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Iolete Ribeiro da Silva: Gostaria de começar com uma questão central: o que
é Branquitude?
Lia Vainer Schucman: A branquitude está ligada a uma ideologia. Ela é um lugar
de vantagem estrutural na sociedade que é estruturada pela dominação racial.
Nesse sentido, branquitude não é a mesma coisa que dizer: sujeitos brancos.
Ela é uma ideologia, são valores, ideias que colocam o branco como o ideal de
beleza, o ideal de civilização, o ideal de racionalidade, o ideal intelectual. Ela
1 Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo com estágio de Doutoramento no
Centro de Novos Estudos Raciais pela Universidade da Califórnia. Professora do Departamento de
Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisadora de Psicologia e Relações
étnico-raciais
2 Integrante da CDH/CFP 2020-2022. Professora Titular da Universidade Federal do Amazonas, gra-
duada em Psicologia pelo Centro Universitário de Brasília (1990), mestre (1998) e doutora (2004)
em Psicologia pela Universidade de Brasília. Bolsista Produtividade CNPq. Docente no Programa de
Pós-Graduação em Educação - PPGE/UFAM e Programa de Pós-Graduação em Psicologia - PPGPSI/
UFAM. Foi Conselheira (de 2017 a 2020) e Presidenta do Conselho Nacional dos Direitos da Criança
e do Adolescente - CONANDA (2020).
Iolete Ribeiro da Silva: Você pode explicar um pouco mais sobre essa relação
entre raça e racismo?
Lia Vainer Schucman: Primeiro a gente tem a dominação colonial dos sujeitos
europeus sobre outros grupos, que é na verdade uma configuração geopolítica
e, como resultado disso, a gente tem, a partir dessa dominação, o surgimento da
ideia de raça. Então a ideia de raça é filha da dominação de um grupo sobre o
outro. Ela nasce para justificar -a partir de uma falsa ideia- que essa dominação
aconteceu porque há grupos superiores e grupos inferiores e que essa domi-
nação se dá por meio de uma necessidade de os grupos superiores mostrarem
aos outros grupos como deve ser a humanidade.
Lia Vainer Schucman: Quando a gente diz que o racismo é estrutural, o que
nós estamos dizendo? Que, se tudo acontecer em sua normalidade, o resultado
vai ser racista, ou seja, ele não é uma exceção, ele não é algo que acontece às
vezes, ele é a organização da estrutura social. Então, nesse caso, se a gente abrir
um concurso, por exemplo, para juízes sem ação afirmativa, o resultado vai ser
racista. Ou se a gente abrir um concurso em empresas para contratação, sem
ação afirmativa, o resultado vai ser racista. E aí é importante a gente dizer que
o racismo não se configura como algo moral, ele se configura, particularmente
no Brasil, como o poder econômico, o poder político, o poder de decisão para
onde vão os recursos econômicos, o poder jurídico, ou seja, o sistema de justiça
está inteiramente nas mãos dos brancos. Então o racismo precisa ser desven-
cilhado dessa ideia moral daquilo que é visto como preconceito. Pensando
que isso é estrutura da nação, a branquitude é um lugar de que? De privilégio
material e simbólico, em qualquer sociedade estruturada pelo racismo, via de
dominação racial de estado.
Lia Vainer Schucman: Essa falsa ideia de superioridade vai definir e direcio-
nar os afetos, a subjetividade, o modo de estar no mundo. Eu tenho um caso
de uma entrevistada minha, que inclusive está no meu livro, que para mim
ele é radicalmente algo que nos diz da branquitude. É uma pessoa que está
em São Paulo, mora em São Paulo, de classe média em São Paulo, ela vai a
Berlim e ela conta na entrevista que quando ela foi para Berlin ela se espantou
radicalmente ao entrar no ônibus, em Berlim, porque ela olhou para todas as
pessoas ali sentadas no ônibus e achou que essas eram jovens e são jovens com
quem ela tomaria um café, iria ao cinema. E ela pensou que no Brasil não tinha
jovens no ônibus que ela pegava na cidade de São Paulo. Aí eu perguntei: não
tinha jovens ou não tinha jovens que você tomaria café ou iria ao cinema? Aí
na entrevista ela falou: é verdade, tinham jovens, mas era um motoboy, era
o chapeiro. Aí eu falei assim: “tá, em Berlim não era motoboy, chapeiro, pin-
tor?”. Era. Também era classe trabalhadora muitas vezes que estava lá. Então
não era a classe trabalhadora aqui? A questão é que essa classe trabalhadora
no Brasil tinha cara de negro, tinha cara de indígena e ela não conseguia di-
recionar o afeto dela e a possibilidade de tomar um café, nem a possibilidade
se sentar para ir ao cinema, em uma sociedade, quase de castas que a gente
vive, organizada por essa ideia de raça, da branquitude. Essa mesma pessoa
me conta também que uma vez fez uma viagem para Bolívia e que, andando
pela Bolívia, ela olhava para as pessoas, ela fala que tem vergonha de falar isso
na entrevista, mas ela tinha o sentimento de que as pessoas eram feias, eram
Iolete Ribeiro da Silva: A que conclusões você tem chegado? Como a bran-
quitude impacta o trabalho da psicóloga?
Lia Vainer Schucman: Sim, como é que isso vai refletir naquele sujeito que é
o colonizado? Porque, na verdade, se a gente for pegar via Fanon, peles negras
máscaras brancas, no branco a ideia de raça vai dar uma ideia de superiori-
dade. Mas o colonizado, que são os negros e indígenas, também interioriza
essa mesma ideia, porque ele também se constitui a partir dessa cultura
onde todos os valores de superioridade estão sobre o branco. Ele também se
constitui nessa mesma cultura. Então ele também vai projetar uma ideia de
inferioridade, exatamente por isso que a gente vai ver que tem uma sociedade
que tem colorismo, para que a ideia de quanto mais misturada com branco
essa pessoa está, mais próxima do branco dentro da hierarquia racial, mais
próxima da ideia de racionalidade, de beleza, de civilização. Então, quanto
mais perto daquilo que é visto como negro, preto ou quanto mais perto visto
como um indígena “original”, com essa ideia fictícia de mais original do que o
outro, com essa ideia fictícia de que é um preto mais preto que o outro, essa é
toda uma ideia fictícia através de características que são físicas, tão arbitrárias
quanto a característica do tamanho do pé das pessoas. A cor da pele é uma
característica física. Agora o que foi atrelado a ideia de cor da pele, que é a
ideia de raça, é que é no nosso tecido da construção social e a gente naturali-
zou essa ideia de cor assim como a gente naturalizou a ideia de raça, como se
existe de fato. Isso está no tecido social e aí essa ideia de quanto mais perto
do branco mais perto de ser civilizado e etc. que é isso que você me contou
de São Gabriel da Cachoeira. Acho que outra coisa que é bem importante de
falar da branquitude é que esses estudos nascem chamados de Estudos Críticos
da Branquitude nos Estados Unidos, mas eles se espalham pelo mundo e, na
verdade, em cada lugar do mundo há uma construção de outro. Na Austrália,
os Estudos Críticos da Branquitude vão pensar isso via aborígenes e alguns
asiáticos, então a branquitude também tem a característica de ficar construindo
um outro e se colocando no lugar de universalidade.
Lia Vainer Schucman: Você fala uma coisa muito importante, porque a
branquitude é isso, ela tem esse lugar que faz com que todos os brancos se-
jam beneficiados materialmente e “intelectualmente”, intelectualmente eu
digo o valor dado a esses sujeitos, pela estrutura social, mas se fosse apenas
isso a gente teria em três gerações terminado com isso. O problema é que os
brancos recebem os benefícios construídos através de 500 anos de realismo
e depois pós-abolição, mas distribuem esses benefícios apenas entre si. Então
tem uma legitimação e manutenção desses lugares de poder. Um exemplo:
uma criança nasce branca do olho azul ela não tem culpa nenhuma de quê
no hospital comecem a falar para ela: “Ai, que linda, ai, que criança linda”,
Iolete Ribeiro da Silva: É, tem uma força tão grande que eu fico pensando
como podemos fazer o enfrentamento disso, dessa estrutura toda. Seja pen-
sando nas instituições ou mesmo na atuação profissional, como é que a gente
pode construir resistências?
Lia Vainer Schucman: Ela é uma força muito difícil de destruir, essa branquitude
e esse lugar próprio da estrutura, mas ela é possível, Iolete. E eu gosto de pensar
de uma frase do James Baldwin, inclusive eu abro meu livro com essa frase, que
é muito bonita, ela diz o seguinte: “Embora seja difícil imaginar nossa nação
totalmente livre do racismo e do sexismo, o meu intelecto, o meu coração e a
minha experiência me dizem que isso é realmente possível. Até esse dia, em que
nenhum dos dois existam mais, todos nós devemos voltar” – James Baldwin.
Por que que é possível? Porque o racismo é uma construção histórica, não há
Lia Vainer Schucman: Bom, eu acho que não tem um momento da minha vida
que eu posso dizer que eu não me mobilizei. Eu acho que tem um monte de
fatores que foram me levando para este caminho. Mas é importante pensar, eu
sou de uma família judia no Brasil, que chegou há poucas gerações, então esse
lugar da raça na minha família pessoal e dos horrores feitos através da ideia
da raça estavam muito presentes na história pessoal. Porque eu fui criada por
uma avó que colocava na foto da família “esse morreu assassinado, ele morreu
assassinado”, as pessoas viravam cinzas. Então a experiência subjetiva de pensar
que um mundo pode fazer pessoas virarem cinzas por nascerem de uma forma
que não cabe no mundo foi transmitida de alguma forma desde pequena. Mas
isso não é garantia, conheço vários sujeitos que também passaram por isso e
também repetem a violência de alguma forma, isso não é garantia. Ao mesmo
tempo eu sabia, bem materialmente, que aquilo que foi vivido pela minha avó
há muito pouquíssimo tempo atrás, não estava acontecendo comigo no Brasil.
Era óbvio que eu tinha um lugar de vantagem em relação a outros grupos. Então
eu tinha essa experiência subjetiva na minha concepção, mas também tinha uma
experiência material de um lugar de bastante privilégio material e simbólico,
o que me fazia pensar num duplo lugar subjetivo. Mas também não acho que
é garantia, mas tem esse componente muito forte familiar. Dentro disso, na
minha adolescência, acho que muito nova, eu lembro de uma experiência que
foi radicalmente algo que mudou minha vida. Eu tinha ido passear em uma festa
e, quando eu estava voltando, o meu professor de capoeira, que era um rapaz
negro, falou: Li, eu vou voltar com você, porque está noite e vou te levar até sua
casa, e dois rapazes brancos nos roubaram. Esse meu colega deu um golpe de
capoeira para pegar minha bolsa de volta. A polícia que estava rodando perto
parou nesse momento e levou eu e ele para delegacia. Não adiantou a gente
falar que foi assaltado, era óbvio para eles que quem estava assaltando era o meu
professor de capoeira, meu amigo. Na delegacia, o delegado não estava nem aí
para mim, obviamente me mandou embora e prendeu meu colega uma noite,
ficou preso uma noite. Eu pude ligar para minha mãe. A minha mãe chega no
lugar, eu tinha uns 15 anos, e falaram que ela poderia me levar. E a minha mãe,
que é uma pessoa muito humana, virou e falou que a gente não vai sair daqui
enquanto o colega que estava com ela não sair junto. Eu tinha total consciência
naquele momento, por algum motivo, que o fato de eu conseguir telefonar para
Iolete Ribeiro da Silva: Como você acha que a formação em psicologia pode
abordar esse tema?
Lia Vainer Schucman: Eu acho que uma coisa importante de dizer é que, na
minha formação de psicologia, eu não tive nada, absolutamente nada. Foi tudo