriam. Acompanhei a veia que passava no meio do bíceps e sumia na
axila, observei seu peito, molhado, subindo e abaixando, movido pela
respiração profunda e intensa. Vi seu pescoço se mover, o pomo de adão
novamente movendo-se para cima e para baixo. Eu me perguntava qual
seria o gosto daquela saliva que passava por sua úvula. Na ponta de sua
barba pendia um pouco de espuma.
Então ele se levantou, de supetão, quase que me assustando. A água
da banheira se agitou, derramando espuma ao redor.
— No meu quarto — ele falou.
Não entendi o que ele quis dizer. O que tinha no quarto dele? O
presente? Era para eu segui-lo? O que ele queria?
Quando percebi, ele já estava subindo a escada da pousada.
Apressei-me para alcançá-lo, mesmo sem saber se era isso que ele queria.
Se era isso que eu queria. A água quente da banheira colada ao meu corpo
rapidamente esfriou com o vento, e, à medida que ela escorria até o chão, eu
começava a sentir frio. Ou talvez fosse apenas nervosismo.
— Espere aqui — ele disse, ao entrar no quarto, me deixando do
lado de fora. — Vou buscar o seu presente.
Não quis esperar ali, no corredor, no frio. Do lado de fora. Enquanto
ele se abaixava para pegar algo em sua bolsa, ao lado da cama, entrei no
quarto e fechei a porta atrás de mim.
— O que está fazendo? — perguntou, levantando-se e virando-se
para mim. Segurava uma caixa retangular, do tamanho de um livro,
embrulhada por um papel de presente azul.
— Não sei — respondi, a mesma resposta para a mesma pergunta
que ele já tinha feito antes. Só que agora era mentira, eu sabia sim o que
estava fazendo. Sabia o que queria. Aproximei-me dele, até ficar a um
palmo de distância, num ponto onde eu tinha que inclinar meu rosto para
cima para olhá-lo nos olhos. A espuma na ponta da sua barba ainda estava
lá, então, com a mão, eu a enxuguei. Os pelos da barba, apesar de grossos,
eram tão macios quanto eu imaginava. Será que também eram cheirosos?
— Nico... — ele começou a dizer, com a voz trêmula, ou talvez
fossem meus ouvidos que estivessem trêmulos, mas foi interrompido
quando eu coloquei minha mão sobre sua sunga, sentindo o volume que
mais parecia aquela banana que ele tinha me assistido comer. Ele deixou o
presente cair no chão e segurou meu pulso firmemente, quase me
machucando, e tirou minha mão de lá. Pude ver, com a visão periférica,
algo rosado saltando para fora da sua sunga verde. — Não.
— Por quê? — perguntei. Eu precisava saber. Eu queria aquilo e
sabia que ele queria também, podia ver os sinais. Podia ver o claro sinal por
baixo da sua sunga. Ele podia ver o meu sinal por baixo da minha.
— Você não sabe o que está fazendo — ele disse, soltando meu
braço e sentando-se na cama. — Isso... Eu... Petit Nico, eu não sou quem
você pensa que eu sou.
Sentei-me ao lado dele e o olhei nos olhos, com intensidade. Queria
que ele se sentisse mergulhado no oceano negro do meu olhar.
— E quem é você?
— Alguém que pode te colocar em perigo.
— Tarde demais. Já estou condenado — sentenciei, me inclinando
sobre ele e tocando seus lábios com os meus.
12 ✹ O BEIJO

A
h, a iminência do beijo! Aquela fração de segundos onde tudo é
premeditado e esperado, a distância que só encurta, a antecipação do
toque! Dizem que a digestão começa antes mesmo de colocarmos a
comida na boca, que, só com o olhar, o estômago já se prepara para o
trabalho. Sábios esses cientistas. Pois beijo é também expectativa,
esperança de desejo realizado, é satisfação de fome. E essa fração de
segundos cheia de ocitocina, cheia de desejo e atração, foi quase tão boa
quanto o tal famigerado beijo.
Mas palavras não parecem ser suficientes para explicar o que
aconteceu quando eu juntei os meus lábios aos de Arnaud. O que é
engraçado, vindo de um escritor. Em minhas mãos me faltam metáforas. E
nos dicionários não há sinônimos nem comparativos adequados. Nos livros
de romance contemporâneos eu não encontraria clichês o suficiente. Talvez
essa minha dificuldade de descrever aquele momento se deve ao fato de ter
sido algo que eu nunca experimentara antes. Era uma sensação nova, um
sentimento desconhecido. Deve ser essa a sensação de um recém-nascido ao
ver o mundo pela primeira vez, quando ele descobre que o que ele conhecia,
e onde vivia até então, aquele pequeno útero, não era tudo. Quando ele
descobre que havia um universo inteiro ali fora, novas cores, novos sons,
novos cheiros, coisas tão novas e diferentes que ele ainda não seria capaz de
descrevê-las.
Então foi assim que aconteceu, como se eu tivesse saído direto da
caverna de Platão, como se eu tivesse nascido de novo, ou tivesse sido
criado, ou como se o universo inteiro tivesse se formado naquele exato
instante. É isso mesmo, foi o big bang, bem no meio do meu peito, no meu
coração, a explosão inicial que deu origem a todo o universo. Senti as
estrelas, sóis e galáxias se expandirem, percorrerem minhas veias, e, num
arrepio, atingirem todas as minhas extremidades. Eu me sentia leve, parecia
que ia voar, e ali eu soube que, no momento da criação, não existia
gravidade. Mas Arnaud colocou sua mão, firme e pesada, na minha nuca e
me segurou para que eu não saísse voando dali.
Quando senti seus lábios tocando os meus, a mão na minha nuca, o
bigode roçando em meu nariz, a barba que pinicava meu rosto, ao mesmo
tempo em que aquela explosão acontecia em meu peito, me atentei àqueles
detalhes, não os deixaria escapar, pois deles eu não queria me esquecer.
Cada movimento fiz com precisão e calma, eu queria detalhes, queria
conhecimento, queria entender aquele pedaço de descoberta que se
denominava Arnaud. Queria saber onde ele gostava de ser tocado, e onde eu
gostava que ele me tocasse. Queria saber o sabor dos seus toques e o cheiro
dos seus gemidos, nessa loucura sinestésica que éramos nós dois. Queria
saber como eram seus suspiros, arrepios, como lhe tirar o fôlego. Queria
conhecer o prazer que ele poderia me dar.

Fechei meus lábios nos seus, fazendo um pequeno estalo, suave,


quase imperceptível. Smack. Ele se inclinou sobre mim, deitando-me na
cama. Sua mão ainda segurava a minha nuca, enquanto a outra sustentava o
seu corpo sobre o meu. Olhava-me nos olhos, sério, com intensidade e
desejo, mas eu não queria ver seus olhos, não, aquele mar eu já havia
encarado bastante, eu queria sentir o gosto de sal, o gosto da boca. Com as
duas mãos, segurei a cabeça dele e a puxei para perto de mim, unindo
novamente os lábios. Não dei um estalo, deixei a boca aberta, deixando ele
enfiar a língua em mim. Minha boca estava seca, de nervosismo ou de sede,
não sei, mas ele enfiou a língua molhada, úmida, cheia de saliva,
lubrificando toda a minha cavidade bucal. Assim, senti o gosto dele. Doce,
refrescante, meio amargo, uma mistura de creme dental, cigarro e mar.
Sempre o mar. Aquele homem era o mar. Enquanto sua língua percorria
minha boca e a minha a dele, eu queria mais, queria sentir mais o gosto
dele, queria que ele cuspisse em mim e queria degustar aquela saliva.
Queria morder seu pescoço, drenar todo o sangue e que nas minhas veias
não corresse mais o sangue dos meus pais, e sim o dele. Eu queria Arnaud
dentro de mim.
Seu corpo pesava sobre o meu, e, como ele era bem maior e mais
pesado, eu não conseguia respirar direito. Ofegante, de excitação ou
sufocamento, arquejei, puxando ar com força, respirando o ar que saía do
seu nariz, o ar que havia percorrido seus pulmões e adentrado cada célula
sua. Aquilo me excitou ainda mais, eu estava respirando o ar de Arnaud.
Sentia o peito dele sobre meu, os pelos roçando minha pele, o mamilo,
endurecido, me tocando.
Ele então afastou a cabeça da minha, bocas ainda unidas por um
filete de saliva, pélvis atracadas uma na outra, nossas sungas já
impossibilitadas de conter aqueles membros ensandecidos. Em seus olhos
eu via um misto de desejo e dúvida, o seu olhar, que já me penetrava, e sua
sobrancelha, franzida. Ele parecia indeciso, parecia hesitante, como se
ponderasse se deveria continuar ou parar. Não, ele não podia parar. Antes
que decidisse sair da cama, agi rapidamente, levei minha mão ao seu
mamilo e o apertei, belisquei, contorcendo-o. Ele fechou os olhos e
entreabriu a boca, gemendo e estremecendo sobre mim.
— Você... — ele começou a dizer, mas foi interrompido quando,
com a outra mão, eu libertei o órgão que clamava liberdade da prisão que
era aquela sunga. Com suas duas mãos ele segurou meus ombros e me virou
de bruços na cama. Eu encarava o travesseiro e ele beijava minha nuca,
molhando com beijos famintos o espaço entre minhas orelhas. As palavras
de prazer em francês que sussurrava, talvez para si mesmo, eu não
compreendia, mas os gemidos graves que saíam de seu controle eram numa
linguagem universal. Com a língua ele percorreu minha espinha, deixando
ali um rastro de saliva, provocando em mim espasmos de prazer, uma
convulsão sexual, como se já não fosse mais capaz de controlar meu próprio
corpo, como se ele fosse todo de Arnaud.
Sua língua quente desceu o arco das minhas costas, chegando em
minha lombar, no cóccix, e então mordeu a minha sunga e a puxou para
baixo com o tecido entre os dentes.
— Uau — foi o que ele falou quando baixou a minha sunga até
meus joelhos e a soltou. Queria ver seu rosto, queria ver a expressão de
deslumbre e seus olhos brilhando quando ele pronunciava aquelas três
letras: u-a-u. Comecei a me virar, mas, com uma mão, ele empurrou minha
cabeça de volta ao travesseiro. — Quieto. — E seus dedos foram para a
minha boca, calando-me, entretendo-me, ele os enfiou ali e eu os chupei,
não, eu os devorei numa avidez que poderia tê-los deixado em carne viva.
Os pelos daquela barba, grossos e macios, roçaram na pele virgem
da minha bunda. Pele jamais beijada pelo sol ou por um homem. Ele a
beijou, mordiscou, apertou com os dedos firmes e calejados de marinheiro
e, então, enfiou naquele território inexplorado a língua. Um gemido
descontrolado saiu de dentro da minha garganta, quase um grito, um som
gutural, e meu corpo inteiro se contorceu. Agarrei-me ao colchão,
segurando-o com força, como se eu fosse me liquefazer se por acaso o
soltasse, enquanto Arnaud parecia um esfomeado que se deliciava com as
sobras de um prato. A barba ainda arranhava minha pele e a língua
deslizava freneticamente naquele espaço, explorando-o, contornando-o,
adentrando-o. Eu não mais gemia, quase gritava, gritava para ele me foder,
queria ele em mim, dentro de mim, queria contrariar as leis da física, e que
os nossos corpos ocupassem um mesmo espaço.
— Tem certeza? — ele perguntou, e eu nem sabia que eu tinha
falado algo. Achei que tivesse apenas pensado.
Balancei com a cabeça, ainda enfiada no travesseiro, afirmando que
sim, mesmo sem realmente ter certeza. Eu não sabia o que ia acontecer.
Aqueles mares eram desconhecidos para mim, e ele era o meu navegador, o
detentor da bússola, o conhecedor das constelações.
Com a boca dele de volta ao meu pescoço, senti o cheiro de suor, de
mar, de sexo, a barba molhada de saliva, a língua que voltava para minha
orelha a sussurrar impropérios em forma de barulhos umedecidos. Ele
respirava profundamente quando seu pênis enrijecido friccionou no exato
ponto onde ainda há pouco a língua esteve. Seus músculos então se
contraíram, sua respiração parou, seus ombros enrijeceram sobre os meus,
e, num pequeno impulso, lento, porém firme, seu quadril pressionou-se
contra minha bunda e algo grande demais tentou entrar num espaço onde
não cabia. Gritei, mas dessa vez não de prazer, e sim de dor. Empurrei-o
contra a parede e me encolhi na cama, sentindo a dor penetrar todo o meu
corpo, mesmo não tendo mais nada ali para me ferir.
— Je suis désolé. Me desculpe. Me desculpe — ele falava, mas eu
não ouvia. Nos meus ouvidos apenas havia um barulho pulsante de dor.
Meus olhos, fechados, lacrimejavam. Sexo entre homens então era assim?
Que coisa horrível!
Continuava encolhido na cama, em posição fetal, e ele me abraçava,
por trás, acariciando meu cabelo empapado de suor. Meu corpo estava
colado ao dele, unidos pelo calor, eu podia sentir seu membro enrijecido
contra minhas costas, embora o meu não mais assim estivesse.
Gostaria de ter dito faz a dor passar, suplicado, para que aquela dor
se tornasse apenas uma memória ruim. Gostaria de ter dito isso e que ele
tivesse entendido. Então ele me viraria novamente de bruços e me beijaria,
não na boca, mas lá embaixo, aquele beijo que eu havia descoberto naquela
noite e gostado tanto. Eu teria então um orgasmo que nunca antes havia
tido, tão poderoso, como se, por instantes, minha alma tivesse saído do meu
corpo e voltado. Gostaria de ter chegado ao ápice do prazer quando seu
rosto ainda estava no meio da minha bunda. Eu deixaria, então, pela
segunda vez, uma marca naquele território, uma mancha branco-amarelada
que ficaria para sempre naqueles lençóis. Ele ia gozar logo em seguida,
enquanto sentia os espasmos do meu corpo em sua língua. Cairia sobre
mim, seu corpo se misturando ao meu, nossos pulmões sincronizando,
nossos corações, aos poucos, voltando ao compasso natural.
“Uau”, ele diria. Ou talvez eu dissesse. Ou os dois falariam, em
uníssono.
E então eu me apaixonaria, de vez, por Arnaud.
Mas nem tudo acontece como queremos ou planejamos: uma das
coisas que eu mais detesto sobre a vida. Sua imprevisibilidade, sua
capacidade de nos enganar, nos iludir, nos decepcionar. Ou seria nossa a
culpa? Colocamos expectativas demais, confiamos demais em nossos
planos, somos inadvertidamente e excessivamente otimistas. Quando, na
verdade, nada podemos esperar. Talvez o melhor fosse esperar o pior...
Não, eu não pedi para a dor passar, a dor não passou, Arnaud não
me beijou e nem tivemos um belo orgasmo juntos. Não naquela noite. Eu
ainda estava encolhido na cama, a dor latejante lá embaixo, envergonhado,
com medo de ter decepcionado Arnaud, com medo de estar sangrando sobre
sua cama, deixando ali, pela segunda vez, uma marca (dessa vez vermelha).
Antes que eu pudesse dizer alguma coisa ou ele pudesse fazer algo para me
amparar, as luzes lá de fora, da piscina, se acenderam. Alguém havia
chegado em casa. Meus pais.
Meu primeiro impulso foi de mandar Arnaud sair correndo, se
esconder, se esconder no armário como um amante em uma novela, mas
lembrei que não estava no meu quarto, e sim no dele. Pulei da cama,
ignorando a dor que ainda me lembrava do ocorrido, vesti minha sunga e,
sem olhar para trás, sem me despedir dele, sem trocar olhares de me
desculpe ou até logo, saí do quarto correndo e bati a porta atrás de mim.

Não sei quem se assustou mais, eu ou Margarida, quando apareci


correndo na área da piscina e quase trombei contra ela. Ela riu,
descontraída, mas eu não, permaneci sério, tenso e assustado, pensando se
ela havia me visto sair da pousada, do quarto de Arnaud. O que ela
pensaria? Ela falaria aos meus pais?
— Você deixou o manuscrito na minha porta, rapaz? — ela
perguntou, não notando minha cara de assombro, ou fingindo não notar, e
jogando um assunto aleatório entre nós para disfarçar.
Eu havia esquecido o manuscrito totalmente. Tinha coisas mais
importantes para me preocupar. Como se uma ressaca e um beijo de Arnaud
fossem mais importantes do que o futuro que eu sonhava como escritor.
Dane-se o maldito manuscrito!
— Estava indo buscar — falei, apressando-me em sair logo dali
antes que meu comportamento suspeito denunciasse o que eu havia acabado
de fazer. Sentia-me como se tivesse acabado de cometer um crime.
— Aproveita que a pousada tá cheia de escritores. — Quando ela
disse isso, eu parei e olhei para ela, confuso.
— Só tem a senhora — falei.
Ela então olhou para o quarto de Arnaud e sorriu para mim.
O que ela queria dizer com aquilo? Antes que eu pudesse questionar,
ela se despediu com um sorriso e seguiu para seu quarto, e eu,
apressadamente, desliguei a banheira de hidromassagem, que havia
esquecido ligada, antes que meu pai visse. Em passos rápidos, entrei na
casa. Esperava que meus pais não me vissem, pois eu sentia que estava
andando esquisito. Ainda sentia pontadas de dor onde Arnaud havia tentado
penetrar, e, para piorar, sentia aquela região úmida. Estava sangrando? E se
aparecesse na sunga?
Comecei a subir as escadas quando ouvi uma voz atrás de mim.
Uma voz severa, quase arisca, ruído de unha sobre quadro-negro. Guincho
de porco à beira do abate. Ela não falou, ela esbravejou. Era uma voz de
quem sentencia um criminoso à morte. Uma voz de carrasco. E ali eu soube
que meu caso era perdido. Não havia possibilidade de negociação,
advogados ou habeas corpus. Minha sentença já havia sido declarada pela
suprema juíza.
— Você está louco?! Como pôde fazer uma coisa dessas, Nico?! —
gritou a minha mãe.
13 ✹ O AVENTUREIRO

O
tempo, ou eu, havia paralisado. Fiquei congelado na escada, um pé
em cada degrau. Meu coração também havia parado ao ouvir a voz da
minha mãe, que saíra da sua boca como o canto de um urubu
anunciando carcaça.
— Seu pai e eu queremos conversar com você.
— Agora? — perguntei, ainda de costas para ela, pronto para correr
até o refúgio do meu quarto.
— Agora. Na cozinha. — A cozinha era o local de reuniões
familiares tensas.
Meu pai já estava sentado à mesa, tamborilando a madeira com os
dedos. Minha mãe puxou uma cadeira para mim e sentou-se ao lado.
Eu estava desconfortável. Como se não bastasse o medo do assunto
que eles abordariam, sentia dor e receava estar sangrando. Além disso, tinha
certeza de que meu cheiro me denunciava: suor, sexo, saliva, Arnaud.
— Você se descontrolou... — ela começou a dizer. Quis erguer os
braços, me render à polícia da moral, admitir minha culpa. Sim, sou
culpado. Mea culpa! Prenda-me em nome da lei! Descontrolei-me mesmo,
entreguei meu corpo a um homem, um homem mais velho que eu, um
homem desconhecido, ele tirou minha roupa, lambeu meu corpo, me
machucou em um lugar delicado e proibido. — Com esses seus amigos.
Ouvi falar que tinha droga rolando solta na festa, Nico. Como pôde fazer
isso? Quase me matou do coração quando Rebeca nos ligou. Teu pai teve
que ficar acordado até tarde, e ainda incomodamos o pobre do seu Arnô
para ir te buscar.
Pobre de Arnaud? Pobre de mim!
— Eu sei que foi seu aniversário — meu pai começou a dizer. Olhei
para ele, surpreso, achei que, como sempre, ele só ficaria calado,
assentindo, enquanto minha mãe dava seu discurso inflamado. — Mas você
precisa ter controle de si mesmo. O estado em que você estava... Podia ter
acabado afogado no mar ou alguém ter tirado proveito de você. — Ele tinha
razão. Lembrei de quando caminhei, embriagado, sobre as pedras que
levavam à capela. Eu podia ter escorregado e acabado afogado naquele mar
escuro. Lembrei também da capela, meu corpo sem controle, a textura da
língua de Américo...
— E aquele Américo... — minha mãe continuou, como se tivesse
lido minha mente. Ouvi meu pai se remexer desconfortavelmente do outro
lado da mesa. Mas não era possível que eles soubessem o que tinha
acontecido naquela capela. — Achamos melhor você não andar mais com
ele. As pessoas andam falando algumas coisas sobre ele...
— O quê? — perguntei, franzindo o cenho. Meus pais sempre
gostaram dele. Minha mãe sempre dizia como era bom ter uma pessoa
bonita na nossa casa, para variar, quando ele nos visitava.
Ela desviou o olhar, fingiu estar olhando alguma coisa na barra de
seu vestido, e meu pai pigarreou e se levantou.
— Não importa. Espero que você tenha nos escutado — falou meu
pai, e assim eu sabia que o tempo da conversa havia se esgotado. Não havia
mais nada a se falar. Aprendi, ao longo de todos esses anos, que não
adiantaria insistir no assunto, eles não voltariam a falar sobre isso. O que
meus pais tinham intenção de falar, eles falavam. Será que todo mundo já
sabia que Américo era traficante? Isso podia ser perigoso.
Levantei-me devagar, tinha medo do que estava escorrendo em
minha bunda. Era sangue? Meu deus, eu estava morrendo lentamente de
hemorragia? E se meus pais vissem? A dor já havia passado, apenas restava
um pequeno incômodo. Olhei para o assento quando levantei, confirmando
que não havia nada sujo ali. Aliviado, subi as escadas correndo e me
tranquei no banheiro.

A que ponto eu havia chegado? Estava trancado no banheiro, com


um espelho a postos para verificar minhas partes íntimas, levando a mão até
meu cu para verificar se eu estava sangrando. Não estava. Agradeci a todos
os deuses. Lá havia apenas um líquido transparente e pegajoso. A saliva de
Arnaud. Não sei que tipo de loucura estava passando na minha cabeça, mas
aquilo me excitou. Eu ainda tinha uma parte dele em mim, um fluido
corporal, a baba, o cuspe, como se ele tivesse deixado aquilo ali para
marcar seu novo território. Cogitei não tomar banho, deixar aquilo secando
em meu corpo enquanto eu dormia. Como se ele dormisse comigo.
Dormiria com seu muco, seu suor, seu cheiro. Sonharia com sua boca e seus
beijos. Cogitei voltar para seu quarto, falar que havia me recuperado, que
queria tentar de novo e que estava pronto para outra rodada. Dessa vez não
doeria, eu não gritaria, tudo seria perfeito.
Não havia, entretanto, como eu sair de casa e ir para a pousada sem
ser visto. Tive que me conter e aceitar a realidade. Tomei banho e fui para a
cama, sozinho, sem Arnaud, com meu corpo lavado e sem resquícios de sua
passagem. Parecia uma ilha após ser destruída por uma tempestade tropical,
quando, semanas depois, as ruas foram limpas e os telhados reconstruídos,
como se nada tivesse acontecido, tudo limpo e cheiroso até que outra
tempestade chegasse novamente.

A primeira coisa que fiz na manhã seguinte, antes mesmo de tomar


café, foi mergulhar na piscina. Fiquei boiando sob o sol, o lugar perfeito
para pensar. Enquanto minhas pálpebras ardiam, vermelhas, e meu rosto
borbulhava no calor, minhas costas estavam refrescadas, submersas na água
gelada. Quando minha frente estava torrada o suficiente, eu virava, boiando
com as costas para cima. Tentava ignorar, o máximo que podia, a presença
que se escondia por trás das cortinas fechadas do quarto de Arnaud.
Pensei na desgraça que havia acontecido nos últimos dias. A festa
desastrosa, o beijo de Arnaud, o sexo que dera errado. Eu havia esperado e
desejado tanto aquilo, e nada foi como eu esperava. Eu estava
decepcionado, eu havia decepcionado Arnaud. Talvez não fosse para
acontecer mesmo, talvez aquela súbita atração que eu sentia sobre ele fosse
apenas uma pane no meu cérebro, um defeito, uma fase esquisita do final da
adolescência. Talvez eu tivesse confundido as coisas, confundido admiração
com atração sexual. Eu admirava Arnaud, seu charme, sua beleza, suas
palavras inteligentes, admirava sua maturidade, sua experiência, sua
confiança e atitude, e eu queria ser ele. Talvez meus neurônios tivessem
dado pane, tiraram o ser do “queria ser ele” e deixaram apenas “queria ele”.
Eu não queria ele, eu queria ser ele. Queria desbravar oceanos, conhecer o
continente, sair desse pedaço de terra ilhado no meio do mar, queria
conhecer a vida real, e não apenas aquela que eu lia sobre.
Que desgraça aquele homem havia trazido para a minha vida!
Estava tudo bem antes, eu estava satisfeito, conformado com o futuro que
teria, agradecido por todas as coisas que tinha na ilha. Mas chegou ele, o
aventureiro, desbravador, invasor das índias e américas, deuses em seus
cavalos, trazendo aos povos nativos promessas, espelhos e doenças. Trouxe
a praga, a morte, o holocausto, a aniquilação cultural. Explorou as riquezas
daquela terra e foi embora sem deixar mais nada além de desgraças.

Abri os olhos ao ouvir alguém entrar na piscina. Pensei ser Rebeca,


pois ela era a única pessoa que eu esperava ali na piscina àquela hora,
quebrando meus delírios autodepreciativos e metáforas megalomaníacas,
pois meus pais não gostavam de nadar, e eu não tinha visto os hóspedes
entrarem nela até então. Enganei-me, é claro, ultimamente estava
constantemente enganado.
— Ça va? — perguntou Arnaud, aproximando-se de mim. Ele era
alto e não precisava boiar ou nadar, como eu e Rebeca fazíamos. Seus pés
alcançavam o fundo da piscina e a água batia em seu peito.
— Ça va — respondi, gastando as únicas palavras em francês que
conhecia. Era mentira, não estava tudo bem. Estava tudo um caos. Mas não
sabia falar isso em francês. Nem muito menos em minha própria língua.
— Não parece — ele retrucou.
Que ousadia. Como ele ousava dizer que não parecia estar tudo
bem? Eu era tão transparente assim? Ou ele estava supondo? Presunçoso.
Cansado de agitar as pernas para me manter boiando, nadei até a borda e lá
fiquei apoiado.
— Desculpa por ontem — falei, evitando olhar para Arnaud. Eu
estava de frente para ele, de costas para a borda da piscina, apoiado com os
braços. Mas não conseguiria olhar para ele. Não queria encontrar aqueles
olhos que pareciam um mar infinito. Não queria naufragar e ficar à deriva,
perdido, afogando-me lentamente em seus olhos.
— Não tem motivo para pedir desculpas. Você não fez nada errado,
petit Nico.
Então olhei para ele. Tive que olhar. Queria saber se ele estava
mentindo, tentando apenas me consolar. Como assim não fiz nada errado?
Eu havia feito tudo errado! Como eu sentia vergonha! Mas seu olhar era
sincero. Entre suas sobrancelhas havia aquele vinco que denunciava sua
seriedade e sinceridade.
Ele se aproximou de mim com um só impulso, deixando o rosto
quase colado ao meu, e colocou as mãos na borda da piscina, me deixando
encurralado entre seus braços. Olhei para os lados, receoso que alguém
pudesse nos ver. Ele estava quase me beijando.
— Fomos precipitados, rápidos demais — ele falou, tão perto que
podia sentir o cheiro de creme dental que sua boca exalava. Não senti
cheiro de cigarro. — Se você acha que foi um erro, paramos por aqui. Se
não, podemos continuar. Devagar, dessa vez. Sem impulsos imprudentes.
— O que você acha? — perguntei.
— Eu tenho certeza do que eu quero — ele disse, com aquela voz
grave e penetrante. — Não sei você.
— Me ajude a descobrir.
Ele então aproximou-se ainda mais, colando seu corpo ao meu,
empurrando-me contra a borda da piscina. Beijou-me ali mesmo, em plena
luz do dia, fomos testemunhados pelo sol. Fechei os olhos enquanto ele me
beijava docemente, sem me importar se havia mais alguém ali nos olhando.
Eu queria o toque dele, o carinho dele, ele me beijava tão suavemente que
eu podia sentir tudo borbulhar dentro de mim. Queria ficar ali para sempre,
com os olhos fechados, sentindo o sabor de Arnaud, sentir sua mão segurar
meu rosto enquanto seus lábios acariciavam os meus, queria que todo
mundo me visse, que aquela cena fosse registrada por toda a humanidade,
gravada para sempre na história do mundo, que as gerações futuras
abrissem os livros de história e aprendessem sobre aquele dia, quando o
aventureiro estrangeiro desbravou o meu coração.
Quando ele afastou seu rosto do meu e separou nossos corpos,
dando um impulso com as mãos na borda da piscina, deixando-se flutuar até
a borda oposta, eu estava sem fôlego. Sentia meu coração agitar-se em
minha garganta, minha boca seca, como se ele tivesse sugado toda a minha
saliva, e meus olhos marejados. Sentia que estava quase chorando, não de
tristeza, medo, ou decepcionado por ele ter parado aquele beijo que eu
queria que durasse para sempre, mas emocionado. Estava sobrecarregado de
emoções, era uma sensação boa que nunca antes havia sentido, um afeto
que nunca havia sentido por alguém, um amor que eu jamais sentira ao
beijar outra boca.
Queria mais, queria que ele voltasse, me beijasse mais, queria
saboreá-lo por mais alguns minutos. Queria passar das fronteiras, atravessar
os campos desconhecidos, queria conhecer aquele território ainda mais,
mapeá-lo e catalogá-lo. Estava prestes a nadar até o outro lado da piscina e
encontrar seu corpo, quando ele piscou para mim e, sem fazer nenhum
ruído, apenas movendo os lábios, falou De-va-gar. Então virou o rosto para
o lado, em direção à minha casa. Olhei na mesma direção que ele e vi
minha mãe se aproximando com uma bandeja.
— Bom dia — disse ela, colocando a bandeja em cima de uma
mesinha de plástico, que ficava entre as espreguiçadeiras.
Na bandeja tinha uma jarra de chá gelado, alguns copos descartáveis
com gelo e rodelas de limão. Minha mãe servindo café da manhã era uma
raridade, ela havia feito aquilo apenas motivada pela presença do hóspede.
Se eu estivesse sozinho na piscina, ou com Rebeca, ela apenas gritaria de
dentro da casa mandando a gente entrar para comer.
— Merci, madame — Arnaud agradeceu, arrancando um sorriso da
mulher, que estava lisonjeada, mesmo sem entender as palavras francesas,
apenas seduzida por aquele idioma tão sexy.
— Quando essa folga que ninguém te autorizou a tirar acabar, Nico,
tem trabalho te esperando em casa, viu — ela disse e foi embora.
Quando minha mãe entrou na casa, aproveitei a deixa para sair da
piscina e nos servir o chá. Subi na borda devagar, olhando sobre os ombros,
para me certificar de que Arnaud estava lá atrás, na água, me
acompanhando com os olhos. Estava. O sorriso de meia boca e as rugas em
torno de seus olhos mostravam que ele estava satisfeito com a vista. Uau,
ele disse, novamente sem emitir sons, apenas movendo os lábios.
— Então você também escreve — perguntei, dando um gole no chá
e dando meu copo a ele.
Arnaud ergueu uma sobrancelha.
— Como assim?
— Margarida disse que você é escritor. Parece que te conhece.
Ele riu, marcando as rugas em torno dos olhos.
— Ela deve ter me visto anotando no meu diário de viagem. Aquele
meu caderninho, você já deve ter visto.
— Ontem você falou que você não é quem eu acho que...
Uma explosão cortou minha fala.
Era Rebeca, pulando na piscina.
— Bom saber que tá vivo! — ela gritou, me recriminando por eu
não ter telefonado para ela depois da noite da festa. — Oi, Arnaud — disse,
então, sorrindo para ele.
— Vivo, mas por pouco — falei, desejando dizer que Arnaud havia
me mantido vivo. Talvez fosse exagero.
— Eu disse pra Américo que não era pra te dar doce.
— Quer chá gelado? — perguntei, tentando fugir do assunto. Não
queria que ela percebesse que eu havia ruborizado.
Ela abanou a mão, recusando, e sentou-se ao meu lado, na borda da
piscina. Certificou que Arnaud não estava ouvindo e cochichou no meu
ouvido:
— E a conversa? Vocês tiveram?
— Mais do que uma conversa — sussurrei em resposta, olhando,
envergonhado, para Arnaud, com medo que ele tivesse escutado. Não
queria que ele me ouvisse falando dele.
Ela abriu a boca, fingindo choque, e sorriu satisfeita. Então colocou
a mão sobre meu ombro, como se estivesse prestes a lamentar alguma coisa
e falou:
— Ele bem que poderia ficar mais um pouquinho, né.
Franzi o cenho.
— Como assim? — perguntei, com o coração já na boca.
— Ué? Quarta-feira os velejadores vão embora. Só não invente de
fugir com eles! Elisa me falou que ela está pensando em fazer isso — disse,
e se jogou na piscina, respingando água em mim.
Eu não respondi, estava chocado, petrificado, horrorizado. Mal
cheguei a escutar o que ela havia falado sobre Elisa, eu estava sem
conseguir acreditar que as três semanas já haviam passado. Como eu não
havia percebido? O tempo havia passado tão rápido... E, pior, havia
desperdiçado todos aqueles dias com minhas dúvidas e inseguranças,
quando eu podia ter aproveitado aquele tempo com Arnaud da forma que
agora queria. Eu havia beijado e me apaixonado pelo homem quando
faltavam apenas três dias para ele ir embora.
Puta que pariu.
14 ✹ O TEMPO

S
implesmente não conseguia acreditar que o tempo havia passado sem
eu perceber. O tempo é realmente um filho-da-puta miserável: quando
queremos que ele passe rápido, ele se arrasta, nos tortura, nos deixa
sem dormir, contando os segundos que parecem segurar os ponteiros do
relógio, numa espera que parece sem fim; quando precisamos de mais
tempo, ele desaparece num estalo. É essa a relatividade do tempo que os
físicos tanto falam? Cientistas devem ser pessoas realmente muito
apaixonadas.
​E agora, diante daqueles míseros três dias que me restavam, outro
dilema surgiu na minha cabeça (quantos dilemas!): eu deveria aproveitar ao
máximo esses três dias, correndo o risco de me apegar a Arnaud e tornar
sua partida extremamente dolorosa, ou arrancar logo o curativo de uma só
vez, cortar meu contato com ele, esquecê-lo logo, para evitar prolongar
aquela dor? Pergunta que eu sequer tinha tempo para responder.
​Escutei um barulho de água se agitando ao nosso lado e, quando
olhei, vi Arnaud se aproximando de nós, colocando-se entre minhas pernas
que balançavam sobre a piscina. Através da água, vi a sua sunga verde,
aquela mesma que eu tinha cuidadosamente escolhido para ele, da cor dos
seus olhos, que estavam escondidos atrás dos óculos, mas era como se eu
pudesse vê-los. Seu corpo estava avermelhado, e imaginei que devia estar
quente como na noite passada, quando ele estava por cima do meu corpo,
me esquentando como o sol. Rapidamente, antes que o volume crescente da
minha sunga se tornasse perceptível, entrei na piscina e me juntei a ele.
​— Vocês conhecem a Ilha da Borracha? — perguntou,
aproximando-se ainda mais de mim. — Ouvi uns velejadores falando dela.
​Ouvi Rebeca dar uma risadinha ao meu lado e ruborizei. Não
consegui responder, não queria ter que explicar o que aquela ilha
representava. Além disso, estava achando engraçado sua ingenuidade.
​— O que foi? Por que estão rindo? — perguntou Arnaud.
Por baixo da água, senti sua mão tocar minhas costas e ele abraçar
minha cintura. Eu estava cansado de agitar as pernas, para me manter
boiando, então me agarrei a ele, como uma âncora, segurei em seu ombro,
como amigos que se apoiam um ao outro, cansados, mas que na verdade,
por debaixo da água, eram amantes secretos. Muito embora eu não soubesse
se Rebeca estava vendo o nosso toque submerso, a sua mão sobre minha
cintura, aquela era a primeira vez que eu tocava Arnaud em público (não
contando aquela vez na mesa de jantar), e aquilo deixou meu coração
acelerado, nervoso, excitado. Quis virar-me para ele, jogar meus braços
sobre seus ombros e beijá-lo, agarrando seu quadril com minhas pernas.
Mas não precisei, aquele toque discreto, quase imperceptível, submerso, era
tão íntimo — e bom — quanto um beijo, quanto sexo. Era o prazer da
intimidade, do proibido, do secreto. Seu braço rente às minhas costas, sua
mão segurando minha cintura com força. Como se ele dissesse estou aqui,
você está aí, não vou te soltar e você não vai embora. Não, eu não ia
embora, não queria, não queria que ele fosse embora, não queria que o
nosso tempo passasse. Queria ficar ali para sempre, segurando seu ombro,
sentindo seus músculos rígidos, enquanto ele segurava minha cintura, perto
da minha bunda, seu dedo mindinho dentro da minha sunga.
— Só vendo pra saber. É uma ilha maravilhosa, deveríamos ir lá —
falou Rebeca, e eu quase engasguei.
Nunca tinha ido na Ilha da Borracha, mas conhecia sua reputação.
Não era seu nome oficial (que provavelmente era o nome de algum branco
colonizador genocida), mas ela era conhecida assim devido à grande
quantidade de camisinhas que se podia encontrar na areia de suas praias.
Era a nossa ilha-motel. Onde os amantes proibidos iam para namorar, ou
transar. Minúscula e perdida no meio do mar, ela estava fora dos roteiros
turísticos, e até da maioria dos mapas, sendo acessível apenas por quem
tinha barco e conhecia a região.
— Legal. Vamos depois do almoço? — disse Arnaud, descendo sua
mão e alcançando minha bunda. Sua mão era tão grande, e eu pequeno, que
ocupava ela inteira. Quando ele apertou, seus dedos grossos e firmes
adentraram o espaço entre minhas nádegas, enfiando o tecido da sunga lá
dentro. Foi só um aperto, bem rápido, e ele rapidamente soltou e se afastou
de mim. Quase agarrei seu braço e gritei, implorando, suplicando, para que
ele voltasse e continuasse o que estava fazendo, mas ele saiu da piscina e
foi para seu quarto.
— Tá gostando de brincar com o perigo mesmo, né? Tá quase pior
que eu — exclamou Rebeca, quando Arnaud saiu. — E se seus pais vissem,
tá louco?
Aquilo me deixou preocupado, pois não sabia como meus pais
reagiriam se soubessem que eu estava com um homem, ou, pior, um homem
mais velho, hóspede da pousada. Meu pai provavelmente ficaria sentado no
canto da mesa, julgando-me com seu olhar calado, sua cabeça balançando
em desaprovação, enquanto minha mãe berrava e soltava um discurso que
duraria três dias. E Arnaud, coitado, seria expulso da pousada? Em que
situação eu o havia metido! Sentir-se atraído por homens era assim, afinal?
Um mar de dúvidas, medo, dor, vergonha, paranoias e constante
necessidade de discrição? Eu me escondia com Elisa, mas tinha certeza que
se levasse ela para a minha piscina e ali nos beijássemos, ninguém se
incomodaria ou perguntaria se eu estava ficando louco. Era difícil entender
como dois homens juntos era uma coisa tão não-natural para as outras
pessoas. Apesar de tudo ser uma novidade para mim, aquilo havia evoluído
de uma maneira tão natural, que era como se, aquele tempo todo, no fundo,
eu sempre soubesse. Como se meu organismo estivesse secretamente
esperando a pessoa certa para me dizer: você gosta disso também. Que
ingênuo eu fui aqueles anos todos, enganado pelo próprio corpo!
— Você vai com a gente? — perguntei, já com a paranoia tomando
conta da minha cabeça: não queria que me vissem, sozinho, entrando em
um barco com Arnaud e indo em direção à Ilha da Borracha.
— Vou, mas não sozinha, não quero segurar vela. — Prendi a
respiração. Temia que ela chamasse os meninos. Não queria vê-los, não
agora, e especialmente não Américo. A memória da língua seca dele dentro
da minha boca ainda era fresca. — Vou chamar Inara.
— Quem é Inara? — perguntei, aliviado por ela não ter sugerido
nossos amigos.
— A menina que conheci na festa. Lembra dela?
— Vagamente — falei, enquanto na minha mente passava as
imagens dela colocando a mão por dentro da blusa daquela menina negra,
de cabelos curtos.
— Falando nisso, o que aconteceu na capela? Américo não deixou
ninguém ir pra lá, disse que tinha uma surpresa pra tu. Vi ele te levando, até
fiquei preocupada, porque vocês estavam doidões, e ia lá ver se tava tudo
bem. Mas Augusto não deixou, disse que Américo tinha algo pra falar pra
tu. O que rolou?
— Nada — respondi. — Assim que cheguei lá, fiquei tonto e passei
mal.
Rebeca estreitou os olhos, me avaliando.
— Sei — disse.

Encontramos Inara pontualmente após o almoço, na marina. Ela


estava de costas para nós, concentrada em alguma coisa na água, enquanto
seu vestidinho branco de alças balançava ao vento. Quando a viu, Rebeca
correu e a agarrou por trás, e Inara se virou e a beijou. Ao ver essa cena,
ruborizei e não pude evitar de olhar ao redor, temendo que alguém estivesse
vendo. Aquela não era uma cena que se via com frequência ali na ilha, duas
pessoas do mesmo sexo se beijando. Não sei bem o que foi que me deixou
desconfortável: ver uma pessoa homossexual exercer seu livre direito de
expressar amor tão espontaneamente e sem se preocupar com nada, o medo
de que me vissem ali com Rebeca, Inara e Arnaud e supusessem alguma
coisa, ou o fato de eu estar com minhas duas mãos suadas enfiadas dentro
dos bolsos do meu short e ser incapaz de tirá-las dali e segurar a mão de
Arnaud, por mais que eu estivesse morrendo de vontade de fazer aquilo.
Com a constante sensação de estar sendo observado, caminhamos
pelo píer, que se agitava com o movimento da água, me deixando nauseado,
até o barco de Arnaud, o Sotaford.
Primeiro ele nos mostrou a embarcação, e como tudo funcionava,
nos falava o vocabulário de marujo, os jargões do alto-mar, e em nada eu
prestava atenção, pois eu queria sair logo dali, içar as velas, zarpar e
navegar rapidamente até o mar aberto, ter vergonha de estar com Rebeca e
Arnaud me envergonhava. Que confusão de sentimentos! Entramos na
cabine, e ele nos mostrou a cama, o pequeno banheiro, a minicozinha onde
ele viveu por tanto tempo sozinho, e enquanto ele falava, as meninas
bolaram um beck, mas eu não estava a fim de ficar chapado, e Arnaud não
fumava maconha, então saíram para fumar lá fora, e nós dois ficamos
sozinhos, ele se sentou na cama e deu duas batidinhas nas pernas. Sorri. Ele
queria que eu me sentasse ali?
Obedeci. Sentei-me e ele segurou meu queixo e me beijou. Me
jogou contra a cama e ficou me olhando por alguns segundos.
Balançávamos com o barco, as ondas nos embalando, e eu embalado
naquele olhar intenso dele. Ele segurou meu pescoço, e eu suspirei fundo,
perdendo o fôlego, não porque sufocava, mas porque meu desejo por ele me
fazia perder todo o ar. Por mim, ele podia me apertar mais, deixar uma
marca ali, podia me amarrar naquele barco, me sequestrar, me levar embora
para onde quisesse e me fizesse seu tripulante.
— Te quero agora — ele disse, também sem fôlego, mesmo que
minha mão não estivesse nada perto do seu pescoço. Sua pélvis estava firme
contra a minha, e eu sentia o pau dele pulsando duro contra o meu. — Mas
temos que ir. Não vamos deixar as moças esperando.
Ele suspirou fundo e se levantou, me largando, o olhar cheio de
lamúria. Gemi, frustrado, e rolei na cama, querendo mais.

Quando finalmente saímos da marina, percorrendo o rio, nossos pés


longe da terra e o barco desvencilhado do píer, cruzando aquele labirinto de
embarcações até atingir o canal, amplo e profundo, cercado pelos prédios
baixos e antigos que o margeavam, me senti num desfile. Muito embora
ninguém nos notasse, era como se todos os olhos daquela marina e ruas
adjacentes estivessem voltados para mim, para nós, nos julgando. Como se
o Sotaford fosse o único em toda a marina, em toda a ilha, em todo o
universo, cruzando a cidade, com cada janela aberta lotada de espectadores,
em um camarote para nos observar, com câmeras, holofotes e dedos
apontados para nós. Imaginei meu pai ali, entre os pescadores, procurando
um salmão para o jantar, me olhando silenciosamente, e minha mãe, lá da
sua loja, sendo chamada pelas amigas fofoqueiras para ver o nosso desfile,
chegando aos berros e me mandando descer daquele barco. Imaginei Elisa,
com um olhar de nojo e desaprovação, no alto do seu prédio, espiando por
entre as cortinas brancas esvoaçantes da janela do seu quarto. Ao fundo, a
cruz da igreja, fincada na cúpula que se sobressaía entre os prédios, dava
seu julgamento final.
Mas é claro que ninguém nos assistia, nem nos observava, pelo
menos não todo mundo, e seguimos o caminho tranquilos, o sol nos ombros
e o vento no rosto, Arnaud concentrado em guiar o barco, Rebeca e Inara
sentadas observando a paisagem passar, e eu focado em manter o meu
conteúdo estomacal no lugar. Adorava praia, o mar, a imensidão do oceano.
Mas eram coisas que eu admirava quando estava em terra firme, seguro,
com os pés na terra, sem balançar. Não gostava de subir num barco e me
afastar da ilha, meu porto seguro, encarando a instabilidade das ondas, me
desesperava o pensamento de que estávamos em algo não sólido. Tentei
sentar longe de Arnaud, não queria que ele me visse enjoado — um
morador de uma ilha enjoado com um barco? Que vergonha! — mas o
barco era pequeno e rapidamente ele viu minha cara empalidecida.
— Toma — disse, estendendo para mim uma banana que havia
retirado de uma bolsa de pano. — É bom pra segurar o estômago.

​ essa vez ele não me assistiu comer a banana, talvez por estar
D
ocupado com a navegação, compelido pela presença das meninas ou então
não mais precisando alimentar seus desejos e fantasias com a imagem de
um objeto fálico em minha boca. Comi a fruta adocicada, uma de minhas
favoritas, em silêncio, olhando para o piso do barco, tentando fazer com que
o mundo parasse de girar e agradecido por ele não ter feito nenhuma piada
por eu estar passando mal. Quando terminei de comer, já havíamos deixado
a cidade, agora o rio atravessava plantações, fazendas e bosques. Estava
melhor, não sei se por ter comido, por ter me acostumado ao balançar da
embarcação ou por finalmente me encontrar fora da cidade e longe dos
olhares curiosos. Levei meus olhos até Arnaud, que, quando viu que eu o
observava, sorriu e fez um rápido gesto com a mão, me chamando. Livre do
enjoo, me levantei e me aproximei dele, que, em pé na popa, controlava o
leme com o olhar fixo no rio à nossa frente. Não falei nada, não quis
interromper o que quer que ele estivesse pensando, o vinco profundo entre
suas sobrancelhas franzidas denunciava sua concentração, então me limitei
a ficar parado ao seu lado, desejando apenas a sua proximidade.
Achei que ele nem ia perceber minha presença, focado demais em
sua função como capitão daquele pequeno barco, um exímio trabalhador
empenhado em seu serviço, mas ele, mesmo sem desviar o olhar um
milímetro sequer, colocou seu braço em torno da minha cintura e me
segurou perto de si, segurando o leme com a outra mão.
Aquilo me arrepiou. Arnaud me segurava firmemente, me fazendo
sentir a força do seu braço, prendendo meu corpo ao seu, me dando mais
estabilidade em relação ao balanço das ondas. Era como se fosse uma
âncora humana, da mesma forma como fizera mais cedo, na piscina. Ou eu
era a âncora dele? Levantei a cabeça para olhá-lo e ele abaixou a dele,
ambos estávamos de óculos escuros, mas podíamos enxergar por entre as
lentes. Vi os finos pés de galinha se formarem em torno dos olhos verde-
escuros, profundos como fendas abissais, da cor do banzeiro, o prelúdio
daquele sorriso que era capaz de me derrubar como uma voragem. E logo
veio, quase instantaneamente depois dos olhos, os músculos das bochechas
queimadas pelo sol se contraindo, os cantos da boca se curvando, os dentes
brancos aparecendo, o sorriso que parecia mágico, um encanto de uma
sereia, tão poderoso que fazia homens se jogarem no mar e se afogarem. Eu
me jogaria no mar por aquele sorriso.
Matutei sobre aquele gesto por um tempo. Ele havia me chamado
para perto de si apenas porque eu estava visivelmente melhor do enjoo ou
porque havíamos deixado a cidade, ficando longe dos possíveis olhares que
tanto me preocuparam? Eu tentava atribuir significado aos gestos de
Arnaud, talvez induzido pela sua escassez de palavras, como se tudo fosse
calculado, como se tudo ele observasse e fizesse as coisas certas nos
momentos certos, para que nada precisasse ser dito. Deixei-me apertar
naquele abraço, no calor do seu corpo que me dizia muito mais do que as
palavras poderiam dizer. Aquele braço em torno de minha cintura me dizia
que nenhum daqueles questionamentos importavam. Que a razão para
aquele gesto, para aquele abraço e aquele beijo, não era que havíamos nos
afastado da cidade ou que meu enjoo havia passado, e sim que ele
simplesmente me queria ali ao seu lado. E assim meus pensamentos
calaram, minhas paranoias cessaram, e eu apenas aceitei que o que eu
queria era também estar ali ao lado dele, não importassem as circunstâncias.

Daquela porção do rio já se podia ver o mar. Estávamos no estuário,


nos aproximando da minha praiazinha secreta, onde transei pela primeira
vez na vida, anos atrás, e onde, há algumas semanas, havia visto Arnaud
pela primeira vez, com aquele olhar que dizia coisas que eu era incapaz de
compreender.
— Quando você chegou na ilha, eu tava aqui nessa praia — falei,
quando passávamos pela foz do rio, no exato ponto onde coloquei os olhos
naquela sunga horrorosa pela primeira vez. — Não sei se você me viu, ou
se lembra.
— Claro que eu te vi. E como poderia esquecer?
​— E por que fingiu não me reconhecer? — perguntei, lembrando
da piscadela que ele havia dado naquele dia, na minha casa. Pensei ter
imaginado, mas agora eu tinha certeza que ele havia piscado o olho para
mim, como que dizendo é assim que você quer jogar?
​ Você fingiu não me reconhecer. Muito mal, por sinal —

respondeu, me apertando mais forte quando o barco passou sobre uma onda,
quase me desequilibrando. — Imaginei que não quisesse que seus pais
soubessem que estava nadando pelado com uma moça em uma praia
escondida. Então segui seu jogo.
​Ele havia me visto no rio. Havia me reconhecido. Minhas
perguntas sobre Arnaud começavam a ser respondidas. Mas ainda havia
perguntas demais. Naquele dia, quando eu armara a rede na sua varanda, ele
havia me observado? Ele havia tomado banho com meu sabonete
deliberadamente? E aquela cueca, havia deixado de propósito no trocador?
E ele percebera que eu havia usado a cueca depois? E todos os olhares e
suas desviadas, toques, sorrisos, tudo havia sido premeditado? Ou não?
Eram perguntas demais para tempo de menos. Mal havia percebido, e lá
estava eu de novo tentando atribuir significado a seus atos, perdendo tempo
destrinchando-os, em vez de aproveitá-los.
​Pensei no que eu poderia ter feito diferente se não tivesse deixado
as dúvidas e inseguranças tomarem conta da minha cabeça, no quanto eu
poderia ter aproveitado. Ali, no barco, enquanto minha ilha, nossa ilha, se
afastava cada vez mais, sumindo no horizonte atrás de nós, decidi não mais
perder tempo. Sem questões, sem medos, sem hesitação, eu iria me agarrar
a Arnaud enquanto aquela ampulheta virada não terminava de derramar a
areia.
​Quando passamos pelas ondas que quebravam na ilha e o mar
ficou calmo, Arnaud relaxou. Pude ver seus músculos, que até então
estavam retesados, suavizarem, e o vinco entre suas sobrancelhas sumir. Ele
soltou o leme e me abraçou, dando um beijo em minha testa, sem se
importar com o suor que ali deveria estar. Suspirei. Então aquilo era a
felicidade? O céu completamente azul, sem nuvens, o sol esquentando
nossas cabeças e queimando a pele prazerosamente, o cheiro do mar, o
cheiro de Arnaud, seu perfume misturado com protetor solar, o vento
trazendo frescor, umidade e sal, o canto das aves marinhas e o som da água
se chocando contra o casco do barco.
​Paramos no meio do caminho, numa área onde a água do mar se
mostrava calma e rasa, quase transparente. O GPS mostrava que estávamos
a apenas alguns minutos da Ilha da Borracha, mas o calor intenso pedia
aquela parada. Assim que recolhemos as velas e fixamos o barco, Arnaud
correu até a borda do convés e saltou sobre a água. Antes de o fazer, ele deu
uma rápida olhada para mim, com um sorriso que me convidava para segui-
lo. Observei seus músculos contraindo-se com o impulso para o salto, seu
cabelo perfeitamente bagunçado pelo vento, seu corpo então sumindo e
deixando no lugar a água levantada pelo seu impacto. Ouvi o splash quando
ele encontrou o mar e pude visualizar seu sorriso lá embaixo, a água
refrescando a pele avermelhada que ardia sob o sol, os cabelos que
grudavam na testa, os pelos do abdome, das pernas, dos braços, molhados e
salgados, o gosto de mar que devia estar na sua barba e que eu queria sentir.
Sem titubear, corri e saltei, sem nem olhar para onde estava indo, pois, se
Arnaud estava lá, eu sentia que era seguro e poderia ir.

A água batia em meu peito e era tão transparente que podia ver
meus pés na areia clara ao fundo, junto a peixes pequenos e corais
coloridos. Puxei Arnaud para perto de mim e o beijei, sentindo o gosto que
me dava vontade de mais. Ele não tinha gosto de mar, de praia, era o
contrário. Para sempre, a partir daquele momento, a praia teria gosto de
Arnaud.
Além daquele sorriso que parecia nunca deixar seu rosto e daqueles
olhos que me faziam perder a noção do tempo-espaço, do seu corpo
molhado de suor e mar colado ao meu, dos seus pelos e pele que se
misturavam aos meus, do sabor do seu beijo que tinha surrupiado o sabor
dos trópicos, da voz que saía da sua boca em doses homeopáticas e me
encantava como magia, havia o vazio, o nada ao nosso redor, apenas a
imensidão azul, do céu e do mar, nos cercando, as ilhas à distância quase
imperceptíveis, e ali eu sentia como se estivéssemos sozinhos no universo,
perdidos entre as estrelas e buracos negros, eu e Arnaud, num abraço que
era o próprio big bang. Tínhamos pouco tempo, mas o tempo ali, no meio
do mar ao lado daquele barquinho branco a vela nas águas claras e calmas
do arquipélago, parecia parado. E eu não tinha como reclamar.
​Olhei para Rebeca, que estava em pé no convés ao lado de Inara,
com seus biquínis e prontas para pularem na água e se juntarem a nós. Ela
olhou para mim e sorrimos, os sorrisos mais largos e reais que jamais
havíamos trocado. E eu soube que aquilo, sim, era felicidade.
15 ✹ A ILHA DA
BORRACHA

G
raças ao GPS, encontramos a Ilha da Borracha com pouca
dificuldade. Devido ao seu tamanho reduzido, podia passar
despercebida naquela paisagem de tons pastéis que refletia com
intensidade o brilho do sol, ofuscando o mais atento dos marujos. Arnaud
ancorou o barco a alguns metros da areia e caminhamos até a ilha com o
mar na altura do peito, o sol queimando as cabeças, o vento soprando
suavemente e o cheiro de sal e algas misturado com maresia. Nosso capitão,
por ser o mais alto dos quatro, carregou nossas bolsas, com comida, roupas,
água e celulares. A água era calma, quase que completamente parada,
morna e transparente, com os peixes coloridos nadando ao nosso redor.
A ilha era tão pequena que parecia ser possível contorná-la numa
caminhada lenta de meia hora. No centro havia uma pequena mata,
composta majoritariamente por palmeiras e coqueiros, tão diminuta e
esparsa que se podia ver o outro lado. Caminhei atrás dele, observando ele
carregar nossas coisas. Observei suas costas largas, avermelhadas e
queimadas pelo sol, e o suor que por ali escorria. Desejei que o nível do mar
fosse mais baixo, pela primeira vez me tornando um ativista ambiental
contra o aquecimento global, para que ali fosse possível ver a bunda de
Arnaud, perfeitamente acomodada na sunga da cor dos seus olhos. Quando
nos aproximamos da areia e a água ficou rasa, depois de ter apreciado bem
a vista, da paisagem e dele, passei à sua frente, para que ele me apreciasse,
nunca deixando de olhar para trás, para encontrar seu sorriso e seu olhar
que não saía de mim.
​Desviando meu olhar de Arnaud, a vista dali era deslumbrante, o
mar azul e brilhante a se perder de vista, sem sinal de civilização, apenas o
reino dos seres marinhos. Ao longe, no horizonte, se distinguia uma
pequena mancha azulada: a Ilha Grande. O silêncio ali era estarrecedor, pois
nem os pássaros haviam encontrado aquele pequeno paraíso. Além das
folhas que se agitavam suavemente com o vento fraco, tudo o que ouvíamos
eram nossos passos e vozes, que saíam de nossas bocas culpadas pelo crime
de perturbar aquela paz. Nem o mar ousava fazer ondas para quebrar aquele
silêncio.
​A areia fina e branca da ilha estava pegando fogo, escaldante,
afinal estava há não sei quantas horas fervendo sob o sol. Saídos da água,
com os pés ainda molhados, corremos até a sombra das árvores, quase
pulando, com o chão nos queimando feito brasa. Não vi sinal de camisinhas
na areia, e pensei que a ilha deveria se chamar Ilha da Brasa.
​— Vamos dar uma volta por aí — disse Rebeca, calçando seus
chinelos e puxando Inara pela mão, quando colocamos nossas coisas na
sombra de uma palmeira. E então acrescentou, com seu sorriso maroto de
quem apronta: — quando estivermos voltando, dou uma tossida pra vocês
se vestirem.
​Quis matá-la, pular sobre seu pescoço, degolá-la e enterrá-la na
areia, logo depois me enterrando também, pois ela havia acabado de me
matar de vergonha.
Quando as duas deram as costas para nós e saíram caminhando, ouvi
Inara falar:
— Você matou o menino de vergonha. — Estavam longe, mas o
vento trouxe o som até mim.
— Um empurrãozinho não faz mal a ninguém — retrucou Rebeca, e
eu morri ainda mais de vergonha.
​Olhei para Arnaud e ele estava sentado sobre a canga, secando-se
com o calor, quase deitado, anotando alguma coisa no seu caderninho, o
diário de viagem. A água do mar ainda escorria em seu corpo, que, aos
meus olhos, era perfeitamente esculpido. Observei-o por uns instantes. O
cabelo, que parecia ainda mais claro devido aos dias de exposição ao sol,
estava úmido e jogado para trás. Da barba desgrenhada pingou uma gota
d’água, que escorreu pelo sulco entre os músculos do peito e se perdeu
entre os pelos finos e molhados do abdome. Parecia não ter escutado o que
Rebeca tinha falado, ou então não dera atenção, pois ele não precisava de
um empurrãozinho. Ele olhou para mim e sorriu. A confiança que exalava
do seu olhar mostrava que não precisava de nenhum incentivo. Sabia
demais o que queria fazer. Eu invejava aquela sua segurança, pois em mim,
em cada passo, em cada respiração, em cada célula, havia um vacilo, uma
dúvida, uma hesitação. Cada ação minha era acompanhada de uma
pergunta, de um “e se?” ou “será?” ou “deveria?”, e, mesmo ali, alvo do seu
sorriso, influenciado por sua segurança que há não muito tempo havia me
incentivado a pular do barco em seus braços sem pestanejar, eu me
perguntava se estava fazendo a coisa certa. Perguntava-me se me entregar
daquela forma a Arnaud era um pulo alto demais em uma piscina rasa
demais. Eu sobreviveria àquela queda?
Ele havia deixado um espaço na canga para mim e lá eu me sentei,
encostando a lateral do meu corpo no dele.
​— Agora eu te transformo num porquinho da índia — disse ele,
dando em seguida uma gargalhada um pouco contida.
​— Do que você está falando? — perguntei, rindo com ele. Não
havia entendido o que ele quis dizer com aquilo, mas achei engraçado ele
ter falado uma bobagem e dado uma gargalhada sozinho. Eu estava surpreso
com aquela espontaneidade que até então não conhecia.
​— Mar de Monstros — respondeu, comprimindo os lábios e
franzindo o cenho, como se aquela fosse uma referência óbvia. — Percy
Jackson.
​Continuei rindo, ainda sem entender o que um porquinho da índia
tinha a ver com aquilo, mas sem querer estragar a candura do momento.
Nunca havia lido Percy Jackson, mas sabia que havia um personagem com
o nome igual ao meu. Então falei, em tom de brincadeira, querendo
estimular aquele seu momento raro de descontração, para estender o seu
sorriso:
​— Eu poderia achar que você só se interessou por mim porque
tenho o nome de um personagem que você gosta.
— N’importe quoi! — exclamou, e voltou a gargalhar.
​— O que isso quer dizer? — perguntei, após assistir, admirado,
àquele riso contagiante que tomava conta do seu corpo inteiro: o rosto que
se transformava, os olhos quase fechados, as pequenas rugas aparecendo no
canto dos olhos, as covinhas em suas bochechas, a boca aberta de ponta a
ponta, mostrando os dentes, o corpo se agitando, e eu tinha certeza que
aquela gargalhada produzia ondas que chegavam até mim e me faziam
sorrir também.
​— N’importe quoi? Bobagem. Quando te vi pela primeira vez,
você não tinha um nome para eu me interessar ou admirar — disse, e eu
lembrei do nome Sotaford-Dortnellas que havia se fixado em minha mente
naquele dia. Qual imagem será que Arnaud havia fixado de mim? — E eu
me apaixonei por você, não por seu nome.
​Eu me apaixonei por você. Aquela foi a única frase que ficou
registrada na minha cabeça naquele momento. Naqueles segundos depois
que aquelas palavras foram pronunciadas em alto e bom som, pensamentos
se retorciam num turbilhão em minha mente. Expectativas, possibilidades,
questionamentos. A naturalidade com que ele havia pronunciado aquelas
palavras que eu tanto havia demorado para apenas entendê-las, me
desconcertou. Ele havia resumido, em uma pequena frase, dita assim, como
quem não quer nada, como quem observa que o sol está quente, que o mar
está azul, todos os sentimentos que se reviravam dentro de mim no mais
completo e absoluto frenesi. E assim ele apaziguara aquela loucura,
organizara os meus sentimentos, que passaram a ter nome, classificação,
explicação. Aquela emoção que eu sentia, as pernas trêmulas, o coração que
parecia ora fraquejar, ora bater tão forte que às vezes parecia querer sair
pela boca, as noites ansiosas, as dúvidas, as inseguranças, as paranoias, o
desejo que era cada vez maior, a felicidade tão imensa que até parecia não
merecida, tudo isso tinha nome. Era a força de uma paixão recíproca. Eu era
um biólogo que havia acabado de descobrir um novo organismo, tinha lhe
dado nome, descoberto sua espécie, gênero, família, ordem, classe, filo e
reino. E essa espécie se chamava Nico e Arnaud.
​Vi em seu sorriso que ele havia percebido. Percebeu que alguma
coisa mudara dentro de mim ao pronunciar aquelas palavras. Como se
aquela confusão e caos que haviam me preenchido aquele tempo todo
fossem visíveis. Como se aquela organização dentro do meu corpo tivesse
sido testemunhada por seus olhos afiados. A sua declaração de amor havia
tido o efeito de um feitiço selado, como se o que até agora parecia um
sonho, se tornara real e tangível. Como se até aquele momento, antes de ele
falar explicitamente que estava, sim, apaixonado por mim, eu não
conseguisse acreditar. Mesmo depois de seus sinais, gestos, sorrisos, toques,
beijos, mordidas. E ali, deitado naquela canga sob a sombra de um
coqueiro, ele viu, em minha expressão corporal, ou dentro da minha alma,
que aquelas dúvidas, todas elas, haviam se dissipado. Ele era, afinal, um
feiticeiro.
​Ele respondeu àquela minha reviravolta me puxando pelo braço,
colocando-me sobre ele, sentando-me sobre suas pernas, exatamente como
Elisa fazia comigo. Apoiei minhas mãos em seu peito nu, suado, quente, os
pelos finos colados na pele avermelhada que revestia seus músculos.
Embaixo de mim, onde eu havia sentado, em sua sunga, senti o seu volume
crescer.
​Olhei em seus olhos, eu e eles éramos uma só intensidade. Forças
que se chocavam. Olhares que pareciam pororoca, a devastação das ondas
fluviais contra a impetuosidade das marés oceânicas. E aquele olhar, aquela
energia que ali circulou naqueles breves instantes antes de nos unirmos em
um beijo, era o recuo do mar prenunciando o tsunami que estava por chegar.
​— Eu me apaixonei por você — falei, mas não repetindo suas
palavras, pois aquelas eram minhas. Saíram de mim, numa necessidade
pungente de pronunciá-las e ouvi-las com minha própria voz, como uma
confirmação final, uma oficialização em cartório perante um juiz de
suprema instância. Aquela paixão era real, e não uma viagem mirabolante
dos meus neurônios. — Eu... — repeti, em meio aos beijos — me apaixonei
por você.

​ rnaud tinha gosto do oceano, o oceano inteiro, sua fauna e flora,


A
um ecossistema exuberante, gosto de maresia, frutas, gosto de toranja. Doce
e refrescante. E tudo isso tinha gosto dele. Ele não fumava há um tempo e
eu não sentia mais o amargo do cigarro. Ele estava ainda mais saboroso.
Olhou para o lado, provavelmente para se certificar de que Rebeca e Inara
já haviam sumido de vista, e então desceu as mãos, grandes e firmes, por
minhas costas e retirou minha sunga. E eu retirei a dele. Saboreei seu corpo
inteiro, sem me importar com o salgado do suor e do mar, e com os grãos de
areia que se juntavam na minha língua ao percorrer todas as suas partes. Em
meio àquelas lambidas, chupadas e mordidas, Arnaud tinha gosto de verão,
e o que é o verão sem alguns grãos de areia enfiados onde não devem? Ele
também me saboreou, e me perguntei que gosto eu tinha para ele.
​Mesmo naquela paisagem inóspita onde, ao lado dele, o tempo
parecia não passar, eu sabia que tempo era uma coisa que não tínhamos.
Uma hora a maré ia subir, uma hora ia anoitecer, uma hora os dias iam
passar e o verão iria acabar. E ele iria embora. Então tempo não era uma
moeda da qual eu podia esbanjar, ostentar e desperdiçar. Não, eu tinha que
aproveitar o tempo que me restava. Decidido a continuar o que as barreiras
físicas haviam impedido na noite anterior, peguei seu pau babado e
enrijecido e principiei a introduzi-lo em mim.
​ Com calma, Nico — ele disse, tomando controle do seu corpo,

me interrompendo. — Dessa vez vamos fazer direito, sem pressa. Temos
tempo.
​E eu acreditei. Tínhamos tempo, se era ele que estava dizendo
aquilo. Quem era eu para rejeitar suas palavras? Deixei-me ser conduzido,
ser levado, que ele me guiasse naquele momento onde o tempo estava sob
seu controle. Dessa vez faríamos sem a exasperação e impulsividade da
primeira vez, na noite anterior, quando, afoitos e esfomeados de desejo,
fomos atropelados pela pressa.
​Ele segurou meu corpo e me deitou de bruços, fez isso com
tamanha facilidade que eu me senti como se pesasse apenas algumas
gramas, como uma pena. E então, sentado sobre mim, fez o percurso de
minha coluna com beijos, fazendo-me sentir sua barba, sem pular nenhuma
vértebra, das cervicais até as lombares, num estudo de anatomia que era só
nosso. Que seja abençoada a evolução dos vertebrados! Quando o último
daqueles beijos vertebrais chegou ao meu cóccix, com as duas mãos ele
abriu minhas nádegas, criando ali lugar para seu rosto, sua barba, sua língua
que abriu espaço em meu músculo cada vez mais relaxado.
​Contorcia-me e agarrava a canga e a areia com as mãos,
esforçando-me para não gemer muito alto ou gritar, pois tinha certeza que
as meninas ouviriam. Surpreendia-me a quantidade de prazer que Arnaud
podia me dar, e, virando meu rosto para trás, podia ver que ele estava
gostando tanto quanto eu. Como eu nunca tinha feito aquilo antes?
​Ele deve ter percebido que eu estava relaxado o suficiente e que
meu corpo pedia, quase que involuntariamente, mais. Queria muito mais
que sua língua. Esticou-se para pegar alguma coisa em sua bolsa e retirou
de lá um pacotinho quadrado. Uma camisinha. Sorri, achando graça pelo
fato de estarmos na Ilha da Borracha. Que clichê.
​Enquanto ele vestia a camisinha e me lubrificava mais, meu
coração disparou, eu estava nervoso. E se tudo desse errado novamente? Ele
me daria outra chance? Não teríamos outra chance, pois nosso tempo estava
acabando. Eu queria ser perfeito. Queria que ele gostasse tanto que
resolvesse não mais partir em seu barco, e ficar para sempre ali na ilha
comigo, dentro de mim. Ou então, louco, completamente obcecado por mim
e por meu corpo, me sequestrasse, levando-me em cativeiro na cabine de
sua embarcação que atravessava os oceanos.
​ Relaxe, não se preocupe — sussurrou em meu ouvido,

colocando-me de lado e posicionando-se atrás de mim. A voz dele, calma e
gentil, naquele sotaque que era só dele, misturando-se ao barulho quase
imperceptível do vento e das árvores, como uma música ambiente, me
tranquilizou. Meu coração batia no ritmo do mar, no ritmo de Arnaud, e
nossos corpos, numa só contração muscular e em um só suspiro, se tornou
um só quando ele me preencheu, gemendo ali atrás de meus ouvidos. Arfei,
não de desconforto ou dor, pelo contrário, a sensação de tê-lo entrando em
meu corpo daquela forma havia sido tão prazerosa que eu sentia como se,
agora que ele estava dentro de mim, antes havia apenas um vazio que
aguardava por ele.

​ ão sei quanto tempo ficamos ali, cada vez mais quentes, de


N
hormônios e aquecidos pelo sol, incansáveis, explorando as mais variadas
posições e sensações, ele mordendo minha orelha e sussurrando palavras
afrodisíacas que eu mal conseguia compreender, entremeadas nos nossos
gemidos sincronizados, o barulho dos corpos se chocando em volúpia e
ritmo desregulado, ele apertando minha pele com força, puxando meu
cabelo, eu apertando a canga, a areia, seu braço, seu peito, sua bunda que se
contraía e relaxava à medida que ele se fazia introduzir em mim. Acariciava
os pelos suados do seu peito, abdome, braços e pernas, e eu tremia sob seus
braços, sob seus músculos rígidos, um tremor que vinha de dentro de mim,
ou dele, não sei, eu sentia sua pulsação, e ele sentia a minha. As pausas,
escassas, quando se faziam existir, eram para que recuperássemos o fôlego,
naqueles pequenos segundos, de boca entreaberta, o ar reabastecendo
nossos pulmões, enquanto encarávamos um ao outro, os olhos que
brilhavam, o sorriso que não saía da boca, o cabelo que grudava no suor da
testa. Arnaud tinha força para me dar um prazer que eu nunca havia sentido.
Parecia que eu ia explodir, como uma represa cada vez mais cheia,
prestes a romper o muro de concreto em milhões de pedaços, um lago a
transbordar, uma geleira se desfazendo em avalanche, o prazer cada vez
mais forte, quase ao ponto de se tornar insuportável, meus gemidos eram
quase urros, e Arnaud, com os olhos fechados, cada vez mais forte, mais
rápido, seus músculos (todos eles) cada vez mais enrijecidos, maiores,
potentes. Arnaud, me fode, por favor, eu dizia, mesmo que ele já me
fodesse, ou tentava dizer, pois não tinha mais forças para falar, eu estava me
liquefazendo, dissolvendo-me em Arnaud, como areia escapulindo entre
seus dedos, nossas almas pareciam que iam se unir e virar uma só, como a
água de um rio que desemboca no mar, o encontro das águas, éramos
novamente uma pororoca, talvez até mesmo voçoroca, erosão,
desmoronamento. Ele arquejava em meus ouvidos, seus gemidos guturais
cada vez mais intensos e frequentes, e, assim como um obstetra prevê a
chegada do parto com a frequência de contrações, eu sabia que Arnaud
estava chegando ao seu ápice. E eu também estava. Iríamos gozar juntos,
em ejaculações sincronizadas, dois amantes harmônicos, perfeitamente
compatíveis, a chegada triunfal do gozo ao mesmo tempo, dois se tornando
um, união mais sagrada que matrimônio.
Mas então ele parou subitamente, interrompendo o gozo
profetizado, tapando minha boca com a mão, para me calar. Olhou para o
lado e retirou-se de dentro de mim, senti, com pesar, ele deslizar para fora,
deixando em seu lugar um vazio que implorava por mais, levantou-se e
vestiu rapidamente a sunga. Ei, volte aqui, quis dizer, mas ele começou a
correr. Olhei para o lado, achei que fosse Rebeca chegando. Porra, Rebeca.
Ela não avisaria antes? Mas não vi Rebeca.
— O que aconteceu? — perguntei, gritando.
Mas ele não precisou responder, ouvi a resposta vinda de longe. Um
grito, longo e desesperado. Fiquei paralisado, horror ocupando o espaço
onde há segundos era prazer. Outro grito. Um grito de socorro, vindo do
outro lado da ilha. Uma voz feminina e familiar.
Alguma coisa terrível havia acontecido com as meninas.
16 ✹ O TSUNAMI

À
quela distância eu não sabia dizer se o grito era de Rebeca ou Inara.
Vestidos com nossas sungas, eu e Arnaud corremos o mais rápido que
pudemos, adentrando a pequena mata que nos separava do outro lado
da ilha. Ele, por ter as pernas mais longas, correu à minha frente. No
caminho, enquanto escutava o grito, que se tornara “Socorro! Nico!
Arnaud! Rápido!”, imaginei todos os cenários possíveis que poderiam ter
acontecido. Elas foram atacadas por um tubarão, uma embarcação pirata
atracou ali perto e atacou as duas, uma delas foi levada por um milionário
tarado que estava passeando por ali na sua lancha, ou foi levada por uma
correnteza perigosa, ou tropeçou e caiu com a cabeça em cima de uma
pedra, sangrando até a morte, ou algum bicho saiu de dentro da mata, uma
aranha venenosa, ou, pior, uma cobra, picou uma das duas, ou as duas, e
elas estavam morrendo lentamente, meu deus, teríamos tempo de colocá-las
no barco e levá-las até o hospital? Eu teria que ligar para a avó de Rebeca,
para meus pais, para a guarda costeira? E se uma delas morresse, eu teria
que falar para a família? Como eu explicaria o que estávamos fazendo na
Ilha da Borracha?
​— Qu'est-ce qui se passe? — Ouvi ele perguntar, afobado e sem
fôlego, sem perceber que estava falando em francês. E então se corrigiu: —
O que aconteceu?!
​Quando saí da mata, o pé machucado por ter pisado em sabe-se lá
o quê e o rosto arranhado por galhos, dei de cara com Inara chorando,
ajoelhada na areia, ao lado de Rebeca, que estava deitada com os olhos
fechados. Não consigo nem explicar o pavor que tomou conta de mim ao
ver aquela cena, pois ela parecia morta.
​As duas estavam molhadas, e podia ver um rastro na areia que ia
das pernas de Rebeca até o mar, como se ela tivesse sido arrastada por
Inara. De sua boca pendia um líquido amarelado. Vômito.
​ Estávamos nadando e de repente Rebeca começou a gritar —

respondeu Inara, soluçando. — Ela não me respondia, começou a passar
mal e desmaiou, aí arrastei ela até aqui!
​Eu sabia o que era aquilo, já tinha visto acontecer algumas vezes
ali na região. Ela havia sido queimada por uma água-viva minúscula, que
era quase invisível, e estava tendo uma reação alérgica. Ela precisava ser
levada ao hospital com urgência, antes que parasse de respirar. Olhei para
Arnaud com os olhos arregalados, em pânico, sem conseguir agir, nem dizer
nada. Por sorte, ele agiu, viu nos meus olhos que a situação era grave,
rapidamente se curvou, pegou Rebeca nos braços e corremos para o barco.
Eu e Inara pegamos nossas coisas, sem nos importar se estávamos
molhando as bolsas ou não.

​ o barco, a caminho da Ilha Grande, enquanto o sol começava a


N
se pôr na nossa frente, Arnaud contatou a guarda costeira por rádio, e nos
informaram que nos encontrariam na metade do caminho até a ilha. Foram
minutos de angústia, o ruído áspero da respiração de Rebeca, sua pele
adquirindo tons azulados, a queimadura na perna que parecia em chamas.
Ali, o sol e o vento me incomodavam como nunca antes haviam feito. Sua
cabeça estava deitada sobre meu colo e eu afagava seus cabelos, pedindo
para ela aguentar firme, pois logo chegaríamos ao hospital. Inara caminhava
de um lado para o outro no convés, nervosa, desequilibrando-se vez ou
outra com a agitação das ondas. Arnaud, concentrado no leme, suas mãos
vermelhas de tanta força que fazia ao segurar a madeira, havia acendido um
cigarro e fumava com o cenho franzido, olhando para o horizonte, à procura
do navio da guarda costeira. No céu, os tons alaranjados anunciavam que o
dia estava em seu fim.
​Um bote motorizado com dois paramédicos nos encontrou
quando a cidade da Ilha Grande já estava à vista, com seus prédios
espelhados e amontoados que subiam aos céus, disputando a vista mais
privilegiada, uma floresta de concreto e vidro; e as lanchas, iates e cruzeiros
que a circundavam como moscas em um saco de lixo. Rebeca foi
rapidamente colocada no bote e levada ao navio. Eles nos informaram o
hospital para onde ela seria encaminhada e nós nos apressamos para a
encontrar lá.
​Peguei meu celular para ligar para meus pais, em pânico, já
pensando em alguma mentira para contar, para explicar como Rebeca se
acidentara, mas, para meu horror, descobri que a minha bolsa estava
completamente molhada e meu celular, pifado.
​— Ligamos de um telefone público, quando chegarmos à Ilha —
tranquilizou-me Arnaud, colocando a mão sobre meu ombro. O celular dele,
assim como o de Inara e o de Rebeca, também havia molhado.

​ marina da Ilha Grande era um completo caos, quase dez vezes


A
maior que a da nossa ilha, centenas de barcos de todos os tipos, cores e
tamanhos, gente gritando por todo lado, gaivotas voando sobre nossas
cabeças, aos berros, a água suja, cheia de lixo. Fiquei ao lado de Arnaud,
fascinado, observando-o guiar o veleiro com maestria naquele labirinto
aquático, no espaço diminuto entre as embarcações.
​O píer era uma torre de babel de tantos idiomas que se podia
ouvir, mesclados numa algazarra ensurdecedora de gritos, ordens, gente
pedindo para que se saísse da frente, vendedores, pessoas gritando por táxi,
buzinas, turistas tentando se fazerem entendidos ao pedir informações e
recebendo respostas rudes. Eu odiava a Ilha Grande e seu ritmo afobado, a
sua arrogância, a falta de respeito dos turistas e o ódio dos moradores pelos
visitantes. Odiava o lixo espalhado na rua, o cheiro de óleo no mar, o ar que
ali não era puro, o vento barrado pelos prédios, tão altos que pareciam
errados.
​A ilha, apesar de não muito grande, era densa e populosa, então
ficamos presos no engarrafamento a caminho do hospital. Naquela hora eu
sentia falta do mar, do seu vazio, o espaço que parecia infinito, onde nunca
havia barulho ou congestionamento. No táxi, sentado ao meu lado, Arnaud
segurou a minha mão, e aquela era a primeira vez que ele fazia aquilo em
público, na rua, mesmo que protegidos pela carroceria do veículo e seus
vidros escuros.
​Quando chegamos ao hospital, Rebeca já estava acordada. Estava
sentada em uma das camas da ala de emergência, assistindo a uma televisão
sem som. Ao seu lado, a maioria das camas estava vazia e do seu braço saía
um tubo de plástico, por onde entrava o soro.
​— Que demora — resmungou ao nos ver.
​Quis chorar e gritar com ela ao mesmo tempo, por fazer pouco
caso da sua quase morte. Rebeca e seu senso de humor ácido em momentos
inadequados...
​— Está tudo bem? — perguntou Arnaud.
​ Sim — respondeu ela, dando um rápido beijo em Inara, que se

sentou na beirada da cama. — Só um pouco sonolenta, me deram um
antialérgico. E morrendo de tédio.

— Onde vocês estavam? — berrou minha mãe do outro lado da


linha, quando liguei para ela e falei que Rebeca tinha sido queimada por
uma água-viva.
— Nas piscinas naturais — menti, referindo-me a um banco de areia
cheio de corais a um quilômetro da nossa ilha, que formava piscinas quando
a maré estava baixa. — Mas ela tá bem agora, não precisa falar pra Dona
Kazuko, só vai preocupar ela.
— E por que não me avisou que ia sair? Nico, vamos receber mais
hóspedes e seu pai precisa de ajuda.
— Saímos rápido pra pegar a maré baixa. Mas vamos voltar hoje
ainda.
— Como vocês vão voltar? No barco de Arnaud? Não quero vocês
no mar no meio da noite naquele barquinho.
Aquele barquinho já tinha atravessado o oceano inteiro, quis dizer.
Mas tive uma ideia que me pareceu boa demais para deixar passar.
— Podemos dormir no barco de Arnaud, na marina, e voltar amanhã
de manhã — sugeri, parando de respirar, nervoso, esperando a resposta
dela.
Ouvi um silêncio do outro lado da linha. Ela devia estar pensando
ou então cochichando alguma coisa para meu pai.
— Tudo bem, voltem amanhã cedo. Vou falar para Dona Kazuko
que Rebeca vai dormir aqui, para não preocupar a velha — respondeu,
finalmente. — Amanhã teremos uma conversinha sobre responsabilidade e
comprometimento.

— Minha mãe falou pra gente voltar só amanhã — falei, voltando


para o leito de Rebeca, arrancando sorrisos de todo mundo.
— Esse é o melhor dia da minha vida — exclamou a enferma.
​A médica liberou Rebeca quase uma hora depois, falando que ela
provavelmente só teria uma leve dor de cabeça e que se tivesse alguma
outra reação alérgica, deveria voltar ao hospital. Falou que tivemos sorte em
chegar rápido ao hospital, mais alguns minutos e Rebeca poderia ter parada
respiratória. Também receitou uma pomada para a queimadura na sua perna.
​ A senhora não tem uma amostra grátis? — perguntou ela. E

todos rimos. — Tão rindo por quê? Melhor que remédio grátis só comida
grátis. Falando nisso, quando vamos comer?
​E voltamos a rir, inclusive a médica, que acabou lhe dando uma
amostra grátis da pomada.
Já estávamos prontos para voltar para a marina quando Arnaud
sugeriu que ficássemos em um hotel. Protestamos, não tínhamos dinheiro,
mas ele disse que se responsabilizava.
— Definitivamente hotel de graça é melhor que remédio e comida
de graça — disse Rebeca, me matando, novamente, de vergonha.
Perguntei-me quanto dinheiro ele tinha, dando-me conta de que eu
não fazia a menor ideia do que Arnaud fazia da vida, além de velejar pelos
oceanos e encantar jovens ingênuos de ilhas paradisíacas. Ele era rico? Um
milionário solitário que não tinha com o que gastar dinheiro? Ou ele estava
se afundando em dívidas para nos agradar?
Comemos numa lanchonete próxima ao hospital, numa disputa de
quem era o mais esfomeado. Ali experimentei a liberdade que era tão falada
sobre a Ilha Grande. Sem olhar para os lados, sem me preocupar, ficar
nervoso ou pensar conspirações, deixei Arnaud pôr a mão em minha coxa.
Não foi um toque discreto enquanto ele pegava alguma coisa na mesa, ou o
seu pé encostando no meu, ou sua mão protegida pela toalha da mesa. Ele
colocou a mão dele sobre minha coxa ao alcance dos olhos de todos, mas
ninguém parecia se importar, apenas eu, que estremeci, numa mistura
prazerosa de medo, surpresa e desejo por mais. Quando terminamos e nos
levantamos para sair, Arnaud segurou a minha mão. Aquela cena devia ser
comum ali na cidade, pois ninguém virou a cabeça para nos olhar atravessar
a lanchonete de mãos dadas, como fariam na minha ilha. Aquela
experiência, a de segurar a mão de Arnaud, sentindo seu calor e firmeza,
sem me preocupar com o que os outros podiam pensar, me encheu de
expectativas. Eu queria mais. Queria mais tempo para expressar livremente
o que sentia por ele.
Fomos andando até o hotel mais próximo, nunca soltando as mãos
ou deixando de sorrir. Não era nada luxuoso demais, um prédio antigo de
dez andares, charmoso, com uma recepção bem arejada e decorada com
artesanato local. Arnaud pediu dois quartos e o recepcionista olhou para
mim e para as meninas com desconfiança e julgamento. Eu sabia o que ele
pensava. Um estrangeiro branco levando aqueles jovens — eu e Inara
negros e Rebeca asiática — para um hotel, certamente o funcionário nos
tomava por putas do gringo. Senti vontade de pular no balcão e estrangulá-
lo. E de chorar. Arnaud colocou a mão no meu ombro e me puxou.

Rebeca e Inara ficaram no quarto ao lado do nosso. Nos despedimos


e cada um entrou no seu. A primeira coisa que Arnaud fez ao entrar no
nosso quarto foi se despir.
— Preciso de um banho — falou, já sem roupa, pegando a toalha
perfeitamente dobrada em cima do armário e entrando no banheiro. —
Vem?
É claro.
Eu precisava daquele banho. Não só por estar sujo, suado, cheio de
sal, areia, lubrificante e com cheiro de hospital, mas eu precisava daquela
água quente caindo na minha cabeça e escorrendo em minhas costas para
me acalmar. Aquele desespero de levar Rebeca sufocando ao hospital havia
me abalado, despertado a noção em mim de como as coisas eram frágeis e
rapidamente poderiam acabar. Assim como o verão acabaria uma hora,
Rebeca iria embora, e eu só a veria novamente no ano seguinte. Arnaud
também iria embora, bem antes do verão acabar. Como seria o resto do
verão sem ele? Inverno? Inferno? E, pior, eu o veria novamente?
Precisava igualmente das carícias de Arnaud, sua mão colada à
minha no azulejo molhado do banheiro, seus lábios tocando minha nuca,
daqueles beijos em pequenos estalos, suas mãos ensaboadas deslizando por
meu corpo, lembrando que ele estava ali, que o nosso tempo ainda não
havia acabado.
— No dia que você pegou emprestado meu livro de poesia — falei,
ao passar o sabonete por seu peito e ver que um pelo havia se soltado e
grudado ali, — você tomou banho com meu sabonete. Foi de propósito? Pra
me provocar?
— Pra te provocar? — ele perguntou, sorrindo e erguendo as
sobrancelhas. — Eu devo ter esquecido o meu sabonete, apenas — disse,
ainda sorrindo, dando aquela piscadela de olho que me confundia tanto,
pois continha inúmeros significados. — E era você quem me provocava.
Derrubando a toalha de propósito, lambendo os dedos enquanto comíamos a
toranja. Você me deixava louco. Ainda deixa. Acha que eu não sei que você
usou aquela cueca que esqueci no provador? Você é um safado, Nico.
— Esqueceu? Você deixou lá de propósito! — retruquei.
Ele não respondeu, apenas sorriu, aquele sorriso torto que
denunciava sua malícia, o mar de seus olhos mais agitado que nunca, e
levou seus lábios aos meus, calando-nos.
Quando enxaguamos o sabonete, ele me puxou para fora do
chuveiro, pegou uma toalha e me enxugou, passando a toalha lenta e
delicadamente em cada parte do meu corpo, beijando, em seguida, onde
agora estava seco.
— Você precisa parar de se machucar, fica me preocupando desse
jeito — ele disse, passando os dedos nos cortes no meu rosto que eu havia
feito na Ilha da Borracha, correndo no meio do mato. Eram finos, nem mais
ardiam. — Promete?
— Prometo. Marcas e arranhões, só se você fizer.
Ele riu.
— Você tem cheiro de mar — sussurrou, e eu quase não ouvi, pois
ele estava ajoelhado, enxugando meus pés, um penitente, suplicando perdão
ou amor, declarando sua fé. Ele declarou seu amor com a boca, não com
palavras, nem orações, mas com um gesto, levando sua boca ao meu pênis,
adorando-me, devorando-me, sentindo o sabor de mar que eu exalava.
Ele ainda estava molhado e eu queria enxugá-lo do mesmo modo
que ele me enxugou, venerando seu corpo, queria comprovar que um
homem que havia passado tanto tempo no oceano também tinha cheiro e
gosto de mar. Enxuguei seu cabelo, seu rosto, bagunçando sobrancelhas e
barba, beijei suas pálpebras, o pescoço, que tinham gosto de mar, ou
melhor, o mar tinha gosto dele. A calmaria, o silêncio, a sensação de que só
havia eu e ele em todo o universo.
Enxuguei seu cabelo, deixando-o perfeitamente bagunçando, e ele o
jogou para trás, enxuguei a barba, bagunçando-a de um modo que me fez
rir, e ele tentou me roubar um beijo, que desviei, pois estava ocupado.
Enxuguei seu pescoço, avermelhado pelo sol, a veia grossa que ali passava,
o pomo de adão que se pronunciava por cima da barba que voltava a crescer
ali, os ombros, largos, onde começava a despelar, ele levantou os braços,
para que ali eu enxugasse, e, dessa vez, não resisti ao impulso de enfiar meu
rosto em suas axilas para descobrir que cheiro havia ali, e aquele cheiro me
entorpeceu, enxuguei seu peito, rígido como se seu coração fosse de pedra,
peito de um homem que eu queria ser, de um homem que eu queria ter, vi
Arnaud sorrir maliciosamente quando esfreguei a toalha em seus mamilos, e
prossegui, enxugando os pelos dali e descendo para a barriga, que se mexia
no ritmo da respiração intensa, descendo até a rola, que há muito já havia
duplicado de tamanho, dureza e espessura, enxuguei com cuidado, e
demoradamente, com as duas mãos, arrancando-lhe longos suspiros e
gemidos de frustração, pois ele queria mais, desci a toalha pelas suas
pernas, deixando os pelos dali secos, admirando a grossura das coxas e a
definição das panturrilhas. Enxuguei até seus pés, rudes, maltratados, cheios
de tendões e veias e calos, o virei então de costas, subi pelas pernas até sua
bunda, firme, dura, branca, a marca da sunga evidenciando sua forma, com
pelos finos, loiros e minúsculos que a revestiam como uma relva. Subi suas
costas, fazendo a toalha absorver os pingos que ali escorriam, transitando
entre os sinais de sua pele avermelhada.
Quando terminei, depois de secá-lo, o molhei novamente, beijando e
lambendo, adorando-o como ele me adorou, até minha saliva secar.
— Cospe na minha boca — pedi, e ele riu, atiçado. Era um pedido
estranho, nojento, que em outros tempos me faria contorcer o rosto em
repugnância, mas agora não me importava, a minha saliva secara e eu
queria a dele, éramos um só, um só fluido, um só organismo. Não sei de
onde veio aquele desejo, era mais um impulso selvagem e primitivo que
Arnaud me despertava. Ele me obedeceu, segurou meu rosto com as duas
mãos, abriu minha boca e cuspiu. Como eu estava com sede, sede de
Arnaud, sede do beijo dele... Saboreei aquela saliva como se fosse a última
gota d’água do mundo e a compartilhei com ele, devolvendo-a num beijo,
misturada com minha própria saliva, nossas línguas entrelaçando-se em
meio a suspiros e mordidas, a sua barba arranhando o meu rosto e minhas
unhas arranhando suas costas.
Arnaud puxou-me pelo braço, levando-me até a cama que ainda não
havíamos deitado e lá continuamos a nossa adoração, o culto a Arnaud, o
culto a Nico, todo o meu corpo queria todo o corpo dele, eu me entreguei e
ele se entregou, éramos novamente um só e cada vez parecia mais difícil de
nos separar. Ali, não nos preocupamos com o barulho, parecia que
estávamos em uma ilha deserta só nossa, não controlamos os gemidos, não
nos importamos com a cama que batia contra a parede no nosso ritmo
acelerado, e, dessa vez, não fomos interrompidos, ele me levou a um
orgasmo que tirou minha alma do corpo e, se eu fosse algum tipo de
paranormal, teria visto sua alma flutuar sobre a cama quando ele grunhiu e
estremeceu ao gozar, ejaculando sobre mim, quase me sufocando com seu
corpo pesado e amolecido que despencou em cima do meu. Nossas almas,
lá no alto, se uniram numa só, e quando voltaram para nossos corpos, eu
tinha um pouquinho dele, e ele, um pouquinho de mim.

Naquela noite descobri que nunca tinha tido um orgasmo. Todas as


vezes anteriores, sozinho ou com meninas, tive ejaculações. A contração
dos músculos pélvicos e penianos, coração e respiração acelerados, a tensão
dos músculos liberada em um jorro de líquido branco pegajoso. E depois
dessa simples liberação fisiológica de algo que estava acumulado havia
certo tempo, a fadiga e a perda de tesão. Achava que isso era o ápice do
prazer. Até que Arnaud, com seus olhos, palavras, língua, dedos, pau, me
fez sentir algo mais, um orgasmo verdadeiro. Um tremor que parecia vir do
interior da minha alma, o coração que não estava acelerado, mas disparado,
como se fosse explodir ou parar a qualquer instante, o aumento da pressão
sanguínea que fez meu pênis latejar, a dilatação das pupilas que tornou tudo
mais claro e escuro ao mesmo tempo, um formigamento intenso que passou
dos pés até a cabeça, o desejo de gritar, de explodir em mil fragmentos, de
apertar Arnaud em minhas mãos e entre minhas pernas até que ele se
desmanchasse em mim, o grito final, a ejaculação que saiu não em um, mas
em vários jorros, ensopando-me inteiro, com a força de um tsunami, e que
Arnaud lambeu e me devolveu, pela boca, em um beijo. E a moleza
arrebatadora que tomou conta de mim depois, as energias todas gastas
naquele nirvana absoluto, uma viagem extremamente dispendiosa ao
paraíso, ou inferno, que me arrancara todas as forças, mas não levou
embora o desejo ardente por Arnaud. Exaustos, queríamos mais. E
repetíamos.
Mesmo aquele fogo ainda não tendo apagado, no calor entre nós que
mais parecia uma febre, o desejo que ardia em desespero, nossos corpos já
imploravam por pausa. Sentia que se Arnaud me penetrasse mais uma vez,
minha pele ia se rasgar, eu ia me partir em dois, a pele interna do meu ânus,
coitada, maltratada pela fome e voracidade daquele homem. E assim ele me
ensinou que sexo não era só penetração. Acima de tudo era desejo. Então
com seus dedos, lambidas, mordidas, apertões, chupadas e beliscões,
gozamos outras vezes. Até que a noite avançar e nossos corpos não serem
mais capazes de produzir porra. O líquido esgotara-se. Secos, nos
rendemos, jogados na cama molhada com nossos fluidos. Mas o desejo,
ah... Esse nunca se esgotou.
Estávamos deitados, eu com a barriga para cima, de olhos fechados,
e ele deitado de lado, virado para mim, acariciando meu peito com as
pontas dos seus dedos, ambos suados naquele quarto abafado, os dois sem
forças para se levantar e abrir a janela, quando perguntei, sem mais nem
menos, sem uma razão muito clara, ou talvez tomado por uma insegurança
latente no âmago de minhas paranoias, uma dúvida persistente que me
impedia de compreender como aquele homem era capaz de sentir tanto
prazer e desejo comigo ou entender como ele se interessara por mim, um
jovem simples e sem graça e sem atributos físicos e mentais, interessantes
ou sensuais:
— O que você viu em mim naquele dia, quando você chegou na
ilha?
Não abri os olhos, queria só ouvir sua voz. Em minha mente,
visualizava perfeitamente como ele deveria estar. Os olhos verdes
concentrados, a boca em meio sorriso. Ele não respondeu de imediato,
fiquei ouvindo sua respiração pesada, seus dedos haviam parado e sua mão
estava pousada sobre minha barriga. Parecia pensar. Procurar palavras.
— O momento mais incrível nesses meses no oceano foi durante
uma calmaria no meio de uma noite completamente sem nuvens e vento.
Ficamos à deriva no mar aberto, no completo escuro e silêncio, sem barulho
de vento ou ondas. Havia apenas a luz da lua cheia e das estrelas refletindo
na água parada. Normalmente o mar, à noite, me aterrorizava, mas naquela
noite eu senti paz — falou, calmo como o mar deveria estar naquele dia,
com a sua voz grave que penetrava meus ouvidos como ele havia me
penetrado em outro lugar alguns minutos atrás. — Quando eu cheguei na
ilha, depois de todo aquele tempo acostumado com a cara dos velejadores
que me acompanhavam, você foi o primeiro rosto que vi. E quando você me
olhou com esses olhos — continuou, com a mão segurando meu rosto —,
com esse seu olhar que mais parece aquele mar de calmaria noturna, com o
brilho da lua e das estrelas refletido na água parada, eu soube que tinha
chegado no paraíso.
Abri os olhos, ele ainda segurava meu rosto e me olhava com uma
intensidade que eu jamais havia visto. Não era aquele olho de mar revolto,
era muito mais que isso. Era uma intensidade de tsunami.
Eu me sentia sem fôlego, afogado por uma onda gigante de
proporções apocalípticas: Arnaud, desde o dia zero, havia me notado.
Assim como eu o havia notado. E que coincidência do destino, não é
mesmo? Como se o vento e o mar o tivessem trazido diretamente para a
minha ilha, para a pousada do meu pai, para mim... Eu e Arnaud, o garoto
da ilha e o homem do mar, ilhados, destinados um ao outro.
Ele então se levantou, vestiu uma cueca, abriu a porta da varanda e
saiu.
— Vai fumar? — perguntei.
— Quando estou contigo não tenho vontade de fumar.
Como eu tinha conseguido viver naquela ilhazinha perdida no meio
do oceano, até agora, sem Arnaud?

Ele estava na varanda, tomando um ar. As nossas bolsas, jogadas ao


pé da cama, pareciam estar finalmente secas, então decidi pegar nossos
celulares para ver se estavam funcionando. Tentei ligar o meu, mas parecia
definitivamente morto. Puta que pariu. Abri a bolsa de Arnaud e peguei o
celular dele, quando apertei o botão de ligar, vi o diário de viagem logo
abaixo do aparelho. Estava arruinado, as folhas amassadas e enrugadas. Que
dó! Tirei de lá, para tentar salvar, talvez deixar secar sobre a mesa fosse
melhor. Dei uma folheada no caderninho a fim de ver se havia salvação,
porque talvez a tinta da caneta tivesse borrado e não adiantaria mais secar.
Dito e feito. Estava quase tudo ilegível. Ainda dava para distinguir algumas
coisas. Eu não pretendia tentar ler nada, mas parei de folhear quando
reconheci alguns nomes. Estava tudo escrito em francês, mas vi o nome da
pousada, o nome do meu pai, os nomes dos hóspedes e dos meus amigos. O
nome completo de Américo. Havia datas, como a da minha festa, o dia e
hora que aqueles hóspedes foram para a casa da bruxa. Aquilo era um diário
mesmo?
O celular de Arnaud fez um bipe e acendeu. Olhei para o visor e vi a
foto que servia como papel de parede da tela.
Na foto havia um homem sorridente, mais feliz impossível, de terno,
cabelos pretos e lisos penteados para o lado, a pele branca. Em seu rosto
havia uma espessa barba, preta, ainda maior que a de Arnaud. Podia ver que
ele estava começando a ficar grisalho, fios brancos aparecendo aqui e acolá
na barba e no topo da cabeça. Ao seu lado, também de terno, um terno
branco, estava Arnaud, parecia alguns anos mais jovem do que atualmente,
percebi isso pois suas rugas não estavam ali acompanhando seu sorriso, seu
cabelo era mais curto e a barba perfeitamente arrumada, sem os fios brancos
que começavam a brotar em suas costeletas. Estava com a cabeça apoiada
no ombro do outro homem, num sorriso um pouco acanhado. Seu braço
estava dobrado, a mão esquerda apoiada no peito do outro. E nessa mão, no
dedo anelar, havia uma aliança dourada. E, simples assim, um outro tsunami
havia me atingido.
17 ✹ O PARAÍSO

O
marido de Arnaud havia voltado para me assombrar, como havia feito
naquela noite do acampamento, sua memória me atormentando. E,
assim como naquela outra vez, isso me fez perceber que Arnaud
havia tido uma vida de verdade, seu coração já pertencera, realmente, a
alguém, um alguém que ainda fazia parte do seu coração, um amor
verdadeiro que havia sido tirado dele e que jamais poderia ser substituído.
Enquanto isso, eu me esforçava para agradá-lo e impressioná-lo, quase que
mendigando por seu amor, sem nem sequer entender o motivo para estar
fazendo isso. Eu não passava de uma mera paixonite de verão. Como eu
poderia disputar com um amor daquela dimensão? Guardei o celular e o
caderno de volta na bolsa e resolvi não tocar novamente no assunto.
Ele estava na varanda, observando a rua lá embaixo, a algazarra de
veículos que subia até o nosso andar. Abracei-o por trás, meu rosto
encostado nas suas costas nuas.
— O que aconteceu? — ele perguntou, ao virar-se e olhar para o
meu rosto. Eu odiava a minha própria transparência.
— Por que você acha que aconteceu algo? — perguntei, tentando
fingir que estava tudo bem.
— Você tá com essa cara de quem é a pessoa mais triste do mundo
— disse, sorrindo, aquele sorriso que me acalmava, colocando a mão em
meu rosto.
— Talvez eu seja. Só temos mais dois dias — falei, olhando para
baixo, não ousava olhar nos seus olhos, não queria ser hipnotizado.
Houve um momento de silêncio entre nós, onde só se ouvia o
barulho do vento e dos carros lá embaixo, na rua. Achei que ele ia falar
alguma coisa misteriosa, enigmática e confiante sobre aproveitar o tempo
que temos ou que os dias não importavam, pois o que valia era a
intensidade que existia no nosso relacionamento. Mas o que ele se resumiu
a falar foi:
— Não quero ir. — E mergulhou seu rosto em meu cabelo.
Meu coração amoleceu, ele sabia usar as palavras certas para me
conquistar. Uma coisa esperada de desbravadores de oceanos. Exploradores
e colonizadores de corações. Tive uma pontada de esperança, como se
houvesse uma chance de Arnaud ficar ali comigo, para sempre, naquela ilha
paradisíaca, que seria um paraíso de verdade, como se antes nunca tivesse
sido, mas a esperança passou num segundo, quando lembrei do celular dele,
da foto, do seu marido morto, que ainda estava em seu coração, exigindo-
lhe um último ato de amor, a promessa de atravessar o mar, aquela
promessa fúnebre que o levara até mim e o faria partir.
— Você tem que ir — falei, afastando-me dele. — Tem uma
promessa a cumprir.
— Posso adiar. — Lá estava novamente aquele vinco entre suas
sobrancelhas. Ele falava sério, parecia que já havia pensado sobre isso antes
e realmente considerava a opção. — Já adiei por anos.
— Os ventos vão mudar daqui a dez dias, depois disso vai ser
impossível seguir o percurso — sentenciei. Ele já devia saber disso. Todo
mundo sabia, especialmente os velejadores. Havia uma janela de tempo em
que eles podiam ficar parados ali, aproveitando que os ventos estavam
fracos. Dali a alguns dias os ventos voltariam a ficar fortes, mas, com a
mudança das estações, em menos de duas semanas, a direção dos ventos
mudaria e o restante da travessia poderia ficar mais difícil e bem mais
demorado.
— Então temos dez dias.

Fomos interrompidos por três batidas rápidas na porta. Enquanto me


vestia e Arnaud caminhava para abri-la, apenas de cueca, escutei risadinhas
vindas do corredor e na hora soube que era Rebeca. Ela usava um
vestidinho curto brilhante, coberto por lantejoulas pretas, e Inara, uma blusa
de tule preto e shorts brancos. Onde elas haviam arranjado aquelas roupas?
— Por que vocês estão vestidas assim? — perguntei, já temendo a
resposta.
— Vamos pra uma boate — falou, abrindo espaço entre mim e
Arnaud, entrando no quarto e observando a bagunça.
— Divirtam-se — falei, tentando ficar no caminho dela.
— Vocês também vão — ordenou, pegando nossas bolsas que
estavam no chão, e jogando-as para mim e Arnaud.
— Vamos? — perguntou Arnaud, sorrindo, retirando um short da
bolsa e vestindo-o.
— Não temos roupa — interrompi. Nossa roupa extra se resumia a
shorts, camisetas de praia e sandálias. — Por sinal, onde vocês arrumaram
essa roupa?
— Trouxe comigo, sou precavida. — Típico de Rebeca levar uma
roupa de sair à noite para a praia. — Nunca se sabe quando aparece uma
festa pra ir. E vocês são homens, podem vestir qualquer coisa. Arnaud, com
essa cara, entra em qualquer lugar até vestido com saco de batata. Você vai
precisar de um pouco mais de esforço. Agora vão tomar banho porque eu
estava sentindo o cheiro de sexo lá do corredor.
Sabia que não havia discussão. Iríamos sair.

A boate para onde fomos se chamava Paradise. Paraíso. Ficamos


numa fila por alguns minutos antes de entrar, abaixo do letreiro neon, com
palmeiras cor-de-rosa piscando em ritmo frenético e as letras do nome da
boate com cores de arco-íris anunciando em que tipo de paraíso estávamos.
Na fila, diversos grupos de pessoas, todos com pouca roupa, exibindo o
bronze e o corpo de verão, meio embriagados e aos risos. Na nossa frente
havia dois homens encostados na parede, se beijando, e Rebeca, ao nosso
lado, segurando a mão de Inara. Ali, no meio da rua, mesmo à vista de
tantos olhos, abracei Arnaud, apoiando minha cabeça em seu peito, com os
pelos que saíam dos botões abertos da camisa me pinicando. Parecia difícil
de acreditar que naquele mesmo dia eu tivera vergonha de estar com
Arnaud, Rebeca e Inara.
Lá dentro, o lugar era um amplo espaço com mesas ao redor de um
bar, iluminadas com luzes neon de variadas cores. Ao fundo, podia-se ver,
pelas grandes janelas de vidro, a pista de dança na área externa, na areia da
praia.
O lugar estava abarrotado de gente, tivemos sorte de encontrar uma
mesinha vazia. No caminho para a mesa, vi olhares de interesse na direção
de Arnaud e, para a minha surpresa, senti ciúmes. Segurei a mão dele com
força, com a intenção de que todos vissem, e que ficasse claro que ele
estava comigo. Ao mesmo tempo, em meio a todos aqueles homens de
regata e braços musculosos, rostos quadrados e cabelos perfeitos, desejei
também ser cobiçado.
Ficamos alguns minutos na mesa esperando ser atendidos e, quando
percebemos que não havia garçons, Arnaud se levantou para ir até o bar
pegar bebida para a gente. Inara foi com ele para ajudá-lo, e eu e Rebeca
ficamos a sós na mesa.
— Esse lugar tá me deixando desconfortável — falei, sentando-me
ao lado dela, para ser ouvido em meio àquele barulho de música e flertes.
— Por quê? — perguntou ela, surpresa.
— Olhe esses homens. E olhe pra mim. Me sinto deslocado aqui.
— O público dessas boates pode ser meio excludente às vezes.
Como você acha que eu me sinto, sendo uma mulher gorda, sapatão e
asiática no meio desses gays brancos e malhados? E Inara? Mas estamos
aqui pra beber e nos divertir, eu, você, Inara e Arnaud. Esqueça os outros.
Estamos juntos, é o que importa.
Eu a abracei, era tudo o que eu podia fazer. Rebeca realmente sabia
que palavras falar.
— E tu e Inara? — perguntei, querendo mudar de assunto. — Parece
sério.
— Sério? — Ela riu, abanando a mão, para dispensar a palavra. —
A gente se conheceu faz dois dias. Ela é maravilhosa, mas é um amor de
verão. Somos turistas, e no final do mês ela vai para o lugar dela e eu, para
o meu.
Engoli em seco. Ela havia falado sobre ela mesma, mas suas
palavras chegaram aos meus ouvidos como se fossem para mim. As
palavras me serviram. Então era isso que eu e Arnaud éramos? Apenas um
amor de verão? No fim da estação ele ia para o lugar dele e eu, para o meu,
e nunca mais nos veríamos? Que coisa horrível essa efemeridade das
estações... Eu queria um verão de décadas, feito um livro de alta fantasia.
— Tu acha que tô me precipitando com Arnaud? — perguntei, com
a boca seca, minha língua quase grudando, petrificada, ao meu céu da boca.
Sentia-me nervoso, ansioso. Tinha medo de estar fazendo tudo errado. —
Tipo, estamos intensos demais?
— Não, Nico — ela disse, colocando a mão sobre minha perna e me
olhando nos olhos. Seus olhos pareciam ainda mais pretos que os meus. —
Lá no continente as coisas são diferentes. Temos mais espaço, pra onde
fugir e se esconder. Aqui, nessa ilha, cercada por esse mar sem fim, nós
somos pequenos. Tudo é mais perto, mais intenso, não tem pra onde
escapar. Aqui, um amor não é um simples amor. É um amor náutico,
insular. Aqui, se apaixonar é como um naufrágio. Então aproveite e
mergulhe.
Assenti, concordando. Não havia mais nada a falar, então saboreei o
que ela havia dito. Enquanto ela dançava sentada na cadeira ao meu lado,
olhando para os lados à procura de nossos pares, fiquei calado, refletindo.
Eu e Arnaud éramos náufragos, então? Estávamos destinados a sobreviver
às adversidades, perdidos para sempre no meio do mar, condenados, ou
abençoados, a conviver eternamente, pelo menos enquanto
sobrevivêssemos, num pedaço de ilha? Aquela era a definição perfeita para
o que sentíamos um sobre o outro. Naufragamos, nadamos e acabamos
juntos na mesma ilha. Eu e Arnaud, ilhados.

Ainda estava digerindo as palavras de Rebeca, que mais pareciam


poesia, quando Arnaud e Inara voltaram.
Arnaud trouxe cerveja para ele e para Rebeca, enquanto Inara
tomava o que parecia ser vodca com algumas frutas.
— Um mojito para o monsieur — falou Arnaud, colocando o copo à
minha frente e abrindo espaço na cadeira. Cítrico e refrescante: tinha gosto
do meu francês. O gosto de hortelã, o álcool que me deixava fora dos eixos.
Sorri ao dar um gole, e Arnaud segurou meu rosto e me roubou um beijo,
como se desafiasse o drink a ser melhor que ele, com ciúmes do mojito.

Depois de alguns drinks, nos levantamos para dançar. Finalmente


pararam de colocar aquelas músicas sem graça que os garotos brancos
amavam, e eu e Inara aproveitamos o esvaziamento da pista de dança para
irmos curtir o R&B que o DJ tocava.
Fomos para o lado de fora, livres do ar-condicionado viciado do bar,
a brisa fresca e revigorante da noite soprando em nossos rostos. A música lá
fora, apesar de tão alta quanto lá dentro, não era abafada, parecia tão livre
quanto nós.
A pista de dança era em um enorme deque de madeira sobre a areia
da praia, com luzes frenéticas piscando sobre nossas cabeças. Ficamos perto
do parapeito que circundava o deque, com o mar negro atrás de nós, e na
nossa frente corpos suados dançando, beijando, em movimentos sensuais
que me deixavam desconcertado. Inara me puxou para o meio do deque e
começamos a dançar. Bem, ela começou a dançar, eu tentava, mas me sentia
retraído. Só havia homens ali, além das minhas acompanhantes, e eu fiquei
pensando qual era a sensação de dançar daquele jeito com outro homem na
frente de todo mundo. Era algo que eu nunca havia experimentado e nem
sabia se teria coragem. Eu era acostumado a dançar com garotas, não
saberia como guiar um corpo masculino, nem muito menos como me deixar
ser guiado. Olhei para Arnaud, ele me olhava com curiosidade. Estava
encostado na cerca que separava o deque da praia, acompanhando Rebeca,
que não gostava de dançar.
— Fecha os olhos e só curte a música! — disse Inara no meu
ouvido, percebendo a minha timidez.
Eu sorri para ela e segui o conselho. Era Lauryn Hill nos
autofalantes, deixei a voz da rainha tocar a minha alma, meu corpo se
soltando, o meu entorno desaparecendo, o álcool fervendo dentro de mim.
Foi quando senti Arnaud atrás de mim, colando a boca na minha
orelha.
— Assim eu não resisto — ele disse.
Para minha surpresa, o francês tinha ritmo.
Dançamos colados um ao outro, minhas costas contra seu peito; sua
virilha, na cadência gostosa da música, apertando contra minha bunda. Ele
beijava meu pescoço suado, a barba pinicando a minha pele, e eu, de tão
excitado, tive que me virar para ele, para esconder o volume que começava
a se pronunciar na frente do meu short. Mais uma vez Arnaud me levava a
fazer coisas pela primeira vez. Nunca antes eu havia dançado com um
homem, ainda mais daquela forma, tão colado, tão suado, tão íntimo, tão
sexual. Também nunca tinha sido conduzido daquela forma. Sua mão
segurando o meu rosto para me beijar, sua barba roçando meu pescoço, sua
mão descendo pelas minhas costas, segurando o meu quadril para que eu
mexesse no ritmo dele, ou segurando minha bunda, apertando-a, trazendo-
me para ainda mais perto de si.
Continuamos dançando assim, um de frente para o outro, nossos
rostos separados por apenas alguns centímetros, seus olhos fechados e sua
boca num constante sorriso, suas mãos perpetuamente em meu quadril, até
me dar vontade de ir ao banheiro. Arnaud se ofereceu para me acompanhar,
mas falei que ele podia ficar fazendo companhia a Rebeca. Fui sozinho. Na
volta, fui abordado por um homem, que se colocou na minha frente, me
impedindo de andar.
— Tu dança bem — falou, fuzilando-me com seus olhos azuis
miúdos.
— Obrigado — respondi, constrangido. Ele estava me observando?
— Mas dançaria melhor comigo — completou.
Quis franzir o cenho, para deixar claro que eu estava desconfortável
com a situação. Acabei rindo, influenciado pelo álcool e achando aquela
cantada ridícula. Ele deve ter visto aquilo como um sinal verde para que
pudesse fazer algo comigo, então inclinou-se, para me beijar. Senti o cheiro
de vinho que exalava do grosso bigode preto que cobria seu lábio superior e
dei um passo para trás.
— Quanto ele tá te pagando? — perguntou. Seu sotaque acentuado,
combinado com seus cabelos lisos e os olhos azuis, denunciava que era
estrangeiro. Britânico, talvez. Franzi o cenho, sem entender o que ele queria
dizer. Eu estava um pouco bêbado, mas ele parecia completamente
embriagado. — Esse rabão não deve ser barato.
— Ninguém tá me pagando nada — falei, começando a me virar
para ir embora dali. Mas ele segurou meu pulso. Tentei me desvencilhar,
mas o homem tinha três vezes o meu tamanho, e, apesar de bêbado, possuía
forças para não me largar.
— O gringo ali — falou, apontando com o nariz para algo atrás de
mim. Olhei e vi que ele apontava para Arnaud, dançando, do lado de fora,
com Rebeca. Eles não me viam. — Tu não é o puto dele? Eu pago em
dobro, em euro. Bora comigo.
Voltei a olhar para o homem, que sorria com seus dentes tortos e
amarelados. Puxei meu braço novamente, e, quando ele reagiu me puxando
em sua direção, o empurrei, aproveitando seu impulso, derrubando-o no
chão junto com a garrafa de vinho que segurava.
Rapidamente as pessoas ao redor começaram a olhar e a se
amontoar ao lado do homem, que chamava por um segurança. Sem perder
tempo, caminhei depressa em direção à pista de dança, onde encontrei
Arnaud e as meninas, os três me olhando alarmados.
— Vamos embora! — gritei, olhando, de ponta de pé, sobre a cabeça
das pessoas, para ver se havia seguranças se aproximando. Um homem
preto, como eu, empurrando um turista inglês num lugar como aquele com
certeza não seria bem visto.
Inara, uma das poucas pessoas ali de pele escura, além de mim, foi a
primeira a entender o que acontecia, rapidamente atravessou a pista de
dança, nos chamando, e pulou sobre o parapeito do deque, caindo na areia
da praia. Eu a segui, e Arnaud e Rebeca, ao verem os seguranças se
aproximando, nos imitaram. Corremos no escuro, na areia molhada da
praia, rindo e embriagados, até a música da festa sumir dos nossos ouvidos.
Paramos numa porção vazia e escura da extensa praia, com os
prédios atrás de nós distantes o suficiente para suas luzes não nos
alcançarem. As ondas batiam tímidas e geladas nos nossos pés.
— O que aconteceu? — perguntou Arnaud, quando nos afastamos
um pouco das meninas, andando lado a lado. — Ele te machucou?
— Não sei — respondi, desenhando alguma forma amorfa na areia
com a ponta do pé. Eu sabia que não estava sendo honesto com aquela
resposta. Como eu explicaria o que acontecera a Arnaud? Como eu
explicaria a ele o estigma que pessoas como eu carregavam ali? Como eu
explicaria a um francês o que é ser preto numa cidade turística de um país
colonizado?
Havia uma imensa barreira entre mim e Arnaud, e não era apenas a
idade. Gente como ele nos viam como nativos ignorantes e sedentos pelo
diferente, promíscuos, que se vendem a qualquer preço para um gringo de
olhos claros. Se uma pessoa nativa era vista com um estrangeiro por aquelas
bandas, automaticamente se pensava em prostituição. Quanto será que ele
está pagando?, perguntavam. Eu, como homem, nunca havia passado por
aquilo até então, mas ouvira histórias, principalmente das meninas, que
eram abordadas e assediadas pelos turistas na praia. Eu me sentia horrível,
um objeto. Arnaud entenderia como era ser visto como objeto por pessoas
como ele?
Ele aparentemente sabia que eu não estava sendo honesto, e parecia
bravo. Não comigo, mas com o cara lá atrás. Queria voltar lá, chamar a
polícia, talvez ser o meu salvador, bancar o meu herói. Mas o vilão não era
só aquele homem, eram muitos. No fim, Arnaud jamais entenderia. Eu era
mais jovem, tinha minhas inexperiências e ignorâncias, mas ele também
tinha. Afinal, ele não era perfeito.
— Tá rindo de quê? — ele perguntou, percebendo o sorriso que
tentei esconder.
— Acabei de me tocar que você... — comecei a falar, então me virei
para as meninas e gritei: — teve a proeza de fazer Rebeca dançar!
Rebeca gritou de volta e chutou terra em mim, Arnaud me agarrou e
me puxou para longe. No escuro, ele me beijou.
Ah, os beijos de Arnaud! Para sempre os seus beijos me lembrariam
da praia, e a praia me lembraria dele. Beijou-me com sua mão pressionando
minhas costas, para me manter junto a ele, eventualmente descendo-a até
minha bunda. A outra mão ele mantinha no meu rosto, segurando-o como
se eu fosse fugir daquele beijo. Ali, iluminados apenas pelos prédios
distantes que nos assistiam e pela lua, que também nos testemunhava, ainda
mais distante, rodeados pelo murmúrio constante dos ventos e pelo barulho
das ondas que quebravam pequenas na praia e das meninas que corriam às
gargalhadas no escuro, entrelacei meus dedos em sua barba, acariciando-o,
arrancando-lhe suspiros de prazer que trespassavam nossas bocas e
entravam dentro de mim, fazendo-me tremer naqueles braços que me
seguravam forte.
— Vamos nadar! — ouvi Rebeca gritar, a alguns metros dali, nos
interrompendo.
Saímos daquela confluência, mas não deixamos de ficar unidos.
Éramos unidade mesmo separados. Ainda encarei Arnaud por alguns
segundos, completamente hipnotizado, e ele também não largou seu olhar
do meu, então olhei para trás, para o mar, onde Rebeca ria baixinho, o seu
riso característico que dizia que ela aprontava algo. Ela estava tirando o
vestido e, apenas de calcinha e sutiã, correu para o mar escuro,
acompanhada de Inara, que, por sua vez, estava só de calcinha, com os seios
banhados pela lua.
Sorri, tentado a segui-las. Nadar pelado era libertador, ainda mais à
noite, quando nada se via. Trazia-me uma sensação de liberdade
indescritível. Entrar no mar escuro, incapaz de ver qualquer coisa, qualquer
perigo que ali poderia se esconder, desprotegido da humanidade das roupas,
a pequenez do corpo intimidado pela grandiosidade do oceano, pela
magnificência das ondas e pelo esplendor lunar, a única luz naquela
infinidade de água e escuridão, enchia-me de adrenalina. Prazer misturado
com temor. Tirei o short e comecei a correr, tirando a camisa, quando olhei
pra trás e vi que Arnaud não havia saído do lugar.
— Não vem? — perguntei, voltando para perto dele.
— Não, tenho medo do mar à noite — respondeu, com um sorriso
complacente, de quem pede desculpas. Estava com as mãos nos bolsos e
com os ombros encolhidos, e ali eu tive certeza que ele desejou um cigarro.
Ou companhia. Então o abracei.
— Como é que um velejador que atravessou o oceano por meses
tem medo do mar à noite? — perguntei, sorrindo, tentando relaxá-lo.
— Me assusta toda aquela água escura, não dá pra saber a
profundidade nem o que tem lá embaixo. Dentro do barco eu me sinto
seguro, mas não coloco meus pés na água. Gosto de ver onde piso. —
Sentei-me na areia, dando palmadinhas no chão ao meu lado, para que ele
se sentasse. Ao fazê-lo, continuou: — Aquela noite de calmaria que te falei
foi a única vez que o mar à noite não me apavorou. — E então olhou-me, a
boca em sorriso, mas os olhos, de mar diurno, estavam sérios. Aquele olhar
me entregou palavras que ele não precisou falar. Você é como aquela noite
de calmaria.
Continuamos ali sentados, nossas pernas se tocando, seus pelos
roçando em minha pele e me causando arrepios. Apoiou a cabeça em meu
ombro e eu sentia o cheiro de mar, que vinha tanto dele quanto do próprio
oceano. Ficamos observando Rebeca e Inara brincando na água, dando
gargalhadas e jogando água uma na outra, naquele mar escuro e sereno,
quase sem ondas, Arnaud acariciando minha perna e eu sorrindo, com
aquela brisa fresca que soprava de todos os lados.
Eu e ele estávamos tão pacatos quanto o mar, sem saber que, não
muito além daquelas águas escuras, mascarada pela tranquilidade da noite e
pela calmaria do tempo, se formava uma tempestade.
18 ✹ A TEMPESTADE
— ocê esqueceu seu presente — falou Arnaud, provavelmente
tentando me distrair, quando voltávamos para a nossa ilha.
V O mar estava agitado e o vento, intenso, e eu me segurava
no braço de Arnaud com força, tentando manter o café da manhã
no estômago. Ainda não havia me recuperado da noite anterior, com uma
pequena ressaca lembrando meus exageros alcoólicos. Ao menos, acordar
com seu corpo colado ao meu, recebendo beijos pequenos e estalados no
pescoço e costas havia sido revigorante. Mais revigorante ainda havia sido
vê-lo se espreguiçar, levantar-se, de cueca, e caminhar até o banheiro, onde
tomou banho com a porta aberta, deixando-me observá-lo se ensaboar e
exibir o efeito que o meu corpo nu sobre nossa cama tinha nele. Vestiu-se e
saiu do quarto, dando-me oportunidade para me arrastar até o banheiro e
também tomar banho, esfregando no meu corpo o sabonete que há pouco
tempo havia sido esfregado no dele. Saído do banho, já um pouco melhor
da ressaca, voltei para a cama, no mesmo instante em que ele voltava para o
quarto, trazendo consigo um croissant quentinho, um copo com suco de
laranja e, é claro, uma banana.
— Que presente? — perguntei, mal-humorado com toda aquela
agitação do barco, quase desejando pular no mar e fazer o resto do percurso
nadando, mesmo que eu não estivesse nem um pouco feliz em estar
voltando para casa. Porém, o medo da reprimenda que eu receberia da
minha mãe se passasse um minuto sequer a mais na Ilha Grande era maior
que qualquer coisa.
— Naquela noite... Você foi buscar o seu presente de aniversário no
meu quarto. E foi embora sem ele. Ainda está lá, embalado.
Não respondi, apenas assenti e corri para o parapeito do convés,
despejando no mar o que eu havia comido algumas horas atrás. Os peixes
iam se refestelar com banana, laranja, croissant e fluidos corporais de
Arnaud.
— Eu não consigo acreditar que você mora numa ilha e não
consegue andar de barco — gritou Rebeca do outro lado, tentando se fazer
ouvida em meio a todo aquele vento e seu constante barulho em nossos
ouvidos.
— Acho que tá vindo uma tempestade — ouvi Inara falar e olhei
para a direção onde ela apontava.
Ela tinha razão, estava vindo uma tempestade, e das grandes. A
oeste, no horizonte, muito além de onde estava a Ilha da Borracha, uma
nuvem negra se erguia no céu, interrompendo toda aquela paisagem de tons
pastéis. Onde outrora havia azul, branco, bege e verde, agora era apenas
tons cinzentos. Abaixo da imensa nuvem, que a cada segundo parecia
maior, em seu curso de tomar todo o firmamento, podia-se ver a chuva que
caía no mar. Eu quase podia sentir a eletricidade no ar, vindo dos raios que
estouravam dentro daquelas imensas nuvens, que piscavam feito luzes de
natal com as descargas elétricas. Com sorte, chegaríamos à ilha antes de
sermos pegos no meio daquela batalha entre Zeus e Poseidon.

A marina da nossa ilha estava lotada. A guarda costeira emitira um


alerta recomendando que todos os barcos fossem ancorados durante a
tempestade, a fim de evitar tragédias. Como havia muitas encostas
pedregosas e recifes de corais nas redondezas, naufrágios eram frequentes
durante tempos desfavoráveis. O vento já soprava frio quando descemos do
Sotaford, as pessoas começavam a fechar suas janelas e os feirantes
guardavam os toldos de suas vendinhas.
Enquanto Arnaud terminava de realizar os procedimentos de
segurança para garantir que o barco não fosse levado pelos ventos, Inara
chegou para mim e falou:
— Beca tem uma coisa pra te falar.
Rebeca olhou para ela com fúria. Balançou a cabeça. Inara ergueu as
sobrancelhas e cutucou minha amiga com o cotovelo.
— Ele precisa saber — disse Inara.
Rebeca olhou para trás, para o barco. Verificava se Arnaud não nos
ouvia.
— Lembra que eu te falei que achava Arnaud familiar?
— Lembro — respondi, tenso.
Ela engoliu em seco.
— Sem ofensas, mas eu achei estranho ele ter um barco desses e ter
dinheiro para pagar dois quartos pra gente no hotel, e mesmo assim ficar
hospedado na pousada do teu pai.
— Ele disse que queria conhecer o ponto de vista dos moradores da
ilha — expliquei.
— Olha, eu passei a noite inteira tentando lembrar de onde conhecia
ele. Pesquisei na internet, mas é difícil sem saber o sobrenome, até que
lembrei da história que tu me contou sobre o marido dele. O que morreu
contaminado num lago. Eu conheço essa história! Só não me lembrava de
onde. Aí tive a ideia de olhar as últimas fotos do meu celular. Lembra mês
passado que eu falei que ia pra uma Semana Internacional do Meio
Ambiente lá na universidade? Que eu ia só pelo coffee break e pelos
créditos extras?
— Lembro, mas tu disse que assistiu uma palestra bem legal —
respondi. Olhei novamente para o barco. Estava ansioso, queria saber aonde
ela ia chegar com aquilo tudo.
Ela virou o celular para mim, mostrando uma foto de um auditório
enorme e lotado. No palco, sentado, estava Arnaud, muito elegante, de
terno e pernas cruzadas, segurando um microfone.
— Foi essa palestra. Ele é um repórter investigativo famosíssimo.
Estava falando sobre o último livro dele, que investigou e denunciou um
crime ambiental tenebroso numa cidadezinha da França. De uma
mineradora que poluiu um lago. Ganhou horrores de prêmios. Nico, eu acho
que ele tá aqui pra...
— Allons-y! Vamos?! — exclamou Arnaud, descendo a rampa do
barco para o píer.
Tínhamos que nos apressar para não sermos pegos pela chuva. Nos
despedimos rapidamente de Inara, que estava hospedada numa pousada ali
no centro com alguns amigos. Quando Arnaud percebeu minha cara
ansiosa, falei que estava preocupado com a chuva. Corremos até a loja do
pai de Elisa, onde havíamos guardado nossas bicicletas.
— Tem certeza de que estamos na ilha certa? — comentou Arnaud.
Em dias como aquele, a ilha realmente parecia outra. As cores vibrantes e
quentes sumiam junto com os moradores e turistas, escondidos em suas
tocas. As ruas, antes com aquela brisa quente, porém fresca, do mar, e
aquecidas pelo sol que pairava amarelo sobre nós, estavam engolidas por
uma penumbra fria e úmida. O silêncio, quebrado apenas pelos distantes
trovões, era o mais desconcertante.
Fiquei o caminho inteiro pensando no que Rebeca dissera. Como
assim, ele era um repórter e tinha um livro publicado e premiado? Por que
ele nunca me dissera isso antes? Eu repassava na cabeça tudo que minha
amiga havia dito e tentava raciocinar explicações. Talvez ele estivesse
fazendo uma matéria secreta ali, investigando vai saber o quê. Talvez ele
estivesse de férias e não quisesse falar sobre o trabalho. Talvez ele estivesse
escrevendo um livro documental sobre sua experiência de atravessar o
oceano e ir até uma ilha iludir um habitante idiota só para fodê-lo durante o
verão e ir embora com a satisfação de ter mais um território conquistado.
Elisa nos recebeu na loja, nos cumprimentando de uma maneira tão
fria quanto o clima daquela manhã, e dando um rápido aceno para Arnaud.
— Fiquem aqui até a tempestade passar. Não é seguro ir agora —
alertou-nos, ao nos entregar as bicicletas que estavam guardadas nos fundos
da loja.
— Temos que ir, senão minha mãe vai nos matar. Vamos rápido —
falei, dando um beijo rápido em sua bochecha, do qual ela quase se
esquivou.
— Nico — ela sussurrou, segurando meu pulso enquanto minha
cabeça ainda estava próxima à sua. — Precisamos conversar. Pessoalmente.
Me ligue quando a tempestade passar.
Seu tom me dizia que aquela não era uma conversa casual ou
agradável, o que me deixou nervoso. De todo modo, “precisamos
conversar” era uma frase que sempre me deixava nervoso. Saí de lá com o
coração na mão, perguntando-me o que ela queria conversar. Ela sabia
sobre Arnaud? Estava com ciúmes? Estava grávida? Que desgraça seria
dessa vez? Arnaud havia escutado ela falar aquilo? Queria voltar, segurá-la
pelo braço e implorar para que ela me dissesse logo o conteúdo daquela
conversa, não me importava se a tempestade nos pegasse e nos levasse. Mas
eu não estava sozinho.
Pedalamos depressa, Rebeca gritando, olhando para trás, na direção
da nuvem que se aproximava, e fazendo caras e bocas, fingindo estar em
um filme de aventura, perseguida por um furacão ou um monstro gigante.
Eu e Arnaud ríamos sem parar, quase perdendo o controle da bicicleta
diversas vezes.
— Acho que você realmente deveria largar jornalismo e fazer teatro!
— gritei, aplaudindo sua atuação. Eu amava aquela boba, só ela para me
fazer esquecer todas as minhas aflições e rir num momento como aquele.
A nuvem escura da tempestade estava quase acima de nós, restando
apenas uma pequena porção de céu claro à nossa frente. Parecíamos estar
correndo em direção à salvação. Ainda não chovia, mas o ar estava tão
úmido que nossos rostos estavam molhados. Estava frio, mas o esforço para
pedalar nos mantinha aquecidos.
— Não me procurem amanhã, estarei curtindo minha pneumonia! E,
Nico, tome cuidado! — gritou Rebeca, se despedindo, quando alcançamos a
entrada da sua casa, por onde ela entrou, enquanto eu e Arnaud
continuamos nosso caminho esburacado.

Quando chegamos, meu pai reforçava as janelas com tábuas de


madeira. A tempestade seria mais forte do que eu pensava.
​— Arnaud, pegue suas coisas e traga para a casa. Não vai dar
tempo de cobrir as janelas da pousada — falou ele, sem nem esperar que
saíssemos das bicicletas. — Nico, venha me ajudar.
Rapidamente Arnaud correu para a pousada, contornando a casa.
Larguei minha bicicleta num canto e comecei a ajudar meu pai com as
tábuas.
— Cadê minha mãe? — perguntei, espiando dentro de casa, sem
sinal da sua presença.
— Ela foi fechar a loja e achamos melhor ela ficar lá, pra não voltar
no meio da tempestade — respondeu, martelando uma tábua na parede. —
Recebemos novos hóspedes hoje. Uma família. Eles vão ficar no quarto do
seu irmão, que é maior. Coloquei colchões extras lá. Margarida vai ficar no
seu quarto.
— E eu? — perguntei, já incomodado com alguém dormindo em
meu quarto. Ao menos era Margarida. Mas bem que podia ser Arnaud. — E
Arnaud?
— Na sala, se ele não se incomodar, já que não tem espaço no meu
escritório. Já separei um colchão. Você pode ficar no sofá ou então no meu
quarto — sugeriu ele.
— O senhor ronca, vou ficar na sala mesmo.
— Tudo pronto lá em cima! — exclamou Margarida, descendo da
escada com um martelo na mão e nos interrompendo. Parecia animada com
toda aquela movimentação. E então, quando me viu, completou: — Nico!
Agora você não tem mais escapatória. Onde está seu manuscrito? Essa
chuvinha vai ser perfeita pra ler uma história nova de um jovem escritor.
Não é, Arnaud? — ela disse, olhando para ele. Arnaud ficou completamente
vermelho.
— Perdón, Margarida! — desculpei-me, sorrindo. Sentia-me
lisonjeado por ter sido chamado de escritor, e envergonhado por ter
demorado tanto para lhe dar o que ela havia pedido há tempos. — Não
esqueço mais. Assim que terminarmos, imprimo e deixo em cima da minha
mesa.
— E depois quero falar com você, Nico — falou meu pai, por cima
dos óculos. E eu suspirei fundo. As pessoas estavam querendo ter conversas
demais. E eu também. Ansiava ficar a sós com Arnaud porque tinha muitas
coisas para perguntar a ele.

Arnaud voltou com uma criança nos braços, de cerca de quatro anos,
com cabelinhos encaracolados presos acima da cabeça com uma fita
amarela. Entraram pela porta que dava acesso à piscina, os dois
gargalhando, apesar de estarem ensopados pela chuva e tremendo de frio,
como se rissem da piada mais engraçada do mundo. Onde ele tinha
arranjado aquela criança?
Atrás deles, dois adultos, em seus quarenta anos, entraram
carregando malas, pingando água no piso. Os novos hóspedes que meu pai
havia falado.
Arnaud tentou entregar a criança aos pais, mas a menina se segurou
no pescoço dele, para não se deixar ser levada. Todos riram e fiquei
encantado em como as pessoas eram facilmente conquistadas por Arnaud,
até crianças que mal sabiam falar.
— Deixe o moço ir buscar as coisas dele, Ysla! — exclamou a mãe
da menina, desvencilhando-a dos braços de Arnaud, que rapidamente saiu
pela porta e correu até a pousada para buscar seus pertences.
Apresentei-me à família e os ajudei a se instalarem no quarto do
meu irmão, logo após se secarem.
— Uma pena que chegaram aqui logo durante a tempestade! Com
sorte, ela passa logo — falei, tranquilizando-os.
Imprimi minha história para Margarida ler e desci as escadas até a
sala, onde encontrei Arnaud tirando a camisa e enxugando-se com uma
toalha. Meu pai estava presente, então tentei, o máximo que pude, não
olhar.
— Tenho más notícias — disse meu pai, colocando o martelo de
lado. — A dona da casa não está aqui e eu sou um péssimo cozinheiro.
— Pode deixar comigo — rebateu Arnaud. Seu braço erguido e
dobrado esfregava a toalha nos cabelos, que eram uma confusão que mais
parecia um mar ressacado. O desgraçado sorria com aquele sorriso
galanteador e eu quase quis tomar a toalha de suas mãos e enxugá-lo eu
mesmo, passando a mão sobre seus bíceps, axilas, enxugando os pelos do
peito e descendo, descendo... — Sei a receita parfaite para esse dia de
chuva.

Sentei-me à mesa, fingindo estar entediado, como se não tivesse


mais nada para fazer, lendo um livro que não passei de uma página. Na
verdade, eu observava Arnaud cozinhar, seus movimentos precisos e
graciosos, desvendando armários, retirando panelas e abrindo embalagens.
Não o ajudei, ele falou que preferia trabalhar sozinho, que o meu trabalho
apenas seria comer o que ele havia feito para mim. Observei-o descascar as
batatas, fatiar o bacon, seu olhar focado como quando ele guiava o barco, o
cenho franzido, o vinco entre as sobrancelhas, o olhar sério e penetrante.
O cheiro da cebola refogada fez meu estômago protestar, eu estava
faminto, quis abraçá-lo por trás enquanto ele se abaixava para pôr a travessa
no forno e beijar a sua nuca, mas meu pai estava por perto. Apenas mordi o
lábio, tentado, excitado, Arnaud estava finalmente fazendo aquela tartiflette
que prometera há tanto tempo.
Comidas quentes e gordurosas eram perfeitas para dias como
aquele, frio e chuvoso. Todos estávamos ávidos para comer, torturados por
aquele cheiro delicioso que invadia a casa selada. Meu pai se sentou ao meu
lado, e Arnaud do outro. Depois dele, a pequena Ysla, fazendo uma
bagunça ao redor do prato. A primeira garfada foi como entrar no paraíso,
queijo, batata e bacon derretendo na minha boca, que salivava como quando
eu me deliciava com Arnaud.
Embaixo da mesa, senti seu pé acariciar o meu, um movimento
ousado, de rebeldia, criminoso, bem ali em frente a uma família, em frente a
meu pai, um ato de companheirismo e afeto, seu pé descalço sobre o meu.
Curvei-me para pegar a salada do mesmo modo que um dia ele havia feito,
deixando meu braço roçar sobre o dele, deixando nossas peles se tocarem,
desafiando meu pai a ver aquilo, a perceber o meu movimento ousado e
sem vergonha, o desafiando a ver os sinais, os olhares, os toques, os beijos
indiretos, será que ele percebia que eu e Arnaud tínhamos um só cheiro?
Depois de comermos, enquanto tirávamos os pratos da mesa, meu
pai teve a conversa que queria comigo. Por sorte, ele era um homem de
poucas palavras e não tinha jeito para recriminar ou brigar. Apenas limitou-
se a dizer que eu não deveria sair sem dizer para onde ia, especialmente se
íamos para o mar, e que os deixamos bastante preocupados no dia anterior.
Falou que eu tinha que assumir minhas responsabilidades ali na pousada, e
que eu deveria parar de encarar a vida como se fosse grandes férias eternas.
Arnaud apressou-se em assumir a culpa, desculpando-se, falando que ele
insistira no passeio e que eu acabei não tendo tempo de avisar. Defendi-o, é
claro, mas meu pai acabou encerrando a conversa falando que não
importava de quem era a culpa, contanto que não fizéssemos mais isso.

Passamos o resto do dia alternando entre a sala e a cozinha, sem ter


muito o que fazer. O sinal da televisão estava péssimo, o da internet pior
ainda, devido à tempestade. A energia caía vez ou outra, então ocupamos
nosso tempo com jogos de tabuleiro e cartas. Apesar de desejar ficar a sós
com Arnaud, foi interessante observá-lo em meio aos outros, ouvi-lo contar
piadas francesas sem graça, brincar com a criança, contar causos de sua
vida. Vi meu pai rir, uma raridade. Ele era, realmente, encantador. Talvez
fosse uma exigência de sua profissão: um maldito repórter disfarçado
precisava enganar bem as pessoas. Margarida falou sobre o livro que estava
escrevendo, e os pais de Ysla falaram que aquelas eram as primeiras férias
que tiravam depois do nascimento da menina. Perguntaram a Arnaud se ele
era casado ou tinha namorada, ele respondeu que era viúvo, e, percebendo o
desconforto dele, não insistiram mais no assunto.
Meu pai tentou ligar três ou quatro vezes para minha mãe, para se
certificar de que ela estava bem, mas não conseguiu, os telefones estavam
cortados. No meio da noite, a energia acabou mais uma vez, e todo mundo
se retirou para seus quartos. Margarida subiu, falando que ia passar a
madrugada lendo o meu livro com o auxílio de uma lanterna. Meu pai,
cambaleando após algumas taças de vinho, subiu para o quarto,
provavelmente acordaria na metade do dia seguinte. Sorte da minha mãe
que não estava ali para dormir ao seu lado. Ele roncava tão alto quando
bebia que eu podia escutar do meu quarto. Ysla já dormia há tempos
quando seus pais subiram, a mãe carregando-a nos braços.
​Estávamos finalmente a sós, eu e Arnaud, na sala, o barulho do
vento soprando as árvores lá fora, a chuva chocando-se contra o telhado da
casa e a água da piscina, a luz das velas tremeluzindo em nossos rostos.
Estávamos sentados no sofá, em lados opostos, meus pés sobre suas pernas.
Massageava-os, de leve, uma massagem que mais parecia carinho.
​— Margarida deve estar lendo minha história. Espero que ela
goste — falei, quebrando o silêncio que nos aconchegava. Eu tentava
chegar num assunto.
​— Pelo menos ela teve a sorte de ler algo seu. Diferente de outras
pessoas que não têm a mesma sorte — disse, semicerrando os olhos
teatralmente.
​— Não seja dramático — falei, rindo de sua encenação. — E se
ela não gostar?
​— Tenho certeza que vai. Não seja dramático — sentenciou. — E
já ia me esquecendo! — exclamou alguns segundos depois, largando meu
pé e se levantando. Parecia procurar alguma coisa.
​— O quê? — perguntei.
​— Ton cadeau — respondeu, revirando sua mala e, finalmente,
retirando uma caixa embrulhada com um papel de presente azul. — Seu
presente.
​Eu havia completamente esquecido daquele presente, pois o que
ele já havia me dado era melhor do que qualquer presente. De todo modo,
empolgado, abri o embrulho, revelando um livro de fotografias. O Mar, era
o título. Arnaud me olhava com curiosidade, os olhos brilhando e um meio
sorriso.
​— Uau — falei, imitando o seu sotaque, e ele riu.
​— Já que você não gosta de ir para o mar, eu trouxe o mar para
você — falou, mal sabendo que ele já havia trazido o mar até mim.
​Acomodei-me em seu colchão, que meu pai havia colocado no
canto de uma parede. Sentei com minhas costas na parede e as pernas
esticadas e abertas para lhe dar espaço, onde ele se acomodou, deitando
entre minhas pernas, a cabeça sobre meu peito, e, com os braços em torno
dos dele, apoiei o livro em sua barriga. Assim poderíamos ver o livro
juntos.
​ ram fotografias do mar, belíssimas, tiradas por um velejador que
E
havia dado uma volta no mundo alguns anos atrás. Havia feito o lançamento
naquele evento antes do meu aniversário, que Arnaud comparecera e me
fizera esperar aquela espera que parecia sem fim. Estava autografado. As
imagens eram de uma calma tão grande que chegava a ser contagiante. Tons
de azul, de verde, de branco, as cores de Arnaud. Águas calmas, paradas,
ondas, chuva, névoa, gelo, água em todos os seus estados físicos. O
horizonte sempre ali presente, marcante, indicando a grandiosidade do
oceano, do planeta, um espaço que parecia nunca acabar. As imagens
transmitiam a tranquilidade e o silêncio dos mares e ali, olhando aquelas
fotos com Arnaud deitado sobre mim, sua cabeça movendo-se junto com
minha respiração, como o movimento de um barco, senti como se eu
estivesse sozinho com ele no meio do mar.
Quando terminamos de ver as fotos e fechei o livro, Arnaud virou o
rosto para cima e me olhou com uma intensidade de mar tempestuoso, e eu
soube o que ele queria. Mal tive tempo de responder, com o olhar, que
queria também, quando ele se levantou e puxou minhas pernas em sua
direção, para me deitar completamente no colchão, colocado ali para ele
dormir. Mas Arnaud não queria dormir, muito menos eu, estávamos
despertos, tão elétricos quanto aqueles raios que despencavam das nuvens
em fúria, chocando-se contra o solo com força, do mesmo modo que eu e
Arnaud nos chocamos, um calor tão intenso que transformava areia em
vidro.
​Eu e Arnaud naquela noite éramos fulguritos, filhos do trovão,
vidro esculpido na areia, éramos praia em tempestade, ele me esculpiu com
suas descargas elétricas, e eu o esculpi com meus trovões e enxurradas. A
sala, abafada com nosso calor, respiração pesada e ofegante, era uma nuvem
negra de chuva prestes a precipitar, uma caldeira de vulcão prestes a
transbordar. Até o cheiro de mar agitado estava ali, ondas de vendaval, areia
molhada, gozo, suor, saliva. Nossos gemidos abafados com mordidas nos
cobertores eram como os trovões que sucedem os raios e o barulho do meu
corpo se chocando contra o dele era o mar quebrando-se nos recifes.

​ erminamos deitados no colchão, exaustos, suados, hidratados


T
por uma metade de garrafa de vinho que havia sobrado do jantar, a cabeça
de Arnaud apoiada sobre minha barriga, subindo e descendo no ritmo de
minha respiração, que ainda era ofegante, sua barba umedecida de suor e
saliva roçando em minha pele. As velas já haviam apagado, talvez com o
deslocamento de ar dos nossos movimentos, ou talvez haviam queimado
completamente, tão quentes quanto a gente, e a chuva lá fora persistia, a
tempestade em seu ápice de violência.
​Olhei para ele, estava com os olhos fechados, sereno, sua
respiração lenta. Perguntei-me o que ele pensava, o que passava naquela
cabeça tão misteriosa, queria saber o que ele pensava sobre aquilo tudo,
sobre aquele verão, sobre nós, sobre mim. Apesar de conhecer seus gostos,
musicais, culinários e literários, conhecer seu corpo e suas capacidades
físicas, eu não sabia muito mais sobre ele. Arnaud, para mim, ainda parecia
um desconhecido, um velejador misterioso, eu não sabia nada sobre seu
trabalho, sua família, amigos, cidade, enquanto ele estava ali, deitado nu na
minha sala, logo abaixo do quarto dos meus pais.
​— Você sabe tudo sobre minha vida — falei. Ele estava deitado
de bruços ao meu lado, e eu, com a ponta de dois dedos, descia a curva das
suas costas, como um esquiador descendo uma ladeira, passando por uma
grande depressão, a sua lombar, e subindo os dois cumes gêmeos. — E
parece que eu não sei nada sobre você.
​— Sou um livro aberto — respondeu, virando o corpo e abrindo
os braços, para eu ler suas folhas. — O que quer saber?
Meu coração disparou.
​— Me fale sobre sua infância. Juventude. Vida adulta. Tudo.
​— Vou terminar cansando você de tanto falar.
— Até parece. Quero te ouvir. Pode falar a noite inteira.
Ele suspirou fundo e começou a falar:
— Nasci numa cidadezinha muito menor que essa, no norte da
França, mal tinha mil habitantes, a cidade tinha apenas dois prédios
comerciais, uma quitanda e uma boulangerie, uma padariazinha, que era do
meu pai — falou, e eu imaginei um pequeno Arnaud de cabelos loiros
bagunçados correndo pela cozinha com um pedaço de pão e todo sujo de
farinha. — Minha mãe trabalhava fazendo merenda na escola da cidade
vizinha, e foi com ela que aprendi a receita de tartiflette, muito embora o
meu não chegue aos pés do dela. Eu ocupava meu tempo na rua brincando
com os meninos, ou sentado em algum canto da padaria do meu pai,
desenhando, pintando. Meu sonho era ser artista. Quando cresci, queria
estudar Belas Artes no Museu do Louvre. Mas meu pai já era velho, eu era
filho único, e ele queria que eu ficasse com a padaria quando ele se
aposentasse. Então, ainda bem novo e com jeito de menino do interior, fui
pra Paris estudar contabilidade.
— Contabilidade?! — exclamei. Aquilo era a última coisa que eu
esperava de Arnaud.
— Não é muito minha cara, né? — falou, rindo com minha cara de
espanto. — Só me dei por gente quando fui morar em Paris. Lá, digamos,
tive uma vida mais agitada. Meus pais sempre me visitavam naquele tempo.
Quando me formei e voltei pra minha cidade, descobri que a padaria do
meu pai tinha falido há mais de um ano, e eles esconderam aquilo de mim
pra eu não largar a faculdade e decidir fazer artes. Fiquei furioso por ter
desperdiçado todo aquele tempo, queria ir embora pro lugar mais longe dali,
estava de saco cheio daquela cidade. Consegui trabalho em Marseille, no
sul da França, em frente ao mar. Era um escritório de contabilidade. Odiava,
mas eu precisava me sustentar. Tempos depois meus pais morreram num
acidente de carro, indo me visitar.
— Meu deus. Sinto muito — murmurei, em choque. No fundo
daquele mar revolto dos olhos de Arnaud havia tristeza e dor, e aquilo
partiu meu coração. Queria abraçá-lo, queria compensar toda a perda que
ele havia tido na vida, queria dizer que ele jamais me perderia. Ao mesmo
tempo senti-me impotente, pois não achava que seria capaz de preencher
aquele buraco que havia no seu coração.
— Nunca mais voltei pra minha cidade — continuou, olhando para
o teto, com os braços dobrados atrás da cabeça. Minha mão estava pousada
no seu peito e eu escutava atento. Nunca antes ele tinha falado tanto. —
Vivi enfurnado naquele escritório, não queria saber de mais nada na vida,
sentia que ela tinha sido desperdiçada e nada valia mais a pena. Então
conheci Jérôme, um cliente, ele tinha uma locadora de barcos e fiquei
responsável por administrar sua conta. Acabamos ficando próximos, e,
quando menos esperava, je suis tombé amoureux. Me apaixonei. Jérôme me
tirou daquele escritório, me fez ver o mundo, o mar, me divertiu, me amou.
Nos casamos três anos depois. Voltei a desenhar, e ele me empolgou na
ideia de voltar à universidade, estudar artes como sempre quis. Ele tinha
uma ideia louca, eu me formaria e iríamos, de barco, atravessar o oceano,
sozinhos, nós dois, e eu faria uma série de pinturas sobre o mar. Acabei me
empolgando pela ideia, estava ansioso para entrar no barco e passar meses
sozinho com ele. Mas então ele adoeceu. Ele se foi tão rápido quanto a
doença apareceu. E eu nunca voltei para a universidade, parei de desenhar,
nunca atravessamos o oceano.
— Você não precisa falar sobre isso, se não quiser — interrompi,
preocupado, sentindo que aquilo era doloroso demais para ele relembrar,
arrependido por ter invocado o assunto.
— Tudo bem. Você me faz sentir bem — ele disse, me fazendo um
cafuné. — Antes de morrer, ele me fez prometer que eu continuaria minha
vida e que velejaria pelos mares, mesmo sem ele. De início, recusei, não
queria fazer aquilo sozinho. Mas os anos seguintes à morte dele foram tão
duros que, uma hora, eu achei que precisava, pra deixá-lo ir e pra ficar
longe de tudo e de todos. Precisava ficar sozinho. Fiz curso e treinei velejo
por quase um ano. Nos mares, eu estava sozinho, mas nunca me senti mal,
como se eu o tivesse libertado e pudesse seguir sem ele, sem sentir a sua
falta, que tanto me atormentara. E aqui estou eu. Quando te conheci, senti
que Jérôme estava certo aquele tempo todo, eu precisava ter feito isso pra
seguir minha vida. Ele me conhecia e sabia que eu ia precisar disso quando
partisse. Quando saímos naquele primeiro dia, eu e você, depois da capela,
eu voltei a desenhar. Você me fez sorrir depois de não sei quanto tempo. E,
apesar de, no início, te achar jovem demais, apesar das torturas psicológicas
que você fez comigo — falou, mimetizando um olhar acusatório — vi o
quão especial você é, Nico... — Ele então me puxou para perto de si e me
roubou um beijo. Eu nunca tinha ficado tão feliz em ser roubado.
Ele de repente ficou sério. Nervoso, pálido. Agarrou as minhas
mãos, trêmulo. Seu nervosismo me contaminou, e senti vontade de vomitar.
— O que foi? — perguntei.
— Eu preciso te falar uma coisa.
— Eu sei — falei.
— Você sabe? — ele perguntou, as sobrancelhas tensas.
— Eu sei que você está escondendo algo. Eu só... eu só preciso
saber por quê.
Falar aquilo doeu, e eu precisei apertar os olhos para impedir que as
lágrimas rolassem. Sentia que algo muito bom estava perto do fim.
— Quando eu trabalhava naquela empresa de contabilidade, quando
conheci Jérôme, eu e ele percebemos algo estranho. Algo não batia nos
números da conta dele. Já estávamos muito próximos, e eu decidi investigar
isso mais a fundo sozinho. Foi quando descobri um esquema fraudulento de
desvio de dinheiro na empresa onde eu trabalhava, envolvendo políticos.
Escrevi uma matéria anônima para um jornal e me demiti. Esse caso
estourou na mídia naquela época e os diretores da empresa foram
demitidos, e os políticos, cassados. Acontece que o editor do jornal gostou
muito do que eu escrevi, e me ofereceu um emprego. Eu tava desempregado
e aceitei.
— Foi assim que você se tornou repórter.
— Então você já sabia? Caramba, estou me sentindo muito mal.
Balancei a cabeça.
— Imagino que tenha seus motivos para não ter falado.
— Eu fiz algumas matérias para o jornal, ainda — ele continuou. —
Eles gostavam dos meus textos de denúncias. Mas nunca fiz nada que
chamasse muita atenção. Até que Jérôme ficou doente. Descobrimos que
estavam contaminando o lago onde ele nadava. A prefeitura tinha feito uma
licitação fraudulenta com uma empresa estrangeira de mineração. A
empresa pagava a prefeitura, a prefeitura fazia estudos falsos que garantiam
a segurança da água, e todos eles saíam ganhando. Eu escrevi várias
matérias sobre isso. Sempre escrevi sob um pseudônimo, ninguém conhecia
meu rosto, pois eu podia ser morto por conta disso. Desmascarei tudo, o
prefeito foi preso, a fábrica, fechada, mas nem tudo são flores. Jérôme
estava morto e a empresa de monitoramento conseguiu se safar com uma
brecha nas leis internacionais. Escrevi um livro contando tudo, e ganhei um
monte de prêmios que nunca significaram nada pra mim. Eu não contei isso
antes pra você, Nico, porque essa mineradora está aqui nessa ilha. Eles têm
um novo nome, uma nova fachada, e um contrato obscuro com o seu
prefeito. Eu estou aqui para destruí-los de vez. — Ele se aproximou de mim
e segurou meu rosto. Meu coração parecia que ia explodir, de tão forte que
batia. Pensei naqueles hóspedes, Oliver e Bruno, e na empresa onde eles
trabalhavam. — Isso é perigoso. Esse trabalho é perigoso, para mim e para
quem estiver junto de mim. Eu não quero te colocar em perigo. Por isso eu
não falei. Antes, eu achava que seu pai estava envolvido de alguma forma,
por conta daqueles dois funcionários da empresa que se hospedaram aqui.
Fiquei longe, observando tudo, mas aí você se ofereceu pra ir naquele
acampamento com eles, sozinho. Eu não podia deixar, podia ser perigoso.
Arrisquei meu disfarce, porque eles podiam me reconhecer. Sorte que não.
Mas eu arrisquei você. Não queria me aproximar demais. Mas é difícil,
Nico, não me aproximar de você. Você é... magnético.
Só então, deitado sobre o peito de Arnaud, escutando apenas sua
respiração e batimentos cardíacos, sentindo-me satisfeito por finalmente
conhecê-lo até a sua mais profunda dor, sabendo que eu era tão magnético
para ele quanto ele era para mim, percebi que a tempestade havia passado.
Lá fora o silêncio reinava, não havia vento, chuva ou pássaros. Eu não fazia
a menor ideia de quanto tempo havia passado quando a energia elétrica
voltou, acendendo as luzes e a televisão da sala, quase me matando do
coração, num susto. Antes que alguém descesse as escadas e nos
encontrasse deitados um sobre o outro, sem roupa, num colchão no meio da
sala, nos vestimos. Foi quando olhei pela primeira vez para a televisão e,
para minha surpresa, vi que estava passando o jornal matutino local.
— Já é manhã?! — exclamei. As janelas estavam bloqueadas de
uma maneira que não permitia o sol passar. — Não acredito que não
dormimos.
aEstava me virando para beijá-lo quando, de relance, vi imagens na
televisão que chamaram minha atenção.
No rodapé, a mensagem TEMPESTADE DEIXA RASTRO DE
MORTE E DESTRUIÇÃO EM ARQUIPÉLAGO passava freneticamente,
enquanto um repórter, vestindo galochas e uma capa de chuva amarela,
caminhava por uma rua do centro da cidade tomada por lama, árvores
contorcidas, placas jogadas pela pista e vitrines quebradas. Uma delas havia
sido atingida por um enorme tronco de árvore, que havia retorcido a grade
de ferro e quebrado o vidro, entrando na loja.
Reconheci imediatamente o lugar e meu coração gelou. Era a loja da
minha mãe.
19 ✹ A MISSA

A
rnaud deve ter percebido o quanto eu empalideci vendo as imagens da
loja destruída da minha mãe, pois na hora ele se colocou na frente da
TV, bloqueando a visão, e segurou as minhas mãos trêmulas e
geladas. As dele estavam firmes e quentes. Aquele seu toque me puxou de
volta à realidade, pois na mente eu já perambulava em cenários de tragédia.
Lembrava da história que Arnaud havia me contado, e que tanto me
impressionara, sobre seus pais mortos, sobre como ele ficara desolado e
sozinho no mundo. Imaginei como eu ficaria sem a minha mãe, como eu e
meu pai ficaríamos. Ela era rígida, dura, às vezes cruel, mas era a alma
daquela casa. Ela nos colocava nos eixos, ela que tinha o domínio da
palavra. Minha mãe era a força que nos unia, que fazia com que fôssemos
uma família, que nossa casa fosse um lar. O que seria de mim? O que seria
de Arnaud? Ele estava bem ali na minha frente, me segurando, olhando em
meus olhos, me acalmando. Quando ele falou que estava tudo bem, eu
acreditei.
— Os telefones ainda não voltaram — exclamou meu pai, que se
juntara a nós, na sala, parecendo prestes a ter um infarto, enquanto tentava,
pela milésima vez, ligar para a esposa.
— Vamos até lá. Ela deve estar bem — falou Arnaud, calmo, como
se ele tivesse controle sobre toda a situação. Colocou a mão sobre o ombro
do meu pai, que pareceu se tranquilizar imediatamente. Era esse o efeito
que Arnaud tinha nas pessoas.
O telhado da garagem havia sido entortado pelo vento, mas a
caminhonete estava bem, apenas coberta por folhas. Margarida e o casal se
ofereceram para verificar a situação da pousada e saímos eu, meu pai e
Arnaud. Como a carroceria do veículo estava molhada, fomos todos dentro
da cabine, apertados, meu pai dirigindo, minha coxa completamente colada
à de Arnaud, ombro contra ombro, meu pé encostado no dele.
Demos uma passada rápida na casa ao lado para verificar se estava
tudo bem com Rebeca e dona Kazuko. Estavam, apesar do susto. A casa
também estava inteira, apenas algumas telhas foram arrancadas, e meu pai
prometera passar lá mais tarde para ajeitar. Rebeca se ofereceu para ir com
a gente, e, devido à falta de espaço, eu tive que ir na carroceria. Não queria,
é claro, preferia ir no aperto, aconchegado pelo corpo de Arnaud, mas fui
obrigado por meu pai a ceder o espaço para a mocinha.
Apesar de ainda estar um pouco frio e úmido, as nuvens já haviam
deixado o céu, que estava completamente azul. Se não fosse pelo caminho
esburacado cheio de lama e pelos galhos de árvore caídos no meio da rua,
seria impossível dizer que uma tempestade havia acabado de passar por ali.

O centro da cidade estava um caos. Havia lama por todo lado,


árvores caídas, janelas quebradas, gente lavando as calçadas e terraços. Vi
duas ou três ambulâncias que nem sabia que existiam ali na ilha. Homens
da prefeitura consertavam fiações elétricas aqui e acolá. Quando chegamos
na loja da minha mãe, lá estava ela, tirando a lama do prédio com um balde
e jogando na rua. Seu funcionário a ajudava, varrendo os cacos de vidro da
vitrine quebrada. O tronco de árvore que eu havia visto na televisão tinha
sido serrado por bombeiros e esperava na calçada para ser levado embora.
Quando nos viu, ela largou o balde e correu, deu um beijo no meu
pai, me abraçou e cumprimentou Rebeca e Arnaud.
— Que bom que estão bem! Fiquei tão preocupada! — exclamou.
— Você ficou preocupada?! Vi na televisão uma árvore enfiada na
loja! — retrucou meu pai.
— Nem me fale, as roupas estão todas sujas. Mas quando a árvore
caiu, eu estava no banheiro. Passei o resto da tempestade lá trancada, no
escuro. Um horror. Dormi sentada na privada.
— Pelo menos você dormiu — falou Arnaud, dobrando os braços e,
“acidentalmente”, esbarrando o cotovelo em mim. — A tempestade me
manteve acordado.
Parecia que todos da cidade estavam ali ajudando uns aos outros:
galhos sendo amontoados para serem coletados, vidros recolhidos, calçadas
e lojas lavadas, éramos uma comunidade. A energia caía e voltava o tempo
inteiro e, quando voltava, podia-se ouvir um grito de comemoração
coletivo. Na nossa ilha encontraram três pessoas mortas afogadas perto do
rio, possivelmente alguém pego de surpresa enquanto fazia trilha. Na Ilha
Grande dois turistas foram eletrocutados por um raio enquanto tomavam
banho na piscina e morreram. Além disso, três pessoas estavam
desaparecidas. Dois alpinistas que no momento da tempestade estavam
subindo uma montanha da nossa ilha, e um pescador que ignorara os alertas
da Guarda Costeira.
— Preciso ver se meu barco está inteiro — falou Arnaud, quando
terminamos de limpar a loja da minha mãe. Ofereci-me para ir com ele, no
fundo da minha alma desejando que o barco estivesse completamente
destruído.
Rebeca foi conosco, queria encontrar Inara, já que sua pousada
ficava no meio do caminho. Inara estava bem, exceto por uma goteira que
havia molhado sua cama durante a noite, obrigando-a a dormir no hall da
pousada. O barco de Arnaud também estava inteiro, a marina era preparada
para aquele tipo de situação. Exceto por alguns barcos que se chocaram um
contra o outro e arranharam a pintura, estava tudo bem. Não era assim que
eu ia prender Arnaud naquela ilha.
O rio estava escuro com a correnteza, devido à chuva, cheio de lixo.
Estávamos voltando quando nos encontramos com Elisa, sentada na calçada
da sua casa, descansando, toda suja de lama.
Demos um aceno rápido e continuamos a andar, quando ela gritou:
— Ei, Nico, vem cá!
Falei para eles continuarem indo e que os encontraria depois, e
atravessei a ruela para falar com Elisa. Teríamos finalmente aquela
conversa que ela havia falado no dia anterior? Minha barriga agitou-se, meu
estômago emaranhando-se em minhas entranhas, temendo o que ela poderia
falar.
— Tá tudo bem? — perguntei, após beijar sua bochecha e me sentar
ao lado dela na calçada. Por favor, esteja tudo bem.
— Só cansada — ela respondeu, num tom que me deixou em dúvida
se estava cansada de trabalhar limpando a loja ou de algo a mais. — Pelo
menos não tenho que aguentar isso por muito tempo.
— Como assim?
— Vou embora — falou, e, vendo minha cara de confusão,
completou: — da ilha.
— O quê?! Pra onde? — exclamei, levantando-me. Como assim, ela
ia embora da ilha? Aquilo atingiu-me como um baque, um golpe surpresa
que eu não esperava. Para mim, a ilha era um paraíso estático, onde nada
mudaria, onde tudo sempre continuaria perfeito. E Elisa jamais deixaria
aquele lugar. Ela, assim como eu, assim como a minha família, como todos
os meus amigos e, agora, também Arnaud, todos fazíamos parte daquela
paisagem. E a ideia de alguém deixar aquela ilha não fazia sentido em
minha cabeça. Afinal, havia mais além disso? Seria possível a existência de
um lugar melhor do que o próprio paraíso?
— Pra qualquer lugar fora desse arquipélago. Vou com o velejador,
aquele que você viu na praia comigo. Daqui a alguns dias.
— Elisa, você está louca? — Eu não conseguia acreditar que ela
fosse capaz de fazer aquilo. Não Elisa, a nossa rainha da praia, que
encantava os meninos e era apaixonada pela ilha. — Seus pais sabem disso?
— Não, não sabem, ninguém sabe — retrucou, levantando-se e
ficando de frente para mim. Cruzou os braços, impaciente. — Só estou te
contando porque achei que você, antes de qualquer pessoa, fosse me
entender.
— Por que você acha isso? — perguntei, franzindo o cenho. Por que
eu, antes de qualquer pessoa, entenderia? Não, eu não entendia por que ela
ia embora com um desconhecido.
— Por causa de Arnaud — respondeu, como se fosse óbvio.
— O que tem ele? — Desviei o olhar. De uma hora para outra,
aquilo tudo tomou um aspecto real. Como se até então, quando o meu
relacionamento com Arnaud era só nosso, quando ninguém sabia sobre nós,
ou quando eu achava que ninguém sabia, isso tudo parecia um sonho, uma
fantasia, algo bom demais para ser realidade. Era algo do meu imaginário,
perfeito, que poderia durar até onde eu quisesse, pois era só meu. Mas
admitindo para alguém, sendo descoberto, revelado, a nossa relação era
real, palpável, e, por pertencer àquele mundo físico, ela tinha um prazo de
validade. Os dias iam passar e ele ia embora.
— Nico, eu não sou idiota. Já reparei como você olha pra ele, como
você se comporta quando está com ele — disse, colocando as mãos em
meus ombros, para que eu a olhasse. Obedeci, e ela me olhava com um
sorriso aconchegante, genuíno, orgulhosa de mim. — Parece que tem um
brilho em você, você está mais feliz, como se finalmente tivesse descoberto
quem realmente é. E estou feliz por você. Espero que um dia alguém tenha
esse efeito em mim.
Encarei-a por alguns segundos, tentando assimilar o que ela havia
acabado de falar. Então eu não brilhava sob aquele sol antes? Eu não era
feliz? Eu não sabia quem eu era? Talvez ela estivesse certa, pois eu nunca
tinha me sentido tão completo como naquele verão. E só naquele momento
eu percebia aquilo. E também percebia que Elisa, assim como eu, também
não estava completa.
— E o seu velejador? — indaguei.
— Ele é um idiota — respondeu, dando de ombros, num sorriso de
escárnio. — Só o estou usando para dar o fora daqui. No continente eu
tomarei meu rumo e ele, o dele.
— Não sabia que tu queria tanto sair daqui — falei, ou melhor,
lamentei, numa mistura de surpresa e decepção. Claro que eu queria que ela
buscasse sua felicidade, mas aquilo havia sido um choque de realidade para
mim. Como se só agora eu começasse a perceber que as coisas não estavam
tão bem como pareciam.
— Nico, vejo esses barcos partindo todo fim de verão, e passo o
resto do ano esperando que na próxima vez um deles me leve embora. Eu
me sinto presa nessa ilha, como se seu espaço reduzido limitasse quem eu
sou. Existe muito mais na vida do que esse pedacinho de terra, e eu preciso
conhecê-lo. Eu quero conhecer o mundo. Quero viver.
Assenti, calado. Não sabia o que responder. Desejei que Rebeca
estivesse ali, com certeza ela teria a resposta na ponta da língua. Talvez
Rebeca até a convencesse de que aquele plano era uma loucura. Ou talvez
não. Talvez Rebeca a motivasse ainda mais. A verdade era que Elisa estava
começando a fazer sentido na minha cabeça, eu começava a entendê-la.
Elisa havia enxergado sozinha o que somente Arnaud conseguira me
mostrar: que existia um mundo além daqueles mares que nos cercavam.
Arnaud me mostrou uma parte dele, me levou numa jornada de descobertas,
uma jornada que Elisa queria fazer sozinha. E que começava a me despertar
curiosidade, como se eu também quisesse conhecer aquele mundo que até
então me desinteressava.
Interrompendo meus pensamentos, ela se moveu, olhando para trás,
fazendo menção de se despedir. Falou que tinha trabalho a fazer. Pediu que
eu não contasse a ninguém sobre a partida dela e prometeu que se
despediria de mim antes de ir embora. Abracei-a com os olhos cheios de
água, e, quando eu já estava na metade da rua, ela exclamou:
— Quando o seu velejador for embora, duvido que você queira ficar
um segundo a mais ilhado nesse pedaço de terra!
Não consegui segurar as lágrimas ao virar a esquina. Escondi-me
atrás de uma árvore e seus galhos caídos e deixei o choro sair. Despenquei
no chão, as lágrimas fluindo dos meus olhos como cachoeiras, meu corpo
tremendo em meio aos soluços. Parecia um choro que eu vinha reprimindo
há muito tempo, como uma barragem que finalmente se rompera. Chorei
por todas as mudanças que estavam acontecendo, rápidas demais. O verão
estava acabando, Elisa ia embora, Rebeca ia embora. Arnaud ia embora. E
sabe-se lá quem mais. O que restaria de mim ali, sozinho naquela ilha
deserta, sem o sol, sem meus amigos, sem ele?

— Você está bem? — sussurrou Arnaud em meu ouvido, quando me


juntei a eles. Eu havia esperado o choro passar e enxugado as lágrimas, mas
ele havia percebido que algo estava errado. Abanei a cabeça falando que
sim, que estava tudo bem, e que não queria falar sobre aquilo. Ele apenas
assentiu e seguimos para a caminhonete. Fomos todos para a minha casa,
onde encontramos os hóspedes com a notícia de que estava tudo bem na
pousada, exceto por algumas janelas quebradas e camas molhadas.
Tivemos um almoço movimentado naquela tarde. Até Inara foi
comer conosco. Minha mãe adorou a visita, disse que estava ficando
preocupada com Rebeca, achando que ela tinha inaptidões sociais, sempre
aparecendo lá em casa sozinha, sem amigos, e, pela primeira vez, levava
alguém, Rebeca retrucou falando para ela olhar debaixo do próprio nariz,
pois tinha um filho antissocial em casa e que ela só era amiga minha por
piedade e por causa da piscina. Minha mãe rebateu falando que ela podia
então largar o almoço e ir para a piscina, no que Rebeca falou que a comida
dela também era uma boa vantagem de ser minha amiga. Todos ríamos, eu
adorava aquelas brigas fingidas entre as duas. Em um momento, quando
estavam todos distraídos, Arnaud colocou a mão em minha coxa, por baixo
da mesa, e assim ficou me acariciando durante todo o almoço.
Aquela cena, todos à mesa cheios de sorrisos, a comida quente e
gostosa, a mão de Arnaud em minha perna, ao mesmo tempo que me
alegrava, me deixava nostálgico. Nostálgico por antecedência. Dali a
algumas semanas a casa estaria vazia e silenciosa, aquela brisa fresca, mas
ao mesmo tempo quente, sumiria, a mesa farta, com peixes, frutas e
legumes se resumiria a macarrão sem gosto e requentado. Mas o mais
importante: não haveria uma mão para me acariciar. Eu sentiria falta
daquilo como se tivesse aquilo a minha vida inteira.
Haveria uma missa no final daquela tarde, e todos fomos intimados
por minha mãe a ir. Apesar de não sermos muito religiosos, meus pais vez
ou outra, praticamente uma ou duas vezes ao ano, fingiam ser bons cristãos.
Aquela missa seria especial, para receber doações para as pessoas mais
afetadas, aquelas que tinham menos condições de se recuperarem sozinhas,
especialmente os habitantes do lado leste da ilha, a vila dos pescadores,
mais pobre, onde ficava aquela minha praia secreta que eu ia com Elisa.
Depois do almoço, do banzo e da pequena sesta, cada um tirando
um pequeno cochilo em suas redes nas varandas, com aquele vento
constante com cheiro de mar, grama molhada e dos limões sicilianos do
meu pai, que surpreendentemente sobreviveram à tempestade, levando
embora o abafado da tarde, fomos nos arrumar para a missa. Estavam todos
em seus quartos trocando de roupa, Rebeca e Dona Kazuko foram para
casa, Inara acompanhando as duas, para pegar uma roupa emprestada, e eu
e Arnaud acabamos sozinhos na sala, nosso quarto temporário até a pousada
ser limpa.
— Você está lindo — falou ele, quando terminei de me vestir. Eu
estava de sapato, uma calça escura e camisa social azul clara, de mangas
compridas. Nunca tive o corpo tão coberto na frente de Arnaud.
— Vou usar mais roupas a partir de agora.
— Por favor, não — retrucou, se aproximando e abrindo o primeiro
botão, de cima, da minha camisa.
Sorri, tomado por aquele charme irresistível, seu cabelo penteado
para trás e o cheiro fresco de banho exalando do seu corpo. Eu o
obedeceria, tiraria a minha roupa ali mesmo, abrindo a camisa com um só
puxão, arrancando os botões, abaixaria a calça dele e cometeríamos pecados
antes de irmos para o templo sagrado, mas escutei passos descendo a
escada.
— Estão prontos? — Era meu pai.
Virei-me de costas, fingindo procurar alguma coisa no sofá, para
disfarçar o volume que se formara em minha calça. Os outros desceram
logo depois e saímos. No caminho, paramos na entrada da casa de Rebeca e
lá elas se juntaram a nós.
— Quando eu penso que Arnaud não pode ser mais charmoso, ele
aparece todo arrumado, ainda mais lindo — exclamou Rebeca, subindo na
carroceria da caminhonete com Inara.
Arnaud apenas riu, constrangido, pude ver sua bochecha, mesmo
parcialmente coberta por sua barba, ruborizar.
— Você também não tá de se jogar fora — falou Inara para ela, e eu
a agradeci por ter feito Rebeca passar vergonha.
Dona Kazuko, a pequena Ysla e sua mãe foram na frente, mesmo a
menina tendo protestado, aos berros, falando que queria ir com Arnô na
carroceria. O restante foi atrás, o vento bagunçando nossos cabelos, o que
não era nada grave, já que naquela ilha todo mundo tinha o cabelo
constantemente desgrenhado.

A igreja estava lotada, os fiéis subindo lentamente o morro, as


escadas, e entrando aos montes no templo. Arnaud observou a igreja
admirado, os grandes arcos subindo até o teto com detalhes esculpidos em
dourado e afrescos. A luz do sol entrava em abundância naquele espaço
amplo, destacando o azul, branco e dourado que coloriam o lugar. Os mais
velhos foram procurar lugar para se sentar mais na frente, enquanto eu e
Arnaud nos sentamos perto da entrada, onde era mais ventilado. Rebeca e
Inara nem chegaram a entrar. Rebeca esperou sua avó a perder de vista e
falou que nos esperaria sentada na escada da frente.
Quando o silêncio se instalou na igreja e o padre começou a falar,
com aquela voz monótona e arrastada, pronunciando palavras que não
significavam muita coisa para mim, o sono bateu.
— Quer sair daqui? — cochichou Arnaud em meu ouvido,
subitamente, me despertando de um cochilo. Eu provavelmente devo ter
dormido e babado em seu ombro.
Nem respondi, aquela oferta tirou minha sonolência. Arnaud
perguntando se eu queria fugir da igreja no meio da missa? Claro que
queria. Por sorte, sentamos na ponta do banco e saímos sem incomodar
ninguém.
Aproveitando que todos estavam distraídos pela missa, onde o padre
falava belas palavras de compaixão para as vítimas da tempestade, com as
quais ninguém realmente se importava, pois estavam ali apenas para fazer
cena e fofocar sobre os outros, puxei Arnaud para o lado, em direção à
entrada da torre do sino. A porta estava aberta e assim entramos. Rebeca
nos pegou no ato, e, como uma cúmplice de uma gangue a assaltar um
banco, com um sorriso de quem faz coisa errada, puxou Inara e nos imitou,
entrando na outra torre.
A escada contornava a torre, quadrada, com degraus curtos e
estreitos. Além disso, era escura, a luz entrava apenas pelo topo, a metros
de distância, então tínhamos que olhar para baixo o tempo inteiro, para não
perder os degraus, e em poucos minutos fiquei tonto. Parecia ter passado
quase meia hora quando nos aproximamos do final, ali a luz do sol entrava
com mais facilidade, o vento já uivando em nossos ouvidos. Deixei Arnaud
ir na frente, queria que ele tivesse a vista livre quando chegasse ao topo.
Queria ouvir o seu uau quando ele batesse os olhos na paisagem.
Não ouvi. Ele ficou parado no alto da escada, apenas o cabelo
mexia-se ao vento, olhando para além do sino, que pendia no meio daquela
salinha, com suas grandes janelas em arco nas quatro paredes. Aproximei-
me dele e pus a mão em seu ombro.
— Esse é o meu paraíso — falei, olhando para onde ele olhava, o
mar que nos cercava por todos os lados, a terra coberta por casas,
plantações, árvores e as montanhas majestosas e imponentes à distância.
Ele então se virou para mim, seus olhos pareciam marejados.
— Você é o meu paraíso — foi o que falou antes de segurar meu
rosto com as duas mãos e me beijar.
Se aquele era o paraíso ao qual aquelas pessoas ali embaixo, na
igreja, se referiam, para onde as boas pessoas iam após a morte, eu pediria
perdão por todos os meus pecados e me jogaria, ali mesmo, da torre do sino,
com Arnaud, em direção à eternidade da morte, para que aquele nosso
paraíso durasse para sempre. Naquele beijo eu senti amor, e amor eu
transmiti, abraçando-o enquanto nossas bocas se tocavam.
De repente, aquela paisagem não importava mais, foi banalizada por
Arnaud, que era mais bonito do que qualquer outra coisa, do que todo
aquele verde natural que se estendia pelas terras férteis, pelos tons de verde
e azul do mar, pelas montanhas rochosas. Nós, juntos, ofuscamos a própria
natureza, e para ela não tínhamos mais olhos, tudo que olhávamos era um
ao outro. Descemos as escadas sem nem dar mais uma olhada para fora,
antes que a missa terminasse e as pessoas nos vissem saindo de lá.

Quando abrimos a porta e saímos da torre, nos deparamos com


Sâmia, a filha do prefeito, que nos aguardava no alto da escadaria da igreja,
nos aplaudindo devagar e exageradamente, um meio sorriso sarcástico na
boca, como se tivesse nos visto subir na torre e aguardado todo aquele
tempo nossa saída.
— Esperem só quando todo mundo ficar sabendo o que vocês
estavam fazendo na torre da igreja — disse ela.
— Nossa, Sâmia — interrompeu Rebeca, que, coincidentemente,
acabara de sair da outra torre. Soltou a mão de Inara e aproximou-se de
Sâmia, cuspindo o nome da garota como se tivesse um gosto azedo. —
Quantos anos você tem?
— Olhe, eu não quero fazer inimigos, mas não vou deixar vocês
cometerem esse tipo de pecado aqui na minha igreja — respondeu a garota,
menos confiante do que antes, pois a presença de Rebeca a intimidava.
Rapidamente me coloquei entre Sâmia e Rebeca, que parecia prestes
a empurrar a menina da escada, e, não aguentando mais ficar calado,
ouvindo Sâmia e suas asneiras verborrágicas, falei, tentando esconder o
tremor em minha voz:
—Sâmia... — Na minha voz havia o mesmo tom enojado que
Rebeca havia falado, — o que você faz todo final de semana à noite na
marina escondida dos seus pais também é pecado. Então larga de ser
hipócrita e nos deixe em paz. E lembre-se... Aliás, lembre o seu pai
também: essa ilha não é de vocês!
Ela virou as costas e saiu furiosa, entrando na igreja sem dizer mais
nada.
— Uau — disse Arnaud atrás de mim, aproximando-se e colocando
seu braço em meus ombros. — Você foi bem corajoso.
— Meu herói! — exclamou Rebeca, quase em tom irônico, teatral,
sorrindo e pulando em cima de mim, num abraço que quase me derrubou.

Decidimos sair da igreja e esperar meus pais nas sombras das


árvores da praça de Poseidon. O centro da cidade estava vazio: os turistas
foram afugentados pela tempestade, enquanto os moradores estavam na
igreja. Aproveitei aquela oportunidade para segurar a mão de Arnaud.
Aquele momento eu jamais esqueceria, eu e ele, descendo as ladeiras da
igreja de mãos dadas, de testemunhas apenas Rebeca e Inara, as janelas
fechadas, o sol que pairava em algum lugar ali perto. Olhei para ele e ele
sorriu para mim, os olhos quase fechando, encandeados pela claridade, com
seus cantos marcados pelas finas rugas que anunciavam a idade que
começava a avançar, o cabelo balançando-se ao vento. Queria que aquela
ilha fosse só minha, nossa, queria possuir aquela cidade e aquelas ruas,
assim eu poderia fazer o que bem entendesse, caminhar com Arnaud sem
medo de julgamentos, encurralá-lo em uma parede e beijá-lo até chocar o
morador que, atraído pelo ruído, colocasse a cabeça para fora da janela para
ver o que estava acontecendo, mas nada pudesse fazer, pois aquela rua me
pertencia.
Dois caras estavam encostados numa parede no final da rua. Em pé,
de braços cruzados, perna dobrada, olhando diretamente para a gente.
Tinham cara de encrenca, e logo os reconheci: eram os mesmos que haviam
ameaçado Américo e machucado minha boca. Um deles segurava um
canivete, raspando a lâmina brilhante e afiada contra a parede, fazendo a
tinta descascar e o barulho arrepiante chegar até nós. O outro girava o anel
em forma de caveira no dedo. As meninas apressaram o passo, Arnaud
soltou a minha mão e colocou o braço sobre meus ombros. Não falaram
nada quando passamos por eles, apenas nos acompanharam com o olhar.
Antes de virarmos a rua, olhei para trás, e vi o do canivete guardando a
arma no bolso. Eles não nos seguiram.
Avistei Augusto e Américo à distância, sentados no banco de
madeira embaixo de uma árvore. Atrás deles, a sorveteria fechada. Américo
olhava para baixo, encarando os pés, enquanto Augusto parecia falar
alguma coisa para ele, como se o consolasse de algo ou desse um conselho.
— Achei que essa praça fosse melhor frequentada! — exclamou
Rebeca, brincando, anunciando nossa chegada.
O Américo que eu conhecia, aquele sempre alegre, disposto, que
não parava de falar, que estava sempre com algum comentário ácido na
ponta da língua, não era aquele que olhou para a gente, os olhos marejados,
as olheiras proeminentes, a pele pálida. Augusto tentou segurar seu braço,
sem sucesso, quando ele se levantou e deu as costas para nós, sumindo em
uma ruela que brotava da praça, ao lado da sorveteria. Pensei nos caras que
haviam nos encarado, e que eles poderiam ir atrás dele.
— O que aconteceu? — perguntei quando nos aproximamos.
Augusto se levantou e me chamou para um canto. Então disse:
— A mãe de Américo descobriu sobre o trabalho sexual dele e o
expulsou de casa. Depois, encontrou o... Espera. Não sei por que eu tô te
contando isso. Tu saberia de tudo caso se importasse com alguém além de si
mesmo.
— Do que tu tá falando? — voltei a perguntar, surpreso com o tom
áspero. Nunca tinha visto Augusto falar daquela forma. Especialmente não
comigo. Augusto era a pessoa mais pacífica e calma que eu conhecia.
— Não sei o que tu anda fazendo esses dias que ocupa tanto teu
tempo, e, sinceramente, não quero saber, mas, como sempre, tu deixa os
amigos de lado quando surge algo mais interessante. Espero que dessa vez
valha a pena, porque quando acabar o verão tu vai ficar sozinho, Nico. Tu
age como se essa ilha fosse um paraíso, quando na verdade tudo está
desmoronando ao nosso redor.
Fiquei calado, atônito, enquanto Augusto se virava e seguia o
mesmo caminho que Américo fizera ainda há pouco. Arnaud colocou a mão
em meu ombro, mas acabei esquivando, pois precisei me sentar. Augusto
estava certo. Eu já havia feito isso outras vezes, me isolado na base das
montanhas para escrever, sozinho, ou passado dias seguidos assistindo
filmes no meu quarto sem ligar para ninguém nem responder mensagens, ou
ido frequentemente para a praia secreta com Elisa, sem chamar os meninos
para sair. Eu havia, de fato, negligenciado meus amigos nos últimos dias. E,
por mais cruel que parecesse, realmente havia aparecido algo mais
interessante. Alguém. Arnaud. Eu via meus amigos como certos, como se
eles para sempre fossem permanecer ali, à minha disposição, então os
deixei guardados, em espera, adiando a necessidade de demonstrar afeto e
estar presente. Ele estava certo sobre o fim do verão. Eu iria ficar sozinho.
Rebeca, Elisa e Arnaud iriam embora. E as únicas pessoas que me
restariam, eu havia negligenciado nos últimos dias. Isso se Américo e
Augusto realmente continuassem naquela ilha. Eu não sabia o que eles
planejavam para a vida deles, o que fizeram nos dias anteriores nem o que
iam fazer nos próximos. Eu os havia esquecido, ignorado, deixado para
mais tarde. E agora, como toda vez que eu guardava meus sentimentos para
depois, era tarde demais.

Na ladeira da igreja, as pessoas começavam a descer. A missa havia


terminado. Os moradores, simpáticos e sorridentes, cumprimentavam-se,
despedindo-se de seus vizinhos, que em outros tempos nem se falavam.
Distribuíam tchauzinhos e até logo e fiquem com deus, como se uma
tempestade não tivesse acabado de atingir a ilha. Como se estivesse tudo
bem. Como se tudo não estivesse desmoronando ao redor. No meio dos
fiéis, avistei Sâmia, ao lado da mãe, a primeira-dama da cidade. Cochichava
alguma coisa no ouvido da mulher, que olhava para mim com os olhos
semicerrados, como se me recriminasse, acompanhando com o olhar o dedo
da filha, apontando para mim e Arnaud.
20 ✹ O PRECIPÍCIO

O
maior estrago da tempestade havia sido na agricultura. O vento e a
chuva fortes varreram as plantações, destruindo a colheita dos
pequenos agricultores que viviam de subsistência. Naquele mês não
iríamos encontrar as frutas e vegetais frescos locais, apenas os importados
do continente, bem mais caros. Na minha casa não foi diferente, o pomar
que meu pai havia criado com tanto esmero havia virado lama. O pé de
limão siciliano foi o único que resistiu, mas estava um pouco despedaçado,
o tomateiro esmagado, as ervas e hortaliças todas destruídas.
Aquele havia sido um dia nostálgico, cheio de memórias. No
telhado da casa de dona Kazuko, enquanto ajudava meu pai a ajeitar as
telhas, lembrei da noite que eu passara ali depois do verão que eu havia
conhecido Rebeca. Era tão jovem que sequer tenho certeza se realmente
lembro daquilo ou se foi uma lembrança resgatada pelos meus pais,
implantada em minha cabeça com seus relatos. De tanto ter me afeiçoado
àquela garotinha que passara o verão na casa ao lado, vindo em minha casa
todas as manhãs e tardes para brincar comigo na piscina e correr no
gramado, não aceitei a partida dela quando se findou aquela estação.
Quando me disseram que no dia seguinte Rebeca não mais retornaria, fugi
de casa à noite e subi na casa da idosa, sei lá como, e ali fiquei a madrugada
inteira, esperando Rebeca aparecer, até ser encontrado na manhã seguinte.
Naquela idade, o tempo era um conceito muito abstrato. Quando me
falavam que bastava esperar o próximo verão para o retorno de Rebeca, eu
não compreendia. O conceito de ano não cabia em minha cabeça. E assim,
em alguns verões seguintes, como um cachorro em desespero por seu dono
que sai para o trabalho, dia após dia achando que daquela vez ele não
retornaria, eu sofria com o fim do verão e a partida de Rebeca. Ali, anos
depois, novamente no telhado dela, dessa vez com meu pai, e com minha
amiga no jardim nos esperando descer, ao lado da sua avó cheia de
agradecimentos, pensei que no fim desse verão não haveria telhado alto o
suficiente para lamentar sua partida.
Recebemos uma ligação do meu irmão naquele dia, perguntando
como estávamos, se a tempestade havia feito algum estrago. Meu pai o
tranquilizou, falou que estava tudo bem, exceto por algumas telhas
quebradas e pelas plantas que morreram. Meu irmão anunciou que estava
com saudades e que nos visitaria muito em breve, quando juntasse dinheiro
suficiente para pagar a passagem de preço exorbitante. Meu pai, como
sempre, ofereceu dinheiro, mas ele recusou. Após um até logo e um eu te
amo, passou o telefone para minha mãe, que o encheu de perguntas sobre
sua esposa, que estava grávida. Por intermédio da minha mãe, me mandou
beijos e lembranças. Não se deu o trabalho de falar comigo.
No quintal também havia um pé de acerola, que meu pai havia
plantado com minha ajuda e do meu irmão, quando éramos crianças. Eu
tinha seis anos, e ele, doze. Acompanhamos, com expectativa, o
crescimento da árvore, quase no ritmo do nosso próprio crescimento. A
primeira colheita das frutinhas vermelhas e azedas foi um evento, nossa
mãe nos fotografando, meu pai nos acudindo quando eu e meu irmão
começamos a nos coçar e gritar, atingidos pelas substâncias urticantes das
folhas da árvore. A cada mês a árvore dava mais frutos, e a cada colheita eu
e meu irmão éramos mais experientes em se esquivar das folhas. Colhíamos
tudo, passávamos a semana tomando suco e comendo doce de acerola sem
parar. Eram tantos frutos que minha mãe doava para os vizinhos.
Então nós dois crescemos, nossa empolgação e gosto pelas frutinhas
azedas ia diminuindo, não aguentávamos mais catar todos aqueles frutos,
entediados, com outros interesses, e abandonávamos o trabalho na metade,
deixando a árvore carregada de alimento para os pássaros. Meu irmão foi o
primeiro a parar de colher acerolas, de vez. Certo mês, não apareceu para
me ajudar a pegar as frutas. Colhi sozinho, passando horas para tirar metade
dos frutos, rogando pragas infinitas para meu irmão preguiçoso. Depois me
acostumei à sua ausência e meu pai começou, aos poucos, a me ajudar.
Então foi minha vez de crescer e abandonar a tarefa, deixando o trabalho
para meu pai sozinho, que, quase toda manhã, acordava cedo para colher as
frutas da árvore que havia plantado para nós.
Eu vi no olhar do meu pai a dor da perda de um filho quando vimos
que o pé de acerola estava morto. A pequena árvore tinha ficado em pé,
após a tempestade, e achávamos que havia sobrevivido, mas, ao nos
aproximarmos, vimos que o tronco estava partido. Ela caiu no chão, morta,
quando a toquei. Em um de seus galhos, avistei uma bolinha vermelha.
Uma única acerola. Enfiei a mão entre as folhas, sem me preocupar com a
coceira que aquilo me daria, e arranquei a fruta. Ofereci a meu pai, que
balançou a cabeça em negação, e a comi. O último fruto. Resisti ao impulso
do meu rosto de exibir uma careta ao sentir o azedo se espalhar pela boca e
mastiguei a carne tenra e pouca da acerola, sentindo seu leve adocicado
com sabor de infância. Quando apenas restava a semente, a cuspi em minha
mão, enterrando-a, em seguida, ao lado da mãe falecida, com a esperança
de que um dia ali nasceria um outro pé.
Nas horas seguintes, recolhemos as plantas mortas e as colocamos
em grandes sacos para jogar no lixo, a terra revirada cheia de lama e folhas
murchas foi retirada e colocamos nova. A renovação da terra. A terra, antes
cheia de vida, depois cheia de morte, estava novamente fértil. Meu pai
trouxe seus saquinhos cheios de sementes. Tomate, hortelã, manjericão,
cebolinha, pimenta, tudo foi enterrado para um novo nascimento.

Eu estava sob o sol, minhas costas queimando, o suor pingando da


minha testa, escorrendo pelo rosto e caindo do queixo como a goteira de um
teto em chuva, e minhas mãos cheias de terra, quando Arnaud apareceu
com dois copos de chá gelado de limão. Sorria, como sempre, usando um
short cáqui acima dos joelhos e uma camiseta branca, marcada pelo suor.
Aquela visão foi como a chegada em um oásis após uma longa travessia de
um deserto. Entregou-nos os copos, um oferecimento da minha mãe,
primeiro o do meu pai, depois o meu, sem esquecer de tocar em meus dedos
enquanto me passava o copo gelado.
— Precisam de ajuda? — perguntou, enquanto nos esperava
esvaziar os copos para levá-los de volta à cozinha e trazê-los novamente
cheios.
Meu pai enxugou o suor da testa, deixando ali uma marca de terra,
sorrindo com um sorriso exausto.
— O senhor é nosso hóspede, a única coisa que precisa fazer é
relaxar.
— Não posso relaxar enquanto vocês se matam de trabalhar —
retrucou Arnaud.
Meu pai riu.
— Já que insiste, pode começar limpando a piscina.
Arnaud aquiesceu, empolgado por poder ajudar, pegou nossos copos
vazios e enlameados e saiu. Acompanhei-o com o olhar, observando seus
cabelos esvoaçando-se no alto, os fios molhados e grudados na nuca pelo
suor, o seu caminhar lento e desapressado, com a camisa agitando-se atrás
de si, deixando para trás apenas seu cheiro, sua lembrança e aquele desejo
de que ele voltasse logo. Quando Arnaud virou a esquina da casa e sumiu
da nossa vista, meu pai largou a pá no solo e olhou para mim, na boca um
sorriso tímido, que parecia não querer sair, trêmulo, e no olhar uma
seriedade e intensidade que eu jamais vira nele, e falou:
— O que você acha dele? Nosso primeiro hóspede.
​De imediato não soube o que responder, fiquei mudo, meu
coração tinha congelado e paralisado todo o meu corpo. Lutar, fugir ou se
fingir de morto: as três opções para se enfrentar uma situação de ameaça.
Eu podia ter jogado a pá na cabeça dele ou saído correndo em direção ao
mar, mas meu corpo travou. Meu cérebro, no entanto, funcionava a mil por
hora. Naqueles poucos segundos que não esbocei reações, pensei em
trilhões de coisas. O que ele queria dizer com aquela pergunta? Estava
insinuando alguma coisa? Ele sabia o que estava se passando entre mim e
Arnaud? Será que, durante a tempestade, quando eu e Arnaud fazíamos
nossa própria tempestade no colchão, meu pai havia escutado? Ou, pior,
será que naquela noite, aflito pelo barulho da água que caía sem parar, ele
sentira sede, ou fome, e resolvera descer para a cozinha, parando no meio
da escada ao se deparar com aquela cena homoerótica? Minha mãe teria
dado um escândalo, com certeza, ou desmaiado e caído rolando pela escada.
Mas meu pai não, ele teria encarado a situação friamente, voltado para seu
quarto em silêncio, para então depois, a sós comigo, com as mãos sujas de
estrume, abordar o assunto delicado, segurando uma pá com uma mão e
uma tesoura de poda com a outra.
​Como eu poderia responder àquela pergunta? O que eu achava de
Arnaud? Como eu falaria a meu pai que eu gostava tanto dele que era difícil
encontrar palavras? Arnaud era o próprio mar, o próprio sol, a praia, o
verão. Arnaud era todas as estações numa só, era calor, tempestade,
mormaço.
Como eu falaria para meu pai que Arnaud mudara a minha vida de
forma tão brusca em tão pouco tempo? Como eu diria que ele havia me
conquistado com todos aqueles olhares desviados, palavras não ditas e
toques reprimidos? Como eu diria que, agora que eu conhecia sua beleza,
todo o resto da natureza havia perdido o encanto? Como eu explicaria para
meu pai que a ilha não era mais o paraíso onde eu queria passar o resto da
minha vida, e sim Arnaud? Arnaud era o arquipélago onde eu queria estar
ilhado. Como alguém entenderia isso? Como alguém, que não estivesse
passando pelo que eu estava passando, poderia sequer chegar perto de
entender aquilo? Se eu mesmo mal conseguia compreender aquele poder
que ele tinha sobre mim...
​— Acho ele legal — falei, indiferente. — Todo mundo gosta dele.
​Meu pai assentiu, sério, ainda me olhando com intensidade, como
se avaliasse minha resposta.
​— Nem todo mundo — foi o que ele se resumiu a dizer, antes de
se concentrar novamente em sua pá e voltar ao trabalho de replantar a horta
perdida.
​— Como assim? — perguntei.
​— Aparentemente esse homem gosta de navegar em águas
perigosas, em mar revolto — ele respondeu, não mais olhando para mim. —
Cuidado, Nico.
​— Não tenho medo do mar — exclamei, levantando-me de
supetão e deixando meu pai para trás. Não olhei para ele, não ousei, apenas
dei as costas, mas o vi, em minha cabeça, encarando-me boquiaberto e de
sobrancelhas arqueadas.

​ ncontrei Arnaud limpando a piscina com a pequena Ysla.


E
Ajudava a menina, que se divertia em catar as folhas da água, a segurar o
cabo da peneira, grande demais para ela. Sentado, assisti os dois se
divertirem com aquela árdua tarefa, encantado com o jeito que Arnaud tinha
para crianças, enquanto eu não sabia nem como falar com aqueles pequenos
seres estranhos. Quando terminaram, Ysla abraçou a perna de Arnaud em
agradecimento e correu para contar aos pais a aventura que tivera. Arnaud
olhou para mim e sorriu.
​— Vai ficar aí me olhando? — perguntei.
​— Como posso evitar? — ele respondeu, dando uma piscadela
com um olho e se virando, indo em direção à casa, provavelmente para
perguntar a meus pais se tinha mais algo que ele poderia fazer para ajudar.
​Rebeca apareceu não muito tempo depois, sentando-se na borda
da piscina, com as pernas dentro da água gelada.
​ Acho que meu pai tá desconfiando de mim e Arnaud — falei,

quebrando o gelo.
​— Ele provavelmente já sabe — respondeu ela, como se fosse
uma coisa óbvia. — Pais sempre sabem.
​— E por que ele não fez nada?
​— Talvez não tenha certeza, ou não saiba o que dizer. Ou está OK
com isso.
​— Tu acha que eu devo conversar com eles?
​— Tu não deve nada a ninguém.
​— É... Eu não teria coragem, de todo jeito — admiti, num suspiro
lamuriento.
​— Cada um tem seu tempo.
​Ficamos um tempo em silêncio, contemplando o barulho da
natureza, agitando nossas pernas na água gelada da piscina, até que Arnaud
voltou com um alicate e uma marreta nas mãos, parando atrás de nós.
​— Preciso consertar a cerca do penhasco — falou, agitando a
marreta com um sorriso convidativo. Meus hormônios realmente deviam
estar descontrolados, pois me excitei apenas com a visão do seu bíceps se
contraindo e aumentando de volume, apertando-se em sua camiseta branca,
quando ele agitou o peso na mão. — Alguém me ajuda?
É claro que eu ia ajudá-lo.
​— Eita, ouvi tua mãe me chamar, Nico. Até mais tarde! — Correu
Rebeca, fugindo da tarefa, desaparecendo dentro da minha casa.

​ o fim do gramado que margeava a piscina havia uma pequena


N
cerca de madeira e arame, impedindo a passagem até o penhasco, que surgia
abruptamente no meio do quintal, uma encosta escarpa de cerca de doze
metros de altura, terminando em rochas e mar, se quebrando em ondas e
espuma lá embaixo.
​A tempestade havia derrubado a cerca, de modo que nas próximas
horas eu e Arnaud a colocaríamos de volta em pé. Ali, naquele breve
momento de privacidade, trocamos palavras de carinho. Conversamos sobre
o meu livro, sobre o livro de fotografia que folheamos na noite anterior,
sobre livros no geral. Perguntei sobre as matérias dele, curioso sobre como
ele investigava os assuntos. Ele disse que era observador, ficava quieto em
um canto, anotando fatos, nomes e movimentações, tentava se inserir no
local e, depois, analisava tudo objetivamente, ligando os pontos. Perguntei a
ele como andava a investigação atual, o que ele tinha descoberto, e ele não
quis me contar, pois ainda não tinha ligado todos os pontos. Apesar da
minha curiosidade, não insisti no assunto, então também conversamos sobre
cinema, sobre música, sobre a natureza. Conversamos sobre mim, sobre ele,
e sobre nós. Falávamos de coisas abstratas ou sobre o presente e o passado
recente, nunca tocando em um assunto futuro, como se guiados por um
acordo silencioso que havia se estabelecido espontaneamente entre nós.
Em certo momento, tomado pelo calor, que não era mitigado nem
por aquela brisa intensa que soprava do mar aos nossos pés, ele tirou a
camisa, suada e suja de poeira e barro, e a pendurou na cerca, amarrando-a
para que não voasse.
— Quer descer lá embaixo? — perguntei, quando terminamos o
trabalho e observávamos a imensidão do mar e a calmaria do horizonte,
parados, lado a lado, na beira do penhasco, com o turbilhão de vento
agitando nossos cabelos. Eu olhava de soslaio o seu corpo, seus pelos
molhados, os músculos rígidos e o cheiro de suor que chegava ao meu nariz
e me deixava louco de vontade de derrubá-lo no chão, subir em suas pernas
e beijá-lo.
​— É possível? — disse, arqueando uma sobrancelha. Em seus
olhos eu já via o brilho da empolgação.
​Aquele era um dos meus locais favoritos em toda a ilha. Era o
meu local secreto absoluto, muito mais do que aquela praia à beira do rio,
pois nunca havia levado ninguém ali. Caminhando para a direita, em
direção à casa de Rebeca, em meio à pequena floresta que separava nossos
terrenos, havia uma pequena escada de pedra, construída só os deuses mais
antigos sabem quando e por quem, que descia até as rochas na base da
encosta. Era uma escada primitiva, apenas blocos de pedra empilhados,
irregular e escorregadia. Descemos com cuidado, degrau por degrau,
frequentemente um ajudando o outro a descer. Aquelas seguradas de mãos e
braços, aqueles sorrisos, aquela cumplicidade ao invadir um espaço tão
selvagem, secreto e perigoso, aquela adrenalina do risco de escorregar e cair
a metros de altura sobre pedras pontiagudas, tudo isso só aumentava a
minha proximidade a Arnaud.
​O mar estava aos nossos pés, revolto, respingando água e vapor
sobre nós, como se quisesse nos expulsar dali. Sentamos sobre uma pedra
grande e achatada, a mesma onde eu costumava sentar quando precisava
pensar e ficar sozinho. Eu não queria mais ficar sozinho. Arnaud entrelaçou
sua mão à minha e deitei minha cabeça sobre o ombro dele. Não falamos
nada, deixamos o mar falar por nós. Nossas palavras eram a fúria do
oceano, a força das ondas. Éramos energia maremotriz.
​— Acho que meu pai desconfia de nós — disse, baixinho, quase
desejando que ele não escutasse, pois temia que aquilo o assustasse.
​— Não estamos fazendo nada errado, Nico. Mas eu posso me
afastar, se você quiser — respondeu, sério, olhando para mim. Ele não
parecia assustado.
​— Não quero. Jamais.
— Écoute, Nico — Ele olhou para os lados, ansioso. — Os mortos
que encontraram no rio depois da tempestade. Eu acredito que eles foram
assassinados. Todos eles tinham rixa com o prefeito e eram ativistas contra
a privatização da reserva. Se privatizarem, vai ser muito mais fácil uma
mineradora atuar aqui.
— Como eu não sabia disso? — perguntei, alarmado. Tudo isso
acontecendo diante dos meus olhos, nessa ilha minúscula, onde todo mundo
se conhecia, e não percebi nada?
Ele deu um pequeno sorriso triste, e então falou:
— Você anda muito distraído, Nico... E eu sei que uma das suas
distrações sou eu. Algumas pessoas aqui da cidade já estão começando a
descobrir quem eu sou e o que estou fazendo aqui. Não quero colocar você
e sua família em risco. É melhor eu ir embo...
​Apertei sua mão, calando-o. Não queria que ele se afastasse, não
agora, não daqui a alguns dias. Não queria que ele se afastasse de mim
nunca, nem que ele pegasse o seu barco e fosse embora cumprir aquela
maldita promessa fúnebre ou escrever essa porra de reportagem. Que o
prefeito privatizasse tudo, derrubasse a montanha e a floresta, que aterrasse
o caralho do oceano inteiro e fizesse um estacionamento. Eu não me
importava mais com nada. Eu só queria Arnaud.

​ lgum tempo depois, ainda em silêncio, apenas observando o mar


A
que nos falava palavras de amor, ouvimos um pequeno grito abafado e
distorcido pelo barulho das ondas e olhamos para cima. No alto do
precipício, mais à frente, onde ficava o nosso quintal, distingui, se
prostrando entre os pequenos arbustos que pendiam da escarpa, Ysla. Ela
chamava por Arnaud.
​ entei gritar, mas meu grito ficou preso. Como sempre eu reagia
T
em situações desesperadoras, travei. Fiquei petrificado enquanto observava
a pequena, que provavelmente nos havia observado consertar a cerca e
depois caminhar para baixo da falésia, e, aflita pela curiosidade e saudade
de Arnaud, havia passado entre os arames da cerca e decidido olhar o que
havia além daqueles arbustos. Vi sua pequena mão se apoiar na beira da
encosta e um punhado de terra cair quando ela engatinhou um pouco mais
para frente, para se fazer ouvida por nós. Então me toquei que Arnaud não
segurava mais minha mão. Ele corria entre as pedras. Ah, não, pensei, com
os olhos já cheios de lágrimas. Se tinha uma coisa que eu havia aprendido
em meus anos de experiência em quedas descendo aquelas pedras, é que se
devia caminhar sobre elas lentamente. Arnaud corria rápido, desesperado,
tropeçando e escorregando. Estava impaciente para chegar lá em cima e
salvar a menina antes que fosse tarde demais. Mas paciência era a chave
para não escorregar e conseguir subir.
E o preço pela falta de paciência podia ser a sua própria vida.
21 ✹ A DOR

A
ssisti, ainda paralisado, Arnaud escorregar entre as pedras antes
mesmo de alcançar a escada. Vi seu pé derrapar em uma poça d’água
e ele cair de lado, ralando o braço na ponta da pedra. Vi ele se
levantar, o sangue escorrendo pelo membro ferido, e tentar de novo. Voltou
a cair quando começou a subir a escada. Atrás de mim, acima de nós, Ysla
chamava por ele. Ela caminhava em direção à escada. Finalmente meu
corpo destravou. Subi engatinhando, usando as pernas e as mãos, quando vi
Arnaud escorregando novamente. Ergui meus braços para segurá-lo, mesmo
estando metros abaixo dele, dúzias de degraus nos separando. Visualizei sua
queda de quase vinte metros sobre as pedras pontiagudas, sua coluna
despedaçando naqueles degraus corroídos pela maresia e erosão, seus
braços deslocando-se em posições não anatômicas, seu pescoço quebrando
bem na minha frente, eu quase já podia escutar o estalo que sua coluna faria
ao se partir, mas ele se agarrou em um galho e evitou a queda.
Eu, pelo contrário, não consegui evitar a minha queda. Havia
erguido os braços para salvá-lo e acabei perdendo o equilíbrio, por falta de
apoio nas mãos e pelo susto que tive ao ver Arnaud correndo risco de se
espatifar nas pedras. Caí de costas e a última coisa que lembro, além da dor
que tomou conta de todo o meu corpo, é do céu azul diante dos meus olhos
lentamente escurecendo, como um anoitecer sem os tons alaranjados, e o
barulho das ondas que quebravam ao redor se distanciando, ficando
abafado, até tudo virar escuridão e silêncio.
◆ ◆ ◆

Acordei nos braços de Arnaud, minha cabeça apoiada em suas


pernas. Abaixo de mim, as pedras pareciam tremer. O barulho das ondas
estava estranho, grave, como um roncado. Ele olhava para mim,
preocupado, e atrás da sua cabeça as nuvens passavam mais rápidas do que
o normal, como se o tempo estivesse acelerado. Ele vestira novamente a
camisa, branca, toda suja de lama e suor. Sentia sua mão afagar meu cabelo.
Observei-o por alguns instantes antes de ele perceber que eu havia
acordado. Estava concentrado em alguma coisa adiante de nós, talvez no
mar, então abaixou os olhos e sorriu ao encontrar os meus abertos. Mas
naquele sorriso havia mais preocupação do que alegria.
— Estamos chegando no hospital — falou, e então eu percebi que
não estava mais sobre as pedras da encosta, e sim na carroceria da
caminhonete do meu pai. Voltei a fechar os olhos, sentindo-me seguro,
protegido por Arnaud. Se eu tivesse morrido, poderia acreditar que estava
sendo recebido pelos anjos no céu.

Quando voltei a abrir os olhos, estava numa cama. Não estava num
hospital, pois não havia hospital na nossa ilha. Era uma pequena clínica de
pronto-socorro, especializada em vítimas de afogamento, queimaduras, e,
bom, ortopedia. Eu estava deitado de lado, sem camisa, provavelmente
minhas costas estavam feridas. Havia um pequeno curativo no meu braço,
daqueles de injeção.
— O que aconteceu? — perguntei, sem saber se tinha alguém ali
para me responder.
— Você caiu nas pedras. — Era a voz do meu pai. Finalmente olhei
ao redor. Ele estava sentado em uma cadeira, atrás de mim, ao lado da
cama. A sala possuía cinco camas, separadas por cortinas, com cadeiras
para acompanhantes entre elas. Todas as cortinas estavam abertas e as
camas vazias, exceto pela minha. — Você está louco? Descer aquelas
pedras?! E ainda levar o hóspede para lá? Meu deus, Nico! Sorte sua que
Arnaud estava por perto. Ele o salvou — completou, sem nem perceber a
contradição da sua fala ao me recriminar por ter levado Arnaud e
agradecido por Arnaud estar lá. Talvez ele estivesse mais certo do que
nunca, pois Arnaud era, ao mesmo tempo, salvação e condenação.
— Onde ele está? — perguntei. Tentava imaginar como Arnaud
conseguira descer a escada para me socorrer, e ainda por cima voltar a subi-
la me carregando. Ela mal conseguira subir sozinho... — E Ysla?
— Os pais estavam levando as coisas de volta à pousada, e ela fugiu
sem ninguém ver. Deve ter passado pela cerca. A gente tava procurando por
ela. Então Arnaud chegou correndo com a menina e falou o que aconteceu,
e correu pra te buscar. Ele te colocou nas costas e eu joguei uma corda pra
ajudar a subir.
— Onde ele tá? — Voltei a perguntar.
— Na sala de espera. Ele se cortou nas pedras, estavam fazendo
curativos nele.
Tentei me levantar, não sei bem o motivo. Talvez querendo ir atrás
dele. Mas o que eu diria? Como poderia agradecer por ele ter salvado a
minha vida? Ou como poderia pedir desculpas pelo que eu o havia feito
passar? Quando me movi, senti uma dor horrível nas costas e voltei a ficar
parado.
— O que eu tenho?
— O raio-x não mostrou nada grave, só uma pancada. Uma
contusão nas costas. Por sorte não bateu a cabeça.
Coloquei a mão nas costas e senti um curativo que era do tamanho
da minha palma.
— Quando posso ir pra casa? — perguntei.
— O médico falou que você precisa ficar em observação até
amanhã.
Suspirei. Aquilo era perda de tempo. Perda do pouco tempo que eu
possuía com Arnaud. Eu não queria desperdiçar uma noite sendo observado
em uma clínica.

— Vamos fugir — falei, quando meu pai saiu para comprar meus
remédios e Arnaud entrou na sala. Ele tinha um curativo no rosto, no osso
abaixo do olho esquerdo, na panturrilha direita e gazes enroladas nos dois
antebraços. Quis abraçá-lo, pedir desculpas por tê-lo feito descer aquelas
pedras, agradecer por ter salvado Ysla e me socorrido. Queria fazer sua dor
passar. E que ele fizesse a minha passar. — Não quero passar a noite aqui.
Não quero perder tempo. Podemos fugir pras montanhas, acampar. Ou...
— É para o seu bem, petit Nico. Não me deixe mais preocupado —
disse, e então se aproximou de mim, segurou firme o meu pulso e me beijou
na testa. — Amanhã de manhã virei te buscar. E então iremos acampar.
Aquela promessa apaziguou minha pressa. A calma de Arnaud, o
seu beijo, o seu olhar, o seu toque em meu braço, tudo nisso me dizia que
tínhamos todo o tempo do mundo. Rebeca apareceu logo depois, estava na
recepção aquele tempo inteiro, me esperando. Abraçou-me com lágrimas
nos olhos, recriminando-me por quase tê-la matado de susto. Eu retruquei
falando que era a vingança pelo dia que ela se queimou com a água-viva.
Estávamos quites.
Dormi mal, incomodado com a dor nas costas, com o silêncio do
pronto-socorro — não permitiam acompanhantes durante a noite —, a
ausência de Arnaud, a ansiedade pelo dia seguinte. Ensaiava, na minha
cabeça, mais uma briga que teria com meus pais, por faltar o trabalho e ir
acampar com Arnaud.
Era meio da madrugada quando três homens entraram na
enfermaria. Reconheci todos: os dois homens mal-encarados que nos
observaram quando saímos da igreja e Américo. Não soube quem os
deixara entrar nem onde estavam os funcionários do hospital.
Tentei me levantar, mas um deles segurou meu peito contra a cama.
O outro tirou o canivete do bolso e encostou a lâmina no meu pescoço.
Américo permaneceu na porta, olhando para o chão.
— Américo?! — perguntei, assustado. Minha voz tremia, e eu
segurava a respiração, com medo de me cortar. Meu amigo não olhou para
mim.
— Nico, Nico, Nicotina... — o do canivete falou, alisando minha
pele com a lâmina. — Eu não tô nem aí se tu é viado ou pra quem tu dá o
cu. Não ligo pra essas coisas. Não é, Américo? — Ele olhou para Américo,
que não esboçou reações. — Mas tu tá andando com aquele jornalistazinho
de merda por aí, e ele tá metendo o nariz onde não deve. Então, se tu quiser
proteger tua família, preciso que faça uma coisa por mim.
— O quê? — perguntei, sem conseguir segurar as lágrimas nos
olhos.
— Pegue o computador do gringo e leve pra gente na casa da bruxa.
Até amanhã ao meio-dia. Senão...
Ele terminou a frase pressionando a lâmina no meu pescoço.
Quando saíram, me deixando sozinho, pus a mão na pele que ardia, para ver
se havia cortado. Mas não havia sangue. Passei o resto da noite acordado,
chorando, em pânico. Ninguém apareceu para me socorrer.

Ao amanhecer, com a mente clareada, ficou óbvio para mim que eu


precisava fugir com Arnaud. Antes que eu pudesse sair da clínica por conta
própria, meu pai apareceu para me buscar, trazendo consigo um celular
novo para mim, um mais simples, que praticamente só fazia ligações, para
substituir o meu, pifado após molhar na água do mar.
Quando me viram fazendo uma mala e empacotando minha barraca,
perguntaram o que diabos eu estava fazendo. Falei que ia levar Arnaud para
acampar, e quando me proibiram, falando que eu precisava descansar após o
acidente, eu já tinha a minha resposta pronta: já que eu precisava descansar,
ia tirar o dia de folga de qualquer jeito. Arnaud estava nos seus últimos dias
de viagem e precisava aproveitar a ilha. E nada melhor como um
acampamento para descansar.

A trilha em direção às montanhas estava diferente. Não por conta da


placa que haviam colocado bem na entrada da reserva florestal, avisando
que a partir do próximo mês aquela área seria administrada por uma
empresa privada e todos os trilheiros licenciados precisariam passar por
uma nova avaliação e renovar a licença para fazer um processo seletivo e,
talvez, trabalhar para a empresa. Era eu que estava diferente. Tudo estava
diferente. Caminhar de mãos dadas com Arnaud dava àquela paisagem um
novo significado. Arnaud olhava para mim, sorrindo, e encontrava o meu
sorriso já de prontidão. Era com aquela piscadela que ele anunciava nossas
pausas. Pausas que não foram escassas. Ali, no meio da trilha, ou
encostados em uma árvore, colocava minha mochila no chão e seus lábios
encontravam os meus, com aquele beijo demorado que me deixava sem ar,
suas mãos me apertando, com o cuidado para não tocarem meus
machucados, a barba roçando minha pele, a minha mão percorrendo os
pelos e músculos dos seus braços, também evitando onde estava ferido.
— Assim não vamos chegar nunca — falei certo momento, vendo
que, naquele ritmo, anoiteceria muito antes de chegarmos lá.
— Já estou onde quero estar — respondeu ele.
Vendo Arnaud admirado com cada pequena coisa daquela paisagem
— um canto de pássaro, uma flor exuberante, uma folha peculiar, uma
pedra de formato bonito, o barulho do vento que soprava uivando, o sol que
entrava pelas árvores em frestas, o cheiro do mar que chegava às vezes
como sopro de monstros marinhos —, eu me perguntava como antes eu era
capaz de fazer, muitas vezes, aquele percurso sozinho. Já tinha visto aquilo
tudo tantas vezes que nem observava mais, já conhecia cada árvore, folha e
pedra, podia recitá-las em minha mente, mas agora, com Arnaud, tudo era
novo. E eu olhava as pedras com ele, olhava as folhas, as árvores e os
pássaros. E tudo estava diferente. E belo. O que eu via antes sozinho
passara a ser sem graça.
Deixando a mata para trás, paramos nas margens do rio para comer,
exatamente como fizemos da outra vez. Minhas costas doíam e aproveitei
para tomar um comprimido de analgésico, com o auxílio da água do rio.
Arnaud, talvez mal-acostumado com a impureza dos rios urbanos, também
provou, curioso, daquela água que brotava das montanhas.
— É tão pura — comentou, enquanto enchia sua garrafa na
correnteza.
— É exatamente a mesma água que bebemos da torneira na minha
casa — falei, zombando dele.
— Mas aqui ela ainda não foi aprisionada em tubulações e caixas
d’água — retrucou, molhando a mão e respingando água em minha cara.
Eu ri e voltei para a margem, sentei em uma pedra enquanto ele
caminhava na água rasa do rio, os pés mergulhados, gelados, a calça
dobrada na altura dos joelhos, e o sorriso que insistia em ficar. Vez ou outra,
ele retirava uma pedra do fundo do rio e a jogava longe, fazendo-a quicar na
superfície aquática algumas vezes antes de afundar.
​Enquanto caminhávamos, aos primeiros sinais do entardecer no
céu, lembrei que havia levado algumas toranjas em minha mochila.
— Eu não gosto de toranja — foi o que ele respondeu quando
ofereci.
— Mas naquele dia... — comecei a falar, mas parei quando vi o
sorriso malicioso que havia aparecido em sua boca. Safado. Os olhos de
mar revolto molharam-me como uma onda e o beijei antes que fosse levado
pela maré.
— Ela é usada pra aumentar o efeito de alguns remédios contra
câncer — respondeu. — Jérôme comia muito. Hoje em dia eu não suporto.
Tive que fazer muito esforço naquele dia pra te seduzir.

Paramos em algum ponto do leito do rio para trocarmos nossos


curativos, como soldados saídos de uma batalha.
— Obrigado por ter me salvado – falei, enquanto ele tirava o
esparadrapo das minhas costas com cuidado para não me beliscar.
— É o mínimo que eu posso fazer — ele falou. — Você também me
salvou.
​Você também me salvou. A quê, exatamente, ele se referia? Eu
não lembrava de tê-lo salvado. Me sentia estúpido em perguntar, então
mantive a pergunta para mim mesmo.
Ali, cercados pela privacidade da floresta, nos despimos, com o
vento frio da noite que começava a soprar e os pássaros que voavam acima
de nós para o aconchego aquecido dos seus ninhos. Nossas trocas de
olhares, meio sorrisos e espiadas, a cada peça de roupa tirada, eram
intensos. Arnaud beijou minha nuca para amansar a dor, e eu caminhei no
rio que começava a ficar escuro, escondendo seres e mistérios noturnos que
jamais conheceríamos, mergulhando meu corpo na água gelada que escorria
das montanhas. Vi Arnaud hesitar, em pé, apenas de cueca, parado sobre a
margem pedregosa, temendo colocar os pés em terra que não se via.
Estendi-lhe a mão, dizendo, com meu olhar sério de mar noturno, que ali
ele não tinha nada a temer. Que ele podia confiar em mim. Que ele estava
seguro comigo assim como eu estava com ele.
Ele retirou a cueca e a jogou no monte que eram nossas roupas, e
caminhou em passos lentos, sem olhar onde pisava, pois mesmo se olhasse
nada veria, seus olhos fixos nos meus e seu semblante tão sério como a lua
que estava acima de nós. Ao longe, uma coruja cantava. Quando alcançou
minha mão, a água estava na sua cintura, e um pouco acima em mim, quase
em meu peito, e sua boca alcançou a minha num anseio que só se explicaria
em um náufrago a encontrar a terra depois de meses à deriva no mar.
Banhamo-nos e nos tocamos ali, naquela água gelada e misteriosa, que
lavava nossos ferimentos e parecia nos purificar. Arnaud adentrou em mim
ali mesmo, preenchendo meus vazios junto com a água do rio. E assim
éramos um só, Nico, Arnaud e o rio. Nossos gemidos e arquejos
misturaram-se ao barulho da água, sua mão que me apertava não era mais
mão, e sim água, que agora corria quente. Ele lançou sua torrente dentro de
mim e eu dentro da água, selando assim nossa união perpétua com a
natureza. Éramos parte do ciclo da água, percorreríamos aquele rio, onde
seríamos bebidos por todos os seres, desembocaríamos no mar,
evaporaríamos, viraríamos nuvens e chuva, onde, ainda juntos, banharíamos
toda a Terra com nossa fertilidade.

Era meio da noite quando chegamos no local do acampamento.


Montamos a barraca e ali ficamos, aquecidos não por uma fogueira, mas
por nossos corpos, a trocar carícias e palavras gentis. Enquanto eu
preparava nosso jantar, ele me desenhava. Desenhava-me em partes, em
cada folha ele esboçava separadamente os pés, as mãos, as pernas, o pênis,
o pescoço, a boca, os olhos. Reconheci aqueles olhos. Já os havia visto
antes, não no espelho, pois Arnaud via algo em mim que o espelho não me
mostrava, mas no desenho que eu havia visto no dia que entrara escondido
em seu quarto.
Enquanto esperava a água que havia colocado para ferver no
fogãozinho elétrico borbulhar, pensava em quão surreal era eu estar ali
naquela tenda com Arnaud, sem roupa, esquentando água para fazer
macarrão instantâneo, enquanto ele, apenas de short, sem cueca por baixo,
me desenhava, quando, há não muitos dias atrás eu era capaz de surtar com
apenas um simples olhar dele. Quanta coisa tinha mudado naquele pouco
tempo! E quão pouco tempo nos restava!
Percebi que, vez ou outra, ele olhava para mim e dava um longo
suspiro. Depois chegava perto e verificava meus ferimentos. Havia uma
tempestade dentro daquela cabeça.
— Tu se preocupa demais — falei em meio a uma garfada do
macarrão que fumegava na tigela em minhas mãos.
— Com o quê?
— Com tudo. Vive no futuro quando ainda estamos no presente.
Esquece de aproveitar o agora porque tá preocupado querendo consertar
tudo, proteger todos.
— Olha quem fala — ele disse, rindo. — Mas por que você tá
falando nisso agora?
— Às vezes eu sinto que você não está mais aqui e sim em outro
tempo. No passado ou no futuro — eu disse, e então larguei a tigela de lado
e me aproximei dele, segurando seu rosto com as duas mãos. — Meu
viajante do tempo.
Ele riu, desviando do meu beijo, pois estava com a boca cheia de
macarrão. Beijei a bochecha dele com lábios gordurosos e cheios de molho.
— Eu não sei o que o futuro me reserva — falei. — E meu passado
é insignificante comparado ao seu. Você teve uma vida, um amor, tem um
futuro brilhante pela frente. Quem sou eu, perdido entre esses tempos?
— Tens tudo isso também, petit Nico. Não fique se comparando.
Olhe só pra você, és uma pessoa incrível. Posso ser um viajante do tempo,
mas atualmente é você que me faz não ficar perdido por aí. O meu agora é
aqui, contigo, nessa barraca aquecida e com cheiro de Nico e de tempero
industrializado. E o amanhã construiremos juntos, nós dois.
Adormecemos agarrados um ao outro, ora eu sentindo seu peito
contra minhas costas, sua respiração no ritmo da minha, sentindo seus pelos
contra minha pele, seu rosto enterrado em meu pescoço, onde ali aquecia
com uma respiração profunda e silenciosa, e o braço por cima dos meus, a
mão jamais largando a minha, ora o contrário, meu peito contra as costas
dele, meus braços entre os seus, minha mão que escapulia e lhe fazia
carícias no peito e na barriga, ora um de frente para o outro, de olhos
fechados ou entreabertos, a respiração sempre calma, as mãos sempre
dadas, as pernas entrelaçadas, vez ou outra um cafuné, um carinho no
cabelo que descia pelo rosto e terminava em um beijo ora demorado, ora
rápido. Tive sonhos felizes, bucólicos, mas nunca tão bons quanto a
realidade que me esperava ao amanhecer. Era a primeira vez na vida que
ansiava por acordar, onde os sonhos jamais me iludiriam com uma realidade
inexistente, pois nunca seriam bons o suficiente.
Acordei com o canto dos pássaros que anunciavam o amanhecer e a
barraca aquecida pelo sol. Arnaud ainda dormia, os cabelos lindamente
bagunçados, os olhos fechados, serenos, a viajarem por mares calmos, a
mão, enfiada debaixo do meu short, segurava minha bunda como quem
segura um tesouro ao dormir, temendo que o roubassem. Quando movi para
levantar, ele abriu os olhos.
— Ei, vai pra onde? — perguntou, os olhos mal conseguindo abrir,
pelo sono e pela claridade, com a voz rouca que me dava vontade de agarrá-
lo. — Volte aqui — ordenou, puxando-me pelo braço e me levando de volta
a ele. — Temos todo o tempo do mundo — completou, afogando-me em
beijos.
Ali naquela barraca criamos nossa própria dimensão, e todo o resto
não mais existia. Não havia mais mundo lá fora, não havia mais tempo, nem
dor. Apenas nós dois, ocupando aquela manhã inteira com beijos, sorrisos e
gemidos. Os poderes do amor, essa capacidade de nos levar para outros
lugares sem nem sair do lugar, de viajar pelo céu sem nem tirar os pés no
chão, dessas borboletas que se agitam no nosso estômago, onde outrora nem
seriam capazes de sobreviver, esses sorrisos que brotam sem explicação, o
oxigênio que às vezes parece faltar, os abraços que não cabem no corpo e
nunca são suficientes. Egoísmo do amor que faz tudo desaparecer para que
haja espaço apenas para ele.
Quando esgotamos o ar da barraca e quando já não mais restava
aquele líquido branco com o qual nos alimentamos repetidas vezes, saímos,
como répteis que não regulam sua própria temperatura e buscam auxílio do
ambiente. Corremos pelados até o lago, nossos membros cansados,
molhados e amolecidos balançando destemidos em liberdade e afrontando a
santidade da natureza, e assim mesmo nos jogamos na água gelada, que, por
pouco, não evaporou com nosso calor.

Não havia dor. De mais nenhum tipo. Nem aquela dor nostálgica, da
saudade antecipada, da despedida iminente, uma dor sentimental que era
quase física. Nem a dor física, aquela dos cortes, dos meus e dos dele.
Como se nada tivesse acontecido. Como se a água do rio no dia anterior,
como se nossos beijos, e como se a água daquele lago onde nadávamos sem
roupa, nos houvesse curado. Apoiava-me em Arnaud quando eu me cansava
de nadar, pois ele era um homem incansável. Em seu olhar o fogo ainda não
havia apagado e, quando, com os dedos enrugados prestes a se dissolverem
na água, eu me retirei do lago, subindo pelo píer e prostrando-me sobre
aquela madeira, expus ao sol e arreganhei ao seu olhar aquele orifício que,
com seu tamanho e grossura, ele havia aberto e deixado seu formato, ele
nadou em minha direção com a velocidade de um tubarão ensandecido pelo
cheiro do sangue de um surfista.
Corri, não por medo, pois medo eu jamais sentiria na presença dele,
mas por petulância, uma provocação, um corre atrás de mim se puder.
Ele me alcançou bem antes do ponto onde eu o havia alcançado há
não muito tempo atrás, quando ali eu havia corrido atrás dele e esbarrado
contra seu peito. Mal eu havia saído do píer, a água gelada ainda pingava do
meu corpo, e ele, numa violência gentil, me agarrou pelos dois braços,
virou-me de frente para ele, fazendo-me alvo daqueles olhos que com sua
água me molhavam e com seu fogo me aqueciam, e me empurrou com suas
mãos pesadas, lançando-me no chão. Minhas costas, ao se chocarem contra
a terra, arrancaram da minha boca um pequeno grito, de susto e de dor. Foi
um grito rápido, baixo, apenas um reflexo, que logo foi calado por seu
beijo, que ocupou toda minha boca.
— Tá com medo? — ele perguntou.
— Sim — menti. — Não é você o repórter aventureiro que tá me
colocando em risco? Eu, um pobre jovem inocente...
Ele segurou meu pescoço e sufocou minha brincadeira. Apertando
minha pele e mordendo o meu pescoço me fez confundir as sensações. A
dor que eu sentia em minhas costas, a dor do impacto, do ferimento que se
misturava à terra molhada e à grama que pinicava minha pele, a mão no
meu pescoço, seus dentes querendo me rasgar, seus dedos na minha boca,
seca, ressecada pelos meus arquejos, a língua molhada que descia pelo meu
peito, eu não sabia mais o que era dor, nem prazer, era tudo uma coisa só. E
era bom.
— Pare de falar besteira — ele disse. Então ordenou: — Abra a
boca.
Entreguei-me àqueles meus desejos que eu não conseguia explicar, e
ele me satisfez. Na minha boca, onde faltava saliva, ele cuspiu, e então eu
me sentia completo.
Ele virou-me de bruços, era a vez da minha frente entrar em contato
com aquela terra molhada, meu pênis endurecido em comunhão com a
fertilidade da natureza. Com os dedos que molhara com minha saliva,
misturada à dele, ele me lubrificou, e então me penetrou, novamente
nublando o significado de dor e prazer. Agarrei a terra com as mãos, entre
meus dedos vi aquele solo rico em matéria orgânica escapulir e a raiz das
gramas que arranquei com minha força desmedida. Coitadas delas, das
plantas, que morreram sob a vivacidade com a qual eu e Arnaud nos
amávamos.
Olhei para trás e nossos olhos se encontraram, sob aquele
movimento intenso que nossos corpos executavam, e ele me penetrou com
aquele olhar quase tão intensamente quanto ele me penetrava com seu
pênis. O fogo naqueles olhos anunciava uma erupção vulcânica prestes a
acontecer. E assim o espetáculo aconteceu. O encontro da lava com o mar.
Água em chamas, vapor para todos os lados. Sua exclamação final de
prazer, o gemido gutural que irrompeu floresta adentro, que acordou os
bichos, que provocaria deslizamentos de barreiras. Lancei minha semente
ali sobre a terra, aquela terra marrom tão fértil quanto meu fruto e ali a
deixamos semear, nos levantando cheios de suor, lama e folhas grudadas.
— Depois voltamos aqui para ver se nasceu um pequeno Nico —
disse ele, dando-me a mão para me ajudar a levantar, rindo da pequena poça
de porra que se enterrava na areia.
Entre aquelas risadas, banhos, transas, beijos, carícias e gozos,
aquele dia passou perfeitamente em câmera lenta. O tempo estava em nosso
favor, e os seus minutos passaram tão lentamente, dando-nos momentos de
prazer e amor que pareciam eternos, que eu me lembro de cada mínimo
detalhe daquele dia. Ali, tudo o que tínhamos era a companhia um do outro,
e nada mais importava, nem o passado, nem o presente, nem o futuro, como
se não existisse mais nada ao nosso redor e como se aquele dia fosse durar
para sempre. E eu sentia que havia durado para sempre!
Foi na perfeição daquela manhã ensolarada e tarde abafada, onde a
brisa do mar não nos alcançava, cercados pela floresta e pelas águas puras
do rio e do lago, que eu e Arnaud nos curamos. Juntos, éramos o remédio
um do outro, e assim, com o meu toque que lhe dava arrepios e o seu toque
que me dava palpitações no coração, não havia mais ferimentos, cortes,
cicatrizes, tristezas, preocupações, dúvidas, medos, nem inseguranças.
Não havia mais dor.
22 ✹ O SILÊNCIO

V
oltamos ao acampamento esfomeados, mesmo tendo nos alimentado
um do outro. Revirando a mochila para pegar comida, me deparei
com meu celular novo, que ali havia enfiado sem me preocupar em
ter contato com a sociedade, pois na mata o sinal era escasso, piscando a luz
verde que indicava chamada perdida. Quando acendi o visor, vi as trinta e
sete ligações não atendidas da minha mãe.
De repente, todas as dores voltaram. Eu estava fodido. Literalmente
e figurativamente.
Cheguei a ponderar se deveria ignorar aquelas chamadas perdidas e
fingir que nada acontecera, ou retornar as ligações da minha mãe. O medo
do que ela poderia falar era grande demais. Sentei-me, nervoso, sentindo
um embrulho ruim na barriga e a dor nas costas voltar. O universo decidira
então por mim: não havia sinal no celular. Naquelas áreas afastadas e
inóspitas, o sinal chegava na sorte. E, por sorte, ou azar, minha mãe
conseguira fazer as trinta e sete ligações durante algum daqueles momentos
de raridade onde a tecnologia nos alcançava.
Arnaud apareceu na entrada da barraca exatamente quando eu
encarava a tela do celular em desespero, meus olhos congelados e a pele
pálida, meu coração já havia parado há alguns minutos.
— O que aconteceu? — perguntou, e eu apenas virei a tela do
celular para ele ver com os próprios olhos. Ele arqueou as sobrancelhas,
aquelas que eu tanto amava, grossas e bagunçadas, que eu gostava de passar
o dedo para ajeitar os fios que eram quase tão revoltos quanto os olhos que
protegiam. — Vamos arrumar tudo e voltar.
Não me movi, apenas comprimi os lábios, enquanto ele já se
adiantava jogando as coisas nas mochilas. Eu não queria ir embora, queria
jogar aquele celular no rio e fingir que minha mãe não existia. Que só nós
dois existíamos.
— Nico, vamos voltar — insistiu, vendo minha negação em me
mover.
— Não quero — falei, percebendo o quanto soava infantil. Uma
criança birrenta recusando obediência. Envergonhado, porém sem nunca
largar a fúria, comecei a arrumar minhas coisas para partir e deixar aquele
acampamento para trás.
Até quando eu e Arnaud continuaríamos a ser interrompidos?

Os sons da natureza eram quebrados por nossos passos acelerados


enquanto caminhávamos de volta. Estávamos calados, mas meus
pensamentos eram tão altos que eu tinha certeza de que Arnaud podia
escutá-los. Vez ou outra ele me dava palavras de acalento: vai ficar tudo
bem, tenho certeza que não é nada de mais, já estamos chegando. Mas não
eram suas palavras que me acalmavam, era sua voz, a mão que apertava a
minha, ou o braço que colocava sobre os meus ombros, um beijo no topo da
minha cabeça, ou aquele seu sorriso com os olhos.
Quando passamos perto da trilha que levava à casa da bruxa, travei.
De repente, lembrei de um pesadelo. Um pesadelo real, que me fazia pensar
que Arnaud, na verdade, era um sonho. A lâmina no meu pescoço, a ameaça
à minha família. Pegue o notebook do gringo e leve pra gente na casa da
bruxa. Até amanhã ao meio-dia. O prazo já tinha acabado há muito tempo.
Pensei nas ligações da minha mãe. Será que algo tinha acontecido? Será que
cumpriram a ameaça? Não... Américo não seria capaz de permitir isso.
Seria? Ele teria escolha? Não, não. Afastei o pensamento da cabeça. Não
existia aquele tipo de coisa na minha ilha. Não estávamos numa ilha italiana
dominada pela máfia, como nos filmes. Aquelas ameaças eram vazias,
ridículas, ninguém machucaria Arnaud nem minha família.
— Quer descansar um pouco? — perguntou Arnaud, achando que
minha pausa era por conta do cansaço.
Na verdade, eu realmente precisava descansar, tudo doía. Meus pés,
pernas, costas, cabeça. Até minha bunda doía, lá dentro, onde ele havia
entrado com tanta intensidade. Coloquei a minha mochila no chão e me
sentei. Meu intuito era apenas descansar, mas, quando meus músculos
relaxaram naquele pequeno assento desconfortável, tive vontade de chorar.
Segurei-me, não queria chorar ali, não na frente de Arnaud, não queria que
ele me abraçasse e perguntasse por que eu estava chorando. Eu não queria
ter que explicar. Não queria dizer que não estava chorando por cansaço ou
por estar voltando para casa, e sim porque estava tudo ameaçado, meu
paraíso, minha família, meus amigos, o verão, e, no fim, todos iriam
embora. Ele iria embora.
Quando tive certeza de que havia contido as lágrimas, olhei para ele.
Não olhava para mim e sim para os arredores, com o cenho franzido.
Parecia calcular alguma coisa.
— Não é por ali aquela praia onde te vi pela primeira vez? —
perguntou, e olhei na direção para onde ele apontava. Ele tinha razão. Por
trás daquela mata ficava a minha praia secreta. A minha e de Elisa.
— Estou impressionado com seu senso de direção — respondi,
levantando daquela pedra, o cansaço já extinto, decidido que iríamos fazer
um desvio do caminho de casa e passaríamos naquela praia. Pelo menos,
tomando aquela rota, não passaríamos perto da casa da bruxa.
Ele protestou, falou que deveríamos voltar logo para casa. Eu falei
que não me importava e que aquilo não levaria muito tempo. Relutante, me
seguiu.

Na areia, sobre uma canga e sob a sombra de um coqueiro,


sentamos. Apreciamos o silêncio da praia, das folhas que se balançavam
lentamente atrás de nós, do rio que desembocava no mar ali ao lado, da cor
dos olhos dele, e das ondas, mais à frente, quebrando-se timidamente na
areia.
— Uau. Esse é um baita lugar secreto — falou, enquanto tirava sua
roupa e se espreguiçava. Deitou-se apenas de sunga. — Você deve ter
encantado várias garotas aqui.
— E garoto — completei, virando-me e me sentando sobre suas
pernas, da mesma maneira que Elisa um dia fizera em mim ali naquele
mesmo lugar. Meus mamilos foram o primeiro alvo de Arnaud. Esfomeado,
ele os lambeu, chupou, mordeu, enquanto com o outro ele brincava com os
dedos, apertando-o, contorcendo-o, arrancando-me delírios de prazer,
sentindo o seu volume, por baixo da sua sunga, pulsar contra a minha
bunda. Naquela altura, ele conhecia o meu corpo mais do que eu, sabia
exatamente como e onde provocar os meus mais intensos gemidos.
Quando há muito tempo nossas sungas estavam jogadas na areia, ao
nosso lado, quando não mais restavam partes dos nossos corpos que não
tivessem sido alvo de nossas bocas e dedos, e Arnaud se preparava para me
penetrar, minhas pernas sobre seus ombros e meu rosto junto ao seu,
sentindo sua respiração quente e excitada, o interrompi:
— Espere — falei, tímido, envergonhado pelo que eu estava prestes
a dizer.
— O que foi? — perguntou, mantendo seu olhar preocupado no
meu. — Algo errado?
— É que... — comecei a dizer, e, vendo que eu não conseguiria
completar a frase, ele a terminou para mim.
— Exageramos ontem, não foi? — falou, baixando os olhos. — Me
desculpe.
Sorri, compadecido por sua candura e pelo jeito acanhado que ele
abaixara os olhos. Ele se sentia culpado.
— Não tem motivo pra pedir desculpas. Você não fez nada errado
— falei, roubando as exatas palavras que uma vez ele me dissera. — O
nosso exagero nunca é demais.
E lá estava ele de novo, o meio sorriso que acompanhava o olhar
capaz de provocar tsunamis, naufragar navios e deixar jovens ilhados.
Sem mais palavras, em mim ele colocou a camisinha que antes
estava prestes a colocar em si próprio. E assim sentou sobre minhas pernas
do mesmo modo que eu havia sentado nele e um dia Elisa havia sentado em
mim. Com os olhos fechados, ele guiou o meu membro, fazendo-o entrar
naquele espaço apertado que nunca antes eu estivera com o meu pênis.
Arnaud, por dentro, era como por fora: quente, molhado, delicioso. Ele
abriu os olhos e encontrou os meus, que todo aquele tempo se mantiveram
abertos, observando seus movimentos, seu corpo que subia e descia,
acomodando meu volume que preenchia sua cavidade, suas arfadas de ar e
gemidos graves. Suas mãos apoiavam-se em meu peito, que, quase sem
fôlego, subia e descia no ritmo do seu quadril. Ergui meu tronco e o beijei.
Estava salgado, feito o mar, e minha boca desceu pelo pescoço dele atrás de
mais sal. Agarrei o cabelo dele, puxando sua cabeça para trás, fazendo-o
gemer ainda mais sobre mim, e aquela foi uma das mais belas visões que eu
já tinha visto na vida. Se eu fosse um vampiro, teria enfiado minhas presas
naquela jugular pulsante e, sem dó, beberia todo aquele sangue quente até
matá-lo.
Enquanto ele se mexia sobre mim, num rebolado que quase parecia
uma dança, e eu me impulsionava para dentro dele cada vez mais
profundamente, sentindo seus músculos internos relaxarem ao redor do meu
pênis, os outros músculos, seus braços, abdome, peito e bunda eu sentia-os
rígidos e suados sob o toque ávido das minhas mãos, agarrando-os cheio de
apetite. Havia momentos de tamanha euforia que as minhas mãos
seguravam a canga, prendendo-me ao chão e à Terra, evitando que eu me
transportasse para outro mundo, voando e sem uma gravidade.
Sem mais aguentar aquela força que implorava para sair de mim,
agarrei sua bunda, dura, macia, grande, que enchia minhas mãos, gozei e
explodi ainda dentro dele, quente, e tudo estremeceu; eu, ele e o mundo ao
redor. Meu volume pulsava dentro do seu corpo quando ele também
explodiu, em cima do meu peito, seu corpo se contraindo ao redor do meu.
Duas explosões sincronizadas, dois universos que eram formados
simultaneamente e se uniam. Sem nunca ter deixado o seu olhar
desencontrar o meu durante todo aquele momento, ele fechara os olhos,
exausto e, num suspiro, despencou sobre meu peito, melando-se no líquido
que havia acabado de expelir. Banhamo-nos na água gelada do rio, nus,
naquela água que deixava a nossa ilha para se juntar ao oceano, aquela
mesma água por onde Arnaud entrara na minha vida, e eu, na dele.
Nossos beijos ali foram longos e cansados, mas nunca cansativos.
Secamo-nos ao vento, na sombra, pois o sol não era mais necessário.
Tínhamos o calor um do outro.
Saindo da praia, no caminho entre o vilarejo de pescadores, paramos
em uma barraquinha e compramos água de coco, que bebemos direto da
fruta. Descansamos numa sombra, sentindo o líquido doce e gelado que
descia revigorante na garganta, acompanhados pelo silêncio, que era tão
confortável e prazeroso como quando entre nós havia palavras ou gemidos e
arfadas de ar.

J​ á havia anoitecido quando chegamos em casa. Olhei para a caixa


d’água pesaroso, pois mantive a esperança de repetirmos aquele pôr do sol
onde nos tocamos pela primeira vez. Ficaria para outro dia.
​Não entrei pela porta da frente, pois vi, pelas luzes e sombras, que
havia gente na sala, provavelmente meus pais assistindo à televisão. Fiquei
aliviado. Nada grave deveria ter acontecido, então. Contornei a casa,
pretendendo entrar pela porta dos fundos e tentar subir a escada sem ser
visto. Estava cansado e feliz, e não queria que minha mãe estragasse o meu
dia com o que quer que fosse que ela queria falar. Provavelmente era
reclamar que demorei muito para voltar.
Eu e Arnaud éramos todo sorrisos quando chegamos na área da
piscina, onde, no escuro, alguém estava sentado na borda, de costas para
nós, e com os pés na água.
​Parei, assustado e alerta, e coloquei meu braço na frente de
Arnaud para fazê-lo parar também. Ouvindo nossos passos, a pessoa virou-
se lentamente.
​Américo se levantou, a água da piscina escorrendo em suas
canelas, e se aproximou de nós, sem nunca olhar para Arnaud. Meu alívio
passou ao ver seu rosto de perto: um lábio partido, um olho inchado, roxo e
completamente fechado.
​— Precisamos conversar — disse. E, olhando de soslaio para
Arnaud, acrescentou: — a sós.
​Arnaud pôs a mão sobre meu ombro e o apertou quase que
imperceptivelmente, como que falando até logo ou estou logo ali em cima,
na pousada, caso precise de mim, e nos deixou a sós.
​Eu e Américo nos sentamos nas espreguiçadeiras, um ao lado do
outro. O clima pesava sobre nós, como se estivesse prestes a chover, mesmo
não tendo uma nuvem sequer no céu.

Ele era meu mais antigo amigo, dos tempos da escola, quando ainda
éramos crianças e corríamos de cueca no gramado durante o recreio.
Crescemos juntos, viramos crianças pentelhas ao mesmo tempo, e as
traquinagens nós compartilhávamos. As fugas da escola, os banhos de rio
escondidos, os doces que roubávamos de lojas para comer depois da aula. A
rebeldia da adolescência também veio junta para nós, naquele tempo
conhecemos Augusto, que se mudara para a cidade vindo de outra ilha do
arquipélago para estudar.
Foi assim, com os hormônios descontrolados, que nós três nos
apaixonamos por Elisa. Porém, entre nós nunca houve competição, apenas
companheirismo, confidência e apoio. O desprezo que Elisa demonstrava
ter por nós fez com que eles perdessem o interesse nela, e passaram a
investir em outras meninas, percebendo assim a capacidade dos seus
charmes para conquistar garotas e, dessa forma, começamos a explorar,
também ao mesmo tempo, nossa vida sexual. Éramos melhores amigos
desde sempre, confidentes, e em ninguém eu confiava mais do que neles.
— É sobre o notebook, Américo? — perguntei. — Se tu veio aqui
me ameaçar, eu...
​ Vou morar na Ilha Grande — disse, me interrompendo. Não

olhava para mim, mas para o reflexo da lua na piscina.
​— O quê?! — perguntei, sobressaltado, mas ainda mantendo
nossos sussurros, pois não queríamos ser ouvidos por meus pais. — Por
quê?!
— Você sabe — disse, virando o rosto para mim. Estava sério. —
Todos sabem.
— Tua mãe te expulsou de casa. Não é isso? Mas por quê... por que
tu tá envolvido com aqueles caras? Américo, se precisar de ajuda tu precisa
me falar.
— Não é possível que tu seja tão burro, Nico — respondeu, se
levantando e parando de frente para mim.
Também me levantei, furioso e com a respiração acelerada, prestes a
empurrá-lo na piscina.
— Então me explique, se me acha tão burro, em vez de falar em
enigmas — exclamei, ainda sem levantar a voz, mas furioso. Eu,
definitivamente, não aguentava mais essas palavras não ditas que
esperavam uma capacidade de presunção alheia. Maldito seja quem criou a
expressão “para um bom entendedor meia palavra basta”. Foda-se essa meia
palavra. Eu queria mil palavras!
Américo não me deu mil palavras, nem meias palavras. Ele encurtou
o pequeno espaço que havia entre nós com um passo e aproximou seu rosto
do meu. Com os olhos fechados, me deu o beijo que pareceu ser o mais
longo da história do universo.
Como sempre acontecia em situações que me pegavam de surpresa,
fiquei travado e não me mexi, mantendo minha boca rígida. Ele levou o
tempo que achava necessário naquele beijo e então se afastou. Olhou para
mim por longos segundos com um olhar entristecido. E, com um sorriso
desanimado, acenou com a cabeça e correu para a rua. Abri a boca para
falar alguma coisa, pois achava que era necessário, achava que aquela noite
não podia terminar daquele jeito, sem desfecho, sem explicações, sem mil
palavras, mas dali nada saiu, nem meia palavra. Fiquei com o braço
erguido, para chamá-lo de volta, mas ele já havia sumido na escuridão.
Quando abaixei o braço e começava a me virar para me sentar na
espreguiçadeira e processar o que havia acabado de acontecer, meu olhar
encontrou Arnaud parado em sua varanda, sua silhueta marcada pela luz
acesa do quarto atrás de si.
Ele me olhava calado, e, pela primeira vez, fiquei incomodado com
o silêncio entre nós.
23 ✹ A CALMARIA

S
em deixar que nossos olhares se desencontrassem, caminhei para o
quarto de Arnaud, querendo saber o que ele vira, o que ele achava que
acontecera, e, se necessário, explicar tudo para ele, mas aquilo foi uma
má ideia, pois, sem olhar para onde andava, tropecei na espreguiçadeira e
caí no chão, derrubando a mesa ao meu lado e fazendo um barulho que mais
parecia o fim do mundo. Instantaneamente as luzes do quintal se acenderam
e meu pai apareceu na porta com uma arma na mão. Eu nem sequer sabia
que ele possuía uma arma.
Minha única reação, mesmo caído no chão sobre a mesa quebrada,
foi erguer os braços, numa posição ridícula que fez meu pai abaixar a arma
e gargalhar.
— Nico?! — ele exclamou, em meio ao riso. — O que tá fazendo
aí?
— Eu... — gaguejei, sem acreditar na situação surreal na qual me
encontrava. Caído no chão, o corpo cheio de dores, recém-beijado por
Américo, meu pai rindo da minha cara enquanto segurava uma arma.
— É Nico?! — ouvi minha mãe gritar de dentro da casa. — Mande
esse moleque entrar!
Após verificar que nada sangrava, meu pai me ajudou a levantar e
me levou para dentro de casa, até a minha mãe, que nos aguardava no sofá.
Antes de entrar, dei uma última olhada para a varanda de Arnaud, mas ele
não estava mais lá.
Parecia que eu caminhava para a minha própria execução. Sentei,
trêmulo, com as pernas bambas, na cadeira elétrica que havia se
transformado o sofá.
— Eu te liguei mais de cinquenta vezes — começou ela.
Trinta e sete, pensei. Mas não ousei falar em voz alta.
— E se fosse caso de vida ou morte? — continuou.
Se fosse? Era bom que fosse! Eu não queria acreditar que ela me
fizera sair do acampamento para algo que não era caso de vida ou morte.
— O bebê do seu irmão nasceu — concluiu, por fim.
Sorri, afinal, não era um caso de morte, e sim de vida.
Imaginei o pequeno, meu sobrinho, em parte meu sangue, o pequeno
ser humano que encarava um novo mundo. Imaginei seus olhinhos curiosos,
as bochechas gordinhas, perguntei-me se um dia ele colheria acerolas assim
como um dia seu pai colhera. Sorri com o pensamento de tratar meu irmão
como “pai”, era difícil para mim imaginá-lo como pai de uma criança,
alguém que eu havia visto crescer ao meu lado. No mesmo instante, mesmo
sem nunca ter me sentido particularmente afetuoso com crianças, desejei
segurar o bebê nos meus braços. Eu e meu irmão não tivemos um bom
relacionamento nos últimos anos, o julgava por ter desejado casar tão
jovem, o amaldiçoei por ter decidido nos abandonar e ir para o continente.
Mas naquele momento, tudo aquilo parecia bobagem. Sentia falta do meu
irmão e do bebê que eu nem sequer conhecia.
— Vamos visitá-lo? — perguntei, uma parte minha querendo
conhecer o meu sobrinho, parabenizar meu irmão e minha cunhada que não
via há tanto tempo, em minha cabeça já fazendo planos de que tipo de tio eu
seria. A outra parte de mim torcia para que eles falassem que eu não
precisava ir, pois eu também queria ficar ali com Arnaud.
— Eu e seu pai vamos, mas você não — falou, e eu suspirei
aliviado. — Alguém precisa cuidar da pousada, por isso queríamos que
você voltasse logo. Partiremos amanhã bem cedinho. O casal vai embora
amanhã, com a menina, e ficarão apenas Arnaud e Margarida, então acho
que você conseguirá administrar tudo sozinho.
— Não se preocupem — falei, abanando a mão no ar. — Tomarei
conta de tudo.

​ ansado, por não ter conseguido dormir, acompanhei impaciente


C
a partida de todo mundo. Escutei a menina Ysla, que não parava de chorar,
ao ser obrigada a largar os braços de Arnaud, e os agradecimentos dos pais
dela que pareciam infindáveis, por ele ter salvado a menina — teriam meus
pais agradecido ao homem daquela mesma forma, por ter me salvado? —
Saíram todos juntos, meus pais e a família após longas recomendações e
despedidas, na caminhonete do meu pai, que iria de balsa para a Ilha
Grande e ali ficaria estacionada, no aeroporto, aguardando a volta deles.
​ argarida deu um longo suspiro exausto, falou que estava livre
M
dos barulhos da criança, ia poder terminar sua leitura em paz, e voltou ao
seu quarto. Arnaud continuou ao meu lado, observando a caminhonete
seguir o caminho do terreno, passar pela porteira e sumir numa curva à
esquerda. Ele ainda não havia me falado nada naquela manhã, e eu me
sentia desconfortável e inquieto com o seu silêncio. Ele estava bravo pelo
que havia visto na noite anterior?
Então virou-se para mim e, num sorriso, falou:
​— Pelo menos agora estou livre da responsabilidade de ser o
único homem que você beijou na vida.
​Olhei para ele, surpreso. Um flashback passou diante dos meus
olhos, Américo na beira da piscina, seus lábios tocando os meus, Arnaud
nos olhando do alto da varanda. Ele não estava com ciúmes?
​— Não foi um beijo — falei, triste. — Eu não quis aquilo.
​Ele me pegou em seus braços, abraçando-me apertado, enterrando
meu rosto em seu peito.
— Desculpa — disse. — Se você mandar, eu vou atrás dele e deixo
os dois olhos dele iguais.
Respirei fundo, deixando preencher meus pulmões com aquele
cheiro de banho recém-tomado. Eu queria ser todo Arnaud. Admirava
aquela sua confiança, firmeza, constância. Imaginei-o indo atrás de
Américo para esmurrá-lo, mesmo sabendo que ele jamais seria capaz de
fazer isso, nem eu permitiria.
— Por mais que eu fosse adorar mandar em você, tô cansado de
pessoas achando que têm algum direito sobre meu corpo, e não farei igual.
— Uma pena — ele disse, zombeteiro, querendo tirar a seriedade do
meu semblante. — Porque eu ia dizer que seria todo seu pelos próximos
dias, senhor Gerente da Pousada.
​E assim o filho da puta me fez sorrir.

​ osto de pensar sobre aqueles dias seguintes como sendo uma


G
amostra de como seria minha vida com Arnaud, como um casal. Tínhamos
a casa inteira só para nós, e lá ficamos. No sofá assistimos a filmes, seu
braço por trás da minha cabeça, que se apoiava em seu peito, ou ele deitado
com a cabeça sobre minhas pernas, meus dedos ocupando-se de seu cabelo,
em cafunés que podiam durar por toda a eternidade. Os filmes que ali
passaram pouca importância tinham, e deles pouco me recordo. De seus
cabelos queimados pelo sol e ressecados pela maresia enrolando-se em
meus dedos e sua respiração que ia ficando cada vez mais sonora e pesada,
anunciando que ele havia adormecido sob meus toques, disso eu me lembro
bem, como poderia esquecer? O olhar sorridente que ele me lançava ao
acordar alguns minutos depois, espreguiçando-se ainda com a cabeça sobre
minhas pernas, para depois puxar-me para ainda mais perto de si e me
beijar, isso era inesquecível. Beijos que não poucas vezes terminavam na
minha cama, corpos nus, um ocupando o outro, e continuavam sob o
chuveiro. Meu quarto era o nosso quarto, e lá passávamos a maior parte do
tempo, naquela cama que, com seu tamanho diminuto, nos engrandecia e
aumentava a nossa proximidade.
​Nossas pausas eram na cozinha, e não tão longas, pois observar
Arnaud cozinhando sem camisa fazia a magia de despertar meu membro
que eu acreditava estar cansado demais. Nunca era demais. Numa dessas
vezes, enquanto eu observava Arnaud cozinhar silenciosamente, ele
assoviando uma música qualquer e eu com meus cotovelos sobre a mesa, as
mãos segurando a cabeça, Margarida apareceu na cozinha, atraída pelo
cheiro da comida. Arnaud, tímido pela presença da mulher, puxou a camisa
que havia jogado sobre uma cadeira e começou a vestir, quando ela o
interrompeu:
​— Por favor, não prive Nico dessa visão só por conta da minha
presença.
​Baixei os olhos, envergonhado, querendo enterrar minha cabeça
que deveria estar da cor do tomate que ele cortava.
Eu me sentia envergonhado por ter ficado tão à vontade com Arnaud
ao ponto de fazer até Margarida, que mal pisava naquela casa, perceber a
nossa relação. Há quanto tempo ela sabia? E, se ela sabia, meus pais
também sabiam? Tinha dúvidas se eles me deixariam em casa sozinho com
ele se soubessem.
Jogando uma resma de papel na mesa à minha frente, Margarida
disse:
— Seu livro. Anotei algumas dicas de coisas que você pode
melhorar.
— Está tão ruim assim? — perguntei, folheando aquelas páginas
cheias de frases grifadas e comentários escritos em vermelho.
— Se estivesse ruim eu nem teria passado da segunda página. Para
eu me dar esse trabalho, a história tem que ser muita boa.
Arnaud se virou para mim ao ouvir aquelas palavras e, sorrindo,
ergueu as sobrancelhas, como que dizendo viu só? Te falei.
— Obrigado — foi tudo o que consegui dizer.
— Apenas trabalhe um pouco, escreva mais, e talvez você tenha
chance. Posso mostrar aos meus editores. E Arnaud... — ela disse, virando-
se para ele — sou uma grande fã. Parabéns pelo seu trabalho. Estou ansiosa
pela próxima matéria.

Rebeca e Inara apareceram numa dessas tardes, elas haviam passado


na Ilha Grande o tempo que eu e Arnaud passamos no acampamento.
Falaram de suas noites agitadas cheias de álcool, sexo e carinhos. Falaram
sobre o relacionamento delas e disseram, sem pudores, que haviam
inevitavelmente se apegado e, mesmo sabendo que se separariam ao final
das férias, não se arrependiam. Carpe diem, não é? Passamos o dia bebendo
cerveja e Inara fez tranças no meu cabelo. Acabamos nos apegando,
também, uma amizade surgida de um lugar que eu não esperava. Sentar
entre as pernas dela, de olhos fechados, ouvindo a conversa das pessoas que
eu amava ao meu redor, sentindo-a puxar o meu cabelo, trançando-o, criou
um vínculo mágico entre nós. Mais tarde, alegando que nos dariam
privacidade para que aproveitássemos aquele raro momento em que meus
pais me haviam deixado sozinho em casa, elas se despediram e não
voltaram mais.

Eu classifico aqueles quatro dias da visita dos meus pais ao meu


irmão como a calmaria antes da tempestade. Os Dias Perfeitos. Aquele céu
limpo, completamente azul e sem nuvens, os ventos parados e inexistentes,
o mar sem ondas e a noite silenciosa que profetizavam o fim dos tempos. E
assim foi nossa calmaria: as manhãs preguiçosas, de conversas e abraços na
cama, as tardes quentes e longas, de beijos à beira da piscina após o almoço,
as noites onde não desgrudávamos um do outro, de carinhos e risadas, e as
madrugadas que o tesão não nos deixava dormir.
— Você tá se achando, né? — comentou Arnaud, ao me flagrar me
admirando no espelho. Eu olhava meu corpo, minhas tranças, e me sentia
bem. E, ao mesmo tempo, eu sabia que isso não vinha da validação alheia.
Eu, pela primeira vez, me sentia pertencido à minha própria vida.
— Sim — respondi.
— E com toda razão — ele rebateu, me agarrando em seguida.
Naqueles dias eu me senti completo. Estava feliz, mas não era como
se minha felicidade dependesse única e exclusivamente dele, de Arnaud, era
como se ele tivesse me ajudado a encontrá-la, como se ele tivesse me
mostrado o caminho até ela. Ele me ajudou a ser quem sou hoje, me
ensinando coisas que eu jamais aprenderia sozinho. Ele me mostrou como é
confiar em alguém, expressar seus sentimentos e ser retribuído, como
alguns gestos e olhares valem mais que palavras e como algumas palavras
valem mais que gestos. Ele me amou tanto que aprendi a amar a mim
mesmo. Ele tirou minhas inseguranças, medos, dúvidas, pois com ele eu só
tinha certezas.
E eu tinha certeza de que aqueles Dias Perfeitos (que foram poucos,
mas pareceram infinitos), nas nossas manhãs sentados no sofá tomando
café, ou quando eu me sentava à mesa da cozinha e o observava cozinhar
com tanto afeto para nós, ou à tarde, quando não tinha nada para fazer, e
ficávamos sentados na beira da piscina um olhando para o outro cheios de
sorrisos, até que ele me empurrava na piscina e nadava até mim para me
beijar, ou à noite, quando, no calor, tomávamos banho juntos antes de
dormir, mas nunca íamos dormir, pois ali mesmo, no banheiro,
começávamos a nossa transa apaixonada, iam durar para sempre. Eu tinha
certeza de que teríamos todo o tempo do mundo, que aqueles dias longos e
ensolarados nunca iam acabar, naquela casa que era só nossa, naquela ilha
que nos pertencia. Eu podia ter certeza de que Arnaud estaria sempre ao
meu lado, e eu, ao lado dele, pois que universo cruel seria capaz de me dar
aqueles Dias Perfeitos somente para retirá-los de mim logo em seguida? Eu
tinha certeza de que o universo era perfeito e bom.
◆ ◆ ◆

Nossa vida de casal acabou num piscar de olhos numa madrugada


trágica, logo antes de meus pais chegarem em casa.
Acordei com um barulho de coisas se quebrando lá embaixo, no
térreo. Sentei-me alarmado, desesperado com a ausência de Arnaud ao meu
lado. Quando olhei para a porta do quarto, vi que ele já estava de pé,
fechando-a. Colocou o dedo na frente da boca, gesticulando para que eu não
fizesse barulho. Ele trancou a porta de chave e voltou para a cama. Me
abraçou e sussurrou no meu ouvido:
— Tem alguém lá embaixo. Fique calmo, vai ficar tudo bem. Já
chamei a polícia, vamos esperar aqui.
Não respondi nada, deixei-me ser envolto pelos braços de Arnaud,
que respirava profundamente atrás de mim, com o rosto enfiado em meus
cabelos, me apertando como se dali ele não me permitisse sair. Fiquei
parado, os olhos fechados, me concentrando apenas na respiração dele, seu
peito colado às minhas costas, seu quadril encaixado ao meu, nossas pernas
entrelaçadas, tentando ignorar o barulho de passos, de móveis sendo
derrubados, de vidro se espatifando.
Comecei a chorar quando ouvi passos subindo a escada. Arnaud me
apertou ainda mais.
— Vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem — ele repetiu.
Mas não ficou tudo bem.
Bastaram três chutes para a porta do meu quarto vir abaixo.
Arnaud me largou e se levantou. Um homem encapuzado entrou e o
empurrou no peito. Usava um anel de caveira no dedo. Arnaud caiu para
trás, com as costas sobre a porta de vidro da varanda, que se quebrou
inteira. Gritei e me levantei para ir atrás dele, mas uma mão me agarrou por
trás, me puxando pelas tranças. A última coisa que vi, antes de ser arrastado
pelo corredor, foi o encapuzado dando um chute na barriga de Arnaud, que
estava todo ensanguentado e encolhido sobre os estilhaços de vidro.
Gritei e esperneei enquanto era arrastado escada abaixo. No térreo,
vi a sala toda destruída e aquele maldito canivete novamente apontado
contra minha garganta.
— Eu te avisei, Nicotina — ele disse. Não se dera o trabalho de
esconder o rosto. Estava decidido a me matar. Vi a mochila de Arnaud do
lado da porta. Já tinham pego o notebook lá no quarto dele. Pensei em
Margarida, na pousada. Tinham passado pelo quarto dela antes de
encontrarem o dele?
Um barulho no primeiro andar o fez desviar os olhos de mim, e
aproveitei para fugir. Ele me agarrou novamente pelo cabelo, e enfiou o
canivete no meu braço. Gritei, de dor, de raiva, como ele ousava entrar na
minha casa daquele jeito, me puxar pelas tranças, destruir o trabalho dos
meus pais, acabar com meus dias de sossego?
Ele puxou o canivete do meu braço e me olhou com nojo. Eu estava
caído no chão, e ele em pé ao meu lado. Falou, como se me cuspisse:
— Vocês tão achando que são quem, tu e teu pai, dois pre..
Peguei um caco de vidro no chão, grande, um pedaço do tampo da
mesa de centro, e, apertando-o, ferindo a palma da minha mão, enfiei na
panturrilha dele, fazendo-o berrar.
Ele caiu de joelhos, e aproveitei para chutar a mão dele, fazendo-o
largar o canivete. Ouvi um barulho lá fora, um baque, como se algo tivesse
caído do andar de cima, mas não dei atenção, precisava agir rápido. Fiquei
de pé, enquanto ele se ocupava de estancar o ferimento da perna. Peguei
uma prateleira da estante que haviam derrubado no chão e meti na cara
dele. Ele caiu, ainda consciente, de barriga para cima. Tentou se levantar,
mas me ajoelhei sobre o peito dele e o agarrei pelo pescoço.
— Nico?! — Arnaud gritou, descendo pela escada. Estava todo
coberto de sangue, mas bem.
— Eu tô bem — gritei, voltando meu olhar para o homem que
perdia a consciência sob meus dedos. Tive vontade de pegar meu canivete e
escalpelar aquele racista miserável. — Margarida! Vai atrás dela!
Arnaud passou pela porta e foi para a pousada. Lembrei de quando,
transando, ele apertava meu pescoço, de como, dependendo da posição de
sua mão, eu sentia dor e minha vista começava a escurecer. Arnaud evitava
esses pontos, mas eu os procurei no pescoço daquele homem e os apertei.
Quando o senti amolecer embaixo de mim, o larguei e me deixei cair para o
lado.
Margarida e Arnaud voltaram alguns minutos depois. A escritora
tremia, segurando o braço do francês. Ela não tinha nenhum machucado,
havia se trancado no banheiro aquele tempo todo. Após beber água para se
acalmar, me ajudou a amarrar o invasor no corrimão da escada. Arnaud
havia derrubado o outro pela varanda, e foi amarrá-lo lá fora.
— Dá licença, Margarida — disse o francês, e me puxou para o
escritório do meu pai.
— Toda — ouvi ela dizer, antes de Arnaud fechar a porta atrás de si.
O escritório estava completamente revirado. A única coisa que
permanecia no lugar era a escrivaninha, um móvel enorme de madeira
maciça, que provavelmente não tiveram forças para virar. Foi lá que me
sentei. Eu estava me tremendo inteiro, cheio de adrenalina. Após fechar a
porta, Arnaud se posicionou em pé entre minhas pernas.
— Nico — ele disse, as palavras saindo exasperadas, ofegantes. —
Você não faz ideia do quanto me deixou preocupado. E excitado. Todo
valente daquele jeito...
Sorri. Estranhamente, me sentia excitado também. Culpei a
adrenalina. Me inclinei para beijá-lo, mas ele se ajoelhou diante de mim.
Segurou minhas mãos e as beijou, então disse:
— Meu herói.
Arnaud segurou meu pau, que já pulsava para fora da cueca, e o
colocou na boca. Sustentei o olhar dele enquanto ele me chupava, seus
olhos concentrados de marinheiro quase não piscavam enquanto sua boca
me devorava. Gozei lá dentro, me estremecendo sobre a mesa de trabalho
do meu pai, e, quando Arnaud engolia a última gota de porra, escutei um
carro freando bruscamente na entrada da casa. Dei um pulo, coloquei meu
pau para dentro da cueca e corri para a sala.
Foi no meio da destruição que eu percebi que estava só de cueca,
completamente ensanguentado. Num canto, Margarida cutucava o bandido
amarrado para ver se ele ainda estava vivo. No outro, Arnaud, apenas de
calça moletom, cheio de ferimentos, segurando uma almofada para ocultar a
ereção, na porta da frente meu pai segurando uma arma, e minha mãe,
pálida, bestificada, segurando um pedaço de madeira.
Cruzei os braços, enchi o peito de ar e falei:
— Eu disse que ia cuidar de tudo!
24 ✹ O FIM DO VERÃO

A
rnaud foi embora naquela tarde. Não sei quanto tempo demorou para
as viaturas e ambulâncias chegarem lá em casa. Muito tempo.
Cuidaram dos ferimentos, levaram os bandidos, passaram alguns
minutos ouvindo nossos depoimentos. Foram embora rápido demais, como
se nada grave tivesse acontecido ali. Entretanto, meu mundo parecia
desmoronar. Como um inverno que chegava apocalíptico, arruinando o
verão.
Ver Arnaud se aprontando para partir, colocando suas coisas na mala
para ir embora, foi o pior de tudo. Era uma coisa para a qual eu não estava
preparado. Eu estava na varanda do meu quarto, varrendo os cacos de vidro
e limpando o sangue, quando o vi lá na pousada. A dor que eu senti ao ver
aquilo me nocauteou de uma maneira que eu nunca achei que um ato tão
simples como o de arrumar uma bagagem fosse capaz de fazer. Eu não
podia deixar aquilo acontecer daquela forma, tão bruscamente, tão de
repente, sem longos beijos e sexo e abraços de adeus, sem choros no ombro
um do outro, sem súplicas nem promessas. O que seria de mim ali, sem ele,
depois de todas as mudanças que provocara em mim?
Com algo entalado na garganta e as mãos que tremiam como que
prestes a convulsionar, principiei a correr até a pousada, queria subir no
quarto de Arnaud, beijá-lo, abraçá-lo, pedir para que ficasse mais um
pouco, mais um dia, dois dias, dez dias, ficasse o resto das estações, mas na
saída da casa encontrei minha mãe, que me segurou nos braços.
​— Para onde você vai? — perguntou, mas não respondi de
imediato, não com palavras, respondi com um ato de rebeldia, tentando
desvencilhar-me das mãos que tinham mais força do que eu esperava, me
provocando um grito de dor, pelo ferimento no meu braço.
​— Arnaud tá indo embora — falei, finalmente, após minha
fraqueza me impedir de sair dali, não, choraminguei, feito uma criança, um
bebê, finalmente incapaz de manter a máscara que protegia a verdade dos
meus pais, pois dessa máscara eu não precisava mais. Eles já sabiam de
tudo.
​— Sim. Tá mais do que na hora — falou a mulher, olhando
seriamente para meu pai, um olhar que dizia muitas coisas que eu não era
capaz de compreender, e o homem olhou para mim e deu de ombros.
Desabei. Caí de joelhos na frente deles, o choro rompendo garganta
afora. Solucei, o catarro escorrendo pelo nariz, a baba descendo pelo meu
pescoço. Meu pai me segurou pelo braço e me puxou para cima.
— Para de chorar, Nico. Você tem que ser forte. Temos que ser
fortes.
— Me desculpa, pai — exclamei, as palavras emboladas pelo choro,
e me joguei sobre ele. Meu pai me abraçou, colocando a mão sobre minha
cabeça, acarinhando as tranças que deviam estar todas desfeitas. — Foi
culpa minha, desculpa, foi tudo culpa minha.
Meu pai me levou para a cozinha e me colocou numa cadeira. Fiquei
lá, chorando, enquanto ele pegava um copo de água para mim. Ele esperou
o copo se esvaziar e o choro arrefecer, fazendo carinho na minha cabeça,
passando a mão pelas tranças desfeitas, e então falou:
— Eu poderia me culpar, também. O prefeito conversou comigo
esses dias, quis me convencer a apoiá-lo nessa palhaçada de privatização. A
nossa pousada é a mais próxima da reserva e ele queria que eu concordasse
em ser uma espécie de apoio para os esquemas dele, caso contrário, ele
ameaçou retirar nossa licença de funcionamento.
— Que esquemas, pai?
— Não sei, nem quero saber. Aqui é nós por nós, Nico. Somos
pretos, eu e você. Isso, nem sua mãe nem Arnaud jamais vão entender.
Precisamos trabalhar dobrado, precisamos nos comportar o tempo inteiro,
precisamos vigiar cada mínimo movimento nosso, pois sempre estão
esperando nossa queda. Arnaud achou que podia sair andando por aí
fazendo o que quisesse porque é branco, porque é europeu. E tava certo,
podia. Mas sobrou pra quem? Pra gente. Sempre sobra pra quem tá à
margem. Mas ele também não tem culpa disso. De toda forma, o melhor é
Arnaud se afastar, por ora.
Escutei um barulho lá fora e corri para a janela da cozinha. Vi,
passando pelo portão da entrada do nosso terreno, um táxi.
​O aperto no coração foi aumentando à medida que aquele carro se
aproximava. Como se as próprias mãos do taxista estivessem dentro do meu
peito espremendo aquele órgão de bombear sangue e sofrimento até extrair
a última gota do suco. Quando o carro parou perto do terraço, me virei para
correr até a porta. Meu pai me segurou e disse:
​— Você não escutou nada do que eu falei?
​Ouvi o barulho da porta do táxi se fechando lá fora. Voltei para a
janela e vi Arnaud, bem ali, a alguns metros de mim, escapando por entre
meus dedos, vaporizando, sumindo para sempre da minha vida da forma
mais injusta possível. Eu não poderia deixar que ele fosse embora daquela
forma, sem uma última palavra, sem um último olhar, sem um daqueles
nossos olhares que evoluíram em linguagem própria, que palavras não mais
necessitavam, um sorriso de adeus, um sorriso que diz que tudo vai ficar
bem, um sorriso que diz eu te amo, por favor não vá embora.
​De ponta dos pés, observei tudo à distância, como um mero
espectador da minha própria desgraça, a bagagem dele já estava dentro da
mala do carro, o taxista fixava a bicicleta alugada no teto do veículo e
Arnaud se preparava para entrar no carro e ir embora.
​Aquele último olhar dele antes de entrar no táxi assombrou
minhas longas e solitárias noites que se sucederam. Ele procurou, em vão,
meu olhar, mas não me viu ali atrás daquela janela. Naqueles longos
segundos enquanto o taxista prendia a bicicleta e Arnaud abria a porta de
trás para se sentar, vi seu rosto virar, seu olhar que não era mais mar nem
revolta e sim pesar e esperança. Olhava para a porta, fechada, talvez me
esperando, esperando que dali eu saísse correndo e o abraçasse, em prantos,
e a esperança que durou aqueles poucos segundos se evaporou diante dos
meus olhos. Vi o momento em que a esperança deu lugar à decepção, à
tristeza, quando seu olhar baixou, a linha da sua boca se ampliou como um
horizonte e ele entrou no carro, fechando a porta entre nós.
O taxista pisou no acelerador e saiu com o carro, deixando para trás
apenas poeira, dióxido de carbono e a memória de Arnaud que ardia na
minha garganta.

Meu pai me soltou e fui até o terraço. Minha mãe, dessa vez, não me
impediu de passar pela porta. Vi o rastro do táxi, da partida de Arnaud, e,
por pouco, não corri, como um cachorro atrás de um carro, uma criança
atrás da mãe levada pela polícia. Fiquei parado observando o veículo virar à
esquerda depois do portão e sumir na estrada, o braço esfaqueado que
voltara a sangrar e a perna que não tinha mais forças para me sustentar, e
sentei-me na cadeira de balanço onde tantas tardes meu pai havia sentado
para ler o jornal, num torpor que me impedia de assimilar que aquela
presença que tanto influenciara minha vida, havia, de vez, ido embora.
— Você não vai atrás dele? — ouvi alguém falar. Olhei para o lado,
assustado. Era Margarida, meio tímida, meio atenta, vinda da área da
piscina.
— Não sei o que fazer... — respondi. — Sinto que tô preso no meio
de um fogo cruzado.
Ela olhou para os lados.
— Não tô vendo nenhuma bala — disse. — E se tem uma coisa que
já aprendi sobre você, é que você sempre faz o que quer. E sempre se vira
sozinho.
Sem precisar responder ou pensar, levantei-me da cadeira num salto,
corri até minha bicicleta, que estava encostada numa árvore perto da
garagem, dei um rápido aceno com a cabeça para Margarida, e saí.

​ esmo sabendo para onde aquele carro iria — o centro da cidade


M
era a única opção —, segui o rastro dos pneus deixados na terra ressecada e
na grama.
Ainda era cedo, o sol ainda não estava escaldante e a brisa fria que
soprava à noite ainda persistia naquele horário, mas me sentia no inferno.
Pedalei com o desespero e afinco de uma pessoa perseguida por uma besta,
sem me importar com os buracos, pedras e raízes que chacoalhavam a
bicicleta ameaçando desmontá-la, sem me importar com o braço que ainda
sangrava, com as pernas que queimavam e latejavam com o esforço de
impulsionar os pedais no terreno irregular.
A jornada de trabalho no centro da cidade estava começando. Havia
cheiro de frutas e peixes frescos no ar. Lojas sendo abertas, mesas e
cadeiras sendo colocadas na frente dos cafés. Os madrugadores, que cedo
acordavam para terem o privilégio de escolher os melhores legumes na feira
do mercado público, já carregavam suas sacolas cheias de suprimento para
o café, almoço e jantar dos dias seguintes. Passei por duas ou três pessoas
que se dirigiam para casa dormir, encerrada uma longa noite de sexo e
bebedeira, com suas roupas sujas e amarrotadas, cheias de brilho para a
noite. Pedalei até a marina, único lugar que eu pensei que poderia encontrá-
lo, passando pelas mesmas ruelas escuras, estreitas e úmidas que um dia
caminhamos juntos, e ali recebi gritos de protesto pela velocidade que eu
passei, quase atropelando pessoas, derrubando vasos ou sendo eu mesmo
quase atropelado por um pequeno caminhão que chegava para descarregar
mercadorias.
​Foi ao chegar na marina que meu pânico se assentou
completamente em meu espírito. A quantidade de barcos estava pela
metade, podia ver alguns saindo pelo canal e inúmeros marinheiros
carregando seus caixotes e bagagens para os barcos. Estavam indo embora.
A temporada de ventos fracos havia acabado e era hora de seguir o caminho
na travessia do oceano. Joguei a bicicleta em qualquer lugar da calçada e
corri até o píer, sem deixar de esbarrar em marinheiros e pescadores que
comigo gritaram. Procurei desesperadamente o Sotaford, os olhos ferozes
passando de um lado para o outro, o corpo girando nos calcanhares em
desesperança. Precisei me acalmar, parar e respirar fundo para conseguir
focar e procurar melhor. Estava lá, bem na minha frente, o barco de Arnaud,
parado, vazio, sem sinais de partida e sem sinais do seu dono. Onde ele
estava?
​Então lembrei da bicicleta que ele havia alugado na loja do pai de
Elisa. Ele só poderia estar lá, devolvendo-a e pagando pelos dias de aluguel.
Corri, quase não encontrando minha bicicleta, pois não havia prestado
atenção ao lugar onde eu a havia deixado. Apenas a encontrei quando uma
senhora que vendia pulseirinhas artesanais de búzios em uma mesinha na
beira do canal reconheceu o desespero em meus olhos, o desespero de quem
perdeu alguma coisa, e achou que era a bicicleta que eu estava procurando,
me apontando o lugar onde havia me visto jogá-la, bem ao lado dela.
Estava subindo na bicicleta quando a velha, que até então sorria,
olhou para mim, séria, e me estendeu a mão fechada, como se segurasse
alguma coisa. Encarei-a por alguns segundos sem entender o que ela queria,
e, quando ela voltou a sorrir com aqueles dentes gastos e amarelados,
entendi que ela me oferecia alguma coisa. Estendi a mão aberta de volta,
onde ela depositou uma pulseira de búzios.
​— Tome. Que te tragam respostas — falou, e virou-se para sua
mesa, voltando ao trabalho de fabricar mais pulseiras que seriam vendidas
aos poucos turistas que persistiriam até o fim do verão.
​Agradeci, mesmo não precisando de respostas, pois em mim não
me restava mais nenhuma dúvida, mas ela não me pareceu ouvir, como se
tivesse completamente abstraído minha presença ao seu lado. Guardei a
pulseira no bolso e saí em disparada em direção à loja.
Na loja só encontrei Elisa, que substituía o pai. Ela confirmou que
Arnaud tinha estado lá, devolvera a bicicleta e não lhe dera nenhuma
informação sobre para onde ele ia. Vendo a dor e o medo em meus olhos,
ela tentou me tranquilizar, garantindo que ele não ia embora sem antes se
despedir de mim. Se eu não estivesse completamente desconsolado, sorriria
para ela, pois suas palavras gentis me tocaram. Foi como se ela tivesse
limpado um pensamento sujo no fundo da minha mente que me fazia
questionar se Arnaud realmente iria embora sem me dar adeus. Mas a
verdade era que eu não me importava com despedidas. Eu não queria que
ele fosse embora. Esse era o problema.
Quando eu estava me preparando para sair e surtar na rua sem saber
onde procurar Arnaud, já pensando em fazer uma vigília no píer até que ele
aparecesse, Elisa me puxou para os fundos da loja, lançando um olhar
rápido e preocupado para a entrada, como se temesse que alguém chegasse,
e falou, num sussurro, quando nos isolamos atrás do balcão:
— Vou partir hoje à noite.
— O quê?! — exclamei, sem entender o que ela queria dizer com
aquilo. Ou recusando-me a entender, pois temia o significado daquelas
palavras.
Então ela me contou seu plano. Havia juntado apenas o essencial,
algumas roupas e dinheiro que havia pego da loja em pequenas quantidades
nos últimos meses, para que sua mãe não notasse a falta de roupas em seu
quarto nem seu pai percebesse o déficit no caixa. Sua mochila já estava no
barco esperando-a. Ela e o seu marujo partiriam naquela madrugada, no
silêncio da lua, quando todos estivessem dormindo.
— E tu já sabe pra onde vai? — perguntei. — E como vou falar
contigo? Não vai ter sinal de celular no mar. E quando chegar lá? Como vou
saber que tá bem? — Havia tantas perguntas! Queria bombardeá-la com
questionamentos. Como ela poderia nos deixar daquela forma que me
parecia tão repentina e sem planejamentos?
— Vou aonde quer que o vento me leve, e eu vou arranjar um jeito
de te dar notícias. Contanto que não diga pra ninguém onde eu estiver. Sei o
seu número e endereço. — Fez uma pausa, como se duvidasse do que
estava para dizer. E então continuou: — você sempre vai ficar aqui, né?
Assenti, calado, lânguido, pois aquela era uma certeza que eu não
mais tinha. Eu ficaria ali naquela ilha para sempre? Esse pensamento nunca
havia me deprimido antes.
— Tô preocupado, Elisa. Não é melhor pensar mais um pouco sobre
isso?
— Já pensei demais. E cansei de ficar parada. Tu também não tá
cansado? De ficar aqui, seguindo os passos dos nossos pais?
— É o caminho mais seguro — falei, sem perceber que estava
apenas repetindo as palavras do meu pai.
— Será? Nunca saberemos se não arriscarmos outro caminho.
Então ela me abraçou, um abraço longo, forte, mas sem lágrimas.
Quando tirou o rosto do meu pescoço, me beijou na boca, dessa vez um
beijo rápido, apenas um estalo, uma pequena lembrança dos nossos longos e
quentes beijos que se haviam dissipado junto com aquele último verão que
passamos juntos. Antes de sair da loja, olhei para trás, e eu vi em seu
sorriso esperança, expectativas, o desejo por abraçar o desconhecido. Nunca
tinha visto Elisa tão feliz. Talvez estivesse feliz pela primeira vez na vida. E
ali eu soube que ela teria uma bela vida pela frente, livre daquela ilha.
Quando virei a esquina, chorei.

◆ ◆ ◆

Teria ficado ali embaixo daquela árvore numa das ruelas desertas do
centro se não fosse o calor insuportável, a fome, a resignação e a minha
falta de persistência. Em outras palavras, desisti. Certamente o pensamento
de sair pedalando pelas ruas a gritar seu nome até que o fizesse me ouvir
passara pela minha cabeça, mas me faltava coragem. E a minha falta de
coragem só aumentava a minha tristeza. Montei em minha bicicleta e
pedalei de volta para casa.
Ouvi um sininho de bicicleta tocar atrás de mim, provavelmente
alguém me chamando ou sinalizando alguma coisa, mas não dei atenção,
não era Arnaud, ele já havia devolvido sua bicicleta. Então a pessoa me
alcançou, diminuiu a velocidade e se posicionou ao meu lado, me
acompanhando. Virei a cabeça e vi Rebeca, toda vermelha, a pele dos seus
ombros começando a despelar.
— Caralho, Nico! Tu tá bem? Voinha não me deixou ir pra pousada,
ficou preocupada com o que aconteceu. Liguei pra lá e tua mãe disse que tu
tinha saído, então fui pra cidade te procurar.
— Arnaud foi embora — falei, e ela deu uma freada brusca em sua
bicicleta. Se estivéssemos mais rápidos, definitivamente ela teria capotado.
Fui obrigado a parar também.
— Como assim? Acabei de passar pela marina e vi o barco dele lá
— falou, com o cenho franzido. — Vi outros velejadores indo embora. Mas
não ele.
— Ele saiu da pousada do meu pai — respondi, sem intenção de
reviver as péssimas memórias do que tinha acontecido naquela manhã cedo.
— Não sei onde ele tá.
Seu cenho não estava mais franzido, mas em seu olhar persistia a
seriedade. Ela parecia prestes a tomar uma decisão. E, com uma
determinação que eu nunca tive, ela disse:
— Ele deve estar muito bem escondido. Espero que esteja. Seja lá o
que ele tá investigando nessa ilha, ele tá correndo muito perigo. Mas eu vou
encontrá-lo. Te encontro mais tarde!
25 ✹ OS OLHOS

N
ão demorou para Rebeca voltar com o endereço onde Arnaud estava.
Quando eu quis saber como conseguira, ela disse que foi perguntando
aqui e ali. Não revelou suas fontes. Uma boa jornalista nunca revela
suas fontes.
— Falando em jornalista, tenho uma coisa pra te falar — ela disse.
— Mas eu preciso que você garanta que não vai me matar.
— Eu quase matei aquele cara na pousada, mas ainda não sou
assassino, Beca.
— Pois saiba que se for seguir essa carreira, nessa ilha você vai ter
um futuro promissor, do jeito que as coisas andam por aqui...
— Tá bom, Beca, chega de piadas de mau gosto e fala logo o que
tem pra falar.
Ela me olhou séria, suspirou fundo, e disse:
— Minhas aulas só voltam daqui a um mês. Eu ainda ia passar uns
quinze dias aqui. Mas eu recebi um e-mail de um jornal foda onde eu tinha
aplicado pra uma vaga. E eu passei, Nico! Consegui um estágio lá! Eu só...
Preciso estar lá daqui a dois dias.
Gritei e a agarrei. Pulamos abraçados. Era algo que ela estava
esperando há muito tempo, e naquele momento minha tristeza deu espaço
para que eu me sentisse feliz por ela. Eu estava orgulhoso dela.
— Com você sendo jornalista por aí, eu é que não vou ser assassino.
Agora corra, não vá perder esse estágio! — exclamei.
Depois do longo abraço, das lágrimas enxugadas, e de vê-la partir
para casa, fui até o endereço que ela havia me dado.

Fiquei paralisado, encarando a fachada da pousada no centro da


cidade, pensando no que eu faria ou diria quando encontrasse Arnaud. Eu
tinha desejado tanto que ele se despedisse de mim, e agora achava que não
havia despedida apropriada. O que eu falaria? O que eu sequer poderia
dizer? Adeus e até logo? Foi bom te conhecer? Me liga quando chegar?
Não, nada disso parecia cabível, sincero, nada disso eu queria dizer. Talvez
me jogar aos seus pés e implorar para que ele não fosse embora fosse mais
verossímil. Ou então chegar lá com minhas malas no ombro pedindo para
que me levasse junto. Ou me esconder no seu barco e só me revelar quando
já estivéssemos em alto mar, sem volta.
​Como eu poderia, em palavras, ou até mesmo em ações, dar adeus
àquele homem que tudo em minha vida havia mudado? Em tão pouco
tempo e sem muito esforço ele havia chegado como uma tempestade
revirando o meu mar, transformando minha calmaria em redemoinho.
Trouxe-me descobertas, prazeres, desejos. Ele me ensinou a ser um
explorador. E como eu poderia agradecê-lo por isso?

Plano. É assim que defino o olhar de Arnaud quando ele me viu ao


abrir a porta do seu quarto naquela velha pousada do centro da cidade.
Vazio. O leito seco de um rio. O mar que havia parado de receber o efluente
do qual se alimentara por milênios. Sem ondas, sem cor, sem nutrientes.
— Você me encontrou — disse, num tom que não consegui decifrar.
Não soube dizer se ele estava surpreso ou decepcionado. Se ele queria ou
não que eu o tivesse encontrado. Puxou meu braço para dentro do quarto e
fechou a porta, trancando-a. Só então me abraçou, enfiando seu rosto em
meus cabelos e dando um lento e longo suspiro, como se houvesse drogas
escondidas entre aqueles fios.
— Por que você foi embora desse jeito? — perguntei.
— Você sabe que eu não posso mais ficar — respondeu, tirando o
rosto do meu cabelo. Ergueu o meu rosto com uma mão e olhou em meus
olhos. Ali havia lágrimas. Nos meus e nos dele. — Vou partir amanhã.
— Vou com você — falei. Supliquei.
— Mon petit Nico. Você precisa ficar, cuidar dos seus pais. Eu sou
só problemas, eu arruinei o teu paraíso. Eu fiz você se machucar. Eu preciso
sair daqui e consertar isso.
— Você não tem culpa e você não precisa fazer nada. Deixa eu te
ajudar.
— Não — ele disse. A voz era rígida, mas as mãos afagavam meu
cabelo, tentando me consolar e conter meu choro enquanto ele mesmo era
inconsolável. — É perigoso. Eu posso fugir, mas sua família vai ficar aqui,
Nico. Tem muita gente envolvida. É um grande esquema pra esvaziar a
riqueza da ilha e encher os bolsos de dinheiro. A prefeitura, a polícia, a
mineradora, até os velejadores, alguns deles estão envolvidos com tráfico
ilegal de drogas e de animais da ilha. Por isso eu vim entre eles, pra
acompanhar.
Meu coração afundou de medo.
— E você vai voltar no meio deles?! Eles vão te matar em alto mar!
— Não vão, porque eu já sei de tudo. Está tudo documentado. Agora
eles têm medo de mim. Aqueles dois que invadiram a pousada são só
lacaios, fizeram aquilo por conta própria, queriam roubar meu notebook pra
entregar ao chefe, achando que iam ser recompensados. Como se meu
trabalho ficasse só no computador. Mas o chefe não gostou, não quer
chamar atenção. Agora eles estão desaparecidos. Se eu continuar quieto,
Nico, vai ficar tudo bem. Não vou mais publicar essa matéria. Não é o meu
lugar. De toda forma, eu não vou voltar com os velejadores. Estou
esperando um momento oportuno para zarpar sozinho. De qualquer outro
jeito, poderiam me seguir.
— E depois, o que você vai fazer?
— Vou terminar a travessia que eu prometi. Vou deixar as coisas
esfriarem, esquecerem de mim, perceberem que não sou mais uma ameaça.
E depois volto pra você.
Refleti sobre aquelas palavras. Apertado entre seus braços, meu
rosto contra seu peito e seu coração que batia na altura do meu ouvido,
percebia o significado daquela frase. Ele iria jogar fora todo aquele trabalho
que tivera? Por mim e por minha família? E quando ele ia terminar aquela
travessia? Quantos meses aquilo levaria? Cinco, seis, sete, dez? E onde eu
estaria depois daquele tempo? Onde ele estaria? Se eu havia mudado em
apenas poucas semanas que estivemos juntos, quanto eu mudaria depois que
ele fosse embora? E quanto ele mudaria depois daquela experiência de
reflexões e descobertas na solidão do alto mar? Aquilo era uma coisa que
mudava vidas. Transcendental. Empresários viravam andarilhos. Andarilhos
viravam empresários. Jornalistas viravam o quê? Atravessar o mar curava
feridas. E abria outras. Quem seria Arnaud quando ele chegasse ao
continente? E esse Arnaud voltaria para mim? E o Nico que ficaria na ilha
iria querê-lo de volta? Distâncias apagam vínculos, é o que dizem. E a ilha
ainda existiria depois que o prefeito conseguisse efetuar todos os seus
planos de roubar tudo?
O silêncio que se estendeu por aquela noite ficaria para sempre
registrado em minha memória como o silêncio mais aterrador que eu jamais
presenciara. Era como se a cidade, talvez o mundo inteiro, quiçá o universo,
tivessem resolvido nos dar aquele momento para que pudéssemos, no mais
absoluto silêncio, conseguir ouvir até o coração do outro bater. Como se, na
mudez daquela noite, fôssemos capazes de ler o pensamento um do outro. E
assim não precisamos trocar palavras.
Não sei quanto tempo passei ali acordado naquela cama com
Arnaud, revezando posições entre ficar deitados de lado, um de frente para
o outro se encarando, perguntando se esse ou aquele hematoma — do
ataque à pousada — ainda doía muito, mesmo sabendo que o ferimento
mais doloroso estava dentro do peito, ou deitado sobre o peito dele, ou ele
sobre minhas costas, ou abraçados em conchinha, nunca ousando fechar os
olhos, pois não queria correr o risco de adormecer. Quando ele se levantou
para tomar banho, vencido pelo calor, o segui e tomamos banho juntos. Não
queria deixá-lo, fechar os olhos e adormecer, indo para os mundos distantes
dos sonhos, mesmo ele estando deitado bem ali ao lado, seu corpo colado
ao meu. Então fiquei com os olhos abertos, sem nunca perdê-lo de vista,
sentindo seu cheiro de mar, a pele queimada pelo sol, o cabelo que se
emaranhava em meus dedos, a barba densa e macia, os pelos finos e claros
que revestiam seu corpo inteiro. Naquela noite percorri várias e várias
vezes, com meus dedos, todas as curvas, reentrâncias e proeminências do
seu corpo como se fosse a última oportunidade de fazer aquilo.
Acabei adormecendo, domado pelo cafuné que Arnaud fazia em
meus cabelos. Dormimos abraçados, sem nos importar com o desconforto
dos pescoços mal posicionados ou braços esmagados. Aquela era uma dor
que valia a pena enfrentar.

Não lembro bem o que eu sonhei naquela noite, provavelmente


sonhos cheios de possibilidades, de “e se...”, de medos, de desejos, de
viagens em mares tempestuosos. Mas eu lembro bem a sensação de pânico
ao acordar com o sol na cara e a cama vazia, sem a presença de Arnaud que
havia apertado e consolado meu corpo a madrugada inteira. Levantei num
pulo, em desespero, tomado pelo horror ao presenciar que o que eu mais
temia havia acontecido: o tempo passara, amanhecera e havia chegado o dia
que Arnaud ia, finalmente, embora.
Entrava uma brisa fresca pela janela, as cortinas agitando-se com o
vento intenso que voltara para a nossa ilha para levar os velejadores
embora. Ouvi um barulho vindo do banheiro e olhei exasperado. Era
Arnaud, que ajeitava seus últimos pertences em suas malas. Fui até o meu
short, que estava jogado no chão ao lado da cama, e de lá tirei a pulseira de
búzios que estava guardada em um bolso.
Esperei ele terminar de escovar os dentes e estendi a mão para ele,
entregando-lhe a pulseira.
— Para que te guiem pelo caminho e te tragam as respostas que
precisa — falei, deixando meu ceticismo e ateísmo de lado
momentaneamente, pois eu precisava acreditar nos poderes daquela
pulseira. Precisava que Arnaud fosse guiado de volta para mim.
Ele sorriu agradecido e colocou o presente no pulso.
— Também tenho uma coisa pra você — falou, afastando-se do
banheiro e pegando algo enrolado dentro da sua mochila. Era um papel.
Desenrolei-o cuidadosamente. Era o desenho que eu havia visto em sua
mesa, no dia que eu invadira seu quarto. Olhos que ocupavam a folha
inteira. Olhos de olhar fascinante, de galáxia, de mar noturno iluminado
pelas estrelas e pela lua. De uma pessoa de alma tão rica que dá vontade de
ser sua amiga. Enquanto eu observava o desenho, ele explicou: — são seus
olhos. Os olhos que vi quando cheguei na ilha e que estou vendo agora.
Olhos que você nunca viu. Quero que fique com você para que nunca se
esqueça do quão especial você é. Do quão maravilhosa, bonita e enorme a
sua alma é. Para que você se veja como eu te vejo. Como uma galáxia
refletida num mar noturno. Você se esconde em inseguranças e dúvidas,
mas sei que por trás desses olhos tristes há um Nico forte, determinado,
capaz, cheio de potencial. Eu já o vi. Prometa-me, Nico. Prometa que você
vai ser forte.
Fechei os olhos e o abracei. Abracei-o forte, com o máximo de força
que pude, queria machucá-lo, queria que ele sentisse a dor que eu sentira ao
escutar aquelas palavras. Palavras sem intenção de magoar, mas que feriam
como lâminas afiadas. Forte, determinado e capaz? Não, eu não era forte.
Não tinha forças para suportar aquilo.
— Eu prometo — menti, minha voz abafada pelo seu peito. Do que
adiantava admitir fraqueza àquela altura do campeonato?
Aquela manhã foi insuportável. Enquanto Arnaud terminava de
organizar suas malas, o tempo passava tão intensamente que era palpável,
sentia que podia segurar os minutos pelos dedos. No ar havia aquela
sensação pesada e insalubre de tempo que se esgota. Eu quase podia sentir o
cheiro do tempo que estava acabando. Quando terminou de organizar suas
coisas, Arnaud pôs-se em pé ao lado das malas e me olhou com pesar.
Ajudei-o a descer com as malas e esperei ele pagar seu pernoite no
balcão. Continuava sem querer deixá-lo sair de vista, temendo desperdiçar
um mero segundo que eu tinha para aproveitar com ele. Tentava memorizar
e gravar para sempre, como fotografias em minha mente, os traços de
Arnaud. Seu cabelo que era desgrenhado mesmo sem vento, a cor da sua
pele, a textura dos seus pelos, o sabor do seu beijo, o cheiro do seu suor...

Se aqueles eram meus últimos momentos com Arnaud, e nosso


último passeio pelas ruas estreitas do centro da cidade, iria aproveitá-los
como nunca antes havia feito. Dei-lhe a mão, e ele, surpreso e duvidoso,
como se perguntasse se eu tinha certeza daquilo, mas com um sorriso de
satisfação no rosto, segurou-a. Com aquela mão que me envolvia por
inteiro, firme e quente, eu me sentia completo, pertencido ao lugar correto,
bem ali ao lado dele. Caminhei sem olhar para os lados, sem me preocupar
se havia olhares curiosos e repressores. Que olhem, pois aquela mão eu não
iria soltar. Com a outra mão eu empurrava minha bicicleta. Continuamos
assim, com os dedos entrelaçados, o suor em nossas palmas, vez ou outra
trocando olhares de afeto e o que poderia ser o último sorriso, ora sob o sol,
ora protegidos pelas sombras dos prédios e das árvores, pelo que pareceram
longos minutos até que nos aproximamos do nosso destino final.
Antes de virarmos a esquina e darmos de cara com o canal e a
marina, parei. Arnaud ainda deu dois passos antes de parar e se virar para
mim, nossas mãos ainda unidas.
— O que foi? — perguntou.
— Vou ficar aqui. Não quero ver você partindo — falei, pois a única
lembrança que eu queria ter era a dele chegando. Não queria vê-lo subir no
barco e sumir no horizonte, sobrepujando as boas lembranças.
Ele colocou as malas que segurava no chão e nos abraçamos. Um
longo abraço, apertado, quente, sincero, que implorava por mais tempo. Ali
eu fechei os olhos, pois não precisava vê-lo, eu o sentia dentro de mim.
Suspirei fundo, sentindo seu cheiro: suave, adocicado, frutificado. E ele,
com o rosto em meu cabelo, também suspirou, e sentiu o meu cheiro, seja lá
como ele fosse.
— Até logo, mon petit Nico — falou, após o longo beijo que me
deixou sem fôlego, que quase me fez agarrá-lo pelos tornozelos e implorar-
lhe para que me levasse junto, que fez aquele verão ter sido o mais
memorável da minha vida, que fez toda aquela angústia e dor valer a pena,
que me deixou noites sem sono a chorar.
— Até logo — respondi, mesmo sabendo que o logo não existia, ou
era relativo demais, até mesmo abstrato, pois sua travessia naquele oceano
levaria no mínimo mais seis meses. Seis longos meses. Isso sem pausas,
desvios, tempestades ou calmarias. Talvez aquele logo durasse um ano
inteiro. E eu me recusava a pensar na possibilidade de ele não sobreviver
àquela aventura cheia de perigos e riscos de naufrágio.
E assim Arnaud, aquele velejador que me encantara no primeiro dia
que chegara à nossa ilha com sua sunga horrorosa, cabelo desgrenhado e
costas queimadas pelo sol, o senhor Sotaford-Dortnellas, que me havia feito
passar noites revirando na cama sem dormir, com minhas dúvidas,
inseguranças e paranoias, que me havia feito questionar minha sexualidade,
minha sanidade, que me havia feito descobrir novos prazeres e conhecer a
mim mesmo, Arnaud, o dos cabelos ao vento, do penhasco, da espera que
parecia sem fim, que me fizera esperar por conversas, ansiar por toques,
desejar olhares e suplicar por palavras, que me havia mostrado como amar e
ser amado, aquele Arnaud, que tudo havia mudado, que tudo havia trazido e
levado embora, pegava suas malas e virava as costas para mim, indo em
direção ao seu barco, provavelmente um dos últimos que restavam na
marina.
Assim que ele virou as costas, também virei. Subi na minha bicicleta
e parti em direção à minha casa, meu rosto sempre virado para frente, sem
nunca olhar para trás.
PARTE II

MAR
26 ✹ A LOUCURA

L
ogo depois de tomar a decisão de virar as costas para Arnaud, para não
vê-lo se distanciar de mim e ir embora, voltei para casa com lágrimas
nos olhos e soluços na garganta. Tão tomado por angústia eu estava,
que não pensei em nada enquanto fazia aquele trajeto, apenas girava os
pedais um após o outro, com movimentos automáticos e mecânicos e meus
pensamentos brancos como uma lousa nunca utilizada.
Quando cheguei em casa, pronto para ignorar os gritos da minha
mãe por ter dormido fora sem dizer onde estava, encontrei Rebeca sentada
no nosso terraço.
— Por pouco eu ia ter que ir embora sem me despedir — falou,
suspirando em alívio e se levantando quando me aproximei. — Morri de te
ligar.
— Nem sei onde tá meu celular — respondi, abraçando-a.
Não lembro com exatidão as últimas palavras que eu e Rebeca
trocamos antes de ela partir. Eu me sentia aéreo, desprendido do corpo. Ou
melhor, eu queria me desprender do meu corpo. As palavras que saíam da
boca dos outros chegavam aos meus ouvidos fragmentadas. E as que saíam
da minha boca não faziam significado para mim, como se ditas por algum
alienígena hospedado na minha cabeça.
Lembro que Rebeca falou que estava indo embora naquele
momento, suas malas já estavam prontas e apenas esperava o táxi buscá-la.
Disse que antes de partir para o aeroporto na Ilha Grande ia passar no
centro da cidade para se despedir de Inara, pois, naqueles dias que elas
passaram juntas na praia, ela se afeiçoou à turista e acabara gostando dela
mais do que pretendia. Que já estava sentindo saudades. Que Inara ia
embora dali a uns três dias. Elas combinaram de se reencontrar, mas Rebeca
não tinha certeza se o relacionamento delas duraria. Segundo ela, os dias
que passaram juntas de férias no arquipélago foram só isso: férias. Tiveram
um amor relâmpago, de verão, passageiro, ali naquele paraíso que fugia
tanto da realidade. Viveram um amor intenso com data de expiração, com
uma contagem regressiva que fazia tudo valer a pena da forma mais
poderosa possível. No continente, de volta ao mundo real, à vida de
verdade, com responsabilidades, agendas, rotinas, onde nem tudo era sol e
biquíni, as coisas não seriam iguais. Será que elas iriam se gostar com tanto
espaço e tempo disponível, sem o fim do verão logo ali como uma saída de
emergência? Rebeca não tinha certeza se a paixão entre ela e Inara
sobreviveria às outras estações, as mais frias. Se a Rebeca e a Inara do
verão iriam se gostar tanto quanto suas versões respectivas do cotidiano
enfadonho. Sem a raridade do verão, talvez o amor perdesse valor. Talvez
não valesse a pena. Talvez a frieza do inverno esfriasse o que fora aquecido
no verão.
Talvez...
Talvez eu e Arnaud também fôssemos só verão.
Rebeca beijou-me na bochecha com a promessa de que mandaria
fotos do estágio assim que chegasse lá.
— Não se perca! — ela gritou para mim, já dentro do táxi.
Como se fosse possível se perder naquela ilha minúscula...

Meus pais não falaram nada quando entrei em casa e subi para meu
quarto. Aquele silêncio, aquela quebra de expectativa, foi bem pior do que
os gritos, puxadas de cabelo, passos pesados e batidas de portas que eu
estava esperando. Esperava que gritassem comigo por ter saído, que me
perguntassem se eu estava louco por ter dormido fora de casa sem avisar,
depois de tudo que tinha acontecido, que estavam prestes a chamar a
polícia, mas só recebi silêncio. Eu precisava de gritos, de tabefes, de uma
surra, para me acordar e me tirar daquele torpor. Mas nem viraram a cabeça
para me olhar. Acho que isso foi o que mais doeu. Como se nem isso eu
valesse a pena mais.
Angustiei-me no isolamento do meu quarto, ignorando toda a
destruição dele, a porta arrombada, o vidro da varanda estraçalhado,
desesperado com o verão que ainda nem tinha oficialmente acabado, mas
que para mim não fazia mais sentido. O verão para mim significava mais do
que a estação mais quente do ano, onde os dias são mais longos e as praias
cheias de turistas. O verão para mim era a vinda de Rebeca, a animação das
férias, as praias com Augusto e Américo. As transas com Elisa na areia
quente. E Arnaud... Bom, Arnaud havia dado um novo significado àquela
estação. O que seria de mim a partir de então? Viver às custas dos meus
pais, tendo como única opção trabalhar na pousada ou na loja deles? De
quem foi a ideia de não aplicar para uma universidade, mesmo? Quem foi
que falou que aquela maldita ilha era um paraíso de onde não fazia sentido
sair?
A solidão que eu já visualizava que iria passar a partir daquele
outono era imensurável. Era aterradora. O que eu faria? Com quem
conversaria? Não se perca, Rebeca me falara. Mas eu já me sentia perdido.
Meus cem anos de solidão se passariam em uma única geração, a minha,
naquele ano pós-verão. Não haveria Aurelianos suficientes para substituir o
Nico ferido e sozinho que restara.
Eu quase podia sentir raiva de Arnaud. Ódio. Por ele ter chegado
naquela ilha com aquele seu corpo sedutor, a sunga ridícula, os olhares
misteriosos.
Caminhei pelo quarto em círculos, em triângulos, quadrados, em X,
zigue-zague, estava inquieto demais para permanecer parado. Sentei-me na
cadeira do computador e girei. Queria gritar. Queria que alguém gritasse
comigo. Enterrei meu rosto no travesseiro e gritei. O máximo que pude, até
sentir minha garganta doer como se ali algo tivesse se rompido e sangrasse.
Não sangrou.
Por que ele tinha que ir embora?
Por que eu tinha que ficar?
Será que eu devia ter me escondido no barco dele, feito um pacote
de cocaína contrabandeado?

Liguei o computador para mandar um e-mail para ele. Claro que ele
não tinha redes sociais. Passei vários minutos encarando a tela. Não sabia o
que escrever. O que eu poderia lhe dizer, sabendo que ele só leria dali a
alguns meses? Oi, Arnaud do futuro, espero que ainda se lembre de mim. E,
quando ele respondesse, será que eu ainda lembraria dele? Não parecia ser
possível que não. Uma coisa daquelas era inesquecível. Era um verão que
eu carregaria para sempre pelo resto da minha vida. Eu viraria um clichê.
Um clichê de romance gay.
Eu terminaria sendo mais uma história melosa de amor impossível,
que no final os dois homens apaixonados se separam, impedidos de
expressarem o seu livre direito de amar. Talvez um deles morresse, ou então
fosse embora e seguisse sua vida, talvez com medo de repressão ou
ameaçado pela família, obrigado a fingir ser heterossexual, frustrado pelo
resto da sua miserável vida. E eu estaria aqui, velho, sozinho e fracassado,
escrevendo uma memória de cinquenta anos atrás que nunca fui capaz de
largar ou superar, carregando-a como o peso de uma cruz, sentado numa
cadeira velha e carcomida, desconfortável na minha bunda cheia de
hemorroidas e sofrendo para escrever com minhas mãos deformadas pela
artrose, pensando no meu amado morto ou casado com uma mulher infeliz e
enganada.
Ou, no futuro, com três filhos, dois netos e uma esposa, eu sentaria
na cadeira de balanço do terraço e relembraria aquele verão que eu nunca
iria esquecer, pensando nas possibilidades que eu poderia ter se tivesse
seguido o outro caminho.
Talvez eu até virasse um velho amargurado e solitário, após uma
sequência de casamentos infelizes e divórcios violentos, e receberia uma
ligação do asilo onde Arnaud passara os últimos anos da sua vida, sozinho e
sem amor, avisando que ele morreu, e que seu último desejo era que a
enfermeira que cuidava dele me ligasse e me falasse que ele nunca se
esquecera de mim, que eu sempre fora o amor da sua vida, e que ele se
arrependia de ter entrado no barco e partido naquele dia. E eu olharia para
minha atual esposa, velha e enrugada, adormecida ao meu lado e sentiria
desgosto. E eu terminaria meus dias com o pensamento de ter desperdiçado
toda a minha vida e odiando aquela mulher iludida que tanto detestava.
Ou então ficaria velho e ranzinza, solteiro para sempre, incapaz de
ter outro relacionamento, cuidando da pousada em processo de falência do
meu pai, que falecera de ataque cardíaco alguns anos antes, logo após
minha mãe, que me largara a casa mal cuidada, e veria na Internet fotos de
Arnaud bem-sucedido, malhado e cheio de cirurgias plásticas, com
preenchimento nos lábios e sem rugas, em seu mais novo lançamento numa
livraria chique em Nova York, ao lado do seu esposo troféu, um garoto
loiro, magro e trinta anos mais novo do que ele.
Enlouquecido por tantas possibilidades e incertezas, aflito por um
futuro incerto que eu não conseguia enxergar ou prever, tomado pela fome e
falta de apetite, torturado pelo calor e atacado por uma coceira nervosa na
base do meu couro cabeludo que me fez ferir a pele sensível e queimada
pelo sol da minha nuca, não vi o tempo passar. Quando me dei conta, já
havia anoitecido e eu nem sequer tinha escrito o maldito e-mail.
Tinha vontade de gritar, arrancar os cabelos, sair correndo, sair
voando do planeta Terra e fazê-lo girar de volta para que o tempo voltasse,
e mesmo assim eu não saberia o que fazer, não sabia se repetiria tudo de
novo, se evitaria Arnaud, se entraria em seu barco, se o impediria de partir,
não sei, mas eu queria sair correndo dali.
Então cometi uma loucura.

◆ ◆ ◆

Era tarde da noite. Madrugada. Atravessei o nosso terreno, não em


direção à frente, mas à lateral, que dava para a casa de Rebeca, ou melhor,
da sua avó, dona Kazuko. Eu estava apenas de short e chinelo e a noite
estava completamente escura, sem lua, então tropecei e passei por arbustos
afiados diversas vezes. Mas não me importei. Devo ter chegado no terreno
vizinho parecendo um monstro: sujo de lama, descabelado e com folhas
grudadas à minha pele suja e suada.
Aproveitei o hábito da idosa de dormir cedo e deixar todas as luzes
da casa apagadas e, na penumbra, invadi o seu jardim e fui até a lateral da
casa, onde ficava a escada que levava até a caixa d’água, exatamente como
havia na minha. Subi assim mesmo, no escuro, todo sujo e com os pés e
pernas cortados, com o coração partido e a alma cheia de saudade, com as
lágrimas que caíam dos meus olhos em gotas solitárias, sem pensar no que
estava fazendo, louco.
Da escada pulei para o telhado, derrubando e quebrando algumas
telhas no processo, fazendo um barulho catastrófico no silêncio absoluto da
madrugada, onde só se ouvia vento e as ondas distantes que quebravam na
falésia.
Fiquei ali deitado, com as costas sobre as telhas geladas e cobertas
de musgo. Era desconfortável, mas de algum modo eu me sentia
reconfortado. Acima de mim só havia o breu do céu e o brilho distante das
estrelas. Onde será que Arnaud estava àquela altura? As estrelas não me
responderam. Nem os deuses. Talvez eu devesse ter ficado com a pulseira
de búzios.
Foi como na infância, quando eu fugia para a casa de dona Kazuko e
subia em seu telhado à espera de Rebeca. E, como naquelas outras vezes,
Rebeca não voltou. A avó de Rebeca sempre me via e ligava para meu pai,
que me arrancava do telhado à força, aos gritos. Mas dessa vez dona
Kazuko não sabia que era eu quem estava ali em cima, achou que fosse
algum ladrão ou coisa pior. Não vi quando ela acendeu as luzes da casa,
pois meus olhos estavam fechados, eu estava quase dormindo, decidido a
adormecer sob as galáxias e acordar somente quando Rebeca, Arnaud,
Elisa, Américo ou o verão voltassem.
Acordei apenas com um feixe de luz sobre minhas pálpebras. Ainda
demorei a perceber o que acontecia quando abri os olhos. O homem em pé
na minha frente, segurando a lanterna, perguntando o que eu estava fazendo
ali. As luzes lá embaixo piscando. Vermelho e azul, vermelho e azul,
vermelho e azul. O homem abaixou a lanterna, para que eu o visse. Era um
policial. Vermelho, azul.
O policial me conhecia, é claro, ali todo mundo se conhecia.
Vermelho. Perguntou-me se eu estava bêbado. Azul. Disse que não.
Drogado? Bem que eu queria. Vermelho. Um entorpecente dos mais
potentes. Azul. Perguntou-me o quê, então, eu estava fazendo ali no telhado
da pobre senhora.
— Estou perdido — respondi, azul.
Vermelho.
Azul.
Vermelho.
27 ✹ O INFERNO

A
maioria das famílias em nossa ilha passava por um período de aperto
financeiro com o fim do verão. Como a maioria dependia do fluxo de
turistas para garantir a renda, quando a alta estação acabava, o
dinheiro diminuía. O mesmo acontecia com minha família, que possuía uma
loja de artigos para o verão e uma pousada, que, durante aquele seu
primeiro ano, mal fora ocupada. Cabia a mim, na chegada do outono,
substituir o funcionário de meio-período da loja da minha mãe, que virava
uma loja de roupas para outono e inverno.
Apático e grosseiro, com a mente em outro lugar, sem intenção ou
motivação de forçar um sorriso falso para agradar os clientes, acabei
afastando as poucas pessoas que pisaram na loja. Aproveitando a minha
falta de fome na hora do almoço, escapei da loja e fui até a pousada de
Inara, que ficava a alguns quarteirões descendo a rua principal.
O sorriso que ela deu ao me ver foi sincero, e por um instante
esqueci de todas as coisas ruins que se passavam na minha cabeça. Aquele
sorriso e braços abertos eram uma memória viva do verão que mal
terminara. Foi como ver um rosto conhecido depois de horas perdido em
meio a uma multidão de estranhos.
Passamos o meu horário de almoço conversando, sentados na praça
de Poseidon, sob a sombra de uma árvore. Minha fome finalmente
despertara e eu comia um sanduíche. Inara havia trazido uma garrafa de
vinho rosé, e a dividimos bebendo direto do gargalo.
— Rebeca me falou que vocês vão se encontrar no continente —
falei em determinado momento, quando os assuntos banais sobre o clima,
praia e férias acabaram. — Tu não tem medo de que lá as coisas entre vocês
sejam diferentes?
— Vão ser diferentes sim. Mas por que eu teria medo?
Fiquei calado. Em minha cabeça, eu fazia outras perguntas. Como
seríamos eu e Arnaud longe das férias de verão, sem pressa?
Esquentaríamos ou esfriaríamos? Arnaud, onde você estava? Em que
mundos fantásticos você navegava? Que perigos corria? Tempestades
homéricas, monstros marinhos, ondas gigantes, sereias e tritões? O
fantasma de Jérôme te deixava dormir? E o meu fantasma, te assombrava
durante a realização dessa promessa póstuma e mórbida? Você falava sobre
mim como Inara falava de Rebeca, sonhando, planejando, criando
expectativas otimistas sobre o futuro pós-verão? Provavelmente não, pois
você estava sozinho, sem ter com quem falar.
Inara se despediu de mim com um convite para visitá-la quando
pudesse, no continente. Falara que assim que se encontrasse com Rebeca,
me encheriam de fotos juntas. Por educação, falei que a visitaria sim, com
certeza. Mas certamente eu não teria dinheiro para isso. Eu nunca tinha ido
ao continente antes, e pela primeira vez senti um desejo palpável de ir.
Peguei a garrafa de vinho vazia, com uma ideia na cabeça, e voltei para o
trabalho me arrastando, as dúvidas sobre o futuro, sobre Arnaud e sobre
mim mesmo pesando em meus ombros.
Em casa, no ócio do tédio, sem nada para fazer, sem ter com quem
conversar, sem ter para onde ir, procurei respostas para a minha angústia e
companhia para minha solidão irreparável em livros, mas, como dizia
Platão: livro é mestre que fala, mas não responde. Não conseguia passar de
três páginas, não me concentrava. O tédio me venceu. Nada me interessava,
nem filmes, nem besteiras na internet, nem pornografia. Haviam consertado
meu quarto, colocado novas portas, limpado as manchas de sangue, e eu
não suportava ficar ali como se nada tivesse acontecido. Na piscina, eu
tinha vontade de me afogar. As praias certamente me deprimiriam com o
número reduzido de turistas. A cidade estava num clima de tensão, tinham
medo do prefeito, das mudanças que ele estava fazendo na legislação
municipal, dos homens armados que começaram a aparecer aqui e acolá,
fazendo ameaças, exigindo dinheiro para manter a segurança; dos crimes,
da mineradora que havia chegado com tratores, máquinas enormes,
explosivos. Das explosões vindas das montanhas, dos tremores, da água da
torneira que, de repente, havia se tornado salobra, imprópria para consumo.
Dos animais mortos aparecendo na praia.

​ andei uma mensagem para Augusto, era a última pessoa que me


M
restara naquela ilha. Parecia que eu estava em um filme de terror de quinta
categoria, onde o grupo de amigos ia sendo assassinado aos poucos,
desaparecendo um por um, até restar o último otário que se aventurara
naquelas férias estúpidas. Augusto não me respondeu, talvez já estivesse
morto, algum louco com uma serra elétrica o decapitara, comera seus olhos
e jogara sua cabeça no mar. Esperei cinco minutos, mas pareciam cinco
dias, então liguei.
Ele me atendeu imediatamente. Provavelmente estava com o celular
na mão respondendo minha mensagem. Marcamos de nos encontrar no
centro da cidade. Peguei uma sacola de pano e coloquei dentro dela a
garrafa de vinho vazia que eu havia tomado com Inara e um bloco de notas.
Quando o encontrei, ele parecia ainda mais miserável que eu.
Também havia se apaixonado? Se sim, tinha escondido bem. Era estranho
vê-lo sem Américo, então a primeira coisa que falei, até porque não sabia o
que mais poderia dizer, foi perguntar se ele sabia onde estava Américo.
— Ele foi embora sem se despedir nem dizer onde ia, mas eu sei que
tá na Ilha Grande. Tá trabalhando lá há um tempo.
— Fazendo o quê? — perguntei.
Augusto me olhou com o cenho franzido, como se não tivesse
entendido minha pergunta.
— Tu não sabe mesmo de nada, né.
— Não — respondi, mas imaginava que ele devia estar modelando
para alguma grife. De toda forma, não entendia por que Augusto estava
surpreso com minha desinformação, eu sempre era o último a saber das
coisas.
— Ele tá fazendo programa na rua.
Minha única reação foi rir. Américo nunca faria isso... Faria?
Augusto não riu.
— É sério? Por quê? E o trabalho virtual?
Augusto suspirou fundo. Não queria falar sobre aquilo. Mas falou.
— Américo tinha um relacionamento difícil com os pais, tu sabe.
Homofóbicos do caralho. Ele tava fazendo aquelas transmissões ao vivo
bem empenhado em juntar dinheiro porque queria sair de casa. Arrumar um
lugar só dele. Mas, mesmo com a frequência que fazia, com todos aqueles
números, não tava sendo pago muito bem. Ele ouviu Sâmia falando com
alguém sobre como o pai dela tava ganhando uma grana com o tráfico aqui
na ilha. Ela ganhou um carro novo, até. Foi aí que ele decidiu bancar uma
de traficante. Falou com ela, querendo entrar no esquema. Aí os velejadores
chegaram e ele pegou uma quantidade grande pra vender. Ele tinha que
vender tudo pra pagar o que pegou. Mas aí os pais dele descobriram o canal
pornô dele. Alguém contou que ele tava fazendo tudo no quarto dele. Eles
expulsaram ele de casa, jogaram ele na rua, literalmente, só deram tempo
dele pegar uma mochila. Ele pegou algumas roupas, o computador e a
câmera. Mas ele não conseguiu pegar as drogas que tinha pego pra vender.
Ficou tudo lá. Eles acharam e queimaram tudo.
— Então ele tá na Ilha Grande pra conseguir pagar essa dívida?
— É. Ele disse que tá tudo bem, mas não sei... Lá é perigoso, Nico,
e parece que o dealer que passou a mercadoria pra ele não deu muito tempo
pra ele pagar de volta.
— Queria que ele tivesse me dito — falei, cabisbaixo. Ter me
distanciado daquela forma de Américo era horrível.
— Acho que ele não quis arruinar essa tua fantasia — disse
Augusto.
— Que fantasia?
— Que essa ilha é perfeita. Tá na hora de tu seguir a vida, Nico.
Todo mundo foi embora, menos tu. Quer mesmo insistir nessa fantasia e
ficar aqui sozinho, esperando alguém vir do alto mar te resgatar?
— Tu vai embora também? — foi a única coisa que tive forças para
falar.
— Preciso voltar pra minha ilha e ajudar meus pais — admitiu,
olhando fixamente para seus pés, que reviravam os seixos da praça. — A
situação lá não tá fácil. A tempestade acabou com tudo por lá, eles precisam
de mim. E, pra piorar, uma agroindústria estrangeira tá com um processo
judicial contra a gente, alegando que as famílias que estão lá há décadas tão
ocupando o terreno de forma ilegal. Querem nos tirar de lá, nos fazer
trabalhar pra eles. Vamos perder tudo, Nico.
Despedi-me de Augusto (quantas mais despedidas eu teria que
suportar?), com a promessa de que nunca deixaríamos de nos escrever e um
abraço apertado. Desejei-lhe sorte na sua ilha, com seus pais, e ele desejou-
me sorte na minha busca pelo que eu havia perdido.
De lá, pedalei até a praia da capela, joguei minha bicicleta na areia e
caminhei pelas pedras até o meio do mar, contornando a pequena
construção. Não entrei, não tinha interesse em seu interior, não queria
reviver antigas memórias, estava ali apenas para um único objetivo. Peguei
o bloquinho de notas, escrevi um recado em uma folha, coloquei-a dentro
da garrafa e a joguei no mar.
POR FAVOR, ME ENCONTRE, era o que tinha escrito.

À medida que os dias passavam e as coleções da loja da minha mãe


mudavam de verão para outono, e então chegavam as primeiras peças do
inverno que mostrava seus sinais, e eu afundava cada vez mais na cadeira
atrás do balcão, atendendo roboticamente clientes insatisfeitos com a minha
falta de presença, pois ali só havia meu corpo, minha mente estava presa
num passado que não mais existia, Arnaud continuava sem dar sinais de
vida e sem me encontrar, e eu refletia constantemente acerca do que
Augusto havia dito sobre a nossa ilha não ser o paraíso que eu achava que
era.
Vendo aquelas ruas silenciosas e sem cores, longe do verão,
abandonadas pelos turistas, os moradores na miséria pela falta de renda e os
jovens deprimidos, percebia que aquilo estava longe de ser um paraíso.
Como eu nunca havia enxergado aquilo antes? Por que nunca senti tanto
medo de passar o resto da minha vida naquele lugar como eu sentia naquele
momento?
28 ✹ AS LEMBRANÇAS

C
om meus dias ocupados entre dormir e trabalhar na loja da minha
mãe, não vi quando Margarida foi embora. Ela tinha ficado na
pousada por algumas semanas depois do verão, arrastando-se no
outono para terminar seu livro. Enclausurou-se no quarto até terminá-lo e
saiu às pressas, pois estava em cima do prazo para entregá-lo aos seus
editores. Quando cheguei em casa num fim de tarde chuvoso, após um dia
particularmente entediante no trabalho, onde nem um cliente sequer havia
passado por aquela porta, ela já havia partido. Deixou-me uma carta, que,
furioso, recusei-me a ler e a enfiei dentro de uma gaveta destinada a coisas
sem destino.
Naquele momento o verão parecia uma coisa tão distante que
algumas lembranças começavam a se esvair. Começava a esquecer como
era o tom de voz de Arnaud, aquele seu sotaque tão atraente e diferente, que
eu nunca mais ouvira igual, aquela sua voz séria, contida, porém educada,
sempre sexy, que me fazia arrepiar os pelos do pescoço. Como era mesmo
ter um arrepio no pescoço? Eu não lembrava. Não lembrava qual era a
sensação de ter seus dedos passando de leve sobre os pelos da minha perna,
e assim eu fazia igual, com a minha própria mão, mas não parecia correto.
Acordar, trabalhar, dormir. Essa era a minha rotina. Os finais de
semana eram os mais difíceis, pois não havia o trabalho para me ocupar.
Também não tinha mais amigos na ilha para me distrair. Eventualmente,
parei de pensar em Arnaud, não imaginava mais onde ele poderia estar, não
perguntava para as estrelas, para o mar, para todos os deuses, onde ele
estava, não pensava mais em nada, minha mente era um vazio que nada
mais poderia preencher. Segui os dias absorto naquele vazio, como um
zumbi, arrastando os pés pelo chão, pensamentos perdidos em algum lugar
obscuro da minha mente.
Numa dessas semanas — não sou capaz de diferenciar os dias
naquele período, pois todos eram iguais — acordei e dei de cara com um
dia, não cinzento, úmido e chuvoso, mas ensolarado, quente e seco, que me
lembrava o verão. Quando eu desci, pronto para pegar minha bicicleta e ir
para o trabalho, minha mãe apareceu na porta da cozinha e disse que eu não
precisava ir trabalhar, podia tirar o dia de folga, aproveitar que não estava
chovendo para tomar um sol e respirar ar fresco. Respondi que não
precisava, que não queria tomar sol ou ar fresco nenhum, que queria
trabalhar, mas ela rebateu com um daqueles seus olhares afiados, precisos e
intimidadores.
Sem saber o que fazer ou que rumo tomar naquele dia inteiro livre
para fazer o que quisesse, contanto que fosse fora de casa, parei a bicicleta
assim que passei pelo portão da entrada da minha casa. O sol ainda não
queimava, estava cedo, apenas dava uma sensação agradável de
aquecimento, como um cobertor quente no inverno. O vento soprava seco,
levantando poeira e agitando as árvores, que balançavam sincronizadas ao
longo da estrada. Olhei para os dois lados, pensando para onde eu deveria
ir. À esquerda, o mesmo caminho que fiz tantas vezes durante as últimas
semanas, exaustivamente, todos os dias, sem precisar raciocinar ou pensar
qual caminho deveria seguir, pois minhas emoções humanas estavam
enterradas e eu apenas seguia no modo automático. Para o lado direito, o
caminho para o norte da ilha, que depois fazia uma curva, seguindo seu
litoral e adentrava a floresta, na trilha que ia até as montanhas. Um caminho
cheio de lembranças.
Segui para o lado direito, as lembranças aflorando em minha pele,
com o suor, como um remédio processado e metabolizado, o corpo
excretando as substâncias tóxicas em excesso. Algumas memórias são
fortes demais, não podemos nos livrar delas enterrando-as num fundo
obscuro da subconsciência. Penetram nos neurônios e nos músculos
cardíacos para nunca mais sair, como vírus ou metais pesados. Esses meus
tecidos estavam saturados, quase arrebentando, cheios de memórias. Ali eu
questionei o poder do tempo, o de curar feridas e limpar memórias. Dizem
que com o tempo esquecemos as coisas, em especial aquelas que nos
machucam. Não podia ser verdade. Não, aquilo não ia acontecer, eu não ia
esquecer, não com tantas coisas à minha volta que me lembravam dele.
Memórias são como fumaça de cigarro, que entra nos pulmões e fica lá para
sempre, até a morte. Há dados sobre isso, sobre quantas pessoas morrem
por ano de câncer no pulmão. Só não há dados de quantas pessoas morrem
de amor no coração.
Fazendo aquele caminho, lembrei de quando eu e Arnaud fizemos
aquela trilha, seguidos por aquele casal hospedado na pousada, como era
mesmo o nome deles? Oliver e Bruno, desgraçados que trabalhavam para
aquela maldita empresa. Eu teria cometido um erro ao levá-los ali?
Tinha um portão de ferro na entrada da trilha. Entrada proibida,
dizia. Todo o parque, que passara a ser uma propriedade privada, estava
fechado para manutenção. Diziam que iam reformar as trilhas, atualizar
sinalizações, fazer postos de parada e descanso. Eu não sabia se era verdade
— provavelmente não, caso contrário teríamos visto movimentação de
trabalhadores lá da pousada —, mas eu não me importava. Joguei minha
bicicleta por cima do portão e pulei.
Lembrei de novo de Arnaud. De como eu o temia naquela época que
entrei ali com ele pela primeira vez. Como me fascinavam seus gestos,
olhares, toques, palavras. As palavras não ditas. Como ele me alegrava e
deprimia. Aquela noite do acampamento, as conversas, eu indo dormir do
lado de fora da barraca — que ingênuo! — quando começou a chover e ele
me chamou lá para dentro com ele. Ele me mandou tirar a roupa, quis me
aquecer. E eu hesitei. Quantas oportunidades desperdiçadas! Oportunidades
perdidas desde quando ele chegara, com aquela sunga que me fascinou com
sua feiura, aquelas palavras que ficaram presas na minha memória,
Sotaford-Dortnellas, como vindas de um sonho misterioso. Quando ele
pegara aquele meu livro de poemas, e me devolveu aqueles versos que tudo
diziam mas nada entendi. Quando recitamos aquela música, da cantora
Nico. A melhor das estações. Arnaud profetizou aquele nosso verão, que
foi, sim, a melhor das estações. Naquela noite ele me perguntou,
parafraseando a intérprete, se deveria ir ou ficar. E eu nada falei, pois temia
as palavras, temia os sinais. Eu devia ter lido seus sinais cuidadosamente.
Já tinha avançado a trilha, empurrando a bicicleta, quando ouvi um
tiro vindo de dentro da mata.
Os pássaros voaram no alto, assustados. Deviam estar caçando ali,
mas eu preferia não ficar para descobrir. Fui, continuei o caminho
pedalando. Se já estava ali, não iria mais voltar, seguiria a trilha até o fim,
mas querendo sair dali o mais depressa possível. Não só pelo tiro, mas pelas
memórias que pareciam me perseguir.
Passei pelo rio, que corria poderoso, cheio, bem maior do que no
verão, pois estava abastecido com as águas da chuva. Mas a água estava
barrenta e malcheirosa. Algo horrível estava se passando ali e a destruição
do paraíso, que até o momento era algo apenas da minha cabeça, acontecia
bem diante dos meus olhos. Havia peixes mortos, em decomposição, ao
longo de toda a margem. Os resíduos tóxicos da mineradora estavam
matando-os. Senti um tremor na terra. Afastei-me da água.
Pouco antes do meio-dia, cheguei ao local onde eu sempre
acampava. Parei para descansar, exausto, ofegante, molhado de suor.
Alguém já acampava ali, havia pelo menos sete barracas montadas.
Estranhei, afinal, o parque não estava fechado? Como conseguiram passar
com tanta coisa? Não havia ninguém ali, entretanto, talvez estivessem na
trilha ou no lago. Ah, o lago...
Lembrei de quando pulei na água pelado, sozinho, e nadei para que
ele me assistisse. De quando corri até ele e ele disse para eu o esperar, uma
espera sem fim, pois teríamos uma conversa. Quão angustiante fora aquela
espera! E ali estava eu de novo, esperando, angustiado. Como ele pôde ter
ido embora tão rápido? E como podia estar demorando tanto para dar sinais
de vida? Ele estava vivo?
Decidi não ficar por ali e passei pelas barracas. Estavam ali há
algum tempo. O solo estava chamuscado pela fogueira, havia roupas
penduradas nos varais, restos de comida e lixo pelos cantos. Estava tudo
imundo. Decidi tirar foto, queria mostrar a meu pai a situação da reserva.
Foi quando vi as armas. Espingardas, pistolas e fuzis. Eram armas de caça.
Vi dardos tranquilizantes também. Tinha um macaco ali também, do lado de
uma barraca. Morto. Tinha marcas de queimadura pelo corpo, e haviam
raspado sua cabeça. Segurei o choro para não fazer barulho. Torturaram ele.
Tirei foto de tudo e fugi dali.
Escondi minha bicicleta quando cheguei perto da casa da bruxa.
Ninguém conhecia aquela reserva mais do que eu. Fui por dentro da mata,
sem fazer barulho, caminhando devagar por conta da grande camada de
folhas no solo. Ali, a floresta estava silenciosa: como se todos os bichos
tivessem medo da bruxa.
Encontrei o casarão depois de meia hora, no meio de uma clareira.
Era uma casa antiga de dois andares, caindo aos pedaços. O teto cheio de
plantas trepadeiras, as janelas quebradas, as paredes com lodo e infiltrações.
Não precisei entrar para saber o que estava acontecendo ali. Tráfico de
animais silvestres, no mínimo. Centenas de gaiolas estavam empilhadas do
lado de fora da casa, torrando sob o sol. A maioria estava vazia, mas muitas
delas estavam apinhadas de passarinhos, roedores e pequenos mamíferos.
Tirei foto de tudo, à distância. Havia muita movimentação de gente lá
dentro, e homens entrando e saindo carregando pacotes. Possivelmente
drogas. Ali era o quartel general do prefeito. Não era à toa que havia
fechado a reserva. Saí dali determinado a colocar aquilo tudo abaixo.

◆ ◆ ◆

J​ á era noite quando cheguei na cidade. Estava faminto e, acima de


tudo, sedento. Daria qualquer coisa por uma cerveja gelada.
​Arrastei minha bicicleta até o primeiro lugar que vi aberto, um
bar pequeno e com cheiro de suor e mofo na rua de trás da praça. O boteco
estava vazio, exceto pelo barman carrancudo e um homem numa mesa num
canto escuro, onde não se podia ver seu rosto. No som tocava alguma
música antiga. Pelo menos o litrão era barato.
Bebi sozinho, em silêncio, afogado em meus pensamentos que
começavam a se dissipar com a bebida. Sei lá quantas garrafas eu já tinha
bebido, só sei que minha cabeça era uma nuvem confusa e amorfa, eu
estava desequilibrado mesmo sentado no banco, quando senti uma mão em
meu joelho. Acompanhei o braço que ligava a mão ao corpo e observei
aquele senhor de olhos famintos me observar como uma presa. Ele era
velho, talvez até mais velho que meu pai, os cabelos ralos e cinza, a boca
fina, quase sem lábios e a pele branca queimada do sol. Queimada demais,
até. Tinha cara de trabalhador da mina.
Ele encarou meu silêncio como permissão e, motivado pelo vazio do
bar, onde nem o barman parecia nos notar, de costas para nós, ocupado em
limpar os copos que ninguém ia usar, subiu a mão até a minha coxa.
Levantei-me e cambaleei até o banheiro. Queria mijar, vomitar, dormir, tudo
isso. Eu estava com o pau para fora no mictório quando o velho chegou
atrás de mim. Ele começou a se masturbar para mim e eu, completamente
inebriado pelo álcool, apenas assisti. Ainda encarando meu silêncio como
um sim, ele segurou meu pau e me masturbou. Mas meu pau não
endureceu, ficou lá molenga na mão áspera do velho, num movimento
incansável de vai-e-vem. Então ele me ofereceu pó, talvez tentando me
animar.
— Quero — balbuciei.
Fomos até a cabine. Ele tirou um pino do bolso da calça e cheirou.
Ficou de joelhos, pronto para me chupar. Mas eu ainda estava mole. Ele me
entregou o pino. Eu não sabia como fazer aquilo. Nunca tinha cheirado
cocaína, só visto gente fazendo aquilo nos filmes.
— É da boa — ele disse, vendo minha hesitação. — Da bruxa.
— Da bruxa? — perguntei.
— Da casa da bruxa.
Larguei o pino no chão e empurrei ele para longe de mim, enojado.
Enfurecido. Senti vontade de chutar o rosto dele. Senti vontade de chorar.
Saí correndo do banheiro, mas ainda ouvi os gritos dele: veado, putinha
ingrata, volte aqui.
Vomitei assim que cheguei na rua. Quando me recuperei, o vômito
fazendo meu enjoo passar, percebi que minha bicicleta havia sumido.
Roubada. Que desgraça! Praguejei, gritando para a rua, para o céu, para os
mares, recebendo em troca reprimendas de vizinhos que queriam dormir.
Chutei uma árvore, machucando o pé, e comecei a caminhar para casa,
mancando, sabendo que aquela caminhada duraria horas.
Estava tomado de vergonha, desespero e falta de esperanças. Tinha
nojo de mim mesmo pelo que havia acabado de fazer, ou quase acabado de
fazer, e tudo que eu queria era voltar para meu quarto e encontrar Arnaud
deitado em minha cama com os braços abertos para me acalentar.

Meio caminho andado, quando as lágrimas já haviam secado do meu


rosto, um carro parou ao meu lado, um jipe. Conhecia bem aquele veículo.
Era o carro de Sâmia, a filha do desgraçado do prefeito. Ela estava no
volante, sozinha, sorrindo para mim.
— Tá indo pra onde? — perguntou, simpática.
— Pra casa da bruxa — falei. — Me leva lá.
Ela arregalou os olhos, assustada.
— Tá doido, Nico? Fazer o quê lá?
— Você sabe. Seu papai sabe muito bem. Me leva lá, vai. Quero ter
uma conversa com ele.
— Você tá bêbado. Vou te levar pra casa. Sobe no carro, Nico.
Olhei para ela, a dissimulada. Ela parecia determinada a fingir que
nada estava acontecendo. Quis gritar com ela, pegar uma pedra no chão e
quebrar os faróis daquele carro, mas eu estava bêbado demais e meu pé
doía, então entrei no carro, calado. Eu não tinha muitas escolhas. De toda
forma, aquela parecia ser uma noite de escolhas erradas.
No meio do caminho, depois de alguns minutos em silêncio, ela
pareceu querer conversar. Olhou para mim e falou:
— Elisa fugiu, sabia? Ela foi embora sem nem se despedir de mim.
— Sua voz parecia triste. — E Augusto e Américo também. Até os
velejadores foram embora. Só sobramos nós dois.
— Infelizmente — falei, mas ela não recebeu a ofensa, continuou a
falar como se eu não tivesse dito nada.
— Tô tão solitária, Nico — falou, e eu finalmente olhei para ela.
Olhava para frente, e seus olhos estavam marejados, parecia prestes a
chorar. Eu estava prestes a dizer “que bom, você merece, ninguém gosta de
ficar perto de você, e teu pai é um belo de um filho da puta”, quando ela
continuou a falar: — às vezes eu pego o carro e fico vagando pela ilha,
sozinha, como hoje. Esse lugar parece abandonado.
— Demônios vagam de madrugada — falei, mas ela não pareceu
escutar.
Estava completamente escuro do lado de fora, o que víamos era
apenas o que os faróis da frente nos mostravam. Então mal percebi quando
chegamos na minha casa. Ela parou o carro e, quando eu estava me
preparando para descer, colocou a mão na minha coxa.
— Só ficamos nós dois — falou, olhando em meus olhos. Tinha um
sorriso tímido, e em seus olhos eu vi desejo. — Eu sempre gostei de tu,
sabia, Nico? Nunca entendi por que você preferia Elisa. Ou outras pessoas...
Mas agora somos só nós dois. Como se... Como se fôssemos destinados um
ao outro.
Encarei-a por um momento, sem ter certeza se o que ela estava
dizendo era sério. Parecia uma piada. Estava prestes, de fato, a começar a
rir quando ela se inclinou sobre mim e me beijou.
No exato instante senti o gosto da cerveja que havia bebido e da
acidez da bile subindo por meu esôfago e a empurrei para longe de mim,
mas não fui rápido o suficiente, e estávamos sentados no banco do carro,
então não havia espaço para afastá-la do meu vômito, que atingiu
diretamente sua cara.
Finalmente, nesse momento, eu comecei a rir. Gargalhei ao ponto de
sair lágrimas dos meus olhos. Desci do carro ainda rindo, vômito
escorrendo da minha boca, da cara dela, do cabelo e da roupa, e ela
completamente parada, em choque, a boca ainda entreaberta, os olhos sujos
e arregalados, as mãos erguidas no ar como que rendida pela polícia ou por
um criminoso. Quase senti pena dela.

A casa estava escura e silenciosa, meus pais dormiam. Devo ter feito
barulho ao subir a escada, talvez tropeçado, ou meus passos estavam
pesados demais, ou talvez esbarrei na parede, embriagado, ou então ainda
ria da cena ridícula de Sâmia. Ou talvez tivessem escutado o grito da
menina, pois vi uma luz se acendendo no corredor. Quando cheguei no alto
da escada, a luz não vinha do quarto dos meus pais, que continuava com a
porta fechada, mas sim do quarto ao lado do meu. Parado na porta, olhando
para mim seriamente, quase que furioso, talvez sentindo um pouco de pena,
com a cara inchada de sono, estava o meu irmão.
29 ✹ AS MUDANÇAS

F
iquei paralisado ao ver meu irmão na porta do seu quarto, como uma
assombração vinda do inferno para me levar para o mundo dos mortos.
O que ele estava fazendo ali? Quando havia chegado? O que queria?
​— Oi — falei. Havia passado tanto tempo sem ele, que sua
presença me desconcertava. Eu já estava acostumado com aquele quarto
vazio ao lado do meu, que ele ocupara por tanto tempo. Estava acostumado
à minha vida sem ele. Será que isso aconteceria com Arnaud, quando, e se,
nos reencontrássemos? Eu não saberia o que dizer? Eu apenas balbuciaria
um tímido e sem graça oi?
​— Não faça barulho pra não acordar o bebê — disse, e então
parou e me olhou, como que me analisando. — Vá dormir. — E fechou a
porta.
​O álcool não me permitiu ficar ofendido com sua grosseria, além
disso, fiquei animado por ele ter trazido o bebê que eu tanto queria
conhecer. Vi a luz se apagar por baixo da porta e fui para meu quarto,
caminhando na ponta dos pés e tateando as paredes, torcendo para não
esbarrar em nada. Na cama, capotei e, com a ajuda do álcool, pois sem ele
eu passaria uma longa noite revirando-me na cama, no escuro onde não se
diferencia olhos fechados ou abertos, pensando onde será que estava
Arnaud, onde estava todo mundo, o que diabos eu estava fazendo ali
naquela ilha e o que deu na minha cabeça para quase cheirar pó no banheiro
de um bar com um velho desconhecido.

​ ão sei que sonhos tive naquela noite, não lembro, certamente


N
pesadelos terríveis, ou sonhos felizes demais, possivelmente lembranças do
verão passado, pois acordei chorando. Abri os olhos com um soluço, num
sobressalto, meu corpo inteiro chacoalhando em prantos, colocando para
fora toda a dor que havia dentro de mim. Sentia um aperto no meu peito,
como se meu coração quisesse explodir, ou murchar, e o apertei com a mão,
o peito, e quis gritar na mais completa agonia. Que horror era aquele
sentimento! Era desesperança, desilusão, a crença de que o mundo estava
para se acabar e não havia mais salvação para a humanidade. Eu estava
perdido! Estava desorientado, não enxergava direito pois meus olhos
estavam cheios de lágrimas, tateei a cama ao meu lado, procurando alguma
coisa que pudesse me salvar, como um náufrago atrás de um salva-vidas.
Não encontrei nada, é claro, a cama estava vazia, Arnaud não estava ali ao
meu lado, envolvendo meu corpo enquanto dormia, não, eu estava sozinho
naquele alto mar.
Aquele quarto me oprimia, me enclausurava. Parecia um quarto de
um estranho, nada ali me pertencia. Nem aqueles livros que eu tanto lera,
que Arnaud passara os dedos em suas lombadas, que, nervoso, os derrubara
quando me despi na sua frente, nem aquele computador que eu não
conseguia utilizar para lhe escrever um e-mail sequer, nem aquelas gavetas
com todas as roupas que eu já vestira com Arnaud, roupas que ele sempre
tirava do meu corpo, pois delas não precisávamos quando estávamos juntos.
Nem aquela cama, pequena, ou grande demais, desconfortável, parecia
brasa quente, pregos enferrujados, nada aquilo era meu, aquela cama era de
outro Nico, um Nico mais jovem, um simples garoto da ilha, da terra,
fixado em sua casa e sua família, decidido a passar ali o resto da vida,
convencido de que tudo que havia ao seu alcance era tudo que existia no
mundo, e não aquele Nico ali, esquelético, enlouquecido em seu surto
psicótico, no desespero de um amor perdido, aquele Nico que não sabia
mais como dormir sozinho.
A saudade é um sentimento abrasivo. Que corrói de dentro para
fora. Que puxa suas entranhas para ainda mais dentro e as contorce sem
piedade. O nome de Arnaud martelava naquele vazio que ele havia deixado
em mim como um mantra. E o mantra da saudade é angústia, solidão,
desejo, vontade, falta. Os deuses deviam mesmo nos odiar ao nos condenar
a esse sentimento horroroso. O pior dos sentimentos! Que dor aquela falta
me fazia! Queria me estrangular e enfiar a mão no peito e arrancar fora o
coração para não mais sentir aquilo. Arrependia-me de tudo, de ter feito de
menos, de ter feito demais, de não ter ido com ele, de tê-lo deixado partir.
Quantos erros, quantos arrependimentos!
​Saí da cama e me sentei no chão, que parecia mais estável, e me
deixei ser acolhido pela inércia e frieza do assoalho, abraçando as pernas
dobradas no peito, quando, não sei quanto tempo depois paralisado naquela
posição, alguém bateu na porta. Mal tive tempo de responder ou me virar
para ver quem era, quando a porta se abriu, meu irmão entrou e fechou a
porta novamente atrás de si.
​— Chega de choro, Nico. Tá parecendo uma menininha — falou,
sentando-se na cama. — Foi melhor assim. Seja homem.
​— Foi melhor o quê? Pra quem?
— O gringo ir embora. Foi melhor pra todo mundo — ele disse. E,
ao me ver arregalar os olhos, acrescentou: — Tá achando que eu não sei de
nada? Tô longe da ilha, mas nunca abandonei nossos pais. Eu sei o que
aconteceu aqui. Aquele francês xeretando onde não devia, se metendo nos
nossos assuntos.
— Ele... ele só tava tentando ajudar. A ilha tá ameaçada.
— Ajudar? Quem ele era pra dizer o que era melhor para o povo da
ilha? E se tu acha que os problemas da ilha vão acabar só porque tu quer, tu
é outro visionário iludido.
— E tua opção é ficar parado sem fazer nada? — exclamei, me
levantando. — Pelo menos Arnaud tentou fazer algo!
— Aquele gringo não entende nada.
— Ah, é? Então me explica, por favor, irmãozinho.
— O prefeito tá fazendo o melhor dele! Já botou mais policiais nas
ruas, nossa mãe até viu a ronda passar aqui na frente duas vezes ontem.
Também vai abrir um concurso pra policiais, tô pensando em fazer. Por isso
voltei. Talvez assim eu finalmente consiga um emprego aqui na Ilha. Ajudar
nossos pais, ajudar a ilha. Acabar com essas drogas que tão tomando conta
de tudo, e que, por sinal, são culpa dos gringos.
Eu ri. Ele só podia ser muito idiota, mesmo, o meu irmão.
— Você só vai fazer parte do problema — eu disse. — Policiamento
não é solução pra coisa nenhuma. O prefeito só vai enriquecer com essa
guerra às drogas, e só sendo muito ingênuo pra achar que ele não tá
envolvido com tudo isso.
O bebê começou a chorar lá fora e meu irmão foi atrás dele, sem
querer mais me ouvir. Eu peguei meu celular e enviei todas as fotos que eu
tirara naquele dia para Rebeca. Ela estava estagiando em um jornal, talvez
conseguisse escrever uma matéria com aquilo. Pelo menos ia ser uma
pessoa da ilha. E quem sabe ela não conseguisse uma contratação, afinal?

​Naquela tarde, peguei uma balsa para a Ilha Grande.


​ ão foi difícil encontrar Américo. Ele continuava online nas
N
redes sociais, apesar de não responder nenhuma das minhas mensagens, e o
que ele tinha de bonito, tinha de atrapalhado, então em uma de suas últimas
postagens, onde ele estava deitado de cueca no sofá de seu apartamento, ele
esqueceu de tirar a localização do celular.
Era uma rua no centro da cidade, estreita, escura, na penumbra das
sombras dos prédios velhos e altos, com suas paredes velhas, descascadas e
comidas pela maresia. Lá, ainda que fosse início da tarde, encontrei
algumas moças e meninos na rua, parados na calçada esperando algum
carro passar e parar, eles me olharam com curiosidade, alguns com
hostilidade, possivelmente achando que eu era competição. Descrevi
Américo, falei que era o melhor amigo dele, que precisava falar com ele,
que era assunto de vida ou morte, e, confiando na minha aparência não
ameaçadora, me informaram onde ele morava.
​Era em um prédio de oito andares, feio, velho, de tijolos
vermelhos sujos de fuligem, com roupas penduradas nas janelas e tijolos
faltando. Ele morava no terceiro andar. Enquanto esperava ele responder,
após bater na porta de madeira inchada, ouvi uma criança chorar, vindo de
um apartamento ao lado. O corredor tinha cheiro de fritura e mofo.
​Ele abriu a porta sem perguntar quem era e, aparentemente, sem
olhar pelo olho mágico. Talvez esperasse alguém, outra pessoa que não era
eu, pois assim que me viu ficou congelado e boquiaberto por alguns
segundos, com a porta entreaberta, segurando-a como se dependesse disso a
sua vida.
​— O que tu tá fazendo aqui? Como me encontrou? — falou,
assim que se recuperou do choque inicial.
— Não importa. Precisamos conversar — falei, dando um passo à
frente.
Achei que ele ia me impedir, gritar para que eu fosse embora, fechar
a porta na minha cara, mas ele apenas abriu a porta e saiu da frente, para
que eu entrasse. Ainda hesitei, talvez tomado por surpresa, ou sem ter
certeza do que eu queria conversar, mas entrei, e ele fechou a porta atrás de
mim, apontando-me um sofá velho para eu me sentar. Ele continuou em pé,
me encarando, com os braços cruzados, como que dizendo que minha
presença não era bem-vinda por muito mais tempo ali.
Ao meu lado, no sofá, havia um travesseiro e um cobertor dobrado.
— Você tá dormindo aqui? — perguntei, referindo-me ao sofá.
— Sim, esse apartamento não é meu. Estou aqui de favor até
encontrar um que eu possa pagar.
— É verdade que tu tá devendo dinheiro pra gente perigosa?
— Tu veio aqui para conversar ou para saber sobre minha vida?
— Tu me deu um beijo. Na boca. Saiu sem dizer nada, desapareceu.
Não me falou sobre o que teus pais fizeram. Sobre as drogas. Parou de
responder minhas mensagens. Tu viu aqueles caras me ameaçando lá no
hospital e ficou calado. Sabia que entraram na minha casa e quase me
mataram? É pra essa gente que tu tá trabalhando?
Ele me encarou por alguns instantes, parecendo me analisar. Então
franziu o cenho, foi até a cozinha e voltou com um cigarro aceso na boca.
— Sim, fiquei calado, tu queria que eu fizesse o quê? Batesse neles?
Eu não posso fazer nada. O máximo que pude fazer foi sair da cidade e
trabalhar aqui, pra conseguir pagar a dívida. E nem sei se vou conseguir a
tempo. Me desculpa sobre o rolê no teu aniversário. Eu não deveria... Eu
tava muito doido do doce que tomei e entendi tudo errado. Aquele beijo na
piscina da pousada foi uma despedida.
— Despedida?
Antes de me responder, ele acendeu outro cigarro. Sua mão tremia.
Percebi que ele acendia o cigarro não por desejo de continuar a fumar, mas
para arranjar tempo para pensar ou procurar palavras.
— Eu sempre gostei de tu, Nico, a pessoa mais encantadora que já
conheci. Mas sempre fui tratado como um amigo, como um irmão. Eu
queria mais que isso, mas tu nunca se entregou pra ninguém, até Arnaud
aparecer. Espero que ele saiba o quanto é sortudo por ter conquistado esse
coração tão indomável.
Não concordava com o que Américo tinha dito sobre eu não me
permitir me entregar para ninguém. Eu apenas não sabia que havia algo
para entregar. Nunca achei que fosse bom o suficiente para isso. O que eu
tinha para oferecer a alguém? Arnaud foi a primeira pessoa a me fazer
sentir como se eu fosse do tamanho dos oceanos, e tivesse água suficiente
para banhar todo um planeta. Arnaud me mostrou que eu era, sim,
suficiente. E precisei de alguém tão grande quanto ele para me mostrar isso.
Alguém como Arnaud, sem fronteiras oceânicas, que não estava ilhado num
pedacinho de terra como eu e Américo estávamos, capaz de subir em um
barco e enfrentar os mares para me encontrar. Arnaud era o mar, água,
movimento, mudanças. E era daquilo que eu precisava.
— Eu não sei o que dizer — foi tudo o que consegui falar.
— Não diga nada. Nem todo mundo nasceu pra ser feliz, sabia?
Nem todo mundo tem a mesma sorte que tu, Nico.
— Deixa disso, Américo. Eu te amo, tu sabe disso, né? Tu é
incrível, uma das pessoas mais bonitas que já vi na vida. Pode não ser um
gênio, pode ter feito algumas decisões erradas na vida, mas é muito esperto
e sempre soube se virar sozinho muito bem.
— Tô cansado de me virar sozinho. Não tenho mais dinheiro, não
tenho mais perspectiva de vida. Finalmente conheci um cara que gosta de
mim, e eu gosto dele, mas é tudo online, ele mora na puta que me pariu, no
continente, e nunca encontrarei ele. E tu... tem tudo, Nico. Tem seus livros,
os que você escreve, tenho certeza que um dia fará sucesso. Tem sua casa,
seus pais. Tem Arnaud.
​— Arnaud foi embora — falei, agarrando-me àquele pedacinho
de informação em meio a tudo que ele havia dito, como que para reafirmar
que não, nem tudo estava bem e perfeito. Que ele não tinha motivos para
me invejar.
​— E daí? Vá embora também. Vai ficar nessa merda de ilha pra
quê? Tu tem pra onde ir, tem alguém te esperando. Olha pra mim, Nico, não
tenho ninguém. Olha pra Augusto, ele não tem ninguém. Voltou para a casa
dos pais miseráveis. Até Elisa foi embora, e ela não tinha ninguém lá fora.
Tens tudo e fica aí se lamentando.
​Ele se levantou, como que dizendo que aquela visita estava
encerrada. Fiquei sem reação por um momento, sem saber o que dizer nem
saber se ele estava falando sério.
​— Não posso te deixar aqui desse jeito.
​— Não se preocupe comigo, vou me virar. Aproveite a sorte que
você tem e vá embora — falou, aproximando-se do sofá e dando a mão para
me ajudar a levantar.
​Dei-lhe a mão e levantei, ficando frente a frente com ele, como
naquele dia na piscina, quando fui beijado. Mas dessa vez ele não me
beijou, apenas trocamos um longo olhar que tinha ar de despedida. Vi uma
lágrima descendo do seu olho e ele me abraçou, tentando esconder o choro.
Não adiantou, pois em segundos estávamos soluçando um no ombro do
outro.
​Fui embora expulso, protestando enquanto ele me empurrava para
fora do apartamento. Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, mesmo
que não houvesse mais nada a ser dito, ele fechou a porta na minha cara.

​ oltei para a ilha pensativo, encarando na balsa o mar que se


V
agitava furiosamente no casco da embarcação. O céu estava cheio de
nuvens, mas ainda ensolarado, com pedaços de azul aparecendo aqui e ali.
Ventava pouco, como se uma grande chuva estivesse para chegar. Na
cidade, fui até a praça de Poseidon, onde, tomado pelo calor, decidi comprar
um sorvete.
​— O de sempre, Nico? — perguntou o sorveteiro, como sempre
fazia quando eu chegava lá, já preparando as bolas de pistache e maracujá
antes mesmo que eu confirmasse que era aquilo que eu queria.
Lembrei-me, nostálgico, do início daquele verão que havia passado
tão rápido, quando Rebeca e Américo me perturbaram por eu sempre
escolher o mesmo sabor. Eu gostava da solidez daqueles sabores que me
eram familiares. Sem mudanças, sem surpresas, eu sempre saberia qual
gosto eles teriam, sempre me agradariam, nunca me decepcionariam. Eu me
apegava àqueles mesmos sabores como um barco que, mesmo sobre o mar,
prende-se à terra com uma âncora. Eu gostava daquela segurança, daquele
conforto, e temia qualquer inconveniente que mudanças poderiam trazer.
Mas, já passado dos limites da inconveniência, agora que tudo havia
mudado completamente, onde tudo que eu conhecia desaparecera, e aquele
Nico de sempre já não mais existia, eu não podia pedir o de sempre. Queria
algo novo. Queria me arriscar, permitir que o universo me surpreendesse,
pois já havia percebido que temer mudanças me faria ficar parado no
mesmo lugar para sempre.
​— Não dessa vez — respondi, pegando-o desprevenido.

Não falei com ninguém quando cheguei em casa, subi a escada em


passos largos, quase em saltos, ignorando todos que estavam na sala,
ignorando meus pais, meu irmão, sua esposa, e o bebê que ainda não tinha
visto.
Peguei meu celular e vi a mensagem de Rebeca, em resposta às
fotos que eu havia mandado para ela publicar:
“Que porra é isso, Nico? Tirasse essas fotos com o cu? Ou com um
celular dos anos 90? Com essa qualidade eu não conseguiria publicar nem
no Orkut. A não ser que você esteja tentando me fazer ser demitida e voltar
para a ilha”.
Dei uma gargalhada e joguei aquela porcaria de celular no canto da
cama.
Aquela minha melancolia, a inércia, havia passado, pois eu passara a
ter um motivo para me mover. Havia encontrado uma solução para toda
aquela minha angústia e loucura. Eu havia descoberto uma maneira de sair
daquela ilha.

Nas semanas seguintes me tranquei no quarto, assim como uma vez


Margarida havia feito no quarto dela. Escrevi como o louco que eu era,
ávido, desesperado em dar o melhor de mim, pois aquilo era a minha porta
de saída. E assim, naqueles dias de inspiração e motivação, acordava
disposto, com um motivo para levantar da cama, voltei a comer e meus pais
perceberam que eu estava melhor. Só ainda não sabiam o motivo.
Inspirado pelas palavras que haviam sido ditas para mim por
Arnaud, por meu irmão, Rebeca, Inara, Augusto e Américo, inspirado pelo
bebê do meu irmão, que eu mal tinha visto, mas que representava mudança,
nascimento, frescor, uma prova viva de que coisas novas podem vir para o
bem, aquela bolinha de gordura que era só sorrisos para tudo de novo que
aparecia diante dos seus olhos esbugalhados, completei o livro que
Margarida lera o esboço e me dera dicas para melhorar e concluí-lo. Na
carta que ela havia deixado para mim ao partir, que até então eu me recusara
a ler, ela deixara seu e-mail, pedindo desculpas pela partida repentina e
pedindo que eu a enviasse o livro quando terminasse.
No fim daqueles dias, tomado por um sentimento que eu só consigo
descrever como euforia, esperançoso por todas as mudanças que estavam
por vir, feliz e aliviado por ter terminado de escrever aquela história sobre
um casal unido pelas forças torrenciais e enigmáticas da natureza, abri meu
e-mail e enviei tudo para Margarida.
Depois, finalmente sem dúvidas, medos, inseguranças, paranoias,
perguntas, apenas certezas, escrevi uma mensagem para Arnaud e enviei.
“Finalmente me encontrei. Agora preciso encontrar você”.
30 ✹ O NÁUFRAGO

N
um desses dias iguais de inverno, onde a chuva pesada se arrastava
por tantos dias que é impossível diferenciá-los, o pescador que havia
desaparecido na tempestade do último verão foi encontrado. Seu
barco havia sido despedaçado sob as ondas e ventos intensos, e ele acabara
numa ilhazinha minúscula e deserta afastada do arquipélago e de todas as
rotas de embarcações. Passara os últimos meses se alimentando de coco,
peixe e água da chuva, sem nenhum contato com a humanidade, até que foi
resgatado por um barco de uma ONG, que estava de passagem pela área,
fazendo estudos sobre como efluentes agrícolas e industriais do arquipélago
estavam prejudicando o ecossistema local.
Vi, pela televisão, o rosto do pescador náufrago ao descer no porto e
ser recebido pela família que não via há tanto tempo. O brilho em seus
olhos e o sorriso imenso ao abraçar a esposa e os filhos, que mal
perceberam o estado do homem, raquítico, com insolação, o cabelo que
parecia um ninho de ratos, era de um amor incondicional, que resistira todo
aquele tempo, àquela falta de notícias, àquele oceano que os separava e o
isolava em um pedacinho de terra.
Obviamente não pude deixar de me comparar a ele, pois, apesar de
ainda possuir um teto sobre minha cabeça, comida e outras pessoas com
quem podia interagir, a pessoa que mais me importava naquele momento, e
a única que eu realmente queria ter contato, estava sem dar notícias. Sentia-
me isolado, tão ilhado quanto aquele pescador, condenado a passar meses
naquela ilha cercada por água, por quilômetros e mais quilômetros de um
oceano deserto e silencioso. Eu roía as unhas e coçava o couro cabeludo
freneticamente em angústia, esperando que aquela minha carta colocada em
uma garrafa e jogada ao mar, o meu e-mail, chegasse a Arnaud.
Naqueles dias, durante aquela espera, que parecia sem fim, minhas
inseguranças voltaram. Enquanto a chuva batia na porta da minha varanda e
o ar úmido mantinha tudo com um constante aspecto de molhado,
perguntava-me se meu e-mail havia chegado, ou se perdido no meio do
caminho, sendo extraviado pelos carteiros virtuais do mundo da internet.
Talvez ele ainda não tivesse chegado, meu subconsciente dizia, tentando me
acalmar, mas depois completava com um: talvez ele não tivesse chegado
porque seu barco naufragou e ele estava morto, sendo devorado por
tubarões e baleias e peixes medonhos, ou estivesse sozinho numa ilha
deserta, morrendo de fome. Será que ele sabia pescar ou abrir cocos? Ou
ainda, essa hipótese era a pior de todas, a que eu recusava a pensar, mas
meu subconsciente insistia em implantá-la em meus pensamentos,
provocando uma sensação ruim no peito e uma comichão na nuca: talvez
ele já tivesse chegado, lido o meu e-mail, se arrependido de tudo que
passara comigo e decidido ignorar a mensagem. O que seria de mim, nesse
caso? Eu estaria condenado a uma vida inteira de uma espera perpétua? Por
que ele não respondia, então, que não queria mais me encontrar? Seria uma
mensagem horrível, mas pelo menos aquilo tudo teria um desfecho.
Tentei me distrair o máximo que pude naqueles dias, indo trabalhar
na loja da minha mãe, ajudando meu pai em algumas mudanças na pousada,
que já se preparava para o próximo verão, passando tempo com o bebê do
meu irmão, a minúscula Ju, trocando mensagens com Rebeca, que estava
contentíssima no estágio, pois havia se destacado no escritório e conseguido
muitos elogios dos chefes; com Augusto, que me falou que as chuvas
brandas daquele inverno ajudaram a recuperar a plantação dos pais e, além
disso, havia se juntado à mesma ONG que resgatara o pescador náufrago.
Estavam organizando vários protestos por lá, e conseguiram paralisar os
trâmites jurídicos que iam expulsá-los, fazendo várias acusações de
corrupção contra a empresa que ia se instalar naquelas terras. Fiquei
sabendo por ele, também, que os pais de Sâmia estavam sendo investigados
por participarem do esquema de corrupção que culminara no contrato
fraudulento com aquela empresa, além de vários crimes ambientais pela
ilha. Segundo ele, a ONG recebeu vários documentos de uma fonte
anônima que apontava tudo aquilo. Mas faltavam mais provas.
— Que tipo de provas?
— Fotos talvez — ele me respondeu. — O povo só acredita vendo.
Também troquei mensagens com Américo, que se recusava a
receber minhas visitas, a não ser que fosse para me despedir quando eu
estivesse indo embora do arquipélago. Já que ele passara a me responder,
aproveitei e perguntei se ele tinha algum amigo fotógrafo que pudesse me
emprestar uma boa câmera. Mas ele me deu uma ideia melhor: me
emprestou a câmera que usava em suas lives. Caríssima e com alta
resolução, fazia gravações até no escuro.

Quando as chuvas incessantes do inverno haviam passado, quando


no ar persistia apenas o cheiro distante de solo molhado, as primeiras flores
da primavera começavam a brotar aqui e ali, colorindo aquela paisagem que
era só marrom, verde e azul, eu fiz minha penúltima trilha na reserva
florestal. Ela ainda estava fechada, então precisei pular aquele portão e
percorrer tudo escondido, para não ser visto por caçadores ou coisa pior.
Para mim, foi como um encerramento. O fim de um ciclo, o início de outro.
Eu estava pronto para o que estava por vir.
Naqueles dias, recebi uma ligação de um número desconhecido.
Enquanto aqueles números que apontavam ser de um lugar distante dali
apareciam na tela do meu celular e o toque soava em meus ouvidos, meu
coração disparou em esperanças de ser Arnaud. Quando ouvi aquela voz
familiar, minhas pernas fraquejaram de tamanha surpresa, que tive que me
sentar na cama para não desmaiar ali mesmo.
Era Elisa! Que saudades eu sentia dela! E que alegria senti ao ouvir
sua voz, saber que ela estava bem, que havia chegando onde quer que fosse!
Disse-me que já havia chegado há duas semanas, mas precisou de um
tempo para se estabelecer e conseguir um telefone. Devido a seus anos de
experiência com estrangeiros e facilidade de aprender idiomas, ela
conseguiu rapidamente emprego num hotel no Rio de Janeiro. O seu
velejador já havia partido e ela esperava nunca mais vê-lo. Quando
perguntou sobre como eu estava, sobre como andava minha vida,
desconversei, não queria colocar em seu ombro o peso das minhas
angústias. Resumi-me a dizer que estava bem, e que conversaríamos com
mais detalhes pela internet, pois certamente aquela ligação seria cara. Ela
estava empolgadíssima, mais feliz impossível, falando sobre as belezas e
encantos infindáveis da cidade maravilhosa.
Quando nos despedimos e encerramos a ligação, apesar de feliz por
Elisa, que parecia ter encontrado o lugar perfeito para ela, e finalmente se
encontrado, senti-me triste e desconsolado. Se ela já havia chegado no
continente, há duas semanas, onde estava Arnaud? Ali os meus medos de
ele ter morrido, naufragado ou ignorado a minha mensagem quase se
concretizaram em certezas.
Então eu recebi um e-mail.
​De início, nem consegui abrir. De tão nervoso, minha vista
embaçou. Só vi a notificação da mensagem que havia chegado, não abri,
não vi o assunto, não vi o remetente. Com a pressão sanguínea abalada,
deitei-me na cama, e, de longe, fiquei observando o computador que podia
conter uma mensagem que mudaria para sempre a minha vida. O que seria?
Era Arnaud? O que ele havia respondido? Não tinha coragem de olhar. E se
não fosse ele? E se fosse apenas propaganda de uma loja de móveis? Não
sei o que seria pior.
​Sem mais aguentar aquela ansiedade, a curiosidade misturada
com medo, levantei-me, e, em passos bambos, sentei-me na cadeira do
computador e abri o e-mail.
Não era Arnaud. Era Margarida.
​Disse-me que lera meu livro inúmeras vezes e não lembrava de
ter lido uma coisa tão boa nos últimos tempos. Anexou no e-mail o convite
para o lançamento do seu livro, que aconteceria dali a poucos meses. O
livro que ela escrevera enquanto estava na nossa casa. Você precisa ir, Nico.
Disse-me que, além de eu ter feito parte do processo de escrita daquele
livro, os editores, que também haviam lido o meu livro, e gostado bastante,
estariam lá. Eu nunca teria uma chance tão grande de ser publicado. Meu
coração palpitou em expectativa e quase gritei de empolgação. Mas toda
essa animação apagou-se como um fogo atingido por um balde de água
quando li o convite e vi que aquele lançamento aconteceria na França.
Vou lançar meu livro na Argentina. E logo depois a tradução em
Londres e em Paris. Eu e meus editores estaremos em todos os três
lançamentos, mas imagino que você deva preferir ir para o da França.
​Sorri, um sorriso triste perante a ingenuidade dela. Eu preferia o
da França, sim, mas eu não tinha dinheiro para fazer aquela viagem, para
nenhum daqueles lugares.
​Durante o almoço, certamente devem ter percebido minha
inquietude. Não prestei atenção às conversas, mal toquei na comida e,
agitado, balançava minha perna freneticamente. A porta para sair daquela
ilha estava bem ali na minha frente e não conseguia alcançar a maçaneta.
Estava frustrado, desesperado, e não aguentava mais ficar um minuto a mais
ali.
​— O que tu tem hoje? — perguntou minha mãe, com ênfase no
hoje, insinuando que todo dia eu tinha alguma coisa.
​ ntão resolvi falar. Se aquela era a primeira vez que eles
E
perguntavam alguma coisa a mim, aproveitei a oportunidade para
responder. Contei sobre o convite de Margarida para ir ao seu lançamento,
falei que os editores haviam lido o meu livro e que aquela seria uma
oportunidade para conhecê-los e fazer contatos profissionais. Não esperava
muita empolgação deles, afinal, nunca foram muito incentivadores da
minha escrita. Embora não me recriminassem, concordavam com aquilo
desde que a escrita fosse um hobby, uma atividade de segundo plano, desde
que não interferisse nos meus trabalhos de verdade.
​— Mas não posso pagar a passagem — acrescentei, após receber
seus olhares céticos.
​— Uma pena — retrucou minha mãe, largando, furiosa, os
talheres na mesa, para pontuar sua fala com um toque dramático. — Talvez
você deva começar a trabalhar de verdade, em vez de levar tudo na
brincadeira.
​Mas eu também sabia ser dramático. Saí de lá puto, batendo a
porta atrás de mim. Voltei para a reserva florestal, pela última vez. Fui até a
casa da bruxa, buscar a câmera de Américo que eu havia deixado escondida
numa árvore, gravando tudo por vários dias. Movido pela força do ódio e
pelo desespero de sair dali, não tive dificuldade de me embrenhar na mata.
Além da devastação que se via cada vez mais, as árvores derrubadas, o
sumiço dos pássaros, o rio minguado, não encontrei ninguém. Quando
voltei para casa, com um HD cheio de imagens em alta qualidade das
movimentações que aconteciam na casa da bruxa, enviei tudo para Rebeca.
Tá bom pra você assim? Vá escrever essa porra de artigo e ganhe
um Pulitzer ou sei lá o quê, escrevi.

​ dia estava quente, lembro-me de, ao chegar no quarto, abrir a


O
porta da varanda, sentindo o cheiro de pólen e flor que exalava das árvores,
que aproveitavam o calor do verão que se aproximava para serem
fecundadas e se reproduzirem, quando Rebeca me ligou numa chamada de
vídeo.
— Bicha, passei uma semana vendo tudo isso que tu filmou. Que
babado! — ela exclamou. Estava eufórica, os olhos brilhando, um sorriso
de um lado ao outro to rosto, andando em círculos. — Olhe, já fiz uma
seleção e mostrei tudo ao meu chefe. E tu não sabe o que ele disse!
— O quê? — perguntei. — Diz logo, mulher, que tu é jornalista e
não escritora de suspense.
— Ele disse que não sabia se podia publicar aquilo.
— O quê? Por quê? E por que tu tá rindo, demônia?!
— Porque... Porque ele disse que conhece um repórter que já está
trabalhando nesse caso. Que esse repórter tinha até viajado para a ilha fazer
essa investigação. Num barco.
Me sentei na cama, atônito. Tudo girava ao meu redor.
— Arnaud? — perguntei. Tudo girava, tremia, desmontava. As
partículas do meu corpo se desintegraram, viraram pó, poeira cósmica, sumi
no infinito.
— Sim. É um velho amigo do meu chefe. Ele disse que precisava
conversar com Arnaud antes de me autorizar a escrever algo sobre isso, mas
disse que ia me colocar em contato com Nonô assim que possível, pra
talvez a gente trabalhar juntos!

​ epois da ligação, passei alguns minutos na varanda, observando


D
o mar lá longe, a pousada vazia, a maresia que chegava em lufadas de ar
quente. Lá embaixo, escutava, sem conseguir distinguir as palavras, uma
discussão.
​De repente, meu irmão entrou no quarto, sem antes bater na porta.
​— Você tem que entender o lado deles também — falou,
sentando-se na cadeira do computador.
​— Hã? — senti que ele já tinha falado alguma coisa antes, mas
minha cabeça estava tão cheia de coisas que eu não consegui entender nada.
​— Eles acham que isso é tudo uma fase. Não só o seu lance com
Arnaud, mas também a escrita. E que um dia você vai enjoar disso e
abandonar, como já fez com outras coisas. Como todos nós fazemos quando
somos jovens demais. — Eu já estava puto, me preparando para levantar,
para gritar, para mandar ele ir embora. Não aguentava mais ser tratado
daquela forma, imaturo demais, jovem demais, como se não tivesse certeza
de nada ou não soubesse o que queria. Então ele continuou: — Mas eu acho
que tu merece ter uma chance de mostrar que isso não é só uma fase. Eu
também tive a minha chance. É por isso que quero te dar uma coisa.
​Fiquei sem reações. Não estava preparado para seu apoio.
​— O quê? — perguntei.
​ Quando compramos nossas passagens pra vir pra cá e voltar,

ganhamos milhas. Acho que elas são suficientes pra tu trocar por uma
passagem de ida pra França. Ou pelo menos cobrir boa parte do preço. Tava
conversando com nossos pais, disse que era injusto você trabalhar tanto sem
ter direito de escolha. E eles concordaram em dar dinheiro pra tu comprar a
passagem de volta. Essa é a condição. Tu tem que voltar. Eu acho que tu já
tem idade mais que suficiente pra decidir o que quer da vida. Mas eles te
mimam demais, e acham que tu ainda é muito novo, que ainda não viu nada
da vida, que precisa de mais experiência trabalhando aqui. Eles querem que
tu tenha certeza antes de dar um passo tão grande para fora da ilha.
​— Eu nunca tive tanta certeza — afirmei.
​— E se não estiver pronto para as próprias certezas?
​— Vou ter que me arriscar pra ver.
​Ele sorriu, satisfeito, como se aquela fosse exatamente a resposta
que esperava. Eu havia passado no teste. Pediu para usar meu computador,
ia transferir as milhas aéreas para mim, para que eu pudesse comprar a
passagem. Enquanto ligava o computador, e a maçaneta daquela porta que
abria a saída daquela ilha ficava cada vez mais perto, eu ficava cada vez
mais nervoso. Temia ir para a França sem antes ter contatado Arnaud. E se
eu chegasse lá antes dele, e se, quando eu estivesse voltando, ele finalmente
chegasse lá Estaríamos condenados a uma eternidade de encontros e
desencontros? E se ele não me quisesse mais? E se ele realmente tivesse
naufragado? Será que naquele avião, a milhares de metros de altura,
sobrevoando o oceano, eu o veria sozinho, um pontinho branco sobre uma
imensidão azul, como numa piada, Arnaud perdido em uma ilha deserta,
ilhado sem mim? Se uma piada aquilo fosse, era uma das piores que já
havia ouvido na vida.
​Mas talvez o pior não fosse isso. Talvez o pior não fosse Arnaud
morto, naufragado, ilhado, nem nossos encontros e desencontros. O que me
aterrorizava era a possibilidade de sim, encontrá-lo lá no continente.
Aterrorizava-me aquela obrigatoriedade de retorno. Aquela passagem de
volta paga pelos meus pais, que não era um presente, mas uma condenação,
uma danação ao fogo eterno do inferno, um castigo. Você vai, mas volta.
​Mas e se Arnaud não sentisse o que eu estava sentindo? E se ele
não quisesse mais me ver? E se ele não estivesse tão ansioso para me ver
assim como eu estava para vê-lo? E se...
​ Tu tem um e-mail — falou meu irmão, virando a cadeira para

mim. Em seu olhar não havia apenas aquela constatação: um e-mail chegou.
Havia algo a mais, uma sugestão, uma curiosidade, um espanto, a iminência
de algo grande que estava para acontecer. Uma sobrancelha levemente
erguida. Meu coração acelerou, sábio, esse órgão que bombeia dor e prazer,
já sabendo, antes mesmo de mim, que aquele e-mail continha algo
importante.
​Levantei sobressaltado da cama, enquanto meu irmão levantou-se
da cadeira e saiu do quarto, deixando-me sozinho.
​Quando levei meus olhos à tela do computador, meu coração
pareceu explodir. Quase o vomitei em mil pedacinhos, mas ele continuou
ali, batendo, quase rompendo a minha caixa torácica. Respirei fundo, as
mãos tremendo, mal conseguindo guiar o cursor para clicar na mensagem.
​Arnaud finalmente havia respondido o meu e-mail.
“Mon petit Nico,
​Cheguei. São e salvo. Talvez não tão são, beirando a loucura.
Que dias tortuosos! Cheios de saudade, de desejo, de vontade de te segurar
em meus braços.
​Por favor, vamos encurtar essa distância que nos separa.
Je t’aime,
Ton marin Arnaud.

P.S.: adivinha quem eu encontrei por aqui? Rebeca. O que você andou
aprontando por aí na minha ausência?”
31 ✹ O OCEANO
D
eus ex machina. Deus surgido da máquina. Uma expressão latina
utilizada para designar soluções caídas do céu, inesperadas, uma
salvação repentina quando tudo parece estar perdido. Dizem que veio
lá dos gregos, quando, numa peça, tudo parecia não ter solução e aparecia
um deus pendurado por cabos, no palco, e salvava os personagens. É assim
que chamo os salvadores da minha narrativa, que, quase pendurados por
cabos, me salvaram da perdição e loucura. Margarida, Rebeca, Elisa,
Américo, Augusto, o meu irmão, todos eles foram o meu Deus ex machina.
Estava tudo pronto para a minha viagem. Meu irmão já tinha
voltado para o continente com sua família há alguns dias e eu só aguardava
o dia que a minha passagem estava marcada, quando entraria no avião e
atravessaria o oceano em direção a Arnaud, libertando-me, finalmente, não
mais ilhado naquele pedaço de terra que um dia fora o meu paraíso.
Conversava diariamente com Arnaud. Já havíamos combinado tudo.
Eu chegaria no continente alguns dias antes do lançamento do livro de
Margarida, desceria em Marseille, onde ele me encontraria, e ali
passaríamos alguns dias juntos (em um hotel, pois ele havia entregue seu
apartamento antes de começar sua jornada nos mares), e então iríamos
juntos para Paris, onde seria o lançamento do livro.
Insone em expectativa, imaginava como seriam aqueles meus dias
no continente, com tanta terra ao meu redor, tantos lugares para ver e olhar,
sempre ao lado de Arnaud, onde ali ele não era um estrangeiro, um
marinheiro, onde tudo lhe era familiar e para mim era o contrário. Dessa
vez eu seria o estrangeiro, o que chegou, não de barco, mas de avião, e ele
me mostraria vistas, igrejas, trilhas, ruas estreitas e antigas, eu sentiria o seu
sol, o seu vento, veria as suas cores, andaríamos de mãos dadas em
territórios que nunca antes havia visto, e ele me deitaria em sua cama,
esfregaria em meu corpo o seu sabonete, me daria para experimentar
comidas desconhecidas, e continuaríamos a nos amar da mesma forma. Não
importa onde estivéssemos, quais territórios inexplorados nossos corpos
ocupassem, nós sempre nos conheceríamos, sempre nos amaríamos da
mesma forma. Éramos, um para o outro, porto seguro em mares agitados e
sombrios.

Quando falei para Rebeca que iria para a Europa, ela pulou e gritou
em comemoração. Não vi, é claro, mas supus que ela havia feito isso.
Quando falei que iria para o lançamento do livro de Margarida, ela
implorou para que eu conseguisse um convite para ela. Disse-me que
certamente naquele evento estariam vários diretores de teatro que ela queria
conhecer. Margarida prontamente me deu o convite. Quando me disse que
ela e Inara ainda estavam juntas, e que Inara seria sua acompanhante, aquilo
me encheu de esperanças. Se o amor de verão delas havia durado tanto
tempo, persistido durante outras estações, e existido mesmo sem as
limitações de tempo e espaço do verão naquela ilha, o meu e o de Arnaud
também poderia durar. Os meus medos de que mudaríamos e que nossa
paixão ia se dissipar se tornaram irrelevantes. Mudaríamos, é claro. Mas
mudanças não são sempre ruins.
Com minha mala pronta para a viagem no dia seguinte, olhei, em
retrospectiva, para o passado, pensando em todas as coisas que mudaram e
culminaram naquele precioso momento. O vento que soprava fraco e quente
e as primeiras frutas maduras, doces e suculentas, que chegavam na mesa
anunciavam que um outro verão chegava. No jardim, onde eu havia
plantado aquela última acerola sobrevivente da tempestade, nascera uma
nova aceroleira, dando prosseguimento a um ciclo, o ciclo da vida, muito
embora naquele ciclo nada se repetisse. Nunca haveria novamente um verão
como aquele passado. Não me banharia novamente, pelado, muito menos
com Elisa, no rio. E também não veria, chegando em meio aos veleiros da
temporada, um outro navegador queimado pelo sol e misterioso, com uma
sunga horrorosa e as costas largas, cuja imagem ficaria na minha cabeça por
longos dias.
Naquele novo ciclo, quando o sol novamente se erguia em sua
máxima potência, atraindo velejadores e turistas, eu não era mais o mesmo
Nico. Aquelas inseguranças, descobertas, medo do desconhecido, tudo isso
não se repetiria, pois, naquela nova fase da minha vida, tudo o que eu tinha
era a certeza de que eu seria feliz, onde, finalmente liberto dos limites
geográficos e metafóricos daquela ilha, eu seria completo. E acompanhado
de Arnaud.
Naquela última noite tive um sonho macabro e bizarro. Sonhei que
chegava em Marseille e me deparava com o funeral de Arnaud. Não havia
ninguém lá, apenas o seu corpo, empalidecido, frio, morto e sem roupa em
cima de um caixão aberto. Ele estava completamente pelado. Subi em seu
corpo, assim, sem mais nem menos, sem pudores, sem etiquetas sociais,
apenas munido por um desejo louco e incontrolável de senti-lo entre minhas
pernas novamente. Passei a mão sobre seu peito, a pele gelada, sentindo
aqueles pelos finos, loiros e mortos que tanto haviam me excitado e, para a
minha surpresa, continuavam a me excitar.
Acordei horrorizado, num salto, o volume do meu pênis enrijecido
elevando-se sob os lençóis. Arnaud me excitava mesmo morto. Com a
libido que havia desaparecido nos últimos meses de volta, nada pude fazer
além de tentar aliviar-me. Não funcionou, é claro, mesmo após duas
sucessivas ejaculações, pois, mesmo tocando-me e, com os olhos fechados,
visualizando Arnaud, a minha imaginação não era suficiente para suprir a
sua falta. Aquele desejo furioso que mal cabia dentro de mim só poderia ser
saciado por ele. Aliás, nem isso, pois, como ele mesmo havia dito, eu era
insaciável quando estava com ele. Quanto mais ele me dava, mais eu queria
tê-lo. E, na iminência de encontrá-lo novamente, eu o queria mais do que
nunca.

Lá fora, o sol brilhava intenso. Observei, entre as cortinas abertas,


um passarinho pousar na grade da varanda e me encarar por dois segundos,
antes de levantar voo novamente à procura de algo para comer. Aquela
também devia ser a estação favorita dos passarinhos, quando a comida era
abundante e a mesa, farta. Quem dera eu tivesse as asas dos pássaros para
voar quando quisesse e para onde quisesse!
Fui até a varanda e observei meu pai varrer a área da piscina.
Aquele verão seria movimentado e a pousada estava cheia de reservas. Meu
pai até contratara um funcionário para ajudá-lo enquanto eu estivesse
viajando. A reserva tinha sido reaberta por ordem judicial e o prefeito,
investigado por vários crimes, tinha sido afastado do cargo e proibido de
sair da ilha até que as investigações se encerrassem. A mineradora havia
sido desativada, mas os estragos no rio e no lago já haviam sido feitos. Nem
tudo são flores. Um incêndio misterioso havia destruído a casa da bruxa e
queimado boa parte da mata ao redor, destruindo evidências e matando
vários animais, então aquela investigação se arrastaria por muito tempo. Eu
me perguntava quando diabos Arnaud e Rebeca publicariam aquela matéria
para acelerar logo esse processo. Meu pai organizou vários mutirões para
conter o incêndio da mata e levava voluntários para replante de espécies
nativas. Aquilo tornou a pousada famosa, e tentei imaginar que tipo de
gente chegaria ali em alguns dias. Que hóspede ocuparia o quarto de
Arnaud, quem dormiria na cama que um dia ele dormira, naquele quarto
onde um dia eu invadira as barreiras do desconhecido e proibido e o beijara.
Onde desafiei todas as leis, pudores, tabus e tudo o que acreditava para
saciar um desejo pungente que martelava dentro do meu ser. Beijei-o,
toquei seu pênis, lambi o seu corpo e o deixei me penetrar e foi assim que
descobri quem eu era e a que lugar pertencia e me sentia completo.
Observei, além da piscina, o mar, o seu azul brilhando quase branco
sob a luz intensa do sol. Dali a algumas horas eu sobrevoaria toda aquela
imensidão. Engoli em seco, nervoso. Meus olhos não estavam acostumados
a testemunhar tamanha grandiosidade, e apenas o pensamento daquilo me
deixava nauseado. Nunca precisei olhar para um ponto muito distante de
onde eu estava.
Tive uma vida inteira de miopia, não uma literal, mas uma
figurativa, pois era míope de expectativas, de sonhos, ambições,
sentimentos. Meus desejos e conhecimentos eram pequenos, não havia nada
que eu precisasse focar longe demais para enxergar. Eu não pensava longe
nem grande. E achava que minha vista era normal. E assim Arnaud havia
chegado, como se eu tivesse colocado os óculos de alguém em meu rosto e
percebido, pela primeira vez, que minha vista, aquela que conhecia e era tão
familiarizado, era imperfeita. Havia tanto a mais para enxergar!
E assim eu precisava daqueles óculos novamente. Queria enxergar
longe, alto, grande. Ali naquela ilhazinha, onde tudo era pequeno e perto,
onde nossa vista não era estimulada e nossos olhos atrofiavam, eu era
míope.

Antes de viajar, meu pai cuidou do meu cabelo. Desde que Inara
fizera aquelas tranças em mim, eu não cuidara mais dele. Não tinha
coragem. Quando alguém tocava nos meus cabelos, eu me lembrava do dia
em que os bandidos entraram na nossa casa e um deles me arrastou escada
abaixo, me puxando pelas tranças. Meu pai foi a primeira pessoa a quem eu
confiei me tocar depois daquilo. Ele fez dreads, disse que fazia no próprio
cabelo quando era jovem.
Sentamos no terraço da casa, ele numa cadeira, e eu, em um
banquinho na frente dele. Enquanto penteava meu cabelo para trás e
começava a fazer as tranças, enrolando-as com fios de lã, ele falou:
— Sinto muito pelo que aconteceu. Arnaud tava certo em denunciar
o esquema do prefeito. Talvez as coisas já tivessem sido resolvidas. Eu não
devia ter deixado ele ir embora. Ele era um bom hóspede, afinal. Você
também tava certo, Nico, me desculpa, eu afastei vocês e te fiz sofrer. —
Era a primeira vez que eu o via pedir desculpas e ser tão sincero. Ele estava
se esforçando para falar aquilo.
— O senhor também não tava errado, pai. Talvez fosse pra
acontecer — falei, tentando consolar nós dois. Não são esses momentos que
nos constroem como pessoas complexas? Não são essas cicatrizes que nos
deixam mais fortes? A conciliação, o deixar para trás. — Se não fosse por
isso, não estaríamos aqui. E eu não estaria viajando pra alcançar meus
sonhos.
— Eu sabia que um dia você ia sonhar longe. Faça tudo valer a
pena, meu filho. Não se arrependa. E não faça a gente se arrepender.
Sorri, tentando afastar os pensamentos negativos que brotavam na
minha cabeça. E se eu me arrependesse? Eu estava fazendo aquilo certo? E
se meus pais estivessem certos? E se tudo aquilo fosse realmente uma fase?
E se eu estivesse sendo precipitado demais? E se eu não devesse dar uma
chance tão grande para um amor que tinha surgido tão rápido? E se o meu
livro fosse um fracasso? E se...
— Melhor me arrepender de algo que fiz do que passar a vida inteira
imaginando como teria sido — falei, por fim, interrompendo os meus
próprios pensamentos malignos, apelando para aquele lugar-comum, na
esperança de que fosse real.

No dia da minha partida, minha mãe estava na cozinha quando


desci, já com minha mala em mãos, para tomar o café da manhã. Ela me
observou enquanto eu vertia a garrafa de café em uma caneca. Tinha o
cenho franzido.
— Que foi? — perguntei.
— Nada. Só estou preocupada. Você aí nesse mundo, sozinho...
— Mãe, eu tenho vinte e quatro anos.
— Você não é tão adulto quanto pensa — falou, sentando-se à mesa.
— Quando eu tinha essa idade, eu...
— Mãe, eu não sou você. Os tempos são outros. Posso até não ser
adulto, mas eu não preciso dessas experiências para o meu
amadurecimento? Como vou crescer se eu não for atrás dos meus sonhos?
— Ser adulto às vezes significa abdicar de seus sonhos.
— Talvez a senhora esteja enganada — falei, arrancando-lhe uma
cara de surpresa. — Talvez alguns adultos apenas estejam cansados de
decepções e se acomodaram com o que têm. Ou ficam com muito menos.
Ou apenas não tiveram oportunidades. Eu não posso jogar uma
oportunidade fora.
Vi a linha dos seus lábios se estreitar quando ela se levantou e foi
até a pia. Ficou de costas para mim, fingindo estar lavando alguma coisa.
Então ela se virou e, com os olhos cheios de lágrimas, falou, com a voz
baixa, falha, quase resignada:
— Tá certo. Então me mostre que tô enganada.
Naqueles rápidos segundos em que seus olhos encontraram os meus
eu soube. Soube que ela sabia. O lampejo em seus olhos dizia que ela tinha
lido minha mente e conhecia toda a verdade. Ela me conhecia. E estava
começando a conhecer aquele novo eu. Ela sabia, entre tantas coisas, que
estava enganada. Ela sabia, ao olhar fundo em meus olhos, que ali não
havia mais dúvidas nem inseguranças. Nos meus olhos ela não viu um
sonho, mas uma certeza. E sabia, acima de tudo, que eu não ia mais voltar.

Encontrei meu pai do lado de fora, me esperando dentro do carro.


Minha mãe não apareceu no terraço para se despedir, nem me deu um
abraço. Era como eu, não gostava de despedidas. Lembro-me quando meu
irmão foi embora, ela nem sequer saiu do quarto naquele dia. Gostava de
manter para si as lembranças da pessoa enquanto ainda estava com ela, e
não da imagem dela indo embora. Ou talvez ela apenas esperasse que eu
voltasse como prometido, dali a duas semanas.
Meu pai dirigiu em silêncio, o caminho inteiro da nossa casa até o
píer da balsa focado na estrada, sem direcionar para mim nenhum olhar ou
palavra. Devia estar imerso em seus pensamentos.
Ele tinha trabalho a fazer na pousada, então não me levaria até o
aeroporto na Ilha Grande. Eu pegaria a balsa sozinho e lá na Ilha Grande
pegaria um táxi até o aeroporto. Ele se desculpou por não poder me
acompanhar até lá e o tranquilizei falando que seria melhor assim.
Ao me abraçar, quando peguei minha mala para me dirigir à balsa,
ele falou, quase sussurrando em meu ouvido:
— Não deixe de nos visitar com Arnaud.

Na balsa, vi meu pai entrando no carro e partindo. O mar crescendo


na distância entre nós e a ilha se afastando cada vez mais. Apertei minha
mala com força, resistindo aos primeiros sinais de enjoo que meu corpo
manifestava. Ali dentro, na mala, havia poucas roupas, uma sunga, um livro
de poemas para ler na viagem, o livro de fotografias que Arnaud me dera e
alguns itens de higiene pessoal. Agarrei a mala como se minha vida
dependesse daquilo. Era tudo que me restava, tudo o que trazia da ilha
comigo. O pouco do antigo Nico que restava. E daqueles itens, que
carregavam tantas histórias e memórias, eu faria novas lembranças. E como
ansiava por aquelas novas lembranças que eu criaria! Deixaria para trás o
passado, a angústia, a saudade, a loucura, tudo viraria um curto período
sombrio do passado, uma mancha em um verão que prometera ser eterno,
como uma pequena tempestade passageira.
Ao chegar na Ilha Grande, conferi meu relógio e, ao me certificar de
que ainda havia tempo, não fui diretamente para o aeroporto. Dei ao taxista
um outro endereço.

Américo me recebeu em sua porta com um sorriso desconfiado.


Queria saber o que eu estava fazendo ali e esperava que fosse para me
despedir. Quando falei que sim, era para me despedir, ele me abraçou.
— Você conseguiu! — exclamou, com um sorriso genuíno no rosto.
Américo estava tão mal quanto a última vez que o vi, se não pior. As
olheiras continuavam lá, sua pele, sem contato com o sol constante das
praias, estava mais branca que nunca, quase transparente. Ele devia estar
fumando ainda mais, pois fedia a cigarro. E ainda dormia no sofá. Pude ver,
pela abertura da porta, o travesseiro e os lençóis dispostos da mesma forma
de quando eu estivera lá na última vez.
— Trouxe uma coisa pra tu — falei, despertando sua curiosidade.
— O quê? — perguntou, com o cenho franzido. Não parecia
animado por ter uma surpresa, e sim cauteloso.
Abaixei-me para abrir a mala e pegar o que eu tinha levado. Retirei o
envelope contendo o dinheiro que meus pais haviam me dado para comprar
a passagem de volta para a ilha e entreguei a Américo.
— Para você ir encontrar o seu garoto do continente — falei,
abraçando-o. Depois, enquanto ele ainda me encarava sem reações, devolvi
a câmera que ele havia me emprestado e peguei minha mala para ir embora,
sem lhe dar chances de protestos, pois sabia que ele faria, quando se tocasse
do que eu acabara de fazer. — Só me escreva quando estiver com ele! —
gritei, já descendo as escadas.

◆ ◆ ◆

Sempre dei valor à terra, ao solo, à sua firmeza e estabilidade.


Talvez por ter passado minha vida inteira, até aquele momento, cercado por
tanto mar. A terra era tão pouca que eu lhe dava importância. Então foi
aterrorizante quando o avião saiu do solo. Vi o chão, que sempre estava tão
próximo dos meus pés, se afastando numa velocidade que eu também nunca
antes havia estado. Agarrei-me aos braços da poltrona, provocando o riso de
uma velhinha que estava ao meu lado. Aquele riso me tranquilizou, pois, se
ela estava sorrindo numa situação tão aterrorizante, eu devia estar me
preocupando demais. Mesmo assim, não conseguia olhar para a janela ao
meu lado, não queria nem ver a que altura estávamos.
— Primeira vez num avião? — perguntou ela, ainda rindo.
— Primeira vez que saio do arquipélago — falei, quase engasgado,
minha voz entalada na garganta enquanto pressionava meu corpo contra o
assento.
— Então você nunca o viu dessa forma — disse, apontando-me para
a janela.
Olhei para o lado e entendi o que ela quis dizer.
Só se via água. O mar era imenso. Muito mais do que eu jamais
havia visto da ilha, seja do alto da caixa d’água ou da torre da igreja. Era,
realmente, de se perder de vista. O arquipélago, naquela altura, adquiria
novas cores e contornos. Vi a Ilha Grande, minúscula, sem o verde que
cobria as outras ilhas, ali só havia o cinza da cidade. Vi um pontinho
amarelo, que julguei ser a Ilha da Borracha, quase imperceptível, com o
degradê de verde e azul do mar que a cercava. Vi a ilha onde nasci, cresci e
vivi aqueles anos todos, imensa, mas, ali, estava pequena. Daquela altura
podia distinguir a cidade, que parecia menor do que eu achava que era,
apenas a rua principal e alguns quarteirões ao redor, a estrada que ia até a
minha casa, tudo tão pequeno que era ridículo. Vi as montanhas numa
ponta, gigantescas, que me deram perspectiva da altura em que o avião
estava, dando-me calafrios. Vi o buraco nas rochas, escavado por uma
empresa mineradora que o prefeito autorizara se instalar ali, vi o buraco na
floresta causado pelo incêndio. Avistei a igreja, com sua cruz no alto a
julgar todos. Também vi a capelinha, num ponto de vista que eu não
conhecia, ligada à ilha por aquele pequeno braço de pedra. Avistei o rio,
cortando o centro da cidade, atravessando campos, plantações e vilarejos
até a praia onde um dia me banhara com Elisa. Nostálgico, lembrei-me
daquele dia, quando, nus, avistamos os barcos chegando. Quando avistei
Arnaud e aquele nome, Sotaford-Dortnellas, ficou martelando em minha
mente durante o dia inteiro. E ali estava eu novamente, pensando naquele
homem que tanto amava.
Quando o avião se afastou um pouco mais, vi, a alguns quilômetros
da ilha, diversos pontinhos brancos no mar, cerca de quinze ou vinte barcos.
Eram os novos velejadores, em seus catboats e ketch boats, que chegavam
do mundo inteiro para o verão que se iniciava ali naquele pedacinho de
terra. Peguei-me pensando nas pessoas que teriam suas vidas agitadas
naquela estação. Nos garotos e garotas ingênuos que se sentiriam mais
ilhados do que jamais sentiram a vida inteira e, quando aquele verão
acabasse, iam fazer de tudo para sair dali. Será que eles teriam a mesma
sorte que eu? Será que deixariam de ser garotos da ilha, como um dia fui,
para serem garotos do mundo, voando tão alto quanto as montanhas, tendo
todo o oceano, terras, todo o planeta ao seu alcance, como agora eu tinha?

​ epois de horas passadas sobre aquele mar que realmente parecia


D
sem fim, avistei o continente. Quanta terra! Quanta pluralidade de texturas,
cores e formas! Sob as nuvens escassas, montanhas cobertas por vegetação,
outras por neve, campos imensos, plantações, cidades, inúmeros rios,
riachos, enseadas. Perdi o fôlego quando o avião começou a descer e aquela
terra, que já era gigante, só aumentava, parecendo que ia me esmagar.
Achei que quando o solavanco do avião anunciasse que havíamos tocado o
solo, ia respirar mais tranquilo, finalmente de volta à terra. Mas, ao descer
da aeronave, dando-me conta que o mar estava tão distante e as terras que
me cercavam eram tão extensas, me senti claustrofóbico. Sim, mesmo
naquele espaço aberto imenso eu me sentia preso dentro de uma caixa, sem
o mar e o horizonte azul como abertura.
​Mas Arnaud me esperava. E ele me esperava perto do mar.
​ aindo do aeroporto, naquele caos de turistas e idiomas, peguei
S
um trem para a cidade. O trem estava lotado de turistas alegres e faladores.
Atravessamos bosques verdes sob um céu azul e sem nuvens, passamos
debaixo de montanhas, num túnel longo e escuro, ecoando o barulho do
trem e me assombrando. Nunca havia escalado as montanhas da ilha, mas
pelo menos agora podia dizer que já havia atravessado uma.
​Na cidade, encontrei mais caos. Carros, lixo, barulho, turistas por
todo lado. Não sentia cheiro de mar nem ouvia barulho de ondas e gaivotas,
mas as peles avermelhadas, as lojas de artigos de praia e as mulheres com
biquínis por baixo das blusas denunciavam estarmos perto do mar. Mas eu
não estava ali para ver o mar.
​Meu coração palpitava em expectativa para reencontrar Arnaud.
Ansiava por seus olhos, seu sorriso, seu beijo, seu toque. Queria sentir
novamente seu gosto, seu cheiro, queria correr para seu abraço apertado e
ouvir palavras de afeto naquela voz que um dia havia me encantado e
continuava a me enfeitiçar, e queria eu mesmo dizer minhas palavras de
amor. Queria dizer o quanto havia sentido sua falta e que aquela falta eu
nunca mais queria ter. Queria que ele me puxasse para seu hotel e mal desse
tempo de entrarmos no quarto para começar a arrancar a minha roupa.
Queria tirar a sua roupa e fazer valer a pena todo aquele período de
saudade. Queria matar a saudade com dentes, línguas, pelos, pênis, bundas.
Queria me sentir, finalmente, pertencer ao lugar onde estava.
​Mas ali, caminhando sozinho por aquelas ruas longas, estreitas e
desconhecidas, com seus prédios de cinco andares colados um ao outro,
sombreando as ruas, suas paredes de pedras antigas e janelas ornamentadas,
e transeuntes estrangeiros, falando francês e idiomas que eu não conhecia, a
pele branca mal tocada pelo sol, turistas com seus chapéus de palha,
mochilas nas costas e sacolas de compras na mão, longe de todos que eu
conhecia e ainda separado de Arnaud pelo tempo que não nos víamos (será
que iríamos sequer nos reconhecer?), me sentia um peixe fora d’água.
Sentia-me perdido, como um garoto de uma ilha que não pertencia ao
continente. Sentia-me pequeno e deslocado. Aquele pensamento me
frustrou. Eu havia saído da ilha pois não sentia que aquele era meu lugar,
apenas para descobrir que a ali eu também não pertencia. Onde era meu
lugar?
E então, numa dessas esquinas, que pareciam todas iguais, vi numa
loja o anúncio de um passeio de barco pela região. Parei, encarando as
letras traduzidas em vários idiomas. Consultei o relógio. Arnaud já devia
estar me esperando na marina, inquieto, ansioso, sentado num banco ou em
pé andando de um lado para o outro, lamentando o fato de meu celular não
ter um plano internacional que funcionasse em terras estrangeiras. Respirei
fundo, decidido, e, abandonando todo o roteiro que eu havia combinado
com Arnaud, ignorando o mapa memorizado da estação até onde ele me
encontraria, na marina, agindo numa espontaneidade tão atípica de mim,
num impulso rebelde, ignorei todo o planejamento que havia feito com ele.
Não adiantava negar o que eu era. Ali, eu era um estrangeiro. Ali
tudo era novo, desconhecido, e ainda não havia me adaptado. Como
poderia, em tão pouco tempo? Não adiantava negar minhas origens. Por
mais que eu me sentisse, naqueles últimos dias, tão deslocado e não
pertencente à minha terra natal, eu era, de fato, um garoto da ilha, e Arnaud,
do continente. E juntos éramos do mar.
E assim entrei na loja e comprei uma passagem para o próximo
barco que fosse sair do continente.
EPÍLOGO ✹ A SUNGA

A
imer c'est aussi savoir laisser partir. Amar é também saber deixar
partir. Haviam me dito essa frase tantas vezes. Primeiro, quando meus
pais faleceram no acidente de carro quando estavam indo me visitar
em Marseille. Foram tempos difíceis, aqueles. Sentia-me culpado,
arrependido. Mas quem ama, deixa partir, foi o que me disseram. E
disseram novamente quando Jérôme morreu. Falavam isso também quando
eu publiquei aquele livro. Aqueles anos que se sucederam foram horríveis,
pois eu não queria deixar Jérôme partir. E somente quando o deixei partir,
quando entrei naquele barco para cruzar os oceanos, para cumprir uma
promessa e para realizar uma vingança, acabando num pequeno paraíso em
forma de ilha, aprendi a amar novamente. E finalmente entendi o que
aquela frase significava.
Até que foi a minha vez de partir. De deixar para trás aquela ilha, o
pequeno Nico que ficou de coração partido. Montou em sua bicicleta e foi
embora sem nem olhar para trás. Fiquei parado no meio da rua, olhando-o
desaparecer na esquina com a bicicleta, na esperança de que ele desse uma
última olhada em meus olhos ou voltasse para mim. Mas ele continuou, me
deixou partir.
Precisei me segurar para não correr atrás dele ou pedir para que
fosse comigo, mas também precisei deixá-lo ir. Tínhamos nossa jornada a
cumprir, e não há jornada sem dor. Nico precisava daquele tempo sozinho,
mesmo que fosse doer, para se conhecer, se descobrir e ter certeza do que
queria para a própria vida. Ele precisava ser forte. E assim eu também
precisava daquele tempo sozinho, para concluir aquela viagem e deixar,
finalmente, Jérôme partir de vez, como um encerramento, mesmo que eu
me questionasse inúmeras vezes se havia feito a coisa certa. Antes de ir
embora, fiz minha última despedida: enviei todo o meu último trabalho, os
documentos da investigação que havia feito ali na ilha, para uma ONG
local. Eu não queria mais aquilo para mim.
Dias tortuosos foram aqueles no mar. O silêncio que tanto me
acalentou e reconfortou, durante a primeira etapa da viagem, ali adquirira
um aspecto aterrorizante. A agitação dos últimos meses havia esquentado
meu coração, e não estava preparado para deixá-lo esfriar novamente. No
mar, desenhei o que mais me havia marcado durante aquele verão. Não a
exuberância da paisagem, com suas árvores verdes, frutos extremamente
doces, o sol intenso, o azul perfeito do mar, o rio que corria puro ou a
música dos pássaros, muito menos o charme daquela cidade, com suas
flores coloridas, casas antigas de parede branca e janelas azuis, turistas e
moradores simpáticos, lojinhas de artesanato ou feiras públicas de peixe e
verduras. Foi Nico que mais marcou aquele verão.
Desenhei-o exaustivamente nos dias sozinho no mar, quando a falta
que ele fazia em mim me corroía aos poucos. Não tiramos fotos juntos, e
fechar os olhos e encontrá-lo em meus sonhos só aumentava o peso da
saudade. Consolei-me desenhando-o. Desenhei aqueles olhos que
encontraram os meus assim que cheguei na ilha, um olhar tão intenso e
complexo que havia ficado na minha cabeça o resto do dia, e, mesmo sem
ainda conhecê-lo, tinha certeza de que ele era importante. Quando cheguei
na pousada e o encontrei lá, soube que aquele meu verão não seria de
sossego e descanso. Desenhei o seu cabelo, aqueles cachos que me faziam
tanta falta. Como eu queria passar os dedos por aqueles fios e sentir aquele
cheiro que não me largava nunca! Desenhei o seu sorriso, enorme,
belíssimo, os dentes que reluziam, aquele riso que me fazia sentir um aperto
no coração de tanto desejo e amor. Desenhei seu corpo, perfeito, a pele que
se arrepiava aos meus toques e que me arrepiava de maneira igual.
Joguei fora minhas anotações, minha investigação, o esboço da
minha matéria. Não queria que Nico e sua família fossem afetados. Eu não
queria ser um ciclone a derrubar as árvores daquele paraíso calmo. Eu teria
que encontrar outra forma de ir atrás daquela empresa, mas não queria
pensar nisso naquele momento. Eu só conseguia pensar em Nico. De toda
forma, havia enviado os documentos para aquela ONG, talvez estivessem
em condições melhores de agir do que eu.
Por vezes desejei que um acidente ocorresse no meu barco, que eu
naufragasse para que um helicóptero viesse me socorrer e me levasse de
volta à ilha. Mas nada aconteceu, o mar continuou calmo e o vento, estável.
Sentia falta do jeito que Nico me tocava, com cuidado, curiosidade, e um
desejo que estava sempre ali; de tocar sua pele, macia, que, mesmo na
sombra, possuía o brilho do sol; do jeito que ele me olhava, seus olhinhos
brilhando, o sorriso sempre na boca, as palavras de afeto que pareciam
meticulosamente calculadas e do jeito que ele me escutava, tão atento,
sempre fazendo-me sentir desejado e importante. Mal sabia que era ele que
era importante para mim.
Não sou bom em palavras. Não sou de metáforas, comparativos ou
descrições intensas e detalhadas. Esse dom é de Nico. Eu sou jornalista,
minha escrita é objetiva. Para mim, é difícil explicar o que senti naqueles
primeiros dias na ilha, quando o conheci e, aos poucos, fui me afeiçoando a
ele cada vez mais, até que me peguei completamente apaixonado. Não
esperava aquilo, não naquela fase da minha vida, nunca achei que meu
coração, de tão machucado, fosse me permitir gostar de alguém novamente,
muito menos durante aquela viagem, enquanto fazia um trabalho
importante.
Em meus desenhos tentei explicar como foi, para mim, conhecer
Nico, como ele me fez melhorar, como ele me fez deixar o passado para trás
para começar uma nova vida, o quão intenso era o amor que eu sentia por
ele. Que eu sinto. Um amor tão grande como esse, que surgiu de forma tão
rápida e poderosa, é de difícil descrição.
Assombrava-me como até o mar havia mudado para mim de
maneira tão abrupta em tão pouco tempo. Aquela beleza que eu via na sua
imensidão azul havia desaparecido, e agora tudo o que via naquele deserto
salgado era um obstáculo, uma barreira que me separava de Nico. Com
tantas calmarias e tempestades que passei naquela travessia, sentia como se
estivesse sendo castigado pela decisão imbecil de ter deixado a Ilha, ou de
não ter trazido Nico comigo. Jérôme nunca me dera as especificações
daquela promessa. Nunca me disse que eu não poderia conhecer alguém no
caminho e querer levá-lo comigo. Jérôme, naquela altura, já havia me
deixado partir. Estava longe, em outros planos. E eu havia ficado sozinho.

A primeira coisa que fiz ao chegar no continente foi correr para um


café acessar a internet. Marinheiros sempre buscam sexo, um bom banho ou
uma boa cama depois de uma longa viagem como aquela. Mas nada daquilo
eu precisava. E lá estava ele, o e-mail do meu pequeno Nico. Tudo o que eu
queria. Ele havia se encontrado, mas eu me sentia perdido. Precisava que
ele me encontrasse e me resgatasse daqueles dias de solidão que me
acompanhavam. Eu já estava pronto para pegar o primeiro avião e encontrá-
lo na ilha quando ele me falou que havia decidido sair de casa. Fiquei
preocupado, é claro, não havia saído da pousada em uma situação muito
boa, e perguntei-me o que havia acontecido quando eu não estava lá.
Pensei em seus machucados, no braço esfaqueado, pensei no
desgraçado que o arrastou pela escada, pensei em como fiquei perto de
matá-lo. Pensei na polícia, no prefeito, no crime que tomava conta daquela
ilha. Eu fiz a coisa certa ao abandonar aquela matéria? Eu me afogava em
preocupações quando recebi uma ligação de David, um antigo colega de
profissão e um grande amigo. David era uma das poucas pessoas que
sabiam da minha viagem. Quando perguntou como estavam os meus
escritos e eu falei que tinha jogado tudo fora, ele gargalhou. You must be
crazy. Sim, eu estava enlouquecido. Disse que uma estagiária dele havia
conseguido filmagens exclusivas naquela ilha que escancaravam o esquema
de corrupção do prefeito, envolvido com crimes ambientais numa reserva
florestal e tráfico internacional de drogas e animais silvestres. Era um
esquema grande, que envolvia outras cidades e países, muita gente,
inclusive um famoso velejador francês. Disse que eu tinha que escrever
aquilo. E que ele ia mandar a estagiária me encontrar na França. Já tinha até
comprado a passagem dela.
Imagina a minha surpresa quando vi Rebeca chegando em
Marseille, vindo em minha direção correndo para me abraçar.
Escrevemos aquela matéria juntos, nos dias seguintes. Iríamos
derrubar aquele prefeito, aquela empresa, todos eles seriam presos. Dessa
vez eu não permitiria mais nada me separar de Nico. Como diz ele, juntos,
somos ilha e continente, somos o mar. Somos a crosta terrestre e não há
força vulcânica que nos despedace.
Antes de publicarmos a matéria, enviei todas as evidências que
tínhamos para a polícia e para diversos jornais do arquipélago de Nico.
Aquela história não era só minha, nem de Rebeca. Era de todos nós. Cada
um escreveria seu ponto de vista.
Então o esperei, como combinado, na marina de Marseille, após
algumas semanas enclausurado na solidão de um quarto de hotel. Achava
que quando eu voltasse a pisar no continente, ali naquela cidade, após os
meses no mar, ia me sentir aliviado, seguro e em casa. Mas não, aquela
cidade parecia estranha para mim, algo nela havia mudado. Ou melhor, algo
havia mudado em mim. As memórias daquele lugar pareciam não mais me
pertencer e eu mal podia esperar para que Nico chegasse e partíssemos
juntos para outro lugar, só nosso, onde criaríamos as nossas próprias e
novas memórias.

Devo ter conferido o relógio a cada cinco minutos enquanto o


esperava sentado em um banco na marina. Comprei um jornal numa banca
ali perto e o li três vezes. Na capa, a foto do velejador francês preso por
tráfico de animais silvestres. Na reportagem, vi que o prefeito tinha sido
preso e também vi uma foto do pai de Nico, que tinha ganhado fama de ter
salvado a floresta de um incêndio catastrófico. A matéria também citava
meu nome e o de Rebeca, os jornalistas que expuseram o caso. Rebeca
devia estar no hotel, dormindo agarradinha com Inara, tranquilíssima,
pronta para encontrar Nico de surpresa mais tarde. Ela me fez prometer que
eu não contaria a ele que ela estava aqui, queria dá-lo um susto. É claro que
eu contaria assim que o visse, não queria meu pequeno assustado.
Olhei para o céu, ansioso. Seu voo já devia ter chegado, mas ele não
aparecia. Arrependi-me de não ter combinado de encontrá-lo no aeroporto.
Caminhei de um lado para o outro, em círculos, angustiado, esperançoso,
com o coração na boca quando seu atraso passava de dez minutos para
quinze, meia hora, quarenta minutos.
Eu não tinha para onde ir, não sabia o que fazer caso Nico não
aparecesse. Na minha mão eu segurava todos os desenhos que havia feito
durante a viagem e estava ansioso para mostrá-los. Fui até a marina e fiquei
parado na extremidade do último píer, observando a imensidão do mar, sem
saber, afinal, se eu era do continente ou do mar, sem saber a que lugar eu
pertencia, arrasado por, mais de uma hora e meia de atraso de Nico, eu
começar a duvidar se ele vinha mesmo. E ali, naquele momento, me senti
um adolescente, cheio de perguntas e paranoias na cabeça. Será que ele
vinha? E se não viesse? Ele havia mudado de ideia? Havia desistido de
mim? Havia encontrado seu lugar, e esse lugar não era ao meu lado? Olhei
para a pulseira de búzios em meu braço, que ele havia me dado no dia que
deixei a ilha. Arranquei-a e a joguei fora, no mar. Observei as ondas a
levarem para longe de mim e finalmente a puxarem para o fundo do oceano,
onde aquelas conchas um dia pertenceram.

Quando levantei os olhos, vi um barco chegando. Um daqueles de


turismo, que fazia um passeio chinfrim pela costa da praia, e que só servia
para arrancar dinheiro de turistas recém-chegados na cidade, que ainda não
sabem que há passeios melhores por ali. Era um passeio rápido, de uma
hora e meia, que não dava para se ver quase nada, não passava pelas ilhas
nem pelos Calanques, com suas águas mediterrâneas cristalinas e encostas
escarpas e deslumbrantes, brancas de calcário.
Então o vi. Parado no púlpito da proa, sorrindo, os olhos mais
alegres que eu já havia visto na vida. Pretos, ricos, complexos, cheios de
coisas boas que eu ainda estava para desvendar. Estava só de sunga, não
uma feia, como uma sunga poderia ficar feia nele? Também não era aquela
sunga que ele havia usado durante todo o verão passado e que eu me
lembrava tanto, mas uma nova.
Era ele, o menino que me encantara há tanto tempo atrás, há meses
que pareciam uma eternidade, uma vida inteira, o menino com quem eu
passaria o resto dos meus longos e numerosos dias. Com quem iria a
lançamentos de livros, os seus, e a exposições de ilustrações, as minhas.
Com quem eu me sentiria pertencido, onde quer que estivéssemos. Afinal,
lar é o lugar onde estamos juntos.
Juntos, criaríamos o nosso próprio paraíso. Juntos, atravessaríamos
mais oceanos, percorreríamos continentes, escalaríamos montanhas e
vulcões, exploraríamos cavernas e mergulharíamos em mares
desconhecidos. Juntos, nenhum erro se repetiria, nenhuma angústia,
sofrimento, arrependimento, dor, dúvida, insegurança, medo.
Revisitaríamos o passado sem pesar, viveríamos o presente sem pressa e
teríamos o futuro sem prazo de expiração. Juntos, o mundo inteiro era
nosso. E éramos inteiros do mundo. Visitaríamos seus pais,
reencontraríamos seus amigos, nossos amigos, criaríamos a nossa própria
família. Juntos, criaríamos a nossa própria história.
Ele desceu do barco, e eu o abracei apertado, suspirando fundo,
deixando seu cheiro me invadir, deixando nossos cheiros se misturarem,
como terra e mar que se encontram. Corremos até o nosso veleiro e
partimos, guiados pelo vento para lugar nenhum e para todos os lugares,
pois éramos assim, como água, que não pertence a lugar nenhum, mas em
todo lugar está.
O sol misturava-se ao mar, dissolvendo-se no horizonte e tingindo o
céu com uma explosão de cores: azul, vermelho, lilás, laranja. Eu e Nico
repetíamos aquele espetáculo, nos misturando e explodindo em cores
quentes, camuflados na perfeição da natureza. Ali, naquele barco, sob o
céu, sobre o mar, o apertei em meus braços para nunca mais o deixar, num
abraço que duraria para sempre e nos manteria para sempre unidos.
Pois, juntos, eu e Nico nunca mais nos sentiríamos ilhados.


AGRADECIMENTOS
Ilhados é bem importante e pessoal para mim. Foi a primeira história que
escrevi e publiquei. Fez um sucesso no Wattpad, onde comecei a me
aventurar nessa vida de escritor. Lá, tive mais de 50 mil leituras, ganhei
mais de dez concursos e fiz muitos amigos queridos. Quando levei a
história para a Amazon, meio que ensaiando uma profissionalização da
minha escrita, Ilhados também me rendeu muita coisa. Mas isso já faz
muito tempo. Naquela época, eu ainda me considerava um escritor
iniciante. Aos poucos, quando fui amadurecendo, comecei a desgostar da
história. Via muita coisa errada no enredo, não me identificava mais com o
que tinha escrito, e aí retirei o livro da Amazon e o deixei apodrecer numa
gaveta imaginária.
Durante esse tempo, vez ou outra alguém chegava para mim perguntando
onde estava Ilhados. Dizendo que estava com saudades de Nico e Arnaud,
me pediam o pdf, pediam para eu republicar. Agradeço demais a todo
mundo que fez isso. Era muito louco ver que tanta gente sentia carinho por
algo que eu passei a detestar. Foi isso que me fez nunca esquecer Ilhados.
Ilhados é, principalmente, uma história sobre autoconhecimento. E foi com
o meu próprio processo de autoconhecimento que entendi o motivo de eu
ter colocado a história na gaveta. Eu peguei muita coisa da minha vida para
compor o protagonista. Coisas que eu odiava em mim mesmo, coisas do
meu passado. Quando eu estava trabalhando esses meus problemas, decidi
revisitar a história.
Lendo com um novo olhar, decidi reescrever tudo. Reescrevendo, vi que
não era tão ruim assim. As coisas que eu achei problemáticas, mudei, tirei
trechos, adicionei outros, aprimorei a escrita. Quem leu a primeira edição,
vai saber. E até agora estou nervoso, pensando no que vão achar, se vão
gostar ou não. Por favor, me falem! Na reescrita passei a enxergar o texto
com mais carinho, e espero que vocês sintam isso também. Sinto que dei
mais amor a Nico, dei mais vida à história, e o que antes eu não me
identificava mais, agora deixei muito mais a minha cara.
Assim, eu queria agradecer o apoio de todo mundo que chegou até aqui,
que leu, que me deu palavras de incentivo, que me deu dicas, críticas,
sugestões, que me acompanhou durante todo esse trajeto e, principalmente,
nunca me deixou esquecer Ilhados e nem quem eu sou. Obrigado, de
verdade! Sempre revisitem suas histórias! Reescrevam, se quiserem. E
sempre se tratem com carinho, mesmo aquele seu eu sem noção de dez anos
atrás. Ele tinha muito o que aprender, muito o que viver, e fez o melhor dele
com o que tinha na época.
E, é claro, um super agradecimento a Luciana Fauber, minha revisora,
preparadora e autora do belíssimo poema que abre esse livro. Ela leu todas
as versões de Ilhados, desde a época do Wattpad, e provavelmente sabe
alguns trechos decorados. Lu é uma pessoa muito querida, maravilhosa, e
deu todo o carinho e atenção que esse texto merecia. Obrigado demais, Lu,
te amo!


ABOUT THE AUTHOR
Lucas Santana

Lucas Santana é escritor, biólogo e paraibano — atualmente mora em


Recife. Se inspira nas suas vivências como queer e nordestino para escrever
sobre o horror e o fantástico que atravessam o cotidiano. É autor de Ilhados,
Terra alagada (vencedor do prêmio Wattys 2019) e O parque, publicados de
forma independente, dos livros A trama da morte e Fruto podre (Editora
Corvus, 2023) e de contos nas revistas Suprassuma (Editora Suma, 2023),
The Dark e na antologia Rocket Pages (Editora Rocket, 2022).

Encontre-o nas redes sociais: @lucassntn


BOOKS BY THIS
AUTHOR
A Trama Da Morte
Jandira Pavio-Curto, além de drag queen, vê espíritos. Ainda assim, desde a
morte da sua mãe, ela prefere viver entre os vivos — afinal, não é seguro
ser filha da última costureira de almas de Recife. Quando Jandira comete
um erro que pode ser responsável por assassinatos paranormais no centro de
Recife, ela terá que ajudar a polícia a resolver o caso para evitar que o pano
que separa os mortos dos vivos se desmanche de uma vez por todas.

Fruto Podre
Um conto assombroso no qual os fantasmas são os verdadeiros guardiões da
memória. - Eric Novello, autor de "Ninguém nasce herói".

Marina perdeu tudo: as amigas, a casa, os pais, o futuro. Quando é obrigada


a trabalhar para uma família de ingleses num antigo engenho no interior da
Paraíba, ela descobre que as histórias de terror que contam sobre aquelas
terras não são apenas contos de fantasmas para assustar menininhas.

O Parque
Atraído por um homem misterioso que começa a frequentar o parque onde
trabalha, um funcionário se perde em um jogo de sedução e violência.
Quando cadáveres surgem na praia logo ao lado, deixando-o preso numa
roda-gigante de medo, paranoia e adrenalina, seu mundo começa a
desmoronar.
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