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Esta Gente/Essa Gente

O que é preciso é gente


gente com dente
gente que tenha dente
que mostre o dente

Gente que seja decente


nem docente
nem docemente
nem delicodocemente

Gente com mente


com sã mente
que sinta que não mente
que sinta o dente são e a mente

Gente que enterre o dente


que fira de unhas e dente
e mostre o dente potente
ao prepotente

O que é preciso é gente


que atire fora com essa gente

Ana Hatherly
Há palavras que nos beijam

Há palavras que nos beijam


Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas


Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama


Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam


Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O’Neill,
As Palavras

São como cristal,


as palavras.
Algumas, um punhal,
Um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.


Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
As águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Eugénio de Andrade
Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,


Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda


Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Fernando Pessoa
Liberdade
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,


Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa…

Livros são papéis pintados com tinta.


Estudar é coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,


Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças…


Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luas, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais que isto


É Jesus Cristo
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca…

Fernando Pessoa
Amar!
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui…além…
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente…
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...


Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:


É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz foi para cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada


Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder…para me encontrar…

Florbela Espanca
[Aquela triste e leda madrugada,]

Aquela triste e leda madrugada,


Cheia toda de mágoa e de piedade,
Enquanto houver no mundo saudade
Quero que seja sempre celebrada.

Ela só quando, amena e marchetada,


Saía, dando ao mundo claridade,
Viu apartar-se d’ua outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio,


Que duns e doutros olhos derivadas,
S’acrescentaram em grande e largo rio;

Ela viu as palavras magoadas,


Que puderam tornar o fogo frio
E dar descanso às almas condenadas.

Luís Vaz de Camões


Quase Momentos de alma que desbaratei…
Templos aonde nunca pus um altar…
Um pouco mais de sol - eu era brasa, Rios que perdi sem os levar ao mar…
Um pouco mais de azul – eu era além. Ânsias que foram mas que não fixei…
Para atingir, faltou-me um golpe de
asa… Se me vagueio, encontro só indícios…
Se ao menos eu permanecesse Ogivas para o sol – vejo-as serradas;
aquém… E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios…
Assombro ou paz? Em vão…Tudo
esvaído Num ímpeto difuso de quebranto,
Num baixo mar enganador de espuma; Tudo encetei e nada possuí…
E o grande sonho despertado em Hoje, de mim, só resta o desencanto
bruma, Das coisas que beijei mas não vivi…
O grande sonho - ó dor! – quase
vivido… Um pouco mais de sol - eu fora brasa,
Um pouco mais de azul – eu fora além.
Quase o amor, quase o triunfo e a Para atingir, faltou-me um golpe de
chama, asa…
Quase o princípio e o fim – quase a Se ao menos eu permanecesse
expansão… aquém…
Mas na minh’alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!
Mário de Sá Carneiro
De tudo houve um começo…e tudo
errou…
- Ai a dor de ser–quase, dor sem fim… -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em
mim,
Asa que se elançou mas não voou…
O Sonho

Pelo Sonho é que vamos,


Comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
Pelo Sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos


Basta a esperança naquilo
Que talvez não teremos.

Basta que a alma dêmos,


Com a mesma alegria,
Ao que desconhecemos
E ao que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

 Partimos. Vamos. Somos.

Sebastião da Gama
Porque

Porque os outros se mascaram, mas tu não.


Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são túmulos caiados


Onde germina a podridão.
Porque os outros se calam, mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem


E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos


E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam, mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Andresen


Vaidosa
Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo aí por favorito
Vivo louco de dor e de martírio.

Contam que tens um modo altivo e sério,


Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério.

Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,


a déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E não tens coração como as estátuas.

E narram o cruel martirológio


Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.

Porém eu sei que tu, que como um ópio


Me matas, me desvairas e adormeces
És tão loira e doirada como as messes
E possuis muito amor... muito "amor próprio".

Cesário Verde
Poema da auto-estrada
Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta
Vai na brasa de lambreta.

Leva calções de pirata, Como um rasgão na paisagem


Vermelho de alizarina, corta a lambreta afiada,
modelando a coxa fina engole as bermas da estrada
de impaciente nervura. e a rumorosa folhagem.
Como guache lustroso, Urrando, estremece a terra,
amarelo de indantreno bramir de rinoceronte,
blusinha de terileno enfia pelo horizonte
desfraldada na cintura. como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
Fuge, fuge, Leonoreta. o céu, as núvens, as casas,
Vai na brasa, de lambreta. e com os bramidos que solta
Agarrada ao companheiro lembra um demónio com asas.
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro Na confusão dos sentidos
em cada volta da estrada. já nem percebe, Leonor,
Grita de medo fingido, se o que lhe chega aos ouvidos
que o receio não é com ela, são ecos de amor perdidos
mas por amor e cautela se os rugidos do motor.
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa, e bem segura. Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.

António Gedeão
AMIGO
Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra amigo!

"Amigo" é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

"Amigo" (recordam-se, vocês aí,


Escrupulosos detritos?)
"Amigo" é o contrário de inimigo!
"Amigo" é o erro corrigido
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada!

"Amigo" é a solidão derrotada!


"Amigo" é uma grande tarefa,
É um trabalho sem fim,
Um espaço sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
"Amigo" vai ser, é já uma grande festa!

Alexandre O'Neill

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