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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PIAUÍ

CAMPUS PROF. ALEXANDRE ALVES DE OLIVEIRA


LICENCIATURA PLENA EM LETRAS-INGLÊS

FABIO RAFAEL DIAS DA SILVA

BLACK MIRROR NÃO É SOBRE TECNOLOGIA, É SOBRE HUMANIDADE:


uma análise psicanalítica da personagem Lacie Pound apresentada no episódio Nosedive

PARNAÍBA
2018
FABIO RAFAEL DIAS DA SILVA

BLACK MIRROR NÃO É SOBRE TECNOLOGIA, É SOBRE HUMANIDADE:


uma análise psicanalítica da personagem Lacie Pound apresentada no episódio Nosedive

Monografia apresentada como trabalho de


conclusão do curso de Licenciatura Plena em
Letras-Inglês da Universidade Estadual do
Piauí, Campus Prof. Alexandre Alves de
Oliveira, como pré-requisito para a obtenção do
título de Licenciado em Letras-Inglês, sob
orientação da Prof.ª Dra. Renata Cristina da
Cunha.

PARNAÍBA
2018
FABIO RAFAEL DIAS DA SILVA

BLACK MIRROR NÃO É SOBRE TECNOLOGIA, É SOBRE HUMANIDADE:


uma análise psicanalítica da personagem Lacie Pound apresentada no episódio Nosedive

Monografia apresentada como trabalho de


conclusão do curso de Licenciatura Plena em
Letras-Inglês da Universidade Estadual do
Piauí, Campus Prof. Alexandre Alves de
Oliveira, como pré-requisito para a obtenção do
título de Licenciado em Letras-Inglês.

COMISSÃO EXAMINADORA

___________________________________________________________________________
Professora orientadora: Doutora Renata Cristina da Cunha
Universidade Estadual do Piauí – Campus Parnaíba

___________________________________________________________________________
Professora convidada: Especialista Elaine do Nascimento Sousa
Universidade Federal do Piauí – Campus Parnaíba

___________________________________________________________________________
Professor convidado: Especialista Priscylla Pereira do Nascimento
Universidade Estadual do Piauí – Campus Parnaíba

APROVADA EM ______ DE ______________________ DE 2018.


Dedico...
À minha mãe e à minha avó, que sempre
estiveram ao meu lado em todos os momentos
da minha vida.
Agradeço...
Primeiramente a Deus, por ter sempre me iluminado e resguardado durante as minhas
pelejas. Nunca me abandonou nos momentos difíceis e não desistiu de mim mesmo quando a
chama da minha fé havia sido apagada. Me dá forças para levantar todos os dias e enfrentar
os obstáculos da vida. Se manifesta por meio de pessoas que me aconselham com sábias
palavras. Que a cada dia me lembra que fui abençoado com o dom maior da vida.
À minha família que apesar das diferenças nunca deixa de oferecer ajuda uns aos outros
e, em todas as conquistas, vibra como se fosse uma vitória de todos, em especial à minha mãe,
que sempre trabalhou em dobro para suprir a falta de meu pai, sempre permaneceu de pé após
todas as porradas que a vida lhe deu, nunca me deu tudo o que eu quis, mas sempre me deu
tudo o que eu precisei, me ensinou desde cedo a tomar conta da casa, me ensinou a ser homem
e a ser mulher e, acima de tudo, sempre me amou infinitamente e nunca deixou ninguém me
dizer que eu não sou capaz;
À minha amada avó que sempre fora a minha segunda mãe, meu exemplo de vida, sábia,
inteligente, persistente, generosa, humilde, compreensiva, trabalhadora e destemida. Que
sempre deu o apoio necessário na minha criação, compartilhou comigo e com a minha mãe a
sua moradia, não poupou esforços e investiu na minha educação, sempre acreditou no meu
potencial e nunca desistiu de mim, tampouco dos outros membros da família;
À minha madrinha que me ajudou em diversos momentos da minha vida, muito além da
ajuda financeira me ajudou com palavras doces e conselhos valorosos, apesar das suas várias
preocupações como mãe e como esposa, sempre dedicou uma fração do seu tempo para voltar
suas atenções a mim e à minha família, que nas minhas viagens a Belém sempre abriu as portas
da sua residência e me fez sentir como se eu estivesse na minha própria casa;
A todos os meus colegas de sala que estiveram comigo nessa caminhada e que, de
alguma forma, contribuíram nessa jornada pela busca do conhecimento, em especial; à
Patrícia, que a partir da segunda metade do curso se fez presente em quase todas as minhas
produções acadêmicas, sempre me auxiliando com as suas correções e comentários de extrema
precisão e sagacidade, pessoa simples e respeitosa que ilumina a todos ao seu lado; ao
Marcondes, nosso exemplo de persistência, que apesar de todas as dificuldades e
contratempos, não se intimidou e venceu cada um de seus desafios, meu querido aluno e
professor que me orientou com palavras sábias no momento certo; ao Nicolas, que desde o
começo demonstrara grande destreza com a língua inglesa e com a oratória, servindo como
modelo para que eu pudesse crescer como acadêmico e professor, que me inseriu no caminho
das mãos vazias e, desperta em mim cada vez mais o meu espírito de guerreiro que me auxilia
no enfretamento das minhas pelejas diárias; Ao Arnóbio, agradável amizade, a qual fez-me
fortalecer no decorrer do curso, modelo de perseverança, paciência e generosidade, me ajudou
em momentos cruciais e com quem eu farei questão de compartilhar outros momentos da minha
vida; A todos os acadêmicos que por algum motivo não puderam terminar essa etapa da vida
conosco, mas que deixaram saudades; A todos os monitores e alunos das outras turmas do
curso de Letras-Inglês que me ajudaram em algum momento dessa trajetória; Aos alunos do
curso de Letras-Português, Alice e Pedro, os quais com atenção, paciência e dedicação
contribuíram com o meu trabalho revisando-o;
A todos os professores que compartilhadores de sua sabedoria e experiências com a
nossa turma durante o curso. Esses profissionais que embora não ganhem o prestígio merecido,
batalham diariamente para formar cidadãos, são os grandes responsáveis por moldar as
mentes críticas que podem lutar por um bem comum amanhã, possuem o dom da paciência e
da sensibilidade para auxiliarem seus alunos dentro e fora da sala de aula, em especial os
professores do nosso curso, dentre eles;
A professora Lisiane, que embora não tenha sido nossa professora durante o curso, me
ensinou muito no meu período enquanto bolsista do programa PIBID, calma, prestativa e
transparente, não mediu esforços ao dar assistência a todos os bolsistas e também me acolheu
como seu orientando em alguns projetos acadêmicos;
O professor Afrânio, grande amante da cultura pop que nos deu as boas-vindas ao
curso no primeiro dia de aula, nos incentivou a superar nossos limites, ir além, sair da nossa
zona de conforto, nos ensinou as disciplinas de Língua Inglesa, Evolução Histórica da Língua
Inglesa e, uma das disciplinas mais proveitosas que acrescentou muito no meu crescimento
como acadêmico, professor e pessoa, Crítica Literária, nos emocionando ao relatar
experiências pessoais durante a associação com as teorias dessa disciplina;
A professora Roseane, pessoa meiga e alegre, sempre estava disposta a nos ajudar,
chorar e sorrir conosco, utilizava métodos e técnicas que deixavam o ambiente mais colorido
e as aulas mais convidativas;
A professora Francimaria, que com paciência e determinação nos mostrou as rosas e
os espinhos da disciplina de Fonética, nos deu todo o apoio durante a disciplina de Prática
Pedagógica e nos instigou a pesquisar durante a disciplina de Metodologia do Ensino da
Língua Inglesa;
A professora Elaine, doce e agradável, de fala mansa mas pulso forte, extremante gentil
e educada, nos acompanhou e testemunhou de perto a nossa batalha diária, sempre oferecendo
assistência para que pudéssemos sobrepujar todos os obstáculos;
A professora Lígia, sempre disposta a ouvir as nossas opiniões, aberta aos diálogos
com a turma, o que facilitou e muito o nosso trabalho na disciplina de Estágio Supervisionado
I;
A professora Lenara, dotada de atenção e cordialidade, nos deu dicas importantes em
como nos portarmos dentro da sala de aula como professores;
A professora Priscylla, que se tornou uma grande amiga dentro do curso, despertou em
nós uma nova visão acerca dos elementos que envolvem o processo de ensino-aprendizagem,
mulher talentosa e determinada, nos propôs atividades diferenciadas, as quais fomentavam a
nossa busca pelo conhecimento;
A professora Renata, uma pessoa iluminada pelos deuses e que nasceu para
desempenhar a função de educadora, responsável pelo nosso amor à pesquisa científica, uma
querida amiga, a qual sempre fez questão de dizer que as portas de sua casa estavam abertas
para quando nós precisássemos, um exemplo de professora, pesquisadora, orientadora,
mulher, uma pessoa com um coração maior do que esse universo que acolhe todas as suas
turmas como se fossem seus filhos, cuidando, orientando, brigando, amando e se despedindo
quando é chegada a hora de irmos desbravar o mundo. Obrigado por; todos os ensinamentos;
todos as dicas; todos os e-mails correspondidos; todos os avisos de algum evento acadêmico;
todas as vezes que você me incentivou a pesquisar; comprar as minhas brigas; acreditar no
meu potencial; fazer parte da minha história.
“Civilization began the first time an angry
person cast a word instead of a rock.”

Freud, Sigmund
SILVA, F. R. D. Black mirror não é sobre tecnologia, é sobre humanidade: uma análise
psicanalítica da personagem Lacie Pound apresentada no episódio Nosedive. Monografia 61p.
2018 (Graduação em Letras - Inglês)- Universidade Estadual do Piauí-UESPI, campus de
Parnaíba, 2018.

RESUMO

Este trabalho é resultado de uma pesquisa desenvolvida à luz da teoria psicanalítica sobre o
comportamento de uma personagem da série Black Mirror. A pergunta norteadora deste
trabalho almeja descobrir: Quais mecanismos de defesa podem ser relacionados ao
comportamento da personagem Lacie Pound apresentada no primeiro episódio da terceira
temporada da série, à luz da teoria Psicanalítica? Nesse aspecto, o objetivo geral dessa pesquisa
é: Investigar os mecanismos de defesa podem ser relacionados ao comportamento da
protagonista apresentada no primeiro episódio da terceira temporada da série, à luz da Teoria
Psicanalítica. Com a finalidade de alcançar este objetivo geral, foram elencados os seguintes
objetivos específicos: Explicar como os mecanismos de defesa da protagonista estão conectados
aos conceitos de vazio existencial e consumismo na era moderna; Analisar quais mecanismos
de defesa são caracterizados por meio da relação entre a personagem Lacie Pound e a
personagem Naomi Jayne e Verificar qual mecanismo de defesa é representado por meio da
relação entre a personagem Lacie Pound e a personagem Susan Taylor. Para alcançar esses
objetivos, foi realizada uma pesquisa de cunho bibliográfica explicativa, com abordagem
qualitativa fundamentada em autores como: Freud (1923-1925), Bauman (2005), Debord
(1994), Tyson (2006) dentre outros. Os dados analisados mostram que a protagonista enfrenta
os problemas irresolutos da vida, com isso tenta controlar a ansiedade por meio de uma droga
socialmente mais aceita, o consumismo, tal peleja culmina na ativação de dois mecanismos de
defesa do Ego no contato com as personagens Naomi e Susan, a saber negação e identificação.
Desta forma, a protagonista passa por um processo de transformação de sua personalidade e
comportamento, ao mesmo tempo em que ocorre uma tomada de consciência do eu que a faz
transpor de uma realidade fantasiosa para uma realidade onde os seus desejos e impulsos não
são restringidos pelas normas e tendências da sociedade da informação apresentada no episódio.

Palavras-chave: Crítica Literária. Black Mirror. Psicanálise.


SILVA, F. R. D. Black mirror is not about technology, it is about humanity: a psychoanalytic
analysis upon the character Lacie Pound presented in the episode Nosedive. 61p. 2018.
Monograph (Graduation in English Teaching), State University of Piauí, campus of Parnaíba,
2018.

ABSTRACT

This research is a result of a work developed upon the psychoanalytic theory about the behavior
of a character seen in the TV series Black Mirror. This work aims to answer the following
question: What defenses can be related to the character’s behavior, Lacie Pound, presented in
the first episode of the third season of Black Mirror accordingly to the psychoanalytic criticism?
Considering that, the general objective of this research is: To observe which defenses can be
related to the behavior of the protagonist presented in the first episode of the third season of the
series according to the psychoanalytic perspective of the Literary Criticism. In order to achieve
this general objective, the following specific objectives were listed: Explain how the
protagonist's defenses are connected to the concepts of existential emptiness and consumerism
in the modern age; Analyze which defenses are characterized through the relationship between
the character Lacie Pound and the character Naomi Jayne and Verify which defense is
represented through the relationship between the character Lacie Pound and the character Susan
Taylor. It is a bibliographic research with a qualitative approach based on authors such as Freud
(1923-1925), Bauman (2005), Debord (1994), Frye (1973), Lindstrom (2009) among others.
The data analyzed show that the protagonist faces the irresolvable problems of life trying to
control her anxiety through a socially more accepted drug, consumerism, such a battle
culminates in the activation of two defenses of the Ego in contact with the characters Naomi
and Susan, specifically denial and identification. In this way, the protagonist undergoes a
process of transformation of both her personality and behavior, while at the same time there is
an awareness of the self that transports her from a fantasy reality to a reality where her desires
and impulses are not restricted by the norms and trends of the information society presented in
the episode.

Keywords: Literary Criticism. Black Mirror. Psychoanalysis.


TABELA DE ILUSTRAÇÕES

Imagem 1: Lacie em Nosedive........................................................................................... 34


Imagem 2: Lacie avaliando perfis .....................................................................................34
Imagem 3: Lacie sendo barrada no aeroporto ...................................................................35
Imagem 4: Holograma de Lacie ........................................................................................ 39
Imagem 5: Lacie em frente ao anúncio do residencial ......................................................40
Imagem 6: Lacie no casamento de Naomi ........................................................................43
Imagem 7: Publicação de Lacie a avaliação de Naomi .....................................................45
Imagem 8: Lacie conversando com seu irmão ..................................................................46
Imagem 9: Lacie ensaiando o discurso para o casamento .................................................47
Imagem 10: “Yoga para a vida” Publicação de Naomi .....................................................51
Imagem 11: Lacie e Susan conversando (Diálogo 1) ....................................................... 56
Imagem 12: Lacie e Susan conversando (Diálogo 2) ....................................................... 57
SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ......................................................................................11


CAPÍTULO 1 CRÍTICA LITERÁRIA E A CORRENTE PSICANALÍTICA .........16
1.1 CRÍTICA LITERÁRIA ............................................................................................ 16
1.1.1 A PSICANÁLISE .....................................................................................................20
1.1.2 TEORIA CRÍTICA PSICANALÍTICA ...................................................................22
1.1.3 ID, EGO E SUPEREGO ........................................................................................... 23
1.1.4 ID, O INCONSCIENTE ........................................................................................... 23
1.1.5 EGO, A MATERIALIZAÇÃO DO INCONSCIENTE ...........................................24
1.1.6 SUPEREGO, A DISTINÇÃO ENTRE O CERTO E O ERRADO.......................... 25
1.1.7 MECANISMOS DE DEFESA DO EGO .................................................................25
CAPÍTULO 2 RELACIONAMENTOS DE LACIE POUND À LUZ DA CRÍTICA
LITERÁRIA PSICANALÍTICA: mecanismos de defesa caracterizados na relação
com as personagens Naomi Jayne e Susan Taylor ....................................................... 29
2.1 BLACK MIRROR .......................................................................................................29
2.1.1 A PROPOSTA DE BLACK MIRROR ......................................................................30
2.1.2 A TECNOLOGIA COMO PANO DE FUNDO ......................................................31
2.1.3 A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO EM NOSEDIVE ...........................................33
2.2 NOSEDIVE, A QUEDA LIVRE ...............................................................................36
2.3 A ANSIEDADE E O VAZIO EXISTENCIAL DA PERSONAGEM LACIE
POUND ............................................................................................................................. 37
2.4 O MECANISMO DE DEFESA NEGAÇÃO NA RELAÇÃO ENTRE LACIE
POUND E NAOMI JAYNE ............................................................................................ 42
2.5 O MECANISMO DE DEFESA IDENTIFICAÇÃO NA RELAÇÃO ENTRE
LACIE POUND E NAOMI JAYNE ..............................................................................49
2.6 O MECANISMO DE DEFESA IDENTIFICAÇÃO NA RELAÇÃO ENTRE
LACIE POUND E SUSAN TAYLOR ...........................................................................53
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 60
REFERÊNCIAS ..............................................................................................................64
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A modernização da sociedade é um processo que está fora do nosso controle e se


desenvolve a passos largos a cada ano, dentre os contribuintes para esse processo, encontramos
as mídias sociais com a sua rapidez em espalhar informação. Por ter cada vez mais destaque no
cenário tecnológico, esse eixo é responsável por alimentar a necessidade por informação dessa
sociedade moderna, assim, o telefone celular, o computador e a televisão, se tornam as
principais ferramentas dessa tendência tecnológica cada vez mais presente em nossas vidas,
enquanto que o cinema, as séries de TV, os sites, os jogos de vídeo game e o jornalismo, são
caracterizados com os processos pelos quais esses usuários da tecnologia passam para obterem
a informação. Onde
Portanto, percebemos, que a tecnologia, as mídias sociais e a linguagem têm uma
conexão, assim, são responsáveis em grande parte do provimento de informação na sociedade
contemporânea. Por isso, o meu1 interesse pela realização deste trabalho está dividido em três
momentos. O primeiro momento reflete-se a partir da minha experiência com a tecnologia e seu
variado acervo de dispositivos e processos tecnológicos responsáveis pela obtenção da
informação. O segundo momento está relacionado à experiência vivida por mim no quarto
semestre do curso de Letras-Inglês, quando nós tivemos a disciplina de Crítica Literária. Já o
terceiro momento originou-se quando eu comecei a assistir a série Black Mirror, no serviço de
streaming da empresa NetFlix2, a qual me fez refletir sobre a sociedade e o mundo
contemporâneo e, consequentemente, sobre a temática da minha monografia. Os momentos
citados acima serão detalhados a seguir ao passo em que culminarão na formulação da pergunta
norteadora deste trabalho monográfico.
Desde muito jovem eu fui fascinado pela televisão, todavia, mal sabia eu que a televisão
estava ocupando demasiado espaço na minha vida me mantendo horas e horas, sentado no sofá
da minha casa, quando eu poderia aproveitar melhor o meu tempo e experimentar um contato
mais humano brincando com os meus amigos. Assim, com o passar do tempo, na transição da
adolescência para a fase adulta, eu passei a consumir cada vez menos conteúdo televisivo ao
ponto de raramente dedicar um tempo para ficar em frente à televisão, e quando o faço, procuro
me ocupar com conteúdo que eu jugo ser útil, como noticiários ou até mesmo melhorar o meu

1
Narrativa na perspectiva da primeira pessoa do singular em virtude do surgimento do interesse pelo problema
ser de cunho pessoal.
2
Provedora global de filmes e séries de televisão via streaming, atualmente com mais de 100 milhões de
assinantes, fundada em 1997 nos Estados Unidos.
11
inglês assistindo séries e filmes, o que não deixa de ser uma atividade divertida e prazerosa
também.
Já em outro momento da minha vida, eu vivenciei a alta na popularização da internet e
todas as mídias sociais que a consolidaram, eu criei uma conta na rede social que até o momento
é a maior e mais influenciadora da história da internet, o Facebook. Apesar de ter sido fundada
no ano de 2004, nos Estados Unidos, somente em 2012 a mesma alcançou o incrível número
de um bilhão de usuários ativos. A partir daí começou a grande mudança no comportamento
das pessoas que aderiram a essa rede social, incluindo o autor deste trabalho.
Atentando-nos para o segundo influenciador desta pesquisa, iremos para o ano de 2015,
momento em que eu iniciei a minha jornada como acadêmico do curso de Letras-Inglês da
UESPI. Dentre as agradáveis surpresas do nosso curso, nós tivemos a disciplina de Crítica
Literária, que ajudou muito no meu crescimento como acadêmico de Letras. Nessa
oportunidade, nós estudamos várias teorias do campo da Crítica Literária, tais como;
Psychoanalytic Criticism, Marxist Criticism, Feminist Criticism, Reader-Response Criticism
dentre outras. Até então, eu nunca havia analisado um livro, um filme ou uma canção, com uma
perspectiva crítica, experiência essa vivenciada graças a essa disciplina. No período em questão,
uma das três notas para a aprovação na disciplina consistia na elaboração de um artigo acerca
de uma obra literária de nossa escolha, baseado em uma ou mais teorias expostas pelo professor.
Então, optei por fazer o meu trabalho sobre o livro Cidades de Papel, do autor John
Green. Por ser uma leitura agradável e rápida sem densas camadas filosóficas, essa obra e seus
personagens me acompanharam durante alguns dias naquela empreitada de estar fazendo um
artigo científico pela primeira vez. As teorias escolhidas foram duas: Psychoanalytic Criticism
e Feminist Criticism. A escolha da teoria feminista deu-se devido ao poder do protagonismo
feminino trazido pela personagem Margo Roth, e a escolha pela teoria psicanalítica, devido à
minha curiosidade e inquietude a respeito da mente humana, que muito explica o porquê do
comportamento do indivíduo.
Para a discussão do terceiro elemento influenciador desta monografia, partiremos agora
para o momento em que eu testemunhei as tragédias dos personagens da série Black Mirror. A
partir da experiência obtida na disciplina de Crítica Literária, comecei a ler livros, ouvir músicas
e assistir séries e filmes com outra perspectiva. Dessa forma eu me deparei com uma série a
qual me fez pensar sobre o mundo e a sociedade, Black Mirror. Diferentemente das outras séries
que eu assisto procurando apenas lazer e entretenimento, cada episódio de Black Mirror me
deixa em um estado fúnebre de reflexão.

12
Essa série trouxe a mim novas perspectivas de análise do comportamento humano por
meio dos seus personagens, assim como também despertou minha curiosidade sobre o tema
abordado pelo criador, o que me fez procurar por explicações sobre os episódios em fóruns de
debate e artigos. Desse modo, eu passei a tratar Black Mirror não apenas como um show
televisivo que traz a realidade nua e crua da sociedade contemporânea, tocando em vários
assuntos que deveriam ser mais discutidos, mas sim, um canal para ponderação sobre o meu
comportamento e daqueles a minha volta. Desta forma, foi impossível chegar ao primeiro
episódio da terceira temporada, Nosedive, e não observar os mecanismos de defesa discutidos
pela psicanálise na relação entre as personagens.
Portanto, Black Mirror se mantém em uma posição importante na elaboração desta
pesquisa, ao passo em que proporcionou, e ainda proporciona a mim, reflexões sobre o mundo,
a sociedade e meu comportamento. Dito isto, tais experiências com as novas tecnologias
somadas as minhas interpretações deste episódio à luz da teoria psicanalítica, o presente
trabalho almeja responder: Quais mecanismos de defesa podem ser relacionados ao
comportamento da personagem Lacie Pound, apresentada no primeiro episódio da terceira
temporada da série, à luz da Teoria Psicanalítica?
A fim de proporcionar uma resposta para esta pergunta, foi traçado o seguinte objetivo
geral: Investigar quais mecanismos de defesa podem ser relacionados ao comportamento da
personagem Lacie Pound, apresentada no primeiro episódio da terceira temporada da série, à
luz da Teoria Psicanalítica. Para alcançarmos este objetivo geral, foram elencados os seguintes
objetivos específicos: Explicar como os mecanismos de defesa da protagonista estão conectados
aos conceitos de vazio existencial e consumismo na era moderna; analisar quais mecanismos
de defesa são caracterizados por meio da relação entre a personagem Lacie Pound e a
personagem Naomi Jayne e verificar qual mecanismo de defesa é representado por meio da
relação entre a personagem Lacie Pound e a personagem Susan Taylor.
Após traçarmos os objetivos deste trabalho, se fez necessário o levantamento da
metodologia a ser aplicada nesta pesquisa, assim, optamos pela pesquisa de cunho bibliográfica
explicativa, que segundo Martins (2001), busca explicar e discutir um tema com base em
referências teóricas publicadas em livros, revistas, periódicos e outros, da mesma forma em que
busca conhecer e analisar conteúdos científicos sobre determinada temática.
Como já salientado, esta monografia é resultado de uma pesquisa de cunho bibliográfico
explicativa, com abordagem qualitativa, que ocorreu em quatro momentos. A princípio, fizemos
um levantamento de bibliografias tais como livros, artigos e textos acadêmicos que tinham

13
relação com a temática pesquisada. Em um segundo momento, fizemos a extração das
informações proveitosas contidas nas bibliografias encontradas. O terceiro momento consistiu-
se em momentos de leitura, reflexão e compreensão dos conteúdos extraídos para a inclusão
dos pensamentos mais importantes no referencial teórico deste trabalho. O quarto e último
momento iniciou-se a partir de uma análise meticulosa do episódio com base no referencial
teórico levantado, almejando alcançar os objetivos estabelecidos.
Em caráter social, esperamos com a pesquisa contribuir para reflexão acerca do
comportamento da sociedade contemporânea frente ao uso das novas tecnologias mediante a
análise do comportamento da personagem Lacie Pound apresentada no episódio Nosedive da
série Black Mirror, produzindo mais conteúdo que servirá como fonte para estudos futuros aos
interessados nesse fenômeno. Desta maneira, acreditamos que esta pesquisa possa proporcionar
mais subsídios para o entendimento das diversas facetas da sociedade da informação que se
desenvolve cada vez mais a cada ano.
Possui como um dos referenciais o trabalho de Kohn e Moraes (2007) que discute o
impacto das novas tecnologias na sociedade, este trabalho também procura apontar a
necessidade de se entender e discutir a transformação social pela qual nós estamos passando
em que engloba a mudança no agir, pensar e se relacionar das pessoas e a evolução dos
aparelhos tecnológicos que propuseram e/ou fizeram parte dessas modificações. Entendemos
assim, que as transformações sociais estão estreitamente relacionadas às transformações
tecnológicas da qual a sociedade se apropria para desenvolver-se.
Decidimos realizar uma pesquisa sobre o comportamento da personagem apresentada
na série, então, percebemos os potenciais achados que poderiam estar presentes ao final deste
trabalho e, desta forma, contribuir para os estudos dos alunos do curso de Letras-Inglês,
presenteando-os com um referencial teórico que virá a ajudá-los na análise psicanalítica da
Crítica Literária.
Assim, em cunho acadêmico, esperamos que este trabalho provenha aos discentes e
docentes do curso de Letras-Inglês enquanto professores/pesquisadores, um referencial
bibliográfico que os auxiliará nos estudos realizados frente a disciplina de Literary Criticism,
abordando a corrente psicanalítica, por meio da série Black Mirror, que traz à tona uma
discussão sobre os problemas da sociedade moderna.
Pautado como um dos problemas a serem discutidos, está a mediação dos
relacionamentos através das imagens, com base na concepção de Guy Debord (1994), o qual já
na época da publicação de seu livro Sociedade do Espetáculo, indicava a condição moderna

14
de produção a qual apresentava-se como uma imensa acumulação de espetáculos e, segundo
ele, tudo o que antes era vivido diretamente, tornou-se mera representação. Uma visão exposta
no final da década de sessenta, mas que ao mesmo tempo se perdura como uma visão moderna
da análise do comportamento do indivíduo inserido na sociedade da informação em que
vivemos.
A julgar pelo fato de que toda pesquisa proporciona uma contribuição pessoal,
esperamos que o presente estudo exercite o poder crítico do autor, contribuindo para a sua vida
acadêmica, profissional e pessoal. A partir das ponderações feitas sobre a série, o autor desta
pesquisa será capaz de deduzir a real intenção do criador da série Charlie Brooker, visto que o
mesmo já deu uma entrevista declarando que “(...) cada episódio tem um elenco diferente, um
set diferente e até uma realidade diferente, mas todos eles são sobre a forma como vivemos
agora”3. Podemos perceber que a intenção de Brooker é mostrar os excessos do comportamento
humano, através do uso das novas tecnologias, que na verdade servem como pano de fundo
para o real problema, bem como podemos entender em sua fala.
Em decorrer disto, o autor deste trabalho procura reverberar perante a temática escolhida
de forma a contemplar um melhor entendimento da proposta de Black Mirror por meio da
análise psicanalítica da personagem principal apresentada no primeiro episódio da terceira
temporada, agregando suas experiências pessoais em um mundo em que a Psicanálise serve
como ferramenta para entender os motivos por trás do comportamento humano.
Em termos de organização, este trabalho está dividido em dois capítulos, além das
considerações iniciais e finais. No primeiro capítulo, discutimos os conceitos acerca da Crítica
Literária, Psicanálise e Crítica Literária Psicanalítica. Demos importância também à explanação
das instâncias que formam a psique humana, Id, Ego e Superego, culminando em um diálogo
sobre os mecanismos de defesa do Ego. Ainda no capítulo introdutório, discorremos sobre a
série Black Mirror e suas propostas, exibindo o conceito da Sociedade do Espetáculo inserida
no episódio estudado. Dando prosseguimento, trouxemos um breve resumo da narrativa de
Nosedive, conectando os conceitos de vazio existencial e ansiedade aos mecanismos de defesa
da protagonista. Por fim, caracterizamos dois mecanismos de defesa na relação das personagens
analisadas.

3
Entrevista dada ao jornal britânico The Guardian.
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CAPÍTULO 1
CRÍTICA LITERÁRIA E A CORRENTE PSICANALÍTICA

Neste capítulo, apresentamos os aportes teóricos que fomentaram a revisão de literatura


desta pesquisa, nesse contexto, apresentamos uma discussão acerca da importância da Crítica
Literária trazendo informações significativas tais como o surgimento, as metodologias
utilizadas e as áreas com as quais ela trabalha.
Por conseguinte, demos início ao diálogo acerca da Psicanálise, que é peça fundamental
para o desenvolvimento desta pesquisa, apresentando além do surgimento e importância no
cenário contemporâneo, os segmentos que compõem a psique humana bem como os
mecanismos de defesa do Ego. Por fim, fizemos uma conversação entre os autores cujas obras
foram selecionadas para fortalecer os argumentos do pesquisador, e as cenas do episódio
estudado, para que possamos identificar as características que relacionam a personagem à
corrente psicanalítica.

1.1 CRÍTICA LITERÁRIA

Quando falamos sobre Literatura é natural que façamos de imediato uma lista imaginária
de livros que lemos, estudamos, discutimos ou apenas ouvimos falar durante nossas vidas.
Contudo, a associação entre a palavra Literatura e livros é insuficiente diante do real significado
dessa palavra. É necessário que tenhamos uma expansão deste termo, pois ele é bem mais do
que um compilado de textos organizados e escritos em uma folha de papel, Literatura é a cultura
de um povo, envolve aspectos sociais e históricos, é a verificação e compartilhamento de um
movimento artístico, ela discute, analisa e provêm aos seus amantes a descoberta de si mesmo,
do outro e do mundo.
Atentando-nos ao surgimento da Literatura, foi apenas na segunda metade do século
XVIII que o conceito moderno dessa palavra, que a categoriza como uma arte a parte da pintura,
da música e da arquitetura por exemplo, desenvolveu-se, desta forma, este segmento foi
conceituado como uma criação artística resultante de um determinado apanhado de textos que
mais tarde no século XIX teria seu conceito finalizado, integrando-se de forma mais ampla
(ZAPPONE E WIELEWICKI, 2009).
Com embasamento no trabalho de Zappone e Wielewicki (2009), no qual as autoras
discorrem sobre o desenvolvimento do conceito de Literatura, podemos ponderar sobre o

16
período histórico no qual essa palavra ganhou novas camadas, pois foi “[...] no século XVIII
que se registraram as primeiras mudanças do uso de literatura como “conhecimento”, “saber”,
“erudição” para um uso diferente, agora relacionado à ideia de “gosto” ou “sensibilidade” [...]”
(2009, p. 20). Assim, este campo de estudo havia conquistado o seu espaço, visto que os
estudiosos da época estavam incrementando a ela novas áreas de pesquisa, trabalhando com o
estético e com o artístico.
Todavia, foi com a decadência da Literatura que a Crítica Literária ganhou notoriedade
no espaço dos estudos literários. O início da virtuosa trajetória da crítica ocorreu no início do
século XX, período em que ela ramificou-se em múltiplas abordagens teóricas baseadas em
diversas áreas do conhecimento como a psicologia, a sociologia, a linguística, a filosofia e a
história (ZINANI, 2011).
Ainda experimentando o texto de Zinani (2011, p. 2) podemos descobrir que:

[...] o grande movimento que transformou a crítica literária ocorreu em torno


dos anos 20 (séc. XX) com o Formalismo russo. Centrado na experiência com
a linguagem, o Formalismo preocupou-se em descobrir a “literariedade” do
texto, verificando as estratégias de linguagem que promoviam o
“estranhamento”, decorrente da desautomatização de procedimentos
linguísticos, responsável pelo efeito estético.

A partir de então, a Crítica Literária cresceu e disponibilizou diversas ferramentas para


a discussão de um movimento literário, o que nos proporciona até hoje um rico campo de
pesquisa no qual podemos analisar diversos produtos desenvolvidos no cinema, na televisão,
no livro, entre outras coisas.
No campo da literatura, a Crítica Literária é uma disciplina que envolve a análise, seja
ela positiva ou negativa, de uma obra literária. Por meio desse estudo, podemos expressar
nossas opiniões ou analisar certos personagens. Assim, produções artísticas sejam elas uma
peça teatral, um filme, um livro ou uma série de TV, sempre trazem valores que são postos em
cheque pelos profissionais que trabalham com essa disciplina, ou mesmo estudiosos que não
possuem formação em Letras ou Literatura, mas que expõem suas opiniões e as compartilham
com o mundo.
Para Dacorso (2010), a Crítica Literária fundamenta-se em uma atividade intelectual
que proporciona a reflexão usando o raciocínio lógico-formal baseando-se no âmago do
fenômeno estudado. Desta forma, entendemos que ela é uma área de conhecimento indiscutível
para a produção de novos conhecimentos, obtenção de valores críticos e reflexão acerca da
sociedade e do mundo.
17
Ainda sobre essa área de estudo, Tyson (2006) afirma que ela ajuda os seres humanos a
verem o mundo e a si mesmos de maneiras valiosas, analisando a vida sob uma nova
perspectiva, o que pode influenciar em como nós reconhecemos e lidamos com os nossos
desejos e medos, como reagimos a opiniões públicas, como assistimos televisão, como nos
comportamos na posição de consumidores nessa grande bolha social que podemos nos
encontrar antes de termos os nossos horizontes expandidos pelo conhecimento.
Logo, a partir do conteúdo produzido pelo homem, sendo ele não apenas obras literárias,
mas cinema, música, arte, arquitetura, ciência, tecnologia, reflete em experiências vivenciadas
ao longo da vida, trazendo seus medos, felicidades, anseios, desejos, etc. Podemos ponderar
que uma interpretação dessas produções a partir da Crítica Literária, pode nos ajudar a entender
a fundo a natureza humana.
Nas palavras de Tyson (2006, p. 6) “Diferente das críticas feitas pelos críticos de livros
e filmes, que nos dizem se devemos ou não assistir aos filmes ou ler os livros que eles avaliam,
a Crítica Literária passa mais tempo explicando do que avaliando [...]”, essa faceta da Crítica
que a autora nos traz, tende a dizer o porquê os elementos de uma dada obra foram utilizados
naquele contexto, assim como também nos trazem o contexto histórico em que eles estão
inseridos, desta maneira, a qualidade daquela obra não é o objeto principal estudado pela Crítica
Literária, mas sim os valores, conhecimentos e reflexões proporcionados por ela.
Dentro desse estudo podemos encontrar diversas correntes que trabalham em múltiplas
áreas do conhecimento, como bem salientado no início desta seção, por isso, faz-se necessário
apresentarmos as correntes pertencentes aos estudos dessa disciplina.
Uma metodologia que consiste na limitação à materialidade do texto literário e uma
investigação baseada nos próprios princípios e instrumentos teóricos, são características que
definem o Formalismo Russo e a Nova Crítica. Quase que contemporâneos, o primeiro foi
desenvolvido na Rússia entre os anos de 1915-1917 e 1923-1930 e a última de origem Norte
Americana fundada entre as décadas de 1940 e 1950, foram grandes escolas críticas inovadoras
que romperam o laço com as práticas literárias desenvolvidas no século XIX, psicologismo
biografista, crítica impressionista; rigidez retoricista. Desse modo, o século XX trouxe novas
abordagens para o campo da Crítica Literária, dando início à criação de novas escolas críticas
que visavam discutir os diversos fenômenos apresentados pelas outras áreas do conhecimento
(JUNIOR, 2009).
Segundo os argumentos de Zolin (2009), a Crítica Literária Feminista originou-se nos
Estados Unidos no ano de 1970 por meio da publicação de uma tese de doutorado intitulada

18
Sexual politics da autora Kate Millet, desde então, a prática acadêmica patriarcal tem sido uma
vertente bastante questionada por essa corrente. Por meio da Crítica Feminista, a ideia de que a
mulher possui uma visão diferenciada do homem com relação às experiências na leitura e na
escrita, tem sido bastante fomentada ao longo dos anos, proporcionando grandes mudanças no
campo intelectual, quebrando paradigmas e descobrindo novos horizontes.
Por outro lado, na Crítica Pós-Colonialista, a cultura e a literatura são áreas de interesse
pois essa corrente faz uma investigação desses dois segmentos em um período em que o Império
Europeu, espanhóis, portugueses, ingleses, franceses, exerceu grande influência na literatura.
Posto isso, a Crítica Pós-Colonialista anseia em destrinchar os efeitos sobre as literaturas
contemporâneas durante e após a hegemonia do império europeu, que teve seu fim devido ao
conflito de interesses e tensão entre colonizados e colonizadores (BONNICI, 2009).
Prestigiando o estudo feito por Bonnici (2009), podemos compreender que a prática
interpretativa que visa obter uma certa ordem e clareza chegando ao entendimento de inúmeras
possibilidades de arquétipos de texto, é o que tange o Estruturalismo. A contemplação sobre o
significado e a cultura que estão sendo transmitidos e pesquisados por meio de uma obra, são
resultados que um crítico estruturalista pode alcançar por artifício do isolamento de padrões
significativos de signos.
Enquanto que, no Pós-Estruturalismo, não podemos obter uma interpretação com um
resultado determinado e definitivo nos textos literários, ao passo em que os estruturalistas
acreditam que o sentido de um texto está a um passo de ser descoberto por meio das estruturas
analisadas cientificamente, os pós-estruturalistas creem veementemente que a relação entre
texto e leitor produz apenas relances momentâneos de sentido (BONNICI, 2009).
Debruçando-nos sobre o estudo feito por Rodrigues (2009), tivemos o contato com o
conceito da Crítica Estilista, que estuda os fenômenos da linguística dando atenção ao campo
lexical, sintático, semântico e sonoro. Ao crítico estilista também interessa estabelecer uma
relação de interesse ideológico, temático, biográfico e estético.
A Crítica Sociológica compreende em estudos baseados na análise da sociedade e da
cultura almejando compreender o fenômeno da literatura. Aqui, a literatura não é um fenômeno
isolado, tão pouco uma obra literária é criada sem antes haver a construção de um contexto que
retrata a sociedade que ela representa, contexto esse que carrega características de uma
determinada época, de um determinado país, onde se pensa de uma certa maneira e se
compartilha de certos costumes e tradições (SILVA, 2009).

19
Dando atenção aos achados de Zappone (2009), compreendemos que a figura do leitor
é valorizada nas teorias baseadas na perspectiva recepcional, processo que faz da leitura e dos
mecanismos ou atividades que ela conjectura uma forma de desvendamento do texto literário
e, em adição, proporciona um entendimento da literatura e de sua história. A autora ainda elenca
alguns dos grandes nomes que discorrem sobre a literatura por meio do panorama recepcional,
nos quais encontramos Roland Barthes com a sua obra O prazer do texto de 1937, Wolfgang
Iser como o Ato da leitura: uma teoria do efeito estético de 1976, Hans Robert Jauss que
escreveu A história da literatura como desafio à teoria literária datado do ano de 1967, entre
outros.
A teoria da desconstrução originou-se da obra Gramatologia publicada no ano de 1967,
escrita pelo filósofo franco-argelino Jacques Derrida, nascido em El-Biar, Argélia.
Diferentemente do termo “destruição”, que está mais associado aos aspectos negativos e pode
dar a ideia de desarticulação ou decomposição de um pensamento, a desconstrução de Derrida
está preocupada com a problemática estruturalista, desenvolvendo uma forma de analisar a
noção de estrutura e a situar num contexto de um vasto e rigoroso questionamento de suas raízes
e ressonâncias, tendo em vista toda a tradição filosófico-crítica (SISCAR, 2009).
O materialismo lacaniano é uma corrente que, inicialmente, é oriunda da filosofia
política, tendo como alguns dos seus principais representantes o esloveno Slavoj Žižek e o
francês Alain Badiou. De acordo com os arcabouços levantados por Silva (2009), essa corrente
fora criada com o intuito de criticar o pensamento marxista convencional, contudo, não significa
que esses autores depreciam Marx, pelo contrário, ao aceitar Marx e sua contribuição para a
história do pensamento, Žižek e Badiou reiteram que a economia e a luta de classes por si só
não são satisfatórias para dar conta de tudo o que acontece.

1.1.1 A PSICANÁLISE

Antes de entendermos a relação que a Psicanálise tem com a Crítica Literária, é


importante frisarmos que a Psicanálise a princípio não fora um ramo ligado à Crítica Literária.
Contudo, com o passar do tempo, foi tornando-se íntima das práticas da Crítica Literária que
visavam entender o motivo pelo qual as pessoas escreviam e o impacto que os textos tinham
sobre os leitores.
Creditada como uma prática inventada pelo austríaco Sigmund Freud, que procurava
entender e explicar o funcionamento da mente humana e tratar desequilíbrios psíquicos, a

20
Psicanálise também foi responsável pela descoberta do inconsciente, passando a explorar esse
território ao longo do tempo, mapeando e compreendendo seus mecanismos.
Segundo Freud (1923-1925), a maioria dos processos que envolvem a psique humana,
estão no estado em que ele chama de inconsciente, sendo que a maior parte deles advém de
impulsos ligados aos desejos sexuais. O inconsciente seria o responsável por armazenar todos
os desejos, lembranças e instintos, que por sua vez seriam analisados pelo psicanalista
utilizando métodos de associação para encontrar a causa de possíveis neuroses4 ou a explicação
de comportamentos peculiares dos seus pacientes.
A Crítica Literária então passou a ter mais uma camada para as suas análises de textos,
a Psicanálise, e desde então ambas passaram a compartilhar do mesmo universo e a beber uma
da fonte da outra para fornecer mais subsídios para os estudiosos de cada área, como salientado
por Feldman (1982, p. 9), conforme citado por Dacorso (2010, p. 150) “A literatura é a
linguagem que a Psicanálise usa para falar de si mesma, para dar nome a si. A literatura não
está fora da Psicanálise, já que motiva e nomeia os seus conceitos. É a referência pela qual a
Psicanálise denomina as suas descobertas”.
Outro fator que põe Crítica Literária e Psicanálise lado a lado, segundo o pensamento
de Souza (2005), é o fato de ambas se tratarem de uma prática na qual a linguagem é a
ferramenta principal, sendo ela oral ou escrita. Neste ponto, a subjetividade é trabalhada por
ambos os profissionais, o crítico e o psicanalista, que visam transmitir e discutir uma ocorrência
de relevância social.
Contudo, a Psicanálise adota aportes da ciência, trabalhando em um campo de pesquisa
de exclusividade sua que lida com neuroses, psicoses, perversões e paranoias. Consideramos
então que a Psicanálise tem um método clínico revolucionário, a cura por meio da palavra de
um dado paciente (SOUZA, 2005).
Percebemos, portanto, que existem inúmeros fatores pelos quais a Psicanálise passou a
trabalhar junto à Crítica Literária, e essa, por sua vez, passou a explorar mais textos com uma
abordagem e visão que apenas a Psicanálise proporcionaria. Não surpreendentemente, passou-
se a utilizar, no campo da Crítica Literária, uma abordagem de cunho psicanalítico, dando início
à Teoria Crítica Psicanalítica, com base nos textos, ferramentas e métodos utilizados
principalmente por Freud.

4
Quadro psiquiátrico que caracteriza-se por dificuldades de adaptação por parte do indivíduo, embora este seja
capaz de trabalhar, estudar, envolver-se emocionalmente e estar bem entrosado com a realidade.
21
No seu livro Resumo da Psicanálise, Freud (1924, p. 201) comenta “A Psicanálise
cresceu num terreno bem delimitado. Seu objetivo, originalmente, era apenas conhecer algo
sobre a natureza das doenças nervosas denominadas “funcionais”, a fim de superar a impotência
médica no tratamento de tais doenças.” Naquela época, o pai da Psicanálise voltava suas
atenções para a cura dos seus pacientes de uma maneira bem peculiar, Freud procurava a cura
dos seus pacientes por meio das palavras.

1.1.2 TEORIA CRÍTICA PSICANALÍTICA

A crítica psicanalítica é a corrente da Crítica Literária que utiliza técnicas desenvolvidas


na Psicanálise. Essa ciência, como já discutido, é uma forma de terapia desenvolvida pelo
neurologista austríaco Sigmund Freud com a intenção de tratar pacientes que sofriam de histeria
e neuroses no final do século XIX. Assim, nas palavras de Barry “A Psicanálise é uma forma
de terapia que almeja curar problemas mentais por meio da investigação da interação de
elementos do consciente com o inconsciente na mente humana” (p. 96, 1995).
Freud e sua ideia de inconsciente na qual várias teorias que lidam com o entendimento
do comportamento humano são baseadas foram um enorme passo dado para a compreensão da
complexa psique humana a qual até pouco antes de Freud não fora dada importância e ignorada
por outros teóricos.
Contudo, faz necessário lembrar que a noção de inconsciente não foi um novo conceito
introduzido por Freud. Alguns filósofos já haviam discutido a respeito disso, como o filósofo
Aristóteles, que se referia ao inconsciente humano nas suas clássicas peças trágicas por meio
do efeito de catarse5.
Como podemos perceber, a importância do inconsciente e a invisível psique humana
serão sempre objetos de estudo para que possamos entender o comportamento humano, e assim,
portanto, justificar a produção de textos críticos literários baseados na Psicanálise. Desse modo,
essa corrente se torna uma peça fundamental para a construção de argumentos que ponderam
sobre as atitudes tomadas pelo homem.
Freud não só contribuiu para o campo da medicina, mas, em adição, ao campo da
literatura. Com a sua colaboração para a criação da teoria psicanalítica e a ratificação da
importância do inconsciente no entendimento do comportamento humano, ele abriu as portas

5
Estado de libertação psíquica que o ser humano vivencia quando consegue superar algum trauma como medo,
opressão ou outra perturbação psíquica.
22
do imaginário dos leitores e expandiu o horizonte que antes era limitado apenas à análise da
obra como um todo e não do comportamento dos personagens.
Sob outra perspectiva, Rodrigues (2004) acredita que o caminho da Crítica Literária se
amplificou no momento em que Freud ofereceu novas técnicas para a interpretação dos
conteúdos produzidos nas obras literárias. Essa amplificação corrobora para uma crítica
baseada na tradução do significado dos símbolos, provendo uma melhor interpretação da
mensagem do autor ao público.
A corrente literária psicanalítica se diferencia das demais, o comportamento do
personagem e suas peculiaridades são observados de forma a até mesmo serem mais
importantes do que o próprio texto. O que essa corrente tenta explicar, é que a interpretação do
comportamento leva a verdadeira compreensão das motivações de um dado personagem, o que
remete esse prisma à utilização de elementos extratextuais.

1.1.3 ID, EGO E SUPEREGO

Nesta seção, fez-se necessário explanarmos as instâncias que formam a psique humana
e trabalham juntas para criarem a complexidade do comportamento humano, a saber Id, Ego e
Superego, de acordo com o trabalho de Freud (1923-1925) na sua Teoria da Personalidade. Foi
a partir destas instâncias e dos mecanismos de defesa apresentados pelo Ego, que a análise dos
dados deste trabalho, pôde ser realizada. Desta maneira, contemplaremos uma introdução aos
conceitos desenvolvidos por Freud que abarcam o estudo sobre o comportamento do sujeito,
para então iniciarmos uma discussão acerca das personagens no capítulo seguinte que
contempla a análise dos dados.

1.1.4 ID, O INCONSCIENTE

Todo sujeito nasce com o Id, que antes se denominava inconsciente. Todo indivíduo é
tomado por desejos, impulsos e vontades que são próprios da natureza humana, e é com essa
perspectiva que nós podemos entender o funcionamento dessa esfera. O Id, é impulsionado pelo
princípio do prazer, que trabalha para que haja uma imediata gratificação de todos as
necessidades, desejos e vontades. O estado de ansiedade e tensão vem à tona quando essas
necessidades não são satisfeitas imediatamente (FREUD, 1923-1925).

23
Por exemplo, em uma roda de conversa acadêmica, a professora ressaltou o seu apoio
ao governo do atual presidente, enquanto que um de seus alunos, sem pensar duas vezes,
proferiu palavras de baixo calão ao mesmo tempo em que demonstrava apoio a uma nova
liderança para o país, sem pensar no quanto a professora poderia ficar ofendida, não com o seu
posicionamento político, mas com o seu comportamento ofensivo. Se magoar a professora com
os seus comentários fosse necessário para que a sua voz e posicionamento político fossem
ouvidos, ele não se importaria a princípio, pois o Id, como já comentamos, é uma instância
formada no inconsciente humano por meio de impulsos.
Segundo os estudos de Freud (1923-1925), essa instância é muito importante no início
da vida do indivíduo, uma vez que se um bebê ou uma criança estiver desconfortável, sentindo
frio, calor ou com fome, ela irá chorar até que a sua necessidade seja atendida, para que seja
dada atenção às demandas do Id. Contudo, satisfazer todas essas necessidades não cabe à nossa
realidade, uma vez que se estivermos sendo guiados apenas pelo princípio do prazer, sairíamos
discutindo com alguém na rua toda vez que não concordássemos com algo que aquela pessoa
pudesse ter falado, poderíamos apresentar trabalhos acadêmicos de chinelas e bermuda ou
deixaríamos para entregar o trabalho acadêmico dias depois da data combinada, ou coisas bem
piores. Para Freud (1923-1925), essa esfera também é a responsável por resolver a aflição criada
pelo princípio do prazer por meio de um processo imaginativo de um objeto desejado como
forma de satisfazer a necessidade.

1.1.5 EGO, A MATERIALIZAÇÃO DO INCONSCIENTE

O segundo componente, Ego, aflora nos anos iniciais do indivíduo. Essa instância
trabalha com a realidade, é o responsável pela interação do ser humano com o ambiente em que
vive. O Ego se desenvolve a partir dos impulsos do Id, e garante que esses impulsos sejam
expressos de forma aceitável no mundo real, ele também calcula as consequências de uma ação
antes que o indivíduo opte por desistir ou ceder aos impulsos (FREUD, 1923-1925).
Freud (1923-1925) também salienta que em alguns casos o Ego realiza o processo do
que ele chama de “gratificação atrasada”, permitindo os impulsos do Id, porém com uma
condição, que seja realizado apenas em local e momento apropriados. Essa esfera também é
responsável pelo processo secundário do comportamento humano, que descarrega a tensão dos
impulsos não satisfeitos do Id, momento no qual o Ego tenta encontrar um objeto real que se

24
equipare a imagem mental criada no processo principal do Id (FREUD, 1923-1925). É graças
ao Ego que o indivíduo consegue manter a sanidade da sua personalidade.
Por exemplo, uma garota pode se sentir atraída por um rapaz, contudo, para não ser
indelicada, a garota pergunta ao rapaz se ele tem namorada, antes de começar a flertar com ele.
Agora imaginemos que um acadêmico estava assistindo a aula de uma professora que proibia
que os alunos se alimentassem durante a sua aula, no entanto, ele tinha ido à universidade sem
ter tomado café da manhã e levado um pacote de biscoitos na mochila, o aluno, sabendo das
regras impostas pela professora, esperou que a aula terminasse para poder se alimentar fora da
sala de aula.

1.1.6 SUPEREGO, A DISTINÇÃO ENTRE O CERTO E O ERRADO

O último componente da psique humana é o Superego, que de acordo com os estudos


de Freud (1923-1925), se desenvolve a partir do Ego e é caracterizado pela internalização dos
nossos padrões morais, assim como também os ideais que adquirimos dos nossos pais e da
sociedade, funcionando como um senso do certo e errado. Essa instância é formada por duas
partes, a primeira é denominada como o Ego ideal, que inclui as normas e regras de bons
comportamentos, os quais são aprovados por figuras que ilustram a ordem e a moral, os
sentimentos de orgulho e realização por parte do indivíduo, fazem parte da obediência a essas
regras (FREUD, 1923-1925). A segunda parte é caracterizada pelos comportamentos que são
considerados inadequados pelos nossos pais e pela sociedade, afirma Freud (1923-1925), os
sentimentos de culpa e remorso são provenientes desse segmento do Superego.
Por exemplo, um cliente foi a uma loja e comprou duas peças de roupa, ao passar no
caixa a atendente por engano só cobrou o valor de uma peça, ao perceber o erro, o cliente voltou
à loja e pagou a diferença. Podemos também imaginar dois alunos que tiveram acesso às
questões da prova de Inglês, por descuido do professor ao deixar as provas sobre a mesa, esses
dois alunos ofereceram as respostas a um terceiro aluno, que tentado ao aceitar a “ajuda” dos
seus colegas, resolveu fazer a prova contando apenas com o conhecimento adquirido nas aulas.

1.1.7 OS MECANISMOS DE DEFESA DO EGO

O Ego conta com mecanismos de defesa desenvolvidos pelo subconsciente da


personalidade do sujeito com o intuito de resolver frustrações, conflitos, hostilidades,

25
ansiedades, ressentimentos e impulsos agressivos, é um sistema psicológico que opera
automaticamente quando necessário aliviar tensões internas (SILVA, 2010). Volpi (2008) ainda
reitera que os mecanismos de defesa também trabalham quando ameaças “ruins” põem em
cheque a integridade do Ego.
Utilizando-nos também do que diz Rodrigues (2008), os mecanismos de defesa são
instâncias inconscientes que estão estabelecidas no sujeito, e o mesmo convive com elas sem
que as perceba, apenas o processo analítico é capaz de as tornar, em parte, conscientes,
conduzindo à mudança e adaptação por parte do paciente, caso seja necessário.
Se pegarmos o significado de “mecanismos de defesa” segundo a seção psicanalítica do
termo no dicionário de Houaiss (2001, p. 2430), citado por Rodrigues (2008, p. 187),
descobriremos que é o

Conjunto de sentimentos, representação e tendências comportamentais que


sobrevêm, automaticamente, quando um indivíduo percebe uma ameaça
psíquica, o que o protege da angústia, de uma tomada de consciência dos
conflitos e perigos internos e externos, ou lhe permitem acomodar-se de uma
forma mais fácil, sem necessariamente consciencializar-se deles nem atingir
de facto uma nova adaptação ou um domínio da situação.

Entre alguns teóricos que propuseram uma classificação entre grupos, tipos e níveis dos
chamados mecanismo de defesa, encontramos George Vaillant (1971, 1976 e 1983, citado por
Justo et all., 1998, p. 3-4) que categoriza 18 mecanismos de defesa em quatro níveis, sendo eles:
mecanismos psicóticos (comuns nas psicoses, sonhos e nas crianças pequenas); mecanismos
imaturos (comuns nas depressões severas, transtornos de personalidade e adolescência);
mecanismos neuróticos (comuns em todas as pessoas) e mecanismos maduros (comuns em
adultos sadios). A seguir faremos uma breve apresentação dos mecanismos de defesa que
compõem a defesa formada pela instância do Ego, resguardando a explanação dos mecanismos
de Identificação e Negação o qual terão atenção especial no capítulo de análise dos dados.
O Recalque ou Repressão tem a função de conter o estado de ansiedade por meio do
afastamento de uma ideia, evento ou percepção do consciente, mantendo esse sentimento no
inconsciente devido ao fato de ser algo com um grande potencial de ameaça (VOLPI, 2008).
Para Silva (2010), os indivíduos que possuem transtornos obsessivos frequentemente
ativam o mecanismo da Anulação, invalidando uma ação ou um desejo anteriormente válido,
esse pensamento se caracteriza por não estar conectado à realidade.
Quando um indivíduo atribui a um objeto, animal ou outra pessoa as qualidades,
sentimentos ou intenções que ele nega em si próprio como sendo seus, temos o processo de

26
Projeção, aqui os aspectos que formam a personalidade do indivíduo são transferidos do seu
íntimo para o ambiente externo (VOLPI, 2008).
Nem todas as vontades do Id podem ser atendidas e por isso, certos comportamentos
podem ser considerados inadequados pela sociedade, dessa forma Silva (2010) acredita que o
mecanismo da Sublimação é o responsável por desagressivar a intenção agressiva ou
dessexualizar a libido, para que tais pensamentos se transformem em atos socialmente mais
aceitos.
Creditado como sendo o mecanismo oposto da Projeção, na Introjeção o sujeito
incorpora para dentro de si atitudes, modos de pensar e agir do outro, adquirindo assim
características que não são verdadeiramente dele (VOLPI, 2008).
Dentre os vários sentimentos que o indivíduo possa ter durante a vida, o sentimento de
culpa pode ser o mais vergonhoso, sendo assim Silva (2010) buscar explicar que para evitá-lo
e manter o respeito próprio integro, o Ego aciona o mecanismo de defesa da Racionalização,
criando um viés falso da realidade para não reconhecer o verdadeiro.
Uma das formas que o Ego encontra para aliviar a ansiedade, é retornar aos níveis de
desenvolvimento anterior adotando um comportamento mais simples e infantil, desta maneira
o indivíduo revisita uma fase em que esse tipo de comportamento aliviara o seu nível de tensão,
ativando o mecanismo da Regressão (VOLPI, 2008).
Aprofundando-nos no trabalho de Silva (2010), entendemos o ponto de vista do autor,
que acredita que o mecanismo Formação Reativa é caracterizado quando o sujeito expressa um
comportamento oposto àquele expressado anteriormente. Aqui o indivíduo tenta manter esses
desejos ocultos por meio da repressão de tais impulsos fazendo uma performance de um
comportamento que não comprometa a sua imagem frente à sociedade.
Tendo como base os estudos de Volpi (2008), podemos entender o mecanismo de
Deslocamento, identificado quando o indivíduo substitui sua vontade inicial por uma
socialmente mais aceita.
Quando o indivíduo se encontra em uma posição de desconforto com relação a uma
pessoa ou um objeto, o mesmo encontra no mecanismo do Isolamento uma solução para a
resolução do seu problema, distanciando-se e interrompendo qualquer conexão com a pessoa
ou com o objeto que esteja o incomodando (SILVA, 2010).
Fazendo uma análise dos estudos e achados de Silva (2010), entendemos que o
mecanismo da Idealização se dá quando o indivíduo exagera os aspectos positivos do objeto,
tendo como objetivo se resguardar do sentimento de angústia.

27
Com o mecanismo da Fantasia o indivíduo é transportado para uma realidade onde o
seu desejo ou necessidade, que por algum motivo não pode ser concretizado no mundo real, é
atendido, dessa forma os impulsos do Id são satisfeitos de forma a proporcionar prazer ao sujeito
(VOLPI, 2008).
O mecanismo da Cisão ou Dissociação separa um grupo de sentimentos/pensamentos
de um outro grupo de sentimentos/pensamentos, classificando um como ruim e assim
prejudicial ao Ego. Dessa forma o sujeito não enfrenta a angústia de pensar mal de quem se
deve pensar bem. A Dissociação então conforta o sujeito não fazendo-o sentir-se culpado por
pensar mal de algo considerado bom (SILVA, 2010).
Contando com a ideias propostas por Silva (2010), entendemos que com o mecanismo
da Reparação o indivíduo experimenta o conforto reestruturando um objeto que fora danificado
por ele, assim sendo, o sujeito procura realizar uma ação que de alguma forma possa beneficiar
o objeto prejudicado.
Quando o indivíduo de alguma forma causa algum mal ao outro e sente-se culpado, o
mesmo pode experimentar o redirecionamento do impulso no qual o objeto é o próprio
indivíduo, assim sendo, esse sentimento de culpa pode levá-lo a se auto agredir, esse processo
faz parte do mecanismo Volta contra o eu (SILVA, 2010).
No mecanismo Fixação, o indivíduo detém uma forma incompleta na evolução da
personalidade e, portanto, apresenta elementos incompletamente amadurecidos, assim, sua
organização emocional é determinada num patamar imaturo no qual há um intervalo entre a
condição biológica do sujeito e a independência emocional do mesmo, é o que acredita Silva
(2010).

28
CAPÍTULO 2
RELACIONAMENTOS DE LACIE POUND À LUZ DA CRÍTICA LITERÁRIA
PSICANALÍTICA: mecanismos de defesa caracterizados na relação com as personagens
Naomi Jayne e Susan Taylor

Neste capítulo analisamos as cenas do episódio Nosedive, fazendo um breve resumo dos
acontecimentos ao passo em que procuramos destacar os detalhes peculiares, à luz da teoria
psicanalítica, contidos em cada cena, associando-os aos mecanismos de defesa levantados pela
Psicanálise, que por sua vez, fazem parte dos objetivos específicos desta pesquisa, para que
conseguíssemos chegar a uma reflexão acerca dos relacionamentos entre a protagonista com as
personagens Naomi Jayne e Susan Taylor.
De igual importância, faremos uso dos aportes teóricos da Psicanálise fundamentado
principalmente nos estudos realizados por Freud, em um diálogo com o trabalho de Bauman
(2005) para entendermos como a personagem demonstra sintomas psicológicos que
caracterizam um quadro clínico de ansiedade, que por sua vez influencia o esvaziamento
existencial e o consumismo excessivo da protagonista no cenário moderno.
Porém, inicialmente foi necessário apresentarmos a série e os vários conceitos
filosóficos e sociais inseridos pelo criador, desta forma facilitando a compreensão das análises
feitas neste capítulo. Ainda na seção que diz respeito à apresentação da série, trouxemos uma
análise do episódio, visto que para entendermos o comportamento da protagonista, primeiro
devemos entender o meio em que ela está inserida.

2.1 BLACK MIRROR

Com a larga escala de produção de séries, principalmente da TV estadunidense, é


recorrente nos depararmos com o cancelamento de vários desses programas antes mesmo dos
primeiros episódios irem ao ar, isso acontece porque a qualidade dessas séries é questionável,
o que faz com que produções que trazem uma camada filosófica mais densa para pôr em prática
a capacidade crítica-reflexiva dos telespectadores, como Black Mirror, ganhem notoriedade
dentro das grandes mídias.
Com o propósito de discutir os excessos do comportamento humano, esta série traz
episódios que, nitidamente, não se preocupam em resolver os problemas da sociedade
contemporânea, mas sim destacar a inquietação coletiva com relação ao mundo moderno e a
subsequente paranoia tecnológica contemporânea.
29
2.1.1 A PROPOSTA DE BLACK MIRROR

Black Mirror é uma série de televisão britânica antológica de ficção científica criada
pelo jornalista Charlie Brooker. Aqui, temas obscuros e satíricos examinam a sociedade
moderna, focando principalmente nas consequências imprevistas das novas tecnologias. A
trama, segundo o próprio criador, não possui um vínculo narrativo entre um episódio e outro, o
que não é motivo suficiente para impedir que os fãs criem suas teorias de conexão entre os
vários episódios6 das temporadas. Nesta série, cada episódio tem personagens e ambientes
diferentes que se passam em um presente alternativo ou em um futuro próximo. Porém, vários
easter eggs7, especialmente no sexto episódio da quarta temporada intitulado Black Museum,
podem ser encontrados ao longo das temporadas, o que dá aos fãs argumentos para a construção
de suas teorias de linearidade e compartilhamento de universo entre os episódios.
Contudo, todos abordam a mesma temática, discutindo a forma como vivemos diante
do uso desses dispositivos tecnológicos, fazendo uma crítica da midiatização da vida social e
das relações humanas, transformada pelo desenvolvimento das tecnologias digitais. A ideia não
é focar nas tecnologias em si, mas sim na problematização dos reflexos de seus vários usos e
implicações no comportamento humano.
A série fez sua estreia em 2011 pela emissora inglesa Channel 4, e lá foi exibida durante
duas temporadas, além do especial de natal exibido em dezembro de 2014, porém, em setembro
de 2015 a gigante do serviço de streaming NetFlix, encomendou a terceira temporada que
estreou em outubro de 2016, seguido da quarta temporada em dezembro de 2017. Não demorou
muito para que a série se popularizasse, e assim a empresa ganhou novos assinantes que queriam
testemunhar a tragédia vivida pelos personagens dessa série.
Black Mirror apresenta possibilidades futurísticas, que em alguns episódios se
assemelham em muito com o que já está ao nosso alcance. Tão por isso seu nome, Black Mirror
- Espelho Negro, faz alusão aos vários dispositivos eletrônicos que nós utilizamos, o tablete, a
televisão, o aparelho celular e o computador. Em todos eles, é possível constatar a tela negra e
fria característica dos aparelhos que trabalham com o audiovisual.

6
http://emais.estadao.com.br/noticias/tv,brasileira-elabora-teoria-com-ordem-cronologica-dos-episodios-de-
black-mirror,70002144062.
7
Mensagens e segredos escondidos em jogos eletrônicos, filmes, séries, etc.
30
2.1.2 A TECNOLOGIA COMO PANO DE FUNDO

Apesar do fato de os episódios não compartilharem uma mesma narrativa, o que já foi
constatado pelo próprio criador da série, Black Mirror se preocupa em criar uma atmosfera para
que a audiência perceba que embora os personagens de um dado episódio não interajam com
os personagens de um outro episódio, todos compartilham do mesmo terror psicológico, o que
segundo Booker, é uma preocupação dele e dos seus roteiristas, ao declarar no jornal The
Guardian:

Trabalhando nesses seis episódios da terceira temporada, com escritores


convidados – a chave foi tratar a tecnologia como a série Twilight Zone usou
o sobrenatural, para fazer algo mágico acontecer. Quanto mais horrível as
circunstâncias ficam, mais divertido eu acho, e então você saberá que isso
eventualmente se transformará em uma história de Black Mirror.
(The Guardian, 2016)

O mundo distópico8 compartilhado pelos personagens, com exceção do primeiro


episódio da primeira temporada no qual, aparentemente, a sociedade ainda não mergulhou no
caos apresentado nos episódios seguintes9, trazem a ideia de que os acontecimentos de cada
episódio fazem parte da mesma realidade psicológica degradante em que os personagens estão
submetidos. Entretanto, não fazem parte da mesma realidade narrativa.
O grande diferencial dessa série, é que embora ela seja descrita como uma série de ficção
científica, nela, não presenciamos robôs10, óvnis ou seres de outros planetas, mas sim, humanos,
pessoas que se aproveitam das novas tecnologias para terem vantagens ou terem a falsa
sensação de prazer e bem-estar sendo para matarem a saudade de um ente querido que já se
fora11, para chantagearem12 ou para monitorarem a vida de alguém13. Por esse motivo é que a
série vem ganhando cada vez mais audiência e popularidade, por estar associada com a
sociedade contemporânea, com a nossa realidade.

8
Mundo baseado numa ficção cujo valor representa a antítese da utopia ou promove a vivência em uma "utopia
negativa". As distopias são geralmente caracterizadas pelo totalitarismo, autoritarismo, por opressivo controle da
sociedade.
9
Ver The National Anthem S01E01.
10
Com exceção do quinto episódio da quarta temporada no qual temos uma espécie cachorro robô badass no que
mais lembra um Xenomorph do filme original de Ridley Scott, caçando a personagem Bella do começo ao fim.
Ver Metalhead S04E05.
11
Ver Be right back, S02E01.
12
Ver Shut up and dance, S03E03.
13
Ver Arkangel, S04E02.
31
Utilizando-se do gênero ficção científica, do humor negro e das similaridades de alguns
fenômenos midiáticos da sua série com os já existentes, Brooker construiu um enredo diferente
para cada episódio que estão ligados apenas pela mesma temática. Quanto à abordagem, o
criador da série discute, dentre outras coisas, a onipresença da tecnologia na vida moderna, o
que remete às obras já existentes que ponderam sobre os efeitos colaterais das novas
tecnologias.
Como o próprio título desta pesquisa já diz, Black Mirror não é sobre a tecnologia, é
sobre a humanidade, assim, a série se propõe a destacar também os relacionamentos e
experiências humanas em virtude das novas tecnologias. Contudo, não se deve pensar que a
tecnologia é a protagonista, mas sim, uma adição, uma parte do problema levantado por
Brooker, que põe em cheque a relação homem-tecnologia, e mais ainda a relação homem-
homem.
Esta série é considerada um dos melhores programas da atualidade segundo a crítica,
não apenas por falar de problemas contemporâneos e nos apresentar um mundo e condições
futurísticas as quais talvez nós possamos estar presenciando daqui a um curto período de tempo,
mas também, por oferecer várias discussões dentro dos seus episódios. Dessa forma, é
proporcionado a nós, um exercício de reflexão crítica, na qual somos jogados em uma situação
em que temos o enredo, os personagens, o material audiovisual, e só nos resta refletir sobre
cada episódio, sobre cada personagem, sobre cada desfecho, e mais ainda, sobre nós mesmos.
Ao analisarmos o que Brooker comentou um pouco antes da estreia de sua série em
2011, podemos também encarar Black Mirror como um manifesto do autor que alerta sobre a
condição de viciados em que estamos, o próprio incluso, quando exageramos no uso das novas
tecnologias:

Como um viciado, eu checo a minha linha do tempo no Twitter no momento


em que eu acordo. E eu geralmente me pergunto: isso tudo é realmente bom
para mim? Para nós? Nenhuma dessas coisas foi imposta sobre a humanidade
– nós meramente as abraçamos. Mas para onde isso tudo está nos levando? Se
tecnologia é uma droga – e isso parece mesmo uma droga – então o que
precisamente são os efeitos colaterais? Essa área – entre deleite e desconforto
– é onde Black Mirror, minha nova série dramática, está. O espelho negro, do
título é aquele que você encontrará em cada parede, em cada mesa de
escritório, na palma da mão de todos: a fria, brilhante tela de uma televisão,
um monitor, um smartphone. (BOOKER, The Guardian, 2011)

Esse problema é algo que afeta a maioria da população mundial que tem acesso a tais
aparatos tecnológicos, e vem sido muito discutido pelas autoridades competentes ao redor do

32
mundo, porém, parece impossível parar o crescimento dos adeptos aos tais apetrechos, uma vez
que somos bombardeados por propagandas, o que incita cada vez mais a prática do
consumismo. Ao final, temos a impressão de que realmente precisamos desses aparatos
tecnológicos, uma vez que a utilização deles nos dá uma sensação maior de conforto, nos insere
dentro da sociedade da informação e nos proporciona uma realização de nossos impulsos
consumistas.

2.1.3 A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO EM NOSEDIVE

Para Debord (1994) em sua obra Sociedade do Espetáculo, a vida se transformou em


uma mera representação, para ele, é fato que a teatralidade se inseriu na sociedade de tal maneira
a amontoar espetáculos protagonizados pelos indivíduos. Segundo o autor, o espetáculo
representa a relação social entre as pessoas e as imagens produzidas por elas. Nesse ponto, vale
salientar que a imagem descrita por Debord é a caracterização da realidade, que segundo ele, é
fictícia, ilustrando uma realidade falsa que ao dominar as pessoas, passa a ser objeto de
contemplação das aparências, dissimulando, aparentemente, os sentimentos negativos e
explicitando o falso bem-estar do indivíduo para consigo mesmo, para com os outros e para
com o ambiente em que está inserido.
O fanatismo também é um elemento presente nesse fenômeno descrito por Debord, uma
vez que a adoração à ideologia estabelecida nas mídias, é transposta na imagem compartilhada
entre o que a sociedade do espetáculo julga ser correta. Em outras palavras, essa imagem se
torna palatável pelos indivíduos envolvidos na Sociedade do Espetáculo.
É o que vemos no episódio intitulado Nosedive, uma sociedade distópica criado por
Charlie Brooker onde a personagem Lacie Pound, interpretada pela atriz Bryce Dallas Howard,
se encontra em uma obsessão pelo alcance das cinco estrelas, medidor da aprovação dos outros
usuários frente ao seu perfil, em uma rede social semelhante ao que nós temos hoje como
Instagram e/ou Facebook.

33
Imagem 1: Lacie em Nosedive
Fonte: NetFlix, Black Mirror, Nosedive (2016)

Como visto na imagem supracitada, nesse universo a sociedade se reflete única e


exclusivamente por meio dessa rede social. Os personagens são aquilo que os seus perfis
mostram, seus status sociais são representados por meio do quão influentes eles são naquela
plataforma digital. Quanto maior o rank das suas estrelas, mas bem vistos eles são. Enquanto
que aqueles que não alcançam boas médias na plataforma, são taxados quase como marginais,
não podendo desfrutar de serviços como por exemplo alugar um carro decente ou comprar uma
passagem de avião.

Imagem 2: Lacie avaliando perfis


Fonte: NetFlix, Black Mirror, Nosedive (2016)

Adentrando-nos a uma análise semiótica14, neste episódio o telespectador pode até se


enganar à primeira vista ao assisti-lo e ficar vislumbrado com a coloração viva da palheta de

14
Estudo dos signos, que consistem em todos os elementos que representam algum significado e sentido para o
ser humano, abrangendo as linguagens verbais e não-verbais.
34
cores utilizadas nas cenas iniciais, o que vai desde a saturação de um vermelho leve presente
na cena da lanchonete, ao azul claro suave utilizado nas cenas ambientadas no local de trabalho
da personagem, o que pode indicar paz, felicidade e tranquilidade. Porém, as cores começam a
ficar mais escuras e pesadas a medida em que a personagem se aprofunda no seu declínio social.
Como visto na cena do aeroporto, o início da sua queda livre, na qual o taxista a avalia com a
pontuação mínima de uma estrela.
A protagonista então se direciona até o balcão da atendente do aeroporto para fazer o
check-in do seu voo. Logo, percebemos que o aparelho celular é o documento de identificação
daquelas pessoas, pois ela o coloca em um lugar especial no balcão que aparenta ser um leitor
de perfis. A partir daí a atendente tem acesso a todos os dados do perfil da personagem na rede
social. Infelizmente, o voo dela havia sido cancelado, e é aí que se dá início aos acontecimentos
trágicos da protagonista.
Lacie então pergunta quando será o próximo voo, a atendente explica que todos os voos
estão lotados e procura uma outra maneira de ajudar a protagonista. Ela então informa a
personagem sobre uma vaga para clientes que se enquadrem no Prime Flight Programme15, que
dá acesso a todos os que tiverem uma média de 4.2 ou superior, infelizmente ela acabara de
perder alguns pontos graças a baixa avaliação dada pelo taxista, tendo agora 4.183 estrelas.

Imagem 3: Lacie sendo barrada no aeroporto


Fonte: NetFlix, Black Mirror, Nosedive (2016)

Logo, a aura fúnebre que o seriado possui, é camuflada nos primeiros minutos do
episódio a fim de proporcionar à audiência a falsa sensação de felicidade e bem-estar que os

15
Programa especial para pessoas influentes na rede social apresentada na série.
35
usuários daquela plataforma desfrutam. Contudo, o lúgubre acaba se tornando um elemento
essencial na construção de todos os episódios da série. Isso se explica porque segundo Frye
(1973), um espírito predominante sombrio faz parte da estrutura trágica, identificando o
episódio como um exemplo deste gênero. Outro elemento que remete o episódio diretamente
ao trágico é a atenção dada apenas a um personagem, este sendo a protagonista Lacie Pound. É
ela quem carrega toda a dramaticidade e protagonismo da história, todos os eventos da narrativa
giram em torno dessa personagem.
Os eventos que dão prosseguimento à cena do aeroporto, acompanham a personagem
em momentos que oscilam entre emocionante e perturbador em que a audiência,
definitivamente, assim como em todos os episódios da série, parou alguns minutos para pensar
na possível relação que aquele mundo distópico teria com a nossa realidade.
Desta forma, Nosedive se caracteriza como uma narrativa genuinamente trágica, que
não se preocupa em consolar a sua plateia, mas que, ao invés disso, utiliza-se da infelicidade de
seus personagens para gerar uma reflexão acerca da utilização das novas tecnologias, e acima
disso, uma reflexão sobre o comportamento e excessos humanos.
O episódio, portanto, não se preocupa em aliviar o sentimento mórbido deixado pelas
possibilidades apresentadas na trama, ao invés disso, ele provoca sentimentos mais ásperos e a
reflexão por parte do público de que sim, esse mundo representa uma realidade que está bem
próxima da nossa, esse é o poder de Black Mirror.

2.2 NOSEDIVE, A QUEDA LIVRE

Neste episódio somos apresentados a uma sociedade onde as pessoas utilizam implantes
oculares e dispositivos móveis que muito se assemelham aos smartphones. Ao interagirem entre
si, as pessoas avaliam umas às outras por meio de uma rede social que oferece uma nota de uma
a cinco estrelas. A avaliação dada para cada pessoa dentro dessa plataforma afeta diretamente
no seu status socioeconômico. Desta forma, as relações são cultivadas por meio da falsidade e
da teatralidade.
A protagonista do episódio, Lacie Pound, é uma jovem que possui uma avaliação de 4.2
estrelas, considerada alta dentro dos parâmetros nos quais a avaliação máxima de um usuário é
de 5.0 estrelas. A jovem está empolgada para crescer mais ainda dentro da rede social e assim
adquirir mais benefícios socioeconômicos no contexto em que está inserida.

36
Quando a garota recebe a oferta de morar em um condomínio de classe alta, percebe
que o custo da moradia está acima daquilo que ela poderia arcar, assim, a corretora apresenta a
possibilidade de Lacie participar de um programa especial para conseguir um desconto no
aluguel. A protagonista então teria que chegar à média de 4.5 estrelas para obter o desconto e
assim conseguir a tão sonhada casa. A partir daí acompanhamos a personagem em uma
empreitada para ganhar mais avaliações positivas, tentando ganhar a admiração de pessoas
influentes na rede social, pois as mesmas têm maiores impactos nas notas.
Neste cenário, Naomi, que fora uma amiga de escola de Lacie, a convida para ser a dama
de honra de seu casamento. A protagonista então vê a oportunidade perfeita, pois além de
Naomi e seu futuro marido serem pessoas pertencentes à elite da rede social, todos os
convidados do casamento também são tão influentes quanto o casal.
Lacie, pois, decide fazer um discurso tocante para que todos a avaliem e ela consiga sair
do casamento com a média de estrelas desejada. Após uma série de eventos que a fazem ficar
com uma avaliação bem abaixo da média, Naomi liga dizendo que não quer que sua velha amiga
apareça no casamento, pois agora ela era uma pessoa mal avaliada na rede social.
Todavia, a garota está decidida a ir. Chegando ao casamento, ela consegue se infiltrar
na festa, pegar o microfone e começar a dar o discurso que havia preparado. Em uma mistura
bizarra e psicótica de falsidade e autenticidade, a protagonista revela algumas situações
constrangedoras e fatos sobre Naomi que a apresentam como uma pessoa má, diferentemente
do que o seu perfil na rede social apresenta.
Os convidados começam a avaliar Lacie negativamente, e a garota começa a agir de
forma agressiva e perigosa até que uma das convidadas a faz tropeçar, facilitando assim a ação
dos seguranças do local. Lacie é levada a uma prisão onde o implante nos olhos juntamente
com o sistema de avaliação são retirados dela.
Já na sua cela, a protagonista começa a discutir com um rapaz que está em um cárcere
em frente ao seu, falando verdades que antes não podia falar com medo de ser avaliada
negativamente pelo sistema imposto pela rede social. Lacie demonstra estar feliz por finalmente
poder agir de forma autêntica.

2.3 A ANSIEDADE E O VAZIO EXISTENCIAL DA PERSONAGEM LACIE POUND

Nesta seção será apresentado o mal-estar psicológico da protagonista do episódio que


resulta na ansiedade e, consequentemente, na ativação dos mecanismos de defesa do Ego. A

37
fim de proporcionar um melhor entendimento do material analisado, utilizaremos como
referencial os arcabouços teóricos de Freud (1923-1925) e Bauman (2005), o último discutindo
sobre a experiência psicológica do esvaziamento interior da existência e a postura consumista
da sociedade capitalista.
Como visto no primeiro capítulo deste trabalho, o relacionamento das instâncias que
formam a psique humana, a saber Id, Ego e Supergo, não é fácil, o resultado de toda essa
bagunça na mente humana pode ser a ansiedade.
A ideia estabelecida no capítulo anterior é que existe um conflito entre os desejos do Id
e as limitações estabelecidas pela realidade externa, logo pois se as vontades do Id fossem todas
atendidas o indivíduo teria um comportamento considerado inaceitável pela sociedade, então,
a maioria das demandas do Id precisam ser adiadas por longo tempo ou simplesmente serem
frustradas.
Em outros momentos, os desejos do Id podem ser direcionados para objetos diferentes
do objeto original. Um sujeito com comportamento agressivo pode canalizar a sua raiva para a
prática de uma arte marcial, por exemplo. Desta forma a agressividade será manifestada dentro
de regras estabelecidas coletivamente naquela prática. Segundo Freud (1923-1925), isso
acontece porque as pulsões do Id possuem características mutáveis, ou seja, possuem maneiras
alternativas para serem recompensadas. Entretanto, para que essas pulsões possam ser contidas
pelo indivíduo, é exigido dele um grande gasto de energia, culminando em aborrecimento,
cansaço e ansiedade (FREUD, 1923-1925).
A ansiedade leva o sujeito ao constante estado de alarde, no qual o perigo parece ser
iminente. Freud (1923-1925) ainda estabelece uma diferenciação entre ansiedade e medo
salientando que no medo o objeto que ameaça o indivíduo é visível, palpável, existente. Por
exemplo, o indivíduo pode estar em uma rua e ver um ladrão armado vindo em sua direção.
Essa situação causa o medo no sujeito, enquanto que a ansiedade possui características opostas.
Por exemplo, o indivíduo pode estar em um restaurante em uma cidade onde os índices de
assalto são alarmantes, porém, mesmo não havendo ameaça nenhuma por perto, o sujeito tem
uma sensação de perigo a todo instante, se encontrando em um estado de ansiedade.
Para Freud (1923-1925) a ansiedade é resultado de dois fenômenos: o primeiro sendo
algo que ele chama de libido contida, ou seja, de pulsões do Id não concretizadas; o segundo
fenômeno se explica devido às experiências traumáticas, por exemplo, quando criança o
indivíduo pode ter tido a vontade de andar descalço mas sempre ter sido repreendido ou
severamente punido pela mãe ou pelo pai. Desta forma, na fase adulta esse mesmo sujeito pode

38
experimentar a ansiedade ao sentir o desejo de andar descalço, mesmo que o sujeito não se
lembre mais da punição sofrida quando criança.
Dessa maneira, a ansiedade é resultado das tensões sofridas pelas três instâncias da
psique humana. Primeiro são criados os impulsos do Id, depois surge a ameaça de punição do
Superego, o Id deseja algo e o Superego, por sua vez, coíbe, e então o Ego fica com a
desconfortável sensação de medo. Como se o indivíduo fosse alvo de uma punição propínqua.
Para conter esse processo doloroso o Ego cria mecanismos de defesa (FREUD, 1923-1925).
Por falta de coragem para enfrentar os problemas irresolutos da vida ou para tentar
controlar a ansiedade e fugir dessas dificuldades, o sujeito recorre a vários procedimentos
práticos além dos mecanismos ativados inconscientemente pelo Ego. São algumas soluções
práticas para o controle da ansiedade: o uso de entorpecentes, calmantes, antidepressivos, o
consumo exagerado de álcool e até mesmo o uso de drogas ilícitas. Entretanto, a personagem
Lacie Pound, além de ativar os mecanismos de defesa do Ego, que serão analisados nas
próximas seções, utiliza outra espécie de “droga” socialmente mais aceitável para conter a sua
ansiedade, o consumismo.
Atentando-nos ao entendimento do declínio psicológico da personagem estudada,
visamos utilizar os argumentos apresentados por Bauman (2005), que apresenta o homem como
tendo um nível de vida insatisfatório, o que o deixa fragilizado e dependente das regras impostas
pelo capitalismo e da condição exagerada de consumidor, no contexto desta pesquisa,
apresentado na cena a ser discutida no próximo parágrafo.

Imagem 4: Holograma de Lacie


Fonte: NetFlix, Black Mirror, Nosedive (2016)

Na cena em que Lacie se encontra com a corretora imobiliária para discutir o possível
aluguel de uma nova casa, podemos observar traços do capitalismo no qual a submissão aos
39
alardes publicitários incentiva a procura por níveis cada vez maiores de consumo (BAUMAN,
2005). A corretora apresenta a casa à personagem, utilizando-se de um holograma de Lacie e
de um rapaz que começa a trocar carícias com o holograma da personagem, para simular a vida
“feliz” que ela poderia ter ali. Lacie, com uma expressão de fascínio, fica encantada com a
proposta.
Ao discutirem a possível negociação, a corretora calcula o valor do aluguel que Lacie
teria que pagar para desfrutar de todos os benefícios daquela enorme casa durante o contrato
mínimo de seis meses. Ao receber o valor, a personagem pergunta sobre a forma de pagamento,
e a corretora logo informa que o pagamento é semanal.
Lacie então demonstra não poder arcar com aquele valor, e a corretora apresenta a ela a
opção alternativa. O Prime Influencers Programm é apresentado à personagem como forma de
diminuir em 20% o valor do aluguel. No entanto, a corretora informa que, para ter tal benefício,
o contratante deve ter alcançado, no mínimo, 4.5 estrelas na rede social apresentada na série. A
protagonista então estabelece o seu objetivo, alcançar 4.5 estrelas na rede social.

Imagem 5: Lacie em frente ao anúncio do residencial


Fonte: NetFlix, Black Mirror, Nosedive (2016)

Ao final da cena, Lacie encara a enorme placa de propaganda do residencial no outro


lado da rua. Na placa podemos observar o nome do residencial, Pelican Cove, assim como
também Lacie e seu companheiro holográfico em uma mesa de jantar. Ao sair, o holograma da
personagem desaparece da placa, deixando apenas o lugar vazio para o próximo interessado no
imóvel. Assim, segundo Bauman (2005, p. 14-15), citado por Bittencourt (2011, p. 27) nascem

40
Os “problemas do refugo (humano) e da remoção do lixo (humano)” pesam
ainda mais fortemente sobre a moderna e consumista cultura da
individualização. Eles saturam todos os setores mais importantes da vida
social, tendem a dominar estratégias de vida e a reverter as atividades mais
importantes da existência, estimulando-as a gerar seu próprio refugo sui
generis: relacionamentos humanos natimortos, inadequados, inválidos ou
inviáveis, nascidos com a marca do descarte iminente.

A empresa responsável pelo aluguel dos imóveis do residencial Pelican Cove aposta no
“preenchimento” da vida dos seus clientes, oferecendo-lhes aquilo que eles mais anseiam em
conseguir, no caso de Lacie a compra de um bem material nas proporções da enorme casa, para
preencher o seu vazio existencial. Em adição, estrategicamente a empresa simula uma possível
relação amorosa dos seus clientes por meio da tecnologia do holograma, o que dá margens para
discutirmos outra necessidade da personagem, o início de uma vida amorosa, o que
aparentemente não parece ser fácil para a personagem, uma vez que ela não sabe se relacionar
bem ou de forma autêntica com as pessoas ao seu redor.
Um outro benefício aparentemente proporcionado pela compra do imóvel seria uma
melhor relação com o meio em que vive. Ao fazer parte de um residencial onde vivem apenas
pessoas com um alto poder aquisitivo, Lacie, que é apresentada como uma pessoa que pretende
desfrutar dos gozos da classe alta da sociedade e não se relaciona bem com aqueles que têm
uma baixa avaliação, estaria sendo contemplada com a interação limitada apenas àquelas
pessoas mais influentes na rede social.
Desta forma Lacie estaria blindando a si mesma do convívio com pessoas cujas
avaliações são baixas e, desta forma, consideradas não pertencentes ao seleto grupo que compõe
a elite da sociedade apresentada no episódio. O que parece ser o principal objetivo da
personagem, pois há vários indícios de que ela faria de tudo para alcançar o status social
dourado daquele universo e se igualar às pessoas que ela se espelha.
Seguindo os conceitos de Bauman (2005) do refugo e remoção do lixo humano
aplicados no contexto do episódio, podemos entender como Lacie e os demais usuários com
altas avaliações na rede social encaram aqueles com baixas avaliações. Para Lacie, existe uma
linha imaginária na sociedade que divide aqueles que têm e são daqueles que não têm e não são.
Traços que se assemelham muito com os conceitos de capitalismo também apresentados no
trabalho de Bauman.
Para os pertencentes da elite social, por assim classificar, o pensamento individualista
prevalece, de modo a buscar meios para beneficiar a si próprio a custo do descarte da felicidade
e bem-estar do próximo, se for possível, o que os deixa cegos diante da real situação de

41
infelicidade enfrentadas por eles ao ponto em que chegam a experimentar o vazio existencial,
estado em que se encontram quando suas vidas não possuem mais uma significação superior e
suas rotinas cotidianas já não possuem mais elementos que os estimulam a viver e procurar
felicidade significativa e realização pessoal (BAUMAN, 2005).
Podemos perceber que o início dos problemas de Lacie se dá a partir do momento em
que ela decide alcançar as 4.5 estrelas para ter o desconto no aluguel do imóvel dos sonhos. Em
outras palavras, é o desejo capitalista de consumir algo para mostrar a sociedade que você é e
têm e mais ainda, tentar se libertar do estado doloroso que a ansiedade proporciona a ela, que a
controla. O medo de ser considerada alguém sem valor pelos integrantes da elite faz com que
ela incansavelmente procure alcançar a média de estrelas na rede social. Como visto nas
palavras de Lindstrom (2009, p. 172), citado por Bittencourt (2011, p.28)

Em breve, um número cada vez maior de empresas vai se esforçar para


manipular medos e inseguranças a respeito de nós mesmos para nos fazer
pensar que não somos suficientemente bons, que se não comprarmos um
determinado produto, estaremos de alguma forma perdendo algo.

Assim, em busca da falsa sensação de bem-estar e liberdade, a personagem vê no


consumismo uma solução para os seus problemas. A empresa imobiliária a faz pensar não ser
suficientemente boa para morar naquela casa ao obrigá-la a ter no mínimo 4.5 estrelas para
obter o desconto no aluguel.
Consequentemente, Lacie se vê excluída do grupo social o qual ela tanto deseja fazer
parte, o que serve de combustível para a personagem querer conquistar bens materiais e o tão
desejado preenchimento existencial. Portanto, o consumismo acaba despertando na personagem
o desejo de posse e a sensação de querer gozar de uma posição social privilegiada, fatores que
podem expurgar o estado psicológico de ansiedade. Consequentemente, podemos analisar
também a ativação inconsciente dos mecanismos de defesa do Ego na relação entre a
protagonista Lacie Pound com a sua amiga de infância Naomi Jayne e com Susan Taylor, uma
desconhecida que lhe oferece carona.

2.4 O MECANISMO DE DEFESA NEGAÇÃO NA RELAÇÃO ENTRE LACIE POUND


E NAOMI JAYNE

Nesta seção o autor irá apresentar o início e o desenvolvimento do relacionamento entre


a protagonista do episódio e a personagem Naomi Jayne. As cenas escolhidas justificam-se pelo
42
fato de que nelas encontramos peculiaridades que dão indícios da ativação do mecanismo de
defesa negação apresentado pela Psicanálise.
Lacie Pound é uma garota que possui um visível desequilíbrio psicológico, assim como
boa parte dos personagens apresentados no episódio e, assim como eles, busca camuflar esse
mal-estar a todo custo, negando a existência de uma realidade e fatos que a deixam nesse estado,
principalmente ideias relacionadas a sua amiga de infância, Naomi.
A seguir serão apresentadas imagens retiradas do episódio, juntamente com a descrição
de cada uma delas, visando primeiramente contextualizar o relacionamento entre as duas
personagens e, em seguida, apresentar o mecanismo de defesa negação caracterizado no
comportamento da protagonista do episódio. Adendo, as cenas não se encontram em uma ordem
cronológica.
Lacie e Naomi são amigas desde os cinco anos de idade, quando se encontraram pela
primeira vez em um acampamento de arte. Desde então elas se tornaram grandes amigas.
Durante a adolescência estudaram juntas e tinham conversas sobre “coisas que garotas
geralmente conversam, garotos, cabelo, produtos e mais garotos”, segundo o que relata a
própria protagonista na cena do casamento.
Foi também durante a época de escola, quando as duas amigas possuíam características
físicas e psicológicas diferentes, Naomi sendo magra e considerada atraente pelos garotos da
escola e Lacie estando acima do peso e não possuindo confiança alguma, que a protagonista
sofria de bulimia, como podemos perceber na fala da personagem no casamento de sua amiga.

Imagem 6: Lacie no casamento de Naomi


Fonte: NetFlix, Black Mirror, Nosedive (2016)

43
LACIE: “And she was there for me. Holding my hair back…as I knelt, vomiting, in front of
the crapper. Thank you for that, Naomi. I always wished I was you. And... I guess that’s why
you kept me around so long?”16 (NetFlix, Black Mirror, Nosedive, 00:54:44 – 00:55:17)

Como podemos perceber, Naomi nunca fora uma verdadeira amiga para Lacie, a mesma
até induziu a protagonista a passar por um transtorno alimentar. Por isso, a personagem não se
sentia bem e tão pouco aceitava o seu corpo, querendo ser magra e atraente como sua amiga,
utilizando métodos prejudiciais à saúde para se livrar dos alimentos ingeridos. Contudo, Naomi
permanecia como um modelo para a protagonista, que tentava a todo custo, desde a sua
adolescência, seguir o seu modelo de mulher.
Até o momento em que Naomi liga para Lacie e a convida para seu casamento, as duas
passaram por um logo período sem manterem contato, isto sendo creditado principalmente à
Naomi, que descartou completamente a sua amiga de sua vida. Segundo o que comenta a
própria protagonista na cena do casamento, após sua amiga ter conseguido um novo emprego e
ter começado novas amizades, ela a abandonou. Assim, começamos a entender que Naomi, com
exceção do período da infância, se apresenta como uma pessoa que traz apenas infelicidades à
Lacie e não corresponde ao laço de afeto que a protagonista tem para com ela.
Dando atenção às primeiras cenas do episódio, podemos testemunhar o momento no
qual o laço de “amizade” entre as personagens é reatado. Lacie está em seu emprego avaliando
e sendo avaliada na rede social, quando ela percebe que após alguns usuários terem dado a nota
máxima de 5 estrelas na sua postagem Brushed Suede w/Cookie. Heaven!17, havia uma única
pessoa que tinha dado 4 estrelas, Naomi Jayne Blestow.

16
Naomi: E ela estava lá por mim. Segurando o meu cabelo...enquanto eu ajoelhava, vomitando no vaso
sanitário. Obrigado por isso, Naomi. Eu sempre desejei ser você. E... eu acho que é por isso que você me
manteve ao seu lado por tanto tempo?” (NetFlix, Black Mirror, Nosedive, 00:54:44 – 00:55:17, tradução nossa)
17
Tipo de café cremoso com biscoito.
44
Imagem 7: Publicação de Lacie e avaliação de Naomi
Fonte: NetFlix, Black Mirror, Nosedive (2016)

Se incomodando com a situação de que a sua amiga de infância tinha sido a única pessoa
a não ter dado a avaliação máxima na rede social e, posteriormente, visando utilizar-se da
influência de sua amiga nas redes sociais para alcançar o rank de 4.5 estrelas, Lacie então decide
postar uma foto de um bichinho de pelúcia, Mr. Raggs, que representava a amizade entre as
duas e curtir todas as postagens de Naomi, para chamá-la a atenção.
Após a postagem, Naomi avalia a foto com 5 estrelas, o que deixa Lacie muito feliz. Na
cena seguinte a protagonista está preparando uma comida18 que ela viu nas publicações de sua
amiga, apenas para postar na rede social e ganhar avaliações positivas. Nesse momento, Naomi
liga para Lacie, por meio de uma vídeochamada na rede social, que imediatamente é atendida.
A personagem então revela à protagonista que está noiva e casará dentro de um mês em
uma ilha privada onde ela mora com o noivo. Assim, a amiga de Lacie não apenas a convida
para o seu casamento, mas a convida para ser a sua dama de honra. Em uma cena em que Naomi
tenta demonstrar autenticidade revelando os seus sentimentos a respeito da sua amizade com a
sua velha amiga, as duas relembram dos planos de casamento que faziam quando tinham onze
anos de idade.
Lacie aceita o convite e pergunta o que deve fazer no casamento. Sua amiga logo
responde que ela apenas deve fazer um discurso e falar sobre velhas recordações. A conversa
das personagens é marcada pela teatralidade, na qual nenhuma das duas parece estar se
comportando de forma natural. Após o fim da ligação, o irmão da protagonista a questiona se
elas voltaram a ser amigas, e logo descobrimos o passado negro da amizade entre as duas
personagens.

18
Tapenade, um pate simples e fácil de preparar originário da França.
45
Imagem 8: Lacie conversando com seu irmão
Fonte: NetFlix, Black Mirror, Nosedive (2016)

LACIE’S BROTHER: “What was that? The F-word? You two pussy pals now?”19
LACIE: [sighs] “Shut up.”
LACIE’S BROTHER: “She was always mean to you.”
LACIE: “No, she wasn’t.”
LACIE’S BROTHER: “She had that rhyme about you.”
Lacie: “That was a game.”
LACIE’S BROTHER: “What about when she cut your hair?”
LACIE: “I asked her to.”
LACIE’S BROTHER: “She fucked Greg.”
LACIE: “She... did not fuck Greg.” [laughs]
LACIE’S BROTHER: “She looked hot. I’ll give her that.” (NetFlix, Black Mirror,
Nosedive, 00:20:44 – 00:21:22)

A partir deste diálogo temos a caracterização de um dos mecanismos de defesa


apresentados pela Psicanálise, a negação. Neste cenário, o indivíduo tenta a todo custo se
defender de um pensamento, desejo ou sentimento que estava até então reprimido, negando-o
(LAPLANCHE; PONTALIS, 1967; ZIMERMAN, 2001). Vale salientar que é um mecanismo
que age no inconsciente do sujeito, que por ter lembranças de algo que o machuque, acredita

19
LACIE’S BOTHER: “O que diabos foi isso?”
LACIE: [suspira] “Cala a boca.”
LACIE’S BROTHER: “Ela sempre a tratava mal.”
LACIE: “Não, ela não não tratava.”
LACIE’S BROTHER: “Inventava rimas sobre você.”
LACIE: “Era um jogo.”
LACIE’S BROTHER: “E quando ela cortou o seu cabelo?”
LACIE: “Eu a pedi que cortasse.”
LACIE’S BROTHER: “Ela transou com o Greg.”
LACIE: “Ela… não transou com o Greg.” [sorrindo]
LACIE’S BROTHER: “Ela está bonita, pelo menos eu posso dizer isso.” (NetFlix, Black Mirror, Nosedive,
00:20:44 – 00:21:22, tradução nossa)
46
que aquele fato não existe, passando a excluí-lo completamente da sua realidade, é o que
afirmam Laplanche e Pontalis (1967) e Zimerman (2001).
Tomando como base o artigo ‘Notas sobre alguns mecanismos esquizóides’, de Klein
(1975), observamos que esse mecanismo está ligado a outros, como a projeção, a cisão, a
idealização e a introjeção, sendo a negação um mecanismo de defesa do Ego na tentativa de
coibir ações que possam causar medo e dor ao indivíduo. Ainda nos aprofundando nos
trabalhos da autora, desta vez analisando os dados do seu trabalho ‘Sobre a saúde mental’,
percebemos que a saúde interna do sujeito influencia as ações cometidas por ele na realidade
externa. Se o processo de negação aparecer de forma preponderante, o sujeito será privado de
uma real percepção dos outros, o que resultará em uma má capacidade de ter empatia pelo
próximo, causando uma disfunção na habilidade de construir relacionamentos (KLEIN, 1975).
Para Hinshelwood (1991), a negação tem características violentas e nela o Ego lida com
ansiedades psicóticas. Por outro lado, Zimerman (2000) acredita que a negação possui
benefícios para o indivíduo, pois para ele é um mecanismo de defesa que combate ansiedades,
o que não é o caso da protagonista do episódio. Existe também a negação em nível mágico na
qual um universo ficcional é criado para substituir o universo da realidade externa, o sujeito
está ciente de que aquela realidade externa existe, mas nega a existência dela para fugir da dor
(BAPTISTA, 2007).

Imagem 9: Lacie ensaiando o discurso do casamento


Fonte: NetFlix, Black Mirror, Nosedive (2016)

47
LACIE: “In this world, we’re all so caught up in our heads. It’s easy to lose sight of
what’s real. What matters. But as I stand here today…seeing the joy Paul has brought to
Naomi’s life. I know she’s someone who truly matters to me. [laughs] Nay-Nay, the little girl
who, when we were just five-years-old in art camp, started talking to me because she saw I
was scared. The girl who helped me make Mr. Raggs. I still have him. [giggles] He sits on my
desk and…every day, he reminds me of Nay-Nay. What she meant to me then and now. I am
so honored to be here and wish all the happiness this stupid world can muster. I love you,
Nay-Nay. Is the tear too much?”20
LACIE’S BROTHER: “You fucking sociopath.” (NetFlix, Black Mirror, Nosedive,
00:21:56 – 00:23:26)

A protagonista então demonstra possuir todos os elementos que a caracterizam como


um sujeito ativando o mecanismo de defesa da negação. Mesmo tendo um passado conturbado,
no qual sua amiga a travava mal, cortando o seu cabelo, fazendo piadas sobre ela, tendo relação
sexual com o seu ex-namorado, Lacie nega essas situações e as transforma em algo que o seu
Ego é capaz de aceitar para fugir da dor de acreditar que aquela quem ela julgava ser a sua
melhor amiga foi capaz de cometer todos esses atos.
Observamos que na cena ilustrada pela imagem acima, a protagonista, ao ensaiar o
discurso que fará no casamento, apresenta uma atuação exagerada somada a um slide de fotos
das duas quando crianças ao fundo. No meio do discurso ela traz à tona Mr. Raggs, que a mesma
explica ter sido confeccionado com a ajuda de sua amiga.
Aqui percebemos que Lacie nega todos os acontecimentos que se desencadearam após
a infância das duas e enaltece apenas os momentos felizes que tiveram quando crianças. As
fotos também remetem apenas à infância das garotas, período no qual a protagonista tem boas
recordações de sua amiga, como se ela negasse os momentos ruins que tivera com Naomi
durante a adolescência e durante a fase adulta, na qual as duas nem mesmo mantiveram contato.

20
LACIE: “Passamos tanto tempo envolvidos com coisas banais nessa vida. Que acabamos não valorizando o
que é real. O que importa. Estando aqui hoje, vendo a alegria que o Paul trouxe à vida de Naomi, eu sei que ela é
alguém importante para mim. Nay-Nay, a garotinha que eu conheci com cinco anos no acampamento de artes, e
começou a falar comigo porque viu que eu estava assustada. A garota que me ajudou a fazer o Mr. Raggs. Eu
ainda o tenho. Ele fica sentado na minha mesa todo dia, me fazendo lembrar da Nay-Nay. Do que ela era para
mim, e do que ela é hoje. Eu estou muito honrada de estar aqui e te desejo toda a felicidade que esse mundo
estúpido pode oferecer. Eu te amo, Nay-Nay. O choro ficou exagerado?”
LACIE’S BROTHER: “Sua sociopata.” (NetFlix, Black Mirror, Nosedive, 00:21:56 – 00:23:26, tradução
nossa)

48
2.5 O MECANISMO DE DEFESA IDENTIFICAÇÃO NA RELAÇÃO ENTRE LACIE
POUND E NAOMI JAYNE

Nesta seção iremos analisar o relacionamento entre Lacie e Naomi com outra ótica.
Após termos feito uma análise minuciosa o relacionamento entre as personagens baseado no
mecanismo de defesa negação, fez-se necessário levantarmos outros momentos do episódio que
demonstrassem o Ego da protagonista ativando outro mecanismo de defesa, a identificação.
Segundo os estudos de Freud (1920-1923), o mecanismo de identificação se dá quando
o sujeito traz para si características e atributos do outro, modificando a sua personalidade
completa ou parcialmente de acordo com o modelo introjetado21. Esse mecanismo ainda é
classificado em três segmentos: o sujeito tendo um laço emocional com o objeto modelo (tendo
como principal figura o pai); o sujeito sofrendo uma espécie de regressão por meio do qual o
indivíduo pode ser avaliado como psicótico e por último o sujeito obtendo uma qualidade do
outro no que Freud chama de qualidade compartilhada (FREUD, 1920-1923).
Pedrossian (2005) acredita que esse mecanismo de defesa é de suma importância para
o sujeito, pois para ela a formação do nosso caráter e da nossa personalidade se dá por meio da
obtenção de características do outro durante o percurso de nossas vidas. Ainda no pressuposto
de que a identificação tem efeitos positivos sobre o sujeito, analisamos o que dizem Horkheimer
e Adorno (1973) ao afirmarem que o mecanismo de identificação nos ajuda a sermos seres
críticos e nos posicionarmos frente ao que a sociedade nos impõe, desta forma tornando-nos
conscientes de nossos atos.
Além disso, ao analisarmos a ponderação que Horkheimer e Adorno (1973, p. 84-85)
fazem sobre as anotações de Freud, citado por Pedrossian (2008), percebemos que a
identificação tem papel fundamental na ativação de laços humanos e formação tanto social
quanto cultural do indivíduo:

Segundo Freud, o mecanismo da identificação tem um lugar decisivo no


processo de formação social, na cultura e na civilização, que Freud se nega a
separar. Com a identificação tem início a “sublimação dos impulsos sexuais”;
ela permite o aparecimento do “sentimento social”.

A identificação está enraizada na formação social e cultural do indivíduo, o que


direciona à construção de relações sociais e hábitos transparentes. Esse mecanismo de

21
Processo no qual o sujeito absorve / incorpora valores paternos ou de seu meio social, tornando-os seus.
49
identificação não é algo recente, pelo contrário, sempre esteve presente na vida do homem
(PEDROSSIAN, 2008).
Portanto, tal qual o mecanismo de defesa negação possui aspectos positivos para a
formação do caráter do sujeito, como comentado na seção anterior, percebemos que o
mecanismo de identificação também possui elementos importantes para a construção da
personalidade do indivíduo.
Em se tratando de aspectos sociais e culturais, ponderamos, segundo o estudo das
pesquisas aqui salientadas, que a identificação, quando não avaliada em um quadro mais grave,
como a psicose, ajuda o sujeito a moldar-se para melhor se relacionar com o outro, ao mesmo
tempo em que o ajuda a ter a noção de crítica e ter contato com a cultura da sociedade a qual
está inserido.
Entretanto, no relacionamento entre as personagens Laice e Naomi, observamos o
mecanismo de identificação como sendo um aspecto negativo para a protagonista, levando-a à
desconstrução da sua personalidade e também a um grave estado de saúde mental.
Para Lacie, sua amiga de infância sempre fora o modelo ideal de mulher, bonita,
atraente, confiante. Contudo, com o passar dos anos ambas se mantiveram afastadas uma da
outra, mesmo a tecnologia sendo uma grande ferramenta para o fortalecimento do que a
protagonista achava ser amizade. Dando atenção ao objetivo empreendido nesta seção, iremos
ilustrar o mecanismo de defesa identificação na relação entre as duas personagens.
Como observado imagem 7, percebemos o momento em que as personagens tentam
resgatar a sua antiga “amizade”. Como já explanado na seção anterior, após fazer a postagem
do café com biscoito, todos os amigos de Lacie avaliam a publicação com a nota máxima, 5
estrelas, com exceção de sua amiga de infância que avalia com apenas 4 estrelas.
A partir daí percebemos a inquietude da protagonista ao querer saber o porquê de sua
amiga não avaliar a sua postagem com a avaliação máxima, sendo que a postagem havia sido
avaliada com a nota máxima por todos os outros usuários. Lacie então decide averiguar o perfil
e postagens recentes de Naomi, e é aí que o mecanismo de defesa da identificação é
caracterizado.

50
Imagem 10: “Yoga para a vida” Publicação de Naomi
Fonte: NetFlix, Black Mirror, Nosedive (2016)

Na imagem ilustrada acima, podemos notar a personagem fazendo yoga com um aspecto
nada natural, visando apenas estar fazendo algo que os usuários da rede social julguem
interessante para que ela possa ganhar as cinco estrelas. Observando que a antiga amiga sempre
fora um modelo para ela mesmo antes da sua obsessão pela rede social, Lacie percebe que
Naomi tem a média de 4.8 estrelas, o que significa que ela é muito influente na rede social e
que, além disso, desfruta de vários serviços destinados àqueles que obtêm alta avaliação.
Assim como Freud (1920-1923) assinalou, a identificação é classificada em alguns
segmentos, que analisados na protagonista, são apontados da seguinte forma:

 Laço emocional com o objeto: Lacie, quando criança e adolescente, era uma garota
introvertida e nada confiante, Naomi, por outro lado, transbordava confiança e
simpatia. Percebemos que nessa primeira etapa da vida das personagens, havia uma
relação emocional entre sujeito e objeto, visto que Naomi (objeto) era o modelo que
Lacie (sujeito) passou a seguir após as duas terem se conhecido no acampamento de
artes.
 A regressão do sujeito: Na fase adulta, vemos Lacie experimentando o sentimento de
fanatismo pelo seu ídolo maior, Naomi. Todas as características e experiências
vivenciadas pela protagonista, até então sem a presença de sua amiga de infância,
parecem ser esquecidas ou tomadas como insignificantes por ela na medida em que a
personagem começa a passar pelo processo de regressão e perder todas as suas noções
de como se comportar socialmente. Neste sentido, percebemos um desequilíbrio nas
instâncias que formam a psique da protagonista, uma vez que o Superego, instância

51
responsável por distinguir o certo e o errado e inibir as pulsões estabelecidas pelo Id, é
afetado e começa a funcionar de forma improdutiva.
 Qualidade compartilhada: A protagonista passa por uma fase de transformação
comportamental para que ela consiga o tão sonhado alto nível de status social. Não
podemos culpá-la, é claro, pois o próprio sistema é um grande influenciador para essa
transformação, ao percebermos que vários serviços são oferecidos apenas aos usuários
premium dessa rede social. Ela é uma pessoa tomada pela falta de espontaneidade,
agindo de acordo com as exigências da sociedade da modernidade apresentada neste
episódio, por isso tende a compartilhar das características daqueles que ela vê como
modelo. Assim, Lacie, ao tentar seguir o modelo de sua amiga, acaba por experimentar
a falsa sensação o de estar adquirindo habilidades relacionadas ao bom convívio social,
quando na verdade ela está fazendo parte de um grupo de pessoas que vivem por meio
da teatralidade e são infelizes no seu íntimo.

A protagonista então, chega a um quadro psicótico à medida em que passa por


experiências negativas e vivencia a sua queda livre. Este quadro psicótico faz parte do processo
avançado de identificação, como já mencionado no trabalho de Freud (1920-1923). O sujeito,
ao identificar-se com o objeto de forma obsessiva, acaba por perder os seus conceitos de bom
comportamento que o identificam como um sujeito socialmente aceito.
Se para Lacie praticar yoga trará a ela boas avaliações na rede social, assim ela fará,
mesmo que ela não se identifique em nada com essa prática, é isso que o sujeito faz quando
aciona o mecanismo da identificação, ele adquire práticas do outro para si e as executa como
sendo suas. Freud salienta para a possibilidade do sujeito mudar a sua personalidade completa
ou parcialmente, neste caso, observamos que a protagonista se enquadra na última, pois mesmo
que ela siga as tendências das pessoas influenciadoras na rede social, Naomi principalmente,
ela não mudou todos os seus hábitos, como, por exemplo, fazer suas corridas, usar roupas sem
decote ou comer macarrão com hashi22.

22
Pauzinhos ou palitinhos. São as varetas utilizadas como talheres em parte dos países do Extremo Oriente,
como a China, o Japão, o Vietnã e a Coreia.
52
2.6 O MECANISMO DE DEFESA IDENTIFICAÇÃO NA RELAÇÃO ENTRE LACIE
POUND E SUSAN TAYLOR

Durante esta seção iremos analisar o momento em que Lacie se encontra com a
personagem Susan, que a questiona sobre a autenticidade vivida dentro daquela rede social. A
protagonista até então se encontra perdida naquele universo, não sabendo distinguir qual Lacie
Pound é a verdadeira, aquela apresentada na rede social ou aquela que passa por dramas reais
no cotidiano.
Desta forma, a protagonista passa por um novo processo de identificação, desta vez
relacionada a um objeto (Susan) que trará benefícios para a sua saúde mental, favorecendo um
comportamento autêntico sem traços da teatralidade antes experimentado pela protagonista. A
seguir os diálogos da cena acompanhado das imagens e da análise das falas das personagens à
luz dos suportes teóricos da Psicanálise.
Aos trinta e sete minutos e quarenta segundos do episódio, temos a introdução da
personagem Susan Taylor, uma caminhoneira um tanto quanto espontânea. Após Lacie passar
por eventos que dificultam a ida da personagem ao casamento de Naomi, a protagonista
encontra com Susan, ou melhor, Susan encontra Lacie. A personagem então oferece carona a
jovem garota para deixa-la o mais próximo possível do local do casamento, Port Mary.
Lacie, a princípio, recusa a ajuda de Susan, que por ter a avaliação de 1.4 estrelas, é
quase taxada como uma marginal, visto que a sociedade apresentada na minissérie classifica as
pessoas com baixas médias na rede social como verdadeiros criminosos.
Não tendo outra alternativa a não ser aceitar a carona de Susan, a protagonista então
decide seguir viagem com a desconhecida. A partir daí temos um diálogo riquíssimo de detalhes
que, quando analisados meticulosamente, apontam para o mecanismo de identificação sendo
utilizado novamente pela protagonista.
Logo nos primeiros segundos de diálogo entre as duas personagens, temos uma
referência à trilogia do filme The Matrix, mais precisamente uma referência que nos remete ao
primeiro longa, lançado em 1999, mais especificamente à cena da pílula.
Matrix conta a história de Thomas A. Anderson, um homem que vive duas vidas, assim
como Lacie Pound. Durante o dia ele é um simples programador de computador e durante a
noite um hacker conhecido como Neo. Ele sempre questionou a sua realidade, mas a verdade
está muito além da sua compreensão. Neo é alvo da polícia quando é contatado por Morpheus,
um hacker de computador lendário tido como um terrorista pelo governo. Morpheus introduz

53
Neo ao mundo real, uma terra devastada onde a maior parte da humanidade foi capturada por
uma raça de máquinas que vive por meio do calor do corpo humano e da energia eletrônica e
que aprisionou as mentes dos humanos dentro de uma realidade artificial conhecida como The
Matrix23 (tradução nossa).
Esta é a sinopse do primeiro título da película lançada no final da década de noventa.
Para não fugirmos do nosso objetivo imposto neste trabalho, iremos elencar apenas um aspecto
interessante que faz a conversação entre a película e o episódio de Black Mirror.
O personagem de Matrix, Neo, como já comentado na sinopse, vivia em um mundo
caracterizado pelo irreal, em outras palavras, todas as experiências que ele tinha eram
simuladas, teatralizadas. Nos faz lembrar de algum aspecto apresentado pelo episódio Nosedive
de Black Mirror?
Assim como Neo, Lacie vive em um mundo irreal, uma distopia que em Matrix já é uma
terra devastada em que os humanos não possuem controle algum sobre as suas vidas. Contudo,
na famosa cena da pílula, Morpheus oferece a Neo uma chance de escapar daquela realidade
regida pelas máquinas, oferecendo-lhe duas pílulas: uma azul, que, se aceita por Neo, o faria
acordar em sua cama e acreditar em qualquer coisa que ele quisesse, ou seja, continuar vivendo
naquele mundo fantástico e ser manipulado pelas máquinas; e uma vermelha, que, se aceita, o
levaria a uma jornada reveladora sobre os muitos segredos que envolvem aquela falsa realidade,
e talvez o libertasse daquela prisão.
Nos primeiros segundos de diálogo entre as duas, Susan diz à protagonista que há duas
garrafas, a primeira, sendo azul, contendo café, e a segunda, sendo vermelha, contendo whisky.
Acreditamos então que da mesma forma que Morpheus ofereceu a Neo uma chance de escapar
do mundo dominado pela irrealidade, Susan também o fez a Lacie.
A protagonista também vive, até esse ponto do episódio, em um mundo fantasioso onde
os seus desejos e vontades são restringidos pelas normas da sociedade midiática, as máquinas
de Matrix. Susan, em contrapartida, já se libertou desses modismos e tendências impostos por
essa sociedade e agora vive conforme as suas próprias regras. É a partir desse ponto que a
protagonista ativa novamente o mecanismo de defesa identificação, todavia, desta vez
observamos aspectos positivos para a formação do caráter da protagonista, diferentemente da
sua experiência com Naomi.
Reiterando o que fora dito na seção anterior acerca do trabalho de Pedrossian (2005), a
obtenção de características do outro durante o percurso de nossas vidas é um processo que

23
Disponível em: https://www.imdb.com/title/tt0133093/
54
ocorre por meio da identificação. De forma também positiva, o trabalho de Horkheimer e
Adorno (1973) nos dá subsídios para afirmarmos que o mecanismo de identificação também é
responsável pela construção de um eu crítico, neste caso, um sujeito que é capaz de impor os
seus próprios desejos e impulsos, sem carregar os traços de um indivíduo controlado pelas
vontades e tendências do outro.
Vale ressaltar que, neste caso, o relacionamento entre Lacie e Susan, ainda que a
protagonista apresente o mecanismo de defesa identificação durante o seu diálogo com Susan,
o mesmo não se enquadra como um caso de regressão ou manipulação das ideias de Lacie,
como salientado na seção anterior na qual refletimos a sua relação com Naomi, mas sim como
algo benéfico para a protagonista, pois essa identificação com Susan a libertou da realidade
dominada pela aprovação dos usuários da rede social.
Pedrossian (2008, p. 419) também aponta a identificação como um mecanismo
importante para a construção da afetividade com o outro, pois

Pelo fato de estarmos vivendo um momento em que a indiferenciação e a


indiferença excedem a identificação com o outro, torna-se necessário resgatar
a importância das relações sociais, não em um sentido romântico, mas em
termos de espontaneidade, contrária a toda lógica formal que alimenta o culto
aos fatos e, consequentemente, à realidade normativa.

Desta forma observamos que a espontaneidade, uma característica que a protagonista


havia perdido devido a sua obsessão tanto pela rede social quanto por Naomi, é resgatada devido
a sua conversa com Susan, que a liberta do aprisionamento midiático. A seguir iremos observar
como o processo de identificação foi caracterizado na relação das duas personagens por meio
da ilustração do diálogo entre Lacie e Susan, a medida em que iremos tecer comentários sobre
as informações que podemos obter a partir dessas linhas de conversa.

55
Imagem 11: Lacie e Susan conversando (Diálogo 1)
Fonte: NetFlix, Black Mirror, Nosedive (2016)

SUSAN: “Checking my feed for danger signs? I get it a lot. 1.4 gotta be antisocial maniac,
right?”24
LACIE: “You seem...”
SUSAN: Normal?
LACIE: “Yeah.”
SUSAN: “Thank you. It took some effort. What happened to you? I mean, you’re a 2.8, but
you don’t look 2.8.”
LACIE: “That’s not--This is temporary. I’m gonna turn it around.”
SUSAN: “Uh-huh.”
LACIE: “I’m going to a wedding. Maid of honour.”
SUSAN: “Nice.”
LACIE: “Wanna hear my speech?”
SUSAN: “No.” (NetFlix, Black Mirror, Nosedive, 00:38:23 – 00:39:04)

Na cena percebemos que a protagonista, antes mesmo de tentar iniciar um diálogo com
a desconhecida, vai até o perfil de Susan na rede social, que por sinal não faz questão de ter
publicações fofas ou politicamente corretas. Pela pontuação que Susan tem, segundo o
pensamento das pessoas que vivem presas naquele casulo, ela deveria ser uma criminosa ou

24
SUSAN: “Está conferindo se eu sou perigosa olhando as minhas avaliações? Uma pessoa com 1.4 só pode ser
uma maníaca antissocial, não é?”
LACIE: “Você parece...”
SUSAN: “Normal?”
LACIE: “Sim.”
SUSAN: “Obrigada. Não foi nada fácil. O que houve com você? Você tem 2.8, mas não tem cara de 2.8.”
LACIE: “Isso é temporário. Eu vou virar o jogo.”
SUSAN: “Uh-huh.”
LACIE: “Eu vou a um casamento. Sou dama de honra.”
SUSAN: “Legal.”
LACIE: “Quer ouvir o meu discurso?”
SUSAN: “Não.” (NetFlix, Black Mirror, Nosedive, 00:38:23 – 00:39:04, tradução nossa)

56
alguém muito ruim ou desagradável, e é com isso que Susan brinca, ao sugerir que pela sua
pontuação ela deveria ser uma maníaca antissocial.
Contudo, Lacie a julga como sendo uma pessoa “normal”, mesmo tendo uma avaliação
baixa. Quando questionada sobre o que havia acontecido com ela para ter uma avaliação tão
baixa na rede social, a protagonista diz que o casamento no qual ela será dama de honra irá
resolver os seus problemas quanto a essa média na rede social, e pergunta a Susan se ela gostaria
de ouvir o discurso dela, quando inesperadamente ela ouve um sonoro “Não”.
As feições de Lacie e Susan após essa resposta ilustram bem essas duas realidades
apresentadas nessa cena. De um lado temos a cara de surpresa da protagonista, que vive em um
mundo onde as pessoas fazem de tudo para serem agradáveis paras as outras objetivando
ganharem pontos, uma realidade caracterizada pela teatralidade, pela manipulação, pela
falsidade, enquanto que Susan, demonstrando uma cara de satisfação ao dizer não à Lacie, vive
em uma realidade onde as pessoas são autênticas e não se importam com tendências ou modas
estabelecidas pela mídia.
A protagonista então passa a experimentar da espontaneidade por meio do seu contato
com Susan, que apesar de viver uma vida mais simples e com menos regalias que a protagonista,
aparenta ser mais feliz. A protagonista imediatamente desperta o mecanismo da identificação
para reconstruir a sua personalidade e seguir o modelo de Susan, mesmo que
inconscientemente. É partir desse momento que a personagem passa por outro processo de
transformação durante o episódio, é o que podemos observar no diálogo a seguir.

Imagem 12: Lacie e Susan conversando (Diálogo 2)


Fonte: NetFlix, Black Mirror, Nosedive (2016)

57
LACIE: “Look, you had something with your life, real things, good things, and you lost it all,
and I’m sorry. So now you’ve got nothing left to lose. But I don’t even have the something
worth losing, not yet. You know, I mean, I’m still fighting for that.”25
SUSAN: “And what is “that”?”
LACIE: “I don’t know. Enough to be content? Like, to look around and think, well, I guess
I’m okay. Just to be able to breathe out, not feeling like…like…Like just…And that is a way
off, like, way, way off. And until I get there, I have to play the numbers game. You know, we
all do, that’s what we’re in. That’s how the fucking world works. Look, maybe you don’t
remember, you know, you’re just too old to get it. I do not mean that how it sounds.”
SUSAN: “Don’t worry. I’m not voting you down.” (NetFlix, Black Mirror, Nosedive,
00:42:03 – 00:43:12)

Susan surpreendentemente revela que no passado ela tinha sido uma pessoa com uma
alta avaliação na rede social, 4.6, e costumava viver sob as regas impostas pela sociedade
midiática. Sua participação na rede social ficou ainda mais obsessiva quando o seu marido foi
diagnosticado com câncer.
Para obter um tratamento especial para doença do marido, Susan passou a bajular todos
os médicos e enfermeiras para que pudesse dar ao marido, de pontuação 4.3, uma chance na
batalha contra a sua condição médica. No entanto, seu marido perdeu a vaga para um usuário
4.4 e morreu. Foi a partir daí que Susan abandonou todos os seus hábitos na rede social e passou
a viver autenticamente, fora daquele mundo fantasioso.
Neste diálogo, após Susan compartilhar suas experiências de vida, podemos perceber a
autenticidade como Lacie respondeu aos comentários de Susan, que aconselhou que a
protagonista tentasse viver de forma mais livre e natural, a exemplo dela. Ao invés de tentar ser
delicada e responder Susan de forma amigável, a protagonista não se conteve e disse tudo aquilo
que estava sentindo naquele momento.
Entendemos então que o mecanismo de defesa identificação foi utilizado por Lacie
novamente, uma vez que ela observou o comportamento de Susan e percebeu a forma autentica
como ela a respondia. Desta forma, os traços da teatralidade presentes no comportamento da
protagonista no começo do episódio acabaram sendo comprometidos e, por sua vez, deram

25
LACIE: “Bem, você tinha conquistado coisas na sua vida. Coisas reais, coisas boas, e acabou perdendo tudo.
Sinto muito. Agora você não tem mais nada a perder. Mas eu ainda nem tenho o que perder. Ainda estou
lutando para conseguir essa coisa.”
SUSAN: “E o que é essa coisa?”
LACIE: “Sei lá, algo que me deixe feliz? Tipo, olhar ao meu redor e ver que eu estou bem de vida. Ser capaz de
respirar sem me sentir...Meio que...Enfim, falta muito para chegar lá. E até eu chegar lá, eu tenho que entrar
no joguinho dos números. Todos temos. Estamos atolados nisso. Esse mundo caótico funciona assim. Talvez
você não se lembre. Talvez seja esteja velha demais para entender. Eu não quis dizer isso dessa maneira.”
SUSAN: “Não se preocupe. Eu não vou te dar nota baixa.” (NetFlix, Black Mirror, Nosedive, 00:42:03 –
00:43:12, tradução nossa)
58
espaço às novas características comportamentais baseadas a partir da sua interação e
identificação com a personagem Susan Taylor.

59
CONSIDERAÇÕES FINAIS

No cenário atual da nossa sociedade, é impossível separar tecnologia, linguagem e


comportamento, com isso, estamos inseridos em um contexto no qual as mídias sociais possuem
uma grande parcela de importância na interação entre literatura e sociedade por meio de
manifestos culturais. Ao longo dos anos fomos e ainda somos apresentados a uma infinidade
de apetrechos tecnológicos que fazem parte do cotidiano do homem moderno. Visto isso, a
sociedade se encontra de certa forma dependente da tecnologia, que por sua vez influencia no
modo de pensar e se comportar, ditando tendências e inserindo novos elementos que urdem o
tecido contemporâneo.
A Crítica Literária, por sua vez, busca identificar qual teoria está influenciando uma
obra literária, além de nos ajudar a ver o mundo e a nós mesmos de maneiras valiosas,
analisando a vida sob uma nova perspectiva. Logo, percebemos sua importância na análise não
apenas da literatura, mas do cinema, da música, da arte, da arquitetura, da ciência e da
tecnologia.
Para uma análise mais profunda sobre o comportamento de um indivíduo, é necessário
que tenhamos em mãos ferramentas que nos forneçam técnicas capazes de suprir a nossa busca
por respostas para esse fenômeno. Para tal, a Crítica Literária Psicanalítica possui vital
importância no processo de reflexão e análise do comportamento de um sujeito, isto porque
essa corrente foi baseada em estudos levantados na área da Psicanálise ao longo dos anos, na
qual em grande parte foram desenvolvidos pelo médico neurologista Sigmund Freud,
considerado o pai da Psicanálise.
Freud é um conceituado estudioso creditado, entre outras instâncias dessa área do
conhecimento, como o estudioso que desenvolveu os conceitos das esferas que fazem parte da
psique humana, a saber Id, Ego e Supergo. É partir desse estudo que podemos entender e
reverberar sobre o complexo comportamento humano, dando aos profissionais da área da saúde
mental a capacidade de identificar doenças relacionadas à mente humana e desenvolver técnicas
eficientes no controle e/ou cura de tais transtornos psíquicos.
Dentre os vários comprometimentos que a mente humana pode apresentar, encontramos
na Psicanálise uma explicação que aponta a ansiedade como a grande causadora da modificação
no comportamento humano de um indivíduo considerado fisicamente saudável. A ansiedade
proporciona ao sujeito uma sensação de perigo constante e é resultante de dois fenômenos, o
primeiro sendo chamado por Freud de libido contida, condição na qual as pulsões e vontades

60
do Id não são concretizadas, e o segundo é relacionado às experiências traumáticas vivenciadas
pelo sujeito ao longo de sua vida.
Essa condição clínica é responsável pela formação dos mecanismos de defesa do Ego,
também elencados por Freud e que foram desenvolvidos por diversos outros estudiosos com o
passar dos anos. Esses mecanismos protegem a integridade do Ego na tentativa de inibir
hostilidades, impulsos agressivos, ressentimentos, conflitos e frustrações. É um sistema
psicológico que conta com uma ativação automática do Ego para aliviar tensões internas.
Nesse cenário, encontramos a série Black Mirror, que de forma inovadora e inteligente
discute as condições psicológicas do comportamento humano com a utilização de dois dos
pilares que sustentam a sociedade contemporânea, a tecnologia e a informação.
Durante os vários episódios disponibilizados pela série, procuramos aqui reverberar
sobre um em específico, Nosedive, o qual apresenta uma sociedade em que vários de seus
personagens podem ser diagnosticados com pelo menos um transtorno psíquico. Desta forma,
levamos em consideração o arco narrativo da protagonista, que apresenta em vários momentos
um comportamento que é caracterizado pelo quadro clínico da ansiedade, ativando assim alguns
mecanismos de defesa do Ego.
Este trabalho foi desenvolvido com o intuito de responder a seguinte pergunta
norteadora: Quais mecanismos de defesa podem ser relacionados ao comportamento da
personagem Lacie Pound, apresentada no primeiro episódio da terceira temporada da série, à
luz da Teoria Psicanalítica? Pergunta esta que deve ser respondida a contento baseada nos
objetivos previamente elaborados, nos quais temos o objetivo geral que se trata de Observar
quais mecanismos de defesa podem ser relacionados ao comportamento da personagem Lacie
Pound. Formulada a pergunta norteadora e levantado o objetivo geral, foi necessário traçarmos
os seguintes objetivos específicos para chegarmos a tal resposta, entre os quais tivemos que:
explicar como os mecanismos de defesa da protagonista estão conectados aos conceitos de
vazio existencial e consumismo na era moderna; para que pudéssemos analisar quais
mecanismos de defesa são caracterizados por meio da relação entre a personagem Lacie Pound
e a personagem Naomi Jayne; para só então verificar qual mecanismo de defesa é representado
por meio da relação entre a personagem Lacie Pound e a personagem Susan Taylor.
A pesquisa obteve êxito em todos os seus objetivos. A associação dos conceitos de vazio
existencial e consumismo na era moderna com os mecanismos de defesa da protagonista foi
devidamente explicado no capítulo de análise, no qual vimos como a personagem enfrenta os
problemas irresolutos da vida tentando controlar a ansiedade por meio de uma droga

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socialmente mais aceita, o consumismo, e, consequentemente, identificamos dois mecanismos
de defesa na relação entre a protagonista e a personagem Naomi Jayne, a saber, negação e
identificação, o primeiro sendo o processo no qual Lacie desconsidera todos os momentos
desafortunados que a sua amiga havia lhe proporcionado e constrói uma imagem agradável para
que ela possa tomar como modelo, nos levando à assimilação do segundo mecanismo de defesa,
identificação, momento observado a partir da relação entre sujeito (Lacie) e objeto (Naomi) no
qual o sujeito experimenta o compartilhamento de características do objeto.
Também no capítulo de análise, alcançamos o último objetivo, que se tratava da
verificação do mecanismo de defesa representado na relação entre a protagonista e a
personagem Susan Taylor, que fez com que a personagem experimentasse uma vez mais o
processo de identificação, porém, trazendo a ela benefícios que a ajudaram na retomada da
autenticidade da sua personalidade. Portanto, em circunstâncias do entendimento dos objetivos
específicos, fomos capazes de alcançar o objetivo geral e consequentemente responder à
pergunta norteadora. Isso foi realizado no capítulo de análise, no qual ao mesmo tempo em que
encontramos uma conexão entre os conceitos de vazio existencial e consumismo na era
moderna com os mecanismos de defesa apresentados pela protagonista, também pudemos
tipificar os mecanismos de defesa apresentados na relação entre a personagem Lacie Pound e
as personagens Naomi Jayne e Susan Taylor.
Em âmbito pessoal, esta pesquisa favoreceu um aumento no senso crítico do autor, ao
passo em que forneceu reflexões acerca de um fenômeno atrelado à nossa realidade que
entrelaça tecnologia, comportamento e linguagem. Em caráter social, observamos que o estudo
desse fenômeno à luz da Crítica Literária Psicanalítica contribui para a ponderação sobre o
comportamento da sociedade contemporânea frente ao uso das novas tecnologias, temática de
grande destaque e crescimento no cenário atual.
Por fim, no campo acadêmico, percebemos que esta pesquisa se torna valorosa, pois se
trata de um arcabouço teórico para alunos não só dos cursos de letras mas também alunos dos
cursos que trabalham com a saúde mental, da mesma forma que professores e estudiosos que
almejam discutir sobre os problemas da sociedade moderna por meio de um diálogo entre a
Crítica Literária e a Psicanálise.
Durante o desenvolvimento desta pesquisa, a maior dificuldade foi a falta de experiência
no campo da Crítica Literária e principalmente no campo da Psicanálise, que fornece diversos
estudos e interpretações acerca da mente humana, requerendo um alto nível de aprofundamento,
estudo e compreensão nessa área do conhecimento. Desta forma, buscamos nos munir com o

62
máximo de recursos bibliográficos possíveis para que pudéssemos realizar a pesquisa a
contento.
O episódio Nosedive da série Black Mirror estabelece várias discussões plausíveis sobre
a sociedade moderna, sendo assim, contamos com inúmeros segmentos que podem ser objetos
de análise. Portanto, deixamos aqui duas sugestões de pesquisa para trabalhos futuros. A
primeira sendo a identificação de outros mecanismos de defesa elencados pela Psicanálise, pois
durante a investigação observou-se que todos os personagens apresentam um comportamento
débil durante o desenvolvimento da narrativa, desta forma seria oportuno analisar outros
mecanismos de defesa ativados por eles.
A segunda sugestão diz respeito à análise crítica da personagem sob as lentes das
correntes feminista e marxista, pois a protagonista apresenta indícios que podem ser
relacionados com essas duas escolas da Crítica Literária.
Em adição, este trabalho acentua a importância das diferentes formas de estudo da
Crítica Literária, viabilizando reflexões acerca de outras esferas além de obras literárias, tais
como cinema, TV, música, teatro, jogos de vídeo game, entre outros. Desta maneira, o professor
estará provido de uma grande variedade de conteúdos que podem ser trabalhados dentro da sala
de aula, despertando nos alunos novas percepções críticas sobre a sociedade e o mundo.

63
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