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HISTÓRIA DA FILOSOFIA

DA ANTIGUIDADE TARDIA
PROF. DR. JOEL GRACIOSO
REITORIA:
Dr. Roberto Cezar de Oliveira
PRÓ-REITORIA:
Prof a . Ma. Gisele Colombari Gomes
DIREÇÃO DE GESTÃO EAD:
Prof. Me. Ricardo Dantas Lopes
EQUIPE DE PRODUÇÃO DE MATERIAIS:
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Revisão textual
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Gestão

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UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA

01
DISCIPLINA:
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA ANTIGUIDADE TARDIA

O DESENVOLVIMENTO DA FILOSOFIA GREGA


PROF. DR. JOEL GRACIOSO

SUMÁRIO DA UNIDADE

INTRODUÇÃO.................................................................................................................................................................4
1. AS ESCOLAS HELENÍSTICAS....................................................................................................................................5
1.1 O EPICURISMO.........................................................................................................................................................5
1.2 O ESTOICISMO........................................................................................................................................................5
1.3 O CETICISMO...........................................................................................................................................................6
2. NEOPLATONISMO..................................................................................................................................................... 7
2.1 PLOTINO................................................................................................................................................................... 7
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................................................ 10

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

INTRODUÇÃO

Após o surgimento do pensamento de Platão e Aristóteles, que elaboraram os dois


primeiros grandes sistemas filosóficos com suas respectivas escolas, vemos a Filosofia Grega
enveredar por outros caminhos. A segunda navegação, isto é, a descoberta e valorização do
incorpóreo, empreendida por Platão e levada a cabo por Aristóteles, será esvaziada pela chamada
filosofia helenística que irá desenvolver seu pensamento a partir de categorias materialistas.
O projeto de conquista e expansão realizado por Alexandre Magno produziu muitos
efeitos, tais como: a dissolução da Polis e, por conseguinte, a perda do referencial moral; a
descoberta do homem como indivíduo; a perda de profundidade da cultura helênica; etc.
É nesse contexto que a filosofia helenística, a partir de categorias de pensamento
imanentistas, ressaltará bastante o aspecto ético defendendo de maneira intensa a concepção da
Filosofia como modo de vida. Dessa forma, as noções de autarquia (o bastar-se a si mesmo), como

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a de ataraxia, (tranquilidade da alma), estarão no centro das reflexões filosóficas desenvolvidas
nesse período. Assim como a figura do sábio estará vinculada à posse de determinadas virtudes
que garantem a vida feliz.
As chamadas escolas helenísticas, como o epicurismo, o estoicismo e o ceticismo,
florescerão nesse ambiente intelectual.
Ademais, vemos nesse período o desenvolvimento tanto do platonismo quanto do
aristotelismo. A Academia de Platão existirá até 529 d.C., passando por várias etapas e seguindo
referenciais diversificados, havendo momentos exímios e outros de decadência, até passar
uma retomada revitalizadora efetuada pelo movimento neoplatônico, de modo peculiar pelo
pensamento de Plotino, que surgirá.
Já a história do aristotelismo é mais fragmentada, o Liceu não teve a mesma continuidade
que a Academia. Depois do período inicial, a escola aristotélica entra em decadência e praticamente
a obra do Estagirita ficou um bom tempo perdida.

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1. AS ESCOLAS HELENÍSTICAS
1.1 O Epicurismo
O fundador da primeira escola helenística foi Epicuro, nascido no ano 341 a.C., em
Samos. Em torno do ano 306, funda a sua Escola, que, pelo fato de se reunir com seus discípulos
em torno de um Jardim, assim será conhecida.
Epicuro retoma muitas teses do atomismo antigo, mostrando, assim, sua perspectiva
materialista, seja no âmbito da física, seja na compreensão que tinha do conhecimento humano.
Para ele, a experiência imediata e a conservação dos elementos provenientes dela serão os
referenciais fundamentais para se entender o modo como conhecemos.
Sua reflexão ética, assim como as das outras escolas, terá a preocupação de encontrar qual
o bem que devemos possuir para que, assim, consigamos atingir a ataraxia e, por conseguinte, a
vida feliz. A felicidade para Epicuro estará vinculada ao prazer. O que significa isso?
Desde a Antiguidade, muitos o acusaram de hedonista e escravo das paixões. Porém,

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para Epicuro é preciso distinguir o prazer cinético do prazer catastemático. O primeiro tem
relação com o movimento, com o ato de procurar um prazer e de liberar-se ativamente de uma
dor. O segundo é mais estático, é um gozo passivo vinculado à privação de dor. Ora, segundo o
pensamento epicurista, é este que nos garante a felicidade, pois nos garantiria a tranquilidade da
alma.
Por isso, como salienta na Carta a Meneceu, é preciso que as pessoas se libertem dos seus
medos e perturbações, tanto em relação à morte quanto no que diz respeito aos deuses. Não há
motivo para temer essas realidades, pois, para ter dor, é preciso ter sensações e, para ter sensações,
é necessário estar vivo. Ora, quando a morte é eu já não sou mais, não havendo possibilidade de
dor. Os deuses não castigam nem dão premiações, pois não estão preocupados com nossas vidas.
Portanto, não há razão para temer algo devido a essas realidades.
Evidentemente que no epicurismo há uma valorização do prazer como algo natural.
Assim como a fuga da dor. A realização das nossas necessidades e desejos naturais é algo positivo.
Porém, para o filósofo do Jardim, tudo isso deve ser realizado com moderação, com temperança.
É preciso ter uma certa inteligência prática (phronesis) para saber lidar com nossas paixões e
necessidades se quisermos atingir a imperturbabilidade da alma (ataraxia). Assim, a ética
epicurista não apregoava uma vida desregrada, mas, sim, a realização de prazeres e desejos, que
seriam manifestações da nossa natureza, com equilíbrio. Todavia, isso não tira a centralidade que
o prazer ocupa no interior do seu pensamento, como também a ausência da dor para poder ser
feliz.

1.2 O Estoicismo
A dimensão sistemática da Filosofia é bastante salientada pelos estoicos. Esta teria três
partes fundamentais: a física, a lógica e a ética. Por intermédio da metáfora da árvore, explicavam
a relação entre essas três partes. A física seria a raiz; a lógica, o tronco; e a ética, os frutos. Assim,
a dimensão mais elevada seria a ética, pois indica justamente os frutos que poderão ser colhidos
da árvore do saber. Todavia, isso não é possível sem as raízes (física) e o tronco (lógica).
Assim, o mundo das ações humanas deve ser compreendido a partir do mundo natural,
da natureza, do universo, pois a realidade humana é um pequeno mundo dentro desse grande
Cosmos. Ora, o mundo natural, para os filósofos do pórtico, é uma estrutura racionalmente
organizada, sendo possível, portanto, estabelecer uma explicação meramente racional da
realidade. O real é racional. Assim, na doutrina da apropriação defendia-se que há um logos
divino que penetra a realidade e rege todas as coisas, inclusive o mundo humano.

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Dessa forma, para agir eticamente e assim atingir a vida feliz, o homem precisa agir
conforme os princípios e leis naturais. É necessário estar em harmonia com o cosmos. A boa
ação, portanto, é aquela que está de acordo com a Natureza que se identificará com o divino.
Dessa maneira, viver segundo a natureza é viver segundo a razão, pois o real é racional.
Mas também é viver segundo as virtudes, pois, com a aquisição e ajuda delas, consigo, por
exemplo, distinguir o bem do mal, o que temer e o que não temer e estar de fato em harmonia
com o Cosmos. Elas seriam a causa e perfeição da vida feliz, mostrando a autossuficiência do
homem. O homem, portanto, para ser feliz não pode ser dominado pelas suas paixões, desejos
ou prazeres. O princípio ou o comando do seu agir deve ser a razão com o auxílio das virtudes.
Todavia, desde a Antiguidade muitos questionamentos foram feitos ao pensamento
estoico devido à sua concepção de mundo, de natureza, pois implicaria a noção de destino e de
necessidade. Ora, esse contexto fatalista não anularia a liberdade humana? Para os estoicos, não. O
homem deve escolher agir de acordo com a lei natural, conforme os preceitos éticos e fazer o que
deve ser feito. Todavia, precisa também entender que os acontecimentos são predeterminados pelo
destino. Assim, por um lado, deve realizar as ações eticamente corretas, mas, concomitantemente,
precisa ter um espírito de resignação, isto é, aceitar as consequências de nossas escolhas e ações e,

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por conseguinte, o desfecho inevitável dos acontecimentos.
Isso se justificaria pelo fato de que o destino não é uma força arbitrária, cega e irracional,
mas, sim, a manifestação explícita da racionalidade implícita do real. Logo, deve-se aceitá-lo
mesmo sem se ter a compreensão total do desenlace dos fenômenos ocorridos.
Para o estoicismo, portanto, para se atingir a tranquilidade da alma e ser feliz, é preciso
autocontrole, disciplina, austeridade e resignação. Os estoicos reconhecem que esse não é um
caminho fácil. Parece que somente um sábio perfeito conseguiria atingir tal feito. Entretanto, não
se deve desistir. É preciso buscar percorrer tal caminho.

1.3 O Ceticismo
O Ceticismo no mundo antigo tem três momentos. Primeiramente, encontramos a
filosofia de Pirro, que, apesar de não ser considerado o fundador do ceticismo, seu pensamento
sempre é correlacionado com a tradição cética. Num segundo momento, temos a figura de
Arcesilau e Carnéades no contexto da Academia platônica em sua fase cética. E, por fim, Sexto
Empírico com seu ceticismo suspensivo.
Conhecemos alguns pontos da filosofia pirrônica por intermédio de seu discípulo Tímon
de Flios, pois o mestre nada escreveu. Segundo seu relato, Pirro defendia a impossibilidade de
conhecermos a realidade tal como ela é em si mesma, pois tanto a razão quanto os sentidos
não nos fornecem os elementos necessários para atingirmos esse conhecimento. Ora, se é assim,
deve-se, então, evitar estabelecer uma posição sobre essas questões sobre a realidade das coisas e,
dessa maneira, atingir a tranquilidade de espírito e, por conseguinte, a felicidade.
Para os Acadêmicos, primeiramente Arcesilau, não há de fato critérios seguros para
distinguir o verdadeiro do falso. Assim, o encontro da verdade é algo impossível, e a melhora
postura seria, em geral, evitar emitir juízos sobre as coisas, ou seja, a prática da époche. Todavia,
a necessidade de se fazerem escolhas e tomar decisões continua na vida cotidiana. Dessa forma,
devido a essa necessidade, o razoável será considerado o critério residual para se fazer essas
escolhas. Carnéades, num segundo momento da escola, irá salientar mais a noção de provável
como referência para a tomada de decisões.
Entretanto, Sexto Empírico, retomando alguns elementos do pensamento de Pirro, irá
criticar o pensamento dos Acadêmicos, que não eram considerados céticos autênticos por ele.
O cético autêntico seria aquele que sempre está procurando, não afirmando ou negando nada.
Segundo Sexto, os acadêmicos, ao afirmarem que é impossível encontrar a verdade, estariam

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caindo num dogmatismo negativo, mas que não deixa de ser uma postura dogmática, oposta ao
ceticismo.
A posição cética por excelência seria caracterizada pela suspensão de juízo quanto à
questão de algo ser verdadeiro ou falso. Assim, o único ceticismo que mereceria esse nome seria
o ceticismo suspensivo defendido por ele.
Notamos, portanto, que, no contexto helenístico, o pensamento cético está geralmente
vinculado à noção de époche, mesmo que tenha sido interpretado de maneiras diferentes por
Arcesilau e Sexto Empírico. Assim, no entendimento dos céticos, na procura pela verdade o
homem acaba se deparando com uma diversidade enorme de opiniões e posicionamentos sobre as
mais variadas questões. O problema é que há uma oposição e contradição entre essas perspectivas
teoréticas e, na medida em que cada uma se considera a única verdadeira, uma acaba anulando a
outra. Logo, é preciso escolher uma e rejeitar as outras. Contudo, na medida em que não há um
critério totalmente seguro para fazer esse discernimento, não é possível identificar qual resposta é
a mais verdadeira e, dessa forma, parece que todas estão no mesmo nível. Nessa situação, segundo
o cético, parece que o melhor a fazer é suspender o juízo sobre as coisas, libertando-se de qualquer
perturbação na alma e, assim, atingindo a ataraxia e a vida feliz.

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2. NEOPLATONISMO
O Neoplatonismo surge no século III d.C. com Amônio Sacas, o qual nada escreveu e sobre
o qual sabemos pouco. Contudo, será em sua Escola na cidade de Alexandria que encontraremos
o maior expoente da tradição neoplatônica: Plotino.
Além de Plotino, Porfírio, que foi seu discípulo, ocupará um lugar importante no rol dos
pensadores neoplatônicos. Escreveu uma biografia sobre o mestre, a Vida de Plotino, e organizou
a obra plotiniana, seus diversos tratados, nas Enéadas, ou seja, seis grupos com nove tratados cada
Jâmblico e Proclo serão outros autores relevantes.

O artigo Plotino e a escola de Héracles. Paixões, virtude e purificação,


de Maurício Pagotto Marsola, professor da UNIFESP, trata das
paixões, da purificação e das virtudes.
Leia-o em https://hypnos.org.br/index.php/hypnos/article/
view/249.

2.1 Plotino
O que sabemos sobre Plotino procede principalmente da obra feita por Porfírio, Vida de
Plotino. Nasceu em Licópolis, em 205 d.C. A partir de um determinado momento de sua vida,
dedicou-se totalmente à filosofia. Participou da escola de Amônio Sacas durante onze anos. Teve
a oportunidade de fazer uma expedição ao Oriente, coisa que lhe interessava muito, e, assim,
conhecer melhor a sabedoria oriental, assimilando muitos elementos dessa tradição. No ano 244,
estabelece estadia em Roma e cria sua escola, com um viés religioso e místico muito claro. Sua
reputação e prestígio como filósofo aumentará cada vez mais, sendo procurado e consultado por
diversas razões.

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Segundo Porfírio, Plotino tinha aspecto de quem se sente envergonhado de estar no


corpo. Não no sentido de alguém que concebia a corporeidade como algo intrinsecamente ruim,
semelhante aos gnósticos. Mas, sim, no sentido de uma pessoa que tinha uma consciência clara
da realidade decaída da alma e, por conseguinte, de sua não completude. Por essa razão, não
aceitava ser retratado. Para ele, a busca pelo divino era algo fundamental na existência humana. É
preciso unir o divino que está em nós com aquele que está no cosmos. Morreu em 270.
Plotino, de fato, terá um débito com vários pensadores anteriores a ele. Se Platão é a grande
autoridade, nem por isso deixamos de encontrar nos seus textos elementos do pitagorismo, de
Parmênides, do aristotelismo, do estoicismo, de Fílo de Alexandria etc.
Assim, o pensamento plotiniano estabelece uma distinção clara entre o sensível e o
inteligível, salientando que o incorpóreo é constituído de três hipóstases: o uno, o nous e a psique.
Isso posto, terá a preocupação de explicar o processo pelo qual as coisas procedem do princípio
originário e como tudo está vinculado a ele exigindo o movimento de retorno. Dessa forma, as
ideias de processão (próodos), como de conversão (epistrophé), ocuparão um lugar central no
interior de suas reflexões filosóficas.
A base, portanto, para a formulação do pensamento metafísico de Plotino está na teoria

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das três hipóstases. Elaborará uma filosofia do uno de cunho místico e religioso.
Para ele, o Uno é a primeira realidade, hipóstase, totalmente transcendente a tudo. É
inefável. Está acima de todo ser. É o princípio absoluto, totalmente simples, que é a razão de ser
do múltiplo e o fim de todas as coisas. Tudo provém dele e tudo retorna para ele. Sendo causa, está
em todas as partes e em nenhuma. Pois é todas as coisas e nenhuma. Porque, sendo princípio de
tudo, é todas as coisas e, devido a isso, não pode ser nada em particular. Vê-se, dessa maneira, que
há uma dependência de todos os seres em relação a ele. É o Bem absolutamente transcendente.
Por ser perfeito, engendra e produz livremente. Sua perfeição gera um transbordamento sem
perda de unidade e sem se exteriorizar, resultando em algo diverso de si, que primeiramente é o
nous (Espírito, Pensamento, Inteligência, Ser).
A Inteligência, que é a segunda hipóstase e inferior ao Uno, corresponderia ao mundo
das ideias de Platão. Seu ponto essencial está no pensar. Aí, ser e pensar são o mesmo, pois tudo
no pensamento está em ato. Diferencia-se e recebe seu ser pelo movimento de processão que
a separa ontologicamente da realidade superior. Porém, uma postura de conversão, um voltar-
se, um movimento de busca, de retorno em direção ao princípio gerador é necessário. Isto é, o
Pensamento precisa contemplar o princípio do qual deriva para poder ser, de fato, o mundo das
ideias.
Ora, do nous origina-se a terceira hipóstase, a psique, a alma. Como?

A Inteligência, semelhante ao Uno e imitando-o, transborda, gerando uma terceira


hipóstase, a alma, permanecendo inalterada. A alma, porém, possui uma dupla direção. Por um
lado, contempla a Inteligência e, dessa maneira, sente-se preenchida, pois, através da contemplação
do nous, vê o uno e entra na posse dele. Assim como o Pensamento precisava contemplar o Uno a
fim de estabelecer sua identidade, a alma também necessita disso. Por outro lado, ela se exterioriza
ao realizar um movimento em sentido contrário ao nous, gerando a realidade sensível, imagem
dela mesma. Nessa descida, a alma e sua imagem continuam dependendo ontologicamente do
princípio originário. Contudo, se o pensar é o fator essencial da inteligência, o produzir, dar a
vida, ordenar e governar as coisas sensíveis será o ponto central da psique.
A alma, portanto, tem uma dupla face. Por um lado, é a última das realidades inteligíveis
e, por outro, é a produtora do sensível. Isso não quer dizer que a natureza da psique seja uma
mistura, uma mescla de corpóreo e incorpóreo. Ela é uma realidade espiritual, seja enquanto pura
hipóstase do mundo inteligível, seja como alma do mundo, seja como almas particulares.

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Ora, a partir dessa perspectiva metafísica, segundo a qual tudo procede do uno e precisa
retornar a ele, se estabelece um princípio ético basilar, ou seja, cada alma humana precisa,
livremente, querer e alcançar o uno. O êxtase, isto é, o tocar o uno, para Plotino é possível nesta
vida. Enfim, para de fato retornar ao princípio absoluto, é necessário e suficiente percorrer o
caminho das virtudes, da beleza e da dialética.

Assista a Plotino, crítico de Aristóteles, disponível em


https://www.youtube.com/live/GhC_PmnP3MY?feature=share.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, com as escolas helenísticas e o pensamento neoplatônico, a filosofia antiga no


seu contexto pagão vai chegando ao seu término e, ao mesmo tempo, deixando suas marcas na
reflexão filosófica subsequente. Muitos elementos, por exemplo, da tradição estoica e do próprio
neoplatonismo servirão de referencial teórico para os pensadores cristãos.

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02
DISCIPLINA:
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA ANTIGUIDADE TARDIA

PATRÍSTICA E FILOSOFIA CRISTÃ


PROF. DR. JOEL GRACIOSO

SUMÁRIO DA UNIDADE

INTRODUÇÃO................................................................................................................................................................ 12
1. OS PADRES DA IGREJA............................................................................................................................................ 13
2. SANTO AGOSTINHO................................................................................................................................................. 13
2.1 O ITINERÁRIO AGOSTINIANO................................................................................................................................ 13
2.2 A RELAÇÃO ENTRE FÉ E RAZÃO ......................................................................................................................... 15
2.3 DEUS E A VIA DA INTERIORIDADE....................................................................................................................... 17
2.4 O DRAMA HUMANO E O DESEJO POR DEUS...................................................................................................... 19
2.5 O MAL......................................................................................................................................................................20
2.6 SANTO AGOSTINHO E PLOTINO...........................................................................................................................22
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................................................24

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INTRODUÇÃO

A Patrística é o período dos Padres da Igreja e é nela que encontramos o início da Filosofia
Cristã. Mas quem foram os Padres da Igreja? Qual a importância deles?

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1. OS PADRES DA IGREJA
Nos primeiros séculos da Igreja, existiram vários escritores que colaboraram para a
elaboração da doutrina cristã, dos dogmas, tendo, assim, uma importância muito grande no
desenvolvimento da Igreja Cristã e da reta explicitação das verdades da fé, combatendo as mais
diversas heresias. Esses autores são os Padres da Igreja, havendo, entre eles, bispos, presbíteros,
diáconos e leigos.
Pelo fato de estarem mais próximos do cristianismo primitivo e, por conseguinte, da
tradição apostólica, os seus textos possuem uma autoridade muito peculiar segundo a fé católica,
pois deixaram um conjunto de reflexões filosóficas, meditações bíblicas e explicitações teológicas,
formando um patrimônio perene na sua essência.
Desde o início da Igreja, a Patrística, esse período dos Padres, foi se dividindo entre
Patrística Grega e Patrística Latina, havendo grandes nomes dos dois lados, tais como: Santo
Atanásio, São Basílio, São João Crisóstomo, São Cirilo de Alexandria, São Gregório de Nissa, no
Oriente. Santo Ambrósio, São Jerônimo, Santo Agostinho, São Gregório Magno, no Ocidente.

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Geralmente se considera o período patrístico até o início do século VII no Ocidente e metade do
século VIII no Oriente.

2. SANTO AGOSTINHO
No desenvolvimento do pensamento patrístico, muitos Padres da Igreja foram relevantes.
Todavia, no mundo Ocidental Santo Agostinho foi aquele que mais se destacou e influenciou o
desenvolvimento do pensamento filosófico.

2.1 O Itinerário Agostiniano


Santo Agostinho nasceu em 354 e morreu em 430 na África, no período da Antiguidade
Tardia, no contexto do Império Romano e na fase áurea da Patrística. Foi um romano e um dos
maiores Padres da Igreja no âmbito latino. O que conheceu da tradição grega foi mediada pelas
estruturas educacionais romanas. Historiadores, poetas e pensadores romanos sempre estarão
presentes no horizonte reflexivo do santo doutor.
Nas suas Confissões, Santo Agostinho mostra como procurou a Verdade, Deus.
Conforme vai narrando sua vida, mostra as diversas etapas por que passou, tanto no sentido do
desenvolvimento natural, como também no sentido intelectual e moral. Nos primeiros livros,
Agostinho recorda os pecados da sua infância e juventude, seu desinteresse pelos estudos e
preferência pelo teatro, jogos, amores sensuais etc.
Assim, em 370 vai para Cartago, centro intelectual e religioso, mas também um centro de
prazeres e diversões. Um ambiente repleto de jogos, lutas e sensualidades etc. Agostinho, nesse
momento, deixa-se levar pelas mais variadas paixões. Aos dezoito anos, apaixona-se por uma
concubina, resultando desse relacionamento um filho, Adeodato.
Nesse seu itinerário, há um fato primeiro que irá provocar um início de mudança ou
conversão em sua vida. Em 374, a leitura de uma obra de Cícero, intitulada Hortênsio, mexe
com o jovem Agostinho. O contato com o texto ciceroniano desperta nele o amor à Verdade,
impulsionando-o a procurar e alcançar a sabedoria.
Na descrição do seu itinerário, reconhece a influência cristã advinda da mãe, e uma prova
disso é que, após a leitura da obra de Cícero, se aproxima das Escrituras Sagradas cristãs com
intuito de encontrar aí a sabedoria. Todavia, essa primeira aproximação com o texto sagrado

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decepciona Agostinho, vendo nas Escrituras algo muito rudimentar se comparado ao pensamento
de Cícero. Devido a essa dificuldade de aceitar as Escrituras e dando continuidade à sua busca,
ele se aproxima do maniqueísmo, uma corrente filosófico-religiosa que lhe parecia, naquele
momento, propor a verdadeira forma de cristianismo.
Os maniqueus prometiam levar a fé por intermédio da razão e apresentavam uma resposta
para o problema da existência do mal no mundo que tanto incomodava Agostinho: se Deus é o
Sumo Bem e o Criador de todas as coisas, como explicar a existência do mal no mundo, que tem
por origem o Sumo Bem? Deus pode ser a causa do mal? De onde vem o mal?
O maniqueísmo era um tipo de gnose, ou seja, um movimento que defendia existência
de um conhecimento superior prometido a um grupo de privilegiados, os seus iniciados.
Ademais, era uma doutrina que prometia a salvação, a qual consistiria em adquirir um certo tipo
de conhecimento que revelaria à alma sua verdadeira natureza. A alma, para o maniqueísmo, é
concebida como uma parcela do divino perdida no mundo, na matéria, da qual é preciso libertar-
se. Dessa maneira, a alma humana só consegue se salvar na medida em que toma consciência do
seu estado de prisioneira.
Para explicar a existência do mal no mundo, o pensamento maniqueísta parte de uma

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metafísica dualista que estabelece na origem de tudo dois princípios absolutos opostos: o
princípio do bem, ou da luz, e o princípio do mal, ou das trevas e da matéria. Assim, o mal para
os maniqueus é uma substância absoluta que tem o mesmo poder que o bem e, ademais, se
confunde com a matéria, má em si mesma.
A partir dessa ontologia dualista, o maniqueísmo constrói uma cosmologia que tem por
objetivo explicar como a origem de tudo está nessa luta entre o bem e o mal. Na região da luz,
reinaria o Pai da grandeza e, na outra, o Príncipe das trevas, não sendo apenas entidades, mas
também forças animadas que procuram impedir reciprocamente a expansão da outra. O mal
procura penetrar na região do bem, indo além de sua própria região, o que dá início ao drama
cósmico da constituição do mundo, que é uma mistura de bem e mal. O bem, para evitar a ameaça
do mal, utiliza uma estratégia, envia várias emanações de sua substância, que são posteriormente
absorvidas pelo poder das trevas. Essa aparente perda do bem é, na realidade, o início da salvação,
pois a mistura dessas partículas divinas com a matéria, aos poucos, vai enfraquecendo e, por fim,
derrotando as forças do mal.
Enfim, o maniqueísmo substancializa o mal para isentar o princípio do bem de toda a
responsabilidade sobre o mal no mundo. Assim, a origem do mal seria o sumo mal.
Entretanto, após um encontro frustrado com um importante bispo Maniqueu que não
respondeu a diversas questões apresentadas por Agostinho, veio o rompimento gradual com os
maniqueus e certa consideração pelo ceticismo dos Acadêmicos. Ou seja, Agostinho percebe as
contradições e limitações do maniqueísmo, provocando nele certo sentimento cético em relação
às verdades metafísicas. Começa a duvidar da possibilidade do homem, na sua condição atual, de
conhecer algo que vá além das realidades sensíveis ou corpóreas.
Em Milão, ouviam-se regularmente os sermões de Santo Ambrósio, outro grande Padre
da Igreja, nos quais se percebia um cristianismo mais elaborado do que aquele conhecido até
então. Assim como se conheceu outra corrente filosófica, o platonismo ou neoplatonismo.
Agostinho descreve o encontro com a tradição platônica, que, em seu entendimento, será
a filosofia mais próxima do pensamento cristão. Esta lhe apontará a importância de se investigar o
homem interior, dando a Agostinho um novo referencial que o ajudará a superar seu materialismo.
O contato com a tradição platônica, portanto, foi essencial para a conversão de sua mente e para
o conhecimento de uma nova metafísica, ou seja, de uma forma diferente de conceber o ser,
modificando sua maneira de conceber Deus.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Agostinho não leu tanto os textos do próprio Platão, e, sim, alguns tratados das
Enéadas, de Plotino, como também textos de Porfírio e outros.
A questão do termo materialismo em Agostinho é algo controverso, pois a noção
de matéria no pensamento agostiniano possui algumas peculiaridades. A noção
de matéria espiritual, por exemplo, é algo que se insinua nos textos, mas que é
interpretada de maneira diversa pelos comentadores. Ademais, o materialismo
para ele parece incluir numa mesma escola filosófica maniqueístas, epicuristas e
estoicos. Os primeiros, com seu orgulho absolutizando o mal e problematizando
a imutabilidade divina. Os segundos buscando a felicidade na satisfação das
necessidades naturais. E os últimos na identificação da sabedoria/felicidade com
a apatia. Enfim, para Agostinho o materialismo parece ser a expressão filosófica
que absolutiza o temporal e o espacial, identificando-o com a vida feliz e a
totalidade do real. Assim, nessa perspectiva só é real algo sujeito ao tempo e ao

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espaço. Um modo de pensar, portanto, que nega a existência de uma substância
que não seja corpórea.

Todavia, Agostinho salienta também as insuficiências do platonismo, o qual colaborou


para que ele pudesse superar sua fase materialista. O platonismo vislumbraria a pátria da bem-
aventurança, a sabedoria, a felicidade, mas não teria condições de nos fazer habitar nela. Nesse
momento, Agostinho salienta a importância das epístolas de Paulo na sua vida e como ele foi
se abrindo à graça divina e retornando à fé que sua mãe sempre lhe ensinou. O contato com os
textos paulinos lhe oferecerá uma antropologia cujo centro é a dialética entre a graça e o pecado,
a misericórdia divina e a miséria humana.

2.2 A Relação entre Fé e Razão


A fé ocupa um lugar central no pensamento agostiniano. Desde o início das suas obras,
ele procura mostrar as incongruências tanto do ceticismo, que duvidava de tudo e criticava
as várias linhas de pensamento sobre o conhecimento humano, quanto do maniqueísmo, que
queria estabelecer uma prática religiosa alicerçada apenas em especulações racionais, correntes
de pensamento que ele, de uma certa forma, aderiu em alguns momentos da sua vida.
A partir desse debate com céticos e maniqueus, o bispo de Hipona apresenta a noção de
fé como algo essencial para a vida humana em todos os seus aspectos, e não apenas religioso.
Essa perspectiva do hiponense é algo inovador e produzirá muitas implicações no pensamento
ocidental. Isso não quer dizer que ele seja um fideísta, ou seja, alguém que defenda o abandono
da razão. Mas também não é um racionalista, pois entende, depois de sua conversão, que a razão
precisa de ajuda.
No entendimento do bispo de Hipona, as religiões pagãs cometeram um erro enorme
ao separarem o culto ao divino, do conhecimento sobre o divino. O Deus que se adora também
deve ser conhecido. Por isso que, para Santo Agostinho, o cristianismo não é apenas a verdadeira
religião, mas também a verdadeira filosofia.
Contudo, ele tinha conhecimento de que alguns autores cristãos entendiam que, na
medida em que houve a encarnação do Verbo de Deus, não havia mais necessidade de Filosofia.
A Filosofia pagã foi útil enquanto não tínhamos o Verbo encarnado que revela a plenitude da
verdade. Ademais, uma verdade alcançada apenas pela luz natural da razão é muito inferior a uma

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verdade revelada pelo próprio Deus. Logo, para esses autores, precisamos apenas do Evangelho
de Cristo, da fé. Contudo, ele não concorda com essa postura.
Na sua obra A fé nas coisas invisíveis, como também na sua carta 120, ele mostra como a
fé é algo imprescindível na vida humana e como fé e razão precisam caminhar juntas.
Para Santo Agostinho, a vida em sociedade e as relações humanas se tornariam impossíveis
se não houvesse o exercício da crença. Eu não tenho acesso direto ao íntimo do outro. Eu não
tenho conhecimento de tudo e não consigo verificar tudo. Logo, em diversas situações mostra-se
a necessidade da fé.
Porém, a fé não substitui a razão, mas a pressupõe. Crer é um pensar com assentimento.
Ora, se de fato a fé é isso, então, está implicado tanto a presença da razão quanto da vontade, pois,
ao pensar sobre aquilo que está sendo proposto como objeto de fé, é preciso a presença da razão
e o seu uso. Todavia, a fé não se configura, apenas, como um pensar sobre algo que está sendo
oferecido como objeto de crença, mas, sim, um pensar com assentimento, ou seja, um pensar no
qual já vai ocorrendo também o ato de aceitar livremente aquilo sobre o que estou pensando. Isso
mostra, portanto, que há uma presença e exercício da razão no próprio ato de fé. Se, por um lado,
a fé é um dom de Deus, por outro lado, pressupõe a presença de uma natureza específica para

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receber esse dom.
Além disso, quem nos fez foi Deus, e foi ele quem nos deu uma natureza racional para
mostrar a diferença e a superioridade da criatura humana em relação às demais criaturas (minerais,
vegetais, animais). Ora, qual o sentido, então, de exigir do cristão que renuncie à sua razão para
viver a vida da fé se foi Deus que nos fez seres racionais justamente para nos diferenciar no
contexto da criação? Como separar radicalmente fé e razão, afastando-as, se nem receberíamos o
dom da fé se não tivéssemos uma natureza racional?
Isso sem levar em consideração o exercício da razão, que é anterior à própria fé. Essa
razão não explica, não entende as verdades da fé, mas mostra a razoabilidade e a necessidade da
fé. Como?
Ao inspecionar o próprio espírito, o homem realiza esse ato de reflexividade por intermédio
de sua razão. Usando o critério judicativo e da mutabilidade, o homem vai adentrando o âmbito da
interioridade. Vai do exterior para o interior. Deste para o seu íntimo e aí para o superior. Porém,
essa passagem do exterior para o interior não ocorre porque o exterior é mau em si mesmo, mas,
sim, porque não se encontra uma razão suficiente, na etapa anterior no movimento realizado, que
justifique o cessar do movimento.
Assim, as coisas externas e corpóreas são captadas pelos sentidos externos. Porém, os
sentidos externos não são autossuficientes. Quem organiza as informações provenientes é o
sentido interno, que, ao fazer essa estruturação dos dados provenientes da sensibilidade externa,
já está julgando de uma certa forma essas informações. Porém, esse processo não termina com
o trabalho realizado pelo sentido interno, pois a averiguação e a universalização dos resultados
apresentados dependem da alma, que, por intermédio da razão, irá efetivar tal trabalho. Ora,
a razão analisa e julga esses resultados a partir da verdade que habita o mais íntimo do nosso
íntimo. A partir de critérios e princípios universais que subsistem nessa verdade, e não a partir de
critérios que estão atrelados à particularidade dos sentidos corpóreos. Todavia, esse movimento
também não termina na razão. Por quê?
Para Agostinho, aquilo que julga é superior ao que é julgado e, se algo é mutável, isso
é sinal de que a coisa não possui em si mesma sua razão de ser. Ela não é causa de si mesma,
mas, sim, depende de um outro. A razão ao julgar todas as realidades sensíveis mostra a sua
superioridade. Entretanto, ela julga tudo a partir da verdade e dos princípios eternos, mas não
julga essa própria verdade e os princípios, pois, sendo mutável, não tem como julgar o imutável
e ser causa dele.

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Ao entender isso, a razão, a partir do exercício que lhe é próprio, vai compreendendo suas
limitações e vendo a necessidade de ir além de si mesma. Entende que sua origem e identidade
estão numa Razão Superior Transcendente e que, para atingir essa realidade, precisa da fé.
Por isso a investigação sobre a relação entre fé e razão é tão importante para Santo
Agostinho.
Nos Solilóquios, a própria razão, após questionar Agostinho sobre o que ele quer conhecer,
manda-o rezar. Essa postura oracional mostra a necessidade da humildade na busca pela verdade.
A fé amplia os horizontes da razão, mostrando que a realidade não se reduz àquilo que
pode ser apreendido por ela. Ao mesmo tempo, colabora para que seja uma razão humilde, e não
soberba. Ao desafiar a razão com as verdades reveladas, a fé mostra para ela que, apenas com
suas capacidades naturais, não consegue entender e explicar tudo. Da mesma forma que a fé gera
esperança, pois estimula a razão a continuar buscando entender.
É assim que devemos interpretar o famoso lema agostiniano: creio para compreender.
Agostinho usa a expressão Filosofia Cristã. Com isso, no fundo quer indicar o próprio
cristianismo. Fé e razão, apesar de serem distintas, não podem trabalhar separadas. O Deus
adorado deve ser conhecido. E o Deus conhecido deve ser adorado. Filosofia e Teologia estão

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misturadas na perspectiva do bispo de Hipona. O cristão não deve renunciar à sua razão para ser
cristão. A Filosofia pagã, ou o jeito pagão de buscar a verdade, está superada devido à encarnação
do verbo. A fé é necessária. Sem ela, a razão não consegue ver certos problemas nem certas
verdades. A razão precisa se permitir ser iluminada pela fé. Entretanto, não basta crer. É preciso
buscar entender aquilo que se crê. Essa razão iluminada precisa, na medida do possível, apresentar
a racionalidade e sentido das verdades reveladas.
Isto é o que vamos encontrar na obra de Santo Agostinho: a apresentação de problemas e
questões a partir da observação da realidade e da experiência e da articulação da fé com a razão.
Primeiramente, aborda-se o problema a partir dos dados da fé. Se crê, porque viu-se no que é
apresentado algo razoável, mas também devido à ação da graça, e usa-se desses referenciais para
delimitar e encaminhar as questões. Num segundo momento, busca-se explicitar racionalmente
o sentido dos dados revelados e enfrentar as supostas aporias.

O artigo A dimensão teleológica e ordenada do agir humano em


Santo Agostinho, de Joel Gracioso, trata da ética agostiniana, na
qual tem papel relevante a noção de ordo amoris.
Leia em https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transforma-
cao/article/view/2672/2097.

2.3 Deus e a Via da Interioridade


Ao percorrermos a obra do bispo de Hipona, vamos constatando que toda a estrutura
de pensamento estabelecida por ele gravita em torno da questão de Deus, isto é, a preocupação
principal das suas investigações é explicitar a natureza divina e sua relação com a realidade criada
e, assim, indicar o caminho que conduz o humano ao divino, o temporal ao eterno.
Agostinho, num primeiro momento, reconhece que a leitura dos livros platônicos o advertiu
a examinar a si mesmo, a inspecionar o homem interior. A descoberta do autoconhecimento,
ou conhecimento de si, e sua importância emergem na consciência do hiponense a partir desse

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encontro com a tradição platônica. O contato com ela possibilita a Agostinho a descoberta do
Nosce te ipsum do oráculo de Delfos. Em vários momentos, no seu itinerário e nas suas obras,
salienta a importância do conhecimento de si. Reconhece que a filosofia tem um duplo objeto, a
alma e Deus, isto é, o conhecimento de nós mesmos e de nossa origem. A partir dessa descoberta,
a busca da verdade, da beatitude, não se dará mais a partir do exterior, com os olhos sensíveis e
seus critérios, mas, sim, a partir do interior e no mais íntimo dele.
Mas o que seria a interioridade para Agostinho? Ela se identificaria apenas com o ato de
reflexividade ou com a estrutura do espírito humano?
Para Agostinho, a interioridade parece ser também um processo, um voltar-se cada vez
mais para o interior até o mais íntimo de si, do que apenas a estrutura da alma, do homem
interior. É o movimento em si da interiorização.
O bispo de Hipona, na sua releitura desse seu encontro com a tradição platônica, reconhece
a dimensão providencial de tudo isso, a ajuda divina. A inspeção do espírito ocorre sob a guia
de Deus e devido ao seu auxílio. Isso posto, Agostinho descreve que viu uma luz imutável com o
olhar da sua alma, a mente (mens), e que essa luz estava acima dela.
Num segundo momento, estabelecida a mudança de registro da exterioridade para o

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interior, o hiponense continua falando da busca de Deus, da verdade, a partir do sentido da
visão. Porém, não mais a partir dos olhos do corpo, mas, sim, a partir do olho da alma, a mens.
O movimento interiorizante realizado por Agostinho lhe possibilita ver uma luz imutável e
compreendê-la de forma diferente. Ora, como se configura essa luz a partir de um olhar que não
é mais o da exterioridade?
O autor das Confissões, ao descrever essa luz imutável, parece optar principalmente pela
via da negatividade, dizendo o que ela não é, em vez do que ela é, certamente para ressaltar
sua transcendência e inefabilidade. Não é essa luz física, sensível, que percebemos pelos nossos
sentidos exteriores, mas algo totalmente distinto, que, entretanto, abrange tudo com sua grandeza.
Está acima de nós, de nossa mente, não como o óleo sobre a água, nem como o céu sobre
a terra, pois essa justaposição pressuporia uma espacialidade e exterioridade, o que implicaria
continuar num referencial materialista e nas suas consequências. Assim, “está acima” porque se
identifica com quem nos criou, enquanto nós estamos abaixo porque fomos criados por ela: se
existimos, é porque ela nos chamou à existência; não existíamos, mas passamos a existir devido a
uma intervenção dela. Logo, não está em nós a nossa razão de ser, mas naquela que nos fez.
Assim, num terceiro momento, Agostinho identifica essa luz imutável com a verdade,
a eternidade e a caridade. Ela é a eterna verdade, a verdadeira caridade e a cara eternidade.
Encontrando-a, encontramos o próprio Deus. O Deus-Verdade é o Deus-Amor, que é desde
todo o sempre, pois o mesmo que criou é o mesmo que se revela e salva. Vemos, assim, que,
para Agostinho, esse movimento ao interior implica também um movimento ao superior. O
movimento interiorizante vai-se configurando num movimento ascensional.
Se Deus não é apenas verdadeiro, mas é a própria verdade; se ele não apenas ama, mas é o
amor; se não apenas é eterno, mas é a própria eternidade, então, nos deparamos com uma unidade
radical que procede de uma realidade transcendente, que se basta a si mesma e é, por conseguinte,
um absoluto que transcende toda multiplicidade, apesar de três realidades ou atividades distintas:
ser, conhecer e amar, pois ela não está se dividindo, mas, sim, está totalmente presente em cada
uma. É um único e mesmo princípio transcendente, o qual é origem de todo ser, conhecer e agir,
pois é a própria eternidade ou imutabilidade, a própria verdade e a própria caridade.
Ele encontra, portanto, aquele Deus que é mais íntimo do que a sua parte mais íntima e,
ao mesmo tempo, transcende tudo o que é concebido como elevado.

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Supera-se, assim, a partir da inspeção do espírito, toda multiplicidade, espacialidade e


dispersão, constatando uma presença de algo, ao mesmo tempo, transcendente, o uno, o divino,
a beatitude almejada, porque não se está mais no plano apenas da imanência, onde vários seres
nos chamam a atenção, mas no plano do recolhimento no qual constato a presença de algo que,
concomitantemente, transcende e, por conseguinte, de uma unidade não espaço-temporal.
Entretanto, o caminho para se encontrar esse princípio absoluto, transcendente, divino,
não é o da mera intelecção. É preciso a presença da caritas, pois somente um amor ordenado,
que me leva a amar aquele que é digno de ser amado por si mesmo, pode me ajudar a fazer o
movimento contrário da cupidez. O movimento interiorizante já é um sinal da presença desse
amor, pois indica um ato moral, uma escolha efetuada, não mais de afastamento, mas, sim, de
aproximação ao bem supremo. Com isso, o círculo fecha-se totalmente numa interioridade
suprema, pois foi encontrada a eterna verdade, a verdadeira caridade e a cara eternidade, fonte
de toda moral, de todo conhecimento e de todo ser. Ora, a partir desses elementos a dimensão
teológica da interioridade agostiniana está estabelecida.
Portanto, a interioridade para Agostinho, por um lado, indica a reflexividade, a estrutura
do homem interior e a inspeção do próprio espírito. Mas também aponta para a ideia de um

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movimento interiorizante e ascensional. Por intermédio de sua mente, o homem vai adentrando
os vários degraus da alma, tendo como critério a mutabilidade e, raciocinando, constata não uma
ideia, mas, sim, a presença de algo que transcende o próprio homem interior. Ou seja, na medida
em que a realidade criada é intrinsecamente mutável e a verdade desejada é imutável, é necessário
ir além de si mesmo, em direção àquela realidade tão almejada pela própria razão, porque ficar
preso a si mesmo é ficar estagnado na mutabilidade, e não atingir o fim almejado.
É preciso ir não para fora, mas, sim, regressar a si mesmo. Não no sentido de uma
egolatria e, sim, numa atitude de inspeção do próprio espírito e descobrir aí Aquele que é mais
íntimo do que minha própria intimidade. É nesse instante que se revela a dimensão teológica da
interioridade agostiniana.

Assista a O Cristo Mediador segundo Santo Agostinho, disponível


em https://youtu.be/TV3O9PSgdyg.

2.4 O Drama Humano e o Desejo por Deus


A realidade humana parece ser um grande paradoxo, pois, por um lado, é fraca e
pecadora e, por outro lado, deseja louvar e possuir a Deus. Mas a condição humana já mostra a
impossibilidade de atingir este fim. De onde vem esse desejo? Qual seu fundamento?
Segundo Agostinho, é a própria ação de Deus sobre a criatura humana que a impele a
querer louvá-lo. No ato da criação, o homem não só foi feito por Deus, mas também para Deus,
demonstrando que a necessidade da criatura retornar ao criador, já foi estabelecida na própria
criação.
Ou seja, pelo fato de ter sido criado para Deus (ad te) - mostrando com essa expressão, ad
te, a relação e ordenação necessária entre criatura e criador e, assim, o desejo natural do homem
para com o seu criador - é que somente em Deus - e a expressão in te aponta justamente para a
ideia de posse, de aquisição de algo almejado - o homem pode encontrar o repouso tão almejado,
que se confunde com o encontro e posse do próprio Deus.

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Percebe-se, então, que a inquietude humana, segundo Agostinho, está, por um lado,
ligada a esse chamado do criador para com a criatura humana e, por outro lado, à condição de
pecador do homem. Pelo fato de ter sido criado para Deus, o homem só encontra repouso em
Deus. Todavia, como superar esse antagonismo entre o homem pecador, miserável e a grandeza
de Deus a fim de atingir e possuir o repouso tão desejado?
É preciso um mediador para que isso ocorra. Cristo é esse mediador. O ser humano
necessita da graça. Ora, a realidade encarnada do Lógos ou o mistério da encarnação é importante,
segundo o bispo de Hipona, porque revela ao homem seu verdadeiro estado por meio da via da
humildade.
Ou seja, o verbo encarnado pela sua humildade-humilhação revela ao homem sua situação
de dilaceração e debilidade e, ao mesmo tempo, mostra-lhe a necessidade da graça e indica-lhe
uma certa postura a ser seguida.
Para Agostinho, o objetivo principal do Cristo era ser um exemplum. Em que consistiria
esse exemplum salientado por Agostinho?
O Cristo com toda a sua vida veio nos mostrar o amor que devemos ter ao eterno, e não
tanto às realidades temporais. Contudo, o grande exemplum do Cristo, segundo Agostinho, foi a

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sua humildade.
Assim, se o homem quiser diminuir sua dessemelhança para com Deus, deve imitar o
exemplo de humildade ensinado pelo Verbo encarnado, o único que, de fato, poderia desempenhar
satisfatoriamente a função de mediador.
Enfim, para Agostinho, o homem, pelo mistério da encarnação, pode experimentar o
que não é pelo que é (o divino pelo humano). A criatura humana não podendo atingir Deus,
este se fez homem e, sendo possível a um homem aproximar-se de outro, será por um homem,
plenamente divino, mas também plenamente humano, que o homem atingirá a Deus, Cristo
Jesus. Dessa maneira, Deus se fez homem a fim de que, seguindo um homem, o que lhe é possível,
o homem alcançasse a Deus, o que antes era impossível.
Assim, o bispo de Hipona vê o homem, após o pecado de Adão, como um ser mortal,
pecador e debilitado. Nessa condição, a criatura humana anseia por Deus e quer unir-se a ele,
pois só nele encontrará repouso. Contudo, ao mesmo tempo experimenta o jugo do pecado, suas
fraquezas, limitações e a concupiscência, essa inclinação para o mal.
Por fim, a partir do que indicamos anteriormente, podemos ver como, para Agostinho, há
um fim a ser alcançado que norteia a conduta humana, que nada mais é do que Deus, criador de
todas as coisas e a própria beatitude.
Todavia, não basta saber intelectualmente qual é o fim último almejado pelo homem: é
preciso também saber como devo me posicionar perante os seres em geral. Isso é possível, porque
a graça coopera com o homem, curando sua vontade. Ela restitui a ele a capacidade de viver a
ordem do amor, que deve reger a vida humana, pois ela ajuda o homem a amar cada coisa com
o amor que deve ser amada. Ademais, ver o mundo e seus seres como sinais do invisível, como
meios para se conhecer e atingir a vida feliz, ou seja, o próprio Deus.

2.5 O Mal
É preciso uma análise da questão da existência do mal no mundo, porque a origem e
fundamento do mundo é Deus, criador e sumo bem. Ora, como o mal pode existir num mundo
que tem por origem o Sumo Bem? Isso não seria uma grande contradição? Logo, a concepção de
Deus como Suma Bondade, Criador e Providente requer uma resposta razoável para a existência
do mal no mundo, pois, senão, a racionalidade do real estará abalada e a própria busca por Deus.

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Para Santo Agostinho, é preciso analisar o problema do mal e sua existência a partir
de aspectos diferentes e respeitando a ordem necessária. Ou seja, primeiramente é necessário
abordar a questão do mal do ponto de vista ontológico e, depois, na sua dimensão moral.
Assim, metafisicamente falando, pelo fato de as criaturas não serem como Deus (imutável,
incorruptível) e serem corruptíveis, isso não as transforma em algo mau. A partir desse princípio,
Agostinho procura estabelecer uma nova maneira de se entender a presença do mal no mundo.
Se as criaturas fossem absolutamente boas, não poderiam se corromper, mas não seriam
o que são, isto é, criaturas. Por outro lado, se não tivessem nenhum grau de bondade, pergunta
Agostinho, como poderiam ser corrompidas visto que a corrupção é a perda de um bem e, por
isso mesmo, um mal? Em outros termos, se as coisas criadas podem se corromper, diferentemente
de Deus, que é incorruptível, é porque elas são boas, e não más em si mesmas.
Assim, a corrupção, o mal, enquanto privação do ser, ou não existe de todo, ou existe como
carência de um bem e na medida em que esse bem subsiste. Por conseguinte, a corrupção total é
inconcebível, pois tudo o que é, pelo simples fato de ser, já é bom. Logo, se perder totalmente sua
bondade, deixa de existir. Assim, enquanto existem, são boas.
Consequentemente, o mal não é uma substância, porque, se fosse, seria um bem, afinal,

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tudo o que é, é um bem, o que levaria à contradição e ao absurdo de afirmar o mal como bem.
Mas ele, ao contrário, é privação, carência, corrupção, não ser.
Do ponto de vista moral, o problema do mal está vinculado à questão do pecado. Seguindo
o referencial bíblico, Agostinho entende que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança,
dotado de um corpo e uma alma. Se seguisse o movimento natural em direção ao criador, seria
feliz. Porém, ao contrário, se abusasse do livre-arbítrio da vontade, desobedecendo e cedendo ao
orgulho, iria morrer e tornar-se escravo.
Assim, Deus criou o homem reto. Entretanto, este se corrompeu pelo mau uso da própria
vontade. O pecado de Adão mostra que, em vez de usá-la para atingir o fim para o qual Deus
a deu, o ser humano preferiu direcionar-se ao que era inferior, e não ao bem supremo, numa
atitude de orgulho. Terá essa má vontade alguma causa?
Para o bispo de Hipona, não se deve procurar uma causa eficiente para a má vontade,
pois ela, a má vontade, começa a configurar-se justamente no momento em que o homem declina
do mais perfeito ao menos perfeito, ou seja, na medida em que a vontade, que é um bem, é
corrompida e ocorre uma defecção, uma perda. Dessa maneira, a má vontade é uma privação,
ausência de algo próprio a uma natureza e, por isso, não se devem procurar causas eficientes para
tais privações, pois seria o mesmo que querer ver as trevas por si mesmas, esquecendo que nada
mais são do que ausência de luz.
Na medida em que o homem fez um mau uso do seu livre-arbítrio, ou seja, dessa
capacidade de tomar decisões, de escolher entre uma coisa e outra, preferindo os bens inferiores
em vez do bem supremo, ele se afastou moralmente do seu criador, perdendo sua liberdade, que é
justamente, para Agostinho, a capacidade de usar o livre-arbítrio corretamente, isto é, conforme
o fim para o qual ele nos foi dado pelo criador: escolher sempre o melhor.
Dessa forma, a origem do mal está na perversão da vontade. E, no sentido moral, o mal
por excelência é o pecado, pelo qual preferimos o inferior no lugar do superior, o bem mutável
em vez do bem imutável.

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2.6 Santo Agostinho e Plotino


Santo Agostinho, ao longo de sua obra, estabelece o itinerário da alma para Deus. A
dialética, o caminho de ascensão e retorno ao Criador, pressupõe que tudo procede de uma
unidade originária e que tudo retornará a ela. É inegável a referência e a semelhança ao pensamento
plotiniano. Em vários momentos, o bispo de Hipona reconhece a excelência da tradição platônica
e as verdades que encontrou nela, seja nas Confissões ou na Cidade de Deus, por exemplo.
Em Plotino, como já vimos, encontramos tanto a ideia de processão (próodos) como de
conversão (epistrophé). Em que medida podemos afirmar que a dialética praticada por Agostinho
é a mesma que foi exercida por Plotino? Haverá alguma diferença entre o próodos e a epistrofé
plotiniana e a criatio, a conversio e a formatio agostiniana?
Vimos que, para Plotino, o Uno é a primeira realidade, hipóstase, totalmente transcendente
a tudo. É o princípio absoluto e o fim de todas as coisas. Tudo provém dele e tudo retorna
para ele. Sua perfeição gera um transbordamento sem perda de unidade e sem se exteriorizar,
resultando em algo diverso de si, o nous, a Inteligência. Vemos, assim, que a hipóstase inferior ao
Uno se diferencia e recebe seu ser pelo movimento de processão que a separa ontologicamente

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da realidade superior. Porém, ela não recebe a plenitude da sua essência e de sua ação senão
por uma conversão, um voltar-se, um movimento de retorno em direção ao princípio gerador.
A Inteligência, semelhante ao Uno, transborda gerando uma terceira hipóstase, a Alma,
permanecendo inalterada. A Alma, porém, possui uma dupla direção. Por um lado, contempla
a Inteligência e, dessa maneira, sente-se preenchida. Por outro lado, se exterioriza e realiza um
movimento em sentido contrário ao nous, gerando a realidade sensível, imagem da própria Alma.
Agostinho, de fato, foi muito marcado pela noção plotiniana de conversão, retorno e
processão. Contudo, na perspectiva agostiniana, todas as criaturas devem a sua existência, pela
criatio (criação), a um princípio primeiro absoluto e transcendente, sendo que, se elas não fossem
chamadas pelo Verbo divino, o Logos, à unidade do Criador para serem formadas, permaneceriam
na dessemelhança, sem medida e identidade. Assim, é por intermédio da conversão que a criatura
toma forma e se torna acabada. A formatio (formação) aponta a realização do ser. Há, portanto,
uma distinção entre criatio e formatio. Mas não entre conversio e formatio. No ato de criar, há
uma doação de ser, de existir, mas, se tivesse ocorrido apenas isso, as criaturas continuariam
uma matéria informe. Assim, as criaturas ganham forma na medida em que se voltam para o seu
criador. O afastar-se do princípio originário provoca uma degeneração e desordem na criatura. O
que Agostinho ganha filosoficamente com essa distinção?
Por um lado, ele mostra a contingência e finitude da criatura, diferentemente do criador,
que é por si e em si. E, por outro lado, insere a história da salvação na história da criação. No caso
dos anjos, numa perspectiva metafísica, ao criá-los já lhes concedeu a conversão e a formação
concomitantemente. Criou, chamou de volta para si, formou e beatificou. O ser humano também
é criado e chamado, após o pecado, a Deus por Deus. Porém, deve trilhar um caminho no tempo.
O homem decaído alcançará a beatitude, pois, da mesma maneira que Deus iluminou e beatificou
os anjos, ele também o ilumina e beatifica no desenrolar da história. Da mesma forma que Deus
reconduziu o mundo angelical a si por meio do seu Verbo eterno, é também por intermédio do
seu Verbo encarnado que ele chama de volta o homem decaído.
Assim, o ser humano, numa perspectiva de história da Salvação, precisa confirmar, por
decisão e um movimento próprio, o chamado que recebeu do Verbo divino. É preciso uma
conversão em direção ao Verbo, pois, assim, pode escapar do abismo da dessemelhança e do
mero viver para, de fato, viver conforme a sabedoria. Entretanto, tanto o ato de criar como
o formar são um dom gratuito de Deus, a criatura não poderia merecer nem um nem outro.
Ademais, o homem só consegue retornar a Deus com a ajuda da graça. Suas forças naturais não
são suficientes para tal feito.

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Para Agostinho, além disso, há uma distinção entre criar e gerar. O fato de algo ser
originado em Deus não significa que tenha a mesma substância dele. Na Cidade de Deus, o bispo
de Hipona explicita a diferença entre criar, fabricar e gerar. A noção de criação implica a produção
a partir do nada. Deus tudo produziu ou chamou à existência sem matéria preexistente. Assim,
uma realidade pode proceder de outra, seja por criação, geração ou fabricação. O homem, imerso
no tempo em que também foi criado, pode gerar filhos, fabricar artefatos, mas não pode criar,
pois, com suas limitações de criatura, não pode doar o ser como ser, mas apenas produzir esta ou
aquela modalidade do ser. O criar pode ser apenas atribuído a Deus.
Assim, todos esses pontos mostram que, por mais que Santo Agostinho tenha sido
influenciado pelo pensamento de Plotino, há divergência em pontos cruciais.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA ANTIGUIDADE TARDIA | UNIDADE 2

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enfim, o encontro da fé cristã com a filosofia grega proporcionou ao cristianismo primitivo


um instrumental teorético e especulativo fundamental para se desenvolver a organização e a
defesa da doutrina cristã, mostrando a possibilidade e a necessidade de se pensar a relação entre
fé e razão. Mas, concomitantemente, colaborou para uma nova maneira de entender-se o filosofar
e o saber humano em geral, cuja expressão mais estruturada será a escolástica medieval.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA ANTIGUIDADE TARDIA | UNIDADE 2

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ENSINO A DISTÂNCIA

REFERÊNCIAS
BEZERRA, C. C. Compreender Plotino e Proclo. Petrópolis: Vozes.

BROWN, P. Santo Agostinho: uma biografia. Rio de Janeiro: Record.

KENNY, A. Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola.

NARBONNE, J.-M. A metafísica de Plotino. São Paulo: Paulus.

PLOTINO. Enéadas. São Paulo: Nova Acrópole.

REALE, G. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola.

SANTO AGOSTINHO. Cidade de Deus. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

SANTO AGOSTINHO. Confissões. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

TRAPÉ, A. Agostinho: o homem, o pastor, o místico. São Paulo: Cultor de Livros.

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