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“MIRROR, MIRROR”:
Rainha Má e a perda do objeto amado em The fairest of all: a tale of the Wicked Queen
(2009)
PARNAÍBA
2022
LAYS CHRISTINE SANTOS DE ANDRADE
“MIRROR, MIRROR”:
Rainha Má e a perda do objeto amado em The fairest of all: a tale of the Wicked Queen
(2009)
PARNAÍBA
2022
A553m Andrade, Lays Christine Santos de.
“Mirror, mirror”: Rainha Má e a perda do objeto amado em The fairest of
all: a tale of the Wicked Queen (2009) / Lays Christine Santos de Andrade. -
2022.
62 f. : il.
“MIRROR, MIRROR”:
Rainha Má e a perda do objeto amado em The fairest of all: a tale of the Wicked Queen
(2009)
COMISSÃO EXAMINADORA:
_______________________________________
Professora Orientadora: Doutora Renata Cristina da Cunha.
Universidade Estadual do Piauí – Campus de Parnaíba
_______________________________________
Professor: Doutor Ruan Nunes Silva
Universidade Estadual do Piauí – Campus de Parnaíba
_______________________________________
Professor: Doutor Leonardo Davi Gomes de Castro Oliveira
Universidade Estadual do Piauí – Campus de Parnaíba
Primeiramente agradeço a Deus por me permitir estar viva e rodeada de amor e carinho. Em
2016 ele olhou para mim e pensou: “Você ainda tem muitas conquistas pela frente mocinha,
volte lá e conquiste o que você quer”. Então, estou aqui para agradecer a oportunidade da
segunda chance que Ele me deu... Thank God!
Agradeço à minha família, minha base e meu sustento em todos os momentos. O apoio de vocês
fez todo o caminho ser infinitamente melhor. Agradeço à minha mãe, Alice, e ao meu pai,
Franzé, por serem exemplos de dedicação, perseverança e apoio em todos os sentidos, saibam que
vocês são os maiores motivos de eu continuar a busca pelos meus objetivos. Agradeço aos meus
irmãos, Deborah e Ygor, por estarem na torcida por mim e comemorarem cada conquista. Amo
vocês, meus exemplos e orgulho.
Quero agradecer àquela que está comigo todos os dias, que suportou todas as minhas crises de
leitura e escrita, aquela a que devo minha gratidão por ser minha terapia de amor, a minha
filha felina, Angelina. E, não menos importante, agradeço aos meus familiares que sempre
torceram por mim, obrigada por todo o apoio de vocês.
Agradeço aos meus amigos que suportam as minhas ansiedades e comemoram minhas vitórias,
aqueles que, mesmo distantes, estão presentes em cada pensamento. Aos amigos de infância,
agradeço por permanecerem. Aos amigos que conquistei recentemente, agradeço o
encorajamento.
Agradeço aos meus amigos de curso, por todo o apoio, conselhos e momentos difíceis que
ficaram menos estressantes quando compartilhados com cada um de vocês. Dividimos
momentos de incertezas, de perdas, estresses e agora estamos juntos nessa minha conquista.
Agradeço a cada um dos professores do curso por meu auxiliarem no processo de formação
docente, devo a vocês a profissional que estou me tornando. Ao professor Ruan Nunes por todos
os ensinamentos que me inspiram e pelo trabalho lindo e competente frente à coordenação ao
longo do tempo em que eu estava no curso, com certeza o curso cresceu com você sendo o “Boss”.
Agradeço também ao professor Leonardo Davi, por ser um profissional que me inspira nas
práticas docentes. Agradeço à Giselle Andrade pela forma como se dedica à prática docente e
nos inspira nas leituras. Agradeço também às professoras Francimaria do Nascimento e Lara
Ferreira por todo o conhecimento ao longo do curso. Vocês todos são inspirações para mim!
Agradeço aos professores externos ao curso que contribuíram para minha formação ao longo do
caminho, ministrando aulas no curso de Letras Inglês e /ou me auxiliando nos processos de
criações de trabalhos, bem como de pensamento crítico. Agradeço a todos vocês.
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Fonte: https://www.garotasgeeks.com/artista-brasileira-desenha-viloes-da-disney-com-letras-de-suas-musicas/
ONCE UPON A TIME2
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“Era uma vez”. A escolha do título remete ao início das histórias de contos de fadas.
3
Considerando os relatos pessoais acerca do surgimento do interesse pelo problema de pesquisa, nesta parte do
trabalho apresenta-se uma narrativa na perspectiva da primeira pessoa do singular.
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Então, fui apresentada aos livros de Serena Valentino, autora estadunidense que
escreveu uma coleção de livros inspirada nos vilões dos contos de fadas das animações dos
Estúdios Disney. Além de apresentar a complexidade dos personagens, as narrativas da autora
trazem as causas para a construção do perfil de vilões dos contos de fadas. Valentino se
apropria de conflitos externos e internos, da esfera social, vivenciados pelos personagens para
legitimar os danos resultantes, em outras palavras, as causas para a vilania se encontram em
problemas decorrentes dos diferentes âmbitos da sociedade. A cereja do bolo veio com a
leitura do livro The fairest of all: a tale of the Wicked Queen, publicado em 2009 pela Disney
Press, em que Valentino conta a história da personagem Rainha do filme Snow White and the
Seven Dwarfs, produzido e lançado em 1937 pela Disney, criando sua origem e narrando os
fatos que a levaram a se transformar na madrasta malvada da princesa Branca de Neve.
Para que Serena Valentino recriasse a figura da Rainha Má numa perspectiva mais
humanizada, foi preciso um longo caminho de transformações na forma de representação
dessa personagem. Nessa perspectiva, na primeira versão, não publicada, do conto sobre
Branca de Neve, escrita pelos irmãos Grimm, a vilã da trama era a própria mãe da princesa.
No entanto, devido à ascensão da burguesia em uma sociedade religiosa do século XIX, os
autores decidiram mudar o parentesco entre Branca de Neve e sua antagonista, nascendo
assim uma vilã no posto de madrasta malvada, o que permitiu que a figura da mãe
permanecesse imaculada e perpetuasse como símbolo de pureza e amor incondicional
(VALENZUELA, 2016).
A personagem antagonista do conto de fadas Branca de Neve passou por uma série de
adaptações ao longo de suas aparições. A primeira versão da Rainha Má como madrasta de
Branca de Neve, escrita pelos irmãos Grimm, apresentava uma personagem sem remorso e
com desejo canibal, como destaca Leticia O. Zumaêta (2016, p. 25), “[...] a rainha ordena ao
cozinheiro que ferva os órgãos na salmoura, e em seguida os ingere, pensando estar comendo
o fígado e os pulmões de Branca de Neve”. Nesse sentido, mesmo tirando da mãe a
responsabilidade de cometer tamanha atrocidade, os irmãos Grimm ainda permaneceram com
uma história que não seria aceita pela alta classe europeia do século XIX.
Outra adaptação que faz repertório do imaginário dos públicos-alvo dos contos de
fadas é a adaptação cinematográfica produzida pelos Estúdios Disney, em 1937, em que a
antagonista é representada com menos crueldade do que a versão proposta pelos irmãos
Grimm. No entanto, a Rainha Má não se destaca na trama, sua personagem apresenta apenas
um objetivo, infringir sofrimento e tristeza à Branca de Neve (ZUMAÊTA, 2016). Pensando
nisso, Serena Valentino procura apresentar os supostos motivos para a transformação da
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pesquisa, escolhemos analisar seu corpus numa perspectiva interpretativista, de modo que a
pergunta possa ser respondida e os objetivos possam ser alcançados.
No que diz respeito aos procedimentos dessa pesquisa, inicialmente foram realizados
estudos acerca da Crítica Literária e da Crítica Psicanalítica. Concomitantemente foram
realizadas leituras do livro The fairest of all: a tale of the Wicked Queen (2009), bem como de
livros e artigos que discutam a relação entre contos de fadas e a Psicanálise. Esta investigação
foi baseada nos seguintes critérios de inclusão e exclusão: foram mantidos como fontes de
pesquisa os documentos que concordam ou discordam com a temática. Logo após, foram
mantidos documentos que contém argumentos e interpretações semelhantes sobre o assunto,
permitindo caminhar pelas perspectivas psicanalíticas freudianas para auxiliar na realização
desta pesquisa.
Para essa pesquisa utilizamos como corpus o livro The fairest of all: a tale of the
Wicked Queen (2009), de início, direcionamos nossa atenção aos vinte e três capítulos e o
epílogo do livro para realizar um levantamento de quais capítulos estão de acordo com a
discussão do tema em voga. Após essa etapa, analisamos os capítulos escolhidos e
verificamos quais trechos acordam com o tema, a fim de responder nossa questão norteadora.
Para justificar a realização dessa pesquisa, consideramos presentes em seu corpus
elementos sociais que presumivelmente estariam ligados às perdas sofridas pela personagem
Rainha. Portanto, com a realização desta pesquisa esperamos, em âmbito social, discutir
aspectos que envolvem os problemas sociais nos contos de fadas, bem como chamar atenção
para os sentimentos desencadeados pela personagem em razão da perda de um objeto amado,
pois baseados nos pressupostos de Sigmund Freud, acreditamos que diante da perda de algo
querido, uma pessoa vive processos para superar a dor causada por essa perda.
No tocante ao âmbito acadêmico, foram realizadas discussões sobre até que ponto os
conceitos da Crítica Psicanalítica podem ser utilizados para interpretar uma personagem de
contos de fada; e se essas interpretações refletem, e como refletem nos Estudos Literários.
Dessarte, ao visitarmos o acervo de monografia do curso, percebemos que a pesquisa do
egresso Jonas de Souza Santos é sobre a perda do objeto amado e seu impacto em
personagens dos animes Naruto (2002) e Naruto Shippuden (2007) à luz da Crítica
Psicanalítica (SANTOS, 2019). Embora nossa pesquisa utilize os conceitos de Crítica
Psicanalítica, ela é inédita quanto ao corpus: a perda do objeto amado e seu impacto em uma
vilã dos contos de fadas.
Em vista disso, esperamos que este trabalho possa ser utilizado como acervo
bibliográfico para professores e acadêmicos dos cursos de Letras e nos cursos de Ensino, além
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de contribuir para futuras pesquisas acadêmicas nas áreas de Letras, Literatura, Teoria
Literária e Crítica Literária. Nesse viés, esperamos que os acadêmicos que utilizarem esse
trabalho como fonte percebam o quão importante é escolher um tema de investigação que te
proporcione felicidade quando a estiver realizando.
Com relação à sua contribuição para o ensino, este trabalho pode ser utilizado para que
os docentes trabalhem o texto além das palavras, questionando assim a forma de abordar
criticamente um texto literário, utilizando as lentes críticas literárias (TYSON, 2006). Além
disso, o livro analisado se apresenta em Língua Inglesa, o que pode auxiliar o processo de
ensino e aprendizagem de línguas. Com isso, os docentes poderão trabalhar assuntos
transversais no ensino de Língua Inglesa, utilizando os contos de fadas como materiais de aula
(FERNANDES, 2017).
No tocante ao âmbito pessoal e usando um discurso em primeira pessoa do singular,
relacionar questões que fizeram e fazem parte da minha vida desde a infância com os estudos
teóricos que me foram apresentados ao longo da graduação é uma grande oportunidade de
desmistificar as razões que relegaram os dos contos de fadas, pois acredito que essas
narrativas discutem problemas existentes no nosso cotidiano e poder trazer esse debate para o
mundo acadêmico é uma vitória pessoal para mim. Ademais, vislumbrando minha formação
contínua e a paixão pelas narrativas dos contos de fadas, espero levar meus questionamentos
acerca desse mundo mágico para os próximos níveis da minha formação acadêmica.
Com relação à estrutura, essa monografia contém duas seções, além das seções
destinadas à introdução e considerações finais. O primeiro capítulo é destinado às discussões
sobre os pressupostos teóricos da Crítica Literária e Crítica Psicanalítica, defendidos por
Roberto A. Souza (2011) e Lois Tyson (2006), focando nas implicações da perda do objeto
amado na perspectiva freudiana, baseadas nos estudos de Sigmund Freud (2010; 2011; 2017).
No capítulo dois descrevemos as origens e impactos das narrativas dos contos de fadas para a
sociedade, com as contribuições teóricas de Patrícia B. Alberti (2006), Bruno Bettleheim
(2016), Diana L. Corso e Mário Corso (2006), além de discutir as análises realizadas, em que
exploramos a história do livro corpus da pesquisa embasado teoricamente nos autores
discutidos ao longo do capítulo um. Perante o exposto nesta seção introdutória, convidamos
você a adentrar ao mundo encantado.
Welcome...
FIGURA 2. Rainha Má e o desejo pelo coração de Branca de Neve 4
4
https://disneyprincesas.fandom.com/pt-br/wiki/Rainha_M%C3%A1
CAPÍTULO 1
LITERATURA PELAS LENTES DA CRÍTICA PSICANALÍTICA
Este trabalho investiga uma personagem dos contos de fadas pelas lentes da Crítica
Literária porque esta tem a função de enxergar além do que está presente na narrativa, não
somente em obras literárias, mas também em produções artísticas, que problematizam
questões sociais e relações humanas (OLIVEIRA, 2020). Um crítico analisa produções
literárias e artísticas de forma extrínseca ao texto e é capaz de perceber o que está
acontecendo nas entrelinhas. Nesse sentido, a figura que abre esta seção, analisada pelas
lentes da Crítica Literária, permite a compreensão de determinados elementos, a exemplo
temos o pequeno porta-joias nas mãos da Rainha.
Na animação da Disney Snow White and the Seven Dwarfs (1937), a personagem
Rainha Má sente inveja da beleza da enteada, o que a leva a ordenar que o caçador do castelo
mate Branca de Neve e traga seu coração dentro de um porta-joias para provar a morte da bela
princesa. O porta-joias em questão é um objeto que simboliza força à personagem, força para
torná-la a mulher mais linda e poderosa de todo o reino (BETTELHEIM, 2016). Portanto,
nessa perspectiva, o porta-joias não é somente um objeto qualquer, mas sim um símbolo
importante na narrativa. A partir desse ponto, este capítulo se destinada às discussões sobre os
pressupostos teóricos da Crítica Psicanalítica, com ênfase na perspectiva freudiana.
Para iniciar uma discussão acerca do conceito e função da Crítica Literária, precisamos
entender o que vem a ser Literatura. De acordo com Silvana Oliveira (2020, p. 19), “É
importante entender a literatura como elemento da cultura e, assim, como parte da produção
humana”. Em outras palavras, o contexto social, político e cultural influencia diretamente nos
aspectos que devem ser considerados no momento de definir se um texto é ou não literário.
Por essa razão, o conceito de Literatura vem sofrendo mudanças ao longo do tempo
(OLIVEIRA, 2020).
A Literatura, enquanto arte, surgiu na metade do século XVIII, período em que o texto
literário era destinado à classe alta, considerada um público de leitores cultos e interessados
em prosperar as ideias contidas nas obras literárias. Ao longo do século XIX, a Literatura foi
propagada por diferentes lugares e públicos, perdendo seu status de cultura elitista. A partir
desse desenvolvimento, as pessoas de diferentes classes sociais começaram a consumir os
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textos literários. Vale ressaltar que, numa perspectiva eurocêntrica, até o século XVII, a
Literatura era utilizada como forma de alfabetizações e não se preocupava com a arte nas suas
produções, (ZAPPONE; WIELEWICKI, 2009).
Para entendermos os conceitos de Literatura, foi criado um campo que propõe
discussões acerca de quais elementos caracterizam um texto literário e, consequentemente,
atribui os seus conceitos e funções, denominada de Teoria Literária (OLIVEIRA, 2020).
Conforme Silvana Oliveira (2020), atualmente a Crítica Literária propõe uma perspectiva
diferente da Teoria Literária, pois interpreta não somente obras literárias, mas também
diversas produções artísticas. Essa forma de interpretação auxilia nas questões sociais e nas
relações humanas. No entanto, de acordo com Roberto A. Souza (2011, p. 34), a Crítica
Literária, ou ‘Crítica Acadêmica’, passou por mudanças nos quesitos conceitos e funções,
assim como a Literatura,
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“A morte do autor” (TYSON, 2006, p. 2, tradução nossa).
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O segundo teórico que se destacou propondo uma releitura de Freud foi o psicanalista
francês Jacques Lacan (SANTOS, 2019). Lacan baseia seu conceito de inconsciente na
linguagem, ou seja, sem a linguagem, o inconsciente é algo vazio. A teoria lacaniana tem três
conceitos, são eles: o imaginário, que seria a interpretação do ser humano sobre o que é ideal
para si e ocorre após prévio contato com a forma ideal; o simbólico, que define como nossa
personalidade se comporta frente ao outro por meio da linguagem; e o real, algo impossível de
ser processado, não atua como a realidade. Ademais, o indivíduo é constituído pela sua
relação com os outros (BRUCE, 2018).
Diante disso, faremos a relação entre Psicanálise e Literatura para entendermos como a
Crítica Psicanalítica se aplica. A Crítica Psicanalítica surgiu no século XX com o intuito de
interpretar os significados dos escritos literários, considerando os conceitos da Psicanálise
(CUDDON, 2013). Uma vez que os estudos de Freud enveredaram pelo caminho da crítica
como forma de investigar o inconsciente, estudiosos perceberam que os conceitos propostos
pelo médico se aplicariam ao estudo da Crítica Literária, pois esta tem por objeto de estudo
não somente o texto, mas também o externo a ele (RODRIGUES, 2004).
Nessa esteira, ao comparar o livro A Interpretação dos Sonhos, de Freud e o trabalho
da Crítica Literária, Odiombar Rodrigues (2004, p. 61) afirma que em ambos “[...] pode-se
identificar, em termos de conteúdos, os que são latentes, que só se revelam através de uma
análise e os que são manifestos, que se expressam como presenças na narrativa”. Em outras
palavras, a escrita de uma obra envolve a subjetividade e os possíveis traumas que o autor
evita confrontar devido ao contexto social em que se encontra. Por esse motivo, o escritor
estampa seus sentimentos em suas obras de forma que o leitor não os perceba. Embora
tenhamos discutido anteriormente que a Crítica Literária não tem como principal objetivo a
investigação do autor, consideramos que analisar uma narrativa sem problematizar os
elementos autorais não seria uma investigação completa. Por essa razão, a análise do contexto
histórico e social é basilar para a crítico literário.
No tocante ao papel do leitor, Odiombar Rodrigues (2004) afirma que há uma
subjetividade na recepção de um texto literário, pois a relação entre os elementos contidos na
narrativa e o leitor é individual, visto que a experiência, os sentimentos e o conhecimento do
leitor direcionarão sua interpretação. Nesse sentido, o trabalho do crítico não está livre dessa
interferência, o que diferencia o papel do crítico literário e do psicanalista. Em outras
palavras, enquanto o crítico literário analisa elementos ou eventos que estão finalizados, sem
ter a oportunidade de modificar o trabalho final, o psicanalista utiliza suas análises, diante de
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Sigmund Freud6, precursor considerado pai da Psicanálise, formulou uma teoria que
estruturou uma nova ciência a fim de investigar a mente humana e suas implicações
(EAGLETON, 1996). No tocante às contribuições para a Psicologia, Freud foi o primeiro
estudioso a alertar para a existência do inconsciente, bem como escrever ensaios clínicos em
que discutia assuntos incomuns e polêmicos para a sociedade europeia do início do século
XX, a saber: sonhos e seus significados; alma humana; distúrbios mentais; sexualidade
infantil; entre outros (MELO JÚNIOR, 2017).
Em virtude da temática escolhida para esta pesquisa e a fim de alcançar os objetivos
formulados, escolhemos a Psicanálise Freudiana para fundamentarmos nossas discussões e
interpretações acerca do corpus da pesquisa. Por essa razão, a partir desse ponto, discutiremos
as divisões do aparelho psíquico e os conceitos específicos sobre pulsões, objeto e perda do
objeto, seus processos vivenciados pela psique humana, à luz dos pressupostos freudianos.
Ao passo que avançava em seus estudos, Freud descreveu a estrutura topográfica do
aparelho psíquico para uma melhor interpretação da psique. O médico dividiu a estrutura
psíquica em partes que evidenciavam uma dependência entre si, mas, que para estudá-las com
precisão, essa divisão seria necessária (FREUD, 2011). Diante disso, a primeira premissa da
Psicanálise é resultado da percepção de Freud acerca do aparelho psíquico, denominada de
primeira tópica, que dividiu a estrutura psíquica em consciente, pré-consciente e inconsciente
(FREUD, 2011).
6
Médico austríaco, nascido em 06 de maio de 1856, em Morávia, atual região de Příbor, República Checa
(SKOWRONSKY, 2016).
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Com relação ao consciente, este é a parte da mente humana que acessamos de forma
intencional e funciona conforme as regras sociais. Para a Psicanálise, a consciência não é a
essência da psique, porém é parte basilar nessa estruturação. O consciente proporciona o
conhecimento superficial da psique humana, pois ela se configura como a camada mais
externa da estrutura da mente humana (FREUD, 2011). Por essa razão, é o estado de
consciência que repreende o Eu e até mesmo censura os sonhos, pois é a parte consciente da
psique que dorme e ordena suas ações voltadas para o mundo exterior (FREUD, 2011).
Ademais, o consciente é responsável por externar desejos, sentimentos e informações
que estão armazenadas na camada mais profunda da psique, o Inconsciente. Por essa razão,
para Sigmund Freud (2011), o estado de consciência não é um evento duradouro, mas sim
dinâmico em que hora está atuando, hora está em estado de latência. A área designada para
abrigar os elementos latentes, que podem emergir para a camada consciente da psique, é
denominada de pré-consciente (FREUD, 2011).
Nessa esteira, pré-consciente é a camada da estrutura psíquica que armazena
informações facilmente acessadas pela consciência, funcionando como um filtro entre
consciente e inconsciente. Vale ressaltar que esta esfera mantém uma conexão próxima com a
consciência, é nela que estão memórias e informações que precisam ser acessadas com certa
facilidade. Por meio de estímulos recebidos pelo consciente esses elementos se direcionam à
consciência e são sentidos como se nunca houvessem saído daquele lugar (FREUD, 2011).
Como exemplo desse evento, podemos citar episódios em que um indivíduo sofre a perda de
um objeto amado, qualquer que seja a memória que venha à tona no consciente é sentido
como se estivesse sempre alojado naquela camada.
O consciente e o pré-consciente mantêm uma relação de intercâmbio, aquele é
responsável pelas percepções externas e internas, enquanto este é o abrigo das memórias que
um dia já foram percepções. Em contrapartida, a camada mais profunda e complexa da
estrutura psíquica é denominada de inconsciente, parte da mente humana impossível de ser
acessada pela consciência voluntariamente, onde estão presentes desejos e pulsões. Para
Freud, “[...] adquirimos nosso conceito de inconsciente a partir da teoria da repressão”
(FREUD, 2011, p. 13). Em outras palavras, o que é reprimido no inconsciente sofre
resistência para permanecer naquele ambiente psíquico, por essa razão, para a Psicanálise o
reprimido é a essência basilar do inconsciente (FREUD, 2011).
Contudo, para a Psicanálise a divisão entre pré-consciente e inconsciente é puramente
descritiva, as duas camadas fazem parte deste, a primeira sendo a parte em que os elementos
estão em estado de latência e o inconsciente o lugar em que os elementos estão reprimidos.
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Por outro lado, quando pensamos no aparelho psíquico como algo dinâmico o inconsciente é
apenas um, não havendo a categorização dos dois níveis mais profundos da psique humana
(FREUD, 2011).
Entretanto, mesmo com a primeira tópica elaborada, Freud não conseguia explicar
certos casos de fenômenos psíquicos clínicos. Investigando como cada paciente reagia aos
estímulos práticos, Freud estabeleceu outra divisão do aparelho psíquico para completar a
divisão proposta inicialmente, conhecida como segunda tópica de Freud. De acordo com
Freud existem três instâncias que formam a psique humana, são elas o Ego, Superego7 e Id
(FREUD, 2011).
Com relação ao Ego, este é a instância mais consciente da psique, é ele que aparece
externamente e nos apresenta a percepção do mundo real. Para a Psicanálise freudiana, o Ego
não somente é corporal, como também é racional e se projeta na superfície da estrutura
psíquica. O Ego se manifesta também no pré-consciente e por essa razão, pode ser percebido
no inconsciente (FREUD, 2011).
Outra razão para que o Ego seja motivo de atenção para a Psicanálise é seu impacto
nas sensações superficiais. Em outras palavras, qualquer que seja o infortúnio que o individuo
esteja sofrendo, a porta de entrada para mente humana é o Ego, ele sofre o primeiro impacto,
as primeiras dores físicas e mentais. Como exemplo podemos citar situações em que um
objeto é substituído pelo próprio Ego, este podendo vir a tornar-se o objeto substituto,
processo que Freud denominou de identificação objetal do Eu, o que poderia resultar em
quadros patológicos (FREUD, 2011).
Nesse sentido, o elemento intermediário da segunda tópica de Freud é o Superego,
localizado no pré-consciente e conhecido como a idealização do Ego, funciona como
moderador ou agente que rege o comportamento do Ego de acordo com as normas e regras
morais aceitas socialmente. Outrossim, o Superego atua na preservação do ser em eventos em
que o Ego tentou ir na contramão dos julgamentos do Superego (FREUD, 2011).
Podemos citar como exemplo da ação do Superego frente ao comportamento do Ego,
com a estratégia discutida por Bruno Bettleheim (2016), a relação mãe boa versus madrasta
malvada em que para preservar a imagem da mãe como pura e boa, cria-se uma versão má
dessa mãe e a condiciona ao local de madrasta, poderíamos presumir que esse
condicionamento foi obra do Superego repreendendo o Ego e, assim, o proibindo de odiar a
7
Na edição utilizada como referência bibliográfica o tradutor denomina Eu e Super-eu. Contudo, para entrar em
acordo com os autores, de Crítica Literária, utilizados como referenciais teóricos para esse trabalho, acreditamos
que as terminações Ego, Superego e ID sejam mais adequadas para nossas discussões.
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mãe porque pelas convenções morais da sociedade isso é visto como errado e precisa ser
impedido.
O inconsciente abriga o elemento mais profundo da segunda tópica freudiana, o Id,
comportando os desejos proibidos e os sentimentos destrutivos, essa instância é impedida de
se manifestar socialmente pela proibição do Superego (FREUD, 2011). Ao contrário do Ego,
que expressa razão, o Id está relacionado aos instintos e paixões, bem como sofre represália
do Ego influenciado pelo Superego, que o impede de se destacar no meio exterior da estrutura
psíquica humana. Para Freud (2011, p. 23), “Assim como o cavaleiro, a fim de não se separar
do cavalo, muitas vezes tem de conduzi-lo onde ele quer ir, também o Eu costuma transformar
em ato a vontade do Id, como se ela fosse a sua própria”, pois os dois elementos fazem parte
de uma única estrutura que foi dividida na Psicanálise com o intuito de compreender a mente
humana.
Vale ressaltar que para a estrutura psíquica funcionar em ordem é necessário que haja
um impulso, seja interior ou exterior, este mencionado acima como qualquer elemento que
seja de conhecimento prévio do individuo. Quanto aos estímulos internos ou pulsões, este
trabalho se debruça em seu conceito e funções a seguir.
Conforme a Psicanálise, pulsões são estímulos necessários para que o anímico obtenha
satisfação, exigindo trabalho e gasto de energia para que essa situação seja benéfica para o
psíquico. Em outras palavras, os estímulos são considerados forças constantes originadas do
interior do próprio indivíduo. Por essa razão, o ser humano não consegue fugir de suas
pulsões porque elas atuam pela necessidade de satisfação psíquica, essa dificuldade de fuga
que a psique apresenta para lutar contra as pulsões, Freud (2017, p. 31) classifica como “[...]
inexpugnabilidade pelas ações de fuga”, ou seja, algo difícil de conquistar.
Sigmund Freud estabelece quatro elementos que são associados ao conceito de pulsão,
para que o sistema psíquico seja analisado com mais precisão, a saber: pressão, fonte, meta e
objeto. Nesse sentido, o primeiro dos elementos pulsionais, o termo pressão, trata-se de um
fator que age na parte motora da pulsão. Em outras palavras, pelo excesso de energia que a
pulsão precisa gastar para que o anímico alcance a satisfação, a pressão representa a força
dessa exigência que a pulsão ordena para o psíquico (FREUD, 2017). Outro elemento
pulsional utilizado pelas pulsões, fonte, representa o processo somático que o estímulo
representa nos órgãos alvos dos estímulos internos. Fundamental ressaltar que a fonte não é
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um elemento de interesse da Psicanálise, sendo conhecida apenas pela sua relação com o
elemento meta (FREUD, 2017).
No tocante ao elemento meta, este está ligado à satisfação, sendo definido como o
objetivo principal das pulsões. Segundo Freud (2017), pode ocorrer eventos em que diferentes
metas estão combinadas para serem atingidas, ou ainda, casos em que no decorrer da pulsão, a
meta é substituída. Isso é observado quando pessoas enfrentam o processo da perda de um
ente querido, as pulsões atuam ali para que a perda seja aceita, porém no processo pulsional a
meta pode ser substituída quando outro objeto é colocado no lugar do que foi perdido.
Definiremos este processo na subseção seguinte, por hora continuaremos nossa discussão
sobre pulsões e seus destinos.
Em seu ensaio “Pulsões e seus destinos”, Freud (2017, p. 35) não pensava ser possível
a criação de uma classificação para as diferentes formas de pulsões, “Tenho sérias dúvidas
quanto a se será possível obter indícios decisivos para a divisão e a classificação das pulsões a
partir da elaboração do material psicológico”. Contudo em seus textos escritos após este
pensamento, Freud estabeleceu uma classificação dos tipos de pulsões e determinou que havia
duas formas de os estímulos internos alcançarem satisfação trabalhando para atingir suas
metas, as pulsões de vida e as pulsões de morte (FREUD, 2011).
No tocante às pulsões de vida, estas estão relacionadas ao prazer e à preservação da
vida. Por sua vez, as pulsões de morte estão ligadas à destruição, desprazer e sadismo. Para
Freud (2011), a vida é o resultado do conflito entre as duas formas de pulsões, enquanto a
morte é a vitória da pulsão de morte. Nessa esteira, um conceito comumente relacionado aos
embates entre os tipos de pulsões é a ambivalência, em que há a presença de dois instintos,
que para a Psicanálise se assemelham ao amor e ao ódio (FREUD, 2017).
Com relação ao sentimento de amor, este é originado da habilidade do Ego em atingir
a satisfação e é caracterizado como autoerótico na perspectiva freudiana, observados em casos
de narcisismo, além de estar presente na fase de organização genital em que o amor vira o
oposto de ódio. Por outro lado, o sentimento de ódio, segundo Freud, é mais antigo que o
sentimento de amor, bem como tem caráter erótico, sendo uma reação inicial do Ego com o
objeto vindo de seu exterior, aquele momento em que a fase narcísica termina ou se encontra
em estado de latência (FREUD, 2017).
Embora no texto em que discute esses termos Freud ainda não tinha realizado a
divisão entre as pulsões, o conceito de ambivalência se aplica a essas duas vias de pulsões,
pois ambivalência é o direcionamento do amor e ódio concomitantemente a um único objeto.
Em outras palavras, os instintos relacionados à vida encontrados nas pulsões de vida se
28
mesclam com os instintos de destruição presentes nas pulsões de morte (FREUD, 2017). Para
entendermos como a ambivalência atua e como a personagem foco da investigação deste
trabalho sente, pensa e age diante da perda, precisamos definir os conceitos sobre objeto para
a Psicanálise Freudiana, dessa forma, a seguir nos propomos a discutir os pressupostos
freudianos acerca do que vem a ser objeto e como sua perda é percebida pela psique humana.
Sigmund Freud não destinou um texto específico para discutir os conceitos de objeto
para a Psicanálise, porém ao longo de seus textos, referenciados neste trabalho, Freud
certifica-se de definir as relações entre objeto e suas teorias (COMARU, 2016). Nessa
perspectiva, na linguagem psicanalítica, o objeto pode ser um ser concreto ou abstrato, algo
real ou sentimentos que podem refletir nos sonhos, a depender de como o indivíduo se
relaciona com esse objeto e como isso interfere nas relações desse indivíduo consigo mesmo e
com o social (FREUD, 2010). Para a Psicanálise, o objeto pode ser interpretado de acordo
com o contexto em que é utilizado. Freud utiliza expressões para designar funções do objeto
acordando com os significados que o objeto apresenta para o indivíduo.
No texto “Pulsões e seus destinos”, Freud (2017) define dois tipos de objetos, a saber:
objeto de amor e objeto pulsional. O objeto de amor trata-se de uma figura física ou até
mesmo um ideal, o que interessa é a relação de amor e/ou ódio que está presente entre o
indivíduo e o objeto. Por sua vez, o objeto pulsional é observado quando as pulsões atingem
sua meta, nesse caso o objeto pode ser algo exterior ou interior. Freud (2017) cita a relação
entre o bebê e o seio materno para exemplificar esse último tipo de objeto. De acordo com
teórico, o bebê é apresentado ao ato de se alimentar pelo seio da mãe, e após tentativas de
fazê-lo, o bebê atinge satisfação por consegui-lo, quando cresce e é obrigado a deixar sua
fonte de alimentação, a criança sente a dor do desmame (FREUD, 2017).
Nesse sentido, o objeto funciona como um canal que a pulsão percorre para atingir
sua meta. Freud (2017) afirma que um mesmo objeto pode ser utilizado para atingir
satisfações de pulsões diferentes, o chamado entrecruzamento pulsional, em que há uma
ligação íntima entre objeto e pulsões, também conhecida como fixação do objeto. Esse quadro
resulta no conceito, já discutido na subseção anterior, de ambivalência. Quando a
ambivalência está presente é porque diferentes pulsões têm como meta a satisfação de
diferentes modos e, para isso, utilizam o mesmo objeto como canal (FREUD, 2017).
29
Quanto à escolha do objeto, Freud (2011) afirma que não se trata de um evento
consciente e racional, a escolha de um objeto ocorre na esfera do inconsciente. Por essa razão,
o objeto pode causar uma identificação que é a caracterizada pela relação entre o Ego, na
instância consciente e o próprio objeto, no inconsciente. Essa identificação é comum no
processo de superação da perda do objeto. Nesse sentido, a Psicanálise trabalha com a ideia de
ilusão quando o assunto é felicidade, na perspectiva psicanalítica, objeto e pulsão se
relacionam e formam a felicidade que nada mais é que uma meta pulsional (MELO JUNIOR,
2017). Destarte, se houver perda do objeto as tentativas realizadas pelo indivíduo para superá-
la serão em vão, pois serão ilusórias (MELO JUNIOR, 2017).
Diante da noção de objeto, Freud investigava como as pessoas agiam frente à perda
dele; este trabalho analisa a perda do objeto na perspectiva de amor, visto que a personagem,
foco de nossas análises, sofre perdas físicas e de ideais, objetos de amor. Diante disso,
segundo Freud (2010), após a perda do objeto, o sujeito é forçado a desligar a libido que
nutria pelo objeto perdido em um evento que inicia pela pressão das pulsões, fazendo com que
o individuo que sofreu a perda entre numa tristeza profunda. Nesse sentido, dois processos
podem aparecer após a pulsão ser iniciada, a saber: luto ou melancolia (FREUD, 2010).
No tocante ao processo do luto, o individuo o vive no âmbito consciente, para isso o
sujeito enfrenta fases que atuam com o objetivo de superação. Nesse processo, o enlutado
nega a perda, no primeiro momento, e tenta a qualquer custo manter o objeto perdido presente
em meio a sonhos e pensamentos. Por essa razão, em certos casos o enlutado se afasta de
outros objetos e seu Ego responde a isso, confrontando seus próprios desejos pelo mundo
externo. Nesse processo psíquico, o indivíduo não aceita essa renúncia ao objeto perdido, e
por isso a duração do luto é subjetiva, pois o que se espera é que o enlutado consiga sair do
estado de luto, livre da libido pelo que perdeu, assim como voltar à realidade (FREUD, 2010).
O processo do luto não é visto pela Psicanálise como patologia, porque tecnicamente é
superado, então não é recomendável interferir clinicamente, porém é necessário que se
acompanhe de perto o indivíduo enlutado. Freud (2010) descreve o processo de luto da
seguinte forma: primeiramente, o objeto é perdido, ou seja, não existe mais. Após a perda, a
libido é forçada a ser desligada do objeto que se foi. Uma vez que Freud investigava a psique
humana, ele percebeu que a oposição a esse desligamento era frequentemente observada, pois
o ser humano não gosta de abandonar libido. Um terceiro momento é a volta à normalidade,
que é diferente em cada sujeito, quando muito o objeto pode se prolongar na psique, o
sofrimento da perda cresce e logo após o enlutado desliga a libido e está renovado e livre do
processo da perda (FREUD, 2010).
30
Com relação à melancolia, este complexo, como é chamado por Freud (2010), pode
apresentar diferentes quadros clínicos, portanto, apresentando caráter variável. Ao contrário
do luto, o melancólico sente a perda no inconsciente, isso porque para que ocorra a melancolia
o objeto não necessariamente precisa ter morrido, pode ser a perda de um ideal ou até mesmo
não saber o que realmente se perdeu, em outras palavras, pode ter havido ou não perda física.
Para Freud (2010, p. 130) “No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o
próprio Eu”, isso porque, na melancolia há uma característica ausente no luto, a baixa
autoestima ou empobrecimento do Ego, em que o melancólico sofre com a retenção da libido
em seu interior.
Nesse sentido, o melancólico não renuncia ao objeto perdido, resultando em um
conflito entre os sentimentos de amor e ódio. O primeiro pelo objeto perdido, enquanto o ódio
se transfere para o próprio Ego. Por essa razão, a melancolia é considerada patológica, pois
este quadro de ambivalência entre Ego e ele mesmo pode ser uma predisposição ao suicídio
(FREUD, 2010). Ademais, o melancólico não sente vergonha de se depreciar e essa
autodepreciação pode ser indícios de internalização de um desafeto ou algo que o desagradava
presente no objeto perdido.
Diante do exposto neste capítulo de discussões teóricas, dispomos de fundamentos da
Crítica Literária, bem como da Crítica Psicanalítica na perspectiva dos conceitos freudianos.
O capítulo seguinte apresenta as análises e discussões acerca dos trechos do corpus dessa
pesquisa, a fim de investigar as formas de sentir, pensar e agir da personagem Rainha Má,
após sofrer sucessivas perdas. Para isso nos apropriamos dos pressupostos freudianos sobre a
perda do objeto amado, direcionando-os para uma personagem literária.
FIGURA 3. Rainha Má e o sofrimento da perda8
8
Fonte: https://pin.it/6oc5DmD
CAPÍTULO 2
A MAIS BELA DE TODAS: A história da Rainha Má
Desde suas origens, antes dos modelos escritos no século XVII, os contos de fadas
estão presentes no imaginário das pessoas ao redor do mundo. As histórias dos contos de
fadas que conhecemos atualmente passaram por mudanças para que pudessem se adaptar ao
modelo de sociedade vigente em cada época, pois são fragmentos de seus contextos sociais e
históricos. Diana L. Corso e Mário Corso (2006, p. 16) discutem os motivos para essas
adaptações, e afirmam que “[...] os contadores de histórias do século XVIII, na França,
retratavam um mundo de brutalidade nua e crua”. Em outras palavras, os modelos de contos
de fadas que hoje fazem parte do repertório cultural de crianças e adultos datam do século
XIX, quando os conceitos de família e criança, como conhecemos hoje, foram construídos
socialmente (CORSO; CORSO, 2006).
A ideia de infância que temos hoje nem sempre existiu, sobretudo durante a Idade
Média, momento em que crianças eram consideradas como seres humanos ‘inúteis’, por não
terem as mesmas habilidades laborais dos adultos (CORSO; CORSO, 2006). Além de não
33
usufruírem de direitos civis, as crianças não tinham identidades sociais, em outras palavras,
eram consideradas pessoas insignificantes, o que lhes causavam inúmeros distúrbios
psicológicos (OLIVEIRA, 2010).
Conforme Nelly N. Coelho (2012), os contos de fadas têm como fontes primárias as
histórias greco-romanas e céltico-bretãs. Além disso, eram narrados oralmente, não seguindo
regras e nem limitações. As narrativas desse estilo não tinham como público-alvo as crianças,
mas sim adultos, que começaram a ouvir as narrativas a partir do século XVII contadas por
franceses, que viajavam a França para espalhar tais histórias (COELHO, 2012). Vale ressaltar
que a cada vez que eram contadas as narrativas se modificavam, pois quem as contava
relacionava os eventos ocorridos em suas tramas com o local em que estavam sendo ouvidas,
principalmente devido à influência que a religião católica exercia naquele período (COELHO,
2012) Um século mais tarde, os contos de fadas começaram a ser direcionados e consumidos
por crianças, graças a autores que adaptavam histórias narradas por aldeões no interior da
Europa (CORSO; CORSO, 2006).
Charles Perrault foi um dos primeiros escritores a coletar narrativas orais e adaptá-las
para que elas fossem bem recebidas pela corte do então rei da França, Luís XIV. Perrault
coletava os contos narrados por aldeões e adequava-os para narrativas leves com o intuito de
entreter os nobres franceses. Por essa razão, a História da Literatura afirma que a primeira
coletânea de contos de fadas destinada às crianças foi publica no século XVII, por Charles
Perrault. Nessa coletânea contém contos conhecidos que passaram pelo processo de
adaptação, mencionado anteriormente, “[é o caso de] A Bela Adormecida do Bosque;
Chapeuzinho Vermelho; O Barba Azul; O Gato de Botas; As Fadas; Cinderela [...]”, contos
que marcaram gerações e estão presentes até hoje, tanto na mídia e no entretenimento, quanto
no imaginário coletivo (COELHO, 2012, p. 27).
Conforme Patrícia B. Alberti (2014), os contos de fadas narrados oralmente
começaram a ser transcritos, no final do século XVIII, por Jacob e Wilhelm Grimm, dois
irmãos que viajavam a Alemanha em busca de coletar narrativas tradicionais que serviriam
como dados para uma pesquisa na área de Linguística voltada para a Língua Alemã. Os
irmãos Grimm preservaram a maior parte das narrativas folclóricas, pois estas serviriam não
apenas como entretenimento, mas também como fonte de suas pesquisas. Com isso, os irmãos
Grimm iniciaram uma carreira de sucesso ao compilarem diferentes contos e darem um toque
de magia a essas histórias, bem como expandi-los pela Europa e Américas (COELHO, 2012).
Nessa esteira, a peregrinação dos irmãos Grimm pelo interior da Alemanha, coletando
narrativas dos aldeões, consolidou o que conhecemos como Literatura Infantil, nascida com
34
censurou ainda mais as narrativas tradicionais originadas no século XVII (CORSO; CORSO,
2006).
Nesse sentido, Bruno Bettleheim (2016) afirma que, quando eram apenas narrados
oralmente, os contos de fadas não só sofriam transformações, como também eram fundidos
com outras narrativas com o intuito de atender a sociedade da época. Diana L. Corso e Mário
Corso (2006) concordam com o autor sobre sua perspectiva acerca das adaptações dessas
histórias, porém acreditam que, mesmo após a escrita, perpetuação e fixação no imaginário do
público, os contos de fadas ainda sofrem e irão sofrer adaptações e mudanças a depender de
qual contexto social e histórico serão apresentadas. Por essa razão, explorar os impactos que
essas narrativas causaram nas sociedades em que foram consumidas é de suma importância
para entendermos as relações entre Contos de Fadas e Crítica Literária.
A hipótese de que os contos de fadas foram criados para narrar histórias sobre a psique
perturbada de crianças surgiu ainda no século XIX e foi sustentada por Bruno Bettelheim9
(2016, p. 7) em seu famoso livro A Psicanálise dos Contos de Fadas,
Destarte, os contos de fadas funcionam como um mecanismo para que, não somente
crianças, mas também adultos possam entrar em contato com temas necessários e pertinentes,
encontrados tanto nos contos de fadas, quanto na vida real. Elementos como mortes, perdas e
envelhecimento são encarados de forma diferente da realidade; em outras palavras, os seres
humanos conseguem lidar, de forma mais fácil, com seus problemas por meio da literatura,
sendo os contos de fadas um item valioso nesse processo (BETTELHEIM, 2016).
Nessa perspectiva, os contos de fadas proporcionam que crianças desenvolvam seu
caráter, pois suas histórias nada mais são do que reflexos do mundo interior das pessoas
(BETELLHEIM, 2016). O processo de exteriorização, defendido por Bruno Bettleheim
9
O psicanalista Bruno Bettelheim, em seu livro A Fortaleza Vazia, publicada em 1967, apoiava o termo “mãe
geladeira”, discutida pela primeira vez por Leo Kanner em 1943. Esse termo culpava as mães pela condição de
autismo em seus filhos. Kanner se arrependeu do termo e voltou atrás em seus estudos e repudiou seus antigos
resultados. No entanto, Bettelheim sustentou a ideia e foi desacreditado mundialmente nos estudos sobre autismo
(LOPES, 2021).
36
Serena Valentino é uma escritora estadunidense que iniciou sua carreira escrevendo
histórias fantásticas em quadrinhos. A sua forma de criar narrativas mágicas chamou atenção
dos Estúdios Disney que fez uma proposta para a autora: escrever releituras que contassem as
histórias dos vilões dos contos de fadas antes das histórias que conhecemos pelas animações
adaptadas pelo grupo cinematográfico. A autora então iniciou sua escrita de tramas no estilo
prequel10 de contar narrativas. Valentino escreveu uma coletânea de livros que contava as
histórias dos vilões antes de se tornarem os antagonistas das animações da Disney
(UNIVERSO DOS LIVROS, 2019). Os livros são conectados por três irmãs esquisitas, que
estão presentes manipulando as histórias para transformar a vida dos então protagonistas em
uma vida cheia de tristeza e dor, o que os torna amargos, resultando na vilania.
Por ser um prequel da animação fílmica da Disney, a capa do livro The Fairest of All:
a tale of the Wicked Queen apresenta a ilustração da personagem Rainha Má, protagonista da
narrativa de Serena Valentino. A caracterização desta personagem é idêntica à mesma Rainha
Má do filme Snow White and the Seven Dwarfs, de 1937, como ilustrado na figura a seguir.
10
“[...] Prequel consiste numa narrativa centrada no objetivo de retratar histórias e ou narrativas anteriores aos
acontecimentos mostrados no original, servindo assim como expansão de mitologia, que muitas vezes não
depende dos personagens mostrados no original” (FILHO; MATOS, 2019, p. 5).
38
FIGURA 4. Capa e Ficha Catalográfica de The Fairest of All: a tale of the Wicked Queen
O livro, ilustrado na figura 4, The fairest of all: a tale of the Wicked Queen (2009) foi
o primeiro livro da saga de vilões escrito por Valentino (UNIVERSO DOS LIVROS, 2019).
Nele a autora narra11 a história da Rainha, madrasta da Branca de Neve, antes do filme
produzido pela Disney. Na narrativa não sabemos o nome da personagem, assim como no
filme da Disney. Logo no início do livro ficamos sabendo que a personagem é órfã e, desde
muito pequena, convive apenas com seu pai que a rejeita e não enxerga o quão bela e bondosa
é a personagem, pois ele parece culpá-la pela morte da esposa. Após algumas páginas, a
personagem perde o seu pai, um artesão de espelhos.
Embora a relação entre pai e filha não fosse agradável, o pai da personagem era a
única família que ela tinha, e por isso ela se sente solitária. Logo após a perda do pai, ela
conhece o Rei, que se apaixona de imediato. Pouco tempo depois, a mulher casa com o Rei e
se torna a Rainha, madrasta de Branca de Neve. Dias de muito amor e felicidade se passam
até que a Rainha perde seu marido, que morre em uma batalha. Após essa perda, a Rainha
amargura sentimentos que a fazem duvidar de sua sanidade e projeta sua infelicidade na
enteada, Branca de Neve.
11
A sinopse do livro The Fairest of All: a tale of the Wicked Queen é de nossa autoria.
39
O livro contém vinte e três capítulos e um epílogo. O último capítulo narra o final do
filme Snow White and the Seven Dwarfs, de 1937, produzido pelos Estúdios Disney, enquanto
o epílogo narra o que possivelmente teria ocorrido após o casamento de Branca com o
príncipe encantado. Em poucas páginas, Valentino narra o encontro entre Branca e a Rainha
após a morte desta no penhasco. A próxima seção é destinada às análises e discussões dos
trechos em que a personagem Rainha apresenta características freudianas acerca da perda do
objeto amado. Por essa razão, nossas análises são fundamentadas nos conceitos freudianos de
perda do objeto amado.
O reino da Rainha está em guerra contra reinos vizinhos, o que faz seu marido, o Rei,
ir para o campo de batalha. Embora a Rainha tentasse impedir seu marido, principalmente
utilizando seus sentimentos, de prosseguir com o plano de lutar na guerra, o Rei acreditava
que, para continuar sendo honrado e respeitado em seu reino, ele precisava mostrar coragem
para seus súditos, acompanhando seu exército às batalhas. Longos dias se passam sem a
presença do Rei no castelo, a Rainha já não aguenta e demostra sua tristeza pela partida de seu
amado,
No trecho acima ocorre o que Freud (2010) chama de perda de um ideal, a personagem
havia realizado o sonho de ser amada e elogiada pelo Rei, que estava todos os dias a admirá-la
e provando seu amor. Quando falamos da perda de um ideal à luz freudiana de perda de
objetos, estamos presumindo que o objeto não foi realmente perdido, “[Na] melancolia [...] o
objeto não morreu verdadeiramente, foi perdido como objeto amoroso” (FREUD, 2010, p.
130). Em outras palavras, o Rei não havia morrido de verdade, ele estava distante e isso
provocava tristeza na Rainha, principalmente pelo fato de ele ter escolhido estar naquela
12
Nos dias subsequentes à partida do Rei, a Rainha começou a se sentir mais solitária do que jamais se sentira
desde que chegara ao castelo (VALENTINO, 2009, p. 36, tradução de Jacqueline Valpassos).
40
posição e distante dela. Portanto, desde antes da morte de seu marido, a Rainha já
demonstrava características melancólicas postuladas por Freud (2010).
Desde a partida do Rei para a guerra, a Rainha não conseguia ser feliz, o resquício de
felicidade que havia nela se voltou para a esperança do retorno do marido para o castelo. Uma
noite em que a Rainha está conversando com seu espelho, Verona, dama de companhia da
Rainha, chega ao seu quarto com a notícia de que o Rei havia sido morto em batalha. A
princípio a Rainha desacredita no que acabara de ouvir, porém, ao se dar conta da morte do
marido, entra em um estado de sofrimento, em que a única coisa que ela sente é uma dor
profunda seguida de tristeza. No trecho seguinte, a Rainha percebe que o Rei não voltará para
o castelo e que isso implica na necessidade de aprender a conviver com essa nova realidade.
Considerando que a perda do objeto amado pode ser sentida tanto no consciente
quanto no inconsciente, o teste de realidade prova para o indivíduo que o objeto já não existe
mais e demanda que o sujeito desligue a libido que nutria pelo objeto perdido (FREUD,
2010). O sujeito não atende às expectativas de sua psique e adentra em um processo que
implica grande gasto de energia e tempo, ambos subjetivos (FREUD, 2010). Em outras
palavras, cada indivíduo sente a perda do objeto e prolonga a libido em sua estrutura psíquica
em diferentes níveis de sofrimento e tempo.
Segundo Freud (2010), esse processo tem como pretensão o desligamento da libido
pelo objeto perdido, bem como seu redirecionamento para um objeto substituto. Para Freud
(2010, p. 140), “[a] característica de executar passo a passo o desligamento da libido deve ser
atribuída igualmente ao luto e à melancolia”. Todavia, no processo do luto, após um
determinado período, subjetivo e diferente para cada enlutado, esse desligamento ocorre e o
enlutado consegue compreender e aceitar a perda. O contrário ocorre na melancolia, visto que
o melancólico não renuncia a libido do objeto amado, podendo voltar para si e dar início à
identificação, que será discutido mais adiante nesta seção (FREUD, 2010)
Para a Psicanálise freudiana, o que se espera é que esse desligamento da libido seja
concluído, porém, na história de Serena Valentino, a libido objetal se prolonga nos
13
A dor em seu peito intensificava-se enquanto ela absorvia lentamente a realidade da morte de seu marido.
Morto! (VALENTINO, 2009, p. 69, tradução de Jacqueline Valpassos).
41
She would never see him again, never hear his bright
laugh, never again sit by the fire and watch him play
dragons with Snow (VALENTINO, 2009, p. 69)14.
Conforme Freud (2010, p. 129), isso ocorre porque “[c]ada uma das lembranças e
expectativas em que a libido se achava ligada ao objeto é enfocada e superinvestida, e em
cada uma sucede o desligamento da libido”. Em outros termos, as lembranças dos momentos
em que a Rainha era feliz com o Rei, bem como, sua relação como família aparece em suas
indagações acerca do futuro sem o marido ao seu lado. Ademais, observamos como o
advérbio never se repete ao longo do trecho destacado, e segundo a Psicanálise, a repetição é
a própria melancolia. Vale ressaltar que há a ausência do sujeito ao longo dessas repetições, o
que enfatiza o estado melancólico da personagem.
Ainda sem conseguir sair do processo de desligamento da libido pelo objeto perdido, a
Rainha consegue sentir cheiros, sons e toques de seu amado, como descrito abaixo,
As the days went on, the Queen would feel the King’s hand
in hers as she slept. She sometimes heard his steps upon the
stairs, or his rapping at her chamber door. Occasionally,
she heard a laugh that she thought belonged to him
(VALENTINO, 2009, p. 72).15
14
Ela nunca mais iria vê-lo, nunca mais ouviria sua risada alegre, nunca mais iria sentar-se junto à lareira para
vê-lo brincar de dragão com Branca (VALENTINO, 2009, p. 69, tradução de Jacqueline Valpassos).
15
Com o passar dos dias, a Rainha podia sentir a mão do Rei na dela enquanto dormia. Às vezes, ela ouvia seus
passos na escada, ou a sua batida na porta do quarto. Vez por outra, ouvia uma risada que pensava pertencer a ele
(VALENTINO, 2009, p. 72, tradução de Jacqueline Valpassos).
42
acessá-los facilmente, pois mesmo que o Superego tente filtrar tais resíduos, a psique da
Rainha está em desequilíbrio e entende que não investir energia é prazeroso (FREUD, 2011).
Na passagem seguinte, a Rainha passa a fantasiar com a volta do rei e sua presença no
castelo,
Sometimes she would think she saw the King walking his
customary path back home to her. She would imagine
herself running up to greet him, kissing his face as he
lifted her into the air like a little girl (VALENTINO, 2009, p.
73).16
Na Psicanálise freudiana, a felicidade do sujeito com o objeto perdido pode ser algo
ilusório, e essa ilusão está associada às pulsões, pois estas se relacionam com o objeto e essa
relação causa a ilusão de que ele ainda existe e que nunca se perdeu (MELO JUNIOR, 2017).
Nesse sentido, a Rainha enfrenta um evento semelhante, porém, associado com a perda de
outro objeto amado, ocorrido antes do início do livro: sua mãe,
She would imagine this mother she never knew taking her
into her arms, dancing in circles, the jewels that adorned
both their dresses catching the light while they laughed”
(VALENTINO, 2009, p. 8)17.
Na relação da Rainha e sua mãe há apenas a ilusão, visto que a autora deixa claro que
ambas não conviveram, e a única coisa que a Rainha tem para conhecer fisicamente sua mãe é
um retrato dela em sua parede.
Nessa perspectiva, se porventura, o sujeito desejar se reencontrar com o objeto
perdido, ele enfrentará uma tentativa ilusória de reencontro, isso resulta em fracasso e mais
tristeza pela incapacidade de conviver com o objeto perdido (FREUD, 2011). Nesse caso, a
Rainha investe grande energia para fantasiar com um objeto que ela não conhece (ou não
lembra como era o convívio, pois era muito pequena antes da perda da mãe), as pulsões
auxiliam nesse trabalho como uma forma de preservar a imagem do objeto perdido no mundo
externo, ou seja, no consciente, para que seja sentido pelo próprio Ego (FREUD, 2011).
16
Às vezes, ela pensava ter visto o Rei caminhando com seu trajeto habitual de volta para casa, para ela.
Imaginava-se correndo para saudá-lo, beijando-lhe o rosto enquanto ele a erguia no ar como uma garotinha
(VALENTINO, 2009, p. 73, tradução de Jacqueline Valpassos).
17
Ela imaginou aquela mãe que jamais conhecera tomando-a nos braços, dançando em círculos, as joias que
adornavam ambos os vestidos refletindo a luz, enquanto riam (VALENTINO, 2009, p. 8, tradução de Jacqueline
Valpassos).
43
Todavia, o melancólico não renuncia ao objeto perdido, podendo causar diferentes formas de
dificuldades, como veremos a seguir.
Conforme Freud (2010, p. 130), o melancólico “[n]ão julga que lhe sucedeu uma
mudança, e entende sua autocrítica ao passado”, em outras palavras, no trecho acima,
podemos perceber que a personagem se autodeprecia. Embora ela se angustie com sua
imagem, ela age não, como um julgamento, e sim como uma constatação de sua aparência
física, que dominada pela dor da perda do marido, acrescido da incapacidade de desligar a
libido por ele, proporciona que seu inconsciente reverbere seus medos e traumas. Com relação
aos conflitos da Rainha com sua aparência, o principal responsável pela sua insegurança é seu
próprio pai, que também falece na história. O pai da Rainha a culpava pela morte da mãe e
sempre a insultava e reforçava que ninguém jamais iria amá-la e que ela nunca seria linda
como sua mãe.
No tocante à mãe da Rainha, no início da narrativa, Valentino nos conta que a
personagem Rainha é órfã e, mesmo que não tenha convivido com a mãe, a personagem
18
E há semanas não lavava nem penteava o cabelo. Ela se angustiou com o que havia se tornado. Talvez sua
beleza anterior no fim das contas fosse simplesmente produto de um feitiço… um encantamento lançado por seu
44
amarga saudade e tristeza pela sua ausência. Tais sentimentos a fazem imaginar como teria
sido sua vida se a morte não tivesse aparecido tão cedo, e são aflorados com a presença de sua
enteada Branca de Neve, ainda criança. A forma como Branca ama sua madrasta faz com que
a Rainha duvide de si mesma, uma forma de degradação e pena da Branca por ter que
conviver com ela, uma característica do empobrecimento do Ego (FREUD, 2010).
No trecho destacado, o Rei visita a Rainha após a morte de seu pai, bem como enfatiza
a beleza da mulher, comparando-a a uma mulher em um retrato na parede, sua mãe. Nesse
esposo. E quando ele morreu, sua beleza – sua falsa beleza – morrera com ele (VALENTINO, 2009, p. 77,
tradução de Jacqueline Valpassos).
19
Como ela poderia amar alguém como a Rainha, cuja vida até agora havia sido, na melhor das hipóteses, uma
sequência de conquistas medíocres rodeada de tédio e tristeza (VALENTINO, 2009, p. 9, tradução de Jacqueline
Valpassos).
20
[...] incapaz de tomá-las por qualquer coisa que não uma lisonja de alguém que deveria estar precisando de
algo dela (VALENTINO, 2009, p. 11, tradução de Jacqueline Valpassos).
45
momento, a Rainha não acredita no elogio e duvida que alguém possa amá-la, ainda mais
sendo o Rei. A baixa autoestima vivida pela Rainha é, presumivelmente, devido à perda da
pessoa que seria seu modelo de mulher. Ademais, o empobrecimento do Ego é uma
insatisfação do próprio Ego carregado de autocrítica que pode ser um reconhecimento do seu
verdadeiro Ego.
Nesse sentido, a degradação do melancólico perante as pessoas que fazem parte de seu
convívio e questionamentos acerca de sua relação com o objeto perdido é percebido no trecho
seguinte, em que a Rainha indaga sobre sua beleza e se compara com três outras personagens
femininas: sua mãe; mãe de Branca de Neve; e Branca de Neve,
Vale ressaltar que a Rainha relacionava beleza física com amor, cuidado e poder.
Portanto quando ela se questiona sobre não ser linda como as três, ela está se depreciando e
afirmando que não seria suficientemente capaz de cuidar do reino, do Rei e de sua enteada,
Branca de Neve.
Segundo a Psicanálise freudiana, o empobrecimento do Ego implica diretamente na
pulsão de morte ou pulsão de destruição, quando está ligada à melancolia. Ela é responsável
pelos impulsos de destruição, desligamento da vontade de viver e sadismo (FREUD, 2017).
Quando isso ocorre, o melancólico passa por uma série de infortúnios, dentre eles a recusa da
alimentação, como observado a seguir,
21
Como pôde um dia pensar que era bela? Que se parecia com sua linda mãe, ou rivalizava, da forma que fosse,
com a primeira esposa do Rei, ou até mesmo com a pequena Branca? (VALENTINO, 2009, p. 77, tradução de
Jacqueline Valpassos).
46
Com relação a esse trecho, a Rainha passa os dias, que sucedem a morte do marido,
trancada em seu quarto sem comer ou conversar com ninguém. Em outras palavras, a
personagem já não apresenta mais vontade de socializar e prefere amargurar seus dias de
solidão.
Para Freud (2010), após a perda do objeto amado, o melancólico é acometido por um
abatimento doloroso que resulta em perda do interesse pelo mundo externo, levando o
melancólico a se voltar para o próprio Ego e recusar qualquer relação social que seja
(FREUD, 2010). Fundamental ressaltar que esse desinteresse ocorre concomitantemente com
a diminuição da autoestima. No trecho seguinte, a Rainha se encontra isolada em seu quarto
há dias, remoendo as dores pela morte de seu marido,
Embora sua dama de companhia, Verona, tente animá-la, a Rainha se recusa a reagir,
pois apresenta forte desânimo, desinteresse pelo mundo exterior, inibição da vontade de fazer
qualquer atividade social. Tais sintomas, para a Psicanálise freudiana, podem estar
relacionados com “[...] uma psicologicamente notável superação do instinto que faz todo
vivente se apegar à vida” (FREUD, 2010, p. 130). Isso ocorre porque na melancolia, o
trabalho da tentativa de superação da perda é consumido, internamente, pelo Ego, e impacta
diretamente na pulsão de morte, que se torna poderosa ao mesmo tempo em que consome o
melancólico (FREUD, 2010). À medida que vai sendo internalizada no Ego do melancólico, a
não superação da perda pode voltar-se para o próprio Ego, em um processo que Freud
denomina de Identificação objetal do Ego, discutida na subseção seguinte.
22
Um criado lhe levava uma bandeja com chá e sanduíches somente para retirá-la intocada algum tempo depois
(VALENTINO, 2009, p. 73, tradução de Jacqueline Valpassos).
23
[...] ela começou a sentir medo de sair de seu quarto. Todas as manhãs, Verona chegava com água de rosas
frescas na esperança de que ela pudesse convencer a Rainha a despir-se de sua camisola [...] – Ela encarou a
dama de companhia com um olhar vazio (VALENTINO, 2009, p. 37, tradução de Jacqueline Valpassos).
47
Na melancolia o indivíduo que sofre com a perda do objeto amado recusa o abandono
libidinal, que era destinado ao objeto perdido, resultando em um doloroso processo, em que o
melancólico padece de carência, falta de autoestima e vontade de viver, pois a pulsão de
morte se destaca perante a pulsão de vida (FREUD, 2010). Quando esse não desligamento
libidinal ocorre, o Ego pode regredir à fase oral, em que o investimento objetal e a
identificação não se diferenciam (FREUD, 2011).
Nesse sentido, as atividades que não estão ligadas ao objeto perdido são logo
abandonadas pelo melancólico, levando-o a se apegar a qualquer atividade ou matéria que
esteja ligada ao objeto perdido, pois o que ele visa é não abandonar a libido, mas sim
redirecioná-la para algo conectado àquilo que ele perdeu (FREUD, 2010). Diante disso, a
Rainha começa a reparar em um objeto presentado por seu marido, um espelho que se torna
algo importante para a personagem, como mostra o trecho a seguir,
The Queen felt a twinge of hope and possibly even joy, leap
up inside of her” (VALENTINO, 2009, p. 77)24.
A partir disso, sabemos que o objeto que a Rainha tenta direcionar sua libido não
abandonada é um espelho que foi lhe dado pelo Rei para que ela pudesse admirar sua beleza.
Uma questão pode aparecer ao longo da substituição objetal: a Rainha tenta direcionar
sua libido de um objeto perdido para outro? Não. A psique da Rainha redireciona a libido
objetal para o próprio Ego num processo narcísico, como forma de sobrevivência. Conforme
Freud explica em seu ensaio Introdução ao Narcisismo, a nossa psique precisa ser estimulada
para que seja constituída completamente, e isso ocorre devido ao narcisismo primário, o qual
é apresentado quando ainda somos pequenos (FREUD, 2010). Um exemplo dado por Freud é
o bebê humano: ele não reconhece seu corpo e suas necessidades, ficando para a mãe a
responsabilidade de alimentá-lo e mantê-lo vivo, ou seja, o ser humano existe devido ao
desejo do outro, desejo esse de responsabilidade pelo individuo (FREUD, 2010).
No tocante à Rainha, o narcisismo primário veio de seu pai, visto que após a morte de
sua mãe, foi ele quem cuidou e atendeu às necessidades da filha. No trecho seguinte temos a
descoberta da Rainha perante o que o espelho se tornara para ela,
24
A Rainha sentiu uma pontada de esperança e possivelmente até de alegria manifestar-se dentro dela
(VALENTINO, 2009, p. 77, tradução de Jacqueline Valpassos).
48
Nesse sentido, os dias com o espelho eram os melhores desde a morte o Rei, sem ele
os dias eram tortuosos para a Rainha. Por essa razão, ela compreende a necessidade de
consultar o espelho, uma necessidade semelhante ao bebê, exemplo de Freud. Ao reparar essa
consequência, o Ego regride à fase oral, facilitando o abandono do objeto, permitindo que o
Ego assuma os traços do objeto perdido e tente convencer o Id que essa substituição objetal é
favorável ao equilíbrio da psique, um caso de transferência de libido objetal sexual para libido
narcísica (FREUD, 2011). No caso da Rainha, esses traços assumidos pelo Ego podem ser do
marido ou do pai, dado que os dois foram objetos perdidos pela personagem.
Embora a Rainha esteja profundamente triste pela perda de seu marido, o trecho
abaixo evidencia que o objeto perdido assumido pelo Ego é o pai da personagem.
Even her deep sorrow over the loss of her king was allayed
when she heard and saw the Slave in the mirror—the soul,
the very face, of her father who once battered her with
demeaning and disparaging words—admit that she was
beautiful; that she was the fairest in the land (VALENTINO,
2009, p. 84).26
O Ego assumir os traços do objeto perdido é uma forma de compensação pela perda,
em que o Ego trabalha para confortar o Id. Conforme Freud (2010, p. 27) o Ego oferece a ele
próprio como forma de substituição da libido do objeto perdido, “‘Veja, você pode amar a
mim também, eu sou tão semelhante ao objeto’”. Portanto, o melancólico supõe que o objeto
perdido seja reestabelecido no Ego. Em outras palavras, o investimento de energia para
25
A Rainha logo descobriu que, nos dias em que não consultava o espelho, ela ficava irritadiça, amarga e
ansiosa. [...] Sentia falta de ar, um aperto no peito. E ela sabia que a única maneira de curar esses males era ceder
à sua obsessão e retornar ao espelho (VALENTINO, 2009, p. 84, tradução de Jacqueline Valpassos).
26
Mesmo sua profunda tristeza pela perda do Rei encontrou alívio quando ela viu e ouviu o Escravo no espelho
– a alma, o próprio rosto de seu pai, que sempre a maltratava com palavras humilhantes e depreciativas – admitir
que ela era bonita; que ela era a mais bela de todas (VALENTINO, 2009, p. 84, tradução de Jacqueline
Valpassos).
49
2.4.4 AMBIVALÊNCIA
permanece numa ligação fortemente direta com as pulsões de conservações do Ego, gerando
conflito com as pulsões sexuais, o que produz uma oposição entre os dois sentimentos, com
isso apresenta-se a relação amor e ódio (FREUD, 2017). O ódio e o amor tem início nas
primeiras fases do desenvolvimento sexual, quando há o embate entre o Ego e o mundo
externo. No entanto, o ódio é mais antigo que o amor, pois o ódio preserva o Ego e o amor é a
necessidade do Ego em eleger um objeto que não seja ele próprio para ser amado, direcionar
sua libido e, assim, romper com a preservação inicial do Ego pelo ódio (FREUD, 2017).
À medida que o objeto amado é perdido, a relação de amor com esse objeto perdido é
encerrada, surgindo em seu lugar o ódio. No entanto, aqui não temos a transformação do amor
em ódio, mas sim o amor regredindo à fase inicial do desenvolvimento, ou também chamada
de fase narcísica. Nessa esteira, na regressão, o amor atua como ódio, e já não quer a
satisfação sexual, e sim preservar o Ego, tornando o ódio um sentimento erótico, resultando
na manutenção da relação amorosa com o objeto, que após a identificação narcísica já é o
próprio Ego (FREUD, 2017).
No que se refere à relação de amor e ódio trabalhando juntos e direcionados para o
mesmo objeto amado, esta é resultado da ambivalência, característica presente na melancolia,
que “[...] empresta ao luto uma configuração patológica e o leva a se exprimir em forma de
autorrecriminações [...]” (FREUD, 2010, p. 135). Em outras palavras, o enlutado, assim como
o melancólico, pode vir a sofrer ambivalência, porém, Freud (2010) atribui esse
comportamento à neurose obsessiva, estrutura psíquica que provoca o desencadeamento do
desejo da perda do objeto amado pelo enlutado. Diante disso, o trecho abaixo representa o
momento em que Branca é apresentada ao seu algoz, a maçã enfeitiçada por sua madrasta.
[…] the Queen pulled out the apple and formulated her
plan. Then something unexpected…She couldn’t do this to
her little bird. Her heart ached. Weakness. Shove it away!
(VALENTINO, 2009, p. 132).27
27
[...] a Rainha tirou a maçã envenenada novamente da cesta e planejou os próximos passos. Então algo
inesperado... Ela não podia fazer aquilo com a sua garotinha, seu pequeno passarinho... Seu coração doía.
Fraqueza. Afaste tais pensamentos! (VALENTINO, 2009, p. 132, tradução de Jacqueline Valpassos).
51
uma vez que a personagem realmente quer que Branca de Neve desapareça para que ela seja a
mais bela de todo o reino. No trecho seguinte, a personagem apresenta ambivalência na sua
relação com o objeto perdido que, como já sabemos, agora é seu próprio Ego.
Amargurando o confronto entre amor e ódio que tem como foco o próprio Ego, a
Rainha se olha em seu espelho e, ao mesmo tempo em que se despreza e se recrimina, a
personagem revela sua satisfação com o que havia se tornado, ela apresentava dureza e frieza
em seu olhar, o que para ela proporcionava poder e beleza para uma mulher com o status dela,
uma poderosa Rainha. Todavia, ao fim de seu devaneio, a Rainha considera que o estado em
que se encontra não é algo que ela deva se orgulhar, ao contrário, ela está entrando em um
caminho de vaidade, medo e tristeza.
No que concerne à ambivalência, o seu conflito é gerado quando o investimento
libidinal se refugia no Ego, deixando o amor livre e redirecionando o processo da perda do
objeto para o consciente, o que produz o conflito entre o Ego e a instância crítica (FREUD,
2010). Por essa razão, a personagem se critica e acredita ser incapaz de se livrar de seus
medos e vaidade. Quando observa seu reflexo em um béquer usado por ela para fazer uma
porção, com o intuito de atacar sua enteada, que a transforma em uma velinha corcunda
vendedora de frutas,
28
[...] ela era bonita, mas havia algo diferente em seus olhos. Havia uma dureza em sua beleza, que era fria e
distante. Ela achou que isso acrescentava um ar de elegância e majestade ao seu comportamento, algo que uma
Rainha devia possuir. Mas isso não abafava seu receio de estar se perdendo na tristeza, no medo e, acima de
tudo, na vaidade (VALENTINO, 2009, p. 97, tradução de Jacqueline Valpassos).
29
Ela olhou para um béquer bem polido e viu seu reflexo [...] Ela era agora uma velha decrépita [...] Era a
antítese de tudo o que ela tinha sido (VALENTINO, 2009, p. 97, tradução de Jacqueline Valpassos).
52
Diante disso, a Rainha inicia uma série de pensamentos ofensivos contra si mesma,
isso é destacado na ambivalência, em que prevalece o menosprezo e a decepção por quem o
objeto, no caso o próprio Ego, se tornou (FREUD, 2010).
Quando o investimento amoroso do melancólico é direcionado para o objeto perdido,
ou melhor, para o próprio Ego, parte dele regride para a identificação (FREUD, 2010). Em
outras palavras, quando o objeto perdido é renunciado, havendo a identificação narcísica, o
amor é direcionado a esse tipo de identificação, ao passo que o ódio se volta para o objeto
substituto, o próprio Ego, surgindo insultos e sofrimento que pode levar à satisfação sádica,
elemento freudiano relacionado à perda do objeto, discutido a seguir.
Após envenenar Branca de Neve e vê-la cair desfalecida, a Rainha não tem tempo de
se vangloriar e comemorar a “vitória”, pois logo ela é avisada, pelas três bruxinhas que a
30
A floresta – segurança. Um refúgio para ela. Uma nova chance na vida. Mas que tipo de vida? (VALENTINO,
2009, p. 136, tradução de Jacqueline Valpassos).
53
ajudaram, de que o feitiço que a transformou em bruxa velha é quase que irreversível o que,
para ela, seria o maior desprazer de todos, não ser mais bela e poderosa.
Contudo, se ela escolher acompanhar as bruxinhas pelo caminho da floresta e escapar
dos anões que a perseguiam pelo que fez com Branca, é possível que ela retorne à sua imagem
antiga, de a mais bela mulher de todas. Nesse momento a Rainha tem um lapso e se questiona,
sobre para que tipo de vida ela voltaria, para a vida onde os objetos amados por ela haviam
sido perdidos, incluindo a própria enteada, a vida em que ela padeceu por tempos sofrendo as
angústias da perda da mãe, do pai, do marido e de seu status de mais bela de todas, ao qual ela
se apegou fortemente, ela prefere se entregar ao destino de ser capturada e pagar pelo que fez
com Branca de Neve.
O final do romance escrito por Serena Valentino é semelhante ao final da animação da
Disney de 1937, a Rainha (Má) cai do penhasco na noite tempestuosa, após fugir dos sete
anões. A diferença entre a narrativa e seu prequel, é que neste ficamos sabendo o porquê a
personagem não seguiu outro caminho, bem como o porquê de a Rainha ter esse doloroso fim.
Conforme Freud explica em seu ensaio Luto e Melancolia (2010, p. 136), “Apenas
esse sadismo nos resolve o enigma da inclinação ao suicídio [...]”. Para o psicanalista,
acompanhado do medo de viver com o empobrecimento do Ego, o melancólico culpa o objeto
por não estar mais presente, e com isso ele direciona a hostilidade para o objeto que, como
sabemos, após a identificação se torna o próprio Ego. Portanto, o melancólico pode se matar
porque o investimento da hostilidade que seria para o objeto perdido é redirecionado para ele
mesmo (FREUD, 2010). Quando o suicídio ocorre, o melancólico foi vencido pelo objeto
eliminado, o qual se mostrou mais forte que o Ego do indivíduo, fazendo com que a
melancolia seja “[...] tão interessante — e tão perigosa” (FREUD, 2010, p. 136), tornando a
perda do objeto amado em um poderoso e doloroso complexo.
31
[...] A Rainha olhou para o penhasco enquanto as nuvens a castigavam com a copiosa chuva e o céu parecia a
chicotear com o estalar de relâmpagos. Ela olhou para cima e soube o que tinha que fazer. Afinal de contas, ela
havia escolhido o seu caminho muito tempo atrás (VALENTINO, 2009, p. 136, tradução de Jacqueline
Valpassos).
FIGURA 5. Bruxa Malvada32
32
Fonte: https://br.pinterest.com/pin/73957618870038037/
HAPPILY EVER AFTER?33
Os contos de fadas são histórias que apresentam problemas sociais que precisam ser
discutidos, a partir do contexto social e histórico em que foram produzidas. As narrativas e
seus personagens são importantes elementos de investigação, uma vez que são produzidos
para nos fazer atentar para questões de cunho social, político e filosófico, a fim de alertar para
a necessidade de transformações nesses aspectos. Por esse motivo, observamos as mudanças
propostas e ocorridas nas narrativas dos contos de fadas, que conseguem atingir, cada vez
mais, públicos distintos e tornando-se populares, não somente no entretenimento, como
também nas discussões sociais, tanto na academia, quanto na sociedade em geral.
Dessa forma, a categoria que muito tem chamado atenção nessas discussões é a de
vilão, por dois motivos fortemente atrelados às questões sociais, a saber: ser mulher e
apresentar comportamentos que vão contra as normas da sociedade para os seres humanos.
Diante disso, as discussões são focadas nas mudanças de representações desses personagens,
tanto nos estudos feministas, quanto nos estudos filosóficos. A desconstrução da imagem do
vilão como pessoa amarga e totalmente malvada está sendo realizada nas novas releituras e
adaptações dos contos de fadas, propondo olharmos esses personagens com outras lentes, em
outras perspectivas e não somente como, por exemplo, a bruxa malvada, com verruga,
corcunda e velhinha, como na figura 6, que abre as considerações finais.
Nesse caminho, Serena Valentino produz histórias inspiradas nos vilões das animações
dos Estúdios Disney, propondo humanizá-los e mostrar que são mais do que apenas maldade e
inveja. O primeiro livro escrito pela autora foi o livro corpus da pesquisa realizada para esse
trabalho, The fairest of all: a tale of the Wicked Queen, foi publicado em 2009 e tem como
enredo a história da Rainha (Má), madrasta de Branca de Neve, desde antes do encontro dela
com o Rei, pai de Branca. Ao longo do livro sabemos os medos, traumas, perdas e
pensamentos que fazem a personagem amargar um grande processo de tentativa de superação
da perda de objetos amados.
Diante disso, nos surgiu inquietações acerca dessa personagem em particular, a partir
da leitura de Serena Valentino. Por essa razão, a pesquisa realizada para este trabalho teve
como questionamento norteador a seguinte indagação: De que forma a perda do objeto amado
afeta os modos de sentir, pensar e agir da personagem Rainha Má no livro The fairest of all: a
tale of the Wicked Queen (2009)? A fim de responder essa pergunta, elaboramos como
33
“Felizes para sempre?”. A escolha do título remete ao fim das histórias de contos de fadas.
56
objetivos, investigar de que forma a perda do objeto amado afeta os modos de sentir, pensar e
agir da personagem Rainha Má no livro The fairest of all: a tale of the Wicked Queen (2009),
utilizamos para esse objetivo as lentes da Crítica Psicanalítica. A fim de obtermos os
resultados do objetivo geral e responder a questão fundamentadora do nosso trabalho, como
objetivos específicos propomos discutir os pressupostos teóricos da Crítica Psicanalítica, na
perspectiva freudiana de perda do objeto amado; e identificar quais e como as características
freudianas de perda do objeto amado interferem nos modos de pensar, sentir e agir da
personagem Rainha Má, no corpus desta pesquisa.
Seguindo essa proposta, o que torna a Literatura tão interessante são as oportunidades
de observar narrativas e personagens considerando suas relações sociais, apropriando-se de
pressupostos teóricos de estudos sociais, políticos e filosóficos, para analisar histórias
literárias. Nesse sentido, a Crítica Literária nos apresenta um leque de correntes teóricas que
nos possibilita interpretar ações e reações presentes nas obras literárias e produções artísticas
e culturais a fim de realizar discussões acerca de problemas sociais contidos nas narrativas.
Dentre as possibilidades de discussões temos os estudos sobre Psicanálise, que teve como
precursor, os pensamentos do médico Sigmund Freud, que tiveram relações diretas com a
literatura e crítica para compor os estudos sobre o inconsciente.
Observando as nossas discussões das análises, consideramos que nossos objetivos
elaborados foram atingidos com satisfação por meio da execução da pesquisa proposta ainda
na disciplina de Técnicas e Métodos de Pesquisa – TCC 1. De posse do projeto de pesquisa
finalizado, bem como as buscas por material teórico, leituras e fichamentos, escolhemos os
trechos que foram analisados após a realização do primeiro objetivo específico com base nos
pressupostos teóricos lidos e discutidos. As discussões sobre os pressupostos freudianos de
perda do objeto amado nos possibilitaram entender o mecanismo pelo qual uma pessoa que
perde alguém ou alguma coisa, mesmo que não seja perda física e/ou real, caminha, melhor
dizendo, amargura. Dois desses mecanismos, estudados para o Freud, nos serviram como
fundamentação teórica, luto e melancolia, em que há uma característica que se destaca apenas
no segundo, o empobrecimento do Ego.
No que concerne os modos de sentir, pensar e agir da Rainha frente à perda de objetos
amados, notamos que ao longo da narrativa a personagem se depara com diferentes perdas,
não somente pela morte, como também pela perda de ideais. Ao início da narrativa, a Rainha
está presa a um passado que não viveu e fantasia com momentos ao lado de sua mãe, que
falecera quando a Rainha ainda era uma pequena criança. Após algumas páginas, a
personagem perde o pai, e à priori não sente tristeza por esse fato. No entanto, busca
57
desesperadamente encontrar um amor para conseguir sua própria aceitação como pessoa
merecedora da felicidade.
Logo em seguida, casa-se com o Rei, pai de Branca de Neve, e momentos depois o
perde para a morte durante a guerra. Dessa perda em diante, a Rainha enfrenta longo processo
de tentativa de superação dessa perda, porém o que ela encontra pelo percurso são dores
profundas em um complicado processo que mistura suas diferentes perdas. Nas linhas da
narrativa observamos que a personagem se atormenta com experiências que acordam com as
características melancólicas de perda do objeto amado à luz dos estudos de Freud, como o não
desligamento da libido; empobrecimento do Ego; identificação objetal do Ego; ambivalência;
e satisfação sádica. Vale ressaltar que as análises foram destinadas a uma personagem fictícia
da literatura e, por esse motivo não podemos realizar um diagnóstico. Contudo, a escolha da
abordagem de pesquisa foi pensando para que pudéssemos utilizar nossas interpretações de
forma autônoma e garantir que a questão norteadora fosse respondida.
No que diz respeito às dificuldades encontradas na elaboração dessa pesquisa,
frisamos o baixo conhecimento dos conceitos de Psicanálise, acrescentado às complexas
discussões realizadas por Freud. Não foi nossa intenção procurar outros autores que versem
sobre a perda do objeto amado, pois o foco do nosso projeto foi investigar uma personagem
literária a partir dos conceitos freudianos acerca desse processo de perda. Portanto,
destacamos que em nossas leituras procuramos compreender os pressupostos discutidos por
Sigmund Freud. Fundamental ressaltar que, mesmo procurando nos fundamentar apenas nos
estudos de Freud, utilizamos outros dois estudiosos, para nos apoiar em discussões sobre sua
vida e aumentar o conhecimento sobre os conceitos de objeto amado.
Esperamos, com os resultados discutidos neste trabalho, possibilitar uma visão
cientifica para os contos de fadas. Em vista disso, sugerimos aos apreciadores de narrativas
dos contos de fadas que voltem suas inquietudes para outros personagens, adentrando ao
mundo da Crítica Literária, que nos proporciona um leque de oportunidades de estudos, para
utilizarem seus conceitos para fundamentar investigações sobre personagens, enredos,
cenários, estrutura textual, fílmica, entre diversas outras oportunidades para descobrirem o
que está escondido nas entrelinhas dessas obras literárias.
Ademais, para quem se entusiasma pelos estudos da Crítica Psicanalítica, sugerimos
que foquem nos conceitos teóricos que relacionem Psicanálise e Literatura para melhor
compreensão de teorias clínicas, a fim de aplicá-las a personagens fictícios e, a partir disso,
delimitem o tema que entre em acordo com seus questionamentos. Importante ressaltar que, se
a inquietude for à perda de objetos amados, há um extenso acervo de pesquisas produzidas
58
considerando esse tema o que, de certa forma, se torna fonte que permitem entrar em contato
com diferentes pensamentos, pontos de vistas e discussões.
Escolhi34 nomear esta seção diferentemente do habitual porque acredito que nenhuma
pesquisa realmente termina. Consequentemente, o título de “Considerações Finais” não se
encaixaria neste trabalho que, ao longo da execução, me proporcionou outras diversas
inquietudes. Uma dessas problemáticas irá comigo para o Mestrado, não abandonarei os
contos de fadas e a Rainha Má assim tão fácil. Minha proposta pessoal com essa pesquisa foi
mostrar que os contos de fadas não são apenas histórias infantis, e que podemos problematizar
a sociedade a partir de suas leituras. Finalizo este trabalho com a sensação de dever cumprido,
pois há quatro anos venho desmitificando as tramas de contos de fadas, e desejo continuar por
muitos e muitos anos...
34
Considerando as reflexões pessoais acerca dos resultados da pesquisa, nesta parte do trabalho apresenta-se
uma narrativa na perspectiva da primeira pessoa do singular.
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