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Identidade Branquitude e Negritude - contribuições para a psicologia social no


Brasil

Book · January 2014

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3 authors, including:

Simone Gibran Nogueira


Psicologia & Africanidades
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© 2014 Casapsi Livraria e Editora Ltda.
É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, para qualquer finalidade,
sem autorização por escrito dos editores.

Editor: Ingo Bernd Güntert


Coordenadora Editorial: Marcela Roncalli
Assistente Editorial: Cíntia de Paula
Produção Editorial e Capa: Casa de Ideias

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057
Identidade, branquitude e negritude: contribuições para a psi-
cologia social no Brasil: novos ensaios, relatos de experiência e de
pesquisa / organizado por Maria Aparecida Silva Bento ... [et al.].
- São Paulo : Casa do Psicólogo, 2014.

ISBN 978-85-8040-332-9
1. Identidade social 2. Negros - Identidade racial 3. Racismo
4. Preconceitos 4. Psicologia social 5. Religião I. Bento, Maria
Aparecida Silva II. Silveira, Marly de Jesus III. Chinalli, Myriam
IV. Nogueira, Simone Gibran Nogueira
14-0223 CDD 302
Índices para catálogo sistemático:
1. Médicos – biografia – profissão
1. Psicologia social

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

As opiniões expressas neste livro, bem como seu conteúdo, são de responsabilidade de
seus autores, não necessariamente correspondendo ao ponto de vista da editora.

Reservados todos os direitos de publicação em língua portuguesa à

Casapsi Livraria e Editora Ltda.


Avenida Francisco Matarazzo, 1500 - Conjunto 51
Edifício New York - Centro Empresarial Água Branca
Barra Funda - São Paulo/SP - CEP 05001-100
Tel. Fax: (11) 3672-1240
www.casadopsicologo.com.br

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Este livro é dedicado a Virgínia Leone Bicudo1 (1910-2003) — Socióloga,
Psicóloga e Psicanalista negra.

1
Primeira pesquisadora e professora negra a ocupar um lugar de destaque na divulgação e
construção da Psicanálise no Brasil. Desenvolveu a primeira dissertação de mestrado sobre o
tema das relações raciais, no país, sob o título “Atitudes raciais de pretos e mulatos em São
Paulo”. Em sua rica trajetória profissional, integrou a equipe do Projeto Unesco em São Paulo,
coordenado pelos professores Roger Bastide e Florestan Fernandes, e foi fundadora do Instituto
de Psicanálise de Brasília. (Fonte: “Os Segredos de Virginia”: Estudo de atitudes raciais em São
Paulo (1945-1955) — Tese de doutorado de Janaína Damaceno Gomes, USP, 2013.)

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APRESENTAÇÃO

No ano em que o IBGE divulga que no Brasil a população negra (pretos


e pardos) perfaz mais do que 50% dos brasileiros (51,1%)1, é mais do que
urgente que as ciências que se ocupam da dimensão subjetiva focalizem, a
partir de suas perspectivas, a forte exclusão racial que se verifica no país e
ofereçam sua contribuição para a superação do problema e para a promo-
ção de igualdade racial.
Apesar da ação dos movimentos sociais e das políticas públicas de
promoção da igualdade racial, a mudança no quadro da desigualdade ca-
minha a passos muito lentos, de sorte que a situação de negros e pardos
ainda é dramática.
Entender a desigualdade racial pela via da subjetividade significa
compreender os efeitos da ideologia da democracia racial, que apregoa que
as oportunidades são iguais para todos, levando à conclusão de que aqueles
que não conseguem sucesso são incompetentes. Significa entender que toda
a discriminação é negada e exercida de maneira muitas vezes não explicita.
É procurar compreender um sistema em que negros são preteridos
no trabalho, mesmo quando sua escolaridade é igual ou melhor do que a
dos brancos, em que policiais focalizam negros como sujeitos suspeitos,

1
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada et al. (2001). Retrato das Desigualdades de Gênero
e Raça. Brasília: IPEA. Com a participação de ONU Mulheres, Secretaria de Políticas para as
Mulheres (SPM), Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR).

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identidade, branquitude e negritude

assassinando-os, ou ainda em que a trajetória de estudantes negros é mais


acidentada, levando à conclusão de que o sistema escolar é hostil a eles,
como diz Fúlvia Rosemberg 2. É uma forma de oferecer informações fun-
damentais para os profissionais que trabalham com a população cotidiana-
mente nas empresas, nos serviços de saúde, em seus consultórios.
De outro lado, é buscar cumprir os marcos legais que definem que
este tema deve ser tratado já nos bancos escolares, assegurando uma formação
que promova a diversidade e a igualdade de tratamento e de direitos.

Histórico do processo

O Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT)


tornou público edital convidando gratuitamente psicólogos, pedagogos,
educadores e demais profissionais de áreas afins que desenvolvem trabalhos
ou pesquisas sobre os temas identidade, branquitude e negritude a subme-
terem artigos para a seleção de trabalhos para serem publicados no livro
Identidade, branquitude e negritude: contribuições para a Psicologia Social
no Brasil. As inscrições aconteceram de 15 de junho a 15 de setembro de
2011, e foram recebidas exclusivamente por meio eletrônico, através do site
<www.ceert.org.br>. No edital foram contempladas as instruções de for-
matação dos artigos.
Os requisitos para seleção foram: o artigo ser inédito e não ser simul-
taneamente submetido ou publicado em outro meio de divulgação; cada
artigo ter no máximo três autores; cada autor poderia apresentar apenas
um artigo; os artigos submetidos poderiam ser relatos de experiências pro-
fissionais, relatos de pesquisas ou estudos teóricos/ensaios.
Foram recebidos e analisados 38 artigos, a partir das seguintes ques-
tões: “O trabalho situa a problemática da identidade, branquitude e negri-
tude no âmbito da subjetividade?”; “O trabalho contribui para a produção

2
Professora de Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde coordena o
Núcleo de Estudos de Gênero, Raça e Idade (NEGRI), e pesquisadora da Fundação Carlos Chagas,
onde coordena o Programa Internacional de Bolsas de Pós-graduação da Fundação Ford. Autora
de vários livros e artigos sobre infância, educação infantil, relações de gênero e raça. Dentre suas
últimas publicações, destacam-se: Criança pequena e desigualdade social no Brasil (2006), A
dívida latino-americana para com a criança pequena (2008), Educação infantil e povos indígenas
no Brasil: apontamentos para um debate (2006).

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Apresentação

de conhecimento na área da psicologia social, educação e demais áreas


afins?”; “A redação é adequada?”; “O trabalho cumpre os objetivos a que
se propôs?”; “Os referenciais utilizados estão adequados à questão aborda-
da?”; “Os referenciais utilizados estão atualizados?”
Ao término deste processo, foram selecionados catorze artigos.
O objetivo do livro é tratar de um tema fundamental para a valoriza-
ção da diversidade e promoção da igualdade racial no país: a dimensão sub-
jetiva das relações raciais, particularmente no que tange à complexidade da
identidade racial de brancos e negros. Esta dimensão abarca um desdobra-
mento direto do nosso sistema de relações raciais, em que a desigualdade
e exclusão racial são agudas, e brancos e negros são colocados em lugares
simbólicos e concretos extremamente diferentes, e não raro antagônicos,
vendo a si próprios e ao outro de maneira, muitas vezes, distorcida, o que
favorece o tensionamento entre os grupos, bem como a permanência do
quadro das desigualdades. A compreensão da dimensão subjetiva e seus
meandros pode propiciar uma leitura mais profunda do contexto racial em
que estão inseridos os diferentes grupos, criando condições para a constru-
ção de uma sociedade mais igualitária e democrática. De outro lado, após a
alteração da LDB pela lei no 10.639/2003, que obriga o ensino da história e
da cultura de descendentes de africanos no Brasil, todos os níveis de ensino
deverão contemplar uma abordagem das relações raciais, possibilitando o
debate e a aprendizagem sobre a identidade racial, foco central da dimen-
são subjetiva do preconceito e da discriminação.

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SUMÁRIO

Notas sobre a expressão da branquitude nas instituições........................13


Maria Aparecida da Silva Bento

Subjetividade, cultura e educação..............................................................35


Marly de Jesus Silveira

Políticas de identidade, branquitude e pertencimento étnico-racial........49


Simone Gibran Nogueira

Inclusão e diferença: estudo dos processos de exclusão e


inclusão de crianças e adolescentes..........................................................65
Denise Conceição das Graças Ziviani

Políticas da subjetividade em poesias negro-brasileiras..........................85


Isabel Leslie Figueiredo de Menezes Lima

Discursos e representações em mulheres afrodescendentes


na luta contra a depressão.........................................................................99
Modesto Leite Rolim Neto e Saulo Araújo Teixeira

Branquitude: a identidade racial branca refletida


em diversos olhares................................................................................. 111
Lia Vainer Schucman

Um olhar sobre mecanismos ideológicos racistas


a partir de constructos da psicanálise dos processos grupais................ 127
Eliane Silvia Costa

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identidade, branquitude e negritude

Identidade étnica e estereótipos em crianças


quilombolas e indígenas........................................................................... 141
Dalila Xavier de França e Marcus Eugênio Oliveira Lima

Memórias que revelam: entre o silêncio branqueador


e a história negada................................................................................... 159
Giane Elisa Sales de Almeida, Marcelo dos Santos Campos e
Marina Neves Nascimento Felizardo

Identidades: contraponto entre a afirmação racial e


a pertença religiosa na cidade de Maceió................................................ 171
Lwdmila Constant Pacheco

Enfrentando o estigma e o preconceito entre o soar dos


tambores e a construção de uma identidade........................................... 187
Aline Ribeiro da Silva, Cristiane Valéria da Silva e
Magno Geraldo de Aquino

Memórias e pertencimento racial: infância e escolaridade.................... 201


Ana Luiza dos Santos Julio e Marlene Neves Strey

O toque de nossas mãos........................................................................... 215


Andréa Moreira Chagas

Discutindo o racismo acadêmico sob a égide da Psicologia Social......... 231


Sheila Ferreira Miranda

A cartografia da macro e da micropolítica


das relações raciais no Brasil: a problemática do corpo negro.............. 245
Wanderley Moreira dos Santos

A literatura afro-brasileira e a reconfiguração da identidade negra....... 261


Tassia do Nascimento

Da África às faculdades de medicina:


um estudo do elemento negro na sociedade brasileira........................... 275
Hildeberto Vieira Martins

Notas sobre psicanálise, perda de identidade e


funcionamento dos grupos....................................................................... 291
Myriam Chinalli

Sobre as organizadoras............................................................................ 303

Sobre os autores....................................................................................... 305


12

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NOTAS SOBRE A
EXPRESSÃO DA
BRANQUITUDE NAS
INSTITUIÇÕES
Maria Aparecida da Silva Bento

[...] as identidades raciais não são apenas negra,


latina, asiática, índia, norte-americana e assim
por diante; são também brancas. Ignorar a et-
nicidade branca é redobrar sua hegemonia, tor-
nando-a natural.
Roediger (2004, p. 46)

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Este breve texto objetiva discutir alguns entraves aos avanços das políti-
cas de combate ao racismo e de promoção da igualdade racial, partindo
da constatação de que, a despeito de todo o esforço feito pelo movimento
negro em busca da mudança na situação de desigualdade e discriminação
racial nas últimas décadas, o cenário ainda é de extrema violência racial e,
mesmo em instituições, privadas ou públicas, onde se observa a definição
e implementação de programas com delimitação de recursos, os resultados
concretos são insatisfatórios. Vários fatores vêm colaborando para essa si-
tuação, mas destacam-se, dentre tantos elementos, particularmente dois: 1)
a ausência, em postos de direção e comando das instituições privadas e pú-
blicas, de profissionais oriundos dos segmentos sociais que conquistaram e
que são destinatários dessas políticas e 2) as mudanças que sofrem aferidas
políticas quando adentram as instituições.
Não podemos deixar de reconhecer os avanços no campo das rela-
ções raciais, em particular na última década. Iniciativas no território das
ações afirmativas proliferam por todo o país. Na maioria das universida-
des públicas do Brasil, programas de cotas e ação afirmativa estão sendo
implantados (GEMAA, 2014). Prefeituras, estados e governo federal vêm
fazendo decretos determinando cotas para o serviço público (Câmara dos
Deputados, 2014). Na mídia televisiva, a presença negra é cada vez mais
frequente, embora nem sempre do jeito que gostaríamos. A conquista da

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Notas sobre a expressão da branquitude nas instituições

LDB alterada pela Lei 10.639/031 (que obriga o ensino da história e da cul-
tura africana e a afro-brasileira) vem, a partir da pressão do movimento
negro, mobilizando fortemente instâncias institucionais de formação de
professores e gestores, bem como o mercado editorial de livros didáticos e
paradidáticos, ainda que os resultados estejam aquém do esperado e do que
foi definido pelo Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curri-
culares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o En-
sino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana2. Sem dúvida, a política
de promoção da igualdade racial vem se fortalecendo como uma políti-
ca de Estado, e os três poderes vêm legitimando esse processo. O Poder
Executivo criou a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(SEPPIR)3, o Congresso Nacional aprovou o Estatuto da Igualdade Racial4
e a lei de cotas nas universidades5, e o Supremo Tribunal Federal julgou as
cotas raciais, por unanimidade, como constitucionais6.
Esse contexto revela como tem sido intensa e árdua a luta do mo-
vimento negro e quanto essa luta tem mobilizado o Brasil e provocado
respostas de importantes instituições do país. No entanto, a concretização
dessas conquistas explicitadas no cotidiano das instituições brasileiras ain-
da é um desafio a ser vencido.
Não há como negar o fato de que as desigualdades raciais continuam
persistentes e impactando fortemente, em várias dimensões, a situação de
vida de negros e negras brasileiros. O genocídio da juventude negra, ampla-
mente documentado por estudos (Waiselfisz, 2013), os episódios de racismo
que sempre existiram no futebol (Silva & Votre, 2006) mas que hoje estão ga-
nhando visibilidade nas vozes de suas vítimas, a condição de saúde, trabalho e

1
Lei de Diretrizes e Bases alterada pela Lei 10.639/2003 de 9 de janeiro de 2003. Veja em: ‹http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm›.
2
Disponível em: ‹http://www.portaldaigualdade.gov.br/.arquivos/leiafrica.pdf.›
3
A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, criada em março de 2003 pela Medida
Provisória n. 111, convertida na Lei 10.678.
4
O Estatuto da Igualdade Racial, Lei 12.288/10, publicado no Diário Oficial de 21 de julho de 2010.
5
A Lei n. 12.711/2012, sancionada em agosto de 2014.
6
No dia 26 de abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) validou, por unanimidade, a adoção
de políticas de reserva de vagas para garantir o acesso de negros e indígenas a instituições
de ensino superior em todo o país. O tribunal decidiu que as políticas de cotas raciais nas
universidades estão de acordo com a Constituição e são necessárias para corrigir o histórico de
discriminação racial no Brasil. A decisão foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário
(RE 597285), com repercussão geral (Santos, 2012).

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identidade, branquitude e negritude

educação de negros divulgada por importantes órgãos de pesquisas reconhe-


cidos nacionalmente7 comprovam essa situação. Nesse sentido, duas, dentre
outras dificuldades encontradas para a institucionalização das políticas de
promoção da igualdade racial e de enfrentamento ao racismo, estão intrinse-
camente conectadas: as relações de poder e as hierarquias raciais que perma-
necem intactas no âmbito institucional e o fato de que as políticas, ao serem
implementadas em instituições, desconfiguram-se, ganhando características
que as impedem de atingir diferencialmente a população negra, gerando uma
situação de persistência e até de agravamento das desigualdades raciais.
Como num círculo vicioso, a sub-representação de negros e mulheres
em postos de comando e decisão nas instituições favorece um contexto em que
as políticas e programas sofrem um esvaziamento e uma desconfiguração. Tal-
vez isso se deva ao fato de que a simples existência desse tipo de políticas e pro-
gramas, por si só, é um questionamento à natureza e ao funcionamento dessas
instituições, bem como ao perfil de suas lideranças, e, assim, acaba provocando
fortes resistências, gerando decisões “técnicas” que modificam essas políticas,
impedindo-as de atingir seus objetivos. Nesse sentido, vale aqui retomar algu-
mas características importantes das instituições, destacadas em 2002 (Bento,
2002), e que, infelizmente, continuam muito atuais, particularmente no que
tange àquelas que são questionadas quando se fala em racismo institucional.

Instituição, reprodução e preservação

[...] os que detêm o poder de nomear os outros,


ou seja, de nos nomear, são os mesmos que nos
julgam, pois fazem parte do binômio saber/po-
der muito bem caracterizado na visão foucaultia-
na [...] os argumentos aparentemente científicos
escondem uma relação de poder e autoridade
difícil de transformar.
Munanga (2014)8

7
IPEA — Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; IBGE — Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística; DIEESE — Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos; LAESER
— Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais.
8
Carta aberta do Prof. Dr. Kabengele Munanga de agradecimento à solidariedade e ao recurso
feito junto à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), através da

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Notas sobre a expressão da branquitude nas instituições

As instituições habitualmente funcionam na perspectiva do seu seg-


mento social dominante — é o que nos aponta Eugéne Enriquez (1997),
que destaca o fato de que a visão de mundo e os interesses do segmento do-
minante incidem fortemente na atuação das instituições. Ele ressalta ainda
que as instituições são essencialmente conservadoras, procurando sempre
reproduzir os mesmos indivíduos e comportamentos. Uma instituição tem
como objetivo definir um modo de regulamentação, manter um estado,
fazê‑lo durar e assegurar a sua transmissão. Essa característica conserva-
dora das instituições restringe o resultado dos esforços de democratiza-
ção de suas estruturas via políticas de promoção da igualdade. Não raro,
a organização rejeita a diversidade de condutas e de pensamentos. Resiste
à diversidade racial, étnica, de gênero, de orientação sexual e outras, em
espaços de poder. E a ausência de diversidade causa deterioração da re-
flexão e da inventividade. Assim, a uniformidade e a homogeneidade nos
lugares de comando das instituições não se afiguram como bons sintomas
para uma sociedade que se diz democrática, mas, com certeza, servem a
muitos interesses.
A semelhança entre o perfil das pessoas que ocupam lugares de pres-
tígio e poder nas instituições, majoritariamente masculino e branco, de-
nuncia mais do que a história de racismo no Brasil e uma espécie de “pacto
narcísico” nos processos de acesso a esses lugares. Denuncia a prevalência
de uma perspectiva, de uma visão de mundo e de interesses de determi-
nado grupo, o que configura o que chamamos de branquitude. A entrada
na instituição de outros atores sociais, que pode significar mudanças de
perspectivas, de funcionamento e de práticas cotidianas, é sentida, por esse
grupo, como ameaçadora. O medo do “outro” pode orientar então as deci-
sões “técnicas e políticas” dessas lideranças.
Instituições que não chegam a resolver seus problemas conhecerão,
nesse contexto, a tentação de achar um bode expiatório, justamente nos
novos atores sociais que reivindicam seus direitos de participação, como o
segmento que o grupo dominante pode sacrificar alegremente no altar de
seus problemas.

Reitoria da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia), diante da omissão do seu nome
entre os 59 estudiosos beneficiados pela bolsa do programa “Professor Visitante Nacional Sênior
(cfr. Edital 28 de 2013). Publicada em mamapress.wordpress.com em 14 fev. 2014.

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identidade, branquitude e negritude

Outro aspecto ressaltado por Enriquez é que as instituições são pro-


fundamente marcadas pela ideologia, embora muitas neguem perempto-
riamente. A branquitude e a masculinidade, hegemônicas nos lugares de
poder, configuram-se justamente nessa dimensão ideológica. Ambas se re-
ferem a uma construção histórica e social e explicitam uma visão de mundo
que se evidencia no cotidiano das instituições e, dessa forma, designam
alguns como irmãos, com os quais há que se trabalhar, e outros como es-
trangeiros, adversários ou inimigos. Justamente essas são as características
que revelam como a ideologia da branquitude, foco deste texto, cumpre
uma função psíquica essencial: ela mobiliza desejos, afetos e incentiva a
libido. Ela se refere a identificações profundas e possibilita a cada um for-
talecer narcísicamente “os iguais” e, ao mesmo tempo, desembaraçar-se de
suas pulsões arcaicas virulentas, de sua violência e brutalidade, ao encon-
trar adversários e inimigos considerados inferiores ou perseguidores, que
devem ser ignorados, excluídos, aniquilados ou convertidos. A lógica de
funcionamento dos órgãos de segurança pública com o conceito de “inimi-
go interno” habitualmente utilizado por corporações (Tavares, 2014) é um
exemplo acabado de como jovens negros podem ser considerados alvos
preferenciais de extermínio de grupos, que funcionam dessa maneira.
Nesse sentido, a identidade racial é profundamente ideológica, por-
que auxilia a identificação de quem são o “eles” e quem são o “nós”. Sobre
o “eles”, ficará depositado o pior do “nós”. E esse pior do “nós” justificará a
rejeição, a preterição, a exclusão e o genocídio.
A branquitude, como construção social e histórica, possibilita aos
indivíduos se situarem no interior de uma formação coletiva, sólida, uma
comunidade de negação, que nega e exclui da realidade o que não a inte-
ressa. Essa dimensão profundamente ideológica da branquitude expressa e
mascara a realidade, e só tem sentido em sociedades divididas por conflitos
sociais. Aí sua função será ocultar o conflito, apregoar o povo unido e mas-
carar a dominação.
Eugéne Enriquez (1990) nos lembra, ainda, que o outro sempre está
presente na vida psíquica de cada um de nós, seja como modelo, objeto,
apoio, seja como adversário.
É uma árdua tarefa reconhecer ao mesmo tempo o outro e o que
somos, apreender nossos lugares recíprocos, situar os nossos papéis, bem

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Notas sobre a expressão da branquitude nas instituições

como a estrutura de nossas relações. É necessário, ainda, encontrar a for-


ma de reconhecer e viver nossas relações de violência e as amorosas. É na
busca dessa meta que poderemos decifrar a natureza da organização e das
estruturas que ela adota, bem como compreender o que não varia e o que é
possível ser transformado.
Assim, as barreiras interpostas aos processos de mudança na distri-
buição de negros e brancos, homens e mulheres, no espaço institucional
de poder são rígidas, profundas e não cedem com facilidade. A dimensão
primária e profunda da violência, da ganância, do desejo de manter e am-
pliar privilégios combina-se com instâncias mais circunstanciais, embora
estas últimas nem sempre sejam verbalizadas, e essa combinação caracteri-
za alianças fortes e resistentes.
Essas alianças podem nos ajudar a entender por que, mesmo em
contextos caracterizados pelo que se convencionou chamar de “progres-
sista”, onde proliferam discursos sobre a igualdade entre as pessoas, contra
a opressão, contra a dominação do “homem pelo homem”, as barreiras são
ainda muito fortes e a resistência aparece de maneira difusa: Por que só
beneficiar os negros? E os outros discriminados? Vamos premiar a incom-
petência? E a questão do mérito? Essas políticas não são assistencialistas? É
necessária a competência para ocupar lugares de destaque e poder dentro
da instituição etc. etc. Como assim cotas no serviço público? E os cargos
de confiança (como se negros nunca fossem “de confiança”)? Essas e outras
“pérolas” são oferecidas a todos nós por “aliados progressistas”, revelando,
no mínimo, desinformação — não raro, má-fé.
Gestores públicos atuando em municípios que desenvolviam po-
líticas de promoção da igualdade (Bento, 2002), quando entrevistados,
ofereceram respostas que podem ser um exemplo desse fenômeno, pois
trataram as políticas de ação afirmativa como assistencialistas, protecio-
nistas, que geram a discriminação às avessas. Evocaram a justiça para os
brancos diante da possibilidade de políticas voltadas especificamente para
os negros. Essa perspectiva dos profissionais que ocupavam lugares de po-
der em instituições instadas a desenvolver ações afirmativas para negros é
extremamente preocupante. Como podem as políticas de ação afirmativas
ser bem-sucedidas nesse contexto?

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identidade, branquitude e negritude

Se, numa sociedade marcada pela diversidade humana, o perfil das


pessoas que ocupam posições de comando nas instituições é homogêneo, ele
precisa ser objeto de nossa atenção, ou poderá influenciar, de maneira envie-
sada, todo o trabalho de promoção da igualdade, bloqueando as possibilida-
des de sucesso. É necessário focalizar as relações de poder e explicitar, nesse
contexto, as diferentes maneiras por meio das quais o poder se manifesta, e
o que ele, silenciosa e zelosamente, defende e perpetua no interior das ins-
tituições, sejam privadas, sejam públicas. Cabe aqui lembrar o prejuízo ad-
vindo da sub-representação da população negra, feminina, indígena, LGBT,
do campo e de outros segmentos, nas instâncias políticas brasileiras, onde
importantes decisões são tomadas no âmbito das políticas de promoção da
igualdade.
Um exemplo típico dos efeitos dessa sub-representação fica nítido na
mutação que vem sofrendo o Plano Nacional de Educação (PNE). Trata-se
de um documento importante que estabelece metas para a área ao longo
de dez anos. Foi elaborado a partir da Conferência Nacional de Educação,
realizada em abril de 2010, na qual diversas organizações da sociedade civil
levantaram propostas para melhorar a qualidade da educação brasileira.
Um intenso processo foi vivido nos municípios e estados brasileiros, an-
tes e depois da Conferência Nacional, por organizações da sociedade ci-
vil, que construíram propostas para assegurar, dentre outros, o combate às
desigualdades e discriminações de gênero, étnicas, raciais e no campo da
orientação sexual. Ao longo da trajetória institucional do PNE, o texto foi
sendo esvaziado desse conteúdo e o golpe final ocorreu em abril de 2014
(Fernandes, 2014), quando a Comissão Especial que analisa o Plano na Câ-
mara retirou a diretriz que propõe a superação das desigualdades educa-
cionais, “com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero
e de orientação sexual”, substituindo-a por “promoção da cidadania e na
erradicação de todas as formas de discriminação”, em razão da interferên-
cia de parlamentares considerados conservadores.
Ressalte-se aqui que a presença negra na Câmara hoje é de menos
de 9% de parlamentares e a de mulheres gira em torno desse percentu-
al. E nesse espaço parlamentar importantes decisões no campo das po-
líticas públicas são tomadas. O plano foi sancionado em 26 de junho de
2014, pela presidenta Dilma Rousseff, mas é importante atentar para as

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Notas sobre a expressão da branquitude nas instituições

transformações que vêm ocorrendo nas propostas construídas pelas orga-


nizações da sociedade civil quando adentram as instituições. Essa resistên-
cia institucional é tipicamente uma ação de manutenção de perspectivas
hegemônicas, e de seu corolário, o controle, pelos segmentos dominantes,
dos recursos destinados às políticas públicas e privadas. Nesse processo, as
políticas que deveriam ter o foco racial, de gênero ou orientação sexual são
combatidas e o quadro de desigualdades quase não se altera.
O debate atual sobre a reforma política, no qual os movimentos so-
ciais têm um papel decisivo, pode alterar esse quadro de sub-representação
de mulheres, negros, LGBT9, propiciando a criação de ferramentas legais
que assegurem a ampliação dessa representação política nas instâncias mu-
nicipais, estaduais e federal e criem condições para a alteração do cenário
que divisamos hoje.
Enquanto essa importante mudança no cenário político não ocorre,
outras instâncias e seus sistemas podem ser alvo de análise e transforma-
ções no que tange às relações de poder e às hierarquias raciais.
Cabe lembrar aqui (Bento & Carone, 2002) que sistemas sociais
como o do Brasil, que têm como base a diferença e a desigualdade, in-
fluenciam a visão de mundo dos que estão em situação de privilégio tan-
to quanto daqueles que são por eles oprimidos. Dessa forma, brancos
são “racializados” simplesmente por viverem numa sociedade racializada.
No cotidiano da vida, brancos vão consolidando uma visão de mundo so-
bre o que significa ser negro ou branco em nossa sociedade. Ao observar
outros brancos na televisão, nos livros didáticos, revistas, na direção das
instituições em geral, ao vivenciar situações diárias nas quais os negros
estão sempre em desvantagem, ao viver episódios de preferenciamen-
to, o privilégio branco vai sendo naturalizado. E uma visão sobre “o que
são brancos e negros” no Brasil vai se consolidando. Frankenberg (1995)
aponta que branquitude é um ponto de vista, um lugar a partir do qual
as pessoas brancas olham a si mesmas, aos outros e à sociedade. E ob-
serva que a branquitude diz respeito a um conjunto de práticas culturais
que são normalmente não marcadas e não nomeadas. Assim, está sempre
oculta, mas atuando fortemente.

9
A Sigla LGBT se refere a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros. O uso do
termo foi aprovado durante conferência realizada em Brasília, em 2008 (Senado Federal, 2014).

21

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identidade, branquitude e negritude

“Nada sobre nós sem nós.”


Boaventura de Sousa Santos (Nunes, 2005)

Nos processos de discussão e negociação dos programas institucio-


nais que visam combater as desigualdades, precisamos abordar aberta e
transparentemente as relações de poder que incidirão sobre a viabilização
desses programas. É preciso reconhecer que a condição racial daqueles que
comandam o processo pode interferir na maneira como os programas são
concebidos, como é feita a sua gestão no cotidiano de trabalho, como são
definidas as prioridades, como/onde são alocados recursos, ou seja, nos
processos de escolha de quais instituições serão parceiras e/ou de quais
profissionais vão operacionalizar esses programas. Podemos estar falando
não de preconceito contra negros, mas pura e simplesmente de defesa de
interesses.
Branquitude conforma uma maneira de conceber e atuar no mun-
do. Muitas vezes pode significar manter e ampliar estruturas de poder e de
privilégio. Em reunião realizada em São Paulo, em 2013, com diferentes
lideranças do movimento negro10, um tema recorrente foi a distribuição
de recursos para os programas de enfrentamento ao racismo e promoção
da igualdade racial, para profissionais e organizações negras e brancas. Foi
salientado que, muitas vezes, os recursos públicos mais polpudos para or-
ganizações da sociedade civil viabilizarem esses programas são acessados
por organizações não governamentais cuja liderança institucional não con-
ta com a presença negra. Seja porque essas organizações estão mais apro-
priadas dos processos institucionais de acesso, utilização dos recursos e
prestação de contas (o manejo dos recursos públicos e privados na história
deste país não faz parte do legado do segmento negro), seja porque as rela-
ções formais e informais se dão frequentemente nos espaços de poder, que
é masculino e branco. Não se focalizou naquele debate a competência das
referidas organizações. Não era essa a questão, mas, sim, a possibilidade de
reprodução das habituais hierarquias raciais, justamente no território onde
estão em jogo políticas de enfrentamento ao racismo e de promoção da

10
“Encontro de lideranças negras”, realizado pelo CEERT — Centro de Estudos das Relações de
Trabalho e Desigualdades, com o apoio da Fundação FORD e Baobá — Fundo para Equidade
Racial, em 4 dez. 2013, no Braston Hotel, São Paulo/SP.

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Notas sobre a expressão da branquitude nas instituições

igualdade racial conquistadas pelo movimento negro. Obviamente, a pre-


sença branca num país onde quase metade da população é branca (Brasil,
2012) é não só um dado de realidade, mas elemento fundamental e in-
dispensável nas relações sociais e institucionais cotidianas, bem como no
processo de construção de uma sociedade mais democrática. A situação
de extrema desigualdade racial que se constata no Brasil se deu num cená-
rio onde brancos e negros estavam interagindo, e a solução dessa situação
exige a presença de ambos, embora em lugares diferenciados. As alianças
do movimento negro com segmentos brancos do movimento feminista,
sindical, de juventude e outros são importantes e vêm se dando ao longo
do tempo, de maneira a contribuir com o enfrentamento do racismo e a
democratização da sociedade. No entanto, assim como se espera que um
grupo de homens não se sinta à vontade tomando decisões sobre políticas
para as mulheres sem a presença das mulheres, paritária e com poder de
decisão, o mesmo se espera no caso de um grupo composto apenas por
brancos, com relação aos negros. Que se sintam constrangidos tomando
decisões sobre programas e recursos conquistados pelo movimento negro,
nas ruas. Atuarem juntos, negros e brancos, homens e mulheres, nas po-
líticas e programas institucionais de enfrentamento às desigualdades é de
fundamental importância, no entanto, repetir nesse território as viciadas
hierarquias raciais é inaceitável.
A discussão transparente realizada por negros, brancos, homens e
mulheres da perspectiva da branquitude nas relações de poder (que, aliás,
tem grande analogia com a perspectiva da masculinidade), pode ajudar a
avançar as políticas de ação afirmativa que têm sido criadas na última dé-
cada. Os estudos têm revelado que vem se modificando muito lentamente
a condição de negros em algumas dimensões (educação, trabalho, saúde),
mas o gap, o diferencial entre negros e brancos, tem permanecido intacto,
em grande parte das vezes, quando não piora, agravando a situação de des-
vantagem da população negra.
No campo educacional, por exemplo, os estudos realizados na última
década (Paixão; Rosseto; Montovanele & Carvano, 2010; Jaccoud, 2009) re-
velam que as melhorias nos índices são modestas e que os negros continuam
em desvantagem em praticamente todos os aspectos observados.

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identidade, branquitude e negritude

Hoje, o acesso ao ensino fundamental encontra-se quase que total-


mente universalizado tanto para negros quanto para brancos. No entanto,
dentre o pequeno contingente de crianças ainda fora da escola, a maioria
é negra (Unicef, 2012). De outro lado, a universalização, muitas vezes, tem
significado que as crianças negras estão, em sua maioria, em escolas, porém
naquelas sucateadas, com recursos precários, e a ampliação do acesso não
encontra continuidade nos indicadores de permanência, uma vez que as
crianças negras acabam apresentando maiores taxas de evasão escolar que
as brancas (Paixão et al., 2010)11, 12. De outro lado, a despeito do aumento
no percentual de jovens frequentando o ensino médio na idade adequada,
percebe-se que o crescimento foi mais expressivo para a população branca,
fazendo com que a diferença entre os dois grupos aumentasse.
No ensino superior, a situação é ainda mais grave13. Não apenas ob-
serva-se grande desigualdade entre a proporção de jovens brancos e negros
matriculados no ensino superior, como essa desigualdade tem crescido, ape-
sar do aumento observado no acesso de ambos os grupos. A probabilidade
de um branco chegar ao ensino superior (25,6%) é quase três vezes maior que
a probabilidade equivalente para um negro (8,8%) e, quando observamos o
aumento no acesso ao ensino superior, a taxa de crescimento na década é
maior para brancos, mesmo com a implantação de cotas nas universidades14.
Na saúde observa-se que é proporcionalmente maior a mortalidade
de mulheres negras em relação às brancas15, repetindo-se em todos os esta-

11
Em 2010, a região Norte foi a que apresentou o mais elevado percentual de pessoas que não
frequentavam escola na faixa etária de 6 a 14 anos, tanto em área urbana como na rural. O índice
de abandono no Estado do Pará é quase o dobro do índice do Brasil (Bento; Coelho & Coelho,
2013).
12
Do total de crianças excluídas da escola na faixa de 4 a 6 anos, a maioria é negra, 19,9%. A média
de anos de estudo da população negra é de 6,7 anos, para 8,4 da branca. Entre a população negra
com idade de 15 anos ou mais, há mais que o dobro de analfabetos, 13,4%, enquanto entre a
população branca essa taxa é de 5,9%. Enquanto 70% das crianças brancas concluem o ensino
fundamental, apenas 30% das negras chegam ao final dessa etapa (IPEA, 2010).
13
De fato, apesar dos esforços e avanços para ampliação do sistema de ensino superior, o Brasil
ainda possui um baixo índice de alunos matriculados nesse ciclo de ensino: apenas 5,7 milhões
de alunos em 2006, em um total de 24,2 milhões de brasileiros na faixa etária indicada como a
ideal para cursar esse nível de ensino.
14
Dados do PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), que fazem parte do Censo da
Educação Superior 2011 (Inep, 2013).
15
O índice de mortalidade materna em mulheres negras é 7,4 vezes maior do que em mulheres
brancas, de acordo com pesquisa de 2008 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Brasil,
2012).

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Notas sobre a expressão da branquitude nas instituições

dos da federação, reafirmando a existência de racismo institucional (Kalck-


mann; Batista, Castro, Lago & Souza, 2010).

“A gente não quer só comida


A gente quer a vida
Como a vida quer.”
Titãs (1987)

Outro elemento que merece atenção nesse cenário é a eterna discus-


são raça versus classe, que, no âmago da branquitude, orienta a concepção
de que política para negros deve ser exclusivamente política para pobres.
Obviamente que as políticas focalizadas na pobreza são fundamentais para
promover igualdade de gênero racial, já que quase 70% dos pobres brasilei-
ros são negros, atingindo em particular as mulheres negras (SEPPIR, 2012).
Não há como não reconhecer o importante papel que vêm desempenhando
os programas sociais da última década16. Mas é preciso atentar-se para os
espaços de poder onde são tomadas decisões sobre esses programas, pois
muitas vezes esses espaços continuam não contando com a presença negra,
mesmo em governos considerados de esquerda ou progressistas, que em
tese estariam atentos e dialogando com o movimento negro. Não é demais
lembrar que os poucos ministros negros que atuavam entre 2003 e 2011
foram substituídos por ministros brancos, e o avanço da presença feminina
nos ministérios se deu, com exceção de uma ministra na pasta de igualdade
racial, exclusivamente via mulheres brancas.
Vale salientar que a experiência das cotas nas universidades públicas
tem representado um significativo avanço nas políticas de combate à desi-
gualdade racial e nas perspectivas abertas à população negra no Brasil. Vem,
igualmente, permitindo aprofundar o debate sobre a educação pública no
país, seu papel e a qualidade de seu ensino. E, por fim, tem feito avançar a
nossa compreensão sobre democracia e sobre a variedade de instrumentos
que devem ser mobilizados na construção de maior justiça social.
No entanto, se o debate sobre ações afirmativas nas universidades
se intensificou a partir da luta do movimento negro, não se pode deixar de

16
Cerca de 3,5 milhões de brasileiros saíram da pobreza em 2012. Atualmente, são cerca de 15,7
milhões de pessoas vivendo na pobreza no Brasil, dos quais 6,53 milhões continuam abaixo da
linha de pobreza (Brasil, 2012).

25

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identidade, branquitude e negritude

registrar que a maioria (mais de 80%) dos programas de ações afirmativas e


cotas nas universidades se transmutou de “ações afirmativas e/ou cotas para
negros” para “cotas sociais” (Feres Júnior, 2012), o que favorece a todos os
excluídos, inclusive brancos pobres. Como eles, os brancos já estavam em
vantagem e com esse plus avançam mais ainda, e as diferenças entre negros
e brancos se alargam (Jaccoud, 2009).
O mais robusto programa governamental nessa área nasceu “Pró-ne-
gro” e virou “Prouni”, voltando-se para universidades privadas e combinando
a perspectiva “social” com a “racial”. Ainda assim, seus resultados são bastan-
te alvissareiros, pois quase dois milhões de jovens (Prouni, 2014) vêm sendo
beneficiados e quase metade é negra. Os outros beneficiados são não negros.
Obviamente que, quando o benefício das lutas negras se estende para
outros segmentos em situação de desvantagem, toda a sociedade brasileira
ganha. É uma importante conquista para todos. É uma generosa contribuição
do movimento negro à democratização da sociedade brasileira. Mas obser-
va-se uma resistência à implantação de políticas específicas voltadas para o
segmento negro, que poderiam incidir no diferencial entre negros e brancos.
Muitos programas poderiam favorecer a mudança dos diferenciais
entre negros e brancos, mas, como ainda possuem apenas a perspectiva
de classe, acabam por manter ou aumentar os diferenciais entre negros e
brancos (Jaccoud, 2009).
No interior das instituições, as regras estão planejadas para a conti-
nuidade, para a permanência das estruturas organizacionais que geraram a
desigualdade. Assim, cumpre averiguar o comportamento das instituições
diante da pressão por equidade e justiça racial. E, por essa razão, o racismo
institucional tem sido foco de intensos debates. Conhecer o racismo insti-
tucional pode nos ajudar no diagnóstico da situação do negro na sociedade
brasileira e contribuir para a definição de caminhos que podem ser trilha-
dos para mudar o quadro de desigualdades raciais.

Racismo institucional

O racismo institucional pode ser entendido como ações em n


­ ível organi-
zacional ou da comunidade que independem da intenção de discriminar,

26

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Notas sobre a expressão da branquitude nas instituições

mas que têm impacto diferencial e negativo em membros de um grupo


(Bento, 2002). Por exemplo, práticas informais que dificultam o acesso de
empregados(as) a experiências significativas para ocupação de cargos de
comando, bem como poucas oportunidades de participar de treinamentos
de qualidade, gerando menor competitividade de ascensão para cargos de
direção (Bento, 1992). De outro lado, os processos institucionais de escolha
de profissionais para ocupação de cargos de prestígio e poder raramente
contam com a presença negra. Assim, na questão da discriminação dentro
das instituições, o que interessa são os efeitos das políticas, e não as “boas
ou más intenções”.
A discriminação nas instituições, às vezes, se refere a práticas apa-
rentemente neutras no presente, mas que refletem ou perpetuam o efeito de
discriminação praticada no passado. Crianças negras compõem, em algu-
mas instituições, o segmento majoritário de classes especiais que abrigam
crianças diagnosticadas como “problemas”, gerando, por parte dos profis-
sionais que cuidam delas, resistência e baixa expectativa quanto a seu futu-
ro. No entanto, como nos mostram Rosemberg e Pinto (1997), o histórico
de vida desse segmento pode ajudar a entender tal situação: as crianças
pequenas negras são o segmento social brasileiro com o maior contingen-
te de pobres e indigentes, vivem em domicílios com as piores condições
de saneamento básico, frequentam estabelecimentos educacionais com as
piores condições de infraestrutura (água, luz, esgoto), estudam em escolas
com brinquedos, livros e espaços externos e internos insuficientes e inade-
quados, têm as professoras com a mais baixa qualificação e pior remunera-
ção do sistema educacional brasileiro e têm o custo per capita mais baixo.
Ou seja, a discriminação institucional costuma ser evidenciada menos por
eventos isolados e mais por índices e taxas comparativas da situação dos
negros a outros segmentos populacionais. O racismo institucional tem for-
te componente estrutural e histórico. Muitas vezes, um adolescente diag-
nosticado como difícil, como tendo problemas emocionais, pois não aceita
seu corpo ou sua identidade, é alguém com uma história de exclusão de
equipamentos educacionais de boa qualidade, que lhe acolhessem digna-
mente e que tivessem possibilitado o contato com o patrimônio cultural de
seus antepassados através de livros, brinquedos, ambiente físico e políticas
educacionais em geral.

27

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identidade, branquitude e negritude

A discriminação no interior das instituições pode ter caráter roti-


neiro e contínuo. O conceito de racismo institucional é importante, porque
dispensa discussões sobre, por exemplo, se determinada instituição ou seus
profissionais explicitam, na atualidade, preconceito contra negros e mu-
lheres. O passado e o presente formam um amálgama e explicitam que é
preciso refletir sobre a conduta das instituições.

Combatendo a discriminação institucional

Uma política de combate à discriminação institucional necessita estar


apoiada em valores éticos fundados na busca da igualdade e da justiça, for-
temente conectada à responsabilidade social das instituições.
Trata-se de um comportamento ativo das instituições no sentido
de garantir, fomentar, propiciar a igualdade, em contraposição à atitude
negativa, passiva, limitada à mera intenção de não discriminar. E é pre-
ciso começar nos postos-chave públicos e privados. A ausência de negros
nesses lugares não pode mais ser naturalizada. Se no ideário do que se
convencionou chamar de “esquerda” encontra-se a afirmação da igualdade
social, bem como a preocupação com o cidadão em desvantagem em rela-
ção aos outros e a perspectiva de que as desigualdades devem ser abolidas,
não se justifica a hegemonia da presença branca em lugares de poder e
decisão, em governos considerados progressistas ou de esquerda. Ou seja,
o racismo possui várias caras e inúmeras dimensões, crescendo em terri-
tórios não esperados, afetando a adoção e o desempenho das políticas de
promoção da igualdade racial.
Se a esquerda é o espaço político onde nasceu e atua parte significa-
tiva do movimento negro, as alianças entre o movimento negro e setores de
“esquerda” necessitam ser revisitadas e a “exploração do homem pelo ho-
mem” precisa ser discutida nesse território. Novos pactos são necessários, a
partir de discussões marcadas pela dignidade e altivez que sempre caracte-
rizaram a atuação do movimento negro. A hegemonia racial e de gênero em
lugares de comando deve ser avaliada. Se em processos de escolha/seleção,
pretensamente neutros, a escolha recai sempre sobre pessoas de determi-
nado perfil racial, econômico e social, há um problema com os critérios,

28

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Notas sobre a expressão da branquitude nas instituições

já que o país exibe uma grande e rica diversidade humana. Nesse senti-
do, ministérios, secretarias de estado, estatais, empresas privadas, agências
de fomento de pesquisas, procuradorias, tribunais de justiça enfim, todas
as instâncias sociais necessitam de pluralidade em seu quadro de pessoal,
particularmente nos lugares de decisão e comando, bem como precisam
assegurar a perspectiva igualitária em seu cotidiano de ação, tornando vi-
síveis e combatendo os processos viciados que asseguram a perpetuação de
privilégios e as relações de poder monolíticas. A presença negra e feminina,
paritária nos grupos que dirigem os programas, é de fundamental impor-
tância. Não se fala aqui simplesmente da “cara preta”, mas sim da presença
de profissionais negras com poder de decisão, comprometidas com a justiça
racial e capazes de dialogar com a rica diversidade que compõe o movi-
mento negro brasileiro, principal protagonista na luta pela democratização
da sociedade brasileira e nos esforços, nem sempre bem-sucedidos, de hu-
manização de sua elite. E nesse cenário outras discussões deverão ocorrer,
no âmbito do movimento negro. O clientelismo17 e o corporativismo que
vêm marcando as relações partidárias no Brasil com certeza não são o me-
lhor legado que os negros devam incorporar em sua atuação política e ins-
titucional. E, com certeza, como citado anteriormente, um protagonismo
mais efetivo no âmbito das instituições nos provoca a vencer entraves de
grande monta no território da representação política.
Provavelmente uma de nossas tarefas mais prementes diz respeito a
nosso envolvimento na luta pela reforma política. A alteração do quadro no
que tange às relações de poder exige a criação de ferramentas legais e regu-
latórias para lograrmos a ampliação da representação política de negros e
negras nas instâncias municipais, estaduais e federal.
Enfim, a violência extrema que vivemos no caso Claudia Ferreira
Silva, auxiliar de serviços gerais, arrastada por um carro da PM após ser
baleada em um morro do subúrbio do Rio de Janeiro em março de 2014,
nos obrigou a refletir sobre o grande salto que se faz urgente, aqui e agora.

17
Qualquer noção de clientelismo implica troca entre atores de poder desigual. No caso do
clientelismo político, tanto no de representação como no de controle, ou burocrático, para
usar distinção feita por Clapham (1982), o Estado é a parte mais poderosa. É ele quem distribui
benefícios públicos em troca de votos ou de qualquer outro tipo de apoio de que necessite
(Carvalho, 2014).

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identidade, branquitude e negritude

Nos obriga a ultrapassar os limites, como sempre o fizemos. Nos provoca


a criar asas....

“Quando criei asas, voei...”


César (1995)

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SUBJETIVIDADE,
CULTURA E
EDUCAÇÃO
Marly de Jesus Silveira

A incorporação do tema da “pluralidade cultural” aos currículos escola-


res e na preparação dos docentes para essa tarefa, uma vez tratada com
profundidade, em sua articulação com processos sociais abrangentes, pode
alavancar interessantes discussões sobre os conteúdos e processos de ensi-
no e de aprendizagem a serem implementados nas relações escolares. Com
vistas a contribuir para esse aprofundamento, propõe-se focalizá-lo neste
estudo, que trata de conceitos estruturantes de aspectos da produção das
diferenças e, consequentemente, das desigualdades no mundo atual, quais
sejam, “cultura e subjetividade”, tentando compreender suas relações com a
educação, na perspectiva de uma educação livre do racismo.

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Introdução

Nos termos de West, “[...] o racismo produziu identidades destroçadas


onipresentes na América negra” (1994, p. 29), produto de um pensamento
liberal que evita falar honestamente sobre cultura, o universo dos significa-
dos e valores, e sobre a maneira restrita e relativista de discutir as relações
raciais e a educação, deixando de lado as realidades existenciais e psicoló-
gicas dos negros.
Desse modo, “[...] a noção de uma subjetividade negra” estaria com-
preendida através da articulação cultura e subjetividade (ou racionalidade)
costurada por dentro da cultura, entendendo que esta se organiza na racio-
nalidade sob os sistemas sociais contemporâneos, em que se forma a subje-
tividade do branco e a do negro, assim como na articulação entre raça, classe
e cultura, produzida nos estudos sobre relações raciais no Brasil.
A condição da subjetividade humana é sua universalidade. O que vai
tirá-la desse lugar e “particularizá-la”, tornar particular o que é universal,
é a ruptura com a racionalidade. Nesse sentido, a racionalidade, enquanto
particular, torna possível uma “subjetividade negra” que, enquanto univer-
sal, tornou-se uma subjetividade destroçada, fragmentada, com as cicatri-
zes da discriminação que a inferioriza e exclui. De outro lado, o branco
que não é capaz de ver o outro como igual também é destroçado, podendo

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Subjetividade, cultura e educação

sofrer de uma inflação valorativa de si mesmo (Bento, 1992). Em conse-


quência, a lógica do seu pensamento admite a exclusão. Assim funciona
a subjetividade de qualquer preconceituoso, que restringe e exclui o outro
da categoria “humano”. O humano é universal, e a particularidade é cons-
truída nas condições históricas e se explicita na discussão da cultura, isto
é, da racionalidade no sentido universal. Por outro lado, a singularidade é
do nível do sujeito individual, que é ao mesmo tempo universal, porque é a
forma como este sujeito individual equaciona a universalidade e a particu-
laridade histórica da qual é parte atuante.
Pensando a educação nessa perspectiva, não há como discutir plu-
ralidade cultural no Brasil sem levar em conta as contradições de uma dis-
cussão da cultura nos marcos do pensamento liberal em sua articulação
recente. Este, ao mesmo tempo que sedimenta a produção da diversidade,
transforma tudo o que é “diverso” no “mesmo”, tendendo à homogeneiza-
ção. Para compreender como a subjetividade/racionalidade adere a isso,
recorre-se à ideia de Gramsci sobre a organização da cultura, em que este
pensador desenvolve uma concepção que abarca a produção da racionali-
dade no processo social. De acordo com essa concepção, o sujeito desen-
volve nas condições históricas um “nexo psicofísico” (Ruiz, 1998). Esta
ideia pode ajudar a compreender tanto a formação do sujeito individual,
particular, como a formação das massas necessárias à produção da cultura
instrumentalizada para a manutenção da moderna sociedade de consumo.

Uma teoria da formação humana

No pensamento de Gramsci encontra-se forte vinculação entre conheci-


mento histórico, práxis política, luta cultural e formação humana, o que
contribui para a compreensão de uma dimensão menos abrangente e in-
terna aos termos que ele analisa, e que dizem respeito mais diretamente à
noção de luta cultural por ele construída (Gramsci citado por Vieira, 1999).
Quer dizer que a reflexão de Gramsci sobre a formação do homem em so-
ciedade é inseparável de sua teoria política. Sobre essa indissociação en-
tre um projeto político e a formação dos homens que o realizam, o autor
afirma que a questão da formação do indivíduo ocupa função estratégica

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identidade, branquitude e negritude

na implementação do projeto de uma classe que vise se fazer hegemôni-


ca, como tarefa para a militância, como responsabilidades dos mais velhos
perante os mais jovens, na perspectiva de criar formas mais avançadas de
civilidade (Vieira, 1999, p. 51).
Na direção apontada por essa indissociação, pode-se pensar uma
teoria de formação humana que evite reduzir a compreensão do processo
formativo ao desenvolvimento intelectual do homem de forma unilateral,
como também a concepção determinista da formação da personalidade, que
reduz o homem a produto do meio. Na concepção gramsciana, a formação
humana é parte de um complexo e contraditório processo de luta cultural.
As posições de Gramsci são marcadas pela crítica das interpretações
naturalistas e positivistas do homem e da história, tais como as da antropo-
logia lombrosiana, do evolucionismo histórico spenceriano ou de algumas
correntes materialistas; definindo o homem como espírito, isto é, criação
histórica e cultural (Gramsci citado por Vieira, 1999, p. 57). Gramsci afir-
ma que o homem é sujeito da história, e, no plano da intervenção política,
prioriza a difusão da cultura humanista e filosófica na classe operária, atra-
vés das organizações, visando à sua autonomia intelectual. Para ele, a or-
ganização e a difusão da cultura adquirem centralidade no interior da luta
socialista, da qual se ocupa, cujo processo de afirmação dependeria da cria-
ção de bases para uma transformação social que, por sua vez, engendrasse
uma cultura autônoma, própria da ascensão da classe operária, determi-
nando novos modos de ser que resultassem em outra forma de consciência.
Em uma das revisões que faz no processo de elaboração de seu con-
ceito de cultura, para ele central na luta política, Gramsci o amplia para
além da ideia de universal a ser distribuído igualmente a todas as classes,
e passa a afirmar que todos são cultos. Nessa perspectiva histórica inclu-
siva, que deixava de considerar os setores populares como receptores de
uma cultura produzida por um outro grupo, dependentes de políticas de
distribuição, todos os homens podem ser críticos e produtores de conhe-
cimento. A partir dessa ideia, que considera a capacidade de todos para
pensar, embora nem todos tenham as mesmas condições de elaboração e
exposição de suas ideias, desenvolve-se uma valorização do conhecimento
e da criatividade dos homens e mulheres que não receberam a chamada
formação cultural tradicional.

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Subjetividade, cultura e educação

O núcleo desta ampliação conceitual diz que todos os homens são


filósofos, todos são intelectuais, a exemplo de seus alunos em uma esco-
la de presos, que para ele eram semianalfabetos porém intelectualmente
desenvolvidos. Não se deve entender, entretanto, a defesa de uma cultura
popular abstrata em detrimento da cultura sistematizada. Essa noção sina-
lizaria uma condição de potencial igualdade diante do conhecimento, não
se esgotando na ideia de uma natureza ou de uma essência humana racio-
nal, proposta em filosofias de Platão a Descartes. O entendimento correto
seria que todos são cultos porque participam da vida, confrontam-se com
a natureza e a sociedade, defrontam-se com problemas reais e produzem
soluções práticas. Os conceitos de cultura e de homem culto precisariam
ser revistos, particularmente a partir das considerações das dimensões uti-
litárias e produtivas da vida, próprias do mundo do trabalho, que historica-
mente foram excluídas da concepção de cultura (Vieira, 1999, p. 59).
Essas postulações desenvolvem-se em uma época de movimentação
cultural e social em face de tendências surgidas com as novas condições de
desenvolvimento. A ideia de uma noção cultural que não considera a expe-
riência passada como tradição, mas como estímulo à criação, se apresenta
em Gramsci como possibilidade histórica de uma classe operária capacitar-
-se para as funções de direção da sociedade industrial, com autonomia e
originalidade. Para essas finalidades, a concepção socialista supõe uma ação
político-cultural que inclui todas as dimensões de um projeto de sociedade
capaz de reformá-la, de transformar o modo de vida e “[...] transformar a
psicologia da classe operária” (Gramsci citado por Vieira, 1999, p. 60).

Trabalho e cultura

A elaboração e os refinamentos desse conceito de cultura são feitos refletin-


do sobre a inclusão da questão do trabalho e ao mesmo tempo da disjun-
ção, no interior da teoria política, dos processos técnicos e das funções
produtivas na industrialização em face da apropriação privada da riqueza
sob o capitalismo. O termo cultura passa a significar um modo de viver que
se produz e reproduz por meio de um projeto de formação. A questão que
se abre nessa análise da cultura teria íntima relação com a estrutura social:

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identidade, branquitude e negritude

a cultura, materializada em uma rede de associações, pode e deve ser com-


preendida estruturalmente, tendo-se presente que homens, grupos e classes
sociais se movimentam nessas estruturas, lutando pelos seus projetos, pelas
suas ambições, determinando uma dinâmica social permanente e imprevi-
sível nos resultados (Vieira, 1999, p. 62).
Explicita-se assim, o que nesta leitura considerei de interesse central,
ou seja, a questão da cultura como luta social ou, na expressão original de
Gramsci, luta cultural. A relação cultural não se reduziria a um embate en-
tre dominantes e dominados, ou entre cultura erudita e cultura popular; a
relação entre os indivíduos e a sociedade inclui liberdade, constrangimen-
to, projetos, práticas e determinação em cujo âmbito se desenvolveria a luta
social. Processando-se na interação de muitos ambientes, como família, re-
gião, língua, classe social, religião, escola, trabalho, a cultura em diferentes
épocas resultaria do embate e da intervenção das concepções, experiências
e práticas que perpassam essas ambiências culturais; as posições diferen-
ciadas na estrutura econômica vão determinar diferentes relacionamentos.
Gramsci (1978) postula que os trabalhadores italianos, a partir de ex-
periência estrutural e superestrutural dos trabalhadores do “americanismo”,
poderiam construir as formas de condução da experiência socialista. Sintetiza
sob a denominação de “americanismo e fordismo”, um conjunto de problemas
que são gerados nas condições contraditórias da sociedade moderna. Referin-
do-se ao momento de transição nessa forma social, o autor levanta questões
relacionadas a uma preparação do trabalhador, do homem e da mulher pen-
sados em sua dimensão psicológica. Diz respeito à relação entre aspectos de
organização e processos de trabalho e determinadas formas de conduta.
Pode-se entender de sua discussão que a organização socioeconômi-
ca constrói historicamente um conjunto de exigências que, impondo trans-
formações na atividade humana, vai produzi-las tanto nos sujeitos que dela
fazem parte, como em todas as estruturas sociais: A vida na indústria exige
uma experiência geral, um processo de adaptação psicofísica para determi-
nadas condições de trabalho, de nutrição, de habitação, de costumes etc.,
que não são inatos, “naturais”, mas adquiridos (Gramsci, 1978, p. 324).
Essa adaptação faz parte da racionalização da produção e do traba-
lho, decorrentes de processo similar que historicamente criou suas condi-
ções básicas. Explicitando, Gramsci diz que nos Estados Unidos da América

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Subjetividade, cultura e educação

a “[...] racionalização determinou a necessidade de elaborar um novo tipo


humano” (1978, p. 316), integrado à organização produtiva. Consiste na
criação e na modificação de comportamentos como gestos, expressões,
percepções e automatismos, justificados internamente por uma nova ma-
neira de pensar. As transformações nas instâncias da vida social exercem
pressões, combinando habitualmente a “força” com a “persuasão”, no redi-
mensionamento dos modos de vida individual e coletivo sob a lógica que
pensa e organiza os meios de produção.
A lógica dessa racionalização se inscreve no “nexo psicofísico”, que
tem como substrato a ideologia. O indivíduo desenvolve uma atividade
mental relacionada intrinsecamente à sua ação concreta, o que equivale a
dizer que seus gestos e expressões são mediados por representações com
as quais ele significa suas realizações. O “nexo psicofísico”, pela força da
função de consenso das ideologias, realiza o convencimento individual e
grupal sobre a liberdade e necessidade de seus atos.
Considerando que vários autores já defenderam a importância da
formação cultural e, com destaque, a função da educação escolar entre os
determinantes objetivos de formação da subjetividade, buscar entender
essa determinação em sua relação com a ideia de formação humana apre-
senta-se como um procedimento fecundo, porém complexo, pela imbri-
cação entre subjetividade, cultura e formação do indivíduo. Partindo do
entendimento de que para além do fundamento nas circunstâncias sociais
atuais a subjetividade é fruto também de um projeto histórico implícito
no nosso desenvolvimento civilizatório, Crochik (1998) propõe uma dupla
perspectiva para problematizar seu estudo: a noção histórica de indivíduo
e a possibilidade atual de realização desse projeto.
Utilizando reflexões de pensadores como Adorno, Horkheimer e
Marcuse, Crochik (1998, p. 69) discute os desafios atuais do estudo da sub-
jetividade na psicologia, elementos aqui considerados relevantes para cons-
truir um percurso na aproximação que vem sendo feita entre as relações de
diferença e igualdade no terreno da formação humana na educação. O estu-
do mostra a relação entre a ideia de formação e a constituição da subjetivi-
dade. Interessa destacar ideias que contribuam para elucidar a constituição
de uma subjetividade negra, formada historicamente por elementos iden-
tificadores dos sujeitos sociais, que na realidade social brasileira guardam

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elementos significativos da experiência de pertencimento à história dos ho-


mens e mulheres de origem negra no Brasil.
Kant (citado por Crochik, 1998, p. 70), em sua análise do projeto his-
tórico da cultura ocidental, considera a razão um dos seus produtos prin-
cipais, e assinala que sua realização só é possível pelo livre uso individual
da cultura, ou seja, pela autonomia individual. Se o projeto é determinado
pelas condições concretas de vida e ao mesmo tempo aponta para a supe-
ração desta determinação, a cultura prevê a possibilidade de um indivíduo
que se assenhore dela, isto é, um indivíduo autônomo como decorrência
necessária do projeto cultural. A cultura como o meio para a individuação
configura-se em um projeto coletivo de formação destinado à diferencia-
ção do indivíduo em relação ao seu meio. Suas funções seriam: defender os
homens das ameaças da natureza, inclusive da sua própria e do outro, e es-
tabelecer regras para a relação entre os homens, ou seja, desenvolver a auto-
nomia humana para o controle da natureza e das regras sociais, assim como
para o autocontrole. A formação cultural, em decorrência, tem a função de
socializar para a diferenciação ou individuação, o que, segundo Adorno:
[...] se dá pela incorporação da cultura, pois a formação não é ou-
tra coisa que a cultura pelo lado de sua apropriação subjetiva, ou seja, os
indivíduos só desenvolvem a sua subjetividade, se tornam indivíduos, na
cultura [...] e através dela; eles não existem a priori, são produtos da cultura
e mesmo o passado só pode ser rememorado [...] pelos símbolos que vão
sendo adquiridos (Adorno citado por Crochik, 1998, p. 71).
A subjetividade delimitaria um espaço interno derivado de um mun-
do externo, onde se origina e se desenvolve pela interiorização da cultura.
Através dessa formação, o indivíduo, que ao nascer se encontrava em con-
fusão com seu meio social e natural, pode expressar seus anseios próprios e
criticar a própria formação. Isto significa que, pela mediação da cultura, o
indivíduo pode entender o processo de adaptação que institui sua subjeti-
vidade e pensar a própria cultura. Nesse sentido, os processos psicológicos
estão intimamente relacionados aos processos da sociedade e da cultura,
embora não se reduzam a eles. Apesar de sua adaptação continuada à cultu-
ra, o indivíduo em processo de diferenciação dela se distingue, em contínua
autorreflexão. Por outro lado, o descolamento entre a cultura e a indivi-
dualidade geraria duplicidade tanto no projeto histórico da subjetividade

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Subjetividade, cultura e educação

como em sua expressão na formação da personalidade (Crochik, 1998).


Em estreita conexão com esses processos, constituem-se as características
pessoais, através do desenvolvimento de comportamentos racionais neces-
sários à vida cotidiana.
Essa adaptação que forma o indivíduo para reproduzir a cultura,
produz ao mesmo tempo traços de caráter que se constituem como resis-
tência à própria adaptação. Pelo lado do projeto de subjetividade, a adapta-
ção é negada pelo reconhecimento das possibilidades de modificação desse
mesmo projeto cultural, que se apresenta como crítica à ideologia, em sua
ação perpetuadora da realidade existente. Ou seja, à racionalidade instru-
mentalizada para confirmar o real, o existente. As contradições aparecem
com a percepção dos buracos existentes entre o que é dito pela ideologia
e o que é na realidade. Na dialética da adaptação, entretanto, o indivíduo
ameaçado entra em um sofrimento que a ideologia tenta negar procurando
formas de harmonizar sua existência com a realidade da cultura que o nega,
encobrindo o mal-estar.

Questões em torno da subjetividade

Evidencia-se nessa análise que a psicologia cumpre atribuições ideológicas


em relação à subjetividade como seu objeto de estudo. Quando interpreta
e encaminha soluções para o sofrimento no nível do próprio indivíduo,
oblitera o reconhecimento de sua origem nos conflitos sociais. Essa prática
pode se concretizar de duas formas: ou o indivíduo é considerado inade-
quado por ser fonte de seu próprio sofrimento, e por isso deve ser encami-
nhado a tratamento, por exemplo às psicoterapias; ou deve ser aconselhado
a conviver com um sofrimento considerado inerente à sua própria existên-
cia. Atribuições similares se verificam nas influências recebidas de algumas
correntes psicológicas no pensamento pedagógico.
Essa denúncia torna flagrante uma contradição entre a psicologia e
seu principal objeto, o indivíduo e sua subjetividade, quando ela, ao in-
vés de esclarecê-lo sobre a verdade de seu sofrimento, colabora para sua
alienação. Faz isso ao considerar que os problemas do indivíduo têm uma
verdade própria, independente da cultura. Em decorrência, o estudo da

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identidade, branquitude e negritude

subjetividade só pode, então, ser realizado por uma psicologia cujo caráter
ideológico seja assumido, tornando-se crítica da própria psicologia. Esse
objeto, uma vez percebido em suas relações, indica e pede a transformação
das condições sociais que mutilam sua existência. Logo, pede que a psi-
cologia se volte para o questionamento dessas condições. Assim, em vez
de colaborar com a manutenção do que existe só na aparência, buscaria
o entendimento da produção dessa aparência. Além disso, devido à com-
plexidade desse objeto, que remete ao mesmo tempo à universalidade e à
particularidade, é necessário o recurso a categorias de estudos como os da
filosofia e da sociologia.
Em sua discussão sobre o tema da subjetividade, recorrendo aos di-
versos momentos do pensamento marxista, Resende (1992) revela a possi-
bilidade de este debate ganhar maior consistência e concretude se dialogar
com esse pensamento. Faz essa afirmação considerando que suas categorias
de análise permitem elucidar a construção de uma subjetividade que resulta
destroçada, reificada. Afirma que a vida individual, espiritual e subjetiva
será convertida numa abstração quando não for compreendida como uma
manifestação real do conjunto social. Quando despregadas da objetividade
na qual se constituem, as expressões da vida subjetiva nada mais são que
uma nebulosidade abstrata, carente de um objeto real: o reino do irracional
(Resende, 1992, p. 10).
Nessa discussão há uma vinculação dialética nas acepções dos con-
ceitos envolvidos no debate sobre subjetividade e objetividade na cons-
trução do indivíduo e da sociedade. A autonomização da subjetividade
frente à objetividade, do indivíduo em relação à sociedade, está fundada
no suposto de uma relação de externalidade e exclusão entre esses dois
termos, o que permitirá, da mesma forma, autonomizar também a socie-
dade, a objetividade frente ao indivíduo, à subjetividade, como num jogo
de luzes e sombras: entre a atividade luminosa e a passividade obscura,
os termos se chocam. Ora a sociedade está do lado da luz, da atividade,
e o indivíduo se constitui num mero reflexo escurecido e passivo des-
sa luminosidade; ora o indivíduo está no lado apolíneo, portanto uma
independência luminosa frente à passividade obscura da sociedade. A
autonomização desses elementos implica sempre a impossibilidade de
resolução efetiva, a abstração, a fetichização de ambos. Por contraditória

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Subjetividade, cultura e educação

que pareça, a negação da vida subjetiva enquanto uma realidade concreta


termina por derivar, para além de uma subjetividade pura, numa objeti-
vidade abstrata (Resende, 1992, p. 10).
Nessa perspectiva, pensar os problemas sociais sem a concorrência
de sua dimensão subjetiva equivale a um sociologismo; da mesma forma
que, se a análise prossegue desconectada de sua objetividade, cai no “psi-
cologismo”. Isto resultou da suposição de ter sido menosprezado o valor
de categorias como o indivíduo, a subjetividade e o psiquismo na análise
objetiva da sociedade. Em seu “Prefácio da crítica da economia política”,
Marx coloca o fio condutor:

[...] na produção social da própria vida, os ho-


mens contraem relações determinadas, ne-
cessárias e independentes de sua vontade,
relações de produção estas que correspondem
a uma etapa determinada de desenvolvimento
de suas forças produtivas materiais. A totalida-
de destas relações forma a estrutura econômi-
ca da sociedade, a base real sobre a qual se
levanta uma superestrutura jurídica e política,
e à qual correspondem formas sociais deter-
minadas de consciência. O modo de produção
da vida material condiciona o processo em ge-
ral da vida social, política e espiritual. Não é a
consciência dos homens que determina o seu
ser, mas ao contrário, é o seu ser social que
determina sua consciência (Marx citado por
Resende, 1992, p. 10-11).

Parece claro que a unidade entre essas duas realidades esteja dis-
tante de uma concepção metafísica e dualista da vida espiritual e da
realidade. Fica então difícil concordar com o suposto de um socialismo
positivista que trace uma linha divisória rígida entre a vida subjetiva e
seu objeto social. Esse estudo, então, faz a crítica das análises filiadas de
um lado a uma metafísica e, de outro, ao positivismo, que, negando o
espiritual e o subjetivo no âmbito do pensamento, operam estabelecendo
a primeira, uma coincidência acientífica entre representação e conceito;

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identidade, branquitude e negritude

e a segunda, uma ruptura antidialética entre o sujeito e o objeto. Essa


coincidência significaria, de início: abdicar do conceito que é conversão
e elaboração da representação, a totalidade concreta, como totalidade de
pensamentos, como um concreto de pensamento, é de fato um produto
do pensar, do conceber: não é, de modo algum, o produto do conceito
que pensa separado e acima da intuição e representação e que se engen-
dra a si mesmo (Korsh citado por Resende, 1992, p. 11-13).

Considerações finais

Este trabalho de elaboração da representação em conceito, realizado pelo


pensamento, é que possibilita atravessar a aparência, pois o concreto-
-imediato não diz a verdade do objeto de reflexão, mas cria ilusão que a
encobre. “Essa ilusão posta na aparência poderá ser superada pelo movi-
mento do pensamento que apreende as mediações constitutivas do objeto
e descobre, dessa forma, o cerne racional dentro do invólucro místico”
(Resende, 1992, p. 14).
Essas formas mistificadas de consciência seriam produto e pres-
suposto do modo capitalista de produção e reprodução, cuja crítica
desenvolve-se através de uma análise da realidade social que seja capaz
de reverter essas representações fetichizadas da consciência, tomando-a
como parte positiva da atividade do homem em sua apropriação da reali-
dade, determinada por processos de produção social. Em decorrência de
sua atividade concreta, cada vez mais aspectos e propriedades se consti-
tuem nele, e a consciência se apropria de uma imagem cada vez mais rica
e múltipla, realizando-se, então, em sua consciência cotidiana empírica,
em sua sensibilidade, em sua subjetividade (Resende, 1992, p. 15).
A constituição da subjetividade se dá, então, a partir da mediação
social e como manifestação real do conjunto social, ou seja, da sociedade
e da cultura. O indivíduo portador dessa dimensão é constituído e cons-
tituidor da cultura, o que indica que devemos procurar nele as marcas
da sociedade.

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Subjetividade, cultura e educação

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POLÍTICAS DE
IDENTIDADE,
BRANQUITUDE E
PERTENCIMENTO
ÉTNICO-RACIAL
Simone Gibran Nogueira

Este texto é uma revisão crítica de literatura sobre pertencimento étnico-


-racial. Relaciona o referido conceito a processos de humanização e desu-
manização numa perspectiva africana. A partir desta reflexão conceitual,
analiso o contexto brasileiro, no qual as relações sociais hegemônicas são
baseadas na ideologia da supremacia racial branca, e como estas relações
impactam na subjetividade dos que são privilegiados por essa ideologia.

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Pontos de partida e leitura do mundo

Para construir um entendimento sobre o conceito de pertencimento étni-


co-racial’1 e como ele é impactado dentro de um contexto em que as rela-
ções sociais hegemônicas são baseadas na ideologia da supremacia racial
branca, utilizo algumas referências que me auxiliam na leitura crítica do
mundo e no desenvolvimento da problemática. São elas: o conceito de ser
humano ou pessoa oriundo da visão de mundo africana da região oeste do
continente, o qual determina que alguém só se pode compreender como
pessoa a partir do momento em que reconhece a humanidade do Outro2
ou das outras pessoas (King, 2005; Nobles, 2006; Akbar, 2004); a concep-
ção sócio-histórica de identidade formulada dentro da Psicologia Social
da Escola de São Paulo, que compreende identidade como metamorfose
humana em busca de emancipação (Ciampa, 2003); o conceito de políticas
de identidade que permite “[...] a discussão de aspectos, tanto regulatórios
como emancipatórios, de ações e discursos, tendo em vista as assimetrias
de poder presentes nas relações sociais” (Ciampa, 2002, p. 1); assim como

1
Este artigo não tem a pretensão de apresentar uma proposta pronta e acabada sobre o conceito
de pertencimento étnico-racial, mas busca oferecer uma base sobre a qual futuras reflexões
poderão ser articuladas e desenvolvidas.
2
Utilizo Outro com inicial maiúscula quando pretendo ressaltar a diferença, os outros diferentes de si.

50

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Políticas de identidade, branquitude e pertencimento étnico-racial

referências sobre relações étnico-raciais que colaboram para o entendimen-


to desta problemática no Brasil e no mundo (Santos, 2002; Valente, 1987).
Esta análise contextual parte do princípio de que ideologias e catego-
rias sociais são criadas e reproduzidas historicamente e produzem efeitos
nas vidas das pessoas que constituem tal sociedade.

Perspectiva africana de ser humano

O entendimento sobre o que significa ser uma pessoa é um ponto crítico


não só para o desenvolvimento da Psicologia enquanto ciência, mas define
também qual perspectiva de sociedade está em curso. Enfim, constitui-se
um paradigma filosófico fundamental para as ciências sociais. Optei pelo
paradigma africano existente na região oeste do continente por acreditar
e valorizar a perspectiva de sociedade imbricada nele. Vale ressaltar que,
como a maioria dos 3.600.000 africanos que foram trazidos para nosso país
provinha da África Central e do Senegâmbia, região oeste do continente,
etnólogos ligam a ancestralidade afro-brasileira à Nigéria e à Angola a­ tuais.
Portanto, seus sistemas tradicionais, Iorubá e Banto-Congo, respectiva-
mente, informar-nos-iam a noção de pessoa que migrou forçadamente
daquela região para o Brasil no período colonial (Nobles, 2009). Nesse
sentido, ressalto que não estou utilizando um paradigma estranho à nossa
sociedade, pelo contrário, é um paradigma que está presente em grande
parte da população brasileira, pois os afro-brasileiros3 compõem mais de
55% da população atual de nosso país e mantêm suas tradições vivas (Ins-
tituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2010).
O paradigma africano da região oeste do continente define que o ser
humano modelo ou ideal deve ser o daqueles povos que representam rela-
ções consistentes e harmoniosas com a natureza. Este conceito é capturado
na fórmula dada pelo filósofo africano Mbiti (1970): Eu sou porque nós
somos; e porque nós somos, portanto, eu sou. Dessa maneira, dentro da vi-
são de mundo africana, a subjetividade é compreendida como um fenôme-
no coletivo não qualificado, respeitando a singularidade do Eu individual

3
Utilizo o termo afro-brasileiro, que engloba as categorias pretos e pardos do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatísticas (IBGE).

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identidade, branquitude e negritude

como um componente da coletividade (Akbar, 2004). Tudo o que acontece


ao indivíduo impacta no coletivo, ou na tribo, e tudo o que acontece no co-
letivo ou na tribo reverbera no indivíduo. Esta concepção identifica a are-
na de estudo apropriada como sendo a consciência coletiva. Nobles (2006)
refere-se a este fenômeno como “comunalidade experiencial”, ou o compar-
tilhar experiências particulares por um grupo de pessoas. O mesmo autor
argumenta que a comunalidade experiencial é importante na determinação
dos princípios fundamentais da sociedade — suas crenças sobre a natureza
do homem e sobre qual o tipo de sociedade que os seres humanos deveriam
criar para si mesmos. Akbar (2004, p. 45) apresenta o modelo de sociedade
baseado nessa compreensão africana de pessoa humana:

O modelo, que emerge deste paradigma, tem


muitas características. Ele assume que todos
os seres humanos deveriam ser (1) livres para
crescerem e realizarem seus mais altos poten-
ciais como seres espirituais (distinto da religio-
sidade, necessariamente); (2) livres da opressão
e dos ambientes humanamente degradantes; (3)
livres para viverem cooperativamente com qual-
quer ser humano que respeite sua humanidade;
(4) livres para desenvolverem o conhecimento
sobre si mesmo e/ou sobre aqueles com identi-
dade determinada historicamente; (5) livres para
defenderem a si mesmos contra as influências
desumanizantes das forças anti-humanas; (6)
livres para atingirem a dignidade humana sem
barreiras artificiais que negam seu acesso aos
campos de crescimento humano.

Esse é um modelo baseado na comunalidade experiencial e na cons-


ciência coletiva, que pode ser utilizado em pesquisas nos campos de estu-
dos das Ciências Sociais, nas investigações sobre sociedade, e da Psicologia
Social, nas investigações sobre subjetividade no seu aspecto coletivo. Fica
evidente que a identidade tem um papel central dentro do paradigma afri-
cano. É nesse ponto que estabeleço um diálogo entre o pensamento de ori-
gem africana e a perspectiva sócio-histórica da Psicologia Social da Escola

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Políticas de identidade, branquitude e pertencimento étnico-racial

de São Paulo no que se refere à identidade. Segundo Ciampa (2003), ela está
intrínseca e eticamente ligada ao processo de humanização.

Identidade como metamorfose em


busca de emancipação

Ciampa (2003) desenvolveu o sintagma identidade-metamorfose-emancipa-


ção. Este conceito complexo é baseado no paradigma euro-americano de que
nascemos como seres humanos inacabados, nascemos humanizáveis (Berger
& Luckman, 1985). Nesse sentido, nossa humanização pode acontecer ou
não conforme relações que estabelecemos ao longo da vida com a natureza e
com outras pessoas por meio da linguagem, primeiro nos processos de socia-
lização que ulteriormente podem culminar em processos de individuação ou
experiências subjetivas (Mead, 1974). Segundo Mead (1974, p. 138) 4:

O indivíduo experiencia a si mesmo como tal, não


diretamente, mas somente indiretamente, do

4
A ciência e as compreensões sobre a realidade são influenciadas pelos seus contextos, portanto
também se metamorfoseiam constantemente. Mas qual o sentido dessa metamorfose? Estou
dialogando com autores de diferentes origens e culturas em busca de construir conhecimentos
e avançar em relação ao que foi produzido. Entretanto, estou justamente comprometida com uma
perspectiva crítica de humanização, a partir da visão de mundo africana, e por esta razão não
posso deixar de ressaltar posturas racistas que estes autores euro-americanos apresentam em
seus trabalhos (Santos, 2002). Suas análises trazem contribuições que podem ser aproveitadas
para realizar um diálogo entre as diferentes perspectivas, entretanto, em vários momentos de suas
obras é possível encontrar posturas baseadas na ideologia da supremacia racial branca. Muitas
vezes quando eles desenvolvem uma análise sobre diferentes povos do mundo usam posturas de
hierarquia racial, denominando Outros povos como primitivos, e, em oposição, referem-se a seus
pares como evoluídos e civilizados. Conforme podemos observar na seguinte passagem em Mead
(1974, p. 157):
Nas mais desenvolvidas, organizadas e complicadas comunidades
sociais humanas — aquelas desenvolvidas pelo homem civilizado
— estas variações de classe ou subgrupos socialmente funcionais
de indivíduos ao qual qualquer indivíduo pertence (e com os outros
membros individuais com os quais ele realmente entra num
conjunto especial de relações sociais) são de dois tipos: classe
social ou subgrupo concreto e classe social ou subgrupo abstrato.

Está implícita nessa passagem que há sociedades humanas que não são tão desenvolvidas,
organizadas e complicadas como a do homem civilizado, sendo que este homem civilizado tem
um lugar espacial e sócio-histórico bem definido, o da sociedade ocidental, moderna, colonial e
branca. Para uma discussão mais aprofundada sobre racismo acadêmico ver Carvalho (2006),
Nobles (2006), Akbar (2004) e Santos (2002).

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identidade, branquitude e negritude

ponto de vista particular de outros membros in-


dividuais do mesmo grupo social, ou do ponto de
vista generalizado do mesmo grupo social como
um todo ao qual ele pertence.

Aqui é possível estabelecer uma aproximação entre a perspectiva


apontada pelo norte-americano Mead no que se refere à linguagem e so-
cialização e o paradigma oriundo do oeste africano sobre o que significa
ser uma pessoa humana, resguardando diferenças culturais intrínsecas a
cada um.
Na visão de mundo africana, o indivíduo não poderia ou não exis-
tiria sozinho, a existência humana participa do sistema de parentesco da
tribo, sendo este parte integral e indispensável da natureza (Nobles, 2006;
Akbar, 2004). Além disso, esse sistema de parentesco envolve não somente
os membros viventes da tribo, como também os que já morreram e os que
ainda não nasceram. Segundo Nobles (2006, p. 14):

O indivíduo devia sua existência verdadeira a


outros membros da “tribo”. Não somente àque-
les que o conceberam e cuidaram dele, mas
também àqueles já mortos e aos que ainda não
nasceram. O indivíduo não existia a não ser se
fosse incorporado ou comunal; ele era simples-
mente uma parte integral da unidade coletiva.
Africanos acreditavam que a comunidade (tribo)
fazia, criava, ou produzia os indivíduos; des-
ta forma, a existência da comunidade não era
imaginada para ser dependente do ingresso
individual [...] reconhece-se que “somente nos
termos de outras pessoas o indivíduo torna-se
consciente de sua própria existência” (Mbiti,
1970). Somente pelo outros alguém aprende
seus deveres e responsabilidades na direção de
si mesmo e dos outros.

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Políticas de identidade, branquitude e pertencimento étnico-racial

Como se vê, para ambas as perspectivas o processo de socialização é funda-


mental para a constituição da existência humana das pessoas dentro de um
coletivo, comunidade ou “tribo”, e ele só acontece a partir do ponto de vista dos
membros do grupo social e do ponto de vista generalizado do mesmo grupo
social. Uma das diferenças culturais entre uma perspectiva e outra reside na
noção de ancestralidade5, pois na visão de mundo africana o coletivo, comu-
nidade ou “tribo” é composto pelos membros que ainda não nasceram, os vi-
ventes e os que já morreram, e todos participam do processo de socialização.
Em nossas relações com a natureza e outros seres humanos por
meio da linguagem, podemos experimentar processos que podem fa-
vorecer ou cercear o nosso potencial de humanização. Essas relações e
experiências nos afetam e nos transformam constantemente ao longo
da vida, Ciampa (2003) denominou este processo de metamorfose. Vale
destacar que as metamorfoses podem ter diferentes sentidos, elas nos
podem humanizar ou nos desumanizar, o que requer uma análise ética e
política sobre este processo. Por essa razão, o autor acrescentou o concei-
to de emancipação ao sintagma. A noção de emancipação dá um sentido
ético-político humanizante à metamorfose humana.
De acordo com estas referências, identidade pode ser compreen-
dida como a história de nossas metamorfoses em busca da emancipação
que nos humanize. Entretanto, a emancipação, que dá o sentido ético
à metamorfose, pode ser impedida ou prejudicada pela violência, pela
coerção, invertendo a metamorfose como desumanização. Nesse senti-
do, ao invés de gerar uma identidade afirmativa, relações de opressão
e coerção produzem identidade obstada. É assim que se revela a natu-
reza intrinsecamente política da identidade e, para compreender a sua
formação, pesquisas precisam conhecer como nos tornamos quem esta-
mos sendo, ou seja, é preciso captar o sentido da metamorfose (Ciampa,
2003). Esse sentido é capturado em meio a tensões e conflitos sociais que
contêm em sua base políticas de identidade específicas e muitas vezes
opostas ou contraditórias.

5
Para uma discussão mais extensiva sobre ancestralidade africana, ver Oliveira (2005).

55

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identidade, branquitude e negritude

Políticas de identidade e relações étnico-raciais

No caso deste trabalho, o que está em jogo são tensões étnico-raciais,


conflitos entre uma política de identidade colonial moderna (Quijano,
2005, Nobles, 2009), baseada na branquitude como único modelo de hu-
manidade que historicamente reservou um lugar de privilégio material
e simbólico para povos de aparência branca ou descendência europeia
(Bento & Carone, 2002) e impôs um lugar de inferioridade e desquali-
ficação humana a diversos povos, chamando-os de negros6, entre eles,
africanos, indígenas, aborígenes. A outra política de identidade chamarei
de afro-brasileira democrática, que além de resistir aos processos de do-
minação e opressão racistas busca restaurar e preservar a humanidade e
a dignidade de pessoas, sejam elas de descendência africana ou não. Esta
política é informada por um sistema de valores africanos que tem entre
seus princípios fundamentais a xenofilia, a aceitação sincera no coletivo
do que é diferente de si mesmo7.
O estudo das políticas de identidade torna possível discutir a especificidade
de lutas pela emancipação de diferentes grupos sociais, que em sua ação co-
letiva revelam velhas ou novas opressões8 (Ciampa, 2002). Dentro da espe-
cificidade da luta pela humanização, reconhecimento e emancipação, tanto
de brasileiros descendentes de europeus quanto de descendentes de africa-
nos, o sentimento de pertencimento étnico-racial torna-se um fator-chave
para a constituição de uma identidade política afirmativa (emancipatória)
tanto para afro-brasileiros, colonizados e negros quanto para descendentes
de europeus, colonizadores e brancos. Analisarei estes processos sociais a
partir do paradigma africano.

6
No caso do Brasil, esta política de identidade colonial moderna toma contornos específicos,
gerando o chamado “racismo à brasileira” que é baseado nas ideologias do branqueamento e da
democracia racial e no preconceito de cor (Santos, 2002; Bento & Carone, 2002; Souza, 1983).
7
O valor da xenofilia foi recriado e mantido nas manifestações culturais afro-brasileiras, nas quais
você pode facilmente perceber a presença de pessoas de diferentes idade, gênero, classe social,
escolaridade, origem étnico-racial etc.
8
Nesse sentido, ressalto que apesar das manifestações culturais afro-brasileiras recriarem e
preservarem valores africanos que favorecem processos de humanização, estas práticas sociais
foram geradas a partir do processo moderno de colonização e seus contextos opressivos, portanto,
elas não estão isentas de ambiguidades e contradições, e revelam velhas e novas opressões.

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Políticas de identidade, branquitude e pertencimento étnico-racial

Compreensões sobre pertencimento étnico-racial e


o contexto social brasileiro

Os conceitos: pertencimento e humanidade

Um ponto-chave na compreensão do pertencimento étnico-racial é que


ele está diretamente relacionado ao entendimento de pertencer ao gênero
humano, ou seja, se sentir parte de ou pertencer a um grupo de pessoas
pressupõe se reconhecer como humano. Esta compreensão está em con-
sonância com a proposição de Mbiti (1970): eu sou porque nós somos, e
porque nós somos, portanto, eu sou. Se sentir ou se reconhecer como parte
de um grupo de pessoas o torna humano. Entretanto, esta relação não é tão
simples como parece, porque nem toda relação estabelecida entre pessoas,
como foi expresso anteriormente, constitui processos de humanização. Para
aprofundar um pouco mais a reflexão, retomo o paradigma africano do que
significa ser humano, o qual determina que a pessoa só se pode reconhecer
como humana a partir do momento em que reconhece a humanidade do
Outro ou das outras pessoas. Portanto, ao perceber outras pessoas como
humanas, eu posso reconhecer a minha própria humanidade e desenvolver
o sentimento de que pertencemos coletivamente ao gênero humano.
Que implicações práticas esta compreensão pode desvelar? Se eu re-
conheço o Outro como ser humano e me relaciono com ele como tal, tenho
a possibilidade de reconhecer a minha própria humanidade nesse processo.
Portanto, ao estabelecermos relações humanas, harmoniosas e respeitosas
temos a possibilidade de nos humanizar uns com os outros. De outra ma-
neira, se eu não considero o Outro tão humano quanto eu e me relaciono
com ele a partir desta perspectiva, nossa relação não é de igualdade. Ela é
uma relação hierárquica, desigual e coercitiva, na qual eu interdito a possi-
bilidade do Outro de se tornar humano, e nesse processo é a minha própria
humanidade que está sendo atacada e desqualificada. Isto implica que, em
meio a relações desrespeitosas ou desarmonizas, como as racistas, não há
como produzirmos humanidade (Freire, 1987; Memmi, 1977).

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identidade, branquitude e negritude

Influência do contexto social: pertencimento e


relações étnico-raciais

Se analisarmos criticamente a política de identidade (Ciampa, 2002) co-


lonial moderna a partir do paradigma africano sobre o que significa ser
uma pessoa ou ser humano, é possível concluir que aquela é desumana por
princípio. Ao estabelecer uma suposta hierarquia entre os diferentes povos
no mundo baseada na supremacia racial branca, essa política de identida-
de acaba supervalorizando povos europeus e de aparência branca como os
mais humanos, e desqualificando outros povos, como indígenas, africanos,
aborígenes, como menos humanos. Os primeiros ficam impossibilitados
de reconhecerem a humanidade dos outros, logo não podem se reconhecer
verdadeiramente como humanos, e sofrem de uma ilusão psicossocial de
superioridade. Assim como os povos desqualificados ficam impossibilita-
dos de se identificarem com os que se julgam superiores, pois são inferio-
rizados, o que gera interdições no seu processo de autorreconhecimento
como seres humanos. Todos envolvidos em relações sociais baseadas na
branquitude sofrem processos de desumanização, pois são impedidos de
reconhecer a humanidade do Outro e a sua própria. Apresentarei algumas
reflexões sobre como a supremacia racial branca tende a impactar diferen-
temente o pertencimento étnico-racial de pessoas consideradas brancas.
A branquitude é capturada principalmente pela noção de privilégio.
Segundo Schucman (2014, p. 107):

Apesar de a maioria dos estudos identificar como


característica fundamental da branquitude uma
posição em que sujeitos de aparência branca e
origem europeia adquirem privilégios simbólicos
e materiais quando estão em relação aos não
brancos [...].

Este privilégio é mantido por estratégias de invisibilidade que, de


acordo com Schucman (2014, p. 109), podem chegar:

[...] ao ponto de uma hegemonia e a uma ideia


de supremacia racial branca tão poderosa, em

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Políticas de identidade, branquitude e pertencimento étnico-racial

que os não brancos não têm voz nem poder para


apontar a identidade racial do branco, nem tam-
pouco os brancos conseguem se perceber como
mais uma das identidades raciais, mas sim como
a única identidade racial normal, cujas outras
devem alcançá-la em níveis intelectuais, morais,
estéticos, econômicos etc.

É uma espécie de “naturalização” da superioridade branca que passa


a impressão de que as pessoas brancas são “naturalmente” mais bonitas,
mais inteligentes, mais humanas e “devem” servir de modelo para os Ou-
tros. De outra maneira, os que estão à margem ou fora desse modelo, os di-
ferentes, passam a viver numa condição de “falta” de alguma coisa, falta de
brancura (Nogueira, 2008; Bento & Carone, 2002; Souza, 1983). Mais uma
vez, todos os envolvidos nessa trama sofrem processos de desumanização.
Os que se consideram brancos ou são considerados como tal, vivem
uma condição ilusória de supervalorização de sua estética e modos de ser,
o que gera uma incapacidade ou dificuldade de reconhecer outras possibili-
dades de ser e viver no mundo, tão humanas quanto as suas. Dessa maneira,
não reconhecem a humanidade do Outro e não podem reconhecer a sua
própria, em outras palavras, não reconhecendo que o Outro pode ser dife-
rente e tão humano quanto a si mesmo, não são capazes de compreender e
respeitar que ambos podem ter pertencimentos diferentes.
No que se refere às relações étnico-raciais, se eu não sou capaz de
compreender e reconhecer que outras pessoas podem ter outras origens e
pertencer a outras culturas tão humanas quanto a minha, também não sou
capaz de reconhecer que a minha origem e a minha pertença cultural não
é a única no mundo. Portanto, para o ser branco nas relações sociais basea-
das na ideologia da branquitude, a tendência é justamente não conseguir
enxergar as diferenças (invisibilidade do ser branco), e não compreender
que outras formas de ser e viver no mundo são possíveis (naturalização
de um modelo único). Consequentemente, o próprio desenvolvimento do
pertencimento étnico-racial é interditado. Nesse sentido, Jensen (2005,
p. 93, tradução minha), pesquisador branco norte-americano, que desen-
volveu pensamento e ação crítica em relação à branquitude afirma que:

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identidade, branquitude e negritude

Talvez devêssemos começar por dizer a verdade


abertamente: a branquitude — toda a constela-
ção de prática, crenças, atitudes, emoções, que
são misturados com o ser branco — é o proble-
ma. A branquitude é degradada e depravada, é
uma crença insana de que se pode encontrar
sentido na vida simplesmente em virtude de es-
tar no topo de uma hierarquia racial. À medida
que aceitamos qualquer um dos significados que
a sociedade dominante dá à brancura, nós, pes-
soas brancas, somos degradados e depravados.
Ao grau em que essas ilusões de superioridade
me impregnam, eu sou degradado e depravado.

Jensen (2005) assume que o foco do problema racial está na bran-


quitude e nos que são privilegiados por esta ideologia. A partir deste po-
sicionamento, é possível afirmar que esta degradação e depravação do ser
branco estão relacionadas ao processo de desumanização. Portanto, as pes-
soas brancas, degradadas e depravadas, que acreditam na insanidade da su-
premacia racial branca, não desenvolvem seu pertencimento étnico-racial.

Apontamentos para futuras pesquisas

Este trabalho visou a apresentar uma articulação de compreensões sobre


o conceito de pertencimento étnico-racial e como ele é impactado pela
ideologia da branquitude dentro do contexto social brasileiro. Para além
da perspectiva da desumanização imposta pela sociedade hegemônica por
meio das desigualdades de poder, existem outras práticas sociais, outros
processos educativos, outras formas de desenvolver a subjetividade que es-
tão em curso no Brasil.
Investigações acerca destas práticas podem analisar várias dimensões
do mesmo fenômeno, princípios filosófico-culturais, manifestações destes
princípios na prática cotidiana, experiências de pessoas inseridas nas prá-
ticas, percepção de pessoas que não estão inseridas, relações estabelecidas
entre as pessoas que participam das práticas culturais e a sociedade. Enfim,
este é um campo vasto para estudos, e ainda muito pouco explorado pelos

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Políticas de identidade, branquitude e pertencimento étnico-racial

pesquisadores das Ciências Sociais e, especialmente, subexplorado por pes-


quisadores da Psicologia Social. Alguns artigos deste livro são oriundos de
pesquisas com esta perspectiva e podem servir de inspiração para outros
investigadores na área.

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INCLUSÃO E DIFERENÇA:
ESTUDO DOS PROCESSOS
DE EXCLUSÃO E
INCLUSÃO DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES
Denise Conceição das Graças Ziviani

O estudo envolveu uma das classes de reforço da Escola Plural, de Belo


Horizonte e teve como objetivo identificar os mecanismos de exclusão
aos quais estão submetidas crianças e adolescentes negros em processo de
alfabetização. Constituiu-se entre participantes um processo em que foi
possível, não só identificar os mecanismos de exclusão aos quais estão sub-
metidas crianças e adolescentes negros no cotidiano da escola fundamen-
tada na progressão continuada, como também foi possível identificar no
cotidiano da vivência do grupo na instituição a forma como a branquitude
constrói-se como lugar normativo. Como dado também relevante, a pes-
quisa apontou que as alternativas oferecidas pela escola são diferenciadas
para meninos e meninas e que meninos negros tendem a frequentar pro-
jetos de recuperação numa proporção três vezes maior do que as meninas.

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Introdução

Os ciclos de formação nas escolas brasileiras fizeram surgir fenômenos per-


versos que dizem respeito à marginalização do excluído social, no ambiente
da escola, nessa perspectiva, surgiu no contexto da Escola Plural (1994-
2005), no município de Belo Horizonte, as “turmas aceleradas” que foram
uma alternativa transitória, que atendia estudantes fora de faixa, para a im-
plementação dos ciclos. Porém, essa experiência, desde seu início, transfor-
mou-se em “turma-projeto” quando sofreu um processo de ressignificação
no interior da maioria das escolas, tornando-se espaços de segregação ra-
cial e de gênero que concentravam estudantes negros do sexo masculino
que, muitas vezes, não dominavam a base alfabética.
A pesquisa foi realizada com 21 estudantes, quinze do sexo mascu-
lino e seis do sexo feminino, cujas idades variavam entre doze e dezessete
anos, que, em alguns casos, não dominavam sequer a base alfabética. Eles
eram alunos de inclusão, usuários do projeto Rede de Tempo Ampliado
do Terceiro Ciclo estabelecido pela Secretaria Municipal de Educação, de
2005, em situação de fracasso e defasagem na leitura e na escrita. Tratava-se
da imbricação do gênero, da raça e da classe social na produção de desi-
gualdades de oportunidades educacionais, como mencionadas por Carva-
lho (2004) e Rosemberg (1999).

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Inclusão e diferença: Estudo dos processos de exclusão e inclusão...

Para intervir no processo de uma dessas “turmas-projeto”, essa inves-


tigação construiu um campo de questionamento e de intervenção, tendo
como tripé as relações raciais, de gênero e classe social: como tais elemen-
tos se entrecruzam para produzir o fracasso escolar? Como trabalhar o en-
trecruzamento de raça, gênero e classe social em um processo que reverta o
fracasso escolar e que a aprendizagem seja possível? A investigação partiu
do princípio de que para estudarmos as inter-relações entre as relações in-
traescolares e as de raça e de gênero precisamos analisar não só a forma
como crianças, adolescentes, adultos e profissionais negros constroem sua
representação no contexto escolar, mas também as formas e estratégias que
o grupo branco encontra para manter e reproduzir o racismo no mesmo
contexto que mantém estudantes negros como fracassados ou defasados
com relação aos conhecimentos, comprovando a afirmação de Bento de
que, se evitamos focalizar o branco, evitamos discutir as diferentes dimen-
sões do privilégio, “[...] porque mesmo em situação de pobreza o branco
tem o privilégio da brancura, o que não é pouca coisa” (2002, p. 27). Logo, a
branquitude entra na análise deste trabalho trazendo a dimensão relacional
do racismo, sem focar somente a vitimização do negro.

Dimensão subjetiva, a branquitude

Concebemos os esforços educativos — currículo, as relações da instituição


com o estudante, com docentes, com a família e a interação entre docentes
e estudantes — como o processo do diálogo com o outro social ou institu-
cional no qual o eu se constitui. Nesse estudo adotamos a concepção de que
não só as relações de gênero, masculinidade e feminilidade, mas também a
relação entre as identidades, entre branquitude e negritude acontecem de
forma dialógica e relacional.
Memmi (1977) e Fanon (1983) pontuam que os europeus tornaram-se
brancos à medida que, em suas conquistas, criaram uma identidade comum e
determinadora do negro africano como o contraponto no qual se basearam e
desenvolveram a identidade europeia branca. Foi na perspectiva da expansão
colonial, que, segundo Frankenberg (2004, p. 309), os europeus utilizaram a
ideia de raça para justificar a dominação de povos não brancos, tornando a

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identidade, branquitude e negritude

colonização um projeto racial. Antes da expansão colonial, não existia nem


a branquitude nem a negritude, e as identidades que se apoiavam na ideia de
raça não possuíam uma conotação positiva contaminada pelo colonialismo.
As identidades que surgiram são fruto da estrutura colonial. Sem a coloni-
zação e a escravização dos povos negros da África, a negritude nem ao me-
nos teria surgido. Assim, para Frankenberg a branquitude é um conceito em
desenvolvimento e, certamente, continuará a alterar-se de acordo com sua
própria consciência e conforme suas transformações e práticas (2004, p. 312).
A negritude pode ser entendida, afirma Munanga (2008), como uma
tentativa de passar da reação negativa à positiva, pela valorização das heran-
ças culturais de origem africanas e pela valorização da imagem do grupo
como elemento substancial na ordem de referência étnica. Como discurso
da militância negra, a negritude sustenta uma linguagem que reivindica que
a saída do negro não está na busca da assimilação dos valores do branco, mas
sim na retomada de si mesmo. Dizendo de outra forma, a autodefinição po-
sitiva de si do negro está na sua afirmação cultural, moral, física e intelectual,
na crença de que ele é sujeito de uma história e de uma civilização inesgotá-
vel, digna de respeito (informação verbal de Munanga, 2008).
Bento (2002, p. 25) entende a branquitude como “[...] traços da iden-
tidade racial do branco brasileiro”, que se constitui a partir das ideias do
branqueamento, um dos temas mais recorrentes no estudo das relações
raciais e que muito afetou o senso de nacionalidade brasileira. Ela analisa
aspectos fundamentais e discorre sobre vários processos constitutivos do
lugar de poder da branquitude no contexto brasileiro, porém, aqui, conside-
raremos dois desses processos, porque complementam o arcabouço t­ eórico
da investigação. São eles: 1) o medo como elemento na projeção do branco
sobre o negro e 2) o pacto narcísico do grupo branco. Para Bento, ambos
os processos são normais quando se trata do desenvolvimento da pessoa,
entretanto, para o contexto das relações raciais, eles revelam complexidades
que justificam, legitimam e fazem prevalecer a ideia de superioridade de um
grupo sobre o outro, garantindo “[...] as desigualdades, a apropriação indé-
bita de bens concretos e simbólicos e a manutenção de privilégios” (Bento,
2002, p. 39). A projeção diz respeito à imputação de “mazelas” pelo branco
ao outro, o negro, porque o branco não é capaz de assumi-las, pelo fato de
que elas “maculam” o modelo do grupo ao qual pertence. E o pacto narcísico

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Inclusão e diferença: Estudo dos processos de exclusão e inclusão...

deriva do sentimento de que o grupo branco é o modelo cujas atitudes e rea-


ções implicam na exclusão dos que a ele não pertencem (Bento, 2002, p. 31).
Essa estudiosa destaca três autores quando discorre sobre o medo do branco
em relação ao negro: 1) Franz Fanon (1983), que descreve o processo de
projeção na construção do preconceito racial do branco contra o negro; 2)
Jean Delumeau (1989), que discorre sobre o medo como “[...] o hábito que
se tem em um grupo humano de temer tal ou tal ameaça (real ou imaginá-
ria)” (p. 23); e 3) Célia Maria Marinho de Azevedo (2008), que confirma que
o ideal de branqueamento nasceu para a população brasileira do medo, e foi
a forma encontrada pela elite branca de solucionar, no final do século XIX,
o problema de um país que se via ameaçado pelo contingente populacional
de não brancos.
Segundo Bento, não é difícil imaginar o medo da elite branca brasi-
leira que investiu na política de imigração europeia e na exclusão absoluta
da massa da população negra que, excluída do processo de industrialização,
foi confinada nos hospitais psiquiátricos e nos cárceres. Assim, “[...] o medo
e a projeção podem estar na gênese de processos de estigmatização de gru-
pos que visam legitimar a perpetuação das desigualdades, a elaboração de
políticas institucionais de exclusão e até de genocídios” (2002, p. 35-36).
Quanto ao pacto narcísico do grupo branco, Bento (2002) diz que
talvez possamos concluir que uma boa forma de compreender a branqui-
tude e o processo de branqueamento seja abrangendo a projeção do branco
sobre o negro como “[...] nascida do medo, cercada do silêncio, fiel guar-
dião dos privilégios”(p. 39). Nesse sentido, danifica-se a própria capacidade
de identificação com o outro e surge uma condição que sustenta a intole-
rância para tudo que represente a diferença. Disso a autora citada levan-
ta a hipótese de que, nas relações raciais estruturadas pela dominação e
subordinação, o que acontece é o contrário e de certa forma análogo ao
amor narcísico. Dessa forma, estudos sobre o negro brasileiro tendem a
ser unilaterais e uma das atitudes é inevitável: 1) ou nega-se a discrimina-
ção racial e explica-se a desigualdade a partir da inferioridade negra, que
sustenta o imaginário de que o “negro” é feio, maléfico ou incompetente;
2) ou se reconhece e explica as desigualdades raciais a partir da história de
herança negra do período escravocrata. Tais estudos, ao não abordarem o
grupo branco, negam a interferência da branquitude na manutenção si-
lenciosa dos privilégios (Bento, 2002, p. 41). Bento chama essas atitudes

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identidade, branquitude e negritude

e reações no teatro ideológico de representações de um teatro ideológico


no qual as representações do grupo branco são garantidoras do poder. Ela
sublinha que, se evitamos focalizar o branco, evitamos discutir as diferentes
dimensões do privilégio, “porque mesmo em situação de pobreza o branco
tem o privilégio da brancura, o que não é pouca coisa” (Bento, 2002, p. 27).

Instrumentais da Psicologia Social na


pesquisa em educação

Essa investigação apresenta uma problemática da Educação que buscou na


Psicologia Social o referencial teórico e instrumental por ser essa disciplina,
na visão de Munanga (2002, p. 9), a conhecedora da teoria e da técnica ade-
quadas para trabalhar o preconceito naquilo que revela e no que ele oculta. A
Psicologia Social, para o autor, possui os instrumentais necessários para des-
velar as relações de poder presentes na relação do grupo da sala de aula. Por
ter sido uma pesquisa interventiva, foi possível o acesso à história de vida es-
colar dos estudantes, cujas narrativas se constituíram através de depoimento
dos participantes da pesquisa, de suas famílias e de seus professores e ex-pro-
fessores. Logo, além da pesquisa-ação, como proposta por Michel Thiollent
(2000), e da história da trajetória escolar, foram utilizados outros dois instru-
mentais da Psicologia Social para abordar tanto a alfabetização como o vivido
pelos participantes do grupo, num processo que engajou o sujeito em sua
interação com os outros sociais, na construção de sua subjetividade e de seu
envolvimento educativo, social e cultural. Foram eles: 1) a técnica do Gru-
po Operativo de Pichón-Rivière (2005); 2) Oficinas em Dinâmica de Grupo,
proposta pela psicóloga social Lúcia Afonso (2002). O período de encontros
com o grupo de sujeitos da pesquisa foi de março a dezembro de 2005.

Apropriação da leitura e da escrita pelo grupo:


fases e conquistas

No primeiro semestre o grupo viveu o movimento de entrada e saída de es-


tudantes que eram encaminhados por três escolas da rede municipal, sendo

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Inclusão e diferença: Estudo dos processos de exclusão e inclusão...

que, muitos daqueles que foram encaminhados em função de problemas


disciplinares, abandonaram o grupo antes de sua configuração final. Efeti-
vamente, o grupo se constituiu pelos estudantes cuja situação de leitura e
escrita era mais frágil, e viviam em situação de vulnerabilidade social.
A escola Doralice encaminhou ao grupo, para as oficinas de alfabeti-
zação: Alex, Davidson, Diogo, Eneilson, Geiler, Indiara, Kaick, Luca, Lúcio,
Rafaela, Richard e Wagner, por apresentarem “defasagem em leitura, escri-
ta” e conhecimento dos conteúdos disciplinares. Os adolescentes da escola
Ana Terra, chamados Aiana, Carlos, Jorge Luiz, Joseana, Marli, Thiago e
Wanderson, foram encaminhados por serem “não alfabetizados”; Bianca,
da escola Santa Edwiges, veio porque sua professoras avaliaram-na como
aluna que “não sabia ler e escrever” e, devido ao seu pedido, ela pôde trazer
o Marcinho “da 5a série atrasada”. Importante dizer que, os nomes que apa-
recem são fictícios e foram escolhidos pelos participantes, durante o último
encontro do grupo.

1a fase — Primeiros encontros: participantes


e atividades desenvolvidas

Nos primeiros encontros prevaleceu a discussão e a tomada de decisão


sobre o que faríamos para executar atividades que eram preferidas pelos
adolescentes do sexo masculino, presentes em maior número. Tivemos que
intervir para garantir a expressão feminina. Através da pintura, atividade
inicial, eles perceberam não só nossa atitude de acolher, de permitir a ex-
pressão da arte, mas também o nosso desejo de garantir-lhes expressão ver-
bal. As pinturas foram surgindo em painéis, pedaços de papelão, folhas de
ofício, de caixinhas... Tudo o que era produzido era afixado na parede ou
exposto na bancada próxima às janelas. Podiam pintar como quisessem e,
ademais, quando solicitadas — a agente cultural Rose e eu — ajudávamos
silenciosamente. As regras de utilização da tinta vieram depois, de forma
que foram absorvidas ao longo dos encontros.
Brigas e insultos de cunho racial desorganizavam as atividades e
impediam que ouvíssemos a todos. Tínhamos um grupo de meninos li-
derando a desordem e delimitando o espaço da sala de aula em função do

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identidade, branquitude e negritude

domínio da escrita. Brigavam pelo poder de expressão e gritavam, tentan-


do fazer um movimento cujo fim parecia ser a destruição do grupo. Com
grande esforço mantínhamos as rodas de conversa no início dos encon-
tros. Solicitávamos que outros escribas se apresentassem para registrarem
o plano das atividades diárias, mas nesses encontros iniciais vimos o poder
da escrita centralizando-se nas mãos das meninas, que se consideravam
brancas naquele contexto em que as meninas negras é que não dominavam
a escritura. A fala na roda corria sempre o risco de ser desautorizada por
esse grupo que se identificava como branco diante daqueles a quem con-
sideravam “pretos”. Nesse contexto encontrava-se Indiara, que pertencia
ao grupo branco, porém, não dominava a leitura, a escrita e afirmava ser,
“branca, loira e de olhos verdes”. Estava com quinze anos, liderava situações
de desordens e as saídas das meninas da sala, provocando a imobilidade
do grupo a partir de investidas que geravam conflitos seguidos. De modo
ambivalente, assumia que precisava aprender a ler, a escrever, mas não se
dispunha a tal tarefa.
Meninos e meninas negros, tais como Alex, Davidson, Diogo,
Luca, Lúcio, Marli, Rafaela, Richard, Wagner, e até a Aiana, que entre
eles era a melhor leitora, limitavam-se a ouvir, e demoravam a realizar a
tarefa de escrita quando não se dispunham somente a copiar. Eles nunca
verbalizavam suas dúvidas. Escondiam-se entre elas, resistiam em es-
crever, enfim, anulavam-se diante daqueles considerados não negros,
especialmente nos momentos de escrita coletiva no quadro. A saída en-
contrada por aqueles que consideravam o ato de escrever “muito difícil”
foi a arte escrita. A linguagem da pintura, permitida e estimulada desde
o início, foi tomando conta do espaço do grupo, e foi se tornando uma
forma privilegiada de expressão. “Posso fazê outra coisa?” foi o nome
que nove entre quinze adolescentes, portanto a maioria, deram à ativi-
dade de pintar caixas de sapato, porque não queriam, de fato, escrever
ou tentar fazê-lo. Pintar caixas de sapato, grafitar o próprio nome con-
sistiam em possibilidades de se reencontrar consigo mesmo, perdidos
que se sentiam ao não conseguir escrever notícias de rádio e televisão
no formato proposto. A pintura nas caixas de sapato parecia constituir-
-se no veículo de transmissão do medo da escrita, mas, por outro lado,

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Inclusão e diferença: Estudo dos processos de exclusão e inclusão...

cumpria o papel de “ocupar-lhes o tempo”. Angústia! Eles resistiam em


escrever, mas pintar... era possível.
No movimento de pintura e escrita nas caixas surgia, no interior do
grupo, a formação de dois subgrupos: um que fez a opção de estar ali
porque precisava “fazê outra coisa”, até que conseguisse apropriar-se da
escrita, e o outro que se ocupava em “fazer bagunça”. O segundo gru-
po, composto por aqueles que consideravam o primeiro grupo “pretos”,
recusava-se a ouvir, descumpria o que era combinado, participava apenas
nos momentos que julgava conveniente, tendo como desfecho, em geral,
o barulho e a “bagunça”.
Difíceis, mas necessárias, eram as rodas de conversa, nas quais pre-
cisavam refletir não só sobre os xingamentos e os apelidos, como também
sobre os insultos que surgiam no grupo branco que lutava pelo poder. O
grupo era formado por 21 participantes. As meninas negras tornavam-se
o alvo de maior “zoação” e insultos, por causa dos cabelos crespos. Eram
depreciadas por adjetivos. “Porca” e “fedorenta” eram os insultos dirigidos
à Aiana, “feia” e “burra” à Marli. Diogo resistia, discutia, ficava muito abor-
recido e ausentava-se por dias seguidos quando era chamado de “bicha”.
Era difícil resolver as brigas geradas pela raiva de Diogo ao ser chamado de
“bicha.” Enfim, o tratamento recebido ao longo do tempo só confirmava es-
tereótipos, frutos das histórias desses adolescentes nas “classes de reforço”,
sem sucesso escolar.
O tratamento direcionado aos adolescentes negros, aqueles a quem
atribuíam a pecha de “burros” e de “bichas”, era discutido e consistia no
centro de nossas preocupações. As intervenções que refletiam os insultos
e o tratamento pelos apelidos que humilhavam, desmoralizavam, coisifi-
cavam e animalizavam eram feitas nas rodas de conversa, e procurávamos
não deixar para o outro dia, uma vez que, uma imagem negativa de si, é
também resultado da incorporação dos insultos-rituais que se perenizam
em apelidos negativos. Quanto aos apelidos preconceituosos, o mínimo
que podíamos fazer como coordenação era intervir, sempre que neces-
sário, para garantir a identificação positiva dos adolescentes do grupo.
Esse foi o nosso exercício diário. A primeira fase do grupo foi marcada
pela luta pelo seu controle, procedente dos adolescentes que dominavam

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identidade, branquitude e negritude

melhor a escrita e a leitura tanto do sexo masculino, quanto do femi-


nino, que se consideravam brancos em relação àqueles que revelavam a
situação de submissão de fala e a quem faltava o domínio da escrita e da
leitura. Indiara, nesse grupo, era a exceção.

O espaço urbano transcendeu o espaço


do papel e da sala de aula

O grupo se modificou. Era a evasão. Definiu-se como grupo aqueles que


optaram por investir na realização de atividades sugeridas pelo coletivo. A
partir de tais atividades incorporamos o tempo das oficinas artesanais no
Centro Cultural do bairro e o tempo da leitura do espaço urbano. Durante
atividades de leitura de pichações, grafites, placas, letreiros e inscrições nos
ônibus vimos estudantes classificados como “não leitores” por seus docen-
tes interessando-se pela leitura da escrita viva da rua!

2a fase — Comunicação e cooperação grupal:


as regras e a expressão de si

Os participantes construíram duas regras que, embora não tenham sido


registradas, eram razão de constante reflexão: 1) o lugar de permanência do
grupo era a sala de aula, e ali não se podia “ficar à toa”; e 2) todo problema
se resolvia na roda de conversa.
Na oficina Teatro de Bonecos começou a consolidar-se a identidade
do grupo. Vimos na construção fenotípica de um boneco surgir o conflito
com os narizes, com os “beiços”, com o cabelo e a cor da pele dos partici-
pantes do grupo. Intervínhamos todo o tempo utilizando e refletindo as
expressões preconceituosas utilizadas por eles. Falas como “cabelo duro”,
“cabelo bom”, “cabelo liso” ou “cabelo de Bombril” tinham endereço certo.
Foi uma fase do processo grupal no qual aconteceu a rede de transferência
— entre participantes e coordenação — que deu a base afetiva para alguns
participantes refletirem sobre si mesmos e para a coordenação pensar o
processo de interação, levando em conta a relação do grupo com a tarefa

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Inclusão e diferença: Estudo dos processos de exclusão e inclusão...

da leitura e da escrita. A revelação da subjetividade dos participantes podia


ser constatada por: 1) a aceitação da cor, dos traços fenotípicos; e 2) a acei-
tação ou não aceitação do cabelo. Surgia a cumplicidade da coordenação
com meninos e meninas que, através do formato do nariz, da cor da pele,
das trancinhas no cabelo, identificavam-se como negros. Aos poucos, um
participante como “Café”, apelido de Alex, assumia como sua a negrura do
boneco, demonstrando ao grupo que vencia este “nível de aceitação” da
própria negritude, como proposto por Helms (1990).
Bianca marcou os encontros trazendo seus desejos, suas fantasias e,
notadamente, seu sofrimento psicossocial, a negação de ser negra, a não
aceitação de sua pobreza. Ela queria que conhecêssemos seu irmão ado-
tivo, “lorinho de olho azul, branquinho!” Contou-nos que, devido ao seu
“problema de vista”, sua tia lhe compraria lentes de contato verde. Bianca
desejava ser branca e rica. Bianca começou, sem concluir pelo menos três
bonecos. Para a terceira boneca ela fez o cabelo com uma lã branca com-
prida, e desfilou exibindo os cabelos longos e “loiros” da boneca. Indiara,
que afirmava ter cabelo loiro natural, usou lã amarela no cabelo da boneca,
reafirmando sua identificação de menina branca e loira. Convivemos então
com a branquitude imposta por Indiara em contraponto à negritude não
aceita por Bianca, dito de outra forma: a “superioridade lado a lado com
a inferioridade”, como diz Fanon (1983, p. 44) ao ressaltar que o negro é
escravo de sua inferioridade, e o branco é escravo de sua superioridade, e
que ambos apresentam um comportamento neurótico.
Costa (1984) ressalta que o negro que não se reconhece deseja encar-
nar o corpo e o ideal de Ego do sujeito branco, e “[...] recusa, nega, e anula
a presença do corpo negro” (p. 104); ou seja, ele aniquila a sua imagem de
negro, porque deseja ser branco.
Da Oficina de Bonecos no Centro Cultural, os adolescentes partici-
param inicialmente como usuários, depois, passaram a ser coordenadores
das oficinas de brincadeiras infantis, Rap, confecção de cartão e ritmo, mo-
mento em que passaram a exercer a cidadania ativa e a concretizar a tarefa
externa da leitura e da escrita. Essas oficinas comprovaram que o exercício
da cidadania, para estudantes resistentes à leitura e à escrita, antecede o
processo de ler e escrever imposto pela cultura escolar.

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identidade, branquitude e negritude

Já na sala de aula foram disponibilizadas revistas, agendas e catálo-


gos étnicos como material alternativo, para que os participantes se encon-
trassem, cotidianamente, com a imagem de pessoas de diferentes grupos
étnico-raciais: negros, indígenas, brancos e asiáticos. Foi durante uma ati-
vidade de identificação de fenótipos que Wagner encontrou na imagem de
Martin Luther King o seu desejo de ser “Martin Luther King, o guerreiro da
paz”. Na busca da própria negritude, Wagner, que havia vivido nas ruas, socia-
lizava a identidade negra que assumia com o coletivo do grupo, que também
construía, a partir das possibilidades encontradas ali, a consciência de si.

Cooperação e operatividade no processo do grupo

No quinto mês de vivência do grupo, a literatura infantojuvenil de persona-


gens negras se fez presente através dos livros A ovelha negra, de Bernardo
Aibê, e Que mundo maravilhoso!, de Julius Lester, em que a concretude lite-
rária da personagem, um deus negro, provocou zombaria, risos e espanto.
“Mais Deus é branco. Ele não é preto”. Afirmavam os evangélicos. Pacien-
temente, como coordenadoras, numa atitude de valorização do conteúdo,
continuávamos a história até que sua audição tornasse um momento for-
mador que lhes permitisse falar, ouvir e discutir o estranhamento, partilhar
conhecimento e elementos apontados pela literatura.
Fanon (1983) analisou a reação de uma personagem negra em rela-
ção ao seu encontro com um deus da sua cor em que o fato era inimagi-
nável! “Não, de fato, o Deus bom e misericordioso não pode ser negro; é
um Branco, de faces bem rosadas [...] Ser branco é como ser rico, bonito e
inteligente” (p. 45). O imaginário, no cotidiano, alimenta-se da imagem de
um Deus cuja pele é branca, de cabelos lisos e, por certo, de olhos azuis. Foi
difícil para o grupo imaginar que pudesse existir um deus negro, e, sobre-
tudo, um deus sexuado.
A revista Raça foi colocada na roda. O recorte da revista permitiu
que se identificassem sentimentos em relação à imagem de personalidades
negras que diziam da rejeição, da decepção, do silêncio e da hesitação pelas
atitudes que marcaram essa (in)atividade do recorte. Alguns paginavam a
revista “não vendo ninguém”; outros perguntavam se poderiam recortar

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Inclusão e diferença: Estudo dos processos de exclusão e inclusão...

“qualquer um”. Outros como, Jorge Luiz, Wagner e Wanderson, que já


haviam iniciado um processo de consciência de sua negritude, puderam
recortar pessoas ligadas ao movimento Hip Hop. As meninas destacaram
imagens de rapazes pardos. Mas, no final, com a ajuda da coordenação,
montaram um painel de pessoas negras muito lindas...
Wagner nomeou o painel coletivo com letras maiúsculas, e afixou na
parede da sala: “Corpo negro corpo lindo, rosto negro rosto lindo”. Lúcio,
que fez um cartaz para seus colegas da turma regular, com fotos de pessoas
negras e brancas, escreveu: “Todas as raças”. Enfim, a técnica operativa fun-
damentava o letramento e instrumentalizava o grupo que, homeopatica-
mente, assumia-se a olhar como belo tanto o corpo como o negro.

O papel atribuído aos adolescentes de


“inclusão” no cenário da escola

Os participantes do grupo do sexo masculino, cuja estrutura física era mais


desenvolvida foram apontados pela vice-diretora como os sujeitos que
“estavam de uniforme da escola” que haviam “saqueado a mercearia” do
bairro. Ela endereçava ao grupo ações que comprovavam seu desinteresse
e desrespeito diário, mas não lhes garantia como direito o número e quanti-
dade adequadas de refeições diárias. Outra docente, que me ignorava, des-
creveu de modo estereotipado os adolescentes do grupo, quando se dispôs
a caminhar uma boa distância até à porta da sala para avisar-me que já
havia guardado a sua bolsa e trancado o armário, porque meus estudantes
“estavam passeando em volta das salas de aula”, e que “poderia sumir algu-
ma coisa das outras pessoas”. O professor Leonardo, ao representar a escola
junto à Fundação Zoobotânica, num evento de inauguração de uma estufa
de plantas rupestres, recusou-se, diante dos argumentos que apresentei, a
levar os estudantes da oficina de alfabetização, para representar a escola
cujo projeto pedagógico estendia-se ao plantio da horta e à jardinagem.
Embora eu tivesse buscado a parceria com a Fundação para tais oficinas,
ele não via relação entre as oficinas do grupo de alfabetização e o convite
recebido. Ele resistiu em levar os adolescentes do grupo, confirmando que
seu compromisso era com a “sétima A, que, por sinal, não tinha nenhum

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identidade, branquitude e negritude

menino da oficina de alfabetização”. Segundo ele “não daria para levar, sozi-
nho, trinta e cinco alunos, e que, além do mais, eles deveriam estar unifor-
mizados”. Pesava aos adolescentes do grupo o fato de terem ou não terem o
uniforme, o que era usado, de modo arbitrário, ora para incluí-los em even-
tos cujo significado era negativo, ora para excluí-los em caso de evento cujo
sentido era positivo. Dias depois do evento, a fotografia no mural da escola
divulgou o acontecido na Fundação Zoobotânica, mostrando o professor
Leonardo e a vice-diretora, não com trinta e cinco, mas quinze alunos da
“sétima A”, uniformizados, sendo todos eles brancos.

Formas textuais que desafiaram a


coordenação do grupo

A pichação em lugares indevidos, o grafite e a necessidade de atendimen-


to individualizado junto ao computador consistiam em desafios para a
coordenação na concretização da tarefa de escrita do grupo. A prática
de digitar ou manuscrever as letras de rap, sistematizada pela coorde-
nação, legitimou como escrita do grupo as letras desse gênero musical,
expressão da identidade dos participantes. O conteúdo inicial das letras
dos raps incomodava-nos, porque tratava de preceitos evangélicos, mora-
listas e apelativos, porém traziam embutida a reivindicação de reconhe-
cimento de identidades. Reconhecida sua dignidade como pessoas, como
MC’s, eles já podiam garantir a expressão de si, como pessoas de direito
nas rodas de conversa, comprovando as possibilidades, mencionadas por
Foucault ao se referir às possibilidades que surgem para que o sujeito fale
de si, comparando as possibilidades de falar de si à uma porta aberta,
que permite a continuidade das palavras ditas pelo sujeito. As palavras
precisam ser ditas pelo sujeito até que ele se encontre consigo, com a sua
história (Foucault, 2005, p. 6).

Oficinas fortalecedoras da autoestima

As oficinas e mostras de filmes com vistas à fortalecer a autoestima dos


adolescentes traziam um princípio pedagógico cujo fundamento é a
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Inclusão e diferença: Estudo dos processos de exclusão e inclusão...

concepção de Paulo Freire de que o ensino dos conteúdos não pode dar-
-se separado da “[...] formação moral do educando” (Freire, 1996, p. 37).
Investimos em três frentes sistematizadoras do trabalho que se voltavam
para a ação-reflexão-ação das relações raciais: 1) leitura de livros de lite-
ratura com personagens negras; 2) mostra de vídeos; e 3) dinâmicas de
vivência e reflexão.
A primeira frente consistiu na leitura de histórias como Ana e Ana,
de Célia Godoy, Fica comigo, de Georgina Martins, Tranças de Bintou,
de Sylviane Diouf, e Bruna e a galinha d’Angola, de Gercilga de Almeida.
A segunda frente foi a mostra de vídeos que trouxe a discriminação, a
representação de personagens negras e permitia a discussão dessas rela-
ções na escola. Da representação de personagens negras, seguimos com
a discussão e alternativas para enfrentamento discente do preconceito na
escola a partir dos vídeos Vista a minha pele, de Joelzito Araújo, Kiara:
corpo de rainha, da ONG Djumbay, e Sirga: amigos para sempre, de Luc
Besson. E os vídeos produzidos pelos próprios estudantes, que, com to-
dos os problemas técnicos, faziam circular a imagem dos participantes
do grupo. Nas dinâmicas de vivência e reflexão, a terceira frente, os estu-
dantes tiveram a oportunidade de observar, tocar, cheirar e verbalizar a
diferença entre as flores, os grãos de feijão, a pele e a textura do cabelo dos
participantes, além de pintar as flores e suas diferentes colorações diante
dos jardins dos parques da cidade.
Gomes (2007, p. 20, 32) sublinha que o padrão estético negro e o
padrão estético branco são construções sociais e culturais que se opõem,
mas também se complementam. Ela diz que quando nos referimos ao
cabelo do negro com a expressão “cabelo ruim”, revelamos o racismo.
Ver o cabelo do negro como “ruim” e o cabelo do branco como “bom”
expressa o conflito. Na relação entre a inferioridade e a superioridade
expressa pelo cabelo “ruim” do negro e pelo cabelo “bom” do branco,
emerge para essa autora um padrão de beleza real e outro ideal, e ainda
que, no Brasil, o padrão ideal de beleza seja o branco, o padrão real é o
negro e o mestiço.
Por tais motivos, a pedagogia do toque respeitoso era a condição ne-
cessária para que os participantes do grupo investigassem a textura dos
cabelos uns dos outros e comparassem as tonalidades de suas peles e, aos

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identidade, branquitude e negritude

poucos, adotassem uma linguagem mais respeitosa para se referir aos tra-
ços fenotípicos uns dos outros. As oficinas na sala de aula, nos parques, no
Centro Cultural buscavam promover o respeito ao outro, para que tanto a
adolescente branca, a Indiara, como os adolescentes negros saíssem de lá,
orgulhosos de seu pertencimento racial, descobrindo-se sujeito no meio de
outros sujeitos.
Depois de passar o encanto com a brancura e com o dourado do
cabelo de Indiara, Bianca, de modo espontâneo, disse-lhe: “você é bonita,
mas precisa arrumar os dentes”. Não no grupo, mas fora, Indiara esbofeteou
Bianca. Bianca passou a faltar. O grupo ponderou que seria responsabili-
dade de Indiara ter de trazer Bianca de volta aos encontros. A experiência
vivida por Bianca deixou-nos a tarefa essencial de pensar não só na im-
portância de conhecer o processo de construção da negritude, como tam-
bém de conhecer o processo de construção da branquitude para estudantes
brancos, porque uma das causas do sofrimento psicossocial da criança e
do adolescente negros na relação escolar pode ser a presença de posturas e
atitudes racistas, sobretudo vindas das crianças e dos adolescentes brancos.
Antes, nos referimos ao sofrimento psicossocial porque das duas vezes em
que Bianca foi vítima de agressão por Indiara, ela não trouxe o problema
para a coordenação, suportou o sofrimento do seu lugar, “optou” pelo lugar
da não denúncia, e quando voltou, “oferecia” ao grupo o que julgava ter de
bom e bonito, as lentes de contato, ou os “olhos azuis”, que emprestava para
Indiara e as outras meninas “para que experimentassem ter ‘olhos azuis’”
como os seus.
Nessa segunda fase, momento em que puderam estabelecer a co-
municação grupal, eles formaram uma rede de cooperação e comunicação
que favoreceu o planejamento do grupo, quando puderam expressar a si
mesmo e trabalhar a tarefa externa. Cada um assumiu seu nível de escrita,
o que se concretizou, para a maioria deles, enquanto escrita na posição
vertical. Ler e escrever tornaram-se tarefas possíveis à medida que exer-
ciam prerrogativas de cidadania nas oficinas de ritmo, cartão de natal e
rap. Nesse exercício de cidadania, os adolescentes do sexo masculino es-
tabeleceram um diálogo com a escola de origem, que lhes permitiu a mu-
dança na interação e a modificação da imagem com que eram percebidos
inicialmente.

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Inclusão e diferença: Estudo dos processos de exclusão e inclusão...

3a fase — A avaliação do vivido e o luto do grupo

O fim desse grupo coincidiu com o final do ano letivo. Na elaboração do luto
grupal foi possível constatar que os participantes já haviam construído uma
reflexão sobre si mais elaborada. Conseguiam expressar seus sentimentos,
falar de seus medos, verbalizar as mudanças vividas e definir seus projetos
de vida. Podiam utilizar o computador, e foi na tela que acompanhamos
as respostas que deram às perguntas: o que vou fazer da minha vida? Para
onde vou caminhar? Os projetos de vida profissional revelavam as escolhas
de serem advogados, veterinários, secretárias, cantores de rap, entretanto,
no processo grupal, eles se conscientizaram de que suas condições escolares
eram, de fato, frágeis e limitadoras; em função disso, puderam verbalizar a
exclusão social vivida e reconhecer a distância social que os separava de seus
projetos profissionais, mas nem por isso lhes foi proibido dizer dos sonhos,
dos desejos, e eles conquistaram um nível de consciência que lhes permitia
pensar e falar de seu contexto e condição social de modo mais crítico.

Dados constatados pela investigação

Através da narrativa da história da vida escolar dos sujeitos que partici-


param do projeto foi possível identificar no grupo docente, composto por
80% de professores brancos, responsáveis pela socialização e formação dos
participantes da pesquisa, uma prática reacionária, racista, pouco compro-
metida política e pedagogicamente, o que impossibilitava esses estudantes
de se apropriarem da escrita.
Vejamos o que a história dos participantes aponta: professoras e
professores que ora lhes atribuíam apelidos que os diminuíam intelectual-
mente, como, por exemplo, “orelha seca”, ora estigmatizavam os estudantes
como violentos e as estudantes como “safadas”; professores que lhes evi-
denciavam o sentimento de resistência, o distanciamento. Enfim, docentes
cujo despreparo pedagógico não lhes permita intervenções positivas em
situações como a de Aiana, que estava acostumada a ser tratada como “ma-
caca” por um colega de classe cuja tonalidade de pele, certamente, devia ser
mais clara. Os “roxões” na pele preta de Marli, causados pela agressão dos

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identidade, branquitude e negritude

colegas de classe e denunciados pela mãe, não podiam ser vistos por suas
professoras, provavelmente, por não se preocuparem em investigar a dor da
pele negra (ou não) quando ferida.
Professores e professoras brancos(as), como que num “pacto nar-
císico”, sentiam-se ameaçados pela “onda” de estudantes negros, pobres e
mal-vestidos que passaram a ocupar o ambiente da escola “Doralice”. Estes
docentes levavam à coordenação seus temores dos prejuízos que poderiam
ter como não pertencentes ao grupo negro; os meninos negros podiam ti-
rar-lhes os pertences. O preconceito das professoras direcionado ao grupo
de estudantes negros da oficina de alfabetização, a postura da vice-diretora
e da professora delatora adicionados à arbitrariedade do professor Leonar-
do comprovam a relação de poder do grupo de professores e professoras
brancos(as), como determinadora do lugar de submissão e opressão do
grupo negro. Assim, constatamos no teatro da interação cotidiana do gru-
po com a escola, os componentes estudados por Bento (2002): o medo, a
projeção do grupo branco no processo de exclusão, a estigmatização dos
estudantes negros e o pacto do grupo branco, que mais intensamente soli-
citava a cumplicidade de seus membros, em busca de proteção.
Dados encontrados anteriormente em Ziviani (2003, p. 154) de que
meninos negros apresentam um tempo, significativamente, mais longo
que seus pares em níveis iniciais para aprender a ler e a escrever se agre-
gam ao conjunto de dados dessa investigação, comprovando que profes-
sores e professoras controlam o cenário da instituição escolar, como se
não fosse direito dos meninos negros, seguidos pelas meninas negras, a
apropriação do papel de leitores(as) e escritores(as). Por isso, meninos ne-
gros foram encaminhados ao reforço escolar numa proporção três vezes
maior do que meninas. Pesam na relação entre docentes e estudantes as
representações que tanto uns quanto os outros têm de masculinidade e de
feminilidade. E constructos e estigmas acerca do conhecimento produzi-
do pelo estudante negro no ambiente escolar, quando o outro, em geral,
quem nega é o branco, não podem deixar de ser pensados como determi-
nações do grupo branco, que reluta em reconhecer o empoderamento do
grupo de estudantes negros, à medida que se apropriam da leitura e da
escrita, que é quando lhes aumenta a argumentação e o enfrentamento no
universo de contradições apresentadas pela escola.

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Inclusão e diferença: Estudo dos processos de exclusão e inclusão...

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identidade, branquitude e negritude

Ziviani, D. C. G. (2003). À flor da pele: a alfabetização de crianças negras entre


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da Escola Plural. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação,
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POLÍTICAS DA
SUBJETIVIDADE EM
POESIAS
NEGRO-BRASILEIRAS
Isabel Leslie Figueiredo de Menezes Lima

Este artigo pretende discutir subjetividades em poéticas negras tendo como


suportes teóricos teorias de construção de subjetividade relacionadas às
identidades raciais, como Fanon (2008); do feminismo negro, suas implica-
ções, diferenciações, como Figueiredo (2008), e questões de gênero, como
Beauvoir (1967). No decorrer da pesquisa se trabalha a poética negra e seus
entraves quanto ao cânone literário brasileiro, tal como, as possibilidades
de rasuras e diálogos.

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Introdução

Discutir subjetividade é uma tarefa bastante complexa, e suscita desdobra-


mentos em diversas questões. Partindo do lugar de fala de estudante e pes-
quisadora da negritude poética e seus entrecruzamentos e engendramentos
no currículo escolar, percebemos que a obra do intelectual e médico negro
martinicano Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas (2008), nos auxilia-
ria na reflexão de formas de pensar o ser negro. Dentre os aspectos subjacen-
tes à sua obra, destacam-se análises psicológicas de negro “emparedados” em
um sistema ocidental universalizante e excludente, que construiu conceitos
como “raça”, “etnia” e “cultura”, com o propósito de excluir uns (os não euro-
peus), e elevar outros (europeus) (Hernandez, 2005, p. 18-19).
Para dar maior suporte à pesquisa, demais textos, como a da intelec-
tual negra brasileira Ângela Figueiredo, em: “Dialogando com os estudos
de gênero e raça no Brasil”, que complementa a percepção das subjetivi-
dades em poéticas negras, as quais, no decorrer deste texto, serão discuti-
das. Esses “negros de todo o mundo”, ainda que geograficamente distantes,
aproximam-se diante de histórias, culturas, identidades. Dessa forma, o
discurso em prol da descolonização está presente em todos os textos (Fer-
reira, 1998).

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Políticas da subjetividade em poesias negro-brasileiras

A célebre frase de Steve Biko, encontrada no site do instituto cultural


do mesmo autor, ativista sul-africano, “a maior arma do opressor é a mente
do oprimido”, relaciona-se com o projeto colonial, e a percepção da força
que há nos discursos, sejam teóricos, literários, pós-coloniais de afirmação
identitária, pois é fundamental a tomada de consciência para uma posterior
libertação. O “eu que se quer negro”, termo referendado por Zilá Bernd
(1988), se apresenta nos textos das autoras supracitadas, alternando traços
das personae intelectuais, sua força e a ressignificação do conceito eurocên-
trico de belo.

Sou forte, sou guerreira,


tenho nas veias sangue de ancestrais.
Levo a vida num ritmo de poema-canção,
mesmo que haja versos assimétricos,
mesmo que rabisquem, às vezes,
a poesia do meu ser,
mesmo assim, tenho este mantra em meu
coração:
“nunca me verás caído ao chão” [...] (Ribeiro,
2004, p. 63).

[...] Se o cabelo é duro


cabe ao pente ser suave serpente
o fundamental dá beleza
a quem não tem preconceito
e conhece segredos da
CRESPITUDE (Minka, 1998, p. 74).

As poesias acima citadas são de Esmeralda Ribeiro e Jamu Minka,


poetas negros contemporâneos, paulista e mineiro, respectivamente, in-
tegrantes dos Cadernos negros, coletânea literária que funciona em forma
de regime cooperativo, uma saída encontrada por muitos escritores negros
aqui no Brasil para furar o bloqueio a eles imposto no meio editorial e fazer
suas obras chegarem ao leitor. A formação dos Cadernos negros foi uma
experiência necessária para que se formasse um coletivo que tornou pos-
sível reunir — como acontece até hoje — autores de todos os cantos do
país, definindo um método de trabalho que deixou mapeada a maneira de

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identidade, branquitude e negritude

escrever do negro, suas temáticas, suas buscas. Poéticas negras, como as


destacadas anteriormente, desconstroem estereótipos quanto à fragilidade
e submissão da mulher, também em relação à ideia do cabelo crespo como
categoria inferior, trazendo um olhar afirmativo à cultura e estética negra.
Destaca-se que a maneira de pensar dos poetas negros supracitados
ainda se constitui como exceção, já que, tal como a ideia de supremacia ra-
cial, a alienação colonial buscou baixar a autoestima do colonizado e deixá-
-lo preso às amarras, ora da exploração, ora do paternalismo colonial. O
colonizador, por sua vez, não pretendia ser visto pelo indígena como uma
mãe doce e bondosa, que protege o filho contra um ambiente hostil, mas
sob a forma de uma mãe que, a todo o momento, impede um filho funda-
mentalmente perverso de suicídio, de dar livre curso a seus instintos malé-
ficos (Fanon, 1979, p. 175).

Mayotte ama um branco do qual aceita tudo. Ele


é o seu senhor. Dele ela não reclama nada, não
exige nada, senão um pouco de brancura [...] é
preciso embranquecer a raça; todas as martini-
canas o sabem, o dizem, o repetem. Conhecemos
muitas compatriotas [...] que não poderiam
casar-se com um negro (ter escapado e voltar
atrás? Ah, não, obrigada!) (Fanon, 2008, p. 54).

Ângela Figueiredo, por sua vez, evidencia avanços alcançados com


movimentos negros, dando ênfase ao Ilê Aye e a concursos que objetivam
valorizar a beleza da mulher negra.
O diferencial deste é que vai de encontro a paradigmas de inferiori-
dade associados também ao fenótipo, tais como cor da pele, cabelos, bem
como a estereotipação do corpo da mulher negra, tida como mulher-ob-
jeto, à disposição da vontade masculina. Os mesmos enfatizavam a beleza
dos cabelos crespos, seja black power, trança, bem como as indumentárias.
As identidades de homem negro e mulher negra são resultados de
articulações em meio a heterogeneidades sociopolíticas, culturais, advin-
das do enfrentamento ante a dominação ocidental eurocêntrica.
A subjetividade negra, segundo Fanon (2008), apesar de se consti-
tuir como legítima defesa ante a ditadura da brancura, não deve eternizar

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Políticas da subjetividade em poesias negro-brasileiras

essencialismos, haja vista que esses foram utilizados para preterir sujeitos
como homens e mulheres negros fenotípica, cultural e socialmente. E, tal
como Simone de Beauvoir, quando mapeia possíveis comportamentos de
pessoas do sexo feminino, em estratégias de fuga ou acomodação a atitudes
tidas como “tipicamente femininas”, não se refere aos termos negro ou mu-
lher enquanto essência, imutáveis, mas enquanto valores construídos, que
precisam ser constantemente afirmados, e os estereótipos, desconstruídos,
mas em permanente construção.
“Ô meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona!” (Fa-
non, 2008, p. 191). Qualquer extremismo, tanto o essencialista, denunciado
por Fanon, ou a invisibilização ou negação do significado de estar homem
ou mulher, negro e não negro são problemáticos. Numa sociedade em que
o negro, é escravizado por sua inferioridade, o branco é escravizado pela
sua superioridade (Fanon, 2008, p. 26). Esta assertiva não pretende eter-
nizar o racismo, mas mediante algo ainda tão forte quanto raça enquanto
identidade, subjetivação, conforme Éle Semog pontua, nos versos a seguir:

Não é que eu
Seja racista...
Mas existem certas
Coisas
Que só os NEGROS
Entendem. [...]
Não é que eu
Seja racista...
Mas existe uma
História
Que só os NEGROS
Sabem contar
[...] Que poucos podem
Entender (Semog, 2005, p. 91).

Na poesia, consciente do trato racial ser direcionado ao questiona-


mento em torno das múltiplas faces do racismo presentes na sociedade,
vê-se pontuada a complexidade do ser; e viver a experiência de ter sido
massacrado em sua identidade, confundido em suas perspectivas, sub-
metido a exigências, compelido a expectativas alienadas. Mas também, e,

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identidade, branquitude e negritude

sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e re-


criar-se em suas potencialidades (Souza, 1983, p. 17-18).

Minha negritude não é uma pedra...


Ela mergulha na carne ardente do céu...

Por meio de discussões, objetivando agregar questões que tangem a negri-


tude, africanidade e diáspora afronegra, é percebido que, ao pesquisar a
poética afrodiaspórica escrita por poetas negros brasileiros, é fundamental
considerar os entrecruzamentos entre os poetas negros de outros cantos do
mundo, distanciados geograficamente, mas próximos histórico-identitaria-
mente (Ferreira, 1998). A poesia de Langston Hughes, poeta afro-norte-
-americano ilustra como o viés racial histórico agrega um eu-poético que
se quer negro e se afirma como tal.

[...] Eu sou o irmão mais escuro.


Eles me mandam comer na cozinha
Quando chega visita ...

Amanhã...
Ninguém se atreverá
A me dizer.
“Vai comer na cozinha”...

Eles verão como sou belo


E ficarão envergonhados... (Hughes citado por
Bernd, 1988a, p. 23-24).

Durante o desenvolvimento do projeto, discussões de orientação,


leituras e análise de trabalhos teóricos, como os de Zilá Bernd (1988),
Kabengele Munanga (2006), Murilo da Costa Ferreira (1998), obtive con-
tato com o ideário da negritude, um sentimento e ação de identidade e
pertencimento à raça negra, desconstruindo o imaginário da brancura
como ideal e trazendo os falares crioulos e as religiões tradicionais afri-
canas como resistência a questões como as pontuadas por Fanon (2008).

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Políticas da subjetividade em poesias negro-brasileiras

A intelectual negra, carioca de adoção, Lélia Gonzales, citada por Sil-


viano Santiago (1988) denuncia que, quanto mais estudava, mais rejeitava
sua condição de negra, e afirma que, apesar de terem bastante consciência,
filosófica, política, cultural, os negros paulistas, tal como os afro-norte-
-americanos, têm sua base cultural reprimida. A indignação de Gonzales
é compatível com o fato de questões fundamentais para se compreender
aspectos de memória, ancestralidade e identidade, serem muitas vezes ig-
noradas por intelectuais negros.
Desrecalcar a base cultural negra não significa voltar ao continen-
te africano... “Nós aqui, no Brasil, temos uma África conosco, no nosso
cotidiano. Nos nossos sambas [...]”, afirma Gonzales. Sua fala política se
encaminha para a negociação pelas trocas culturais entre negros, brancos
e indígenas, com vistas a um Brasil que seria representado não mais como
unidade, mas miscigenado, multicultural, porque não há como negar “[...]
a dinâmica dos contatos culturais, das trocas etc.” (Gonzales citado por
Santiago, 1998, p. 07-08).
Alguns movimentos-chave para se entender e falar de resistência e
negritude são pontuados por Bernd (1998b). Como a Revolução Indigenis-
ta, movimento ocorrido no Haiti, com a participação de intelectuais como
Price-Mars, que fomentou, em conjunto a outros intelectuais, um movi-
mento de reabilitação da herança cultural africana, valorizando as línguas
crioulas. Ou o Renascimento Negro do Harlem, que contou com a parti-
cipação de intelectuais como Langston Hughes, Claude Mackay e Richard
Wright, com o objetivo de conscientizar as massas de negros sobre seus
direitos como cidadãos e repensar o que vem a ser a África para si e ressig-
nificar as expressões culturais, incorporando faces negras africanas e afro-
-diaspóricas a suas literaturas, e o Negrismo Cubano, tendo como principal
representante o poeta negro cubano, Nicolás Guillén.
Esses foram alguns dos movimentos que propiciaram entre os es-
tudantes franceses negros afrodescendentes e entre os demais intelectuais
negros a percepção de tamanha assimilação e preconceito, pois, mesmo es-
tudando em universidade europeia, utilizando uma outra língua com pro-
priedade e zelo, eram considerados inferiores por serem negros.
O movimento Negritude é responsável por engajamento e emba-
tes ideológicos, culturais, corroborando com manifestações, tais como

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identidade, branquitude e negritude

marronnage, no Caribe; cimmarronage, na América Hispânica, e quilom-


bismo, no Brasil, resistências na busca pela afirmação da identidade negra.
Zilá Bernd (1988a) afirma que, em paralelo à concepção da pan-africanida-
de, a Negritude, que teve como seus principais idealizadores, Aimé Césaire,
da Martinica, Lépold Sedar Senghor, do Senegal, e Léon Damas, da Guiana
Francesa, objetiva trazer ao centro leituras, vivências de populações das di-
versas etnias africanas, como banto, iorubás, pigmeus, mandingos, masais
e zulus, não objetivando uniformizá-las, mas dar voz, unir forças a estas
identidades culturais, sociais, até então marginalizadas.

[...] Minha negritude não é uma pedra


E sua surdez arremessada contra o clamor do
dia
Minha negritude não é uma gota d`água morta
Sobre o óleo morto da terra
Minha negritude também não é uma torre ou
uma catedral
Ela mergulha na carne vermelha do solo
Ela mergulha na carne ardente do céu [...]
(Césaire citado por Bernd, 1988b, p. 29).

Rasurando os livros de cabeceira da crítica

Luís Gama, Cruz e Souza e Solano Trindade são os autores negros com os
quais irei dialogar para ampliar o estudo com o cânone, as contranarrati-
vas e subjetividades, diretamente relacionadas à maneira das escritas dos
autores negros supracitados, estarem estereotipados ou (in)visíveis nos li-
vros didáticos.
Luís Gama, poeta, advogado e abolicionista mestiço. “Orfeu de ca-
rapinha”, como se denomina, com sua profissão e militância alforriou mais
de quinhentas pessoas. Afro-descendente, de mãe negra militante, Luísa
Mahin, uma das líderes na Revolução dos Malês ‒ revolução negra em ter-
ras brasileiras no contexto da escravidão, ocorrida na noite do dia 24 para
25 de janeiro de 1835, em que um grupo de africanos escravizados e liber-
tos (malês, de origem muçulmana) ocupou as ruas da cidade de Salvador,

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Políticas da subjetividade em poesias negro-brasileiras

e durante mais de três horas enfrentou soldados civis armados ‒, e filho de


pai branco, afortunado, mas que contraiu dívidas e o vendeu como escravo.
Gama inaugura na poesia brasileira um eu-poético negro, afirmati-
vo. Mesmo com potencial literário, tem a “sorte” diferente da de seu con-
terrâneo, o “poeta dos escravos”, Castro Alves. Tais distinções quanto à
visibilidade são coerentes com o conceito de belo e literário para o cânone
literário que, é racista e se pretende universalizante, desconsiderando as
causas e vozes dos marginalizados pela sociedade.

Se negro sou, ou sou bode,


Pouco importa. O que isso pode?
Bodes há de toda casta,
Pois a espécie é muito vasta...
Gentes pobres, nobres gentes
Em todos há meus parentes...
Cesse pois a matinada,
Porque tudo é bodarrada! (Gama citado por
Bernd, 1992, p. 20-21).

A escolha de Cruz e Souza se deu em meio a uma revisão epistemo-


lógica e bibliográfica. Durante muito tempo, o que ouvia e lia sobre o poeta
era sua obsessão pela cor branca e a negação da identidade negra, assim
como que, por ser negro, sofrera discriminação.
A discussão propiciada pela poesia de Cruz e Souza e que precisa ser
revisada é a indiferença quanto à identidade racial.

Eu tinha de olhar do homem branco nos olhos.


Um peso desconhecido me oprimia. No mundo
branco o homem de cor encontra dificuldades
no desenvolvimento de seu esquema corporal...
Eu era atacado por tantãs, canibalismo, deficiên-
cia intelectual, fetichismo, deficiências raciais...
Transportei-me para bem longe de minha pró-
pria presença... O que mais me restava senão
uma amputação, uma excisão, uma hemorragia
que me manchava todo o corpo de sangue ne-
gro? (Fanon citado por Bhabha, 1998, p. 72-73).

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identidade, branquitude e negritude

Tal era a situação vivenciada por Cruz e Souza, poeta negro, nasci-
do em Desterro, atual Florianópolis, filho de pais escravizados, foi criado
pelos senhores de seus pais, tendo, portanto, uma educação burguesa e
branca. Jornalista e militante abolicionista, estreando como poeta aos 24
anos, com a publicação de Tropos e Fantasias. Diante de tal histórico, de
maneira similar ao que ocorreria com outros intelectuais da negritude,
como Senghor e Césaire, pois, apesar de grande inteligência e muito co-
nhecimento da cultura, história, filosofia ocidental, sempre ganhou salá-
rio inferior a de seus colegas brancos, e mesmo tendo sido o precursor
do simbolismo no Brasil, morreu desconhecido e pobre, em 1898. Tal
vivência de exclusão e dor não tinha como não aparecer em sua literatura,
aspecto que ele evidencia em “Emparedado”.

Ah! Noite! Feiticeira Noite! [...] Dessa África cheia


de solidões maravilhosas, de virgindades animais
instintivas, de curiosos fenômenos de esquisita
Originalidade, de espasmos de Desespero. [...]
Se caminhares para a direita baterás e esbarra-
rás ansioso, aflito, numa parede horrendamente
incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se
caminhares para a esquerda, outra parede, de
Ciências e Críticas, mais alta do que a primei-
ra, te mergulhará profundamente no espanto!...
Mais pedras, mais pedras! E as estranhas pare-
des hão de subir, — longas, negras, terríficas!
Hão de subir, subir, subir mudas, silenciosas,
até às Estrelas, deixando-te para sempre per-
didamente alucinado e emparedado dentro do
teu Sonho [...] (Souza citado por Bernd, 1992,
p. 31-34).

Conforme verificamos no fragmento da poesia de Cruz e Souza, ser


negro em um país cuja questão racial ainda possui entraves, como o Brasil,
e, no caso focalizado por Fanon, Martinica, propicia inúmeros sentimentos
contraditórios, conforme vê-se em Fanon (2008, p. 106): “— Olhe, o pre-
to!... Mamãe, um preto!... Cale a boca, menino, ele vai se aborrecer! Não
ligue, monsieur, ele não sabe que o senhor é tão civilizado quanto nós...”

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Políticas da subjetividade em poesias negro-brasileiras

Solano Trindade é um artista em potencial, nasceu em Recife, filho


de mãe quituteira e pai sapateiro, poeta, pesquisador de tradições populares
brasileiras, teatrólogo, pintor. Fundou o Teatro Popular Brasileiro e, junto
com Abdias do Nascimento, o Teatro Experimental do Negro. Diante de tal
histórico, é no mínimo estranho, o silêncio da crítica literária a seu respeito,
pois recebeu elogios de personalidades consagradas, como o poeta Carlos
Drummond: “Há nesses versos uma força natural e uma voz individual rica
e ardente que se confunde com a voz coletiva”. Canta o povo negro, sua
ancestralidade, identidades, suas lutas, além de ir de encontro à arte preo-
cupada tão somente com a estética, a chamada não engajada. Declara em
sua mais conhecida poesia, “Canto aos Palmares”, ser seu poema simples,
como a própria vida.

Eu canto aos Palmares


sem inveja de Virgílio, de Homero e de Camões
porque o meu canto é o grito de uma raça
em plena luta pela liberdade!

Há batidos fortes
de bombos e atabaques em pleno sol
Há gemidos nas palmeiras
soprados pelos ventos...

Eu canto aos Palmares


odiando opressores
de todos os povos
de todas as raças
de mão fechada contra todas as tiranias! [...]
(Trindade, 1981, p. 23).

Negros de todo o mundo... Eu vos acompanho


pelas emaranhadas áfricas do vosso rumo...

“Mas por que você pesquisa acerca deste tema?” “Por que literatura negra?”
“Existe classificação em literatura?” Essas são algumas das questões que já

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identidade, branquitude e negritude

me fizeram, ou, inclusive, que eu mesma já me perguntei. Lendo uma ci-


tação de Octavio Paz, tal como as obras de Frantz Fanon, Neusa Santos
e Jurema Werneck, alguns obstáculos epistemológicos começaram a fazer
ainda mais sentido: “A compreensão dos outros é um ideal contraditório:
ela exige que mudemos sem mudar, que nos tornemos outros sem deixar de
ser nós mesmos” (Paz, 1988, p. 15).
Faz-se necessário, ao se falar de negritudes poéticas que não caia-
mos na problemática de exigir o “genuíno”, “autêntico”, que possibilita uma
mistificação ou endeusamento dessas poéticas, mas sim que saibamos que
há, como em todas as relações sociais, umas com mais, outras com menos
intensidade, presenças, interferências, relações, trânsitos socioétnicos,
ideológicos, culturais. E que também não podemos desconsiderar a pecu-
liaridade do local de fala, as relações de poder que circundam, os choques,
atritos, e, através dessas ambivalências, como fez Tenreiro, Hughes e mui-
tos escritores africanos e africanistas, posicionar-se de maneira a reverter,
através do discurso, do protesto, da denúncia, os discursos hegemônicos.

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Políticas da subjetividade em poesias negro-brasileiras

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DISCURSOS E
REPRESENTAÇÕES
EM MULHERES
AFRODESCENDENTES NA
LUTA CONTRA A DEPRESSÃO
Modesto Leite Rolim Neto
Saulo Araújo Teixeira

As narrativas do adoecimento carecem de respostas mais humanas ao tra-


duzirem o tempo e o espaço das histórias de vida circunscritas à dor e ao
sofrimento psíquicos. Por isso, este trabalho avalia a importância delas, so-
bretudo no que concerne às experiências da depressão em mulheres afro-
descendentes. Através do uso de uma abordagem qualitativa, voltada para
o estudo dos discursos leigos sobre depressão, as narrativas foram analisa-
das a partir da perspectiva das informantes, e de acordo com os critérios
diagnósticos do DSM-IV. As narrativas das mulheres depressivas consubs-
tanciam traços factuais vividos no adoecimento, bem como uma estrutura
enunciativa inserida na prática particular e social de cada uma delas. Na
interação médico-paciente, há ainda uma inadequação da compreensão
semiótica das narrativas que é guiada pela perspectiva científica, sendo fre-
quentemente excluída a perspectiva do senso comum numa relação hierár-
quica de saberes.

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Introdução

É graças à linguagem que o homem percebe o mundo e expressa a realida-


de, e foi Kant quem a ela conferiu um potencial jamais atingido, quando
substituiu o interesse na questão ontológica pelo interesse epistemológico
que valorizava os aspectos metafísicos nela contidos. Já Nietzsche defendia
que o homem não é um descobridor de “verdades” independentes de seu
desejo de poder ou de seu instinto de sobrevivência, mas sim um produtor
de significados e, portanto, de conhecimentos que se consagram através das
convenções que disciplinam os homens em grupos sociais (Rajagopalan,
2003). É nesse contexto, em que o homem é entendido como ser responsá-
vel pela produção de um conhecimento resultante de seus questionamen-
tos metafísicos, profundamente regidos por convenções sociais, que esse
trabalho busca avaliar a importância das narrativas de depressão em mu-
lheres afrodescendentes no Nordeste do Brasil, de acordo com os critérios
diagnósticos do DSM-IV, e o papel que elas exercem ou deveriam exercer
na relação hierárquica médico-paciente, em que o conhecimento científico
e o do senso comum duelam no ato de traduzir as realidades objetiva e
subjetiva.
As narrativas da depressão, incluídas nos aspectos nucleares do con-
texto discursivo de mulheres afrodescendentes, carecem de respostas mais

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Discurso e representações em mulheres afrodescendentes...

humanas ao traduzirem o tempo e o espaço das histórias de vida circuns-


critas à dor e ao sofrimento psíquicos, considerando como relevante sua
identificação às experiências vivenciadas na doença pelas pacientes. Nesse
sentido, aproximar-se da noção de narrativa como uma forma entre outras
de manifestação do pensamento e de sua comunicação entre os seres hu-
manos, é entendê-la, não como um desvio ou deformação do narrado, mas
como extensão de códigos de uma cultura que dota a realidade da possi-
bilidade de ser narrada (Cardoso; Camargo Jr. & Llerena Jr., 2002). Assim,
as narrativas, como formas de recapitulação das histórias intercruzadas aos
itinerários do adoecer, captam não só o dito, mas também a referência que
as pacientes utilizam ao revelar seus infortúnios. Essa referência é a apreen-
são da visão de mundo, ou seja, dos pressupostos que elas utilizam para
definir e delimitar suas experiências (Silva & Trentini, 2002). Pressupostos
são premissas que, na maioria das vezes, não são ditas, mas que são viven-
ciadas, e que se mostram nas ações, orientando também as análises que o
indivíduo faz de suas experiências. Desse modo, os pressupostos também
se evidenciam naquilo que é selecionado para ser contado e naquilo que é
valorizado nesse contar (Silva & Trentini, 2002).
A possibilidade do contar histórias é, portanto, um identificador da-
quilo que a paciente em seu discurso procura enunciar (Ricouer, 1995),
tendo como pressuposto descrever, expressar ou representar as experiên-
cias do adoecimento (Cardoso; Camargo Jr. & Llerena Jr., 2002). Muitas
vezes, essas experiências são remetidas a uma rede complexa de exames e
diagnósticos que dificultam a interpretação por parte da paciente em ser
reconhecida em sua fala, não justificando seu lugar de agente divulgador de
informações sobre a experiência do adoecer. Nesse sentido, como a pers-
pectiva do médico que dirige a interação é distinta da do paciente, convém
definir como o problema de saúde é interpretado pelo primeiro, que se dá
dentro de uma nomenclatura e de uma taxonomia particulares, que consti-
tuem a nosografia médica (Lira; Catrib & Nations, 2003).
Faz-se importante trazer a atualidade do tema à relação médico-pa-
ciente, sobretudo por implicar saberes que são sobrepostos às narrativas
de mulheres afrodescendentes mediante relatos, indagações e encaminha-
mentos àquilo que adquire forma de verdade. A possibilidade de escuta e
acolhimento de outras histórias através das mesmas palavras que se vinham

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identidade, branquitude e negritude

pronunciando na busca de uma verdade homogeneizante, impõe a circula-


ção do sujeito por diferentes dispositivos e circuitos de produção de subje-
tividades tramadas por entre outras verdades e certezas, pondo em questão
aquelas através das quais pretensamente esses sujeitos vinham-se consti-
tuindo (Mairesse & Fonseca, 2002). No âmbito da interação subsidiada en-
tre o médico e o paciente, evidencia-se uma inadequação da abordagem
semiótica que aí tem lugar e que é dirigida precipuamente pela perspectiva
do médico, sendo excluída a perspectiva do doente, a sua experiência do
adoecer e, em consequência, suas narrativas (Lira; Catrib & Nations, 2003).
Concordando com Oliveira (2004), a medicina baseada em evidên-
cias demonstra que algumas doenças são mais comuns ou mais frequentes,
ou evoluem de forma diferenciada em determinados agrupamentos hu-
manos raciais ou étnicos, conforme determinadas interações ambientais e
culturais com o patrimônio genético. Relembrando que humanos são seres
biológicos regidos também por leis biológicas, urge considerar que há uma
produção social da enfermidade, ou da manutenção da sanidade, nas con-
dições das sociedades de classes, da opressão racial ou étnica e da opressão
de gênero. Diante do exposto, o significado político de se dar visibilidade
aos dados da morbidade e da mortalidade, segundo sexo ou gênero e raça
ou etnia, é incomensurável.

Métodos

O universo do estudo compreendeu 220 pacientes, do sexo feminino, na


faixa etária de vinte a 59 anos, atendidos no Hospital Municipal de San-
ta Cruz, localizado no interior da Paraíba, Nordeste do Brasil. Através
do uso de uma abordagem qualitativa, voltada para o estudo dos discur-
sos leigos sobre depressão, as narrativas orais com fins de pesquisa so-
cial (Jovchelovitch & Bauer, 2002; Lamnek, 1989; Hatch & Wisnieswski,
1995; Riesman, 1993; Flick, 1998) foram analisadas a partir da perspecti-
va do informante (Schutze, 1977, 1983). A amostra proposital (purposeful
­sampling) foi composta por 120 pacientes, por apresentarem um perfil de
inclusão propício à contextualização da narrativa, a partir da compreensão
dos discursos de mulheres afrodescendentes com depressão.

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Discurso e representações em mulheres afrodescendentes...

As pacientes elegíveis foram encaminhadas pela equipe para o apoio


psicológico por apresentarem características sintomatológicas depressivas,
baseadas em critérios diagnósticos do DSM-IV, estarem no acompanha-
mento clínico ou psiquiátrico e assinarem o Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido. Um diário de campo subsidiou os registros das informações
pertinentes ao adoecimento, tanto nos seus aspectos vivenciais de dor e
sofrimento psíquicos como socioculturais; utilizamos como instrumentos
para a coleta de dados a entrevista narrativa (Jovchelovitch & Bauer, 2002),
aplicada pelos próprios pesquisadores. A observação do participante com-
plementou a inclusão e o acompanhamento dos pacientes, e, através do
Teste de Associação Livre de Palavras, foram rastreadas as variáveis clíni-
cas, diagnósticas e psicológicas.
Nossos procedimentos foram delineados pelo Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido, entrevistas individuais, transcrição na íntegra das entrevis-
tas e detalhamento das expressões verbais, além da divisão do texto em ma-
terial indexado e não indexado, agrupamento e identificação das trajetórias
individuais, estabelecimento de semelhanças e identificação das trajetórias co-
letivas (Jovchelovitch & Bauer, 2002). A análise temática e a cartografia social
nortearam gráfica e teoricamente as interpretações das narrativas.

Resultados

Observou-se que o fator de risco emocional determinante na depressão das


mulheres afrodescendentes foi a história de distúrbios psiquiátricos prévios
(79,5%), interligados à suas respectivas idades. Os indicadores psicosso-
ciais evidenciaram associação aos fatores econômicos (89,9%), assim como
aos eventos estressantes ligados à pobreza, carência de suporte social e seca
(65,78%). É importante salientar que suas narrativas consubstanciam tra-
ços factuais vividos no adoecimento, bem como uma estrutura enunciativa
inserida na prática particular e social de cada uma delas. A seguir, encon-
tra-se o relato de uma paciente com 57 anos acerca da depressão:

[...] acordo chorando e durmo gemendo de agonia.


É um negócio que vai e volta, uma coisa esqui-
sita. Parece fogo dentro da cabeça, queimando a

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identidade, branquitude e negritude

vida da gente, é como no período das queimadas,


destruindo a mata, no tempo das “brocas” quan-
do agente precisa plantar.

A narradora faz um parâmetro metafórico entre atos da sua vida


cotidiana, adstritos à agricultura, relacionando-a ao fenômeno depressivo
que a acomete. Seu discurso reconfigura os males da paciente naquilo que
dá sentido aos seus padecimentos; ela reconhece a doença como algo cícli-
co, que vai e volta, “queima e apaga”, mas que nunca chega a um fim.
Como se observa, torna-se aparente no discurso da paciente, que, ao
ser escutada, diz o que sente e quer sentir, reconhece ser depressiva e quer
deixar de ser naquele momento, uma vez que apreende como a doença lhe
transforma, contudo não consegue dominá-la. A necessidade de recontar
essas histórias sublinha os modos pelos quais as noções de saúde e doença
são culturalmente produzidas (Cardoso; Camargo Jr. & Llerena Jr., 2002).
Esse recontar também revela uma poética da vida social vinda de uma fon-
te inesperada, ou seja, do senso comum, mas que se configura como uma
retórica do encantamento na tentativa de expressar a realidade de forma
subjetiva em um contexto objetivo e científico.
Outro depoimento expressa a relação conflituosa de uma mulher, na
função de emissora de uma mensagem que comumente não tem sua deco-
dificação feita apropriadamente pelo médico receptor, em relação ao tempo:

A vida é lenta, e tudo passa devagar. Nada chama


a atenção. Só o quarto presta, só a cama salva.
Não tenho plano: para que sonhar? Vivo o tempo
todo desse passado. Ninguém entende você. Você
mesmo não entende. O entendimento é compli-
cado. É solidão, medo, angústia de morrer.

Nesse momento, o fenômeno depressivo tem um confronto excessi-


vo e incômodo com o tempo, no sentido de reconduzir a mulher a situações
passadas, e então questionar uma diversidade de fatos e episódios que lhe
foram satisfatórios, para estabelecer um elo comparativo entre o que foi e
o que é agora e também o que não será mais. Por fim, há a incessante bus-
ca de uma verdade e de uma resposta por parte da paciente àquilo que é

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Discurso e representações em mulheres afrodescendentes...

considerado inexplicável ao seu adoecimento. Nessa perspectiva, a mulher


depressiva cria uma enunciação própria e peculiar à sua doença. Assim,
o médico, revestido da condição de receptor e decodificador, é a pessoa a
quem é direcionada esta mensagem, para ser traduzida em uma simbologia
que proporcione compreensão e conforto, bem como para ser transforma-
do em um diálogo comprometido que enfatize a narrativa.
Outro caso é o de uma paciente de trinta e oito anos, com histórico de sui-
cídio que assim desabafa:

A rosa do meu jardim não floriu, ficou só o ga-


lho querendo viver. Tenho sede. Desde que esta
doença chegou, a vida perdeu o sentido para
mim. É muito ruim perder o que você poderia ter
vivido mais. Tenho medo dos meus pensamentos.
O mundo é assim, uns com seus jardins cheios, e
outros sem adubo. Dizem que tenho depressão...
sou como um maracujá, cheio de rugas. O vazio
é tão grande!

Outra paciente, de 42 anos, revela: “Sou nervosa, acho que meu lu-
gar no mundo não existe mais. É coisa ruim. É tremura no corpo, é como
soda cáustica comendo a gente por dentro. Vivo perambulando de médico
em médico”.
Como se percebe, o discurso dito denota a ideia criada em torno da
depressão, conferindo-lhe um caráter de abandono e incertezas. Esse senti-
mento de dúvida, que causa temor e irresignação na vida da mulher depres-
siva, encontra-se estampado em seu discurso, ora quando busca a verdade,
a resposta, a saída do aprisionamento patológico, ora quando encena uma
retórica arraigada de emoções, ficção e mítica.
Os termos ou códigos utilizados pelas pacientes, todavia, denotam
saberes populares inseridos no seu cotidiano. Quando elas afirmam que
a depressão é “como um maracujá”, “como soda cáustica”, na tentativa de
definir a situação de incômodo causada pela depressão, tem-se a associação
entre os dialetos e alegorias regionais com o discurso, funcionando como
mitopráxis, algo que funde a história local numa multidão de símbolos —
alegorias e metáforas —, através da qual a história adquire sentido para os

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identidade, branquitude e negritude

que dela participam, e, por sua vez, oferece ao investigador os sinais para
realizar o exercício interpretativo (Lima, 2003).

Discussão

Nessa perspectiva de mitopráxis, as narrativas das pacientes não se re-


sumem ao singelo e único ato de dizer e compreender sua doença, elas
também contêm um sentido socialmente particularizado, face ao que é
evidenciado nas vivências e interpretações com o outro, daí a busca por
decodificadores para restabelecer uma conexão discursiva que possa tra-
duzir a intensidade do sofrimento (Laqueur, 1992; Kleinman, 1988). Nessa
direção, as pacientes que cedem seu discurso depressivo, mostram como a
retórica da doença e seus sentidos acoplados à dor e ao sofrimento psíqui-
cos (re)contam histórias capazes de determinar as formas de interpretação
dos episódios vividos.
Enfatizando a relação entre os sujeitos, as narrativas reportam-se ao
tempo e ao espaço essenciais à compreensão das experiências de aflição
mental. O tempo da doença — tempo socialmente inscrito — e do espaço
ou contexto da pluralidade dos acontecimentos e das relações sociais esta-
belece as referências culturais que permitem o suporte aos doentes mentais,
ou a sua “evitação” e o seu estigma, e também a adesão a determinadas
formas de tratamento em que a humanização sirva como referência numa
constante troca e negociação dos significados das experiências narradas
(Rabelo; Alves & Sousa, 1999; Nakamura, 2002).
Assim, as narrativas, como parte integrante do discurso das mu-
lheres afrodescendentes, possuem uma disposição analítica demasiada no
processo de interpretação do fenômeno depressivo. Contudo, cabe ao saber
médico priorizá-las, oferecendo-lhes uma “escuta” diferenciada do conven-
cional, ou seja, uma predisposição para decodificar adequadamente essas
mensagens, presenteando-lhes com a compreensão do dito e do interdito,
pois a descrição sobre os processos de adoecimento e de tratamento dos
transtornos mentais adquire vida fundamentalmente na voz, sob a forma
de narrativa, daqueles que compartilham a experiência de identificar, ex-
plicar e reagir à doença mental (Rabelo; Alves & Sousa, 1999). Essas vozes

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Discurso e representações em mulheres afrodescendentes...

por vezes comportam a relação entre ser depressiva e (re)contar a sua


história, frente ao tempo e ao espaço do seu quadro clínico. Para Oliveira
(2004), o caráter social e histórico das doenças é amplamente demons-
trado através da história de vida das pessoas, e está intimamente vincu-
lada ao sexo (ao privilégio ou desprivilégio de gênero); à raça ou etnia
(à vivência ou não do racismo).

Conclusão

Cabe ao médico, na condição de receptor-decodificador, filtrar e encontrar


nesse discurso peculiar às mulheres afrodescendentes — nos quais a doen-
ça se manifesta — a compreensão da realidade vivida, considerando-a ao
mesmo tempo no seu parecer, visto que a depressão possui seu diagnósti-
co preestabelecido, mas torna-se estranha à paciente quando seu discurso
não é bem interpretado ao saber clínico na relação hierárquica de saberes.
Essa estranheza paira no campo das histórias não ecoadas, resguardadas no
silêncio da dor, na emoção e, sobretudo, no caráter eminentemente avas-
salador da doença. Ao determinar o diagnóstico, a interpretação clínica
pode aproximar-se às histórias envolvidas ao percurso do adoecimento,
isto facilitaria entender a dor psíquica experimentada pela depressão. Nes-
se sentido, o discurso demarcaria a existência de uma verdade que se busca
traduzir numa possibilidade de escuta aos instantes em suspenso (Foucault,
1971) circularizados pela doença.
A racionalidade do diagnóstico deve ser permeada de humanização,
no intuito de resgatar a escuta comprometida, a fim de interligar “ins-
tantâneos”, montando sequências e elos causais (Cardoso; Camargo Jr. &
Llerena Jr., 2002) ao resultado da dor e do sofrimento psíquicos da mulher
depressiva. Nesse processo, o saber racional não se confronta com o apelo
retórico, mas dele tira proveito para enriquecer a definição do diagnóstico.
No campo da oralidade, é necessário marcar os elementos norteado-
res da ordem discursiva, no sentido de transferir ao contexto uma possibi-
lidade de compreensão de verdades almejadas, a partir de uma tendência
real, efetiva, prática e emocional. Portanto, o discurso contempla o que, efe-
tivamente, é dito e o que está para ser dito, ele é, na sua realidade material

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identidade, branquitude e negritude

de coisa pronunciada ou escrita, uma inquietação em face desta existên-


cia transitória, destinada, sem dúvida, a apagar-se. É uma inquietação por
sentir nessa atividade, quotidiana e banal, poderes e perigos que sequer se
pode tentar adivinhar e a inquietação pela suspeita das lutas, das vitórias,
das feridas, das dominações e das servidões que atravessam tantas pala-
vras, em cujo uso há muito se reduziu às suas rugosidades (Foucault, 1971).
Desse modo, o discurso das mulheres afrodescendentes constitui-se como
forma expressiva, material, palpável à tradução de determinadas verdades
e realidades, a partir da persecução de critérios de análises norteadores do
ato de dizer a palavra e nela estar contida a veracidade do que se sente,
do que se vive e do que se busca enquanto possibilidade de cura. Nesse
sentido, o inconsciente coletivo marcado pelo racismo e sexismo, manifes-
tado através dos preconceitos, estereótipos e discriminação, é gerador de
situações de violência física e simbólica, que produzem marcas psíquicas,
ocasionam dificuldades e distorcem sentimentos e percepções de si mesmo
(Silva, 2004).
Essa relação com o dizer estabelece no discurso um paralelo entre o
científico e o senso comum, conferindo um lugar interpretativo específico
no modo como os saberes são articulados à ordem da dor e do sofrimento
do outro. Nesse sentido, na relação médico-paciente, percebe-se a necessi-
dade de que a verdade se desloque do ato ritualizado de enunciação para
uma dialética real e comprometida com a sua forma, o seu objeto, a sua
relação à referência (Foucault, 1971). A análise discursiva, portanto, con-
siste em identificar, na palavra dita, aquilo que é valorizado nesse contar
(Cardoso; Camargo Jr. & Llerena Jr., 2002), tendo como suporte a escuta
comprometida da palavra (Foucault, 1971). Considerando, entretanto, que
o ato de contar acontece como se o emissor estivesse mostrando a situação
vivenciada, primorosa é a nivelação que esses dados impõem no intercruza-
mento dos saberes na veracidade imbuída nesta narrativa. Nesse sentido, o
diagnóstico da depressão, através do campo da narrativa do ser depressivo,
após lida e polida profissionalmente pelo médico decodificador, é encarado
como doença, e então, naturalmente, assume uma postura estabelecida de
critérios, parâmetros e diretrizes.
Face ao exposto, é importante elucidar o que Silva (2004) sublinha
ao afirmar que no Brasil não existem dados precisos sobre a prevalência

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Discurso e representações em mulheres afrodescendentes...

dos transtornos mentais na população negra, o que se deve a dois fatores:


primeiro, a não coleta por parte dos profissionais da saúde do quesito cor na
ficha dos usuários dos serviços, e, segundo, quando coletado, a não análise
desses dados pelo Ministério da Saúde através do DATASUS, do Departa-
mento de Informática do Sistema Único de Saúde. No entanto, o aumento
da pressão emocional determinado pela reestruturação do setor produtivo
na vida moderna e a consequente diminuição do emprego, as precárias con-
dições de vida, a discriminação racial, entre outras, são fatores de exposição
de um grande número de pessoas ao sofrimento mental.
É interessante notar nesse momento que a análise do discurso das
mulheres afrodescendentes sobre a depressão é pautada em uma ordem
enunciativa, por intermédio de uma prática social preestabelecida e que
desperta interesses, sonhos, desejos e repugnações. Mesmo quando não re-
conhecem ser depressivas, elas mostram traços da doença através da forma
como discursam sobre acontecimentos, dando-lhe um significado próprio
de quem possui depressão. Dessa forma, esses traços ocorrem como práti-
cas que formam sistematicamente os objetos que falam (Foucault, 1986).

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BRANQUITUDE: A
IDENTIDADE RACIAL
BRANCA REFLETIDA
EM DIVERSOS OLHARES
Lia Vainer Schucman

Este artigo tem como objetivo fazer uma breve análise conceitual e históri-
ca sobre os estudos da branquitude. Para isso, primeiramente, apresento os
estudos precursores de Du Bois, Frantz Fanon, Albert Memmi e Guerreiro
Ramos, seguidos de uma abordagem conceitual dos estudos críticos sobre
a branquitude (critical whiteness studies), em que se situam autores como
Steyn, Frankenberg, Roediger, Ware, Bento, entre outros, e por último apre-
sento como a branquitude se apresenta no contexto brasileiro. A revisão
bibliográfica sobre o tema é importante para pensar que a branquitude pre-
cisa ser considerada posição de poder construída na confluência de even-
tos históricos, dependendo do país, região, interesses políticos e época em
que as categorias sociológicas de etnia, cor, cultura e raça se entrecruzam,
colam e se descolam umas das outras conforme a história do local. Con-
tudo, apesar de ser construída sócio-historicamente de formas diferentes
em cada lugar do globo, a tese unificadora de diferentes autores aponta que
a branquitude foi construída como uma posição racial de dominação em
relação a outros grupos racializados, em que sujeitos considerados brancos
obtêm privilégios materiais e simbólicos.

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Introdução1

A partir da década de 1990, os estudos sobre raça e racismo nos Estados


Unidos começaram a mudar seu enfoque, e novos olhares sobre o tema
começaram a surgir. O movimento de mudança nestes estudos se deu
quando os olhares acadêmicos das ciências sociais e humanas se deslo-
caram dos “outros” racializados para o centro sobre o qual foi construída
a noção de raça, ou seja, para os brancos. Estes novos enfoques foram
chamados de estudos críticos sobre a branquitude (critical whiteness stu-
dies). Apesar de os Estados Unidos serem pioneiros nos estudos sobre
branquitude, encontramos produções acadêmicas sobre essa temática na
Inglaterra, África do Sul, Austrália e Brasil (Cardoso, 2008).
O fato de os estudos sobre branquitude se formarem como um campo
de estudo transnacional e de intercâmbio entre ex-colônias e colonizadores
corresponde à cadeia de fatos históricos que começa com o projeto mo-
derno de colonização, que desencadeou a escravidão, o tráfico de africanos
para o Novo Mundo, a colonização da África e da América e as formações e

1
Esta revisão dos primeiros estudos sobre branquitude pode ser encontrada com maior
detalhamento na tese de Lourenço Cardoso (2008), o primeiro trabalho a fazer um estudo da arte
sobre branquitude publicado em português; bem como parte deste texto pode ser encontrado
em minha tese de doutorado (Schucman, 2012).

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Branquitude: A identidade racial branca refletida em diversos olhares

construções de novas nações e nacionalidades em toda a América. Portanto,


são nestes processos históricos que a branquitude começa a ser construída
como um constructo ideológico de poder, em que os brancos tomam sua
identidade racial como norma e padrão, e, dessa forma, outros grupos apa-
recem ora como margem, ora como exóticos, ora como desviantes e ora
como inferiores. Apesar de os estudos críticos sobre a branquitude terem
emergido nos Estados Unidos, na última década do século passado, e no
Brasil serem datados do início do século presente, alguns autores mais anti-
gos foram precursores para se pensar a identidade racial branca.

Branquitude: os estudos precursores

Nos Estados Unidos da América, o sociólogo, historiador, filósofo e ativista


político W. E. B. Du Bois, escreveu um livro intitulado Black reconstruction
in the United States. Neste trabalho, o autor analisou a classe trabalhadora
branca norte-americana do século XIX em comparação ao trabalhador ne-
gro. O autor apresenta uma dinâmica que entrelaça as categorias de raça,
classe e status, demonstrando que a aceitação do racismo pela classe traba-
lhadora branca daquela época foi uma forma de se apropriar de benefícios,
que Du Bois nomeou de salário público e psicológico, que resultavam em
acessos a bens materiais e simbólicos que os negros não podiam compar-
tilhar. Ou seja, os brancos trabalhadores, ao aceitarem a raça como um di-
visor dessa classe, aproximavam-se dos brancos de todas as outras classes
sociais, dividindo com estes os mesmos acessos a lugares públicos, o mes-
mo direito a voto e, portanto, o mesmo status dado à branquitude. Dessa
forma, aponta Roediger (2004), comentando o trabalho de Du Bois:

O sentimento de raça e os benefícios conferidos


pela branquitude levaram os trabalhadores su-
listas brancos a esquecer seus interesses pra-
ticamente idênticos aos dos negros pobres e a
aceitar vidas apequenadas para si mesmos e
para os mais oprimidos do que eles (Roediger,
2004, p. 55, 56).

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identidade, branquitude e negritude

Assim, a supremacia da branquitude foi sendo formada pela classe


trabalhadora branca dos Estados Unidos e pela constituição de uma identi-
dade trabalhadora que os colocava em oposição aos trabalhadores negros.
Ou seja, estes sujeitos absorviam privilégios, identificando-se como “não
escravos” e “não negros”. O racismo dos brancos aparece no trabalho de Du
Bois como uma forma de o trabalhador branco buscar posições de status
que não conseguiriam caso reconhecessem todos os trabalhadores como
iguais, bem como uma forma de se alienar à condição de classe explorada
na qual se encontravam.
O mesmo autor, no segundo capítulo de seu livro Darkwater (1920),
publicou um artigo intitulado “The souls of white folk” (“As almas do povo
branco”), sobre o qual arrisco dizer que também nos dá estofo para come-
çar a pensar em uma teorização sobre o que hoje chamamos de branquitu-
de. Nesse sentido, este trabalho é precursor, pois é um dos primeiros que
retratam o “branco” do ponto de vista de um escritor e teórico negro. Aqui
temos uma virada epistemológica importante dos estudos raciais, pois nes-
te texto o objeto de estudo racial não é mais o negro estudado pelo branco,
e sim, como podemos ver no texto citado abaixo, um olhar sobre o branco
feito por um sociólogo negro inserido em uma sociedade institucional-
mente racista.

No alto da torre, onde eu me sento acima das


altas queixas do mar humano, eu sei que muitas
almas que jogam e giram e passam, mas não há
nenhuma que me intrigue mais do que as Almas
do Povo Branco. Delas eu sou singular clarivi-
dente. Vejo nelas e através delas. Eu as vejo a
partir de pontos de vista privilegiados. Não é
como um estrangeiro que eu venho, pois sou na-
tivo, e não estrangeiro, sangue do seu sangue e
carne da sua carne. O meu não é o conhecimen-
to do viajante ou a antiga combinação de caras
memórias, palavras e admiração. Nem é o meu
conhecimento aquele que os seguidores têm dos
mestres, ou de massa, ou o capitalista do arte-
são. Antes, eu vejo essas almas despidas e por
todos os lados. Eu vejo o funcionamento de suas

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Branquitude: A identidade racial branca refletida em diversos olhares

entranhas. Eu conheço seus pensamentos e elas


sabem que eu conheço. Este conhecimento as
torna ora envergonhadas, ora furiosas. Elas ne-
gam o meu direito de viver e ser, e chamam-me
aberração! Minha palavra é para elas apenas
amargura e minha alma, pessimismo. E ainda
como elas pregam, e sustentam e gritam e amea-
çam, curvando-se como agarram-se a farrapos
de fatos e fantasias para esconder sua nudez,
eles vão se torcendo, voando pelos meus olhos
cansados e eu os vejo sempre desnudos‒ feios,
humanos (Du Bois, 1920, p. 29, tradução minha).

Neste texto o autor introduz também uma virada no pensamento


racial do início do século XX, que não está mais ligada aos aspectos bio-
lógicos de uma população, mas sim evocada por um sentido espiritual e
cultural, ou seja, para o autor há uma unidade espiritual entre cada uma das
raças humanas. Apesar de esta concepção de raça ter como consequência a
essencialização metafísica e cultural do que é ser negro e o que é ser branco,
nos dando, assim, margem para interpretações racistas sobre as diferenças
humanas, é também através deste texto que surge a possibilidade de pen-
sar sobre brancos e branquitude como parte das relações raciais, em que
as desigualdades de oportunidades e de direitos da população negra estão
diretamente relacionadas à vantagem e identidade racial do branco.
A identidade racial branca também foi pensada por Frantz Fanon
(1980). Em 1952, o autor publicou seu livro de maior repercussão, Pele ne-
gra, máscaras brancas, que discute diversos assuntos relacionados à questão
da raça e à relação entre colonizado e colonizador como categorias impor-
tantes para se entender a constituição de subjetividades de sujeitos brancos
e negros em relação. Segundo Fanon, a opressão colonial e o racismo da
própria estrutura da colonização passaram também a dominar subjetiva-
mente os colonizados e colonizadores. No caso dos negros, a consequência
seria uma não aceitação da sua autoimagem, da sua cor, o que resultaria
em um “pacto” com a ideologia do branqueamento, e, portanto, a constru-
ção do que o autor chama de máscaras brancas começa na rejeição do ne-
gro de si próprio e uma tentativa de fuga das características estereotipadas

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identidade, branquitude e negritude

associadas negativamente aos não brancos na sociedade ocidental. Fanon


afirma que o mesmo racismo subjetivado pelos negros também é apropria-
do pelos brancos, embora em uma relação assimétrica, na constituição das
identidades raciais brancas. O resultado, no tocante ao funcionamento da
categoria raça, seria um sentimento de superioridade dos brancos em rela-
ção aos não brancos.
O escritor e pensador tunisiano Albert Memmi (2007) também pode
ser considerado outra referência para os estudos sobre branquitude, pois,
em sua publicação de 1957, Retrato do colonizado precedido pelo retrato do co-
lonizador, se debruça sobre a situação tanto do colonizado quanto do coloniza-
dor. Ao descrever as consequências da colonização não só para o colonizado,
mas também para o colonizador, este autor se aproxima dos estudos da
branquitude que procuram colocar a lógica opressora em cheque. Nesse
sentido, o autor descreve não só a violência cometida ao colonizado, como
também os privilégios do colonizador, ou seja, Memmi nos propõe a ana-
lisar tanto aquele que se apropria da colonização como agente da opressão
quanto aquele que é oprimido por ela.
Na tese sobre colonizados e colonizadores, Memmi disserta com
minúcias sobre diferentes situações em que a ideia de superioridade dos
colonizadores europeus é tão apropriada pelos próprios colonizadores
quanto por aqueles que foram colonizados. E, dessa relação construída só-
cio-historicamente de maneira hierárquica, os sujeitos se apropriam con-
cretamente de tal desigualdade e produzem subjetividades. Dessa forma, o
autor afirma que:

A primeira tentativa do colonizado é mudar de


condição mudando de pele. Um modelo tentador
muito próximo se oferece e se impõe a ele: preci-
samente o do colonizador. Este não sofre de ne-
nhuma de suas carências, tem todos os direitos,
beneficia-se de todos os prestígios, dispõe das
riquezas e das honras, da técnica e da autorida-
de. Ele é enfim, o outro termo de comparação,
que esmaga o colonizado e o mantém na servi-
dão (Memmi, 2007, p.162).

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Branquitude: A identidade racial branca refletida em diversos olhares

Este aspecto que tanto Fanon (1980) quanto Memmi (2007) apon-
tam como características das relações entre colonizados e colonizadores,
entre brancos e negros, também foi discutido pioneiramente no Brasil pelo
sociólogo Alberto Guerreiro Ramos (1957), que introduziu pela primeira
vez no Brasil uma perspectiva que aponta as consequências do racismo e da
ideologia do branqueamento para o próprio branco brasileiro.
Guerreiro Ramos, em 1957, publicou no livro Introdução crítica à
sociologia brasileira um artigo intitulado “A patologia social do ‘branco’
brasileiro”, que tem como tese central o fato de que, devido ao racismo e
a um ideal de beleza e estética brancas, a população brasileira produziu
significados positivos à brancura, em contrapartida a significados negati-
vos, estéticos e culturais, relacionados aos negros. Assim, para o autor, a
patologia do “branco” brasileiro consiste em que, apesar de a grande maio-
ria destes ter ascendência miscigenada cultural e biologicamente com os
negros, este é um fator negado por eles. É exatamente por isso que, no título
do artigo, a palavra “branco” aparece entre aspas, pois o autor sustenta que
no Brasil dificilmente existe branco puro, que seria aquele sem nenhuma
mistura cultural ou biológica com o negro e a cultura afro-brasileira. A pa-
tologia então seria o fato de que o branco brasileiro considera vergonhosa
sua ancestralidade e cultura negras, enaltecendo a cultura europeia-branca,
da qual não faz inteiramente parte.
Dentro desta mesma perspectiva, Alberto Guerreiro Ramos também
é precursor em colocar a branquitude e os brancos brasileiros como objeto
de análise sociológica necessária para o entendimento do racismo e das
situações adversas em que os não brancos brasileiros estão expostos:

Dir-se-ia que na cultura brasileira o branco é o


ideal, a norma, o valor, por excelência. E, de fato, a
cultura brasileira tem conotação clara, este aspec-
to só é insignificante aparentemente. Na verdade,
merece apreço especial para o entendimento do
que tem sido chamado, pelos sociólogos, de “pro-
blema do negro” (Ramos, 1957, p. 150).

Nesse sentido, podemos perceber a importância de Guerreiro Ra-


mos, Du Bois, Fanon e Memmi no que se refere aos estudos internacionais

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identidade, branquitude e negritude

e nacionais sobre branquitude, pois eles são os pioneiros nos estudos que
apontam para análise daqueles que exercem o papel de opressor em socie-
dades estruturalmente desiguais.
Apesar de a maioria dos estudos identificar como característica fun-
damental da branquitude uma posição em que sujeitos de aparência branca
e origem europeia adquirem privilégios simbólicos e materiais quando es-
tão em relação aos não brancos, ou seja, o único aspecto unificador dessa
identidade diz respeito ao privilégio que o grupo branco obtém em uma
sociedade racista, tanto no contexto local quanto no global (Bento & Caro-
ne, 2002; Frankenberg, 1999; Roediger, 2000).

Branquitude: uma abordagem conceitual

Definir o que é branquitude e quem são os sujeitos que ocupam lugares


sociais e subjetivos da branquitude é o nó conceitual que está no bojo dos
estudos contemporâneos sobre identidade branca. Isso porque, nesta defi-
nição, as categorias sociológicas de etnia, cor, cultura e raça se entrecruzam,
colam e se descolam umas das outras, dependendo do país, região, história,
interesses políticos e época em que estamos investigando. Ser considerado
branco e ocupar o lugar simbólico de branquitude não é algo estabelecido
apenas pela brancura da pele, mas sobretudo por posições e lugares sociais
que os sujeitos ocupam. Dessa forma, a branquitude precisa ser conside-
rada “[...] como a posição do sujeito, surgida na confluência de eventos
históricos e políticos determináveis” (Steyn, 2004, p. 121). Nesse sentido,
ser branco tem significados diferentes compartilhados culturalmente em
diferentes lugares. Podemos então concordar com Sovik (2004), que argu-
mentou que no Brasil:

[...] ser branco exige pele clara, feições euro-


peias, cabelo liso; ser branco no Brasil é uma
função social e implica desempenhar um papel
que carrega em si uma certa autoridade ou res-
peito automático, permitindo trânsito, eliminan-
do barreiras. Ser branco não exclui ter sangue
negro (Sovik, 2004, p. 366).

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Branquitude: A identidade racial branca refletida em diversos olhares

Assim, a branquitude é entendida como uma posição em que sujei-


tos que a ocupam2 foram sistematicamente privilegiados no que diz respei-
to ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo
colonialismo e pelo imperialismo, e que se mantêm e são preservados na
contemporaneidade.
Ou seja, é preciso pensar o poder da branquitude como princípio da
circularidade ou transitoriedade (Foucault, 1999), compreendendo-o como
uma rede na qual os sujeitos brancos estão consciente e inconscientemente
exercendo-o em seu cotidiano por meio de pequenas técnicas, procedimen-
tos, fenômenos e mecanismos que constituem efeitos específicos e locais
de desigualdades raciais. Pensar o poder da identidade racial branca dessa
maneira também tem o intuito de retirar o olhar que aponta o racismo para
cada sujeito em particular e recolocá-lo para o entendimento de estruturas
de poder sociais com particularidades de cada sociedade em questão. Para
a compreensão das desigualdades raciais, alguns pontos foram descritos
por diferentes autores como características desta posição de poder em que
a branquitude se aporta. São eles:

Invisibilidade ou fantasia de invisibilidade?

Edith Piza (2002) e Ruth Frankenberg (1999) argumentam que, se há algo


característico da identidade racial branca, esta característica é a invisibi-
lidade, que se concretiza diariamente por meio da falta de percepção do
indivíduo branco como ser racializado. A brancura, neste caso, é vista pelos
próprios sujeitos brancos como algo “natural” e “normal”. Edith Piza clas-
sifica essa identidade coletiva como uma construção em contraposição, em
que os não brancos são aqueles que têm a visibilidade da raça. Assim, para
essa autora, a branquitude só existe em relação.

Não se trata, portanto, da invisibilidade da cor, mas


da intensa visibilidade da cor e de outros traços fe-
notípicos aliados a estereótipos sociais e morais

2
É unânime, nos estudos sobre branquitude, que sujeitos descendentes de europeus sejam os que
mais ocupam este lugar. No entanto, dependendo da configuração histórica, econômica e social,
outros sujeitos podem ocupar este lugar.

119

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identidade, branquitude e negritude

para uns, e a neutralidade racial para outros. As


consequências dessa visibilidade para negros são
bem conhecidas, mas a da neutralidade do branco
é dada como “natural”, já que ele é o modelo pa-
radigmático de aparência e de condição humana
(Piza, 2002, p. 72).

A ideia de invisibilidade é complexificada por Frankenberg (2004),


que argumenta que não é que a identidade racial branca seja invisível, mas
sim que ela é vista por uns e não por outros, e, dependendo dos interesses,
ela é anunciada ou tornada invisível. Como exemplo, podemos citar a dis-
cussão sobre as cotas raciais, em que a maioria dos brancos sabe e vê sua
brancura para dizer que as cotas raciais para negros não os contemplam.
Contudo, a autora sugere que esta invisibilidade acontece quando uma so-
ciedade chega ao ponto de uma hegemonia e a uma ideia de supremacia
racial branca tão poderosa, em que os não brancos não têm voz nem poder
para apontar a identidade racial do branco, nem tampouco os brancos con-
seguem se perceber como mais uma das identidades raciais, mas sim como
a única identidade racial normal, cujas outras devem alcançá-la em níveis
intelectuais, morais, estéticos, econômicos etc. Portanto, a invisibilidade ou
a identidade não marcada que foi pontuada como uma das características
da branquitude é facilmente contestada quando outros atores sociais não
brancos têm o poder para apontar e desvelar a branquitude.
Cardoso (2008) e Wray (2004) apontam o perigo de pensar a iden-
tidade racial branca como invisível, pois apontá-la como tal teria a função
de privilegiar o ponto de vista dos brancos, que, sem autoconsciência de
sujeitos racializados, não têm como questionar suas vantagens raciais.

Privilégios materiais

Outros fatores relacionados à branquitude são os privilégios materiais


que os brancos têm em relação aos não brancos. Significa que ser branco
produz cotidianamente situações de vantagens em relação aos não bran-
cos. Nos Estados Unidos, diferentes pesquisas demonstram que há para
os brancos mais facilidades no acesso à habitação, à hipoteca, à educação,

120

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Branquitude: A identidade racial branca refletida em diversos olhares

à oportunidade de emprego e à transferência de riqueza herdada entre as


gerações. No Brasil, estes dados são evidentes em diferentes pesquisas de
cunho quantitativo e qualitativo. A literatura dos estudos raciais demonstra
a presença e a persistência das desigualdades raciais e da situação subalter-
na dos não brancos em relação aos brancos na sociedade brasileira (Fer-
nandes, 1978; Guimarães, 1999; Hasenbalg, 1979). Apesar de as pesquisas
serem direcionadas às desvantagens dos negros em nossa sociedade, um
olhar focado nos brancos demonstra as vantagens que estes adquirem no
que diz respeito ao acesso à educação, à saúde, ao emprego, à moradia e às
diferentes formas de bem-estar social.
Nesse sentido, o Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil
(2007, 2008), produzido pelo Laboratório de Análises Econômicas, Histó-
ricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais 3, apresenta os indicadores
3

relacionados às vantagens dos brancos em relação aos não brancos no que


diz respeito aos índices de mortalidade da população brasileira; no acesso
ao sistema de ensino; na dinâmica do mercado de trabalho; nas condições
materiais de vida e no acesso ao poder institucional, políticas públicas e
marcos legais. É um estudo que tem por eixo fundamental o tema das desi-
gualdades raciais e sua mensuração por meio de indicadores econômicos,
sociais e demográficos. O estudo constatou que os brasileiros brancos vi-
vem em “um país” com IDH médio equivalente à 44a melhor posição no
mundo, enquanto os brasileiros negros vivem “em um Brasil” onde o IDH
médio é equivalente à 104a posição.

Privilégios simbólicos

Na sociedade brasileira, os indivíduos, querendo ou não, são classifica-


dos racialmente logo que nascem. Àqueles classificados socialmente como
brancos recaem atributos e significados positivos ligados à identidade ra-
cial à qual pertencem, tais como inteligência, beleza, educação, progresso
etc. A concepção estética e subjetiva da branquitude é, dessa maneira, su-
pervalorizada em relação às identidades raciais não brancas (Sovik, 2004),

3
Para uma maior descrição qualitativa e quantitativa, ver os dados apresentados em:
<http://www.laeser.ie.ufrj.br/PT/Paginas/relatorio_2007_2008.aspx>.

121

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identidade, branquitude e negritude

o que acarreta a ideia de que a superioridade constitua um dos traços carac-


terísticos da branquitude (Fanon, 1980).
O argumento de que a branquitude foi construída sócio-historica-
mente como uma posição racial de superioridade é tese unificadora de dife-
rentes teóricos. Nesse sentido, é importante frisar que não necessariamente
os sujeitos brancos se sentem superiores aos não brancos, trata-se de uma
crítica direcionada à significação da branquitude como o lugar racial da
superioridade. Assim, os brancos obtêm privilégios simbólicos em razão
dessa pertença, mesmo que involuntariamente (Bento, 2002).
Cardoso (2008) 4, em sua dissertação de mestrado intitulada O bran-
4

co “invisível”: um estudo sobre a emergência da branquitude nas pesquisas


sobre as relações raciais no Brasil, fez uma distinção entre o que ele denomi-
na de “branquitude crítica” e “branquitude acrítica”, a primeira se refere ao
indivíduo ou ao grupo de brancos que desaprova o racismo, e a segunda à
identidade branca, individual ou coletiva, que argumenta a favor da superio-
ridade racial dos brancos. Esta distinção feita por Cardoso é necessária para
compreender que há uma parcela de brancos que obtém privilégios de sua
identidade racial, não por exercer conscientemente o racismo, nem tampou-
co por concordar com ele, mas sim por estar inserida em uma sociedade de
estrutura racista, enquanto o outro grupo propaga direta e indiretamente a
superioridade e pureza racial brancas.
No entanto, uma das perguntas a serem feitas aqui é sobre qual a
forma e como os sujeitos brancos agem para que estes privilégios sejam
mantidos e perpetuados. Ou o que faz com que grande parcela da socieda-
de tenha estes privilégios e não os perceba. Maria Aparecida Bento (2002)
argumenta que os brancos em nossa sociedade agem por um mecanismo
que ela denomina de pactos narcísicos, alianças inconscientes, inter-grupais,
caracterizadas pela ambiguidade e, no tocante ao racismo pela negação do
problema racial, pelo silenciamento, pela interdição de negros em espaço
de poder, pelo permanente esforço de exclusão moral, afetiva, econômica
e política do negro, no universo social. Assim, a branquitude é “[...] um
lugar de privilégio racial, econômico e político, no qual a racialidade, não

4
A dissertação de Cardoso (2008) apresenta um quadro e análise de todos os trabalhos já
publicados no Brasil desde 1950 sobre o tema da branquitude.

122

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Branquitude: A identidade racial branca refletida em diversos olhares

nomeada como tal, carregada de valores, de experiências, de identificações


afetivas, acaba por definir a sociedade” (p. 4).
Ainda sobre o questionamento de como se produzem, se apropriam
e perpetuam esses significados positivos sobre a branquitude, os estudos
sobre relações raciais e mídia produzidos por Liv Sovik (2004) demonstram
que os meios de comunicação de massa têm importante papel de produção
e reconstrução desses estereótipos. Assim, estes discursos midiáticos pro-
duzem efeitos materiais nas relações raciais brasileiras. A autora demons-
tra o quanto os brancos estão em evidência desproporcional nos meios de
comunicação, e que isto re(produz) a hegemonia do branco como valor
estético. Nesse sentido, a autora afirma que a hipervalorização silenciosa
do branco consegue fazer sentido não porque a população de elite brasilei-
ra seja branca, mas também porque nos permite reconfirmar que estamos
diante de valores de beleza e poder construídos historicamente, que come-
çaram com o processo de colonização europeia e perduram e se reprodu-
zem nos tempos atuais.

Considerações finais

A revisão da literatura sobre branquitude nos faz concluir que esta deve
ser pensada sempre em relação aos jogos de poder em cada lugar do globo,
pois se estrutura na dominação racial. A branquitude se articula a partir de
práticas cotidianas que privilegiam simbólica e materialmente os sujeitos
considerados brancos em cada região do globo, e que, muitas vezes, essas
práticas, são ideologicamente entendidas como norma, e não como uma
especificidade da identidade racial branca.
A identidade racial é sempre algo que define fronteiras entre quem
são uns e quem são outros, portanto só existe em relação a outras. Por isso
são posicionais, relacionais e fluidas, portanto brancos e negros só exis-
tem em relação um a outro, e suas diferenças variam conforme o contexto.
Dessa forma, as identidades raciais precisam ser definidas em relação a sis-
temas políticos, históricos e socioculturais específicos. Os indivíduos e os
grupos sociais não trazem dentro de si uma essência negra ou uma essência
branca, mas essas categorias são significadas e ressignificadas sempre em

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identidade, branquitude e negritude

relação ao contexto sócio-histórico e cultural em que determinados indi-


víduos e grupos sociais se encontram. Dessa forma, podemos dizer que
negros e brancos constroem a si tendo como contraponto um ao outro. No
entanto, em uma sociedade racista como a brasileira, esta relação é hierár-
quica, e este processo relacional resulta nas desigualdades de bens materiais
e simbólicos da população negra, em contrapartida a privilégios e preteri-
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UM OLHAR SOBRE MECANISMOS
IDEOLÓGICOS RACISTAS A
PARTIR DE CONSTRUCTOS
DA PSICANÁLISE DOS
PROCESSOS GRUPAIS
Eliane Silvia Costa

Com base em conceitos da psicanálise dos processos grupais, como é o caso


do conceito de intermediário de René Kaës, este trabalho procura refletir
sobre a ideia de “moreno” nos primórdios da República e a partir do mito
da democracia racial.

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O racismo é uma ideologia materializada em ações discriminatórias e an-
corada nas teorias racistas sistematizadas no século XIX, as quais preco-
nizavam a existência de uma raça superior, a branca europeia. Opera por
meio de estereótipos, preconceitos e ações que, direta ou indiretamente,
consciente ou inconscientemente, voltam-se para o aniquilamento real ou
simbólico do negro: para a vida na penúria; para os trabalhos subalternos;
para a expulsão para as longínquas periferias, as prisões e penitenciárias, os
hospícios; para o embranquecimento. O racismo é, pois, uma modalidade
de violência e uma estratégia de dominação.
No caso dos sujeitos historicamente golpeados pelo racismo não é
raro ficarem sensíveis aos dizeres dessa ideologia, o que não significa enun-
ciar que haja uma aderência plena ao discurso externo, que então passa a
ecoar internamente, virando fora e dentro. Cada um, e em conjunto, pode
“receber, conter ou recusar, ligar e desligar, transformar e representar, ‘brin-
car’ com ou destruir os objetos e as representações, as emoções e os pensa-
mentos [transmitidos]” (Fernandes, 2003, p. 51).
Via de regra, o processo de ancoramento do discurso ideológico não
é feito de forma compacta, sem alterações. Há transformações entre o que
se vê e se escuta e a forma como esse material é internalizado. Ainda as-
sim, como defesa psíquica, como tentativa de suturar as feridas provocadas
pelo racismo, alguns negros afetados pelo jugo racista se afastam de outros

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Um olhar sobre mecanismos ideológicos racistas...

negros, numa tentativa, quiçá, de se desenegrecer, já que, no Brasil, o ra-


cismo tem como um de seus mecanismos o apelo ao embranquecimento.
Segundo Piza (2000), o branqueamento pode ser compreendido
como o conjunto de normas, atitudes e valores ligado ao “universo branco”
e utilizado por pessoas não brancas com o intuito de serem reconhecidas
como detentoras de uma identidade racial positiva.
Tacitamente, o branqueamento apregoa que, do ponto de vista esté-
tico, intelectual, cultural e, por extensão, civilizatório, em vez de ser negro,
em vez de o sujeito reconhecer-se e ser visto como tal, será “menos pior” ser
um mestiço, um quase não negro, quem sabe, um quase branco, um alguém
que valorize o modo de vida associado ao branco.
Logo, o racismo — que repercute nos âmbitos subjetivo, grupal e
coletivo — pode afetar o campo de pertencimento dos sujeitos negros à
história ancestral negra, às suas vinculações horizontalizadas, à sua expec-
tativa em relação a uma possível descendência negra. Nesses casos, o cor-
po negro tanto quanto outras marcas da ancestralidade africana são tidos
como instáveis, não desejáveis. Assim sendo, é crível considerar uma pro-
teção psíquica contra os horrores do racismo querer desenegrecer-se, tanto
quanto querer filhos menos negros. Neste último caso, trata-se também de
proteção materna e paterna, a qual — como hipótese teórica — pode estar
relacionada ao conceito de contrato narcísico. Sobre este conceito, e a partir
da teorização de Piera Aulagnier, Kaës mencionou:

P. Castoriadis-Aulagnier introduziu a noção de


contrato narcísico para sustentar que cada sujeito
chega simultaneamente ao mundo da vida psí-
quica, da sociedade e da sucessão das gerações
sendo portador de uma missão: assegurar a con-
tinuidade do conjunto ao qual ele pertence. Em
troca, o conjunto deve investir narcisicamente o
novo indivíduo. Esse contrato atribui um lugar de-
terminado no grupo a cada um, lugar que lhe é in-
dicado pelo conjunto das vozes que, antes de cada
sujeito, sustentou certo discurso conforme o mito
fundador do grupo. Esse discurso inclui os ideais
e os valores; ele transmite a cultura e as palavras
de certeza do conjunto social (2011, p. 203).
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identidade, branquitude e negritude

Dessa forma, o contrato narcísico assegura uma origem, desempenha


a função de vincular cada sujeito à sua geração e à sua ascendência, garan-
tindo a continuidade entre as gerações; ainda que à custa inconsciente de
que certos aspectos dos elos familiares sejam deixados de lado.
Aulagnier e, posteriormente, Kaës (2011), para elucidar tal conceito,
retomaram a afirmação feita por Freud de que a criança nasce herdeira dos
sonhos e dos desejos não realizados por seus pais.
Esse contrato é originário dos grupos familiares, mas também pode
estar presente nos grupos secundários, grupos afiliativos, aos quais os sujei-
tos filiam-se, como os de amizade e de trabalho. Ele inclui os ideais e os va-
lores socialmente engendrados — por exemplo, o de embranquecimento —,
tanto quanto abarca o investimento amoroso nos e entre os membros de uma
família e de um grupo, e é por isso que está a serviço da vida1 (Kaës, 2011).
Em todo caso, cumpre salientar que esse suposto processo de bran-
queamento ou desenegricemento não está presente na vida de todos os ne-
gros, não é irreversível, nem linear, já que uma mesma pessoa ou grupo
pode relacionar-se de forma diferente com ele, dependendo da situação e
do apoio que consegue. De maneira geral, nesse processo há ambiguidades,
e ele “[...] deveria ser denominado de ‘racismo derivado’, na medida em que
se trata de uma interiorização e de um reflexo do racismo original, o racis-
mo branco” (Munanga, 2004, p. 41).
Apesar de presente e orquestrado pela elite nacional desde o período
colonial brasileiro, foi no Brasil republicano que o branqueamento passou
a ser uma tônica da nação, sobretudo porque estava relacionado à possibili-
dade de se delinear uma identidade nacional dita satisfatória. Acreditava-se
numa espécie de darwinismo social: o negro seria assimilado pelo branco, e
a nação brasileira tornar-se-ia exclusivamente branca (Carone, 2002).
De lá para cá, há pelo menos dois mecanismos ideológicos atinen-
tes ao desnegrecimento da nação que foram sistematizados em contextos
históricos distintos: a ideologia do embranquecimento presente em terras
brasileiras de forma mais acentuada desde os primórdios da primeira Re-
pública e o mito da democracia racial instituído na Segunda República, a
partir, principalmente, da década de 1930.

1
Diferentemente do contrato narcísico, o pacto narcísico é uma aliança inconsciente, patológica e
alienante (Kaës, 2011). Sobre esse conceito, ver também Bento (2002).

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Um olhar sobre mecanismos ideológicos racistas...

Na Primeira República (1889-1930), o processo de construção


da ideia de uma identidade nacional foi arranjado, segundo Guimarães
(2000), por meio da negação coletiva do passado colonial brasileiro, da
institucionalização da desmemória das origens étnico-raciais brasileiras.
Nesse sentido, no final do século XIX e início do XX, Sílvio Romero desta-
cou-se no campo das ciências humanas como um dos expoentes filiados à
ideia do branqueamento da nação. Adepto da teoria da evolução, difundiu
a crença na purificação racial do país por meio de um longo processo de
mestiçagem física e cultural. Para ele, a “[...] mestiçagem representa apenas
uma fase transitória e intermediária no pavimento da estrada que levaria
a uma nação brasileira presumidamente branca” (Munanga, 2004, p. 56).
Conforme apontado por Munanga, é possível considerar que, naquele
momento, o mestiço, fruto das relações sucessivas entre parte da população
branca com a negra, funcionaria como um intermediário, como um entre
brancos e pretos, e indicaria a passagem de uma nação marcada pela pre-
sença de um povo considerado bárbaro para uma nação civilizada; portan-
to, indicaria uma aposta em um futuro melhor, a superação da negrura pela
brancura. Nessas condições, os mestiços seriam o resultado da ação realizada
entre grupos humanos alocados ideologicamente em níveis heterogêneos de
humanidade: de um lado, os sub-humanos, e, do outro, os humanos plenos.
A partir das contribuições de Kaës (1994)2, podemos considerar que
esse processo de mestiçagem diz respeito ao que o autor caracterizou como
intermediário relacionado à “gênese, movimento, transformação”. As suces-
sivas miscigenações redundariam, em um futuro qualquer, no nascimento
de uma nação branca. Essa era a crença utópica. Logo, acreditava-se que o
processo de mestiçagem seria datado, um dia poder-se-ia abrir mão dele.
O olhar sobre o mestiço como impuro, descartável e como rota necessá-
ria para se alcançar o branqueamento recebeu outras influências tempos depois.
Na década de 1930, Gilberto Freyre (2006) elevou à categoria de
raças fundadoras do país aqueles que, anos antes, tinham sido escracha-
dos. Com isso, propagou uma confraternização que teria existido entre se-
nhores e escravizados, como, com afinco, o ideal da miscigenação. Assim
2
Neste artigo não me debrucei sobre a obra do autor, que versa sobre a psicanálise dos processos
grupais, com destaque para a sua teoria acerca do aparelho psíquico grupal. Para detalhes sobre
sua produção ver, por exemplo, Kaës (2011). E sobre a articulação de sua teoria à temática da
negritude, ver Costa (2012).

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identidade, branquitude e negritude

sendo, disseminou a imagem de uma nação coesa, igualitária e que teria


diminuído a distância social entre os seus habitantes. Freyre atenuou em
muito o caráter de opressão intrínseco ao sistema escravista. Anos depois,
seu trabalho foi cunhado de mito da democracia racial.
Tal mito tem desempenhado importante função de controle social, pois
tece uma imagem de unidade nacional e oculta a existência de diferenças ra-
ciais e sociais. Esse mito “[...] se firmou, progressivamente, como uma impo-
sição política: a proibição social, ou até institucional, de se falar em racismo
ou em preconceito racial” (Agier, 1992, citado por Hasenbalg, 1996, p. 238).
Se inicialmente a ideologia do embranquecimento representava o
anseio da supressão dos aspectos referentes ao negro, ao longo dos tempos
o mito da democracia racial deu lugar às expressões culturais negras como
cultura nacional: o samba, a capoeira, entre outros elementos culturais ori-
ginalmente negros passaram a ser vistos como parte da cultura brasileira,
amenizando o sentido de resistência negra. Além disso, a partir de então se
disseminou a imagem do negro como “moreno”.
Freyre afirmou o negro, negando-o e negando-o pela mestiçagem.
O autor definiu o moreno como os de pele ou aparência “[...] parda, parda
amarelada, amarela, preta” (1970, p. 53). Assim sendo, o tom “moreno” de
pele estender-se-ia do moreno escuro ao claro, amarelado, mas, no caso do
preto propriamente dito, o uso desse termo serviria como eufemismo, para
“[...] a delicadeza nacional evita[r] chamar negros” (p. 52). De toda manei-
ra, o autor mencionou que, no Brasil, haveria uma mística da morenidade,
que se oporia à mística da exclusividade racial da negrura e da brancura.
Mística já existente antes da década de 1930, mas que por ele teria sido na-
cional e internacionalmente difundida3.
Em sua concepção, o Brasil seria por excelência um país mestiço,
adaptado às exigências tropicais, sem que isso necessariamente significasse
prejuízos à sua civilidade, ao seu europeísmo, ainda que não negasse mar-
cas culturais brasileiras próprias:

3
Definição de moreno do começo do século passado referida por Freyre: “[...] eufemismo
introduzido depois do advento da República pelos pardos quando falam uns dos outros. O mulato,
o cafuz, o próprio preto uiraúna, são pessoas morenas [...] Um moreno (cafuz) magoado pelo
epíteto afrontoso de negro retorquiu que ‘agora na República não havia mais nem pretos nem
brancos: todos cidadãos’” (Glossário Paraense, Miranda, 1906, citado por Freyre, 1970, p. 48).

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Um olhar sobre mecanismos ideológicos racistas...

O Homem brasileiro [...] pode ser considerado


exemplo, no setor fisiológico com repercussões
no sociocultural, de homem moderno, civilizado,
predominantemente, mas não exclusivamen-
te, europeu na sua cultura, situado no trópico.
Homem, o brasileiro, também caracterizado, nes-
ses setores, por sua crescente, isto é, crescente-
mente generalizada, morenidade, talvez protetora
de sua maior adaptação ao ambiente tropical [...].
Tal morenidade [...] vem, resultando, quer do amo-
renamento pelo sol tropical até de nórdicos, quer
da considerável miscigenação em que se vêm
unindo ao sangue europeu, ameríndio e africa-
no, com resultados além de eugênicos, estéticos.
Resultados que já fazem do tipo moreno de mu-
lher ou de homem um tipo atraente para brancos,
por um lado, e para negros puros, por outro. [...].
É o ideal — já tão brasileiro — da morenidade [...].
O brasileiro é uma gente crescentemente morena.
Ao vaticínio, porém, de vir a ser o Brasil, dentro de
algum tempo, uma “população de mulatos”, falta
idoneidade antropológica. O que é provável e até
certo é a maior generalização de morenos, nessa
população, a ponto de tornar-se, pelo ano 2000, a
morenidade, uma predominância barrocamente,
isto é, variamente como diria Camões — caracte-
rística do Homem brasileiro com cada dia menor
número de exceções. [...] “a cor morena é cor de
ouro”, diz já a poesia popular brasileira (Freyre,
1970, p. 48-49).

Ao ressaltar a predominância morena nas terras brasileiras, mencio-


nou que não desconsiderou a existência do que chamou de contrários, dos
brancos e pretos propriamente ditos 4. Textualmente, disse: “[...] com essas
4

predominâncias de modo algum significando exclusividade absoluta de as-

4
No Brasil, comum e eufemisticamente, o termo moreno serve tanto para o preto, o pardo e o
mulato; entretanto, o autor declarou que o tipo marcadamente brasileiro seria o do moreno mais
claro do que o mulato, o moreno pouco negro ou quase não negro.

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identidade, branquitude e negritude

pectos e de modos de comportamento que excluam os contrários ou dêem,


a esses contrários, o caráter de aspectos e comportamento antibrasileiros.
Há brasileiros ruivos — nordicamente ruivos, até” (Freyre, 1970, p. 43).
Pode não ter no texto negado a brasilidade daqueles, mas implicita-
mente foi essa negação que se propagou 5. Quando se decreta um modelo, o
que escapa do ideal é afetado. Além disso, o autor “previu” que a morenida-
de brasileira seria o caminho seguro no qual o Brasil se aportaria.
Sobre essa negação tácita, cabe uma associação com o conceito de
negativo de Freud (1996), já que, como este teórico postulou, o conteúdo
de uma imagem ou de uma ideia torna-se por vezes consciente com a con-
dição de que seja negado. Nessas ocasiões, é pela negação que se acessa um
conteúdo que se queria reprimir. É pelo símbolo da negativa que o pensa-
mento liberta-se da coação da repressão e ganha caráter público, manifesta-
do ao outro. Assim sendo, o juízo com base no negativo seria um substituto
intelectual da repressão. No caso da frase de Freyre, a negação estaria na
expressão “[...] de modo algum isso [...]”.
Como hipótese, podemos pensar que a negativa expressa por Freyre
na frase citada relaciona-se a um desejo implícito de não atribuição de
brasilidade aos não “morenos”. Trata-se de direcionar o tipo de união ideal
para a nação: a união entre brancos e negros (pretos e pardos), entre dife-
rentes, para se diminuir as diferenças. Trata-se da perpetuação da vida de
alguns, para que um certo ideal de nação seja preservado 6.
O “moreno” — e com ele o hibridismo estético e cultural — repre-
sentaria o atalho à brasileira para que já vivêssemos em um mundo civi-
lizado. Freyre (1970), em sua escrita, advogou pela grandeza brasileira já
aqui existente, não se tratava apenas de pensar em um projeto, mas no aqui

5
Como exemplo, retomemos novamente a frase: “Há brasileiros ruivos — nordicamente ruivos,
até”, por ampliação podemos dizer: os ruivos têm sangue europeu; logo, são europeus! O
nexo com a ancestralidade europeia está posto, e com ele a possibilidade de o sujeito branco
reconhecer-se e ser reconhecido positivamente como europeu. No caso do negro, a condição de
se reconhecer como moreno seria seu recurso para a conquista de certa cidadania/nacionalidade
brasileira, como apontado na nota 3.
6
Não se trata de dizer que, no tocante às engrenagens racistas, mestiços estejam mais protegidos
ou que sofram menos. Hierarquizar sofrimentos pode ser também uma forma de violência,
mas é importante que fiquemos atentos ao lugar de esbulho racial em que a ideologia do
embranquecimento e o mito da democracia racial lançam o preto. Essas ideologias são alguns
dos mecanismos do racismo, mas não os únicos. O racismo — com todas as suas nuances e
estratégias — atinge a todos os negros (pretos e pretos mestiços).

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Um olhar sobre mecanismos ideológicos racistas...

e agora acontecendo, na conquista já posta e representada, em alguma ins-


tância, por esse intermediário “moreno”.
Seguindo o pensamento de Kaës (1994), em condições como essas, o
intermediário tem a função psíquica e social de articulação, de vinculação,
assim sendo, funciona como articulador entre polos antagônicos, descontí-
nuos e em conflito. Neste sentido, o intermediário reduziria conflitos.
A ideologia do embranquecimento e da democracia racial, apesar de
atuarem de modos diferentes, são facetas da mesma moeda, desempenham
funções referentes à convocação para a miscigenação, à criação de interme-
diários entre brancos e pretos.
No primeiro caso, da ideologia do embranquecimento propriamente
dita, o corpo, o fenótipo negro tenderia progressivamente ao desapareci-
mento. E o que em algum momento representou polos opostos (branco
versus negro) deixaria de existir. Ela atua como dispositivo que busca a pas-
sagem da negrura para a brancura.
No tocante ao mito da democracia racial, a existência fenotípica do
negro poderia estar em alguma medida assegurada desde que pela sua nega-
ção linguística (preto e pardo igual a “moreno”) e também fenotípica (preto
e pardo mais branco igual à descendência progressivamente “morena”).
É possível considerar que tal mito é um desdobramento da ideologia
do branqueamento. Como rearranjo, é mais plausível do que ela, mesmo
porque dá algum lugar para o negro e vazão para relações de proximidades,
e não apenas de desprezo ao suposto degenerado. Assim, age como redutor
de conflitos.
Supostamente, esse deve ser um dos motivos para que se mantenha
atuante ainda hoje.
De toda maneira, nessas duas situações há um ataque ao negro.
Logo, nesses casos, a mestiçagem pode ser entendida como uma ação a
serviço do racismo.
Tal como apontado por Hasenbalg (1996), é possível pensar que foi à
custa da negação da existência do racismo no Brasil, dentre outras razões,
que o país teria se tornado uma nação que valeria a pena. De acordo com
Guimarães (2001), foi a partir do mito da democracia racial que o Brasil
definiu para si uma identidade própria: nação coesa, inclusiva, mestiça.

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identidade, branquitude e negritude

Logo, o mito da democracia racial tem a função de definir interditos,


como o de não falar sobre o racismo. Assim, enquanto se veicula nacional
e internacionalmente a imagem de um país cuja identidade é mestiça, de-
mocrática e coesa, ocultam-se as diferenças e os conflitos raciais aqui exis-
tentes. Esse mito dá ensejo para que o brasileiro se pense, seja visto e, até
mesmo, aja como povo acolhedor, receptivo, especialmente com os de fora,
mesmo porque, é possível dizer, essa é uma identidade gerida comumente
para a manutenção de um olhar de aceitação externo.
Por assim dizer, o Brasil se define pela tentativa de negar suas desi-
gualdades raciais. Comumente, elas são ocultadas pelas desigualdades eco-
nômicas. Quando se postula que as desigualdades vividas pelos negros são
de cunho socioeconômico, escamoteia-se as implicações e discriminações
raciais que conduzem e eternizam o negro como pobre.
O mito da “democracia racial” é uma das expressões ideológicas do
racismo. É um dos sustentáculos das desigualdades raciais brasileiras. É,
assim, alicerce para a manutenção do oposto que seu discurso prega.
Romper o mito e, com isso, o interdito de se falar e enfrentar o ra-
cismo pode significar trincar ou, quiçá, desmantelar um modelo discursivo
hegemonicamente aceito e que marca “[...] significativamente o incons-
ciente e o imaginário coletivo do povo brasileiro” (Munanga, 2004, p. 139).
Pode ser uma das ações relacionadas a uma possível desestabilização e
desagregação da identidade nacional. Pode indicar a perda de referenciais
— como o de harmonia e cordialidade — que fundamentam padrões rela-
cionais entre brasileiros e sustentam a imagem internacionalmente veicu-
lada sobre o país.
Pensar pública e politicamente sobre o racismo sugere a dissolução
dessa identidade nacional inventada e da função psíquica e social que ela
desempenha entre os brasileiros, o estrangeiro e cada um de nós. A função
de conter tensões inter-raciais, de mantê-las fora do cenário político-social
e, portanto, de deslegitimar reinvidicações feitas pelos negros. De perpetu-
ar os privilégios e a estabilidade da dominação adquirida pelo grupo ra-
cial branco (Bento, 2002). De manter a segurança dada pela imagem de
país quase paradisíaco — é ela que se contrapõe à de país, por vezes, (ou
muitas vezes) violento. Violência quase sempre pensada como problema

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Um olhar sobre mecanismos ideológicos racistas...

de segurança pública, de desigualdade econômica, mas que também (e fre-


quentemente) diz respeito às desigualdades raciais.
Confrontar o racismo requer trabalho sociopolítico e psíquico.
Demanda que brancos e negros reconheçam os custos envolvidos com a
ressignificação da identidade nacional, assim como da identidade étnico-
-racial dos grupos compostos por negros e brancos. Convoca, entre outros,
o enfrentamento do privilégio que o grupo racial branco dominante usu-
frui no Brasil, o qual virá quando, dentre outras ações, brancos e negros
assumirem como necessárias a implantação de políticas afirmativas para
povos negros, políticas voltadas para a valorização da identidade racial ne-
gra e para a possibilidade de negros terem acesso aos diferentes bens ma-
teriais e imateriais da nação, incluindo o direito dos quilombolas de terem
a titulacão de suas terras e educação em universidades públicas brasileiras.
Desmantelar o racismo contra negros é tarefa de todos. Nesse sen-
tido, e a despeito de não anular a representação hegemônica formulada
acerca dos negros, nem mesmo de negar que frequentemente as relações
inter-raciais brasileiras carregam a marca da opressão, no âmbito da vida
privada e pública, parcerias, amizades, amores genuínos inter-raciais são
possíveis. Talvez no instante mesmo em que negros e brancos se enxergam
como iguais e diferentes. Os frutos desses encontros (materiais e imateriais)
podem ser pensados como contrários ao racismo, como resultantes do en-
contro ético ou, pelo menos, como uma tentativa — ainda que ambivalente,
no caso dos que não se descolaram sobremaneira dos mitos e ideologias
reducionistas — de se alcançar o bem comum.
O poder obriga certo olhar, mas o olhar afetuoso também tem poder,
o de perturbar, inquietar, impressionar, o de revelar, e, ainda, o de igualar e
criar reciprocidades (Ribeiro, 2006). Quando se vencem os medos, os mitos
e as ideologias, quando se é guiado pela ética nesse encontro com o outro,
ultrapassa-se as tiranias. O amor “[...] nos dá uma lição de entrega e não
poder” (Ribeiro, 2006, p. 443).
Encontros entre brancos e negros podem estar a serviço da dominação,
podem reforçá-la, mas também podem estar a serviço da dignidade, da ética.
Assim, o “moreno” fruto do encontro amoroso entre negros e brancos pode
ser sinônimo de síntese, de igualdade.

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identidade, branquitude e negritude

Quando se versa sobre esse posicionamento ético, quando são catali-


sados encontros recíprocos entre negros, entre negros e o “universo-negro”,
entre negros e não negros, entre não negros e “mundo negro”, criam-se cam-
pos de amparo, conforto, confiança. Para ilustrar essa passagem, reporto-me
a uma história contada por Lídia, quilombola do interior de São Paulo.
Lídia temia as religiosidades africanas, e o temor a impedia de co-
nhecê-las. Em um evento de cunho político-cultural que congregava qui-
lombolas de diferentes regiões do país, conheceu o Museu Afro-Brasileiro.
Lá, informada e formada pelos monitores sobre as divindades africanas,
entendeu que as imagens e os rituais ligados às religiosidades de matriz
africana poderiam e deveriam respeitosamente existir (Costa, 2012).
O museu visitado é fruto de uma política da Secretaria de Cultura do
Estado São Paulo voltada para dar visibilidade à história do negro no mun-
do. Localiza-se em um notável espaço público: no maior e mais conhecido
parque de São Paulo, o Ibirapuera. A visitação feita por Lídia também foi
resultante de uma iniciativa política organizada por órgãos públicos de SP.
Um gesto simples e preciso produziu um encontro com o inusitado, produ-
ziu a criação de um espaço psíquico a um ritual antes temido:

[...] a importância das cerimônias, das mani-


festações de memória diante das placas come-
morativas de eventos traumáticos da história de
uma comunidade humana [...] têm uma função
econômica psíquica de resiliência familiar, so-
cial e comunitária para superar o traumatismo
catastrófico e encontrar as fontes de uma nova
vitalidade psíquica (Benghozi, 2005, p. 107).

Diferentemente da ideologia, a política pública pode ter uma função


terapêutica de ressubjetivação; nesse escopo, de colaborar com o processo
do sujeito negro racializar-se e do sujeito branco desalienar-se da ficção de
ser o modelo de humanidade, processos tidos aqui como casos de fortale-
cimento psíquico e social desses grupos raciais e que muitas vezes ocorrem
com base no que Benghozi (2005) chamou de empatia.

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Um olhar sobre mecanismos ideológicos racistas...

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identidade, branquitude e negritude

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IDENTIDADE ÉTNICA
E ESTEREÓTIPOS
EM CRIANÇAS
QUILOMBOLAS
E INDÍGENAS
Dalila Xavier de França
Marcus Eugênio Oliveira Lima

Investiga-se a identidade étnica e os estereótipos de crianças negras e indí-


genas atendidas por programas de ação afirmativa em Sergipe. Para tanto,
foram entrevistadas crianças de cinco a dez anos de idade (33 negras qui-
lombolas e 32 indígenas) em suas escolas por três entrevistadoras. Obser-
vamos que as crianças utilizaram oito categorias diferentes de cor de pele
para se definir. A maior parte das indígenas se definiu como “morenas”;
as negras quilombolas definem-se, sobretudo, como “pretas”. Observamos
também que as crianças gostam de pertencer aos seus grupos étnicos. No
nível dos estereótipos, verificamos que os traços mais positivos são atribuí-
dos ao alvo branco, e os mais negativos aos negros. As crianças indígenas
acreditam que o professor gosta delas, e a maioria se considera “boazinha”,
assim como as crianças negras. A maior parte das crianças gostaria de ser
diferente, tornando-se brancos; principalmente as quilombolas. Discuti-
mos os resultados considerando a ambivalência produzida pelo embate dos
efeitos das políticas públicas de afirmação identitária e pelos pressões do
racismo no Brasil.

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Introdução

Negros e indígenas estão em desvantagem na sociedade brasileira. Amplas


evidências estatísticas mostram discriminação destas categorias sociais no
nível dos salários, nas ocupações no mercado de trabalho, nas condições de
acesso e permanência na escola (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís-
tica, 2009). Embora os negros (pretos e pardos) representem 50,7% dos 190
milhões de brasileiros, segundo o censo de 2010, eles ainda ocupam uma
posição marginal na sociedade brasileira, em um cenário que tem evoluí­
do muito pouco ao longo do tempo (França & Lima, 2011). Com efeito,
em 2003, a renda mensal dos negros no Brasil foi de aproximadamente R$
690,30, sendo que a renda média dos brancos foi de R$ 1.443,30 (2,09 vezes
maior). Mesmo considerando o aumento no rendimento médio dos brasi-
leiros em 2009, praticamente não houve alteração nas desigualdades eco-
nômicas. Neste ano, cidadãos brancos ganhavam uma média de R$ 1.663,9,
enquanto que cidadãos negros ganhavam apenas R$ 847,7, em média (o
rendimento dos brancos foi 1,94 vezes maior) (Instituto Brasileiro de Geo-
grafia e Estatística, 2009).
A condição social para os 572 mil brasileiros autodeclarados indíge-
nas (0,2% da população no censo de 2000) é, talvez, pior. Mais da metade
dessas pessoas (51%) não tem renda fixa, e 32,5% delas têm uma renda

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Identidade étnica e estereótipos em crianças quilombolas e indígenas

mensal de até R$ 1.019,00 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,


2004). Além disso, há um processo avançado de demonização ou de invi-
sibilização dos povos indígenas no Brasil (Alvim, 1998; Lima & Almeida,
2010; Schwarcz, 1996).
Pertencer a minorias sociais pode afetar a identidade pessoal e social,
pois é o grupo que fornece o capital de autoestima coletiva a seus membros,
por meio do processo de comparação social. A identidade, portanto, não é
construída num vácuo social, é marcada pelo acesso diferenciado dos gru-
pos à estrutura de poder da sociedade; sendo influenciada pela conjuntura
política e econômica a que o grupo está sujeito.
O estudo da identidade étnica tem sido uma dimensão importante nas
discussões sobre identidade social em diversas áreas do conhecimento. Parti-
cularmente, na psicologia social, a compreensão de como as minorias étnicas
e raciais constroem suas identidades é uma questão central, especialmente na
sociedade brasileira — tão diversa na sua constituição etnográfica.
Com o objetivo de analisar o impacto das políticas de ação afirmativa
na identidade étnica e nos estereótipos de crianças negras e indígenas, foi
realizado este estudo, envolvendo dois grupos: crianças negras quilombolas
e crianças indígenas pertencentes à tribo Xokó, em Sergipe. Especificamen-
te, interessa-nos compreender as implicações de pertencer a uma minoria
protegida por uma política de ação afirmativa na identificação étnica das
crianças e nas suas imagens sobre o seu próprio e sobre os outros grupos.

Identidade social das minorias

A identidade social é uma parte do autoconceito do indivíduo que deriva


da sua consciência de pertencimento a um grupo social e do valor ou signi-
ficado emocional associado a essa pertença (Tajfel, 1981). Ela é forjada nas
e pelas relações sociais entre os indivíduos e grupos, sendo muito impor-
tante para a compreensão dessas relações.
O critério de determinação de pertencimento a uma categoria social é
que os indivíduos se definam e sejam definidos por outros como parte de um
determinado grupo. Entretanto, o pertencimento do indivíduo a um grupo
social só faz sentido quando contrastado com as semelhanças e diferenças

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identidade, branquitude e negritude

percebidas nas comparações entre o seu grupo e outros grupos na estrutura


social. Assim, cada indivíduo tem tantas identidades ou identificações sociais
quantos forem os grupos significativos ou associações a que ele pertence.
Para Tajfel (1981), na formação da nossa identidade tenderíamos
a procurar pertenças a grupos sociais que valorizem nosso autoconceito,
de modo que haveria uma preferência por pertencer a grupos valorizados
socialmente. Isto ocorreria porque o resultado das comparações sociais é
fundamental para aumentar ou diminuir nossa autoestima coletiva.
Nesse sentido, o preconceito está relacionado à identidade pelo menos
de duas maneiras: 1) pela busca de distintividade positiva, isto é, diferencia-
ção social e cultural de si ou do seu grupo em relação ao outro, e 2) pela pos-
sibilidade de desvalorização por parte de membros de grupos estigmatizados
quanto aos seus grupos de pertencimento. Pois, como sabemos, a percepção
das diferenças em relação a outros grupos nem sempre resulta em uma ava-
liação positiva da identidade e no favorecimento do endogrupo, às vezes im-
plica uma avaliação negativa da própria identificação social.
A emergência de uma identidade social negativa pode resultar numa
série de processos psicológicos e sociais com o objetivo de restabelecer ou
recuperar uma identidade mais positiva. Turner e Brown (1978) salientam
algumas das principais estratégias utilizadas pelos indivíduos para resta-
belecer uma identidade positiva. Uma dessas é a mobilidade individual,
mediante a qual é possível dissociar-se do grupo de pertencimento; outra
estratégia é a criatividade social, em que os padrões de comparação são re-
definidos pelos membros do grupo, quer pela comparação entre esses numa
nova dimensão ou alterando os valores relativos ao estatuto dos grupos; um
exemplo histórico seria o movimento cultural “Black is Beautiful”, ou a res-
significação do termo “raça” proposta pelo movimento negro. Nestes casos,
a dimensão de comparação permanece, mas o sistema de valores a ela as-
sociados é invertido. Há também a estratégia de competição social, na qual
os membros do grupo de baixo status tentam ascender a uma identidade
positiva, alterando a estrutura social e com isso habilitando-se a competir
com os membros dos grupos de status mais elevado.
Blantz, Mummendey, Mielke e Klink (1998) ampliam a discussão
sobre as estratégias e formas de gestão da identidade social minoritária
afirmando que os membros podem: a) realizar mobilidade social, ou

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Identidade étnica e estereótipos em crianças quilombolas e indígenas

seja, se perceber como menos negro do que os outros acham que se


é; b) categorizarem-se num nível superordenado, ou seja, definirem-
-se, principalmente, como brasileiros, ou como seres humanos, ao invés
de darem ênfase às categorias ou rótulos de cor; c) definirem-se como
indivíduos únicos, ao invés de membros de um grupo; d) realizarem
a competição social real, que implica ter acesso a benefícios materiais
compensatórios por pertencer a um grupo minoritário como forma de
reparação por injustiças sofridas; e) tentarem reverter a relação desigual
entre o endo e o exogrupo através de ações coletivas de protesto; entre
outras estratégias.

Identidade étnica na infância

A identidade e as atitudes étnicas na infância são precursores das formas


adultas, cumprindo as mesmas funções, ainda que tenham nesta fase estru-
turas mais simples; de forma que a infância é uma fase de desenvolvimento
privilegiada para o estudo da formação e expressão da identidade étnica e
das imagens dos grupos.
Para Aboud (1988), inicialmente, as crianças são dominadas por suas
emoções, preferências e estereótipos, os quais determinam suas atitudes
étnicas. A criança procura informações importantes sobre outra pessoa ou
sobre outro grupo, adotando um ponto de partida mais emocional. Nesta
lógica, importa se eles, os outros, são “bons” ou “ruins”; pouco a pouco, as
crianças começam a perceber as semelhanças e as diferenças entre si mes-
mas e os outros. A partir desse momento, as percepções vão determinar
suas atitudes étnicas. Aspectos superficiais, tais como a cor da pele, a apa-
rência, as roupas e os tipos de cabelo se tornam evidentes para elas, estru-
turando sua identificação étnica e preferências e preconceitos intergrupais.
Posteriormente, quando as atitudes étnicas passam a ser dominadas
por processos cognitivos, as percepções se organizam, e surge o processo
de categorização social, ou seja, a criança classifica as pessoas em catego-
rias. Elas começam também a considerar que a cor da pele é mais baseada
em critérios objetivos e permanentes, como herança ou origem, do que em
critérios superficiais, tais como a exposição ao sol.

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identidade, branquitude e negritude

As crianças se tornam conscientes das diferenças raciais durante o


período que vai de três a seis anos de idade; tornando-se, particularmente,
ativas na tentativa de compreender as dimensões avaliativas do seu grupo
de cor e de gênero. Nessa fase, todas as crianças são capazes de se identifi-
car com as categorias de gênero e de cor da pele (Aboud, 1988; Katz, 1983;
Phinney & Rotheram, 1987). A manifestação da capacidade de categoriza-
ção étnica em crianças, primeiro passo na aquisição de estereótipos e ati-
tudes (Katz, 1983; Tajfel, 1981), é acompanhada por uma percepção ainda
rudimentar do status social dos diferentes grupos.
Phinney e Rotheram (1987) afirmam que a maneira como as crian-
ças lidam com a sua etnia e a compreendem varia, significativamente, com
a idade, nível de desenvolvimento e contexto cultural. De forma que a so-
cialização étnica difere em aspectos importantes, dependendo do grupo ao
qual a criança pertence. Crianças de grupos minoritários estão mais cons-
cientes de sua etnia, uma vez que esta também é mais evidente para os
outros. Estudos mostram que a capacidade de se autocategorizar e perceber
o status social do grupo ao qual pertence leva a criança a experimentar
emoções contraditórias e ambivalentes sobre o seu grupo étnico. Assim, as
crianças dos grupos de baixo status experimentam uma discrepância entre
os sentimentos positivos dirigidos ao seu próprio grupo e os sentimentos
negativos associados à percepção de uma avaliação social negativa de seu
grupo (Corenblum; Annis & Tanaka, 1997).
Nesdale e Flesser (2001) observaram que crianças de cinco anos já
mostram sensibilidade para as diferenças entre o status de seu próprio gru-
po e o dos outros; essas diferenças orientam, muitas vezes, as atitudes em
relação ao seu grupo. França e Monteiro (2002) encontram o mesmo pa-
drão de resultados em crianças negras no Brasil. De forma que, quando
as crianças acreditam que é possível mudar de grupo, as que pertencem a
grupos de baixo status social desejam mudar com mais frequência do que
as de grupos de status elevado. Essas autoras ainda afirmam que o reconhe-
cimento da impossibilidade de mobilidade social, juntamente com a aqui-
sição da crença sobre a constância racial e a ênfase sobre o orgulho étnico
contribuem para a crescente aceitação da identidade étnica minoritária de
crianças mais velhas quando comparadas às mais novas.

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Identidade étnica e estereótipos em crianças quilombolas e indígenas

O impacto da ideologia do branqueamento e do seu correlato ime-


diato — “o culto da mestiçagem” — são formas de um tipo de deserção iden-
titária que podem implicar numa espécie de mobilidade social ascendente.
Existindo a deserção ou desidentificação com a categoria, as estruturas e
práticas sociais que inferiorizam determinadas formas de pertencimento
ou de ligação social mantêm-se protegidas, e pouca mudança social aconte-
ce: as pressões do sistema saem pelas válvulas, a panela de pressão continua
cozinhando sem explodir (Telles, 2006).
Os efeitos da ideologia do branqueamento podem ser percebidos
em crianças ainda muito pequenas. Em um estudo feito com crianças
pretas, mulatas e brancas com idades entre cinco e dez anos em Aracaju,
França e Monteiro (2002) verificou-se que as brancas se percebiam como
brancas em quase 80% dos casos; as mulatas viam-se em conformidade
com o seu grupo em 54% das respostas; entre as crianças pretas, esse per-
centual caía para 40%. As crianças brancas pesquisadas avaliavam a sua
pertença étnica de uma forma positiva, ao passo que as pretas avaliavam
sua pertença de forma negativa, demonstrando intenções de mobilidade
étnica.
As imagens sociais dos grupos têm enorme efeito na definição das
identidades sociais de seus membros. Os estereótipos sobre os grupos mi-
noritários são, geralmente, negativos (Fiske, 1998). Eles são comuns a mui-
tas situações e aparecem de muitas maneiras. Silva (2001), que analisou os
estereótipos nos livros didáticos no Brasil, considera que os traços encon-
trados indicam a despersonalização e a animalização dos personagens ne-
gros. As crianças negras são caracterizadas como más, perversas, famintas
e como brinquedo para as crianças brancas. Silva também verificou que os
personagens negros, geralmente, aparecem desempenhando papéis de baixo
prestígio intelectual — como cantor, dançarino, jogador etc. Eles também
são representados como escravos, e, em outros casos, como intelectual-
mente incapazes e incompetentes. Na mesma direção, Cavalleiro (2000),
pesquisando crianças de pré-escolas de São Paulo, observa que é comum
as crianças brancas definirem as crianças negras com rótulos como “negro
feio”, “negro sujo” etc. Também foi verificada a rejeição do negro como par-
ceiro nas filas, nos jogos e festas escolares.

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identidade, branquitude e negritude

Em relação aos indígenas, o cenário de racismo não é muito dife-


rente. Eles são também percebidos de forma muito negativa, sobretudo
no nível das crenças coletivas. Lima e Almeida (2010), num estudo sobre
representações sociais dos indígenas em Sergipe, verificam que os traços
considerados como mais típicos foram: selvagens, aproveitadores, pregui-
çosos, incompetentes, violentos, maus e invasores. Saiz, Merino e Quila-
queo (2009) encontram dados semelhantes no Chile.
É idealmente com o objetivo de oferecer uma solução para o pro-
blema de desvantagem social e econômica sofrida por negros e indígenas
que um conjunto de políticas compensatórias vem sendo proposto e im-
plementado nos últimos anos no Brasil. Um tipo específico de política de
ação afirmativa refere-se à proteção e garantia dos direitos de propriedade
e de meios de subsistência para quilombolas remanescentes e comunida-
des indígenas.
Nesse cenário de estigmatização social e de políticas públicas de
afirmação identitária, a questão que nos colocamos é a seguinte: como se
definem, em termos étnicos, crianças quilombolas e indígenas protegidas
por essas políticas públicas, e qual o conteúdo dos estereótipos sobre o seu
e sobre os outros grupos? Será que essas políticas públicas são capazes de
tornar positivas as identidades das crianças pertencentes a essas minorias
estigmatizadas?

Método

Participantes

Os participantes pertenciam a grupos apoiados por programas governa-


mentais de ação afirmativa. O primeiro era composto por crianças negras
quilombolas; o segundo, por crianças indígenas. Todas contatadas nas es-
colas de seus povoados — na cidade de Porto da Folha, no interior de Ser-
gipe. Foram ao todo 65 crianças de cinco a dez anos; sendo 32 indígenas e
33 negras quilombolas; 33 de sexo masculino e 32 de sexo feminino.

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Identidade étnica e estereótipos em crianças quilombolas e indígenas

Procedimentos1

As entrevistas foram individuais e tiveram lugar na sala de aula das escolas.


A entrevistadora se apresentava para a criança e fornecia as instruções do
estudo. O material de estímulo utilizado foi um conjunto de seis fotografias
que retratavam crianças indígenas, negras e brancas, de ambos os sexos. As
fotografias de crianças do sexo masculino eram apresentadas aos meninos,
e as de sexo feminino, para as meninas. As fotografias utilizadas foram pré-
-testadas em relação aos seguintes aspectos: cor da pele atribuída ou etnia
da criança, aparência física e qualidade gráfica.
A identidade étnica foi avaliada considerando as seguintes dimen-
sões: consciência de pertencimento, sentimento em relação ao grupo de
pertencimento, valor atribuído ao grupo e desejo de mudar de grupo étni-
co. Para analisar os estereótipos, utilizamos uma escala com nove atributos,
na qual os entrevistados deveriam escolher apenas uma fotografia dentre os
três grupos étnicos representados (negro, indígena e branco) para respon-
der à pergunta: “Qual destas crianças é a mais...?” Os atributos utilizados
foram: “bonita”, “bonzinha”, “estudiosa”, “briguenta”, “querida pela mãe”,
“querida pela professora”, “feliz”, “inteligente” e “rica”.

Resultados e discussão

Primeiramente, apresentaremos os resultados referentes à autocategoriza-


ção étnica, para em seguida analisarmos a identidade, o desejo de mobili-
dade social e os estereótipos. A fim de entendermos a autopercepção da cor
da pele das crianças, realizamos um teste Qui-Quadrado das respostas à
pergunta “Qual é a cor da sua pele?” Como podemos ver na Figura 1, as
crianças utilizaram oito categorias diferentes de cor da pele para se defini-
rem. A maior parte delas, 34 crianças, definiram-se como negras (negro ou
preto). As crianças indígenas se definem, principalmente, como morenas
(37,5%). O padrão de resposta de afirmação da cor da pele negra é mais

1
Todos os procedimentos éticos foram adotados seguindo a Resolução no 196 do Conselho
Nacional de Educação (CNE). O projeto foi aprovado no Comitê de Ética na Pesquisa com seres
humanos da Universidade Federal de Sergipe (UFS), sob o registro no CAAE — 0049.0.107.000-06.

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identidade, branquitude e negritude

forte nas crianças quilombolas, sendo que 23 delas (69,7%) usaram cores
escuras para se definir (escuro, preto ou negro). Devemos destacar que, fe-
notipicamente, as crianças indígenas que participaram deste estudo não
são diferentes das crianças negras; pois elas também têm pele escura e ou-
tras características em comum. Não obstante haja um forte reconhecimen-
to da sua pertença étnica, o desejo de branqueamento das crianças ainda
aparece, uma vez que oito delas se definiram como brancas.

FIGURA 1 — Frequências da autopercepção da cor da pele em função


dos grupos de pertencimento

Indígenas Quilombolas

0
marrom 1

cinza 1
1

amarelo 0
2
2
escuro 1

preto 17
8
4
negro 2
4
branco 4
5
moreno 12

Entretanto, sabemos que, para a identificação social com um gru-


po ser estabelecida, não basta apenas se reconhecer como pertencente, é
também necessário um compromisso emocional ou afetivo com o perten-
cimento. Para analisar esse aspecto, perguntamos às crianças se elas gosta-
vam de ser da etnia que escolheram (“Gosta de ser...?”). Os resultados de
uma análise de variância univariada indicam que, independente do grupo
étnico escolhido, as crianças quilombolas (M = 3.0, D.P. = 1.0) e indígenas
(M = 2.97, D.P. = 1.1) gostam de suas pertenças grupais F (1, 64) <1, ns.

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Identidade étnica e estereótipos em crianças quilombolas e indígenas

As médias dos dois grupos estão próximas ao valor de 3 (ou seja, “Eu gosto
mais ou menos de ser...”).
Quando as crianças foram questionadas se gostariam de ser diferen-
tes do que são, ou se queriam parecer com alguma criança do outro grupo,
verificou-se que menos da metade não gostariam de ser diferentes (40%).
Os outros 60% gostariam de ser diferentes um pouco (9,2%), mediana-
mente (20%) ou muito diferentes (30,8%). Não houve diferenças significa-
tivas nas respostas das crianças indígenas e quilombolas nesse aspecto, X2
(3, n = 65) = 4.31, p = 0.23.
Desse modo, ainda que digam que gostam de seus grupos de per-
tencimento, as crianças, em sua maioria, gostariam de mudar de grupo;
este desejo de mobilidade não é aleatório. Um teste Qui-Quadrado indicou
que, independentemente da etnia, as crianças gostariam de mudar para se
parecem mais com um modelo branco. Com efeito, mais de 60% das crian-
ças escolheram branco como alvo de identificação. Apenas cinco crianças
quilombolas e seis indígenas querem ser negras ou indígenas (ver Tabe-
la 1). Como observaram Turra e Venturi (1995), Degler (1971) e Harris,
Consorte, Lang e Byrne (1993) em adultos, e França e Monteiro (2002) em
crianças, a ideologia do branqueamento continua tendo muito impacto nas
relações racializadas no Brasil.

TABELA 1 — Frequências e percentagens do desejo de mobilidade étnica em


função dos grupos de pertencimento das crianças (“com qual
desses gostaria de se parecer?”)

Etnia das crianças pesquisadas


Etnia escolhida pela criança
Quilombolas Indígenas Total
5 2 7
Negra
18.5% 8.7% 14%
5 6 11
Indígena
18.5% 26.1% 22%
17 15 32
Branca
63% 65.2% 64%
27 23 50
Total
54% 46% 100,0

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identidade, branquitude e negritude

Os resultados obtidos sobre a identidade étnica das crianças indicam


que ela é complexa, e que se apresenta de modo multidimensional. As crian-
ças gostam de ser como são; mas, ao mesmo tempo, gostariam de ser dife-
rentes — queriam ser brancas. Isto pode levar-nos a pensar que as crianças já
jogam o jogo das identidades, como propõe Stuart Hall (2006). Elas já perce-
bem que é importante admitir-se pertencendo a uma certa etnia abrigada por
uma política pública; simultaneamente, sabem qual o modelo valorizado pela
cultura racista a que estão submetidas. Mas, como será que essa ambivalência
identitária impacta as imagens ou estereótipos do seu e dos outros grupos?
Para analisarmos os auto e heteroestereótipos das crianças indíge-
nas e quilombolas, realizamos testes Qui-Quadrado (ver Tabela 2), que nos
mostram que, independentemente da etnia, as crianças têm um estereótipo
mais positivo do branco do que do seu próprio grupo. A criança branca
foi considerada a mais bonita, a mais estudiosa, a mais inteligente e a mais
rica. A criança branca ainda é considerada a mais querida pela professora,
especialmente nas avaliações das crianças negras. Em contraste, a criança
negra foi percebida como a mais briguenta e a mais pobre. Ela foi ainda
considerada a menos boazinha, menos querida pela professora e menos
inteligente nas respostas das crianças indígenas. Não houve diferenças para
os traços estereotípicos “feliz” e “querido pela mãe”.

TABELA 2 — Percentagens das respostas à pergunta: “Qual dessas crianças é a


mais…?” em função do grupo de pertencimento das crianças

Etnia das
Teste
crianças O mais bonito é... Total
Qui-Quadrado
pesquisadas

Indígena Branca Negra


Indígena 21,9 68,8 9,3 100 X2(2) = 2.52, n.s.
Quilombola 12,1 84,8 3,1 100
O mais simpático é... Total
Indígena Branca Negra X2(2) = 5.45, p
Indígena 50,0 31,2 18,8 100 = .06

Quilombola 30,3 24,2 45,5 100


(Continua)

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Identidade étnica e estereótipos em crianças quilombolas e indígenas

(Continuação)

O mais estudioso é... Total

Indígena Branca Negra


X2(2) = 0.76, n.s.
Indígena 28,1 50,0 21,9 100

Quilombola 21,2 48,5 30,3 100

O mais briguento é... Total

Indígena Branca Negra


X2(2) = 1.29, n.s.
Indígena 40,6 21,9 37,5 100

Quilombola 28,1 21,9 50,0 100

O mais querido pela professora é... Total

Indígena Branca Negra X2(2) = 6.84, p


Indígena 46,9 46,9 6,2 100 = .03

Quilombola 18,2 63,6 18,2 100

O mais querido pela mãe é... Total

Indígena Branca Negra


X2(2) = 0.25, n.s.
Indígena 37,5 37,5 25,0 100

Quilombola 36,4 33,3 30,3 100

O mais feliz é... Total

Indígena Branca Negra


X2(2) = 0.43, n.s.
Indígena 38,7 35,5 25,8 100

Quilombola 37,5 34,4 28,1 100

O mais esperto é... Total

Indígena Branca Negra


X2(2) = 3.74, n.s.
Indígena 40,6 50,0 9,4 100

Quilombola 27,3 45,5 27,3 100

O mais rico é... Total

Indígena Branca Negra


X2(2) = 0.15, n.s
Indígena 28,1 56,2 15,6 100

Quilombola 30,3 51,5 18,2 100

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identidade, branquitude e negritude

Os dados da Tabela 2 confirmam os encontrados em outros estudos


(Cavalleiro, 2000; Lima; Almeida, 2010; Saiz; Merino & Quilaqueo, 2009),
uma vez que as próprias crianças indígenas perceberam seu grupo de modo
não muito positivo.
Para uma análise mais apurada dos efeitos do grupo étnico sobre os
estereótipos, construímos um índice de estereotipia, somando as oito ca-
racterísticas positivas atribuídas a cada um dos três grupos-alvo (brancos,
negros e indígenas). O indicador obtido variou de 0 a 8. Em seguida, foi
realizada uma análise de variância, tendo este índice de estereotipia como
variável dependente da etnia dos participantes. Os resultados indicam dois
efeitos ligeiramente significativos. Há um efeito da etnia dos participantes
sobre o estereótipo dos indígenas, F (1, 64) = 3.08, p = 0.08, e outro sobre
o estereótipo dos negros, F (1, 64) = 3.09, p = 0.08. Não houve efeito da
etnia dos participantes sobre o estereótipo dos brancos, F (1, 64) ≤ 1, ns.
Como podemos ver na Figura 2, os indígenas atribuem características mais
positivas para o seu grupo do que para o grupo de negros. Os negros, por
sua vez, têm uma imagem mais positiva de seu grupo do que do grupo dos
indígenas. Também chama a atenção o fato de que tanto as crianças negras
quanto as indígenas têm um estereótipo mais positivo dos brancos do que
de suas próprias etnias.

FIGURA 2 — Traços positivos atribuídos aos grupos “Branco”, “Negro” e “indígena”


pelas crianças indígenas e quilombolas

8
7
6
5 3.85
2.91 Indígenas
4
Quilombolas
3 3.75
2 2
1 2.12 1.31

0
Branco Indígena Negro

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Identidade étnica e estereótipos em crianças quilombolas e indígenas

Considerações finais

O objetivo desta pesquisa foi analisar as identidades étnicas e os estereóti-


pos de crianças negras e indígenas protegidas por Políticas de Ação Afir-
mativa (PAA) no Brasil. Os resultados encontrados indicaram que, não
obstante haja um reconhecimento de sua cor de pele ou etnia, a maior parte
das crianças se definiu como morenas, e muitas gostariam de ser de etnia
diferente da qual pertencem. Efetivamente, mais de 60% queriam tornar-se
brancas. Assim, embora as crianças negras e indígenas afirmem sua origem
étnica, este é um sentimento mais aceito do que internalizado, como verifi-
ca Kelman (1958), ao analisar as normas sociais. Algo do tipo “Eu gosto de
ser assim, mas se eu pudesse ser...”. De fato, as PAA que garantem benefícios
materiais em função de pertença social das minorias desfavorecidas têm
um impacto ainda superficial nas crianças pesquisadas.
Todavia, quando comparamos estes resultados com os obtidos tam-
bém em Sergipe por França e Monteiro (2002), com crianças negras não
protegidas por programas de ação afirmativa, observamos diferenças con-
sideráveis na afirmação da identidade étnica. As crianças indígenas e ne-
gras do nosso estudo têm uma identidade um pouco mais positiva do que
as crianças negras estudadas por essas autoras. Isso parece indicar um efei-
to positivo das políticas de ação afirmativa em análise.
A identidade é, portanto, processada em um contexto relacional,
definido pelo poder material e simbólico e pela posição dos grupos na es-
trutura social (Tajfel, 1981; Turner & Brown, 1978). Com efeito, ainda que
a norma de identificação com o grupo beneficiado tenha sido aceita pela
maioria das crianças que participaram do nosso estudo, o mesmo não acon-
teceu em outro plano representacional importante das diferenças entre os
grupos: os estereótipos. Encontramos, a esse respeito, uma forte valoriza-
ção do modelo branco. Verificamos também evidências de conflitos mino-
ritários. As crianças negras e indígenas se veem como menos positivas que
a branca e, ao mesmo tempo, veem-se como mais positivas do que a outra
minoria. A desvalorização do seu grupo em relação ao dos brancos é ainda
maior nos traços cujo conteúdo se refere à dimensão mais intelectiva dos
estereótipos, justamente a dimensão que caracteriza os grupos dominantes,
fato constatado em outros estudos (Fiske; Cuddy; Glick & Xu, 2002).

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identidade, branquitude e negritude

Esses dados parecem indicar que a construção de uma identidade


positiva nas minorias passa, simultaneamente, por assegurar benefícios so-
ciais e econômicos e transformar as estruturas simbólicas de assimetria de
poder entre os grupos. Especificamente, para as crianças, parece essencial
reverter a imagem negativa que os indígenas e os negros ainda possuem
nos livros didáticos, nos programas de TV e na sociedade como um todo.
Concluímos, então, afirmando que as crianças pesquisadas vivem
um cenário de identidades ambivalentes, típicas da era moderna: de um
lado, a força da política pública se faz sentir na afirmação identitária; de
outro, as pressões racistas do mundo em que vivemos impõem sua lógica
hierárquica da diferença e da inferioridade dos negros. Como verificaram,
em outro contexto, Corenblum, Annis e Tanaka (1997).
É importante considerar em investigações futuras o impacto do
racismo sobre a identidade étnica das crianças, comparando os níveis de
identificação étnica de crianças abrigadas por políticas de ação afirmativa
com os de outras não abrigadas, e acompanhando os efeitos dessas políticas
para essas mesmas crianças à medida que vão crescendo, num estudo de
coorte longitudinal.

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Turra, C. & Venturi, G. (1995). Racismo cordial: a mais completa análise sobre
preconceito de cor no Brasil. São Paulo: Ática.

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MEMÓRIAS QUE REVELAM:
ENTRE O SILÊNCIO
BRANQUEADOR E A
HISTÓRIA NEGADA
Giane Elisa Sales de Almeida
Marcelo dos Santos Campos
Marina Neves Nascimento Felizardo

A cidade de Juiz de Fora, apresentada no artigo, se tornou o palco da inves-


tigação sobre a influência da vida no espaço urbano na formação identitá-
ria de mulheres negras entre as décadas de 1950 e 1970. A importância de
estudar essa temática encontra-se tanto na valorização da memória ressig-
nificada no presente apresentada por essas mulheres em seus relatos orais,
quanto no sofrimento psíquico engendrado pelo espaço formador de uma
branquitude hegemônica e histórica. Investigar aspectos da educação de
mulheres negras e então traçar um panorama do que tenha sido a experiên-
cia social desse grupo foi o objetivo da pesquisa que embasou este artigo.
Tendo a memória como fonte histórica e a história oral como metodologia,
ouvimos as histórias de vida de dez mulheres negras com média de idade
de 65 anos, e buscamos desvendar experiências educativas que nos levaram
a concluir que o espaço urbano de Juiz de Fora educou, a partir das díades
proibição e fruição, silenciamento e resistência.

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Introdução

O relato se refere às décadas de 1950 a 1970, e é perscrutado com fortes


marcas da hostilidade do território urbano de Juiz de Fora à presença negra
e à persistência de sua memória frente aos mecanismos de silenciamento
e branquitude. Nossa proposta, no presente texto, é discutir o modo como
nessa cidade a presença negra é negada com o amparo da historiografia
oficial local que, por diversas estratégias identificadas como aparatos da
branquitude hegemônica, silenciou, ao longo dos anos, as memórias da po-
pulação negra presente no município. Para tanto, nossas reflexões se anco-
ram em alguns apontamentos conduzidos por uma pesquisa que, auxiliada
metodologicamente pela história oral, traçou um panorama da experiência
social e educativa comum às mulheres negras que vivenciaram o perío-
do. Essas mulheres, chamadas “iabás”, narraram suas vivências em espaços
educativos de Juiz de Fora e permitiram que na investigação se localizassem
algumas marcas de memórias da cidade, a despeito do silenciamento com-
provado sobretudo pela ausência de registros históricos sobre as variadas
formas de presença negra na história do município.
A partir dos dados da referida pesquisa, buscamos analisar, em li-
nhas gerais, alguns aspectos do silenciamento dessas memórias que se fi-
zeram presentes nas formas de apropriação e circulação no espaço urbano

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Memórias que revelam: Entre o silêncio branqueador e a história negada

juiz-forano. Considerando memória um artefato produzido no tempo pre-


sente (Bosi, 2007, p. 48), podemos dizer que, ao rememorarem as experiên-
cias vividas, e que a historiografia branqueada da cidade propositalmente
silenciou, as iabás estiveram produzindo lembranças influenciadas pelos
modos de fruição do espaço urbano vivenciados contemporaneamente,
sempre considerando as produções materiais e simbólicas advindas do si-
lenciamento da memória e da branquitude que o impulsiona. Embora os
fatos e memórias nos permitam dizer que a intenção tenha sido apagar de
vez as marcas de negritude presentes na história de Juiz de Fora, é sabido,
de acordo com Pollack (1989, p. 41), que as memórias podem ser submer-
gidas, porém não são mortas ou extintas.
Juiz de Fora situa-se na Zona da Mata Mineira, e ostenta como tra-
ço de sua memória coletiva a característica de vanguardista, em razão de
seu passado industrial ligado ao amplo desenvolvimento têxtil no início
do século XX. A memória preservada de Juiz de Fora também tem ligação
com o fato de, segundo grande parte das interpretações históricas oficiais,
ter sido a cidade “criada” sob os auspícios da modernidade, livrando-se,
segundo essa memória, de possíveis marcas e ranços colonialistas. Prova
dessa movimentação é o fato de que uma das memórias concorrentes sobre
a historiografia da cidade diz respeito à importante participação de imi-
grantes alemães e italianos nos rumos da bem-sucedida indústria, como se
tal participação fosse um acontecimento isolado, sem conexão com outras
variáveis históricas vivenciadas pelo município. Entretanto, os registros de
história oral têm dado conta do quão díspares são os registros oficiais se
comparados aos relatos de memória da própria população negra que viven-
ciou a cidade em diferentes momentos.
Nesse sentido, atentamos analiticamente para o fato de alguns his-
toriadores “preocuparem-se” com o rigor metodológico das pesquisas
que investem na reescrita da história dos negros e negras no Brasil ten-
do a história oral como metodologia. Acreditam esses historiadores que as
memórias não são fontes confiáveis de registros históricos. Descuidam-se,
no entanto, ao não observarem que também outros documentos são pas-
síveis de falibilidade, uma vez que são produzidos em contextos históricos
que não estão isentos de influências e escolhas sobre o que será ou não
registrado. Essa “desconfiança” é uma das estratégias de cerceamento da

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identidade, branquitude e negritude

branquitude hegemônica em torno das alternativas de sobrevivência insti-


tucional, simbólica e material da identidade negra. Nossa compreensão é a
de que ele tem suas raízes bem fincadas no modo como a sociedade brasi-
leira se relaciona com o legado material e subjetivo da escravidão.
Juiz de Fora não foi diferente ao organizar formas de garantir esse
silenciamento. Um bom exemplo é o fato de a historiografia da cidade, até
há bem pouco tempo, não relacionar a industrialização à atividade cafeeira,
extremamente rentável e executada pelo braço negro. Some-se a isso que a
apropriação do trabalho escravo possibilitou ganhos materiais e simbólicos
do grupo que se colocava como artífice do desenvolvimento do país e, nesse
caso, da cidade. Não há dúvidas de que essa posição beneficiou a criação
de referenciais positivos para esse grupo, tanto pela questão do status eco-
nômico, quanto pelo discurso branqueador que se caracteriza por exaltar
a brancura como um paradigma e, em contraponto, massacrar silenciosa-
mente os possíveis referenciais positivos de negritude.
É esse emaranhado de simbolismos e concretudes que nos possibilita
identificar o pacto de branquitude presente na cidade, o que Kaës (1997,
p. 38) define como um acordo tácito, cuja orientação funciona em dois ní-
veis interligados: não falar sobre o racismo e responsabilizar apenas os ne-
gros por todas as consequências das práticas racistas. Ainda segundo esse
autor, esse “acordo” tem como principal motivação o “medo branco” diante
do fato de que os benefícios materiais e simbólicos advindos da escravidão
foram indebitamente apropriados por este grupo.
Na pesquisa que nos serve de referência, encontramos os relatos
de Anastácia, única iabá que tem uma profissão de status que a permitiu
ascender socialmente se comparada às outras trajetórias. As memórias de
Anastácia, produzidas em um corpo que tenta esconder a negrura, contam-
-nos a assimilação do discurso branqueador produzido no barulho desse
silêncio. “Eu nunca fui discriminada! Nem por ser negra e nem por ser
pobre! Esse negócio de preconceito está é na cabeça”. Esse é o discurso que
Juiz de Fora se apraz em ouvir...
Como importante espaço educativo, entendemos Juiz de Fora como
um território de produção simbólica, e procuramos desvendar, a partir das
memórias das iabás, a cidade negra posta na invisibilidade pela branquitude
que conduziu a historiografia oficial do município. Situando historicamente

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Memórias que revelam: Entre o silêncio branqueador e a história negada

que o fato que melhor explica seu “surgimento” é a abertura do Caminho


Novo, estrada construída ainda no século XVIII, com o objetivo de encur-
tar a viagem entre o Rio de Janeiro e as Minas Gerais, facilitando o escoa-
mento da produção aurífera. No final do século XVIII, algumas vilas à beira
do Caminho Novo compunham o Município de Paraibuna, que mais tarde
passou a se chamar Juiz de Fora. Em 1855, contava com 27722 habitantes,
dos quais 16428 eram negras e negros escravizados.
Esse significativo contingente negro faz com que compreendamos
a afirmação de Pires (2004, p. 29), que, em seu trabalho sobre a relação
existente entre a produção do café e o surgimento da indústria, comprova
a existência de concentração fundiária que teria possibilitado a retenção
de capital necessário à industrialização. O autor defende que “[...] há algo
equivocado na hipótese de que, para o conjunto do estado de Minas Ge-
rais, o processo de industrialização esteve completamente desvinculado da
produção cafeeira” (Pires, 2004, p. 29). Então, a primeira omissão está no
silêncio histórico em torno de registrar que o mesmo braço que cultivou
a lavoura de café ergueu, também, a Manchester Mineira. Assim, é no pe-
ríodo de industrialização da cidade que se encontram as maiores lacunas
no que diz respeito à presença da população negra. O que, certamente, fez
com que, ao longo do tempo, fosse construído, no imaginário da população
juiz-forana, a ideia de um movimento de implantação e expansão industrial
ligado, exclusivamente, aos imigrantes alemães e italianos.
A intenção de retomar a história de Juiz de Fora ajuda-nos tam-
bém a apontar os usos e conformações físicas do espaço urbano como
decorrentes de um processo histórico em que forças e interesses estive-
ram envolvidos de modo a desenharem determinado padrão de cidade.
Ainda hoje, é possível traçar espaços negros e espaços brancos que não se
interpenetram e nem causam estranhamento na população de uma cida-
de que se acredita vanguardista. Vanguarda facilmente desmascarada pela
análise atenta das memórias das iabás. Nelas podemos detectar algumas
estratégias de negação e fruição, de proibição e resistência que nos per-
mitem desenhar a experiência de mulheres negras no município como
sendo um constante jogo de disputa de territórios, em que se relacionam
ininterruptamente categorias e estratégias advindas do duelo entre bran-
quitude e negritude.

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identidade, branquitude e negritude

De acordo com Oliveira (2009, p. 49-52) são três os pontos que fazem
parte do direito à cidade: o direito de ir e vir, o direito ao espaço público e o
direito aos serviços e equipamentos públicos. Com base nessa definição, o
que salta aos olhos é que as mulheres negras de Juiz de Fora eram significa-
tivamente prejudicadas nesse exercício. As iabás apontam, sem entremeios,
que a negação do espaço urbano estendia-se para além dos conflitos de classe.

Oxum: É, mas eu nunca botei os pés lá. Nunca


pus, porque os caras fazia assim, oh [faz sinal
com a mão indicando “sai!”]. Mandava sair as
crianças. Estava descalço, com roupa de esco-
la, carregando um balaio com marmita e tudo.
Então, dependendo da loja que você passava...
Ibeji: De criança, mocinha, era assim, da rua
Batista para cá, só gente rica.
Oxum: É, então.
Ibeji: Na parte baixo que a gente ia.
Pesquisadora: Mas como eles definiam quem
era rico e quem não era?
Ibeji: Uai! Não tinha que falar, era assim.
Oxum: Pra mim, a definição deles era branco.
Pesquisadora: Ah...
Oxum: Eu acredito que a definição era essa:
branco é rico, e preto é pobre, então ficava pra lá.

Oliveira (2009) aponta que, historicamente, a cidade é, por exce-


lência, o espaço geográfico onde são projetadas as demandas sociais e
pessoais de cada indivíduo, como o lugar do direito. Sendo assim, ao se-
rem segregadas, na reprodução da vida cotidiana, do direito à cidade,
através da negação do acesso a determinados pontos do centro urbano, a
população negra e, particularmente, as mulheres negras, estavam sendo
impedidas de usufruírem o direito de ter direitos. Desse modo, a aliena-
ção em relação a essas garantias comprometia esse grupo populacional,
não só física, mas também subjetivamente. A dimensão racial, além da
econômica, será responsável por constituir, no espaço urbano de Juiz de
Fora, novas modalidades de territórios como resposta à imposição dessa
segregação socioespacial.

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Memórias que revelam: Entre o silêncio branqueador e a história negada

Segundo Milton Santos (2003), território, em si, não é um conceito,


ele só passa a ser um conceito, para qualquer tipo de análise social, quando
é considerado “[...] a partir de seu uso, a partir do momento em que o pen-
samos juntamente com aqueles atores que dele se utilizam” (Santos, 2003,
p. 22). Nesse sentido, foi por meio das formas de utilização do espaço ur-
bano pela população negra que se desenhou, através dos relatos de memó-
ria, os espaços que se configuraram como territórios negros na cidade. Os
relatos das iabás mostram que nessas vivências era possível experimentar
o sentimento de pertença que se forjava na movimentação de resistência.
Fora desse arranjo, o que se vivenciava eram as práticas da branquitu-
de desenhando os territórios proibidos à fruição de corpos negros. Esse
desenho branqueado expressou-se em práticas sociais de grande função
pedagógica que ensinaram o movimento de resistência à população ne-
gra à medida que os espaços eram negados, mas que também produziram
identidades esfaceladas pela impossibilidade de se sentirem pertencentes
ao território onde estavam depositadas suas esperanças, sonhos e projetos.
Castells entende cultura urbana como sendo a “difusão de sistema
de valores, atitudes e de comportamentos” (citado por Bernardi, 2006,
p. 19). Sendo assim, foi a partir desse sistema de valores e, principalmen-
te, de atitudes e comportamentos, que Juiz de Fora educou sua população.
Negros e brancos. A própria cidade ensina o enquadramento de ser mulher
negra em Juiz de Fora. Enquadramento que tem, como principal execu-
tor pedagógico, a postura pacífica e descomprometida dos herdeiros desse
processo altamente identificado com as práticas da branquitude. Compre-
ender esse conjunto de representações é parte necessária ao entendimento
daquilo que Dietzsch (2006, p. 730) chama de cidade subjetiva que, para
essa autora, não se expõe de pronto à vista. A defesa da necessidade em
descobrir essa cidade subjetiva está no fato de que, atrás da cidade que se
vê, há outra a ser desvendada. Perscrutando as iabás, foi possível encontrar
essa cidade ocultada.
O fato mais curioso encontrado nas memórias das iabás é, sem dú-
vida, certos fragmentos que fazem referência à circulação pela Rua Halfeld,
e os acordos tácitos envolvendo essa movimentação. Das dez mulheres ne-
gras entrevistadas, sete apresentam em suas lembranças episódios relati-
vos à “restrição” quanto à circulação. O trecho “permitido” ao trânsito de

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identidade, branquitude e negritude

negros era conhecido como “parte baixa”, e era ali que estavam localizados
os clubes de baile frequentados por mulheres e homens negros — sem ris-
cos de constrangimentos. Um desses clubes, o Elite Clube Mineiro, é apon-
tado pela historiografia, e relatos como o local aonde os homens da elite
juiz-forana iam às noites de quinta-feira “[...] para aprenderem a dançar
com as mulatas e depois exibir os passos com as damas do clube tradicio-
nal”. Outro clube da parte baixa onde era permitida a frequência de negros
e negras era o Quem Pode, Pode, conhecido como “PP”.
Encontramos nos depoimentos algumas estratégias de ressignifica-
ção de espaços, aos quais identificamos como resistência de negritude. Um
exemplo é o fato de encontrarmos referências à Rua Marechal Deodoro, pa-
ralela à primeira, como sendo a rua dos negros. Ao referir-se a essa via, Euá
a aponta como o local onde os negros se sentiam mais à vontade. Segundo
ela, “[...] a Marechal era a concentração dos negros”. Na Rua Marechal, na
primeira metade do século XX, fora aquela onde o comércio era voltado
para os trabalhadores de baixa renda, “[...] geralmente negros e mulatos”.
No período analisado, a rua é resgatada das memórias como sendo o espaço
dos negros de Juiz de Fora e, ainda, curiosamente, a rua é lembrada como
a que concentrava um grande número de comerciantes sírios e libaneses.
Euá se refere à extensão da Rua Marechal como sendo “tudo de turco”, e dá
detalhes, inclusive, da estética das lojas e, alegremente, relembra os pas-
seios pela via. Na conversa com Euá, Oxum e Obá, percebe-se a indignação
quanto à restrição ao direito de ir e vir. Além da busca, e por que não dizer
conquista, de um espaço que conferia pertença e identidade, identificamos
também estratégias de resistência de negritude encontradas pela população
negra juiz-forana.

Euá: [...] A Rua Halfeld, do Cinema Palace pra


cima, era os brancos, e os negros era bem a par-
te baixa.
Ibeji: Na parte baixa que a gente ia.
Iemanjá: Na Rua Halfeld, só andava praticamen-
te os brancos, e na Marechal, os negros.
Oxum: Era. O que eu via era isso, uma loja aqui,
outra colada. Tinha roupa bonita, sapato bonito.
Mas você vê, eu não podia chegar muito perto,

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Memórias que revelam: Entre o silêncio branqueador e a história negada

não, porque o pessoal mandava...


Ibeji: Sai fora.
Oxum: Circular. “Circula, minha filha”, tipo assim.
Obá: Só sei que a polícia me barrou. Mas eu falei:
“Só vou ali embaixo”. Eu estava com um cordão.
Ele falou: “O cordão foi roubado!” Sorte que mi-
nha tia apareceu. Apareceu, não, ela tava...
Pesquisadora: Que isso, gente! Mas aí, o que é
que falava?
Obá: “Você sabe o que acontece com negro va-
diando, passeando?” Aí eu dizia “mas eu não tô
passeando, não, eu vou ali, comprar verdura pra
minha tia”.
Maria Conga: Nós também não podia passar da
Rua Halfeld pra cima, era só da Rua Halfeld pra
baixo...
Pesquisadora: Ah, não podia, não?
Maria Conga: Na esquina da Batista para cima,
não podia, não!

Entre 1950 e 1970, o espaço urbano juiz-forano já havia sido organi-


zado de modo a manter os grupos negros e brancos espacialmente segrega-
dos. Além disso, houve um empreendimento em silenciar as memórias dos
lugares transformados em territórios negros, assim, grande parte das regiões
onde se instalaram as famílias negras foram tendo sua nomenclatura altera-
da, como que num esforço de apagamento da memória. Alguns desses terri-
tórios receberam outros nomes: a Serrinha se transformou em Dom Bosco;
o Bota N’Água, em Costa Carvalho; a Grota dos Macacos, em Centenário; o
Megiolário, em N. S. Aparecida; Cachoeirinha, em Santa Luzia; Arado, em
São Benedito; Bomba de Fogo, em Cruzeiro do Sul; Arraial do Sapê, em Cas-
catinha, e, por fim, o Lamaçal, em Alto dos Passos e Bom Pastor.
Nessa observação, não existe a possibilidade de desconsiderar que
um importante aspecto da memória coletiva foi esse movimento de ocul-
tamento e impedimento, que fizeram parte das vivências de um grupo po-
pulacional que esteve presente por toda história da cidade. Santos (2001,
p. 20), propõe que para conceituar e discutir o conceito de território, um

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identidade, branquitude e negritude

dos primeiros aspectos a serem observados é o modo como os grupos se


identificam com o espaço a ser utilizado. Para ele, os grupos devem estar em
constante identificação com o espaço, uma vez que é justamente essa identifi-
cação que possibilita a um espaço ser identificado como território, na medida
em que os grupos não só utilizem sua extensão, mas também dela se apro-
priem. É nessa interação que estão presentes as disputas e convenções que
abrigam as relações de poder que irão caracterizar determinado território.
Destarte, devemos pontuar que o processo de construção da identi-
dade é elaborado sempre de maneira coletiva e, é sabido, que esse processo
sofre influências que se ancoram no modo como os grupos se relacionam
com os territórios a que pertencem. No caso de Juiz de Fora, podemos
apontar a existência de conflitos identitários de sua população, uma vez
que a apropriação do espaço não foi exercida de modo satisfatório, já que
tal fruição estava cerceada, inclusive, pelo impedimento direcionado aos
corpos negros.
Ao relacionarmos as memórias negras aos estratagemas do branquea-
mento, pudemos perceber como Juiz de Fora esteve de maneira eloquente
compondo todo o movimento branqueador vivenciado pelo Brasil ao longo
de sua história. O mesmo movimento branqueador que ainda hoje caracte-
riza a vida da cidade.
O ocultamento da memória negra impossibilitou que até hoje as vi-
vências de negritude fossem ressignificadas e se transformassem em patri-
mônio imaterial. Desse modo, pouco se sabe sobre a existência de reizados,
folias de Reis, Congadas e outras manifestações tão presentes nas regiões
onde outrora existiu a atividade cafeeira, como foi o caso de Juiz de Fora.
À “boca miúda”, ouve-se dizer das diversas desconfianças em relação à
presença negra na cidade, porém, nada ainda foi resgatado. Desse modo,
permanece apenas a desconfiança e as resistentes histórias de quem teve
a memória de seu grupo submergida pelos interesses do pacto narcísico:
o cemitério de negros no terreno onde hoje é a universidade federal; as
lembranças que contam de um penhasco de onde mulheres negras resis-
tentemente se atiravam; a existência de quilombos onde hoje se localizam
bairros de concentração negra... E assim pensa caminhar a “Princesa de
Minas” com passos bem firmes por sobre a história negra e fingindo não
ouvir seu barulhento silêncio branqueador.

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Memórias que revelam: Entre o silêncio branqueador e a história negada

Referências

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Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba.
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Companhia das Letras.
Dietzsch, M. J. M. (2006). Leituras da cidade e da educação. Cadernos de Pesquisa,
v. 36, n. 126, pp. 727-759.
Kaës, R. (1997). O grupo e o sujeito do grupo: Elementos para uma teoria
psicanalítica do grupo. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Oliveira, M. P. de. (2009). Utopia do direito à cidade: possibilidade de superação
da dicotomia favela — bairro no Rio de Janeiro. GEOgraphia, v. 7, n. 14, pp.
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P. Neves; I. J. G. Delgado; M. R. de Oliveira. (Orgs.). Juiz de Fora: história, texto,
imagem. Juiz de Fora: Funalfa Edições, pp. 27-46.
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Santos, M. (2001). O retorno do território. In ______.; M. A. A. Souza, ; M. L.
Silveira, (Orgs.). Território: Globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec,
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-informacional. São Paulo: Hucitec.

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IDENTIDADES:
CONTRAPONTO ENTRE A
AFIRMAÇÃO RACIAL E
A PERTENÇA RELIGIOSA NA
CIDADE DE MACEIÓ
Lwdmila Constant Pacheco

Este trabalho tem o objetivo de analisar a relação de influência entre o per-


tencimento religioso e a afirmação da negritude. Para tanto, realizamos
entrevistas individuais com dois grupos religiosos distintos: seis pessoas
da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e seis pessoas do candom-
blé (conhecido como xangô, em Alagoas), selecionadas pelo tempo em que
estão inseridas na religião, já que um dos objetivos é a comparação gera-
cional. Realizamos entrevistas semiestruturadas e análise qualitativa. Os
resultados indicam que os discursos referentes à afirmação racial diferem
qualitativamente nos candomblecistas. Assim, como os candomblecistas,
em sua maioria, se assumiram negros, o tempo de inserção na religião tam-
bém demonstrou mais ou menos comprometimento identitário-racial, ao
contrário dos iurdianos que, além de não se afirmarem negros, ainda asso-
ciaram valores negativos à qualquer referência africana.

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Introdução

Segundo Fanon (2008), a ideologia que ignora a cor pode apoiar o racismo
que nega, e a indiferença à cor dá suporte a uma cor específica: o branco.
Tratando-se de identidade negra no Brasil, a afirmação de Fanon deixa
à mostra a contradição da afirmação da negritude: num país em que é
divulgada a não existência de raças distintas, a não existência do racismo,
alguém que se afirma negro estaria assumindo para si toda a responsabili-
dade dessa segmentação racial, já que lhe foi dada a opção de ser mestiço,
que é uma posição mais amena, e, consequentemente, todo o estigma que
é atribuído à população negra. Assim, discorreremos mais especificamen-
te sobre a identidade atrelada ao conceito de negritude, entendendo a afir-
mação a partir do contexto religioso, ao qual pertencem os entrevistados,
quais sejam: o Xangô e a Igreja Universal do Reino de Deus. Isto é, enten-
der como a identidade religiosa influencia a negritude, e vice-versa. Para
tal, fizemos um recorte geográfico abordando o estado de Alagoas como
nosso foco.
No contexto das relações de poder e dominação vividas historica-
mente pelos negros no Brasil e na diáspora, a construção de elos simbólicos
vinculados a uma matriz cultural africana tornou-se primordial na traje-
tória da vida política dos negros brasileiros. Visto que o processo histórico

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Identidades: Contraponto entre a afirmação racial e a pertença religiosa...

que insere o negro no Brasil é caracterizado pela escravidão, pela opres-


são e pelo racismo, constituindo ideais negativos que excluem dos negros
quaisquer qualidades passíveis de admiração, ser negro no país é afirmar-
-se negro, não se limitando à tomada de consciência de uma diferença de
pigmentação ou de uma diferença biológica entre populações negras e
brancas ou negras e amarelas, já que, com as desvantagens sociais de ter
uma descendência africana, há uma busca natural pela camuflagem de tais
características. As relações sociais, culturais, educacionais e identitárias es-
tão inseridas, pois, na articulação entre individual e social, entre passado
e presente, sendo incorporadas, ao mesmo tempo em que incorporam a
dinâmica do particular e do universal (Gomes, 2005).
Sendo a identificação grupal um pré-requisito para a identidade
pessoal, ou vice versa, a língua se torna a principal forma de expressão
dessa afirmação e desse pertencimento. O discurso, enquanto meio di-
vulgador de parcialidade grupal, possibilita a adesão de outros negros
por meio da identificação. Uma vez que se afirmar negro articula sen-
timentos de “comunhão” entre pessoas que assim também se conside-
ram. Acreditamos que uma parte importante dessa transmissão está na
própria estrutura comum a essas narrativas, isto é, em seus elementos
interindividuais, ou discursivos, que realizam a tarefa, tanto no que diz
respeito aos sentimentos de pertencimento quanto às narrativas e modos
de expressão. Em outras palavras, o discurso negro não é apenas uma
expressão de determinados sentimentos identitários, mas também um
mecanismo que cria o individual enquanto uma coletividade.
Além disso, a linguagem mantém uma relação íntima com a cogni-
ção. É somente por meio da representação linguística que o reconhecimen-
to social e cultural da “realidade” se torna possível. Por outro lado, tudo
aquilo que é nomeado pode ser considerado “real”, mesmo se a sua “rea-
lidade” repousa unicamente sobre o fato de ter sido nomeado, adquirindo
assim significado cultural (Schneider, 2004).
A expressão verbal e política do assumir-se negro, do demonstrar
orgulho por ser negro, torna-se referência positiva para que outras pessoas,
que não se consideram negras devido ao estereótipo negativo que essa con-
sideração acarreta, passem a ressignificar essa possível condição de ser ne-
gro e construam uma postura mais leve frente a essa possibilidade.

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identidade, branquitude e negritude

Sobre Alagoas pouco se encontra no vasto material científico brasileiro


a respeito das religiões de matriz africana no decorrer do século XX e início
do XXI. Manuel Diégues Júnior, em seu livro O Bangüê das Alagoas, fala que
infelizmente os arquivos alagoanos são de uma pobreza lamentável: “Ao que
se conta, certa ocasião, um chefe de Estado mandou tocar fogo na papelada
quase tricentenária existente nos arquivos da vetusta cidade das Alagoas, para
desocupar lugar” (2006, p. 27). Esse suposto desinteresse ou esquecimento por
parte dos pesquisadores locais deve-se a vários fatores, sendo o maior deles
o evento ocorrido em fevereiro de 1912, conhecido como Quebra de Xangô,
momento em que terreiros e seus adeptos sofreram agressões físicas e morais.
Evento esse que Cavalcanti e Rogério (2008) definem como um trauma social
que dificultou por décadas a afirmação afrorreligiosa no Estado de Alagoas, e
desencorajou o envolvimento no estudo do tema.
Rafael (2004) atesta que em outros estados do Brasil houve episódios
semelhantes ao da Operação Xangô, mas que a historiografia e etnografia
brasileira mostram como casos isolados contra indivíduos específicos acusa-
dos de curandeirismo ou baixo espiritismo. Já em Maceió, observou-se uma
invasão repentina dos terreiros e o desbaratamento das práticas desenvol-
vidas em seu interior, conservando dessa tradição apenas uns poucos des-
pojos recolhidos naquelas casas, que se tornaram objeto de uma exposição
zombeteira, que, segundo esse autor, conserva na sua escolha uma intenção
de usá-los como um tipo de punição exemplar. Por conta da violência e una-
nimidade da ação contra as Casas de Xangô, muitas tradições afrorreligiosas
migraram para outros estados do Nordeste. Alguns afrorreligiosos que se
mantiveram em Alagoas abandonaram a religião por medo de novos ata-
ques, ou por descrença causada pela devassa e desrespeito aos ídolos e à reli-
giosidade, perdendo legitimidade nessa ação. Outros religiosos conti­nuaram
praticando suas crenças, porém com modificações significativas: passaram
a esconder-se, sendo que antes os terreiros se localizavam em bairros cen-
trais de Maceió, tiraram as referências africanistas das fachadas das suas casas
de axé, assim como as dos salões principais, que eram adornados com uma
simples mesa branca, e aboliram o uso de atabaques e instrumentos de per-
cussão, para evitar o alarido denunciativo de antes. O xangô de Alagoas se
confundiu em sua aparência com o espiritismo kardecista por causa de sua
estrutura ritual, ou se tornou xangô traçado, isto é, o xangô misturado com

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práticas indígenas, também conhecido como xangô de caboclo, no intuito de


dissimular a repercussão negativa que se seguiu aos acontecimentos de 1912.
Assim, a Operação Xangô, precedida por outros fatores históricos de
caráter coronelista e sanguinários (Brandão, 1981), fez com que se tornasse
difícil assumir-se afrorreligioso e, consequentemente, negro.

Métodos

A partir da perspectiva de que a identidade é construída por uma conscien-


tização compartilhada e mantida por um ideal político, buscamos a inter-
locução com sujeitos de contextos religiosos distintos para que os mesmos,
respondendo a questionamentos similares, nos possibilitassem enfoques
diferentes de uma mesma questão: a afirmação racial à partir da perspectiva
religiosa. O foco da pesquisa é a autodefinição racial, a afirmação religiosa
e a relação de mútua influência entre as duas formas de identidade. Decidi-
mos por entrevistar adeptos do candomblé e da Igreja Universal do Reino
de Deus por esta ser uma religião popular, agregando entre seus membros
número significativo de pessoas pertencentes às classes populares e de pes-
soas negras, e que, em contrapartida, tendem a criticar as religiões e os
cultos de matriz africana.
Selecionamos pessoas pelo tempo em que estavam nas instituições:
requisitamos pessoas neófitas e pessoas com mais tempo, e desses dois ti-
ramos a média para a escolha das pessoas da geração intermediária. A es-
colha por faixas de tempo de inserção distintas se justifica pela intenção de
realizar um estudo geracional com a escolha de dois membros representa-
tivos de cada geração. Foram entrevistadas seis pessoas da Igreja Universal
do Reino de Deus (IURD): duas pessoas com mais de dez anos na IURD,
outras duas com tempo igual ou inferior a cinco anos, e mais duas que con-
tam com no máximo um ano de visitas aos cultos iurdianos.
Do mesmo modo, participaram desse estudo seis pessoas da religião
do candomblé, com o mesmo critério de seleção das pessoas da IURD: duas
pessoas com mais de dez anos de dedicação ao candomblé, duas pessoas com
menos de dez anos, e mais duas que ainda não foram iniciadas e se conside-
ram apenas simpatizantes.

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Todos os participantes foram abordados dentro de suas igrejas ou


nos terreiros de candomblé. Utilizamos a entrevista semiestruturada como
instrumento de coleta de dados. O que trabalharemos no momento é a ca-
tegoria identidade racial.

Resultados e discussões

Nomenclatura:

1a Geração
Candomblé 1 — Egbômi1 com 22 anos de iniciação e 24 anos de participa-
ção no candomblé.
Candomblé 2 — Egbômi com dezesseis anos de iniciação e 22 anos de par-
ticipação no candomblé.
IURD 1 — Ex-obreiro2 com mais quinze anos de adesão à IURD e dez anos
de batismo.
IURD 2 — Pastor há cinco anos, batizado há dez anos na IURD, frequenta há
quinze anos.
12

2a Geração
Candomblé 3 — Ekedi3 com nove anos de Candomblé, porém ainda não for-
malmente iniciada, convive no candomblé desde que nasceu.
Candomblé 4 — Iaô4 com um ano de iniciação no candomblé e três anos e
meio de adesão à religião.
IURD 3 — Obreira5 com cinco anos de batismo na IURD.
IURD 4 — Obreira da IURD há dois anos, batizada há um ano e meio.
5

1
Homem que terminou o período de iniciação de 7 anos no candomblé.
2
Obreiro é o nome dado ao religioso que, além de acompanhar os rituais litúrgicos, faz atividades em prol
da religião, como o proselitismo. Ex-obreiro é alguém que não faz mais tais atividades extra-litúrgicas.
3
Cargo feminino no candomblé com função de atender os orixás quando incorporados nos demais
participantes. Não incorpora.
4
Iniciado no candomblé que entra em transe nos rituais.
5
Obreira é o nome dado ao religioso que, além de acompanhar os rituais litúrgicos, faz atividades
em prol da religião, como o proselitismo.

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3a Geração
Candomblé 5 — Simpatizante do candomblé, frequenta desde que nasceu,
mas não pretende se iniciar.
Candomblé 6 — Simpatizante do candomblé há um ano, faz consultas e fre-
quenta festas públicas.
IURD 5 — Visitante da IURD há oito meses.
IURD 6 — Visitante da IURD há dois meses.

A primeira pergunta pedia a definição física dos entrevistados. A


ideia é que essa primeira pergunta guiasse as demais respostas, já que ela
posiciona o sujeito num determinado lugar sociorracial (enquanto negro,
branco, moreno).

Primeira geração

1,63 m, creio eu. Assim, eu não me acho gordo,


mas, assim, meio gordo. Pronto! A pele negra, que
mais? Cabelos pretos, olhos castanhos. Para mim,
ser negro é importante, não sei como descrever
qual é a importância de ser negro, até porque ser
negro pra mim é ser eu, é ser algo, assim, de luta,
ou ser guerreiro. Ser uma pessoa que passou por
várias superações (Candomblé 1).

No discurso afirmativo da negritude, está inclusa a valorização de


caracteres tidos como típicos da população negra, como a força, seja ela
física ou simbólica. Afirmar-se significa atribuir caracteres positivos à iden-
tidade, construídos historicamente ou simbolicamente.

Eu sou negra, tenho 1,60 m, sou gordinha [risos]


não tenho problema com isso. Tenho orgulho, as-
sim, de ter cabelo pixaim, de ser negra mesmo.
[...] Gosto, gosto, sim! Gosto de ser assim, gos-
to de ser dessa cor. [...] Pra mim, ser negra? Eu
acho muito importante [ser negra] [...] eu acho

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importante por conta da história do negro, né? Da


nossa história, da nossa ancestralidade. Tenho
consciência de que vim de família de reis, rainhas
e tal. Aí eu me sinto descendente de gente impor-
tante demais. Aí me sinto bem (Candomblé 2).

Notamos que as duas pessoas selecionadas para representar a pri-


meira geração no candomblé se assumem negras e, mais do que isso, pos-
suem um discurso afirmativo, de valorização dessa descendência.

1,68 m, moreno, preto, você é quem sabe qual a cor.


Pra Jesus, outra coisa, Deus não tem “ah, porque
é tão neguinho! Ah, porque...” não, Jesus não tem
previsão de cor. [...] Gosto, gosto porque é a minha
cor que Deus deixou. Se ele me quisesse branco,
me tinha feito branco, se ele quisesse amarelo me
tinha feito amarelo, ou vermelho, entendeu? Então,
sou moreno, porque o negro é aquele galego dos
olhos bem vermelhinho, aquele é o nego genuíno,
que você olha bem de pertinho [...] então, é esse
tipo de coisa [risos] (IURD 1).

O IURD 1, apesar de sua consciência de pigmentação da pele, não


demonstra querer assumi-la identitariamente. Assim, o “gostar” de ser mo-
reno ou preto parece estar mais ligado a uma conformação da escolha divi-
na do que ao orgulho de fato.

1,75 m, moreno, mas o quê? [risos] [...] [Gosta da


sua aparência, de sua cor?] Com certeza, apesar
que tem que melhorar cada dia mais, porque na
posição de quem nós se encontramos o visual é
muito importante, pelo que as pessoas sempre
esperam ver na gente sempre o melhor, então
tem que melhorar sempre mais, mas me sinto
feliz (IURD 2).

O IURD 2, pastor da Universal há cinco anos, apresenta resposta eva-


siva sobre seu fenótipo, já que fala dele como uma possibilidade mutante,

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uma possibilidade de ocultar algo. Ambos iurdianos não enfatizam a auto-


definição como assunto a se estender, possivelmente não possuem a negri-
tude como ponto de referência, como identidade.

Segunda geração

1,54 m, 41 kg, magra, mas me sinto bem comigo;


cor da pele, clara; cabelos longos, cacheados e
castanhos; cor dos olhos, castanho escuro. Sou
brasileira, multiétnica! Não tenho traços defini-
dos, que identifiquem uma determinada região.
Sou a mistura dos traços (Candomblé 3).

A Candomblé 3, de 26 anos de idade, mesmo se definindo fisica-


mente por traços não negros, afirma-se multiétnica. Supondo que no can-
domblé esse tipo de afirmação identitária com conotação política, mais que
biológica, é esperada, visto a religião ser explicitamente de matriz africana
e sofrer perseguição de outros segmentos tidos como “brancos”, buscamos
conversar também com pessoas sem o fenótipo negro. Essa escolha se justi-
fica pela ideia que temos de constatar se a pertença ao candomblé, religião
negra, favorece a consciência negra, tanto em negros como em brancos.

[Minha cor da pele é] amarela. Sim. Bem.


Comum, nem mais nem menos que ninguém. É
complicado, embora tenha a pele clara, também
sou descendente de negros e índios. Sinto-me
negra-índia, tão forte em meu ser, embora seus
traços não se revelem muito em mim fisicamen-
te. Me aceito como sou (Candomblé 3).

O Candomblé 4, Iaô de 27 anos de idade, também se define com a pele


clara: “Alto, pele clara, cabelos cacheados” (Candomblé 4). E quando pergun-
tado se gosta de sua cor e a importância de sua aparência para sua vida, ele
responde de uma forma que demonstra consciência em relação à posição que
ocupa, enquanto não negro numa sociedade racista:

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Sim, confortável. Sou amarelo, e no contexto bra-


sileiro de racismo e preconceito, ter a pele clara
é algo confortante (Candomblé 4).

Os representantes da segunda geração do candomblé possuem a pele


clara, ambos se descrevem também dessa forma, definem-se como amare-
los, porém cada um tem uma forma particular de se afirmar: enquanto a
primeira se afirma multiétnica, sentindo-se negra e índia, o segundo não
declara nenhuma mistura.
Em relação aos representantes da Igreja Universal nessa segunda ge-
ração, não houve mudanças significativas na forma de se descrever fisica-
mente. A IURD 3, uma mulher de 26 anos de idade, descreve-se de forma
similar aos demais iurdianos apresentados, sem ênfase numa possível afir-
mação identitária racial:

Tenho 1,60 m, sou morena, tenho cabelos longos,


pretos, olhos castanhos escuro (IURD 3).

Quando questionada sobre sua aparência, se está satisfeita, se gosta,


a IURD 3 responde: “Gosto” (IURD 3).
A IURD 4, mulher de 22 anos de idade e há dois anos na Igreja Uni-
versal, expressa mais explicitamente essa reprodução ideológica de que
existe um padrão estético melhor que o negro:

Sou morena, cabelos e olhos castanhos, baixi-


nha, nem magra e nem gorda. [Gosta de ser as-
sim?] Gosto, mas também gosto de mudar. Antes
de eu ser da igreja, eu vivia pintando o cabelo.
Às vezes tenho vontade de pintar de vermelho,
mas acho que o pastor não iria gostar, não sei. Aí
eu só faço dar chapinha, porque eu não gosto do
meu cabelo ruim (IURD 4).

A expressão “cabelo ruim” é a típica descrição do cabelo crespo, ori-


ginário do cabelo carapinha da maioria dos africanos que aqui aportaram.
Tal expressão é usada costumeiramente para desvalorizar essa herança ne-
gra. A IURD 4 ainda reforça, quando questionada, que não gosta de seu
cabelo e que não estaria feliz consigo:

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Gosto do meu cabelo liso, o cabelo ruim não gos-


to, não (IURD 4).

Essa afirmação de que gosta do seu cabelo liso, e não dele ruim, indi-
ca a fluidez das posições raciais no Brasil. Situação em que um mestiço pode
ocupar lugares diversos, dependendo de sua capacidade de se transmutar
em moreno, moreno de cabelos “lisos”, cacheados, exceto cabelo “ruim”.

Terceira geração

Moreno, alto, magro, meio dentuço [risos]. [...]


Gosto de ser como sou, Deus me fez assim, en-
tão eu agradeço (IURD 5).

No discurso da IURD, em alguns casos, percebemos uma acomoda-


ção à decisão divina, já que Deus é quem escolhe a aparência de cada um.
Não conseguimos definir se o gostar de ser como se descreveu é um gostar
de fato ou um conformismo.

Sou morena, alta, cabelos longos e cacheados,


nem gorda nem magra [risos]. [...] Gosto de ser
assim, me acho bonita, gosto da cor de minha pele
morena, dos meus cabelos [...] (Candomblé 5) .

Tenho a pele morena, cabelos cacheados, ma-


gra. [...] Gosto, é gosto (IURD 6).

Baixinha, olhos grandes e escuros, cara de quem


veio do Oriente Médio, nariz grande, nem gorda,
nem magra, talvez um pouco acima do peso que
muitos por aí tem como padrão; uso vários brin-
cos e uso piercing. Sou morena, tenho cabelos
escuros atualmente, sou baixinha, tenho 1,60 m,
e adoro meu biótipo (Candomblé 6).

Em relação à IURD não notamos diferença significativa, tanto o


IURD 5, de 25 anos, quanto a IURD 6, de 21 anos, descreveram-se morenos,

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assim como os entrevistados das gerações anteriores. Já a Candomblé 5, de


28 anos de idade, deu certa ênfase à sua cor de pele, que, segundo nossa
percepção, é negra, mas se define como morena. Stuart Hall (2009) nos diz
que na situação de diáspora, as identidades se tornam múltiplas, hifeniza-
das, como “afro-brasileiro”, e ser moreno é consequência do processo de
mistura e colonização do Brasil.
No quesito identidade racial, duas pessoas da primeira geração e
uma da segunda geração do candomblé afirmaram sua afrodescendência, a
outra pessoa da segunda geração se afirmou branco, mas demonstrou estar
ciente do papel menosprezado do negro na sociedade, admitindo o quão
cômodo é ter a pele clara nesse contexto. Na terceira geração não houve
afirmação da negritude, mas sim a típica descrição da morenidade, que é
aceita, visto que ambas as entrevistadas poderiam tanto se afirmar negras,
pela cor e traços físicos, como morenas, pela textura do cabelo. Já na IURD,
em que todos os entrevistados possuem traços, cor e cabelo “de negro”, ne-
nhum deles se assumiu enquanto tal. Todos se definiram como morenos, e
dois deles ainda menosprezaram os traços negros que possuem: uma disse
não gostar de seu cabelo “ruim”, e o outro disse não ser negro.
No caso do candomblé, entre as pessoas entrevistadas, definimos
quatro como negras, pela cor da pele escura ou pelo cabelo crespo e traços
físicos típicos da afrodescendência. Entre essas quatro, duas (terceira gera-
ção) possuem a cor da pele escura, porém com o cabelo ondulado. Por esse
motivo, não conseguimos detectar se a não declaração da negritude nessas
duas pessoas têm a função de se livrar do estigma de serem negras, ou se é
por não serem vistas como tal socialmente. Questionamo-nos sobre a iden-
tidade negra na terceira geração porque um dos entrevistados da primeira
geração tem a pele escura, mas assim como as duas da terceira, possui cabe-
los ondulados. E, mesmo podendo afirmar-se como moreno, ele se definiu
como negro. Enfim, percebemos que mesmo as pessoas da terceira geração
podendo assumir-se morenas, sem que essa declaração se contradiga com o
seu fenótipo, acreditamos que se estivessem imersas há mais tempo ou com
dedicação ao candomblé, essa afirmação poderia mudar, se comparadas às
declarações das gerações anteriores a ela.
Na Igreja Universal, quatro possuem cabelos crespos e pele escura, e
dois possuem pele escura e cabelos cacheados. Isto é, pela nossa percepção,

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todos poderiam se afirmar negros, excetuando os dois de cabelos ondula-


dos que, pela textura do cabelo, poderiam definir-se, também, como mo-
renos. Porém, nenhum deles se afirmou negro, todos se definiram como
morenos. Para nós, esse resultado demonstra que, no Brasil, ser negro ain-
da é visto de forma pejorativa (ver a definição de quem é negro no teste-
munho de IURD 1), e num país em que ocorreu uma forte miscigenação,
ausente em qualquer outra nação, assumir-se moreno é uma posição mais
leve e menos carregada de preconceitos. Então, percebemos que indepen-
dente da geração, se o indivíduo não estiver num contexto de valorização
da africanidade, dificilmente ele assumirá a sua afrodescendência.

Conclusões

Nossa hipótese de que a religião influi na afirmação da negritude foi corro-


borada pelas respostas dadas pelos adeptos da Igreja Universal do Reino de
Deus: nenhuma geração se afirmou negra, mesmo tendo características fe-
notípicas para tanto, o que nos mostra que, nesse caso, a geração não influi
na negritude, já que a religião não estimula a africanidade.
Por mais que haja maior quantidade de negros nas igrejas neopen-
tecostais do que no candomblé, não encontramos a afirmação racial entre
eles, ao contrário do candomblé, no qual mesmo pessoas que poderiam se
definir como brancas ou morenas optaram pela ênfase à descendência afri-
cana. À exceção da terceira geração, que se afirmou morena.
Como entrevistamos doze pessoas, seis de cada religião, o resultado
que encontramos nas comparações não deve ser generalizado, visto o nú-
mero reduzido de participantes. Nossa intenção foi demonstrar como se
constrói um discurso racial, se ele se constrói dentro de contextos religiosos
específicos e como o discurso religioso funda a identidade racial. Isto é,
estabelecer a relação de mútua influência entre a afirmação da identidade
negra e a identidade religiosa.
Não foi nosso propósito abarcar todos os signos das falas proferidas,
visto a variedade de significação que cada uma tem, bem como defender
nossas conclusões de análise como verdades absolutas. Por isso, preferimos
colocar em primeiro plano as falas como foram proferidas, e nossa escrita

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complementar como coadjuvante, já que acreditamos que as falas dos sujei-


tos da pesquisa explicam-se por si só.
A partir da confirmação de que existem polos de valorização da ne-
gritude no Brasil, como o candomblé, de que é possível ser negro e ter orgu-
lho de sua descendência, tentamos desvendar outros espaços em que esse
orgulho seja possível. E não só espaços de caráter “maçônico”, exclusivista,
mas principalmente espaços de diversidade, em que as diferenças sejam
valorizadas, e não valoradas em melhores ou piores. Acreditamos que isso
é possível a partir da consciência do lugar social em que foram colocados os
descendentes de africanos para que essa conscientização produza opções de
mobilidade antes inexistentes. O “negro feio” poder afirmar-se belo, o su-
jeito de cabelo “ruim” poder afirmar-se “de cabelo bom”, a religião do “mal”
poder afirmar-se como exemplo de tolerância e respeito a ser seguido.
Como afirmou Paulo Freire: “Como presença consciente no mundo
não posso escapar à responsabilidade ética no meu mover-me no mundo”
(2007, p. 19).

Referências

Bourdieu, P. (1987) A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Editora


Perspectiva.
Brandão, M. (1981) História de Alagoas. Maceió: Serviços Gráficos de Alagoas
— Sergasa.
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mobilidade espacial e dinâmica simbólica nos terreiros afro-brasileiros em
Maceió. Revista Kulé Kulé: Religiões Afro-brasileiras, v. 4, n. 4. p. 9-19.
Fanon, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUFBA, 2008.
Freire, P. (2007) Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra.
Gomes, N. L. (2005) Educação e identidade negra. Revista Kulé Kulé — Educação
e identidade negra, Maceió, v. 1, n. 1, p. 8-17.
Hall, S. (2006) A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A
Editora.
______. (2009) Da diáspora — Identidades e mediações culturais. Belo
Horizonte: Editora UFMG.

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Identidades: Contraponto entre a afirmação racial e a pertença religiosa...

Júnior, M. D. (2006) O Bangüê das Alagoas: Traços da influência do sistema


econômico do engenho de açúcar na vida e na cultura regional. Maceió: EdUFAL.
Marx, K. (1974) O capital. Coimbra: Centelha.
Rafael, U. N. (2004) Xangô rezado baixo: Um estudo da perseguição aos terreiros
de Alagoas em 1912. 2004 Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia).
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade do Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro.
Schneider, J. (apr. 2004) Discursos simbólicos e símbolos discursivos:
considerações sobre a etnografia da identidade nacional. Revista Mana, v. 10, n. 1,
p. 97-129.

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ENFRENTANDO O ESTIGMA
E O PRECONCEITO ENTRE
O SOAR DOS TAMBORES E
A CONSTRUÇÃO DE UMA
IDENTIDADE1
Aline Ribeiro da Silva
Cristiane Valéria da Silva
Magno Geraldo de Aquino
1
O Congado, como meio de expressão e linguagem, concretiza-se em uma
relação subjetiva de produção de identidade. Neste artigo — que apresenta
um relato de pesquisa —, objetivou-se refletir sobre a possibilidade dos con-
gadeiros serem porta-vozes do enfretamento ao estigma e ao preconceito,
articulando esta possibilidade à ação exercida pela Festa de Nossa Senhora
do Rosário na vida dos congadeiros e identificando os elementos históricos
presentes no Congado que apontam para a consolidação de uma identidade.
O procedimento metodológico adotado foi a história oral, e contou-se com
a contribuição de três participantes da Festa de Nossa Senhora do Rosário
do município de Oliveira, Minas Gerais. Os resultados apresentados colo-
caram em foco a determinação do papel de porta-voz e os elementos do
movimento cultural presentes no processo de construção de identidades.
A Festa de Nossa Senhora do Rosário caracteriza-se por uma expres-
são cultural luso-afro-brasileira presente em várias regiões do Brasil e que
se instaurou no país no início do período de colonização. Esta manifestação
é fruto do sincretismo entre elementos do catolicismo, trazido pelos portu-
gueses, e elementos da cultura africana, que vieram com os escravos — res-
saltando que em Minas Gerais, no ciclo do ouro, os escravos eram em sua

1
Este artigo apresenta um recorte da pesquisa desenvolvida por meio do programa de Iniciação
Científica do Centro Universitário de Lavras e do Trabalho de Conclusão de Curso, intitulada O
papel da Festa de Nossa Senhora do Rosário na construção da identidade dos congadeiros.

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maioria da etnia banto, o que confere algumas peculiaridades aos rituais


que perpassam esta expressão cultural. Com o intuito de evitar as tentativas
de fuga e de manter o controle sobre os escravos, os senhores de engenho
permitiam que os negros praticassem seus rituais e que participassem de Ir-
mandades. Às práticas religiosas dos negros foram incorporados elementos
do catolicismo, resultando na Festa de Nossa Senhora do Rosário.
A linguagem utilizada pelo congadeiro se encontra nos versos, músicas,
roupas, danças, rituais, símbolos, cortejos e devoção aos santos padroeiros.
“Qualquer que seja o tipo de mundo social onde exista, o folclore é sempre
uma fala. É uma linguagem que o uso torna coletiva. O folclore são símbolos.
Através dele as pessoas dizem e querem dizer” (Brandão, 1984, p. 107).
No período escravista, foram cometidos vários atos de barbárie que,
entre outras feridas, feriam a identidade, uma vez que se impedia ao ne-
gro a expressão de suas crenças, cultura e a identificação com seu próprio
nome. A troca dos nomes ocorria já nos navios negreiros, como ressaltam
Santos e Maurício: “[...] antes de iniciada a viagem foram batizados, pois
o Rei de Portugal não queria pagãos. Aos homens chamaram Francisco, e
às mulheres Maria” (1998, p. 10). Tais ações se caracterizam por uma vio-
lação da identidade. E, como enfrentamento à tanta repressão e violência,
esta identidade cultural negada encontra no Congado um espaço para se
expressar. Nesse sentido, ao discutir sobre o Congado, Brandão (1984) faz
um questionamento:

Por que dançam noites a fio as pessoas pobres


do país, vestidas de farrapos nos dias de traba-
lho, vestidas de reis nas noites de festa? Por que
as pessoas contam e recontam as estórias que
ouviram dos avós e entre si repetem lendas do
sertão? Por que criam? Por que cantam? Por que
simbolizam? [...] Por que, ao contrário, não ces-
sam de caçar os sinais da beleza, da crença e
da identidade rústica que existem nas coisas que
nós, eruditos e urbanos, chamamos de folclore?
(Brandão, 1984, p.11-12)

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Enfrentando o estigma e o preconceito entre o soar dos tambores...

A resposta encontra-se implícita na relação grupal, na subjetividade


e em cada gesto do congadeiro em sua participação na Festa de Nossa Se-
nhora do Rosário. Assim, ressalta-se a necessidade de compreensão de con-
teúdos expressos pelos congadeiros neste movimento cultural, destacando,
ainda, a importância da festa na região pelo caráter de resgate de memórias
e identidades que ela propicia.

Procedimentos metodológicos

A pesquisa privilegiou como procedimento metodológico a análise da his-


tória oral, com o objetivo de descrever e interpretar significados que os con-
gadeiros atribuem à sua subjetividade, relacionados à experiência social no
contato com o Congado, que contribui para a construção de sua identidade.
Neste processo foram realizadas entrevistas com três membros do
Congado de Oliveira, Minas Gerais. Houve o cuidado em coletar dados de
sujeitos do gênero feminino e masculino e de pelo menos dois sujeitos que
exercessem papéis distintos dentro do grupo.
Os nomes dos entrevistados foram mantidos com suas permissões,
pois, como a presente pesquisa valoriza a subjetividade e trata do tema da
construção de identidade, a mudança de nome talvez os atingisse, podendo
ser a atitude dos pesquisadores interpretada como negação da identidade
desses sujeitos. O que seria proporcional ao próprio ato de batizarem os
negros com outro nome sem sua permissão.
As entrevistas foram gravadas em áudio e realizadas na residência
dos entrevistados e no quartel e terreiro sede dos congadeiros “Leonídios”,
na mesma cidade onde acontece o movimento cultural aqui descrito, dias
antes da cerimônia na qual se anuncia que a festa se aproxima, momento no
qual são “levantados os mastros”.
Após a coleta de dados, foram realizadas as transcrições das entrevis-
tas, mantendo a originalidade fonética da linguagem oral, o que diz muito
sobre as características subjetivas da identidade. A sistematização das en-
trevistas foi realizada por meio do estabelecimento de categorias de análise
fundamentadas no conteúdo e interpretação das falas.

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identidade, branquitude e negritude

A discussão apresentada a seguir traz um recorte com alguns ele-


mentos relevantes que surgiram na análise das entrevistas, destacando, nes-
te artigo, os aspectos referentes a um dos papéis que o congadeiro exerce na
sociedade: porta-voz no enfrentamento do estigma e do preconceito.

O papel de porta-voz por meio de elementos


simbólicos, imaginários e da realização de desejos

A ocasião propícia para a criação de símbolos para os congadeiros são os


momentos em que se realizam as cerimônias da Festa de Nossa Senhora do
Rosário. Para que um objeto ou a linguagem se tornem símbolos, necessita-
-se de uma interação grupal.
Através do Boi do Rosário — um dos símbolos do Congado —, tor-
na-se possível perceber a representação do papel de porta-voz que os con-
gadeiros exercem na sociedade. É possível admitir, citando Bosi, que “[...]
a chave dos significados não está, pois, nos meios de comunicação, mas na
estrutura da sociedade que criou esses meios e que os tornou significantes.
É a sociedade que significa” (2000, p. 49).
O Boi do Rosário precisa das pessoas para que possa existir, preci-
sa ter quem o cria, lhe dá vida e significado como elemento simbólico de
uma coletividade para sustentá-lo como objeto folclórico. O grupo também
precisa do objeto simbólico para dar-lhe um papel que possibilite projetar
neste objeto uma construção psíquica da maneira como vê o mundo. Sobre
este objeto simbólico, uma das entrevistadas ressalta: “O boi, na língua afri-
cana, ele é o engoma, então era o couro do boi, [...] então ele sai com as car-
caças, [...] porque o boi já foi sacrificado, e o couro é que está sendo usado,
mas ele ainda é... está ali para anunciar que a festa vai começar” (Pedrina).
O simbolismo está voltado à memória dos ancestrais dos congadeiros, ao
sofrimento que vivenciaram, representado pela fala “já foi sacrificado”. Os
ancestrais estão presentes na representação que traz a memória do passado,
expresso na fala “ele ainda é... está ali”.
O elemento folclórico possibilita a projeção de seus desejos, dos de-
sejos de mudanças na vida, na sociedade. No entanto, no momento em
que estão recriando sua fantasia, o Boi do Rosário se torna um símbolo de

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liberdade: “É aquela alegria do povo que tá participando, do povo que tá de


livre e espontânea vontade ali é muito bonita, é muito boa” (Pedrina).
O grupo e seus integrantes desempenham um papel de porta-vozes
na sociedade, pois mostram como a mesma deveria ser, denunciam suas
falhas. Nesse movimento, buscam transformar o mundo em que vivem sua
realidade social de modo que passe a ser agradável. Neste sentido, como
ressalta Pichon-Rivière:

[...] o porta-voz denuncia sua problemática, mas


pode denunciá-la porque é, em certa medida e
nesse momento, quem vive, sente em maior ou
menor grau, com maior intensidade do que os
outros integrantes do grupo, essa problemática
(2009, p. 267).

A cultura popular é a via para a realização de alguns desejos dos


congadeiros. E, assim, “[...] lidando com a realidade como um campo de
ação para a busca de atendimento a exigências pessoais, eles adentram a
realidade procurando, em comum, contribuir para a consolidação do que
intimamente desejam” (Santos; Mahfoud, 2002, p. 91).
No processo da entrevista, quando foi perguntado aos entrevistados
como gostariam de ser vistos pela sociedade, responderam: “Como tudo
seno filho de Deus. Nóis somo tudo filho de Deus, tudo igual. Num tem
ninguém diferente” (Vera); “Eu acho que com respeito. Eu penso assim.
Ninguém é obrigado a gostar de ninguém, mas de respeitar sim” (Pedrina).
O desejo do congadeiro é ser liberto de estigmas, preconceitos,
deseja se expressar e se posicionar como cidadão com direitos iguais a
outrem, capaz e dotado de valores. No entanto, deseja mudar a realida-
de, transmitindo um ideal de sociedade justa e igualitária por meio das
músicas, dos versos e da própria representação de papéis dentro das Ir-
mandades. Uma fala que denuncia o preconceito e a opressão sofrida pelo
congadeiro é: “Que tem gente que faz crítica da festa. Então na hora de
agradecê, que tá assim, nas noitada da festa, cê pode repará pro ce vê sem-
pre que o capitão falá assim: Viva quem gosta da festa! Responde: Viva!
Viva quem num gosta tamém! Aí é pra turma que num gosta que a gente
fala” (Vicente).

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identidade, branquitude e negritude

Neste contexto, os congadeiros agem como porta-vozes e promovem


uma transformação social que irá atuar na construção de sua identidade,
que surge via cultura popular, o que pode ser destacado na fala da entrevis-
tada: “Mas... Então volto a dizer a festa ela tem uma condição de colaborar
muito, muito, pra que isso termine, se acabe, para diminuir até se extinguir.
Porque ela dá esta consciência de valor para a pessoa negra. Porque ela vai
ensinar a mostrar o quanto o negro é igual né. Ele não é melhor nem pior,
ele é igual” (Pedrina).
Esta transformação ocorre por meio do desejo, presente em cada con-
gadeiro — de forma subjetiva de acordo com suas experiências dentro da Ir-
mandade —, dentro do grupo, e até mesmo na família congadeira. Na Festa de
Nossa Senhora do Rosário cada congadeiro pode exercer um papel de lideran-
ça, como capitão de guarda, membro do Estado Maior, receber um cargo de
confiança do capitão do terno, ser rei, rainha, príncipe ou princesa. Podem-se
aproximar de realezas, buscando-os e os levando em suas casas, comparti-
lhando do mesmo banquete. No Congado é possível tratar as figuras de poder
como são colocados em seu imaginário: como representantes do povo ou da
nação, devem ser, simbolicamente, representados como bondosos. Este as-
pecto retrata que, conforme aponta Bosi, “[...] o conflito entre o indivíduo e
a sociedade sempre buscou portas de saída, julgando que existem grupos à
margem do sistema e cujo ser ainda não foi corrompido” (1999, p. 27).
A representação imaginária de realezas pelos congadeiros se ligam à
representação simbólica dos santos padroeiros. Nas entrevistas foi possível
perceber esta ligação por meio da pergunta sobre o que a Princesa Isabel e
Nossa Senhora do Rosário representavam para o congadeiro. Cabe ressaltar
que em perguntas separadas sobre a princesa e a santa as respostas apro-
ximam essas figuras. Sobre Nossa Senhora do Rosário, o entrevistado des-
creve: “É a principal. É a primera. [...] A primera Nossa Senhora que tem
é a Nossa Senhora do Rosário. Depois vem a Nossa Senhora das Mercês. E
ela traz até nas mãos uma corrente cê já viu, que prindia os escravo, e tem
São Benedito e Santa Efigênia, os principal da Festa” (Vicente). E, sobre a
Princesa Isabel, ele responde:

A Princesa Isabel é a mãe da Festa, a rainha da


Festa, a principal. Porque, como se dize né, a

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Enfrentando o estigma e o preconceito entre o soar dos tambores...

Princesa Isabel é a... quando cumeçô né o cati-


vero, tava terminano, os negro na senzala ficava
muito triste. [...] Ela libertô eles da escravidão. [...]
E ela libertô a escravidão sendo a nossa rainha
da Festa. Sem ela nóis num tem a Festa (Vicente).

Tanto para a Princesa Isabel quanto para Nossa Senhora do Rosário,


o congadeiro denominou como “principal”. Disse que a “Princesa Isabel é a
mãe da Festa”, denominação referente a Nossa Senhora do Rosário. Outro
elo foi o da Princesa Isabel “ela libertô a escravidão”, com Nossa Senhora das
Mercês “ela traz até nas mãos uma corrente, que prindia os escravo”. Ao re-
ceber um papel simbólico de libertadora, recebe também um papel de divin-
dade. Esta representação deve-se às raízes afrodescendentes, o que pode ser
explicitado por meio da afirmação de Rios: “[...] na África Centro-Ocidental
o rei conservava funções do sacerdote e era visto como ser divino. Ele manti-
nha estreita ligação com o mundo dos ancestrais e era responsável pela abun-
dância do reino e pela harmonia das comunidades que governava” (2006, p.
71). É por esta razão que para os congadeiros o momento de uma coroação e
do reinado é um instante intenso e significativo, como ressalta a entrevistada:
“É um momento de grande emoção é o momento da coroação. Quando o ca-
pitão canta a coroação é muito diferente, né, do que só pegar a coroa e colocar
porque há todo um rito para coroar uma pessoa” (Pedrina).
É um instante repleto de simbolismo por permitir ao negro voltar às
raízes e por realizar ações que não são possíveis no contexto em que vive, na
relação com a classe dominante e seus governantes. O papel do congadeiro
como porta-voz se instaura ao realizar esses rituais, pois como o grupo se
encontra à margem da sociedade, seus governantes também permanecem
distantes de receber este papel simbólico. Isto porque há muitas diferenças
entre a realidade e as tradições de seus antepassados representadas simbo-
licamente na Festa de Nossa Senhora do Rosário.

A divindade atribuída ao rei — ou rainha — comu-


nica-se com as insígnias do seu poder, a coroa
especialmente, que conservavam características
mágicas, contribuindo para a harmonia, o bem-
-estar e a saúde do grupo. É por isso que, nos

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cantos do reinado, são tão frequentes, ao lado


das invocações dos santos e dos pedidos de pro-
teção, as homenagens aos reis e a veneração da
coroa (Rios, 2006, p. 71).

Esses momentos da Festa de Nossa Senhora do Rosário contri-


buem para a construção da identidade do congadeiro por serem signi-
ficativo quanto ao seu simbolismo e por deixarem que esse simbolismo
exerça um papel condizente com sua subjetividade e crenças, como relata
a congadeira entrevistada:

Mas o congadeiro ele tem uma maneira mui-


to específica de fazer uma religião, né. Então
este momento nós temos que fazer dançando e
tocando e de coroar uma pessoa dentro de um
rito e levá-la tocando e cantando com um canto
característico. Que nós temos canto apropriado
para os diversos momentos que acontece o rei-
nado (Pedrina).

Por se tornarem porta-vozes, aos poucos realizam seu desejo de ser


inserido e aceito na sociedade. Embora ainda tenham que enfrentar a resis-
tência de alguns religiosos, os negros e congadeiros hoje conseguem entrar
nas igrejas, lugar em que nos séculos passados era proibida sua presença.
As realizações dos desejos é o que torna os congadeiros porta-vozes
na sociedade, pois durante a festa tornam-se um veículo, comunicando er-
ros e chamando a atenção para os excluídos. O papel do porta-voz é de
extrema importância para a sociedade repensar suas atitudes. “A ação do
porta-voz é uma ação complexa na qual ele não deixa de colaborar com os
integrantes do grupo” (Pichon-Rivière, 2009, p. 259).
O congadeiro, como porta-voz, faz pelo menos seis movimentos: o
de denunciar, de propor mudanças, o de se incluir e incluir o grupo, de
exercer seu papel, de construir uma nova história social e sua própria his-
tória, de construir sua identidade e a do grupo produzindo uma nova re-
presentação social.
O desejo de exercer um novo papel ocorre também dentro do pró-
prio grupo. De acordo com o material coletado, uma realização do desejo

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de exercer um novo papel condiz com o gênero feminino. Caracteriza-se


como uma conquista de um novo espaço para a mulher na Irmandade e
na representação de papéis hoje permitidos a mulheres, como dançarina
e capitã. Sobre a realização do desejo e concretização do exercício de um
novo papel no grupo, as entrevistadas ressaltaram: “É... tem até uma, um
fato que eu sou a primeira mulher a capitã de Moçambique no estado de
Minas Gerais, porque a mulher não entrava não, dançando principalmente
no Moçambique” (Pedrina), e “É uma emoção muito grande da gente tá ali
junto. Que quando eu era criança a gente tinha aquela vontade né, e num
teve como, então agora, depois de tantos anos, a gente sai junto com as
guardas” (Vera).
Para a mulher, poder realizar este desejo é poder executar novas ati-
vidades na Irmandade e respectivamente exercer um novo papel, o que foi
de extrema importância para a construção da identidade das congadeiras
que passaram a se reconhecer por meio destes novos papéis.

O papel de porta-voz como enfrentamento do


preconceito e do estigma e por meio da resistência

O enfrentamento do preconceito e do estigma pelo congadeiro se encon-


tra ligado ao papel de porta-voz, que denuncia a exclusão e a opressão. O
preconceito é enfrentado por meio da apresentação da tradição afrodescen-
dente que perpassa a Festa de Nossa Senhora do Rosário, ressaltando que
no contato da população com a festa pode surgir uma nova consciência.
Este aspecto é destacado pela congadeira: “É um grande equívoco você cri-
ticar o que você não conhece. Então ninguém deve ir porque o outro falou,
tem que ser ele mesmo para tirar sua própria opinião primeiro. Mas entra
em grande erro aqueles que criticam o que não conhecem, qualquer coisa,
não só da Festa de Nossa Senhora do Rosário” (Pedrina).
O ato de tornar conhecida a festa é uma maneira de conquistar o res-
peito da população, evitando um prejulgamento e promovendo a extinção
do estigma que gerará uma nova visão das pessoas quanto ao congadeiro
e ao negro, uma vez que, historicamente, a imagem do congadeiro sofreu
distorções, como pode ser percebido na fala que se segue:

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identidade, branquitude e negritude

Que uns ano pra traz, não era na minha época, o


Congado era mais pirigoso que agora. O Congo
de primero os capitão num era batizado. Então
existia muito, fazia nascê bananera na porta da
igreja. E dava um cacho, madurava e todo mun-
do cumia. Fazia marimbondo na porta da igreja,
língua de fogo subia na porta da igreja [...]. Cê vê,
uma pessoa ter o poder de tirar uma correia do
corpo jogá no chão e fazê dela uma cascavel. O
outro tirava o chapéu, jogava pra um gavião pegá
e levá. [...] Aqueles capitões fazia, inté num mur-
ria, disaparecia todos. Porque tinha parte com
coisa que num presta (Vicente),

Estas crenças que habitam o imaginário popular tanto do congadeiro


quanto da sociedade possuem um caráter paradoxal. Por um lado, elas co-
locam o negro em uma instância de possuidor de um poder, inclusive sobre
a natureza. A criação desta representação imaginária sobre o congadeiro
baseia-se nos próprios traços culturais, como atenta a congadeira: “O ne-
gro, o africano trabalha sempre com a natureza é santo e santificado. Então
são as ervas, são as comidas é que fazem a cura, não é? A cura pro corpo e
a cura para a alma. Eu não vejo onde que tá o demônio nisso né?” (Pedri-
na). A representação imaginária do congadeiro como um ser poderoso e
dotado de crenças sobrenaturais pode agir positivamente na construção da
identidade dele, visto que fazem pensar sobre sua capacidade de provocar
mudanças no ambiente social. Entretanto, dependendo da simbologia que
tem para cada indivíduo da sociedade e para o congadeiro, são estigmati-
zantes, pois o colocam como um ser maléfico, desvalorizando suas crenças
e cultura. Tais crenças criam uma representação imaginária de alteração do
funcionamento da ordem vital, acreditando que congadeiros não sofriam no
momento da morte, o que seria possível apenas àqueles que cometiam atos
não permitidos pela Igreja. Na presença destas ideologias, a crença de que
tais ações só aconteciam por não seguirem a religião dos brancos — além de
criarem na sociedade um sentimento de não aceitação da festa —, também
serviram como motivo para a não permissão da entrada do negro e do con-
gadeiro nas igrejas, como denuncia o congadeiro: “Então dispois de certo

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Enfrentando o estigma e o preconceito entre o soar dos tambores...

tempo pra cá, que os capitão foi batizano, aí parô com isso. Que os padre
nem gostava de celebrá missa pros congadero por conta disso. E dispois,
hoje em dia já tem nas igreja, celebra” (Vicente).
As lacunas ideológicas são percebidas e questionadas pelos conga-
deiros ao perceberem a desvalorização que tais lacunas provocam na repre-
sentação social do negro para a sociedade e para si mesmo, presentes até os
dias atuais: “mas eles confundia né. Que muita gente ainda fala [...]. Hoje ês
ainda fala que a festa do Congado, fala que é festa de preto, que é festa de
ispiritismo, que é macumbaria. Não. Eu num penso isso. (...) Eu danço a fé
na festa, num penso isso não” (Vera).
Ao perceberem a desvalorização de sua identidade e por não se iden-
tificarem com a imagem do negro socialmente estabelecida, os congadei-
ros se voltam para uma identidade cultural que explicita os elementos nos
quais eles possam se reconhecer.
O canto também é uma forma de denunciar o estigma e, ao mesmo
tempo, comunicar com o povo, contando a história dos seus antepassados.

Mas nós temos um canto é feito sempre depois


que levanta a bandeira. É um canto que um capi-
tão daqui de Oliveira fez quando até foi preso. [...]
diz que ele cantou lá no fundo da prisão da cela
e o delegado mandou soltar. É: [começou cantar]
“Eu não matei/ eu não roubei/ eu não fiz nada
[...]/ Mas o povo tá dizendo/ que amanhã é o meu
jurado/ Vou dizer a Nossa Senhora/ que ela mes-
ma seja/ a minha advogada (Pedrina).

O canto, como forma de enfrentar o estigma, ganha o sentido simbó-


lico de promover a liberdade, por ser um veículo de comunicação com os
santos, uma característica da identidade cultural. Portanto, seguir as tradi-
ções é uma maneira de buscar libertação. Mostrar sua identidade cultural
é construir sua identidade pessoal. Ser resistente e manter viva a tradição é
uma forma de não se deixar escravizar:

Para oprimir você tira o nome, né, que foi o que


fizeram com os africanos, né. Tira a religião e tira
a identidade cultural, aí você consegue fazer o que

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identidade, branquitude e negritude

quer dela. Tira os valores que ela tem. E a festa


vem trazer de volta estes valores, para que nós
aprendamos e sintamos esta beleza (Pedrina).

E, neste sentido, a resistência está presente em vários atos dos conga-


deiros ao se sentirem oprimidos pela sociedade, como salienta a entrevistada:

Porque naquele tempo levantar uma bandeira,


era sinal de prisão. E os congadeiros levantava
mesmo sabendo que estava correndo o risco ou
que seriam presos. Então é esta força que vem
trazendo ano após ano, era após era, que esta
festa há de ter. É uma maneira de assim a socie-
dade sem se permitir, fazer (Pedrina).

Neste sentido, outra congadeira também ressalta:

Ah, eles fala assim que é uma festa de negro


que precisava desistí. Que pra quê que negro vai
pra praça fazê gracinha... Mas a gente passa por
cima disso tudo porque a gente gosta, isso é de
muitos ano. [...] É muito preconceito, a gente num
liga não. Arruma e desce e vamu embora (Vera).

Fazer resistência frente à escravidão e à dominação é construir uma


identidade. Segundo Brandão (1984, p. 10), “[...] as pessoas fazem isso para
não esquecer quem são”. Contudo, se a Festa de Nossa Senhora do Rosário
lembra aos congadeiros quem são, em suas vidas ela possui o papel de ser
referência e suporte para a construção da identidade. Por meio da resistên-
cia em manter viva a cultura que diz de sua própria história, o congadeiro
mantém viva sua identidade.

Considerações finais

O ser humano constrói sua identidade por meio da cultura e da inserção no


grupo social. A Festa de Nossa Senhora do Rosário apresenta-se na vida dos
congadeiros com o papel de oferecer-lhes elementos para essa construção.

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Enfrentando o estigma e o preconceito entre o soar dos tambores...

Como cultura popular — rica nos saberes de um povo, crenças,


histórias e tradições transmitidas de geração em geração —, a festa ofere-
ce uma linguagem para se comunicarem, suporte para criarem registros
simbólicos, imaginários, sentido para suas vidas e para o contexto em que
vivem, além de se apresentar como um espaço para rememorarem sua his-
tória. A festa também oferece materiais para criarem sua própria visão de
mundo e desenvolverem sua subjetividade, o que só é possível com a pre-
sença do outro, fazendo parte de um grupo em que são compartilhados
elementos simbólicos e imaginários, além de serem criados novos símbolos
coletivamente.
Como membro de um grupo, o congadeiro constrói sua história e
identidade por meio do papel que realiza na Irmandade, dentre eles o pa-
pel de porta-voz na sociedade, confirmado quando colocam realezas em
uma representação simbólica e imaginária de seres divinos e bondosos, ou
quando colocam os excluídos no centro da sociedade, por meio dos can-
tos, gestos e versos que denunciam o sofrimento e preconceito, ou, ainda,
ao realizar o desejo de representar um papel de liderança e poder desem-
penhando cargos de confiança e sendo resistente em promover a festa. O
enfrentamento do preconceito e do estigma consiste em exercer o papel de
porta-voz, incluindo a si e o grupo na sociedade, mantendo viva sua tradi-
ção, levando a população a conhecê-la.
No entanto, se o contexto em que vivem os congadeiros proporciona
um papel estigmatizado, a festa oferece uma nova representação deste pa-
pel. Ao realizarmos uma reflexão por meio da Psicologia Social, foi possível
reconhecer que a Festa de Nossa Senhora do Rosário repercute na vida dos
congadeiros na transformação de sua realidade psicossocial e na constru-
ção de sua história e identidade. Portanto, este trabalho apresenta-se como
uma contribuição para que possíveis intervenções sejam voltadas a indi-
víduos, grupos e comunidades em que o Congado, ou a cultura popular
característica do lugar, se faz presente de forma significativa na vida e na
construção da identidade de seus participantes.

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identidade, branquitude e negritude

Referências

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Petrópolis: Vozes.
______. (1999) Cultura e desenraizamento. In: BOSI, A. Cultura brasileira: temas
e situações. São Paulo: Ática, p. 16-41.
Brandão, C. R. (1984) O que é folclore? São Paulo: Brasiliense.
Pichon-Rivière, E. (2009) O processo grupal. São Paulo: Martins Fontes.
Rios, S. (2006) Os cantos da Festa do Reinado de Nossa Senhora do Rosário e
da Folia de Reis. Sociedade e cultura, v. 9, n. 1, p. 65-76. Disponível em: <http://
redalyc.uaemex.mx/src/inicio/ArtPdfRed.jsp?iCve=70390105>. Acesso em: 18
mar. 2009.
Santos, E. P.; Mahfoud, M. (2002) Irmandades de negros: construção da
identidade de seus velhos em Minas Gerais. Memorandum, n. 3, p. 72-97.
Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/artigos03/santos01.
htm>. Acesso em: 24 out. 2010.
Santos, P. L.; Maurício, H. H. (1998) Festa de Nossa Senhora do Rosário. O
Rosário: força, fé e resistência dos negros congadeiros. Oliveira: Acervo Histórico
da Casa de Cultura Carlos Chagas.

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MEMÓRIAS E
PERTENCIMENTO
RACIAL: INFÂNCIA E
ESCOLARIDADE
Ana Luiza dos Santos Julio
Marlene Neves Strey

Este capítulo é o relato da nossa experiência como psicólogas monitoras


da ONG Centro Ecumênico de Cultura Negra (CECUNE) em uma oficina
de Reconstrução de Identidade Racial, em que bolsistas negros do Ensino
Superior recorrem aos seus ancestrais em busca da própria origem (histó-
ria oral de vida). Participaram desta oficina 73 bolsistas (50 mulheres e 23
homens). Todos concordes quanto à importância do Ensino superior em
suas vidas, de que não o cursariam se não fossem as bolsas e que as oficinas
realizadas pela ONG, referentes à reconstrução identitária, foram significa-
tivas para a integralidade de sua formação Superior. Saber-se negro numa
sociedade eminentemente embranquecida é fundamental para que possam
construir sua subjetividade e empoderar-se social e profissionalmente. As
oficinas marcam a importância da bolsa racial.

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Introdução

Antecedendo a proposta do PROUNI, numa época em que o Brasil se per-


cebe como signatário da Conferência de Durban (2001) e comprometido
com a inclusão sociorracial das comunidades negra e indígena, uma Insti-
tuição de Ensino Superior (IES) do Rio Grande do Sul e a ONG CECUNE
realizam o início do sonho de 280 negros e negras com bolsas de estudo
para o Ensino Superior.
Segundo o antropólogo Munanga (2001), a questão da igualdade racial na
entrada no universo educacional brasileiro necessita contemplar três ins-
tâncias: de “[...] acesso, de permanência e de sucesso” (p. 41). Nesta expe-
riência, confirmou-se o acesso desses 280 estudantes negros. Pretende-se
demosntrar aqui como se dá a permanência e o sucesso desses acadêmicos,
uma vez que, como pontua Cunha Junior (2008), há o “racismo acadêmico”,
isto é, que na academia são levados em consideração aspectos da merito-
cracia, permeada pelo esforço, disciplina, talento e dedicação, que não são
atributos abstratos, mas frutos das condições sociais que os produzem.
Oficinas de pertencimento racial realizadas pela ONG propiciam o
entendimento do processo de construção identitária para os estudantes, para
que, reconhecendo-se negros, aproveitem melhor a condição de bolsista.

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Memórias e pertencimento racial: Infância e escolaridade

Solicitou-se histórias de vida de ancestrais desses estudantes, para averi-


guar quais foram seus polos identificatórios, por quais experiências essas
pessoas passaram e de onde surgiu a importância da educação.
Definimos identidade conforme Nascimento (2003, p. 30): é uma
espécie de encruzilhada existencial, entre indivíduo e sociedade, com
mútua constituição. Para Ciampa “[...] é a realização de um projeto políti-
co que nos remete a considerar a natureza social e histórica expressa pela
hominização do homem: o devir humano” (1984, p. 73). Afirma Ciampa
“[...] a dinâmica da identidade é a invenção de sentido. É a autoprodução
do homem. É vida” (1999, p. 241-243). Para Nascimento “[...] a identi-
dade afro-brasileira se dá pela origem geográfica e não por uma ‘raça’ ou
‘etnia’ propriamente dita, implicando numa trajetória histórica sociocul-
tural” (2003, p. 49).
À medida que a questão da identidade adquire mais destaque, sendo
alcançada a condição de paradigma da psicologia social, a abordagem for-
jada no contexto da América Latina parece caracterizar-se eminentemente
pela ênfase neste aspecto da ação social rumo à transformação, expressa
também na proposta de um paradigma de construção e transformação crí-
tica (Nascimento, 2003, p. 35-36).
Entende-se por construção de pertencimento racial o movimento de
valorização de identidade racial, num processo reconhecido como discrimi-
nação positiva, no qual aspectos historicamente negativados passam a ser
positivados. Essa identidade enseja um pertencimento constitutivo do su-
jeito negro, forjando-o para posicionar-se afirmativamente. Autores como
Gassend, Van Dijk, Lim, Clark, e Devedas (2004) postulam ser a identidade
uma construção social, viabilizada pela linguagem. A noção de pertencimen-
to racial é construída conforme os discursos políticos e sociais vão criando
as possibilidades para esses sujeitos negros se situarem de maneira diferente
em suas relações sociais, não mais subjugados, desiguais. Piza e Rosemberg
afirmam que os estudos sobre a cor da população brasileira têm suscitando
algumas reflexões importantes, que se situam entre a chamada problemática
de branqueamento e os esforços do movimento negro em realizar um resgate
da identidade racial da população brasileira expressa nos sensos pelas cores
preto e pardo (2002, p. 110).

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identidade, branquitude e negritude

A oficina

Na oficina, buscou-se entender a relação entre a consciência de pertenci-


mento racial dos bolsistas, a condição de vida deles e a relação com a en-
trada na IES pelo relato da história de vida de um familiar com mais de
sessenta anos. Realizaram essa tarefa 23 bolsistas homens e cinquenta bol-
sistas mulheres, totalizando 73 documentos de histórias de vida.
A história de vida contada é um testemunho. A metodologia com au-
tobiografias busca como as coisas se passam na vida diária, sendo o registro
da experiência a partir de dentro da própria experiência. Isto é, quem vive
relata o vivido considerando as aspectos psíquicos, sociais e materiais que
forjam a experiência.
Para Thompson “[...] toda a fonte histórica derivada da percepção
humana é subjetiva, mas apenas a fonte oral permite-nos desafiar essa sub-
jetividade: descolar as camadas de memória, na expectativa de atingir a
verdade oculta” (1998, p. 197).
O grupo analisado apresenta baixa escolaridade, pouca qualificação
profissional e vivência em bairros periféricos de Porto Alegre, Rio Grande
do Sul.
Abstraímos para análise as categorias infância e escolarização, de um
montante que inclui: experiências de discriminação, consciência da negri-
tude (pertencimento racial) e questões de gênero.

Infância

A exclusão da comunidade negra do âmbito escolar é uma marca da his-


tória da educação brasileira. Todos os entrevistados têm marcas por conta
de situações de precariedade socioeconômica, com repercussão em quase
todas as áreas do desenvolvimento. Os 73 entrevistados são unânimes em
descrever um passado recheado de dificuldades provindas da precariedade
à qual estiveram expostos. Em função disso, desenvolveram, desde a in-
fância, atividades em busca de recursos financeiros para a própria sobrevi-
vência e auxílio na subsistência do grupo familiar. A condição de pobreza
econômica assola grande parte da população negra brasileira.

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Memórias e pertencimento racial: Infância e escolaridade

Um dos entrevistados trabalhou em uma pedreira desde os doze anos


de idade. Isso significa uma situação de total exposição ao tempo, ficando
de oito a dez horas diárias, no chão da pedreira. Ali, crianças e adultos sem
nenhuma proteção de trabalho, literalmente, quebram pedras. Expostas a
situações de risco que a falta de cuidados com a vida traz, adquirem “tro-
cados” significativos contra a sua fome e a de seus familiares: “[...] se não
quebrava pedra, não comia”.
O desenvolvimento psicomotor fino dessas crianças torna-se preju-
dicado, causando inabilidade para a escolarização. O mérito acadêmico não
pode descontextualizar a caminhada “acadêmica” de uma pessoa advinda
de uma relação de trabalho árduo, frente aos cuidados com a motricidade
fina, por exemplo. E, nesse sentido, somos concordes com Munanga (2001),
que aponta o “mérito” como um ponto para a chegada, e não para a saída.
Subjetivamente é possível que sintam que “eu não sou para a esco-
la”, quando deveriam pensar que “não fui preparado para a escola”, o que
faz uma imensa diferença. Na primeira expressão, a pessoa traz para si a
responsabilidade de sua inabilidade. Na segunda, entende que há aspectos
sociais que construíram sua inoperabilidade.
As meninas trabalharam desde os cinco ou seis anos como babás.
Sendo crianças, não recebiam salário pelo serviço prestado, recebendo mo-
radia e alimento (moravam ou passavam o dia nas casas em que cuidavam
dos bebês), minorando os gastos da própria família. As entrevistadas refe-
rem a “adoção por famílias branca” para trabalhar nas tarefas domésticas.
Algumas começaram a trabalhar como doméstica aos dez anos, caracteri-
zando uma idade tardia para o início dessa atividade.
Uma entrevistada se percebeu “traída” quando criança numa suposta
situação de adoção. Sentia muito ciúmes das outras crianças, que iam para
a escola, enquanto ela não. A mãe, diz outra depoente, “[...] me fez voltar
para o trabalho, aos oito anos de idade” porque “[...] a vida sempre foi uma
luta, para comer, para sobreviver [...]”.
A experiência de perda por morte de parentes próximos, como ir-
mãos, pais, mães, tias etc., aparece com muita frequência, sendo signifi-
cativo como essas pessoas vivenciaram a presença da morte. Os motivos
nem sempre são explícitos. Uma diz: “[...] éramos nove irmãos. Sete mor-
reram [...]”. Não sabiam precisar o motivo, pois eram muito pequenos. O

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identidade, branquitude e negritude

que sempre esteve explícito era a dificuldade para sobreviverem. E, se a vida


não tem muito valor, por que a morte teria?
A precariedade de condições de vida reflete na condição de saúde.
Uma entrevistada comenta ter se deparado com diabetes e com pressão alta
após ter enviuvado, além do agravo de ter filhos pequenos para criar, sem
marido, sem saúde e sem trabalho. Conforme apontam Lessa, Magalhães,
Araújo, Almeida Filho e Oliveira, “[...] a pressão alta tem sido diagnostica-
da como uma doença que atinge a população negra” (2006, p. 2), e que o
indicativo qualidade de vida tem aparecido como fator precipitante.
Há quase uma unanimidade frente à ausência parental, ficando esses
filhos numa experiência de vida de extrema carência em todos os sentidos,
maior do que a carência financeira. Essas pessoas encontravam-se à deriva,
sem orientações para construir uma vida diferenciada. Uma mulher afirma
que a experiência de trabalho, desde muito pequena, em casas de famílias,
trouxe-lhe uma “[...] triste experiência de convivência com a sociedade”.
Ela não aponta, mas podemos derivar o conteúdo inter-racial: convivência
com a sociedade “branca”. A perda do pai em tenra idade, fez com que a
família fosse morar no porão da casa da avó. Lá, as condições eram me-
lhores que em outros lugares. Dormiam todos juntos, em colchonetes es-
parramados pelo chão; alimentavam-se uma vez por dia. A mãe trabalhava
como doméstica, e não tinha como cuidar dos filhos, mas cuidava de outras
crianças no trabalho, deixando os seus sozinhos. Quando essas meninas
passam a cuidar de crianças, é como se não fossem uma delas. A sociedade
da época não olhava para as crianças negras como se fossem crianças, pois
o direito da criança, capitaneado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA, 1990 citado por Gargioni, 2000), surge quando essas já beiravam
meio século de vida.
Se errassem, eram corporalmente acessadas para, sentindo na pele,
terem o comportamento modificado, como num adestramento, numa
abordagem psicopedagógica questionável.
O coletivo negro precisa romper com o círculo de desqualificação
educacional e profissional e construir uma vida diferenciada. Outra en-
trevistada diz que a consideravam “lesa”, e que não tinha lugar para ne-
gro nas escolas da cidade”. A escola dava muita despesa; era coisa de gente
que podia. Ela e sua família trabalhavam para pagar a moradia. Diz que

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Memórias e pertencimento racial: Infância e escolaridade

lavava, passava, limpava, fazia todo o serviço de casa, e aos homens cabia
fazer todo o serviço do campo. A família não chegava a receber pagamen-
to pelos serviços prestados na fazenda, estando ali “de favor”, sendo quase
uma obrigação prestarem tais serviços. Vê-se a inversão de valores, em que
aquele que trabalha, ao invés de receber pelos serviços prestados, deve ser
agradecido pela oportunidade que recebe. Este parece ser resquício de uma
prática colonial em que, conforme nos demonstra Hasenbalg (2005, p. 37),
“o exame dos vários paradigmas da relacão senhor/escravo é uma medida
parcial na procura da ligação entre escravismo e relacões raciais pós-abo-
lição, na medida em que esses paradigmas se referem à extensão em que o
escravismo produziu, mais ou menos permanentemente, um conjunto de
características sociais, psicológicas e culturais próprias de grupo escravo
e seus descendentes”, de tal forma que homens e mulheres negras muitas
vezes sentem-se devendo favores aos patrões. Quando a dona da fazen-
da veio para Porto Alegre, ela veio junto para auxiliar no cuidado com as
crianças. Chama a atenção nessas relações que, em nenhum momento, o
tipo de vínculos que essas pessoas negras possuem com as pessoas brancas,
proprietárias, é objetivamente definido. Nunca ficam estabelecidos quais
são os afazeres e as regras de trabalho. E, caso um negro questione ou “se
rebele”, é considerado abusivo, desleal ou qualquer um desses qualificado-
res de desconsideração. Os valores constitutivos ocultam a prática da ex-
ploração, e invertem qualquer possibilidade de rompimento, pois negros
e negras que rejeitam a situação de exploração, são considerados rebeldes,
ingratos, senão “traidores”, como se tivessem de ter orgulho em prestar ser-
viços gratuitos e serem gratos por sua servidão.

Escolarização

Há o relato da experiência de um homem negro que aprendeu a ler o jornal,


já bem grandinho: “[...] ia juntando as letras, e aos poucos ia vendo sentido
naquilo que tentava soletrar”. Estamos diante de uma pessoa nada limitada,
que rompe com o comum de esperar sempre pelo aval da escola, na figura
dos professores, que certificam nosso saber. Aprende, juntando as letrinhas,
sem ter sido “autorizada” a isso. Há quem na infância não pôde estudar para

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identidade, branquitude e negritude

cuidar dos irmãos, e mais tarde fez o supletivo. Essas pessoas depositam na
escola a possibilidade de melhora das condições de vida.
Um entrevistado informa que a escola não era lugar de negros no
Brasil naquela época (referência à década de 1950, aproximadamente).
Os pais, analfabetos e com limitações econômicas, sentiam-se impedi-
dos de encaminhar os filhos à escola. Negro que conseguisse (e ninguém
diz como conseguir) concluir o segundo grau, teria um bom emprego.
Evidente, aquele que ultrapassasse as adversidades, e, mesmo contrário
a tudo e a todos, concluísse o Ensino Médio, teria probabilidade de ad-
quirir um trabalho melhor renumerado. Mas não se diz qual o caminho
que pessoas negras deveriam seguir para romper o estigma social de ex-
clusão racial.
Constroem-se os impeditivos para o desenvolvimento satisfatório do
coletivo negro, quer seja na educação, quer seja no mercado de trabalho.
Aquele ou aquela desse coletivo, que, por uma razão qualquer consiga furar
esse bloqueio, é considerado um exemplo de quem sabe fazer as próprias
oportunidades. Evita-se, dessa forma, o entendimento de que esse caminho
tem sido bloqueado por aqueles que detêm o poder, impedindo a mobili-
dade sociorracial. O conceito de mérito é a estratégia do poder, para, re-
verenciando aquele que fura o bloqueio, impedir que seja visto o quanto
esse bloqueio é socialmente estabelecido e mantido como tal. Quando se
reverencia os que, mesmo na adversidade vencem, se deixa de olhar com
cuidado para as barreiras impeditivas, e, com isso, inverte-se todo o proces-
so em que o que fura é o exemplo da inexistência de impeditivos e discrimi-
natórios. Como se esse “furo” fosse o caminho ideal para a inclusão social
de que tanto se fala. Como se fosse dito: “Viram como é possível? Basta que
se esforcem”.
Invertendo os valores, aquele que, mesmo diante das adversidades,
passa a ser protagonista do próprio sucesso, é apontado como a garantia da
igualdade de oportunidades, isto é, o exemplar da mobilidade sociorracial.
Quando as barreiras são invisíveis, não se pode ter a nitidez do preconceito.
Dessa maneira, as pessoas que não conseguem superar barreiras são vistas
como incapazes do ponto de vista intelectual, que não se esforçam como os
demais. O preço do fracasso é colocado no indivíduo ou no coletivo margi-
nalizado, e não nas estruturas sociais que o impedem.

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Memórias e pertencimento racial: Infância e escolaridade

Há um consenso (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2009)


de que a escola é uma alavanca transformadora do status social das pessoas
negras. Mesmo que naquela época não parecesse muito próprio aos negros
estudarem, reverenciavam a escola como o caminho passível de transfor-
mar a sua realidade. Quase todos afirmam saber que “se tivessem estudado
mais, teriam hoje melhores oportunidades de trabalho”.
Um depoimento que supera todos os outros: trata-se de uma mulher,
negra, de 61 anos, que, na data de 13 de maio de 2006, recebeu o título de
licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). A
data de treze de maio aparece aqui quase como uma ironia, pelo fato de
uma negra tornar-se “licenciada” nessa data tão carregada de significados
na história do Brasil. Em outro depoimento, a triste alegação de alguém
que se sentiu impedida por ser “[...] muito velha e gorda para voltar a estu-
dar”. Afirma-se com esse depoimento o quanto as amarras são fortemente
estabelecidas, em que o impeditivo de crescimento pessoal, subjetivo, seja
o corpo negro e obeso.
É unânime que estudar para algumas famílias negras tem o sentido
de liberdade, tornando-se o foco e objetivo destes, como é possível ver
nos relatos que se seguem: “Mesmo com muitas dificuldades financei-
ras, sempre orientei os filhos a estudarem”. O estudo, diz: “[...] é o que
uma mulher pode ter de melhor.” Consideram a educação o único viés de
transformação social. O estudo “[...] abre a cabeça das pessoas” frente às
discriminações.
A escolarização oportuniza uma vida melhor, sendo “[...] um jeito
de despertar a consciência de mundo, possibilitando inserção social, com
todos os direitos e deveres, que a cidadania preconiza”. As ONG’s que tra-
balham com a questão dos afrodescendentes têm prestado um belo serviço
e um grande incentivo aos negros, pois a qualificação é a única saída para
que a desigualdade social e racial seja minimizada, contribuindo para a
ascensão da autoestima dos negros. Os entrevistados reconhecem o auxí-
lio da ONG CECUNE, que oportunizou as bolsas de estudos. A bolsa é a
chave para a filha cursar uma faculdade, como direito seu. Para finalizar,
dois comentários: “[...] os negros sempre tiveram dificuldades para entrar
numa faculdade; hoje têm um pouco mais de acesso”. E: “O negro precisa

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identidade, branquitude e negritude

estudar para ter um lugar ao sol. Tem que se valorizar; ir à luta, buscando
seus ideais”.

Conclusões

As crianças negras retratadas nas histórias de vida estiveram em situação


de vulnerabilidade social e luta diária pela sobrevivência. Quando transfor-
mam a relação de simples sobrevivência e projetam um futuro diferenciado
por meio da educação formal, focalizando a educação de Ensino Superior,
redimensionam suas relações existenciais. Transformam a maneira de estar
no mundo. Para a população negra, o estudo é um passaporte, ponte viável
de atravessar e acessar o social. Estar no mundo, não mais como alguém
periférico, mas como sujeito que constrói uma forma de existir, pautada em
relações sociais diferenciadas, com possibilidades de projetar sonhos e de
construir modos de realizá-los.
O impeditivo do estudo é a recusa do direito de sonhar e de cons-
truir, primeiro no imaginário, para posterior projeção na realidade, da sua
contribuição e compreensão de universo, de vida e de sociedade.
Percebe-se reiteradamente, a educação na vida dessas pessoas como
viés de transformação social. Cem por cento dos entrevistados vieram de
uma vida dura, com todo o tipo de limitações e impeditivos, e, ao longo
dessas experiências, perceberam que “[...] o estudo abre a cabeça das pes-
soas, frente às discriminações”. Além de ser o passaporte para a qualificação
profissional, contribui para a formação étnica, política, identitária. Esse é
o verdadeiro valor do estudo, pois, com a apropriação do conhecimento, o
sujeito percebe e se percebe no mundo, podendo avaliar qual a sua forma
de participação social. Segundo Paulo Freire (1980), a educação é liberta-
dora. Nesse sentido, o estudo do negro deve promover a apropriação de si,
enquanto sujeito racialmente posto no mundo.
A qualificação profissional decorrente da educação é uma das saídas
para a eliminação das desigualdades sociorraciais.
Os valores civilizatórios africanos consideram a circularidade, que
propõe que o acesso de “um” reverbere no outro (circular). Isso se percebe
nesse grupo de estudantes e suas famílias. Quando um estudante alcança

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Memórias e pertencimento racial: Infância e escolaridade

a universidade, repercute na família e na comunidade. Outros vão buscar


trilhar esse caminho. É uma corrente de autoestima; um processo de espe-
lhamento pelo qual aquilo que um membro da comunidade alcança passa a
ser modelo para os demais. Silva (2006) fala no processo de discriminação,
em que a população negra deixa de ter uma identidade singular, aparecen-
do como uma identidade coletiva, por assim dizer, como “os negros” e “as
negras”, ou nas expressões cotidianas como “coisa de negro”, ou “típico de
negrão”; na discriminação positiva, inverte-se esses sentidos. Assim, quan-
do um negro consegue algo positivo, como ingressar em uma universidade,
por exemplo, esse mesmo recurso discriminatório, ora negativo, passa a ser
positivado. Ou seja, “se ele pode, nós também podemos”. Ou, nos dizeres
do presidente Obama: “Yes, we can!”.
Isso é consciência de pertencimento racial. É possível transformar o
que inferioriza o povo negro em algo positivo, fazendo o que temos nomea­
do de discriminação positiva para aperfeiçoar as condições dadas. Dessa
maneira, tudo aquilo que definia e marcava as impossibilidades e os meca-
nismos de exclusão, inverte-se e passa a ser usado no sentido da possibilidade
e da inclusão. Caracterizou-se a importância desse movimento de valoração
do pertencimento racial. Se, ao longo da história brasileira, negou-se a exis-
tência da raça, atribuindo-lhe os aspectos genotípicos, consequentemente, a
ideia da discriminação também é invisibilizada, posto que, na medida em
que não há raça, não pode haver racismo, e nem mesmo discriminação racial.
Daí a necessidade de incluirmos o aspecto fenotípico da raça, que, segundo
Nogueira (1955), define o racismo brasileiro como sendo de “marca”. Com
isso, o movimento inverte-se: ao assumir o pertencimento racial, esse coleti-
vo é visibilizado, marcando existência, presentificando que o tempo de estar
fora já acabou. Se a exclusão se deu por falta de formação educacional, agora
não há mais essa desculpa. E, havendo a formação, havendo a certificação
pelas legítimas instituições educacionais da existência da presença negra,
discrimina-se (positivamente) a raça, aos negros e às negras.
Portanto, a função do pertencimento racial implica não só no empo-
deramento pessoal, como na visão de mundo e de sociedade. Quanto maior
o número de pessoas negras empoderadas, mais eficaz se torna a luta pela
inclusão social desse coletivo.

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identidade, branquitude e negritude

Essas ações afirmativas na Educação Superior têm, portanto, múlti-


plas e concomitantes funções. A primeira, a da formação universitária pro-
priamente dita. São, nesse sentido, as bolsas nas instituições que viabilizam
a entrada desses estudantes no Ensino Superior. São importantes, necessá-
rias e indispensáveis. Entretanto, ao longo da caminhada tem-se visto que
não é o único recurso necessário. Esses estudantes precisam de outras con-
dições externas (materiais) e internas (subjetivas), que lhes deem o suporte
emocional suficiente, para que possam manter e refazer o fôlego da grande
batalha rumo ao acesso social, tal como verificamos ser possível pelas ofici-
nas protagonizadas pela ONG CECUNE, que os capacitou nas questões de
pertencimento e consciência racial.
Essa tem sido a grande luta por que passam todos esses estudantes
negros em sua formação de nível Superior. As condições materiais são im-
portantes e necessárias, mas neste estudo o que verificamos e destacamos
como fundamentais, são as condições imateriais, as condições psicológicas,
que capacitam esses sujeitos a enfrentar as batalhas em seu direito de ocu-
par um lugar social melhor, no país e na cidade que também são seus.

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O TOQUE DE
NOSSAS MÃOS
Andréa Moreira Chagas

O Projeto “Toque de Mão” é formado por onze mulheres negras morado-


ras de comunidades populares de Santa Teresa, bairro localizado no cen-
tro do Rio de Janeiro. A interseccionalidade dos fatores racismo, gênero,
território, classe, entre outros, são elementos que dificultam ou impedem
a construção de redes sociais constituídas por relações interpessoais e in-
tergrupais respeitáveis e igualitárias. O Projeto “Toque de Mão” é criado
a partir da compreensão de que cuidado, acolhimento, geração de renda,
inserção e valorização identitária, social e do território são promotores de
saúde e transformadores de situações inaceitáveis.

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Introdução

Iniciei o trabalho com o grupo “Toque de Mão”, em função dos conflitos


de relacionamento intragrupal decorrentes de um entrave na relação com a
Instituição que criara e mantinha o grupo. Um outro motivo para o convite
foi o fato de que o contrato com o patrocinador do grupo finalizaria em seis
meses, contados a partir daquele mês em que eu entrara no trabalho. Uma
situação que acabou não se efetivando. O trabalho com o grupo de mulhe-
res teve a duração de dois anos e meio.
Quando cheguei, o grupo “Toque de Mão”, já tinha dois anos de
existência, e produzia trabalhos diferenciados de bordado e costura, que
se destacam pela criatividade, assim como realizava prestação de serviços
sob encomenda para estilistas e lojas, fazendo dessa atividade sua fonte de
renda. Entre os trabalhos desenvolvidos, faziam uma releitura de pintores
brasileiros, como Cândido Portinari, Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti na
confecção de bolsas e almofadas.
O trabalho que me foi solicitado era de mediação de conflitos. Era
essa a expectativa da organização em relação à minha prática. Quando fo-
ram informadas sobre a contratação de uma psicóloga, as mulheres tam-
bém manifestaram essa expectativa. Conforme nossa intervenção foi se

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O toque de nossas mãos

desdobrando em encontros semanais, criamos desvios e fomos descobrin-


do a singularidade desse grupo.
Quando comecei o trabalho com as mulheres, já havia amadure-
cido em mim um olhar diferenciado em relação à população negra. Em-
bora trabalhasse há muitos anos com essa população, ainda não havia
desenvolvido um trabalho que nomeasse como uma intervenção em “saú-
de da população negra”.
Em alguns momentos a Instituição pontuava que se tratava de um
grupo de mulheres e, enquanto mulheres, eu deveria pensar a intervenção
no grupo. Nesses momentos, afirmava para a organização que era enquanto
mulheres e com as características da sua pele, seu corpo, seu cabelo que
deveria trabalhar. Reafirmando que as mulheres do grupo “Toque de Mão”,
tinham um certo tipo de vivências específicas. Por exemplo: a experiência
de serem perseguidas por seguranças nas Lojas Americanas (uma loja pró-
xima ao bairro no centro do Rio de Janeiro). Essa não é uma vivência de
todas as mulheres pobres, mas uma vivência, infelizmente comum, para
a mulher negra. Quanto a esse fato, que era uma experiência relatada por
elas, ficava difícil construir argumentos de que discordassem.
O trabalho com o “Toque de Mão” foi construído, portanto, com o
entendimento de que a interseccionalidade dos fatores racismo, gênero,
território, classe, entre outros, são elementos que dificultam ou impedem a
construção de redes sociais constituídas por relações interpessoais e inter-
grupais respeitáveis e igualitárias. Minha proposta de intervenção foi cons-
truída também a partir da compreensão de que o cuidado, o acolhimento,
a geração de renda, a inserção e valorização de gênero, social e do território
são promotores de saúde e transformadores dessas situações inaceitáveis.
Embora metodologicamente o grupo não fosse construído como um
espaço de psicoterapia, eu acreditava no efeito terapêutico do grupo. Como
diz Lancetti (1993, p. 167):

Perdida toda esperança de reencontrar a en-


tidade grupo, de verificar estruturas psíquicas
ocultas e de traduzir o que é exprimido, o coor-
denador de grupos coloca-se em contato com
a superfície expressiva que não quer dizer, diz.
A grupalidade não é a manifestação de uma

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identidade, branquitude e negritude

qualidade única. O devir grupal, múltiplo e tem-


poral, ou o que entendemos como grupalidade
vai conjugando expressões diversas e produzindo
uma superfície [...]

A vivência no grupo favorecia a elaboração de questões que não


encontram outros espaços em nossa sociedade para terem visibilidade, e
assim serem acolhidas e cuidadas. As mulheres que participam desse gru-
po tiveram experiências diretas com diferentes formas de violência (racial,
doméstica, institucional, situações relacionadas ao narcotráfico, ação poli-
cial, entre outras). O espaço do grupo foi pensado quando uma das mulhe-
res teve o filho de dezesseis anos assassinado por policiais. Este espaço foi
inaugurado por uma liderança comunitária, com a intenção de distraí-la.
Temia-se que ela não saísse do estado de depressão em que se encontrava.
Com o tempo, ela mesma começou a convidar as vizinhas para se juntarem
a esse encontro. O grupo começou no final de 2006, e comecei a trabalhar
com elas no início de 2008.
Nossos encontros passaram a acontecer uma vez por semana.
Nesses momentos, buscávamos privilegiar os pontos identificados que
tinham dificultado o avanço do trabalho do grupo. Havia também um
espaço para a discussão do cotidiano, do dia a dia, da vida pessoal, sendo
também um espaço de intervenção, que buscava refletir sobre os dife-
rentes atravessamentos políticos e sociais que envolviam o cotidiano das
componentes do grupo.
Esse trabalho, utilizando os conceitos de Winnicott, Deleuze e
­Guatarri, compreende o grupo como um “espaço potencial” (Winnicott,
1975) que busca intervir positivamente no processo de subjetivação (Gua-
tarri & Rolnik, 2005) das mulheres que fazem parte desse trabalho, com-
preendendo as especificidades de suas vivências enquanto mulheres negras,
moradoras de comunidades populares.
O material produzido é atravessado por expectativas para além da-
quelas em que são compreendidas objetivamente. Tem uma função sub-
jetiva, como se representasse um “espelho” positivo de si mesmas, de sua
criatividade e potencialidade, o que contribui para a construção de uma
nova e positiva relação de pertencimento social.

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O toque de nossas mãos

O produto criado é valorizado socialmente pela qualidade estética


que apresenta, tornando-se um marcador identitário positivo, elemento
que facilita a reestruturação das experiências pessoais das mulheres do gru-
po, afetadas pelos diversos dispositivos sociais utilizados na produção de
subjetividades negras.
Além das demandas do grupo, eu trazia questões que entendia sig-
nificativas e favorecedoras da compreensão do contexto social e político
em que elas estavam inseridas. Lembro-me de uma reunião um dia após o
governador Sérgio Cabral declarar no Jornal Nacional que as mulheres po-
bres de comunidade eram “fábricas de marginais”, e que “a polícia deveria
andar nos morros da cidade como anda na Vieira Souto” (Cabral..., 2007).
Quanto a esse último ponto, concordaríamos com o governador, caso a po-
lícia entrasse nas comunidades, com respeito ao cidadão, como ocorre na
Zona Sul da cidade.
Perguntei se elas haviam visto esse jornal, e o que achavam, já que o
governador estava falando sobre mulheres pobres, seus filhos, comunida-
des e bandidos, fazendo uma perigosa relação entre violência e pobreza,
que temos tanto trabalho e empenho em diferenciar. A conversa rendeu
muitas colocações, e elas começaram questionar sobre o que era informado
pela televisão e pelos jornais e que afetava diretamente suas vidas.
Em todo o tempo de trabalho, foram diferentes os exercícios de bus-
car contextualizar o meio ambiente em que estavam inseridas. Pudemos
perceber, em diferentes momentos, como algumas informações ficam in-
corporadas como verdades. Muitas delas acreditavam que o fato de estarem
numa situação de pobreza, ou de violência doméstica, indica que elas que-
rem isso, e que para mudar é preciso somente uma declaração de vontade.
Não estamos desvalorizando o potencial do desejo ou do esforço. Acredita-
mos na mudança, sendo essa a forma de construímos nossa prática. Porém,
não podemos desvalorizar a importância de condições mínimas para que
mudanças sejam efetivadas, e principalmente para que as pessoas acredi-
tem ser possível transformar.
No primeiro ano de trabalho, em nossa avaliação, tornava-se mais
evidente como as mulheres começavam a mudar o olhar sobre si mesma, o
que era percebido em suas falas quando falavam positivamente sobre seus

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identidade, branquitude e negritude

traços, as roupas que gostavam de usar, o cabelo trançado. Percebiam que


começava a valer a pena e era positivo ser negro.
Com o tempo de trabalho, e também com minha entrada no mestra-
do, a organização não mais discutia que se tratava de um grupo de mulheres
negras. Com toda certeza, a boa relação que eu tinha com a coordenação
da instituição permitia que as questões políticas sobre a população negra
fossem trabalhadas com o grupo com total autonomia.
No início de 2010, apresentei o trabalho no 1o Seminário Interna-
cional de Saúde da População Negra em Salvador sobre o “Toque de Mão”.
Discuti com a organização a importância de uma das integrantes do grupo
me acompanhar. Um dos mantenedores concordou, e uma das integrantes
do grupo foi comigo. Considerei essa possibilidade muito positiva, princi-
palmente por dois aspectos: o primeiro é o de que a organização em que o
Projeto se desenvolve não é voltada para a questão racial, era um esforço
profissional meu inserir essa questão. A autorização para a viagem, portan-
to, significava que o trabalho estava ecoando. O segundo é o de que nenhu-
ma das mulheres já havia saído do estado e, assim, seria uma experiência
interessante para elas essa possibilidade de viajar para outro estado, e de
avião, para um lugar onde estaria sendo apresentado um trabalho em que
elas eram também protagonistas.
Uma integrante do grupo foi sorteada, e partimos para Salvador. Por
não haver acomodação no mesmo voo, fui primeiro, e esperei por ela no
aeroporto em Salvador. Marina1 se mostrou emocionada desde a chegada
no aeroporto. Ela dizia estar “agradecida à vida” pelo acontecimento. A se-
guir, apresento algumas falas dela durante a viagem e no seminário, que ela
também assistiu, que ajudam a traduzir sua experiência:

Eu até fiz trança para vir para cá, para ficar mais
de acordo, e mais bonita para o seminário.

Quando olhou o banner do evento, disse:

Nossa, Andréa! É trabalho, mesmo! Que bonito!


Nós temos tanto carinho que às vezes nem en-
tendemos que é trabalho. Acho que tem gente

1
O nome real da integrante foi preservado.

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O toque de nossas mãos

que não entende que é trabalho, não. Tô até emo-


cionada, as outras tem que ver isso, falando da
gente, mostrando a gente, para esse povo todo.
Acho que vou chorar…

Após ouvir a segunda fala do seminário:

Tô ouvindo aqui o que estão falando, e estou


pensando como é importante se informar, né?
A gente pode falar melhor, se relacionar melhor
com as pessoas. É muito importante isso.
Tô com sede de conhecimento. Tô aqui aumen-
tando o meu currículo.
Estou boba com esses profissionais. As pessoas
aqui com esses cabelos, nunca que eu diria que
ela era médica. Médica rastafari. Eu, hein?! Mas
que beleza ela ser médica e falar tão bem. Até dá
orgulho de ser preta também. Mas eu confesso
que se eu não soubesse, eu nunca iria acreditar
[Após ouvir Jurema Werneck, médica e coorde-
nadora da ONG CRIOLA].
Gente! Que mulher é essa, com esse cabelo
todo? Como ela sabe tanto assim? Fala com a
alma, toca o coração da gente! Quando encon-
tramos com ela ontem, lá no acarajé, eu não iria
acreditar que ela sabia tanto assim.

Após ouvir Vilma Reis:

A gente não pode ser discriminado, andar por aí


com medo de ser maltratado.

Uma fala durante o café, após ouvir as apresentação de Jurema


Werneck e Vilma Reis. Quando ela chegou no grupo, repetiu para as outras
participantes e para a coordenadora. Antes da apresentação:

Olha! Eu não vou falar, você me apresenta!

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identidade, branquitude e negritude

Ela me avisou, porém se apresentou muito bem falando dela e do


grupo, despertando interesse do responsável pelo Fundo de População das
Nações Unidas que veio falar conosco no final.

Tô saindo mais preta daqui. Andréa, eu estou


com você, hein!

No mês de abril, portanto, uma semana após chegarmos de Salvador,


o Rio de Janeiro foi afetado por fortes chuvas na cidade como um todo, e
em Santa Teresa, no Morro dos Prazeres, houve 26 mortos.
Para o encontro do grupo daquela semana, havia planejado falar so-
bre a viagem a Salvador, e fazer um paralelo entre a conquista coletiva do
grupo, sobre o prazer que alimenta o sentimento de esperança e o senti-
mento de dificuldade, e até desesperança, que por vezes se atravessa, devido
a condições limitadas de viver.
Diante da tragédia vivida pela população, não houve possibilidade
de falarmos sobre isso, já que famílias perderam suas casas, amigos, e quem
não perdeu, sofreu com vazamentos, e alguns eram tão intensos que tive-
ram que sair de casa. Este episódio das chuvas afetou a todos do Rio de
Janeiro, porém esse grupo vive sempre a questão de maior vulnerabilidade,
fica sempre mais suscetível a diferentes tipos de violência, sejam elas prove-
nientes do Estado ou da natureza.
Nessa época, eram muitas as reportagens falando sobre o ocorrido,
e em várias delas culpabilizavam as vítimas pelas condições de suas mora-
dias. Todas as onze mulheres do grupo foram diretamente afetadas, e tive-
ram suas casas alagadas, sendo que algumas perderam crianças próximas
e, mesmo assim, começaram a incorporar o discurso da mídia de serem
culpadas pelas condições de vida difíceis em que viviam.
Durante o trabalho com o grupo, procurei colocar a importância
de estarmos atentas, não aceitando informações que culpabilizam, sim-
plificando situações atravessadas por inúmeras complexidades. Para que
melhor pudesse traduzir o que estava querendo levá-las a pensar, usei a
história infantil dos três porquinhos. Perguntei para o grupo se conhe-
ciam a história dos porquinhos, que estavam em risco e fugindo do lobo
mau. Apontei que cada um deles construiu uma casa, e que a de madeira
era mais frágil, e que por fim todos fugiram para a casa de alvenaria para

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O toque de nossas mãos

ficarem mais protegidos. Fomos falando, rindo, buscando dar um tom mais
leve, mas sem perder a importância do que estávamos discutindo. A todo o
tempo afirmando que ninguém mora em condições que ferem a dignidade
humana porque simplesmente assim deseja, e que não era justo aceitar o
lugar de culpa, em que o poder público, que seria responsável por prote-
ger a população, estava tentando colocar essas pessoas. Consideramos em
conjunto que, em alguns casos, as pessoas moradoras nessas condições es-
tão tão despontecializadas, sem esperanças, que não veem outro modo de
construir suas vidas.
Lembrei com elas de outras falas que são comuns em situações de
violência, quando, por exemplo, uma mulher é violentada e há uma refe-
rência à roupa que ela estava usando, na alegação que deveria ser provoca-
tiva, entre outros apelos, que deveríamos estar atentas para a culpabilização
da vítima. No trabalho com o grupo, nas diferentes ações, buscava cons-
truir com elas o entendimento que não há justificativa para a violência,
assim como ampliar o entendimento de o que é violência. Podemos avaliar
essa situação, conforme Lancetti (2006, p. 68):

[…] Além dos próprios fracassos que tem, existem


todos os fracassos que o resto da sociedade joga,
culpando essas pessoas por tudo que existe de
ruim: são culpadas pelos assaltos; são culpados
pelas mortes; são culpadas pelos homicídios e
pelo tráfico de drogas; tudo culpa dela! Por que
as pessoas têm medo de entrar na favela? Porque
parece que lá tem um monte de bicho irracional.

Durante esse desastre ocorrido por causa das chuvas e do descuido


do Estado, contaram sobre o caso de duas crianças que morreram enquanto
a mãe estava na casa da vizinha pedindo para que as meninas ficassem com
ela, para que ela fosse trabalhar. As crianças estavam sozinhas, aguardando
a mãe voltar. Fomos falando sobre essa situação, uma mulher que busca
alguém para cuidar de suas filhas para ir trabalhar deve ser responsabiliza-
da pela condição de sua moradia? Alguém merece passar por isso, além de
perder as duas filhas?

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identidade, branquitude e negritude

Numa tarde fui com elas para o Morro dos Prazeres acompanhar o
resgate das vítimas. Na comunidade, encontramos com famílias que perde-
ram suas casas, e quem não perdeu sofria com os efeitos da enchente, sendo
que alguns eram tão intensos que teriam que deixar suas casas.
Quando saí da comunidade, não conseguia explicar o que sentia. Era
uma sensação de solidão diante de tanto a fazer. Quando acordei, no dia
seguinte, a sensação de solidão me acompanhou. Era uma solidão de não
ter como dividir o que tinha vivido como profissional. Nesse trabalho, com
tantas experiências de sofrimento, seria importante haver a possibilidade
de cuidar desse sentimento, da experiência profissional em grupos ou na
equipe em supervisão, mas, na ausência desses espaços, é um viver sozinho.
Esse trabalho clínico exige a reinvenção tanto da população como dos pro-
fissionais que estão intervindo. A contratransferência acontece com grande
intensidade, e todos necessitam de campo de escoamento.
Durante toda a semana falei por telefone com as mulheres do gru-
po. Em um desses telefonemas, uma integrante do grupo solicitou que
eu falasse com o seu filho, um jovem de 21 anos. Ele acabava de voltar
do enterro da amiga, e dizia não ter palavras para dizer o que estava
sentindo, concordei que não existem mesmo palavras para dar conta de
algumas dores ou emoções. Falamos um pouco, e ele agradeceu, dizendo
que ajudei muito. Agradeceu mais uma vez, dizendo que eu morava em
seu coração, e que estava mais aliviado. Como é possível aliviar? Fiquei
pensando.
Na visita à comunidade, também encontrei com Rosa, a quem já co-
nhecia por ter participado de um projeto anterior da mesma organização.
Após um longo abraço, contou: “[...] perdi todos os meus amigos, meus
filhos perderam todos os amigos, mas ainda estou viva, e da minha casa
só caiu a metade, e irei continuar a viver”. Termina dizendo que era uma
alegria me encontrar mesmo naquelas condições, e me ofereceu um café.
Agradeci, e disse que naquele momento eu teria que voltar para a organiza-
ção, mas voltaria para tomar um café.
Nessa situação, ao mesmo tempo em que fiquei feliz por represen-
tar uma possibilidade de alegria para Rosa, não poderia deixar de me
sur­preender com sua resiliência e sua generosidade em me oferecer um
café. Essas situações, como em outras que também foram apresentadas em

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O toque de nossas mãos

minha dissertação de mestrado (Chagas, 2010), evidenciam as possibilida-


des de intervenção do campo clínico.
Em setembro de 2010, sem aviso prévio, o convênio que custeava os
técnicos do projeto foi encerrado. A postura desses gestores, a forma como
se relacionaram com as pessoas envolvidas no projeto, psicóloga e artesãs,
era o oposto do cuidado empreendido no trabalho ao longo dos anos.
Esse fato chama atenção sobre a responsabilidade das pessoas que
fazem contratos com programas sociais, no sentido de zelar para que não
reproduzam no trabalho social a prática da violência cotidiana, vivenciada
pela população junto à qual intervimos e que buscamos transformar.
A situação vivida com esse grupo, na finalização do trabalho, cor-
robora o entendimento da importância de políticas públicas que garantam
a continuidade de práticas no cuidado em saúde da população negra. O
trabalho com esse grupo também mostrou a possibilidade de construir um
“outro olhar” dessas mulheres sobre elas mesmas e seu meio ambiente. O
resultado obtido mostra como é possível criar novos mundos, mesmo es-
tando diante de situações adversas.
Na reunião em que finalizamos o trabalho, avaliamos seu efeito po-
sitivo para as mulheres e o rompimento do trabalho. Estávamos todas atra-
vessadas pela descontinuidade do trabalho que fomos submetidas.
A seguir algumas falas das mulheres do grupo “Toque de Mão”:

Depois eles não querem que fique essa visão de


que ONG é só para arrumar dinheiro. As que dão
certo, parabéns. Mas, em geral, o pessoal sabe
que é muito complicado. Tem muita coisa envolvi-
da: diminui imposto, tem de tudo, nem tô falando
que é esse o caso. Aqui, tem é vaidade, mesmo.
Acabar o contrato porque não saiu o nome no jor-
nal. Isso não existe. Aliás, isso existe, né?!
Penso que por ser um projeto social, deveriam sa-
ber que ter um psicólogo é muito importante den-
tro de um grupo. Sempre eles falam que devemos
saber como falar, que aqui é um projeto social.
Concordo, acho que devemos ter esse exercício,
sim. Mas como é que acabam seu trabalho as-
sim, de um momento para outro? Será que não

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identidade, branquitude e negritude

pensam nisso? Que aqui é projeto social, lugar


para cuidar da gente.
Quando falaram que o convênio iria acabar, a pri-
meira coisa que pensei foi em você. Como ficaria
nosso trabalho. Como ficaria você. E seu salário?
Eu sei que é difícil, é trabalho, né?!
Você, para mim, foi o meu organizador mental,
eu tinha muita coisa: febre, irritação na pele,
emagrecia, tudo por conta da ansiedade. Você
sempre me acolheu com uma calma que me
dava calma. Tirando minhas dúvidas, sem estar
me criticando, sem estar me apontando, e isso é
muito diferente que falar com mãe, com vizinho,
com o amigo. Com você, me sinto estando diante
de alguém que não está para tirar nada de mim,
só me acrescentar, não está querendo em troca.
Através do que eu aprendi aqui no grupo, e que não
foi pouco, foi muito, eu já consigo ajudar outras
pessoas. Outro dia mesmo uma vizinha, que tem
problemas sérios com o marido. Eu converso com
ela, mas já sei que não é comigo, ela precisa de
um psicólogo, ela precisava de alguma coisa que
não é para eu dar, o que posso dar é o que aprendi,
então falei com ela para procurar um psicólogo. Só
que sei que não é simples. É duro as pessoas não
terem com quem falar, e não é porque é sozinho, é
porque precisa falar de outro jeito.
Aprendi a fazer uma análise de mim mesma,
mas quantas vezes foi difícil!
Acho que a vida da gente é um grande quebra-
-cabeça, e o psicólogo vem para juntar. Outro dia
estava pensando que poder é esse que o psicó-
logo tem que a gente confia a vida, e a pessoa
compartilha com você. É muita responsabilida-
de. Não é só porque eu gosto de você, é porque
eu sei que você estudou para isso e posso confiar.
Nunca fui negra tão feliz. Aqui nesse trabalho
ser negro virou uma coisa boa, imagina que coisa

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O toque de nossas mãos

boa se olhar no espelho e gostar? Mudar o ca-


belo e gostar? Isso muda tudo, muda a vida. O
que você fala é muito importante, entra no meu
íntimo e me dá suporte.
Meu vizinho diz que o que a gente leva da vida
é um monte de terra na cara. Para mim, não é
assim, o que a gente leva da vida é a vida que a
gente leva.
Ouvi ontem, e fiquei muito emocionada, e vou fa-
lar para você: sei que não vamos morrer, mas
terminamos de alguma forma. Quando alguém
morre, não devemos chorar para não molhar as
asas do anjo, para o anjo poder voar, e eu quero
ver você voando.
Nos morros da vida que você passou vai ter sem-
pre alguém com a raiz da árvore que você plan-
tou. Então as raízes devem estar longas, e as
nossas também estão aqui.

Nesse encontro, uma mulher do grupo chegou um pouco atrasada.


Ela estava usando uma blusa estampada com uma mulher negra com o
cabelo black power. De imediato, alguém do grupo brincou: “Olha só! Veio
com a minha foto!”. Ela responde: “Claro! Estou com a nossa foto! A foto de
todas nós, até da Andréa, que é mais clarinha”. Falaram alegres e vaidosas
sobre isso.
No final do encontro, elas giraram a roda, e me fizeram a pergunta:
“E você, Andréa, o que acha desse poder de psicólogo?”
Respondo relembrando minha entrada no grupo, afirmei a impor-
tância de cada uma delas para mim, e que não sabia o que estavam cha-
mando de “poder do psicólogo”, mas que eu acreditava na possibilidade de
criar novos sentidos na vida, de produzir o estranhamento e de abandonar
qualquer rótulo, e que o nosso trabalho havia sido realizado pelo poder de
todas nós, fazendo-nos crer que era possível construir novos olhares a par-
tir do toque de nossas mãos.
Alguns resultados/objetivos conquistados:
• O trabalho foi realizado por mulheres de faixas etárias diferenciadas,
o que permitiu uma eficaz troca de saberes.
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identidade, branquitude e negritude

• As integrantes do grupo tornaram-se referências como artesãs em


suas comunidades e trabalharam como multiplicadoras.

• Realizaram trabalhos voluntários em outras instituições, ensinando


bordado e costura, auxiliando pessoas na busca por um caminho
profissional e na mudança da expectativa de vida.

• Houve reingresso escolar e capacitação em instituições, em áreas re-


lacionadas ao trabalho desenvolvido no projeto, como corte e cos-
tura e pintura, e também a participação em cursos extracurriculares
(como curso de inglês no programa de bolsistas oferecido pela Cul-
tura Inglesa).

• Observou-se mudança da vivência em relação a situações de violên-


cia doméstica e conquista de independência financeira.

• Reformas e melhorias na casa foram realizadas com o ganho do tra-


balho nas oficinas, gerando conforto para si e seus familiares.

• 50% conseguiram comprar máquinas de costura industriais, am-


pliando a produção e aplicando esses conhecimentos dentro de suas
próprias casas.

• Participação no Fashion Rio 2010.


Após dois anos de prática de trabalho no “Toque de Mão”, podemos
observar que foi possível construir um instrumental de intervenção que
tem sido importante no favorecimento das relações destas mulheres con-
sigo mesmas e com os outros. Conforme relatam, essa prática tem contri-
buído para a construção de outros posicionamentos dentro do grupo, com
os seus familiares e na localidade em que vivem. Assim, pudemos avaliar
positivamente nossa proposta de intervenção como promotora de saúde
física e mental no cuidado com a população negra.

A utopia que hoje perseguimos consiste em bus-


car um atalho entre uma negritude redutora da
dimensão humana e a universalidade ocidental
hegemônica que anula a diversidade. Ser negro
sem somente ser negro, ser mulher sem ser
somente mulher, ser mulher negra sem ser so-
mente mulher negra. Alcançar a igualdade de
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O toque de nossas mãos

direitos é converter-se em um ser humano pleno


e cheio de possibilidades e oportunidades para
além de sua condição de raça e gênero. Esse é o
sentido final dessa luta (Carneiro, 2003).

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DISCUTINDO O
RACISMO ACADÊMICO
SOB A ÉGIDE DA
PSICOLOGIA SOCIAL
Sheila Ferreira Miranda

Partimos da composição racial da comunidade intelectual brasileira, bem


como do silenciamento sobre a situação de desvantagem do negro no mun-
do acadêmico, corroborado em nossa sociedade capitalista pela ideologia do
mérito para discutirmos de que maneira o racismo à brasileira se configura
no âmbito universitário, produzindo o racismo acadêmico. Ancorados pela
Psicologia Social, buscamos esclarecer autonomia e heteronomia a partir
da noção de sujeito apresentada pelo sintagma identidade-metamorfose-
-emancipação. A estas premissas teóricas, buscamos articular a situação de
indefinição social, e, por consequência, identitária dos negros profissionais
da Academia, para finalmente defendermos a urgência da produção de co-
nhecimentos que nos amparem no entendimento e na transformação social
deste contexto de extrema desigualdade.

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Das políticas de discriminação positiva ao
universalismo meritocrático

A complexa configuração histórica do processo abolicionista, aliada à


intencionalidade de exclusão política, social e educacional do segmento
negro no Brasil pós-colonial (Menezes, 1997), deve ser levada em conside-
ração ao discutirmos a atual composição racial da comunidade intelectual
brasileira, pois “[...] a explicação da desigualdade sofrida pelos negros, na
renda e na escolaridade, não pode ser buscada no passado brasileiro até
1888, mas no racismo estrutural que se instalou no Brasil a partir de então,
e que jamais mudou [...]” (Carvalho, 2006, p. 35).
É sob esta conformação histórica que a efervescente questão acerca das
políticas de ações afirmativas, e, mais especificamente, os debates em torno
das desigualdades raciais na Academia tomam franca expressão na atualidade.
Após a realização da III Conferência Mundial das Nações Unidas
de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância
Correlata, ocorrida em Durban, África do Sul, em agosto de 2001 (Carva-
lho, 2006; Fry & Maggie, 2005), o governo brasileiro apresentou uma am-
pla proposta de políticas de ações afirmativas, contestando a tão enaltecida
democracia racial e reconhecendo publicamente a legitimidade das ações

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Discutindo o racismo acadêmico sob a égide da Psicologia Social

de caráter compensatório, tendo em vista a situação de exclusão vivenciada


pelos negros ao longo dos séculos.
A primeira proposta de cotas para negros no Brasil foi apresentada em
17 de novembro de 1999, na UnB (Universidade de Brasília) sendo aprovada
apenas em junho de 2003, após intensas discussões no meio acadêmico e
na mídia. Desde então, o número de instituições brasileiras que adotou o
sistema de cotas cresceu significativamente (Carvalho, 2006); entretanto, os
embates teóricos e políticos em torno do tema continuam acalorados.
Os grupos acadêmicos contrários às cotas apresentam como princi-
pal argumento a questão de que a implantação de uma política de discrimi-
nação positiva teria como principal consequência a polarização do país dos
hibridismos, das misturas, da democracia racial. Embora estes autores con-
cordem com a existência de uma condição de racismo no país, eles acredi-
tam que a introdução das cotas raciais implica “[...] um aumento da tensão
inter-racial, sobretudo nas camadas menos favorecidas da população” (Fry
& Maggie, 2005, p. 306). Assim, o sistema de cotas sugere também a cria-
ção de um racismo institucionalizado — ou a formação de um apartheid
brasileiro, como afirma Loureiro, citado por Fry e Maggie (2005) — cor-
roborado pela emergência de duas categorias raciais (brancos e negros), e
ressuscitando a crença — cientificamente negada — da existência de raças
estanques.
Já os autores que se posicionam a favor das cotas (Carvalho, 2006;
Munanga, 2003) defendem que a prática da discriminação no sistema edu-
cacional vem sendo, ao longo dos tempos, silenciada no país pelo mito da
democracia racial e pela ideologia do mérito. Dessa forma, ambos os meca-
nismos compartilhados pelo imaginário dos brasileiros encobrem a tensa
relação racista e discriminatória que ocorre em nossas universidades.
Tudo parece girar em torno de propostas teóricas tão diferentes, ou
de um debate antropológico tão acirrado, que inevitavelmente nos remon-
ta também à clássica discussão de Gilberto Freyre da cordialidade de um
convívio inter-racial e sua relação com a ideologia do embranquecimento
(Miranda, 2011).
As direções dadas às implicações históricas da ideia de democracia
racial sustentam ambas as propostas de formas distintas. Para os primeiros
autores, a ideia de democracia deve ser sustentada, pois, na prática, o modo
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identidade, branquitude e negritude

de classificação por um contingente de cor predomina no pensamento bra-


sileiro e dilui as oposições racistas.
Já para o segundo grupo de autores, a democracia racial constitui um
mito que encobre e mascara as desigualdades existentes no contexto brasileiro,
de maneira que as categorias raciais existem como categorias políticas (Munan-
ga, 2003). Sob este ponto de vista, o contexto tácito de conflitos contribui para a
alienação dos sujeitos acerca do peso do racismo no cotidiano brasileiro.
De acordo com Carvalho (2006), temos no Brasil aproximadamen-
te 2% da população frequentando o Ensino Superior (3.500.000 pessoas),
sendo que apenas 0,6% dos brasileiros têm acesso ao benefício da Educação
Superior gratuita, ou seja, 1.000.000 de pessoas matriculadas em universi-
dades públicas. Do total dos universitários brasileiros, 96% são brancos, 3%
são negros e 1% descendentes de orientais, sendo que 47% da população
brasileira é composta por negros. Além disso,

[...] a porcentagem de vantagem dos brancos so-


bre os negros em chegar a quatro anos de curso
superior é mais do que o dobro da vantagem que
têm em terminar a oitava série e o segundo grau.
Isto significa que o acesso à pós-graduação é
ainda mais proibitivo para o negro do que conse-
guir entrar na graduação (Carvalho, 2006, p. 31).

O quadro de professores nas universidades federais é ainda mais


drástico: de um contingente de 43.679 professores, em 53 universidades,
menos de quinhentos são negros, ou seja, aproximadamente 1% do total de
docentes (Carvalho, 2006).
Diante dos estudos realizados sobre a temática (Carvalho, 2006;
Henriques, 2001), como concordar com a tradicional (ou seria tradiciona-
lista?) celebração da mestiçagem como signo de um país cordial, defendi-
da por Fry e Maggie (2005) e temer a emergência das tensões inter-raciais
(apostando na ideia de um universalismo meritocrático), se temos um pa-
drão de segregação tão contundente que se mantém estável durante mais
de um século, atingindo de forma negativa gerações de sujeitos negros, na
sua maioria pobres e excluídos de forma desoladora do sistema educacional
(Henriques, 2001), apresentando um dos sistemas acadêmicos mais racis-
tas do planeta (Carvalho, 2006)?

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Discutindo o racismo acadêmico sob a égide da Psicologia Social

Racismo acadêmico: a elite subalterna

O ingresso na pós-graduação, mais do que um tema acerca das oportunida-


des educacionais, significa, para o sujeito negro, a possibilidade de ascensão
social, tanto no sentido de se romper barreiras econômicas, quanto em rela-
ção às questões que tangem o acesso a uma carreira de destaque na sociedade.
Isso implica, pelo menos de forma ideal, na missão de se pensar os pro-
blemas cotidianos, gerar conhecimentos capazes de auxiliar na sua solução e
formar profissionais para a pesquisa e o mercado de trabalho. Implica, final-
mente, em assumir uma posição inequívoca de status social e legitimidade.
As principais atividades do ofício acadêmico — o ensino, a pesquisa
e a extensão — sugerem demandas de diferentes competências e encargos
de alta complexidade. Assim, a titulação, marca do nosso sistema meri-
tocrático, não é suficiente para assegurar ao profissional da academia um
espaço de reconhecimento no âmbito de trabalho (Freitas, 2007).
Independentemente do pertencimento racial ou social, neste meio,
ocorre uma supervalorização da produtividade, cobranças excessivas, uma
intensa competição, além da necessidade constante de reconhecimento pe-
los pares. E assim como em outros cenários do âmbito do trabalho “[...] o
mundo acadêmico é um universo com um elevado nível de aspiração e um
comportamento entre pares que, no discurso, prega a diferença, mas que,
na realidade, cobra a homogeneidade e o espelho” (Freitas, 2007, p. 189).
Em nossa sociedade, regida por uma ordem excludente e competitiva,
os negros representam a marca do insólito, do diferente (Souza, 1983), desesta-
bilizando a prática da homogeneidade. Com um passado de opressão e inaces-
sibilidade aos campos de saber e poder legitimados pelo âmbito social (Lima,
2001), a definição inferiorizante acerca da sua intelectualidade ainda perdura,
e a raça continua exercendo funções simbólicas estratificadoras (Souza, 1983).
Portanto, há de se considerar que, esses sujeitos, pelo simples fato de es-
tarem integrando uma elite no contingente brasileiro e ocupando um espaço
que historicamente lhes foi negado, podem ser considerados emblemáticos.
Em contraste à liberdade intelectual e à legitimação das diferenças
prometidas pelo ambiente universitário, na maioria das vezes, os jovens
negros aspirantes à carreira acadêmica encontram uma dupla condição fra-
gilizadora: de irrelevância e de carência (Carvalho, 2006).

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identidade, branquitude e negritude

Irrelevância, por muitas vezes não dominarem as convenções comu-


nicativas próprias de uma classe média, pois a sabedoria prática que adqui-
riram ao longo de suas vidas perde a validade diante deste novo universo.
E de carência, pela falta de um capital simbólico e cultural que abra portas
a estes espaços. Aliado a essa situação de carência, esses sujeitos sofrem
também o peso da discriminação (Teixeira, 2003).
E como os alunos negros de pós-graduação, o lugar dos professores
universitários não é visto de forma natural, como um lugar a ser ocupado
por negros. Os questionamentos tácitos sobre o fato de estarem ocupando
este lugar acima do previsível para sua condição racial vêm, muitas vezes, dos
próprios pares, que interrogam a legitimidade e seriedade do seu trabalho.
Podemos exemplificar esta situação de desvalorização do negro no
âmbito brasileiro pela trajetória de autores como Clóvis Moura, Guerreiro
Ramos e Édison Carneiro. Apesar de todos eles terem formações consi-
deradas de excelência, e da reconhecida importância de suas obras para o
pensamento nacional, nenhum conseguiu assumir uma cadeira em qual-
quer de nossas universidades federais. Foram silenciados (Carvalho, 2006),
excluídos, obstados da participação nas universidades públicas brasileiras
por motivos desconhecidos (ou não?).
A partir destes parâmetros, o racismo à brasileira (Pereira, 1996)
configurado pelas ações discriminatórias encobertas (e não menos violen-
tas) manifesta-se, no plano da universidade, como racismo acadêmico.
Para Carvalho, “[...] existe o racismo onde o resultado do convívio
social multirracial é a exclusão sistemática e generalizada do grupo racial
negro” (2006, p. 8). O mesmo autor, ao chamar a atenção para o racismo
acadêmico, demarca a centenária impunidade de nossas universidades
diante do silenciamento crônico das situações de exclusão racial:

[...] a desigualdade social foi construída em cima


da desigualdade racial, que foi naturalizada por
efeito de um discurso ideológico legitimador que
fechou as portas para a exposição de conflitos,
facilitando a reprodução da nossa crônica desi-
gualdade sociorracial, em que a cor emblemática
da ascensão social é a branca e a cor emblemá-
tica da exclusão e do fracasso é a negra (p. 60).

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Discutindo o racismo acadêmico sob a égide da Psicologia Social

De tal modo que “[...] todas as evidências reunidas até agora indicam que
a academia brasileira de hoje não é lugar para negro” (Carvalho, 2006, p. 87).
Estamos, então, diante de uma discussão que nos remete ao contexto
identitário destes sujeitos que, por terem escassas possibilidades de ascensão
diante dos mecanismos de bloqueio socialmente construídos, mesmo após o
seu ingresso no meio acadêmico, são impelidos a se autoafirmarem perma-
nentemente, num constante processo de enfrentamentos (Santos, 2006).

Sob a égide da Psicologia Social: autonomia e


heteronomia a partir da noção de sujeito apresentada
pelo sintagma identidade-metamorfose-emancipação

Buscando dar sustentação teórica à problemática apresentada, partimos


das considerações de Ciampa (1987, 2002, 2003). De acordo com o autor,
a simples descrição da configuração da identidade social como processo
de metamorfose humana já não é suficiente para realizarmos análises dos
acontecimentos. Torna-se necessário compreendermos também o sentido
ético e a natureza política deste processo (Ciampa, 2003).
Com base nesses pressupostos, a conformação da identidade como
transformação permanente (metamorfose) é teoricamente mantida, toda-
via os questionamentos passam a ser centrados no sentido dessas mudan-
ças, que podem ter um caráter emancipatório ou não.
E para compreendermos a conformação da identidade enquanto
teoria, e não apenas como categoria de pesquisa, a articulação da noção de
pessoa e indivíduo presente no sintagma identidade-metamorfose-eman-
cipação torna-se um aspecto essencial a ser esclarecido, a partir de auto-
res como Berger e Luckmann (1985), bem como da apropriação teórica de
Habermas (2002) e Honneth (2003) acerca dos trabalhos de Mead (1991).
Seguindo Berger e Luckmann (1985), pensamos o processo de huma-
nização. Esse desenvolvimento ocorre num ambiente que é, ao mesmo tempo,
natural e humano. Isso significa que a relação do homem com seu ambien-
te caracteriza-se pela abertura para o mundo (Berger & Luckmann, 1985,
p. 70), de maneira que nós não nascemos prontos, somos seres humanizáveis.

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identidade, branquitude e negritude

E ao mesmo tempo em que nos humanizamos, expostos a um am-


biente físico específico, também somos expostos a uma ordem social e cul-
tural determinada e produzida pela atividade humana. Conforme Berger e
Luckmann (1995), os homens em conjunto produzem o ambiente humano,
de acordo com diversidade de suas produções culturais e psicológicas. As-
sim, há tantas possibilidades de organizações socioculturais quantos são os
seres humanos.
E, se somos produtos e produtores da sociedade em que vivemos, hu-
manizamo-nos por processos interativos, isto é, pela relação e contato com
outros. Assim, para Berger e Luckmann “[...] a humanidade específica do ho-
mem e sua socialidade estão inextrincavelmente entrelaçadas” (1985, p. 75).
Nessa direção, Mead (1991) corrobora o pensamento de ambos os
autores através da ideia de self, uma estrutura eminentemente social (e não
inata) que constitui aquilo que nos diferencia dos animais. A constituição
do self, portanto, é a edificação do processo que nos torna humanos.
Mead então arremata que a constituição da autoconsciência está in-
timamente ligada ao desenvolvimento da consciência dos significados so-
ciais (citado por Honneth, 2003), de forma que o individuo só atinge um
self quando é capaz de responder aos atos sociais e ver a si mesmo a partir
da perspectiva dos outros (Mead, 1991). Isso significa que não existe um
self isolado. Assim, “[...] um sujeito só pode adquirir uma consciência de si
mesmo na medida em que ele aprende a perceber sua própria ação da pers-
pectiva, simbolicamente mediada, de uma segunda pessoa” (Mead citado
por Honneth, 2003, p. 131).
Esse processo ocorre a partir da incorporação das atividades sociais,
possibilitando a socialização dos indivíduos a partir da compreensão acer-
ca dos símbolos compartilhados e a consequente reprodução de gestos e
valores comuns (Mead, 1991).
Além disso, o desenvolvimento da autoconsciência (Mead, 1991)
também possibilita a reflexão sobre os próprios atos e os determinantes so-
ciais, gerando a autonomização das ações ou individuação, de acordo com
Habermas (2002).
Podemos então pensar a compreensão da complexidade do humano
por meio de duas noções dialeticamente articuladas por Habermas (2002),
partindo da psicologia social de Mead: a noção de pessoa e indivíduo.

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Discutindo o racismo acadêmico sob a égide da Psicologia Social

Enquanto pessoas, fazemos parte de um processo de integração de


experiências que nos apresenta a um universo de símbolos e valores social-
mente compartilhados: é o processo de socialização, que resulta na incorpo-
ração das regras institucionalizadas e reflete o grupo de atitudes adaptativas
organizadas e generalizadas em acordo com as convenções sociais.
Já na condição de indivíduos, ocorre o processo de formação do eu
ou individuação: por meio da consciência reflexiva, adquire-se a habilidade
de assumir a perspectiva dos outros, examinando sua própria ação e intera-
ção à luz da reciprocidade de direitos e deveres. Esta perspectiva trás tanto
a possibilidade de aparecimento das identidades singulares, através do re-
conhecimento de uma pretensão de validade do ato ilocucionário; quanto o
aparecimento do potencial de emancipação através da clave comunicativa,
de acordo com Habermas (2002).

O processo de emancipação do sujeito [...] passa


a ser entendido por Habermas como um proces-
so de comunicação. A comunicação linguística, o
diálogo sem coações externas constitui, portan-
to, a saída para a alienação, para a perda da in-
dividualidade e para a recuperação da autonomia
da sociedade (Deluiz, 1995, p. 3).

Dessa maneira, o pensar do eu autônomo e competente é aquele que


reage à coerção da sociedade, opondo-se à heteronomia imposta pelo meio
social através da ação comunicativa (Habermas, 2002).

(In)Conclusões: almejando a articulação de saberes

Em trabalhos anteriores (Miranda, 2011), realizados com grupos militan-


tes, discutimos as consequências práticas do racismo à brasileira sobre o
processo identitário de negros, tendo como base o sintagma identidade-
-metamorfose-emancipação, trabalhado por Ciampa (2003).
Percebemos que, no Brasil, os símbolos socialmente compartilhados
em relação ao contingente negro nos remetem inevitavelmente a uma visão
negativa, historicamente delineada sobre seus atributos físicos, morais e

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identidade, branquitude e negritude

intelectuais. Isto é, se nos humanizamos pela socialização e, portanto, pelo


contato com o outro, o resultado desse processo é a exposição a uma ordem
social que tem sérias ressonâncias para a vivência de ser negro:

O modelo de identificação normativo-estruturan-


te com o qual ele [o sujeito negro] se defronta é
o de um fetiche: o fetiche do branco, da brancu-
ra [...] a brancura é abstraída, reificada, alçada à
condição de realidade autônoma, independente
de quem a porta como atributo étnico ou, mais
precisamente, racial (Souza, 1983, p. 4).

O fetiche da brancura aparece por meio de regras incorporadas de


maneira extremamente brutal para com o sujeito negro, de forma que o
próprio pensar sobre sua condição pode gerar um custo emocional de su-
jeição, negação e afastamento de quaisquer experiências que remetam a
conteúdos de matriz africana.
E como ressonâncias desse conteúdo negativo no imaginário social-
mente compartilhado temos que ser negro na sociedade brasileira é estar
exposto a uma condição emocional extremamente frágil em relação aos
próprios atributos identitários: a ideologia do embranquecimento reper-
cute nesse contexto, na forma de uma identificação compulsória (Souza,
1983) com um universo hegemonicamente branco.
Mas, ao mesmo tempo, o discurso da democracia racial, das igual-
dades de oportunidades, de um país democrático e cordial em relação às
diversas raças aparece de forma iminente, encobertando as cotidianas ma-
nifestações do preconceito (Ferreira, 2002).
Assim, na condição de pessoa, o sujeito negro, através da integração de
experiências sociais, inevitavelmente está exposto aos discursos ideológicos
vigentes. E o resultado desse processo é gestado no plano identitário como
uma situação de indefinição social e ambiguidade fundantes: ora seduzidos
pelo ideal da democracia racial, ora alienados pela ideologia do embranque-
cimento, esses sujeitos edificam seu processo identitário em meio a um com-
plexo ideológico extremamente conflituoso (Miranda, 2011).
Os possíveis sentidos ocasionados pelas transformações do processo
identitário de negro, evidenciam, portanto, uma tensão permanente entre

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Discutindo o racismo acadêmico sob a égide da Psicologia Social

autonomia e heteronomia. No contexto nacional, esta situação se configura


através da indefinição social, e, por consequência, identitária destes sujei-
tos, em grande parte ocasionada pelo racismo à brasileira.
E é em meio a essa tensão que o processo identitário desses sujeitos
negros poderá assumir caminhos emancipatórios ou não (Miranda, 2011).
Articulando a discussão à questão do negro profissional da Acade-
mia, pensamos, em acordo com Santos (2006), que, para sobreviver nesse
contexto altamente competitivo e garantir a permanência em relação à po-
sição social alcançada, eles precisam assumir e defender identidades positi-
vamente afirmadas em relação aos aspectos raciais. Isso implica, no alcance
de uma condição minimanente reflexiva, que o desenvolvimento da auto-
consciência possibilite ao sujeito sua localização diante dos determinantes
sociais que envolvem o fato de ser negro na Academia. Segundo Lima:

[...] é no meio acadêmico onde a presença negra


não é nada “natural” ou ainda não foi naturaliza-
da como a presença branca, que o sujeito negro
se debate mais violentamente contra a negação
da inferioridade atávica, a assimilação embran-
quecedora ou o estabelecimento do confronto
intelectual (2001, p. 311).

Nesse contexto, pensar individuação do profissional acadêmico ne-


gro significa também compreender, de forma eminentemente reflexiva, as
marcas históricas que configuraram uma condição de desigualdade exorbi-
tante em relação ao contingente negro brasileiro e de um discurso de subal-
ternidade historicamente legitimado.
E a busca por assumir a condição de indivíduos autônomos deve per-
passar inevitavelmente o enfrentamento dos obstáculos decorrentes da rejei-
ção por estarem ocupando um lugar socialmente destinado a sujeitos brancos
(Carvalho, 2006; Santos, 2006). E esse enfrentamento, principalmente no
meio acadêmico, passa pelo confronto intelectual (Lima, 2001). Tal confronto,
muitas vezes, se apresenta por meio de debates que evidenciam o potencial
de uma ação comunicativa (Habermas, 2002), de um diálogo sem coações,
podendo revelar o sentido emancipatório das identidades ali dispostas.

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identidade, branquitude e negritude

Na condição de indivíduos, buscar alcançar o reconhecimento de uma


pretensão de validade de seus atos implica, sobretudo, na busca por serem
efetivamente ouvidos, como sujeitos acadêmicos negros de fato e de direito.
Mas como implementar essa luta, se ainda, em muitos contextos, tais sujeitos
são alienados de sua condição humana, vítimas dos efeitos da atribuição e
adjudicação de papéis inferiorizantes, frutos da ideologia racista?
No contexto acadêmico, negros estão sempre numa condição de
afrontamento, lutando para reunir condições suficientes que permitam a
realização de seus projetos políticos, como também em permanente elabo-
ração de estratégias de resistência para que seu lugar não mais seja definido
como ilegítimo ou abjeto.
E falando da condição de profissionais da Academia e pós-graduandos
negros, alia-se a esse complexo mais um atravessamento a ser discutido: a
ideologia do mérito. O silenciamento sobre a situação de desvantagem do
negro deve-se, em grande parte, ao fato de que a própria Academia não se
vê racializada: acredita-se que apenas os critérios de excelência sustentam
a configuração atual (eminentemente branca) de nossas universidades pú-
blicas (Carvalho, 2006).
Ora, é claro que os concursos para docentes e os processos seletivos
para pós-graduandos não são resultados de padrões de avaliações intei-
ramente impessoais: eles dependem de uma conjunção de fatores que vai
desde as redes de relações dentro da comunidade universitária (no caso das
cartas de recomendação, por exemplo) e da política acadêmica (linhas de
pesquisa, filiações teóricas, campos de atuação) até o desempenho indivi-
dual e a qualidade dos trabalhos apresentados, que varia de acordo com o
perfil dos candidatos (Carvalho, 2006).
Portanto, o processo identitário desses sujeitos também está determi-
nado pelas tensões ocasionadas na configuração das políticas de identidade
(Ciampa, 2002) no meio acadêmico e pelos seus efeitos, que, dependendo
da conjuntura, podem ou não relacionar-se às manifestações do preconcei-
to racial (Miranda, 2011).
Temos aí um terreno fértil de discussões, que nos remete tanto ao
potencial alienante de um sistema acadêmico profundamente desigual — e
que, para todos os efeitos, não reproduz as práticas excludentes da popu-
lação brasileira com relação aos negros ‒ quanto aos conflitos ocasionados
pela histórica situação de indefinição identitária do negro brasileiro:

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Discutindo o racismo acadêmico sob a égide da Psicologia Social

Diante da luta entre o que de fato é e o que lhe


é imposto a ser, o negro tem uma grande tare-
fa: a de dar conta de se autodefinir e também a
de firmar sua identidade, para ter condições de
enfrentar as hostilidades, as discriminações e
os preconceitos que o processo da vida vai-lhe
apresentando, tendo em vista a sociedade em
que está inserido (Santos, 2006, p. 166).

É essa tarefa que nós, na condição de psicólogos (sociais ou não),


devemos nos dispor a enfrentar: conhecer de perto e buscar compreender
as trajetórias de vida e lutas de indivíduos, que, pelo simples fato de exis-
tirem, desestabilizam a busca perversa por homogeneidade que assola o
contexto acadêmico brasileiro. E, quiçá, poderemos almejar a produção de
um arcabouço teórico consistente, que nos ampare no entendimento e na
transformação social deste contexto de extrema desigualdade.

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244

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A CARTOGRAFIA DA MACRO
E DA MICROPOLÍTICA DAS
RELAÇÕES RACIAIS NO
BRASIL: A PROBLEMÁTICA
DO CORPO NEGRO
Wanderley Moreira dos Santos

A proposta deste artigo é cartografar as dimensões macro e micropolíticas


das relações raciais no Brasil: sua dinâmica e seus efeitos na produção da
subjetividade dos sujeitos que trazem em seu corpo elementos que os iden-
tificam como negros. Sob a perspectiva deleuziana e guattariana, propõe-se
a liberação do corpo negro da alienação do ideal branco — subordinação
vista como “salvação” da condição opressora vivenciada por essa população
— e da identidade afrocentrada — marcada pela fixação do que antes era
percebido como negativo, e que então é intensificado, bem como pela cria-
ção de um modelo único de ser negro. São clichês que tendem a aprisionar
o corpo negro, ao contrário de destravar sua potência de criação. Aqui se
aposta em ações inventivas que possam fazer surgir novos territórios exis-
tenciais para negros e negras no Brasil.

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Introdução

Um breve alerta: “Toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micro-


política” (Deleuze & Guattari, 1996, p. 90). Essas duas formas de política
estão interligadas e atravessadas uma pela outra. Isso se dá pelo fato de
a realidade implicar sempre em uma dimensão (macropolítica ou molar)
cartográfica de suas formas e representações em curso e uma dimensão
diagramática de suas forças em confronto que geram devires (micropolítico
ou molecular). Não se trata de compreender a macropolítica como o mal,
e a micro, como o bem. Tanto numa como noutra dimensão estão em jogo
vetores ativos (os que mantêm o devir e a multiplicidade) e reativos (os que
bloqueiam o processo e se fixam em um modelo). Uma micropolítica não é
necessariamente potencializadora; ela pode, ao contrário, ser bloqueadora
do processo de emancipação. A macropolítica pode não ser necessariamen-
te o endurecimento das representações das pessoas, dos objetos e da vida:
há um confronto de diversos vetores. Portanto, a diferenciação dessas duas
políticas aqui tem um caráter esquemático para visualizar a engrenagem
que se processa por seus vetores nas relações racias no Brasil, sobretudo
seus efeitos no corpo negro1.

1
Negros e negras serão aqui entendidos como aqueles e aquelas que, na classificação do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são designados por pretos e pardos.

246

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A cartografia da macro e da micropolítica das relações raciais no Brasil...

A macropolítica

As instâncias macro — na física, na economia, na biologia, na química, mas


também na subjetividade e no campo social — tendem a voltar-se para a
regulação e a manutenção que se sobrepõem à universal variação. A macro-
política cria mapas com fronteiras delimitadas, visíveis, audíveis e dizíveis.
Sua composição é feita exclusivamente por um modo em que um tende a se
contrapor ao outro (negro-branco, mulher-homem, criança-adulto, velho-
-jovem, homossexual-heterossexual). É por esse tipo de relação que comu-
mente o poder é posto, pois é por “[...] uma maioria que, por sua vez, é
subjacente a uma constância de expressão ou de conteúdo, como um metro
padrão em relação ao qual é avaliada” (Deleuze & Guattari, 1997, p. 52). A
maioria aqui não está relacionada à quantidade, e sim a um modelo que a
partir do qual todos devem-se moldar. Por sua vez, a minoria forma-se pela
subjugação ao metro padrão, ou por um tipo de resistência produtora de
uma identidade fixa. Assim, de modo particular, mesmo que haja no Brasil
50,7% de negros autodeclarados, segundo os dados do Censo de 2010 feito
pelo Instituto de Geografia e Estatísticas (IBGE) e divulgado no site Afro-
press (2011), o modo de ser é branco. Nisso uma cartografia dominante
ganha forma, por opressão àqueles que se encontram fora do metro padrão.
A cartografia dominante no plano macro embrenha-se na engre-
nagem do desejo, e chega ao ponto de tornar-se imperceptível quando o
indivíduo tem a ilusão de que o está produzindo com autonomia, mas o
comando é do dispositivo macro, segundo o qual se instala os modos de
ser, sentir e agir. Esse é o aspecto mais nocivo da redução à macropolítica
do olhar que conduz a existência. É que isso tende a minar qualquer pos-
sibilidade de que surja qualquer ação que tende a tirar tal existência de sua
“alienação”. Refiro-me à possibilidade de deslocar-se do mecanismo macro
que a determina, o que implica ao mesmo tempo sua explicitação e a cria-
ção de outros modos de subjetivação, outras cartografias.
Para Guattari (1981), moldar-se, segundo a cartografia dominante
no coração do desejo, num ímpeto de tirania e sujeição. Isso não está rela-
cionado às instâncias psíquicas do tipo inconsciente, e sim a projetos fracos
que tendem a se fechar em si mesmos. (Re)produzem-se “[...] os mesmos
velhos modelos reacionários das máquinas de guerra, as mesmas velhas

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identidade, branquitude e negritude

máquinas de tortura moral e física que atravancam todos os recantos da


história” (Guattari, 1981, p. 72).
Esse modo de operação acaba por impedir ações emancipatórias dos
grupos fora do metro padrão. O devir revolucionário que se processaria
em tais ações se perde ao longo de sua efetuação, pelas tomadas de poder
por parte dos indivíduos, grupos e instituições — poder, tanto no sentido
macro como no sentido micro, pois ele tende a acoplar-se na produção do
desejo. É nesse sentido que, para Deleuze (1992), o processo revolucio-
nário e a revolução em si são coisas distintas. O primeiro, com seu caráter
libertador, está necessariamente conectado ao coletivo. Já o segundo, com
sua sede de poder, torna-se apropriação de poucos, por modos arbitrários.
Ambos estiveram e ainda estão presentes na história da humanidade.
Em suma, no plano macropolítico impera-se uma cartografia que
comumente estrutura o estado das coisas por desigualdade e opressão; esta
é marcada por relações binárias que determinam, por sua vez, o processo
de subjetivação, prejudicando em especial os que estão na ponta da opres-
são. Há na macropolítica uma contenção de fluxos, por formatação de um
único modo de ser, sentir e agir.

A micropolítica

A micropolítica opera na realidade sensível, que se encontra em contínuo


processo de mutação. Segundo Rolnik (1989), se, de um lado, temos a car-
tografia vigente, com sua formatação definida, de outro, a todo o momento,
um mundo de afetos toma por assalto nossos corpos que o desestabiliza.
O confronto do que estava posto com o que agora se apresenta no sensí-
vel é inevitável, e instala-se uma crise na subjetividade (Rolnik, 2003). Tal
contexto incita um processo de criação de modos de vida, que tendem a
dar forma a algo que está na ordem da sensação. Assim, a micropolítica
refere-se a “[...] uma analítica das formações do desejo no campo social”
(Rolnik & Guattari, 2005, p. 149). Esta análise não se dá necessariamente
por aqueles que se atribuem o papel de especialistas que, distantes e com
seu suposto conhecimento prévio daquilo que se apresenta, emitem laudos
conclusivos. Pelo contrário, dá-se pelo questionamento por parte daqueles

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A cartografia da macro e da micropolítica das relações raciais no Brasil...

que estão imersos em um determinado contexto social acerca dos proces-


sos de homogeneização e de sua formatação nos indivíduos serializados.
Esses têm uma percepção sensível de que esses processos afetam nossos
corpos, e se põem a investigá-los: evidenciam suas políticas, apontam onde
os fluxos estão retidos e propõem trabalhá-los para que voltem a fluir.
Desse modo, o dispositivo micro só pode ser rastreado a partir dos
agenciamentos nele presentes e dos modos de vida por ele produzidos. No
entanto, a “[...] micropolítica consiste em criar um agenciamento que per-
mite [...] que esses processos se apoiem uns aos outros, de modo a intensifi-
car-se” (Rolnik; Guattari, 2005, p. 93). É nessa intensificação que se formam
as alianças minoritárias que por ventura poderão somar forças para desmo-
ronar uma hierarquia que impõe uma única direção a tudo e a todos.
Em contraposição, no plano micropolítico, aquilo que era uma linha
de fuga — que, ao contrário de fazer fugir de algo que afeta, convoca a uma
imersão no afeto para trabalhá-lo com potência criativa de fluxos estagna-
dos — pode enrijecer-se, repetir-se como metro padrão e ter como efeito o
bloqueio da processualidade. Assim, uma linha de fuga é uma arma potente
e viva, pode incitar ou cometer uma violência, tal como na macropolítica,
pois suas fronteiras tênues “[...] revertem-se frequentemente em linhas de
destruição: o fascismo e o suicídio” (Hardt, 1997, p. 5). O enrijecimento
se dá por desejo de poder: este não está restrito às instituições ou grupos,
pois atravessa todos os indivíduos. A “[...] linha de segmentos (macropo-
lítica) mergulha e se prolonga em um fluxo de quanta (micropolítica) que
não para de remanejar seus segmentos, de agitá-los” (Deleuze, 1996, p. 97).
Uma ação micro que seja ativa faz com que os fluxos contidos pela car-
tografia dominante voltem a fluir, e uma multiplicidade se faça presente.
Entretanto, a qualquer momento, os fluxos podem ser novamente contidos
em função da valorização de um de seus múltiplos aspectos, confinando-se
em guetos e particularizando o que era coletivo. Logo, outras linhas de fuga
(ações micro) farão fluir o que foi impedido, e assim sucessivamente.
Em resumo, a micropolítica é uma possibilidade de operar outras
configurações sem garantia. Esse campo é, portanto, o das conexões, das
afetações recíprocas, das possibilidades geradas em um dado encontro.
Contudo, a micropolítica não pode ser considerada uma espécie de pana-
ceia universal. Dois perigos a habitam. O primeiro é o risco de os fluxos

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identidade, branquitude e negritude

serem novamente retidos, já que o poder está inserido na engrenagem do


desejo. O segundo é o risco do desmanchamento pelo desmanchamento,
sem que nada se crie.

Relações raciais e suas políticas

O que está posto nas relações raciais no Brasil é uma política macro forjada
em um contexto colonialista, no qual o negro é desclassificado pela alteridade
branca, sendo remetido constantemente a uma imagem no plano extensivo,
portanto, fechada em si e apreendida como verdade. As representações que
daí emergem são também fixadas em uma imagem, a exemplo das inúmeras
fotografias de José Christiano Júnior e de Marc Ferrez que retrataram o Brasil
Colonial, em especial a vida dos escravizados. Elas captaram o instante de um
movimento que não cabia em um fotograma, mas nele confinou-se, tendo
sido eternizado e tornado a essência dessa população.
A realidade, o imaginário, a fantasia, neste caso, compõem-se em
uma dinâmica em que uma se alimenta da outra, na formação tanto no que
se refere às representações fixas de negros e de brancos quanto na criação
e na manutenção da disparidade racial entre negros e brancos, face macro-
política das relações raciais no Brasil.
Para Guattari (1990), achatam-se as subjetividades minoritárias, por
possuírem potência suficiente para subverterem a ordem posta: aplana-se o
que pode efetivamente insurgir e desmoronar um regime, uma totalidade.
Isso é perceptivo no Brasil Colonial, em que foi preciso, a todo custo, limar
o corpo e a subjetividade dos africanos e dos negros na tentativa de solapar
a potência presente nos corpos escravizados e a continuidade de uma cul-
tura no exílio. Contudo, atos de revolta, como as fugas para os quilombos,
assassinatos de feitores, senhores e senhoras, abortos voluntários de escra-
vas, foram formas de resistir a esse período (Carneiro, 2005).
Entretanto, o resquício do período escravocrata nas gerações futuras
é o registro traumático impregnado no corpo-memória da população ne-
gra. O que, por sua vez, tem comumente aprisionado o negro ou em uma
identidade modal branca, ou em uma identidade afrocentrada, como for-
mas de lidar com seu corpo negro e a herança negativa da escravidão.

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A cartografia da macro e da micropolítica das relações raciais no Brasil...

Esses são dois modos de construção imaginária de uma identidade que


funciona como um corpo-prótese, no qual se instala uma distância do trau-
ma, cuja elaboração e superação ficam suspensas.

Em busca do ideal branco

A busca do ideal branco se dá basicamente por meio da negação das ca-


racterísticas e das supostas atribuições comportamentais, psicológicas e
emocionais da população negra em contraposição à branca. Essas são cons-
truções marcadas pelo imaginário, pela história e pelos aspectos sociais dos
corpos negros e brancos.
O corpo negro, ao se deparar com um mundo em que suas atribui-
ções físicas têm conotações que não favorecem um autorreconhecimento,
tende a buscar referências no que venha a ser o ideal branco. A experiência
de ser negro torna-se traumática para muitos, e, quando o trauma se instala
no corpo, produz-se um estágio em que não se identifica a crueldade como
causadora de tal sofrimento. Nisso, o corpo negro torna-se perseguidor de
si mesmo, como aponta Costa:

Ser negro é ser violentado de forma constante,


contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma
dupla injunção: a de encarar e anular o corpo e os
ideais de Ego do sujeito branco e a recusar, negar
e anular a presença de corpo negro [...], não é fá-
cil imaginar o ciclo entrópico, a direção mortífera
imprimida a este ideal. O negro, no desejo de em-
branquecer, deseja nada mais, nada menos, que
a própria extinção. Seu projeto é o de, no futuro,
deixar de existir; sua aspiração é a de não-ser ou
não ter sido (Costa, 1989, p. 104-107).

Tal desejo se dá pelo fato de o negro vivenciar uma ideologia que


impede qualquer outro modo de ser, de sentir e de agir.
Para Chnaiderman (1996), há uma sutileza presente no racismo no
Brasil que faz com que as pessoas não percebam a sua perversidade; e quan-
do a percebem, já estão impossibilitadas “[...] de viverem o seu próprio
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identidade, branquitude e negritude

corpo; vivem num corpo que é dado por uma imagem que vem via publi-
cidade, via televisão, via cinema” (p. 92). O poder desses veículos opera
tão profundamente que se torna quase imperceptível aos olhares menos
atentos. Como afirma Gil (2004), estamos em um mesmo barco à deriva em
águas turbulentas, coberto por uma densa névoa que não só ofusca a visão
dos tripulantes, como cria novas imagens.
Por sua vez, a negação de pertença racial é uma tentativa de o negro evitar
o contato com a sensação intolerável gerada pela fixação de um modelo úni-
co. Souza (1981) propôs que, ideologicamente, o negro não nasce negro, pois a
imagem negativa construída de si o impossibilita de ser e querer ser reconheci-
do como tal. Origina-se o que essa autora identificou como sendo uma Ferida
Narcísica 2, conceito definido por Freud (1914) em Sobre o Narcisismo: uma
introdução. Contudo, aqui não se tem a intenção de reduzir essa problemática
ao inconsciente, ao Complexo de Édipo e à inveja. Esse inconsciente privado,
familiar, edipiano é historicamente datado, e tem por efeito a produção de culpa,
nesse caso, de ser negro, para que as normas sejam interiorizadas sem questio-
namentos. Assim, o empenho na busca de incorporar elementos que suposta-
mente constituem o ser branco é uma maneira de corresponder a uma imagem
aceita socialmente, ação essa comumente carregada de sofrimentos e traumas.
A busca pelo ideal branco é encampada desde a infância com o so-
frimento por parte das crianças negras que esfregam o corpo com a bucha
até sangrar, no intuito de fazer desaparecer a melanina que as marcam como
negras; que se recusam a ir à creche, e que fracassam na escola devido aos ape-
lidos colocados pelos colegas; que interrogam os pais se, quando crescerem,
irão tornar-se brancas. Como esse projeto não é realizado na infância, ganha
outras ações não menos sofridas na vida adulta, como o uso dos recursos para
alisar o cabelo, para retirar o seu aspecto crespo, as cirurgias plásticas para
a mudança do formato do nariz, os casamentos inter-raciais com objetivos
de ganho secundário e o embranquecimento da prole. Outros recursos mais
subjetivos são também investimentos na busca pelo ideal da representação

2
A expressão “Ferida Narcísica” refere-se a uma desestruturação egoica no momento crucial
na formação da personalidade. Conceito originário da psicanálise, traduz o resultado da inveja
da mulher por ser desprovida do falo, símbolo de poder. Em “As Resistências à Psicanálise”,
Freud afirma que a cicatrização dessa ferida é o sentimento de inferioridade. Souza desloca essa
problemática para a questão racial, entendendo que o negro, mesmo sendo homem, é desprovido
de poder, pois está colocado em oposição ao ideal. Por sua vez o negro tende a canalizar forças
na busca deste ideal.

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A cartografia da macro e da micropolítica das relações raciais no Brasil...

branca: a busca para ser o melhor aluno da turma ou o melhor funcionário


da empresa; o esforço em se interessar por tudo aquilo que carregue a grife da
cultura do metro padrão, considerado, por princípio, “chic”, “fino” e “sofistica-
do” (o que pode ir do clássico “erudito” ao moderno ou contemporâneo); e a
adoção de tais jargões vem sempre acompanhada de uma demarcação relativa
a todo e qualquer outro tipo de repertório cultural, considerado, por princí-
pio, “brega” e “grosseiro”.
Todavia, é preciso esclarecer que não se trata aqui de desqualificar
traços culturais do branco, nem toda e qualquer adoção deles pelos negros,
pois isso configuraria uma caça às bruxas às avessas. O que está em foco é a
política de subjetivação em jogo nessas incorporações: essas são entendidas
como um investimento no ideal branco quando movidas pela supervaloriza-
ção dos atributos brancos (assumidos como metro padrão) e a desvalori-
zação dos próprios atributos. Em outras palavras, o que está sendo visado
aqui são os casos em que o que move essas escolhas é a vontade de espelho.

Identidade afrocentrada

Nesse segundo modo de produção de vida, a exacerbação da cultura negra


é inevitável. Uma identidade afrocentrada toma o lugar da perseguição do
ideal branco, como forma de resistência ao embranquecimento ideológico
por (re)estabelecimento das raízes africanas. O corpo e a cultura negra se
tornam ligados direta e exclusivamente com uma visualidade e uma sono-
ridade africana, ou o que venha a ser. No contexto afrocentrado, constrói-se
uma receita pronta de como ser negro.
Ferreira (2000) sintetizou de forma interessante esse modo de pro-
dução. Nele, há um apego aos símbolos negros, jargões verbais e à ma-
nutenção do pensamento dicotômico (negro-branco, mulher-homem,
pobre-rico, dentre outros); o costume de julgar de forma rígida as pessoas
que não se encontram nesse ideal autocentrado; a hostilidade tanto à cul-
tura branca como às pessoas dessa raça 3, por serem consideradas culpadas

3
O conceito de raça, neste artigo, é sustentado pela Sociologia. Esse conceito é entendido como uma
construção social, cultural e simbólica a despeito de um determinado grupo. Portanto, o termo raça
aqui não está ligado à genética, e sim a uma imagem construída socialmente, neste caso, de negros
e de brancos comumente de forma polarizada. As relações raciais são construídas culturalmente.

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identidade, branquitude e negritude

pela opressão sobre a cultura africana, seus produtores e seus descendentes;


uma aversão às relações sociais e amorosas com pessoas da raça branca; a
valorização de costumes africanos tradicionais (culinária, roupas, pentea-
dos, objetos, dentre outros); um total interesse pela chamada “Mãe África”,
em uma relação romantizada e fantasiosa com esse continente, que muitas
vezes é entendido como um país, estado ou até mesmo cidade; um envolvi-
mento em movimentos negros que possam alterar o estado das coisas des-
sa população e, consequentemente, valorizar a sua cultura; o registro dos
filhos com nomes que remetem à mitologia ou a personalidades africanas;
um entendimento do candomblé como a religião a ser seguida por todos os
negros e negras; e, finalmente, a busca de nomenclaturas para melhor se au-
todefinirem (dependendo da região ou do movimento político, podem ser
“negro”, “preto”, “afrodescendente”, “black, “de cor”, dentre outros nomes).
São comumente modos de ser de negros e negras politizados.
Assim, as chamadas expressões “afro” passam a cumprir as funções
de representar a união do elo perdido e de afagar os sofrimentos da vida,
ao se tornarem um gozo narcísico. Isso impossibilita a abertura para ou-
tros possíveis, pois, nesse terreno, uma identidade segura e fixa, sustentada
em uma relação ainda polarizada, reproduz os mesmos mecanismos que
antes oprimiam os negros (Ferreira, 2000). O que se tem aqui é uma mera
inversão de papéis opressores, na qual quem estava no polo do oprimido
passa para o de opressor. Para compreender tal contexto, Fannon (1983)
toca no ponto mais singular da ação macro no desejo, quando afirma que
todo escravizado anseia por liberdade, mas, quando livre, torna-se “se-
nhor”. Isso se dá por sede de poder, pois o modelo de liberdade é o do
branco, portanto, opressor.
Contudo, a prudência faz-se necessária novamente para não tornar-
mos juízes e impedir o processo de criação de modos de vida. Logo, o que
parece estar no seio dessa ação é um retorno ao arcaico, à destruição da vi-
zinhança e ao aprisionamento do negro em um produto identitário pronto,
por meio da opressão.
Decerto, esse cenário se configurou devido ao estado de coisificação
ao qual a população negra foi submetida por meio do colonialismo. A cul-
tura que surgiu desse contexto tornou-se relegada à marginalidade e à vio-
lência, ao exotismo e ao folclórico. Firmar uma identidade negra faz parte

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A cartografia da macro e da micropolítica das relações raciais no Brasil...

da estratégia para retirar a população negra da ação letal da opressão. En-


tretanto, o que se percebe é que esse artifício passou a ser um porto seguro
onde tudo se transforma em raiz e fixa as identidades. Ele é um impedidor
de um processo de abertura para múltiplas possibilidades; uma resistência
que transforme a cultura em ação política com potência tanto para trans-
formar o estado de coisa dessa população como borrar as representações
que se tem dela e poder fazer do corpo negro uma criação, ao contrário de
manter esses status quo. É preciso abrir mão daquilo que nos salvou um dia,
para que a vida volte a fluir.
No entanto, uma reivindicação de ocupação de espaço público, liga-
da a uma identidade cultual afrocentrada, encontra-se presente na organi-
zação militante negra no Brasil e em alguns interessados por essa temática.
O que se configura nisso é uma despotencialização da força política pre-
sente nesta cultura (que tem poder para desestabilizar a ordem posta), ao
mesmo tempo em que a ação política é retornada à cultura, ainda, como
conformidade social. Todavia, as expressões culturais são compostas por
uma heterogeneidade que não é sustentada por um rótulo identitário e um
universo que a compõe, pois

[...] a noção de “identidade cultural” tem implica-


ções políticas e micropolíticas desastrosas, pois
o que lhe escapa é justamente toda a riqueza da
produção semiótica de uma etnia, de um grupo
ou de uma sociedade [...]. A questão está, exata-
mente, em não se deixar capturar, em não cair
nesses modos de qualificação e de estruturação
que bloqueiam o processo (Rolnik & Guattari,
2005, p. 85-94).

A instauração de uma identidade cultural tem “[...] sempre um


fundinho de etnocentrismo” (Rolnik & Guattari, 2005, p. 83). Isso tam-
bém está posto no modo de produção afrocentrado. Portanto, atrelar a
reivindicação de ocupação de espaços públicos com afirmação cultural
não favorece a emancipação da população negra, uma vez que a fixa de
forma estereotipada.

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identidade, branquitude e negritude

Ocupar espaços públicos por meio de ações políticas é mais do que


uma democratização desses espaços ou algo do âmbito jurídico. Sua ação
micro se dá pela recusa de ocupar espaços que já estão dados, pela evidên-
cia de que a identidade fixa não existe para além do plano imaginário, mas
tem seus efeitos na realidade. Um exemplo disso são as Ações Afirmati-
vas, resultado de muitas lutas dos movimentos, em especial no campo da
educação no Brasil. E na medida em que essas ações tomam corpo, torna-
-se mais visível e dizível a margem ocupada pela população negra. Para
Guattari (1981), a margem é onde se pode fazer uma leitura da ruptura nas
estruturas sociais de uma sociedade, na qual se delineia uma problemática
coletivizada que ganha forma por processo de individuação. Parece ser isso
o que se torna intolerável do ponto de vista da cartografia dominante: fazer
visível e audível essa ruptura, evidenciando o que a compõe, por ocupação
do espaço público.
Se no primeiro arranjo a potência criativa do negro era anulada na
busca de ser uma representação do branco, no segundo, a anulação se dá
em função de uma carcaça identitária negra como forma de resistência.
Ambas são formatações seriadas que não permitem outras configurações.
A luta deve ser contra qualquer tipo de conduta hegemônica; para tanto,
é preciso esboçar ações próprias da micropolítica, de modo a abrir outras
possíveis, para além do trauma e da suspensão que se fazem necessárias.

Para não terminar

“Minha ferida existia antes de mim, nasci para encará-la” (Joe Bousquet
citado por Deleuze, 1974, p. 151). A proposta de uma ação micropolítica
não tem a intenção de apaziguar a dor produzida nas relações raciais, nem
tampouco prevenir o trauma. Ao contrário, pretende trabalhar sua ferida de
modo que ganhe forma a potência de criação que foi soterrada pela opressão,
por mergulho cada vez mais intenso nas questões que afetam esse campo.
Um dispositivo micro tende a disparar a força criativa do corpo ne-
gro. Um exemplo disso é o que diz uma entrevistada de Carmo (citado por
ComCiência, 2008).

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A cartografia da macro e da micropolítica das relações raciais no Brasil...

Não é o rap que fala que é pra gente que é preto


se ligar e pensar com a própria cabeça? Então,
não é porque eu sou preta que eu tenho que
gostar de rap, né. Eu posso gostar do que eu
quiser e eu da minha parte eu gosto é de mú-
sica clássica.

Neste caso, o rap foi um dispositivo, uma produção singular e de aber-


tura para outras possibilidades, e não se fixou nesse primeiro dispositivo.
Portanto, é preciso retirar o negro dos habituais clichês, quer do
modo branco ou da identidade afrocentrada. Não é, por sua vez, deixar a
tela em branco, na esperança de que um sopro o inspire para ocupá-la, pois
“[...] seria um erro acreditar que o pintor comece a trabalhar sobre uma
superfície branca e virgem. A superfície está investida virtualmente por
todo tipo de clichês com os quais torna-se necessário romper” (­Deleuze,
2007, p. 19). Romper com os clichês raciais é recuperar a potência de afe-
tar e de ser afetado. É criar outras saídas revolucionárias, abrindo novas
estradas processuais para escoar potências criativas que possam visualizar
os mundos, as culturas e as raças não como uma totalidade, mas como mul-
tiplicidade em processo, por produção e invenção de seu próprio corpo.
Nisso a vida tende a se dar de forma menos fantasmática. “O que fazer com
o meu corpo negro?” pode ser uma pergunta fundamental para instalar um
processo singular de produção de subjetividade.
Finalmente, tornamo-nos negros ao reivindicarmos a alteração do
estado das coisas pela diminuição da disparidade racial via políticas públi-
cas e ao fazer do nosso corpo minoritário e da nossa vida uma obra de arte.
Para isso, rasgar o véu que encobre as relações raciais no Brasil e que de-
termina sua imagem é uma ação incontornável para que os problemas que
agitam esse campo se façam sensíveis em nosso corpo, e a pulsação da vida
se ative. Contudo, é necessário irmos ao encontro de outrem em uma plu-
ralidade de mundos, em que a distância da singularidade seja preservada
juntamente com a sua potência de afetação (Pelbart, 2006). Isso será possí-
vel na manutenção do jogo da multiplicidade de corpos, de subjetividade e
da vida, presentes tanto na macro quanto na micropolítica que compõem
as relações raciais no Brasil.

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identidade, branquitude e negritude

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A LITERATURA
AFRO-BRASILEIRA E A
RECONFIGURAÇÃO DA
IDENTIDADE NEGRA
Tassia do Nascimento

Observar a poética afrofeminina é localizar a expressão da singularidade


histórica e cultural de mulheres duplamente subjugadas por uma sociedade
etno e falogocêntrica. Esta mulher, enquanto sujeito de sua escritura, atra-
vés de seu contradiscurso, inverte valores e estigmas construídos acerca de
sua imagem e corrobora o processo de reconfiguração e afirmação de sua
identidade calcada em um histórico de resistência e fruto de uma heran-
ça simbólica africana. A partir dessa constatação, a literatura afrofeminina
passa a ser verificada como ferramenta que pretende desconstruir a ima-
gem estigmatizada estabelecida para a mulher negra fazendo uso da pala-
vra ganhadora de novas simbologias e de um novo discurso. Nesse sentido,
voltar o olhar para essa produção literária significa perceber os anseios e a
nova atitude da mulher afro-brasileira frente aos valores e mitos impostos
por uma cultura que se quer hegemônica.

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Introdução

As lacunas abertas pelos novos caminhos propostos pela poética afro-


-brasileira trabalham no contrassentido das estereotipias engessadas pela
literatura canônica e revelam o rompimento com determinadas normas de
significação da identidade negra no Brasil. Pensar a afirmação da identida-
de negra nos obriga a considerar uma atmosfera político-cultural que es-
tabelece releituras e desmantela o pensamento etnocêntrico fundamentado
no determinismo biológico.
Neste artigo, pretendemos observar o processo de desconstrução
dos discursos que gozaram autenticidade e proclamaram o lugar referente
a cada grupo na sociedade brasileira. O negro, de acordo com esses dis-
cursos, destoa das práticas estabelecidas e se localiza como o outro de uma
cultura que se quer hegemônica, como desvio da norma. Os sistemas de
representação o localizaram enquanto marginal e mostraram-se eficazes
devido ao lugar privilegiado de onde seus discursos eram enunciados.
A literatura afro-brasileira, enquanto outra possibilidade literária,
estabelece novos sentidos à identidade negra, partindo do conceito-chave
de que significâncias distintas necessitam de chãos simbólicos provenientes
de outros lugares. Trataremos de identificar do que eles partem e como for-
mam singulares referências simbólicas. Ateremos-nos à análise de alguns

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A literatura afro-brasileira e a reconfiguração da identidade negra

textos que trabalham no sentido da reconfiguração da identidade negra,


auxiliando-nos a compreender a formação do corpus da literatura afro-
-brasileira. Observaremos a especificidade histórica da comunidade negra
no Brasil e a construção de uma poética que abre as devidas lacunas para
a expressão da cultura e memória afro que reconhece uma ascendência e
questiona o sistema escravocrata enquanto raiz identitária.

Novas raízes-referências

“A poesia não se faz para ensinar nada, mas para


instaurar ambivalências”.
(Muniz Sodré)

Percorrendo a obra O tronco do Ipê, de José de Alencar, datada de 1871,


ademais da observação do enredo que envolve a decadência do patriarcalis-
mo, o casamento e as lendas sobre as águas do Boqueirão, atentamos à for-
ma como o narrador caracteriza um personagem em especial: pai Benedito.
Observar suas descrições é o mesmo que esquadrinhar as marcas de um
imaginário social que recusa a natureza humana dos povos não ocidentais,
considerando-os portadores de uma suposta “selvageria”. Na referida obra
alencariana, uma cabana serve de moradia para o personagem, um “preto
velho”, “vulto dobrado ao meio”, “subdelegado de Satanás”:

[...] parecia-me um grande bugio negro, cujos


longos braços eram de perfil representados pelo
nodoso bordão em que se arrimava. As cãs lhe
cobriam a cabeça como uma ligeira pasta de
algodão. Era este, segundo as beatas, o bruxo
preto, que fizera pacto com o Tinhoso; e todas
as noites convidava as almas da vizinhança para
dançarem embaixo do ipê um samba infernal
que durava até o primeiro clarão da madrugada
(Alencar, 1982, p. 10).

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identidade, branquitude e negritude

A caricatura desenhada do personagem que possuía “pacto com o


Tinhoso” e que, para além da perturbação que sua imagem já trazia, ainda
perturbava a vizinhança praticando um “samba infernal”, reflete um dis-
curso que assimila o negro ao macaco, e que deprecia de forma aviltante o
papel deste na sociedade que circunda o contexto da obra.
Pai Benedito representa um entre vários outros exemplos descriti-
vos. O ano de 1929, por exemplo, serviu à publicação do poema “Essa negra
Fulô”, de Jorge de Lima, que se inicia da seguinte forma:

Ora, se deu que chegou


(isso já faz muito tempo)
no bangüê dum meu avô
uma negra bonitinha,
chamada negra Fulô (Lima , 1997).

Nesse poema, destacamos a forma como o narrador apresenta a che-


gada de uma “negra bonitinha” ao engenho: dissimulando a noção de ori-
gem, a negra chega, simplesmente chega, e de sua chegada decorrem muitas
consequências advindas da reificação de seu corpo. O poema se concentra
na forma como Fulô se comporta e no seu papel dentro da propriedade do
“sinhô”, a quem está duplamente a serviço. Ela é descrita como uma negra
“bonitinha” e serviçal, além de ser uma mulher marcada pela sensualidade
supostamente inerente ao seu corpo. Na composição desse quadro, alguns
papéis são invertidos, e o “Sinhô” se transforma em vítima de Fulô, a sedu-
tora, o corpo-procriação: foi ela quem tirou a própria roupa seduzindo-o.
Essas são duas descrições que reproduzem o imaginário construí-
do acerca da identidade negra na sociedade brasileira e nos servem como
contraponto para a fundamentação da ideia que consta de nossa epígrafe.
Se, de acordo com ela, a poesia serve para instaurar ambivalências, ela se
presta, portanto, à abertura de fendas que dão espaço a perspectivas inicial-
mente diferentes ou até mesmo opostas. Esta ambivalência de sentido ins-
taurada por ela traduz um rompimento, e o utilizaremos justamente para
discutir a noção de que a poesia — e aqui ampliaremos sua aplicação à
literatura de uma forma geral — funciona, além de outras possibilidades,
para abrir lacunas, deslocar regras, violar princípios, desestabilizar noções

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A literatura afro-brasileira e a reconfiguração da identidade negra

normatizadas, desencadeando-se daí uma série de outros efeitos. Se aquilo


que consta na literatura canônica é a imagem de um negro bugio, ou de
uma negra que dispensa a descrição de uma ascendência, deslocamos tais
princípios e colocamos diante de uma norma a possibilidade de uma con-
trarregra, um contradiscurso.
Nessa relação que se estabelece entre identidade e literatura, verifi-
camos que a produção de determinados enunciados, e sua incessante re-
petição, fortalecem a estigmatização de um grupo. Aqui compartilhamos a
ideia de Tomaz da Silva (2007, p. 94) de que, muito mais do que a reprodu-
ção, mas a existência da possibilidade de reprodução de uma determinada
sentença se relaciona à força que um ato linguístico tem no processo de
produção de identidades: basta criarmos um enunciado e repeti-lo quantas
vezes forem necessárias para que causem efeito. Quando observamos na li-
teratura canônica a repetição de enunciados que representam a imagem do
negro distante dos padrões de comportamento estabelecidos, verificamos a
eficácia e abrangência de um mecanismo que auxilia na constituição de es-
tereotipias e, conforme dito anteriormente, intervém no imaginário social.
Os efeitos dessa repetição recaem na estigmatização de um grupo, sendo
necessário repensá-los considerando-se as demandas de nossa configura-
ção histórica atual. Sem dúvidas, a literatura representa um dentre vários
outros recursos, mas neste momento voltaremos nosso olhar ao seu corpus,
assim como ao que estabelece suas funções e significados.
Ao mencionarmos a necessidade de consolidação de novas raízes-
-referências, tomamos como pressuposto a descentralização do Ociden-
te e, por conseguinte, de suas formas de significação. Esse processo nos
auxilia a situar o lugar desse pensamento, compreendendo-o, primeira-
mente, enquanto produzido socialmente e objetivado por determinados
homens, e não parte de um processo universal. Seus significados têm a
ver com as relações de sentido que se estabelecem com o real e com as
normas que fazem parte não de uma demanda natural, mas de um pro-
cesso de significação.
Kathryn Woodward, em artigo publicado na obra Identidade e dife-
rença, fala-nos sobre essas práticas de significação e seus sistemas simbólicos
que produzem significâncias e, portanto, representações. De acordo com ela:

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identidade, branquitude e negritude

A representação inclui as práticas de significação e


os sistemas simbólicos por meio dos quais os sig-
nificados são produzidos, posicionando-nos como
sujeito. É por meio dos significados produzidos
pelas representações que damos sentido à nossa
experiência e àquilo que somos. Podemos inclusive
sugerir que esses sistemas simbólicos tornam pos-
sível aquilo que somos e aquilo no qual podemos
nos tornar (Woodward citado por Silva, 2007, p. 17).

A cultura estabelece sistemas de representação e significados sobre


os grupos conduzindo-os a tomar “posições-de-sujeito”. Ela determina
formas diversas de representar os indivíduos e as comunidades às quais
podem pertencer, e a literatura se refere a um tipo de referência que re-
produz ideias sobre determinadas comunidades. As descrições presentes
na literatura canônica, por exemplo, refletem um sistema simbólico que
representa o negro enquanto objeto de uma conjuntura social e política. As
imagens veiculadas por ela reproduziram tais noções participando, portan-
to, da constituição da identidade afro-brasileira. Dessa forma, a literatura
se configura como uma importante instituição fornecedora de elementos
para a significação de sujeitos e de comunidades étnicas.
A nossa sociedade constrói tais práticas que servem ao processo de
criação e reprodução de imagens que se pretende erigir de um grupo. É in-
dispensável salientar que a caracterização dos sujeitos de uma comunidade
não surge enquanto elemento autônomo, natural, mas é decorrente das re-
presentações e, por conseguinte, significações que a cultura e seus sistemas
simbólicos determinam.
Geni Guimarães nos dá amostras de como se dá esse processo em
romance intitulado A cor da ternura (1991). O contexto apresentado na
obra é a costumeira sala de aula, sendo a escravidão a temática abordada.
A professora a descreve de acordo com o universo simbólico que deprecia
a imagem do negro, e Geni, a protagonista de mesmo nome da autora, in-
ternaliza tais descrições e condiciona sua posição de sujeito na sociedade:

Quando dei por mim, a classe inteira me olhava


com pena ou sarcasmo. Eu era a única pessoa

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A literatura afro-brasileira e a reconfiguração da identidade negra

da classe representando uma raça digna de


compaixão, desprezo! Quis sumir, evaporar,
não pude. Apenas pude levantar a mão suada e
trêmula, pedir para ir ao banheiro. Sentada no
vaso estiquei o dedo indicador e no ar escrevi:
“Lazarento”. Era pouco. Acrescentei “morfético”.
Acentuei o e e voltei para a classe (Guimarães,
1991, p. 67).

A autorrecusa da personagem reflete a internalização dos significa-


dos que posicionam o negro como o outro: “larazento”, “morfético”. Este
exemplo corrobora a afirmação da relação entre a constituição da identida-
de e a cultura que a circunda.
Ana Cruz, escritora mineira, lança em sua poética marcas das fen-
das proclamadas pela literatura afro-brasileira. O poema “Coração tição”,
publicado na obra E... feito de luz, em 1995, revela, em tom contradiscursi-
vo, a relevância de um eu-lírico que anuncia não a mera e única condição
de descendente de escravos, fechando-se nela, mas uma ascendência que
recusa universalismos acerca da identidade e história afro-brasileira. Sen-
do assim, ele afirma: “Não quero ser mulata/ Sou afro-brasileira-mineira/
Bisneta/ de uma princesa de Benguela”. Dar nome às origens significa re-
chaçar a ideia de mulata exportação, declarando ascendência e nomeando
seu cerne, ou seja, o lugar específico de produção de sua cultura: Ben-
guela, Angola, de onde foram retirados muitos africanos que tiveram a
condição transformada devido a uma ordem escravagista que ignorou sua
origem, reconhecendo apenas o momento de sua chegada na condição de
mercadoria.
Carolina Maria de Jesus, moradora da favela de Canindé, em São
Paulo, inicia em 15 de julho de 1955 o registro de sua cotidianidade em
diário intitulado Quarto de despejo. Interessante é notar um dos primeiros
apontamentos da autora, que nos serve como referência para grande parte
de nossa reflexão:

Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pre-


tendia comprar um par de sapatos para ela. Mas
o custo dos gêneros alimentícios nos impede a

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identidade, branquitude e negritude

realização dos nossos desejos. Atualmente so-


mos escravos do custo de vida. Eu achei um par
de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar
(Jesus, 2007, p. 11).

Além da constatação de sua condição e dos impedimentos que essa


traz, é interessante notar a “saída” que a autora encontra diante do desejo
inicial de comprar um par de sapatos para a filha. Achá-los no lixo, lavá-los
e remendá-los representa a ação de um indivíduo nos interstícios daquilo
que foi dado e daquilo que “deveria” ser; justamente no que Muniz Sodré,
em sua obra O terreiro e a cidade (1988a), assinala como característica da
cultura negra no Brasil ou daquelas que atuam em nome de classes subalter-
nas: os afro-brasileiros instituíram um “[...] ‘contralugar’ (em face daqueles
produzidos pela ordem hegemônica) concreto de elaboração de identidade
grupal e de penetração em espaços intersticiais do bloco dirigente” (Sodré,
1988a, p. 103). Constatação correlata à de Stuart Hall quando afirma que
“[...] o sujeito fala, sempre, a partir de uma posição histórica e cultural es-
pecífica” (Hall, 2007, p. 27). A saída de Carolina, neste caso, representa a
identidade de uma comunidade significada através de espaços forjados da
“oficialidade histórica”. Olhá-los atentamente, compreendendo-os enquan-
to contralugares de atuação, é relevante no sentido de observamos a cons-
trução de uma identidade baseada em parâmetros e demandas diversos aos
moldados pela hegemonia discursiva.
Utilizamos os registros de Carolina para nos referirmos a um con-
junto de mulheres cujas contingências da vida condicionaram a combina-
ções engenhosas e elaboradas a partir de outras referências. Seus registros
diários materializam grande parte do corpus da literatura afro-feminina e
estabelecem profunda relação com aquilo que a caracteriza, uma vez que
prevalecem nessa poética as marcas de uma identidade significada a partir
da posição histórico-cultural das mulheres negras na sociedade brasileira e
representa a especificidade dessa literatura.
Além de Carolina Maria de Jesus, podemos citar outras produções que
também refletem a posição de sujeito das mulheres negras. Maria da Con-
ceição Evaristo de Britto, escritora mineira, em seu poema “De mãe”, deixa
transparecer a trajetória dessas mulheres que aprenderam a dar feição à sua
existência, utilizando-se do contralugar. Segue a transcrição do poema:
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A literatura afro-brasileira e a reconfiguração da identidade negra

[...] A brandura de minha fala


na violência de meus ditos
ganhei de mãe
mulher prenhe de dizeres
fecundados na boca do mundo.

Foi de mãe todo o meu tesouro


veio dela todo o meu ganho
mulher sapiência, yabá,
do fogo tirava água
do pranto criava consolo.

Foi de mãe esse meio riso


dado para esconder
alegria inteira [...]

Foi mãe que me descegou


para os cantos milagreiros da vida
apontando-me o fogo disfarçado
em cinzas e a agulha do
tempo movendo no palheiro.

Foi mãe que me fez sentir


as flores amassadas
debaixo das pedras [...]
e me ensinou,
insisto, foi ela
a fazer da palavra
artifício
arte e ofício
do meu canto
de minha fala (Evaristo In Cadernos Negros,
2007, p. 25).

O eu-lírico revela características e formas de lidar com a cotidia-


nidade herdadas e aprendidas com a mãe. Dela proveio a “brandura” da
fala, ao mesmo tempo em que violenta. “A violência dos meus ditos”: a
violência dos dizeres abrandados devido a uma ordem que busca silenciar

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identidade, branquitude e negritude

outras formas de cultura e a proclamação de outros discursos; discursos


que tiveram que ser abrandados, que tiveram que ocupar as entrelinhas,
o contralugar, mas que nem por isso foram extintos. A mãe representada
neste poema era “mulher prenhe de dizeres” e estes não se extinguiram,
foram “fecundados na boca do mundo”. De mãe herdou-se o “tesouro”, o
“ganho” e o “meio-riso”; a metade de um sorriso que se refere menos a uma
condescendência, que a uma estratégia para esconder uma alegria inteira:
mulheres que souberam encontrar saídas e produziram outros espaços de
atuação, lugares forjados nas entrelinhas. Assim, o eu-lírico afirma: “quan-
do se anda descalço/cada dedo olha a estrada”. Essa mulher, enquanto ima-
gem ou representação, simboliza a figura de uma mulher negra que teve
que lidar com os interstícios. O poema não deixa de descrever essa carac-
terística, que é reflexo do jogo duplo enredado em nossa configuração so-
ciocultural. Mulher “sapiência”, aquela que “do fogo tirava água/do pranto
criava consolo”, apresentando aos seus descendentes “o fogo disfarçado/em
cinzas e a agulha do/tempo movendo no palheiro”. Mostrar o fogo diante
das cinzas: revelar saídas diante das adversidades; simular o avesso, o inver-
so, o contralugar. Assim como as cinzas disfarçadas, esta mulher apresenta
“flores amassadas/debaixo das pedras” aos seus. Do rol de heranças, uma
última: “fazer da palavra/artifício”: a violência dos ditos pela brandura se
torna uma arte, um ofício falado, cantado pelas vozes de afrodescendentes
que ecoam memória e cultura.

Conclusão

As ambivalências literárias instauradas pelos caminhos propostos pela


poética afro-brasileira seguem o contrassentido da literatura canonizada.
A reconfiguração da identidade negra ocorre ao deslocarmos as referên-
cias ocidentalizadas, apontando suas formas e funções e delimitando suas
prescrições a um contexto histórico e a sanções que legitimam sua própria
configuração.
Deslocar essa referência significa questionar uma construção sim-
bólica fornecedora de elementos que configuram identidades. A recorrên-
cia temática, assim como as opções vocabulares participam desse processo

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A literatura afro-brasileira e a reconfiguração da identidade negra

maior que corrobora a quebra da linearidade presente no discurso canôni-


co, afirmando a necessidade de abertura a outras possibilidades discursivas
que movimentam as prescrições da oficialidade.
Em um primeiro momento, observamos como se dá a abertura des-
sas lacunas e quais os efeitos do deslocamento da referência etno e falo-
gocêntrica. Desse deslocamento, localizamos outras raízes-referências que
trabalham no sentido de construir um sistema significativo cuja função se
relaciona à reconfiguração da identidade negra. O surgimento de outras
linguagens e simbologias provenientes desse processo condiciona a cons-
trução de outros referenciais para a comunidade negra e estabelece novos
contornos a ela.
A poética delineada a partir dessa reconfiguração nos mostra um lo-
cus de produção cultural que afirma o negro enquanto sujeito, e não como
o outro. As vozes que localizamos nos apontam um lugar específico e re-
velam o espaço de atuação de toda uma comunidade. Nela transbordam
marcas de uma identidade significada a partir da posição histórico-cultural
dos homens e mulheres negras na sociedade brasileira e representa a es-
pecificidade da literatura afro-brasileira. Um novo sujeito se pronuncia no
discurso deixando marcas que traduzem a reivindicação da afirmação da
identidade negra.

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DA ÁFRICA ÀS FACULDADES
DE MEDICINA: UM ESTUDO
DO ELEMENTO NEGRO NA
SOCIEDADE BRASILEIRA
Hildeberto Vieira Martins

O nosso objetivo é discutir como certos discursos e práticas (institucionais,


políticas, científicas etc.) giravam em torno da construção de um discur-
so racializado, o que permitiu engendrar a produção de uma “estranhe-
za eficaz” em nossa sociedade a partir da criação do que se convencionou
chamar aqui de elemento negro. O propósito de tal discussão deriva da ten-
tativa de pensar as razões históricas que permitiram uma produção cientí-
fica, marcada por um certo viés psicologizante, favorecedor da construção
de um espaço social destinado a esse elemento, já que o mesmo figuraria
como o representante mais eficaz do lugar de “estranhamento” (o outro
como “perigoso”). A partir de revisão de literatura voltada para o tema da
medicina legal e psiquiatria, discutimos como a produção de um discurso
médico-piscológico em finais do século XIX e início do século XX, baseado
no conceito de degenerescência, serviu como mote detonador de um deba-
te sobre o papel dos saberes psicológicos para o entendimento da questão
racial no Brasil.

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Introdução

É interessante notar que quando nos deparamos com estudos sobre o nosso
país e a sua história, uma questão apresenta-se insistentemente: a sua ima-
gem foi e ainda é construída como um ícone da diferença. O Brasil é o local
de expressão por excelência desse acontecimento em suas mais variadas
formas e manifestações. A questão da diferença foi tema recorrente aos co-
lonizadores europeus, inclusive os portugueses. O exotismo da nossa terra
e de seu habitante nativo, o indígena, anunciava o contraste com os ares
“civilizados” do Velho Mundo. Com a chegada do escravo africano (negro)
em nosso país, essa questão só se acentuou, permitindo a construção de
estratégias que definissem as condições necessárias para a aceitação de sua
presença em nosso solo. Essas estratégias produziram imagens e modos de
ser que transitaram de sua definição como exótico para uma ideia por vezes
romantizada ou alegórica da figura do negro (Marcílio, 2002, p. 10). Se em
um primeiro momento o escravo negro pôde ser visto por uma ótica “po-
sitiva”, uma vez que ele era pensado como necessário e até mesmo perce-
bido como integrado ao funcionamento de uma ordem escravocrata então
vigente no país, não tardaria para o forjamento de sua imagem como um
“elemento perigoso”, a partir do prenúncio da Abolição e da redefinição da
organização da sociedade brasileira (Schwarcz, 2001, p. 224). E esta última

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Da África às faculdades de Medicina...

imagem seria aos poucos construída com o auxílio de nossos intelectuais a


partir da absorção de um modelo racial de cunho biológico, o que permi-
tiu expor, em um segundo momento, o negro como um problema para a
sociedade brasileira.
A questão da diferença (das raças) engendrava ainda a tematização
da questão da identidade, já que identidade pode ser vista como aquilo que,
em princípio, marca a nossa diferença em relação a um outro. Alguns de
nossos intelectuais perguntarão qual é a identidade dessa nação. Torna-se
evidente que esse tema também marcaria toda a discussão sobre quais são os
“verdadeiros” representantes dessa nação, ou seja, quem é verdadeiramente
brasileiro. Na elaboração do modelo e do seu simulacro, o lugar da “raça”
negra será determinado por certos intelectuais em decorrência de seus pro-
jetos para a nação brasileira. Tomemos um exemplo: em seu trabalho sobre
as discussões da questão racial por parte da intelectualidade brasileira, Li-
lia Schwarcz assinala que no concurso promovido pelo Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1844, e que tinha como tema “Como
escrever a história do Brasil”, a tese vencedora foi a apresentada por Karl
Friedrich Philipp von Martius, médico e naturalista alemão. Já há nesta obra
o atrelamento da história do Brasil ao mito das três raças (indígena, negro
e branco). É por isso que Schwarcz, ao explicar a tese desse autor, comenta:

O projeto vencedor propunha, portanto, uma “fór-


mula”, uma maneira de entender o Brasil. A ideia
era correlacionar o desenvolvimento do país com
o aperfeiçoamento específico das três raças que
o compunham. Estas, por sua vez, segundo Von
Martius, possuíam características absolutamen-
te variadas. Ao branco, cabia representar o papel
de elemento civilizador. Ao índio, era necessário
restituir sua dignidade original ajudando-o a gal-
gar os degraus da civilização. Ao negro, por fim,
restava o espaço da detração, uma vez que era
entendido como fator de impedimento ao pro-
gresso da nação: “Não havia dúvida que o Brasil
teria tido”, diz Von Martius, “uma evolução muito
diferente sem a introdução dos míseros escravos
negros” (Schwarcz, 1995, p. 112, grifo nosso).

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identidade, branquitude e negritude

É a própria autora quem afirma mais adiante que essas diferenças


raciais marcaram o pensamento do IHGB e acabaram produzindo a ideia
de uma hierarquia racial. E como consequência dessas ideias veiculadas e
reproduzidas por parte de nossos intelectuais, recaiu sobre os negros “[...]
a pesada carga da impossibilidade de adaptação” à realidade civilizatória
(Schwarcz, 2005, p. 113).
O objetivo deste trabalho é mapear a proliferação de uma série de dis-
cursos em torno da construção de um projeto nacional e civilizatório que
teve como eixo principal a produção de um discurso racializado, ou seja, dis-
cutir de que modo certos fatores permitiram engendrar a produção de uma
“estranheza eficaz”. Discutiremos esse problema a partir da criação do que
nós convencionamos chamar nesse texto de elemento negro.1 Esse elemento
negro vai se constituir como o representante mais eficaz desse espaço social
destinado a demarcar um lugar de “estranhamento” (o outro como perigoso,
diferente etc.). O que estamos chamando aqui de discurso racializado é uma
tentativa de problematizar um conjunto de práticas que tomam como refe-
rência a consolidação das ideias de raça ou de racial em um de seus sentidos:
o biológico-causal, surgido em meados do século XIX a partir da utilização
no Brasil de um certo modelo científico. Queremos com isso apontar para os
vários usos que um vocabulário de cunho racial apresenta em nossa socieda-
de, caracterizando-se mais por seus efeitos racializadores (discriminatórios)
e muitas vezes sustentados por um modelo biológico-racial.2
1
Elemento é um termo bastante empregado em nossa língua. Ele pode significar um dos
componentes de todos os elementos do universo físico-químico. Isso está presente na ideia de
que ele é a parte que compõe um todo ou é uma substância básica que em suas combinações e
decomposições constitui toda a matéria (“o negro é um dos elementos de nossa cultura”). Mas
esse elemento também pode ser criado, inventado, como os elementos químicos produzidos em
laboratório (o negro pode ser pensado como uma invenção do pensamento racial do século XIX).
Elemento é aquilo que permite certa composição, combinação, mistura, como quando falamos
em mistura de raças (mestiçagem). Nós não podemos ainda nos esquecer do emprego do termo
elemento na gíria policial, que o utiliza como sinônimo de suspeito (em potencial) de um crime,
frequentemente associado a certos sujeitos possuidores de determinados atributos físicos
compatíveis a uma parcela da população. Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa,
um de seus usos é como “indeterminador de pessoa (origin., na linguagem militar e, depois, tb. na
policial)” (Houaiss, 2001, p. 1.108). É a ambivalência de sentido que o termo comporta, produzindo
esse elemento (pessoa) “indeterminado”, traduzido pela lógica vulgar que todo indivíduo pode ser
suspeito sem razão aparente, mas, ao mesmo tempo, derivando para a efetivação de um tipo
determinado (o “criminoso” gerado pelo inquérito policial), que consideramos um fator relevante
para a escolha do termo elemento negro.
2
Atualmente, o conceito de raça é considerado um constructo, ou seja, raça não tem uma
existência concreta mas é sim o resultado de certos modelos e práticas vigentes em um

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Optamos, neste trabalho, pela cunhagem do termo elemento negro,


ao invés do uso corrente da palavra negro, como o eixo definidor de certas
práticas de exclusão e assujeitamento presentes em nossa sociedade, mas que
não se limitam somente aos seus efeitos negativos. Essas práticas também
são produtoras de estratégias inclusivas, produtoras até mesmo de modelos
identitários (como a produção de uma identidade étnica afirmadora de uma
diferença cultural ou política). Usamos o termo elemento negro por acreditar
que, com essa estratégia, a palavra negro pode ser menos afeita a certas captu-
ras essencializantes presentes em alguns usos dessa palavra, já que esta última
é tomada muitas vezes como um referente determinador de um indivíduo
concreto, portador de certas características raciais, étnicas, psicológicas ou
físicas. O elemento negro não é nem o sujeito e nem o objeto desse processo
histórico, em seu sentido apriorístico, mas é a própria condição que permi-
te que certos acontecimentos (sociais) possam ocorrer como possibilidade
histórica e ganhem consistência social. Isso não invalida que a nossa análise
possa vir a operar em dois níveis simultâneos: tomando por um lado o ele-
mento negro como fator qualitativo, como detonador de maneiras de falar,
dizer e pensar certos fenômenos sociais e culturais que recebem a chancela
de “negro” (um princípio de valor), e, por outro, esse mesmo elemento como
fator quantitativo, objetificado pela sua concretização ou autonomização em
sujeitos empíricos, resultando dos efeitos dessas ações sociais, funcionando,
para usar um significado pertinente extraído da cultura religiosa afro-brasi-
leira, como um “encosto” ou “incorporação”.3

determinado momento histórico. O mesmo ocorre com o conceito de “cor”, que apesar de ter um
forte marcador físico (características fenotípicas), funcionando dessa maneira como “categoria
empírica”, está sujeito a definições ambíguas e subjetivas. Segundo Guimarães isso ocorre por
“falta de uma regra precisa de descendência racial” no Brasil, tal como ocorre nos Estados
Unidos (Guimarães, 2005, p. 104). Ainda segundo este mesmo autor, a “cor” “é uma categoria
‘nativa’ (emic) e significa mais que pigmentação da pele”, já que está vinculada fortemente
com a efetivação de uma hierarquia social, com uma estratificação socioeconômica e com uma
estratificação de poder e prestígio social (Guimarães, 2005, p. 103-104). Consideramos pensar
o emprego do conceito de raça (e seus derivados) no Brasil como o resultado de uma série de
ideias e práticas discursivas produtoras de um “solo fértil” (discurso racializado), e que resultam
na produção de campos não discursivos (ações, comportamentos explícitos ou implícitos etc.),
geradores de sua permanência e insistência como mecanismo definidor de um sujeito e de uma
história. Pensar a raça de tal maneira é uma tentativa de evitar o modelo de bipolarização das
relações sociais, e que costumeiramente estão submetidas a um discurso “racial” essencialista.
3
Na cultura afro-brasileira de cultos religiosos existe a figura do “cavalo” que representa o lugar do
“médium enquanto veículo dos Orixás” (Velho, 1977, p. 159), e que faz parte do fenômeno ritual da
possessão ou “incorporação” de um “santo” ou entidade africana (orixá). Essas entidades “descem”

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identidade, branquitude e negritude

O termo que criamos serve ainda para marcar um último aspec-


to. Parece-nos que com a iminência da Abolição, o “elemento servil” (o
escravo) deixava de configurar como recurso eficaz de manutenção das
hierarquias sociais vigentes na sociedade brasileira. Uma nova relação de
assujeitamento e controle precisava ser criada e colocada em jogo. Acredi-
tamos que a passagem do problema econômico e social do “elemento ser-
vil” para o estudo científico do elemento negro, seja o processo que marcou
a entrada de novos atores em cena e de novas respostas ao problema da
presença na sociedade de certos grupos sociais.
Retomemos, então, o fio de Ariadne: a questão da diferença assumiu
vários nomes ou definições ao longo desse processo histórico, mas o que
nos interessa discutir em especial nesse trabalho é a efetivação de um deles,
traduzido na naturalização da diferença presente em um discurso de cunho
racial elaborado por nossos intelectuais no período compreendido entre os
séculos XIX e XX. E é ao lançar o seu olhar de investigador “neutro” que
esses agentes, preocupados em defender a sociedade, assim podem atingir
um novo alvo: o elemento negro. É desse movimento de reavaliação de um
país ainda em construção que surgiu o olhar do “branco”, “homem da ciên-
cia”, sobre o “negro”, esse “elemento degenerado”.
O que parece estar em jogo nesse movimento de captura é a cons-
trução do elemento negro enquanto outro possível, como contraparte de
um nível mais degenerado (aspecto negativo) dessa mesma sociedade em
construção e como sinal da impossibilidade de nosso país alcançar êxito em
tal projeto. Esse processo possibilitou a criação de estratégias (como a ciên-
cia) para lidar com aquilo que para muitos foi considerado um “problema”,
como afirmou categoricamente Raimundo Nina Rodrigues (1935), “funda-
dor” da “Escola Baiana de Antropologia” ou “Escola Nina Rodrigues”. Essa
“Escola”, nomeada assim por Arthur Ramos (Ramos, 1939) e Afrânio Pei-
xoto (1938), serviu como fator aglutinador de um olhar e compreensão do
“problema negro” e de suas implicações sociais para a sociedade brasileira.
Sua importância se deve pela rede de diálogos que permitiu produzir entre
seus supostos membros e entre os seus adversários. A “Escola” não tinha
a unidade pretendida por alguns de seus membros, unidade, ao que nos

e a partir daí se apresentam ou se fazem representar no mundo “real”, e por isso produzindo efeitos
reais.

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Da África às faculdades de Medicina...

parece, produzida retrospectivamente muito por conta de uma “vontade de


origem”. O nosso intuito é demonstrar como a estruturação desse saber aca-
dêmico possibilitou a formulação de um modelo científico explicativo das
“deficiências” do elemento negro brasileiro, e quais eram as consequências
sociais da manutenção do convívio com esse segmento racializado.
Um ideal de pureza estava em jogo nesse projeto científico, cuja ten-
tativa era deixar claro os limites e as fronteiras que separavam as diferentes
raças no Brasil. Esse discurso médico (medicina legal e psiquiatria), basea-
do inicialmente no conceito de degenerescência, apresentou-se como eficaz
para uma parcela da medicina brasileira.
A nossa discussão gira em torno dos usos de uma série de práticas so-
ciais definidas como científicas e que têm como “objeto” certos fenômenos
ditos psicológicos e que a partir de agora serão reunidos, neste texto, sob a
chancela do termo psi. Definimos as práticas científicas psi como um espa-
ço de produção de modelos surgidos a partir de preceitos teórico-práticos
derivados do paradigma científico moderno ainda em construção àquela
época. Esse campo psi assim definido é o espaço de produção discursiva
que agrega modelos de pensamento de cunho psiquiátrico, psicanalítico
e psicológico presentes numa época em que ainda não havia forte delimi-
tação de campos científicos isolados ou de especialismos autonomizados.
Esse novo campo científico buscava descrever, e, ao descrever, explicar, o
que seria a alma, a psique, a mente, o comportamento, os nervos etc., ou
seja, produzir um conhecimento voltado para a descrição dos fenômenos
psíquicos ou psicofísicos e seus efeitos no campo individual e social (Al-
berti, 2003). Isso foi o produto de uma nova estratégia de delimitação do
indivíduo e do espaço social, e que buscou como resultado final a consti-
tuição de um sujeito biopsicológico, gerado pela passagem de um discurso
da alma (substância espiritual), cujo paradigma estava referenciado pelo
discurso filosófico-teológico, para um discurso sobre o corpo (substância
material), cujo valor e veracidade estava sendo delimitado pelo discurso
médico e por um modelo científico positivista.
Essa passagem garantia a formulação em novos termos do indiví-
duo e da sociedade, calcados agora em um modelo racional e positivista,
efeito da ascensão do discurso científico como parâmetro de verdade e de

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identidade, branquitude e negritude

eliminação do erro. Como aponta Alberti (2003), os discursos psicológicos


sofreram uma gradativa transformação, sendo que a mudança principal se
dá entre a importância e o papel do livre arbítrio (modelo filosófico), de
um lado, e o determinismo (modelo científico), de outro (Alberti, 2003,
p. 92). Vemos uma repetição dessa mesma discussão quando Raimundo
Nina Rodrigues discute a responsabilidade criminal das raças humanas.
Contrapondo-se ao discurso do chamado Direito Clássico ou Liberal, ele
questionava a possibilidade da existência do livre-arbítrio do indivíduo.
Para ele, o indivíduo seria determinado por sua “herança degenerada”, sen-
do que, por conta disso, só a ciência (a medicina legal ou a psiquiatria)
seria capaz de definir o verdadeiro culpado de um crime e suas causas de-
terminantes (Rodrigues, 1894; Ribeiro; 1995; Moutinho, 2003). E esse novo
modelo positivista de determinação do indivíduo

[...] abriu caminho para que a medicina se apo-


derasse do antigo indivíduo independente e au-
tônomo e lhe atribuísse instâncias psíquicas
a serem operacionalizadas pela medicina da
época. Já não mais alma, porém psiquismo; já
não mais estudo do indivíduo que pensa, sente
e quer, mas das relações, dos comportamen-
tos. Os novos discursos de psicologia médica
procurarão, por todos os meios, provar a insu-
ficiência daquela autonomia a fim de legitimar
um domínio sobre o homem, o que só se tor-
nou possível quando os discursos de psicolo-
gia passaram a girar em torno de patologias
psíquicas, quando pôde ser provada a ilusão
do livre-arbítrio (consciente), prova necessá-
ria para o apoderamento do homem sem alma
(Alberti, 2003, p. 95, grifo nosso).

O indivíduo passava a ser visto não mais como um ser independente,


mas como um sujeito altamente passível a certas determinações biológi-
cas, psicológicas ou sociais. Determinado por vários fatores, esse indivíduo
seria um ser impotente diante dos acontecimentos que o constituem e o

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transformam, cabendo somente à medicina estabelecer a medida certa de


sua correção.
E mais ainda:

Observe-se, portanto, que a fisiologização dos


discursos de psicologia permitiu ao médico um
saber maior sobre o indivíduo do que aquele
que ele mesmo poderia deter. O médico tornou-
-se capaz de explicar melhor certos fenômenos
internos dos quais o indivíduo, na maior parte
das vezes, nem tinha conhecimento. Se os antigos
discursos de psicologia eram discursos que se ba-
seavam no conhecimento que qualquer indivíduo
podia ter de si mesmo, ao menos teoricamente,
agora somente ao especialista era dado conhecer.
O conhecimento já não é mais autoconhecimento,
mas conhecimento do outro (Alberti, 2003, p. 100).

Desse projeto de controle social surgiria o lugar vocacionado do pe-


rito. Nem sempre os objetivos desses especialistas foram aceitos ou corro-
borados pela sociedade, mas não conseguir levar adiante certos projetos
sociais não impediu que esses agentes sociais acreditassem que cumpriam
a sua verdadeira “missão”.
Apropriando-se de alguns aspectos da Escola Italiana de Crimino-
logia (Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Garofalo), ou Escola de Antropo-
logia Criminal, e da Escola de Medicina Legal Francesa (A. Lacassagne),
Nina Rodrigues utilizá-los-ia na tentativa de encontrar explicações plau-
síveis para o “problema negro brasileiro”, já que esses modelos aponta-
vam para a importância da hereditariedade e do papel do indivíduo no
comportamento delituoso e seus riscos para a sociedade. Uma das estra-
tégias de seu projeto jurídico-social foi determinar quais são os limites
da ideia de livre-arbítrio como base da responsabilidade penal e quais as
suas implicações jurídicas (Rodrigues, 1894). O seu objetivo era apontar
para a inferioridade de certos grupos raciais e o equívoco de tratá-los
como iguais:

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identidade, branquitude e negritude

Pode-se exigir que todas estas raças distintas


respondam por seus atos perante a lei com igual
plenitude de responsabilidade penal? Acaso, no
célebre postulado da escola clássica e mesmo
abstraindo do livre arbítrio incondicional dos
metafísicos, se pode admitir que os selvagens
americanos e os negros africanos, bem como os
seus mestiços, já tenham adquirido o desenvol-
vimento físico e a soma de faculdades psíquicas
suficientes para reconhecer, num caso dado, o
valor legal do seu ato (discernimento) e para se
decidir livremente a cometê-lo ou não (livre ar-
bítrio)? — Porventura pode-se conceber que a
consciência do direito e do dever que têm essas
raças inferiores, seja a mesma que possui a raça
branca? — ou que, pela simples convivência e
submissão, possam aquelas adquirir, de um mo-
mento para outro, essa consciência, a ponto de
se adotar para elas conceito de responsabilidade
penal idêntico ao dos italianos, a quem fomos co-
piar o nosso código? (Rodrigues, 1894, p. 73-74).

Essa diferença entre as raças, que foi comentada várias vezes por
Nina Rodrigues, seria constitutiva de uma base legal e científica que apon-
tava para a inconsistência jurídica de definir como criminosos indivíduos
diferenciados, já que alguns mais inferiores que outros. Caberia ao perito
assinalar o absurdo e a inconsistência presente na tentativa de tratar dife-
rentes (inferioridade natural) como iguais, indivíduos incapazes de terem
a consciência plena de seus atos. Essa questão se insere nas clássicas di-
vergências que definiam o campo da Escola Positiva do Direito Penal e da
chamada Escola “Clássica” de Direito, e que tipo de ordenamento jurídico
seria o mais adequado para a sociedade (Moutinho, 2003; Carrara, 1998;
Ribeiro, 1995; Fry, 1985).
Seria no espaço das exceções que os discursos psi encontrariam
lugar para questionar o alcance do julgamento do juiz quanto ao estado
psíquico do acusado e da sua incapacidade para avaliar o seu grau de peri-
culosidade. É o uso que o indivíduo faz de sua liberdade interiorizada ou do

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Da África às faculdades de Medicina...

seu descontrole (loucura) sobre ela que será colocado por esses médicos-
-legistas e psiquiatras como um problema social que precisa de uma urgen-
te solução e que cabe ao especialista.

Degenerescência e ciência: a constituição do perigo

Uma ideia marcou significativamente os estudo de alguns representantes


da “Escola Nina Rodrigues” a respeito do elemento negro, e esteve muitas
vezes associada ao conceito de periculosidade imputado a este: a ideia de
degenerescência. Na verdade, o conceito de degenerescência-degeneração, 4
difundido por Benedict-Augustin Morel a partir de 1857, é considerado
por muitos autores, uma das ideias, senão a ideia principal, que marca o
desenvolvimento do modelo psiquiátrico no século XIX (Foucault, 2002;
Carrara, 1998; Serpa Jr., 1998; Harris, 1993). Essa ideia foi fundamental
para que “[...] o conhecimento psiquiátrico pudesse se tornar cientifica-
mente válido e socialmente reconhecido” (Serpa Jr., 1998, p. 28).
Assim, é ao apontar para a importância estratégica do uso desse
conceito que Serpa Júnior melhor exprime as várias implicações teóricas e
práticas que o modelo da degenerescência propiciou para o campo da me-
dicina, e mais especificamente para a consolidação de uma “[...] experiência
clínica na psiquiatria”:

[...] a constituição da experiência clínica na psi-


quiatria, e do saber que acompanha esta expe-
riência, vão se dar de uma forma especial em
relação ao que se passa no restante da medicina,
tanto por seus referenciais teóricos quanto por
suas condições institucionais de exercício. Neste

4
Serpa Júnior aponta que a etimologia dessas palavras tem origem em genus, generis,
significando raça, em uma “acepção ainda vaga, ampla, onde as noções mais recentes de
raça, linhagem e espécie ainda não estão delimitadas”. Conclui sua análise afirmando que os
termos degenerescência e degeneração foram usados frequentemente como sinônimos, entre
os séculos XIX e XX, nos dicionários médicos da época (Serpa Júnior, 1998, p. 29-30). Carrara
(1998, p. 81) também cita a sinonímia entre as duas palavras mas apresenta outros argumentos
para a origem das palavras. Tomaremos a liberdade de usá-los em nosso trabalho também como
sinônimos, dando preferência ao uso da palavra degenerescência para contrapormos o nosso
texto ao dos autores da “Escola”, que utilizaram o termo mais comum degeneração.

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identidade, branquitude e negritude

sentido pode-se dizer que a psiquiatria é a pri-


meira especialidade da medicina. É claro que tal
estado de coisas não vai ser sem consequências
e logo a “ciência” dos alienistas vai receber co-
branças de toda a parte [...]. A teoria da degene-
rescência vai impor-se, neste quadro, como uma
tábua de salvação que vai permitir a tradução dos
acontecimentos direta ou indiretamente ligados
à loucura num vocabulário fisicalista outro que o
da anatomopatologia, que claudicava no domínio
da psiquiatria (Serpa Jr., 1998, p. 28-29).

Foi como “tábua de salvação” que a palavra degenerescência ganhou


destaque no campo da psiquiatria, dando sustentação a uma série de tenta-
tivas de controle da sociedade a partir da compreensão de que certos indi-
víduos da espécie humana seriam potencialmente degenerados. A ideia de
degenerescência ainda se vinculava fortemente ao conceito de hereditarie-
dade, outro tema recorrente no campo da medicina da época.
Esse modelo de degenerescência se baseava na ideia de existência de
um “tipo natural” como variação da espécie humana perfeita (ligada à ideia
de perfectibilidade), e que por isso poderia ser “inferior” em relação a essa
perfeição. Portanto, existiriam grupos mais “perfeitos” e grupos mais “im-
perfeitos”, chegando a “tipos mórbidos”. Isso favorecia a ideia de que certos
tipos naturais eram naturalmente “inferiores”, contudo sem apresentarem
qualquer característica “mórbida” que as marcasse significativamente. Esse
era o caso dos negros.
O campo médico-psiquiátrico, com isso, elegeu os objetos passíveis
de investigação na tentativa de demonstrar a sua periculosidade e cercear a
liberdade dos considerados “perigosos”. E o elemento negro foi o objeto pri-
vilegiado desse processo de assujeitamento a partir do modelo da medicina
legal e da psiquiatria, já que o que se pretendia na realidade era a produção
de uma nova modalidade de controle social. Mas se com Nina Rodrigues
vemos ainda um modelo circunscrito ao campo médico-piscológico e ba-
seado em estratégias de repressão e exclusão fundamentadas na ideia de
“naturalização” do elemento negro (as características hereditárias são o seu

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Da África às faculdades de Medicina...

ponto de referência), foi com seus autoproclamados “discípulos” que essas


estratégias não mais se baseariam na repressão e exclusão simplesmente...
Retomando, a discussão desenvolvida por Nina Rodrigues: o “pro-
blema negro” representava um perigo real para o avanço da sociedade bra-
sileira, já que para ele essa sociedade se desejava “branca”. Contudo, Nina
também não tinha em alta conta o segmento branco da nossa sociedade, re-
presentado pelo “elemento português”, já que usava expressões como “gente
da pior espécie”, “mal-educados”, “um povo atrasado” etc. para definir esse
grupo social. Nina opera com uma visão relativa de pureza que determinava
os três elementos componentes da nossa nação (Corrêa, 1998; Moutinho,
2003). O que a obra de Nina Rodrigues evidenciava a partir do seu mo-
delo médico-jurídico não era uma simples dicotomia social representada
pela polarização branco-negro, mas sim a criação de mecanismos jurídico-
-políticos que favorecessem o total desaparecimento em pouco tempo do
elemento negro da sociedade brasileira. Ao dar visibilidade a esse “proble-
ma” em nossa sociedade, o que se almejava realmente era inventá-lo como
objeto da ciência, criar condições de estabelecer os controles cabíveis sobre
ele para a execução de projetos de higienização do espaço social. Com o
suposto desaparecimento das barreiras visíveis de separação ou exclusão
em nossa sociedade (escravidão) se tornava interessante produzir barreiras
invisíveis, virtuais, de controle e, se necessário, de eliminação. Ao transfor-
mar o negro em seu objeto de estudo, Nina Rodrigues pôde trazer à tona
um problema que de modo algum era desconhecido, mas era dissimulado
pelos seus pares (Corrêa, 1998, p. 168).
A continuidade do projeto científico dada pela aglutinação ocorrida
em torno da “Escola” propiciou que a discussão sobre a natureza negra se
deslocasse para uma questão mais importante, resultado da formação de
uma nova sociedade brasileira: a constituição de uma população negra. A
massa, a coletividade é o tema a ser tratado. O que se busca a partir de agora
é a definição de um padrão capaz de descrever a população, pois a popula-
ção é o resultado de uma média. O cidadão mediano é o novo problema a
ser tratado.
E não podemos afirmar que é com o campo de trabalho iniciado
por Nina Rodrigues que vemos de maneira mais evidente o surgimento
de uma “economia da visibilidade” (Ewald, 1993, p. 84)? Que é a partir da

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identidade, branquitude e negritude

sua convicção que não se pode ignorar o “problema negro” como afeito ao
campo científico, problema que ele torna visível? Não foi definindo esse
elemento negro como um parâmetro científico que se tornou uma vez pos-
sível criar um valor definitivo para a produção de graus de normalidade,
que “[...] têm em si mesmos um papel de classificação, de hierarquização e
de distribuição de lugares” (Foucault, 1996, p. 164)? E não é esse o campo
de debate que Nina Rodrigues inaugurou de maneira “original”, ao partir
de um “sistema de igualdade formal”, pressuposto pelo novo modelo de ci-
dadania recém-inventada, e estabelecer toda uma “gradação das diferenças
individuais” em As raças humanas ou em Os africanos no Brasil? Já não se
trataria da elaboração de um modelo normativo que vemos se delinear nes-
ses primeiros momentos republicanos, e que torna a lógica racializadora
capaz até mesmo de funcionar como princípio de justiça social? Sabemos
que atribuir o estatuto de originalidade ao trabalho de Nina Rodrigues é
polêmico e, portanto, passível de inúmeras interpretações, principalmente
se usarmos os parâmetros da atualidade. Contudo, não podemos esque-
cer que os argumentos de Nina Rodrigues foram em grande parte aceitos
por seus pares, e em alguns momentos até considerados à frente de seu
tempo. Não queremos com isso simplesmente validar suas afirmações, mas
só apontar que elas não eram totalmente contrárias à lógica de sua época
(Corrêa, 1998; Moutinho, 2003). Elas, portanto, trazem indícios sobre as
pretensões de verdade que certos modelos de ciência almejam alcançar.
O caminho aberto por essa lógica normativa permitiu a intensifica-
ção de um discurso racializado e não simplesmente racial. Por isso os “discí-
pulos” de Nina podem abandonar o modelo científico do “mestre”, acusado
posteriormente de racial, mas não abandonam as estratégias de controle
permitidas pelos usos possíveis que uma hierarquia racial pode garantir.
Não é mais explicitamente de raça que se fala, mas de enquadramentos pos-
síveis pelo recurso normativo que sirva como medida para o lugar (racial)
pertinente a cada brasileiro, e que se impõe como uma ausência-presença
condicionada (dependente dos efeitos que ela possa produzir no sujeito).
Sua “visibilidade” ou “invisibilidade” depende de uma série de fatores que
entram no cálculo da definição do grau de racialização do indivíduo.
A construção de um discurso racializado produz, nos ­indivíduos
passíveis de sua objetivação, uma visibilidade obrigatória. A raça dos

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Da África às faculdades de Medicina...

indivíduos só se torna “visível” quando estes são capturados por essa rede
discursiva que define o seu lugar nessa ordem econômica de assujeitamen-
to. O indivíduo é aquilo que é em consequência dos usos (condutas) que faz
das estratégias de visibilidade ou invisibilidade produzidas pela sua relação
com essa norma racializadora.
Seu resultado, por esses critérios, pode ser considerado “positivo” ou
“negativo”, muito em decorrência das estratégias de controle e liberdade que
se efetivarem nesse contexto social. Esse discurso permite a produção de um
espaço limite cujas bordas são muito instáveis (“todos são virtualmente ne-
gros”) e ao mesmo tempo precisas (“sabemos quem é negro, e por isso torna-
-se possível a aplicação de ações afirmativas”). Isso depende mais da maneira
como operamos essas relações sociais que estão em jogo do que de uma ve-
racidade factual e naturalizadora. Na verdade, essas estratégias racializadoras
sempre produziram soluções arriscadas em nossa sociedade. Acreditamos
que as discutir permite produzir um novo olhar sobre a nossa sociedade.

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NOTAS SOBRE
PSICANÁLISE, PERDA
DE IDENTIDADE E
FUNCIONAMENTO
DOS GRUPOS
Myriam Chinalli

Este trabalho apresenta elementos conceituais para a compreensão do fun-


cionamento de grupos em psicanálise partindo das contribuições de Sig-
mund Freud, apontando tanto seus aspectos patológicos, como o pânico
diante da perda de identidade, quanto os aspectos estruturantes do proces-
so de constituição psíquica. A seguir discorre-se sobre algumas teorizações
a respeito do funcionamento dos grupos, sobretudo as de Pichón-Rivere
e de René Kaës, dentre outros. Também acentua-se o caráter polifônico e
dialógico das comunicações em geral e problematiza-se as dificuldades que
emergem para a realização de tarefas grupais.

Uma concepção psicanalítica dos grupos:


O sujeito do inconsciente é o sujeito do vínculo

É quase impossível pensarmos a inclusão e a cidadania sem a compreensão


dos mecanismos inconscientes da psicologia social e, em especial, dos dis-
positivos grupais. Os processos de formação e funcionamento de um grupo
em tarefa, e as grandes dificuldades encontradas nessa organização, inquie-
taram alguns psicanalistas nessas quatro gerações de teóricos desde Freud.
Que tipo de alteração mental o grupo forja no indivíduo? A par-
tir dessa pergunta inicial, em seus estudos, na década de 1920, no texto

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identidade, branquitude e negritude

Psicologia de grupo e análise do ego, Freud investigou os efeitos do grupo no


indivíduo e a transformação de um agregado de indivíduos em uma unida-
de. Argumentou, a partir dos estudos de Le Bon, que os dotes particulares
dos indivíduos se apagavam nas formações grupais e, dessa maneira, “sua
distintividade se desvanece e o inconsciente racial emergiu, e o que é hete-
rogêneo submerge no que é homogêneo, e as funções inconscientes que são
semelhantes em todos ficam expostas à vista” (Freud, 1969, p. 97).
Le Bon supôs três causas das mudanças de características dos in-
divíduos nos grupos: a primeira, um sentimento de poder e perda de au-
tocontrole, ou seja, reconheceu como efeito do grupo suspender recalques
dos impulsos inconscientes. Na segunda, que Le Bon chamou de contágio,
o indivíduo sacrifica seu interesse pessoal a favor do interesse coletivo. A
terceira ele chamou de sugestão, e recorreu à hipnose como exemplo de
desvanecimento da consciência, de “fascinação” pelo hipnotizador, efeitos
esses aumentados pela reciprocidade no grupo. Também comparou a vida
mental dos povos primitivos (e de crianças) com a vida mental do grupo.
O grupo é impulsivo, instável e irritável, tem o sentimento de impotência,
mas é, ao mesmo tempo, crédulo e submisso, sendo tão obediente quanto
intolerante à autoridade. Os sentimentos de seus membros são muito sim-
ples e muito exagerados: a suspeita transforma-se rapidamente em certeza
e um traço de antipatia se transforma em ódio. “Um indivíduo pode ter
seus padrões morais elevados por um grupo, ao passo que a capacidade do
grupo está sempre mais baixa que a do indivíduo” (Freud, 1969, p. 102).
Em outras palavras, os indivíduos, em grupo, adotam uma linguagem
que não lhes é própria. Ficam anônimos, falam uma linguagem genérica e
não se dirigem a um nome próprio que designa sua produção significante.
Segundo McDougall, outro autor examinado por Freud no referido
texto, o grupo tem pouca ou nenhuma organização, mas admitiu que uma
multidão de seres humanos não se reúne sem, pelo menos, os rudimentos
de uma organização, sem ter algo em comum. A organização do grupo, que
contrasta associações mais e menos simples, estava condicionada à presen-
ça dos seguintes fatores: 1) a existência de certo grau de continuidade no
grupo; 2) a existência em cada membro de uma representação da natureza,
função e capacidade do grupo; 3) a interação (inclusive rivalidade) com gru-
pos semelhantes, mas que diferem em vários aspectos; 4) a existência de

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Notas sobre psicanálise, perda de identidade e funcionamento dos grupos

hábitos, tradições e costumes em comum; 5) estrutura definida e expressa na


diferenciação de funções de seus constituintes.
Freud, por sua vez, recorreu a um momento mítico para dar conta do
surgimento do coletivo a partir do indivíduo, ou melhor, a partir do que ele
perdeu com a formação grupal. Sugeriu que o indivíduo se faz singular, a par-
tir do que o mantém identificado a um grupo. Voltaremos a isso mais adiante.
Continuando sua análise, Freud demonstrou o fato fundamental da
psicologia coletiva: a intensificação das emoções e a inibição do intelecto. Ao
comentar as ideias de McDougall, Freud argumentou que as teorias sempre
recorrem à sugestão e a seus correlatos — imitação, contágio e reciprocidade
— como fonte de explicação das características grupais.
Freud, então, trouxe para o estudo do coletivo o conceito de libido,
lembrando que ele designa a energia daquelas pulsões que têm a ver com
tudo que pode ser abrangido pela palavra amor, em seu sentido mais amplo
e sexual em sua origem.
Assim, as relações amorosas são a base da mente grupal. É o poder
de Eros que mantém o grupo unido. Se o indivíduo perde sua distintividade
exatamente para estar em harmonia com os demais, ele o faz por amor, e é a
partir dessa vinculação que pode se reconhecer como indivíduo. Freud pos-
tulou, assim, que o amor é a base para que o grupo imponha regras de com-
portamento civilizado e exija a adaptação dos membros a ele. Começa-se,
então, a luta entre o autêntico e o conforme, mas há, de acordo com Freud,
uma fonte, um terceiro elemento que estrutura a presença desses polos.
Como veremos, Freud tratou da impossibilidade de pensar os fenô-
menos de modo estático, e mostrou a necessidade de estudá-los em relação
a um elemento exterior, ou de exceção, que os estruture. Acentuou a fun-
damental importância de um líder, que pode ser substituído por uma ideia,
por desejos, por uma tendência comum. Em suma, o líder pode ser substi-
tuído por qualquer objeto “que evoque o mesmo tipo de laços emocionais”
(Freud, 1969, p. 127).
Baseados nos estudos iniciais de Freud, vários psicanalistas teoriza-
ram sobre o funcionamento dos grupos e, também, sobre as dificuldades
de realizar tarefas grupais. Todos acentuaram o caráter polifônico do grupo,
ou seja, as diferentes vozes dos indivíduos de um grupo e a dificuldade de
encontrar uma linguagem comum.

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identidade, branquitude e negritude

Na concepção de Pichon-Rivière e Bleger (citado por Pichon-Rivière,


1988), os mais importantes teóricos da chamada escola argentina, o grupo
apresenta-se como instrumento de transformação da realidade. Para eles,
a teoria do vínculo, postulada por Freud, tem caráter social, na medida em
que sempre há figuras internalizadas numa relação, que sempre apresenta
estrutura triangular. O vínculo é bicorporal, mas tripessoal, isto é, em todo
vínculo há presença sensorial corpórea de dois, com interferência do ter-
ceiro. Assim, para se efetivar um método psicanalítico de grupo, as funções
psíquicas do dispositivo, da situação e do enquadramento são fundamentos.
Cabe assinalar que o tema grupo sempre foi controverso em psica-
nálise. No entanto, as objeções ao grupo na psicanálise ajudaram na cons-
tituição de um campo institucional, profissional e científico relativamente
independente. De fato, os psicanalistas que trabalham em grupos criaram
suas próprias instituições, congressos e revistas científicas, o que levou uma
parte significativa dos trabalhos em grupo a se afastar de uma interlocu-
ção com a prática e com a teoria psicanalítica desenvolvidas a partir do
tratamento individual. No entanto, esse não foi o caso da escola francesa
de grupos e, menos ainda, o de seu principal expoente: René Kaës (1997),
que desenvolveu sua teorização sobre grupos operativos a partir da escola
argentina, dentre outras, e das produções de Piera Castoriades-Aulagnier
(citada por Kaës, 1988), sobre contrato narcísico.
Vale lembrar que cada indivíduo pertence simultaneamente a dife-
rentes grupos formais e informais e é confrontado com uma pluralidade de
identidades em seus pertencimentos. Pluralidade que pode ser complemen-
tar, mas também conflitual.
Essa conflitualidade grupal desperta formações conflituais do in-
consciente de cada indivíduo. Reativados, conflitos internos podem ser
fonte de sofrimento e de mal-estar, de repetição e de reprodução de elementos
traumatizantes da história de cada um. Os conflitos inter e intragrupos são
com frequência considerados em sua visibilidade: dissimulam e revelam
conflitos intrapsíquicos e os grupos internos em cada sujeito. Esse estado
corresponde ao pacto denegativo, elaborado por René Kaës (1988), partin-
do do conceito de contrato narcísico, de Piera Aulagnier (op. cit.).
Desde Freud, suspendeu-se na psicanálise a ideia de que o termo gru-
po se refere a um conjunto de pessoas, pensando-o como aquilo que implica

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Notas sobre psicanálise, perda de identidade e funcionamento dos grupos

ligação e desligamento entre elementos em configurações vinculares (grupo


formal ou informal, casal, família e instituições). Para Kaës, por exemplo, são
esses elementos que permitem e organizam os espaços psíquicos comuns e
partilhados nos grupos. Eles são denominados grupos internos.
A proposta do aparelho psíquico grupal, inicialmente feita por Kaës
em 1976 (2000), talvez possa ser fonte de mal-entendidos. Ao ouvir o ter-
mo, muitas pessoas podem pensar que se trata de ver o grupo como uma
espécie de indivíduo, postulando instâncias como ego, id e superego no vín-
culo grupal. Porém, não é disso que se trata. O aparelho psíquico grupal de
Kaës é povoado por processos e formações psíquicas de outra ordem. São
os aparelhos psíquicos dos sujeitos individuais que formam esse aparelho
psíquico grupal, em função das demandas requeridas pelo vínculo. Deman-
das que, como a renúncia à satisfação direta dos fins pulsionais postulada
por Freud, são necessárias para a existência do sujeito.
Tomando esses exemplos paradigmáticos, Kaës operou uma trans-
formação importante ao aplicá-los na análise de vínculos. Seu conceito se
multiplicou e se especificou com o pacto denegativo, os contratos e pactos
narcísicos, a comunidade de recusa, dentre outras possibilidades. Para ele,
não só os laços fundadores da civilização e do sujeito são explicados pelo
conceito de alianças inconscientes; todos os vínculos o são. Isso significa
que todos os vínculos são sustentados por algo que permanece fora do
campo da consciência e, assim, a presença do negativo é constitutiva dos
processos vinculares.

Algumas notas conceituais sobre o


funcionamento dos grupos

Retornemos ao texto fundante de Freud, Psicologia de grupo e análise do


ego. Apesar de concordar com a descrição do comportamento em grupo,
Freud fez, a partir da produção de Le Bon, a hipótese que o motivava: se os
indivíduos do grupo se combinam numa unidade, deve haver certamente
algo para uni-los, e esse elo poderia ser precisamente a coisa que é caracte-
rística de um grupo. À medida que desenvolveu o trabalho, Freud foi espe-
cificando essa hipótese inicial até chegar a um ponto em que se viu exigido
a formular uma teoria das identificações.
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identidade, branquitude e negritude

Estudando a igreja e o exército como grupos artificiais, organizados


e permanentes, Freud (1969) analisou elementos desprezados pelos estu-
dos de Le Bon e McDoughal: O que transformava os indivíduos em uma
unidade? Que condições são necessárias para que os membros teçam laços
amorosos? Qual é a fonte responsável pelos efeitos de sugestão?
Freud acentuou então a importância de um terceiro elemento: “Cada
indivíduo está ligado por laços libidinais, por um lado, ao líder e, por outro,
aos demais membros do grupo” (Freud, 1969, p. 121). Demonstrou que um
ajuntamento de pessoas não constitui um grupo enquanto esses laços não
estiverem estabelecidos.
No final desses capítulos iniciais, Freud retomou, então, uma oposi-
ção formulada no início entre o narcísico e o social. “O amor-de-si traba-
lha para a preservação do indivíduo e funciona como se o aparecimento
de qualquer divergência envolvesse uma crítica das próprias linhas de
desenvolvimento. A agressividade resultante só escapa da percepção em
consequência do recalque. Em um grupo, a intolerância se desvanece e os
indivíduos comportam-se como se fossem uniformes, toleram as peculia-
ridades, igualam-se e não sentem aversão”. E conclui que “o amor de si só
conhece uma barreira, o amor pelos outros, o amor por objetos. [...] Uma
tal limitação do narcisismo só pode ser determinada por um fator, um laço
libidinal com outras pessoas” (Freud, 1969, p. 130). Quanto à ficção que
mantém o grupo, é precisamente a ilusão de um chefe que ama com amor
igual a todos os membros.
No referido texto, Freud mostrou também que o pânico é decisivo na
definição da importância do líder no processo. Quando ocorre o pânico,
diante de situações imprevistas ou de conflitos acentuados, as ordens dadas
pelos superiores não são atendidas, e cada indivíduo preocupa-se apenas
consigo próprio. Os laços deixam de existir e libera-se um medo grande e
insensato. Há um relaxamento da estrutura libidinal do grupo e o perigo,
nessas circunstâncias‚ é julgado maior do que seria razoável supor. Aliás,
lembra Freud, pertence à própria essência do pânico a desproporcionalida-
de entre a sensação e o tamanho do perigo, bem como seu surgimento em
situações mais triviais.
Vale lembrar que, embora não tratemos deles aqui, outros dois textos
de Freud são úteis para entender o papel do líder no grupo: Totem e tabu,
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Notas sobre psicanálise, perda de identidade e funcionamento dos grupos

em que tratará da aliança selada pelos irmãos para a morte do pai primor-
dial, que transforma o pai em totem; e O mal-estar na civilização, que nos
lembrará da renúncia à satisfação direta dos fins pulsionais como exigência
para a constituição do sistema psíquico e da civilização.
Pichon-Rivière começou a trabalhar com grupos à medida que
observava a influência do grupo familiar em seus pacientes. Sua práti-
ca psiquiátrica esteve subsidiada principalmente pela psicanálise e pela
psicologia social. Para o autor, o objeto de formação do psicanalista de-
via instrumentalizar o sujeito para uma prática de transformação de si,
dos outros e do contexto em que estão inseridos. Defendia ainda a ideia
de que aprendizagem é sinônimo de mudança, na medida em que deve
haver uma relação dialética entre sujeito e objeto, e não uma visão unila-
teral, estereotipada e cristalizada.
Dessa forma, a técnica de grupo operativo consistiu em um trabalho
com grupos cujo objetivo era promover um processo de aprendizagem para
os sujeitos envolvidos. Aprender em grupo significava conviver com uma
leitura crítica da realidade, uma atitude investigadora, uma abertura para
as dúvidas e para as novas inquietações.
Na concepção de funcionamento grupal de Kaës, da escola francesa
de psicanálise, há elementos do conceito de porta-voz de Pichon-Rivière.
Kaës reconheceu o parentesco entre os conceitos, mas devemos atentar
para o que seu conceito de funções fóricas apresentou de único. Atuando
no negativo, portanto, no campo do inconsciente, as funções fóricas operam
nas modalidades de organização e de funcionamento psíquico, bem como
nas determinações dos discursos no âmbito grupal e social, em fenômenos
intersubjetivos e coletivos. O modelo de aparelho psíquico grupal proposto
por Kaës sustentou-se no duplo vértice — grupal e intersubjetivo — cons-
tituído e amparado pelas relações interpessoais, que se dão no âmbito da
historicidade e da política.
A primeira distinção entre Pichon-Rivière e Kaës foi uma ques-
tão de nomenclatura. Kaës subdividiu a categoria de funções fóricas em
­porta-ideais, porta-sonhos, porta-voz (porte-parole), porta-sintoma etc. Já
Pichon-Rivière não operou esse tipo de distinção; seu conceito de porta-voz
possui a mesma extensão das partições que o conceito de funções fóricas de
Kaës: abarca a fala, os sonhos, os sintomas etc.

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identidade, branquitude e negritude

Se ambos os conceitos de funções fóricas e de porta-voz permitiram


a articulação entre o sujeito individual e os processos do grupo, Kaës os
potencializou como elementos que delimitam e separam essas duas esferas.
A ideia de que o porta-voz ocupa seu lugar no cruzamento entre exigências
do processo grupal e exigências do sujeito em sua singularidade, já estava
em Pichon-Rivière. Porém, a reflexão mais detalhada sobre a parte do su-
jeito nesse processo foi uma inovação de Kaës. O autor propôs a fórmula:
o sujeito que cumpre uma função fórica escolhe ser escolhido. Mas como o
sujeito opera essa escolha? Kaës postulou que isso se dá a partir de proces-
sos intrapsíquicos inconscientes, derivados do narcisismo, do masoquismo,
da rivalidade e de outros elementos atuantes nesses mecanismos.
Dentre as funções fóricas, o conceito de porta-sonhos propõe que o
sonho possui também uma dimensão intersubjetiva. Um caminho curioso
em sua abordagem do assunto é a referência aos estudos da relação dos
sonhos dos analistas e seus pacientes e, mais particularmente, aos sonhos
ocorridos durante a sessão analítica.
O pensamento de Kaës também recebeu influência de Piera
­Castoriadis-Aulagnier. Ao pensar seu porte-parole, Kaës recorreu a Pie-
ra, aproximando sua função nos grupos à função da mãe frente ao in-
fans (aquele que não fala). Para Kaës, o porte-parole não é apenas aquele
que anuncia algo. Ele traria aos membros do grupo o acesso ao signi-
ficante, ali onde ele não podia ser encontrado. Seria, ainda, tal como a
mãe o é, portador de uma fala que não é sua, mas que transmite uma lei
que lhe transcende, como a fala do analista ao propor as regras de fun-
cionamento do setting.
O objetivo da psicanálise foi definido por Kaës (1988) como o de
“[…] liberar a psique de seus impedimentos”. Ainda afirmou que: “A psica-
nálise de grupo faz parte desta tarefa: seu objetivo é afrouxar os laços inter-
subjetivos que são fonte de distúrbios no vínculo e nos sujeitos do vínculo”
(p. 19). Essa afirmação foi apresentada por ele como a especificidade do seu
trabalho teórico: “Tentei descobrir como a psique individual é formada,
transformada ou alienada através das várias modalidades dos vínculos in-
tersubjetivos […]” (p. 1).
Ao apresentar alguns marcos da elaboração psicanalítica sobre os
grupos, Kaës (1988) sublinhou a preocupação dos primeiros pesquisadores

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Notas sobre psicanálise, perda de identidade e funcionamento dos grupos

em estabelecer a especificidade da realidade psíquica do grupo e em criar


elementos técnicos que viabilizassem uma análise de grupo. Porém, para
ele: “As primeiras teorias do grupo foram teorias nas quais o sujeito do in-
consciente desaparece, junto com o que o singulariza, ou seja, seus desejos,
sua história, seu lugar na fantasia inconsciente, a idiossincrasia dos impul-
sos, afetos, representações e suas repressões” (p. 27).
Kaës expressou sua visão de que nosso conhecimento do inconscien-
te é correlativo ao dispositivo que utilizamos para abordá-lo. Assim como
a psicanálise com crianças e com psicóticos transformaram e alargaram o
campo do conhecimento psicanalítico, deveríamos esperar algo semelhan-
te de uma abordagem psicanalítica dos grupos. Kaës explicitou e discutiu
pontos importantes como a questão dos objetivos da psicanálise e do esta-
tuto da realidade psíquica nos grupos.
O autor atribuiu enorme importância às fantasias originárias no pro-
cesso e no manejo dos grupos. Elas são, por excelência, as fantasias incons-
cientes capazes de organizar os processos e formações psíquicas nos grupos.
Para ele, o trabalho com as fantasias originárias abre as vias para um processo
de subjetivação, ou seja, há um momento no qual o analista identifica o mo-
vimento de alguns sujeitos do grupo de encontrar as especificidades da fanta-
sia de cada um e do lugar que ocupam nelas. Assim, o trabalho vincular opera
nas “amarras” comuns, permitindo não uma homogeneização dos sujeitos,
mas justamente criando a possibilidade para a singularização.
Enfatizando o processo associativo nos grupos, Kaës postulou que o
estatuto da regra da associação livre no grupo indica uma dupla compreensão
da questão: se faz tanto o estudo dos processos de associação verbal em um
grupo como dos processos de associação entre os membros do grupo. A pers-
pectiva de que há uma relação dos laços entre os sujeitos e dos laços entre as
falas e palavras em um grupo revela muito da visão de Kaës sobre a questão.
Compreendendo bem as profundas mudanças que o conceito e a
prática da associação livre devem sofrer em situação grupal, o autor postu-
lou que cada fala no grupo se dá no ponto nodal entre duas cadeias associa-
tivas: uma própria do sujeito individual, referente à sequência de suas falas
e portadora das marcas de seu inconsciente. A outra cadeia diz respeito às
falas proferidas no grupo, portadoras das marcas do inconsciente por meio
do trabalho dos organizadores psíquicos grupais.

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identidade, branquitude e negritude

Considerações finais

O conceito de alianças inconscientes procurou dar conta do estatuto do in-


consciente nas configurações vinculares. Essas configurações são produtoras
do inconsciente, uma vez que são elas mesmas inconscientes no sentido de
que os sujeitos desconhecem o que os une.
Se a prática de grupos, terapêuticos ou não, é muitas vezes criticada
por uma tendência totalizante e homogeneizante, Kaës nos mostrou que
esse trabalho pode ser realizado de outro modo. A própria estrutura de suas
ideias e de seu texto abriu novos caminhos e possibilidades.
A mudança, que é o objetivo primordial de todo grupo operativo,
envolve um processo gradativo, no qual os integrantes do grupo passam
a assumir diferentes papéis e posições frente à tarefa grupal. O momento
da pré-tarefa é caracterizado pelas resistências dos integrantes do grupo ao
contato com os outros e consigo mesmo, na medida em que o novo, o gru-
po, gera ansiedade e medo, medo de perder o próprio referencial, de depa-
rar com algo que possa surpreender e, por sua vez, suspender suas velhas e
cômodas certezas acerca de si e do mundo. A partir do momento em que é
possível elaborar as ansiedades básicas, romper com as estereotipias, abrir-
-se para o novo e o desconhecido, pode-se dizer que o grupo está em tarefa.
A tarefa é a trajetória que o grupo percorre para atingir seus ob-
jetivos; relaciona-se ao modo como cada integrante interage a partir de
suas próprias necessidades e fantasias. Compartilhar essas necessidades e
fantasias em torno dos objetivos comuns do grupo pressupõe flexibilidade,
descentramento e perspectiva de abertura para o novo. Quando o grupo
aprende a problematizar as dificuldades que emergem no momento da rea­
lização de seus objetivos, podemos dizer que ele entrou em tarefa, pois a
elaboração de um projeto comum já é possível e esse grupo pode passar a
operar um projeto de mudanças.
As teorizações sobre o funcionamento grupal nos levaram a pensar
no caráter dialógico e polifônico de todas as comunicações, constituindo
assim um caminho interessante para pensarmos a importância da livre as-
sociação nos grupos — pilar central do método psicanalítico.

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Notas sobre psicanálise, perda de identidade e funcionamento dos grupos

Referências

Aulagnier, P. (1979). A violência da interpretação. Rio de Janeiro: Imago.


Freud, S. (1969). Psicologia de grupo e análise do ego. In Obras psicológicas
completas, v. 18, Rio de Janeiro: Imago.
Kaës, R. (1997). O grupo e o sujeito do grupo. São Paulo: Casa do Psicólogo.
______. (2000). L’appareil psychique groupal. Paris: Dunot.
Pichon-Rivière, E. (1988). O processo grupal. São Paulo: Martins Fontes.

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SOBRE AS
ORGANIZADORAS

Maria Aparecida Silva Bento

Diretora executiva do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e


Desigualdades (CEERT), doutora em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo (IPUSP), Coordenadora Geral das seis edições do
“Prêmio Educar para a Igualdade Racial”; Coordenadora do Projeto “Conteú-
dos, Materiais, Ensino a Distância e Formação de Rede em prol da Diversidade
na Educação Infantil” com a UFSCar/MEC, membro da Comissão de Direitos
Humanos do Conselho Federal de Psicologia (CFP), fellow da Ashoka, consul-
tora no Projeto “Valorização da Diversidade” da Federação Brasileira de Bancos
(FEBRABAN), eleita líder social no “Fórum de Líderes Sociais e Empresariais”
da Gazeta Mercantil (2002), líder da Avina, com trabalho reconhecido pelo
recebimento da Medalha Anchieta e do Diploma de Gratidão da Cidade de São
Paulo e cidadã da cidade de Atlanta, Estados Unidos, desde 1991.
Autora dos livros: • Educação Infantil, igualdade racial e diversida-
de: aspectos políticos, jurídicos, conceituais, editora CEERT, São Paulo, 2011.
• Práticas Pedagógicas para a Igualdade Racial na Educação Infantil, editora CE-
ERT, São Paulo, 2011. • Núbia Rumo ao Egito, editora FTD, São Paulo, 2009.
• Psicologia Social do Racismo: Estudos sobre branquitude e branqueamento no
Brasil, editora Vozes, São Paulo, 2002. • Ação Afirmativa e diversidade no Traba-
lho: desafios e possibilidades, Casa do Psicólogo, São Paulo, 2000. • Inclusão no

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identidade, branquitude e negritude

Trabalho: desafios e perspectivas, Casa do Psicólogo, São Paulo, 2001. • Cidadania


em Preto e Branco: discutindo as relações raciais, editora Ática, São Paulo, 1998.

Marly de Jesus Silveira

Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF),


doutora em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano pelo Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), professora adjunta da
Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) e consultora do
Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT).

Simone Gibran Nogueira

Professora da Faculdade Zumbi dos Palmares; Doutora em Psico-


logia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP);
Estágio de Doutorado em Psicologia Africana na Georgia State University
(GSU) em Atlanta/EUA, Mestre em Educação pela Universidade Federal de
São Carlos (UFSCar)

Organizadoras editoriais
Angela Barbosa Cardoso Loureiro de Mello

Psicóloga graduada em 2008, pela Universidade Paulista – UNIP,


técnica em Administração, assistente de Coordenação Administrativa,
consultora do CEERT (Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desi-
gualdades), pesquisadora em diversidade racial. Experiência com comuni-
cação e divulgação via redes sociais. Trabalho de editoração de publicações.

Myriam Chinalli

Psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo (SP), par-


ticipou do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância (FFLCH-USP). É
consultora de ONG’s ligadas à defesa dos direitos humanos e coautora de
livros infantis e juvenis voltados à formação da cidadania.

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SOBRE OS AUTORES

Aline Ribeiro da Silva

Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário de Lavras (UNI-


LAVRAS). Mestranda do Programa de Mestrado em Psicologia (PPGPSI)
— Linha de Pesquisa: Processos psicossociais e socioeducativos — da Uni-
versidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ).

Ana Luiza dos Santos Julio

Graduada em Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Si-


nos, com especialização em Psicologia Clínica, mestre em Educação pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), doutora em Psicolo-
gia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS),
docente da Fundação de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul (FDRH),
presta assessoria para o Centro Ecumênico de Cultura Negra (CECUNE)
e assessoria técnica na ONG Themis — Assessoria Jurídica e Estudos de
Gênero e ministra cursos e oficinas no Centro Ecumênico de Capacitação
e Assessoria (CECA).

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identidade, branquitude e negritude

Andréa Moreira Chagas

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFF


Linha de pesquisa: Subjetividade, Políticas Públicas e Exclusão Social
Mestre em Psicologia UFF
Linha: Subjetividade e Clínica
Dissertação: Comunidades Populares, População Negra, Clínica e
Política: Um outro olhar.

Cristiane Valéria da Silva

Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de São João


­Del-Rei, mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual
de Campinas (UNICAMP) e doutoranda no Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa
Catarina (PPGICH/UFSC). Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesqui-
sas Educação e Sociedade Contemporânea (UFSC).

Dalila Xavier de França

Doutora em Psicologia Social pelo Instituto Superior de Ciências do


Trabalho e da Empresa, Lisboa, Portugal. Professora adjunta do Departa-
mento de Psicologia e do Núcleo de Pós-Graduação em Psicologia Social de
Universidade Federal de Sergipe. Realiza pesquisas na área da Socialização
das atitudes intergrupais na infância.

Denise Conceição das Graças Ziviani

Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado de Minas Ge-


rais (UEMG), mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG) e doutora em Educação pela Faculdade de Educa-
ção da Universidade de São Paulo (FE-USP) tendo defendido tese sobre o
fracasso escolar em sua inter-relação com a alfabetização, com as relações
raciais e com as relações de gênero. Autora do livro A cor das palavras: a
alfabetização da criança negra entre o estigma e a transformação (Editora

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Sobre os autores

Mazza: Belo Horizonte, 2012). Foi bolsista da Fundacão Ford (2006-2009),


professora do Instituto Federal de Minas Gerais-Campus Ouro Preto.

Eliane Silvia Costa

Psicóloga, graduada pelo Instituto de Psicologia da USP (1994),


doutora pelo Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicolo-
gia da USP (IPUSP), com formação em Psicanálise dos Vínculos Sociais
pelo Institut de Recherche en Psychothérapie (France) e pelo Laboratório
de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social do IPUSP (LAPSO-IPUSP),
especialista na temática étnico-racial e em Saúde Mental. Tem formação na
área de grupos, família e instituições. Atualmente trabalha como psicóloga
e pesquisadora no LAPSO-IPUSP.

Giane Elisa Sales de Almeida

Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Juiz de Fora


(UFJF), mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Atua na área de educação e diversidades com ênfase nos estudos de memó-
ria e suas relações com gênero, raça e sexualidades. Atua com formação de
educadores formais e educadores populares para e nas diversidades. Pres-
tou assessoria pedagógica ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança
e do Adolescente de Juiz de Fora. Professora da rede pública municipal de
Juiz de Fora e coordenadora do projeto de Educação Popular em Saúde da
população negra — Ciranda da Saúde.

Hildeberto Vieira Martins

Psicólogo, bacharel e licenciado em Psicologia pela Universidade do


Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto
de Medicina Social da UERJ (IMS-UERJ) e doutor em Psicologia Social
pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Pro-
fessor adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisando os
temas relações raciais no Brasil, história da psicologia, psicologia social e
produção de subjetividade.

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identidade, branquitude e negritude

Isabel Leslie Figueiredo de Menezes Lima

Professora da rede pública do Estado da Bahia nas disciplinas: Reda-


ção e Língua Portuguesa. Licenciada e bacharel em Letras Vernáculas pela
Universidade Federal da Bahia, mestra em Crítica Cultural pela Universi-
dade do Estado da Bahia e especialista em Metodologia do Ensino Superior
pelas Faculdades Integradas Olga Mettig. Mobilizadora e jurada em festivais
artísticos estudantis, em especial, o Tempos de Arte Literária (TAL).

Lia Vainer Schucman

Possui graduação (2003) e mestrado (2006) em Psicologia pela Uni-


versidade Federal de Santa Catarina. Doutorado em Psicologia Social pela
Universidade de São Paulo com período como visiting researcher no Center
for New Racial Studies da University of California, Santa Barbara (2012).
Atual­mente é bolsista FAPESP e realiza pesquisa de pós-doutorado em
Psicologia Social pela Universidade de São Paulo no Projeto de Pesquisa
“Famílias interraciais: estudo psicossocial das hierarquias raciais em dinâ-
micas familiares”.

Lwdmila Constant Pacheco

Graduada em psicologia na Universidade Federal de Alagoas e mes-


tre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Sergipe. Especialista
em História Social do Poder pela Universidade Federal de Alagoas. Docen-
te da Universidade de Pernambuco — UPE, Campus Mata Sul/Palmares
nos cursos de Serviço Social e Logística.

Magno Geraldo de Aquino

Graduado com licenciatura em Psicologia pela Universidade Federal


de São João Del-Rei, mestre em Educação pela Universidade Federal de Juiz
de Fora (UFJF) e mestrando em Administração de Empresas pela Universi-
dade Federal de Lavras (UFLA).

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Sobre os autores

Marcelo dos Santos Campos

Graduado em medicina pela Universidade Federal de Juiz de Fora.


Especialista em Saúde da Família pela mesma universidade. Trabalhou
como médico de família no Programa de atenção primária à saúde dos ser-
vidores daquela universidade. Atua com médico de família na rede pública
de Juiz de Fora. Coordena o projeto de Educação Popular em saúde da po-
pulação negra — Ciranda da Saúde.

Marcus Eugênio Oliveira Lima

Graduado e mestre em Psicologia pela Universidade Federal da Pa-


raíba (UFPB) e doutor em Psicologia Social pelo Instituto Superior de Ci-
ências do Trabalho e da Empresa. Professor do departamento e Mestrado
em Psicologia, e do Doutorado em Sociologia da Universidade Federal de
Sergipe.

Marina Neves Nascimento Felizardo

Graduada em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora


(UFJF) e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UFJF.
Professora de História do Centro Federal de Educação Tecnológica de Mi-
nas Gerais (CEFETMG), em Belo Horizonte. Participa do grupo de pes-
quisa e estudos de mulheres negras Candaces — Juiz de Fora. Pesquisadora
do grupo de pesquisa ANIME — Antropologia, Imaginário e Educação
(FACED-UFJF).

Marlene Neves Strey

Graduada em Psicologia, com especialização em Ciências da Edu-


cação e mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUC-RS), doutora em Psicologia pela Universidad Autóno-
ma de Madrid, com pós-doutorado pela Universidad de Barcelona. Profes-
sora titular da PUC-RS, membro de corpo editorial do Psico, com trabalho
voluntário no Instituto de Prevenção e Pesquisa em Álcool e outras Depen-
dências e revisora de periódico Teoria e Pesquisa.

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identidade, branquitude e negritude

Myriam Chinalli

Psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo (SP), par-


ticipou do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância (FFLCH-USP). É
consultora de ONG’s ligadas à defesa dos direitos humanos e coautora de
livros infantis e juvenis voltados à formação da cidadania.

Modesto Leite Rolim Neto

Doutor em Ciências da Saúde pela Universidade Federal do Rio


Grande do Norte (UFRN) e pós-doutor em Saúde Pública pela Universi-
dade de São Paulo (USP) e em Linguística pela Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE). Professor adjunto II da Universidade Federal do Ce-
ará (UFC), campus Cariri, lecionando a disciplina Metodologia do Traba-
lho Científico. Coordenador de dois Grupos de Pesquisas certificados pelo
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq):
“Tecnologias da Informação, Comunicação, Narratividade, Sociedade e
Identidades Plurais” e “Suicidiologia”.

Saulo Araújo Teixeira

Médico formado pela Universidade Federal do Ceará (Barbalha,


Brasil), foi aluno-visitante do serviço de neurocirurgia do hospital univer-
sitário Klinikum Rechts der Isar (Munique, Alemanha). Desenvolve pes-
quisas nas áreas de neurologia, neurocirurgia e cirurgia do trauma.

Sheila Ferreira Miranda

Psicóloga, mestre em Psicologia pela Universidade Federal de São


João Del-Rei (UFSJ), Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Univer-
sidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro efetivo do Núcleo de
Estudos e Pesquisas sobre Identidade-Metamorfose (NEPIM- PUC/SP).
Atualmente, Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Uni-
versidade Federal de São João Del Rei (UFSJ).

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Sobre os autores

Tassia do Nascimento

Licenciada em Letras com Habilitação em Português e Língua Es-


panhola Moderna e respectivas literaturas e mestre em Estudos Literários
pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Vencedora do Prêmio Pal-
mares de Monografia e Dissertação promovido em 2010 pela Fundação
Cultural Palmares através do Centro Nacional de Informação e Referência
da Cultura Negra (CNIRC).

Wanderley Moreira dos Santos

Graduado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de


Minas Gerais e mestrando em Psicologia Clínica do Departamento de
Estudos Pós-Graduados da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), Núcleo de Subjetividade como bolsista do Programa Interna-
cional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford. Faz formação em
Psicanálise na The Tavistock Centre em Londres, Inglaterra. Foi tutor do
Curso “Direitos Humanos e Mediação de Conflitos” no Instituto de Tec-
nologia Social de São Paulo. Foi Psicólogo do Escritório de Inclusão Social
no bairro da Bela Vista, São Paulo. Recebeu menção honrosa referente à
pesquisa “A relação entre o fracasso escolar e a discriminação racial” pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004.

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