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DIREITO E DEMOCRACIA

Revista de Ciências Jurídicas - ULBRA


Vol. 11 - No 1 - Jan./Jun. 2010
ISSN 1518-1685

Joaquín Herrera Flores (Universidad Pablo Olavide/Espanha)


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

D598 Direito e Democracia: revista do Centro de Ciências Jurídicas /


Universidade Luterana do Brasil. - Vol. 1, n. 1 (2000)- .-
Canoas : Ed. ULBRA, 2000- .
v. ; 23 cm.

Semestral.
A partir do vol. 1, n. 2 (2000), o subtítulo foi modificado para
Revista de Ciências Jurídicas.
ISSN 1518-1685

1. Direito - periódicos. 2. Ciências jurídicas. I.


Universidade Luterana do Brasil.

CDU 34(05)

Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero


Sumário

3 Editorial

Artigos
5 Estruturas sociais e políticas: problemas de mudança, comunicação e participação
nos sistemas transicionais
Manoel Alexandre C. Belo

13 A proximidade do Direito a Distância: análise das controvérsias sobre a criação de


cursos de graduação em Direito na modalidade EAD
André Trindade

19 Para uma hermenêutica do mercado ou “informes econômicos à academia”


Augusto Jobim do Amaral

34 O “boring” dos textos jurídicos


Marco Félix Jobim

43 O direito à saúde no Brasil e a teoria da reserva do possível como falácia à sua


efetivação
Germano Schwartz; Vitor Rieger Teixeira

61 O direito de greve no serviço público brasileiro


Marcelo Loeblein dos Santos; Rosemari Pedrotti de Ávila

76 Água, um direito fundamental


Roberto Ferreira de Macedo

95 A sumarização do processo: o antes, o agora e o depois ou o ir e vir dos textos


legislativos
Elaine Harzheim Macedo

117 Justiça Restaurativa e sistema penal: apontamentos para a construção de um novo


modelo de justiça criminal no Brasil
Daniel Achutti
Documento histórico

139 Sentença do caso “O sequestro dos uruguaios”

2 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


Editorial
Ensina a Filoso a – a Mestre das Mestres – que a noção de espaço deu origem a três
ordens de problemas, a saber, a natureza do espaço, a realidade do espaço e a estrutura
métrica do espaço. Por sua vez, as respostas encontradas a esses questionamentos não
são nem simples, nem uniformes, gerando teses e discussões que atravessaram os séculos
e que ainda representam, na contemporaneidade, águas tormentosas. Sem pretender
simpli car o que não é simples, curvamo-nos, nos limites deste editorial, à ideia difundida
por Hegel, no âmbito da investigação da realidade, que o espaço não passa de forma,
con gurando-se como abstração da exterioridade imediata, negando, desta sorte, sua
realidade e remetendo o espaço para um plano irreal, projetado pelo ser que o cria. A tese
da subjetividade do espaço, é bom que se registre, fora lançada por Hobbes e perseguida
por Locke, entre outros, representando, nas diversas facetas que a defenderam e ainda
defendem, uma redução do espaço, mas, ao mesmo tempo, colocando nas mãos do homem
toda a potencialidade do espaço.
Pois bem, a revista Direito e Democracia, com seu volume 11, nº 1, assume essa
potencialidade e cria o seu espaço, partilhando e divulgando o conhecimento patrocinado
por seus articulistas, no anseio de contribuir para a formação e o aperfeiçoamento jurídico
de seus leitores.
Neste número, participando desta tarefa, Manoel Alexandre C. Belo, tendo como
modelo a democracia participativa brasileira, sistematiza os traços dominantes e comuns
insertos nos sistemas subdesenvolvidos ou transicionais relativamente à mudança
societária e aos padrões de comunicação e participação política.
Com um pé no Direito e outro na Educação, André Trindade analisa as possibilidades
dos cursos de graduação em Direito pelo sistema de ensino a distância na modalidade
semipresencial ou bimodal.
De Augusto Jobim do Amaral vem o questionamento do papel central da instância
mercadológica na estrutura de signi cação social contemporânea, revelando a dinâmica que
se estabelece entre a funcionalidade do mercado e o espaço puro de poder investido.
A tendência da produção de textos jurídicos entediantes, afastando o leitor em vez
de cativá-lo, é o tema abordado por Marco Félix Jobim, que propõe uma revolução de
técnica redacional e de apresentação visual, não só com foco no estudioso da área, mas
atento à interação com outros ramos do conhecimento.
A polaridade que se estabeleceu no direito pátrio quanto ao direito social à saúde,
garantido constitucionalmente, e a teoria da reserva do possível, como limitação por
parte do Estado no cumprimento deste dever prestacional, é objeto do artigo de lavra de
Germano Schwartz e Vitor Rieger Teixeira, que demonstram a falácia da argumentação
que ganhou foro nos debates acadêmicos e nas práticas forenses, em detrimento à
concretização de um direito ilimitado.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 3


Tema sempre inquietante, o direito de greve no serviço público brasileiro é analisado
por Marcelo Loeblein dos Santos e Rosemari Pedrotti de Ávila, seja sob o aspecto legal-
constitucional, seja sob o enfrentamento jurisprudencial, pondo em destaque o instrumento
da negociação coletiva no serviço público, cujas características certamente não se igualam
à que acontece no serviço privado.
A água como direito fundamental é o objeto do estudo realizado por Roberto Ferreira
de Macedo em face da legislação pátria e das exigências do mundo pós-moderno.
A milenar, mas nem por isso esgotada, técnica da sumarização procedimental
vem analisada por esta signatária com destaque para a sua adoção e prática no passado,
no presente e sua proposição em projeto de lei que tramita no Congresso Nacional de
um novo Código de Processo Civil, constituindo-se, na verdade, como um movimento
circular ou de ir e vir, conforme os ventos das teorias predominantes que imperam na
ciência processual.
Por derradeiro, Daniel Achutti presenteia-nos com um artigo versando sobre
a crise do processo penal na sociedade contemporânea, avaliando seus pressupostos
epistemológicos e apresentando a Justiça Restaurativa como uma alternativa concreta
para o sistema de justiça criminal brasileiro.
No espaço Documento histórico, a Direito e Democracia oferece aos seus
leitores importante peça jurídica dos anos setenta, a sentença criminal da lavra do Dr.
Moacir Danilo Roij Rodrigues no processo crime que tratou do caso do “Sequestro dos
Uruguaios”, quando Lilian Celiberti, seus dois lhos menores e o jovem Universindo
Diaz foram vítimas de sequestro em operação executada pela repressão gaúcha.
A todos a quem esta revista chegar, nossas homenagens.

Elaine Harzheim Macedo


Editora

4 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


Estruturas sociais e políticas: problemas
de mudança, comunicação e participação
nos sistemas transicionais
Manoel Alexandre C. Belo

RESUMO
O texto busca sistematizar os traços dominantes e comuns que podem ser observados nos
sistemas subdesenvolvidos ou transicionais, especialmente no que concerne à mudança societária
e padrões de comunicação e participação política. Ao final, reporta-se à teoria da democracia
participativa, tomando por base a legislação brasileira.
Palavras-chave: Mudança societária. Comunicação política. Democracia participativa.

Social and politics structures: Problems of changing,


communication and participations in transitional systems

ABSTRACT
The text aims systematizing the dominant and common traces which can be observed in the
underdeveloped or transitional systems, especially as far as the societary change and communication
standards and political participation are concerned. In the end, it refers to the theory of participative
democracy, based on Brazilian legislation.
Keywords: Societary change. Political change. Political communication. Participative
democracy.

1 As instituições e os valores políticos mudam. Em algumas sociedades, mudanças


consideráveis nas instituições e nos valores ocorrem de forma traumática. Em outras, a
mudança acontece de maneira lentamente evolutiva, sem perturbações civis manifestas.
Entre esses dois extremos, há gradações de estabilidade e instabilidade social. A
mensuração de tais gradações continua a ser um problema importante para a pesquisa
social e política.
A mudança política está claramente relacionada a um grande número de forças
econômicas e sociais. O próprio governo, ao iniciar amplos programas de educação,
saúde, previdência etc., pode se responsabilizar pelo início de movimentos sociais que
acarretarão mudanças políticas. É facilmente demonstrável que a mudança política se situa
em meio a uma gama de fenômenos: industrialização, urbanização, automação, educação,
cibernética, aumento das comunicações, advento de novas instituições e desaparecimento

Manoel Alexandre C. Belo é Mestre em Direito (UFSC). Mestre e Doutor de Estado em Ciência Política
(Universidade de Ciências Sociais de Toulouse, França). Professor Titular da Universidade Potiguar (UnP).
Professor Aposentado da UFPB. Ex-professor visitante do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas
da UFPB. E-mail: alexbelo1@hotmail.com

Direito e DemocraciaDireitoCanoas v.11 v.11,n.1


e Democracia, p.5-12
n.1, jan./jun. 2010 jan./jun. 2010 5
de outras, dispersão de grupos raciais e outros. Dispor essas variáveis em esquemas
analíticos relativamente claros, apropriados ao estudo da Política, enquanto diferente
das demais ciências sociais, é in nitamente mais complexo e difícil. Para responder a
esse desa o – apresentado aos estudos políticos comparados por um grande número de
nações dedicadas à rápida mudança social – foi que a Ciência Política se desenvolveu.
São, normalmente, os problemas dessas sociedades transicionais que se têm em conta,
quando se cogita de desenvolvimento.
O sistema político, nas áreas em transição, distingue-se, em geral, por uma alta
incidência de lideranças carismáticas, associadas a numerosas condições críticas. Ao
mesmo tempo, as instituições formais de tomada de decisões gozam de muito baixa
reputação, em razão dos níveis elevados de corrupção, e, evidentemente, de reduzido
grau de credibilidade e legitimidade. É comum os interesses serem mal articulados e a
organização dos grupos de pressão e dos partidos ser complicada por clãs, oligarquias,
elites ou grupos étnicos. Existe também uma taxa muito alta de recrutamento para cargos
administrativos, por motivos de clientelismo e apoio político. Muitas vezes o povo está
votando, aderindo aos partidos políticos, envolvendo-se com a política, pela primeira vez.
Em regra, há também um largo fosso entre a elite, relativamente so sticada e educada,
e a massa popular, com altos índices de exclusão social, analfabetismo e alienação
política.

2 Portanto, o processo político, nos sistemas transicionais, detém traços dominantes


e comuns que podem ser observados nas formas mais concretas pelas quais se apresentam
na maioria dos países. De modo geral, a natureza do Estado e algumas de suas mais
importantes funções estão relacionadas com as seguintes condições estruturais:
I. O processo político formal (o jogo e a competição entre os partidos, o
funcionamento do sistema parlamentar, o sistema eleitoral etc.) não se constitui no aspecto
mais importante do sistema político geral. Em boa parte dos sistemas, a forma mais
corrente – e também se poderia dizer: estatisticamente normal – de sucessão no poder
é mediante golpes de estado. Em outros, os mecanismos constitucionais são débeis e se
acham à mercê de forças que escapam ao seu controle efetivo. Essas forças, ou fatores
decisivos de poder, representam poderosos grupos de pressão. Tampouco se pode
ignorar a grande importância política das organizações religiosas, que, muitas vezes, se
vinculam aos “fatores de poder”. O papel dos partidos políticos é variável, devido à sua
estrutura débil, inadequada, arti cial ou corrupta. Todas essas características traduzem a
persistência, às vezes subterrânea, mas nem por isso menos real, do poder oligárquico,
geralmente associado aos grandes grupos nanceiros nacionais e internacionais.
II. Por outro lado, importantes setores da população, de características
acentuadamente tradicionais, como os camponeses, o operariado recentemente urbanizado,
as populações indígenas, permanecem, por diversas razões, à margem do processo político
formal: muitos são analfabetos e não compreendem os padrões eleitorais; a natureza do
sistema de eleições soa, para outros, demasiadamente abstrata e confusa, sendo que a
maioria continua ainda submetida a formas tradicionais de dominação (“caciquismo”,

6 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


caudilhismo, paternalismo etc.). Isso faz com que sejam facilmente manipuláveis e que
não possam chegar a constituir uma força política independente da estrutura de poder
existente. Em tais circunstâncias, o apelo das ideologias tem consequências escassas;
em compensação, as ligações pessoais e os fatores locais, mais concretos e efetivos,
in uenciam bastante no recrutamento dos eleitores e na orientação política.
III. A coesão política em torno do governo é geralmente fraca e seu nível de
legitimidade real é baixo. Poderosos grupos de pressão mantêm-se vigilantes e em
atividade “independente”; quando algum ato do governo atinge de maneira frontal os
seus interesses, lançam-se imediatamente à conspiração para derrubá-lo ou questioná-lo.
Assim sendo, uma alta proporção dos governos não pode concluir seus mandatos ou cede
àqueles interesses, havendo, pois, uma subordinação real ou aparente dos governantes a
tais fatores de in uência.
IV. Desse modo, a estabilidade e continuidade dos governos tem dependido
de sua capacidade em alcançar compromissos políticos que implicam no apoio dos
mais importantes fatores de in uência. Diante da inexistência de um consenso real e
de um suporte generalizado ao poder formal, este é obrigado a se integrar aos grupos
mais poderosos e melhor situados estrategicamente para conseguir certa permanência
institucional. O procedimento seguido para angariar a simpatia desses grupos à política
governamental e interessá-los em sua continuidade, tem relação com as circunstâncias
mais concretas e peculiares de cada país e de cada momento histórico. Porém, em geral
e quase sem exceção, consiste em alguma forma de privilégio ou benefício econômico
que repercute negativamente sobre as possibilidades de desenvolvimento, sacri cando
os estratos menos favorecidos da população. Portanto, a cooperação política tem sido
alcançada seja mediante a utilização dos recursos orçamentários, seja da adequação
da política econômica do Estado às necessidades de concessão de oportunidades
excepcionais, ou através mesmo da transferência de recursos aos setores privilegiados.
Diversos procedimentos práticos têm sido utilizados nessa política parcial: a in ação,
o controle do sistema de preços, a política scal, a xação de salários, a concessão
seletiva e preferencial de crédito bancário, o controle de câmbio e a política alfandegária,
as licitações, a concessão de serviços públicos etc. O grande crescimento de cargos
na burocracia civil traduz igualmente o modo como importantes e numerosos setores
médios têm sido incorporados para apoiar o governo. Cada mudança de poder signi ca
invariavelmente um aumento substancial dos cargos, empregos e funções públicas,
independentemente das necessidades e exigências do desenvolvimento, que ca assim
prejudicado pelas nomeações em massa realizadas por recompensa de “serviços políticos”.
A malversação, o suborno e a corrupção no uso dos fundos públicos são frequentes e
generalizados.
V. A situação atual dos sistemas transicionais, mesmo com o processo de
globalização (que, certamente, não atenuou esses problemas) é crítica, em alguns sentidos.
De um lado, se defrontam com massas marginalizadas que começam a se mobilizar social
e politicamente, sendo que grande número delas está concentrada nos centros urbanos,
onde pretendem alcançar um nível de vida mais elevado. Essas massas se encontram

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em condições de subconsumo e com aspirações crescentes, e, por estas e outras razões,
revelam grandes possibilidades potenciais para se somarem a um movimento contrário ao
status quo. Por outro lado, a estabilidade a curto prazo dos governos depende cada vez mais
da cooperação e suporte dos grupos estratégicos, muito embora se torne progressivamente
mais difícil conseguir sua integração em torno de uma política consistente e e caz
de desenvolvimento. A sucessão de golpes e as consequentes mudanças de governo
assim produzidas desde o último pós-guerra, comprovam a debilidade crescente dos
compromissos oligárquicos, que não conseguem estabilizar a situação política de modo
duradouro. Revelam também a falta de substância das alternativas políticas substitutivas
da decadente dominação oligarco-paternalista. Um dos principais paradoxos atuais
do poder, nos sistemas transicionais, é a existência de governos frágeis e instáveis em
Estados fortes. Poder-se-ia até mesmo a rmar que a própria força dos Estados é uma das
principais fontes de debilidade e instabilidade dos respectivos governos. Com efeito, são
as possibilidades potenciais de ação à disposição do Estado que intensi cam a competição
para seu controle. O Estado tornou-se uma presa mais cobiçada que no passado – e daí
a intensi cação da luta política entre grupos poderosos para monopolizar o domínio da
política econômica. Uma situação de tal tipo poderia ser estável se houvesse a possibilidade
de conciliar os mais fortes interesses em con ito, de modo a se conseguir um mínimo de
cooperação entre eles. Mas isto se torna difícil, devido principalmente à situação geral
de estagnação econômica na maioria dos sistemas transicionais. Conciliar interesses
em meio a um processo de desenvolvimento acelerado é relativamente fácil, na medida
em que é acompanhado de uma redistribuição progressiva da renda nacional e dos seus
incrementos. Ao contrário, quando não existe essa redistribuição, perduram os con itos,
tornando o processo de desenvolvimento irregular e esporádico. Não resta dúvida que
os incrementos de renda produzidos pelo desenvolvimento oferecem a perspectiva de
melhorar a posição econômica de vastos setores sociais, e conformá-los. Entretanto,
quando não há desenvolvimento, ou quando este bene cia apenas pequenos segmentos
da população, as escassas oportunidades econômicas existentes derivam forçosamente
da ação direta ou indireta do Estado, mediante incipientes políticas redistributivas.
VI. Por m, a educação formal está, íntima e complexamente, envolvida com a
estrutura sociopolítica. Um dos problemas mais graves dos sistemas transicionais continua
a ser, ainda hoje, o do baixo nível de educação dos seus habitantes, considerados como
fatores de produção. A educação, nessas áreas, funciona mais como meio para certas
classes e grupos manterem vantagens sobre outros, e muito menos como um instrumento
essencial ao processo de desenvolvimento, aqui considerado no seu aspecto geral.
Qualquer estilo de desenvolvimento exige mudanças de largo alcance nas formas de
relacionamento entre as pessoas e entre elas e o Estado. O ideal seria que tais mudanças
se orientassem no sentido de uma sociedade mais aberta e mais bem integrada, com
opções mais livres e maiores perspectivas para o estabelecimento de vínculos associativos
voluntários, a todos cabendo o direito de opinar sobre a composição dos governos locais
e nacionais. O indivíduo e os grupos, sujeitos a uma gama mais extensa de obrigações
para com o Estado, dele exigiriam maior espectro de serviços e de proteções. Para tanto

8 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


seriam necessários canais institucionais, estabelecidos conforme as necessidades, visando
uma interação cada vez mais complexa da informação, da persuasão, da negociação,
das pressões, da resistência e do controle, entre os grupos locais e as autoridades. Em
princípio, transformações dessa natureza deveriam corresponder a um critério básico para
qualquer estilo de desenvolvimento admissível: o aumento da capacidade da sociedade
para funcionar, a longo prazo, em benefício de todos os seus membros.
É óbvio que as atuais pautas de mudanças nos sistemas transicionais só parcial e
deformadamente correspondem a esse quadro ideal. Quase por toda parte é visível o quanto
estão alarmadas e insatisfeitas as autoridades nacionais com as de ciências apresentadas
pelos mecanismos de comunicação existente entre eles e a população. Essa insatisfação
é ainda mais acentuada em países cujos dirigentes têm objetivos desenvolvimentistas
coerentes e pressa em alcançá-los. Em nível de populações locais, observam-se, em
diferentes contextos nacionais: a fé desmesurada na capacidade do Estado para satisfazer
as necessidades sociais; um ceticismo marcado em relação à boa vontade e competência
das autoridades públicas; a apatia em relação aos estilos de vida e formas de mobilização
associadas a seu estilo de desenvolvimento, ou uma atitude de rejeição franca quanto a
eles; surtos de violência muitas vezes centrados em problemas aparentemente alheios ao
desenvolvimento ou ao bem-estar das pessoas nele envolvidas; e, nalmente, uma estrita
concentração em certas pautas de “progresso” que geralmente vêm acompanhadas pela
apropriação seletiva dos serviços supostamente colocados ao alcance de todos pelo Estado,
em prejuízo do que pareceria constituir o mínimo de requisitos capazes de viabilizar uma
ordem social e política mais aberta.
Em regra, o governo busca abrir e controlar canais de comunicação e de mobilização,
mas, ao mesmo tempo, debilita ou domina as instituições que ameacem seus objetivos
ou com ele rivalizem ao exigir apoios. Em toda parte tal luta se complica, se desvia ou é
paralisada, em certa medida, pela interação nos planos nacionais dos diversos grupos de
pressão potencialmente in uentes; pela insu ciência de informação e de compreensão,
no seio do Estado, sobre a realidade das situações locais e sobre as consequências das
ações que ele pode empreender; e pelas características especiais dos agentes burocráticos
da Administração e de outras estruturas (políticos, empresários, proprietários, líderes de
organizações etc.) que se interpõem entre a sociedade e o poder. As autoridades nacionais
sempre necessitam de instituições e iniciativas locais articuladas para chegarem a objetivos
inalcançáveis por decreto ou pela dotação direta de recursos. Os governantes têm alguma
consciência dessa necessidade; ao mesmo tempo, costumam carecer de uma ideia clara
do que pode ser conseguido e de como consegui-lo, vendo-se limitados pelo temor de
perder o controle das iniciativas locais, ou de que estas imponham exigências indesejáveis
ou, mesmo, de que caiam em mãos adversárias.
Na prática, alguns problemas implícitos no estabelecer contato com os centros
superiores de poder tendem a desmembrar a unidade social, enquanto outros contribuem
para uni-la; alguns só dizem respeito aos interesses de pequeno número dos membros
da sociedade, outros atingem a maioria. É mais provável que a mobilização de toda a
sociedade em torno de algum problema seja algo transitório e pouco frequente. A luta

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travada de baixo e os esforços que o Estado empreende de cima são ine cazes, em
grande parte errados e, até, contraproducentemente orientados, quanto a seu sentido,
se ocorrem em circunstâncias típicas (con ito de objetivos no centro da unidade social,
cadeias de intermediários a deformar as mensagens transmitidas para cima ou para baixo,
escassa informação e conhecimentos – no âmbito local – dos recursos de que o Estado
dispõe sobre os grupos de pressão que o controlam etc.). Evidentemente, a capacidade
de atuação coletiva e deliberada dos diferentes grupos, e dos elementos sociais que os
integram, é muito variável; mas, em geral, se limitam a realizar tentativas esporádicas,
mal focalizadas e fragmentadas, de enfrentar o Estado. Por último, é preciso considerar
que as funções de qualquer instituição ou organização com in uência real sobre o sistema
político são vistas de modo diverso pelos vários interessados, os quais se esforçarão – de
uma maneira ou de outra – para manejar a instituição ou organização, como também para
evitar que elas os dominem.
A partir destas observações, é possível inferir que os fatores estruturais que
prejudicam a mudança societária – bem como a mobilização e a participação das massas
no processo político dos sistemas transicionais – são os seguintes: (a) incompatibilidade
das estruturas de poder nacional e local com a participação autônoma e organizada da
população; (b) incapacidade das pautas atuais de desenvolvimento econômico e mudança
social – com seus aspectos de desigualdade crescente, exclusão e dependência – para
darem lugar a tal participação; (c) inadequação dos valores e motivações dominantes da
sociedade com as relações de participação construtiva ou de cooperação.
Em consequência, é preciso aperfeiçoar as instituições, de forma a propiciar
a realização da democracia participativa. Do século XVIII ao século XXI, o mundo
sofreu grandes transformações nesse sentido. Cada uma dessas transformações tentou
tornar efetiva uma forma de organização estatal: primeiro, o Estado liberal; em seguida,
o Estado marxista-leninista; depois, o Estado social das Constituições programáticas;
por m, o Estado social dos direitos fundamentais, “este, sim, por inteiro capacitado
da juridicidade e da concreção dos preceitos e regras que garantem estes direitos”
(BONAVIDES, 2001:148).

3 Em todos esses momentos, a Democracia, enquanto método de governo, sofreu


avanços e recuos, nos quais se questionaram, a todo instante, as formas de convivência
social. Embora persista a di culdade em conceituá-la, aceitando-a como sistema, processo,
loso a, ideal, crença, o importante é que ela, hoje, pressupõe a participação da sociedade
na criação normativa e na gerência da coisa pública.
Porém, a participação efetiva e operante da sociedade civil na esfera pública
não deve exaurir-se apenas na formação das instituições representativas. Como
contraponto às falhas do sistema representativo, e até como alternativa natural,
encontra-se sedimentada a ideia de democracia participativa, apoiada no interesse
e na autodeterminação política dos indivíduos, possibilitando transformar a apatia
concernente ao problema da relação Sociedade/Estado na conscientização da
responsabilidade ativa da sociedade. A teoria da democracia participativa levanta,

10 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


no fundo, os problemas da teoria da democratização: a realização do princípio
democrático em todos os domínios da sociedade (CANOTILHO, 1993:409/410).
Por outro lado, a participação popular constitui um meio de se alcançar a estabilidade
do sistema, visto que altera as relações de domínio e do estilo de decisão, pela conciliação
entre representação e participação. Atualmente, não é possível vislumbrar a ideia
democrática sem antever a necessidade de criação e de estruturação de mecanismos que
ofereçam ao indivíduo meios para participar dos processos de decisão, assim como do
controle do exercício do poder, embasado em informações precisas, considerações críticas
e na diversidade de opiniões.
Dessa maneira, a democracia atual pressupõe referências a um processo que, além
do aspecto político, alcança a vida social, cultural e econômica, como, por exemplo, no
caso do Brasil, a participação na gestão democrática da cidade e a participação popular nos
processos de elaboração e discussão dos planos, diretrizes orçamentárias e orçamentos.
A Carta da República, ao declarar que “todo o poder emana do povo, que o exerce por
meio de seus representantes eleitos ou diretamente...”, instaurou no país a democracia
participativa, fazendo surgir no seu bojo formas de participação da sociedade na formação
e controle dos atos de governo (plebiscito, referendo, iniciativa popular, ação popular,
audiências públicas etc.). É possível observar, a partir disto, que o legislador constituinte
superou o simples âmbito eleitoral, para projetar a participação democrática em todos os
processos sociais e públicos.
Robert Dahl, ao conceber a democracia contemporânea, clama, entre outras
coisas, pela participação efetiva, o entendimento esclarecido e o controle do programa
de planejamento, ou seja: (a) antes de ser adotada uma política pela sociedade, todos
os membros devem ter oportunidades iguais e efetivas para fazer os outros membros
conhecerem suas opiniões sobre qual deveria ser esta política; (b) dentro de limites
razoáveis de tempo, cada membro deve ter oportunidades iguais e efetivas de aprender
sobre as políticas alternativas importantes e suas prováveis consequências; e, (c) os
membros devem ter a oportunidade para decidir como e, se preferirem, quais as questões
que devem ser colocadas no planejamento (2001:49).
Ora, ao se tomar como exemplo a Lei Complementar 101/00 (Lei de
Responsabilidade Fiscal), na qual “a responsabilidade na gestão scal pressupõe a ação
planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de
afetar o equilíbrio das contas públicas..” (art. 1º, § 1º) e que isto também será assegurado
“mediante incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante
os processos de elaboração e de discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e
orçamentos” (art. 48 e parágrafo único), ter-se-á claramente de nida a necessidade de
se criar mecanismos que possibilitem tal participação.
O resultado disso tudo será, sem dúvida, o entrelaçamento entre a democracia
(participação da sociedade na escolha dos rumos e destinos do país), a cidadania (acesso
aos espaços públicos de de nição de prioridades) e efetivação dos direitos fundamentais,
núcleo intangível de uma ordem jurídica que se pretende justa, igualitária, solidária e
pluralista.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 11


REFERÊNCIAS
BELO, Manoel Alexandre C. Os grupos de pressão e sua influência no processo do
desenvolvimento (Dissertação de mestrado). Florianópolis: UFSC, 1978.
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade: para uma teoria geral da política.
Rio: Paz e Terra, 1992.
BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo:
Malheiros, 2001.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993.
DAHL, Robert A. Sobre a Democracia. Brasília: UnB, 2001.
LEAL, Rogério Gesta. Estado, administração pública e sociedade – novos paradigmas.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
PEREZ, Marcos Augusto. A administração pública democrática – institutos de
participação popular na administração pública. Belo Horizonte: Forum, 2004.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
SILVA, Guilherme A. C. Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Método, 2004.

12 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


A proximidade do Direito a Distância:
análise das controvérsias sobre a criação
de cursos de graduação em Direito
na modalidade EAD1
André Trindade

RESUMO
O presente ensaio aborda a possibilidade de criação do curso de Direito na modalidade a
distância. Adotou-se uma mescla do método analítico com o método comparativo. Avalia-se, de tal
modo, a capacidade de atendimento das diretrizes impostas ao curso de graduação em Direito pelo
sistema de ensino a distância na modalidade semipresencial ou bimodal. As opiniões aqui descritas
não têm o objetivo de defender posições, mas apenas avaliar possibilidades.
Palavras-chave: Direito a distância. Educação. Cidadania.

The next coming of the distance law: Analysis of controversies


about the creation of degree law courses in the way Distance
Teaching

ABSTRACT
This research is about the possibility of creating a law course in distance mode. It was adopted a
mixture of analytical method with the comparative method. It is estimated the ability to meet the guidelines
imposed to the degree law course by the system of distance learning in the way half attendance
classroom or the semi bimodal. The views here analyzed are not intended to defend positions,
but only to value the possibilities.
Keywords: Law distance. Education. Citizenship.

1 INTROITO
O ensino a distância tem se demonstrado uma ferramenta de construção da cidadania
ao possibilitar o acesso ao ensino de qualidade em regiões que não possuem condições
de oferta regular do ensino presencial. Além disso, possibilita ofertar formação de alta
qualidade com renomadas autoridades cientí cas. Tal é a importância do ensino a distância
que o legislador autorizou sua oferta a todos os níveis de ensino, da educação básica ao
doutoramento.

André Trindade é advogado, Mestre em Direitos Fundamentais, presidente do Instituto de Teoria do Direito, diretor
do Centro de Pesquisa em Ciências Sociais Aplicadas da UNOPAR. E-mail: andre.trindade@unopar.br
1
Trabalho apresentado no VI Congresso Nacional da Associação Brasileira de Ensino do Direito.

Direito e DemocraciaDireitoCanoas v.11 v.11,n.1


e Democracia, p.13-18
n.1, jan./jun. 2010 jan./jun. 2010 13
A modalidade de ensino a distância é regulada/autorizada pelo sistema
educacional brasileiro e tem por objetivo ampliar a oferta do ensino a todos os níveis
de instrução. É notório que o Estado não tem condições de adimplir na íntegra o
direito à educação, impossibilitando, de tal modo, muitas pessoas de obter formação.
A própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação a rma que “o Poder Público
incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância,
em todos os níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada” (art. 80).
Veri ca-se, de tal modo, o interesse estatal no ensino a distância como instrumento
de democratização do ensino.
A construção do conhecimento jurídico impõe, todavia, certos requisitos para que
se garanta a qualidade do graduado. A Resolução CNE/CSE 09/2004 institui as diretrizes
curriculares nacionais dos cursos de graduação em direito e delimita os elementos
essenciais à manutenção da excelência na formação do jurista. É nesse contexto que o
presente ensaio visa avaliar os pontos de contato e colisão entre a manutenção da qualidade
do ensino jurídico e sua oferta na modalidade a distância. Para tanto, optou-se por realizar
um estudo comparativo sob diversos aspectos.

2 É POSSÍVEL CRIAR UM CURSO DE GRADUAÇÃO


EM DIREITO A DISTÂNCIA? COMO?
O ensino jurídico hodierno deve ser pautado por uma aprendizagem que ultrapasse
as práticas fomentadas pela escola de Coimbra que centralizava seu modelo de ensino em
“salas de aula lotadas com alunos silenciosos ouvindo longas explanações”.2 Para que o
ensino jurídico acompanhe as evoluções da sociedade, deve atuar com o trabalho de grupos
focado na solução de problemas.3 Nesse contexto, o ensino de direito a distância pode ser
avaliado como uma modalidade adequada às novas necessidades pedagógicas?
O ensino a distância pode ser desenvolvido de diversas formas. A mais adequada à
formação jurídica é o modelo Bimodal e Multimidiático. Nessa modalidade o acadêmico
deve comparecer regularmente ao polo de apoio presencial para acompanhar as aulas
ministradas no polo central da universidade. A interação entre o aluno e o professor é
garantida pela possibilidade de contato durante a aula, através de áudio e perguntas
dirigidas. Além disso, o aluno participa de chat para discutir os conteúdos ministrados e
sanar dúvidas geradas. O contato do aluno com o professor também pode ser estendido
após as aulas por sistema de tele ou vídeo conferência. Cada disciplina possui tutores
com formação adequada que auxiliam o docente responsável pela disciplina e o aluno
na construção do conhecimento.
Cada disciplina deve possuir material didático que possibilite o acompanhamento
das aulas. Tal material não substitui a bibliogra a especializada nem deve ser um limitador

2
CARLINI, Angélica Lucia. In: TAGLIAVINI, João Virgílio (Org.). A superação do positivismo jurídico no ensino do
direito. Araraquara: Junqueira & Marin Editores, 2008, p.212.
3
CARLINI, Angélica Lucia. In: TAGLIAVINI, João Virgílio (Org.). A superação do positivismo jurídico no ensino do
direito. Araraquara: Junqueira & Marin Editores, 2008. p.218.

14 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


do processo de busca do conhecimento, mas sim um norteador que elenca os conteúdos
essenciais ao acadêmico. A bibliogra a deve comportar, além da básica e complementar,
obras que aprofundem as especi cidades do conhecimento jurídico.
As disciplinas que compõem uma proposta de projeto pedagógico de curso de
graduação em Direito na modalidade a distância devem seguir as diretrizes previstas na
Resolução CNE/CSE 09/2004. Para Machado, “o projeto pedagógico deve promover
uma formação mais ampla, de cunho geral e humanístico, ao mesmo tempo em que
deve propiciar o conhecimento técnico necessário ao desempenho efetivo da pro ssão
jurídica.”4 Tal previsão pode ser perfeitamente adimplida pela modalidade a distância, uma
vez que as tecnologias de informação e comunicação possibilitam as interações entre os
participantes do processo de construção do conhecimento (alunos, professores, tutores...).
Tais requisitos são atendidos pelo sistema de Ensino a Distância que possibilita a captação
de aulas em diversas partes do globo. Esse facilitador permite ofertar aos alunos aulas
com professores locados em centros de excelência acadêmica. Esse professor, todavia,
deve possuir um per l adequado ao uso das tecnologias de informação e comunicação.5 É
possível, com tal tecnologia, transmitir para todo o território brasileiro uma aula ministrada
na Europa com uma diferença de apenas três segundos do tempo real. Essas inovações
permitem a redução das barreiras do tempo e do espaço na prática pedagógica jurídica,
mantendo sua qualidade.
O estágio de prática jurídica garante ao aluno a integração da formação acadêmica
com a realidade pro ssional. O estágio é componente curricular obrigatório e deve ser
desenvolvido em ambiente adequado à operacionalização das práticas inerentes ao per l
pro ssional almejado pelo curso. A prática jurídica nos cursos de Direito, ofertados na
modalidade a distância, deve ser desenvolvida nos polos de apoio presencial, com estrutura
humana e física su ciente à integração dos conteúdos ministrados nos bancos escolares
com as necessidades inerentes ao operador do direito. De tal modo, o polo de apoio
presencial deve ofertar Núcleo de Práticas Jurídicas composto de docentes habilitados
a orientar os acadêmicos nas práticas simuladas e reais. O conhecimento prático dos
procedimentos inerentes ao direito adjetivo, aliado ao direito material, é indispensável ao
referido docente e permite ao acadêmico a inserção de seus conhecimentos na realidade
regional.
Além do Núcleo de Prática Jurídica, parte do estágio pode ser realizado, mediante
convênio, em entidades e instituições que atuam diretamente no labor jurídico. Órgãos do
Poder Judiciário, Ministério Público, escritórios de advocacia e demais instituições que
permitam ao estudante realizar estágio de formação. Assim como no ensino exclusivamente
presencial, o estágio realizado em convênio exige a supervisão das atividades realizadas
e a apresentação de relatório que as descreva e as registre.
Outro elemento que compõe a formação do aluno são as atividades complementares.
Tais atividades têm por objetivo enriquecer o currículo acadêmico possibilitando, ainda,

4
MACHADO, Antônio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2009, p.163.
5
BARRETO, Ricardo Menna; LOPES, Ana Paula de Almeida. A virtualização do ensino jurídico. In: TRINDADE,
André. Direito educacional. Curitiba: Juruá, 2007, p.174.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 15


a interdisciplinaridade no processo de formação do aluno de direito. As atividades
complementares compõem a parte exível do currículo acadêmico e permitem ao
aluno compor o mosaico de sua formação.6 Tanto no ensino presencial como no ensino
a distância, as atividades complementares desenvolvem habilidades que quali cam
o currículo acadêmico. Nesse ponto, o ensino a distância pode ofertar atividades que
di cilmente seriam possíveis na modalidade presencial. Como, por exemplo, um debate
envolvendo acadêmicos de diversas localidades sobre as práticas e inovações jurídicas de
suas regiões. Nesse mesmo sentido é o desenvolvimento de atividades de extensão. Acima
do assistencialismo encontrado em muitos ambientes educacionais, a extensão no curso
de Direito tem por escopo a integração da comunidade acadêmica com a sociedade em
que está inserida, utilizando os conhecimentos aferidos pela pesquisa e pelo ensino como
elementos de transformação da realidade social. Nesse contexto é que o ensino a distância
pode servir de facilitador ao criar projetos de extensão que ultrapassem a realidade local e
contemplem os atores de todo seu território de inserção. O acompanhamento dos alunos
pode ser realizado por meio do Ambiente Virtual de Aprendizagem que permite e favorece
a interatividade necessária aos processos educativos.
A pesquisa no ensino de direito pode ser descrita como o processo de atividades
voltadas para a construção do conhecimento jurídico através da solução de problemas.7
Também nessa seara o ensino a distância pode apresentar inovações. Isso decorre da
facilidade em obter fontes através das tecnologias de informação e comunicação. Além
do acesso facilitado às fontes, o pesquisador pode utilizar a rede de polos de apoio
presenciais para executar pesquisas de campo com as regiões abrangidas pelo curso.
A construção compartida do conhecimento, voltada para a solução de problemas que
envolvem a sociedade, deve ser o ponto de partida de toda pesquisa cientí ca, rompendo,
assim, os grilhões que nos prendem a um “eurocentrimo” muitas vezes desconectado com
as necessidades da terras brasílis. Uma proposta de pesquisa tupiniquim que procure
sanar nossos problemas jurídicos e, mantendo os rigores cientí cos, pode muito bem ser
desenvolvida através do ensino a distância.
Ao término do curso, o aluno de Direito deve apresentar trabalho de conclusão. Tal
trabalho tem por objetivo criar as competências para que o aluno gere conhecimento. A
monogra a jurídica não é a única forma de apresentação do trabalho de conclusão de
curso, apesar de ser a mais usual. Na modalidade a distância, o aluno pode desenvolver seu
trabalho de conclusão de curso com as mesmas ferramentas adotadas no ensino presencial.
Da discussão inicial do projeto com o orientador à defesa em banca. Possibilitando, ainda,
a participação de pessoas de diversos locais na banca de avaliação e permitindo, assim,
signi cativas contribuições ao relatório nal.
O processo de avaliação dever servir como elemento de identi cação do per l do
aluno. A modalidade a distância permite um contínuo processo de avaliação, mesmo
fora do horário de aulas, uma vez que disponibiliza um ferramental capaz de apoiar o
processo de autoaprendizagem ao mesmo tempo em que permite aos docentes/tutores

6
VENTURA, Daisy. Ensinar direito. Barueri: Manole, 2004, p.87.
7
BOOTH; COLOMB; WILLIANS. A arte da pesquisa. São Paulo: Martins Fontes, 200, p.7.

16 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


avaliar o conhecimento auferido pelo aluno. A avaliação e a aprendizagem se fundem
em um único processo cognitivo. Tal processo deve ser voltado para a formação jurídica,
e não para a memorização de leis.8 De tal modo, a modalidade de educação a distância
apresenta mais instrumentos de avaliação que a presencial, sem perder a capacidade de
interação com o aluno.
Para o desenvolvimento do ensino jurídico na modalidade a distância, deve-se
garantir uma estrutura física mínima. Além de salas de aula para os encontros presenciais,
devem-se disponibilizar laboratórios de informática compatíveis com o número de
alunos e núcleo de prática jurídica capaz de efetivar o atendimento das práticas reais e
simuladas. As bibliotecas dos polos presenciais devem possuir uma vasta bibliogra a que
permita o acesso aos manuais das disciplinas e à pesquisa em obras de aprofundamento
do conhecimento jurídico. Outro facilitador nessa seara é a criação de bibliotecas virtuais
com obras de domínio público, teses, dissertações e demais fontes de pesquisa.
O principal elemento para a viabilidade da criação do curso de Direito na
modalidade a distância é o per l do aluno. O aluno deve possuir uma capacidade
intelectual diferenciada para acompanhar o curso. A aptidão para autoaprendizagem é
um elemento essencial ao per l do graduando em Direito. A postura crítico-re exiva
dos bacharelandos é pautada pelo fomento à aprendizagem autônoma e dinâmica como
elemento imperioso ao processo de ensino continuado. Assim, a formação humanística e
axiológica disseminada pelo curso deve nortear o caminho para a gênese de um pro ssional
engajado com a prestação da justiça e o desenvolvimento da cidadania. O curso deve
possibilitar a inserção do bacharelando no meio laborativo com as competências e
habilidades necessárias para administrar os obstáculos e di culdades atinentes à sociedade
dotada de uma multiplicidade cultural e valorativa, de molde a possibilitar ao egresso a
aplicar de tais competências.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS: QUEBRANDO


PARADIGMAS
Do todo analisado, resta a síntese de que a criação do curso de graduação em
direito na modalidade a distância é factível. Contemplando a tríade universitária – ensino,
pesquisa e extensão –, a modalidade de ensino a distancia bimodal e multimidiática cumpre
os desígnios normativos e pedagógicos propiciando elevar a formação dos acadêmicos ao
maior grau de interação com a realidade social. Apregoa-se, ainda, que o projeto de curso
em tal modalidade coaduna a formação humanística com foco na realidade regional.
O pensamento global com foco no desenvolvimento local deve ser a base formativa
proposta pelo curso de direito na modalidade a distância, integrando Universidade e
comunidade através de projetos que possibilitem o desenvolvimento regional. Cria-se,

8
CUNHA, Paulo Ferreira. Pedagogia, Poder e Direito: prolegómenos a todo o direito universitário futuro. In:
TRINDADE, André. Direito universitário e educação contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2009, p.117.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 17


de tal modo, um uxo contínuo de interação entre os bancos escolares e a sociedade local
que, acima de destinatária da atuação do egresso, é fomentadora principal das linhas
valorativas e do per l pro ssional adotados pelo curso.
Como proclamou o poeta da revolução mexicana, “Caminante, no hay camino, se
hace camino al andar”. O caminho do Direito passa pela adoção de novas modalidades
de ensino. Assim como o próprio Direito, seus operadores e estudiosos são elementos
que compõem um sistema em constante mutação. Devemos, assim, observar o curso de
Direito como um instrumento de construção da cidadania que possibilite espraiar a toda
a sociedade a voz da democracia. Se não estivermos aptos a criar essa modalidade de
ensino agora, temos a certeza da proximidade do Direito a distância.

REFERÊNCIAS
BOOTH; COLOMB; WILLIANS. A arte da pesquisa. São Paulo: Martins Fontes,
2000.
MACHADO, Antônio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. 2.ed. São Paulo:
Atlas, 2009.
TAGLIAVINI, João Virgílio (Org.). A superação do positivismo jurídico no ensino do
direito. Araraquara: Junqueira & Marin Editores, 2008.
TRINDADE, André. Direito educacional. Curitiba: Juruá, 2007.
______. Direito universitário e educação contemporânea. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2009.
VENTURA, Daisy. Ensinar direito. Barueri: Manole, 2004.

18 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


Para uma hermenêutica do mercado
ou “informes econômicos à academia”
Augusto Jobim do Amaral

Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da


outra as peças do patrimônio humano, tivemos
de empenhá-las muitas vezes a um centésimo
do seu valor para recebermos em troca a moeda
miúda do “atual”.
(Walter Benjamin, “Experiência e Pobreza”)

RESUMO
O artigo propõe questionar o papel central da instância mercadológica na estrutura de
significação social contemporânea. Para tanto, analisa o fundo constitutivo do pensamento único
de mercado, desde sua montagem dogmática, que assola as relações humanas, e naturalmente se
investe de local de crivo de sentido na formação da realidade. Enfim, perceber como opera esta
dinâmica que faz o mercado funcionar confundindo-se com o espaço puro de poder investido.
Palavras-chave: Filosofia do Direito. Antropologia Dogmática. Psicanálise. Economia de
Mercado.

Toward a hermeneutics of market: Economic reports to academy

ABSTRACT
The article considers question the central importance of the capital instance in the significance
structure of social contemporary. For in such a way, it analyzes deep the constituent one of the thought
of capital, since its dogmatic assembly, that devastates the relations human beings, and of course it
invests of place of felt bolter of in the formation of the reality. At last, to perceive as it operates this
dynamics that makes the market to function confusing itself with the pure space of power.
Keywords: Legal Philosophy. Dogmatic Anthropology. Psychoanalysis. Business
Economy.

1 INTRODUÇÃO1
No universo de Jorge Luis Borges – anjo cego do bairro de Palermo – onde sonho
e realidade se complementam e se suportam, encontramos um conto singular, que serve,

Augusto Jobim do Amaral é advogado. Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu (COIMBRA).
Especialista e Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Doutorando em Altos Estudos Contemporâneos (COIMBRA).
Professor de Direito penal, Processo Penal e Criminologia da ESADE (http://www.esade.com.br/web_school/) e
da ULBRA (www.ulbra.br). E-mail: guto_jobim@hotmail.com
1
A temática encontrada no presente trabalho tem versão expandida e aprofundada no nosso “O Zahir de Borges e a
Fantasia Ideológica do Mercado: um estudo de antropologia dogmática”. In: MARCELINO JR., Julio Cesar; VALLE,
Juliano Keller do; AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de; CADEMARTORI, Sérgio (orgs.). Direitos Fundamentais,
Economia e Estado: reflexões em tempos de crise. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, pp.37-85.

Direito e DemocraciaDireitoCanoas
e Democracia,
v.11 v.11,n.1
n.1, jan./jun. 2010
p.19-33 jan./jun. 2010 19
para o momento, de espelho sobre nós mesmos. De máximo conteúdo no mínimo de
expressão, como lhe aprazia ser, ali dentro de uma das suas obras primas, El Aleph,
publicado em 1949, encontramos El Zahir:

pensé que no hay moneda que no sea símbolo de las monedas que sin fin
resplandecen en la historia y la fábula. (...) pensé que nada hay menos material
que el dinero, ya que cualquer moneda (una moneda de veinte centavos, digamos)
es, en rigor, un repertorio de futuros posibles. El dinero es abstracto, repetí, el
dinero es tiempo futuro.2

Borges escreve que fadado a quem o encontrá-lo a ter a visão absoluta, a


compreensão total do universo. Está-se às voltas com a fabulação de um objeto que se
tornou pura representação, materialidade quase incorpórea, que assume para si inclusive
a possibilidade de futuro, dei cação fantasmagórica de uma força que suga tudo o que
a ele não se subjuga.
Sobre este lastro de realidade, levantado pela enorme força teórica da cção borgeana
acerca de uma mente absoluta, é que nos servimos de sua literatura para questionar, mais
por vontade que por talento, sobre o pensamento único que assola as relações sociais
entregues aos ditames de uma ideologia de mercado. Quer dizer, como ele se investe de
local de crivo da formação da realidade e como esta fantasia se comporta. Elaborar, pois,
uma re exão sobre a instância (mercadológica) enlouquecedora que tenciona engendrar
o próprio homem no mundo a partir dela.
Para tanto, arriscam-se algumas questões incisivas: não terá, no atual horizonte
social, o dinheiro, por seu fetiche no mercado, acabado por assumir a propriedade de deter
a qualidade das coisas mesmas, humanas ou não, tornadas intercambiáveis, arrogando-se
um papel central na estrutura de signi cação social? Não terá encontrado o homem no
mercado seu Zahir? Será o mercado aquilo que se põe como tal objeto absoluto diante
de nós? Seremos crentes todos nós do seu poder de dar conta do mundo? Estará se
operando no fantasma da ideologia do mercado o Zahir que nos faz esquecer o mundo e
elaborar a realidade a seu preço? Viver só fará questão ao homem por ele; apenas desde
ele a realidade será?

2
Descobre o narrador, o próprio escritor Borges, durante o conto que Zahir em árabe quer dizer notório, visível,
en tal sentido, es uno de los noventa y nueve nombres de Dios; la plebe, en tierras musulmanas, lo dice de «los
seres o cosas que tienen la terrible virtud de ser inolvidables y cuya imagem acaba por enlouquecer a la gente».
Outro testemunho relatado é o do persa Lutf Ali Azur que atestava haver um astrolábio de cobre num colégio em
Shiraz «construido de tal suerte que quien lo miraba una vez no pensaba en otra cosa y así el rey ordenó que lo
arrojaran a lo más profundo del mar, para que los hombres no se olvidaran del universo». BORGES, Jorge Luis.
El Aleph. Primera edición, revisada, en «Biblioteca de autor»: 1997. Decimocuarta reimpresión: 2008. Madrid:
Alianza Editorial, 2008, pp.122-123 e p.127.

20 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


2 A MONTAGEM DOGMÁTICA:
SOBRE UMA ANTROPOLOGIA DO LIMITE
As premissas do contexto mercadológico con guram de que maneira a nossa
grelha social? Antes mesmo, deve-se tentar lançar as bases, com Legendre, de um exame
antropológico dogmático mais profundo do âmbito social e ver como ele se estrutura.3
De pronto, ao se falar em antropologia, não está aqui em causa seu uso desgastado e
banalizado, mas importa considerar algo que ainda se conserva no termo: a montagem
institucional de qualquer meio social. Seu teor semântico ainda convida a abrir um campo
de interrogações muito relevante sobre a relação do homem com o logos, através do qual
se privilegia propriamente o estudo da espécie humana que, dotada de palavra, faz viver a
vida. O que se introduz nesta observação é uma simples e importante condição estrutural.
Estrutura no sentido da instituição do animal falante pela linguagem, acompanhada em
cada meio social pela função de fundar o sujeito – fundá-lo a viver – no vasto circuito
que se forma no domínio palavra-sujeito-cultura.4
Fabricar o vínculo institucional agora é tarefa de um princípio genealógico5 – que
ultrapassa, ao instituir o vivo, o mero elemento biológico – que se considera já como um
segundo nascimento para o homem, aquele mergulho humano na palavra – humanidade
como o vivo falante – fundamento do âmbito institucional. Vitam instituere, como a rma
Legendre.6 Expressão do direito romano que condensa o poder de evocação do conceito
de instituição. Diz respeito, de forma geral, ao pacto comum da cidade, no sentido
emblemático de institucionalidade. A (re)de nição crítica da matéria antropológica passa
assim pela questão desta genealogia, centro de procedimento de acesso à racionalidade e da

3
Há algo que perpassa a postura do artigo de maneira evidente com grande força sobre a qual não se poderia
silenciar: as interfaces entre psicanálise e política. Não se quer retroceder aos primórdios deste tipo de abordagem,
o que seria de difícil genealogia, apenas interessante que haja o afastamento da tediosa crítica padronizada da
aplicação da psicanálise aos processos socioideológicos (seria a velha questão assim formulada: seria legítimo
aplicar noções oriundas do tratamento de indivíduos para entidades coletivas?). O foco é outro. O Social, como
campo de práticas e crenças socialmente alimentadas, não está de maneira alguma noutro registro da experiência
individual, mas é com aquilo mesmo que o sujeito deve propriamente se relacionar. O problema não está, então,
numa mudança de escala, mas repousa no ponto futuro da íntima imbricação a qual o indivíduo terá de experimentar
com uma dimensão minimamente externalizada, ou seja, é elementar que a lacuna entre indivíduo e dimensão
social “impessoal” já está inscrita no próprio indivíduo. Dirá Žižek: o problema é: ´como a ordem sociossimbólica
externa-impessoal de práticas institucionalizadas e crenças deveria se estruturar quando o sujeito tem de manter
sua “sanidade”, seu funcionamento “normal”?´ (...) ´esta ordem “objetiva” da Substância social só existe na medida
em que os indivíduos a tratam como tal, relacionando-se com ela como tal´. ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe.
Tradução de Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2008, p.17.
4
LEGENDRE, Pierre. “Antropologia Dogmatica. Definizione di un Concetto” In: LEGENDRE, Pierre. Il Giurista
Artista Della Ragione (a cura di L. Avitabile, saggio introduttivo di G. B. Ferri). Torino: G. Giappichelli Editore,
2000, pp.79-112.
5
LEGENDRE, Pierre. El Inestimable Objeto de la Transmisión: Estudio sobre el principio genealógico en Occidente
(Lecciones IV). Traducción de Isabel Vericat T. Núñez. Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 1996, p.9-11.
6
A formulação clássica (significando estabelecer, regular e ordenar a vida) vai remontar Cícero e Salustiano. Já
sua versão jurídica tem origem no fragmento de Marziano, jurisconsulto do século III, que cita em grego nas suas
Institutiones um trecho de Demóstenes. Esta passagem é conservada e inserida no século VI no Digesto, grande
compilação de fragmentos de diversos autores realizada pelo imperador Justiniano, ordenação que aportou no
medievo um dos pilares do sistema jurídico ocidental. Legendre recupera as palavras, segundo ele próprio confessa,
desde a tradução do Digesto feita pelo jurista humanista Godefroid, do século XVI, que recompõe o classicismo
à fórmula latina: cio che è stato posto insieme nella città, secondo la qual cosa tutti devono vivere. LEGENDRE,
Pierre. “Antropologia Dogmatica. Definizione di un Concetto”, p.110-112.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 21


própria demanda existencial do sujeito. É a abertura contemporânea à dimensão dogmática
do homem, do sujeito antropológico sobre uma perspectiva hermenêutica, reconhecendo
como base de re exão a sociedade também como função para o sujeito falante.
Alguma reabilitação, alhures, passa também sobre o conceito de dogmática. Por
certo, isto indica qualquer coisa absolutamente diversa da perspectiva usual do termo.
Se o termo grego dogma reenvia àquilo que aparece, se faz ver, Legendre faz notar,
desde outra palavra irmã (doxa), que dogma se refere ao discurso della ´verità legale e
onorata como tale´, discorso di ciò che è detto ´perchè deve essere detto´.7 Dogmática,
pois, implicará ter em conta o mecanismo de um discurso especí co, o qual requisita um
espaço próprio de origem da mensagem, lugar de proveniência da verdade socialmente
posta em cena. Em síntese, dogmática aqui equivale a percebê-la como uma cifra, ou
seja, algo atinente à linguagem do transcendente. O acento é posto na re exão sobre
a ideia de um símbolo, tal como um emblema, que en m indica como se maneja com
este lugar. O conceito de dogmática, neste viés, é visto como instrumento de análise da
construção social pela palavra, quer dizer, tomar a sério a íntima imbricação homem-
cultura (dell´intra-appartenenza tra l´uomo e la cultura8) para que as montagens culturais
sejam postas à descoberto.
Desta maneira, a mola mestra do manejo com a institucionalidade pode ser resumida no
vocábulo central para toda esta dinâmica, a palavra Interdito. Noção de imensa complexidade
teórica, principalmente jurídico-política, todavia que, sob o aspecto antropológico que nos
interessa, não dista da ideia de um dizer legalmente pronunciado, um poder que funciona
com a interposição de uma autoridade para a condução, a bom termo, de certa controvérsia.
Um dizer de interposição, dizer-entre, enquanto “terceiridade”: l´Interdetto ha come
vocazione quella di notificare al soggetto il limite.9 Representa a noti cação ao sujeito do
limite – vocação que já o constituirá como tal –, noção esta que não deve ser confundida
meramente com a ideia de proibição, mas como fenômeno linguístico relativo à palavra que
interrompe; sobremaneira, àquilo que comporta assumir como inaugural e que também o
fará instaurar os vínculo sociais: a palavra ao sujeito. Um esquema estrutural, assim, poderia
ser dado com os seguintes elementos: a) un dire di interposizione (all indirizzo di chi?), b)
questo dire fa giocare il concetto di autorità (che cos´è l´autorità?), c) si tratta di portare
al loro fine delle controversie (quale fine, quali controversie?).10
Sem dúvida alguma, tendo em conta este panorama, a antropologia se encontra
solicitada a aprofundar a discussão sobre esta questão, que não cessa de se inscrever, e
que envia mesmo ao poder social de instituir a Razão. Neste momento, estamos às voltas
daquilo que não deve ignorar: o estudo sobre a cena inconsciente do homem – acolher
o mistério e tentar compreender o que torna plausível este lugar postulado por Freud. É
o Interdito que metaforicamente elabora a separação, cinde o sujeito, e permite o acesso
humano a esta negatividade. Em outras palavras, a construção da linguagem – desde aquilo

7
LEGENDRE, Pierre. “Antropologia Dogmatica. Definizione di un Concetto”, p.82.
8
LEGENDRE, Pierre. “Antropologia Dogmatica. Definizione di un Concetto”, p.84.
9
LEGENDRE, Pierre. “Comunicazione Dogmatica (Ermete e la Struttura)” In: LEGENDRE, Pierre. Il Giurista
Artista Della Ragione, p.38.
10
LEGENDRE, Pierre. “Antropologia Dogmatica. Definizione di un Concetto”, p.85, nota11.

22 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


que porta o Interdito – permite o acesso à outra parte, este fundo opaco incognoscível
pelo sujeito. A instauração do não – l´écart – ilumina o sistema cultural, funda o centro
da representação instituinte que aponta o porquê da lei,11 seja no âmbito individual do
sujeito cindido, seja na exigência político-cultural de legitimação das categorias. L´écart
– vazio constitutivo do lugar em que se inscreve o discurso do fundamento – sia il ´terzo
termine´che permette alla relazione umana di esistire come rappresentazione e nella sua
realizzazione, qualunque siano i contenuti discorsivi. Qualquer montagem normativa que
se tenha, apenas será possível pelo uso metafórico deste vazio que o Interdito impõe. Para
melhor elucidar, Legendre evoca a “Divina Comédia” de Dante para precisamente mostrar
“il principio che manca”, a aporia estrutural que somente pode ser metaforizada via
linguagem, para que se torne possível e suportável viver. Apenas através de uma resposta,
por assim dizer cifrada – não no sentido de uma solução cientí ca, mas dogmática – que
este caminho pode en m ser percorrido.12
Mergulhados que estamos na esfera do dizer, da escrita – ou seja, da não-presumida
concretude mesma da coisa – é a partir desta própria exposição da palavra, debilidade
própria de cada discurso, que se pode compreender o trato abstrato, ctício, a arquitetura
teatral que rege cada discurso normativo. Como dito, o espaço da representação assim
surgido, somente foi possível pela assunção do lugar ctício dado pela noção de Interdito.
Daí a gênese da representação, fruto do espaço terceiro simbólico, que cada sociedade
coloca em cena de uma forma, todavia conservando este espaço absoluto, de poder em
estado puro, instância terceira.13
Haverá o que Legendre14 chama de teatralização do mundo exatamente por conta
de tal exigência. O humano para viver necessita de uma cena – um lugar de sombra e
medo que o separa do mundo e de si – da mesma maneira em que cada sociedade cria
um espaço vazio no qual de inscreverá o discurso/cenário. A montagem/instituição desta
cena constitutiva – pela palavra –, ao mesmo tempo em que rege o edifício social, faz
com que a sociedade seja o lugar de ressonância, câmera de eco deste enigma. O mundo,
assim, virá metaforizado no lugar do Outro – a sociedade como espaço de simbolização
generalizada – no qual eu me (re)descubro, (re)encontro-me e me (re)invento.
A função da dogmática, pelo que se a rmou, diz respeito ao estudo da entrada
em cena da Referência terceira. Cada Referência terceira terá o papel – em cada
teatralização social, na maneira como cada meio humano lidará com a outra cena – de
discurso-credor, instância de valor místico, a qual sempre se deverá pagar o débito pela
ritualidade, exatamente por ser o garante da imagem fundadora. Em razão disto, a entrada
em cena desta imagem instituinte dá-se sempre de forma teatralizada – teatralização
do último “por quê?”

11
LEGENDRE, Pierre. “Antropologia Dogmatica. Definizione di un Concetto”, p.88.
12
LEGENDRE, Pierre. “Antropologia Dogmatica. Definizione di un Concetto”, p.89 e 105.
13
LEGENDRE, Pierre. El Inestimable Objeto de la Transmisión: Estudio sobre el principio genealógico en Occidente
(Lecciones), p.36-43.
14
LEGENDRE, Pierre. “Teatralizzazione del mondo. La vibrazione soggettiva delle società” In: LEGENDRE,
Pierre. Della Società Come Testo. Lineamenti di un´Antropologia Dogmatica (a cura di Paolo Heritier). Torino: G.
Giappichelli Editore, 2005, p.45.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 23


La dimensione istituzionale del linguaggio e la questione del fondamento nell´intra-
appartenenza del soggetto e della cultura conducono a studiare la struttura
ternaria, di modo che appaia in primo piano l´interrogativo sulla legittimità, sul
meccanismo della fedeltà a ciò che funge da legge per l´animale parlante.15

No empenho de (re)introduzir a questão do sujeito e da instituição da Razão no


estudo do objeto antropológico é que o conceito de sociedade tomará novas tintas e
será visto como uma função da palavra e, sob estas condições, que entrarão em jogo
as montagens e as cções no jogo da teatralidade.
Assim, a sociedade pode ser considerada como um Texto, um edifício de
linguagem – tese largamente defendida ao longo de toda a obra de Legendre que
aqui apenas se ousa dar algum contorno – reconhecida como textualidade fundada
na lógica instituída pela linguagem. Texto designando uma diferenciada visão do
discurso instaurado socialmente que, sob o fundo do Interdito via linguagem, opera
efeitos normativos que sustentam a constituição de uma cultura considerada. Põe
em jogo, a nal, o local de essência genealógico, o pacto dogmático que o Ocidente
(re)produz historicamente. Isto equivale a dizer que a sociedade, por isso tudo,
acaba por assumir uma função especular, de espelho, equivale assim a introduzir a
teatralidade de que falamos. Para o autor francês, este universal do Texto permite
discernir a presença de uma ordem de fundamento, vez mais se diga, a expressão
da estrutura ternária fruto do jogo da linguagem que rendeu possível, sobretudo,
separar o humano de si como separá-lo do mundo; fazer, suma, do homem e do
mundo questão para si mesmo.
Disto tudo se depreende que o mundo por certo não é dado ao homem,
contamos com uma relação não direta feita (pela) linguagem. Relação matricial,
enigmática tensão entre a materialidade do mundo e o reino da imagem. É nesta
estrutura dialetizada de alguma forma – montagem humana que ao mesmo tempo
reúne e separa – que estamos metidos. Todavia, que não permite a coincidência
perfeita de seus elementos heterogêneos (a materialidade do mundo e o reino des-
conhecido da imagem), por conta disto porta um por que? sem resposta. Hiatus
que a própria relação da linguagem supõe, cena de fronteira-passagem, destinada
a faz viver, neste por que? in nito, a enigmatização do mundo.16 Este por que?
humano coextensivo à linguagem, nesta perspectiva, incorpora o registro do saber

15
LEGENDRE, Pierre. “Antropologia Dogmatica. Definizione di un Concetto”, p.91.
16
LEGENDRE, Pierre. “La firma umana: il linguaggio e suoi effetti” In: LEGENDRE, Pierre. Della Società Come
Testo. Lineamenti di un´Antropologia Dogmatica, p.41-44. Tutte le società hanno a che fare con la simbolizzazione
come condizione stessa della vita. Il rapporto dell´uomo al mondo non si riduce a delle operazioni d´informazione,
per la ragione che la logica della raprresentazione, dando al mondo statuto di ´altro immaginale´, iscrive questo
rapporto nella dipendenza dalla divisione concernente il linguaggio. La prensione del mondo non è diretta, passando
per la sua costruzione nella rappresentazione, e ciò fa sì che l´accesso umano all´universo materiale, così
delimitato dall´apprensione animale, non raggiunga l´evidenza delle cose che se sostenuto dal ´far tenere insieme´
costitutivo della mediazione simbolica. Per “enigmatizzazione” bisogna intendere che l´animale parlante riceve,
dalla sua presenza al mondo, l´eco della sua divisione e che sostine, anche su questa scena, l´enigma dell´alterità
(LEGENDRE, Pierre. “La firma umana: il linguaggio e suoi effetti”, p.55). Enigma literalmente no sentido de algo que
se deixa entender/indicar de modo obscuro, em que verdade e engano são complementares e não excludentes.

24 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


como questão, ou seja comporta o advento da dimensão, em escala cultural, do
saber interrogar na sociedade.
É sobre a linguagem e seu fundo dogmático constitutivo que aqui se debate
antropologicamente. Primordialmente – e isto interessa de maneira profunda quando
repousamos sobre o pensamento monetário –, não há outro ponto mais importante que
atentar para o poder que a linguagem tem, por óbvio, sobre a representação; da força
que possui de pautar regimes de representações. Talvez aí se encontre a importância
que justi que todo o estudo sobre o circuito do discurso nanceiro. O enfoque deste
escrito pretende minimamente se embrenhar nesta complexa formação do espaço
normativo formado quando a questão monetária ganha posição central nos invólucros
estéticos da civilidade. Se o discurso em si, costurado pela linguagem, comporta
como vimos dois planos – seja o plano do Terceiro-garante ( ador da crença no por
que?) seja no patamar do indivíduo-sujeito-cindido – cada sociedade comportará
uma estrutura de conservação do fundamento e da questão em si. O Texto é, pois,
o lugar da projeção onde se prende a permanente Instância terceira e se inscreve o
fundamento normativo.17 Cabe, então, atentar para como se dará a (re)construção
social deste Terceiro historicamente.

3 A MONTAGEM ANTROPOLÓGICA DO MERCADO


Assim, o sentido de que parte o presente ensaio deve ser visto não só desde um
trajeto frente o qual se pretende seguir, mas, sobretudo, possuidor de alguma direção de
(re)signi cação fundamental. Seguindo o itinerário de nosso esforço, em apertada síntese,
a direção que se quer indicar é da necessidade antropológica do indivíduo contemporâneo
ser noti cado da gura do limite.
Uma antropologia do limite, como escreve Heritier.18 Se quisermos, trata-se da
loso a do direito disposta novamente ao seu nascedouro: como loso a do limite – limite
ao poder autoritário de qualquer entidade coletiva, ou em outro aspecto mesmo, limite a
um sujeito pós-moderno – que via a ciência, a técnica e a economia – se vê onipotente e
ilimitado. Não seria temeroso, tendo isto em conta, arriscar uma leitura da atual conjuntura
mercadológica partindo daquilo que Legendre,19 renovando o estudo sobre o conceito de
sociedade desde a antropologia dogmática, chamou de tecno-ciência-economia. Seja com o
nome que se batize o atual momento histórico (globalização de mercado, era pós-industrial,
hipermodernidade etc.), a questão do agir industrial, quer dizer, a interrogação sobre o
fundamento da economia não cessa de primar. Mais precisamente, importa investigar
como a dita ultramodernidade industrial mundializada entra em ressonância com o Texto

17
LEGENDRE, Pierre. “Antropologia Dogmatica. Definizione di un Concetto”, p.95.
18
Indubitavelmente, será, pois, a tese permanente no trabalho realizado por Legendre. HERITIER, Paolo.
“Introduzione”. In: LEGENDRE, Pierre. Della Società Come Testo. Lineamenti di un´Antropologia Dogmatica (a
cura di Paolo Heritier). Torino: G. Giappichelli Editore, 2005, p.07.
19
LEGENDRE, Pierre. “La tecno-scienza-economia e il potere di significare” In: LEGENDRE, Pierre. Della Società
Come Texto. Lineamenti di un´Antropologia Dogmatica, p.93.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 25


ocidental. De grande valia seria – tal que pouco nos ocupamos dela – conhecer o valor
dogmático desta tríade ciência-técnica-economia.20
Assim, é necessário que façamos uma maior digressão sobre o surgimento deste
dispositivo original em nossa cultura ocidental que é a economia, para que se tenha claro
o sentido do papel que é desempenhado por ela no atual contexto mercadológico. O
signi cado histórico-etimológico do termo dispositivo21 nos ajuda por demais a perceber
para onde remete o termo economia, como prática e pensamento, tal como o aceitamos
hoje em dia. A nal, antecipando a conclusão já trazida por Agamben:22 a tradução do
termo fundamental grego oikonomia nos escritos dos padres latinos foi dada pela palavra
dispositivo. Desta forma, uma genealogia teológica da economia apenas poderá ser
empreendida tomando-se em conta alguns nuances.
Entre os séculos II e VI, o termo oikonomia desenvolveu, para a história da teologia
cristã, uma função decisiva. A palavra, em grego, aludia uma atividade prática de
administração, de gestão do oikos, da casa, ou seja, management doméstico. A necessidade

20
Para isto, há que se ter em vista a importância manifesta da técnica na conjuntura social. Mas não de uma
forma já explorada até a exaustão sobre a sua onipotência, mas desde o viés do seu afrontamento com a
linguagem, desde a lógica da representação. Assim, poderá se pôr: como ela se inscreve dogmaticamente? Ou
seja, importa, sim, perceber que ela se insere socialmente na tensão entre a materialidade do mundo e o reino da
imagem. Assumindo, assim, a técnica como um instrumento – por que não dizer um dispositivo, mais relevante
será discutir sobre se há algo, pois, que su-porta esta instrumentalidade. Lendo Legendre, lo ´strumento´ designa
la prova delle prove (...); esso rinvia al ´potere di stabilire la verità´, di ´significarla´. Intesa così, la tecnica fa fede
(LEGENDRE, Pierre. “La tecno-scienza-economia e il potere di significare”, p.95). Em outras palavras, por via de
consequência, a técnica encontra lugar no sistema de representação – ocupa no estatuto estrutural com relação
ao fundamento – a função de garante. A técnica, assim entendida, tem a ver com o discurso de fé em qualquer
sociedade considerada, pois disposta no local de fiadora da origem, porque insiste metaforicamente em se colocar
na articulação entre o agir e a verdade. Portanto, a técnica assume o relevo de ser como que uma outra parte de
nós mesmos. Empenhamos fé nela porque temos fé em nossa própria imagem. Sob o ponto de vista estrutural, la
tecnica porge all´uomo dell´ultramodernità ´il nuovo Specchio del mondo´ – del ´mondo che porta l´enigma dell´altro
che mi svela (LEGENDRE, Pierre. “La tecno-scienza-economia e il potere di significare”, p.97). A técnica, suma,
é vista como instrumento autenticado da fé na era da tecno-ciência-economia. Já, quanto ao fenômeno científico,
o estudo sobre sua estrutura dogmática vem bem a calhar. Pois, não havendo sociedade desligada da instituição
linguística, não há também saber científico apartado da dimensão normativa de sentido. Nenhuma civilização
escapa da exigência de dar forma ao seu estatuto de interpretação do mundo desde uma ordem hermenêutica
estabelecida. Assim, o homem, ao se interrogar sobre si e o mundo, por meio da ciência, acaba por elaborar uma
inscrição de uma ordem ideal de saber, em que a ciência – investindo unidade à técnica – será dotada, sobretudo,
do poder de significar (a verdade). Ao mesmo tempo, há um poder exercitado sobre a própria relação linguística e
também um poder de fazer saber em que consiste a verdade da norma social. Ademais, será primordial neste foco
entender, tal como hoje sucede, o momento em que este saber interrogar acaba por se converter em pura técnica.
É a “Open Society” propagandeada num discurso sincrético (tecnociência) antilimite em que a completa “des-razão”
imoral encontra-se legitimada pelo agir científico-industrial. Constrói-se um saber divinizado, ininterrogável porque
legitimado de antemão. Reproduz-se uma estrutura de crença fanática, exatamente por quem um dia outorgou-
se o papel de representar a saída das “trevas”; otimismo prometeico absoluto – ode à liberdade científica – que
esquece retumbantemente a experiência de um passado funesto (LEGENDRE, Pierre. “La tecno-scienza-economia
e il potere di significare”, p.100-103).
21
No viés consagrado por Foucault, um dispositivo deve ser visto como uma cadeia de variáveis relacionadas
entre si que vai produzindo determinadas linhas de força e de rupturas. Para entender, resumidamente, deve-se
ter claro três pontos inafastáveis: o dispositivo é uma rede que se estabelece entre elementos heterogêneos
linguísticos e não-linguísticos (discursos, instituições, leis, medidas administrativas, enunciados científicos,
proposições filosóficas etc.); dotado de uma função estratégia que sempre repousa numa relação de poder; e,
sobretudo, resulta de uma imbricação “saber-poder”. São, pois, estratégias de relações de força sustentando tipos
de saber e sendo sustentadas por eles. FOUCAULT, Michel. “Sobre a história da sexualidade” In: FOUCAULT,
Michel. Microfísica do Poder. 16ª ed.. Organização, Introdução e Revisão Técnica de Roberto Machado. São
Paulo: Graal, 1979, pp.244-246.
22
AGAMBEN, Giorgio. Che cos´è un dispositivo? Roma: Nottetempo, 2006, p.15-18.

26 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


então de trazer a expressão, ao ponto de se falar numa “economia divina”, foi derivado
do dever de enfrentamento com a questão da trindade da gura divina. O risco de ver a fé
no pai- lho-espírito-santo transposta para um politeísmo e para convencer os teológicos
da época fez surgir a necessidade de lançar mão de tal termo. Assim,

Dio, quanto al uso essere e alla sua sostanza, è, certamente, uno; ma quanto alla
sua ´oikonomia´, cioè al modo in cui amministra la sua casa, la sua vita e il mondo
che ha creato, egli è, invece, triplice. Come un buon padre può affidare al figlio
lo svolgimento di certe funzioni e di certi compiti, senza perdere per questo il suo
potere e la sua unità, cosí Dio affida a Cristo l´´economia´, l´amministrazione e
il governo della storia degli uomini.23

A oikonomia foi o modo, o dispositivo24 encontrado para que o dogma trinitário fosse
introduzido na fé cristã. A especi cação do signi cante a ligar-se com a encarnação do
Filho (ho anthrōpos tēs oikonomias – o homem da economia), a re-presentar a economia
da redenção – e fundamentalmente da salvação –, en m sua hereditariedade teológica,
pois perde qualquer di culdade de entendimento.
Agora sim, sem dúvida, com extremo ganho qualitativo, podemos avançar pondo
de novo o que se labora permanentemente neste ensaio. Algo de essencial é necessário
não se perder: o cenário da sociedade como assembleia de discurso (Texto). É acerca
da montagem dogmática, mais exatamente sobre a desmontagem dogmática de uma
sociedade que hoje opera via Mercado que nos debruçamos. Se, de uma parte, importa
compreender o peso de Referência do Mercado, em nome d´o qual se organiza o efeito
normativo das práticas sociais atuais, de outra, o horizonte de pensamento aqui lançado
abre espaço para muito além dele e conduz a examinar diuturnamente os modos de
interpretação, os processos de interrogação atinentes ao percurso cultural.
O apanhado feito até o momento não teve outro desejo senão, com o auxílio
da letra de Borges, ampliar incomensuravelmente o horizonte de análise da questão
monetária. Perceber pelo testemunho literário a tamanha abstração religiosa em que se
assenta a técnica econômica. O autor portenho explora brilhantemente, para adiante da
pura positividade econômica, aquilo que se torna primordial frisar, ou seja, a zona de

23
AGAMBEN, Giorgio. Che cos´è un dispositivo?, p.16-17.
24
A terminologia dispositivo, usada a partir da metade dos anos 70 por Foucault, principalmente quando começava
a ocupar-se da governabilidade, salienta Agamben, deve-se muito a Jean Hyppolite (até 1970, antecessor de
Foucault na cátedra de História dos Sistemas de Pensamento no Collège de France com nome à época de
História do Pensamento Filosófico) e sua leitura sobre filosofia da história de Hegel, mormente da ideia hegeliana
de positividade, termo que antes, ao invés de dispositivo, utilizava-se Foucault (AGAMBEN, Giorgio. Che cos´è
un dispositivo?, p.08). A positividade era o elemento histórico (con tutto il suo carico di regole, riti e istituzioni che
vengono imposti agli individui da un potere esterno, ma che vengono, per cosí dire, interiorizzati nei sistemi delle
credenze e dei sentimenti. (AGAMBEN, Giorgio. Che cos´è un dispositivo?, p.11), segundo Hyppolite, considerado
por Hegel como obstáculo à liberdade humana, ou seja, na oposição razão versus história, esta deveria ser
reconciliada com aquela. O interesse de Foucault, por óbvio, nunca foi este, mas o de, no que dizia respeito aos
seres viventes e o elemento histórico – toda a carga de instituições, de processos de subjetivação e de regras
que se concretizam nas redes de poder –, investigar os modos concretos em que as positividades ou depois os
dispositivos agem nas relações, nos mecanismos e nos jogos de poder.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 27


sombra do ritual monetário, o espaço mítico legitimador que se forma ao seu entorno e
do qual dependem, por consequência, suas práticas. Como dirá Legendre: un divario si
instaura, che permette di scorgere lo spazio mitico di pura rappresentazione del tempo,
al quale sono appesi, al modo ignoto, i rituali monetari di oggi e le nostre pratiche di
legittimazione degli scambi.25
Em especial, isto se percebe quando da análise acerca da temporalidade dos seus
cálculos prognósticos e da sua inscrição numa perspectiva virtual. Ficção, abstração
tamanha, onde o dinheiro representa o próprio tempo futuro, o porvir. Não precisaremos
visualizar o mero exemplo da rotina de uma bolsa de valores (BM&F – Bolsa de
Mercadorias e Futuros) em qualquer lugar do mundo para se ver evocado este edifício
teatral do tempo idolatrado – edifício da imagem instituinte daquilo que o cristianismo,
como vimos, chamava de “economia da salvação”. É assim que toda a dinâmica funciona.
O tempo presente nesta lógica toma formas múltiplas, uma cena social in nita que resgata,
como assevera Legendre,26 o presente do futuro agostiniano. Há, pois, um jogo de puras
representações com a construção de uma teatralidade do tempo – El Zahir. Assim se dá o
funcionamento teórico do mercado: em sua composição ternária (oferta-demanda-preço)
faz-se um apelo a uma essência dinâmica, capturando o tempo como um mero objeto
do(e) mercado. Se mesmo o futuro já não é mais obstáculo (apenas uma variável) para
os parâmetros mercadológicos, por certo a insigni cância da nitude não é mais Limite.
É da natureza normativa do mercado que se está a falar, disto importa tratar.
Novamente na cura de Legendre,27 desta forma, a ideia de limite deve ser entendida
na perspectiva da representação, apenas isto conduziria a considerar a instituição monetária
sob o ângulo dogmático. Normativo, como se disse, no sentido estrutural, tal como um
tabu. A maneira como a sociedade dita globalizada vem lidando com esta montagem do
mercado, sobretudo, traz à cena uma transcendentalidade de novo tipo, com efeito de
intocabilidade. Indo mais concretamente ao ponto mesmo, se é na categoria preço (de
equilíbrio) que há o ideal do ajustamento entre oferta e procura, escancaradamente salta
aos sentidos que existe aí juntamente também a expressão monetária justa de um Terceiro,
ou seja, impõe-se a postulação de uma posição de princípio, com todos os desdobramentos
que isto implica.
Questão pertinente: há algum signi cante que a isto re ra – naturalmente usado – e
posto em jogo ao longo da tradição ocidental? Por certo, é a própria metáfora da Justiça.28
Daí, en m, estará revelado o mercado como montagem antropológica. Não de outra forma
a ordenação social poderia se dar neste con-texto senão pelo encontro essencial entre o
crédito e o débito. O que se subentende desta metáfora é a assunção soberana e primeira
da relação humana como encontro entre crédito e débito. Vez mais, o professor francês
aduz que a dimensão monetária não faz mais que colocar em ordem a cena sacri cial
inaugural; estabelece, como ordem (inicial) de justiça, a balança entre credor e devedor.

25
LEGENDRE, Pierre. “La tecno-scienza-economia e il potere di significare”, p.109.
26
LEGENDRE, Pierre. “La tecno-scienza-economia e il potere di significare”, p.110-111.
27
LEGENDRE, Pierre. “La tecno-scienza-economia e il potere di significare”, p.112.
28
CORDERO, Franco. Che cos´è la giustizia? Roma: Luca Sossela Editore, 2007, p.05.

28 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


Mas a questão fundamental – ética – vez mais retorna, o ponto nodal permanece e vem
novamente posto: e aqueles – seja um indivíduo isolado seja um grupo ou uma classe – que
nem mesmo pode(m) ter acesso a esta relação de crédito-débito? Como a negatividade
desta relação será distribuída? Em outras palavras, o que fazer diante do sacrifício humano
oriundo desta relação? Suma, arremata o autor: E ´nel montaggio gestionale, il terzo
monetario tiene la funzione di um despota silenzioso´.29
O sentido do dinheiro (moeda, qualquer que seja sua gura), nesta perspectiva, é
emblemático, recorrendo-se aqui ao sentido radical que a palavra emblema nos conduz.
Mediante o emblema, o sujeito é lançado a entrar numa determinada montagem, sendo
mais direto, em determinada versão de referimento, que desde o processo de simbolização
ele é posto a crer. Aí o fundo manipulativo que pode se converter a dimensão da linguagem.
O discurso sendo, pois, instrumento coercitivo e de poder, por natural, uma análise que se
presta a estudar qualquer fenômeno social não pode perder de vista que estamos, em maior
ou menor grau, falando da estória da transformação da comunicação dogmática, do uso da
técnica de comunicação de um fundamento vazio. Tecnicamente, un sistema dogmático
è un sistema di interpretazioni e socialmente si definisce dunque come organizzazione a
piani di posizioni di interpreti.30 Assim, se o emblema-dinheiro acaba por conservar o poder
de mostrar o fundamento e a dinâmica econômica, em primeiro lugar, de falar em nome do
fundamento mostrado, é de estranhar então o peso de referência das relações econômico-
monetárias atualmente? Talvez não possa existir maior poder que este. Poder – agora
como instância entendida já em termos de institucionalidade dogmática – com função
de ordenamento do mundo, quer dizer, mecanismo de legitimidade em primeiro lugar
destinado a traduzir o impossível colocando então ciò che fa legge per il soggetto.31
Na perspectiva dogmática, ademais, quando lidamos com o olhar mercadológico, a
interrogação por aquilo que podemos chamar de liberdade, passa, de alguma forma, pelo
tema relativo a alguma margem de manobra32 que se pode ou não ter, seja na constituição
de cada liame social seja mesmo na própria formação da signi cação. Explico. Vimos
antes como os contornos de uma realidade como subproduto das relações mercantis pode
injetar características muito presentes nos mais diversos contextos sociais. Colocada,
sobretudo, a anterioridade da liberdade de mercado à liberdade humana, ou seja, os homens
serão livres tanto quanto os preços o são. Neste viés, a intervenção estatal no mercado é
proibida em função deste princípio – argumento em nome da Liberdade (de mercado).
Submetido a estes leis, não se poderá reconhecer nenhum direito humano senão derivado
desta posição privilegiada (a característica não rara de inalienabilidade dada ao direito de
propriedade para alguns, como referencial aos demais, bem pode ilustrar esta condição).
Não obstante, há algo anterior e mais importante a se perceber. Trata-se do exame da
comunicação dogmática, tal como já pudemos depreender, que acaba por carregar consigo
a mensagem normativa em cada sociedade. Comunicar, etimologicamente, signi ca

29
LEGENDRE, Pierre. “La tecno-scienza-economia e il potere di significare”, p.112.
30
LEGENDRE, Pierre. “Comunicazione Dogmatica (Ermete e la Struttura)”, p.75.
31
LEGENDRE, Pierre. “Il principio di delimitazione: lo spazio del mito e il luogo del potere” In: LEGENDRE, Pierre.
Della Società Come Testo. Lineamenti di un´Antropologia Dogmatica, p.187-195.
32
Tema que fazemos coro, ainda que noutro tom, com HERITIER, Paolo. “Introduzione”, p.26.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 29


“trocar de donos”, mas não de forma recíproca, mas levando em conta um desnível de
planos, ou seja, a permanência de um espaço dogmático sobre o qual se organizará o
movimento da palavra.33 Em outros termos, será desde esta diferenciação de planos que
haverá a separação entre um mundo divinizado e outro humano, que permitirá a próprio
jogo de subjetivação de cada ser vivente. Aqui está a tal margem de manobra subjetiva que
qualquer sociedade deve consentir ao indivíduo, sob pena de irremediável totalitarismo.
Quer dizer, estamos a elaborar a distância com o absoluto que permite propriamente o
nascimento da posição do intérprete.34
E quando o absoluto é (pretensamente) tamponado, suprimido por um uxo
monetário que não mais é delimitado, que não permite nada mais ser senão a sua própria
realização de fé? E quando não há mais intérpretes, apenas uma adesão a uma demanda
absoluta de poder? As consequências incalculáveis do totalitarismo em larga escala
impulsionado por esta privação do écart – não separação com a instância inaugural –
facilmente podem ser entre-vistas.
O que estamos tentando propor como hipótese – muito mais a ser colocada à prova
cotidianamente em nossas vidas relações pessoais e mesmo institucionalmente mediadas
– é o alerta para a circunstância de quando passamos a vivenciar uma falha no trabalho
da metáfora da linguagem em resguardar esta diferenciação com o objeto absoluto, tal
como a conjuntura mercadológica incentiva – com a demanda absoluta. A redução da
própria ideia de liberdade ao mercado é grão de areia neste deserto que se alastra. Pouco
importaria o objeto emblemático que estamos a tratar – aqui no caso o dinheiro (moeda).
Instala-se uma relação monetária que de fato não é uma ligação, mas um estado de fusão –
con-fusão ao absoluto. O Mercado, en m, opera – como se fosse possível estruturalmente,
mesmo que funcione como tal e opere neste registro – confundindo-se, ocupando o (não)
lugar da demanda absoluta, espaço puro de poder investido.35
Trata-se de resistir – o exemplo é de Legendre –36 ao que o mito de Narciso
exprime: um grau zero deste terceiro, supressão da estrutura concernente à linguagem que

33
LEGENDRE, Pierre. “Supponendo che una parola o una famiglia di parole siano detestabili” In: LEGENDRE,
Pierre. Della Società Come Testo. Lineamenti di un´Antropologia Dogmatica, p.33.
34
L´interprète n´est pas celui qui adhère sur le mode de la colle adhésive, mais qui s´est montré capable de soutenir
un écart entre lui-même et la Demande absolue du pouvoir. Au-delà de cette simple remarque, se profile la notion
même de normativité: pour qu´il y ait normativitè dans une société, c´est-à-dire pour que s´exerce la fonction
humanisatrice de la légalité, il est nécessaire qu´il y ait «du jeu» entre le sujet et le pouvoir; à défaut de cela, il y
a manipulation pure et simple ou duel à mort, l´instance souveraine ne fonctionnant plus comme tiers logique des
relations juridiques. LEGENDRE, Pierre. Le Désir Politique de Dieu: Etude sur les montages de l´État et du Droit
(Leçons VII). Paris: Fayard, 1988, p.172.
35
Pour l´individu comme pour une organisation, le principe de Raison – la non-folie – se joue précisément par
les grands moyens symboliques, c´est-à-dire par le travail institucionnel des métaphores destinées à imposer la
différenciation d´avec l´Objet absolu – entendez d´abord: d´avec la Demande absolue. On peut être fou de Dieu,
fou Hitler, de Mao, de la Science, de n´importe quel Objet emblématique promu en absolu. Le lien totalitarie n´est
pás un lien, mais un non-lien, un état de fusion avec l´absolu, où la mort elle-même n´est pas représentable –
faute d´avoir accès au vide qu´introduit la dimension structurale de l´énigme –, et les meurtres à tout-va ne sont
qu´un effet dans une conjoncture non pas de dépersonnalisation, mais de dé-métaphorisation du langage et du
support institutionnel de la vie. LEGENDRE, Pierre. Le Désir Politique de Dieu: Etude sur les montages de l´État
et du Droit (Leçons VII), p.174.
36
LEGENDRE, Pierre. “Enigmatizzazione del mondo. L´avvento del saper interrogare” In: LEGENDRE, Pierre.
Della Società Come Testo. Lineamenti di un´Antropologia Dogmatica, p.57.

30 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


possibilita a questão da divisão, quer dizer, aquilo que dá acesso ao resguardo re exivo.
Narciso não se vê, mais exatamente, não sabe que se vê, não conquista aquele lugar que
originará o questionamento, não supera sua loucura paranoica. As experiências totalitárias
podem ser lidas de alguma maneira assim. O atual estágio do que se poderia chamar de
capitalismo de desastre37 em sua vertente neoliberal nos dá adequadamente as tintas desta
funcionalidade. Não será falso dizer que atualmente as práticas sociais em cada ponto vêm
sofrendo o in uxo maciço da montagem mercadológica, que assustadoramente mobiliza
esta lógica ternária a serviço do seu discurso. Assim, este ideário assume a posição, no
sentido dogmático, de discurso instituído. E como tal detém o posto de ador da fé do
próprio homem em si mesmo e garante da verdade sobre a qual se pode deduzir toda a
cadeia de signi cantes que pautam, sobretudo, as relações humanas desde este âmbito
de sentido. In altri termini, è sempre il ´posto del discorso´ in quanto tale che fa fede, il
posto dell´´In nome di´...garante della verità delle immagini e garante della causalità,
a partire del quale si svolge la simbolizzazione o ciò che ne tiene il posto: gli effetti del
suo sviamento.38
O espaço de écart, inerente ao homem como animal falante, é o legado que permitirá
a ele se colocar em questão, não dar a questão humana por resolvida; mas, sim, sempre
uma interrogação a se responder.39 A interrogação permanente, o fato de inarredavelmente
se pôr a questão, assume assim um caráter pleno de resistência a qualquer discurso –
propriamente o econômico em questão – que se arvore titular da resposta total. Um
curto circuito dogmático se implementa na medida em que o discurso do fundamento
– próprio de cada comunicação dogmática – é apropriado literalmente, colonizado pela
lex mercatoria. Se o animal humano falante assim se con gura como um animal de por
que?; se a representação do por que? é inseparável do fenômeno da palavra, o problema
central está posto quando em algum momento a sociedade acaba por deixar de assumir a
responsabilidade da representação desde por que?,40 por aceitar impávida o signi cante-
mestre do Mercado como representante do discurso fundador, com todos seus efeitos
que sofremos na carne.

37
Em seu espetacular “A Doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo de desastre”, Naomi Klein chama
de “capitalismo de desastre” diretamente os ataques orquestrados à esfera pública, ocorridos no auge de
acontecimentos catastróficos, e combinados ao fato de que os desastres são tratados como estimulantes
oportunidades de mercado. Escreverá sobre a dita doutrina do choque exatamente fazendo referência à tática
nuclear do capitalismo contemporâneo, a qual a pesquisadora identifica seus termos teóricos já no prefácio de
“Capitalismo e Liberdade” de Milton Friedman: somente uma crise – real ou pressentida – produz mudança
verdadeira. Quando a crise acontece, as ações que são tomadas dependem das ideias que estão à disposição.
Esta, eu acredito, é a nossa função primordial: desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las em
evidência e acessíveis até que o politicamente impossível se torne o politicamente inevitável. KLEIN, Naomi. A
Doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Tradução Vânia Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2008, pp.15-16.
38
LEGENDRE, Pierre. “Enigmatizzazione del mondo. L´avvento del saper interrogare” In: LEGENDRE, Pierre.
Della Società Come Testo. Lineamenti di un´Antropologia Dogmática, p.57.
39
Reprenant la subtile exégèse talmudique autour de: ´qu´est-ce que l´homme?´, qui répond en miroir par un:
l´homme est «qu´est-ce que?», je dirai que la question existentielle, matrice de l´indéfini questionnement du sujet,
ne connaît pas d´autre réponse que le ‹qu´est-ce que?›. Nous partons de cette mise, énigmatique, inépuisable,
dont la nature nous éloigne définitivement de la tentation scientiste de faire de l´interrogation humaine une question
à résoudre, c´est-à dire à dissoudre. LEGENDRE, Pierre. La 901 Conclusion: Étude sur le théâtre de la Raison
(Leçons I). Paris: Fayard, 1998, p.250 e pp.227-297. Resumidamente, ainda em LEGENDRE, Pierre. El Inestimable
Objeto de la Transmisión: Estudio sobre el principio genealógico en Occidente (Lecciones IV), pp.91-98.
40
LEGENDRE, Pierre. “Comunicazione Dogmatica (Ermete e la Struttura)”, p.33.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 31


Temos perdido, em grande medida, a capacidade de continuar a nos questionar
sobre as reais condições de legitimação de nossas vidas e mesmo de aceitação e
repúdio delas. A interrogação acerca do fundamento tem sempre a necessidade de ser
instituída – pois a nal não lidamos com a coisa em si – daí a função eminentemente
crítica da palavra. No universo de preservação da maleabilidade subjetiva, que
permite a questão in nita sobre o que pode se dizer do sujeito-cultura-sociedade,
sobretudo, incluído está, en m, a complexa problemática de incansavelmente nos
perguntar sobre as condições antropológicas nas quais a palavra pode manter um
sentido. Responder vivendo41 – para isto e por isto que estamos, desde a primeira
linha deste ensaio, preocupados em advertir sobre a importância de uma demanda
antropologicamente fundada, ou seja – não como uma força realmente reacionária
poderá contestar – uma dogmática atenta aos dispositivos que estejam a serviço da
última forma de Poder absoluto da moda.

4 BREVE ABERTURA A TÍTULO DE CONSIDERAÇÕES


FINAIS
De agrada qualquer análise sobre um pano de fundo que diga respeito à sociedade
de consumo (Baudrillard) ou mesmo à sociedade de espetáculo (Débord), importa
frisar necessariamente o que pode dar sentido a estas a rmações cotidianas. Para além
do simplismo em dizer que isto se resume à voracidade com que nos deparamos com
as mercadorias (consumismo), o que importa pinçar nestas práticas é a exatamente a
crença das pessoas em se valorarem pelo que elas podem consumir, mensurar o sentido
da vida, por assim dizer, pelo que podem adquirir. O valor dela e das outras pessoas
se circunscrevem por esta crença no consumo. Algo muito claro, a uma primeira vista,
mas que o artigo exatamente pretendeu ir por estas bandas de forma vigorosamente
vertical.

Walter Benjamin, num curto, porém lapidar texto de 1933, chamado “Experiência e
Pobreza”, vislumbra uma nova forma de miséria derivada do monstruoso desenvolvimento
da técnica. Este profeta de nossa época aduzia que, ao contrário da riqueza de ideias que
o século XX pôde nos oferecer, é a nova barbárie da pobreza de experiências que toma
assento privilegiado. Nossa experiência foi sorrateiramente subtraída pela hipocrisia
vigente e hoje em dia é prova de honradez confessar nossa pobreza. Somos de fato
aquele contemporâneo nu, que o autor descreveu, deitado como um recém-nascido nas
fraldas sujas da época. Não queremos mais a procura por alguma experiência, aspiramos
nos livrar dela, sermos tocado pela realidade é um insuportável trauma radical que uma
vivência pura e decente não pode tolerar. Uma existência transparente (Vattimo) que basta
a si mesma é a nossa condição socialmente adequada a esta cultura do vidro. Escreve
Benjamim, desde Scheerbart, que nada melhor, para modelar indivíduos a sua imagem

41
HERITIER, Paolo. “Introduzione”, p.28.

32 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


que, em nossa época, a presença do vidro: material tão duro e liso que nada a ele se xa,
despe qualquer coisa de sua aura, de todo o mistério.42
Estivemos às voltas com isto. Apenas procuramos dar alguma contribuição pontual
a vasculhar mais detidamente alguns aspectos importantes quando do trato com a estrutura
social, e seus movimentos hoje investidos pelo mercado. Agonicamente uma velocidade
irreversível nos atravessa as entranhas (Virilio) e os fatos da vida passam a não mais
serem vividos, acontecem meramente sem qualquer traço na experiência – tal qual os
combatentes silenciosos dos campos de batalha que voltavam mais pobres em experiências
comunicáveis, pois não traziam nada transmissível de boca em boca, tamanha a radicalidade
das experiências desmoralizadas que viveram. A perda da experiência melancolicamente
não cessa de dar as cartas numa existência depressiva. Lacan dava um nome a esta opção
conformista que negocia permanentemente com as representações coesas da realidade, e
dispersas a qualquer preço, na estabilidade da representação, a experiência do encontro:
chamava canalhice. Mas isto é abertura para outro panorama...

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Che cos´è un dispositivo? Roma: Nottetempo, 2006.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história
da cultura. Obras Escolhidas Vol. I. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7.ed.. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
BORGES, Jorge Luis. El Aleph. Primera edición, revisada, en «Biblioteca de autor»:
1997. Decimocuarta reimpresión: 2008. Madrid: Alianza Editorial, 2008.
KLEIN, Naomi. A Doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Tradução
Vânia Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
LEGENDRE, Pierre. Della Società Come Texto. Lineamenti di un´Antropologia
Dogmática (a cura di Paolo Heritier). Torino: G. Giappichelli Editore, 2005.
______. Il Giurista Artista Della Ragione (a cura di L. Avitabile, saggio introduttivo di
G. B. Ferri). Torino: G. Giappichelli Editore, 2000.
______. La 901 Conclusion: Étude sur le théâtre de la Raison (Leçons I). Paris:
Fayard, 1998.
______. El Inestimable Objeto de la Transmisión: Estudio sobre el principio genealógico
en Occidente (Lecciones IV). Traducción de Isabel Vericat T. Núñez. Madrid: Siglo
Veintiuno Editores, 1996.
______. Le Désir Politique de Dieu: Etude sur les montages de l´État et du Droit (Leçons
VII). Paris: Fayard, 1988.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 16.ed. Organização, Introdução e Revisão
Técnica de Roberto Machado. São Paulo: Graal, 1979.
ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. Tradução de Maria Beatriz de Medina. São Paulo:
Boitempo, 2008.

42
BENJAMIN, Walter. “Experiência e Pobreza” In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios
sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas Vol I. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed.. São Paulo:
Brasiliense, 1994, pp.115-117.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 33


O “boring”1 dos textos jurídicos
Marco Félix Jobim

RESUMO
Este artigo aborda a forma como vem sendo tratada a maioria maciça dos textos jurídicos
elaborados em nossa doutrina. Está-se criando uma cultura dos manuais que faz com que nossa
capacidade intelectual seja uma quase cópia de outra personagem que escreveu anteriormente, e
assim sucessivamente. Por esta razão, aborda-se uma nova concepção de textos jurídicos, calcados
na inovação, trazendo de outras áreas exemplos como gráficos, capas e linguagem para fazer com
que os textos jurídicos fiquem menos entediantes e que chamem a atenção do leitor de outras
ciências para o debate jurídico acadêmico.
Palavras-chave: Texto. Jurídico. Entediante. Novas concepções.

The boring of the legal texts

ABSTRACT
This article deals with the way has been treated most massive of the legal texts prepared
in our doctrine. We are creating a culture of hand that makes our intellectual capacity is almost a
copy of another character who previously wrote and so forth. For this reason, it approaches a new
conception of legal text, which rely on innovation, bringing examples from other areas as graphics,
covers and language to make the legal texts will be less boring and to draw the reader’s attention
from other sciences to The academic legal debate.
Keywords: Text. Legal. Boring. New concepts.

1 INTRODUÇÃO
Em raras ocasiões o leitor de textos jurídicos se depara com alguma redação que
lhe chame a atenção, quer em artigos quer em livros, e isso não ocorre somente pela falta
de inovação de conteúdo, mas também pelo próprio modo como ele é apresentado àquele
a que se destina a leitura.
Um dos textos que recentemente foi estudado para a disciplina de Interpretação
Constitucional e Fundamentos do Direito Público e Privado no doutorado da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, sob orientação do professor Juarez Freitas,

Marco Félix Jobim é advogado e professor universitário. Especialista, mestre e doutorando em Direito. E-mail:
marco-jobim-rs106247@via-rs.net

1
A expressão é utilizada no contexto de “entediante”.

34 Direito e DemocraciaDireitoCanoas v.11 v.11,n.1


e Democracia, p.34-42
n.1, jan./jun. 2010 jan./jun. 2010
denominado “The Citizenship Agenda”, de Bruce Ackerman,2 que faz parte de uma
obra maior chamada “The constitution in 2020”, ainda inédita no Brasil, apenas sendo
possível seu acesso mediante importação do produto, é um exemplo ao contrário do que
foi relatado acima.
Para o deleite de alguns a que possa a curiosidade tomar conta após esta breve
resenha, existem poucos artigos da referida obra que estão à disposição de todos no sítio
www.constitution2020.org, sendo, felizmente, dentre eles, o ora analisado.
Diante disso, este pequeno ensaio se destina a trazer uma nova visão do que pode
vir a ser um artigo jurídico, tomando como base o texto de Bruce Ackerman para que,
no Brasil, se inicie a pensar diferente o modo que se quer passar ao leitor a matéria
relacionada ao Direito.

2 OS TÍTULOS E SUBTÍTULOS: SEMPRE OS MESMOS


Uma das primeiras análises que se deve fazer sobre o referido artigo é a curiosidade
que seu nome desperta no leitor. “The Citizenship Agenda”, que signi ca traduzido a “A
agenda da cidadania”, o que faz, inevitavelmente, naquele que o lê, se questionar sobre
o que deseja o articulista expor.
Isso é uma técnica que pouco existe no mundo jurídico, salvo raras exceções.3
Geralmente não há interesse de outras áreas nas leituras de textos de Direito, tendo em
vista que os mais diversos títulos sempre têm sempre a mesma estrutura:4 geralmente se
inicia com a história do instituto, a sua natureza jurídica, a legitimidade ativa e passiva,
entre outros tantos títulos repetidos ao longo de trabalhos na área jurídica.
Na já referida disciplina, tem-se tentado introjetar esta ideia nos doutorandos de que
os textos jurídicos chamem a atenção do leitor também pelos seus títulos, incentivando
naquele que apenas lê o sumário, por exemplo, que se aventure na leitura do conteúdo
do texto redigido.

2
Bruce Ackerman é professor de Direito Constitucional e de Ciência Política na Universidade de Yale. Sua linha
de pensamento é procedimentalista, conforme explana Gisele Cittadino: “Desde a publicação de seus primeiros
trabalhos, Ackerman, assumindo uma posição contrária ao liberalismo de John Rawls e Ronald Dworkin, defende
a ideia de que os direitos fundamentais do cidadão não são direitos substantivos – igualdade ou igual respeito e
consideração – mas procedimentais, pois todos os indivíduos têm o direito básico de participar de um processo
político deliberativo no qual determinam o conteúdo substantivo dos demais direitos fundamentais, da mesma
forma como definem os seus destinatários primordiais: ‘o primeiro, e mais fundamental, é o direito de cada indivíduo
ao reconhecimento dialógico como um cidadão em uma conversação política em desenvolvimento’. É o diálogo
social, portanto, que define o conteúdo substantivo dos direitos fundamentais”. In: ACKERMAN, Bruce. Nós, o
povo soberano: fundamentos do Direito Constitucional. Tradução de Mauro Raposo de Mello. Belo Horizonte:
Del Rey, 2006. p.XV-XVI.
3
Podem-se citar aqui obras como as de Ricardo Aronne: ARONNE, Ricardo. Direito civil-constitucional e teoria
do caos: estudos preliminares. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. ARONNE, Ricardo. Razão & Caos no
discurso jurídico e outros ensaios de Direito civil-constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. Também
se podem citar aquelas obras destinadas ao novo movimento denominado Direito e Literatura. TRINDADE, André;
SCHWARTZ, Germano. Direito e Literatura: o encontro entre Themis e Apolo. Curitiba: Juruá, 2008.
4
Isso vem sendo discutido paulatinamente pelo professor Doutor Juarez Freitas na disciplina citada de como
deixar os títulos mais chamativos ao leitor, ideia esta agora comprada pelo ora articulista que já tenta, no título,
fazer um que denote este novo foco.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 35


Tome-se, como exemplo, a obra “A economia irracional: como tomar as decisões
certas em tempos de incertezas”,5 organizada por Erwann Michel-Kerjan e Paul Slovic,
um livro de artigos sobre economia. O próprio nome da obra já desperta, por si só, a
curiosidade do leitor que, tão logo veja e assimile o título, já parte para o sumário.
Durante a leitura do sumário, o candidato à leitura se depara com os seguintes artigos
a serem lidos: “Meteorologistas ensandecidos, concursos de beleza e maçãs religiosas na
Wall Street”, de George A. Akerlof e Robert J. Shiller; ou “Metrôs, frutos do coqueiro e
campos minados nublados”, de Robin M. Hogarth; ou “Riscos virgens versus riscos já
vividos”; ou “Possibilidades terríveis, probabilidades negligenciadas”, entre tantos outros
artigos da obra que poderiam ser citados.
Ora, o leitor, sem sombra de dúvida, obrigatoriamente terá que fazer alguns
questionamentos ao ler os títulos da obra: o que tem a ver meteorologistas ensandecidos
com concurso de beleza ou maçãs religiosas? O que é uma maçã religiosa? Ou ainda,
noutros títulos: o que são riscos virgens? Ou probabilidades terríveis? Ou probabilidades
negligenciadas? Todos esses questionamentos despertam a atenção do leitor, independente
da área em que atue.
Em outro livro que não do contexto jurídico, cujo título é “Quente, plano e lotado:
os desa os e oportunidades de um novo mundo”,6 o autor Thomas L. Friedman assim
dispõem alguns capítulos de sua obra: a primeira parte do livro se chama “quando o
mercado e a mãe natureza chegam a um beco sem saída”, sendo que capítulo 1 desta parte
o subtítulo é “porque o Citibank, os bancos da Islândia e os bancos de gelo da Antártida
se derreteram todos ao mesmo tempo”, ou ainda, a quarta parte do livro que chama de
“China”, tem como subcapítulo “a China vermelha poderá se tornar a China verde?”.
Talvez o exemplo que melhor conforme aquilo que se queira passar nesta parte do
texto é a obra “Freakonomics: o lado oculto e inesperado de tudo que nos afeta”,7 onde
a capa, instigante, mostra uma maçã cortada com gomos de laranja no seu interior, no
melhor estilo de que nem sempre aquilo que está diante dos olhos é verdadeiro. O capítulo
primeiro da obra lava o título de “O que os professores e os lutadores de sumô têm em
comum?”. Ora, quem não deseja saber a resposta a essa questão? O capítulo segundo
traz “Em que a Ku Klux Klan se parece com um grupo de corretores de imóveis?”, e
o capítulo três questiona “Por que os tra cantes continuam morando com as mães?”,
demonstrando que a técnica de colocar questionamentos nos títulos dos capítulos torna,
via de regra, o texto mais curioso.
Está-se falando de um sucesso inesperado da obra “Freakonomics” que já foi lançada
“Superfreakonomics: o lado oculto do dia a dia”,8 uma continuação, e “Freedomnomics:

5
MICHEL-KERJAN, Erwann; SLOVIC, Paul. A economia irracional: como tomar decisões certas em tempos de
incertezas. Beatriz Caldas (tradução). Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
6
FRIEDMAN, Thomas L. Quente, plano e lotado: os desafios e oportunidades de um novo mundo. Paulo Afonso
(tradução). Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.
7
LEVITT, Stvene D.; DUBNER, Stephen J. Freakonomics: o lado oculto de tudo que nos afeta. Tradução de Regina
Lyra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
8
LEVITT, Steven D., DUBNER, Stephen. Superfreakonomics: o lado oculto do dia a dia. Tradução de Celso da
Cunha Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

36 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


por que o livre comércio funciona e pode resgatar a economia mundial”,9 que é uma
resposta de discordância as obras supracitadas.
Para con rmar o ponto de vista acima apresentado, temos também como paradigma
a obra “P ponto de virada: como pequenas coisas podem fazer uma grande diferença”,10
de Malcolm Gladwell, cujo capítulo três é denominado de “O fator de xação: Vila
Sésamo, as pistas de blue e o vírus educacional”; o capítulo seis chama-se “Estudo de
caso: boatos, tênis e o poder da tradução”, e o capítulo sete “Estudo de caso: suicídio,
tabagismo e a busca do cigarro sem poder de xação”.
Os exemplos acima são apenas alguns entre tantos outros que poderiam ser trazidos
ao texto.11
Contudo, na área jurídica, os títulos dados às obras, aos artigos e aos mais diversos
escritos continuam, em muitas ocasiões, do repetitivo ao sem inovação, deixando de
incentivar, em muitas ocasiões, o próprio pro ssional do direito. O que se dirá dos leitores
de outras áreas?
Assim, quando o leitor se depara com um texto como “A agenda da cidadania”,
imediatamente nele desperta a curiosidade para a leitura do texto, quer seja jurídico ou
de outra área qualquer, devendo ser ressaltado o bem que isso faria com a comunidade
jurídica para que, passo a passo, consiga tornar o Direito mais globalizado e atrativo a
leitores de outras ciências.

2 TEXTOS JURÍDICOS E A PREOCUPAÇÃO COM


O PASSADO
Outro tema importante a ser tirado do texto de Bruce Ackerman, mas aqui um
elogio a própria obra “The constitution in 2020”, é a preocupação com o futuro, ou seja,
de como vai estar o mundo daqui algum tempo, no caso, em 2020.
Esta é outra crítica ao mundo jurídico que pouco pensa de como as coisas vão estar
daqui há 10, 15, 20 anos, se preocupando em pensar as coisas no hoje em dia, ou, no mais
das vezes, apenas se reportando ao passado.
Um exemplo, mais uma vez voltado à economia, de preocupação como vai
car o futuro, pode ser lido na obra “Brasil pós-crise: agenda para a próxima
década”,12 organizada por Fabio Giambiagi e Octavio de Barros, onde, no capítulo

9
LOTT, John. Fredomnomics: por que o livre comércio funciona e pode resgatar a economia mundial. Tradução
de Ivan P. F. Santos. São Paulo: Saraiva, 2009.
10
GLADWELL, Malcolm. O ponto de virada. Talita Macedo Rodrigues (tradução); Teresa Carneiro (tradução do
posfácio). Rio de Janeiro: Sextante, 2009.
11
Em outras áreas, como na história, temos: FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Então você pensa que é humano?
Uma breve história da humanidade. Tradução de Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Na sociologia: CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 6.ed. Tradução de Guy Reynaud.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
12
GIAMBIAGI, Fabio; BARROS, Octavio de (Orgs.). Brasil pós-crise: agenda para a próxima década. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2009.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 37


2, num artigo de autoria de Antonio Del m Neto, chamado de “A agenda scal”,
onde este traz inovações para que o Brasil não chegue a um dé cit irrecuperável
nanceiro em alguns anos. Essa, e outras tantas ideias, são trazidas na primeira
parte da obra.13

3 TEXTOS JURÍDICOS: MAIS IDEIAS, MENOS PÁGINAS


Trazer ideias inovadoras. Parece que o Direito está conformado onde está trazendo
uma produção bibliográ ca cada dia mais baseada em outra já escrita e apenas reescrita
de forma diferenciada, salvo raros casos, em especial com as publicações recentes de
dissertações e teses dos programas de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado)
das Universidades do país, ou alguma outra produção intelectual de algum jurista focado
com a inovação.14
A onda dos terríveis manuais de direito que tomam conta a cada dia mais das
Universidades tem sido como uma barreira do pensar do aluno, isso quando não estão de
posse dos destemidos resumões de Direito que desa am tudo o já escrito de complexo,
numa fórmula mágica simpli cada em três páginas dobradas e sobrepostas umas sobre
as outras.
Bruce Ackerman, em 10 páginas apenas, revoluciona o mundo das ideias ao trazer
três formas para construir novas bases de uma cidadania mais participativa nos Estados
Unidos da América.

13
Já na apresentação da obra, pode-se notar a preocupação: “O livro está dividido em três grandes partes. A
primeira trata, em linhas gerais, das reformas macroeconômicas. Nela, com nove capítulos, o denominador
comum é o destaque à necessidade de que o país se empenhe na aprovação de reformas-chave, tantas
vezes postergadas. No capítulo inicial, Octavio de Barros e Fabio Giambiagi falam de um Brasil pós-crise
que precisa se adaptar às grandes transformações no cenário global, em um contexto no qual os desafios
mudam de natureza. Na sequência, Antonio Delfim Netto apresenta os pontos do que poderia constituir uma
espécie de ‘agenda fiscal’, incluindo a proposta de reduzir a taxa de crescimento das despesas primárias do
governo central à metade da taxa de crescimento do PIB, bem como um conjunto de sugestões destinadas
ao aprimoramento institucional relacionado com a elaboração do orçamento. John H. Welch faz uma leitura
das mudanças no sistema bancário e financeiro global no qual o Brasil está inserido. O capítulo de Octavio
de Barros e Fernando Honorato Barbosa analisa os determinantes do resultado das contas externas do país
e faz um exercício acerca de sua evolução nos próximos anos, apontando para a relação entre o que se
pode esperar do saldo em conta corrente e o comportamento da absorção doméstica. Ernani Teixeira Torres
Filho e Fernanda Puga discutem o desempenho e o cenário do comércio exterior brasileiro, sugerindo o que
poderia vir a ser uma estratégia para as nossas exportações. Os ex-ministros Francisco Dornelles e José
Roberto Afonso apresentam em linhas gerais e conceituais de quais teriam de ser os pontos principais de
uma reestruturação do sistema tributário do país. Fabio Giambiagi expõe o que poderia ser definido como
uma agenda realista de reformas no campo previdenciário. Wilson Ferreira Jr. mostra qual deveria ser a
agenda de curto e de longo prazo do setor elétrico, para evitar que o país sofra com velhos (como em 2001)
ou novos problemas (como a maior poluição da matriz energética). Alexandre Mathias, por sua vez, mesmo
destacando o sucesso do regime, propõe alguns aprimoramentos a serem incorporados as sistema de metas
de inflação”. P. XI.
14
Podem ser citadas as obras de Juarez Freitas que nunca caem na ordinariedade, sempre trazendo inovações
no campo jurídico: FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o Direito fundamental à boa administração pública. 2.ed.
São Paulo: Malheiros, 2009.

38 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


Apenas analisando o trecho do texto abaixo, notam-se as três soluções encontradas
para uma cidadania mais participativa, a saber: os dólares patriotas, o dia da deliberação
e a sociedade dos interessados

This has been the spirit of three collaborations with friends of mine that aim to kick
off a new round of debate over the shape of the citizenship agenda: Voting with
Dollars, with Ian Ayres; Deliberation Day, with Jim Fishkin; and The Stakeholder
Society, with Anne Alstott (all Yale University Press paperbacks). In setting out
three planks for a new citizenship agenda, we tried to rediscover the art of talking
about big ideas in ordinary English, staying clear of Beltway techno-babble. This
is the only way to convince millions of Americans that meaningful citizenship is a
real-world possibility—if they only will take the future into their own hands.15

Isso continua sendo um equívoco nos textos jurídicos, acabando por se tornarem
pernósticos, escrevendo-se muito e falando-se pouco. Com apenas 10 páginas alguém
pode trazer ideias, ao menos discutíveis, para a comunidade jurídica, sem ter o seu texto
de ser tachado de medíocre, entre outros adjetivos pejorativos, pelo número reduzido
de páginas.16

4 TEXTOS JURÍDICOS: A FALTA DE GRÁFICOS, DE UMA


LINGUAGEM ACESSÍVEL E DE NOVAS CAPAS
Por último, mas não menos importante, os textos jurídicos carecem de uma
linguagem17 mais acessível a seus leitores, quer por meio de grá cos explicativos,18 quer
através da própria formalidade para se escrever neste meio que, a duras penas, quem foge
da regra de um formalismo para a escrita resta alijado do mercado doutrinário.
O que ca para a comunidade jurídica é que os textos sejam feitos mais livremente,
com o poder do articulista de não se amarrar às dogmáticas do formalismo na livre

15
www.constitution2020.org.
16
Aliás, digno de nota, a tese de livre-docência onde Virgílio Afonso da Silva sagrou-se vencedor para professor titular
da Universidade de São Paulo tem pouco mais de 150 páginas. AFONSO DA SILVA, Virgílio. A constitucionalização
do Direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2004, mostrando, mais
uma vez, que não precisa falar muito para dizer algo de novo. Ainda, pode-se lembrar de: MITIDIERO, Daniel.
Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009,
que em pouco mais de 140 páginas defendeu tese brilhante de doutoramento perante a Universidade Federal
do Rio Grande do Sul.
17
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II: complementos e índice. Tradução de Enio Paulo Giachini.
Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2002, p.182. Disse o filósofo
alemão: “A linguagem é, pois, o centro do ser humano, quando considerada no âmbito que só ela consegue
preencher: o âmbito da convivência humana, o âmbito do entendimento, do consenso crescente, tão indispensável
à vida humana como o ar que respiramos”.
18
Exemplo disso pode ser analisado na obra: GARCIA, Márcio; GIAMBIAGI, Fabio. Risco e regulação: por que o
Brasil enfrentou bem a crise e como ela afetou a economia mundial. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. No texto de
Ricardo Weiss, denominado de “Fundos de pensão no Brasil: antes e depois da crise de 2008”, pode-se notar a
facilidade com que o profissional de outra área entenda o texto pela forma gráfica imposta pelo autor.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 39


apreciação de sua obra a ser nalizada. Algo menos formal e que não traga críticas
por essa informalidade necessária. Muitas vezes sequer o acadêmico pode agradecer
de maneira livre,19 sem a represália de um professor orientador que consegue podar
a livre manifestação de seu aluno. Raros são os casos no próprio texto deste tipo de
exposição.20
Outra observação que merece destaque é a falta de capas chamativas ao leitor. Em
que pese está-se diante de uma ciência que é o Direito, as obras não necessitam ser sempre
as mesmas, onde o título, o autor e a editora geralmente preenchem um vazio que é a cor
principal estampada na capa. Uma editora que vem fazendo mudança no grá co utilizado
na capa é a Quartier Latin, onde, de algum tempo para cá, traz gravuras que auxiliam ao
leitor em elucidar o que será lido na obra a ser adquirida.21

19
Um dos melhores exemplos de que o agradecimento pode e deve ser feito espontaneamente é lido na
obra de Virgílio Afonso da Silva, onde assim faz o autor seus agradecimentos: “A Lennon, McCartney,
Harrison e Starr, a Jagger, Richards, Wyman e Watts, a Page, Plant, Jones e Bonham, a Joey, Johnny, Dee
Dee e Tommy e a todos os outros que me acompanham desde a infância, agradeço as horas intermináveis
de muita música. O mesmo vale para Mingus, Miles, Coltrane e outros, descobertos um pouco mais tarde.
Embora não exista melhor forma de liberar as tensões que antecedem a um concurso do que ouvir Wart Hog
(Ramones), Holidays in the Sun (Sex Pistols) ou Helter Skelter (Beatles) no volume máximo, a elaboração
deste trabalho ocorreu, em seus momentos decisivos, ao som de algo mais suave e quase minimalista: Alina,
do estoiano Arvo Pärt. Em todos os casos, porém, é possível acompanhar Sancho Panza e afirmar: Donde
hay música no puede Haber cosa mala (Miguel de Cervantes, Don Quijote de La Mancha, II, XXXIV)”. In:
AFONSO DA SILVA, Virgílio. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo:
Malheiros, 2009. p.18.
20
Note-se como, ao fazer a ilação de um filme de ficção com a matéria relacionada à modulação de efeitos,
Eduardo Appio consegue, de forma concisa e exemplificativa, fazer-se entender: APPIO, Eduardo. Controle
difuso de constitucionalidade: modulação dos efeitos, uniformização de jurisprudência e coisa julgada. Curitiba:
Juruá, 2009. “Ao defender a chamada eficácia retroativa das decisões em controle difuso, o Supremo Tribunal
assuma o papel de senhor absoluto do tempo das decisões. Assim como no filme De volta para o futuro, o
personagem vivido nas telas por Michael J. Fox retorna para o passado, para consertá-lo, através de uma
máquina criada por um genial cientista, os Ministros do Supremo embarcarão nesta inusitada viagem no
tempo, retomando discussões já encerradas no passado, com a finalidade de alterar suas consequências. No
filme, o personagem, insatisfeito com o atual estágio de sua vida e com a modesta condição econômica de
sua família, decide voltar para o passado, alterando o curso de sua biografia pessoal (e de seus familiares).
Ao interferir no curso da história, o personagem, de forma inadvertida, produz inúmeras consequências
indesejadas (efeitos colaterais), já que a dinâmica dos acontecimentos futuros acaba por ser totalmente
alterada. A previsão sobre o que supunha iria acontecer no futuro acaba, no filme, converte-se em tormento
para o personagem, já que sua família passa a gozar de alguns benefícios, mas, de outro lado, surgem novos
problemas. O personagem, já ao final do filme, dá-se conta de que, muito embora gozasse de uma situação
privilegiada – pois sabia de antemão, as origens de sua desgraça e como consertá-la – ainda assim não
tinha condições de determinar o final da ‘estória’”. Após, continua o autor ao fazer a ilação final ao STF: “O
Supremo Tribunal Federal, ao modular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, na via difusa, também
goza, a exemplo do personagem, de uma posição privilegiada. Conhece as origens dos problemas criados
por centenas ou mesmo milhares de decisões judiciais que não correspondem a sua própria interpretação
constitucional. Ao redesenhar o sistema de controle de constitucionalidade no país, com especial ênfase na
modulação dos efeitos no controle difuso, o Supremo está interferindo no curso de uma ‘estória’ já encerrada
pela força da coisa julgada”. p.34.
21
Em recente obra jurídica publicada em homenagem à professora Elaine Harzheim Macedo, em sua capa, há uma
figura de uma mulher entregando a um homem sentado algo envolto em bandagens. Isso desperta a curiosidade
no leitor que, no prólogo, acha a resposta para aquela capa como sendo parte da mitologia grega onde Reia
entrega uma pedra envolta de bandagens a Cronos, como se fosse seu filho, Zeus, para ser engolido pelo pai
para que, no futuro, não fosse ele destronado pelo seu filho, visão esta que um oráculo teve. JOBIM, Geraldo C.;
TELLINI, Denise Estrela; JOBIM, Marco Félix. Tempestividade e efetividade processual: novos rumos do processo
civil brasileiro. Caxias do Sul: Plenum, 2010.

40 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim, com base no texto “The Citizenship Agenda”, de Bruce Ackerman, roga-se
ao estudioso do direito que, no mais das vezes, siga os passos seguintes para a confecção
do seu texto jurídico:
1. Torne atrativos os capítulos e subcapítulos dos trabalhos acadêmicos para
despertar a curiosidade no leitor;
2. Não escreva somente com vista ao passado ou ao presente, mas com a cabeça
visando às problemáticas e soluções para o futuro;
3. Escreva objetivamente, não necessitando de 100 páginas para dizer aquilo que
se poderia fazer em 10;
4. No mais das vezes, inove. A ideia nova traz discussão e debates o que, na área
jurídica, é uma das únicas formas de moldar novas mentes.22
5. Não que adstrito a uma linguagem formal nos textos por receio de ser criticado.
Quando for possível, utilize grá cos, gravuras, charges, capas diferenciadas etc. para
demonstrar seu ponto de vista, ou ainda, se utilize de um estilo próprio, que expresse
aquilo que realmente deseja passar, sendo que, por obviedade, sem maltratar a língua
que está sendo escrita.

REFERÊNCIAS
ACKERMAN, Bruce. Nós, o povo soberano: fundamentos do Direito Constitucional.
Tradução de Mauro Raposo de Mello. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
AFONSO DA SILVA, Virgílio. A constitucionalização do Direito: os direitos fundamentais
nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2004.
______. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo:
Malheiros, 2009.
APPIO, Eduardo. Controle difuso de constitucionalidade: modulação dos efeitos,
uniformização de jurisprudência e coisa julgada. Curitiba: Juruá, 2009.
ARONNE, Ricardo. Direito civil-constitucional e teoria do caos: estudos preliminares.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
______. Razão & Caos no discurso jurídico e outros ensaios de Direito civil-constitucional.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 6.ed. Tradução de
Guy Reynaud. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

22
Para ver que a mudança de mentes está ao alcance de todos, recomenda-se a obra: GARDNER, Howard. Mentes
que mudam: a arte e a ciência de mudar as nossas ideias e as dos outros. Tradução de Maria Adriana Veríssimo
Veronese. Porto Alegre: Artmed/Bookman, 2005. Em especial da página 27 a 31 e os sete fatores que auxiliam
na mudança da mente, sendo eles: razão, pesquisa, ressonância, redescrições representacionais, recursos e
recompensas, eventos do mundo real e resistências. Também de grande auxílio para a complementação da obra
recomendada é: THALER, Richard H.; SUNSTEIN, Cass R. Nudge, o empurrão para a escolha certa: aprimore
suas decisões sobre saúde, riqueza e felicidade. Tradução Marcello Lino. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 41


FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Então você pensa que é humano? Uma breve história
da humanidade. Tradução de Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.
FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 5.ed. São Paulo: Malheiros,
2010.
______. Discricionariedade administrativa e o Direito fundamental à boa administração
pública. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
FRIEDMAN, Thomas L. Quente, plano e lotado: os desafios e oportunidades de um
novo mundo. Paulo Afonso (tradução). Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II: complementos e índice. 2.ed. Tradução de
Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária
São Francisco, 2002.
GARDNER, Howard. Mentes que mudam: a arte e a ciência de mudar as nossas ideias
e as dos outros. Tradução de Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre: Artmed/
Bookman, 2005.
GIAMBIAGI, Fabio; BARROS, Octavio de (Orgs.). Brasil pós-crise: agenda para a
próxima década. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.
GLADWELL, Malcolm. O ponto de virada. Talita Macedo Rodrigues (tradução); Teresa
Carneiro (tradução do posfácio). Rio de Janeiro: Sextante, 2009.
JOBIM, Geraldo C.; TELLINI, Denise Estrela; JOBIM, Marco Félix. Tempestividade e
efetividade processual: novos rumos do processo civil brasileiro. Caxias do Sul: Plenum,
2010.
LEVITT, Steven D.; DUBNER, Stephen J. Freakonomics: o lado oculto de tudo que nos
afeta. Tradução de Regina Lyra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
______. Superfreakonomics: o lado oculto do dia a dia. Tradução de Celso da Cunha
Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
LOTT, John. Fredomnomics: por que o livre comércio funciona e pode resgatar a
economia mundial. Tradução de Ivan P. F. Santos. São Paulo: Saraiva, 2009.
MICHEL-KERJAN, Erwann; SLOVIC, Paul. A economia irracional: como tomar
decisões certas em tempos de incertezas. Beatriz Caldas (tradução). Rio de Janeiro:
Elsevier, 2010.
MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e
éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
THALER, Richard H.; SUNSTEIN, Cass R. Nudge, o empurrão para a escolha certa:
aprimore suas decisões sobre saúde, riqueza e felicidade. Tradução Marcello Lino. Rio
de Janeiro: Elsevier, 2009.
TRINDADE, André; SCHWARTZ, Germano. Direito e Literatura: o encontro entre
Themis e Apolo. Curitiba: Juruá, 2008.
WEISS, Ricardo. Fundos de pensão no Brasil: antes e depois da crise de 2008. In:
GARCIA, Márcio; GIAMBIAGI, Fabio. Risco e regulação: por que o Brasil enfrentou
bem a crise e como ela afetou a economia mundial. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

42 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


O direito à saúde no Brasil e a teoria da
reserva do possível como falácia à sua
efetivação1
Germano Schwartz
Vitor Rieger Teixeira

RESUMO
O presente artigo tem como objetivo verificar como a teoria da reserva do possível vem
sendo utilizada, no Brasil, na efetivação do direito fundamental à saúde. A partir desse pressuposto,
procura verificar as possibilidades de transplante de teorias oriundas de países estrangeiros para a
realidade jurídico-social brasileira. Com isso, intenta demonstrar que o direito à saúde não pode ser
limitado em função de um discurso jurídico que se baseia em uma falácia (a reserva do possível),
preservando-se, assim, o sentido original do texto constitucional.
Palavras-chave: Direito à Saúde. Reserva do Possível. Teoria dos Sistemas Sociais
Autopoiéticos.

The right to health care in Brasil and the reserve of the possible
theory as a fallacy for its effectiveness

ABSTRACT
This paper’s purpose is to check the way the constitutional theory of the “reserve of
the possible” is being implemented in Brazil in regard to the fundamental right to health care.
Based on this, it purports to verify the possibility of transplanting foreign theories to Brazilian
socio-juridical reality. Its aim is to demonstrate that the right to health care cannot be limited
by a juridical discourse based on a fallacy (“the reserve of possible”), thus preserving its
original constitutional meaning.
Keywords: Health Law. Reserve of the Possible. Autopoietic Systems Social Theory.

Germano Schwartz Pós-Doutor em Direito (University of Reading). Doutor em Direito (Unisinos) com estágio
doutoral na Université Paris X – Nanterre (Centre de Theorie du Droit). Professor do Programa de Pós-Graduação
em Direito da ULBRA Canoas. Coordenador do Curso de Direito da ESADE – Laureate International Universities.
Professor do Curso de Direito da Faculdade da Serra Gaúcha. Pesquisador da UnP.
E-mail germano.schwartz@esade.edu.br
Vitor Rieger Teixeira é bacharelando em Direito (ULBRA). Bolsista PIBIC/CNPq.
1
Artigo resultante de pesquisa financiada pelo CNPQ em sede de PIBIC na Universidade Luterana do Brasil.
Originou-se do projeto de pesquisa intitulado “A Teoria do Direito Aplicada aos Direitos Fundamentais: do positivismo
à autopoiese do Direito”, vinculado ao grupo de pesquisa CNPQ “Constitucionalismo e Direitos Fundamentais” e
à linha de pesquisa “Direito do Estado e Direitos Fundamentais” do PPGD-ULBRA/Canoas.

Direito e DemocraciaDireitoCanoas
e Democracia,
v.11 v.11,n.1
n.1, jan./jun. 2010
p.43-60 jan./jun. 2010 43
1 INTRODUÇÃO
Desde sua positivação,2 enquanto direito fundamental no Brasil até o presente
momento, pode-se dizer que o direito à saúde passou por várias fases, típicas de sua
jovialidade. Não se pode categorizá-las. Contudo, em função dos debates que seguiram
à sua inclusão no texto constitucional, várias discussões/dúvidas foram resolvidas pelos
Tribunais.
Paradoxalmente, o fato de os Tribunais terem atuado no sentido da preservação do
direito à saúde, ao mesmo tempo em que contribuiu para sua maior efetividade, trouxe
à tona um discurso de que essa mesma “judicialização da saúde” torna, hoje, inviável a
atuação judicial sob pena de ruptura do Sistema Único de Saúde. Mostra da relevância
dessa discussão foi a realização da Audiência Pública, promovida pelo Supremo Tribunal
Federal,3 sobre a temática. A lista dos assuntos debatidos4 girou em torno da legitimidade
da atuação dos magistrados (e de seus limites) na busca da efetivação da saúde por
intermédio do Direito.
Sob o argumento irrefutável de que os direitos sociais necessitam de aportes
nanceiros, a teoria da reserva do possível no direito à saúde assumiu grande espaço
nos debates jurídicos. O propósito do presente artigo centra-se na análise das falácias
construídas para desquali car a necessária intervenção do Judiciário – quando provocado
– na proteção do direito fundamental à saúde.5

2 O USO DAS FALÁCIAS NOS ARGUMENTOS


(JURÍDICOS) E A DISTORÇÃO DA REALIDADE
O Direito pode ser entendido a partir de vários enfoques. Dentro da delimitação
objetivada, opta-se por analisar o papel da construção dos argumentos e suas consequências
na (re)construção de uma “realidade” especí ca: o direito à saúde e sua necessária conexão
com a nitude de recursos.

2
Para uma análise da evolução histórica da positivação do direito à saúde em solo pátrio, veja-se SCHWARTZ,
Germano. Direito à Saúde : efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001,
p.40 e seguintes.
3
“A Audiência Pública, convocada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Gilmar Mendes,
ouviu 50 especialistas, entre advogados, defensores públicos, promotores e procuradores de justiça, magistrados,
professores, médicos, técnicos de saúde, gestores e usuários do sistema único de saúde, nos dias 27, 28 e 29 de
abril, e 4, 6 e 7 de maio de 2009”. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processo
AudienciaPublicaSaude. Acessado em 09 de maio de 2009.
4
Foram debatidos, entre outros, os seguintes pontos: (a) Responsabilidade dos entes da federação em matéria
de direito à saúde; (b) Obrigação de o Estado fornecer prestação de saúde prescrita por médico não pertencente
ao quadro do SUS ou sem que o pedido tenha sido feito previamente à Administração Pública; (c) Obrigação de o
Estado custear prestações de saúde não abrangidas pelas políticas públicas existentes; (d) Obrigação de o Estado
disponibilizar medicamentos ou tratamentos experimentais não registrados na ANVISA ou não aconselhados pelos
Protocolos Clínicos do SUS; (e) Obrigação de o Estado fornecer medicamento não licitado e não previsto nas listas
do SUS; (f) Fraudes ao Sistema Único de Saúde. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?se
rvico=processoAudienciaPublicaSaude&pagina=perguntas. Acessado em 30 de maio de 2009.
5
Sobre a saúde enquanto direito fundamental, veja- se a obra de FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito
Fundamental à saúde: parâmetros para sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

44 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


É fato que, após longo período de naturalismo e empirismo absoluto no Direito,
o estudo da argumentação vem tomando destaque6 com a abertura hermenêutica. A
argumentação torna-se necessária ao operador do Direito. A simples aplicação da norma
jurídica não satisfaz às expectativas normativas da sociedade.
A retórica tem como escopo o convencimento do interlocutor. Destarte, desde a
antiguidade reconhece-se que a argumentatio é a parte mais importante da arte retórica,
pois se destina a produzir credibilidade dos pontos de vista arrolados.7
Nessa linha de raciocínio, argumentar é a técnica (ou arte) em que se busca
persuadir por intermédio do discurso, que, por seu turno, pode ser de nido em três
elementos: o locutor (a pessoa que fala), o interlocutor (ouvinte) e o assunto que se
fala. Também pode ser dividido em três tipos: deliberativo, judiciário e demonstrativo.
Embora apresentem peculiaridades diversas, por serem destinadas a públicos diferentes,
essas três espécies de discurso têm como objetivo principal o ato de convencer, ou seja,
de levar o ouvinte a crer no discurso proferido.
Há, ainda, correntes que a rmam: o argumento possui uma função maior que
apenas convencer. Seu real objetivo é levar o ouvinte a agir de acordo com o que lhe foi
articulado. Esse entendimento é possível em alguns casos, principalmente no Judiciário.
Ali os argumentos servem de instrumento para a decisão do juiz. Entretanto, Rodriguez8
ensina que há uma diferença relevante entre o crer e o agir a partir do discurso. É o
exemplo do fumante. Mesmo convencido dos males do cigarro, segue com o hábito,
visto que existem fatores externos (como a dependência química) que lhe fazem seguir
com o uso do tabaco.
É necessário fazer algumas considerações entre o argumento e a verdade. Não se
pode comparar o Direito a uma ciência exata. Na Matemática, por exemplo, é possível
apenas um resultado verdadeiro para um determinado cálculo. A ciência jurídica não
comporta a código verdadeiro/falso. Essa binariedade advém do sistema da ciência.9
O Direito opera, como quer Luhmann,10 sob o código Recht/Unrecht. Isso signi ca,
de antemão, que os problemas de direito à saúde, necessariamente, dentro do Poder
Judiciário, devem ser decididos com base nos critérios de decisão do Direito.11
Rodriguez12 exempli ca a questão com um fato ocorrido em um plenário do
Judiciário. Naquele local, o promotor exibia uma prova (um laudo da polícia técnica).

6
A Teoria da Argumentação Jurídica é especialmente profícua. Dentre vários autores, reporte-se, especialmente,
ante sua grande repercussão no Direito, à obra de ALEXY, Robert. Teoria de la Argumentacion Juridica. trad.
Manuel Atienza e Isabel Espejo, Centro de estudos Consticionales, Madrid, 1989
7
FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2001. p.318.
8
RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel. Argumentação jurídica: técnicas de persuasão e lógica informal. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p.24.
9
LUHMANN, Niklas. La Ciencia de La Sociedad. Mexico : Iberoamericana, 1996, p.125.
10
LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellshalt. Frankfurt: Suhrkamp, 1997, p.165-170.
11
SCHWARTZ, Germano. O Tratamento Jurídico do Risco no Direito à Saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2004,p.186-187.
12
RODRÍGUEZ, Argumentação jurídica, 2005. p.21

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 45


Ela demonstrava a existência de 99% de chances da culpa do réu. Então o defensor, em
tréplica, pergunta aos presentes se eles comeriam uma bala de hortelã retirada de um pacote
com outras cem, sabendo que dentre elas apenas uma continha um veneno letal. Nesse
caso, pode-se perceber que não existe verdade absoluta. Ambos têm parcelas de verdade/
observação. Existe um concurso de argumentos. Predomina o mais convincente.
É por isso que existem argumentos capazes de convencer embasados em premissas
falsas. Desde os tempos de Aristóteles, estudiosos têm encontrado argumentos persuasivos
que levam o interlocutor a conclusões falsas. São as falácias. Mauri Hartmann, a propósito,
conceitua-as da seguinte forma

[...] Não há unidade de signi cação do termo “falácia”. É comum usá-lo no sentido
de crença, opinião ou juízo falso. [...] Há argumentos que são agrantemente
incorretos e que não têm poder persuasivo algum. Porém, existem outros, de igual
forma incorretos, que podem convencer quando não avaliados com a perspicácia
lógica. Estes últimos são convencionalmente chamados de falácias.13

Uma das características do argumento é conter premissas verossímeis. A falácia,


ou seja, a falha do argumento, ocorre com a quebra da verossimilhança. Nesse sentido,
o uso de falácias no Direito tem a característica de afastar o ouvinte de uma conclusão.
Desse modo, não é difícil perceber que as falácias, quando utilizadas, podem levar a
conclusões (decisões) indevidas, que são produzidas e se reproduzem com base em uma
distorção da realidade.
É correto que o Direito não comporta o código binário verdadeiro ou falso. Todavia,
quando há teses concorrentes, a que se fundamenta em uma falácia resta desconectada de
seu suporte fático. Assim, o argumento falacioso assume vantagem sobre os outros pela
desnecessidade de possuir premissas verdadeiras. A falácia seduz o interlocutor desatento
com um argumento que não corresponde à verdade. Faz com que esse ouvinte, quando
Juiz, tome decisões incompatíveis com o entorno (Unrecht), quebrando a necessidade
de uma unidade distintiva entre Direito e Não-Direito.
Defende-se, aqui, que uma falácia atualmente utilizada no direito à saúde é a
denominada teoria da reserva do possível. Diz-se isso porque, da forma como ela vem
sendo discutida no sistema jurídico, ca revestida de uma falsa lógica. Daí, portanto, o
fato de que sua operatividade exige atenção do operador do Direito.

3 OS PRESSUPOSTOS DA TEORIA DA RESERVA


DO POSSÍVEL
Com o m da ditadura militar, o Brasil iniciou a redemocratização. Como uma das
etapas da instalação da democracia, instalou-se Assembleia Constituinte que resultou

AZEREDO, Vânia Dutra de (coord.); PIOVESAN, Américo; SARTORI, Carlos Augusto; Hartmann, Mauri; TILLET,
13

Paulo Cezar. Introdução à lógica. Ijuí: Unijuí, 2000. p.197.

46 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


na Constituição Federal de 1988, acolhedora de vários e novos direitos individuais e
coletivos. Visando a dar maior efetividade ao texto constitucional, o constituinte incumbiu
ao Poder Judiciário a função de atuar, sempre que provocado, quando existir lesão ou
ameaça de lesão a tais direitos.
Inegavelmente, os direitos sociais que a Constituição Cidadã abarcou geram custos.
Diante dessa situação, passados mais de 20 anos da promulgação da Carta Magna,
a reserva do possível vem ganhando destaque e protagonizando um debate bastante
especí co na inovação da saúde enquanto direito fundamental consagrado pelo artigo
196 da Constituição Federal de 1988.
Segundo a teoria da reserva do possível, a satisfação dos direitos, especialmente
os sociais, está relacionada com as possibilidades econômicas do Estado, tornando-se,
assim, um limite para a efetividade dos direitos fundamentais prestacionais. O argumento
é empregado no sentido de que o custo de determinados direitos supera os valores
disponíveis pelo Erário.
A reserva do possível ganha fôlego com a tese da escassez de recursos.14 O argumento
a rma, em abreviado, que, enquanto as necessidades a serem satisfeitas são ilimitadas,
os recursos – orçamentários – são nitos. São necessários critérios para efetivação dos
direitos sociais. O Estado não tem como garantir “tudo a todos”.
Esses argumentos não são novos. Já constavam do texto de decisões judiciais, no
mínimo, desde 1998

O direito à saúde previsto nos dispositivos constitucionais citados pelo


agravante, arts. 196 e 227 da CF/88, apenas são garantidos pelo Estado, de forma
indiscriminada, quando se determina a vacinação em massa contra certa doença,
quando se isola uma determinada área onde apareceu uma certa epidemia, para
evitar a sua propagação, quando se inspecionam alimentos e remédios que serão
distribuídos à população, etc., mas que quando um determinado mal atinge uma
pessoa em particular, caracterizando-se, como no caso, num mal congênito a
demandar tratamento médico-hospitalar e até transplante de órgão, não mais
se pode exigir do Estado, de forma gratuita, o custeio da terapia, mas dentro do
sistema previdenciário.15

No julgado citado, percebe-se uma limitação da saúde em razão dos recursos


nanceiros do Estado. Segundo o Relator, a preocupação do Estado deve estar centralizada
apenas no que tange à proteção da saúde coletiva, obtida por meio de políticas públicas.
Nesse entendimento a “judicialização da saúde” para casos particulares deveria ser
afastada.

14
AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez e Escolha. Em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de
recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro : Renovar, 2001.
15
Agravo de Instrumento 48. 608-5/4, julgado em 11.02.1998, unânime. TJSP, 9ª Câmara de Direito Público, Des.
Rui Cascaldi. Disponivel em: http://esaj.tj.sp.gov.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=1280378

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 47


Veri ca-se, pois, que o grande pressuposto da teoria da reserva do possível
no direito à saúde é a alegação de que o Estado não possui recursos para fornecer
determinada prestação positiva, em razão de um cenário de escassez. Dentro desse
quadro, cabe a ele, o Estado, tentar fazer o máximo possível em um ambiente de
impossibilidades fáticas.

3.1 A origem alemã da teoria


É importante contextualizar as raízes do argumento utilizado pelos Tribunais
brasileiros. Ele veio de uma realidade diferente em um contexto específico e
bastante próprio. A partir da década de 1950, a busca por cursos superiores cresceu
exponencialmente na Alemanha, fazendo com que o Estado Alemão, que até então
garantia acesso universal às universidades públicas, adotasse uma série de medidas para
restringir o acesso às academias.
Uma das políticas implantadas pela República Alemã, em 1960, foi a denominada
Numerus Clausus. Ela limitava o número de vagas em determinados cursos superiores
como Medicina, Direito e Farmácia. Insatisfeitos, os estudantes que não lograram acesso
a algumas faculdades de Medicina, ajuizaram ação contra o Estado, sustentando que a
medida violava o artigo 12 da lei Fundamental Alemã,16 que protegia a livre escolha da
pro ssão, local de trabalho e centro de formação.
ACorte Constitucional da República Federativa daAlemanha (Bundesverfassungsgericht)
estabeleceu que as prestações exigidas do Estado pelos particulares estão condicionadas à
razoabilidade, ou seja, aquilo que o indivíduo pode razoavelmente esperar da sociedade.
O ato sentencial con rmou que não era possível disponibilizar um número ilimitado de
vagas nas Universidades, visto que ultrapassava os limites do possível obrigar o Estado
a uma prestação acima do exigível.
Segundo Leivas,17 dois direitos podem ser identi cados no decisum: o direito prima
facie, de exigir o direito subjetivo ao ingresso; e o direito de requerer um aumento geral
da capacidade das faculdades. Segundo o autor, a reserva do possível só desobrigou o
Estado do primeiro direito, e não de todas as suas obrigações prestacionais.
Diante do exposto, pode-se asseverar que a teoria da restrição orçamentária aplicada
no direito subjetivo brasileiro à saúde é uma adaptação da jurisprudência Constitucional
Alemã (Der Vorbehalt des Möglichen), que, em julgamento (BverfGE nº 33, S. 333.)
do numerus clausus I, reconheceu a reserva do possível quanto ao direito prima facie
supracitado.
Desde já, é possível perceber as diferenças entre o introito e o cabo da aplicação
da reserva do possível. Originalmente aplicada ao direito à educação – de nível

16
Artigo 12, alínea I: “Todos os alemães têm direito a escolher livremente sua profissão, local de trabalho e seu
centro de formação. O exercício profissional por ser regulado pela lei ou com fundamento em uma lei.”
17
LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2006, p.98.

48 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


superior – em um país de primeiro mundo, é, atualmente, utilizada no direito à saúde
de um país periférico. Dessa maneira, resta a pergunta: é possível tal “transplante”
da teoria sem o uso de falácias?

3.2 Custos dos direitos sociais e a finitude dos recursos


Como a rmado anteriormente, a Constituição Federal de 1988 elencou diversos
direitos. Dentre eles, arrolou os direitos fundamentais sociais, inclusive, reconhecendo,
pela primeira vez, o direito à saúde.18 Tais direitos foram integrados no capítulo II, do
Título II da Carta Política.
A simples inserção da regra da saúde como direito de todos e dever do Estado não
resolveu o problema da saúde no Brasil. Trouxe várias incertezas aos operadores do
Direito, desacostumados com a novidade. Assim, por determinado período, prevaleceu
o entendimento perante os Tribunais de que a saúde na Constituição Federal se tratava
de mera norma programática, ou seja, que seu conteúdo apenas expressava um valor a
ser buscado por toda a coletividade, sem possibilidade de modi cação do status quo
mediante intervenção do Poder Judiciário.
Entretanto, o direito à saúde é direito fundamental e, assim sendo, possui
aplicabilidade imediata.19 Isso signi ca que a saúde pode ser entendida também como
direito subjetivo, capaz de ser pleiteada no Judiciário. No Brasil, o artigo 5º, §1º, da
Constituição Federal, é o dispositivo que garante a imediata aplicabilidade dos direitos
fundamentais. Esse é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal:

PACIENTE COM HIV/AIDS – PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS


FINANCEIROS – DIREITO À VIDA E À SAÚDE – FORNECIMENTO
GRATUITO DE MEDICAMENTOS – DEVER CONSTITUCIONAL DO
PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) – PRECEDENTES (STF) –
RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA
CONSEQUÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO
À VIDA. – O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica
indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição
da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por
cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem
incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que
visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso
universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. – O direito
à saúde – além de quali car-se como direito fundamental que assiste a todas as
pessoas – representa consequência constitucional indissociável do direito à vida.
O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano
da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema

18
SCHWARTZ, Direito à Saúde..., 2001, p.40 e seguintes.
19
Para análise mais completa do assunto, veja-se SCHWARTZ, Germano. O tratamento Jurídico... p.129.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 49


da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão,
em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA
PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ- LA EM PROMESSA
CONSTITUCIONAL INCONSEQUENTE. – O caráter programático da regra
inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes
políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado
brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente,
sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela
coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável
dever, por um gesto irresponsável de in delidade governamental ao que determina
a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE
MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES. – O reconhecimento judicial
da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a
pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade
a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e
representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à
vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a
não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade.20

O acórdão, paradigmático, é muito criticado por ter sido a porta aberta para a
“judicialização” sanitária. Gize-se, todavia, que essa não é uma característica exclusiva do
Direito brasileiro. O direito à saúde está presente na maioria dos ordenamentos jurídicos.
O problema não reside, portanto, na positivação ou na possibilidade de o Poder Judiciário
colaborar na efetivação ao direito à saúde. Ele repousa no uso das falácias.
Nessa linha de raciocínio, concorda-se com Barreto,21 quando ele a rma existirem
três falácias políticas22 sobre os direitos humanos (saúde)23 e sociais, que, conjugadas
com o que denominou de falácias teóricas, acabam por excluir os direitos sociais dos
direitos fundamentais.
Essas falácias, em síntese, são argumentos que fazem os direitos sociais perderem
sua característica de “valores supremos da ordem constitucional”. Dentre as falácias

20
RE 271286 AgR / RS – RIO GRANDE DO SUL. AG. REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator Min.
CELSO DE MELLO. Julgamento em 12/09/2000. Segunda Turma. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/
jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=REAgR.SCLA.%20E%20271286.NUME.&base=baseAcordaos
21
BARRETO, Paulo Vicente. Reflexões sobre os direitos Sociais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org). Direitos
fundamentais sociais: estudos de direito constitucional, Internacional e Comparado. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003.
22
As falácias políticas apontadas por Barreto são: (a)“os direitos sociais são direitos de segunda ordem”;
(b)“os direitos sociais dependem de uma economia forte”; (c) “o custo dos direitos sociais supera os recursos
orçamentários”.
23
Como direito humano, a saúde está expressa no artigo 25 da Declaração dos Direitos do Homem: “Todo o
homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, (...) em
caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência em
circunstâncias fora de seu controle”. O conteúdo da declaração internacional levou o Brasil, bem como diversos
outros países, a adotar a matéria no texto constitucional como uma obrigação do Estado, conforme preceitua artigo
196 da Constituição Federal, nos seguintes termos: “A saúde é direito de todos e dever do Estado”. Na mesma
senda, o artigo 2º da Lei n.º 8.080/90, dispõe que “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o
Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”.

50 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


políticas evidenciadas pelo autor, encontra-se o argumento de que “o custo dos direitos
sociais supera os recursos orçamentários”. Tal falácia trata exatamente da reserva do
possível

[...] Outro argumento falacioso refere-se ao custo dos direitos sociais. Chamada,
também, da falácia da “reserva do possível”, representa um argumento
preponderante no projeto neoliberal contemporâneo. Vestida de uma ilusória
racionalidade, que caracteriza a “reserva do possível” como limite factico à
efetivação dos direitos sociais prestacionais, esse argumento ignora em que medida
o custo é consubstancial a todos os direitos fundamentais.24

A partir da crítica de Barreto, pode-se perceber que a reserva do possível ataca


apenas os direitos de segunda geração, embora os direitos civis e políticos – de primeira
geração – também gerem custos. Nesse contexto, é possível concluir que a reserva do
possível limita apenas os direitos que exigem prestações positivas por parte do Estado, e
não a todos que causem custos, mostrando-se, preliminarmente, falaciosa.
A saúde, como direito social subjetivo, também gera gastos. Logo, está limitada
pela reserva do possível. Convém, nesse ponto, elaborar um questionamento quanto à
aplicação de um fator restritivo no direito à saúde: até que ponto o Estado pode-se omitir
diante de um direito ligado à vida e à integridade do ser humano? Fazendo isso ele não
deixaria de cumprir sua função original (ser um Estado Democrático de Direito)?

4 A FALÁCIA DA RESERVA DO POSSÍVEL NO DIREITO


À SAÚDE
A saúde está abraçada aos bens mais importantes do ser humano: a vida, a integridade
física e a dignidade. Por se tratarem dos bens máximos do homem, acabaram tornando-se
os valores supremos do ordenamento jurídico brasileiro. Portanto, é dúbia a priorização
da economia quando tais valores estão em risco. Procura-se, agora, a partir da teoria dos
sistemas sociais autopoiéticos, evidenciar e atacar as falácias mais comuns que pretendem
garantir a manutenção da grande falácia, a própria reserva do possível.25
A partir da teoria dos sistemas sociais autopoiéticos, a sociedade pós-moderna e
hipercomplexa pode ser representada por um grande sistema social que engloba diversos
subsistemas. Cada sistema busca reduzir a complexidade do ambiente, diferenciando um
dos outros por meio de sua distinção entre unidade e entorno. Com isso, há diferenciação
funcional e se torna possível a autopoiese.

24
BARRETO, Reflexões sobre os direitos Sociais... p.120-121.
25
Há uma grande falácia: a própria teoria da reserva do possível. Com ela, reproduzem-se falácias menores.
Revestem a primeira de uma falsa lógica. Esses “pequenos” argumentos falaciosos garantem a existência e a
reprodução da teoria. Caso fossem percebidos, a reserva do possível seria refutada do sistema jurídico.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 51


Cada sistema autopoiético é fechado, e, em sua membrana, está localizado o código
– clausura operativa – e os mecanismos que buscam reduzir a complexidade do entorno.
Ocorre que os sistemas sociais, ao mesmo tempo, são abertos, pois há uma abertura
cognitiva por meio da qual ocorre a comunicação entre os sistemas.
Assim, pode-se a rmar que os sistemas sociais são abertos, pois se comunicam e
dão sentido aos ruídos provenientes do exterior do sistema, contudo, simultaneamente,
são fechados, pois o sentido dado a tal interação é fornecido por operação própria de cada
sistema. São cognitivamente abertos e operativamente fechados.
A autopoiese de cada sistema constitui-se na capacidade de o sistema auto(re)
produzir sua estrutura e seus elementos do interior, motivado pela comunicação do exterior.
Assim, a autopoiese só é possível quando a comunicação penetra no sistema pela abertura
cognitiva e, uma vez no interior, o sistema opera com base nos mecanismos e no código
que cada sistema (re)produz, trabalhando em um ciclo constante.
Nessa ótica, na reserva do possível, veri ca-se a interação entre três sistemas
autopoiéticos: o sistema jurídico, o sistema econômico e o sistema sanitário. O Direito
funciona sob o código Recht/Unrecht, ou seja, preocupa-se em de nir aquilo que é Direito
e o que não é Direito. O sistema jurídico recebe a comunicação proveniente dos outros
sistemas. Atua, no entanto, com suas estruturas (Lei, Poder Judiciário), baseando-se em
suas operações internas (jurisprudência, comunicações, discursos jurídicos.) a m de
fornecer uma decisão que será o Direito de uma parte e, paradoxalmente, o Não-Direito
de outra.
A decisão é o elemento básico do sistema jurídico, distinguindo o Direito dos
demais sistemas e garantindo a autopoiese do sistema jurídico. A decisão só é possível a
partir dos ruídos do entorno, da comunicação dada pela abertura cognitiva, que traz tudo
o que deve ser decidido, e que somente é decidido com base em uma operação jurídica
interna. Dessa forma, as questões do Direito são resolvidas/decididas com fundamento
na operatividade interna do sistema jurídico.
No sistema econômico, a clausura operativa é o Pagamento/Não-Pagamento. Os
pagamentos são rápidos e sucessivamente substituídos por outros pagamentos, já que
só existirão pagamentos se houver outros para garantir os mesmos. Para a autopoiese
do sistema econômico, é necessária a abertura cognitiva, con gurada pela necessidade.
O dinheiro – atualmente o crédito também possui a mesma função – é o que torna a
reprodução do sistema econômico viável, visto que factibilza os pagamentos, a m de
satisfazer as necessidades.
Observe-se que a função do sistema econômico não é a satisfação das necessidades,
mas sim a manutenção dos pagamentos. Se fossem satisfeitas todas as necessidades, o
sistema econômico (entendido como sistema de pagamentos) restaria extinto.
O direito à saúde surge do acoplamento estrutural entre o sistema jurídico e sanitário.
Quando a Saúde integra o conteúdo das normas do Direito, nasce o direito à saúde, que
deve decidir com a mesma operatividade do interior do Direito, devendo atuar sob o
mesmo código, o Recht/Unrecht.

52 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


Logo, a questão da escassez de recursos pertence ao sistema econômico, enquanto
o direito à saúde, que surge da criação de normas que regulam a saúde, deve ser decidido
com base na lógica do sistema jurídico. Essa é a dedução possível por intermédio da teoria
dos sistemas sociais autopoiéticos,26 reforçando o caráter falacioso da teoria da reserva
do possível aplicável ao direito à saúde no Brasil. Há outras.

4.1 Há falta de recursos?


Quando se busca uma prestação sanitária pela via judicial, no Brasil, o argumento
da reserva do possível é empregado pelo Poder Público como forma de se desobrigar de
fornecer acesso à saúde. Esse aspecto rotineiro por si só já gera dúvidas quanto à validade
do argumento, pois leva a duas conclusões possíveis: o Estado não tem dinheiro para
nenhuma prestação – mesmo aquelas de menor custo – ou que a falta de recursos é mero
instrumento de retórica a m de exonerar o Estado de um dever constitucional.
Em que pese o Direito não ter a lógica de uma ciência exata, a ciência jurídica
utiliza-se de um método especi co relativo à sua operatividade sistêmica: a prova e a
fundamentação. Ocorre que, do modo como vem sendo arguida, carecem as provas da falta
de recursos orçamentários. Na mesma esteira, o Julgador tem que motivar sua decisão,
fundamentar, sendo imprescindível que reconheça a escassez de recursos concretamente
para cogitar a hipótese da aplicação da reserva do possível. E, aos que entendem que falta
de recursos é fato incontroverso no Brasil, Sarlet averba que:

[...] Há estudos atuais comprovando, categoricamente, que a união não gasta em


nenhuma rubrica orçamentária aquilo que foi disponibilizado pelo orçamento,
inclusive na área da saúde. Há provas cabais de Estados que não investem naquilo
que foi imposto pela união no direito à saúde.27

O nanciamento do setor público de saúde é, em sua maior parte, composto pela


receita gerada por impostos e por contribuições sociais. O Brasil possui uma carga
tributária elevada, chegando, em 2008, a 35,8% do Produto Interno Bruto Brasileiro.
Contudo, relembra-se de que o Brasil não possui sistema de saúde de Primeiro Mundo,
conforme demonstra a 125º (centésima vigésima quinta)28 posição no ranking mundial
de saúde da Organização Mundial de Saúde de 2000, em um total de 193 países. Nesse

26
Para maiores detalhamentos sobre os a teoria dos sistemas autopoiéticos no Direito, consulte-se ROCHA,
Leonel Severo; SCHWARTZ, Germano; JEAN, Clan. Instrodução à Teoria do Sistema Autopoiético do Direito.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. Para uma análise especifica da aplicação da teoria dos sistemas no
direito à saúde veja-se SCHWARTZ, O Tratamento Jurídico do Risco no Direito à Saúde, 2004.
27
Fala do especialista Dr. Ingo Sarlet, no discurso realizado em 27 de abril de 2009, contribuindo para a
audiência pública de saúde promovida pelo STF. Disponível para download na íntegra em: http://www.stf.jus.
br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaSaude&pagina=Cronograma. Acessado em 30
de maio de 2009.
28
SCHWARTZ, Direito à Saúde..., 2001, p.60 e seguintes.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 53


ranking, como na comparação de muitos critérios sociais, o Brasil ca atrás da maioria
dos países da América do Sul.
Embora a carência do setor social, a economia segue em caminho inverso, pois a
economia brasileira está entre as dez maiores do mundo, alcançando um PIB de quase
um trilhão de reais. Ademais, o Brasil apresenta hoje a mais forte economia sulamericana.
Assim, muito embora tenha uma economia em ascensão, a transferência de recurso ao
setor social (sanitário) segue em baixa.
Muito se diz sobre os investimentos do setor público de saúde e, do modo como se
argumenta, a saúde gura no papel de “devorador” dos orçamentos públicos. Entretanto,
ao analisarem-se os dados do Ministério do Planejamento quanto à evolução dos gastos
sociais, veri ca-se que o gasto com a saúde, de 1995 a 2008, cresceu 298%, números
menores que a cultura, que, por seu turno, cresceu 363%, e do que a previdência, o
emprego e o trabalho, que evoluíram mais 400%.
Mais: para o orçamento da saúde, o artigo 55 dos Atos das Disposições
Constitucionais Transitórias obriga que 30% do valor arrecadado pela seguridade social
devem ser destinados ao setor da saúde. Além disso, como parte da seguridade social,
a saúde possui recursos alocados mediante o orçamento das esferas de governo e de
contribuições sociais. Tais contribuições advêm: do empregador – da folha de salários e
de outros rendimentos do trabalho pagos a empregado, mesmo sem vínculo empregatício,
da receita ou faturamentos (COFINS) e do lucro; do trabalhador – e segurados pela
previdência social; da receita de concursos e prognósticos (Loterias); e do importador –
ou de quem a lei a ele equiparar.
Ressalta-se que mesmo com todas as todas as contribuições previstas, os dados atuais
da Organização Mundial da Saúde demonstram que o Brasil está abaixo da média nas
escalas mundial e americana de gasto em saúde em relação ao Produto Interno Bruto.29
Resta a dúvida: o Estado não tem dinheiro ou não repassa devidamente o dinheiro?
Quem deve provar ausência? O Estado, como defende Sarlet: “...O ônus da demonstração,
o ônus da prova da falta de recursos é do poder público; o ônus da necessidade do pedido
é do particular.”30 No entanto, infelizmente, tal prova não é produzida nos processos
judiciais brasileiros.
Como se vê, a ausência da comprovação da ausência de recursos estende ainda
mais a falácia. De qualquer maneira, entende-se que o orçamento, mesmo se (as provas
evidenciam o contrário) escasso, não se equipara à saúde em nível de importância, não
podendo interferir na operatividade do Direito.

29
O último informativo da Organização Mundial de Saúde reporta que, em 2006, o gasto com saúde em proporção
ao Produto Interno Bruto no Brasil alcançou 7,5%, enquanto a escala mundial é de 8,7%. A região das Américas
obteve o maior nível de gastos em saúde, correspondente a 12,8% do PIB. Disponível em: http://www.who.int/
whosis/whostat/ES_WHS09_Table7.pdf Acessado em 20 de Maio de 2009.
30
Fala do especialista Dr. Ingo Sarlet, no discurso realizado em 27 de abril de 2009, para a audiência pública de
saúde promovida pelo STF. Disponível para download na íntegra em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.as
p?servico=processoAudienciaPublicaSaude&pagina=Cronograma

54 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


4.2 É possível “transplantar” a realidade alemã ao Brasil?
A reserva do possível, como já mencionado, é fruto da jurisprudência Constitucional
da Alemanha. No entanto, insta frisar que existem diferenças entre as realidades brasileira
e alemã, que impossibilitam a aplicação da reserva do possível em terras Tupiniquins.
Salienta-se que o “transplante” de uma tese originalmente criada em outro país
precisa ser “compatível” com a realidade do local adotante. Nesse sentido, já há crítica
bem estruturada quanto aos riscos da aplicação de teorias estrangeiras no Brasil a partir
do Direito Comparado, que foi desenvolvida, paradoxalmente, por Krell,31 um professor
alemão radicado no Brasil. Veja-se a lição do autor

[...] A interpretação dos direitos sociais não é questão de “lógica jurídica”, mas
de consciência social de um sistema jurídico como um todo. É questionável a
transferência de teorias jurídicas que foram desenvolvidas em países centrais do
chamado “Primeiro Mundo”, com base em realidades culturais, históricas e, acima
de tudo, socioeconômicas completamente diferentes32

Embora o Direito brasileiro tenha-se espelhado diversas vezes no Direito alemão,


o mesmo não pode ocorrer com os direitos sociais, visto que esses pouco se apresentam
na Lei Fundamental Alemã. Dois são os motivos que zeram com que os Direitos
Fundamentais Sociais não fossem positivados no ordenamento jurídico germânico: o
primeiro está relacionado com à experiência negativa vivenciada com a Constituição
de Weimar, onde, embora positivados, tinham pouca força, sendo cadeirados como de
menor importância; o segundo, e mais importante, foi o equilíbrio entre liberais e social-
democratas presentes no Conselho Constituinte à época, que tornou a Alemanha um
Estado Social sem a positivação de direitos sociais.
Mais importante é referir que na Alemanha – e em demais países centrais –, onde
há um sistema de saúde evoluído, combinado com efetivas políticas de bem-estar-social
e uma sociedade mais igualitária, a presença dos direitos sociais – e do direito à saúde
– na Constituição não se apresenta tão necessária. Sem embargo, Krell a rma que “os
problemas de exclusão social no Brasil de hoje se apresentam numa intensidade tão grave
que não podem ser comparados à situação de países-membros da União Europeia”.33
Ocorre que o Estado Alemão não desenvolveu seus preceitos com base em uma
realidade como a brasileira, de expressiva desigualdade social e na qual signi cativa
parcela da população não possui acesso a condições dignas de vida. No Brasil,
torna-se necessária a possibilidade da “judicialização” dos direitos fundamentais

31
Tal crítica se encontra em: KRELL, Andreas Joaquim. Direitos Sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha:
os (des)caminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2002.
32
KRELL, Andreas Joaquim. Controle judicial das serviços públicos básicos na base dos direitos fundamentais
sociais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). A Constituição Concretizada: construindo pontes com o público e o
privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p.51.
33
Ibidem. p.53.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 55


para que o Poder Judiciário possa auxiliar na sua concretização quando o Executivo
falha ou se omite.
De fato, a mera positivação do direito à saúde não gera garantia de efetividade.
Contudo, segue-se aqui o mesmo entendimento de Luhmann.34 Um direito humano só é
reconhecido através do seu descumprimento. A publicização da sua inefetividade gera
a a rmação futura do direito. É necessária a inscrição dos direitos humanos na Carta
Politica, ainda que eventualmente – no Brasil o melhor termo seria “frequentemente”–
sejam violados, pois tal ato enseja em uma busca por seu cumprimento no futuro. Em
países periféricos como o Brasil, é fato que ocorre maior descumprimento dos direitos
humanos, re etindo-se em uma consequente/paradoxal maior busca pela concretização
das garantias.
Ademais, faz-se necessário explanar quanto às diferenças entre as matérias em que
foi utilizada a reserva do possível no Brasil e na Alemanha. Enquanto, no país europeu,
a discussão se deu em torno do acesso à universidades, em solo brasileiro o Judiciário
vem decidindo sobre uma questão muito mais importante: o direito à saúde. Óbvio está
que o grau de importância é mais elevado, precipuamente, em razão da própria da relação
saúde/vida.
Giza-se que o Estado cou obrigado com a saúde, nos moldes do artigo 196 da Carta
Política. Quando o Poder Público ca omisso, a ponto de ensejar a morte dos titulares do
direito à saúde, manifesta-se uma situação em completo descompasso com o ordenamento
jurídico brasileiro, vedador da pena capital. Mesmo nos casos em que não leve à morte,
a não-concretização do direito à saúde gera sofrimento e dor.

4.3 Há orçamentos acima do direito à saúde?


A existência do argumento da reserva do possível depende, sobremaneira, de um
sistema social extrajurídico, a Economia. Embora as decisões de alocação de recursos
para saúde pertençam ao sistema político, o cenário de escassez ( nanceira) que pressiona
o direito à saúde (decisões sobre a saúde) advém do sistema econômico. Surgem, assim,
duas possíbilidades: o Direito pode ceder ou refutar a pressão do sistema econômico.
O movimento Law and Economics possui autores que a rmam a necessidade
de as questões do sistema jurídico serem decididas com base na Economia. Nessa
ótica, a reserva do possível prospera no sistema jurídico, limitando até os direitos mais
fundamentais do homem, como a saúde. Assim, o Direito cede à pressão proveniente do
sistema econômico. Timm sintetiza

[...] em primeiro lugar, porque a Economia é a ciência que descreve de maneira


super cientemente o comportamento dos seres humanos em interação no mercado,

LUHMANN. O Paradoxo dos Direitos Humanos e Três Formas de seu Desdobramentos. Traduzido por Ricardo
34

Henrique Arruda de Paula e Paulo Antônio de Menezes Albuquerque. Themis, Fortaleza, v.3, n.1, 2000. p.158.

56 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


que é tão importante para a vida real em sociedade. Em segundo lugar, porque a
Economia é uma ciência comportamental que atingiu respeitável e considerável
padrão cienti co, sendo hoje uma das grandes estrelas dentre as ciências sociais
aplicadas pelo grau de comprovação matemático e econométrico dos seus modelos.
Em terceiro lugar, a Ciência Econômica preocupa-se com a e ciência no manejo
dos recurso sociais escassos para atender ilimitadas necessidades humanas – que
é um problema-chave quando se falam de direitos sociais ou mais genericamente
fundamentais.35

Permite-se discordar do entendimento rmado por Timm, quanto aos motivos


apresentados para atar a Economia ao Direito. Em que pese a onipresença e a importância
do mercado, entende-se, em uma perspectiva sistêmica, que a lógica do sistema econômico
não pode interferir no sistema jurídico.
Diz-se isso porque cada sistema social deve manter a sua autopoiese. A autopoiese
da Economia não pode ser a do Direito! A operatividade interna do Direito não é a mesma
da Economia. O Direito deve decidir com base no Direito, devendo refutar a pressão
econômica em suas decisões. Eis a impossibilidade da aplicação da reserva do possível
através de uma observação autopoiética: a escassez é o ruido do sistema econômico
dado pela abertura cognitiva. O Direito deve rechaçar tal ruído para proteger a saúde e
a vida.
Contra a lógica autopoiética apresentada, mas seguindo a linha dos defensores do
Law and Economics, Amaral36 defende que o direito à saúde deve considerar os custos
ao fazer suas decisões. Sua proposta é que sejam feitas “decisões trágicas”, a m de
maximizar os benefícios a um grande grupo de pessoas, enquanto parcela menor (cujas
assistências demandam mais recursos nanceiros) deixariam de ser amparadas pelo
direito à saúde.
A fórmula apresentada pelo doutrinador é simplista: se os recursos – nanceiros –
são escassos, ou seja, se com eles não é possível satisfazer a todos, o Estado deve xar
critérios para atender a um maior número de pessoas com o valor que seria gasto por
poucos, admitindo que os que necessitam de tratamentos de alto custo são a minoria.
Para essa minoria apontada as decisões tornar-se-iam trágicas.
Entretanto, pode-se demonstrar a falácia do argumento com uma situação hipotética:
se o tratamento de uma pessoa alcançar o mesmo custo que o tratamento de dez pessoas,
a quem o Estado deve fornecer assistência? A todos em função dos princípios da
integralidade37 e igualdade do sistema de saúde brasileiro.

35
TIMM, Luciano Benetetti. Qual a maneira mais eficiente de prover direitos fundamentais: uma perspectiva de
direito e economia. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.); TIMM, Luciano Benetetti (org.). Direitos Fundamentais:
orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p.55-68.
36
AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez e Escolha. Em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de
recursos e as decisões trágicas. de Janeiro: Renovar, 2001, p.141-142.
37
O princípio está expresso no artigo 198, inciso II, da Constituição Federal e no artigo 7º, inciso II, da Lei
8.080/90.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 57


Ademais, o cidadão não pode perder a tutela do direito à saúde apenas pela má
sorte de possuir uma doença cujo tratamento é mais caro que a média. Nesse contexto,
pode-se extrair da Carta Magna a ideia da “assistência aos desamparados”. Ela, contudo,
em nenhum momento, utiliza a tese do “abandono dos mais desamparados”. Mas e se
os recursos são insu cientes? Krell responde à questão a rmando que “se os recursos
não são su cientes, deve-se retirá-los de outras áreas (transporte, fomento econômico,
serviço de dívida) onde sua aplicação não está tão intimamente ligada aos direitos mais
essenciais do homem: sua vida, integridade física e saúde.38
Resumindo: a economia não pode ser tratada como hierarquicamente superior à
saúde, modi cando e in uenciando as decisões do Direito. O direito fundamental deve
suplantar a lógica econômica, não por razões falaciosas e sim porque tal é a operatividade
própria do sistema jurídico no Brasil.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A reserva do possível no direito à saúde consiste em uma teoria embasada por
argumentos falaciosos. Não se trata, por si só, de uma falácia una, mas sim, de uma
reunião de argumentos falhos. Procurou-se evidenciar e atacar alguns dos argumentos
menores que sustentam e permitem a reprodução da grande falácia – a própria teoria –
nos Tribunais brasileiros.
A reserva do possível não expressa argumento tão robusto. Partindo da premissa
de que a tese da escassez de recursos é o ponto de partida para a aplicação da reserva do
possível, visto que se não existissem limites (escassez) não seria preciso de nir aquilo
que é possível, há que se admitir a necessidade da comprovação da ausência de recursos
no caso concreto. Essa comprovação é necessária, em razão da instauração da dúvida
quanto aos limites orçamentários do Estado.
Ainda que comprovada a ausência de recursos e, em entendimento divergente do
posicionamento expressado aqui, se permitido o transplante da aplicação da reserva do
possível ao Brasil, a teoria esbarraria em questão maior: a impossibilidade de limitação
do direito à vida e à dignidade da pessoa humana. Ocorre que o cidadão já possui esses
direitos como parte de sua fundamentalidade. O ordenamento jurídico não pode negá-los
sob pena de retrocesso social.
Por m, a partir da análise dos sistemas sociais autopoiéticos, ainda que brevemente,
só há um sistema social se ele possuir uma função única. O Direito deve dizer o que é
Direito e o que não é Direito, e faz isso decidindo com base em seus critérios especí cos.
A economia busca a constante manutenção dos pagamentos. Indevido é, portanto, que o
Direito assuma a função do sistema econômico. Caso isso ocorra, haverá dois sistemas
com a mesma funcionaliade e, com isso, a complexidade do sistema social, ao invés de
diminur, restaria acrescida.

38
KRELL, Andreas J. Direitos Sociais e Controle Judicial..., 2002, p.52-53.

58 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


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60 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


O direito de greve no serviço público
brasileiro
Marcelo Loeblein dos Santos
Rosemari Pedrotti de Ávila

RESUMO
O presente estudo faz uma análise da possibilidade jurídica ou não do direito de greve no
serviço público estatutário brasileiro. Parte-se de uma abordagem histórica, conceitual e da natureza
jurídica desse instituto, bem como da negociação coletiva no serviço público, para posteriormente
adentrar ao aspecto das divergências doutrinárias e jurisprudenciais acerca do tema, mormente face
à inexistência de lei específica que regulamente o art. 37, VII, da Constituição Federal de 1988.
Palavras-chave: Direito de greve. Servidor público. Negociação coletiva.

The right to strike in the Brazilian public service

ABSTRACT
This study is an analysis of legal possibility or not the right to strike in the Brazilian public
service statutory. It starts with a historical, conceptual and legal nature of this institute, and collective
bargaining in public service, later to enter the aspect of doctrinal and jurisprudential divergences,
especially in the absence of specific law to regulate the art. 37, VII, of the Federal Constitution
of 1988.
Keywords: Right to strike. Public servant. Collective bargaining.

1 INTRODUÇÃO
Para estudar algumas questões referentes à greve, são necessárias algumas re exões,
que se pretende trazer à tona ao longo deste artigo. Re exões iniciais como a história
da greve, seu conceito, sua natureza jurídica, a questão das negociações coletivas, para,
posteriormente, enfrentar a temática objeto do estudo, referente à possibilidade jurídica
ou não do direito de greve no setor público estatutário civil, tema bastante discutido no
meio acadêmico, face à inexistência de lei especí ca que regulamente o art. 37, VII, da
Constituição Federal de 1988 – CF/88.
Tal instituto pode ser considerado como uma das mais importantes e complexas
manifestações coletivas produzidas pela sociedade, um fenômeno típico do mundo
moderno, re exo dos desequilíbrios econômicos e da falta de justiça nas relações
laborais.

Marcelo Loeblein dos Santos é Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul. Professor na Faculdade
de Itapiranga/SC. E-mail: marceloloeblein@yahoo.com.br
Rosemari Pedrotti de Ávila é Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul. Professora de Direito do
Trabalho na Faculdade da Serra Gaúcha, RS. E-mail: rose.avila@hotmail.com

Direito e DemocraciaDireitoCanoas v.11 v.11,n.1


e Democracia, p.61-75
n.1, jan./jun. 2010 jan./jun. 2010 61
Nessa linha de ideias, para Ruprecht (1995), a greve é a maneira pela qual a classe
trabalhadora tem se valido para impor suas reivindicações numa sociedade capitalista
que nem sempre atende a suas necessidades. Foi a greve, ao longo de sua evolução, ou
seja, desde a proibição até transformar-se em um direito, a grande propulsora dos avanços
sociais em prol da introdução do Direito do Trabalho.
O vocábulo greve é de origem francesa, segundo Martins (2001a), sendo usado
pela primeira vez em uma praça de Paris, chamada de Place de Grève, onde operários se
reuniam para discutir suas insatisfações com as condições de trabalho e com os baixos
salários. Era também nessa praça que os empregadores buscavam mão de obra, quando
necessário. Naquele local, acumulavam-se gravetos que vinham com as enchentes do rio
Sena, daí surgiu o termo greve, originário de graveto.

2 BREVE HISTÓRICO
No baixo Império Romano, segundo Bezerra Leite (2000), as greves eram
consideradas como um delito, especialmente se organizadas por trabalhadores livres,
sendo objeto de repressão e proibidas as reuniões e a associação de trabalhadores.
No regime das corporações de ofício, antes da Revolução Francesa, os
movimentos dos trabalhadores eram considerados infrações penais graves, segundo
Martins (2001a), mesmo a Lei Le Chapellier, de 1791, proibia toda e qualquer forma
de agrupamento pro ssional que visasse a interesses coletivos. O autor refere ainda
que o Código Penal de Napoleão, de 1810, punia os trabalhadores grevistas com
prisão e multa.
Já na Inglaterra, conforme Martins (2001a), por meio do Combination ACT, de 1799
e 1800, era considerada crime de conspiração contra a Coroa inglesa qualquer coalizão
dos trabalhadores em busca de melhores condições de trabalho e melhores salários. Mas
a partir de 1825, na Inglaterra e de 1864, na França, a coalizão dos trabalhadores deixa
de ser considerada crime, porém a greve ainda continuou sendo tipi cada como um
delito penal.
Na lição de Bezerra Leite (2000), todos estes fatos históricos revelam as origens
dos movimentos coletivos, porém juridicamente não podem ser caracterizados como
greve. Na maioria destes movimentos não havia a estrutura moderna das relações de
trabalho, a nal o sistema social se organizava de forma escravista ou servil. A greve
propriamente dita surge com o trabalho assalariado que decorre da Revolução Industrial.
Assim, Bezerra Leite atribui aos movimentos sindicais dos trabalhadores ingleses o
marco inicial da greve.
No Brasil, a greve era vista inicialmente como um delito, depois como uma liberdade
e posteriormente como um direito do trabalhador. Segundo Bezerra Leite (2000), as
Constituições brasileiras de 1891 a 1934 nada trataram sobre a greve, de tal sorte que
ela se concretizava como um fato social tolerado pelo Estado.

62 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


Mesmo proibida, a primeira grande greve brasileira aconteceu em julho de 1917 e
fez parar a capital paulista; durante um mês a cidade de São Paulo viveu a agitação dos
comitês de greves que, apesar de mostrar uma considerável capacidade de mobilização
do operariado, não serviram para sensibilizar o Estado.
A Constituição de 1937, em seu art. 139, 2º parte, prescrevia a greve e o lokout
como “recursos antissociais, nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os
superiores interesses da produção nacional”. No mesmo sentido, foi criado o Dec. Lei
431, de 18.05.1938, que tipi cou a greve como crime. Bezerra Leite refere ainda que

O Dec. Lei 1.237, de 02.05.39, que instituiu a justiça do trabalho, previa punições
em caso de greve, desde a suspensão e a despedida por justa causa até a pena
de detenção. O código Penal, de 07.12.40 (arts. 200 e 201), considerava crime
a paralisação do trabalho, na hipótese de perturbação da ordem pública ou se o
movimento fosse contrário aos interesses públicos. (2000, p.15)

A Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, promulgada em 1943, estabelecia


uma pena aos trabalhadores grevista, como a rma Martins

Em 1943, ao ser promulgada a CLT, estabelecia-se pena de suspensão ou dispensa


do emprego, perda do cargo do representante pro ssional que estivesse em gozo
de mandato sindical, suspensão pelo prazo de dois a cinco anos do direito de ser
eleito como representante sindical, nos casos de suspensão coletiva do trabalho
sem prévia autorização do tribunal trabalhista (art. 723). O art. 724 da CLT ainda
estabelecia multa para o sindicato que ordenasse a suspensão do serviço, além de
cancelamento do registro da associação ou perda do cargo, se o ato fosse exclusivo
dos administradores do sindicato. (2001a, p.753)

Ainda que considerada como um movimento ilegal, a greve, segundo Ruprecht


(1995), pouco a pouco começou a ser tolerada pelos Estados. O direito natural garantia
ao homem a liberdade de trabalhar ou não. É claro que esta não era a principal causa da
tolerância da greve, mas uma delas, dentre as questões políticas, ideológicas, doutrinárias,
jurisprudenciais, en m, a constante luta dos trabalhadores por melhores condições
sociais.
Percebe-se que a greve emanou repercussões jurídicas e econômicas no mundo do
Direito. Passou a ser tolerada a partir do Dec. Lei 9.070, de 15.03.1946, sendo admitida
nas atividades acessórias, apesar da proibição na Constituição de 1937, continuando
vedada nas atividades consideradas fundamentais.
Em 1946, o direito de greve foi reconhecido em sede constitucional, porém
condicionado ao Dec. Lei 9.070, de 1946, tendo ainda a Constituição de 1946 determinado
que a greve deveria ser regulada por lei ordinária, inclusive quanto a suas restrições.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 63


A lei de greve somente foi promulgada em 1964, através da Lei 4.330, conhecida
por muitos juristas como a lei do delito da greve e não como a lei do direito da greve,
pois colocava mais restrições aos trabalhadores do que direitos.
A Constituição de 1967 por meio de seus arts. 157, § 7º e 158, XXI, assegurou o
direito de greve, não o estendendo aos serviços públicos e atividades essenciais.
Foi com a promulgação da Constituição Federal de 1988 – CF/88 que se consagrou
o amplo direito de greve aos trabalhadores brasileiros, especialmente no art. 9º, que diz

Art. 9º. É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir


sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele
defender.
§ 1º A lei de nirá os serviços e atividades essenciais e disporá sobre o atendimento
das necessidades inadiáveis da comunidade.
§ 2º Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei.

O art. 37, VII da CF/88 estende ainda o direito de greve aos servidores públicos
civis, condicionando à edição de uma lei especí ca, que até os dias atuais não foi editada.
Conforme Bezerra Leite (2000), a Emenda Constitucional nº 19, de 1998 alterou a redação
do inciso, cando assim estabelecido o direito de greve ao servidor público civil: “o direito
de greve será exercido nos termos e nos limites de nidos em lei especí ca”.
Atualmente, vigora a Lei 7.783, de 28 de junho de 1989, que dispõe sobre o exercício
do direito de greve, de ne as atividades essenciais, regula o atendimento das necessidades
inadiáveis da comunidade, e dá outras providências. Entretanto, como refere Martins
(2001b, p.295), a referida lei não trata da ilegalidade da greve e usa o termo abuso de
direito para os casos de inobservância de suas prescrições.
Mais recentemente, com a Emenda Constitucional n.º 45, de 8/12/2004, modi cou-
se a competência de processar e julgar as ações que envolvam o exercício do direito de
greve. Assim, através da reformulação do art. 114 da CF/88, a competência para julgar
tais ações passa a ser da Justiça do Trabalho.

3 CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA DA GREVE


A greve, antes de tudo, deve ser considerada um fato social, pois é estudada também
pela sociologia. Porém, como está sujeita às regulamentações jurídicas, ela precisa ser
estudada pelo direito.
Martins (2001a) diz que o conceito de greve depende da legislação de cada
país, se admite a greve como um direito ou liberdade do trabalhador ou se a proíbe,
tipi cando-a como um delito. Em um conceito amplo, greve pode ser considerada

64 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


como um risco ao qual o trabalhador se sujeita em busca de melhores condições de
trabalho e de salários.
A Lei 7.783/89, em seu art. 2º, conceitua greve como sendo a “ (...) suspensão
coletiva, temporária e pací ca, total ou parcial, de prestação pessoal de serviço a
empregador”.
Percebe-se que se trata de uma suspensão coletiva e não individual do trabalho, ou
seja, a paralisação de apenas um trabalhador não constitui greve, cabendo neste caso a
dispensa por justa causa. Assim, constitui greve quando for um movimento organizado
de forma temporária e não de nitiva, pací co, sendo vedada toda e qualquer forma de
violência às pessoas ou ao patrimônio e, principalmente, uma paralisação parcial ou
coletiva, não individual.
Para Ruprecht (1995, p.732), “a greve tem sido de nida pela doutrina como a
abstenção de trabalhar em certas condições e com determinados ns. Mas, onde não há
sempre acordo é a respeito de todos os fenômenos complexos e diferenciados que se
compreendem sob o nome de greve moderna”.
Dentre os inúmeros conceitos de greve, optou-se pelo de Ruprecht

(...) Consideramos que se deve entender por greve a suspensão de caráter


temporário do trabalho, pactuada e acertada por um grupo organizado de
trabalhadores, com abandono dos locais de trabalho, com o objetivo de fazer
pressão sobre os empregadores, na defesa de seus interesses pro ssionais e
econômicos. (1995, p.738)

Pode-se perceber que a greve atualmente nada mais é do que um direito do


trabalhador, na luta por melhores condições sociais e de trabalho, uma luta pelo
reconhecimento da dignidade do trabalhador.
Sobre a natureza jurídica da greve, como já se pode ver ao longo de sua história, ela
já foi compreendida como delito, como liberdade e como direito. Para Martins (2001a),
a greve pode ser vista como um ato de liberdade, decorrente de uma determinação lícita,
garantida para uma coletividade, a saber

Pode-se analisar a natureza jurídica da greve sob os efeitos que provoca no contrato
de trabalho: suspensão ou interrupção. Há suspensão se não ocorre o pagamento de
salários e nem a contagem do tempo de serviço, e interrupção quando se computa
normalmente o tempo de serviço e há pagamento de salários.
A greve envolve um fato jurídico. Não é uma declaração de vontade, mas um
comportamento do trabalhador. Envolve um direito subjetivo.
A greve é, assim, um direito de coerção visando à solução do con ito coletivo.
(MARTINS, 2001a, p.758)

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 65


Ainda em relação à natureza jurídica da greve, Ruprecht (1995, p.774) a rma que
“a natureza da greve um ato complexo. É evidente que se trata de um direito, mas como
direito se exerce na condição de se cumprirem as formalidades legais, o que faz que seja
um ato jurídico”.
Bezerra Leite (2000), concorda com as ideias de Martins e a rma ainda que a greve
é uma forma que o trabalhador usa para lutar por seus interesses, assumindo assim, um
caráter instrumental, de acordo com o ordenamento jurídico de cada país, sendo um
direito diretamente ligado ao princípio jurídico da igualdade, en m, o que busca é a
igualdade e a liberdade de forma real e efetiva entre os integrantes dos mais diversos
grupos sociais organizados.
Na lição de Martins (2001b), a natureza jurídica da greve pode ainda ser analisada
sob o aspecto dos efeitos que provoca no contrato de trabalho, podendo ser causa de
suspensão, se não ocorre o pagamento de salários e a contagem do tempo de serviço, ou
causa de interrupção, quando há o pagamento de salários e se computa normalmente o
tempo de serviço.
Torna-se ainda necessário fazer uma breve referência à negociação coletiva no
serviço público, já que se relaciona com o direito de greve, e na lição de Martins, “a
negociação coletiva é uma fase antecedente e necessária da greve, ou seja: é uma condição
para o exercício do direito de greve” (2001b, p.298).

4 NEGOCIAÇÃO COLETIVA
No direito do trabalho, as relações coletivas são primordiais, pois possuem um
cunho jurídico em que guram como sujeitos os sindicatos, tanto de trabalhadores como
de empregadores, a m de defender os interesses coletivos e não interesses mediatos e
individuais (GASPAR, 1995).
Segundo Maranhão (1993, p.301), as instituições do direito coletivo do
trabalho são

a) Liberdade de coalizão: fundamento do direito coletivo, traduzindo a possibilidade


jurídica da união em defesa de interesses comuns: o direito de greve é uma
consequência do reconhecimento desta liberdade.
b) Associação pro ssional: signi ca a organização permanente de empregados, ou
de empregadores, em defesa dos interesses das respectivas categorias.
c) Convenção coletiva: o estabelecimento de normas sobre condições de trabalho
pelas próprias categorias a que se destinam.
d) Dissídios coletivos de trabalho: reconhecimento pelo direito de que os con itos
entre interesses abstratos, de grupos, podem ser, processualmente, resolvidos.

66 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


A partir dessas instituições, foi reconhecido ao trabalhador o direito de greve ou de
pleitear melhores condições de trabalho ou outras reivindicações trabalhistas.
Uma das prerrogativas dos sindicatos é a realização da negociação coletiva,
modalidade de autocomposição de con itos que, no entender de Ruprecht (1995, p.265),
“é a que se celebra entre empregadores e trabalhadores ou seus respectivos representantes,
de forma individual ou coletiva, com ou sem intervenção do Estado, para procurar de nir
condições de trabalho ou regulamentar as relações laborais entre as partes.”
Na lição de Süssekind (2000, p.1164-1165), negociação coletiva caracteriza-se por
ser um meio de transação que visa ao equilíbrio entre os interesses do trabalhador e os
custos de produção. Assim refere Süssekind

a negociação coletiva caracteriza-se por ser um processo dinâmico de busca de ponto


de equilíbrio entre interesses divergentes, capaz de satisfazer, transitoriamente, as
necessidades presentes dos trabalhadores e de manter equilibrados os custos de
produção. Negociar signi ca, acima de tudo, disposição dos sujeitos coletivos
de discutir certos temas com o objetivo de chegar a um consenso, a um ponto de
convergência por suas próprias forças e num exercício de transigência recíproco.

Nesse sentido, a negociação coletiva, intermediada pelos sindicatos, deve ser


um entendimento para se chegar a um acordo entre as partes, o qual deve ater-se a
interesses recíprocos que se resumam em normas e condições de trabalho, para melhoria
das condições de vida dos trabalhadores, para incremento da produtividade, visando à
harmonia nas relações de trabalho (BARROS, 2010).

O objetivo desses entendimentos, para que seja uma verdadeira negociação


coletiva, é tentar estabelecer condições de trabalho, isto é, o que integra o contrato
de trabalho, a saber: salário, suspensões, jornadas de trabalho, forma de prestação
de serviços, licenças, etc. Podem ser também estabelecidas relações de trabalho
entre as partes, quer dizer, as vinculações com o sindicato, obras sociais, regime de
dirigentes sindicais, solução dos con itos coletivos, numa palavra, o que faz parte
do campo do Direito Coletivo do Trabalho. Qualquer outra reunião de trabalhadores
e de empregadores que não tenha como objeto esses ns não constitui negociação
coletiva. (RUPRECHT, 1995, 265)

Como já referido, para que aconteça a negociação coletiva, é necessário que


interajam empregadores e trabalhadores, ou seus representantes. Por meio desta
negociação procura-se encontrar o bem comum, uma justiça social que leve ao binômio
capital-trabalho e uma desejada convivência pací ca entre trabalhadores e empregadores
(RUPRECHT, 1995).

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 67


Nesse sentido, o objeto da negociação coletiva é busca condições dignas e humanas
para os trabalhadores, sem deixar de lado o interesse dos empregadores. Consiste em uma
arma poderosa para solucionar os con itos de interesses e para resolver os problemas
derivados desses con itos (RUPRECHT, 1995).
A nalidade da negociação coletiva é a formalização de convenção ou acordo
coletivo de trabalho. No entanto, malograda a negociação entabulada, é facultada
aos Sindicatos ou empresas interessadas a instauração de dissídio coletivo, ou seja, a
negociação coletiva constitui uma das condições para o ajuizamento do dissídio coletivo,
inteligência do art. 616 da CLT.
Também se constitui a negociação coletiva fase que antecede a deliberação sobre
a greve. Sempre deverá haver prévia negociação coletiva, na tentativa de solucionar
o con ito. É o que determina o art. 114, § 1º e 2º da CF/88, alterado pela Emenda
Constitucional nº 45/2004.
Nesse norte, questiona-se: é reconhecida, no âmbito do setor público, a negociação
coletiva? Registram Santos e Silva (2005), que há duas correntes doutrinárias, uma
proclamando a total impossibilidade jurídica da negociação coletiva nesse âmbito, e a
outra defendendo a possibilidade jurídica.
Para a primeira vertente, tendo em vista especialmente o princípio da legalidade da
Administração Pública, preconizado no art. 37 caput da CF/88, é impossível a negociação
coletiva no setor público.
Ensina Sundfeld (1998) que a Administração só pode fazer o que a lei permite, ou
seja, todo ato da Administração tem que ter base na lei, sob pena de invalidade.
Sob o ponto de vista constitucional, não há referência no parágrafo 3º do art. 39
(que trata dos direitos sociais do servidor público) da aplicação do inciso XXVI, do
art. 7º, ou seja, não há o reconhecimento constitucional de convenção coletiva e acordo
coletivo para esses servidores.
A Súmula 679 do Supremo Tribunal Federal – STF refere que “a xação de
vencimentos dos servidores públicos não pode ser objeto de convenção coletiva.”
Além disso, há dispositivos constitucionais que vedam à Administração Pública
realizar despesas ou assunção de obrigações além das dotações orçamentárias, conforme
os arts. 167, II e 169 da CF/88.
A Lei 8.112/90, no seu art. 240, d e e assegurava ao servidor público civil o direito à
negociação coletiva. Entretanto, o STF declarou essa lei inconstitucional, na Ação Direta
de Inconstitucionalidade nº 492

CONSTITUCIONAL. TRABALHO. JUSTIÇA DO TRABALHO.


COMPETÊNCIA. AÇÕES DOS SERVIDORES PUBLICOS ESTATUTARIOS.
C.F., ARTS. 37, 39, 40, 41, 42 E 114. LEI N. 8.112, DE 1990, ART. 240, ALINEAS

68 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


“D” E “E”. I – SERVIDORES PUBLICOS ESTATUTARIOS: DIREITO A
NEGOCIAÇÃO COLETIVA E A AÇÃO COLETIVA FRENTE A JUSTIÇA
DO TRABALHO: INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 8.112/90, ART. 240,
ALINEAS “D” E “E”. II – SERVIDORES PUBLICOS ESTATUTARIOS:
INCOMPETENCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO PARA O JULGAMENTO
DOS SEUS DISSIDIOS INDIVIDUAIS. INCONSTITUCIONALIDADE
DA ALINEA “e” DO ART. 240 DA LEI 8.112/90. III – AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. ADI 492 / DF –
DISTRITO FEDERAL. Rel. Min. CARLOS VELLOSO, Julgamento: 12/11/1992,
Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Publicação: DJ 12-03-1993.

O Relator da ADI-492-DF, Ministro Carlos Velloso assim se manifestou na


conclusão de seu voto

(...) Não sendo possível, portanto, à Administração Pública transigir no que diz
respeito à matéria reserva à lei, segue-se a impossibilidade de a lei assegurar ao
servidor público o direito à negociação coletiva, que compreende acordo entre
sindicatos de empregadores e empregados, ou entre sindicatos de empregados
e empresa e, malogrado o acordo, o direito de ajuizar o dissídio coletivo. E é
justamente isto o que está assegurado no art. 240, alíneas d (negociação coletiva)
e e (ajuizamento coletivo frente à Justiça do Trabalho) da citada Lei 8.112, de
11.12.90.(...). (VELLOSO, 1998, p.567)

Leciona o Ministro Velloso, em sua obra, que a sistemática dos servidores públicos,
regime jurídico, vencimentos e remuneração assentam-se na lei, portanto, “a negociação
coletiva tem por escopo, basicamente, a alteração da remuneração. A remuneração dos
servidores públicos, entretanto, decorre de lei e a sua revisão geral, sem distinção de
índices entre servidores públicos civis e militares, far-se-á sempre na mesma data (CF,
art. 37, X e XI).” (VELLOSO, 1998, p.566).
A Orientação Jurisprudencial nº 5 da SDC do TST segue a mesma tendência,
inadmitindo dissídios tanto de natureza econômica como de natureza jurídica no âmbito
do setor público,

DISSÍDIO COLETIVO CONTRA PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO.


IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA.
Inserida em 27.03.1998 Aos servidores públicos não foi assegurado o direito ao
reconhecimento de acordos e convenções coletivos de trabalho, pelo que, por
conseguinte, também não lhes é facultada a via do dissídio coletivo, à falta de
previsão legal.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 69


Sendo assim a primeira corrente doutrinária vale-se do princípio da legalidade
para defender a impossibilidade jurídica de negociação coletiva no âmbito do serviço
público.
A segunda corrente, favorável à negociação coletiva no âmbito do serviço público,
apregoa que o só fato de o art. 39 não fazer referência à convenção coletiva e ao acordo
coletivo referidos no art. 7º, XXVI, não é motivo para impedir que o servidor público não
usufrua desses direitos, e se assim fosse, haveria uma incongruência na legislação, já que
há a admissão legal de esses servidores sindicalizarem-se, bem como há o reconhecimento
do direito de greve, conforme preceitua o art. 37, VII da CF/88, que poderá ser exercido
nos termos e limites de nidos em lei especí ca.
Por isso, como referem Santos e Silva (2005), essa corrente defende que, para
conciliar o princípio da legalidade com o direito à negociação coletiva no setor público,
o instrumento que advém da negociação coletiva, ou seja, o acordo coletivo ou a
convenção coletiva, teria um caráter político e moral, no qual a autoridade competente se
comprometesse a propor o devido projeto de lei, nos termos do pactuado, para resguardar
o que prevêem os arts. 167, XVI, e 169 da CF/88.
Porém o entendimento do STF não é esse, conforme a precitada ADI 492-1-DF,
mas não encerra a discussão em torno da negociação coletiva no serviço público, mesmo
porque o direito à sindicalização dos servidores continua (BARROS, 2010).

5 DIREITO DE GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO


No serviço público civil, o Direito de Greve, está assegurado no art. 37, VII da
CF/88, e será exercido nos termos e limites de nidos em lei especí ca, sendo proibida aos
servidores militares. Até os dias atuais, o Congresso ainda não editou a lei especí ca.
Essa inércia levou o E. STF a reconhecer a mora do Congresso Nacional em
regulamentar o inciso VII do art. 37 da CF/88, ainda em 1996, por meio do julgamento
do MI-20-DF, de relatoria do Ministro Celso de Mello

MANDADO DE INJUNÇÃO COLETIVO DIREITO DE GREVE DO


SERVIDOR PÚBLICO CIVIL EVOLUÇÃO DESSE DIREITO NO
CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO MODELOS NORMATIVOS NO
DIREITO COMPARADO PRERROGATIVA JURÍDICA ASSEGURADA PELA
CONSTITUIÇÃO (ART. 37, VII) IMPOSSIBILIDADE DE SEU EXERCÍCIO
ANTES DA EDIÇÃO DE LEI COMPLEMENTAR OMISSÃO LEGISLATIVA
HIPÓTESE DE SUA CONFIGURAÇÃO RECONHECIMENTO DO ESTADO
DE MORA DO CONGRESSO NACIONAL IMPETRAÇÃO POR ENTIDADE
DE CLASSE ADMISSIBILIDADE WRIT CONCEDIDO. DIREITO DE GREVE
NO SERVIÇO PÚBLICO: O preceito constitucional que reconheceu o direito de
greve ao servidor público civil constitui norma de e cácia meramente limitada,
desprovida, em consequência, de autoaplicabilidade, razão pela qual, para atuar
plenamente, depende da edição da lei complementar exigida pelo próprio texto da

70 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


Constituição. A mera outorga constitucional do direito de greve ao servidor público
civil não basta ante a ausência de autoaplicabilidade da norma constante do art.
37, VII, da Constituição para justi car o seu imediato exercício. O exercício do
direito público subjetivo de greve outorgado aos servidores civis só se revelará
possível depois da edição da lei complementar reclamada pela Carta Política. A lei
complementar referida que vai de nir os termos e os limites do exercício do direito
de greve no serviço público constitui requisito de aplicabilidade e de operatividade
da norma inscrita no art. 37, VII, do texto constitucional. Essa situação de lacuna
técnica, precisamente por inviabilizar o exercício do direito de greve, justi ca a
utilização e o deferimento do mandado de injunção. A inércia estatal con gura-
se, objetivamente, quando o excessivo e irrazoável retardamento na efetivação da
prestação legislativa não obstante a ausência, na Constituição, de prazo pré- xado
para a edição da necessária norma regulamentadora vem a comprometer e a nuli car
a situação subjetiva de vantagem criada pelo texto constitucional em favor dos
seus bene ciários. MANDADO DE INJUNÇÃO COLETIVO: A jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal rmou-se no sentido de admitir a utilização, pelos
organismos sindicais e pelas entidades de classe, do mandado de injunção coletivo,
com a nalidade de viabilizar, em favor dos membros ou associados dessas
instituições, o exercício de direitos assegurados pela Constituição. Precedentes e
doutrina. STF-MI-20/DF, Tribunal Pleno, Julgamento: 19-05-1994, DJ 22-11-1996,
p.45690, Rel. Min. CELSO DE MELLO.

Pode-se dizer que, no âmbito da Administração Pública, não há como negar que
a mora em regulamentar o inciso VII do art. 37 da CF/88 trouxe inúmeras discussões
doutrinárias e jurisprudenciais. Para Bezerra Leite nessas discussões, há duas correntes
que se destacam

A primeira sustenta a e cácia contida do preceito em exame, pelo que possível o


exercício do direito antes mesmo da edição de lei complementar, sendo aplicável
por analogia, a Lei 7.783/89.
A segunda, entendendo ser referido dispositivo not self-executing, advoga no
sentido de que o servidor público somente poderá exercer o direito de greve após
editada a norma infraconstitucional complementar. (2001, p.39)

Para a primeira corrente referida por Bezerra Leite, é perfeitamente aplicável, por
analogia, aos servidores públicos, a Lei 7.783/89, enquanto não for editada lei especí ca,
assente na e cácia contida do preceito do art. 37, VII da CF/88.
Sustenta Bezerra Leite (1998) que a greve é elemento essencial da negociação
coletiva; sem direito à negociação coletiva, não há como exercer o direito de greve.
Porém no mundo dos fatos a realidade é outra, pois paradoxalmente, a todo instante há
inúmeras greves nos diversos setores da Administração Pública, que a exercem como meio
de pressão política para que os Poderes Executivo e Legislativo editem ou se abstenham
de editar leis de acordo com o interesse da categoria.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 71


Também Romita (1991, p.250) assevera que

Se se pretende implantar o método de negociação coletiva para solucionar con itos


de trabalho, será indispensável assegurar liberdade sindical: sem autonomia, os
sindicatos de trabalhadores estão desarmados. Trata-se no caso, do postulado
fundamental para a convivência democrática. E a greve é a arma de luta dos
trabalhadores na negociação coletiva! Sem direito de greve não pode haver
negociação coletiva digna desse nome.

Santos e Silva (2005), partindo do estudo da teoria da aplicabilidade das normas


constitucional, são partidários dessa primeira corrente, sustentando que o preceito do art.
37, VII da CF/88 possui e cácia contida, ou seja, é inteiramente aplicável; enquanto o
legislador infraconstitucional não editar a nova lei, restringindo ou reduzindo o alcance
do direito de greve do funcionário público, aplica-se na sua plenitude a Lei 7.783/89.
Concluem Santos e Silva que

Entender que o servidor público só poderá exercitar o direito de greve quando


advier a mencionada lei signi ca, na prática, inverter a hierarquia das normas,
colocando a “lei especí ca”, infraconstitucional, em patamar superior ao da norma
constitucional, o que não parece nem um pouco razoável, uma vez que a referida lei
especí ca, quando editada só poderá estabelecer limites e termos para o exercício
da greve no setor público, mas não poderá negar tal direito aos servidores públicos.
(SANTOS, SILVA, 2005, p.605)

Sendo assim, essa corrente entende que a falta de regulamentação do art. 37, VII
da CF/88 não pode ser motivo de detrimento dos direitos fundamentais dos servidores
públicos à greve.
E esse foi o entendimento que se consolidou no STF, em 2007, por ocasião do
julgamento dos Mandados de Injunção nºs 670, 708 e 712, impetrados pelo Sindicato dos
Servidores Policiais Civis do Estado do Espírito Santo, pelo Sindicato dos Trabalhadores
em Educação do Município de João Pessoa e pelo Sindicato dos Trabalhadores do Poder
Judiciário do Pará, respectivamente.
No julgamento, o STF, por maioria, reconheceu a ausência de norma regulamentadora
do direito de greve dos servidores públicos garantido no art. 37 VII da CF/88, com a
nalidade de que fosse declarada a mora do Congresso Nacional, bem como efetivamente
fosse assegurado o exercício de tal direito. Na sessão, deu provimento aos mandados de
injunção supracitados e propôs a solução para a omissão legislativa com a aplicação da
Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989, no que couber.

72 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


Tal julgamento vem em boa hora, apontando para a tendência da E. Corte Suprema
brasileira a dar concretude aos dispositivos alinhados na Constituição, independentemente
de uma regulamentação especí ca.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A greve é um direito de todo trabalhador para defender suas conquistas e de procurar
melhorar as condições em que desempenha suas atividades. Diante disso, não se pode
negar que o servidor público tenha o direito de greve, como preconizado no art. 37,
VII, da CF/88, não podendo a lacuna legislativa ser motivo de detrimento dos direitos
fundamentais desses servidores públicos.
Percebe-se que a CF/88, apesar dos vários avanços em relação ao direito de greve
dos trabalhadores, ainda possui algumas incongruências, especialmente no que tange
ao setor público, a nal as posições que vêm sendo adotadas pelas cortes superioras em
relação ao direito de greve têm sido inadequadas à realidade brasileira. De fato, a greve
no serviço público brasileiro, embora não tenha lei especí ca reguladora exigida pelo
texto constitucional, tem ocorrido com alguma frequência.
A exigência constitucional da edição de uma lei especí ca que regulamente o direito
de greve no serviço público não signi ca que esse direito não deva ser reconhecido a esses
servidores. A edição de lei especí ca pelo Congresso Nacional não poderá negar tal direito
aos servidores públicos e deverá seguir uma visão sistêmica do texto constitucional, de
modo a preservar os direitos fundamentais desses servidores.
E esse foi o entendimento que se consolidou no STF, em 2007, por ocasião do
julgamento dos Mandados de Injunção nºs 670, 708 e 712, impetrados pelo Sindicato dos
Servidores Policiais Civis do Estado do Espírito Santo, pelo Sindicato dos Trabalhadores
em Educação do Município de João Pessoa e pelo Sindicato dos Trabalhadores do Poder
Judiciário do Pará, respectivamente.
Foi nesse norte que o E. STF, por maioria, reconheceu, em boa hora, a ausência de
norma regulamentadora do direito de greve dos servidores públicos garantido no art. 37
VII da CF/88, declarou a mora do Congresso Nacional, bem como efetivamente assegurou
o exercício de tal direito.
Assim, com o provimento de tais Mandados de Injunção, a solução para a omissão
legislativa é a aplicação da Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989, no que couber.
Evidentemente, o reconhecimento do direito de greve ao servidor público impõe
limitações. Deverá ser exercido em harmonia com os interesses da coletividade, para
evitar que os direitos de grupos determinados se sobreponham ao Direito Coletivo difuso,
que se refere a toda a comunidade.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 73


REFERÊNCIAS
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2010.
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Julgamento: 12/11/1992, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Publicação: DJ 12-03-1993,
Partes: Reqte.: Procurador-Geral da República, Reqdo.: Congresso Nacional.
BRASIL. Orientação Jurisprudencial nº 5 da SDC do TST. Inserida em 27.03.1998.
BRASIL. STF-MI-20/DF, Tribunal Pleno, Julgamento: 19-05-1994, DJ 22-11-1996,
p.45690, Rel. Min. CELSO DE MELLO. Partes: Impte.: Confederação dos Servidores
Públicos do Brasil; Impdo.: Congresso Nacional.
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191-A, 5 out. 1988.
BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 10 de novembro de 1937).
Diário Oficial da União, 10 nov. 1937.
BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de setembro de 1946). Diário
Oficial da União de 19.9.1946 e republicado no Diário Oficial da União de 25.9.1946.
BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis
do Trabalho. Diário Oficial da União, 9 ago. 1943.
BRASIL. Lei 7.783, de 28 de junho de 1989. Dispõe sobre o exercício do direito de
greve, define as atividades essenciais, regula o atendimento das necessidades inadiáveis
da comunidade e dá outras providências. Diário Oficial da União, 29 jun. 1989.
BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição. PEC 369/2005. Dá nova redação aos arts.
8.º, 11, 37 e 114 da Constituição. Situação: CCJC: Aguardando Parecer. Disponível em:
http://www2.camara.gov.br/proposicoes. Acesso em: 28 jul. 2006.
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74 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


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homenagem ao Ministro Orlando Teixeira da Costa. São Paulo: LTr, 1998.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 75


Água, um direito fundamental
Roberto Ferreira de Macedo

RESUMO
O presente artigo se propõe a apresentar que a água potável e de qualidade deve ser
considerada como um direito fundamental para a existência de toda e qualquer forma de vida
existente no planeta, devendo seu acesso ser público e gratuito, considerando-se que qualquer
forma de comercialização, alteração e poluição deste insumo constitui crime contra a humanidade.
Dessa forma, a preocupação com o aumento populacional e com a quantidade e qualidade de água
potável para consumo é crescente, revelando-se a necessidade de se considerar a água como um
direito fundamental compatível com a dignidade da pessoa humana. Para tanto, apresenta-se uma
análise em torno do direito de acesso à água e a problemática da escassez, exploração indevida
e poluição. Em seguida, procura-se apontar os dispositivos jurídicos de proteção dos recursos
hídricos, trazendo-se uma análise crítica sobre a eficiência dos mesmos e abordando a necessidade
de inclusão social como forma de garantia dos mesmos.
Palavras-chave: Água. Direito Ambiental. Direito fundamental. Direito à água.

The water, a fundamental right

ABSTRACT
This article aims to provide the drinking water quality should be considered as a
fundamental right to existence of all forms of life existing on the planet, and its access
is free and public, considering that any form of marketing, change and pollution of this
input is a crime against humanity. Thus, the concern with population increase and the
quantity and quality of drinking water for consumption is increasing, revealing the need
to consider water as a fundamental right is compatible with human dignity. It presents
an analysis around the right of access to water and the problem of scarcity, pollution and
improper exploitation. It then attempts to point out the legal provisions for protection of
water resources, bringing a critical analysis on their efficiency and addressing the need
for social inclusion as a guarantee of the same.
Keywords: Water. Environmental law. The right to water.

1 INTRODUÇÃO
A inauguração desse novo milênio veio acompanhada pela conscientização global
de que o processo de desenvolvimento dos países não pode mais ser feito apenas pelo
aspecto econômico e à custa dos recursos naturais. No estágio atual em que vivemos, o
desenvolvimento deve ser almejado de forma sustentável, onde exista a conciliação entre
evolução integral, preservação do meio ambiente e qualidade de vida.

Roberto Ferreira de Macedo é bacharel em Direito pela Universidade Luterana do Brasil, Canoas/RS. E-mail:
roberto_fmacedo@hotmail.com

76 Direito e DemocraciaDireitoCanoas v.11 v.11,n.1


e Democracia, p.76-94
n.1, jan./jun. 2010 jan./jun. 2010
Dentro dessa perspectiva é que se destaca a importância do Direito Ambiental,
em normatizar e regular as novas relações em uma sociedade que vislumbre um
desenvolvimento sustentável e a continuidade da vida humana de forma saudável.
Dessa forma, o Direito Ambiental deriva dos direitos fundamentais, no momento
em que se propõe regular e garantir condições de vida para todos no planeta, conforme
dispõe o artigo 225 da Constituição Federal de 1988.
A água, recurso natural, surge como direito fundamental essencial que é para
a vida humana e para qualquer espécie de vida no planeta. Adquire natureza jurídica
e valor econômico, aspectos necessários para qualquer tipo de existência. Preservar
e conservar a qualidade e quantidade da água é proteger o direito à saúde, à vida e a
dignidade da pessoa humana, em face da pouca disponibilidade frente a uma demanda
crescente.
Cabe ao poder público e aos cidadãos o dever de precaução e resguardo dos recursos
hídricos contra os efeitos poluidores, uso irracional, desperdício e, principalmente, a
exploração comercial indevida da água, que se tem intensi cado cada vez mais.
O desenvolvimento do Direito Ambiental deve conjugar esforços para ampliar a
proteção em torno do direito à água.
A água é um bem ambiental, de uso comum da humanidade. É recurso vital.
Dela depende a vida no planeta. Os demais valores têm de ceder espaço aos direitos
humanos fundamentais que devem prevalecer acima de quaisquer outros interesses
econômicos ou políticos.

2 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A questão da água, como elemento essencial à vida e sobrevivência dos seres
humanos e animais, insere-se no âmbito do Direito Ambiental, bem como parte dos
direitos fundamentais.
O desembargador Wellington Pacheco Barros de ne assim a água:

[...] sicamente, é um líquido transparente, incolor, com um matiz azulado


quando visto em grande massa. Quando em sua forma pura não tem sabor.
Apresentam-se nos três estados físicos: sólido, líquido e gasoso. Passando do
estado líquido para o sólido a 0º, e, após a ebulição a 100º, a água vaporiza-se.
Quimicamente, a água é um composto formado por dois elementos gasosos, em
estado livre, o hidrogênio e o oxigênio (H O). “A água é indispensável para a
vida.” (BARROS, 2005, p.152)

A água é uma substância abundante que cobre 2/3 da superfície da Terra, aparentando
ser in nita para a vida humana, vegetal e animal. Em números, pode-se dizer que 71% da

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 77


superfície terrestre é coberta por água. De toda essa quantidade, cerca de 97,3% é água
salgada e apenas 2,7% é água doce, aproveitável para consumo e para a irrigação.
Do total de água doce disponível na Terra, 77,2% encontra-se em forma de gelo,
22,4% são águas subterrâneas, 0,35% se encontra em lagos e pântanos, 0,04% está na
atmosfera e apenas 0,01% da água doce está nos rios. Apesar de cobrir quase a totalidade da
Terra, o volume de água doce disponível é insigni cante. Além da pouca disponibilidade,
fatores como o aumento da população mundial, da poluição provocada pelas atividades
humanas, do consumo excessivo e do alto grau de desperdício, fazem da água, hoje, um
bem nito e escasso.
Os grá cos abaixo demonstram a evolução histórica da disponibilidade de água doce
por Habitante/Região (1000 m ) – Grá co 1 – e como se encontra atualmente distribuída
pelos continentes – Grá co 2:

Região 1950 1960 1970 1980 2000

África 20,6 16,5 12,7 9,4 5,1

Ásia 9,6 7,9 6,1 5,1 3,3

América Latina 105,0 80,2 61,7 48,8 28,3

Europa 5,9 5,4 4,9 4,4 4,1

América do Norte 37,2 30,2 25,2 21,3 17,5

TOTAL 178,3 140,2 110,6 89 58,3

GRÁFICO 1 – Evolução histórica da disponibilidade de água doce por habitante/região (1000 m³).

CONTINENTE ÁGUA DOCE

ÁFRICA 10,00%

AMÉRICA DO NORTE 18,00%

AMÉRICA DO SUL 23,10%

ÁSIA 31,60%

EUROPA 7,00%

OCEANIA 5,30%

ANTÁRTIDA 5,00%

GRÁFICO 2 – Distribuição atual da água pelos continentes.

Observa-se, além da nítida diminuição da disponibilidade da água doce ao passar


dos anos, que a distribuição de água pelo mundo privilegiou alguns continentes em
detrimento de outros. Já existem informações que dão conta da carência de água para
1,1 bilhões de pessoas ao redor do planeta.

78 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


No Brasil, essa preocupação parece ainda não existir, talvez pelo fato de o país
abrigar 13,8% das reservas mundiais de água doce e aqui se encontrar 71% dos 1,2
milhões de quilômetros quadrados do Aquífero Guarani, o maior reservatório subterrâneo
de água doce das Américas e um dos maiores do mundo, envolvendo os Estados de Minas
Gerais, Mato Grosso do Sul, Goiás, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do
Sul (BARROS, 2005, p.10).

3 IMPORTÂNCIA DAS ÁGUAS


A água é uma necessidade biológica do ser humano, visto que sem água não
sobrevivem o homem e todo e qualquer ser vivo parte da natureza. Entretanto, a
consciência de tal fato não era presente à humanidade, pois a água era anteriormente vista
como um recurso natural inesgotável. Porém, no decorrer de mudanças de circunstâncias
e de fatos, resultantes do próprio agir humano na busca indiscriminada por recursos
naturais, e sua constante in uência nas alterações no meio ambiente, a questão da água
tomou outra dimensão, mais realista e consciente. Passou-se a identi car o manancial de
água existente, mensurando-se as reservas e seu consumo no planeta.
Além de ser elemento imprescindível para todo e qualquer tipo de vida e sua
manutenção, a água também é importante para o abastecimento doméstico e público, nos
usos agrícolas e industriais e na produção de energia elétrica. No uso doméstico, ela serve
para ser bebida (o que por si só justi ca ser considerada como um direito fundamental
do homem), no preparo de alimentos, higiene pessoal, limpeza na habitação, irrigação
de jardins, criação de animais domésticos, entre outros. Em relação ao abastecimento
público, utiliza-se a água nas moradias, escolas, hospitais, irrigação de parques e jardins,
limpeza de ruas, combate a incêndios, navegação, etc.
Também é importante lembrar que diversas doenças podem estar associadas à
água, como a cólera, hepatite, amebíase, dentre outras. Isso só reforça a ideia de que
o abastecimento de água com qualidade própria para a ingestão, preparo de alimentos
e higiene pessoal são elementos fundamentais para uma existência digna de todos os
cidadãos.
Em relação à produção agrícola, a água é utilizada para tratamento de animais,
lavagem de instalações, máquinas, etc. A agricultura é considerada a atividade que mais
consome água. Ressalta-se que a água pode representar até 90% da composição física
das plantas (BARROS, 2005, p.14).
Dentre as diversas utilidades da água na indústria, ela se destaca como matéria prima
para a produção de alimentos e produtos farmacêuticos, gelo, etc.; para a refrigeração
na metalurgia, para lavagem nas áreas de produção de papel, tecido, em abatedouros e
matadouros, etc.; e em atividades em que é utilizada para a fabricação de vapor, como
na caldeiraria.
Estatisticamente, a irrigação corresponde a 73% do consumo de água, 21% vão para
a indústria e apenas 6% se destina ao consumo doméstico (BARROS, 2005, p.13, 14).

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 79


Cabe ainda destacar a importância da água na produção de energia elétrica,
através das usinas hidrelétricas, que utilizam a força e o movimento das águas para
gerar essa energia. Cerca de 95% da energia elétrica brasileira provém dos rios
(BARROS, 2005, p.15).

4 CRISE DA ÁGUA
Fatores naturais, aumento populacional, poluição provocada por atividades
humanas, consumo excessivo e o alto grau de desperdício de água prejudicam ainda
mais a disponibilidade de água para o uso humano. Conforme ensina Luiz Antonio Timm
Grassi, a crise da água doce pode ser compreendida pelos seguintes fatores:

a) agravamento da escassez quantitativa da água devido à competição com demanda


de outros usos, como a irrigação;
b) aumento da escassez da água de boa qualidade, devido à degradação dos
mananciais, pela poluição resultante de todas as atividades;
c) deterioração dos próprios corpos de água pelas intervenções intencionais ou não
(barragens, reti cações, desmatamento, mineração nos leitos, erosão, perfuração
descontrolada de poços);
d) magnitude da demanda e os in ndáveis recursos nanceiros, daí decorrentes,
são cada vez maiores, devido à piora da qualidade dos mananciais ou da distância,
além daqueles recursos que são apropriados, como os investimentos que são
indispensáveis para a instalação de equipamentos e para sua operação;
e) desperdício em níveis preocupantes, seja por falhas operacionais dos sistemas
de abastecimento, seja pelo uso descontrolado por parte dos usuários. (GRASSI,
apud BARROS, 2005, p.42-43)

Segundo dados da Revista Expressão (EXPRESSÃO, 2007, p.125), o mundo já tem


2,4 bilhões de pessoas sem condições mínimas de saneamento. As doenças provocadas
pelo consumo de águas contaminadas matam 5 milhões de pessoas anualmente (dez vezes
mais do que as guerras). Estima-se, ainda, que 60% da mortalidade infantil decorrem
desta mesma causa.
O autor Hinde Pomeraniec, no Fórum de Barcelona de 2004, ao abordar o problema
do acesso da água potável, o que chama de “Ouro Azul”, a rma que “mais de 1,2 bilhões
de pessoas em todo o mundo não têm acesso à água potável” e, ainda, que “[...] a cada
vinte e quatro segundos nascem cem crianças em todo o mundo. Sabe-se que vinte delas
não terão acesso à água limpa (POMERANIEC, 2004, p.20)”. Nos Estados Unidos,
segundo o Conselho de Defesa de Recursos Naturais, cerca de 53 milhões de americanos,
praticamente 1/5 da população, bebem água de torneira contaminada com chumbo,
bactérias fecais ou com outros poluentes sérios (BARLOW, 2004, p.22).

80 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


A humanidade usa cerca de 54% da água disponível, e este percentual deverá,
segundo as estimativas, chegar a 70% em apenas 25 anos.
A reportagem realizada pela Revista Época sobre a escassez e as condições atuais
da água no Brasil e no mundo reporta que, “segundo as projeções mais recentes da ONU,
no ritmo de uso e do crescimento populacional, nos próximos 30 anos a quantidade de
água disponível por pessoa será reduzida a 20% do que temos hoje (LEAL; VICÀRIA,
2007, p.109). Ainda ressalta que a escassez de água não é somente em regiões desérticas,
e que a questão da água está sendo o centro por trás dos grandes con itos no planeta.
No Brasil, temos um privilégio nesta questão, pois temos 14% de toda a água doce que
circula pela superfície da Terra (LEAL, VICÀRIA, 2007, p.110), embora essa distribuição
seja desigual.
Ainda o estudo feito pela ONU demonstra que a Região Sul do Brasil possui áreas de
con itos sobre água devido à “demanda para irrigar campos de arroz e da degradação da
qualidade da água, principalmente nas áreas onde há criação de gado” (LEAL, VICÀRIA,
p.110). Essa disputa engloba as cidades de Santo Antonio da Patrulha, Gravataí, Alvorada
e Cachoeirinha, na região metropolitana de Porto Alegre.
No Oriente Médio, a água é considerada um produto raro, e considerado mais
importante que o próprio petróleo. Sendo também fator determinante para situações de
guerra e paz nas regiões. Foi a água o principal motivo que fez os israelenses se recusarem
durante muitos anos a deixar os territórios ocupados. Atualmente, mais de dois terços da
água consumida em Israel saem de lençóis subterrâneos localizados parte na Cisjordânia
e parte em Golan (BARLOW, 2004, p.24).
Muitos países como a Inglaterra, a França e o Chile, tentam solucionar o
gerenciamento da água através de concessionárias privadas. “Quase todo o negócio
mundial de gestão de água está nas mãos de duas empresas francesas” (BARLOW,
2004, p.130).
No exemplo do Chile, no caso da privatização da água, há um sistema de gestão
implantado de acordo com os princípios difundidos pelo Banco Mundial, pois a legislação
chilena é bem liberal em relação à água, onde qualquer pessoa pode requerer ao Poder
Público a concessão de direito de uso da água, e se houver disponibilidade de outorga,
não poderá está ser negada. O direito de uso é um bem real do concessionário, podendo
ser transmitido livremente; não há obrigatoriedade de uso do recurso concedido, que pode
simplesmente constituir reserva de valor patrimonial. Isso, por conseguinte, criou uma
nova forma de especulação, onde algumas companhias mineradoras controlam o mercado
de água no país e simulam situações de falta de água, com o objetivo de aumentar os preços
ou criar reservas de direitos para usos futuros, restringindo ou anulando a exibilização
de uso (IRIGARAY, 2004, p.384).
Nos países pobres, onde os serviços de água foram privatizados, ocorreu substancial
aumento das tarifas de água. Em Gana, as condições impostas pelo Banco Mundial e o
FMI determinaram um aumento de 95% nas tarifas de água; em Cochabamba, Bolívia,
as tarifas ascenderam ao ponto de consumir 25% da receita familiar de certos residentes

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 81


empobrecidos, à semelhança do que ocorreu na Índia (BARLOW, 2004, p.86.). Na
Califórnia, o comércio dos direitos da água já é um grande negócio, visto que, no ano de
1992, o Congresso Norte-Americano votou um projeto de lei que permite aos agricultores
venderem seus direitos de água para as cidades. Em 1997, foi cogitada a ideia de abrir
um mercado de água entre os usuários do Rio Colorado, possibilitando a venda da água
do rio para os Estados do Arizona, Nevada e Califórnia (BARLOW, 2004, p.88).
Atualmente, muitas empresas que tratam a água, passam a enxergá-la como um
novo negócio rentável no mercado econômico,

[...] o que vemos à frente é um mundo onde os recursos não são preservados,
mas acumulados, para aumentar preços e lucros corporativos e onde os con itos
militares podem ocorrer por causa da escassez de água em lugares como o Vale
Mexicano e o Oriente Médio. É um mundo no qual tudo estará à venda. (BARLOW,
2004, p.91)

Nesse sentido, as autoras Andreia Vieira e Ilma Barcellos colocam que

[...] silenciosamente as transacionais da água já estão explorando de diversas


maneiras os nossos rios, lagos e demais fontes e mananciais de água e essa
prática não é recente. Através de diferentes iniciativas, sejam individuais, políticas
ou empresariais, esta se tornando cada dia mais visível, ainda que de forma
disfarçada, a posse, propriedade oi controle privados da água. Exemplo disso
é o que vem ocorrendo em algumas regiões do Estado de Minas Gerais. Desde
1992, a multinacional Nestlé assumiu a propriedade do Parque das Águas de São
Lourenço e, consequentemente, a exploração comercial das fontes de água mineral
da cidade de São Lourenço, onde passou a produzir a água Pure Life. Hoje, a Nestlé
comercializa além da Pure Life, também as marcas Aquarel, Perrier, Petrópolis
e São Lourenço. A exploração de água do Poço Primavera, que ca dentro do
Parque das Águas de São Lourenço, além de não ter sido precedida de Estudo de
Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental, exigidos por lei, trava uma
disputa judicial há anos, com controvérsias de pareceres dos seguintes órgãos:
Departamento Nacional de Pesquisas Minerais (DNPM), Agência Nacional de
Águas (ANA) e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). (VIEIRA,
BARCELLOS, 2009, p.80,81)

Nesse mesmo foco, de valor econômico da água e não como recurso natural essencial
do ser humano, no Fórum Mundial da Água, em março de 2000, em Haia, houve um
debate, no qual se questionava se a água deveria ser designada como uma “necessidade”
ou um “direito”. Discutiu-se sobre quem deveria ser o responsável por assegurar às
pessoas o acesso à água: o livre mercado ou o Estado, as corporações ou os governos?
Foi então direcionada a questão para o lado mercantilista, sendo a água considerada
uma “necessidade”, de forma que o setor privado teria o direito e responsabilidade de

82 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


fornecer esse produto vital com base em ns lucrativos. Se tivesse a água sido reconhecida
o cialmente como um direito humano universal, o que de fato não ocorreu naquele
momento, então os governos seriam responsáveis por garantir o acesso á todas as pessoas
igualmente em uma base não lucrativa (BARLOW, 2004, p.96).
É notável que, para as camadas sociais menos favorecidas, tais decisões têm
efeitos desastrosos, tanto quanto ao acesso quanto ao extremo de ter de consumir água
contaminada, pela falta de outra alternativa. É de conhecimento de todos que o livre
mercado pode e deve ser apropriado para a negociação de bens opcionais, e nunca para
aqueles imprescindíveis para a existência digna do ser humano, como é o caso da água.
Nesse sentido, conforme Petrella (2002, p.84),

[...] ter acesso a água, no entanto, não é uma questão de escolha. Todos precisam
dela. O próprio fato de que ela não pode ser substituída por nada mais, faz
da água um bem básico que não pode ser subordinado a um único princípio
setorial de regulamentação, legitimação e valorização; ela se enquadra nos
princípios do funcionamento da sociedade como um todo. Isso é precisamente
aquilo que se chama de um bem social, um bem comum, básico a qualquer
comunidade humana.

No sentido contrário ao que foi decidido no Fórum Mundial da Água no ano de 2000,
o Comitê das Nações Unidas sobre Direitos Econômicos, Culturais e Sociais considerou
a água “fundamental para a vida e a saúde” (BARLOW, 2004, p.97). O direito humano
à água é indispensável para se chegar a uma vida saudável e com dignidade, sendo um
verdadeiro pré-requisito à realização de todos os outros direitos humanos, saindo daí a
sua fundamentalidade. E, ainda, o mesmo Comitê diz que a água deve ser tratada como
um bem social e cultural, não como um negócio econômico.

5 ÁGUA COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL


Os sistemas internacionais de proteção dos direitos fundamentais e do meio
ambiente demonstram a existência de um paralelismo e de uma interação na evolução
histórica desses sistemas, levando à conclusão de que ambos, no fundo, convergem para
o objetivo maior de assegurar uma vida digna a todos os habitantes da Terra. Embora
tenham sido historicamente abordados em perspectivas diferentes, é necessário buscar
maior aproximação entre esse dois sistemas, principalmente pelo fato de que ambos
tratam, em última análise, dos rumos e destinos do gênero humano.
De acordo com Pedro Lenza a doutrina, dentre vários critérios, costuma classi car
os direitos fundamentais em “gerações ou dimensões de direitos”, da seguinte forma

Direitos Fundamentais de primeira dimensão: alguns documentos históricos são


marcantes para a con guração do que os autores chamam de direitos humanos de

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 83


primeira geração (séculos XVII, XVIII e XIX): (1) Magna Carta de 1215, assinada
pelo rei “João Sem Terra”; (2) Paz de Westfália (1648); (3) Habeas Corpus Act
(1679), (4) Bill of Rights (1688); (5) Declarações, seja a Americana (1776), ou
a Francesa (1789). Mencionados direitos dizem respeito às liberdades públicas
e aos direitos políticos, ou seja, direitos civis e políticos a traduzirem o valor de
liberdade;
Direitos Fundamentais de segunda dimensão: o momento histórico que os inspira
e impulsiona é a Revolução Industrial europeia, a partir do século XIX. Nesse
sentido, em decorrência das péssimas situações e condições de trabalho, eclodem
movimentos como o cartista – Inglaterra e a Comuna de Paris (1848), na busca
de reivindicações trabalhistas e normas de assistência social. O início do século
XX é marcado pela 1ª Grande Guerra e pela xação de direitos sociais. Isso ca
evidenciado, dentre outros documentos, pela Constituição de Weimar, de 1919
(OIT). Portanto, os direitos humanos, ditos de segunda geração, privilegiam
os direitos sociais, culturais e econômicos, correspondendo aos direitos de
igualdade;
Direitos Fundamentais de terceira dimensão: marcados pela alteração da sociedade,
por profundas mudanças na comunidade internacional (sociedade de massa,
crescente desenvolvimento tecnológico e cientí co), as relações econômico-sociais
se alteram profundamente. Novos problemas e preocupações mundiais surgem, tais
como a necessária noção de “preservacionismo ambiental e as di culdades para a
proteção dos consumidores”, só para lembrar aqui dois temas importantes. “O ser
humano é inserido em uma coletividade e passa a ter direitos de solidariedade”.
(LENZA, 2007, p.694-695)

Para Bobbio, “o mais importante dos direitos da terceira geração é o reivindicado


pelos movimentos ecológicos: “o direito de viver num ambiente não poluído” (BOBBIO,
1992, p.6).
Foi a partir da Declaração de Estocolmo de 1972, realizada pela ONU, que as
Constituições supervenientes passaram a reconhecer o direito ao meio ambiente como um
direito fundamental de terceira dimensão. Passou-se a ter o consenso que o direito ao meio
ambiente é ao mesmo tempo individual e coletivo e de interesse a toda humanidade, ou
seja, a garantia desse direito passa por um esforço conjunto do Estado, dos indivíduos e
das diversas Nações. Também foi despertada a consciência para a devida proteção jurídica
em relação ao meio ambiente, justamente por seu caráter de fundamentalidade em relação
à vida. Nesse sentido, passou-se a considerar que não há a possibilidade de concretização
dos demais direitos fundamentais sem o direito ao meio ambiente, justamente por ser esse
o próprio direito à vida, ou seja, direito à água em quantidade e qualidade adequadas para
suprir as necessidades humanas fundamentais, o direito de respirar um ar sadio, o direito
a que exista um controle de substâncias que comportem riscos para a qualidade de vida
e o meio ambiente, entre outros aspectos a serem salvaguardados para a existência da
própria vida. O direito ao meio ambiente con gura-se, a partir de então, como a matriz
de todos os demais direitos fundamentais.

84 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


Ainda em relação ao reconhecimento do direito ao meio ambiente como direito
fundamental de terceira dimensão, cabe referir o entendimento do Supremo Tribunal
Federal brasileiro, em sua jurisprudência mais recente, como o revela o voto do
eminente Ministro Celso de Mello, no Mandado de Segurança n. 22.164-0/SP, julgado
em 30.10.1995.

Os preceitos inscritos no art. 225 da Carta Política traduzem a consagração


constitucional, em nosso sistema de direito positivo, de uma das mais expressivas
prerrogativas asseguradas às formações sociais contemporâneas.
Essa prerrogativa consiste no reconhecimento de que todos têm direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
Trata-se consoante já o proclamou o STF (RE 134.297-SP, rel. Min. Celso de
Mello), de um típico direito de terceira geração que assiste, de modo subjetivamente
indeterminado, a todo o gênero humano, circunstância essa que justi ca a especial
obrigação – que incumbe ao Estado e à própria coletividade – de defendê-lo
e preservá-lo em benefício das presentes e das futuras gerações, evitando-se,
desse modo, que irrompam, no seio da comunhão social, os graves con itos
intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade na proteção
da integridade desse bem essencial de uso de tantos quantos compõem o grupo
social. (MIRRA, 2004, p.57-60)

A permanência da vida na Terra, tida como “Planeta Água”, porquanto 70% da


superfície do nosso planeta é coberta por este precioso líquido, está intrinsecamente
ligada à disponibilidade de recursos hídricos em qualidade e quantidades su cientes à
satisfação das necessidades básicas dos seres vivos que nela habitam.
O direito à vida com qualidade compatível com a dignidade da pessoa humana é
parte do sistema jurídico brasileiro como um direito fundamental da primeira geração.
Deve-se enquadrar a água como um direito fundamental pelo simples fato de que sem
água não se vive. De acordo com o ensinamento de André Ramos

[...] o direito à vida é o mais básico de todos os direitos, no sentido de que surge
como verdadeiro pré-requisito da exigência dos demais direitos consagrados
constitucionalmente. É, por isto, o direito humano mais sagrado, necessário
também para assegurar um nível mínimo de vida, compatível com a dignidade
(TAVARES, 2002, p.387)

Dessa maneira, não basta somente que a população tenha acesso à água doce
permitindo-lhe apenas a continuidade da vida. É necessário mais que o mínimo, que a
água seja potável e fornecida em quantidade su ciente para garantir às pessoas uma vida
compatível com a dignidade humana (VIEGAS, 2005, p.25), direito este consagrado em

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 85


nossa Constituição Federal (ARTIGO 1º, III, CF/88), considerado como um dos pilares
do nosso poder constituinte.
Nesse mesmo sentido, o direito à água decorre também do direito à saúde, visto
que a falta de saneamento básico, além de acarretar a proliferação de inúmeras doenças,
causando aumento da mortalidade infantil, principalmente entre as camadas sociais
menos favorecidas, é fator imprescindível para manter o bem estar e a higiene humana
(IRIGARAY, 2003, p.384).
Para Jose Afonso da Silva, “[...] dignidade da pessoa humana é um valor supremo
que atrai o conteúdo de todos os demais direitos fundamentais do homem, desde o direito
à vida” (SILVA, 2003, p.105). Destarte, por ter a água sintonia estreita com direitos
fundamentais como a vida, a saúde e a dignidade da pessoa humana, assume inegável
contorno também de direito fundamental. Conforme o professor Carlos Irigaray, enquanto
direito fundamental, o direito à água é inalienável e irrenunciável. A água é a fonte da
vida, e ter acesso à água potável e em quantidade su ciente não é uma questão de escolha,
mas uma necessidade (IRIGARAY, op. cit., p.384).
Em suma, por ser um recurso vital para sobrevivência de todo e qualquer ser vivo,
a água não pode ser objeto de comércio e de lucro. Não se pode permitir qualquer tipo
de apropriação e modi cação deste insumo. Em nosso entendimento, comercializar um
recurso vital para sobrevivência, visando ao lucro, assemelha-se a prática de crime contra
toda a humanidade. Isso faz pressupor que aquele cidadão que não tem condições para
pagar pela compra de uma água de qualidade terá de beber uma água ruim e até poluída
prejudicando sua saúde e pondo em risco sua própria vida. Se o direito à vida com
dignidade é um preceito fundamental constitucionalmente previsto, a água como recurso
vital para manutenção da vida consequentemente também é um preceito fundamental.

6 COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DAS ÁGUAS


As Constituições Brasileiras anteriores à de 1988 nada ou pouco traziam sobre a
matéria especí ca referente à proteção do meio ambiente.
A Constituição Federal de 1988 foi a pioneira a dar um tratamento mais especí co,
amplo e protetor à questão ambiental. Por disposição do artigo 225 da Constituição Federal,
todos os cidadãos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e, com
isso, conforme Weissheimer, “a Constituição disciplina o meio ambiente como um todo
a que se atribui a natureza jurídica de bem público” (WEISSHEIMER, 2002, p.167).
Em decorrência disso, as águas também receberam uma nova regulamentação legal,
a m de serem preservadas e conservadas para as gerações futuras. Como se pode notar,
principalmente nos artigos 20, III e 26, I da Constituição Federal, passou-se a considerar
as águas como bens do Estado, inexistindo, com o novo ordenamento jurídico, águas
particulares ou até mesmo águas municipais (MACHADO, 2004, p.329).
A autora Maria Luiza Machado Granziera preconiza que a nova situação pós-
Constituição Federal de 1988 deixa claro que não existem mais águas privadas e que

86 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


não há qualquer indício de que o poder público deva indenizar aqueles particulares que
tinham águas incorporadas ao seu patrimônio. Em suma, não mais subsiste o direito de
propriedade relativamente aos recursos hídricos. Os antigos proprietários de poços, lagos
ou qualquer outro corpo de água devem adequar-se ao novo regramento constitucional
e legislativo passando à condição de meros detentores de direitos de uso dos recursos
hídricos, assim mesmo desde que obtenham a necessária outorga prevista na lei citada
(GRANZIERA, 2001, p.82).
Sendo o Brasil uma República Federativa, a Magna Carta de 1988 visa a uma
distribuição harmônica na distribuição das competências legislativas. “Conforme
Maria Luiza Machado Granziera, a competência legislativa pode ser privativa da União
(artigo 22), concorrente entre União, Estados e Distrito Federal (artigo 24), dos Estados
(artigo 25, §1º), dos Municípios (artigo 30, I e II) e do Distrito Federal (artigo 32, §1º)”
(GRANZIERA, 2002, p.5).
De outra banda, embora possamos encontrar posições contraditórias, a competência
para legislar sobre águas deverá ser entendida como privativa da União (artigo 22, IV,
CF/88), quando se refere ao bem econômico água. Por exemplo: água para navegação,
água para produção de energia elétrica, água como recurso mineral. Por outro lado, quando
nos referimos sobre a proteção das águas como recurso natural (recursos naturais: ar, solo,
subsolo, água, ora e a fauna), a competência será concorrente (artigo 24, VI, CF/88).
Em 1981, a Lei nº 6.938/81 institui a Política Nacional do Meio Ambiente,
posteriormente alterada pela Lei nº 7.804. A água está enquadrada no conceito de recurso
ambiental, conforme disposição do artigo 3º, V da referida lei, que também instituiu o
Sistema Nacional do Meio Ambiente – SINAMA, cujo órgão superior é o Conselho
Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, ao qual compete, entre outras atribuições
“estabelecer normas e critérios e padrões relativos ao controle e à manutenção da qualidade
do meio ambiente com vistas ao uso racional dos recursos ambientais, principalmente os
hídricos. A esse respeito, Edis Milaré a rma

[...] note-se a ênfase dada aos recursos hídricos entre os demais recursos ambientais.
Aliás, a mesma Lei também enfatiza as águas ao de nir os recursos ambientais
como sendo: “a atmosfera, as águas interiores, super ciais e subterrâneas, os
estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e
a ora. (MILARÉ, 2000, p.387)

E ainda cabe referir que em 08 de janeiro de 1997 entrou em vigor a Lei Federal
nº 9.433/97, conhecida como a “Lei das Águas”, com a função de instituir a Política
Nacional de Recursos Hídricos e criar o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos.
A lei é composta de 57 artigos que traçam a Política Nacional de Recursos Hídricos,
seus fundamentos, objetivos, diretrizes de ação e instrumentos, dando principal ênfase
à outorga e à possível cobrança pelo uso desse recurso, além de especi car quais são

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 87


os órgãos que irão compor o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos
(BARROS, 2005, p.63).
Desse modo, por ter a Lei das Águas trazido transformações no tratamento
legislativo da água, e também pela referência de que esse recurso natural não é in nito,
será tratada a referida lei no próximo capítulo.

7 POLÍTICA NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS:


LEI Nº 9.433, DE 08 DE JANEIRO DE 1997
A Lei nº 9.433/97 regulamentou o artigo 21, XIX, da Constituição Federal de
1988, e instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos que cria o Sistema Nacional
de Gerenciamento de Recursos Hídricos. A denominada “Lei das Águas” tem por m
maior, a manutenção do desenvolvimento sustentável dos recursos hídricos, seguindo
a própria orientação do artigo 225 da Constituição Federal. Além disso, visa dar uma
qualidade de vida igual, ou melhor, para as futuras gerações, evitando que faltem recursos
hídricos em um futuro próximo.
A Lei nº 9.433/97 tem como objetivos:

Art. 2º São objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos:


I - assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em
padrões de qualidade adequados aos respectivos usos;
II - a utilização racional e integrada dos recursos hídricos incluindo o transporte
aquaviário, com vistas ao desenvolvimento sustentável;
“III - a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem natural
ou decorrentes do uso inadequado dos recursos naturais”.

Conforme ensina Paulo Affonso Leme Machado, a “Lei das Águas demarca
concretamente a sustentabilidade dos recursos hídricos em três aspectos: disponibilidade
de água, utilização racional e utilização integrada” (MACHADO, 2000, p.433).
Para Luís Paulo Sirvinskas: “busca-se, além disso, dar uma qualidade de vida
igual, ou melhor, para as futuras gerações, evitando que esses recursos venham a faltar
no futuro” (SIRVINSKAS, 2002, p.136).
Com base no artigo 1º da Lei nº 9.433/97, a Política Nacional de Recursos Hídricos
tem, como fundamentos:

I – a água é um bem de domínio público; II – a água é um recurso natural limitado,


dotado de valor econômico; III – em situações de escassez, o uso prioritário dos

88 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais; IV – a gestão
dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas; V – a
bacia hidrográ ca é a unidade territorial para a implementação da Política Nacional
de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos; VI – a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com
a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades.

Ao se observar o inciso I do artigo 1º da Lei, nota-se que a Constituição Federal


de 1988 já havia de nido a água como um bem público, inexistindo a partir de então,
quaisquer águas privadas no âmbito do direito brasileiro.
Maria Luiza Machado Granziera explica a origem da tendência mundial à
publicização dos recursos hídricos:

[...] quanto maior a importância de um bem à sociedade, maior a tendência a sua


publicização, com vista na obtenção da tutela do Estado e da garantia de que
todos poderão a ele ter acesso, de acordo com os regulamentos estabelecidos. No
que se refere às águas, as coisas não passam de forma diferente. (GRANZIERA,
2001. p.88)

As águas são bens públicos e se classi cam entre aqueles de uso comum do povo,
um bem social. Conforme Paulo Affonso Leme Machado

se o legislador constituinte procedeu à classi cação de meio ambiente, e sendo a


água um de seus elementos constitutivos, a ela se aplica a mesma classi cação,
sendo, portanto, bem público de uso comum do povo, fazendo com que se aplique à
água o enunciado do caput do artigo 225 da CF/88. (MACHADO, 2000, p.421)

Na análise do inciso II, do artigo 1º da Lei nº 9.433/97, percebe-se a conscientização


de que além de ser um recurso nito, a água vem se tornando um bem escasso, situação já
vista no fato de que, apenas 2,7% do total de água existente no Planeta Terra é água doce,
aproveitável para consumo e para a irrigação. E segundo Luiz Antônio Timm Grassi

[...] hoje, com o crescimento demográ co e econômico, multiplicam-se os usos


das águas e crescem rapidamente suas demandas, embora a quantidade global
disponível seja sempre a mesma. Abastecimento humano, dessedentação de
animais, indústria, agricultura, navegação, geração de energia elétrica, pesca,
esportes, e outros mais, são os usos que estão se intensi cando cada vez mais tanto
global quanto localizadamente. (GRASSI, apud BARROS, 2005, p.71)

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 89


Vale lembrar também da questão da poluição dos mananciais, o que contribui para
a escassez de forma qualitativa.
Com isso, por ser um recurso útil e escasso, a água passou a ter um valor econômico,
propósito embasado constitucionalmente nos princípios gerais da atividade econômica,
do artigo 170, VI da CF/88. A partir dessa realidade, o legislador dispôs no artigo 19
da Lei nº 9.433/97, a conexão com o dispositivo constitucional, através da cobrança
obrigatória pelo uso dos recursos hídricos. Cabe esclarecer, que o que se paga, hoje, é o
serviço de captação de água e seu tratamento, e não a utilização em si do recurso, apesar
de ser essa a intenção maior do legislador. Ressalta-se aqui, que os valores atuais cobrados
pelo serviço de tratamento e captação da água são acessíveis a todos e não são abusivos,
servindo principalmente como estímulo à racionalização e como alerta ao usuário de que
a água não é sua propriedade e sim um bem público comum.
O objetivo principal que se busca com o emprego da cobrança de uso dos recursos
hídricos é “reconhecer a água como um bem econômico e dar ao usuário uma indicação
de seu real valor” (art. 19, I, da Lei nº 9.433/97).
Nas palavras de Luis Paulo Sirvinskas: “[...] fazer com que o usuário não a
desperdice, utilizando-a de forma racional. É uma forma de o Poder Público obter os
recursos necessários para o nanciamento dos programas e intervenções contemplados
nos planos de recursos hídricos (art. 19, II e III, da Lei nº 0.433/97)” (SIRVINSKAS,
2002, p.134).
A água como bem econômico está intimamente relacionada com a cobrança pelo
uso dos recursos hídricos. Busca-se através deste instrumento uma maior conscientização
por parte dos consumidores, utilizando-a de forma racional a m de que seja preservada
para as gerações futuras (BARROS, 2005, p.73).
Outrossim, a cobrança pelo uso das águas, conforme o artigo 19 da Lei de Águas,
possui os seguintes objetivos:

I – o reconhecimento da água como bem econômico, demonstrando ao usuário uma


indicação do seu real valor (artigos 1º, II e 19, I da Lei nº 9.433/97);
II – o estímulo à racionalização do uso dos recursos hídricos (artigo 19, II, Lei
nº 9.433/97);
III – a arrecadação de recursos, visando ao financiamento de programas e
intervenções previstos nos Planos de Recursos Hídricos. (COMMETTI, GUERRA,
VENDRAMINI, p.76)

Vem disposto nos artigos 11 a 18 da Lei nº 9.433/97 um tema de grande relevância


na proteção das águas, “o direito de outorga sobre os recursos hídricos”, que regulamentam
o artigo 21, XIX da Constituição Federal de 1988.

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Maria Luiza Granziera Machado de ne que

[...] a outorga de direito de uso da água é o instrumento através do qual o


Poder Público atribui ao interessado, público ou privado, o direito de utilizar
privativamente o recurso hídrico. Esse instrumento de gestão tem assumido uma
importância cada vez maior, à medida que a situação dos recursos hídricos, de
poluição e escassez requer um controle maior por parte da União e dos Estados.
(GRANZIERA, 2001, p.152)

Direito de uso é o instituto jurídico de Direito Administrativo pelo qual o poder


público, União, Estados ou Distrito Federal, atribui a outrem, ente público ou privado, o
direito de uso do bem público água de forma onerosa. Não se confunde com os contratos
de locação, arrendamento, comodato ou até mesmo o direito real de uso que são contratos
tipicamente privados (BARROS, 2005, p.86).
A água, como um bem de domínio público, deve, como princípio fundamental,
ser administrada pelo próprio ente público a quem a Constituição Federal legitimou
competência para administrá-la. A outorga é a faculdade de repassar esta administração
a terceiros (BARROS, 2005, p.86).
O regime de outorga de direitos da utilização das águas possui dois objetivos, quais
sejam garantir o controle da qualidade e da quantidade do uso dos recursos hídricos, e
assegurar o exercício concreto dos direitos à acessibilidade de tais recursos naturais
(artigo 11, Lei nº 9.433/97).
Em 27 de julho de 1999, na cerimônia de abertura do seminário “Água o desa o
do milênio”, realizado no Palácio do Planalto em Brasília, foram lançadas as bases do
que seria a Agência Nacional de Águas – ANA: órgão autônomo e com continuidade
administrativa, que atuaria no gerenciamento dos recursos hídricos.
A Agência Nacional de Águas (ANA) foi criada através da Lei nº 9.984/00,
sendo uma autarquia sob regime especial com autonomia administrativa e nanceira
e está vinculada ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), cuja função principal é a
de implementar os instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos, outorgar,
scalizar e cobrar o uso dos recursos hídricos de domínio da União (ANTUNES,
2002, p.604).
Compete à ANA criar condições técnicas para implementar a Lei das Águas (Lei
nº 9.433/97), promover a gestão descentralizada e participativa, em sintonia com os
órgãos e entidades que integram o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos, implantar os instrumentos de gestão previstos na Lei nº 9.433/97, dentre eles a
outorga preventiva e de direito de uso de recursos hídricos, a cobrança pelo uso da água
e a scalização desses usos, e ainda, buscar soluções adequadas para dois problemas no
país: as secas prolongadas (especialmente no Nordeste) e a poluição dos rios (ANTUNES,
2002, p.605).

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Conforme orientação institucional do Ministério do Meio Ambiente, a Agência
Nacional de Águas tem como missão implementar e coordenar a gestão compartilhada
e integrada dos recursos hídricos e regular o acesso à água, promovendo o seu uso
sustentável em benefício da atual e das futuras gerações.

8 CONCLUSÃO
Ao concluir o presente estudo, são pertinentes algumas considerações sobre esse
importante e fascinante tema.
Apesar de todo o avanço tecnológico, de todo o conhecimento cientí co adquirido
durante séculos de existência, o ser humano, animal racional, não é diferente dos animais
“irracionais”, e nem tão pouco superior a qualquer tipo de vida existente no Planeta
Terra. Estudos cientí cos comprovam que o ser humano pode viver até 28 dias sem a
ingestão de alimentos, mas somente de 3 a 5 dias sem ingerir água.
Não se pode negar, que o tema “Meio Ambiente” está em voga, ou na vanguarda,
como dizem alguns. Isso é salutar e visto com bons olhos por toda a sociedade. Espera-
se, que assim como outros temas tido como importantes, que a preocupação ambiental
não seja tema “da moda”.
A dinâmica do Direito na questão ambiental, e em particular, no que diz respeito à
água, tem sido ágil no Brasil. Ao mesmo tempo em que se dispõe de uma legislação que
parece adequada e aparelhada, com a criação de uma política e de órgãos competentes,
a realidade demonstra a necessidade de uma ação educativa, que busque criar uma
consciência coletiva de cultura prevencionista e preservacionista.
A Lei nº 9.433/97, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos é precisa
ao considerar a água um bem de domínio público, e que está sujeita à outorga do órgão
administrativo competente, concedendo-se apenas o direito de uso, com a exigência
do dever de proteção. Lembra-se que outorga não signi ca alienação, mas sim uma
concessão sob determinadas condições.
A Agência Nacional de Águas (ANA), incumbida da gestão do Sistema Nacional
de Gerenciamento de Recursos Hídricos como autarquia em regime especial, signi ca
um avanço capaz de garantir a implementação de uma política nacional, bem como a
organização de um sistema nacional de informações sobre recursos hídricos.
A importância da instituição dos instrumentos de outorga e cobrança nas políticas
de recursos hídricos no âmbito nacional e estadual, cujos propósitos principais são a
racionalização, conscientização e multiplicidade de usos da água.
A cobrança do uso dos recursos hídricos dá ao usuário a real indicação de seu
valor como um bem, além de incentivar o seu uso racional, coibindo o desperdício.
É também uma forma de obter recursos nanceiros para os programas e intervenções

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contemplados nos planos de recursos hídricos. Lembra-se, que o que se paga no Brasil
atualmente, são os serviços de captação e tratamento da água, diferentemente do que
ocorre em países como Chile e Bolívia.
A mercantilização da água, assim como a privatização dos seus serviços
de distribuição, se insere em um quadro de supremacia do capitalismo nanceiro
internacional, que vê a água como um “novo negócio”, semelhante ao que ocorreu com
o petróleo no século XX. Além dos prejuízos econômicos causados ao Poder Público, os
mercados de direito de água constituem uma ameaça à própria existência dos excluídos
das relações de propriedade do recurso, já que além de insumo, é um recurso vital para
existência e manutenção de todo o tipo de vida.
O valor econômico adquirido pela água poderá levar, em um futuro próximo a
disputas internas e externas pelo seu uso e apropriação, dado o seu caráter de bem de
domínio público e de recurso natural limitado. O Brasil, por ter o privilégio de possuir
uma das maiores reservas de água do planeta, poderá ser alvo de disputas e especulações,
devendo estar atento à legislação em âmbito internacional.
A água, como bem de uso comum do povo, ou seja, um bem de domínio público
é insuscetível de apropriação privada. Deve ainda ser usada de acordo com o interesse
público e em conformidade com os critérios legislativos presentes. A União e os Estados,
enquanto Poderes Públicos devem portar-se como gestores transparentes, prestando contas
de sua gestão ambiental e de recursos hídricos a toda sociedade.
Também o cidadão comum deve demonstrar interesse de preservar e proteger o meio
ambiente, tendo consciência de que se trata de um direito difuso, solidário, de titularidade
indeterminada, que interessa às presentes e futuras gerações.
O reconhecimento da água como um direito fundamental decorre do direito à vida,
constitucionalmente normatizado como o direito mais fundamental de todos os direitos
do homem. O fato é que não existe vida sem água, em nenhum aspecto. A relação que
existe entre o homem e a água antecede o Direito, por ser elemento intrínseco à sua
sobrevivência.
E, enquanto direito fundamental, o direito à água potável e fornecida em qualidade
e quantidade su ciente para garantir aos cidadãos uma vida compatível com a dignidade
humana, é inalienável e irrenunciável. A água é a fonte da vida e seu acesso deve ser
público e garantido a todos, uma vez que a água é um bem ambiental de uso comum
da humanidade, prevalecendo acima de quaisquer outros interesses políticos ou
econômicos.
Por m, como forma de incrementar a educação e estimular a conscientização sobre
a importância deste tema, cabe mencionar a urgência de tornar obrigatória a disciplina
de Direito Ambiental na grade curricular de todos os níveis de ensino no país, bem como
do investimento em acervo bibliográ co atualizado sobre o tema.

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A sumarização do processo: o antes, o agora
e o depois ou o ir e vir dos textos legislativos
Elaine Harzheim Macedo

RESUMO
A sumarização procedimental representa técnica de ajustar o processo às especificidades
do direito material, visando à justa composição do conflito. Experiências pretéritas não devem ser
negligenciadas, podendo mostrar-se úteis na construção de novos mecanismos hábeis a produzir
uma prestação jurisdicional efetiva e tempestiva. A secular tendência de encaminhar o processo à
ordinariedade tende, periodicamente, a se fazer presente nos textos legislativos, revestidos do manto
de reformas, seduzindo os operadores do direito em nome de uma simplicidade que, na essência,
é e sempre será estranha ao processo, ainda que não o seja ao procedimento.
Palavras-chave: Sumarização procedimental. Técnicas de sumarização. Ordinariedade.
Textos legislativos.

Shortening the duration of litigation: Before, now and after;


the come and go of legislation

ABSTRACT
The shortening of the duration of litigation procedures represents a technique of adjusting
the litigation to the specificities of substantive law with the purpose of getting a fair resolution.
Previous experiences should not be ignored and could be found useful when creating mechanisms
to enable a more effective and timely adjudication. The trend of filling lawsuits in ordinary courts
tends to be periodically seen in legislation, covered by amendments, enticing legal professionals
by arousing a simplicity that is essentially not connected to the litigation process even though it
is related to the procedures.
Keywords: Shorten duration of litigation. Techniques of shortening. Ordinariness.
Legislation.

1 NOTAS INTRODUTÓRIAS
A ordinarização que inspira o processo pátrio foi e continua sendo o obstáculo, senão
principal, mais arraigado nas práticas forenses a ser vencido na construção de um novo
paradigma de processo. De quatro ordens distintas são as alternativas que se revelam hábeis
a produzir um processo que cumpra função jurisdicional construtiva, divorciando-se do
padrão herdado da velha ordem. A primeira, que nos interessa mais de perto neste trabalho,
envolve técnicas procedimentais comprometidas com a sumarização, que tanto pode atuar
no plano formal do processo como no da atividade cognitiva. Comporta experiências já

Elaine Harzheim Macedo é Doutora em Direito pela UNISINOS, Mestre em Direito pela PUCRS. Professora do
Curso de Graduação e Pós-Graduação lato sensu da ULBRA. Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul.

Direito e DemocraciaDireitoCanoas v.11 v.11,n.1


e Democracia, p.95-116
n.1, jan./jun. 2010 jan./jun. 2010 95
inseridas em nosso ordenamento jurídico, cuja revitalização, aperfeiçoamento e ampliação
de incidência podem em muito contribuir para a viragem do processo. Quanto às demais,
que aqui apenas comporta referir, ao efeito de respeitar a delimitação do tema proposto,
registra-se a adoção do juízo de verossimilhança, como alternativa ao exercício do juízo
de cognição e de valoração tradicionalmente identi cado com a certeza e que reclama
grau máximo de convicção (e, portanto, de conhecimento), que a tradição romano-
canônica expurgou da atividade jurisdicional; a consagração da convivência, de forma
equilibrada no âmbito procedimental, de duas atividades intrinsecamente distintas e que,
em princípio, se excluem: a cognição e a execução; e, por derradeiro, uma radical inversão
do atual sistema recursal, priorizando o juízo monocrático e as instâncias locais, e, via
de consequência, reduzindo o campo de abrangência dos tribunais superiores bem como
dos tribunais estaduais e regionais.
Tais plataformas não se encontram isoladas, estanques, divorciadas uma das outras,
disputando, ao contrário, espaços, de nições e instrumentos que se cruzam, encontrando
pontos em comum, de modo que, na verdade, é a adoção do conjunto dessas medidas
que poderá alcançar um resultado e ciente. Algumas, como já registrado, contam com
antiga tradição em nosso ordenamento jurídico e com práticas vigentes, embora aplicadas
ou em caráter de exceção ou contaminadas pela ordinarização. Outras, ainda que não
constituam novidades, estão desbotadas pelo desuso. Importante, contudo, registrar, que
a consciência jurídica deste terceiro milênio já dá mostras, através de recentes revisões e
reformas do ordenamento jurídico, da necessidade de se reverter o atual sistema. O que
preocupa, ainda assim, é a que ponto tais conteúdos estão efetivamente comprometidos
com a ética de mudança, sem a qual não basta alterar o texto legal, pois não raro o
intérprete lê o novo com os olhos do velho, quando, fatalmente, o novo se tornará velho
antes mesmo de ser novo. Ou, o que é mais grave, eventual retrocesso por força de novas
leis descompromissadas com o mister de construir uma jurisdição afeita aos valores
consagrados na Constituição Federal.

2 SUMARIZAÇÃO DO PROCESSO
O vocábulo sumarização, no universo processual, pode traduzir dois aspectos
distintos do processo, ambos relativos a questões de técnica processual, se angularizada a
questão sob a ótica de dinâmica do processo e de suas características de instrumentalidade.
Na primeira acepção, a sumarização refere-se ao procedimento ou forma que o processo
adquire, esgotando-se no plano processual, irrelevante a natureza do direito material
tutelado. Sua utilidade está voltada, essencialmente, para a pouca expressão econômica
ou menor complexidade fática do con ito de interesses. Cuida-se de técnica processual
stricto sensu, na medida em que sua adoção modi ca os atos processuais que compõem
o iter procedimental e sua tramitação, sem lhes alterar a essência. É conhecida como
sumarização formal, resolvendo-se pela maior simplicidade e dispensa de requisitos
na prática de certos atos processuais; pela observância, em maior grau, da oralidade;
pela redução de prazos; pela concentração de atos, apenas para citar algumas previsões
legislativas dessa alternativa.

96 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


No direito pátrio a técnica de sumarização formal encontra sua principal incidência
no procedimento sumário do processo de conhecimento, artigos 275 e seguintes do CPC,
e nos procedimentos dos Juizados Especiais Cíveis. Além disso, sua utilização também
se dá, de forma secundária, em procedimentos que se caracterizam pela segunda acepção
do vocábulo, isso é, pela sumarização material, cumulando as técnicas de se desenvolver
o processo. É o que ocorre, por exemplo, com os procedimentos que servem o processo
cautelar, aonde o prazo de contestação vai reduzido para 5 (cinco) dias (art. 802, do CPC),
além de agregar, também, uma maior concentração de atos, limitando as postulações à
petição inicial e à contestação, ainda que tais simpli cações formais decorram diretamente
da limitação do debate posto, a saber, o bom direito e o risco ou prejuízo da demora (art.
801, inciso IV, CPC).
2.1 A sumarização formal goza de velha tradição no processo de origem romano-
canônica, deitando suas raízes no Alto Medievo, quando o processo, desenvolvido pelos
canonistas a partir da redescoberta e releitura do Corpus Juris Civilis, havia alcançado
um grau de formalismo indesejado, exigindo reformas no sentido de simpli car o seu
procedimento, das quais, a mais signi cativa, a protagonizada pelo Papa Clemente V, a
famosa Saepe contingit. Fairen Guillén, destacando a importância desta obra, resumiu os
princípios informantes desta sumarização de juízo em sete tópicos: a liberação da listis
contestatio (que considera a medida mais importante, por razões a seguir abordadas); a
limitação das apelações contra as decisões interlocutórias; a liberação da ordem legal dos
atos (amplos no solemnis ordo iudiciarius); o encurtamento de prazos; poder ao Juiz de
direção do processo para repelir o que fosse supér uo; poder de julgar, com encerramento
da audiência, quando devidamente convencido; supressão de formalidades supér uas,
priorizando a oralidade como meio de interação (1953, p.44-45).
O jurista de Valência aponta como principal causa da excessiva ordinariedade que
passou a dominar o processo, a desencadear, como reação, a reforma por sua sumarização,
a transformação que a litis contestatio, instituto da maior relevância no processo do
direito romano clássico, sofreu ao longo dos tempos. Primeiro, por força da própria
obra de Justiniano, permeada pela contradição entre homenagear a história e o passado,
fazendo renascer o que já estava extinto, e a exuberante vontade inovadora que sinalizou
seu império. Segundo, pela in uência do trabalho dos glosadores, cuja insu ciência
de sentido histórico levou-os a considerar o Corpus Juris como uma unidade jurídica,
dando ensejo a que os erros iniciais se sacramentassem, criando-se o mito (GUILLÉN,
1953, p.30-32).
Dessa sorte, o que era um instrumento útil especialmente nas actiones in personam,
cujo direito material em jogo era o direito obrigacional, obrigando-se as partes à
delimitação do objeto litigioso que pela litis contestatio se operava (cujo pronunciamento
tinha presente as defesas deduzidas, limitando o debate àquelas aceitas e estabelecidas),
aceitando a de nição da fórmula imposta pelo pretor para gerir a fase subsequente do
procedimento, e, como decorrência, sujeitando-se a res judicata da declaração emanada
na segunda fase, culminou por imprimir ao processo que se praticou ao longo da Idade
Média sua forma, despida, porém, de seu conteúdo, de sua aplicação e incidência a

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 97


determinadas situações de direito material. Em suma, o que era especial, generalizou-
se, tornando-se paradigmático, especialmente por sua adoção nas demandas reais, como
explorou à saciedade Baptista da Silva em sua obra Jurisdição e execução na tradição
romano-canônica.
Não se olvida, contudo, que as causas que levaram ao excessivo formalismo do
processo desenvolvido na Idade Média são complexas e de diversas ordens, mas o caráter
privado da jurisdição e da própria nalidade do processo, utilizado para con itos de
interesses privados (inexistia a noção de Estado e, portanto, o conceito de direito público
era precário e pouco desenvolvido), a predominância do elemento lógico no exercício da
atividade e a adoção do sistema da prova legal muito contribuíram para a ordinarização
do processo e seu apego às formas.
De qualquer sorte, nessa primeira fase de adoção de formas sumárias, em
contraposição ao solemnis ordo iudiciarius, as quais inúmeros estatutos medievais
passaram a referir, utilizou-se o novo procedimento simpli cado para compor con itos
que clamavam por soluções distintas, podendo ter como critério de incidência o pequeno
valor da causa, a necessidade de tutela urgente, o estado de miserabilidade da pessoa,
ou em razão do pequeno prejuízo. Especialmente com a Saepe contingit, foi, porém,
ganhando maior abrangência o seu campo de incidência, passando a exigir um tratamento
diferenciado, conforme o direito tutelado.
2.2 Tal não autoriza, porém, segundo o autor espanhol, a confundir o que ele
denomina de juicios plenarios rápidos, de procedimento abreviado, e juicios sumarios,
pois enquanto os primeiros se divorciam do ordinário por sua forma, atendendo demandas
que, por sua índole, poderiam ser resolvidas pelo procedimento comum, isto é, o litígio
sendo decidido de nitivamente, submetendo-se ao debate e ao conhecimento toda a
matéria de fundo, mas que, por traduzir pouco valor econômico ou por presumir singeleza
na solução do con ito, dispensam tratamento solene e formal, o segundo grupo contém
mais do que alterações formais (que até podem estar presentes), implicando limitação em
seu conteúdo, onde apenas um ponto, uma fatia, um aspecto da lide material é “recortada”,
passando a conduzir o debate, a prova e a decisão. É o que nos ensina Fairen Guillén

Los medios de una simple aceleración formal del procedimiento, por su origen,
estructura y fines, son tan diferentes de los aplicados para obtener un proceso
sumario (restringiendo su contenido material a través de una limitación de los
derechos de las partes con respecto a los medios de defensa), que el colocar a
unos y a otros unidos como iguales enfrente del proceso declarativo ordinario,
es científicamente imposible. Las pautas de “sumariedad” – evitaremos de
aquí en adelante en lo posible esta equívoca palabra en cuanto referencia a los
procedimientos plenarios rápidos – son perfectamente diversas en ambos grupos
de tipos; no se trata de dos subgrupos yuxtapuestos bajo la denominación común
de “juicios sumarios”; pues esta “sumariedad”, en los plenarios rápidos es
simplemente de carácter formal, en tanto que en los sumarios propiamente dichos,
tiene carácter material. De otra parte, por su finalidad, como hemos dicho, los

98 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


procesos sumarios corresponden a una Parte específica de nuestra disciplina,
en tanto que a los procedimientos plenarios rápidos no se les puede separar
lógicamente del declarativo ordinario; ya que la aceleración del proceso es un
principio que a todos ellos alcanza (1953, p.55-56)

Também Chiovenda distinguia, num primeiro plano, a cognição em plenária ou


ordinária e sumária: no primeiro grupo a cognição se dá de forma completa, submetendo-
se ao juiz o exame exauriente de todas as razões e defesas das partes; nos processos de
cognição sumária este exame não é exaustivo, operando parcialmente. A partir dessa
distinção, o mestre italiano classi cava o processo de conhecimento, capaz de gerar
sentenças declaratórias, constitutivas e condenatórias, como processo de cognição plenária,
enquanto que a jurisdição com predominante função executiva e os respectivos processos
(processos cambiais, procedimento monitório ou injuncional, processos que admitem
condenação com execução provisória) eram situados no grupo da cognição sumária,
distinguindo-os, contudo, do procedimento sumário, o qual identi cava apenas como
simpli cação dos atos judiciários (1969 (I), p.236-237).
Kazuo Watanabe, aprofundando o tema da cognição, parte de uma sistematização
mais ampla, distinguindo os planos horizontal, que traduz a extensão, a amplitude da
cognição, e vertical, que diz com sua profundidade, a gerar combinações que podem
ser concebidas em procedimentos diferenciados, conferindo ao processo um melhor
desempenho voltado para a realização do direito material a ser tutelado, vinculando a
cognição, o procedimento e a cláusula do devido processo legal

O direito à cognição adequada à natureza da controvérsia faz parte, ao lado dos


princípios do contraditório, da economia processual, da publicidade e de outros
corolários, do conceito de “devido processo legal”, assegurado pelo art. 153, §
4º, da Constituição Federal. “Devido processo legal” é, em síntese, processo com
procedimento adequado à realização plena de todos esses valores e princípios.
É através do procedimento, em suma, que se faz a adoção das várias combinações
de cognição considerada nos dois planos mencionados, criando-se por essa forma
tipos diferentes de processo que, consubstanciando um procedimento adequado,
atendam as exigências das pretensões materiais quanto à sua natureza, à urgência
da tutela, à de nitividade da solução e a outros aspectos, além de atender as opções
técnicas e políticas do legislador. Os limites para a concepção dessas várias formas
são os estabelecidos pelo princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional
e pelos princípios que compõem a cláusula do “devido processo legal”. (1987,
p.93-94)

Tais palavras, mesmo escritas sob a ótica da Constituição pretérita, em nada vêm
diminuídas frente ao pacto de 1988, ao contrário, ganham maior relevância, considerando
a hierarquia que os direitos fundamentais do homem alcançaram, entre os quais o próprio
devido processo legal, a desa ar o jurista e o intérprete na adoção, pelo processo, da carga
de cognição adequada ao direito material em jogo.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 99


Sem embargo das nuanças que a sumariedade pode assumir no processo, passa
a ser questão vital a adoção de um ou de outro critério (cognição plenária ou cognição
sumária) para gerir o processo.
Com razão Fairen Guillén quando a rma que a ideia de ordinariedade, em oposição
à sumariedade, está atrelada ao desejo de acabar para sempre com o litígio entre as partes,
orientação assimilada pelo nosso ordenamento jurídico, de modo que todas as defesas,
todas as exceções, todos os debates (e, consequentemente, todas as provas: art. 332,
CPC) sejam postos e explorados numa única relação processual, com pronunciamento
judicial capaz de produzir o acertamento de todas as controvérsias, quali cando-se pela
indiscutibilidade (instituto da coisa julgada: art. 474, CPC). Trata-se, contudo, de ideal
in uenciado pelo pensamento iluminista, tudo se resolvendo através da racionalização do
conhecimento e mediante a adoção de métodos rígidos, formais e previamente conhecidos,
implacavelmente afeitos a descobrir a verdade, que, em última análise, é o escopo, segundo
tal padrão, da jurisdição porque o direito é preconcebido na lei. Tema recorrente, que
traduz a predominância da generalização sobre o especial, pelas razões antes apontadas,
e do qual tem se revestido à exacerbação o processo comum e sua ordinarização.
Sob o manto da priorização da verdade e da certeza, caiu em ostracismo uma
relação indispensável para a efetividade do processo, que Marinoni, seguindo a linha de
pensamento de Baptista da Silva, resume com precisão

Para que o processo possa, realmente, tutelar os direitos é necessário que a ação seja
pensada na perspectiva de direito material. Se o processo objetiva tornar efetivo
o direito material, o resultado da ação processual deve corresponder exatamente
àquilo que se veri caria se a ação de direito material (= o agir) pudesse ser realizada.
A ação processual, em outras palavras, deve ser uma espécie de realização da ação
privada, ou seja, da ação que foi proibida quando o Estado assumiu o monopólio
da jurisdição. (1999, p.206)

Trata-se de orientação que resgata o princípio até então estabelecido pelo art. 85, do
Código Civil revogado, o que não signi ca comprometimento com a teoria civilista da
ação, porque o direito a rmado, sob cuja ótica deve ser interpretada a predita disposição,
reclama, como sempre reclamará, de um reconhecimento, de um acertamento, implícita
esta atividade judicial em qualquer pronunciamento, por maior ou menor extensão que
possa ter. Entre o que se a rma e o que se passa a ter como existente há um percurso que
os liados à posição doutrinária aqui defendida não negam, ao contrário, rea rmam.
A substancialidade que se pretende carregar para o processo não tem o condão
de transformar a relação processual em relação de direito material ou mesmo em ação
material, correspondendo a planos distintos, que se sobrepõem de forma paralela, jamais se
interligando, isso é, sem operar entre os mesmos uma simbiose. Dizendo de outro modo,
o processo, para que se torne efetivo, deve guardar correspondência ao direito material
perseguido pela parte que se sentiu lesada e porque lhe foi retirado o poder de autotutela. E

100 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


essa correspondência signi ca assegurar não só a pretensão à tutela jurisdicional (nenhuma
lesão ou ameaça a direito será subtraída da apreciação pelo Poder Judiciário), mas também
à adequada tutela jurisdicional (ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal), cumprindo à legislação processual e aos intérpretes seguirem tais
princípios consagrados como direitos fundamentais do homem pela Constituição. E, nas
palavras de Marinoni, falar em tutela adequada é traduzir “a necessidade de procedimento,
cognição, provimento e meios executórios adequados às peculiaridades da pretensão de
direito material” (1999, p.215).
É preciso, porém, registrar que a sumariedade no processo vem abordada sob
nuanças distintas, o que o tema até certo ponto permite. Assim, enquanto Kazuo Watanabe
e Marinoni orientam-se pela sumarização procedimental, que ocorre no sentido de
melhor instrumentalizar determinadas demandas de direito material, operando como
técnica interna ao procedimento, Baptista da Silva vai além, defendendo a sumarização
no processo comum, como forma de encurtar, diminuir, enxugar discussões e debates,
remetendo parte da lide para eventual e futura oportunidade, a exemplo do que acontece
com os procedimentos que transferem o contraditório para iniciativa do demandado e
para momento posterior ao da ação promovida pelo autor. Trata-se, portanto, de propostas
que não se excluem, mas, ao contrário, somam-se.
2.3 Neste universo, falar em cognição é conviver, também, com as técnicas que
levam à sumarização da atividade cognitiva, priorizando, em razão do direito material
subjacente, apenas algumas “fatias” do con ito de interesses, em detrimento de outras, cuja
apreciação, porque assegurado o livre acesso e a não exclusão de qualquer lesão a direito
à apreciação pelo Poder Judiciário, até poderá ser objeto de pronunciamento judicial, mas
em outro feito, em outro momento, em outro juízo. Pela ótica do corte de conhecimento
avalia-se o con ito de forma angularizada, limitando-se o debate, ao qual cam adstritas
as alegações e defesas, as provas, o provimento judicial. O que escapa desse ângulo, não é
acertado, não é declarado, não transita em julgado e poderá ser objeto de nova demanda,
de outro acertamento, com ou sem re exo sobre o primeiro pronunciamento.
É assim que acontece – ou deveria acontecer – com a tutela possessória, por exemplo.
Ao tutelar-se a posse do possuidor agredido, ainda que o agressor tenha sido o proprietário
do bem, não se retira desse a garantia de vir buscar em pleito próprio – demanda petitória
– a tutela à sua condição de proprietário. Mas enquanto a posse, como exercício fático
sobre a coisa, sofre agressão (esbulho, turbação, ameaça), tutela o sistema aquele que
a exerce através dos interditos possessórios, tradicionalmente contemplados no direito
positivo, o que perdura até que em ação própria venha a ser declarado que essa posse –
fato assim reconhecido naquele feito – quali ca-se pela injustiça, ausente qualquer título
que a legitime, face à propriedade de outrem.
Vale dizer, em ação possessória não se discute a justiça ou injustiça da posse, mas
tão-somente sua existência fática agredida. Tais princípios – norteadores dos respectivos
bens tutelados e contemplados pela legislação pátria – respondem a uma tradição milenar
da dicotomia entre a tutela da posse e a tutela da propriedade, que a pós-modernidade
não logrou substituir por outros valores. A posse – e, portanto, sua tutela – é ínsita a

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 101


qualquer coletividade que pretenda ter um mínimo de convivência pací ca e harmônica.
Já a propriedade é um direito que pode ou não ser reconhecido pela coletividade, a
re etir-se normativamente no respectivo ordenamento jurídico. Em sendo albergado,
merece como qualquer outro direito assegurado, tutela, mas nem por isso restará a tutela
da posse enquanto posse exercida diminuída em sua indispensabilidade à convivência
do grupo social.
Quando se a rma, como se a rmou antes, que a ordinariedade avança e se sobrepõe
à especialidade ou sumariedade, por força de ideias que permeiam o conhecimento e
a prática jurídicos, contaminadas pelos princípios e dogmas racionalistas, também
na questão da dicotomia posse e propriedade os exemplos se mostram apropriados,
especialmente na interpretação que se deu e continua se dando ao art. 923 do código,
quando teve sua segunda parte (“Não obsta, porém, à manutenção ou à reintegração
na posse a alegação de domínio ou de outro direito sobre a coisa; caso em que a posse
será julgada em favor daquele a quem evidentemente pertencer o domínio”) suprimida
pela Lei nº 6.820/90. A drástica supressão, restabelecendo a sumariedade das ações
possessórias, sempre encontrou forte resistência nos operadores do Direito, valendo-se
da Súmula nº 487 do Pretório Excelso (“Será deferida a posse a quem, evidentemente,
tiver o domínio, se com base neste for ela disputada”), ainda vigente e inspirando
decisões, que não correspondem a meros casos isolados, podendo ser encontrados
inúmeros exemplos em qualquer obra de comentários ou de anotação à legislação
processual. As seguintes citações de Theotonio Negrão, entre outras, a propósito do
art. 923, do CPC, dão conta disso

A consequência prática desta disposição será que o possuidor não proprietário,


desde que ajuíze ação possessória, poderá impedir a recuperação da coisa pelo
seu legítimo dono; cará este impedido de recorrer à reivindicação, enquanto a
possessória não estiver de nitivamente julgada.
Como esta conclusão parece absurda, embora fundada na letra clara da lei, a doutrina
e a jurisprudência têm reagido contra ela.
Assim, em RT 507/194, por maioria, cou decidido que o réu na possessória pode
ajuizar reivindicatória contra o autor desta (no mesmo sentido: TFR-2ª Turma,
AC 59.378-RJ, rel. min. Gueiros Leite, j. 17.12.82, deram provimento, v.u. (DJU
7.4.83, p.3.996)

O próprio Supremo, afastando a pecha de inconstitucionalidade do art. 923, em


sua primeira parte, âmbito a que se limitou o debate, deixou antever, principalmente
no voto do Min. Cordeiro Guerra, que o art. 923 “tem que ser interpretado de modo
a não privar o proprietário do seu direito à reivindicação”, orientando-se na linha do
entendimento do SIMP, cuja conclusão LXXIII está assim ementada: “O art. 923,
1ª parte, só se refere a ações possessórias em que a posse seja disputada a título de
domínio”.

102 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


Da reunião da possessória e reivindicatória para igual tratamento à usucapião, a
distância é mínima

Não há incompatibilidade entre a reintegração de posse e a ação de usucapião,


podendo as duas ser movidas simultaneamente, se nesta o autor alega posse velha,
su ciente para a aquisição por prescrição extintiva, e naquela declara que perdeu
a posse depois de decorrido tempo su ciente para ter adquirido por usucapião
(RJTJESP 124/297) (NEGRÃO, 1999, p.809)

Tais posições jurisprudenciais estão no alinhamento daqueles que veem a jurisdição


como função declarativa (= dizer a vontade da lei), priorizando a certeza na busca da
verdade (= como se tal fosse possível por obra humana), cujo espaço processual ideal se
realiza pelo procedimento ordinário, onde se agrega à plenariedade formal a plenariedade
substancial, possibilitando-se, no seu curso, a produção de todas e quaisquer defesas, sob
pena até de se ter por deduzidas e conhecidas aquelas que poderiam, mas que não foram
deduzidas (art. 474), bem como todos os meios de prova admitidos em direito, ainda
que não expressamente previstos ou regulados pela lei processual (art. 332). Trata-se de
posição que parte do pressuposto que a sentença, enquanto declaração, está revestida de
plenitude, de exaurimento das questões submetidas a juízo, infensa ao erro, olvidando-se
o intérprete que foram necessários mais de duzentos anos para que se concluísse que a
lei não é plena, que a lei encontra limites, lacunas, contradições, imperfeições, que a lei
pode ser injusta.
Repete-se, pois, em nome do apego ao pensamento losó co racionalista, o mesmo
equívoco, agora pretendendo que a sentença venha revestida daquelas características que
zeram, até um passado ainda recente, a rmar-se que o juiz é a boca da lei. Que tempo
será necessário para concluir-se que também os pronunciamentos judiciais se revestem
de limitações e contingências, caracterizando-se como produto humano emergente de um
processo produzido pelos seus partícipes, sujeitos tanto o instrumento como o resultado
ao erro, à falha, à limitação, à injustiça?
Mas o sistema está repleto de armadilhas que levam o operador a se comportar
negando essa realidade, como se o processo pudesse reunir um conjunto de forças
aptas, por si só, a resolver todos os con itos e todas as questões de forma imaculada e
perfeita para todo o sempre. E é sob essa ótica que se corre o risco de avaliar a garantia
constitucional da plenitude de defesa, ínsita ao processo criminal, mas não necessariamente
ao processo civil, atrelando-a como indispensável ao princípio do contraditório, o que
deve ser fortemente rechaçado. É nesse diapasão a denúncia de Baptista da Silva

Ou seja, não nos limitamos a inserir em nosso ordenamento jurídico o instituto


peculiar ao direito norte-americano conhecido como “devido processo legal”,
senão que lhe adicionamos um ingrediente bem brasileiro: o due process of
law, ao contrário do que ocorre na América do Norte, aqui exigirá “plenitude de

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 103


defesa”, a impor a supressão dos juízos de verossimilhança; a cortar as liminares
e a consagrar, portanto, a ordinariedade formal e a plenariedade da lide. Enquanto
no direito americano, o princípio de “devido processo legal” nem de longe interfere
com os juízos prima facie, permitindo e, mais do que isso, até estimulando a
concessão de liminares, nosso “devido processo legal”, tal como está inscrito no
texto constitucional, ao contrário, sugere que sua observância haverá de assegurar
plenitude de defesa ao demandado.
[E prossegue:]
Devemos concluir que o legislador constituinte, ao transportar para o processo
civil e administrativo o princípio que o direito brasileiro, até então, limitara
exclusivamente ao processo penal, manteve-se fiel ao mesmo pressuposto
ideológico que já havia, no Código de 1973, ceifado os procedimentos especiais
e plenarizado todas as demandas.
Temos, assim, pelo que já cou dito, uma conjunção de fatores harmoniosamente
orientados para o valor segurança ou, talvez, pudéssemos dizer, para o valor justiça-
segurança, a ser obtida através de um processo – não importa qual o tempo que
ele haverá de durar – orientado no sentido de uma composição plena, absoluta e
de nitiva da lide. (2001, p.98)

A frustração é dobrada: nem se logra celeridade, nem se alcança a pretendida


perfeição. Toda a empreitada cai por terra, desencadeando um sentimento generalizado
de fracasso. O preço pago é a não realização dos direitos fundamentais individuais e
sociais do homem, criando-se um círculo vicioso cujo rompimento se mostra distante
e inatingível. Daí porque a rmarmos que a construção de um novo paradigma começa
pela adoção da sumarização, a ser rmada e rea rmada no processo vigente, resgatando-
se o disposto no art. 75, do Código Civil de 1916, regra de natureza principiológica,
desimportando, portanto, não ter sido expressamente contemplada pelo novel estatuto
das relações civis, hoje em vigor.
Mas sumarizar a atividade cognitiva implica necessariamente reduzir as defesas
e, via de consequência, rejeitar a incidência do princípio da ampla defesa. Não estaria
essa a rmativa contrariando o disposto no art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal?
E, dessa forma, contrariando tudo que se tem a rmado, isto é, que a jurisdição, por
força do pacto social, está e deve estar comprometida com os direitos fundamentais do
homem? A resposta a essas perguntas passa por uma a rmação do sentido histórico das
expressões “ampla defesa” e “meios e recursos a ela inerentes”, bem como pela avaliação
da compreensão dos direitos fundamentais dentro de um amplo espectro tal como ocorre
com o art. 5º da Carta de 1988, cuja colisão não é descartada. Em outras palavras, há que
se admitir que inexistam direitos, nem mesmo os fundamentais, absolutos.
No tocante à colisão de direitos, revela-se importante a lição que se extrai de Alexy
sobre a colisão de princípios, expressão por ele contestada por entender que mais correto é
reconhecer um “campo de tensão”, e que deve ser superado não pela simples sobreposição
hierárquica de um sobre outro nem pela eliminação de um deles, mas sim pela limitação

104 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


da possibilidade jurídica que um impõe ao outro, o que apenas as circunstâncias fáticas
poderão indicar

La solución de la colisión consiste más bien en que, teniendo en cuenta las


circunstancias del caso, se establece entre los principios una relación de
precedencia condicionada. La determinación de la relación de precedencia
condicionada consiste en que, tomando en cuenta el caso, se indican las condiciones
bajo las cuales un principio precede al otro. Bajo otras condiciones, la cuestión
de la precedencia puede ser solucionada inversamente.
[E continua:]
Esta ley, que será llamada “ley de colisión”, es uno de los fundamentos de la
teoría de los principios aquí sostenidos. Refleja el carácter de los principios
como mandatos de optimización entre los cuales, primero, no existen relaciones
absolutas de precedencia y que, segundo, se refieren a acciones y situaciones que
no son cuantificables. Al mismo tiempo, constituye la base para restar fuerza a
las objeciones que resultan de la proximidad de la teoría de los principios con la
teoría de los valores. (1993, p.92-95)

É ainda de Alexy o ensinamento que as disposições de direito fundamental podem


ser consideradas não apenas como positivadoras de princípios, mas também como
expressão de uma intenção de estabelecer determinações frente às exigências de princípios
contrapostos, de sorte que aquelas (as disposições) adquirem um caráter duplo, traduzido
em princípios e regras, sendo essas últimas, em geral, incompletas, nada impedindo,
porém, a constituição de uma norma fundamental que goze das duas características, isto
é, quando o enunciado inclua tanto o princípio, que é geral, como a cláusula restritiva,1
concluindo o professor de Gotinga que

No basta concebir las normas de derecho fundamental sólo como reglas o sólo como
principios. Un modelo adecuado al respecto se obtiene cuando a las disposiciones
iusfundamentales se adscriben tanto reglas como principios. Ambas pueden reunirse
en una norma de derecho fundamental con carácter doble (1993, p.138)

Não se exaure aí o trabalho a ser desenvolvido para a concretização dos direitos


fundamentais, pois também ganha relevância o reconhecimento de que princípios e
valores estão relacionados entre si, podendo se falar, a exemplo da colisão dos princípios
e indispensável ponderação dos mesmos, em colisão de valores e necessidade de serem
os mesmos ponderados, o que demonstra a importância do trabalho do intérprete e sua
in uência sobre o resultado obtido, porque inegáveis o caráter deontológico dos princípios

1
Exemplo dessa situação o inciso LXVII do art. 5º da CF: “Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável
pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 105


e o axiológico dos valores, ponto, aliás, que os distingue, segundo o autor referido, de
modo que se pode admitir argumentação jurídica a partir de um ou de outro, embora
a adoção dos princípios esteja mais afeita ao mundo do Direito, porque expressam
claramente o caráter do dever ser e, também, porque restringem a produção de falsas
interpretações (ALEXY, 1993, p.147).
Presentes essas objeções e limitações que subjazem no trabalho do intérprete, que
interessa, no particular, quanto à ponderação dos princípios constitucionais da ampla
defesa e do devido processo legal como inspiradores do processo, na medida em que
admitida a técnica de sumarização como critério do devido processo legal ao efeito
de produzir jurisdição adequada às especi cidades das relações de direito material
con ituosas, impõe-se concluir que sumarização e ampla defesa não coabitam. Ao
acolher-se uma, rejeita-se a outra. O embate, portanto, mesmo que se apresentando
como confronto entre sumarização e ampla defesa, re ete na verdade o confronto entre
os princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa.
Ponto fundamental para a superação dessa discussão está em estabelecer qual
sumarização deve ser adotada para o caso concreto ou, em outras palavras, qual o
devido processo legal. Uma vez superada a forma de sumarização, a defesa passará a
ser praticada amplamente, mas nos termos previamente limitados pela sumarização.
Assim, por exemplo, quando nas ações possessórias, irrelevante se ação de força nova
ou força velha, limita-se o debate às questões possessórias, de seu âmbito excluído
tudo o que refere ao reconhecimento de domínio (arts. 923 e 924, CPC). Quanto à
posse, porém, serão admitidas alegações e provas por todos os meios admitidos em
direito, tais como documentais, periciais, depoimentos, testemunhas, etc., como
também assegurados prazos e atos processuais comuns (art. 931, CPC). Em sendo
possessória de força nova (art. 924, primeira parte, CPC), a antecipação de tutela
cabível não é a do art. 273 do estatuto de formas, que requer para seu reconhecimento a
prova inequívoca dos fatos alegados, a ensejar alto grau de verossimilhança, agregada
à alegação e prova pelo autor do perigo da demora, mas sim a antecipação de tutela
especí ca do art. 928, que pede tão-somente prévia instrução compatível com os
fatos alegados (o texto fala “devidamente instruída”), que tanto pode ser através de
documentos, a autorizar a liminar já com o recebimento da petição inicial, como
mediante prova testemunhal, a ser produzida em sede de audiência de justi cação,
excluindo a discussão sobre o perigo da demora, irrelevante para a concessão do
interdito.
O estabelecimento da sumarização por vezes vem contemplado, conforme
exemplos referidos, expressamente no ordenamento jurídico vigente, correspondendo
a tradicionais práticas processuais e até resistindo, não sem tropeços, à onda de
ordinarização que o racionalismo jurídico impôs ao processo moderno, encontrando,
mais precisamente no direito pátrio, sua principal incidência nos procedimentos
especiais do Livro IV do CPC e também na legislação extravagante, cujo exemplo
maior é o mandado de segurança.

106 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


3 TÉCNICAS DE SUMARIZAÇÃO MATERIAL
Revela-se pertinente destacar quais as técnicas ou formas de sumarização mais
correntes em nosso direito, adotada uma abordagem conceitual e limitada à sumarização
material, identi cada pelos doutrinadores como caracterizadora das ações sumárias ou
ações sincréticas, sem embargo do reconhecimento de outras técnicas, como ocorre na
sumarização formal. Exatamente por estar se angularizando a problemática da cognição
sob o enfoque procedimental, que Kazuo Watanabe destacou com tanta precisão (1987,
p.13-14), se agrupará essas formas pelos procedimentos que as identi cam:

3.1 Procedimentos interditais


Os procedimentos interditais deitam suas raízes no direito romano clássico se
confundindo, de um modo geral, no direito hodierno, com as tutelas de urgência ou pelo
menos com um grupo delas. Seu principal traço estava em produzir um comando, positivo
ou negativo, de cunho mandamental, a partir de determinados pressupostos de fato a serem
oportunamente acertados, marcado por isso mesmo por características publicistas e pela
maior intensidade de exercício de poder discricionário da autoridade pretoriana.
O direito brasileiro reconhece com características interditais os procedimentos
que correspondem às seguintes ações: ações possessórias (reintegração, manutenção
e interdito proibitório), ação de busca e apreensão do Decreto-lei nº 911/69, ação de
desapropriação, para car com as mais tradicionais. Tais procedimentos têm em comum
a previsão de liminar a ser concedida mediante o exercício de uma cognição sumária,
limitada, que se apoia exclusivamente nos fatos alegados pelo autor e na prova que este
produz, onde o contraditório ou não se faz presente ou se realiza de forma franciscana,
como na hipótese do art. 928, do CPC, quando designada audiência de justi cação para
que o autor, sedizente possuidor agredido em sua posse, possa provar os fatos alegados
através de prova testemunhal, para cujo ato o réu será citado, mas tão-somente ao efeito
de comparecer e acompanhar a produção da prova oral requerida por seu adversário, não
podendo ele, réu, deduzir defesas ou produzir provas em favor de suas teses.
Não é diferente com a liminar de imissão de posse na ação de desapropriação, que
condiciona sua concessão à alegação de urgência, por parte da autoridade expropriante,
não submetida ao crivo judicial (arts. 9º e 20, do Decreto-lei nº 3.365/41), e ao depósito
do preço arbitrado pelo juiz, arbitramento este que tem por fundamento basicamente as
alegações fáticas da parte autora, pois é emitido antes da instauração do contraditório, ou
seja, juízo formado em cognição sumária e com forte grau de discricionariedade.
Por derradeiro a liminar da ação de busca e apreensão do Decreto-lei nº 911/69,
cujo art. 3º, caput, é draconiano: “O proprietário duciário ou credor poderá requerer
contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado duciariamente, a
qual será concedida liminarmente, desde que comprovada a mora ou inadimplemento
do devedor”.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 107


As características dos procedimentos interditais não se esgotam na ordem liminar,
que goza de império, força, comando, sujeito o seu cumprimento ao uso da força policial
se necessário, também quali cando a sentença nal, prolatada após a abertura do
contraditório e da defesa do demandado, cujo conteúdo maior deixa de ser o provimento
declarativo tão típico da jurisdição tradicional para se amoldar à igual feição da liminar,
isso é, quali car-se pela força executiva (executiva lato sensu, no dizer de Pontes de
Miranda) ou mandamental, conforme a natureza do direito material tutelado exigir ou
não a participação do réu em sua satisfação. Isso signi ca dizer que os procedimentos
interditais têm como função jurisdicional ordenar ou executar, divorciando-se da função
declarativa ínsita ao procedimento plenário, compondo o con ito de direito material de
forma a disponibilizar desde logo o bem da vida perseguido pelo autor.

3.2 Procedimentos documentais


Cuida-se de forma de sumarização que atua diretamente sobre os meios de prova,
limitando o debate aos fatos documentalmente demonstrados. Sua incidência reduz o
iter procedimental à fase postulatória, tornando inócua e dispensável qualquer dilação
probatória, o que já traduz por si só o ganho temporal que tais procedimentos autorizam,
pois, cediço, no campo probatório assenta-se a fase mais morosa e também custosa do
processo, dando margem a inúmeros incidentes, recursos, discussões periféricas. Sua
origem remonta à Idade Média, época em que se desenvolveu o procedimento documental
de maior signi cado para o direito processual, qual seja, o processo cambiário, destinado
a tutelar créditos privilegiados e cuja evolução desencadeou o atual processo de execução
por créditos.
Merece, aliás, atenção a progressão do processo cambiário, inicialmente caracterizado
pela cognição sumária, mas que culminou não só alcançando autonomia em relação ao
processo de conhecimento, como também se fazendo de nir por uma cognição rarefeita
ou eventual, como reconhece Kazuo Watanabe (1987, p.83), ao contrário de Pontes
de Miranda, que chegou a negar a presença de cognição em seu âmbito, remetendo-a
integralmente às ações declaratória, de condenação, constitutiva ou de mandamento (1995
(I), p.112). A lição a ser extraída é que, ao efeito de tutelar adequadamente créditos – direito
subjetivo da maior relevância numa sociedade inspirada pelos princípios do Estado liberal,
onde imperam os interesses do capital – renunciou-se ao dogma de que a jurisdição é
declarativa e que ao juiz é dado (apenas) o poder de declarar a lei, poder esse a ser exercido
predominantemente em processo destinado a expurgar de nitivamente o con ito do seio
social, atribuindo-lhe, pelo menos nos sistemas onde a execução é jurisdicional, o poder
de expropriar o patrimônio do devedor, através de atos executórios, vedada a prática de
alegações, defesas, dilações probatórias e consagrando o exercício de uma cognição tão
restrita que os doutrinadores oscilam em quali cá-la como inexistente ou como tênue,
rarefeita, eventual. Em suma, a técnica da sumarização levada ao extremo para tutelar
créditos obrigacionais. A previsão de embargos não infere o que foi dito, ao contrário,
con rma-o, pois se trata de ação, a ser provocada pelo executado.

108 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


Mas o ordenamento jurídico brasileiro não se ressente de previsão de procedimentos
documentais, destacando-se, por sua importância no conjunto de tutelas dos direitos
individuais e sociais, o mandado de segurança. É o próprio texto constitucional que
impõe, como requisito de seu cabimento, a liquidez e certeza do direito alegado e, em
tese, afetado por ato de ilegalidade ou abuso de poder de autoridade. Liquidez e certeza
traduz-se por fato desde logo provado, demonstrado, fato inquestionável, ou seja, fato
documentalmente provado.2
Essa sumariedade no campo probatório, reduzindo o debate àqueles fatos
documentalmente demonstrados, autoriza procedimento que se exaure entre a postulação
do impetrante, as informações do impetrado, o parecer do Ministério Público e a prolação
imediata da sentença, atendendo a exigência de celeridade da tutela judicial contra ofensa
praticada por autoridade a direitos subjetivos evidentes, pena de desequilíbrio no Estado
de Direito. Por isso mesmo o mandado de segurança é considerado instrumento de freios
e contrapesos no exercício dos poderes instituídos, conforme já tivemos oportunidade
de a rmar

O mandado de segurança não é apenas mais uma ação a en leirar as diversas


ações jurisdicionais reguladas pela legislação ordinária. Cuida-se de instituto
constitucional, con gurando forma material de controle do poder político, não
devendo os juristas que o enfocarem perder de vista essa natureza constitucional,
sob pena de enfraquecimento do remédio histórico. Nesse sentido, a Carta Magna
de 1988 avançou no tempo, ao criar a gura do mandado de segurança coletivo,
que nada mais é que o velho mandado de segurança com legitimação substitutiva,
na medida em que as instituições arroladas no inc. LXX do art. 5º da CF poderão
propor o writ em nome próprio, mas em defesa de direito alheio, qual seja de
seus associados, membros ou liados. Trata-se, sem dúvida, de forte progresso,
na medida em que neste nal de século vimos, cada vez com mais frequência, a
transmutação de direitos fundamentais da esfera exclusivamente individual para a
esfera coletiva, estando à evidência, os organismos representativos mais aparelhados
para enfrentarem demandas processuais de porte signi cativo.

2
Sobre o sentido da expressão constitucional direito líquido e certo, importante lição vem de Costa Manso, em
voto magistral proferido em 1936, venia concessa daqueles que defendem que a expressão liquidez e certeza
está qualificando o direito positivo em abstrato, conforme cita Celso Agrícola Barbi, em sua obra monográfica Do
mandado de segurança (1980: 88-81): “O remédio judiciário não foi criado para a defesa da lei em tese. Quem
requer o mandado defende o ‘seu direito’, isto é, o direito subjetivo reconhecido ou protegido pela lei. O direito
subjetivo, o direito da parte, é constituído por uma relação entre a lei e o fato. A lei, porém, é sempre certa e
incontestável. A ninguém é lícito ignorá-la, e com o silêncio, a obscuridade, a indecisão dela não se exime o juiz
de sentenciar ou despachar (Código Civil, art. 5º, da Introdução). Só se exige prova do direito estrangeiro ou de
outra localidade, e isso mesmo se não for notoriamente conhecido. O fato é que o peticionário deve tornar certo e
incontestável, para obter mandado de segurança. O direito será declarado e aplicado pelo juiz, que lançará mão
dos processos de interpretação estabelecidos pela ciência para esclarecer os textos obscuros ou harmonizar os
contraditórios. Seria absurdo admitir se declare o juiz incapaz de resolver ‘de plano’ um litígio, sob o pretexto de
haver preceitos legais esparsos, complexos ou de inteligência difícil ou duvidosa. Desde, pois, que o fato seja
certo e incontestável, resolverá o juiz a questão de direito, por mais intrincada e difícil que se apresente, para
conceder ou denegar o mandado de segurança”.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 109


Entretanto, são ainda as características processuais de sumariedade procedimental
que revestem esse instituto de natureza de direito constitucional-processual em forte
instrumento de freios e contrapesos. (MACEDO, 1993, p.289-290)

O mandado de segurança não esgota sua especialidade procedimental na redução


da prova, servindo-se também de provimento judicial de conteúdo mandamental, seja em
sede de antecipação de tutela (art. 7º, inc. II, Lei nº 1.533/51), seja em sede de sentença
nal, o que hoje é um consenso na doutrina pátria, mas que sempre foi defendido por
Baptista da Silva

A ação de mandado de segurança, como vimos pelo que acaba de ser dito, é uma
ação mandamental, criada pelo direito brasileiro, sem similar em outros sistemas
jurídicos, por meio do qual todo aquele que se vê ofendido, ou ameaçado de sê-lo,
em seus direitos, por ato arbitrário de uma autoridade pública, seja porque esse
comportamento do agente con gure uma ilegalidade, seja por caracterizar um abuso
de poder, obterá uma sentença ordenando a imediata cessação do ato impugnado
através da ação e, sujeitando o responsável, em caso de desobediência, a processo
e condenação criminal, ou a outras consequências punitivas. (1990 (II), p.269)

A natureza mandamental constitui importante característica, que tanto encontra


inspiração nos antigos interditos romanos como na gura do habeas corpus, de tradição
anglo-americana, ao qual se assemelha como ação jurisdicional, mas que não decorre
da redução probatória responsável pelo enquadramento do mandado na classe dos
procedimentos documentais, razão pela qual será mais bem explorada em seção distinta,
quando do enfrentamento das e cácias sentenciais na instrumentalidade da função
jurisdicional.
A Constituição de 1988 nos oferece outro instituto processual de defesa dos direitos
individuais, o habeas data, que guarda ou deve guardar semelhanças procedimentais com
o mandado de segurança, isso é, alimentar-se dos mesmos traços e características que
se opõem à ordinariedade (procedimento documental e de e cácia mandamental). Isso
porque representa instrumento hábil a equilibrar o poder daqueles que detêm a informação
sobre o particular, dela podendo fazer uso, e o particular, a quem é assegurado o direito
de obter a informação ou de reti cá-la, quando não corresponder à realidade dos fatos,
na preservação de seu direito à privacidade e a tutela de seu nome na sociedade. Tal
imposição (de sumariedade) vem do próprio texto constitucional, na medida em que se
ressalva ao particular buscar o seu direito pelas vias ordinárias, se essa for sua opção,
conforme dispõe o art. 5º, inciso LXXII, em sua alínea “b”, parte nal: “para reti cação
de dados, quando não se pre ra fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo”.
Em outras palavras, o habeas data deve ser especial, sem prejuízo da parte buscar a tutela
pelas vias ordinárias, que, rigorosamente, sempre estiveram a seu alcance, mesmo antes
da previsão constitucional especí ca.

110 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


Nesse diapasão, a Lei nº 9.507/97 estabeleceu procedimento administrativo prévio,
bastante singelo e célere, como forma de documentar a recusa de fornecer a informação
devida ou de reti car registros equivocados, conforme arts. 2º a 4º, legitimando o
interessado a se valer do procedimento sumário, documental e mandamental do habeas
data, conforme art. 8º e parágrafo único do predito estatuto legal, isto é, fazendo-se a
petição inicial acompanhar dos documentos comprobatórios ou da recusa ao acesso
das informações, ou da recusa em fazer-se a reti cação ou anotação pretendida pelo
requerente.
Já a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça caminhava neste mesmo sentido,
tanto é assim que foi editada a Súmula nº 2, com a seguinte redação: “Não cabe o habeas
data (CF, art. 5º, LXXII, a) se não houve recusa de informações por parte da autoridade
administrativa”. A exigência de prévia recusa tem o efeito maior exatamente de afastar a
dilação probatória, que seria inevitável na hipótese de tornar-se fato controvertido.

3.3 Procedimentos monitórios ou injuncionais


Trata-se de procedimentos desenvolvidos para tutelar direitos creditícios. Sua
principal tônica está em valorizar o juízo de verossimilhança do crédito alegado, o que
se dá por três mecanismos distintos: o primeiro, emanação de ordem de pagamento, isto
é, comando judicial impositivo; o segundo, inversão do contraditório, que passará a ser
de iniciativa do réu, cabendo ao demandado o ônus de provocá-lo; e o terceiro, previsão
de execução provisória, satisfazendo-se desde logo o crédito ou, na pior das hipóteses,
antecipando parcialmente sua execução futura. Nesse sentido, a verossimilhança dos
fatos alegados pelo autor tem o efeito de inverter as posições, colocando no pólo ativo a
presunção da verdade, enquanto no procedimento comum essa presunção só é adquirida
após o silêncio ou omissão do réu, ao deixar de contestar a ação que lhe é proposta (art.
319, CPC).
Se a natureza do ato judicial de ordem e a própria execução provisória constituem
técnicas utilizadas em outros procedimentos sumários, não con gurando propriamente
uma novidade, a inversão do contraditório, especialmente se aliada a outros cortes de
conhecimento, como a limitação do debate, excluindo-se da defesa determinadas questões,
transforma-se em importante mecanismo em resgatar formas alternativas à atividade
jurisdicional, divorciando-se do procedimento comum e de sua ordinariedade.
A bem da verdade, necessário registrar que o procedimento monitório que o direito
pátrio passou a contemplar a partir da Lei nº 9.079/95, com a introdução dos artigos
1.102a, 1.102b e 1.102c no estatuto processual, também se maculou desse tratamento
“ordinarizante”, em especial pela absoluta ausência de previsão de formas especí cas de
execução provisória, negando a própria história e tradição do procedimento no direito
europeu continental, onde, curiosamente, inspirou-se o modelo.3

3 O tema foi por nós explorado mais detalhadamente na obra Do procedimento monitório (1998).

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 111


3.4 Procedimentos cautelares
Talvez seja os procedimentos cautelares um verdadeiro ícone da sumarização
procedimental e, de todos os anteriores, os mais respeitados como tais pelos operadores
do Direito, embora isso não signi que dizer que estejam infensos a sofrer as in uências
da ordinarização. A função de garantir um bom direito posto sob ameaça de grave
prejuízo sempre exigiu da jurisdição a devida adequação processual, que se faz
tanto no plano material como no formal. Neste último, traduzindo-se por um iter
célere e simpli cado, com concentração de atos e prazos curtos. No plano material, a
sumarização se dá quer no sentido vertical, ao prever liminar em favor do autor, como
no horizontal, reduzindo o objeto cognoscível ao extremo, na medida em que remete
para o processo principal, já instaurado ou a ser promovido, a discussão da demanda
de direito material.
Também para Kazuo Watanabe as ações cautelares e seus respectivos
procedimentos constituem modelo de cognição sumária, classi cando-as na categoria
de cognição super cial, tendo em vista o corte de conhecimento cujo fundamento é
a urgência e o perigo de dano irreparável ou de difícil reparação, tanto no sentido da
extensão ou amplitude como da profundidade do con ito (1987, p.100-103).

3.5 Outras tutelas sumárias


A exigência de se efetivar satisfatoriamente a prestação jurisdicional tem
convivido com a cultura da ordinarização do processo, de modo que as reações
nunca deixaram de se fazer presentes, ora revitalizando antigas técnicas, ora
reinventando-as, mediante a combinação de determinados mecanismos típicos de
uma ou de outra ação sumária, produzindo modelos híbridos e aperfeiçoando os
já existentes. Exemplos dessas tutelas sumárias, como denuncia Baptista da Silva,
são as autotutelas judicializadas, representadas pela ação de busca e apreensão de
bens objeto de alienação duciária em garantia (Decreto-lei nº 911/69) e a execução
extrajudicial do Decreto-lei nº 70/66, que radicaliza afastando a atividade jurisdicional
de seu âmbito. Na primeira hipótese, a sumariedade se faz presente na previsão da
liminar, na redução do campo da contestação, na e cácia executiva lato sensu da
sentença, traços já conhecidos da dogmática processual e que não chegam a inovar,
mas aos quais se agrega a de nitividade material da antecipação de tutela com a
venda, pelo credor, independentemente de qualquer intervenção judicial, do bem
alienado duciariamente e retomado em sede de liminar. Na segunda, a execução
se dá à revelia da intervenção do Judiciário, mediante leilão público do bem imóvel
objeto de nanciamento pelo sistema habitacional, em caso de mora do mutuário
devedor, equiparando-se, portanto, à execução privada, o qual só poderá se valer dos
meios processuais ordinários na defesa de seus direitos, incidindo a velha regra, isto
é, solvet et repete (1987 (I), p.113-114).

112 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


4 O IR E VIR DOS TEXTOS LEGISLATIVOS
O direito processual pátrio tem sido nas últimas décadas objeto de inúmeras reformas
legislativas, muitas delas, graças à combatente doutrina desenvolvida na comunidade
jurídica, vindo ao encontro de um processo adequado ao nosso tempo e às nossas
necessidades. Apenas para destacar alguns desses avanços, merece registro especial a
reforma de 1994, através da Lei nº 8.952, que introduziu a antecipação de tutela (art. 273,
CPC) e as ações/sentenças mandamentais nas obrigações de fazer, servidas também com
especial tutela de urgência (art. 461, CPC); a Lei nº 10.444/02, que não só reformulou o
sistema dos provimentos antecipatórios como introduziu as ações/sentenças executivas lato
sensu para as obrigações de entrega de coisa (art. 461-A, CPC); e a Lei nº 11.232/05, que
revogou a dicotomia cognição-execução nas obrigações de pagar quantia em dinheiro.
Trata-se de um conjunto de conquistas que respondem por mais de três décadas de
intenso debate jurídico sobre a efetividade da prestação jurisdicional, que não pode ser
negligenciado pela produção de novas leis, pena de um retrocesso na construção de um
paradigma de processo voltado à jurisdição efetiva e tempestiva.
A proposta de um novo Código de Processo Civil, que hoje se encontra em
tramitação junto ao Congresso Nacional,4 nos leva a avaliar até que ponto essas conquistas
não só estão devidamente preservadas, como reforçadas e até ampliadas, ainda que o
texto produzido não represente o resultado legislativo nal, porquanto se encontre sob
debate nacional.
A Comissão responsável pela produção do anteprojeto a rmou que “o novo Código
de Processo Civil tem o potencial de gerar um processo mais justo, porque mais rente
às necessidades sociais e muito menos complexo” (2010: Exposição de Motivos do
Anteprojeto). Essa é, sem dúvida, a grande expectativa do povo brasileiro, até porque a
proposta alcançou a grande mídia, não se duvidando, por certo, que tenha sido a principal
inspiração do trabalho desenvolvido, mas nem por isso liberada está a cidadania não só
de participar, mas principalmente de contribuir criticamente para o produto nal.
À sumarização do processo no novo texto, então, em breves linhas.
Relativamente ao sistema dos provimentos antecipatórios, a proposta legislativa
cuida das tutelas de urgência, assim entendidas as satisfativas e as cautelares, e da tutela
de evidência, em capítulo à parte.5 Sem embargo do tratamento efetivamente mais
simpli cado, introduzindo adequadamente o tema na parte geral do processo e pondo
uma pá de cal na discussão estéril sobre as diferenças entre as tutelas satisfativas e as
cautelares, o fato é que a previsão dessas tutelas, tão comprometidas com a sumarização
procedimental, insiste na gura do dano (a exemplo, lesão grave, caução no art. 278;

4
Através do Ato do Presidente do Senado Federal nº 379, de 2009, foi constituída comissão de juristas destinada
a elaborar Anteprojeto de Novo Código de Processo Civil, cujo texto foi entregue ao Senado Federal em data de
8 de junho de 2010.
5
Arts. 277/285 do Anteprojeto.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 113


dano irreparável, no art. 283) para sua concessão, negligenciando o ilícito como forma
de sustentação do provimento antecipatório, conforme atualmente previsto no art. 461, §
3º, do CPC, o que representa patrimonialização do processo, limitação de incidência do
juízo de verossimilhança e empobrecimento da prestação jurisdicional de urgência.
No mesmo fio, em detrimento da sumarização processual, a supressão de
procedimentos especiais, nitidamente sumários materiais, na sua grande maioria, conforme
o restritivo rol dos arts. 505 a 652 do Anteprojeto, abortando da especialização de
tratamento as ações de depósito, a nunciação de obra nova, a ação monitória, entre outros,
o que signi ca jogá-los na ordinariedade. Agrega-se a isso, a revogação do procedimento
sumário, hoje tratado no art. 275, do CPC, abolindo-se a sumarização formal.
Em relação ao corte de conhecimento no âmbito do processo ordinário, conforme
implicitamente autorizado pela atual redação do § 6º do art. 273, do CPC, permitindo
que o juiz não só antecipe, mas julgue – com força de sentença – desde logo os pedidos
incontroversos, cindindo o processo e remetendo as questões de fato e controvertidas para
uma fase seguinte,6 o Anteprojeto é omisso. Contudo, em sentido contrário, são várias as
disposições sobre a ampliação da ordinarização, como a cumulação de ações, conforme art.
312,7 que em seu caput dispensa a presença de conexão entre as ações a serem reunidas,
espraiando, portanto, sua incidência, e no § 2º, quando admite expressamente a renúncia
ao procedimento especial (leia-se, materialmente sumário) em favor da ordinariedade.
No mesmo diapasão, o contrapedido, conforme art. 337 da proposta,8 cuja simpli cação
formal merece aplausos, mas também críticas por não construir o Anteprojeto medidas
que representem antídoto à generalização do procedimento ordinário, sempre guardadas
as especi cidades que quali cam a relação de direito material con ituosa.
Entre as perguntas que se impõem, até que ponto este consequente e sistemático
fortalecimento do procedimento ordinário, que passa a recepcionar pretensões de direito
material não mais merecedoras de tratamento diferenciado, também não se repercutirá
sobre os procedimentos especiais que ainda permanecem assim tutelados pelo novo texto,
representando um retrocesso nas conquistas antes defendidas?
E mais. Embora remanesça como válvula de escape o art. 107, inciso V, do
Anteprojeto, que dispõe estar no poder do juiz “adequar as fases e os atos processuais às
especi cações do con ito, de modo a conferir maior efetividade à tutela do bem jurídico,
respeitando sempre o contraditório e a ampla defesa”, até que ponto essa regra genérica
tem força su ciente para sustentar a sumarização do processo?

6
Para aprofundamento do tema, remete-se o leitor a MACEDO, Elaine Harzheim. Penhora on line: uma proposta
de concretização da jurisdição executiva. Execução civil: estudos em homenagem ao professor Humberto Theodoro
Júnior. Coord. Ernane Fidélis dos Santos...[et all]. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 465-475.
7
Anteprojeto, art. 312: “É lícita a cumulação, num único processo, contra o mesmo réu, de vários pedidos, ainda
que entre eles não haja conexão.” ...”§ 2º Quando, para cada pedido, corresponder tipo diverso de procedimento,
será admitida a cumulação, se o autor empregar o procedimento comum e for este adequado à pretensão”.
8
Anteprojeto, art. 337: “É lícito ao réu, na contestação, formular pedido contraposto para manifestar pretensão
própria, conexa com a ação principal ou com o fundamento da defesa, hipótese em que o autor será intimado, na
pessoa do seu advogado, para responder a ele no prazo de quinze dias”.

114 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


De outra banda, em nome da simpli cação do tratamento legislativo, senão única,
principal razão arguida como motivação da supressão levada a efeito, representa ganhos
reais revogar práticas que sustentam a efetividade da prestação jurisdicional?
Tais questionamentos, levantados a título de re exão, não esgotam a problemática
da sumarização no novo texto, mas visualizam o horizonte processual que está por vir, a
exigir da comunidade jurídica muita atenção, pena de se abrir mão de conquistas legítimas
de um passado recente.

5 À GUISA DE CONCLUSÃO
A sumarização do processo representa milenar discussão envolvendo a efetividade e
tempestividade da prestação jurisdicional, desdobrando-se em inúmeras facetas distintas,
tanto no âmbito formal como no material.
Percorrer o passado não é perda de tempo. É conscientizar e valorar conquistas e
avanços, é construir o futuro sem repetir erros pretéritos.
Seu debate, portanto, se deu no antes, mas persiste se dando no agora e certamente
se dará no depois. Experiências levadas a exaustivas práticas no cotidiano forense e
consagradas em textos legislativos não podem ser simplesmente ignoradas, como se
vazias de conteúdo ou de pragmatismo.
É relativamente fácil formatar textos legislativos, principalmente tratando-se de
regras processuais, e lançá-los aos leões como um prato novo, apetitoso e diferente. Não
se pode dizer o mesmo da construção de institutos que se eternizam, não apenas por
estarem contemplados na lei, mas porque chegando às práticas forenses, já a rmaram
sua utilidade e sua funcionalidade na prestação jurisdicional.
Que a sumarização do processo não seja velada sob o manto de uma ilusionista
simpli cação procedimental que, no seu gênesis, está alimentada pela ordinariedade, tão
nefasta à prestação jurisdicional concreta.
Não se pode olvidar que a simplicidade pode e deve alimentar as formas
procedimentais, mas o processo, como espaço de construção do direito do caso concreto,
não é e jamais será simples.

REFERÊNCIAS
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Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993.
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Curso de processo civil. Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris Ed., 1987,1990, v. I-II.
______. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1997.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 115


______. Da sentença liminar à nulidade da sentença. São Paulo: Forense, 2001.
BARBI, Celso Agrícola. Do mandado de segurança. 3. ed., 3. tir., Rio de Janeiro: Forense,
1980.
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Trad. de J. Guimarães
Menegale. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 1969, v.1.
GUILLÉN, Victor Fairen. El juicio ordinario y los plenarios rápidos. Barcelona: Bosch,
1953.
MACEDO, Elaine Harzheim. Do procedimento monitório. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1998.
______. O mandado de segurança como instrumento de freios e contrapesos. AJURIS:
Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v.58, p.279-290,
1993.
______. Penhora on line: uma proposta de concretização da jurisdição executiva.
Execução civil: estudos em homenagem ao professor Humberto Theodoro Júnior. Coord.
Ernane Fidélis dos Santos...[et all]. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p.
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MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 3.ed. São Paulo: Malheiros,
1999.
NEGRÃO, Theotonio (org.). Código de processo civil e legislação processual em vigor.
30. ed., São Paulo: Saraiva, 1999.
PONTES DE MIRANDA. Comentários ao código de processo civil. 5.ed., Rio de Janeiro:
Forense, 1995, t. I.
WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1987.

116 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


Justiça Restaurativa e sistema penal:
apontamentos para a construção de um novo
modelo de justiça criminal no Brasil
Daniel Achutti

RESUMO
O presente trabalho aborda a crise do processo penal na sociedade contemporânea a partir
de seus pressupostos epistemológicos para, então, apresentar a Justiça Restaurativa como uma
alternativa concreta para o sistema de justiça criminal brasileiro.
Palavras-chave: Processo penal. Justiça Restaurativa.

Restorative Justice and penal system: Notes for the construction of


a new model of criminal justice in Brazil

ABSTRACT
The present paper addresses the crisis of penal procedure in the contemporary society from
its epistemological basis to, then, present the Restorative Justice as a real alternative to the Brazilian
criminal justice system.
Keywords: Penal procedure. Restorative Justice.

1 INTRODUÇÃO
Desde que tivemos contato com as lições de Luigi Ferrajoli, começamos a pensar o
processo penal não como um simples meio para aplicar o direito penal e punir os cidadãos
acusados da prática de um delito, mas, antes disso, como um instrumento imprescindível
para a aplicação dessa punição, como o caminho necessário a ser percorrido quando se
pretende acusar, condenar e punir alguém.
No entanto, estruturado em pressupostos modernos, nasceu fadado ao fracasso, uma
vez que tais pressupostos estão ancorados epistemologicamente na Idade Média. Como
se tentará demonstrar, uma “troca de embalagem” foi realizada, e as coisas continuam
exatamente como sempre foram. E essa crise aponta, necessariamente, para novos
pensamentos e novos caminhos. Se não foi possível produzir os efeitos desejados com
a atual estrutura processual penal, o que nos impede de pensar em alternativas? Nada,
entretanto, deverá ser colocado em prática antes de uma longa e séria discussão com os
interessados: quanto a isso, concordamos com Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:1 não
é possível brincar com a liberdade dos cidadãos.

1
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Manifesto Contra os Juizados Especiais Criminais, pp.4-5.
Daniel Achutti é advogado criminalista. Mestre e Doutorando em Ciências Criminais (PUCRS). Professor de
Direito Penal na FACOS. Professor Convidado da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS. Conselheiro do
Instituto de Criminologia e Alteridade (ICA). Membro da Comissão de Mediação e Práticas Restaurativas da OAB/
RS. E-mail: dachutti@terra.com.br

Direito e DemocraciaDireitoCanoas v.11 v.11,n.1


e Democracia, p.117-138
n.1, jan./jun. 2010 jan./jun. 2010 117
Porém, pensamos também que não é mais possível nos mantermos passivos quanto
a este problema: devemos pensar em novas e concretas alternativas ao processo penal. E
é justamente isso o que tentamos fazer neste trabalho, em relação à Justiça Restaurativa,
a m de iniciarmos uma discussão que, acreditamos, está apenas se iniciando.

2 O PROCESSO PENAL E A SUA ESTRUTURA:


DA REVOLUÇÃO CIENTÍFICA DO SÉCULO XVI
À CONTEMPORANEIDADE
De acordo com Ruth Gauer, a revolução cientí ca do século XVI, uma das mais
importantes e in uentes do pensamento humano, esteve indissoluvelmente ligada ao
nome de Galileu Galilei, cujo “pensamento estruturou o pensamento moderno e abalou o
suporte do saber medieval que tinha por base o critério da fé e da revelação.”2 Para Fritjof
Capra, trata-se do “pai da ciência moderna”,3 que possibilitou aquilo que Max Weber
chamava de “desencantamento do mundo”, ou seja, os fenômenos da natureza que antes
eram explicados pela vontade divina e tinham como porta voz a Igreja, passavam a ser
explicados por uma lógica racional.
Aos poucos a racionalidade cientí ca foi adquirindo um grau extremo de legitimidade
e, portanto, barreiras morais e éticas não poderiam servir de empecilho à construção do
conhecimento. Sendo a natureza um mero objeto do conhecimento cientí co, poderia
ser utilizada como instrumento para a melhora da vida humana no mundo. Ao invés da
contemplação, importava, então, a intervenção e a domesticação da natureza para melhorar
as condições de vida. Refere Salo de Carvalho que

a racionalidade cientí ca da modernidade postulou, desde seu nascedouro, através


do controle da natureza, a criação de mecanismos capazes de gerar felicidade aos
homens. O projeto da modernidade é centrado nesta busca do gozo constante e
na satisfação ilimitada dos desejos, como se a possibilidade de supressão da falta
gerasse (ou fosse sinônimo de) felicidade.4

Dessa forma, é possível a rmar que

o racionalismo, poder exclusivo da razão de discernir, distinguir e comparar,


substituiu o dogmatismo medieval, assumindo uma atitude crítica e polêmica
perante a tradição. O antropocentrismo eliminou o pensamento teocêntrico,
possibilitando ao homem moderno colocar-se a si próprio no centro alterando,
assim, a visão de mundo.5

2
GAUER, Ruth Maria Chittó. A Construção do Estado-Nação no Brasil: a contribuição dos egressos de Coimbra,
p.101.
3
CAPRA, Fritjof. O Tao da Física. Um paralelo entre a física moderna e o misticismo oriental, p.25.
4
CARVALHO, Salo de. Criminologia e Transdisciplinaridade, pp.311 e 312, respectivamente.
5
GAUER, Ruth. A Construção do Estado-Nação no Brasil: a contribuição dos egressos de Coimbra, p.102.

118 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


Desde que Descartes começou a questionar as formas de ver o mundo impostas
pela Igreja Católica (fruto da o cialização da religião católica pelo Estado6 por volta do
século IV7), o mundo não é mais o que era antes: questionando se o homem não poderia
pensar o mundo e se pensar no mundo sem a in uência das interpretações eclesiásticas
das sagradas escrituras, o lósofo francês deu impulso a uma nova visão de mundo para os
humanos.8 O pensamento moderno, portanto, foi construído sob uma lógica de dominação
que possui como fundamento o esclarecimento, o conhecimento e a razão em detrimento
da ilusão, dos mitos, da fé e da crença religiosas, produzidos fundamentalmente pelos
católicos.
Conforme Franklin Baumer, de acordo com a visão de Galileu, “a natureza
continuava a ser pictórica, mas era agora descrita, de modo crescente, não como um
organismo, mas como uma máquina ou um relógio, que prendeu a imaginação europeia
durante os duzentos anos seguintes.”9 Um determinismo rigoroso consolidou-se na
visão que se tinha do mundo: “Tudo o que acontecia possuía uma causa de nida
e gerava um efeito de nido: o futuro de qualquer parte do sistema poderia – em
princípio – ser previsto com absoluta certeza se se conhecesse em todos os detalhes
seu estado em determinada ocasião.”10 A base losó ca originou-se a partir da divisão
entre res cogitans e res extensa, realizada por Descartes: acreditava-se ser possível
explicar o mundo sem qualquer in uência do observador humano, de forma objetiva
e universal.11
Essa cosmovisão mecanicista foi defendida por Isaac Newton, “que elaborou sua
Mecânica a partir de tais fundamentos, tornando-a o alicerce da Física clássica. Da segunda
metade do século XVII até o m do século XIX, o modelo mecanicista newtoniano do
universo dominou todo o pensamento cientí co.”12
Toda essa construção do pensamento e do conhecimento moderno (re)instaurou uma
concepção de busca pela verdade de todas as coisas (já presente no período medieval) que,
desde então, domina a prática cientí ca do mundo ocidental, excluindo quaisquer outras
formas de saber não racional e espalhando-se por todos os campos do conhecimento.
Gauer salienta ainda que “a vinculação do conhecimento ao modelo galilaico-newtoniano
e a consideração da ciência como campo privilegiado para a revelação da verdade fundam
a matriz de conhecimento mais relevante da tradição ocidental moderna.”13
Ao desencantar o mundo e despi-lo dos mitos que o con guravam, a ciência atribuiu
a si o local privilegiado de revelação da verdade e ao fazer isso se miti cou. Substituiu

6
Note-se que o termo Estado, aqui, não deve ser conceituado da mesma forma como o é hoje, em virtude da
separação temporal de mais de quinze séculos entre os séculos IV e XXI.
7
BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Direito Penal Brasileiro – I, pp.169-173.
8
Na esteira de Ruth GAUER, vale referir que “a obra de Descartes é aqui lembrada, pois foi incentivadora da
criação de um sujeito racional, pensante, consciente, o centro do conhecimento, o chamado sujeito cartesiano.”
(In: O Reino da Estupidez e o Reino da Razão, pp.139-140).
9
BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno. Vol. I, p.67.
10
CAPRA, Fritjof. O Tao da Física, p.50.
11
CAPRA, Fritjof. O Tao da Física, p.50.
12
CAPRA, Fritjof. O Tao da Física, p.25.
13
GAUER, Ruth. Conhecimento e Aceleração (mito, verdade e tempo), p.1.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 119


um mito por outro, a saber, de que a racionalidade cientí ca podia dar conta e explicar
todos os fenômenos do mundo. Conforme Ricardo Timm de Souza, “o ser humano
acabou por fazer da ciência a sua verdade racional, tendendo, especialmente na cultura
ocidental, a fazer dela o seu ídolo ao qual tudo mais – especialmente outras formas de
racionalidade – é sacri cado.”14
O direito, por sua vez, operando dentro da mesma concepção cienti cista e, para
além disso, mantendo a mesma lógica que movia o processo inquisitorial do medievo,
mas com a única diferença que, agora, havia uma justi cativa racional para a realização do
objetivo fundamental do instrumento, consagrou o processo penal como local privilegiado
de revelação da verdade de um evento pretérito: com o processo de codi cação e a
consequente simpli cação dos fenômenos sociais, nada mais poderia escapar ao projeto
uni cador e de coerência e completude da “ciência jurídica”.15
E é neste mundo que estamos contextualizados: o cienti cismo moderno e a ciência
jurídica deixando de dialogar com a incerteza e com o reino profano da desagregação.
Se a totalidade16 é, também, o que sacraliza o direito, é possível dizer que desde sua
capitulação moderna isso foi potencializado: nada mais importa(va), a não ser a própria
norma e seus mandamentos, o que resultou na constituição de uma suposta ciência
que basta(va) por si própria, independente de tudo o que poderia vir a lhe dar suporte.
Qualquer elemento que estivesse fora dos pressupostos da racionalidade cientí ca não
tem (tinha) validade.
A transposição irrestrita dos conhecimentos e da metodologia das ciências naturais
para a ciência do direito a condicionou e estabeleceu tetos epistemológicos de signi cação
e produção de sentido. Assim, a ciência jurídica passou a trabalhar numa concepção
racionalista, mecanicista e meramente instrumental, ou seja, desvinculada de quaisquer
outros ns que pudessem atrapalhar o progresso do conhecimento jurídico e, dentro do
nosso tema, de elucidação da verdade no processo penal. O direito funciona(va) da mesma
forma que a ciência: ele mesmo é a sua própria fonte de legitimação.

2.1 Da troca de embalagens no Processo Penal: o abandono


das justificativas teológicas e a manutenção de sua finalidade
Embora muito se fale de uma nova postura cientí ca a partir dos séculos XVI e
XVII, parece-nos que pouco (ou nada) mudou em sede processual penal: as categorias
hoje existentes re etem nada mais nada menos do que traços medievais travestidos de
cienti cidade.

14
SOUZA, Ricardo Timm de. Ética como Fundamento: uma introdução à ética contemporânea, p.34.
15
Citamos como exemplo o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657/42), que dispõe:
“Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais
de direito.”
16
As palavras totalidade e desagregação foram parafraseadas do trabalho de SOUZA, Ricardo Timm de. Totalidade
e Desagregação: sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.

120 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


Com a laicização de determinadas práticas, pode-se dizer que o moderno direito
processual penal apropriou-se da maneira de busca da verdade como a Igreja realizava
nos períodos dos Impérios Merovíngio e Carolíngio: utiliza-se da visitatio, então realizada
estatutariamente pelo bispo, quando percorria sua diocese: ao chegar aos locais, realizava
a inquisitio generalis, que consistia em colher dados gerais acerca do que ocorrera na sua
ausência e que pudesse con rmar práticas delituosas;17 a seguir, no caso de uma resposta
positiva, o bispo realizava a inquisitio specialis, “que consistia em apurar quem tinha feito
o que, em determinar em verdade quem era o autor e qual a natureza do ato.”18 Esse método
apresenta-se como uma espécie de instrumentalização do procedimento que viria a ser
utilizado pela Igreja a partir do século XIII com os referidos Tribunais da Inquisição.
A justi cativa predominante do processo penal no Brasil – apresentada como “o
objeto” do processo penal por alguns autores e como a “ nalidade”, por outros – não
mudou essencialmente da justi cativa apresentada pelos inquisidores na Idade Média,
qual seja, a busca da verdade (real).
Exatamente como nos procedimentos utilizados pelos Tribunais da Inquisição, ainda
se praticam os atos de interrogatório, de inquirição de testemunhas, de reconstituição
de fatos, dentre outros. Para Salo de Carvalho, “na lacuna entre os projetos [medieval e
moderno], pode-se perceber que não há, necessariamente, ruptura.”19 Alexandre Morais
da Rosa, por sua vez, refere que “as matrizes do ‘Direito Canônico’ ganharam nova
embalagem, mantendo, contudo, em seu hermetismo e multiplicidade de métodos (ditos)
cientí cos, a censura e o adestramento sobre o que pode e deve ser dito.”20 O que antes
era dito/revelado pelo Papa, agora é traduzido pelos especialistas do Direito, ou pelos
“juristas de ofício”.21
Com propriedade, Paolo Grossi a rma que “simplismo e otimismo parecem ser
os traços que mais caracterizam o jurista moderno, fortalecido no seu coração pelas
certezas iluministas”:22 simpli ca-se uma situação complexa e, ancorados no (moderno)
aparelho jurídico-penal, emerge entre os juristas uma onda de otimismo, acreditando-se
que o sistema penal possui condições, por si só (eis que é autojusti cável), de dar conta
dos problemas sociais contemporâneos.

17
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas, p.70; BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Direito Penal
Brasileiro – I, p.234.
18
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas, p.70.
19
CARVALHO, Salo de. Criminologia e Transdisciplinaridade, p.316.
20
ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: a bricolage de significantes, p.32.
21
“Por possuir as ‘chaves do céu’, o Papa acomete o poder de julgamento a seus bispos, já que é detentor da
‘geração da palavra divina’ e seu avalista. A artimanha se completa porque ele assume o papel do ‘Ausente’,
possuidor de qualidades plenas.” A seguir, o autor continua: “Os guardiães, os pastores, enfim, os ‘juristas de
ofício’ logo irão cercar as possibilidades interpretativas, garantindo por suas autoridades o verdadeiro sentido do
texto, porque deles se afastar, lembre-se, é pecado. (...) O Direito, por seus especialistas, pretende possuir as
chaves do céu e da produção de subjetividade, os únicos a revelar a palavra do Outro. (...) Resultado disso são os
discursos jurídicos com pretensão de plenitude, que vendem a ideia de respostas corretas e seguras, promentendo
a ilusão da segurança jurídica...” (ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: a bricolage de significantes, pp.28
e 32-33, respectivamente).
22
GROSSI, Paolo. Mitologias Jurídicas da Modernidade, p.15. Segue o autor: “Mas são muitos os problemas
evitados, as interrogações que não se quis pôr, assim como é muito fácil sentir-se satisfeito ao contemplar um
mundo povoado por figuras abstratas, projetadas por uma lanterna mágica muito bem manobrada.” (GROSSI,
Paolo. Mitologias Jurídicas..., p.15.).

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 121


E com esse latente amor à Lei23 e uma aparente ojeriza ao que lhe é estranho, o
direito passa a operar em uma lógica de autossu ciência, de autoprodução: códigos, leis
e artigos (meros textos) como imperativos legais na aplicação do direito, resultando em
pouca (ou nenhuma) re exão acerca do fenômeno jurídico enquanto fato social, cultural,
histórico, político, etc. Ou seja, enquanto um fenômeno essencialmente transdisciplinar.
O ensino jurídico, por sua vez, é tomado pelas rédeas da codi cação e levado a transmitir
apenas “o que diz a lei”, levando muitos juristas de diferentes gerações a considerar a
norma como a Justiça em si.
Em tal processo de autoenclausuramento do saber jurídico, o direito e o processo
penal, justi cáveis por si mesmos e autônomos em relação ao mundo real, seriam os mais
e cientes24 meios para se proteger a humanidade (e, para o seu futuro25).
No processo penal, especi camente, os atores jurídicos, praticamente à unanimidade,
não admitem a fragilidade epistemológica desse (in)falível método. Daí que se aceitam os
resultados dos processos penais como verdades absolutas, “como se fossem a emanação
daquilo que efetivamente ocorreu no mundo da vida, por ser o resultado de um método
(dito) cientí co, trazendo o selo de qualidade: cientificamente comprovado.”26
Nesse contexto de pureza jurídica e soberba do direito para o enfrentamento
dos problemas, o processo penal é, portanto, apresentado como a fórmula mágica
para a solução dos con itos na contemporaneidade: através de seu arcabouço teórico
cienti camente legitimado, assume lugar de destaque e habilita-se como meio e ciente

23
Sobre o amor à Lei, conferir LEGENDRE, Pierre. O Amor do Censor: ensaio sobre a ordem dogmática.
24
Importante mencionar a diferenciação entre eficiência e efetividade, realizada por Jacinto Coutinho (In: Efetividade
do Processo Penal e Golpe de Cena: um problema às reformas processuais, pp.145-146): enquanto a primeira está
ligada aos meios utilizados para alcançar o resultado desejado, a segunda vincula-se aos fins visados. Para Gilberto
Thums, “sustenta o professor Jacinto que a eficiência, aliada ao tempo, pode ser sinônimo de exclusão de direitos
ou garantias. Esta observação é precisa, visto que os recentes movimentos nos Estados Unidos encaminham-se
para, em nome da pseudoeficiência no combate ao terrorismo, suprimir direitos e garantias individuais (THUMS,
Gilberto. Sistemas Processuais Penais, p.43) Nesse sentido, o Patriot Act, editado logo em seguida aos ataques
de 11 de setembro de 2001 e, mais recentemente, o Military Comission Act, são exemplares, uma vez que, neste
último, o procedimento secreto e até a tortura são autorizados para a malfadada busca da verdade. Sempre em
nome da segurança da nação, ou para o bem da pátria...
25
Na esteira de Salo de Carvalho, lembramos Jorge de Figueiredo Dias, que pode ser considerado o carro-chefe
dessa ode ao direito penal, quando menciona que “se cabe ao direito penal proteger os principais bens jurídicos da
humanidade, como poderia eximir-se do enfrentamento de (possíveis) ações que colocam em risco o seu futuro?
Como deixaria de atuar em situações limite que ameaçam as gerações vindouras?” (In: O direito penal entre a
‘sociedade industrial’ e a ‘sociedade do risco’, p.58. Apud CARVALHO, Salo de. A Ferida Narcísica do Direito Penal
(primeiras observações sobre as (dis)funções do controle penal na sociedade contemporânea), p.200). Vale citar
a crítica de Carvalho: “... a potência da fala tende a cegar o prolator, impedindo-o de perceber suas limitações e
sua real capacidade de ação. O sonho narcísico de resolução das grandes questões da civilização, tutelando a
Humanidade de sua própria extinção, ao mesmo tempo em que entorpece o pensamento jurídico-penal, ofusca a
realidade, fornecendo elementos irreais para anamnese e, consequentemente, prognose. (...) Uma dupla falência
na criticada sistemática do direito penal é gerada. À ineficácia desnudada pelas ciências sociais do controle
penal nas demandas relativas aos direitos liberais e sociais é agregada uma nova expectativa (tutela dos direitos
transindividuais). O resultado parece anunciado: inefetividade operacional decorrente da falta de novos mecanismos
para enfrentar novos problemas. Todavia, a narcose retórica impede o dar-se conta do problema, criando outra
crise, desta vez na própria estrutura genealógica do direito penal liberal, pois, ao ser flexibilizada para alcançar
os novos fins, acaba por aumentar a ineficácia primeira. Neste quadro, o discurso penal fica perdido, estagnado
em uma crise circular.” (In: A Ferida Narcísica do Direito Penal (primeiras observações sobre as (dis)funções do
controle penal na sociedade contemporânea), p.200).
26
ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal..., p.54.

122 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


para a reconstrução de um evento pretérito, a atribuição de culpas no presente e a
determinação de uma pena a ser cumprida no futuro.
Em um ambiente onde o indivíduo é pensado acima de tudo, nada mais lógico do
que inverter a lógica do processo inquisitorial de proteção divina para se estabelecer a
lógica da proteção individual. A inversão que a secularização propõe é visível no moderno
processo penal, uma vez que deixa-se de lado a busca de uma verdade para se buscar a
proteção do indivíduo face ao poder punitivo estatal. O perigo, no entanto, é deixar tal
estrutura à mercê de uma pureza metodológica, como queria o positivismo jurídico.
Conforme Luigi Ferrajoli,

el proceso, como la pena, se justifica precisamente en cuanto técnica de


minimización de la reacción social frente al delito: de minimización de la violencia,
pero también del arbitrio que de otro modo se produciría con formas aun más
salvajes y desenfrenadas.27

Nota-se que o processo penal, para o autor, teria uma nalidade protetiva dos
acusados da prática de delitos, que não podem ser penalizados antes de serem processados.
Não seria possível, portanto, efetivar-se a punibilidade de um acusado sem que, prévia
e formalmente, tenha sido ele levado a julgamento. E mais: tal julgamento não pode ser
realizado sem a observância dos instrumentos de proteção dos acusados – traduzindo:
dos direitos e das garantias individuais, que, no caso brasileiro, podem ser encontradas
na Constituição da República.
No entanto, embora o Código de Processo Penal brasileiro deva ser, necessariamente,
compatibilizado com a Constituição, o que se percebe, na prática, é não só um enorme
desrespeito pela Constituição por parte das regras do CPP, como também uma considerável
não aplicação das regras constitucionais por parte dos juízes (em primeiro e em segundo
graus, e também nos Tribunais Políticos). E partindo de uma leitura constitucional do
processo penal, entendemos o mesmo como um espaço democrático de debates (acusação
e defesa) e julgamento a que tem direito de ser submetido todo cidadão acusado da prática
de um crime: trata-se, portanto, de um instrumento a serviço do cidadão (direito subjetivo)
frente ao poder punitivo do Estado, e não de um método cienti camente legitimado para
se correr atrás da verdade.

3 O SÉCULO XX E O FIM DAS CERTEZAS


Acontece que, no direito – mormente nos direitos penal e processual penal – a
arrogância28 de seus operadores e doutrinadores impede o reconhecimento da falência do

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, p.604.


27

“... nas ciências sociais, notadamente nas jurídicas, o homem é arrogante, petulante, audacioso (soberbo) e ao
28

mesmo tempo temerário, ao afirmar que busca a verdade real absoluta no processo penal.” (THUMS, Gilberto.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 123


atual modelo estrutural de processo penal, baseado e fundado na lógica inquisitorial, e de
difícil conciliação com o que dizem os críticos do modelo cientí co moderno.
Conforme Ruth Gauer, ao nal do século XIX e “início do XX, várias foram as
expressões sobre o horror trazido à humanidade pela ciência e pela técnica baseadas em um
suposto império da razão, (...) o qual levaria a humanidade ao paraíso construído na Terra,
pela racionalidade cientí ca”.29 Porém, desde a chuva de bombas inaugural da Primeira
Guerra Mundial, foi possível perceber que a técnica e a ciência não servem somente para
a evolução da espécie humana, podendo servir, igualmente, para a sua aniquilação.
Tal percepção desvelou um mundo sujo, ganancioso, violento, que, antes, pensava-
se poder ser corrigido com a ciência, em princípio somente pensada para o bem da
humanidade. Mas a máscara caiu: o projeto moderno da salvação entrou em crise; não
há mais que se pensar no futuro, mas no presente, viver cada minuto como se fosse o
último. Para Edgar Morin, é preciso “ensinar e propagar a má notícia: não há salvação
neste mundo”.30
Uma forma única de pensar foi imposta, excluindo-se as demais apenas por ser
aquela considerada científica. Salo de Carvalho assevera que “a crença na unidade do
discurso e na potência dos métodos cientí cos forjados na modernidade ofusca o olhar do
pesquisador, impedindo-o de perceber a dimensão das revoluções e dos desa os (riscos)
contemporâneos”.31
O velho paradigma newtoniano pressupunha um espaço absoluto, universal e
estável. “Todas as mudanças veri cadas no mundo físico, eram descritas em termos de
uma dimensão separada, denominada tempo; essa dimensão, por sua vez, também era
absoluta, sem qualquer vínculo com o mundo material e uindo suavemente do passado
através do presente e em direção ao futuro”.32
Nesse sentido, acreditava-se que era possível, ao fazer história, poder “apreender um
re exo exato do passado. (...) Ao olhar para trás, o historiador apreendia os tempos dessas
saliências, e o instinto da história era delimitado por esse eixo harmônico inalterável”.33 Ou
seja: pensava-se ser possível apreender um determinado “espaço de tempo” do passado no
presente e esmiuçá-lo, até que fosse revelada a verdade – autorizada porque cientí ca.
Novamente lembrando Capra, percebe-se que “duas descobertas no campo da física,
culminando na teoria da relatividade e na teoria quântica, pulverizaram todos os principais
conceitos de visão do mundo cartesiano e da mecânica newtoniana”.34 Primeiramente,
cumpre salientar que a partir do momento em que Einstein, percebendo

Sistemas Processuais Penais, p.186).


29
GAUER, Ruth. O Reino da Estupidez e o Reino da Razão, p.137.
30
MORIN, Edgar. Para Sair do Século XX, p.276.
31
CARVALHO, Salo de. Criminologia e Transdisciplinaridade, p.312.
32
CAPRA, Fritjof. O Tao da Física, pp.48-49.
33
GAUER, Ruth. Falar em Tempo, Viver o Tempo!, p.18.
34
CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação, p.69.

124 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


a impossibilidade de o observador estabelecer a ordem temporal dos acontecimentos
no espaço – não havendo na natureza velocidade superior à da luz, para medir a
velocidade faz-se necessário conhecer a simultaneidade dos acontecimentos –, põe
em dúvida o caráter absoluto do tempo e do espaço, ele rompe com a cosmovisão
moderna. Einstein demonstra que a simultaneidade dos acontecimentos distantes
não pode ser veri cada, tão-só de nida e, dada a arbitrariedade das medições,
a hipótese de contradição dos resultados é forçosamente incorporada. Sob esse
aspecto, uma nova concepção de conhecimento afeta a visão do tempo que lhe
será associada.35

Segundo Norbert Elias, “As correções trazidas por Einstein para o conceito
newtoniano de tempo ilustram essa mutabilidade da ideia na era moderna. Einstein mostrou
que a representação newtoniana de um tempo único e uniforme, através de toda a extensão
do universo físico, não era sustentável”.36 Ao dizer que é impossível ao “observador
estabelecer a ordem temporal dos acontecimentos no espaço (...) – põe em dúvida o caráter
absoluto do tempo e do espaço”,37 rompendo incisivamente com a cosmovisão moderna:
“o tempo no mundo, ao tornar-se incerto, torna-se, por consequência, diferente do tempo
das ciências modernas, onde era de nido pela possibilidade de de nir leis universais e
eternas da natureza”.38
Desde então, pensar o tempo como um fator absoluto, universalmente válido, tornou-
se complicado, ocasionando importante ruptura com o modelo cosmológico newtoniano,
em que o tempo era o mesmo para todos. “Em outras palavras, a teoria da relatividade sela
o m do conceito de tempo absoluto!”,39 a rma Stephen William Hawking, considerado
por muitos o sucessor de Galileu, Newton e Einstein.
A história (e qualquer outra ciência) não pode mais ser produzida partindo da ideia
de que irá relatar exatamente a “verdade” do que ocorreu naquele espaço-tempo pretérito,
sendo forçada a assumir que resgatará apenas um fragmento do fato, a partir dos pontos
de vista dos historiadores (e nas demais ciências, têm-se juristas, psicólogos, etc.). Tal
consequência revela-se fundamental para o processo penal, quando a “pequena história”
do con ito em jogo40 não pode mais ser resgatada integralmente, como se fosse um mero
objeto à espera de seus sujeitos.
E não podemos deixar de mencionar, ainda, o que foi percebido por Werner
Heisenberg em 1926: o princípio da incerteza. Conforme Hawking,

a m de prever a posição e a velocidade futuras de uma partícula, devemos ser


capazes de medir, com precisão, sua posição e velocidade atuais. O procedimento

35
GAUER, Ruth. O Reino da Estupidez..., pp.174-175.
36
ELIAS, Norbert. Sobre o Tempo, p.35.
37
GAUER, Ruth. Conhecimento e Aceleração (mito, verdade e tempo), p.6.
38
GAUER, Ruth. Conhecimento e Aceleração..., p.6.
39
HAWKING, Stephen William. Uma Breve História do Tempo: do big bang aos buracos negros, p.44.
40
Nesse sentido, conferir PLETSCH, Natalie Ribeiro. Formação da Prova no Jogo Processual Penal: o atuar dos
sujeitos e a construção da sentença. São Paulo: IBCCRIM, 2007.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 125


para se obter esta medição é projetar luz sobre a partícula. Algumas ondas de luz se
dispersarão pela partícula indicando sua posição. Entretanto, não seremos capazes
de determinar a posição da partícula de maneira mais precisa do que através da
distância entre as cristas das ondas de luz, de forma que será preciso usar luz
de ondas curtas para se ter um grau razoável de con abilidade no resultado do
experimento. Mas, segundo a hipótese quântica de [Max] Planck, não se pode usar
uma quantidade arbitrariamente pequena de luz; temos que usar pelo menos um
quantum. Este quantum perturbará a partícula e mudará sua velocidade de forma não
previsível. Quanto mais precisamente se medir a posição, mais curto o comprimento
de onda de luz necessário para atingir a mais alta energia de um único quantum.
Assim, a velocidade da partícula será perturbada por uma quantidade maior. Em
outras palavras, quanto mais precisamente se tentar medir a posição da partícula,
menos precisamente se pode medir sua velocidade, e vice-versa.41

Em termos mais próximos à realidade, percebe-se que não seria possível prever
as consequências de nossas ações. “O princípio da incerteza teve profundas implicações
na forma de percepção do mundo que, mesmo ultrapassados cinquenta anos, ainda
não foram completamente examinadas pelos lósofos e se mantêm na pauta de muitas
controvérsias”.42
Nesse sentido, não há mais que se falar em previsibilidade de resultados,
possibilidade de êxito e/ou derrota, etc.: o que há são probabilidades, e essas não são
passíveis de previsibilidade ou determinação. Para Hawking,

o princípio da incerteza assinala o m do sonho de Laplace de uma teoria da ciência,


um modelo de universo completamente determinístico; não se pode certamente
prever eventos futuros com precisão, uma vez que também não é possível medir
precisamente o estado presente do universo!43

Essas descobertas e observações não só colocam em xeque toda a estrutura do


pensamento moderno como delineiam a urgente necessidade de se repensar o próprio
pensamento, como quer Morin.44 A estrutura do pensamento jurídico, nesse contexto – e,
dentro da nossa abordagem, a estrutura do processo penal – é colocada sob suspeita. Urge
a necessidade de se repensar totalmente o que se pode entender por processo penal.
Como primeiros passos para se pensar em uma nova prática cientí ca, Carvalho
aponta “eximir-se da pretensão de busca de verdades de nitivas e exortar as unidades
totalizantes próprias dos projetos da Modernidade (...)”.45 Agindo de outra maneira,
o cientista estaria voltando a incidir no mesmo problema dos modernos: pretender

41
HAWKING, Stephen William. Uma Breve História do Tempo..., p.87.
42
HAWKING, Stephen William. Uma Breve História do Tempo , p.87.
43
HAWKING, Stephen William. Uma Breve História do Tempo..., pp.87-88.
44
MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita: repensar a reforma, reformar o pensamento.
45
CARVALHO, Salo de. Criminologia e Transdisciplinaridade, p.311.

126 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


buscar apenas uma verdade e unificar o método. A epistemologia da certeza com a qual
trabalhamos resta, outrossim, questionável.
Dilui-se, assim, tudo o que é subjetivo e criador.46 A redução da complexidade
mundana a meras leis matemáticas acaba por apresentar uma simpli cação insustentável
quando se trata de enfrentar uma ciência social aplicada, como o direito, cujos fenômenos
não podem ser descritos através de fórmulas ou símbolos, sob pena de um reducionismo
que beira a irracionalidade.47
Nesse sentido, pensar o processo penal como meio para se buscar a verdade real
de um fato pretérito não só vai de encontro às últimas interpretações das ciências exatas
como também evidencia o conservadorismo característico da dogmática atinente ao tema.48
A insistente natureza reveladora do processo penal submete os acusados em geral a um
procedimento injusti cável cienti camente, sustentado apenas pela crença no que se pode
chamar de ilusão moderna, qual seja, a de que o homem é capaz de reconstituir, através
da memória (testemunhal e/ou documental) um fato pretérito e, ainda, formar um juízo
de certeza acerca do mesmo, baseado (sempre) no método cartesiano.
O que seria o processo penal, a nal, senão uma fórmula redutora de complexidade,
ou exatamente aquilo que Salo de Carvalho chama de método de despedaçamento?49

3.1 A lógica da exclusão do Processo Penal: entre o cidadão


e o estrangeiro
Desde essa posição crítica, em que o processo penal tem suas raízes colocadas sob
suspeita, a necessidade de um (re)questionamento da estrutura (moderna) do próprio
processo penal resta mais do que necessária: as pessoas diretamente envolvidas nos
con itos possuem uma função secundária, enquanto aqueles que nada podem fazer para
solucionar o con ito ou para, pelo menos, apaziguá-lo, emergem como protagonistas
no cenário processual.
Acusado e vítima não possuem local de fala, enquanto juiz, acusador e defensor
“dialogam” interminavelmente entre si, atribuindo àqueles um papel meramente

46
Esclarecedor é o que Morin traz em nota de rodapé: “O pensamento que recorta, isola, permite que especialistas e
experts tenham ótimo desempenho em seus compartimentos, e cooperem eficazmente nos setores não complexos
de conhecimento, notadamente, os que concernem ao funcionamento das máquinas artificiais; mas a lógica a que
eles obedecem, estende à sociedade e às relações humanas os constrangimentos e os mecanismos inumanos
da máquina artificial e sua visão determinista, mecanicista, quantitativa, formalista; e ignora, oculta ou dilui tudo
que é subjetivo, afetivo, livre, criador” (MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita, p.15.).
47
“(...) a simplicidade das leis constitui uma simplificação arbitrária da realidade que nos confina a um horizonte
mínimo para além do qual outros conhecimentos da natureza, provavelmente mais ricos e com mais interesse
humano, ficam por conhecer.” (SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente..., p.72.).
48
“... o homem das ciências naturais a cada dia busca desvendar novos horizontes, eis que se encontra diante de
desafios constantes, enquanto o homem das ciências jurídicas ainda não acordou para os ‘novos tempos’. O Direito,
como ciência social, apesar da necessidade de acompanhar a evolução da sociedade e de seus fenômenos que
exigem normatização, não consegue cumprir o seu papel, manifestando exagerado apego ao conservadorismo,
refletido nas leis e nas decisões dos tribunais.” (THUMS, Gilberto. Sistemas Processuais Penais, p.8).
49
In: Criminologia e Transdisciplinaridade, p.311.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 127


coadjuvante, pois não possuem o conhecimento técnico necessário para enfrentar o
processo penal. Evidentemente que não possuem o referido conhecimento técnico,
pois justamente não são técnicos em direito processual penal. Não poderia mesmo ser
diferente. E essa exclusão, típica dos modernos e, especialmente, dos juristas, inviabiliza
uma justiça criminal menos dolorosa e mais dialogal: a dor vem com a técnica, e o
silêncio, com a desculpa do desconhecimento cientí co. Como se vê, nada mudou nos
últimos mil anos...
Albert Camus, do alto de sua fenomenal percepção mundana, demonstra
perfeitamente o sentimento daquele que nada fala no processo penal:

Mesmo no banco dos réus, é sempre interessante ouvir falar de si mesmo.


Durante as falas do promotor e do meu advogado, posso dizer que se falou muito
de mim, e talvez até mais de mim do que do meu crime. Eram, aliás, assim tão
diferentes estes discursos? O advogado levantava os braços e admitia a culpa,
mas com atenuantes. O promotor estendia as mãos e denunciava a culpabilidade,
mas sem atenuantes. No entanto, uma coisa me incomodava vagamente. Apesar
das minhas preocupações, às vezes eu cava tentado a intervir e meu advogado
dizia, então, ‘cale-se, é melhor para o seu caso’. De algum modo, pareciam
tratar deste caso à margem de mim. Tudo se rolava sem a minha intervenção.
Acertaram o meu destino, sem me pedir uma opinião. De vez em quando, tinha
vontade de dizer: ‘Mas a nal quem é o acusado? É importante ser o acusado.
E tenho algo a dizer.’50

O que se percebe dessa narrativa é a absoluta falta de atenção para com aquilo que
os envolvidos diretos no con ito possuem e que pode (ou não) ser útil para o deslinde da
causa. O olhar descon ado do cientista o impede de transcender a barreira da modernidade
e, portanto, o iluminado não pode deixar o irracional participar do diálogo: impossível
dar voz àqueles que não têm luz, os envolvidos, pois estes não possuem o afastamento
necessário para não deixar as suas doces e desmedidas emoções atrapalharem a sua
dura e quadrada Razão. Não é de se estranhar que todo aquele que tenta ultrapassar essa
barreira – em qualquer área do conhecimento – é tratado como um poeta, como um artista,
como um teólogo, ou ainda como um “sonhador”, e sempre de forma pejorativa, pois a
rigorosa Razão não admite esse tipo de posicionamento.
Apesar da narrativa demonstrar o pensamento de um acusado, pode-se dizer
que, muito mais do que esse, as vítimas nos processos penais, quando não são mortas,
igualmente não possuem fala. E quando são chamadas a falar no processo penal, são
consideradas como meras informantes, pois o seu “lado emotivo” estaria interferindo
o seu “lado racional” e, certamente, irão querer vingança contra os acusados: seria a
emoção (novamente) se sobrepondo à Razão... Como modernos que somos, isso não é
possível de se admitir, por óbvio.

50
CAMUS, Albert. O Estrangeiro, p.102.

128 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


Mas, para tentarmos dar um passo além de nossa arrogância jurídico-moderna, há
outra alternativa que não o processo penal? É possível estabelecermos um diálogo no
processo penal sem que com isso sejamos obrigados a abrir mão dos direitos humanos –
tão duramente conquistados? É a que se propõe o debate em seguida.

4 A JUSTIÇA RESTAURATIVA E O RESGATE DO


DIÁLOGO NA TENTATIVA DE ENFRENTAMENTO
DAS SITUAÇÕES PROBLEMÁTICAS

Como conciliar o ato de justiça, que deve sempre concernir a uma singularidade,
indivíduos, grupos, existências insubstituíveis, o outro ou eu como outro, numa
situação única, com a regra, a norma, o valor ou o imperativo de justiça, que têm
necessariamente uma forma geral, mesmo que essa generalidade prescreva uma
aplicação que é, cada vez, singular?
(Jacques Derrida, in Força de Lei)

Nesse contexto de incessante questionamento de tudo aquilo que se entende por


ciência moderna e, portanto, por todos os seus frutos, necessário pensarmos, relativamente
à ciência jurídica e, mais especi camente, quanto ao processo penal, formas alternativas
à sua mecânica engrenagem.
Por esses motivos, importante começar a pensar a respeito do modelo conhecido
como Justiça Restaurativa. Tal modelo surge como alternativa à falência estrutural do
modelo tradicional de sistema criminal, tendo como desa o retrabalhar os dogmas da
justiça criminal, a m de restaurar o máximo possível do status quo anterior ao delito.
Frontalmente associada, em seu início, ao movimento de descriminalização, Mylène
Jaccould refere que a Justiça Restaurativa deu

passagem ao desdobramento de numerosas experiências-piloto do sistema penal


a partir da metade dos anos setenta (fase experimental), experiências que se
institucionalizaram nos anos oitenta (fase de institucionalização) pela adoção de
medidas legislativas especí cas. A partir dos anos 90, a justiça restaurativa conhece
uma fase de expansão e se vê inserida em todas as etapas do processo penal.51

Segundo Howard Zehr,

o primeiro passo na justiça restaurativa é atender às necessidades imediatas,


especialmente as da vítima. Depois disso a justiça restaurativa deveria buscar

51
JACCOULD, Mylène. Princípios, Tendências..., p.4.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 129


identi car necessidades e obrigações mais amplas. Para tanto o processo deverá, na
medida do possível, colocar o poder e a responsabilidade nas mãos dos diretamente
envolvidos: a vítima e o ofensor. Deve haver espaço também para o envolvimento
da comunidade. Em segundo lugar, ela deve tratar do relacionamento vítima-ofensor
facilitando sua interação e a troca de informações sobre o acontecido, sobre cada um
dos envolvidos e sobre suas necessidades. Em terceiro lugar, ela deve se concentrar
na resolução dos problemas, tratando não apenas das necessidades presentes, mas
das intenções futuras.52

Na justiça restaurativa, (a) a vítima poderá participar dos debates; (b) o


procedimento poderá não resultar em prisão para o acusado, mesmo que ele venha
a admitir que praticou o delito e provas venham a corroborar a con ssão; (c) há a
possibilidade de acordo entre as partes; (d) os operadores jurídicos deixarão de ser
os protagonistas, abrindo espaço para um enfrentamento interdisciplinar do con ito
interpessoal; dentre outras características.
Vale o registro de André Gomma de Azevedo, para quem

a Justiça Restaurativa apresenta uma estrutura conceitual substancialmente distinta


da chamada Justiça Tradicional ou Justiça Retributiva. A Justiça Restaurativa
enfatiza a importância de se elevar o papel das vítimas e membros da comunidade
ao mesmo tempo em que os ofensores (réus, acusados, indiciados ou autores do
fato) são efetivamente responsabilizados perante as pessoas que foram vitimizadas,
restaurando as perdas materiais e morais das vítimas e providenciando uma gama
de oportunidades para diálogo, negociação e resolução de questões.53

Acreditamos, igualmente, que a Justiça Restaurativa “representa um novo


paradigma aplicado ao processo penal, que busca intervir de forma efetiva no con ito
que é exteriorizado pelo crime, e restaurar as relações que foram abaladas a partir desse
evento (VITTO, 2005, p.3)”. E a aparição do novo paradigma reside justamente na
possibilidade concreta de instauração de um diálogo entre vítima, ofensor e quaisquer
outros interessados no con ito.54 Para Eduardo Rezende Melo,

o pluralismo que um modelo restaurativo de justiça nos permite entrever é este,


de que as avaliações que realizamos não se remetem logicamente a valores
dos quais deduzimos as condutas que haveremos de adotar, mas se referem,
pelo contrário, a maneiras de ser, de viver, de sentir que haveremos, em nossa
singularidade existencial, de procurar estruturar e justi car, com tudo aquilo
de que somos providos – sentimentos, paixões, razões –, para nos a rmarmos

52
ZEHR, Howard. Trocando as Lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça, p.198.
53
AZEVEDO, André Gomma. O Componente Mediação Vítima-Ofensor..., p.6.
54
Conferir ACHUTTI, Daniel. Modelos Contemporâneos de Justiça Criminal. Justiça Terapêutica, Instantânea e
Restaurativa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

130 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


no mundo. E esta a rmação há de ser feita perante um Outro concreto com o
qual nos relacionamos, com seu modo de existência todo diverso, incapaz ele
também de, por si, nos entender.55 (grifos nossos)

Vale citar novamente Melo, que sintetiza os motivos que demonstram, efetivamente,
a emergência de um novo paradigma processual, a partir da Justiça Restaurativa, para o
enfrentamento dos con itos criminais: primeiramente, ela oportuniza uma outra percepção
da relação entre o indivíduo e a sociedade “no que concerne ao poder: contra uma visão
vertical na de nição do que é justo, ela dá vazão a um acertamento horizontal e pluralista
daquilo que pode ser considerado justo pelos envolvidos numa situação con itiva”; em
segundo lugar, salienta que a justiça restaurativa foca “na singularidade daqueles que estão
em relação e nos valores que a presidem, abrindo-se, com isso, àquilo que leva ao con ito”;
em terceiro lugar, se o foco está mais voltado para a relação do que para a resposta punitiva
estatal, o próprio con ito e a tensão relacional adquirem outro estatuto, “não mais como
aquilo que há de ser rechaçado, apagado, aniquilado, mas sim como aquilo que há de ser
trabalhado, laborado, potencializado naquilo que pode ter de positivo, para além de uma
expressão gauche, com contornos destrutivos”; em quarto lugar, “contra um modelo centrado
no acertamento de contas meramente com o passado, a justiça restaurativa permite uma outra
relação com o tempo, atenta também aos termos em que hão de se acertar os envolvidos
no presente à vista do porvir”; e, em quinto lugar, “este modelo aponta para o rompimento
dos limites colocados pelo direito liberal, abrindo-nos, para além do interpessoal, a uma
percepção social dos problemas colocados nas situações con itivas”.56
Para Antoine Garapon, a justiça restaurativa57 proporciona um verdadeiro
“deslocamento do centro de gravidade da justiça”, pois “atribui um rosto novo à justiça:
reconstruir a relação no que ela tem de mais concreto. Tem como vizinhos homens de
carne e osso, não a lei!”58 Com a quebra da centralidade da justiça criminal no acusado,
a vítima passa a ter papel fundamental neste novo cenário, de forma a intimar “o direito
penal a reorganizar-se”: “quando nos concentramos na vítima e já não no autor, a malvadez
como vontade má deixa de ser central, o que exerce uma in uência considerável sobre
o sentido da pena. Esta já não pode pretender apontar uma intenção culpada.”59 Ainda
segundo Garapon,

55
MELO, Eduardo Rezende. Justiça Restaurativa e seus Desafios Histórico-Culturais..., p.11.
56
MELO, Eduardo Rezende. Justiça Restaurativa e seus Desafios Histórico-Culturais..., p.7.
57
Na tradução portuguesa, o termo justiça restaurativa foi traduzido como justiça reconstrutiva. Em inglês, restorative
justice. O autor prefere a tradução “reconstrutiva” à “restaurativa” em virtude da ideia de busca de reconstrução de
uma relação destruída, por um lado, e pelo espírito no qual ela deve fazer-se, por outro, no sentido de originar-se
da noção de “construtivo”. Ainda, salienta que o adjetivo “restauradora” traz consigo a noção de “um retorno ao
idêntico que (...) não está conforme a ambição desta forma de justiça.” (cf. nota n.1, p.250) Não desconhecemos
essa diferença, mas, para não utilizar dois termos distintos, utilizaremos o termo mais conhecido, qual seja,
justiça restaurativa.
58
GARAPON, Antoine. Punir em Democracia. E a justiça será, pp.253 e 251.
59
GARAPON, Antoine. Punir em Democracia..., pp.255 e 257.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 131


a vítima cessa o frente a frente secular entre o criminoso e o príncipe no qual ela
fazia gura de convidada e sobrepõe-lhe um outro entre ela e o criminoso. Ela
obriga assim a repensar a justiça como o local de articulação não entre dois (o
criminoso e o príncipe), mas três protagonistas.60

Importante apontamento traz Leonardo Sica, quando afirma que “a justiça


restaurativa é uma prática ou, mais precisamente, um conjunto de práticas em busca de
uma teoria”.61 Raffaella Pallamolla, por sua vez, acentua que “a justiça restaurativa possui
um conceito não só aberto como, também, uido, pois vem sendo modi cado, assim
como suas práticas, desde os primeiros estudos e experiências restaurativas”.62 E talvez
essa construção ainda em aberto seja um ponto bastante positivo, uma vez que não há
(ainda) engessamento das formas de controle social via justiça criminal e, portanto, os
casos-padrão e as respostas-receituário permanecem indeterminadas – tal como devem,
efetivamente, permanecer. Para Lode Walgrave,

Restorative Justice is an unfinished product. It is a complex and lively realm


of different – and partly opposite – beliefs and options, renovating inspirations
and practices in different contexts, scientific ‘crossing swords’ over research
methodology and outcomes. (...) It is a field on its own, looking for constructive
ways of dealing with the aftermath of crime, but also part of a larger socio-ethical
and political agenda.63

Nesse contexto de enfrentamento do crime, a abordagem do agir criminoso – aquele


atribuível apenas ao humano absolutamente racional, como uma ação que resulta de uma
intenção livre e individual – pode deixar de isolar os demais integrantes do cenário social
do sujeito e, assim, permitir que não se o responsabilize exclusivamente como culpado
pelo crime. Não se pretende desvincular uma ação de seu autor, mas apenas ampliar a
abordagem, de forma a tentar compreender o delito como algo maior e mais complexo
do que apenas uma conduta humana livre e consciente direcionada a determinado fim.
Isso não signi ca que tudo será permitido, antes pelo contrário: a identi cação
de um determinado contexto para a ocorrência de situações problemáticas complexi ca
a situação e permite o abandono de modelo que se quer puro e autossu ciente (teoria
do delito) para buscar outra maneira de pensar tais condutas. E é nesse momento que
se torna possível pensar na tradicional diferenciação entre ilícito civil e ilícito penal: a
percepção, desde outros olhares, sobre o signi cado atribuído a determinadas condutas,
variando conforme a (sub)cultura em que estiverem inseridos os envolvidos é, talvez,
um dos pontos centrais a ser ponderado. Como possível consequência de uma redução

60
GARAPON, Antoine. Punir em Democracia..., p.262.
61
SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão do
crime, p.10.
62
PALLAMOLLA, Raffaella. Justiça Resturativa: da teoria à prática, p.54.
63
WALGRAVE, Lode. WALGRAVE, Lode. Restorative Justice, Self-interest and Responsible Citizenship, p.11.

132 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


do sistema penal e da ampliação da utilização de uma justiça restaurativa, em que o
foco não é o enquadramento de uma conduta em determinado tipo penal, mas no dano
causado, Ezzat Fattah é taxativo:

The measurement of harm: physical, material, and mental, will likely become the
central component of social reaction to crime. The primary aims of such a response
will be redress, reparation and compensation. My guess is that the arbitrary
distinction between crimes and civil torts will disappear and that the artificial
boundaries that have been erected over the years between criminal courts and
civil courts will be removed.64

A superação das fronteiras artificiais entre as cortes cíveis e criminais, como refere
Fattah, somente poderão ocorrer caso haja um novo olhar sobre a própria classi cação
das condutas danosas – de ilícitos penais para outro tipo de ilícito, precipuamente o civil.
Tal superação permitiria, se bem estruturada, constituir-se em um freio à rotulação do
ofensor como delinquente; resultar em uma decisão menos danosa individual e socialmente
(diminuiria drasticamente as possibilidades de uma pessoa ser enviada à prisão); e, ainda,
desencadear, ao nal, não mais em meras sentenças condenatórias como respostas ao
crime, mas em ações coletivas voltadas para a reparação do dano causado.
A Justiça Restaurativa pretende, como se percebe, apoiar-se “no princípio de uma
rede nição do crime. O crime não é mais concebido como uma violação contra o estado
ou como uma transgressão a uma norma jurídica, mas como um evento causador de
prejuízos e consequências”,65 focando a atenção na possível solução do problema através
do diálogo entre as partes (direta ou indiretamente envolvidas: agressor, vítima, amigos,
parentes, pessoas importantes para as partes, etc.). A infração, então, deixa de ser um mero
tipo penal violado e passa a ser vista como advinda de um contexto bem mais amplo, de
origens obscuras e complexas, e não de uma mera relação de causa e efeito.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Segundo Jacques Derrida, “o direito não é a justiça. O direito é o elemento do
cálculo, é justo que haja um direito, mas a justiça é incalculável, ela exige que se calcule
o incalculável (...).” Continua o autor

Cada caso é um caso, cada decisão é diferente e requer uma interpretação


absolutamente única, que nenhuma regra existente ou codi cada pode nem deve
absolutamente garantir. Pelo menos, se ela a garantir de modo seguro, então o juiz
é uma máquina de calcular (...).66

64
FATTAH, E. Victimology: past, present and future, p.42.
65
JACCOULD, Mylène. Princípios, Tendências..., p.7.
66
DERRIDA, Jacques. Força de Lei, pp.30 e 44-45.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 133


Para Garapon,

o importante não é tanto estabelecer os erros do passado quanto preparar o futuro,


isto é, permitir a cada um refazer ou continuar a sua vida. Estas duas leis preferem,
de seguida, o acordo à decisão imposta, sempre que possível. O juiz retira-se
na ponta dos pés de certos con itos, concebendo de futuro a sua intervenção
como subsidiária. A intervenção do terceiro, dramatizada pelo processo, torna-se
secundária em relação a uma justiça do frente a frente.67

A mofada pré-determinação, via códigos, do que é e do que não é crime diluiria-se


aos poucos, dando espaço, tempo e lugar aos envolvidos no problema para que decidam
o que fazer, abandonando que os conhecidos “terceiros” tomem os seus lugares e as suas
dores e digam, a partir de seus locais de vida – evidentemente outros – o que e como
deve ser feito.
Como refere Becker, “o grau em que um ato será tratado como desviante depende
também de quem o comete e de quem se sente prejudicado por ele”.68 Com a devolução
do con ito às partes, pode-se romper com condutas a priori proibidas para pensá-las
apenas a partir da interpretação dos envolvidos no episódio, de forma a se permitir a
apresentação dos envolvidos e suas variáveis subjetivas que, na justiça penal tradicional,
não encontram espaço de valorização.
Não se pretende, com isto, a abolição imediata da justiça penal, mas, quiçá, a sua
signi cativa redução. A justiça restaurativa, justamente por não ser um produto pronto
e acabado, ainda não tem condições de ter uma pretensão puramente abolicionista,
mas nada impede que seja utilizada com a nalidade de redução da atuação do sistema
penal e de toda a dor que este proporciona às partes. Além disso, pode se constituir
em importante ferramenta para a estruturação de um sistema de justiça criminal que
propicie a instauração, entre os envolvidos, de um verdadeiro encontro.69 Concordamos
com Garapon, para quem a justiça restaurativa não se funda nem exclusivamente no ato
delitivo (violação da lei – modelo retributivo), nem na pessoa do autor visando a sua
educação (modelo reabilitativo),

mas no evento do seu encontro, gerador em si mesmo de créditos e débitos


novos.
O encontro não se reduz ao acto, que é o evento visto do agente, tal como não
se confunde com o sofrimento, a sua vivência pelo paciente da acção, ou com a
transgressão que lhe é a quali cação abstracta. Nenhuma dessas abordagens lhe
esgota totalmente o sentido.

67
GARAPON, Antoine. Punir em Democracia..., p.261.
68
BECKER, Howard S. Outsiders, p.25.
69
Conferir SOUZA, Ricardo Timm de. Ética como Fundamento. Uma introdução à ética contemporânea.

134 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


Com a sua parte de sorte, de imprevisto, de transcendência, com o acidente, a
catástrofe, o encontro transcende a intenção de quem lhe tomou a iniciativa. Tal
como as suas consequências para a vítima ultrapassam a unidade do tempo, de
lugar e de acção na qual se queria contudo encerrá-la. Um encontro transborda
sempre sobre si mesmo: é tão imprevisível para a vítima quanto, em certa medida,
o é para o autor. A injustiça nasce aí, nesse mal-entendido da vida, nesta diferença
entre a acção desejada e o drama calhado em sorte, entre duas versões do vivido
que não podem conciliar-se. A justiça saberá encontrar equivalências satisfatórias
para saldar esta conta que o acaso estabeleceu?70

Invariavelmente, refere Garapon,71 a ideia central da justiça restaurativa está na


pretensão de atribuir aos principais interessados – vítima, autor e grupo social diretamente
afetado pelo delito – os recursos su cientes para reagir à infração. Já que não é mais
possível “pretender saber a priori melhor que os próprios interessados o que é bom para
eles”, melhor então “despertar as suas competências particulares, adormecidas pelo
paternalismo das instituições”.72
O que se quer, portanto, é oportunizar que se construa “uma resposta inteligente
ao pluralismo moral próprio de toda a sociedade democrática”,73 ou seja, que esse novo
modelo de justiça criminal permita pensar a questão para além do anacrônico modelo
causal do crime-castigo.
Trata-se, essencialmente, de uma importante ferramenta, diversa ao processo
penal tradicional, que opta por não tratar o acusado e os demais envolvidos no
con ito como Estrangeiros indesejados, mas como Estrangeiros-cidadãos, portadores
de voz, direitos e humanidade. Tratá-los com dignidade e respeita os seus direitos
é um pressuposto para a sobreposição de um novo modelo processual, para muito
além do penal.
Assim, a Justiça Restaurativa, apesar de alguns problemas que devem ser discutidos,
sinaliza para um novo caminho para o enfrentamento dos con itos criminais, mas que,
necessariamente, não poderá ser implementado sem uma mudança substancial no que se
entende por direito penal e processual penal atualmente.

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AZEVEDO, André Gomma. O Componente Mediação Vítima-Ofensor na Justiça
Restaurativa: uma breve apresentação de uma inovação epistemológica na autocomposição

70
GARAPON, Antoine. Punir em Democracia..., p.269.
71
GARAPON, Antoine. Punir em Democracia..., p.313.
72
GARAPON, Antoine. Punir em Democracia..., p.318.
73
GARAPON, Antoine. Punir em Democracia..., p.313.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 135


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138 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


Sentença do caso “O sequestro
dos uruguaios”1
Vistos etc...

PEDRO CARLOS SEELIG, brasileiro, desquitado, funcionário público estadual,


desempenhando o cargo de Delegado de Polícia, lho de Reinaldo Seelig e de Adelaide
Tortelli Seelig, residente e domiciliado nesta comarca de Porto Alegre; ORANDIR
PORTASSI LUCAS, casado, brasileiro, funcionário público estadual, exercendo o
cargo de Escrivão de Polícia, lho de Ervandir Alves Lucas e Romilda Portassi Lucas,
alcunha “Didi Pedalada”, residente e domiciliado nesta capital e comarca de Porto
Alegre, foram denunciados por infração aos artigos 3º, letras “a” e “b”; 4º, letra “a”
da Lei 4898/65, com a alteração da Lei 5249/67, combinados com os artigos 25 e
44, II, letra “i” (criança) do Código Penal.
JANITO JORGE DOS SANTOS KEPPLER, brasileiro solteiro, maior,
funcionário público estadual, exercendo as funções de Inspetor de Polícia, lho de
Janito Feijó Keppler e Olinda dos Santos Keppler, residente e domiciliado nesta
comarca, foi denunciado, em virtude de aditamento, por infração aos artigos 3º,
letra “a”; 4º, letra “a”, da Lei 4898/65, combinado com os artigos 25 e 44, II, letra
“i” (criança) do Código Penal; JOÃO AUGUSTO DA ROSA, brasileiro, casado,
funcionário público estadual, exercendo o cargo de Inspetor de Polícia, como incurso
nas sanções do artigo 3º, letras “a” e “b”; 4º, letra “a” e “c”, da Lei 4898, combinados
com o artigo 25 do Código Penal, segundo aditamento de Fls. 962/965 dos autos.
Segundo o Ministério Público: “No dia 12 de novembro de 1978,
aproximadamente às 12 horas, na rua Botafogo, 621, bloco 3, apto 110, em Porto
Alegre, onde residiam, quando as crianças Camilo e Francesca Casariego, com 8 e
3 anos de idade, respectivamente, preparavam-se para assistir um jogo de futebol,
no Estádio Beira-Rio, foram detidos ilegalmente por diversos homens, que não
possuíam qualquer mandado de prisão, nem mesmo as vítimas cometiam qualquer
espécie de delito.
Pelo menos as duas crianças foram levadas e de imediato para o prédio da
Secretaria de Segurança e ali permaneceram por um ou mais dias. Enquanto isto
a uruguaia Lilian Elvira Celiberti, com permanência legal no Brasil, foi coagida

1
No ano de 1978, Porto Alegre foi palco de um crime político que teve repercussão internacional, praticado por
policiais gaúchos e que passou a ser conhecido como o “Sequestro dos uruguaios”. O documento ora publicado
é a sentença criminal, da lavra do Dr. Moacir Danilo Roij Rodrigues, proferida no processo crime que 4 policiais
responderam, como incursos em artigos da Lei 4.898/65, representando importante peça jurídica da história
daqueles difíceis tempos em que a democracia e as garantias da cidadania não eram respeitadas (nota da
editora).

Direito e Democracia DireitoCanoas v.11 v.11,n.1


e Democracia, p.139-168
n.1, jan./jun. 2010 jan./jun. 2010 139
a permanecer no referido apartamento, até o dia 17 do mesmo mês, sob a ameaça
de armas, portadas pelos autores da prisão, sem que houvesse qualquer motivo
autorizador para tal: agrante, mandado de prisão ou de busca e apreensão domiciliar
e não comunicação posterior à autoridade judiciária.
No dia 17.11.78, o jornalista Luiz Cláudio Cunha, chefe da sucursal da Revista
Veja, em Porto Alegre, recebeu um telefonema anônimo, procedente de São Paulo, de
uma pessoa que dizia estar preocupada com a falta de informações de Lilian Elvira
Celiberti e Universindo Rodriguez Dias, que poderiam estar detidos e solicitava uma
veri cação no endereço que forneceu. O jornalista mencionado, acompanhado pelo
fotógrafo João Batista Scalco Pereira, foi ao local.
Foram atendidos por Lilian, através da porta entreaberta e após breve diálogo,
em que ela se mostrava nervosa, a porta foi aberta de todo e dois homens armados de
pistolas de grosso calibre, determinaram aos jornalistas que entrassem no apartamento,
fazendo-os permanecerem encostados à parede, com as mãos para o alto, enquanto
os revistaram e interrogaram, por um espaço de cerca de 20 minutos.
Após libertados, as jornalistas foram recomendados para que nada publicassem,
nem mesmo informassem o ocorrido a são Paulo, demonstrando que pretendiam
prender mais pessoas que, eventualmente, procurassem os uruguaios. Cunha e
Scalco perceberam que lá se encontravam cinco ou seis homens, que pelo modo de
agir e falar, denotavam ser policiais. Logo após a libertação, Scalco informou ao
companheiro que um dos indivíduos armados se assemelhava com um ex-atleta do
futebol, conhecido por “Didi Pedalada”.
Mais tarde, através de fotogra as, os jornalistas identi caram, com segurança,
o funcionário policial, Orandir Portassi Lucas, como um dos homens armados no
apartamento de Lilian.
Uma Comissão da OAB, Secção do Rio Grande do Sul, esteve em Montevidéu,
quando através de fotogra as, o menor Camilo reconheceu o prédio da Secretaria
de Segurança Pública, como o local em que esteve recolhido, junto com Francesca e
Lilian, reconhecido também, mediante fotos, pelo garoto, o Delegado Pedro Carlos
Seelig, como um dos homens que estivera em sua residência na rua Botafogo.
Pelo aditamento de s 737/744, a participação de Janito Keppler no transporte
coativo dos uruguaios até a fronteira, levados de automóvel, foi narrado pela irmã de
Janito, Cecília Regina Keppler da Silva, ao advogado João Antônio Silveira de Castro,
e informando que a operação fora comandada pelo Delega do de Polícia Pedro Seelig,
superior hierárquico de Janito. Isto João Castro narrou aos advogados Mariano Beck,
Hermínio Beck e Ornar Ferri, mas acabou posteriormente negando.
Igualmente, pelo aditamento de s. 962 a 965, diz o Ministério Público, João
Augusto da Rosa participou do evento criminoso, porque reconhecido judicialmente
pelos jornalistas Luiz Cláudio Cunha e João Batista Scalco Pereira, como a pessoa

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que apontou a pistola para o rosto daquele, imobilizando-os, fazendo com que ambos
entrassem no apartamento. Era João Augusto que fazia as perguntas e, interrogando
os dois, demonstrava ser o chefe da operação no interior do prédio.
Foi, inclusive, o homem que se afastou por alguns minutos, voltando após mais
cordial, autorizando os jornalistas a se afastarem do local, após recomendação para
que nada publicassem, nem avisassem a pessoa que telefonara.”
A denúncia contra os dois primeiros réus foi recebida em 05.03.79 – s. 317/318.
O aditamento contra Janito Keppler em data de 15.10.79 – s. 752/753 e contra João
Augusto em 07.04.80 – s. 966/967.
Citados, foram interrogados. Os dois primeiros em 10.04.79 – s. 497/5030. Os
réus Janito e João Augusto em 09.11.79 ( s. 781/783) e 08.05.80, conforme se vê de
s. 1007/1009, respectivamente. Por defensores constituídos, apresentaram defesa
prévia, arrolando testemunhas e requerendo diligências ( s. 516 a 517, 518/519, 789
e 1010/1012, respectivamente) várias.
A primeira audiência, para inquirição de testemunhas da denúncia, foi realizada
em 10.05.79, com a ouvida de três pessoas ( s. 538/551). A segunda ocorreu em
11.06.79 ( s. 624/630), tomados dois depoimentos. Mais três testemunhas foram
ouvidas em 07.08.79 (à s. 662/671). A inquirição de mais quatro acontece em
10.09.79 ( s. 689/694). Em 11.10.79 ( s. 729/735) foram ouvidas mais cinco,
com a desistência de uma requerida pela defesa de Seelig, com concordância e
homologação. Em 13.11.79 ( s. 793/800) mais uma. E em 31 de março de 1980
( s. 948/951) foi realizada a audiência em que Scalco e Cunha reconheceram João
A. da Rosa.
Em virtude dos aditamentos contra Janito Keppler e João Augusto da Rosa,
requereram seus defensores a reinquirição das testemunhas arroladas na denúncia e
das que tiveram depoimentos determinados de ofício. Em despacho que se encontra
à s. 1046/1049, foi deferido o pedido e determinado, ainda, a inquirição de mais
10 pessoas, todas referidas, além das oferecidas, por estes dois denunciados, em
defesa prévia.
Desta forma, em data de 03.06.80, foram ouvidas seis testemunhas. Em 10.06.80,
mais dez ( s. 1182 a 1194). Em 17.06.80, mais quatro depoimentos foram colhidos
( s. 1218/1225). Em razão de uma entrega de documento, por parte do Dr. Justino
Vasconcellos, Presidente Regional da OAB, que correspondia a depoimento à OAB
Nacional, por Hugo Walter Garcia Rivas prestado e alusivo ao fato, foi determinada
a inquirição de mais pessoas.
Assim, em 03.07.80, foram ouvidos o Presidente do Conselho federal, Dr.
Seabra Fagundes, do Presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Jair
de Lima Krische e dos jornalistas que realizaram reportagem com Hugo Rivas, que
declarava ter integrado órgão de segurança do Uruguai.

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Finalmente, em data de 10.07.80, foi realizada a última audiência, com a
inquirição de três testemunhas da defesa de Jaito Keppler, que desistiu de outras
duas, com concordância e homologação.
Em debates orais o Ministério Público, entendendo provada a denúncia e os
aditamentos, postula condenação de todos os réus
A defesa dos três primeiros denunciados, em preliminar, argui: a) cerceamento
de defesa e consequente nulidade do feito, por desatendido requerimento no sentido
de ser enviada carta rogatória para ouvida dos militares do Exército Uruguaio,
referidos por Hugo Rivas.
b) cerceamento de defesa, por indeferida perícia sobre as assinaturas de Rivas,
lançadas em seus depoimentos, no manuscrito publicado pelo Jornal “ZERO HORA”,
em cotejo com as constantes das fotocópias de seus documentos.
c) inaplicabilidade da lei 4898/65 aos denunciados Orandir, Janito e João
Augusto, por não serem autoridades policiais.
d) falta de justa causa para a ação penal dada a ausência da palavra das vítimas,
na fase judicial, o que acarreta a nulidade do feito.
No mérito a defesa dos três primeiros alega que eles não cometeram o delito,
examinando exaustivamente a prova, pedindo a absolvição.
A defesa de João Augusto, após se manifestar sobre o conjunto probatório,
sustenta a inocência do réu, com o que deve ser absolvido.
Registre-se que, dada a complexidade da matéria e dos vários volumes existentes,
as partes apresentaram memoriais, com conhecimento e concordância recíprocos.
Saliente-se, também, que além dos oito volumes, tombados em juízo existem
mais quatorze apensos e representados pela CPI da Assembléia Legislativa do Estado,
Relatório da Comissão da OAB e Sindicância levada a cabo na Secretaria de Segurança
Pública e mais um apenso, referente a exceção de incompetência de juízo, num total,
pois, de vinte e três volumes.
Face, portanto, a tão volumoso expediente e a heterogêneas fontes, não foi
possível proferir sentença, em audiência, como expressamente determina a Lei
4898/65, entendendo aplicável, consequentemente, o Código de Processo Penal, que
xa o prazo de 10 dias para proferir decisão, eis que se trata, neste caso, de processo
com réus soltos.

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É O RELATÓRIO. DECIDO.
Preliminares:
Aprecio, de logo, a preliminar de nulidade do feito, por cerceamento de defesa,
que os réus arguiram desdobradamente: indeferimento da rogatória para inquirição
dos militares uruguaios, citados no depoimento de Hugo Garcia Rivas, prestados a
uma Comissão da OAB e ao Movimento de Justiça e Direitos Humanos e negativa
de perícia grafotécnica nas assinaturas lançadas por Hugo Rivas nos referidos
depoimentos e no manuscrito publicado pela imprensa, compativamente com as
constantes de seus documentos.
Mantenho os despachos lançados nos autos à s. 1253v e 1311, referentemente ao
indeferimento da rogatória, pelos próprios motivos ali expostos, isto porque:

Não constitui cerceamento de defesa, em regra, o fato de o juiz a quo indeferir


pedido de testemunha referida, por isso que a teor do § lº, do artigo 209 do Estatuto
processual penal, é medida facultativa. Revista dos Tribunais, 455/416.

No que diz respeito a negativa de perícia grafotécnica, permanecem os argumentos


expendidos no próprio termo da audiência realizada em 10 do corrente, valendo
acrescentar que, além de desnecessária, já que não se refere a exame de corpo de
delito seria tecnicamente impossível, posto que os documentos originais certamente
acompanharam Rivas, quando de sua saída do território brasileiro. Diz o artigo 18 do
Código de Processo Penal:

Salvo o caso de exame de corpo de delito, o juíz ou a autoridade policial negará


a perícia requerida pelas partes, quando não for necessária ao esclarecimento
da verdade.

Rejeito, de outra parte, a preliminar de inaplicabilidade, aos três últimos réus, da


Lei 4898, posto que não são autoridades.
Entendo que não se pode lançar névoa sobre o que está absolutamente claro, explícito
na própria lei. Com efeito, o artigo 4º do mencionado diploma começa diferenciando atos
de mando e de execução, ou seja, de superior e subordinado. Aquele manda e este executa.
Porém ambos são sujeitos ativos do crime de abuso de autoridade. Vejamos:

4º Constitui, também, abuso de autoridade:

a) ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as


formalidades legais ou com abuso de poder.

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Logo após, nas letras “f” e “g” são feitas referências especí cas:

f) cobrar o carcereiro ou agente da autoridade policial.

g) Recusar o carcereiro ou agente da autoridade policial

E quem é, pela referida lei, considerado autoridade? Apenas o Delegado de Polícia?


Não. A resposta é dada pelo seu artigo 5º:

Considera-se autoridade, para os efeitos desta lei, quem exerce cargo, emprego
ou função pública, de natureza civil ou militar, ainda que transitoriamente e sem
remuneração.

E o seu artigo 6º, § 5º liquida o tema:

Quando o abuso for cometido por agente da autoridade policial, civil ou militar,
de qualquer categoria, poderá ser cominada a pena autônoma ou acessória, de não
poder o acusado exercer funções de natureza policial ou militar no município da
culpa, por prazo de um a cinco anos.

Basta, em conclusão, que seja funcionário público, ou exerça, mesmo que temporária
e não remuneradamente, uma função pública:

Funcionário público é todo aquele que, embora em caráter transitório ou sem


remuneração, exerce emprego ou função pública. RIBEIRO PONTES, C.P. B.
6ª edição, pg. 534.

O Código Penal, afastando as controvérsias terminou com segurança o que se deve


entender, para ns do direito penal, “intra poenia juris poenalis”, por funcionário
público que, embora transitoriamente e sem remuneração, exerce cargo, emprego
ou função pública... É realmente o exercício da função pública o que caracteriza
o funcionário público perante o direito penal.

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H. FRAGOSO, Liç. Dir. Penal, IV/1062.

O conceito de funcionário público deve ser, assim, ligado à noção ampla de “função
pública”. Este o critério prevalente.
N. HUNGRIA, in Comentários, IX/400/403.

Resta, por m, a preliminar de ausência de justa causa, para a ação penal, por
não terem sido ou vidas as vítimas, na fase judicial. Quer a defesa que, com o advento
da lei 5249, de 09.02.67, a ação penal, por crime de abuso de autoridade, passou de
pública condicionada à pública pura.
Não havendo representação, com a expressa e cabal manifestação do ofendido
ao fato e aos que o praticaram, sua inquirição é requisito essencial à ação. Inexistente,
nulo o feito.
Com a vênia que me merece a gura ilustre do Dr. Lia Pires, com o respeito
que tenho por sua sabedoria jurídica, não compartilho de seu ponto de vista. Não
vejo necessidade em se tomar o depoimento do ofendido. Consequentemente, não há
nulidade.
Como bem salientou sua excelência, trata-se aqui de uma ação pública. E, como
tal, há uma duplicidade de sujeitos passivos: o Estado e o cidadão. Surgida a notícia do
delito, concomitante ou separadamente poderão agir. Alias, o poderá é uma faculdade
deste. Para aquele há uma imperatividade.
BILAC PINTO, autor do projeto de lei que se transformou na 4898, assim
justi cava sua iniciativa:

Previu a Constituição, ao instituir as regras fundamentais que caracterizam o


estado de direito e ao inscrever no seu texto direitos e garantias individuais que
abusos poderiam ser cometidos, pelas autoridades encarregadas de velar pela
execução das leis e pela manutenção e vigência dos principias asseguradores
dos direitos da pessoa humana.
Conferiu, por isso mesmo, a quem quer que seja, o direito de representar contra
abusos de autoridades e de promover a responsabilidade delas por tais abusos.
O objetivo que nos anima é o de complementar a Constituição, para que os direitos
e garantias nela asseguradas deixem de constituir letra morta em numerosíssimos
municípios brasileiros.
ABUSO DE AUTORIDADE, de G. P. DE FREITAS e V. P. DE FREITAS – ed.
Revista dos Tribunais/4.

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Sem dúvida nenhuma, uma grande conquista, especialmente quando se sabe
que, a partir de sua vigência, autoridades arbitrárias foram chamadas à moderação,
contando-se inúmeras condenações decorrentes.
Valeu ele por uma conquista de suma importância para nossa sociedade política
na qual, segundo a inteligência fulgurante de ADAUTO LÚCIO CARDOSO, “para
milhões de criaturas, os direitos e garantias individuais têm tido existência puramente
nominal.” – Diário do Congresso Nacional, página 8.149.
Porém, como todo ordenamento jurídico se condiciona ao aperfeiçoamento,
pouco mais de um ano após o seu advento, veri cava-se uma porta larga, utilizada
por aquelas autoridades (ou agentes seus) acostumadas ao arbítrio: a representação
do ofendido. Pressionado, ameaçado, deixava de exercitar o direito, triunfando a
impunidade.
Aí a razão da Lei 5249, dispondo que a falta de representação do ofendido não
obstava a iniciativa do Estado. Conhecedor este de um fato que caracteriza-se abuso de
autoridade, não só não deve, como não pode esperar a iniciativa do cidadão prejudicado
ou lesado. Cumpre-lhe, de pronto, agir com rmeza.
Portanto, há que se repetir a existência de uma duplicidade passiva, no crime de
abuso de autoridade:

Há dupla subjetividade passiva. Sujeito passivo mediato: é o Estado, titular da


Administração Pública. Sujeito passivo imediato: o cidadão, titular da garantia
constitucional lesada ou molestada.
D. EVANGELISTA DE JESUS – Do Ab. Aut. Justitia/j50

E sendo a Estado sujeito passivo, ainda que mediato, o exigir-se o depoimento


das vítimas, como elemento essencial para a validade da ação, é subverter-se a norma
processual norteadora da ação pública.
O Ministério Público ao oferecer denúncia arrolará testemunhas. Os artigos 19
e 23 da lei 4898 dispondo sobre a audiência, determina que serão ouvidos o réu, as
testemunhas e o perito. Não refere o depoimento do ofendido.
Ofendido, vítima, não são testemunhas. TOURlNHO FILHO, in Processo Penal,
vol 3º, ed. Jalovi/75, à pagina 157, conceitua testemunha:
Para ele, citando Von Kries, testemunhas são terceiras pessoas. Traz, ainda, a
de nição de Manzini de que “testemunho é a declaração, positiva ou negativa da
verdade, feita ao magistrado penal por uma pessoa (testemunha) distinta dos sujeitos
principais do processo.”
E se a lei 4898 exigisse, coma condição essencial, o depoimento do ofendido,
tê-lo-ia dito, expressamente. No mesmo sentido a lei 5249, que tornou pública a ação

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penal, procederia. Não zeram porque, como acima foi dito, seria uma subversão a
todas as regras de procedimento, posto que, em ação pública, o depoimento da vítima,
ou do ofendido, jamais foi erigido em condição para validade do feito.
Aliás, se fosse levado a rigor tal pretensão chegar-se-ia a impunidade do agente
que subornasse a sua vítima, ou que a escondesse até o nal da instrução, o que é
positivamente inadmissível.
Rejeito, pois, esta arguição de nulidade.

DO MÉRITO
Cumpre examinar, por primeiro, a ocorrência, a existência do fato, após a sua
tipicidade e, nalmente, a autoria.
Lilian Elvira Celiberti Rosas de Casariego e seus dois lhos, Camilo e Francesca,
com oito e três anos, respectivamente, ingressaram em território brasileiro, via Rio de
Janeiro, em 17.10.78, chegando a Porto Alegre no mesmo dia, em viagem aérea. Isto
está provado pela certidão de s. 33 da Polícia Federal.
Ainda nesse dia teria procurado o cidadão Jaime Plavinik, a m de alugar
um imóvel por ele administrado, já que pretendia permanecer três meses aqui. No
dia imediato, ou seja, 18.10.78, celebrou contrato de locação, passando a ocupar o
apartamento 110, bloco 3, da rua Botafogo, 621. Fazia-se acompanhar de seus dois
lhos e de um rapaz de aproximadamente 30 anos, falando em espanhol.
O prazo do contrato era de três meses e o locativo mensal de Cr$. 5.000,00 e,
como consta no documento rmado entre Jaime e Lilian, aquele recebeu uma caução
de Cr$ 5.000,00. Trinta e dois dias após, isto é, a 20.11.78, cerca das 12 horas, na
residência de Jaime este recebe a visita de um rapaz, de mais ou menos vinte e cinco
anos que, apressado, entrega-lhe um envelope contendo um bilhete de Lilian e as chaves
do apartamento, dizendo-se emissário dela.
Estes fatos estão devidamente comprovados, através dos depoimentos de Jaime
Plavinik, do contrato de locação e do mencionado bilhete, todos nos autos. A rma o
administrador que, logo após o recebimento do bilhete, foi ao apartamento, onde achou
as roupas do dormitório do casal fora do lugar, com o lençol e o cobertor jogados ao
chão.
Observou muito lixo, em um saco de papel, circunstância que causou estranheza,
pois normalmente os detritos eram colocados na lixeira. Na cozinha encontrou louças,
com restos de comida, que não tinham sido lavadas. Cerca de cinco tampas de luz
estavam fora de lugar. E a caução de Cr$ 5.000,00 jamais foi reclamada.
Luiz Cláudio Fontoura da Cunha, chefe da sucursal da Revista Veja, em Porto
Alegre, declara que estava em seu local de trabalho quando, por volta das 11 horas do
dia 17.11.78, recebeu um telefonema de são Paulo, de uma pessoa do sexo masculino,

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sotaque espanhol, a rmando que um casal de estrangeiros, juntamente com duas
crianças, havia desaparecido de seu aparta mento à rua Botafogo, 621, bloco 3, em
Porto Alegre.
Segundo esta pessoa, que permaneceu no anonimato, o desaparecimento teria
ocorrido no dia 12 de novembro, um domingo, admitindo que pudessem se encontrar
detidos, pois era improvável que tivessem viajado da capital do Estado. Negou-se a
fornecer o número de seu telefone, dizendo que faria outra ligação.
Luiz Cláudio, cerca das 16 horas do mesmo dia e acompanhado pelo fotógrafo
João Batista Scalco Pereira, da Revista Placar que pertence ao mesmo grupo da Revista
Veja, deslocou-se ao local indicado. Tocando a campainha e aguardando cerca de um
minuto, “a porta se abriu’ e apareceu o rosto de Lilian. Apareceu apenas o rosto dela
com um semblante assustado.”
Falando em espanhol, Luiz Cláudio perguntou à mulher se Universindo ali
morava. Ela con rmou, mas fazia movimento com os olhos, como se desejasse olhar
para o lado, para ver alguém que estivesse por lá, ou indicar alguém. Ainda em língua
espanhola o jornalista informou que recebera um telefonema de são Paulo e queria
saber se tudo estava bem.
Antes que ela respondesse a porta foi escancarada, Lilian retirada, aparecendo um
homem que lhe apontou a arma junto aos olhos, indagando: “San Pablo? Outro elemento,
igualmente armado, procedeu da mesma forma com Scalcog Foram obrigados a entrar,
voltando-se para a parede, braços erguidos sobre a cabeça e as pernas afastadas.
Após um diálogo, quando Luiz Cláudio passou a se expressar em português, a
pessoa que o questionava e ainda com a arma apontada, afastou-se do apartamento
retornando cerca de cinco minutos após. Estava mais gentil, a rmando que tudo estava
bem com os jornalistas e fazendo com que baixassem as mãos.
Luiz Cláudio indagou-lhe o que estava acontecendo, pois parecia ter entrado numa
fria. Nesse momento a pessoa que apontara a arma para Scalco disse: “uma baita fria,
cara.” O jornalista voltou a questionar aquele que lhe parecia ser o chefe do grupo, o
único que zera perguntas, que saíra do apartamento, sobre o que acontecia, obtendo
como resposta: é, estrangeiros ilegais no país, essas coisas.” Recomendou que não
publicassem qualquer noticia a respeito.
João Batista Scalco Pereira, o fotógrafo que acompanhava Luiz Cláudio, con rma
integralmente este fato.
Em investigações posteriores, levadas a efeito em Montevidéu, o jornalista
declara ter ouvido do menor Camilo, na residência dos avós deste, que ele e um amigo
– informações posteriores dirão ser Universindo Diaz – se preparavam para assistir
uma partida de futebol, no estádio Beira-Rio, entre as equipes do Internacional e do
Caxias, no dia 12.11.78, cerca das 13 horas e 30 minutos, quando foram presos e levados
para um prédio onde, na frente, encontravam-se carros da polícia. Existiam duas ruas,
separadas por um riacho.

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Mostradas fotos do prédio da Secretaria de Segurança Pública, ao menino, por
intermédio de sua avó, ele con rmou que lá estivera preso. Mediante indagações, Luiz
Cláudio entendeu que Elenira Severino, policial do DOPS, poderia ter cuidado das
crianças, pelo que conseguiu uma fotogra a dela, tendo Camilo con rmado tal fato,
quando a foto lhe foi mostrada pelo magistrado italiano Luigi Araceni.
O Dr. Marcus Soibelmann Melzer ( s.538/542) que che ou a Comissão de
Advogados da OAB regional à Montevidéu, con rma que ouviu de Camilo referência
sobre o fato e que sua avó, Lilia, declarou que tudo que sabia sobre o episódio fora por
intermédio do neto. Assim, segundo o garoto, ele, sua mãe e a irmã estiveram presos
em local que coincide com o relato de Cunha.
Declara, ainda, o advogado Melzer, que dona Lilia narrou ter Camilo lhe
transmitido que os três foram retirados do prédio em referência e levados de automóvel,
por três homens, até a fronteira, quando ele e Francesca passaram para outro veículo
e sua mãe para um terceiro. Então perderam o contato com Lilian.
O Dr. Omar Ferri, em seu depoimento prestado a s. 626, conta que por volta das
15 horas do dia 17.11.78, recebeu um telefonema de seu colega Eduardo Greenhalg,
que integra um Comitê Para Defesa de Direitos Humanos, ligado à Cúria Metropolitana
Paulista, a rmando que há vários dias estava encontrando di culdades para contactar
com Lilian.
Cerca das 20 horas deste dia, Ferri esteve no apartamento da rua Botafogo, não
encontrando pessoa alguma. Deixou um bilhete sob a porta. La retornou no sábado e no
domingo. Voltando no dia 20.11.78 encontra Jaime Plavinik, arrumando o apartamento
que se encontrava nas piores condições, com cinzeiros cheios de tocos de cigarro, roupas
e revistas pelo chão e louças não lavadas.
Diz Ferri que através de uma irmã de Lilian residente em Milão, Mirta Adonai e
por telefone, tomou ciência de que a prisão das vitimas ocorreu em 12 de novembro,
cando todos no apartamento. No dia imediato foram levados até a fronteira, mas
enquanto os demais eram enviados a Montevidéu, Lilian era trazida de volta para Porto
Alegre, no apartamento da rua Botafogo, até que no dia 17 chegaram os jornalistas e
seus captares decidiram encaminhá-la ao Uruguai.
O Dr. Seabra Fagundes, como Presidente do Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil e o Dr. Justino Vasconcellos, Presidente da OAB Gaúcha,
depuseram informando que em São Paulo tomaram depoimento de uma pessoa que se
dizia ex-integrante do Exército Uruguaio e que desde 1976 fazia parte da Companhia
de Contra Informações daquele paIs.
Segundo aquelas duas altas autoridades da OAB, esse elemento, que se chamava
Hugo Valter Garcia Rivas, teria participado, como subalterno, de missão conjunta da
mencionada Companhia e policiais brasileiros, na operação de busca de Lilian, seus
dois lhos e Universindo Diaz, que foram presos em Porto Alegre e levados para a
fronteira do Chuí.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 149


O Presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, de Porto Alegre,
Jair de Lima Krische con rma as informações Hugo Rivas, bem como os jornalistas
Kolecza e Maciel, do Jornal Zero Hora, que o entrevistaram, publicando reportagem
a respeito.
Os depoimentos são chaves? São, sem dúvida nenhuma, os prestados pelos
jornalistas Luiz Cláudio Cunha e João Batista Scalco Pereira. Testemunhas não
contraditadas. Encontraram Lilian prisioneira. O Dr. Ornar Ferri, quatro horas depois,
lá esteve e não encontrou quem o recebesse.
Os advogados Marcus Melzer, Mariano Beck e Brochado da Rocha, são pessoas por
demais conhecidas e nada contra eles foi alegado. E con rmam ter ouvido a avó de Camilo
dizer que este declarara terem sido presos no dia 12 de novembro em Porto Alegre.
Mas, se não bastassem os depoimentos, ainda teríamos a pesar outras circunstâncias
que merecem ser examinadas. Como o contrato de locação, por três meses e o depósito
de uma caução de Cr$ 5.000,00. De repente e não mais do que de repente, Jaime Plavinik
recebe um bilhete, encaminhando as chaves, entregues por pessoa desconhecida.
Dado ao inusitado do fato, Jaime se desloca, de pronto para o apartamento.
Descobre que a inquilina fora embora, deixando roupas usadas, livros, a casa em
desordem e, principalmente, sequer pensa em recuperar, como normal, a caução de
Cr$ 5.000,00.
Ora, quem se obriga a car hospedada no Hotel Atlântico, como Lilian se
hospedou, meses antes em passagem pelo Rio Grande ( s. 871) não se pode dar ao
luxo de abrir mão de Cr$ 5.000,00. Não em 1978. Ainda se leve em conta que ela tinha
di culdades nanceiras a ponto de pagar apenas uma matrícula, na Escola onde os dois
lhos estavam estudando.
De outro lado, a perícia no mencionado bilhete ( s.868), realizada por perito da
Justiça do Trabalho, é concludente:

É do mesmo punho escritor a assinatura constante do corpo do bilhete e a assinatura


(Lilian EIvira CeIiberti) constante ao pé do bilhete?
R – Os exames grafoscópicos realizados sobre o bilhete evidenciam que o gra smo
contido no corpo do contexto – independentemente de qualquer apreciação sobre
sua autenticidade – foi ali lançado sem qualquer preocupação de reproduzir os
característicos grá cos do material padrão...
É do mesmo punho escritor a assinatura constante no contrato de locação – Lilian
Elvira Celiberti – e o constante no corpo do bilhete dirigida ao locador Jaime
PIavinik?
R – Seguramente não. Tanto o gra smo do corpo do contexto documental do bilhete,
como a própria assinatura lançada ao pé do mesmo, discrepam acentuadamente
não só da assinatura contida no contrato de locação, como das demais assinaturas
e gra smos do restante material padrão.

150 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


Em resumo: Lilian não escreveu o bilhete a Jaime Plavinik e nem o assinou!
Nem se alegue que o perito (que também é o cial, pois que pertence a Justiça do
Trabalho) realizou tarefa calcado em documentos e material padrão insu cientes. Isto
porque, quando a Polícia Federal determinou a realização de perícia, por seu órgão próprio,
o resultado que se encontra à s. 213/215 é:

Valendo-se de equipamentos adequados (lentes de pequeno aumento,


microscópio, lupa com iluminação, etc) os peritos procederam a minucioso
confronto entre questionada e padrão. Durante os exames os signatários
constataram diferenças de ordem morfogenéticas, idiográ cas, no calibre, bem
como retoques na assinatura Questionada, que não existem nas assinaturas
padrões. Entretanto, face a escassez de padrões fornecidos ao confronto, os
peritos não podem concluir pela inautenticidade do material questionado, apesar
das divergências constatadas...

Para a perícia elaborada pelo perito da Justiça do Trabalho mais material padrão
foi-lhe fornecido, como consta de seu relatório. Dessa forma pode o perito realizar a
tarefa, que já fora iniciada, no inquérito da Polícia Federal. Deu-se ele por satisfeito
com os elementos de que dispunha. E ofereceu inestimável colaboração à Justiça.
Só para o Instituto de Criminalística, da Polícia Gaúcha, e que os documentos a
serem periciados, em especial o material padrão, não foram su cientes, pois consta à
s. 705/706 uma exigência de “um ditado, uma cópia e de quinze a vinte assinaturas
colhidas em papel com características físicas semelhantes a do papel sobre o qual foi
composto o bilhete incriminado e com o objeto escritor de natureza esfereográ ca,
abastecido com tinta de coloração azul.”
Repita-se, a própria Polícia federal, com menos elementos, ao menos tentou
colaborar com a Justiça e se não pode concluir com segurança, ao proceder o exame
constatou muitas divergências.
Porem, não e só a perícia que demonstrou não ter Lilian escrito nem assinado o
bilhete, o que prova que alguém o fez por ela. Aliás, se os nossos policiais denunciados
não falam e não escrevem em língua espanhola, como a rmam, fortalece-se a crença,
(ou a certeza?) da participação conjunta de brasileiros e uruguaios em tão deprimente
empreitada.
Há outra prova documental, talvez mais forte e pouco observada. Com efeito,
no dia 23 de outubro de 1978, Francesca e Camilo começaram a frequentar as turmas
maternal e jardim, respectivamente, do Jardim de Infância Cisne Branco, localizado à
Avenida Getúlio Vargas, nº 908. Pelas folhas de presença das crianças, que se encontram
de s. 53 a 56 assistiram ininterruptamente as aulas até o dia 10 de novembro de 1978,
uma sexta-feira. Considerando-se que no sábado não há expediente nos colégios, via de
regra, deveriam ter retornado dia 13, uma segunda-feira. Mas não voltaram mais.

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Há referências de que Lilian seria uma mãe irresponsável, que se escondia à
sombra dos lhos, que com sua vida traumatizara os lhos, especialmente Camilo. À
Justiça impõe que as coisas sejam colocadas em seus devidos lugares. Lilian estava
com sua permanência legal no Brasil. Como estrangeira, deixando sua segunda pátria,
a Itália, por certo veio con ando na bandeira, na Nação Brasileira.
E tão logo chegou (locou o apartamento dia 18 de outubro) tratou de colocar seus
lhos na Escola. E tanto levou a sério que as crianças, enquanto Lilian esteve livre,
não faltaram à aula um só dia. Desnaturados é imperativo proclamar, são aqueles que
arrancam os lhos para jogarem na masmorra uma mãe que não cometeu segundo o
comunicado das Forças Conjuntas do Uruguai, nenhum delito no seu país. Ou não foi
esta a declaração o cial?
Ah’ David Canabarro, como puderam os teus patrícios de hoje olvidar a
mensagem magistral que a pena de Arthur Ferreira Filho registrou para sempre. Assim,
quando no ardor da Guerra farroupilha Rosast o ditador da Argentina, mandou oferecer
apoio contra o Império em troca de uma aliança com os farroupilhas, Canabarro,
comandante em chefe alertou o emissário estrangeiro: “Ide dizer a vosso chefe que
o primeiro soldado que cruzar a fronteira, fornecerá o sangue com que será assinada
a paz com os imperiais. Porque, acima de nosso ideal pela República, está o nosso
amor pelo Brasil.”
Quer a defesa ilustre dos réus que Lilian e Universindo, como militantes do
Partido pela Vitória do Povo – PVP – nitidamente de contestação ao regime vigente
no Uruguai, tenham se reunido no apartamento, com outros companheiros de
ideologia. E como no dia e hora já mencionados, ali dessem chegada os jornalistas,
descobrindo seu paradeiro, receberam ordens superiores para abandonar o local,
rumando ao Uruguai.
Por vários motivos esta tese não pode prosperar. Em primeiro, que correligionários
seriam estes que mantinham Lilian cativa, que prenderam os jornalistas, com dois deles,
ao menos, falando português e agindo não como estrangeiros? De outro lado, sendo
eles integrantes do Partido de contestação ao regime uruguaio, bem sabiam que Lilian
havia sido deportada e lá não poderia voltar.
Vale notar que Universindo e Lilian já eram conhecidos de Luiz Cláudio, sendo
que aquele chegara até a fornecer documentos sobre a situação de sua pátria, para este
jornalista. Ora, certamente não iriam se assustar a tal ponto, com a chegada de um
conhecido e, se lhe haviam entregue documentos é porque lhe depositavam con ança.
Logo, não havia porque a desabalada pressa de fugir do local, abandonando roupas e
a própria caução. E correrem exatamente para o único lugar onde não poderiam ir, o
Uruguai?
E como explicar que durante toda a semana de 13 a 17, portanto desde segunda
até aquela sexta feira, não tenham as crianças, antes tão assíduas, comparecido a um só
dia de aula? A tese da defesa é de que o pânico se estabeleceu por volta das 16 horas de
sexta-feira. Então não havia razão para a ausência de Camilo e Francesca da Escola!

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Sem sombra de dúvida, a ausência das crianças à aula, no período de 13 a 17,
consubstanciada na prova documental examinada, conduz a conclusão de nitiva da
que disse Camilo, ou seja, que foram presos no dia 12, um domingo.
E como referiu Mirta Adonai a Omar Ferri, levados à fronteira onde Universindo
e as crianças acabaram entregues de volta aos uruguaios e Lilian trazida de volta ao
apartamento, onde cou presa, pois que seus captores queriam esperar para efetuar
outras prisões, pessoas que ali fossem procurá-la.
Não fora assim, porque teriam deixado que ela abrisse a porta aos jornalistas? E
como Luiz Cláudio estivesse falando em espanhol, acreditaram que podia ser o contato
aguardado. Infelizmente para ele, felizmente para a Justiça, cometeram uma falha.
Tentaram, de todas as formas, de todos meios, reparar o erro, mas o fato se
tornou público e a ação penal não estava condicionada à representação das vitimas,
encarceradas no Uruguai.
Tenho, pois, por tudo o que restou examinado, que o fato narrado na denúncia e
aditamentos, aconteceu, isto é, Lilian Elvira Celiberti Rosas de Casariego e seus dois
lhos, Camilo e Francesa e ainda Universindo Diaz, foram presos em Porto Alegre
e ao menos por algum tempo mantidos sob prisão, para depois serem levados para o
Uruguai.
Este fato, seja que nome se lhe queira dar, ocorreu. Disse, várias vezes, o ex-
governador Sinval Guazzelli, que o esclarecimento era questão de honra para o seu
governo. Acrescente-se que o repúdio a tal procedimento deve ser almejado por todo
brasileiro que admite viver apenas sob um império: o da lei!
Embora a conotação político-ideológica com que foi encarado este fato, ao
Judiciário cabe apenas, e tão somente, saber se houve o delito, não importando as
guras dos sujeitos ativo e passivo, nem as causas a que estejam engajados. Só há
uma causa maior: a verdade! Se as vitimas se encontravam no Brasil de forma ilegal,
caminhos existiam, legais também, como a própria expulsão, com normas especi cas
a serem seguidas.
O Judiciário é apenas um instrumento da lei cumprindo-lhe cuidar seja ela
observada, punindo com imparcialidade quem ouse violá-la. O juiz ao julgar não pode
ter a preocupação de agradar ou de não melindrar. O dia em que tiver de decidir sob
pressão, ou in uência de qualquer ordem, ou ainda, receoso de qualquer consequência,
melhor será que se exonere para não conspurcar a dignidade do cargo.
Nunca é demais lembrar a lição extraordinária de JOHN MARSHALL, Presidente
da Suprema Corte Americana, sobre os deveres do Juiz:

Atentai, senhores, para os deveres de um juiz. Tem ele de pronunciar uma


sentença entre o governo e o homem a quem o governo está perseguindo;
entre o mais poderoso individuo da República e o mais pobre e impopular. É

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da mais alta importância que, no exercício, desse dever, observe ele a mais
absoluta imparcialidade. O Poder Judiciário penetra, por seus efeitos no lar de
cada cidadão; e in ui sobre os seus bens, a sua reputação, a sua vida, tudo. Eu
sempre pensei, desde a minha mocidade até hoje, que o maior agelo com que a
divindade irritada pode punir um povo ingrato e pecador é uma justiça ignorante,
corrupta ou dependente. AJURIS – Trabalhos Jurídicos (Sentenças).

O conceito de uma Nação entre as demais também decorre da forma com que ela
trata os outros nacionais, que eventualmente dela se socorram, especialmente quando se
trata de convicções políticas.
Narrou Luiz Cláudio que em certa ocasião ao chegarem na sucursal da “Veja”, Lilian
e Universindo disseram-lhe do encantamento com a liberdade vigente no Brasil. Será que
hoje, com tudo e depois de tudo, conservarão eles a mesma imagem de nossa pátria?
Vale a pena transcrever aqui trecho da carta que o Senador Wilson Ferreira
Aldunate, candidato à Presidência do Uruguai, enviou ao Presidente da Argentina, onde
se encontrava, momentos antes de buscar asilo em outra embaixada, ameaçado que estava
de ser preso em Buenos Aires e deportado para o Uruguai, que se encontra à s. 193/207
do VoI. I da CPI da Assembléia Legislativa:

Há quase três anos, em consequência dos acontecimentos políticos ocorridos no


Uruguai, Hector Gutierrez Ruiz, Zelmar Michelini e eu, os três de nacionalidade
uruguaia, con amos, como uma multidão de outros compatriotas, nossa segurança
e a de nossas famílias à proteção da bandeira Argentina.
Pouco ou nada nos importou então, nem depois, qual fosse o governo ou o regime
político imperasse neste país, pois em quem depositamos nossa con ança foi na
própria Nação.

Pois bem, admitido o fato e a sua tipicidade, necessário que se perquira sobre a
autoria. Quatro são os denunciados. Necessário o exame da prova em relação a cada um.
Comecemos indagando sobre os elementos que se encontravam no apartamento de Lilian
naquela tarde do dia 17.11.78, de acordo com as descrições feitas pelos jornalistas.
Luiz Cláudio Cunha, depondo pela primeira vez, na Polícia Federal, à s. 16/19,
informa:

O elemento que parecia ser o chefe da equipe era de cor branca, magro, cerca
de 1,74m de altura, cabelos ruivos, bigodes espesso e comprido, trajando roupa
esporte.
O outro, com estatura de 1,70m, aproximadamente, possuía cabelos castanho
escuros, curto, muito forte, até musculoso, cor branca. Depondo novamente na
Polícia Federal, referindo-se sobre o que presumia ser chefe, dizia ser magro,

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altura de 1,72m, cabelos entre castanho e ruivo, cobrindo as orelhas e sem
barba, com bigode passando da beirada da boca, falando português típico do
Rio Grande do Sul.

Declara que entre os presentes havia uma pessoa alta, forte, cabelos curtos
– pixaim – roupa esporte, sem barba e sem bigode e que identi ca como Orandir
Lucas, conhecido como Didi Pedalada, que foi identi cado através de uma foto de
arquivo (166).
Depondo na CPI da Assembléia Legislativa e referindo-se outra vez ao líder do
grupo, a pessoa evidentemente que comandava, que o calçou com a arma, declara-o
de altura mediana, entre 1,70m a 1,75m, cerca de 30 anos, cor branca, cabelos lisos de
cor entre castanho e ruivo, repartido do lado, bigodes longos, caindo sobre os lábios,
sem barba, trajando roupa esporte. O segundo elemento, o que exclamou “uma baita
fria, cara”, reconhecia como Didi ( s. 26).
Ao ser ouvido na sindicância da Polícia Estadual, à s. 226 do apenso I, da SSP,
descreve o chefe da equipe como magro, branco, altura entre um metro e setenta e
dois a um metro e setenta e quatro com cabelos relativamente longos, entre castanho
e ruivo, sem barba, bigodes longos passando da linha da boca. O outro reconhecera
como Orandir.
Em seu depoimento em juízo, à s. 1159, dá o primeiro, já reconhecido
o cialmente pelos dois jornalistas, como João Augusto da Rosa. Volta novamente a
apontar Orandir como o que apontou a arma para seu companheiro Scalco.
João Batista Scalco Pereira ouvido pela Polícia Federal, pela primeira vez,
à s. 20, descreveu o líder como homem de estatura média, cabelos claros, de
bigode, pele clara, bem vestido, falando português, com, entradas laterais no
cabelo, nariz a lado. O segundo tinha cor morena, bem escura, cabelos ondulados
de cor castanha.
Reinquirido na Polícia federal, à s. 190, reitera que o homem que apontou
a arma para seu colega Luiz Cláudio, tinha cerca de 1,75m, bigodes passando da
borda da boca, cor branca e cabelos lisos. O outro, o que lhe colocara a arma próximo
ao rosto, era moreno escuro, com altura entre 1,75m a 1,80m, cabelos pretos e
enroladinhos.
Esta descrição Scalco reiterou quando prestou depoimento à CPI da Assembléia
Legislativa, às folhas 222, na Sindicância da SSP – s. 274 – e em juízo, no auto de
reconhecimento de João Augusto e novamente no depoimento ( s.1162).
Efetivamente, requereu o Ministério Público, a realização de um reconhecimento,
o que foi feito, observadas as formalidades devidas, oportunidade em que Scalco e
Cunha reconheceram, sem hesitação, a João Augusto da Rosa, como o elemento líder
do grupo na casa de Lilian ( s.948/95l).

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Deve ser ressaltado que os jornalistas são as únicas testemunhas presenciais,
mas que durante o longo período que medeou entre 17.11.78, até o último depoimento
prestado (03.06.80), mantiveram-se inabaláveis na denúncia do fato e na acusação a
policiais gaúchos, descrevendo sempre e com mínimas variações os dois principais
elementos incriminados.
Exceção feita ao primeiro depoimento à Polícia Federal, em todos os demais Luiz
Cláudio referiu que, ao saírem do apartamento, Scalco já referia ter a impressão que
o elemento que lhe apontara a arma se tratava do ex-jogador do Internacional, Didi
Pedalada. A con rmação de Scalco sempre ocorreu, porém, por ter veri cado uma
fotogra a de arquivo, que se encontrava borrada, descartou esta possibilidade, até que
foi procurado por Luiz Cláudio, com outras fotogra as do suspeito e, então não teve
mais dúvidas, apontando-o à opinião pública e às autoridades.
É fundamental esclarecer que Luiz Cláudio sempre declarou que suas atividades
não estavam ligadas à área esportiva, como Scalco, mas sim à política. Ora, se não
tivesse Scalco, a salda do apartamento, declarado a Cunha a impressão de reconhecer
Didi, como teria o último jornalista se empenhado em descobrir fotos do ex-atleta
colorado, se Scalco não estava no Rio Grande, a ponto de Cunha viajar a São Paulo
com as fotos?
Pretende a defesa de Didi existir contradição nos depoimentos de Scalco e Cunha,
como o fato de ter este, no primeiro depoimento, dado o elemento armado e mais tarde
identi cado como Orandir, como pessoa de cor branca. Ora, este réu não é negro.
Note-se que os jornalistas tiveram contato com ele em circunstâncias anormais, sob a
mira de armas, de surpresa, tomados os seus pertences, postados contra a parede, mãos
erguidas e a iluminação não era das melhores.
Então o que se dizer do Delegado Federal, que em situação bem diferente, com
a pessoa à sua frente, até submissa como ocorre quando de inquirição de suspeitos,
possivelmente durante horas, ao quali cá-lo, como se vê da quali cação de s. 138,
deu-o como “brasileiro, branco...”
Scalco, todavia, que observou melhor, porque foi contra ele que o réu apontou a
arma, sempre disse em todos os depoimentos, inclusive no primeiro à polícia federal,
que se tratava de elemento de cor morena, bem escura.
Esta diferença entre dois observadores é absolutamente normal. Descon e-se, isto
sim, de duas pessoas que descrevem um fato, uma pessoa, uma paisagem de maneira
absolutamente idêntica. O eminente processualista TOURINHO FILHO, na obra já
citada, a página 158, ensina:

Há ainda, o problema da duração dos estímulos. São estes que determinam as


sensações, e aquele que mira um quadro durante 10 minutos tem melhores condições
de descrevê-lo do que o outro que o olhou por dois minutos. O grau de iluminação
também altera as percepções sensoriais.

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Outro fato, alegado pela defesa, é que Orandir, em virtude de acidente
automobilístico, teve afundamento do frontal. E mais, uma grande cicatriz no braço
direito que é, inclusive, um pouco torto.
O sentido de observação varia muito de pessoa para pessoa. Um indivíduo
observa de uma maneira abrangente, global. O outro poderá fazê-lo de forma
detalhada. Comparativamente, em termos de observação, homem e mulher se
distinguem, aquele com abrangência e esta detalhista.
Sob a ameaça de uma arma, emocionalmente desequilibrados pelo inusitado
do fato, temerosos inclusive (e por que não?) por sua segurança, normal que não
se apegassem a detalhes. Vale referir que não recordam se os réus estavam com
camisa com ou sem mangas. Reitere-se que as condições de iluminação eram
de cientes.
Outra nuance, focada pela defesa, e de que os jornalistas, por entenderem
normal o ocorrido, voltaram à redação de Revista Veja, somente voltando a tratar
do assunto no início da outra semana. Ora, como já foi por eles explicado, estavam
envolvidos com o resultado das eleições de dois dias antes. Como a sua revista circula
no início da semana, claro que o resultado do pleito, na época em que se anunciava
a abertura política, era o fato mais importante a ser noticiado. E a imprensa trabalha
em cima de acontecimentos. Natural portanto que só no início da semana, liberados
pro ssionalmente, passaram a investigação efetiva do acontecido no apartamento
da rua Botafogo.
Quanto ao co-réu João Augusto da Rosa, duas são as questões levantadas, em
especial, pela defesa no sentido de invalidar o reconhecimento feito pelos elementos
da imprensa já mencionados. Uma delas é que quando de ato de identi cação
acontecido na Assembléia Legislativa, não o identi caram. Em lista encaminhada
consta o nome de João Augusto, mas embora lá tenha estado, diz a defesa, Scalco e
Cunha não o apontaram.
Os jornalistas negam que o réu tenha comparecido ao ato, porque, do contrário,
o identi cariam. Declara o deputado Romildo Bolzan que a tarefa conjunta, com o
deputado Cícero Vianna, era de examinar a cédula de identidade, confrontando-a
com a sionomia do policial e conferir se o nome estava na lista.
Diz o parlamentar Cícero Viana que, embora a prioridade fosse para a carteira
de identidade, ocorreram casos em que estas eram velhas, ou ligeiros desencontros
entre os nomes nelas constantes e os que a lista registrava.
Examine-se, agora, a versão dos réus, iniciando por Orandir Portassi Lucas,
que nega sua participação no fato. Embora lotado no DOPS estava a disposição da
Escola de Polícia, realizando sindicâncias. E talvez lá estivesse no dia 17, fazendo
triagem. Lembra, vagamente, ter conhecido a testemunha Scalco quando ele, réu,
jogava futebol.

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Tácito Oliveira ( s. 730) testemunha arrolada pelo réu Orandir, a rma que
de longos anos é o cabeleireiro deste que sempre usou bigode. Em meados de 1978
passou a usar barba, dizendo que se tratava de uma promessa, por ter concluído o
curso e ingressado na polícia.
Este depoimento con ita, agrantemente, com a declaração do réu, de que estava
usando barba “a uns três meses”. E esta revelação foi feita perante a Polícia Federal,
pelo próprio réu, quando acareado com Luiz Cláudio ( s. 173) no dia 09.01.79, com o
que se conclui ter sido, segundo ele, em outubro de 1979. Não em meados daquele ano,
como a rmou Tácito, numa tentativa evidente de favorecer seu amigo Orandir.
É claro que Orandir não diria que fora após o fato que começara a deixar sua
barba crescer, porque evidenciaria a tentativa de evitar ser reconhecido. Nem poderia
ser diferente, posto que se observa através das fotogra as juntadas pelos jornalistas, à
época da identi cação, com barba curta e rala.
É ainda o réu que se encarrega de desmentir outra testemunha sua, o delegado
Arthur Torelly Martins ( s. 731), quando este declara, com absoluta certeza, que
quando Orandir veio de outro Departamento e “parece que do DOPS”, já estava com
a barba crescida.
Mas não é apenas no aspecto da barba que o réu desmente Torelly. Em seu
interrogatório Orandir apresenta indecisão, ao a rmar onde se encontrava na tarde de
17.11.78 mas “talvez estivesse executando serviço burocrático na própria Escola de
Polícia...”
Torrely, que não é réu e, como tal, não pode ter a mesma preocupação em buscar
um álibi, teve memória (?) mais aguçada que Orandir, pois declara em seu depoimento:
“quanto a data de 17 de novembro de 1978, Orandir exerceu normalmente suas funções.”
Aquela data, uma segunda-feira a rma Torelly, passou toda a tarde na Escola de Polícia
e marcou a data posto que fazia 40 anos que seu pai falecera.
Mas a certeza da testemunha já não era tanta, ao nal de seu depoimento,
porque já passa a declarar que naquela tarde, uma sexta-feira, realizavam-se provas
na própria Escola de Polícia. Porém, naquele dia 17.11.78, segunda ou sexta, sem
livro ponto e com 50 a 60 funcionários sob suas ordens, com vários professores
aplicando provas, centenas de alunos presentes, esta testemunha que não lembra
de que Departamento veio Orandir, mas que já veio barbudo, tem certeza de que
o réu estava lá...
E as testemunhas de Orandir continuam acumulando contradições, quando seus
colegas Golbery, Caetano e Ubirajara Silva ( s. 732v 734v) ora a rmam que “em
setembro sua barba já estava crescendo”, ora declaram que “antes de 17.11.78 notava-
se que ele estava deixando a barba crescer. E logo depois “escalam” o réu para outra
tarefa, que ele nega e Torelly, como Diretor da Escola nada fala, ou seja: Golbery,
Ubirajara e Orandir “ scalizava os locais das provas...”

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A última testemunha da defesa do réu, delegado Antônio Goularte ( s. 735)
lotado no DOPS, conta que ele estagiou naquele Departamento, de ns de julho até
ns de agosto de 178 e que neste período Didi já estava deixando crescer a barba, o
que con ita com a versão do réu, pelo menos por alguns meses.
Especificamente, pois, em relação a Orandir Portassi Lucas, temos o
reconhecimento dos jornalistas, testemunhas contra as quais nada foi alegado, em termos
de idoneidade. Não tinham eles razões para dirigirem uma acusação falsa, sabendo que
atrairiam toda uma campanha dos organismos policiais e interesses a eles ligados. Nem
escolheriam caminhos tão difíceis para uma eventual promoção.
Os jornalistas viram e reconheceram Orandir como um dos homens armados que
mantinham Lilian presa. Hugo Rivas declarou que Orandir foi um dos homens que levou
as vítimas à fronteira do Chuí. Os advogados Seabra Fagundes e Justino Vasconcelos
e mais Jair de Lima Krische tomaram o depoimento e, sob compromisso, transmitiram
a informação para as autos.
Porém, como quer a defesa deste réu, os depoimentos de Rivas não devem ser
considerados coma provas. Nem é necessário. Bastam os depoimentos de testemunhas
não contraditadas, como Luiz Cláudio Cunha, João Batista Scalco, Seabra Fagundes,
Justino Vasconcelos, Jair Krische para concluir, sem sombra de dúvida, que Orandir
Portassi Lucas cometeu o delito que a denúncia lhe imputou.
Busca, ainda em reforço desta convicção trecho da manifestação do Dr. Renato
Maciel de Sá Júnior, Conselheiro Relator da Sindicância realizada:

Desde quando examinei esta sindicância e mais o inquérito da Polícia Federal,


e os relatórios da Comissão da OAB-RS, entre oito e vinte de fevereiro últimos,
convencera-me que havia indícios su cientes, até veementes, no que concerne
a participação do escrivão Orandir Portass1 Lucas, no episódio do apartamento
da uruguaia Lilian, em 17.11.78...

O hoje brilhante Juiz de Alçada, dr. Ruy Rosado de Aguiar, em voto que proferiu
no Conselho Superior de Polícia, examinando a participação de Orandir no evento,
demonstrou toda convicção dizendo:

A prova de que Orandir praticou os fatos referidos e capitulados na citação


inicial, está nos depoimentos dos jornalistas João Batista Scalco Pereira e Luiz
Cláudio Cunha... os depoimentos destas duas pessoas são harmônicos entre
si, convergentes com as demais provas e sempre se repetiram com integral
concordância.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 159


E prossegue o então Conselheiro:

O álibi de que Orandir estaria na tarde daquele dia, na Escola de Polícia,


auxiliando na scalização dos exames, contraria suas próprias declarações, que
a rmou neste processo e em juízo, ter estado naquele dia desempenhando suas
atividades normais, burocráticas, no serviço de sindicância dos antecedentes dos
alunos que fazem o concurso da escola e que “no desempenho de suas funções
o depoente sai normalmente durante o dia para cumprir as investigações.” Em
nenhum dos interrogatórios o indiciado mencionou a hipótese de ter scalizado
a aplicação de exames.

Conclui o dr. Rui Rosado de Aguiar:

Contudo, foi o próprio Orandir quem declarou perante a Polícia federal, em


janeiro de 1979, que há três meses estava com a barba crescida, o que aproxima,
de forma inde nida, a início da barba com a data dos fatos. – Apenso II, 390
e seguintes.

O Procurador da República, examinando o inquérito da Polícia federal, declarou


em seu parecer:

Esse, portanto, é o primeiro dos pontos devidamente provado nos autos: o


policial apelidado de “Didi Pedalada” estava no apartamento de Lilian Celiberti,
fazendo parte do grupo armado que ali se instalara.

Quanto a João Augusto da Rosa, os jornalistas Scalco e Cunha, desde o início


e sempre, o descreviam como o chefe do grupo, caracterizando-o sicamente como
magro, altura entre 1,70m e 1,75m, cor branca sem barba, com bigodes caídos
pelos cantos da boca, cabelos castanhos como sempre declarou Scalco, ou entre
castanho e ruivo, como chegou a dizer Cunha. E falava português típico do Rio
Grande do Sul.
Luiz Cláudio é jornalista experiente, tanto que chegou a chefe da sucursal da
Veja, culto, inteligente e observador. Esteve com esta pessoa e com esta dialogou.
Teve tempo para observá-la, enquanto ela pedia seus documentos, fazia perguntas
e anotações.
Razão assiste ao promotor público quando a rma que João Augusto disfarçou
sua sionomia, raspando o bigode e deixando crescer a barba, cortando o cabelo
curto. Se Orandir deixou crescer a barba para impedir uma identi cação, normal que
seu companheiro de arbitro usasse o mesmo expediente.

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Esta conclusão decorre das inúmeras e absurdas mentiras contadas pelo réu, mas
que foram descobertas a tempo. Quando interrogado ( s. 1007/1009) a rmou que
desde 1968 ou 1969 usava óculos sistematicamente, quando em todas as fotogra as
que vieram aos autos, quer quando ingressou na Polícia, quer como funcionário do
Unibanco e Banrisul, ou ainda, pelas que foram juntadas pela própria defesa à s.
1291, se apresenta sem óculos.
E quem poderá negar que usasse ele lente de contato. As receitas óticas
apresentadas (e uma delas merece especial referência) denunciam ser mínima a sua
de ciência visual. E quantas pessoas devem mas não usam óculos, ou só os utilizam
para ler ou escrever?
O réu continuou mentindo quando declarou em seu interrogatório que nunca
usou bigodes. Ora, na fotogra a de s. 1266 aparece de bigode e, o que é fundamental,
na foto constante da cha de exame médico para ingresso na Polícia, à s. 1269,
também estava bigode, aliás, bigode correspondendo com exatidão ao descrito por
Scalco e Cunha.
E prosseguiu mentindo, ao a rmar que nunca usara cabelo comprido. Ora, nas
fotogra as enviadas pelo Banrisul vê-se que seu cabelo caía sobre os ombros ( s.
1130) e na própria foto de 1269 (folhas) o cabelo lhe cobria as orelhas.
Ele mesmo declara ter sido nomeado para o DOPS em janeiro de 1978, época
portanto que ingressou, como a rma, na Polícia Civil. Ora, é sabido que uma pessoa,
ao ser nomeada e antes de assumir sua função pública, submete-se a exames médicos.
Daí a razão da cha de s. 1269, onde o réu aparece exatamente como os jornalistas
sempre o descreveram.
Certo o promotor público ao a rmar que o réu provocou a calvície, juntando
como prova do alegado a ampliação de uma fotogra a colhida do réu em audiência
e, portanto, recente ( s. 1274) onde se vê que realmente, por um descuido, os cabelos
da parte superior do crânio estavam crescendo, esparsos, é claro, mas existentes, não
raspados.
Como somente este ano os jornalistas conseguiram chegar ao réu, teve ele
tempo de transformar o aspecto físico de sua cabeça, no cabelo e nos pelos do rosto.
E novamente um cabeleireiro vem a juízo, arrolado por Joao Augusto, vem a juízo.
Desta vez é um funcionário da Secretaria da Saúde, que nas horas vagas faz barba
e cabelo, inclusive do réu.
A rma que há cinco anos o réu é praticamente calvo e tem a barba crescida.
Há dois anos e meio ou três, raspou o bigode. Só que ele esqueceu que seu cliente
cursou a Escola de Polícia há menos de três anos, onde é proibido usar barba. Mas
diz que o réu já usou bigode, raspando-o posteriormente. Novamente a testemunha
con ita com a versão de quem a arrolou.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 161


Celívio Werb ( s. 1337) não sabe há quanto tempo o réu usa óculos. E que só
constatou que ele usava barba quando tomou conhecimento pela imprensa de que
João Augusto era um dos acusados. Antes disso não prestara atenção. Ora, sabe-se
que os noticiários de imprensa, a respeito, começaram em ns de 1979. Teve o réu
um ano, após o episódio, para operar a sua metamorfose. E quase conseguiu.
Outro dado incriminador contra este réu é que no m de 1979, por certo já
sentindo que a mão da Justiça se aproximava, com as especulações da imprensa, novo
aditamento contra Janito Keppler, mudou todos os documentos. Qual o objetivo?
Certamente fazer desaparecer as fotogra as da carteira de identidade mais antiga, da
carta de habilitação que, àquela época estampava a foto do possuidor...
O policial José Leal Lourenço, que exerce suas funções junto com João Augusto,
no Gabinete do Secretário de Segurança, declara que logo depois que o réu começou
a trabalhar no DOPS já tinha sinal de calvície, usava óculos e uma barba bem rala.
Logo, não era calvo, no início do ano de 1978.
Resta examinar porque os jornalistas não reconheceram o réu no ato de identi cação
na Assembléia Legislativa. Existe nos autos da CPI uma relação de nomes, fornecida pelo
DOPS. Segundo os deputados Bolzan e Cícero, à medida que os policiais passavam pelas
salas onde se encontravam os jornalistas vinham em grupos onde se encontravam estes
dois parlamentares, que conferiam o documento de identidade com os nomes constantes
da relação.
Lembra, no entanto, o deputado Cícero Viana, que muitas carteiras de identidade
eram velhas e até pequenas divergências entre nomes constantes das cédulas identi catórias
e os que estavam no documento fornecido pelo DOPS. Ora, quem diz que não houve uma
manobra do réu para não comparecer, sendo substituído por um colega.
A nal, não houve tanta solidariedade entre os colegas, em servindo de testemunhas
de defesa, que chegaram a a rmar que Didi usava barba quando este nega? Ou que o
viram scalizando os locais de prova, quando este não refere isto? Ou do barbeiro de
João que o via barbudo, embora as normas da Escola de Polícia proibissem?
Ora, quem mente que nunca usou bigode e cou sobejamente provado que usou;
quem a rma que nunca teve cabelos compridos e comprovadamente os teve; Quem alega
que nos últimos onze anos usou óculos sistematicamente e todas as fotogra as demonstram
o contrário; quem apresenta uma receita para uso de óculos datada de 13.09.76, num
talonário impresso em 1979...
Quem faz tudo isto e ainda encontra solidariedade certamente encontrou uma forma
de não comparecer à Assembléia Legislativa, para não ser identi cado. Note-se que era
tão grande o número de policiais que se dirigiram à Assembléia que, conforme diz João
Augusto, em seu interrogatório, foram necessários seis ou oito ônibus para transportá-
los. Um fato que merece ser destacado é que, por ocasião do ato de identi cação que
deveria ser realizado na Secretaria de Segurança Pública, mas que não ocorreu porque a

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autoridade policial encarregada recusou-se a cumprir a ordem do então Governador em
exercício, o nome de João Augusto da Rosa, subvertendo toda a hierarquia, gurava em
primeiro lugar na lista. Depois dele é que vinham o próprio Diretor do DOPS e demais
delegados.
Tenho, pois, que os depoimentos dos jornalistas, coerentes e seguros, convergentes
com as demais provas existentes nos autos, mais as mentiras e contradições do réu,
fornecem a convicção plena de que João Augusto da Rosa, praticou juntamente com
Orandir Portassi Lucas o delito de abuso de autoridade a eles imputado pela acusação
pública. Como consequência, merecem a devida responsabilização.
No que tange a Pedro Carlos Seeli, Diretor de um Departamento da DOPS, existe
o reconhecimento que teria feito o menino Camilo, uma das vítimas, no apartamento
de sua avó, em Montevidéu. Narra o jornalista Pedro Maciel ( s. 1183) que esteve na
capital uruguaia e deixou com dona Lilia cerca de doze fotogra as, entre elas de cidadãos
comuns e de alguns policiais, para que ela as mostrasse ao menino, posto que impossível
falar com ele, traumatizado e arredio com brasileiros.
No dia seguinte, em companhia do fotógrafo Lamas, lá retornou. “quando dona
Lilia, mostrando uma foto do delegado Seelig teria repetido a frase de Camilo: “parece
que já esse aqui”. Um lho de Lilia, de 14 anos, interferiu para dizer que o garoto
a rmara conhecer Seelig. Dona Lilia corrigiu, repetindo a frase do neto: “parece que já
esse aqui.”
Quando a Comissão de Advogados compareceu no apartamento da genitora de
Lilian Celiberti, foram levadas fotos do réu Seelig. Prestando depoimento à s. 539/542, o
advogado Marcus Melzer, que presidia a Comissão, informa que Camilo estava perturbado,
não conversava com ninguém, até que o dr. Ferri começou a falar, brincando, e o garoto
sentou a seu lado.
Em dado momento o dr. Melzer retirou de um envelope quatro fotogra as,
indagando se o menino reconhecia alguma pessoa. Ele apontou, com o dedo, em duas
fotos, a pessoa de Seelig. Indagado respondeu que o conhecera de seu apartamento
em Porto Alegre. Este é um fato con rmado pelos demais advogados e jornalistas
que estavam presentes.
Segundo o advogado francês Jean Louis Weil, à s. 794, possuía informações,
procedentes de fontes uruguaias que não podia revelar, de que o fato descrito na
denúncia ocorrera e que nele estava Seelig envolvido. Foi, em resumo, o que declarou
esta testemunha.
Hugo Garcia Rivas, já exaustivamente referido, disse que através de um sargento
soube que Seelig era uma pessoa muito importante na estrutura do DOPS e, que havia
participado e colaborado na captura das vítimas uruguaias.
Embora existam fundadas suspeitas do envolvimento deste policial no fato, a
prova de sua participação não me parece su ciente para concluir pela sua condenação.

Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 163


Baseia-se especialmente no depoimento de Camilo. Acontece, como bem ponderou a
ilustre defesa, que antes da Comissão viajar ao Uruguai, jornalistas efetivamente já
haviam levado fotogra as de Seelig e entregues a dona Lilia para que as mostrasse
ao neto.
O que se passou no contato que ambos tiveram examinando as fotogra as, ninguém
sabe. E quando a Comissão lá esteve o menino não foi pego em estado de isenção de
ânimo. Psicologicamente poderia estar condicionado a uma acusação adredemente
estabelecida, embora todo o cuidado e lisura da comissão ao questioná-lo. Efetivamente
as controvérsias, tanto na Doutrina coma na Jurisprudência, a respeito do valor do
depoimento infantil, são muitas.
A criança pode ser in uenciada negativamente quer pela imaginação criadora, quer
pela sugestão. Não foi de forma espontânea, como seria ideal, a informação que Camilo
prestou, mas ao contrário, quase que través de um processo de interrogatório.
Novamente busco auxílio, neste ponto de vista, no já citado voto do dr. Ruy
Rosado de Aguiar:

Assim, o testemunho infantil deve ser avaliado atendendo-se as condições


pessoais da criança, da ocasião e do ambiente em que ele se desdobra e da maneira
como foi colhida a informação.
No caso dos autos – conforme esclarecem todas as testemunhas que o viram –
Camilo era uma criança traumatizada, olhando seus interlocutores de esguelha,
não podendo sequer ouvir falar o português, pois atribuía aos brasileiros os males
porque passam ele e sua família.

Considerando, também, que as declarações de Rivas foram genéricas e não


prestadas em juízo e que o depoimento do jurista Jean Louis Weil faz referência a uma
fonte não identi cada, não há prova su ciente para responsabilizar Pedro Seelig.
Agora, que a partir da conclusão de que Orandir e João Augusto praticaram o fato,
ca evidente estarem a mando de superiores, isto é claro. Um inspetor e um escrivão,
recém ingressando na carreira policial, jamais agiriam por conta própria. Não em um
caso como este, que fugia aos padrões da normalidade. Mas daí, e só por isso, concluir-
se que essa autoridade superior era o delegado Pedro Seelig, é uma temeridade. Assim
como ele, poderia ser qualquer outra autoridade, a seu nível ou maior, quer civil, quer
militar.
Quanto a Janito Jorge dos Santos Keppler tudo começou quando o advogado
Mariano Beck encontrou uma pessoa que o conhecia mas não era sua conhecida. Se
tratava do advogado João Castro que, a certa altura, solicitou que se comunicasse com

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o colega comum, Omar Ferri, para que este avisasse Lilian de que não deveria dar
qualquer declaração sobre o episódio, pois estava sujeita a ser morta.
Transmitido o aviso, comparecem ao escritório de João Castro os advogados
Ferri, Mariano e Hermínio, que ouvem daquele o seguinte: uma cliente de Castro lhe
dissera que possuía um irmão, que trabalhava no DOPS e que participara do chamado
sequestro, porém o mencionado bacharel negou-se a fornecer o nome da cliente e de
seu irmão policial.
Investigações decorrentes demonstraram que Cecília Kepler havia procurado,
pro ssionalmente aquele advogado. Silvânia Pompermeyer, também funcionária
do DOPS, estabeleceu a ligação, pelo que o irmão de Cecília era Janito e trabalhava
naquele departamento. Em diversos depoimentos, inclusive acareações, Castro nega
tenha feito tal referência aos advogados acima nominados, embora estes, com rmeza,
sempre con rmem.
Desta forma, não existem elementos nos autos, para responsabilização de Janito
Keppler, já que mesmo que Castro tenha dito, como creio que disse, da existência de
uma cliente com um irmão envolvido, não mencionou Cecília.
Cabe aqui, como registro, destacar a enorme e inestimável contribuição dada à
elucidação dos fatos, pela Assembléia Legislativa, através de sua Comissão Parlamentar
de Inquérito e pela Ordem dos Advogados do Brasil, Secção do Rio Grande do Sul,
que investigou a denúncia.
Sem dúvida nenhuma prestimosa foi sua participação na tarefa nada fácil
de levantar a densa nevoa, consciente e calculadamente lançada para assegurar a
impunidade de infratores da lei.
Por derradeiro, para que também sirva de exemplo a tantos que não se envergonham
em mentir à Justiça, determino que, transitada em julgada esta decisão, sejam extraídas
peças necessárias para remessa à Coordenadoria das Promotorias Criminais, com ns
de denúncia, por falso testemunho, contra o advogado João Antônio Silveira de Castro,
Jorge Alves dos Santos, testemunha de defesa de João Augusto da Rosa, Oswaldo
Biaggi de Lima e Patrocínio Lugo Acosta, residentes, os dois últimos, na comarca de
Bagé, cujo procedimento delituoso foi tão bem apanhado pelo Deputado Ivo Mainardi,
Relator da CPI:

Acontece, porém, que uma perícia solicita da por esta Comissão e realizada nas
segundas vias das passagens vendidas pela Rodoviária de Bagé, concluiu pela
a rmação de que, no mesmo dia em que Osvaldo Lima e Patrocínio Acosta
informam ter viajado quatro passageiros, cujos nomes e identidades guram
na lista de passageiros de s. 123 dos autos do processo, somente viajou um
passageiro.

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ISTO POSTO, julgo procedente, em parte a denúncia de s. 02/07 e procedente
o aditamento de s. 966/967, para:
1) – Com fundamento nos artigos 4º, letra “a” (executar), 6º, § 3º, letra “b”, da
Lei 4898, de 09.12.65, combinados com os artigos 25, 44, II, i, primeira parte e 51, §
1º, do Código Penal, c o n d e n a r
a) ORANDIR PORTASSI LUCAS, alcunha “Didi Pedalada”, já quali cado, a
cumprir a pena de seis (06) meses de detenção.
Fixei a pena base para este réu em três meses de detenção, considerando que
embora primário, antecedentes abonados, personalidade normal, o dolo com que
agiu foi intenso, executando uma medida de prisão contra estrangeiros, com risco
de provocar, até, incidente diplomático entre dois países vizinhos. Os motivos com
que agiu altamente censuráveis e egoísticos, em circunstâncias de local totalmente
desfavoráveis às vítimas.
Graves as consequências de sua conduta antijurídica, posto que, resultante de seu
ato, Lilian e Universindo que não tinham contas a acertar com a Justiça do Uruguai,
segundo declaração o cial daquele País, existente nos autos, estão lá encarcerados
há mais ou menos um ano e oito meses.
Não militam, em seu favor, atenuantes, mas sim a agravante do artigo 44,
11, letra “i”, primeira parte, do Código Penal, pois como refere a denúncia Camilo
e Francesca são crianças. Como consequência, elevo aquela pena base de três
meses de detenção em (1) um mês, com o que a pena passa a ser de quatro meses
de detenção.
Embora a denúncia não tenha, em sua capitulação, referido aplicável o disposto
no § 1º do artigo 51 do Código Penal, descreve que o delito do réu praticado contra
quatro vítimas, de forma ampla, pelo que teve ele plenas condições de defesa.
Desta forma, com fundamento no § 1º do artigo 51 do Código Penal, aumento
aquela pena de quatro meses em metade, ou seja, dois meses, resultando a pena
de nitivamente imposta a este réu em seis meses de detenção.
b) – JOÃO AUGUSTO DA ROSA, já quali cado, a cumprir a pena de seis (6)
meses de detenção.
Fixei a pena base para este réu em três meses de detenção, considerando sua
primariedade e os antecedentes testemunhalmente abonados, personalidade dentro
de padrões normais. O dolo com que agiu, no entanto, foi intenso, executando uma
prisão de estrangeiros com risco de provocar, inclusive, incidentes diplomáticos entre
dois países vizinhos. Motivos altamente censuráveis e egoísticos, em circunstâncias
totalmente desfavoráveis às vítimas.
Graves as consequências de sua conduta antijurídica, pois, resultante de seu ato,
Lilian e Universindo, que não tinham nenhuma pena a cumprir no Uruguai segundo

166 Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010


declaração o cial de suas altas autoridades, e que se encontra no processo, estão
presas há cerca de um ano e oito meses.
Intimamente ligado as consequências próprias às vitimas, está o fato, há muito,
a criar uma imagem totalmente negativa do Brasil, inclusive no exterior.
Inexistem atenuantes, mas sim a agravante do artigo 44, 11, letra “i”, primeira
parte, do Código Penal, pelo que aumento aquela pena base de três meses em um
mês, elevando-se a cominação imposta para quatro meses de detenção.
Embora a ocorrência do concurso formal não esteja capitulada na denúncia,
é descrita com absoluta clareza, ao mencionar que a ação delituosa teve quatro
vítimas.
Desta forma, com fundamento no artigo 51, § 1º, do Código Penal, aumento
aquela pena de quatro meses em metade, ou seja, em dois meses, resultando a pena
de nitivamente imposta a este réu, em seis (06) meses de detenção.
Por todas as nuances do fato, exaustivamente examinadas, inclusive na
fundamentação para aplicação da pena, o que denota que os réus Orandir Portassi
Lucas e João Augusto da Rosa, embora recém ingressando nos quadros da Policia Civil,
se envolveram e executaram medida violenta, de alta repercussão, até internacional,
entendo necessária, cabível e até e exigível a aplicação da pena acessória prevista
no diploma penal que violaram.
Assim, com fundamento no artigo 6º, § 5º da Lei 4898/65, aplico a cada um
dos réus condenados a pena acessória de não poderem exercer funções de natureza
policial, no município de Porto Alegre, pelo prazo de dois (2) anos.
2) – Com fundamento no artigo 386, VI, do Código de Processo Penal, absolvo,
Pedro Carlos Seelig e Janito Jorge dos Santos Keppler, já quali cados, da imputação
que lhes foi feita.
Determino o lançamento, no rol de culpados, dos nomes dos réus
condenados.
Custas na proporção de 25% para cada réu apenado e de 50% para o Estado.
Com fundamento no artigo 57 do Código Penal suspendo a execução da pena
privativa de liberdade imposta aos réus, pelo prazo de dois (2) anos, desde que
cumpram as seguintes condições:
1º – Apresentarem-se de quatro em quatro meses em cartório;
2º – Comunicarem ao Juízo das Execuções eventual mudança de endereço;
3º – Pagarem as custas, na proporção já xada, no prazo de 60 dias.
Marco audiência admonitória para o dia 11 de agosto de 1978, às 16 horas.
Requisitem-se. Intimem-se. Publique-se.

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Transitada em julgado, comunique-se à Superintendência dos Serviços Policiais
e ao Serviço de Informática da Polícia Civil.

Porto Alegre, 21 de julho de 1980

Moacir Danilo Roij Rodrigues


Juiz de Direito

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