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Versão Corrigida
São Paulo
2019
Versão Corrigida
São Paulo
2019
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Nos termos da legislação vigente, declaro ESTAR CIENTE do conteúdo deste EXEMPLAR
___________________________________________________
(Assinatura
do
(a)
orientador
(a)
CAMPELLO, Ricardo Urquizas. Faces e interfaces de um dispositivo tecnopenal: o
monitoramento eletrônico de presos e presas no Brasil. Tese (Doutorado) apresentada à
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para
obtenção do título de Doutor em Sociologia.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Julgamento____________________________ Assinatura__________________________
Julgamento____________________________ Assinatura__________________________
Julgamento____________________________ Assinatura__________________________
Julgamento____________________________ Assinatura__________________________
AGRADECIMENTOS
This thesis analyzes the technical, political, epistemological and subjective elements
that constitute the electronic monitoring (EM) of prisoners in Brazil. It investigates
the effects of the use of electronic anklets in semi-open prisons, house arrest curfews
and pre-trial measures, connected to the current transformations operated within the
power of punishing. The research develops from three organizing axes: 1) the analysis
of the implementation of electronic monitoring policies in Brazil, having as scope the
understanding of its development and forms of application, confronted with the
announced purposes of decarceration; 2) the investigation of the discourses and
rationalities that underlie the measure, articulated with the emergence and
consolidation of a new economy of punishment and 3) the effects of electronic
monitoring practices on the lives and bodies of monitored people, connected to the
processes of subjectification triggered by new control technologies. These three axes
constitute the guiding lines of research and analysis, establishing throughout the thesis
a series of intersections and contact points between them. The basic research material
consists of interviews and notes produced in field research, as well as legislative
documents and quantitative data related to the application of electronic monitoring in
Brazil. Interviews and fieldwork were conducted in the states of Sao Paulo, Rio de
Janeiro, Maranhão and Ceará, including semi-open halfway houses, electronic
monitoring centers, state courts and several urban spaces. Relying on the empirical
data, the thesis presents an analysis of the expansion and densification movements of
the Brazilian penal system, driven by electronic monitoring; the transversalization of
heterogeneous discursive practices - punitive, economic and humanitarian - in the
constitution of the monitoring dispositif; and the production of new forms of
subjectivation and desubjectivation mediated by the interfaces established between
the penalized body that circulates and the machine that conducts its circulation.
10
SUMÁRIO
Introdução 13
Contornos iniciais 17
Percurso metodológico 22
Capítulos 26
1.1. Biomáquina 30
1.2. O carcereiro de si mesmo 40
1.3. Ponto de conjunção 51
1.4. O corpo marcado 60
2.1. Caixa-preta 69
2.2. Formações mecânicas, fluxos orgânicos 80
2.3. Diagramas sobrepostos 87
2.4. Silício em Pedrinhas 96
11
5.1. Sem controle 174
5.2. Nota final sobre o ciborgue aprisionado 186
REFERÊNCIAS 196
12
Introdução
13
Senado Federal, 29 de março de 2007.
Sala das Sessões, Senador Magno Malta:
14
Hoje, o chamado monitoramento telemático de pessoas condenadas ou
processadas pela justiça criminal é aplicado em mais de 50 mil pessoas ao redor do
país, conforme os dados apresentados pelo Departamento Penitenciário Nacional
(Brasil, 2017a). No decorrer dos últimos anos, a medida vem se estabelecendo como
técnica penal difundida por todos os estados da federação. Introduzido em um cenário
de colapso do sistema carcerário brasileiro, o dispositivo de supervisão à distância
levanta questionamentos a respeito das atuais transformações nas práticas de controle
e punição, suscitando indagações relativas tanto aos efeitos de sua aplicação na
política penal, quanto aos seus impactos sobre aqueles que são submetidos a
programas de monitoramento.
Esta tese tem como objetivo principal a investigação e análise dos efeitos
sociais e políticos da aplicação do controle eletrônico de presos e presas no Brasil.
Para isso, são mobilizados registros produzidos em pesquisa de campo, entrevistas
com pessoas monitoradas e operadores de sistemas de monitoração, documentos
legislativos e normativos relacionados à aplicação da medida, além de dados
quantitativos referentes aos contingentes populacionais monitorados no país. O
cruzamento entre as diferentes técnicas de pesquisa instrumentalizadas neste trabalho
procurou corresponder ao caráter heterogêneo e multifacetado do objeto sob análise.
Desse modo, a pesquisa desenvolveu-se em torno de três principais eixos
investigativos: 1) a análise do processo de implementação da política de monitoração
eletrônica de pessoas no Brasil, tendo por escopo a compreensão de seu
desenvolvimento e formas de aplicação, confrontados aos anunciados propósitos de
desencarceramento; 2) a investigação dos discursos e racionalidades que
fundamentam a medida, articulados à emergência e consolidação de uma nova
economia da pena e 3) os efeitos das práticas de monitoramento eletrônico sobre a
vida de pessoas monitoradas, conectados aos processos de subjetivação
desencadeados por novas tecnologias de controle penal.
No desenvolvimento da pesquisa, estes três pontos foram tomados como guias
metodológicos que orientaram a produção dos dados em campo e a coleta de
documentos oficiais referentes ao monitoramento eletrônico. Mais do que uma
estratégia expositiva, os eixos constituíram instrumentos de investigação,
estabelecendo, ao longo da tese, uma série de entrecruzamentos e pontos de contato
entre eles.
15
O interesse subjacente ao primeiro eixo reside nos quadros de superlotação do
sistema carcerário brasileiro, cuja demografia absoluta é hoje a terceira maior do
planeta (DEPEN, 2017). Instalações precárias e condições sub-humanas de
sobrevivência no interior do cárcere qualificam um sistema prisional expansivo e
reprodutor de crueldades, determinando a urgência de interrupção dos modelos
político-penais até aqui adotados. O segundo eixo investigativo consistiu na análise
das práticas discursivas que permitiram a concepção e difusão do monitoramento
eletrônico, com o intuito de contextualizá-las no interior de um conjunto de
reformulações nos modos de se pensar o poder de punir. A pesquisa no âmbito deste
eixo perseguiu a identificação das fundamentações racionais e epistemológicas que
constituem o dispositivo de monitoramento. Por fim, o interesse específico que
mobilizou o terceiro eixo reside na significativa ausência de informações no Brasil a
respeito dos impactos da monitoração eletrônica sobre a vida de pessoas monitoradas.
Quase nada se produziu até aqui a respeito das percepções daqueles e daquelas sobre
quem a medida incide mais diretamente. Dessa maneira, as conversas e interlocuções
com as pessoas monitoradas que se dispuseram em contribuir com este trabalho
possibilitaram a realização de um deslocamento fundamental nas perspectivas e
ângulos de observação.
Destaque-se que esta pesquisa realizou-se no âmbito do Projeto Temático
FAPESP, intitulado “A gestão do conflito na produção da cidade contemporânea: a
experiência paulista”, coordenado pela Profa. Vera da Silva Telles, do Departamento
de Sociologia da Universidade de São Paulo (DS-USP). Mais especificamente, a
investigação se inseriu em uma frente de pesquisa que objetivou analisar a
“Rearticulação dos dispositivos de segurança, repressão e encarceramento”. O
conjunto de discussões realizadas no âmbito do Projeto Temático adquiriram
importância central para as questões de pesquisa aqui elaboradas.
Enfatizo, ainda, a importância da pesquisa bibliográfica realizada no Centre de
recherches sociologiques sur le Droit et les Institutions Pénales (CESDIP - Centro de
Pesquisas Sociológicas sobre o Direito e as Instituições Penais), supervisionada pelo
Diretor de pesquisa René Lévy, no âmbito de uma Bolsa Estágio de Pesquisa no
Exterior, concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP-BEPE). O acesso ao acervo bibliográfico do CESDIP foi fundamental para
a ampliação do instrumental analítico utilizado neste trabalho, considerando o caráter
16
incipiente das discussões sobre a monitoração eletrônica no contexto brasileiro, para
além do enquadramento jurídico.
Apresento, a seguir, uma breve contextualização do tema de pesquisa, com o
propósito de situar o leitor a respeito da introdução inicial dos dispositivos de
monitoramento no Brasil.
Contornos iniciais
17
1985, mais de 20 estados já haviam adotado a medida no país. No ano de 1998, 95 mil
equipamentos já haviam sido vendidos ou alugados nos EUA (Whitfield, 2001). Em
2006, cerca de 100.000 pessoas eram monitoradas, conforme as informações
publicadas pelo periódico especializado Journal of Offender Monitoring (2006).
Dos Estados Unidos, a medida foi exportada para o Canadá e para o Reino
Unido ainda no final da década de 1980. Atualmente, programas de rastreamento
penal já encontram-se implementados em diversos países, alcançando os quatro
continentes do globo. Sua aplicação é realizada nos mais variados contextos sociais e
políticos, difundindo-se pela Europa Ocidental e Oriental, chegando à Austrália, Nova
Zelândia, África do Sul, Senegal, Israel, Coréia do Sul, Japão, Argentina, Colômbia,
Chile e Brasil (Leal, 2011; Nellis, Beyens & Kaminski, 2013).
O caso brasileiro é um dos mais recentes. A introdução da modalidade
eletrônica de execução penal no ordenamento jurídico brasileiro deu-se em de junho
de 2010, mediante a aprovação da Lei Federal no 12.258/10. A lei determinou que a
medida se tornaria aplicável nos casos condenação ao regime semiaberto ou prisão
domiciliar. Desse modo, as saídas temporárias das unidades de regime semiaberto –
ocasiões em que os presos e presas em progressão de regime têm o direito de estar
com seus familiares em datas específicas (Lei 7.210/84, Art. 122) – poderiam agora
ser monitoradas eletronicamente. Da mesma forma, as condições de cumprimento de
pena em regime domiciliar, relativas aos horários de circulação e recolhimento do
apenado, estariam passíveis de aplicação do monitoramento, a critério do juiz de
execução.
Em maio de 2011, a aprovação da Lei Federal no 12.403/11 (Lei das
Cautelares) incluiu a monitoração eletrônica dentre as medidas cautelares diversas da
prisão (Art. 319, IX). A partir de então, as pessoas processadas que aguardavam
julgamento poderiam ser submetidas ao controle eletrônico. O propósito era criar
ferramentas para a redução dos altos índices de presos provisórios, que
correspondiam, na época, a cerca de 40% da população prisional do país1. A inclusão
da monitoração como medida cautelar possibilitava, ainda, sua utilização para
controle de medidas protetivas de urgência, no âmbito da Lei no 11.340/06 (Lei Maria
da Penha). Nesse caso, o mecanismo seria utilizado como forma de supervisão do
posicionamento do agressor em relação à vítima.
1
Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen> Acesso em 20 de agosto de
2018.
18
Ressalte-se, de partida, que a implementação do monitoramento eletrônico no
país fora sustentada pela necessidade de elaboração de novas técnicas penais diante da
superlotação do sistema carcerário brasileiro. De maneira geral, as justificativas que
fundamentam as leis e projetos de lei que autorizam a medida no Brasil enfatizam as
possibilidades de substituição do cárcere pelo controle telemático.
Todavia, o acompanhamento dos dados oficiais relativos à evolução dos
índices de encarceramento e ao avanço dos programas de monitoramento eletrônico
aponta para o crescimento da quantidade de pessoas trancadas no interior das
unidades prisionais do país, concomitante à difusão do uso de tornozeleiras
eletrônicas, aplicadas majoritariamente em pessoas condenadas ao regime semiaberto.
O desenvolvimento e expansão da política de monitoração tem ocorrido no Brasil de
maneira simultânea ao crescimento da população carcerária.
Conforme as informações do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN),
em 2009, cerca de um ano antes do início dos programas de rastreamento, a
quantidade total de pessoas no sistema penitenciário brasileiro era de 469,5 mil. Já em
junho de 2016, os dados apontam para um contingente de 726,7 mil indivíduos
encarcerados. O número absoluto de presos e presas não parou de crescer e a taxa de
aprisionamento no país seguiu aumentando. Se em junho de 2009 havia cerca de 248
presos para cada 100 mil habitantes no Brasil, em junho de 2016 essa taxa chegou a
mais de 352/100 mil (Brasil, 2017b). Paralelamente, o avanço da política de
monitoração eletrônica fez com que em 2017 já houvesse 51,5 mil pessoas rastreadas
pelo sistema penal (Brasil, 2017a).
Desse modo, uma das teses desdobradas neste trabalho reside no fato de que o
controle telemático de apenados tem sido aplicado de maneira complementar ao
cárcere, repercutindo na dilatação e densificação dos controles penais, sem, contudo,
favorecer o anunciado processo de desencarceramento. Apesar disso, a medida
permanece em expansão e crescem os investimentos voltados à sua estruturação.
Órgãos dos poderes Executivo e Judiciário demonstram-se empenhados em fomentar
o seu uso e encontrar meios para promover o seu “potencial desencarcerador”
(Brasil, 2017a)
A utilização de tornozeleiras eletrônicas ganhou inédita visibilidade no Brasil
com o monitoramento de políticos e empresários acusados de corrupção e lavagem de
dinheiro, em meio à chamada Operação Lava Jato, conduzida pela Polícia Federal a
partir de 2014. O dispositivo tornou-se uma opção para o controle de medidas penais
19
aplicadas aos chamados “crimes do colarinho branco”. Nesse contexto, seu uso
passou a ser associado pela imprensa aos casos emblemáticos de desvios de verba
pública, pagamentos de propina, apropriação indébita, evasão de divisas, etc. De
maneira geral, o imaginário público passou a vincular a utilização de tornozeleiras aos
processos que envolvem expressivas irregularidades financeiras, restringindo-se os
debates em torno da medida a esses casos particulares. Entretanto, a imensa maioria
das pessoas monitoradas no país é composta por pessoas que se encontram distantes
dos grandes circuitos de corrupção e lavagem de dinheiro público. Nesse sentido, vale
sublinhar que esta pesquisa não aborda a especificidade da aplicação do
monitoramento aos casos notórios de crimes do colarinho branco. O interesse que
motivou este trabalho recai sobre a utilização sistemática da medida, direcionada a
determinadas parcelas da população prisional brasileira, a saber, presos e presas em
progressão de regime ou sob medidas cautelares extra-cárcere, que compõem os
grupos tradicionalmente selecionados pelo sistema de justiça penal: pobres, pretos,
pardos e periféricos2.
A gestão do monitoramento de pessoas condenadas ou processadas ficou a
cargo das administrações estaduais que passaram a contratar, por meio de processo
licitatório, empresas privadas que desenvolvem aparelhos, disponibilizam infra-
estrutura e fornecem os serviços necessários ao controle eletrônico empregado pelo
sistema penal. Cada estado é responsável pela gestão dos serviços e contratação das
empresas que fornecem os equipamentos, estrutura e auxílio técnico à aplicação da
medida. A principal empresa do ramo na América do Sul é a Spacecom
Monitoramento Ltda., com sede na cidade de Curitiba. Seu sistema de rastreamento,
denominado SAC24 (Sistema de Acompanhamento de Custódia 24 horas), baseia-se
em um conjunto de hardware e software que integra tecnologias de telecomunicação e
geoprocessamento. Um aparelho é fixado no tornozelo da pessoa monitorada,
calculando seu posicionamento por meio dos sistemas GPS (Global Positioning
System) e GPRS (General Packet Radio Services) e enviando as informações de
geolocalização em tempo real para as centrais de monitoramento3. Um conjunto de
2
Não há no Brasil uma determinação legal que faça corresponder a aplicação do monitoramento a um
crime ou tipificação penal específicos. O direcionamento do dispositivo é realizado conforme a
natureza e regime da medida (penal, cautelar ou protetiva; regime semiaberto ou domiciliar), sendo que
hoje cerca de 66% das aplicações no país são dirigidas ao controle de pessoas condenadas em regime
semiaberto (Brasil, 2017a),
3
Spacecom. Sistema SAC24 – Apresentação. Disponível em: http://spacecom.com.br/?s=mon (Acesso
em 6 de janeiro de 2017).
20
alarmes é acionado e reportado ao juiz responsável, caso seja detectado algum tipo de
violação. O papel da empresa nas atividades de supervisão varia conforme os estados
e os contratos estabelecidos com as secretarias de justiça e administração
penitenciária.
Atravessando as discussões jurídico-políticas, a pulverização de aparatos
tecnológicos voltados ao controle do crime e do criminoso é impulsionada pela
ascensão do mercado da punição no Brasil. O castigo é um negócio rentável e a
indústria brasileira da pena cresce, alavancada pelo eterno retorno das crises
penitenciárias, cuja invariável resposta tem girado em torno do investimento na
construção de mais unidades prisionais, na terceirização de serviços penitenciários e
na elaboração de novas formas de controle extra-cárcere (Minhoto, 2002). Entre 2011
e 2015, a Spacecom obteve um crescimento de 296% com o avanço dos programas de
monitoramento eletrônico4.
Nils Christie alertara há tempos para o potencial contido no avanço do
mercado do controle do crime em converter a sociedade em uma espécie de prisão a
céu aberto. O sociólogo norueguês desloca a análise criminológica centrada no
fenômeno criminoso, sinalizando para o fato de que os maiores perigos do crime
residem nos efeitos implicados pelo aparelhamento direcionado contra ele (Christie,
1998). Impulsionado pela indústria de sistemas eletrônicos de segurança, o
monitoramento eletrônico de presos vem compondo os processos de expansão
ilimitada da malha punitiva, operando nas ambiguidades entre o meio aberto e o meio
fechado.
A introdução das dinâmicas de mercado no campo da penalidade é analisada
neste trabalho como um processo vinculado à emergência da governamentalidade
neoliberal, investigada por Michel Foucault (2008; 2008b). Trata-se da orientação
racional e estratégica que norteia as formas pelas quais se conduz a conduta dos
homens por meio do cálculo econômico-político que equaciona custos e benefícios,
definindo a racionalidade econômica como parâmetro de concepção e inteligibilidade
das esferas jurídicas, políticas e sociais. Incorporada ao sistema de justiça criminal – e
produzida também a partir dele –, a racionalidade neoliberal de governo deflagrada
nos dias de hoje passa a demandar a criação de novas tipologias penais diante dos
4
O Globo. Uso de tornozeleiras eletrônicas dispara e mercado cresce quase 300%. Disponível em:
http://oglobo.globo.com/brasil/uso-de-tornozeleiras-eletronicas-dispara-mercado-cresce-quase-300-
19637514 (Acesso em 5 de dezembro de 2016).
21
diversos entraves econômicos, políticos e sociais gerados pelas já antiquadas técnicas
disciplinares de punição.
De um lado, o cárcere é apontado como um problema orçamentário,
dispendioso demais aos cofres do Estado. De outro, os altos índices de reincidência
revelam a ineficiência da prisão em “ressocializar” aqueles que a ela são enviados,
estabelecendo uma demanda por soluções custo-eficientes, por meio de intervenções
penais mínimas5. Para isso, a governamentalidade neoliberal exigirá novas formas de
controle que se apliquem além da prisão, orientando-se por prognósticos avaliativos
de risco e eficiência (Foucault, 2008; Garland, 2008; Aviram, 2016).
A tese ora apresentada organiza os achados de pesquisa relativos aos
diferentes elementos técnicos, sociais, políticos e epistemológicos que constituem os
dispositivos de monitoramento eletrônico no Brasil, com o propósito de identificar os
seus atuais efeitos e funcionalidades, que hoje parecem deslocar-se de sua propalada
função estratégica de substituição à prisão.
Percurso metodológico
22
tecnológicos não são neutros politicamente. A técnica implica, em si mesma, uma
política. Winner sugere o exercício de um ludismo epistemológico, por meio do qual
as diferentes tecnologias sejam desmanteladas mediante a análise político-filosófica.
Perseguindo as sugestões de Winner e conectando-as à noção de dispositivo,
elaborada por Michel Foucault (1979; 1987; 1988) e desdobrada por Gilles Deleuze
(1990) e Thomas Lemke (2018), a tese ora apresentada procura desmantelar
analiticamente os dispositivos de monitoramento eletrônico de presos e presas para
tornar decifráveis as relações de poder que nele se inscrevem. Procura-se observar
suas diversas faces e interfaces consideradas chave para o entendimento de seu
funcionamento.
É nesse sentido que a noção de dispositivo se mostrou útil no decorrer da
pesquisa, apontando para as possibilidades de análise dos diversos elementos que
constituem o objeto de estudo. Compreendido como um dispositivo, o monitoramento
eletrônico deixa de ser tomado como mero aparato técnico ou jurídico e passa a ser
investigado como um feixe conector que se estabelece entre máquinas, programas,
leis, instituições e enunciações tão heterogêneos quanto versáteis (Foucault, 1979;
Deleuze, 1990; Lemke, 2018). Nessa medida, a noção aparece como ferramenta
propícia no interior de uma estratégia metodológica que dê conta do caráter
multifacetado da monitoração eletrônica. O esforço consistiu, portanto, em desmontar
o dispositivo de monitoramento e verificar suas conexões internas; procurar separar
algumas de suas partes consideradas fundamentais e analisá-las mais detidamente.
Atenta-se aqui às sugestões de Gilles Deleuze (1990), quando o filósofo
compreende o dispositivo como um conjunto multilinear no interior do qual se
estabelecem relações de poder, produções de saber e linhas de subjetivação.
Baseando-se na produção foucaultiana em torno da noção, Deleuze descreve um
dispositivo como um agenciamento complexo, composto por curvas de visibilidade e
enunciação, concebidas a partir de elementos políticos, epistemológicos e subjetivos.
Esta caracterização específica permitiu o delineamento dos três eixos de investigação
que conduziram a pesquisa, a partir das seguintes questões iniciais: Quais as relações
de poder mobilizadas pelo monitoramento eletrônico de presos e presas no Brasil? A
que discursos e racionalidades ele se conecta? Quais as formas de condução de si
desencadeadas pelo dispositivo sob análise? Sem pretender esgotar estas perguntas, a
pesquisa se desenvolveu a partir delas.
23
A investigação das configurações políticas da monitoração eletrônica baseou-
se em pesquisa de campo realizada em unidades de regime semiaberto e centrais de
monitoramento eletrônico; entrevistas com servidores públicos e privados, operadores
da política de monitoramento; análise dos diagnósticos e modelos de gestão
produzidos pelo Poder Executivo Nacional a respeito da implementação da medida no
país (Brasil, 2015; 2017a; 2017c); além de dados quantitativos fornecidos pelas
secretarias estaduais de justiça e administração penitenciária, via Lei de Acesso à
Informação (Lei no 12.527/11).
Para a realização do trabalho de campo, optou-se por estados que apresentam
cenários particularmente críticos do ponto de vista das políticas penais e de segurança
pública. No interior de um amplo espectro de unidades federativas com tais
características, foram perseguidos os caminhos em que uma entrada de pesquisa foi
possível, dado o caráter hermético do sistema penal e penitenciário brasileiro. Desse
modo, o trabalho de campo básico foi realizado nos estados de São Paulo, Rio de
Janeiro, Maranhão e Ceará.
Apresentando os maiores índices de encarceramento do país (Brasil, 2017b) e
tendo sido o primeiro estado a implementar o monitoramento eletrônico, São Paulo
foi tomado como base principal da pesquisa de campo. Foram realizadas 26 visitas
semanais a Centros de Progressão Penitenciária, onde são executadas as penas em
regime semiaberto sob monitoramento eletrônico. É também no interior destas
unidades que os sistemas e terminais de controle eletrônico encontram-se instalados.
As interlocuções realizadas com presos monitorados e agentes prisionais que operam
os terminais permitiu, portanto, a compreensão do funcionamento dos sistemas
eletrônicos e suas formas de operação. Foi também realizado um levantamento dos
contratos estabelecidos entre a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP-SP) e
as empresas de monitoramento, possibilitando a identificação dos direcionamentos
público-privados dados aos dispositivos de monitoramento.
No Maranhão, o desencadeamento de uma sequência de massacres no interior
de unidades prisionais durante os anos iniciais desta pesquisa e as campanhas
subsequentes pela modernização do sistema penal do estado chamaram atenção para o
papel que o monitoramento eletrônico desempenharia nesse contexto. Desse modo,
foram feitas duas visitas à Central de Monitoramento Eletrônico do estado; um
levantamento dos dados penitenciários locais junto à Secretaria de Estado de
Administração Penitenciária (SEAP-MA), particularmente relacionados à aplicação
24
da monitoração eletrônica; além de uma pesquisa bibliográfica sobre as políticas
penais e de segurança pública do estado.
No estado do Ceará, a chamada “crise penitenciária” reverberou com maior
ênfase do lado de fora dos muros, suscitando indagações sobre os possíveis impactos
da política de monitoramento nesse cenário. A frequente mobilização do
monitoramento eletrônico como política de segurança pública, para além de uma
medida penal (Brasil, 2015), apontou para um interesse específico no caso cearense.
Lá, foram realizadas 2 visitas à Célula de Monitoramento Eletrônico do estado; duas
entrevistas com o juiz titular da 3a Vara de Execuções Penais de Fortaleza e uma
entrevista com o psicólogo da Central de Alternativas Penais de Fortaleza. Um
conjunto de dados quantitativos referentes à aplicação do monitoramento foi também
levantado junto à Secretaria de Justiça do Ceará (SEJUS-CE).
Com o propósito de identificar os discursos e linhas de argumentação que
fundamentam a implementação da monitoração eletrônica no Brasil – segundo eixo de
investigação deste trabalho –, foi realizado um levantamento dos debates legislativos
e projetos de lei que precederam a sua autorização constitucional. Com esse objetivo,
analiso os oito projetos de lei anteriores à autorização da medida em âmbito federal,
além das notas taquigráficas das quatro sessões realizadas na Câmara dos Deputados e
no Senado Federal que discutem o projeto que culminou com a aprovação da medida
pela Presidência da República. Apresento também uma sessão ordinária específica
realizada na Câmara, dedicada à exposição de soluções tecnológicas apresentadas pela
iniciativa privada à questão penitenciária. A sessão é particularmente relevante na
medida em que esclarece o papel político de fabricantes e empresários de sistemas de
rastreamento no processo de implementação do monitoramento no país.
Por fim, o terceiro eixo investigativo, dedicado aos efeitos do monitoramento
sobre as pessoas a ele submetidas, desenvolveu-se a partir de interlocuções realizadas
junto a pessoas que encontravam-se sob supervisão eletrônica durante a pesquisa, ou
que passaram por esta experiência, ou ainda com seus familiares. Estas conversas e
acompanhamentos se realizaram nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Nesse
caso, as unidades federativas foram determinadas pela disposição e disponibilidade
das pessoas que se interessaram em participar da pesquisa.
Ressalto, portanto, que o desenvolvimento desta pesquisa só foi prática e
eticamente possível devido à parceria e envolvimento com a Pastoral Carcerária do
Estado de São Paulo. Foi como agente pastoral que tive acesso às pessoas
25
monitoradas e às unidades prisionais em que fiz pesquisa de campo. Foi a partir desta
organização e seu comprometimento com as pessoas presas que pude desenvolver
meu trabalho. A partir disso, as palavras que me foram confiadas implicavam e
implicam e um estar lado a lado, procurando amparar como podia algumas urgências
e necessidades básicas daqueles e daquelas com quem estabeleci essas interlocuções –
seja fazendo contato com familiares de pessoas presas ou buscando informações sobre
seus processos.
A partir desta aproximação, realizei 25 entrevistas e acompanhamentos em
profundidade com pessoas monitoradas em São Paulo e duas no Rio de Janeiro,
somando aproximadamente 40 horas de entrevistas. Estas entrevistas foram feitas em
suas casas, cafés, bares ou no interior de unidades prisionais. Seu grau de
desenvolvimento também variou conforme a disposição das pessoas com quem
conversei. Realizei também duas entrevistas com companheiras de pessoas sob
monitoramento, sendo uma delas em São Paulo e outra no Rio de Janeiro.
Dessa maneira, as diferentes técnicas e abordagens metodológicas foram
mobilizadas conforme os eixos de pesquisa. No decorrer do texto, contudo, tais eixos
são inevitavelmente entrecruzados, dada a impossibilidade, conforme o referencial
analítico adotado, de se apartar discursos e práticas, racionalidades e técnicas, sujeito
e poder (Foucault, 1987; 2009). O estudo dos programas políticos de monitoração
eletrônica passa impreterivelmente pela análise dos discursos que os constituem e
fundamentam. Do mesmo modo, a investigação dos impactos implicados pelas
práticas de monitoramento sobre a vida de pessoas monitoradas é atravessada pelas
diferentes racionalidades que orientam a política de monitoramento. Um emaranhado
de linhas, nas palavras de Deleuze (1990), caracteriza o objeto colocado sob análise.
Capítulos
26
objetivo central do capítulo consiste em situar alguns dos efeitos dos dispositivos de
rastreamento sobre a vida e sobre o corpo de pessoas monitoradas.
O segundo capítulo concentra-se na investigação das dimensões políticas da
monitoração, analisando suas formas de aplicação nos estados do Ceará, São Paulo e
Maranhão. Nele, são apresentados os aspectos qualitativos e quantitativos da
ampliação e da intensificação dos controles penais decorrente da política de
monitoração eletrônica. O material empírico básico é constituído pelos registros feitos
em sessões visitas realizadas na Célula de Monitoramento Eletrônico do Ceará; visitas
a unidades prisionais de regime semiaberto em São Paulo; entrevistas com servidores
públicos e dados estatísticos sobre a evolução dos programas de monitoramento
eletrônico, fornecidos pelas secretarias de administração penitenciária ou publicados
pelo DEPEN. O capítulo tem como escopo central apresentar e analisar a atual
sobreposição entre o monitoramento eletrônico e o dispositivo carcerário nos estados
pesquisados.
O terceiro capítulo promove um certo recuo histórico e um deslocamento
geográfico com o propósito de examinar os processos de elaboração e consolidação
dos dispositivos de monitoramento nos Estados Unidos, país que inaugurou o
desenvolvimento da medida. Nele, realizo uma revisão da bibliografia sociológica
sobre as primeiras experiências com sistemas de rastreamento de apenados durante as
décadas de 1960 e 1970, e o desenvolvimento do dispositivo nas três décadas
subsequentes. A partir desse material, o capítulo apresenta uma análise genealógica
dos processos de emergência histórica e epistemológica do monitoramento eletrônico.
O quarto capítulo investiga os discursos e contextos de introdução dos
sistemas de rastreamento de presos no Brasil, além de identificar alguns dos principais
agentes que promoveram a sua implementação inicial no país. Com base em debates e
documentos legislativos sobre o tema, são apresentadas as justificativas e linhas de
argumentação que sustentaram a aprovação da Lei Federal no 12.258/10, que autoriza
a monitoração eletrônica como modalidade de execução penal. A participação de
empresários e fabricantes de sistemas de geolocalização é também situada e analisada,
demonstrando o processo público-privado de construção legislativa que se
desenvolveu em torno da monitoração eletrônica.
Por fim, o quinto capítulo retoma e sistematiza os principais achados de
pesquisa, particularmente relacionados aos efeitos do dispositivo de monitoramento
na política penal e penitenciária brasileira, bem como aos seus impactos sobre a vida
27
de presos e presas monitorados. Neste último movimento, o material produzido em
campo retorna à frente da análise, por meio das visitas, entrevistas e interlocuções
realizadas em unidades prisionais e centrais de monitoramento eletrônico. O objetivo
do capítulo consiste em apresentar uma síntese analítica dos efeitos e funcionalidades
adquiridos pelos dispositivos de monitoramento nos estados pesquisados. O capítulo
finaliza reposicionando o corpo no centro da análise e encerrando uma espécie de
círculo expositivo por meio do qual a tese é construída. O ponto de chegada e de
partida da trabalho reside, portanto, nas interações e integrações estabelecidas entre o
corpo monitorado e o dispositivo de monitoramento.
28
Capítulo 1
Questões preliminares sobre a interface corpo-máquina
29
1.1. Biomáquina
“Ela vibra, só vibra. E a luz muda de cor. Se ela começar a vibrar, vai
acender uma luz vermelha ou roxa. É pra avisar que eu tô fora da área, ou que tá
precisando carregar a bateria. Porque a luz é só verde, pisca verde”6. Sérgio
descreve o sistema de alertas emitidos pela tornozeleira eletrônica que controla o
cumprimento de sua Prisão Albergue Domiciliar (PAD). Uma combinação de alarmes
luminosos e vibratórios que sinalizam o bom ou mau uso do equipamento, detectados
por sua presença ou ausência no interior de um perímetro delimitado em decisão
judicial. Thaiane, monitorada enquanto cumpria pena no regime semiaberto, explica:
“Você tem um raio. Um raio invisível, que você pode circular. Passou daquilo lá... se
fudeu, colega, se fudeu. Por que? Porque a luz lá fica vermelha, daí você se fudeu”7.
Em caso de violação das condições impostas, as possíveis consequências são
várias e difíceis de se prever. Deivid relata que foi espancado e isolado por 1 mês na
cela do castigo quando retornou da saída temporária de natal para a Penitenciária II de
Sorocaba, no interior do estado de São Paulo. Sua pulseira havia acusado
“afastamento”. Depois de 30 dias trancado no poço8, regrediu do regime semiaberto
para o fechado. Sérgio, por sua vez, habituou-se aos alarmes emitidos pelo aparelho
acoplado à sua perna. Mora na zona oeste do Rio de Janeiro e estuda no centro da
cidade. Conforme as orientações do Sistema de Inteligência Penitenciária, Sérgio não
pode se ausentar do município. “Mas acaba acontecendo de você violar. Eu violo.
Vou pra Friburgo, vou pra qualquer lugar. Nunca sofri nenhuma sanção por isso. De
todo modo, dizem que se pegar dá ruim. Mas eu vivo isso”9.
O software de monitoramento pressupõe a programação e edição de zonas de
controle, customizadas para cada usuário monitorado. As áreas de inclusão/exclusão
são definidas por agentes penitenciários, junto aos técnicos da empresa contratada, a
partir das determinações da justiça penal. Computadores pré-cadastrados acessam o
software via interface web por meio da utilização de login e senha pessoais,
6
Entrevista realizada em 17 de novembro de 2016. Todos os nomes próprios citados nesta tese são
fictícios, exceto os de autoridades públicas.
7
Entrevista realizada em 31 de agosto de 2015.
8
Poço, pote ou castigo são os nomes dados, no sistema prisional paulista, às celas reservadas a
detentos que supostamente violaram regras de execução penal ou que entraram em conflito com a
administração da unidade. Em geral, são pequenas celas superlotadas nas quais os presos são privados
de banho de sol por dias, semanas ou até meses.
9
Entrevista realizada em 17 de novembro de 2016.
30
permitindo a configuração do zoneamento conforme os casos particulares. “O sistema
é bem personalizado, eu posso configurar de acordo com a decisão que foi feita pra
aquele monitorado específico” (Supervisor Técnico Spacecom)10.
As áreas de inclusão geralmente compreendem a residência do indivíduo (nos
casos de cumprimento de prisão domiciliar ou em saída temporária), a unidade
prisional (para presos em regime semiaberto) e seu local de trabalho ou estudo. A
partir desses pontos geográficos e do trajeto que os conecta, uma determinada zona é
definida, delimitando o perímetro no interior do qual a pessoa poderá circular. A
distância entre os pontos do trajeto e o limite espacial tolerado forma o raio invisível
mencionado por Thaiane. As áreas de exclusão podem abranger bares, casas
noturnas, aeroportos, rodoviárias, regiões demarcadas como zonas de risco ou locais
onde habitam “vítimas em potencial”, tais como ex-companheiras de indivíduos em
cumprimento de medida protetiva de urgência, no âmbito da chamada Lei Maria da
Penha (Lei no 11.340/2006). Nos casos de medida protetiva, a suposta vítima também
porta um equipamento de localização, do qual a tornozeleira do agressor deve manter
certa distância.
Aos perímetros espaciais pré-programados correspondem horários de
circulação. Cada usuário possui um itinerário próprio, definido de acordo com sua
rotina de trabalho, estudo e recolhimento. Um horário é estipulado para a entrada no
local de trabalho/estudo e outro para a saída, reservando-se um intervalo de tempo
para os deslocamentos necessários. Um período é fixado para permanência no local de
detenção, seja ele a casa do usuário ou a unidade prisional em que cumpre sua pena.
As áreas de inclusão vinculam-se, portanto, a uma grade horária específica,
convertendo-se em áreas de exclusão conforme o período do dia e da semana. O lugar
de trabalho torna-se território proibido nos horários de recolhimento domiciliar, por
exemplo.
Desse modo, as zonas de controle são móveis, moduláveis e obedecem a uma
dinâmica espaço-temporal programável, imprimindo velocidades variadas que
oscilam entre pontos de parada e regimes de aceleração. É o cruzamento relacional
espaço-tempo que viabiliza a produção e a regulação dos circuitos, e não a
10
Registro de campo produzido em 20 de outubro de 2016 na Central de Monitoramento Eletrônico de
São Luiz, Maranhão.
31
independência das grandezas tempo e espaço (Virilio, 2016)11. O domínio
compreendido pelos interstícios entre castigo e controle não escapa a uma microfísica
das velocidades, sendo antes um campo privilegiado de experimentações, emaranhado
político no qual se entrecruzam múltiplas tecnologias de poder indexadas ao par
movimento-pausa.
O conjunto das condições relativas à execução penal institui dinâmicas de
progressão e regressão, celeridade, morosidade e pausa, por meio de diferentes
composições de acessos e bloqueios, sejam eles virtuais ou atuais – o atual e o virtual
sendo compreendidos aqui como formas correlatas de produção do real (Deleuze,
2009; Lévy, 1995)12. As leis de execução penal são leis de velocidade, ainda que seus
efeitos não sigam o ritmo programado – observe-se a evolução progressiva de regimes
penais, qualificados e quantificados pela relação entre o tempo e o lugar de
cumprimento da sentença proferida pelo juiz, entremeados pelos intermináveis lapsos
temporais durante os quais o sentenciado aguarda a liberação para os regimes
semiaberto e aberto13, ou mesmo pelas regressões, decorrentes de faltas disciplinares,
que fazem endurecer o regime e reiniciar o ciclo.
Além ou aquém dos códigos de execução, a penalidade contemporânea é
concebida a partir de estratégias voltadas ao controle dos trajetos, procedimentos de
inserção dos corpos em um espectro segmentado de circuitos possíveis (Cunha, 2008;
Godoi, 2015; Mallart, 2019). A trajetória diária e semanal de Anderson, preso e
monitorado enquanto cumpria pena no regime semiaberto na Região Metropolitana de
São Paulo, é dirigida por uma combinação de diferentes mecanismos de incitação à
11
Paul Virilio analisa os modos pelos quais as liberdades são equacionadas no interior de uma
engenharia política que contrapõe vetores de velocidade. As estratégias ligadas ao manejo do espaço
em função do tempo são tomadas como chave analítica para o estudo das relações de poder nas
sociedades modernas. O governo dos deslocamentos requer a concepção de técnicas de condutibilidade
que regulem a passagem das coisas e dos corpos, facilitando ou dificultando os “cursos”, as “corridas”.
Virilio utiliza a palavra grega dromos para designar velocidade, curso, corrida, deslocamento. O autor
analisa as sociedades capitalistas como sociedades dromocráticas, pautadas pela lógica da velocidade
como parâmetro de urbanização, arma de guerra e instrumento de poder (Virilio, 1996).
12
Gilles Deleuze (2009) desconstrói a oposição entre o virtual e o real, definindo o virtual como
dimensão própria e imanente a um determinado objeto ou existência real (pp. 294-298). Para o filósofo,
“o virtual não se opõe ao real, mas apenas ao atual” (Idem), sendo a realidade composta
necessariamente por uma dimensão virtual e outra atual. Mobilizado pelas discussões propostas por
Deleuze, Pierre Lévy (1995) compreende a realidade como um produto da virtualidade, mesmo que o
virtual esteja desprovido de “presença física imediata” (p. 10). Ao longo desta tese, serão discutidos
alguns dos aspectos e efeitos da virtualização do castigo, assim como de sua atualização, tomando os
trabalhos de Deleuze e Lévy como importantes referenciais analíticos.
13
O “lapso de benefício” é o tempo em que a pessoa condenada aguarda a progressão de seu regime
penal.
32
mobilidade, intervalados por paradas induzidas. O registro a seguir descreve o seu
itinerário:
14
Registro produzido a partir de entrevistas realizadas entre 23 de setembro de 2015 e 24 de junho de
2016.
33
computador situado em uma das salas do setor administrativo. O aspecto arcaico e
imponente do prédio, construído no início da década de 1930 com base nos padrões
da arquitetura clássica, rendeu-lhe o apelido irônico que remete à combinação
ambivalente de lar suntuoso e monumento da agonia15. Pelas escadarias estreitas e
corredores escurecidos do Castelinho, presos caminham de um lado a outro, de cima a
baixo, convivendo com o inevitável cheiro fétido que toma conta do lugar, decorrente
da superlotação e do escasso fornecimento de água. Em uma cela projetada para 50
pessoas, mais de 110 homens improvisam barracas de lençol e compartilham colchões
dominados por percevejos. “A vida lá é insuportável”, afirma Anderson.
Todavia, a maior parte de seu tempo corre do lado de fora da unidade, nas idas
e vindas entre o município carcerário de Franco da Rocha16 e o centro da metrópole
paulista. Nesse trânsito, seus movimentos são rastreados pelo dispositivo que integra
seu corpo à malha tecnológica formada pelo terminal de controle instalado no CPP,
pela Central de Monitoramento da Spacecom e pela rede de satélites que compõe o
Sistema de Posicionamento Global (GPS). Um complexo sociotécnico constituído por
hardwares, softwares, satélites artificiais, agentes prisionais, técnicos de
monitoramento e usuários monitorados. Anderson é inserido em uma engrenagem
penal e comunicacional na qual ele próprio converte-se em componente, roda dentada
entreposta no agenciamento maquínico (Deleuze e Guattari, 1997; 2014) que conecta
tanto elementos técnicos quanto políticos e econômicos, cristalizados em programas
governamentais, codificações jurídicas e demandas de mercado17.
Conforme exposto, o circuito sofre ainda a interferência provocada pelo
consumo semanal de ansiolíticos e tranquilizantes nos dias de descanso e
15
Inicialmente, o edifício que hoje abriga o CPP de Franco da Rocha fora projetado para funcionar
como um dos pavilhões do Hospital Psiquiátrico do Juquery, localizado nas proximidades da unidade.
Não é mera coincidência histórica, contudo, o fato de que boa parte dos presos daquela unidade sejam
hoje diagnosticados com problemas de “saúde mental”, conforme me relatou a psicóloga responsável.
Sobre as atuais interfaces entre práticas punitivas e psiquiátricas no estado de São Paulo, ver: Mallart,
2019.
16
A cidade de Franco da Rocha situa-se na Zona Norte da Região Metropolitana de São Paulo. Com
cerca de 130 mil habitantes, o município abriga 3 Penitenciárias, 2 Hospitais de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico, 1 Centro de Detenção Provisória, 1 Centro de Progressão Penitenciária e 6 unidades de
internação da Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo para Adolescentes (Fundação CASA).
17
Em Deleuze e Guattari, um agenciamento maquínico é mobilizado tanto por componentes técnicos e
materiais, quanto por pessoas, símbolos e instituições. O conceito de máquina se aproxima aqui da
noção Foucaultiana de dispositivo, embora a ideia concebida por Foucault tenha recebido contornos
mais delimitados, particularmente em sua coletânea Microfísica do poder. De todo modo, tanto a noção
de máquina quanto a de dispositivo são definidas, em primeiro plano, pela heterogeneidade de seus
elementos e, em segundo, pelos regimes de correlação que se estabelecem entre esses elementos. “O
que faz máquina, falando propriamente, são as conexões, todas as conexões que conduzem a
desmontagem” (Deleuze e Guattari, 2014, p. 148).
34
recolhimento na unidade prisional – espécie de desativação psicotrópica, parada
forçada que, mais do que uma chave de desligamento, constitui outro conector que
atravessa seu organismo tornando-o ponto de convergência entre práticas e saberes
punitivos e psiquiátricos, regulando as atividades de seu sistema nervoso central nos
momentos de pausa confinada: circulação molecular, neuroquímica e intracorpórea
como alvo de intervenção e objeto de governo.
De todo modo, a experiência penal de Anderson, marcada pelo fluxo pendular
prisão-monitoramento, é conduzida e atravessada por uma série de tecnologias de
poder cujos efeitos vinculam-se aos processos de subjetivação implicados pelas
técnicas atuais de punição e controle. Do flagrante policial à expectativa para a
liberação de seu regime aberto, passando pela lenta e progressiva evolução da
execução penal, por cada beco sem saída do labirinto processual, o encadeamento
entre criminalização, encarceramento e monitoramento é composto por toda uma
maquinaria de produção e aniquilação do sujeito. A construção do homo penalis, do
homem penalizável e penalizado, torna-se apenas uma parte de um procedimento
mais amplo e capilar de individuação e desindividuação, subjetivação e
dessubjetivação, operado pela composição e sobreposição de diferentes dispositivos
de poder.
Por ter nascido pobre e pardo, Anderson é imediatamente classificado no
recorte biossocial que habilita sua entrada e permanência no aparato punitivo18. Sua
propensão ao crime é dada de antemão, pelo perpétuo cruzamento de determinismos
antropológicos que a ele imprimem uma raça, uma classe e uma qualificação moral
correspondente, sendo o simples porte de narcóticos insuficiente para a fabricação do
criminoso. A aplicação da lei penal, ainda pautada em grande medida no Brasil pelo
arcabouço criminológico de inspiração italiana (Alvarez, 2003) – notadamente pelos
autores da chamada Escola Positiva, tais como Lombroso, Ferri e Garofalo, que oscila
entre a anatomia política da delinquência e a sociologia criminal –, atua aqui como
instrumento de validação de uma verdade construída previamente, mobilizando o
binarismo legal-ilegal como meio de ratificação das marcações identitárias que
definem os critérios de seleção do sistema de justiça penal. O dispositivo jurídico é
18
O último censo penitenciário indica que 64% das pessoas presas no Brasil se declaram negras, ao
passo que a população total do país conta com 53% de pessoas que assim se consideram. A
categorização realizada pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) e pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) inclui as pessoas “pretas” e “pardas” na categoria “negra”.
35
posto em funcionamento como aparelho de sujeição social, orientado pela
qualificação valorativa das raças e das classes (Foucault, 1999; Deleuze & Guattari,
1997; Misse, 2014).
A partir da ilegalidade demarcada pela lei e sentenciada pelo juiz, a conversão
de Anderson em sujeito delinquente é operacionalizada no interior do sistema
carcerário. Os regimes disciplinares da cadeia, fixados seja pela administração da
unidade, seja pelas codificações estatutárias de “movimentos” ou “facções”, seja
ainda pela mediação espiritual de igrejas e organizações religiosas, seguem tendo por
efeito a transformação do criminoso em delinquente, convicto ou arrependido, ainda
que esse processo de conversão fuja ao controle das autoridades penitenciárias e
eventualmente se volte contra ela. A prisão massificada, tornada aparelho de
distribuição e administração de grandes contingentes populacionais (Godoi, 2015),
continua sendo, contudo, o espaço por excelência de individuação da delinquência.
Após dois anos e meio no regime fechado, a transferência de Anderson para o
semiaberto de Franco da Rocha mobiliza novas subjetivações produzidas pelo
monitoramento eletrônico de seus passos. Se, por um lado, a fixação de um
dispositivo de controle em seu corpo confere a Anderson a tarefa individual de gerir a
própria pena, por outro, sua inserção no agenciamento maquínico que constitui o
sistema de controle eletrônico promove um desmantelamento do elemento
individuado, agora tornado peça, fragmento ou ponto de conjunção instalado na
composição sociotécnica que conforma o dispositivo de monitoramento e que
necessita de seu corpo como feixe de ligação e conexão do circuito. Anderson é
subjetivado como agente prisional de si mesmo ao passo que se torna elemento
componente da máquina penal. É também no regime semiaberto que seu sofrimento
passa a ser administrado por meio dos comprimidos de Rivotril que um parceiro de
cela lhe fornece.
Nessa medida, sua trajetória no sistema penal é realizada mediante um
conjunto de mecanismos que atuam sobre e a partir de sua circulação, regulando suas
intensidades, definindo suas frequências, demarcando seus trajetos e tendo seu corpo
como principal veículo e ponto de incidência. Seja por meio do acoplamento de um
dispositivo eletrônico de monitoração em sua perna, seja pela medicalização periódica
via psicofármacos, seja ainda pelo encerramento noturno e dominical na unidade
prisional, as diversas técnicas mobilizadas na execução penal de Anderson dependem,
antes de mais nada, da intervenção sobre seu corpo. Têm necessidade de seu corpo.
36
É no corpo e com o corpo que a máquina penal exerce seu poder sobre os
indivíduos, fazendo máquina de seus corpos. É o corpo enquanto substrato biológico
que veicula e viabiliza exercícios de poder (Foucault, 1987; 1988). Malgrado as
significativas transformações pelas quais atravessam hoje as tecnologias de punição,
seus procedimentos fundamentais parecem guardar uma dimensão biológica cuja atual
mecânica de funcionamento requer maiores investigações.
A noção foucaultiana de biopoder oferece aqui um campo vasto de pistas e
problemas. A emergência de uma estratégia política que se realiza no corpo, pelo
corpo, desenvolveu-se, conforme Foucault, através de dois pólos correlacionados. De
um lado, os mecanismos de controle social estiveram ligados, a partir do século XVII
na Europa Central, à elaboração de técnicas disciplinares voltadas ao adestramento do
corpo individual. Das casas de instrução aos estabelecimentos de correção, dos
espaços de produção aos locais de tratamento, a vida individual era perpassada por
um conjunto de práticas e saberes voltados aos atributos e utilidades do corpo
humano, à extorsão sistematizada de suas forças, possibilitando a extração de um
lucro econômico-político a partir do corpo do indivíduo confinado; toda uma rede
interconectada de dispositivos disciplinares erigidos sob configurações político-
diagramáticas semelhantes, cuja mecânica operacional era dada pelo duplo vigilância-
punição (Foucault, 1987). O corpo-máquina nasce com as disciplinas. De outro lado,
Foucault investiga a edificação, já no século XIX, de um aparato governamental
direcionado à gestão da população enquanto corpo orgânico sobre o qual se
desenvolvem técnicas de regulação. Os fenômenos relacionados à proliferação da
espécie humana, sua reprodução, os índices de mortalidade e natalidade, os níveis de
saúde e higiene pública, passavam a ser inseridos em planejamentos urbanos,
sanitários, médicos e sobretudo securitários, cuja regulamentação era direcionada por
uma estratégia de governo voltada à população tomada como corpo-espécie (Foucault,
1988). O biopoder recobriria, dessa maneira, tanto uma anatomopolítica do indivíduo
quanto uma biopolítica da população. Duas frentes a partir das quais emerge, entre os
séculos XVII e XIX, essa estratégia geral de poder que se incumbe da vida em seu
conteúdo político.
37
As leituras e releituras das noções de biopoder e biopolítica são inúmeras e
seria impossível recuperá-las aqui19. Das análises sobre o racismo de Estado e
campanhas de extermínio (Agamben, 2002; Mbembe, 2003; Espósito, 2010) às
investigações a respeito do avanço da engenharia genética (Rose, 2007; Lemke,
2011), passando pelos estudos acerca das reestruturações do capitalismo
contemporâneo e sua correspondente produção de subjetividades (Hardt e Negri,
2000; Lazzarato, 2014; Dardot e Laval, 2016; Pelbart, 2009), as contribuições de
filósofos, sociólogos, cientistas políticos, geógrafos e antropólogos são tão valiosas
quanto ecléticas. Alguns desses trabalhos serão retomados ao longo desta tese, na
medida em que fornecem instrumentos para o estudo dos impactos do monitoramento
eletrônico sobre a vida das pessoas que a ele são submetidas, implicados pelas
interações e integrações entre o corpo individual e o aparato penal, alterando
substancialmente os modos pelos quais os castigos são empregados e os controles
difundidos.
Tomando como referencial analítico algumas investigações a respeito das
reconfigurações nas táticas e estratégias biopolíticas na atualidade, interessa
investigar como o biopoder se insere nas transformações pelas quais atravessam as
tecnologias de punição, já que apesar dos expressivos deslocamentos e
redimensionamentos que elas implicam, o poder de punir parece manter o corpo como
sua matéria-prima. Como se realiza hoje um governo do corpo que ultrapassa a
anatomia política individual e tampouco se atém a uma macrogestão populacional?
Que espécie de corpo é produzido pelas técnicas atuais de punição e controle, já
distante do corpo adestrado pelos dispositivos disciplinares, porém cada vez mais
próximo da maturidade de um corpo-máquina que eles fizeram emergir?
Tais indagações devem orientar os próximos movimentos desta tese,
fornecendo repertório instrumental para a análise dos efeitos produzidos pelo controle
telemático georreferenciado sobre aqueles e aquelas que a ele são submetidos. De
imediato, interessa sublinhar que alguns dos procedimentos e princípios de
funcionamento biopolíticos são indispensáveis para a viabilização do monitoramento
eletrônico como forma de controle penal, sustentado por práticas regulatórias da
circulação dos corpos, orientado por uma nova economia política da pena e
19
Para citar uma bibliografia elementar, pode-se destacar os trabalhos de Agamben (2002) a respeito
do nazi-fascismo, Nikolas Rose (2007), sobre o desenvolvimento e transformações no saber médico e
Michael Hardt e Antonio Negri (2000), a respeito das atuais metamorfoses nas relações sociais e
produtivas alavancadas pelo avanço do capitalismo de império.
38
instrumentalizado como tecnologia de gestão da população prisional. São esses,
portanto, os principais eixos de investigação desta pesquisa: os impactos do controle
eletrônico na administração da superpopulação carcerária brasileira; a
transversalização da racionalidade econômico-política que orienta a elaboração de
novas técnicas penais; e a relação entre o corpo penalizado que circula e a máquina
que conduz essa circulação.
Este capítulo organiza alguns dos principais questionamentos suscitados pelo
trabalho de pesquisa, relacionados aos três eixos de investigação. Nele, são
apresentados o conjunto de camadas e o emaranhado de linhas que constituem o
dispositivo estudado, para que se possa instalar em cada uma delas nos capítulos
subsequentes. A principal via de entrada reside, contudo, no corpo monitorado. É a
partir da interface estabelecida entre o corpo e a máquina que as diversas camadas do
dispositivo em questão serão identificadas e analisadas. Sendo assim, os próximos
itens levantam algumas hipóteses a respeito dos efeitos dos dispositivos de
monitoramento relacionados à condução dos corpos, sua conversão em peça
maquínica e sua marcação pública. O trabalho de campo, a pesquisa bibliográfica e a
análise documental realizados durante esta pesquisa indicam que o corpo monitorado
é, a um só tempo, corpo conduzido, corpo-conector e corpo marcado.
39
1.2. O carcereiro de si mesmo
40
A monitoração eletrônica é também monitoração humana, na medida em que
requer o trabalho de agentes, públicos e privados, encarregados de sua supervisão.
Alguns estados brasileiros contam com equipes de psicólogos e assistentes sociais
voltados ao acompanhamento das pessoas monitoradas. É o caso do Acre, Bahia,
Ceará, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Roraima e Santa
Catarina (DEPEN, 20157. No restante do país, o trabalho de monitoramento é
realizado exclusivamente por agentes penitenciários e funcionários da empresa
contratada, restringindo-se à verificação se a pessoa rastreada está ou não cumprindo
as condições judiciais determinadas e à execução das sanções decorrentes de possíveis
descumprimentos.
O artigo 146-C da Lei no 12.258/10 especifica tais sanções: regressão de
regime; revogação da saída temporária para presos no regime semiaberto; suspensão
da prisão domiciliar ou advertência. Cada um dos incisos guarda, contudo,
implicações subjacentes, irredutíveis à codificação legal, na medida em que são
aplicados a partir do critério dos operadores diretamente responsáveis pelos serviços
de rastreamento. No limite, a qualidade das sanções será efetivamente definida pelos
agentes encarregados de fiscalizar a execução penal, tendo a lei como contorno
normativo. O dispositivo de monitoramento é composto, dessa maneira, pelas
conexões que se fazem entre a lei, os servidores públicos e privados envolvidos, o
sistema eletrônico de rastreamento e os próprios usuários, sem os quais o sistema não
se fecha. Essa malha sociotécnica (Latour, 2013), como qualquer outra, não é imune a
imprevistos, interferências e falhas de comunicação, cujas consequências serão
determinadas pelo juiz, intermediado pelas equipes de monitores. Nesse sentido, não
são raros os percalços técnicos e sociotécnicos relatados por presos monitorados e
seus familiares. É frequente a ocorrência de falhas nos equipamentos, que acarretam
em sanções regimentais ou extra-regimentais aos indivíduos rastreados. O destino de
Deivid diz um pouco sobre isso.
Durante os primeiros dias de 2016, em ocasião da saída temporária para as
comemorações de natal e ano novo, Deivid enfrentou problemas com seu
equipamento de monitoração, composto por duas peças: uma tornozeleira e uma
Unidade Portátil de Rastreamento (UPR). Os equipamentos comunicam-se entre si via
radiofrequência. Conforme as orientação do Diretor de Reintegração da Penitenciária
II de Sorocaba, onde o rapaz cumpria pena no regime semiaberto, a tornozeleira não
pode ultrapassar uma distância de 30 metros da UPR. Caso contrário, o aparelho
41
acusaria “afastamento”, sinalizado, nesse caso, por um LED de luz branca. Por conta
disso, Deivid permanecia com a UPR na mão, ou em uma mochila, enquanto
mantinha a tornozeleira fixa no corpo. Quando saía de casa, levava sempre os dois
aparelhos.
Certo dia, no entanto, Deivid e sua esposa, Irene, notaram que a mencionada
luz branca havia acendido na UPR. Pouco tempo depois, o equipamento passou a
emitir um beep sonoro. Preocupados, Deivid e Irene telefonaram para a unidade
prisional, dizendo o que se passava. Foram orientados pelos agentes penitenciários a
manter os equipamentos próximos um do outro e retomar suas atividades
normalmente, já que, segundo eles, o software de monitoramento instalado na
penitenciária não apontava nenhuma irregularidade. O casal seguiu a orientação. No
dia de retorno da saidinha20, contudo, Deivid foi surpreendido ao ser recebido na
unidade prisional sob socos, algemas e empurrões. Foi imediatamente colocado no
castigo, onde o mantiveram por um mês, sob a justificativa de que tinha se afastado
da UPR. Na carta a seguir, ele relata o ocorrido:
42
Deivid aguardou por dois anos no regime fechado até que o “benefício” do
semiaberto fosse novamente concedido. Durante o mês em que esteve isolado, Irene
pouco sabia sobre suas condições e tampouco os motivos do isolamento. Como é de
praxe nos casos de sanção disciplinar, suas visitas eram proibidas enquanto ele era
mantido no castigo. Evandro, preso na Penitenciária de Presidente Prudente, no
interior de São Paulo, também regrediu de regime quando, segundo ele, seu
equipamento de monitoração passou a vibrar e apitar sem que houvesse motivo claro.
Permaneceu por mais de 15 meses no regime fechado.
A respeito das falhas nos sistemas de monitoração, Maurício, agente prisional
no Centro de Progressão Penitenciária do Butantã, relata: “Tinha vez que a central
ligava aqui na unidade às 3 da manhã dizendo que tinha acusação de rompimento da
tornozeleira. Quando ia ver, a presa tava dormindo na cela. Tava com o aparelho e
fez algum movimento, sei lá”22. Tanto o equipamento quanto a leitura humana das
informações emitidas por ele são passíveis de erro, como todo sistema de
comunicação. Monitorada em 2011 na capital paulista, Maria reitera: “É uma
pegadinha. Você pode se dar bem, não ter problema nenhum, ou o aparelho falha e
você se dá mal. Acontece muito. É um aparelho que dá defeito, como qualquer
outro”23. Todavia, as implicações decorrentes de “problemas técnicos” são, nesse
caso, bastante particulares a um dispositivo conectado ao aparato penal e
penitenciário. Na ocasião relatada por Deivid, um suposto defeito no equipamento,
atrelado à intransigência do juiz e à truculência dos agentes penitenciários, resultaram
na regressão ao regime fechado e nas agressões mencionadas. Maria acrescenta: “A
verdade do aparelho é a mentira nossa. Nunca a falha vai ser do aparelho, vai ser
sempre do preso”24.
Associado ao descrédito prévio nas explicações e depoimentos fornecidos por
presos e presas, a aposta na eficiência e objetividade da tecnologia confere às
informações emitidas pelo equipamento a qualidade de verdades incontestáveis.
Artefatos não mentem. A suposta neutralidade tecnológica garante a veracidade do
sistema. Nesse sentido, a percepção de Maria é clara. Os agenciamentos entre as
máquinas e seres humanos que compõem os sistemas de monitoração eletrônica
22
Conversa informal registrada a partir de pesquisa de campo no CPP do Butantã, realizada no dia 14
de abril de 2016.
23
Entrevista realizada no dia 30 de setembro de 2016.
24
Idem.
43
desencadeiam os mais variados efeitos ligados à produção da verdade. Uma verdade
codificada por LEDs, beeps e alertas vibratórios, transmitida à equipe de monitores,
retransmitida ao juiz de execução e recodificada pelo enquadramento na lei penal.
Uma verdade produzida no interior do agenciamento maquínico que constitui os
mecanismos de controle eletrônico e que será então contraposta à verdade do preso.
No caso de Deivid, prevaleceu a verdade do aparelho, convertendo alarmes luminosos
em espancamentos na cela do castigo.
De todo modo, as ligações entre os dispositivos de monitoramento e o
dispositivo carcerário se fazem também mediante os alarmes falsos, os erros de
leitura, as “falhas técnicas” que trazem de volta ao interior dos muros os que tiveram
a má sorte de portar um equipamento defeituoso. Se o controle eletrônico permite
uma flexibilização da constrição espacial fixada pelos limites duros da prisão-prédio,
essa flexibilidade é qualificada por uma certa elasticidade (Augusto, 2013), cuja
tendência de reposicionamento reafirma a centralidade da prisão com suas torturas,
espancamentos e agressões subjacentes. As relações de conexão e complementaridade
entre a prisão e suas atuais modulações eletrônicas são estabelecidas inclusive a partir
dos bugs. Não se trata, portanto, de enxergar nas falhas a inoperância do sistema, mas
detectar o seu funcionamento também a partir dos erros, dos distúrbios, das
comunicações interrompidas. Furtar-se à conclusão rápida de que o dispositivo não
funciona porque é falho e indagar como, a partir de sua falibilidade, uma certa
funcionalidade é produzida (Foucault, 1987).
Para além do erro, inerente aos aparatos técnicos, importa considerar os
aspectos políticos inscritos nos projetos, programas e protocolos que compõem uma
determinada tecnologia. Aparatos tecnológicos não são neutros e a sua utilização
implica em direcionamentos nas formas pelas quais se pretende mediar e ordenar as
relações sociais (Winner, 1986). Projetado como componente de uma estratégia
específica de controle penal e inserido nos procedimentos de gestão penitenciária, o
sistema de monitoramento eletrônico dificilmente pode ser apartado de sua dimensão
política intrínseca, distante, portanto, de uma neutralidade presumível. Seu caráter
político é dado desde a sua concepção até a sua operacionalização, através das
interações com os diversos agentes dos quais o seu funcionamento depende (Latour,
1994). De ponta a ponta, intencionalidades se materializam. Relações de poder se
inscrevem em aparatos técnicos e aparatos técnicos se inscrevem nas relações de
poder (Winner, 1986; Latour, 1994).
44
Interessa, portanto, investigar quais as relações de poder mobilizadas sob o
invólucro dos discursos, práticas, leis e tecnologias que constituem os programas de
monitoramento de presos e presas. A que tipo de racionalidade esses dispositivos
obedecem e retroalimentam? Quais os efeitos dessa racionalidade quando ela se
materializa na vida e no corpo das pessoas monitoradas? Não se pretende aqui buscar
uma única resposta ou modelo explicativo, mas explorar possibilidades analíticas
suscitadas pela aproximação junto a indivíduos monitorados e suas percepções.
A ideia de que os propósitos da monitoração eletrônica vinculam-se à
reiteração da sensação de vigilância pelo usuário, relembrando-o permanentemente de
que seus movimentos estão sendo observados e que o descumprimento das
determinações judiciais acarretarão em uma punição mais severa (Nellis, Beyens &
Kaminski, 2013), provoca reverberações que conformam as experiências vivenciadas
por aqueles que são sujeitos ao controle eletrônico a distância. “Pra mim, a pulseira
mexe com a cabeça tanto quanto a cadeia”, afirmava Anderson durante os meses em
que foi monitorado. “Eu vou pra rua, mas eu continuo preso. Parece que eu tenho um
guarda do meu lado o tempo todo, me olhando em todo canto”25.
A interiorização da vigilância na mente do preso é um dos aspectos do modelo
panóptico de disciplinarização intramuros (Foucault, 1987). A máquina benthamiana,
projetada no tardar do século XVIII, já transferia a inspeção centralizada para cada
elemento inspecionado, subjetivado como vigia de si mesmo. “Tratava-se de um novo
modo de garantir o poder da mente sobre a mente, em um grau nunca antes
demonstrado”, dizia Jeremy Bentham a respeito de sua invenção (2008, p. 17).
Entretanto, o exame do comportamento do indivíduo e sua respectiva transformação
no interior de espaços fechados é redimensionado e reconfigurado pelas atuais
tecnologias de punição mediante a transposição dos procedimentos de observação e
controle para ambientes a céu aberto, ao nível e alcance de sistemas de sensoriamento
remoto e geolocalização. A ultrapassagem da mecânica disciplinar é efetivada por um
movimento de desterritorialização das técnicas de vigilância (Froment, 1996; Bogard,
2006), convertidas em monitoramento móvel, modular e ininterrupto.
Mais do que o sequestro das liberdades, o que está em jogo aqui é a produção,
a concessão e o gerenciamento de liberdades sob medida. O poder inclui a liberdade
como elemento indispensável ao seu exercício, mobilizando mecanismos que não
25
Entrevista realizada no dia 14 de outubro de 2015.
45
bloqueiem as possibilidades de circulação dos indivíduos, mas regulem essa
circulação, garantindo uma margem de segurança através de medidas que atuem como
contrapesos às liberdades concedidas pela justiça criminal sob a forma de benefícios.
Nesse sentido, os princípios operativos do monitoramento eletrônico respondem a
uma racionalidade política orientada por práticas de governamentalidade, cuja
efetividade supera a dominação baseada na constrição comportamental em
instituições de encerramento. “Governar, nesse sentido, é estruturar o eventual
campo de ação dos outros” (Foucault, 2009, p. 244). Ao conceder uma liberdade de
circulação ao indivíduo monitorado no interior de zonas de controle mais ou menos
restritas, vinculadas a horários de entrada, saída e permanência, o juiz de execução
penal estabelece a demarcação do campo de condutas possíveis do condenado,
abdicando a uma intervenção excessiva fundada em técnicas de adestramento.
46
expressão prototípica, a níveis impensáveis à distopia benthamiana. O sujeito
submetido ao monitoramento remoto deve projetar, por sua própria conta, o risco ao
qual se expõe caso decida violar as condições impostas pelo juiz. Nenhum
impedimento físico lhe é imposto senão a virtualidade da prisão. Onde quer que
esteja, o indivíduo deve ser capaz de conduzir a si mesmo, a partir das possibilidades
que as condições judiciais lhe oferecem.
A respeito das regras de seu regime semiaberto, Anderson explica:
“Não posso estar em lugares que oferecem algum risco pra mim.
Perto de um ponto de droga, balada, bar... Mas na real, tem umas
barreiras aí que eu mesmo crio. Às vezes eu acho que eu sou muito
correto. Às vezes até dava pra extrapolar, mas eu penso mil vezes”26.
“Eles falaram que eu não posso frequentar lugar que vende bebida,
por exemplo. Mas se eu tiver que entrar num bar, eu vou entrar. Não
me privaria de ir. Agora qual é a questão? Se rola uma briga no bar e
eu tô ali, eu tô lascado. Se eu sou pego pra testemunho, mesmo se eu
for vítima no fato ali, no caô, eu vou pra delegacia. Posso ser vítima
nesse processo, mas eu não deveria nem tá ali. Eu vou preso. Então
tem que avaliar, pensar bem”28.
26
Entrevista realizada no dia 14 de outubro de 2015.
27
Na diferenciação entre dispositivos disciplinares e dispositivos de controle, Deleuze afirma que “os
confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma
moldagem autodeformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas
malhas mudassem de um ponto a outro” (1992, p. 225).
28
Entrevista realizada em 17 de novembro de 2016.
47
A ameaça da regressão penal aparece como o risco a ser avaliado e evitado. O
indivíduo monitorado deve analisar os riscos que corre com a violação das regras
judiciais, contrabalanceando-o aos benefícios que poderia obter com seu
descumprimento. O cálculo íntimo que opõe as vantagens de uma conduta “livre”,
que negligencie as regras judiciais, aos riscos da regressão penal, deve servir de
parâmetro para que o sujeito monitorado conduza a si mesmo, a partir de seus
próprios julgamentos, orientados por avaliações e prognósticos de perdas e ganhos.
A racionalidade utilitária que equaciona vantagens e desvantagens converte-se
em parâmetro orientador das formas de condução de si do sujeito monitorado,
vinculando os dispositivos de monitoramento ao conjunto de técnicas de poder que
constituem a governamentalidade neoliberal, compreendida como uma forma
específica de condução das condutas pautada pela transversalização dos fundamentos
da economia de mercado sobre as esferas jurídicas, políticas, sociais e subjetivas
(Foucault, 2008). A grade racional pela qual se governa as relações econômicas torna-
se o princípio de concepção e inteligibilidade da política penal, associando a liberdade
ao lucro e a intervenção punitiva ao prejuízo.
Nessa medida, a governamentalidade neoliberal não apenas assume que todos
os aspectos da vida social e política podem ser reduzidos a cálculos de utilidade, mas
desenvolve programas e tecnologias de poder sustentados por práticas e discursos que
ratificam essa visão, produzindo individuações pautadas pela balança que pesa e
contrapesa prognósticos de riscos e benefícios (Brown, 2005)29. “O risco tornou-se
um microrrisco personalizado” (Aubrey, 2000, p. 101). “O indivíduo deve governar-
se a partir de dentro por uma racionalização técnica de sua relação consigo mesmo”
(Dardot & Laval, 2016, p. 350). A pena é vista, antes de mais nada, como uma dívida
social a ser paga e administrada pelo próprio condenado.
Vinculados ao imaginário criminológico que toma o infrator como um agente
racional e calculista que empreende o crime como um investimento qualquer – tendo
como único parâmetro de diferenciação a quantidade e a qualidade do risco implicado
pelo investimento (Becker, 1974) – os efeitos mobilizados pelo monitoramento
eletrônico relacionam-se à transferência das tarefas do agente prisional para o próprio
29
Observa-se, nesse sentido, a emergência e deflagração de saberes criminológicos que tomam o
infrator como um agente calculista que empreende sua conduta pautado em escolhas racionais
orientadas por avaliações e prognósticos de custo-benefício. “Baseada em teorias como a da rational
choice, tal concepção insiste na ideia de que os delinquentes calculam suas ações e de que o crime é um
aspecto trivial da existência cotidiana, um risco que deve ser calculado ou um acidente a ser evitado”
(Alvarez, 2014, p. 57). O Homo criminalis dá lugar ao homo oeconomicus (Foucault, 2008).
48
prisioneiro, reposicionando as atividades de vigilância para o campo do autogoverno.
A abordagem econômica do fenômeno criminal encontra sua eficácia no sujeito
concebido pela política penal. O indivíduo monitorado torna-se tecnicamente
orientado, analista dos riscos que corre e gestor individual de sua própria pena.
Entretanto, a conversão do condenado no agente prisional de si mesmo que
transpõe o olhar do vigia para os espaços em que habita revela-se das mais variadas
maneiras, dentre elas a tendência de isolamento e auto-exclusão reforçada pela marca
ostensiva que o aparelho de monitoração imprime no corpo. Deivid permanecia a
maior parte do tempo fechado em sua casa durante as saídas temporárias em que
esteve monitorado, receoso de que a vizinhança desse conta da presença de um
prisioneiro no bairro. “Mesmo dentro de casa, quando chegava visita, uma pessoa
que ele ainda não conhecia, ele procurava tá sempre no quarto, não saía do
quarto”30, relata sua companheira, Irene. Anderson descreve a saída temporária sob
monitoramento como mais um momento de recolhimento: “Dá vontade de me isolar
e ficar só em casa. Acho que é medo, por causa dessa pulseira”31.
Já a reação de Elton foi mais esdrúxula. Monitorado no Rio de Janeiro em
cumprimento de prisão domiciliar, Elton ergueu um muro ao redor de sua casa para
que ninguém da rua pudesse cogitar em vê-lo com uma tornozeleira, conforme conta
sua esposa, Ângela: “O Elton, quando chegou aqui, a primeira coisa que ele fez foi
fazer obra na casa. Levantou um muro em volta e tampou todas as frestas do portão.
Todas as passagens do portão entreabertas, ele tampou tudo. Ele lacrou a casa”32.
À vergonha de ser exposto com um aparelho que identifica o usuário como
criminoso atrelam-se as ameaças suscitadas pela sensação persecutória. A prisão
desterritorializada, virtualizada por meio de sistemas telemáticos de localização e
comunicação que transpõem seus limites para além dos muros institucionais, se
reterritorializa e se atualiza nos espaços em que habita o indivíduo rastreado, seu
trabalho, seu bairro, sua casa, tornada casa-prisão em que os muros são finalmente
repostos, agora pelo próprio prisioneiro. Não se trata de um confinamento voluntário,
mas de um isolamento induzido, conduzido pela relação que se estabelece entre o
sujeito monitorado e o dispositivo de monitoramento.
Entrevista realizada no dia 27 de agosto de 2016.
30
31
Entrevista realizada no dia 14 de outubro de 2015.
32
Entrevista realizada em 17 de novembro de 2016.
49
De todo modo, a imposição de limites físicos que demarcam espaços de
encerramento já não é necessária para que a condição de prisioneiro se estabeleça. O
dentro e o fora atingem um tal ponto de indiferenciação em que as muralhas já não
circunscrevem o espaço penal e seus controles, agora atrelados ao próprio corpo do
apenado. O prisioneiro converte-se em seu próprio carcereiro, orientado pela
aritmética utilitária que reitera a regressão penal como risco e virtualidade
permanente. Uma nova individualidade criminosa é construída, imanente à sua linha
de supressão que erradica a cisão entre o corpo e a prisão do corpo.
50
1.3. Ponto de conjunção
51
duas bancadas, e um aparelho de telefone. É nesse espaço reduzido que os agentes da
SEAP acompanham a movimentação dos usuários, verificando sua permanência nas
zonas de controle e realizando contatos telefônicos com aqueles que cometem algum
tipo de violação. Um funcionário da Spacecom é encarregado da supervisão do
sistema, instalação e manutenção do software, além da assistência técnica dos
equipamentos. Na parede frontal, um monitor de 120 polegadas exibe um plano
cartográfico composto por fotos de satélite, sobre o qual são assinalados os pontos em
deslocamento que indicam as posições das pessoas rastreadas em todo o estado.
O contraste entre a precariedade do lugar e a modernidade dos recursos
utilizados chama atenção. Os aparatos tecnológicos que equipam a central são
instalados e dispostos em um espaço com pouca ou nenhuma ventilação em pleno
trópico maranhense. A base do sistema de monitoramento eletrônico do estado, fixada
como terminal principal de controle e sensoriamento à distância e conectada ao
Sistema de Posicionamento Global, é acomodada no interior de um edifício
visivelmente debilitado, cercado por ruas esburacadas e mal pavimentadas, suscitando
indagações a respeito da descompassada convivência entre a alta tecnologia instituída
sob discursos e projetos de modernização e a reiteração do abandono das estruturas
públicas no Nordeste brasileiro – mas não só lá. A disparidade é ainda mais gritante
quando se leva em consideração as instalações penitenciárias da região. Como pensar
os altos investimentos direcionados ao progresso tecnológico voltado à modernização
do sistema penal maranhense, em concomitância à permanência de um parque
carcerário arcaico e reprodutor de violências, tal como o que se apresenta e se mantém
na ilha de São Luís? Como conceber a emergência e organização de uma sociedade
de controle, fundada e orquestrada sob a égide do silício (Deleuze, 2014), instalada
nos escombros da terra de Pedrinhas33?
33
O Complexo Penitenciário de Pedrinhas, situado na cidade de São Luís, ganhou visibilidade a partir
do ano de 2010, quando 18 presos foram mortos em uma rebelião eclodida em decorrência da
superlotação, da má qualidade da comida e da pouca quantidade de água fornecida aos internos. No ano
seguinte, uma nova rebelião resultou na decapitação de 3 presos, além de demais mutilações. Em 2013,
o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) documentou em relatório a morte de mais de 60 presos no
complexo. Ver: G1. Sobe para 18 total de presos em rebelião no MA. Disponível em:
http://g1.globo.com/brasil/noticia/2010/11/sobe-para-18-total-de-presos-mortos-em-rebeliao-no-
ma.html; Última Instância. Decapitações no Maranhão não são novidade. Disponível em:
http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/68412/decapitacoes+no+maranhao+nao+sao+novid
ade+diz+oab.shtml; Folha de S. Paulo. Presos filmam decapitados em penitenciária no Maranhão.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/01/1394160-presos-filmam-decapitados-
em-penitenciaria-no-maranhao-veja-video.shtml (Acesso em 17 de fevereiro de 2017).
52
Talvez seja essa a real face do projeto modernizador deflagrado pela sociedade
de controle, erigida à perpétua sombra de velhas estruturas prisionais, cenário dos
mais radicais maus tratos e palco para a mutilação enfurecida dos corpos, exibidos
como suplício revisitado e espetacularizado nos ávidos canais de comunicação e nas
onipresentes redes sociais que escancaram ao público atônito os inevitáveis resultados
de sua política penal: fratura exposta da penalidade neoliberal que faz coexistir
avançados sistemas de teledetecção e geolocalização com a prolongada agonia de suas
instituições de sequestro e de suas casas de tortura, ironicamente equiparadas às
masmorras medievais pelos próprios ministros responsáveis. Distante da assepsia
presumida e vendida nos programas de aperfeiçoamento das técnicas de punição, os
novos aparatos de controle são implantados em meio à poeira persistente e anacrônica
do sistema prisional brasileiro cuja violência intrínseca segue, contudo, em
funcionamento franco e expansivo.
É também de se notar a introjeção de instalações high tech de controle remoto
sobre corpos e fluxos ao estilo smartcities, em meio à paisagem tropical maranhense.
Na Central de Monitoramento do estado, funcionários da SEAP observam os
deslocamentos de usuários monitorados nos pequenos vilarejos, matagais e igarapés
que constituem a zona rural do Maranhão. As matas e planícies litorâneas tornam-se
cenário cartográfico digitalizado, recortado em zonas de controle sobre a
movimentação de suspeitos e condenados.
Ao todo, 987 pessoas eram monitoradas em outubro de 2016 no Maranhão,
onde os serviços de monitoração encontram-se em funcionamento desde 2014, ano
em que se registra uma considerável expansão da política de monitoramento
eletrônico no país, impulsionada pelos convênios firmados entre as administrações
estaduais e o DEPEN no final de 2013 (Brasi, 2015). O estado é uma das poucas
unidades da federação que iniciou a implementação da medida direcionando-a
majoritariamente para controle de indivíduos em situação de liberdade provisória,
aplicada antes da sentença condenatória, no âmbito da Lei Federal no 12.403/2011.
Cerca de 810 usuários e usuárias encontravam-se nessa situação no Maranhão em
2016. Tratava-se de uma tentativa de redução dos altos índices de prisão preventiva,
que em 2014 constituía 66% da quantidade total de indivíduos encarcerados no estado
(Brasil, 2014). Todavia, o monitoramento como medida cautelar, aplicado sob o
pretexto da periculosidade do suspeito ou da garantia do devido processo legal, não
deixa de figurar aqui como pena antecipada submetida à lógica securitária.
53
Assim como na maior parte das licitações firmadas no país, o mecanismo de
monitoração utilizado no Maranhão é o SAC24. O sistema é constituído por um
conjunto de hardware e software formado por diferentes modelos de equipamentos a
serem portados pelos usuários e um aplicativo de monitoração disponível via web
para os terminais de controle. “Com isso, a instituição tem acesso aos dados de
monitoramento de qualquer terminal conectado a Internet em tempo real”34.
O aparelho portado pelo usuário pode constituir-se de uma ou duas peças. Na
versão de peça única, as informações relativas ao posicionamento da pessoa
monitorada e os alarmes de violação são transmitidos pela tornozeleira ao software de
monitoramento por meio de sinais GPS (Global Positioning System) e GPRS
(General Packet Radio Services). O equipamento é dotado de LEDs de sinalização
que indicam a falta de comunicação GPRS, ausência de sinal GPS, baixos níveis de
bateria e chamadas para contato eventualmente realizadas pelos monitores. Além
disso, a tornozeleira emite alertas sonoros e vibratórios quando registra perda de sinal
GPS, bateria reduzida, contatos de monitores, ou ainda quando são detectados
descumprimentos às regras relativas às áreas de inclusão e exclusão. A cinta de
fixação no tornozelo é revestida por fibra óptica para detecção de tentativas de
rompimento. O aparelho fixo ao corpo pesa em torno de 200 gramas35.
Já o equipamento de duas peças é formado por uma tornozeleira que emite
sinais de radiofrequência a uma Unidade Portátil de Rastreamento (UPR) que
armazena a bateria do sistema, além dos transmissores GPS. Ambos os aparelhos
devem ser mantidos a uma distância máxima programável, a qual, caso seja
ultrapassada, um alarme de violação é acionado. Na versão de duas peças, os LEDs e
alarmes sonoros são emitidos pela UPR que transmite as informações de localização e
os alertas de violação para o software instalado no terminal de controle36.
O software de monitoramento SAC24 permite a visualização em tempo real
da movimentação dos usuários. “Os pontos de localização podem ser plotados em um
mapa, em fotos de satélite, ou ainda, em um mapa híbrido (fotos de satélites com as
ruas)”37. Por meio do aplicativo são definidas as zonas de controle para cada usuário,
34
Spacecom. Sistema SAC24 – Dispositivo de Peça Única. Disponível em:
http://spacecom.com.br/?s=mon&ss=1p (Acesso em 18 de fevereiro de 2017).
35
Idem.
36
Spacecom. Sistema SAC24 – Dispositivo de duas peças. Disponível em:
http://spacecom.com.br/?s=mon&ss=2p (Acesso em 18 de fevereiro de 2017).
37
Spacecom. Sistema SAC24 – Software de Monitoramento SAC 24. Disponível em:
http://spacecom.com.br/?s=mon&ss=sac24 (Acesso em 18 de fevereiro de 2017)
54
determinando as áreas em que a pessoa deve estar localizada conforme os horários
estipulados pelo juiz. Caso seja detectada alguma violação, o software aciona um
alerta, especificando a ocorrência. As possíveis violações são: ausência da área de
inclusão, penetração em área de exclusão, término ou baixos níveis de bateria, perda
de sinais GPS ou GPRS, rompimento do lacre ou danificação do aparelho. “O sistema
armazena ainda todo o histórico do sentenciado, permitindo a geração de relatórios
visando municiar as autoridades responsáveis. Acessos e atividades dos usuários do
sistema também são armazenadas para fins de auditoria”38.
Conforme relatado pelo servidor da Spacecom, que atua na central do
Maranhão, a ocorrência de violações não implica necessariamente em consequências
judiciais, mas indica padrões de conduta dos usuários, que serão reportados ao juiz
por meio dos relatórios gerados pelo sistema para futuras avaliações e tomadas de
decisão relativas à execução da pena ou ao cumprimento de medida cautelar. Uma
ocorrência isolada de perda de sinal GPS, por exemplo, pode não acarretar maiores
consequências. Entretanto, se o software registra a frequente ausência de sinais de um
aparelho, o padrão de mau uso deverá ser levado em consideração pelo magistrado
responsável. Ainda segundo os operadores da central, chamadas telefônicas são
realizadas pelos servidores aos usuários quando alguma desobediência às regras é
detectada no sistema. “Se ele não atende, a gente emite um alerta na tornozeleira que
vai vibrar e acender a luz roxa. Como o alerta de vibração perturba, normalmente
ele já liga de volta aqui pra central” (Servidor da SEAP, Central de Monitoramento
de São Luís)39.
As centrais estaduais, assim como os terminais situados nas unidades
prisionais, são interconectadas à central da Spacecom, localizada na cidade de
Curitiba. Em algumas unidades da federação, o monitoramento é realizado
diretamente pela central da empresa, que notifica as autoridades responsáveis pela
execução penal quando um alarme de violação é gerado. É o caso do Rio de Janeiro,
por exemplo, em que os equipamentos são instalados e inspecionados na base da
Superintendência de Inteligência do Sistema Penitenciário (SISPEN), órgão vinculado
à Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP-RJ), mas as atividades
de supervisão são realizadas na central da Spacecom. No estado de São Paulo, em que
a monitoração é direcionada exclusivamente para controle de saídas temporárias e
38
Idem.
39
Registro produzido a partir de pesquisa de campo, realizada em 20 de outubro de 2016.
55
realização de trabalho externo no regime semiaberto, o controle é realizado por
agentes penitenciários em computadores instalados nas unidades prisionais e
supervisionado pela central da Spacecom. No Maranhão, assim como no Ceará, a
monitoração é feita em uma central gerida pelo Estado, que conta com o suporte
técnico de um servidor da Spacecom in loco e da própria central da empresa, em
Curitiba.
A opção pelo estabelecimento de parcerias público-privadas (PPP), em seus
mais variados modelos, baseia-se no compartilhamento das atividades de controle
junto aos agentes privados que fornecem equipamentos, serviços e conhecimento
técnico direcionados à operacionalização do monitoramento. A participação crescente
do capital privado na elaboração e gestão da pena levanta discussões a respeito do
esfacelamento do Estado de Direito e da salvaguarda de seu monopólio do uso
legítimo da força, em processo avançado de deterioração. Questiona-se a legitimidade
jurídica, política e moral implicada pela atividade de extração de um lucro econômico
mediante o exercício privatizado do poder de punir. Função secular do Estado
moderno e sustentáculo fundamental de sua edificação, a punição passa cada vez mais
a ser produzida e gerida por agentes híbridos constituídos pelas parcerias público-
privadas. Para além do debate valorativo, o processo de mercantilização do castigo
tem levado à infalível ampliação do mercado consumidor da pena, fomentada pelas
exigências de um contingente populacional mínimo – que tende sempre ao máximo –
submetido ao aparato penal para que se assegure um coeficiente de produtividade e
crescimento econômico da indústria público-privada do controle do crime (Christie,
1994; Minhoto, 1997; 2002; Davis, 2003; ACLU, 2011).
Isso não significa, contudo, que o Estado esteja se ausentando da tarefa de
punir. O crescimento da atuação de empresas particulares no controle do crime indica
mais uma readequação do que uma retração do Estado na área penal. As agências
estatais assumem o papel de contratante e co-gestor, definindo as diretrizes a serem
perseguidas por meio de parcerias, acordos de cooperação e gestão compartilhada do
aparelhamento punitivo junto à iniciativa privada. Além disso, o Estado permanece
como agente encarregado da seleção e captura do público a ser encaminhado às
instituições penais. Em contrapartida, além do fornecimento de estrutura e
equipamentos, companhias particulares disponibilizam serviços e expertise voltada à
gestão dos programas penais.
56
No caso do monitoramento eletrônico, as diretrizes políticas de sua aplicação
têm sido perseguidas, não sem dificuldades, pelo DEPEN junto às secretarias
estaduais de justiça e administração penitenciária. Entre 2013 e 2017, o Poder
Executivo nacional procurou estabelecer padrões de gerenciamento das centrais e
utilização dos equipamentos, em uma tentativa de instituir protocolos de operação. O
lançamento, em 2017, do “Manual de Gestão para a Política de Monitoração
Eletrônica de Pessoas”, indica a investida do DEPEN na elaboração de modelos
nacionalmente padronizados de administração da medida. Contudo, o fato das
políticas penitenciárias serem de responsabilidade dos estados, associado à partilha
das atividades de supervisão entre os agentes públicos e privados encarregados dos
serviços de monitoração, resulta em uma descentralização da política de
monitoramento e uma notável ausência de padrões operacionais nos procedimentos
administrativos da medida, uma vez que cada unidade federativa possui suas próprias
formas de gestão e cada empresa desenvolve os seus sistemas de monitoramento.
No sistema SAC24, a Spacecom monitora não exatamente o indivíduo, mas o
número de identificação do aparelho que ela porta. A identidade dos usuários é
restrita às administrações penitenciárias. Cada equipamento é identificado por uma
cifra gerada pelo sistema que codifica os dados do indivíduo, disponíveis somente nos
terminais de controle acessados pelos servidores das secretarias estaduais ou pelos
agentes prisionais. De acordo com a empresa, “o sistema de transmissão e
armazenamento de dados é criptografado, o que garante a segurança das
informações”40. A partir do número de identificação fornecido pela Spacecom, a
administração penitenciária acessa os dados cadastrados de seu usuário: nome
completo; idade; foto; endereço; telefone; artigo no qual foi enquadrado; natureza
jurídica do monitoramento (cautelar, penal ou medida protetiva); vara criminal onde
se localiza seu processo; número de matrícula em instituição penal e o número de seu
aparelho de monitoração.
Na perspectiva do sistema, portanto, o indivíduo monitorado é constituído por
seus dados pessoais e jurídicos, administrados pelo Estado, e pelo número de seu
equipamento de monitoração, supervisionado pela empresa contratada. As atividades
de rastreamento realizadas pela empresa são efetuadas sobre o aparelho, cuja conexão
com seu portador é restabelecida nas bases de dados das agências penitenciárias
40
Spacecom. Sistema SAC24 – Apresentação. Disponível em: http://spacecom.com.br/?s=mon (Acesso
em 18 de fevereiro de 2017).
57
estatais. Quando se fala, portanto, em “pessoa monitorada”, fala-se necessariamente
no conjunto de dados relativos ao indivíduo e ao aparelho a ele acoplado. Não há
monitoramento sem esse conjunto. Se a conexão é desfeita, a supervisão é
interrompida.
É nessa relação que os processos de subjetivação implicados pelas práticas de
controle eletrônico concorrem com um movimento correlato de dessubjetivação, na
medida em que o elemento controlado é constituído por uma composição fragmentada
de informações de identificação referentes ao indivíduo e ao aparelho ao qual ele
corresponde. O que faz a “pessoa monitorada” não é a sua unidade enquanto sujeito,
mas a composição de dados pessoais, jurídicos e digitais relativos a ele e ao seu
equipamento.
Da mesma forma, o que constitui a sua conduta já não é apenas o seu
comportamento individual, mas os circuitos de comando e controle estabelecidos
entre o sistema tecnológico de supervisão e o posicionamento físico a ser
supervisionado. É o intercâmbio de informações e mensagens sinaléticas entre
emissores e receptores técnicos e orgânicos – alarmes luminosos, sonoros e
vibratórios; percepções táteis, visuais e auditivas – que deve definir os modos de
condução de si da “pessoa monitorada”. É essa a corrente que promove a sua
dessubjetivação, estabelecendo a composição híbrida entre o sistema de controle e o
sujeito controlado (Haraway, 2009).
Se, por um lado, o monitoramento eletrônico veicula mecanismos de
subjetivação fundamentados na fabricação do indivíduo autocontrolado, por outro, um
processo de dessubjetivação é efetivado pela interrupção da relação inspetor-
inspecionado, vigia-vigiado, aniquilando a dicotomia sujeito-objeto que caracteriza os
mecanismos de observação e intervenção fundados na alteridade entre o aparato que
pune e o elemento punido. A fixação da máquina-prisão no corpo-prisioneiro desfaz a
separação entre os termos sujeit e objeto, por meio do que Deleuze e Guattari (1997)
chamaram de servidão maquínica. O usuário monitorado já não é mero sujeito
fabricado, apartado da máquina que o fabrica, mas torna-se parte componente,
interface de entradas e saídas que permitem as conexões de um agenciamento
específico41. A responsabilização individual produzida pela governamentalidade
41
Para Deleuze e Guattari, “Jamais uma máquina é simplesmente técnica. Ao contrário, ela só é
técnica como máquina social, tomando homens e mulheres em suas engrenagens, ou, antes, tendo
58
neoliberal exige o movimento paradoxal de esfacelamento do indivíduo, tornado
engrenagem conectora, amálgama do acoplamento entre o sujeito-vigia e o objeto-
vigiado, agora convertidos em peça única.
A vigilância enquanto relação de observação e intervenção entre termos
apartados é finalmente suprimida. Já não há mediação do vigia como elemento alheio,
fixo em seu posto de inspeção. Já não há ponto central no qual o controle possa ser
localizado. O diagrama panóptico é desfigurado, redimensionado em detecção móvel,
fragmentada e pulverizada, sem centro, sem rosto, acoplada ao corpo do elemento
inspecionado. O corpo-preso converte-se em corpo-prisão cujo agente prisional
identifica-se ao prisioneiro em um processo concatenado de constituição e
desmantelamento do indivíduo. Já não pode haver, dessa maneira, segregação efetiva
entre o aparato punitivo e o elemento punido. O ideal da penalidade neoliberal seria
portanto o fim da alienação entre a pena e o sujeito penalizado?
homens e mulheres dentre suas engrenagens, não menos que coisas, estruturas, metais, matérias. O
que faz máquina, falando propriamente, são as conexões” (2014, p. 147).
59
1.4. O corpo marcado
60
com a tornozeleira, que aí você pode sofrer um mal. Eu já até travei
uma conversa uma vez com um conhecido miliciano e ele falou,
‘Sérgio, a gente enquadra, tem que enquadrar’. Não é só que eles
queiram enquadrar, mas no próprio bairro, quando vêem que o cara é
monitorado, tá identificado pelo Estado que ele é um criminoso. E aí,
se for ladrão, vai sofrer uma represália. Se for homicídio, dependendo
do caso, vai passar batido. Se for estuprador, nem pisa porque aí vai
morrer. Então dependendo do crime e do contexto do crime praticado,
ele pode permanecer ali ou não, ou pode até ser morto. Eu já vi uma
situação dessa, de descobrir que o cara monitorado era jack,
estuprador, e os caras mataram. Eu vivo bem no meu bairro porque
um miliciano do meu bairro foi preso comigo, é um puta amigo meu.
Mas em outros espaços eu ia ter que desenrolar pra ficar. E sempre
condicionado a alguém: ‘sou amigo de fulano, de beltrano’. Cara a
cara não vai. Não vai achando que tá passando batido porque não tá.
A milícia vai te cobrar. Então se o cara tá de tornozeleira na área de
miliciano, ele tá sujeito a uma série de coisas. Ele pode ser morto,
pode sofrer esculacho, pode sofrer o que for, só por causa da
tornozeleira.43
61
tornozeleira dentro do ônibus, eu acho que ele vai assaltar o ônibus”.
Os cara enquadra, não quer nem saber. Ou chega arrebentando na
bala, porque tem essa potencialidade de violência, ou vai te
enquadrar, vai te esculachar, vai puxar tua vida toda. Porque eles têm
essa capacidade e têm essa legitimidade dentro desses espaços. E a
sociedade vai aplaudir. Amanhã eu vou aparecer no jornal que ‘ex-
presidiário é morto em área de milícia’. E o consentimento de geral
vai ser: ‘tava roubando’. Eu ia morrer à toa. E ninguém vai
questionar, porque a própria tornozeleira vai legitimar a morte. Pode
parecer estranho. Se eu morro com uma tornozeleira, a própria
tornozeleira legitima a morte.44
62
No estado do Ceará, o acirramento dos confrontos entre grupos faccionais que
disputam o controle de determinadas áreas urbanas tem apresentado algumas
dificuldades aos operadores dos serviços de monitoramento nos momentos de
aplicação da medida. Divididas em zonas pertencentes a facções inimigas, as áreas
periféricas da Região Metropolitana de Fortaleza são os bairros onde habitam muitas
das pessoas monitoradas, algumas delas ligadas a estes grupos. Entretanto, as regras
de fixação impostas pela monitoração não condizem, muitas vezes, com as
necessidades de circulação colocadas pelos cenários de conflito, uma vez que a
permanência em endereço fixo pode acarretar em risco de vida ao apenado. De acordo
com o psicólogo da Central de Alternativas Penais de Fortaleza, há situações em que
o indivíduo monitorado é perseguido por facções rivais e o seu recolhimento em
domicílio pode representar uma ameaça. “Ele não pode ficar parado. Se ele tem um
inimigo querendo matá-lo, ele não pode ficar na casa dele. Pra ele é impossível ficar
com monitoração eletrônica. Se não ele morre”.45
Por esse motivo, o juiz da 3a Vara de Execuções Penais de Fortaleza relata a
situação de um rapaz que preferiu retornar à prisão depois de um período que passou
em regime domiciliar sob monitoramento:
Eu recordo muito desse caso, mas eu não recordo qual foi a audiência.
Ele chorou, pedindo para retornar pra dentro do presídio porque não
suportava mais a idéia de que ali, ele estando fixo na residência,
monitorado, sem poder sair dali, ele poderia vir a ser vítima de algum
tipo de agressão por parte de algum inimigo dele. E aí ele pediu pra
retornar pra dentro do presídio e a saída que eu encontrei pra ele
naquele momento foi autorizar o retorno dele pra dentro do presídio e
tirar o monitoramento. Muitas vezes, eu imagino, que é até o aspecto
psicológico da coisa. Ele acha que tá sendo vigiado. Porque os nossos
presos, como em todo canto, a maioria é humilde. Mas eles mudam
muito de residência, é impressionante. Como regra, eles mudam muito
de residência, porque eu acho que é o medo, receio do inimigo.46
45
Entrevista realizada em 4 de julho de 2017.
46
Entrevista realizada em 3 de julho de 2017.
63
Primeiro Comando da Capital. Segundo Vladimir, monitorado em 2014 quando
cumpria pena no regime semiaberto no interior do estado, os presos de unidades que
pertencem ao PCC utilizavam a pulseira na perna direita, ao passo que aqueles que
pertenciam a unidades da oposição47 utilizavam na esquerda. “Cada facção coloca de
um lado”48, dizia ele. Pelo fato de já ter tido uma desavença com um dos “cabeças”
do partido49, Vladimir contou que usava o aparelho na perna esquerda, razão pela
qual chegou a ser ameaçado, pouco antes de romper a tornozeleira:
47
Oposição é como o PCC designa seus grupos rivais, que podem também ser referidos como coisa ou
vermes.
48
Conversa informal realizada a partir de trabalho de campo, realizado em 10 de maio de 2016.
49
Partido, quinze, comando, família são alguns dos nomes que designam o Primeiro Comando da
Capital.
50
Conversa informal realizada a partir de trabalho de campo, realizado em 24 de maio de 2016.
51
Conversa informal realizada a partir de trabalho de campo, realizado em 13 de maio de 2016. Tal
informação foi, no entanto, contestada por outros interlocutores e interlocutoras com quem mantive
64
Na visão de Augusto, não se tratava de brincadeira:
Eu não sabia disso, até que teve um dia que a gente saiu da colônia
pra trabalhar lá no lixão de Mirandópolis. Lá perto, ia também
trabalhar os presos monitorados de outra unidade de Mirandópolis,
que é do PCC. Foi aí que eles começaram a apontar pra nóis e falar:
‘Ó lá! Os coisa! Ó lá! Os coisa!’. Daí eu fiquei pensando como é que
os cara sabia que a gente era oposição e perguntei isso pro agente
penitenciário que ficava lá com nóis. Daí ele disse: ‘Olha pra sua
perna. Agora olha pra perna deles lá’. Foi aí que eu percebi, mano,
que os cara tava tudo com a pulseira na perna direita, e nóis na
esquerda. A ‘polícia’, junto com o PCC, marca nóis pra saber que nóis
é oposição. Teve um preso que pediu pra ‘polícia’ colocar a pulseira
na outra perna e o ‘polícia’ falou que não. Se recusou, porque quer
que nóis fique marcado como coisa.
65
monitoramento, a “facção criminosa” e o próprio indivíduo monitorado, que resulta
na enunciação de uma informação que integra e constitui sua própria subjetividade e
do qual o estigma é apenas um dos efeitos. Christian Kasper (2004) propõe a noção de
desvio de função para descrever a utilização arbitrária de um objeto específico, a
despeito de suas normas de uso. De acordo com o autor, um desvio de função é
caracterizado como uma transgressão de uso de um determinado artefato, viabilizada
por sua incorporação a um novo contexto e pela percepção de suas virtualidades. A
utilização da pulseira como signo da identidade faccional aparece aqui como um uso
imprevisto, no interior de uma relação de poder específica ao chamado “mundo do
crime”, desviando-se da funcionalidade originalmente atribuída ao dispositivo.
De todo modo, agenciada ou não por grupos faccionais, desviadas ou não as
funcionalidades do aparelho, a condição de prisioneiro estampada no corpo tem como
decorrência previsível a conversão do indivíduo monitorado em alvo privilegiado da
atenção policial, cujos controles presenciais somam-se ao rastreamento à distância.
Diversos relatos sublinham a atração do olhar persecutório da polícia e de agentes de
segurança privada, despertado pelo equipamento de monitoração.
52
Conversa informal realizada a partir de trabalho de campo, realizado em 13 de maio de 2016.
66
introduzido na semiologia política do conflito como dimensão positiva própria às
tecnologias de poder e construção da individualidade, ainda que essa individualidade
seja exposta à morte ou à abordagem policial constante.
O corpo marcado pelo dispositivo de monitoração reafirma a subjetividade
criminosa inaugurada pela lei penal e pelo discurso criminológico, agora estampada
no corpo como placa de registro identitário ou Magen David revisitado. Tal como o
índio sem nome cuja identidade é numericamente fundada pela campanha biopolítica
de vacinação subsequente ao massacre deliberado, ou como o povo uniformizado a
ser enviado e eliminado nos campos de extermínio, a identidade do sujeito
monitorado é politicamente construída pela marca escancarada pelo Estado que o
devolve à sociedade como alvo de intervenção policial ou como vida nua exposta à
morte. Entre bios e tanatos, o corpo marcado constitui um dos principais efeitos da
aplicação do monitoramento eletrônico sobre aqueles cujo castigo converte-se em
identidade.
67
Capítulo 2
Composições diagramáticas
68
2.1. Caixa-preta
Juiz: É rompimento?
69
produzidas pelo software e reportadas a eles pela equipe de monitores. Uma
padronização mínima era necessária e a Coordenadora sabia disso, insistindo
repetidamente ao Juiz: “Não tem padrão, não tem padrão”.
Os monitores, contudo, pareciam apropriar-se do mecanismo. A detecção de
qualquer violação era automática no sistema e a indicação se mostrava clara na
interface. “Uma bateria baixa, ou o equipamento descarregou, ou saiu de casa, ou
aproximou da vítima, qualquer irregularidade, o nome dele já se destaca em
vermelho e vai pra cima da lista”54. Naquele dia, o acompanhamento apresentado ao
Juiz apontava o momento exato em que um dos usuários derrubava a conexão com o
servidor instalado na Célula.
C: Tudo certo.
M: Só tem aquela linha verde e a azul. Não tem nada aqui, é porque o
sinal tá perfeito, não tem nada falhando, tudo normal.
54
Supervisor da Célula de Monitoramento Eletrônico do Ceará.
70
A dúvida sobre o grau de rigidez no acompanhamento feito pelos monitores
constituirá ela própria um elemento fundamental no funcionamento do dispositivo.
Vinculada à condução técnica pela produção de autocontrole no sujeito monitorado,
alguma margem de incerteza, ainda que não prevista pelos programadores, fará com
que o indivíduo avalie por si mesmo os perigos que corre ao arriscar uma violação.
Nenhum impedimento físico lhe é imposto e um descumprimento de baixa gravidade
talvez venha a ser tolerado. As consequências às possíveis violações ficarão a critério
do encadeamento entre as informações geradas pelo software, a interpretação dos
monitores e a decisão final dos juízes. Uma violação deliberada presume, portanto, a
assunção de um risco incerto.
Do mesmo modo, é comum entre as pessoas monitoradas a ausência de
informações precisas sobre o funcionamento tecnológico do sistema. De maneira
geral, os agentes encarregados da instalação dos equipamentos de monitoração nos
usuários fornecem poucos detalhes a esse respeito. A relativa ignorância do indivíduo
monitorado sobre as reais capacidades do sistema atribui aos operadores um poder
suplementar no tratamento das informações de rastreamento enviadas aos juízes e
tomadas como base para a avaliação da conduta dos apenados. Caixa-preta fixa ao
corpo, o dispositivo é dotado de uma certa opacidade técnica que resguarda aos
monitores o domínio de seus atributos.
Ainda pela manhã, a comunicação entre a Célula de Monitoramento e o
equipamento observado se restabelece. O trajeto regular entre a casa e o local de
trabalho do indivíduo volta a ser detectado no sistema. O bloqueio era provisório, não
ia além da madrugada. A violação, contudo, foi registrada no histórico gerado pelo
software e será oficialmente encaminhada ao Juiz no dia seguinte à sua visita. A
decisão relativa a um possível retorno do apenado ao cárcere é de responsabilidade da
Justiça e será comunicada em audiência. Se o rapaz tiver sorte, uma advertência do
magistrado e a manutenção da prisão domiciliar com trabalho externo o livrará da
regressão ao regime fechado. Do contrário, seu breve lapso de desobediência e escape
o levará de volta a algum dos já conhecidos Institutos Penais do município de
Itaitinga, na Região Metropolitana de Fortaleza. E a efetividade da supervisão em
meio aberto há de ser certificada no interior dos muros.
71
Era notável a instalação tecnopolítica disponível na Célula. Inaugurada no ano
de 2012 pela Secretaria de Justiça e Cidadania do Ceará (SEJUS-CE) – hoje
Secretaria de Administração Penitenciária (SAP-CE) –, a unidade era responsável
pela execução e coordenação dos programas de monitoramento eletrônico no estado.
Uma equipe de doze monitores terceirizados alternava-se em turnos para a realização
do rastreamento 24 horas por dia. Três supervisores eram encarregados da produção
dos relatórios de violação encaminhados aos juízes. Três agentes penitenciários
realizavam atendimentos diretos com os usuários monitorados e faziam a manutenção
dos equipamentos com defeito. Outros três auxiliares administrativos prestavam apoio
técnico e operacional aos monitores. À frente da equipe, a Coordenadora administrava
os trabalhos e estabelecia as relações com os quadros da SEJUS, com a Central de
Alternativas Penais e com as três Varas de Execução Penal e a Vara Criminal de
Fortaleza55.
O aparelhamento tecnológico era composto por um servidor, três
computadores, seis aparelhos monitores e um televisor, todos fornecidos pela empresa
Spacecom, contratada pelo Poder Executivo estadual via processo licitatório. O
servidor detectava as informações de rastreamento emitidas pelos equipamentos
acoplados aos usuários e os enviava aos computadores da sala de controle, onde a
interface do programa SAC24 era exibida pela tela dos monitores e do televisor.
Violações como a queda dos sinais de comunicação, término de bateria, rompimento
da tornozeleira ou descumprimentos das condições relativas aos horários e zonas de
circulação eram sinalizadas por alertas automáticos ativados no software e registrados
no relatório de monitoramento do apenado.
Um total de 3.000 tornozeleiras eram disponibilizadas no Ceará, das quais
2.881 encontravam-se em uso no ano de 2017. Os equipamentos distribuíam-se entre
a capital do estado e os Núcleos de Monitoramento Eletrônico, localizados nos
municípios de Quixadá, Sobral, Iguatu e Cariri. Responsável pelo controle de 1.607
pessoas em cumprimento de medida cautelar, 1.156 em execução penal e 118 em
medida protetiva de urgência (DEPEN, 2017), o Ceará dispunha de uma das mais
completas estruturas de monitoração eletrônica do país.
55
A Central de Alternativas Penais contava com um psicólogo e uma assistente social, que realizavam
atendimentos psicossociais individuais e coletivos às pessoas monitoradas. As Varas de Execução
Penal são responsáveis pelos processos de indivíduos condenados, ao passo que a Vara Criminal cuida
dos processos daqueles que cumprem medidas cautelares ou medidas protetivas de urgência.
72
Não obstante, o bloqueio dos sinais GPRS apresentado ao Juiz no dia de sua
visita à Célula colocava em evidência um certo número de vulnerabilidades do
sistema de monitoramento do estado. A interrupção da comunicação provocada pelo
indivíduo rastreado revelava alguns dos problemas apresentados pelo dispositivo,
tanto do ponto de vista tecnológico quanto do próprio gerenciamento jurídico-político
das atividades de controle.
Não era a primeira e tampouco seria a última ocasião em que a equipe de
monitores se deparava com esse tipo de violação. Diferente da fuga, que demandaria o
rompimento do aparelho, a interrupção continuada do envio de sinais baseia-se na
interceptação artificial e temporária da comunicação entre os componentes do
sistema, determinando um intervalo de tempo, sob o comando e critério do usuário,
durante o qual a conexão é cortada e o monitoramento suspenso.
56
Psicólogo da Central de Alternativas Penais de Fortaleza. Entrevista realizada em 4 de julho de 2017.
73
portado pelo infrator, solicitando seu contato para esclarecimento da violação. “Tem
uma luz na tornozeleira que fica piscando sempre alguma cor. (...) Quando eu clico
aqui, já vai enviar a luz roxa e vai ficar vibrando de 5 em 5 minutos a tornozeleira.
Vibrando e apitando também. Tem um alerta vibratório e sonoro”57. Se o indivíduo
não responde, a ocorrência é enviada à Coordenadoria Integrada de Operações de
Segurança (CIOPS), que gerencia as viaturas da Polícia Militar, para que seja
realizada a captura.
Todavia, a falta de um padrão de operações precisamente definido sobre os
procedimentos a serem adotados nas ocasiões de violação era um problema de gestão
a ser enfrentado58. De sua parte, os juízes não tinham clareza se uma violação
detectada no sistema decorria de uma falha do equipamento ou de uma falta do
usuário, uma vez que o relatório automático gerado pelo software, apresentado em
linguagem técnica, não explicitava as circunstâncias das diversas formas de
descumprimento possíveis. A mera relação das datas, horários e tipos de violação
apresentada no relatório poderia deixar dúvidas sobre as intenções do indivíduo
monitorado em promover a interrupção dos sinais, danificar o equipamento ou
permitir que a bateria do aparelho descarregasse.
74
O aspecto meramente informático dos dados produzidos pelo programa
dificultava a determinação do caráter proposital das violações detectadas. Dessa
forma, era necessária uma interpretação das informações apresentadas, que levasse
em consideração as regras de monitoramento determinadas para cada usuário e as
especificidades relativas às suas condições de cumprimento, tais como a qualidade da
cobertura de sinais de comunicação em seus ambientes de circulação, a
disponibilidade permanente de energia elétrica, a viabilidade prática de sua
manutenção em endereço fixo, dentre uma série de outros fatores que influenciariam
no cumprimento da medida. O relatório automático requeria uma breve tradução dos
dados gerados pelo software, observando-se as particularidades de cada caso,
realizada por aqueles que detinham o conhecimento sobre a linguagem e o
funcionamento do sistema: os monitores.
Era assim que as equipes técnicas adquiriam um considerável protagonismo na
condução dos processos penais de indivíduos sob monitoramento eletrônico, uma vez
que as decisões judiciais a respeito da intencionalidade dos usuários no cometimento
de violações baseavam-se na análise realizada pelos monitores e supervisores a
respeito das informações apresentadas pelo software. Se os juízes não compreendiam
bem os dados automáticos de violação, os técnicos, ao contrário, demonstravam-se
suficientemente seguros sobre suas próprias leituras a respeito dos alertas
relacionados no programa. Eram eles, portanto, que forneciam as informações básicas
para a decisão final dos magistrados sobre os propósitos dos usuários em descumprir
as regras de monitoramento. Era a ponta do sistema, na figura dos monitores e
supervisores, que detinha os elementos práticos e cognitivos para a avaliação da
conduta dos indivíduos monitorados.
Sendo assim, mais do que a falta de regulamentação jurídica, legislativa ou
normativa a respeito dos procedimentos a serem adotados pelas agências encarregadas
de gerir os serviços de monitoramento eletrônico, o poder de atuação adquirido pelos
monitores decorria do funcionamento tecnológico dos sistemas de rastreamento,
revestidos de semântica própria, codificada em parâmetros comunicacionais e alertas
comportamentais, cuja leitura e interpretação havia de ser submetida à capacitação
técnica. Invertendo-se a hierarquia formal que reservaria aos juízes as competências
necessárias à condução do processo penal, a política de monitoramento conferia às
equipes técnicas as capacidade pragmáticas de instrução processual. Antes da toga do
magistrado, era o uniforme do tecnocrata que assumia o comando do processo penal.
75
Mas o software também atuava, na medida em que qualquer tipo de
irregularidade ou queda de comunicação era lida pelo programa como violação. Ora,
sabe-se bem que interferências nos sistemas de transmissão de sinais são frequentes
em todo equipamento baseado em tecnologias GPS e GPRS, tais como telefones
celulares, aplicativos de geolocalizacão, etc. A falha é elemento constituinte de
qualquer mecanismo tecnológico de comunicação, suscetível a alterações climáticas,
problemas em seus componentes internos ou interceptações externas, independentes
da intenção de seus usuários. Alheio às circunstâncias, o software de monitoramento
desenvolvido pela Spacecom convertia toda e qualquer falha de comunicação entre os
componentes do sistema em alertas de violação.
Submetida, portanto, aos julgamentos secretos do software (Pasquale, 2015), a
jurisprudência tecnocrática inaugurada pela política de monitoramento eletrônico
atribui uma inusitada centralidade à interface estabelecida entre a equipe de monitores
e o sistema tecnológico de rastreamento. A produção da verdade jurídica sobre a
conduta dos apenados passa a ser condicionada ao agenciamento maquínico
constituído pela plataforma eletrônica de monitoramento e o critério dos profissionais
da informação e da comunicação.
Por motivos como esses, do ponto de vista do Juiz da 3a Vara de Execuções
Penais de Fortaleza, não se poderia permanecer refém das interpretações efetuadas
pela ponta da política penal para a tomada de decisões relativas ao andamento
processual dos indivíduos monitorados. Daí a sua necessidade de compreender melhor
o funcionamento do sistema. A própria Coordenadora parecia perturbada com
tamanha responsabilidade concedida à sua equipe, solicitando orientações categóricas
por parte do Judiciário.
Nesse sentido, algumas reuniões vinham sendo realizadas entre o Juiz e os
monitores, com o objetivo de sanar as dúvidas sobre o funcionamento tecnológico da
plataforma de controle. Um técnico especialista seria recebido dentro de algumas
semanas para explicar os pormenores a respeito das informações emitidas pelas
tornozeleiras e reproduzidas pelo software. A Coordenadora esperava que, com isso,
alguma definição dos procedimentos administrativos referentes às consequências de
violações e aos encaminhamentos a serem realizados pela Célula fosse finalmente
determinada.
Mas não eram apenas as autoridades judiciais que desconheciam detalhes
relevantes e por vezes decisivos a respeito dos mecanismos tecnológicos de
76
monitoramento eletrônico. Grande parte das pessoas monitoradas que participaram
desta pesquisa não havia recebido informações precisas sobre o funcionamento dos
equipamentos que portavam. No Ceará, as orientações de uso do aparelho são
transmitidas aos apenados por um vídeo exibido em um dos compartimentos da
Célula, dispensando-se as especificidades e explicações que requerem a interação face
a face entre monitores e monitorados. Questões relacionadas aos limites perimetrais
das zonas de controle ou horários de entrada e saída nas áreas de inclusão são muitas
vezes pouco esclarecidas. Particularidades individuais ligadas, por exemplo, às
dificuldades de permanência em endereço fixo ou à impossibilidade de acesso
constante a fontes de energia elétrica, são frequentemente ignoradas pelos operadores,
gerando violações no sistema sem que o próprio usuário tenha ciência clara59.
No estado de São Paulo, pouca ou nenhuma instrução formal é dada aos
indivíduos monitorados, para quem os meandros tecnológicos do dispositivo
permanecem obscuros. Orientações quanto ao uso dos aparelhos são restritas às
cartilhas fornecidas pelas empresas de monitoramento, reservando-se aos indivíduos a
responsabilidade pelo respeito às regras e pelas consequências de possíveis violações.
Dessa forma, não são raros os casos de pessoas que violam as condições de execução
penal sob controle eletrônico sem saber que estão violando, ocasionando sanções
disciplinares ou regressões de regime. Conforme relatado por alguns presos
monitorados, os aparelhos desenvolvidos pela empresa Synergie e utilizados em São
Paulo durante o ano de 2017, sequer indicavam aos usuários eventuais ausências da
área de inclusão. As violações eram registradas no sistema sem o conhecimento dos
apenados.
No Rio de Janeiro, o nível de desinformação mantido pela Secretaria de
Estado de Administração Penitenciária a respeito da política de monitoramento
eletrônico chegou ao ponto de, no início de 2017, os serviços serem interrompidos por
meses, sem que os usuários tivessem conhecimento. A falta de pagamento por parte
do Estado à empresa responsável fez com que o monitoramento fosse suspenso, mas
os aparelhos eram mantidos na perna das pessoas. As centrais não funcionavam, os
sistemas não operavam, mas os usuários continuavam com suas tornozeleiras
instaladas no corpo.
59
Problemas como esses foram relatados na Central de Alternativas Penais de Fortaleza, visitada no dia
4 de julho de 2017.
77
Note-se, todavia, que a opacidade do mecanismo não é mero indício de um
serviço mal prestado e tampouco especificidade do caso brasileiro. Baseado em
entrevistas conduzidas no Reino Unido com operadores de monitoramento eletrônico,
Craig Paterson (2007) destaca a importância atribuída pelos monitores a um certo
grau de imprecisão nas orientações transmitidas às pessoas monitoradas. Um de seus
entrevistados destaca explicitamente esse fator: “Eu acho que as coisas funcionam
bem melhor quando o potencial do sistema é um pouco nebuloso”60. A ignorância ou
incerteza, por parte dos usuários, a respeito do funcionamento dos sistemas de
rastreamento, garante aos operadores um arbítrio adicional, alimentado pela
mistificação tecnológica que municia o dispositivo de potenciais desconhecidos. Os
aspectos opacos de seus modos de operação parecem ser um atributo do próprio
mecanismo, através do qual as agências penais obtêm informações detalhadas sobre a
vida cotidiana dos usuários monitorados, ao passo que pouco se sabe a respeito das
formas pelas quais os seus dados são tratados ou direcionados.
O princípio não é novo. A averiguação das atividades alheias, sem que se
permita o escrutínio de suas próprias atividades, constitui uma das mais tradicionais
estratégias de poder (Pasquale, 2015). A consagrada fórmula que permite ver sem ser
visto, radicada no confessionário penitente e sacramentada pelo panoptismo moderno
(Foucault, 1987; 2013), é agora reposta na mecânica tecnocrática dos sistemas
eletrônicos de controle a céu aberto. Onisciência e opacidade condicionam a
performance de uma vigilância ubíqua, simultaneamente distante e presente. Aberta e
remota em seu alcance ilimitado. Hermética e renitente como condição operacional.
Se o modelo panóptico de disciplinarização é desfigurado mediante a
desterritorialização e a descentralização das práticas de monitoramento remoto, seus
regimes ambíguos de visibilidade e segredo são reatualizados na mecânica
tecnopolítica dos dispositivos de controle eletrônico, condicionada à leitura
transparente de seus alvos de observação e à preservação oculta dos procedimentos de
operação de um mecanismo penal concebido como caixa-preta em seus aspectos
físicos, técnicos e políticos61.
60
Oficial de monitoramento (apud Paterson, 2007, p. 319).
61
A noção de caixa-preta é trabalhada por Bruno Latour (1994) e Frank Pasquale (2015) para designar
a importância política da opacidade estabelecida pelos sistemas sociotécnicos. Para Latour, os aspectos
opacos de um agenciamento sociotécnico permitem com que um determinado objeto funcione como
um conjunto serial e invisível de subprogramas, sobre os quais não se tem domínio. A partir de sua
opacidade, as ações propositais e intencionalidades inscritas nos objetos técnicos tornam-se
inacessíveis. Pasquale, por sua vez, analisa os aspectos black box conservados por empresas, governos
78
Dessa maneira, seja a partir da perspectiva dos usuários, dos operadores do
sistema, ou dos discursos que constituem os dispositivos de monitoramento de presos
e presas, a proposta deste trabalho consiste em quebrar a caixa-preta, desmontá-la em
fragmentos, interromper a conexão entre as suas diversas interfaces para que se
compreenda mais detidamente seus elementos heterogêneos e suas peças fracionadas.
Um certo ludismo epistemológico (Winner, 1978), baseado na observação direta e na
análise documental, é mobilizado aqui como instrumento investigativo das dimensões
políticas de um novo dispositivo tecnopenal, revestido das camadas obscuras que
qualificam tanto os sistemas tecnológicos quanto as instituições penais e
penitenciárias brasileiras. É este o objetivo central deste segundo capítulo. Desmontar
o artefato. Selecionar alguns de seus pedaços de maneira a tornar inteligíveis seus
efeitos de poder. Detectar as ligações estabelecidas entre seus componentes internos e
suas interfaces externas. Observar, em particular, sua conexão direta com o
dispositivo carcerário.
e operadores do mercado financeiro como forma de proteger suas atividades da regulação e do
escrutínio público.
79
2.2. Formações mecânicas, fluxos orgânicos
Características físicas
Cinta de fixação com fibra óptica e par metálico embutidos para uma
melhor resistência;
Dimensões: 47 x 33 x 99 mm;
Sinalização
Localização GNSS
Precisão de 1 a 5 metros;
Tempo de coleta de posicionamento parametrizado;
Sistema de GPS assistido – AGPS;
Comunicação
(Especificações, Synergye)62.
62
Synergye, Phoenix PH842A. Disponível em: http://www.synergye.com.br/tornozeleira.php (Acesso
em 10 de junho de 2019).
80
As especificações acima referem-se à plataforma Phoenix PH842A,
desenvolvida pela empresa Synergye Tecnologia da Informação. Trata-se do mais
novo sistema de monitoramento da empresa, responsável atualmente pelos serviços
prestados em Alagoas, Amazonas, Pará, Sergipe, Rondônia e Tocantins. Além dos
estados brasileiros, a companhia sediada no interior de São Paulo atua hoje na
Colômbia e na Costa Rica63.
As informações descrevem a composição material, tamanho, peso, faixa de
temperatura de operação e capacidade de funcionamento à prova d’água. Especificam
ainda os alertas de violação, sistemas de comunicação e tecnologias de detecção
remota baseadas em GPS e Glonass, além das redes de telefonia móvel padrões 2G e
3G. Assim como os demais mecanismos utilizados no Brasil, a plataforma Phoenix
opera com base nos sistemas de georreferenciamento via satélite, inaugurados pela
justiça penal dos Estados Unidos no ano de 1999.
Inicialmente, os sistemas de monitoramento eletrônico voltados ao controle de
apenados eram chamados de sistema de contato programado e sistema de localização
contínua. No primeiro caso, denominado também de sistema passivo, um computador
é programado para realizar chamadas telefônicas periódicas, em horários aleatórios,
aos lugares onde se espera que a pessoa monitorada se encontre (casa, trabalho,
escola). O indivíduo deve responder pessoalmente às ligações, o que se comprova por
meio de um verificador de voz, uma senha pessoal ou demais sistemas biométricos,
tais como a análise da retina do usuário, através de uma câmera fotográfica instalada
junto ao telefone. O método passivo é mais simples e barato, exigindo apenas uma
linha telefônica, um computador e um software para o acionamento de chamadas e
reconhecimento de voz. O sistema ganhou novas possibilidades com o
desenvolvimento e generalização da telefonia móvel e sua compatibilização com as
tecnologias GPS e GPRS, podendo ser aplicado com maior eficiência, praticidade e
discrição em qualquer pessoa que porte um telefone celular (Rodríguez-Magariños,
2007).
Já o sistema de localização contínua, ou sistema ativo, é constituído por três
aparelhos: um emissor portátil fixo ao corpo do indivíduo de maneira inamovível
(pulseira, tornozeleira ou cinto); um receptor instalado em sua casa e um computador
situado na Central de Monitoramento e conectado ao receptor por uma linha
63
Synergie. Sobre nós. Disponível em: http://www.synergye.com.br/sobre.php (Acesso em 10 de junho
de 2019)
81
telefônica. O aparelho portátil emite sinais de radiofrequência no interior de um
determinado raio, captados pelo receptor situado na residência do indivíduo. O
equipamento receptor envia as informações ao computador central que indica se a
pessoa se afastou de casa. O receptor também pode ser um aparelho móvel, portado
pelo monitor ou agente de monitoramento, de maneira que a equipe de supervisão não
necessite estar localizada na central para verificar o posicionamento do indivíduo. De
maneira geral, o sistema ativo é utilizado para controle de regimes domiciliares,
restringindo-se o monitoramento aos ambientes domésticos (Whitfield, 2001).
O sistema denominado híbrido, ou misto, combina as técnicas do sistema
passivo com o ativo. Nele, as chamadas telefônicas são acionadas pelo computador na
central que possui também um aparelho receptor para a captação dos sinais de
radiofrequência, emitidos por um equipamento portátil acoplado ao corpo do usuário.
Nesse caso, o método ativo é ativado quando são desrespeitadas as determinações
estabelecidas no mecanismo passivo, como nos casos em que o indivíduo monitorado
não responde às chamadas telefônicas (Shute, 2008). Tanto o sistema passivo, quanto
o ativo e o híbrido, compõem os mecanismos denominados de 1a geração de
monitoramento eletrônico de presos.
A partir do final da década de 1990, iniciou-se o uso do GPS nos
equipamentos de rastreamento, inaugurando os sistemas designados de 2a geração.
Com eles, a supervisão remota já não se restringia aos espaços em que o receptor
estivesse instalado, permitindo a detecção da localização exata do usuário, a qualquer
momento, onde quer que ele estivesse. A monitoração por GPS é realizada mediante a
conexão entre uma constelação de satélites, uma rede de estações terrestres e um
transmissor portátil. Um sinal de alerta é acionado quando o usuário penetra em áreas
de exclusão, se ausenta das áreas de inclusão, ou quando se aproxima de alguém que
também deve portar um transmissor (uma vítima, por exemplo).
No caso brasileiro, as secretarias de administração penitenciária e as empresas
de monitoramento têm optado pelos sistemas de 2a geração desde a autorização legal
da medida no país. Em geral, a utilização do GPS é combinada no Brasil com os
sistemas de comunicação via web e telefonia móvel (GPRS).
O uso do GPS suscita discussões a respeito da mobilidade conferida ao
usuário, contraposta às potencialidades de controle por parte dos sistemas penais. Se,
de um lado, sua utilização permite a concessão de uma maior liberdade de circulação
ao sujeito monitorado, de outro, atribui ao Estado uma capacidade de supervisão
82
ilimitada, ao recobrir, em tese, toda a superfície terrestre. A tecnologia de
posicionamento global evoca, portanto, uma série de questionamentos relacionados à
ambiguidade característica dos atuais dispositivos securitários baseados na gestão da
mobilidade e no controle a céu aberto. A permissividade concedida aos
deslocamentos do apenado é diretamente proporcional à eficiência e alcance das
capacidades de supervisão estatal. Segurança e liberdade constituem, desse modo, os
princípios basilares perseguidos pelo aperfeiçoamento das técnicas de punição
contemporâneas.
Alguns autores descrevem, ainda, o que denominam de sistemas de 3a
geração, ainda pouco utilizados, mas que sinalizam os possíveis desenvolvimentos
das tecnologias de monitoração. Trata-se de aparelhos dotados de transmissores GPS,
combinados com mecanismos de captação de dados fisiológicos das pessoas
rastreadas. Nesse caso, são acoplados ao emissor portátil equipamentos de medição da
frequência cardíaca, ritmo respiratório (com o propósito de medir níveis de
agressividade e excitação sexual), ou aparelhos de verificação do nível de álcool no
sangue (Río & Parente, 2006). Nos Estados Unidos tem se utilizado mecanismos de
medição de níveis alcoólicos (Nellis, Beyens & Kaminski, 2013).
Outros equipamentos permitem acoplar microcâmeras ao aparelho móvel,
possibilitando aos agentes de monitoramento acompanhar tanto a localização quanto
as atividades do indivíduo. Algumas versões dos sistemas de 3a geração possuem,
ainda, a capacidade de realizar intervenções corporais, por meio de “descargas
elétricas programadas, que repercutem diretamente no sistema nervoso central, ou
por meio da abertura de uma cápsula que lhe injeta um tranquilizante ou outras
substâncias (...)” (Río & Parente, 2006, p. 1091). Também nos EUA, já foram
empregados cintos capacitados a acionar correntes elétricas no transporte de presos
para penitenciárias ou para a realização de audiências nos tribunais (Idem).
A elaboração de novas técnicas de controle de presos beneficia-se, dessa
forma, das pesquisas desenvolvidas no campo da nanotecnologia, e se entrecruza com
aquelas realizadas pela medicina no âmbito do que se chama de “teleassistência”.
Rodríguez-Magariños (2007) menciona a plataforma tecnológica Maya, desenvolvida
pela empresa espanhola Servitae. O aparelho tem as dimensões de um relógio de
pulso e possui uma série de sensores. Um deles detecta movimentos, consumo
energético, golpes, quedas, estados de inconsciência, se o indivíduo se encontra de pé,
sentado, deitado ou correndo. Outro equipamento da mesma plataforma mede a
83
temperatura corporal através de um termômetro digital programado para acionar
alarmes periódicos. Há também um sensor de uso, para averiguar se a pessoa está ou
não portando o aparelho, e um verificador de resistência, indicando níveis de
sudoração, com o objetivo de verificar graus de stress e nervosismo. A
microplataforma possui ainda um sistema de radiofrequência UHF para a
comunicação com serviços policiais ou ambulatoriais. A conexão UHF gera um
campo de alta frequência ao redor do corpo do usuário, viabilizando sua comunicação
com outros equipamentos, fixados em uma camiseta, que capturam os níveis de
oxigênio no sangue, atividade cardiovascular e pulmonar, além da pressão sanguínea
(Idem).
Procedimentos cirúrgicos também são elaborados para a inserção de
transmissores no corpo humano. Alguns países, como os Estados Unidos e a
Inglaterra, realizam pesquisas empíricas para implantar microchips na camada
subcutânea do organismo de condenados. As administrações penitenciárias do Texas e
da Flórida, por exemplo, já mantiveram negociações com a empresa estadunidense
Applied Digital Solutions (ADSX), que desenvolve a tecnologia necessária. O
jornalista Dennis Cunningham (1999) afirma que no final da década de 1990 a ADSX
faturava em torno de US$ 165 milhões por ano desenvolvendo equipamentos
semelhantes aplicados em gado. A mesma companhia comercializava rastreadores
GPS para presos condenados por pequenos delitos ou em pacientes portadores de
Alzheimer. O chip desenvolvido pela ADSX pode ser implantado sob a pele e lido por
scanners de radiofrequência (Idem).
O procedimento cirúrgico é realizado mediante a inserção de um
microprocessador no corpo humano, depositado “no plano intradérmico da face
interna do braço, bem abaixo da epiderme, sem atingir vasos sanguíneos” (Oliveira,
2012, p. 89). Uma série de testes já foram realizados com cobaias voluntárias para
verificar os resultados da interação entre o circuito integrado do aparelho condutor e
os tecidos vivos do organismo humano. As tecnologias mais conhecidas atualmente,
disponíveis no mercado da nanotecnologia, possuem transmissão via rádio e permitem
o intercâmbio e armazenamento de informações por aparelhos que chegam a medir o
tamanho de um grão de arroz (Idem). Diversos estudos são realizados a respeito do
tema, sugerindo a utilização de materiais como silicone e titânio, aplicados em
cirurgias plásticas ou ortopédicas, com o objetivo de evitar manifestações adversas no
corpo, tais como reações inflamatórias ou formação de nódulos em tecidos que podem
84
vir a se ulcerar ou desenvolver tumores malignos. Em relatório de avaliação,
publicado em 2007, pela pesquisadora Katherine Albrecht, Doutora em Educação pela
Universidade de Harvard, alguns dados são apresentados relacionados à formação de
sarcomas em ratos, camundongos e cães, devido ao implante de microchips64.
No Brasil, a possibilidade de implantação de localizadores no organismo de
presos e presas tem seus próprios entusiastas. O advogado criminalista e representante
brasileiro da Fundação Internacional Penal e Penitenciária, Edmundo Oliveira,
observa que “o procedimento de implantação do microchip, embora um pouco
invasivo, apresenta riscos diminutos, pois trata-se de uma microcirurgia. Por esta
razão, requer todos os cuidados concernentes a procedimentos médicos” (2012, pp.
89-90). O advogado celebra as perspectivas criadas pela chamada nanomedicina e
oferecidas ao “direito penal do futuro”, mencionando as conquistas obtidas pela
implantação de chips na espinha dorsal de seres humanos para recuperar movimentos
de braços e pernas em pessoas com problemas motores: “sem o engenho dos médicos
não há como alcançar o equilíbrio do mundo e a perspectiva de colocar o homem
face a face com a eternidade” (Idem, p. 92).
Em diálogo com a nanomedicina, a evolução tecnológica no campo da
penalidade vem demonstrando seu interesse nas possibilidades de inserção de
elementos artificiais no organismo do infrator, seja para a detecção de seus
deslocamentos externos, seja para a observação e regulação de seus fluxos internos.
Padrões respiratórios, circulação sanguínea, presença de substâncias tóxicas e ritmos
cardiovasculares adentram o conjunto de preocupações e objetos de intervenção dos
sistemas de justiça penal. Ao lado dos perfilamentos genéticos armazenados em
bancos de DNA, a leitura de informações bioquímicas apresenta-se como método
promissor de identificação do criminoso e prevenção do crime.
O exame antropométrico do sujeito delinquente é então ultrapassado pela
análise biométrica de seus fluxos vitais (Kanashiro, 2011). A iminência do delito pode
ser verificada pelos dados fisiológicos produzidos pelo potencial infrator. Seu ato
criminoso seria enfim neutralizado pela atuação remota e antecipada das equipes de
monitores. O encarceramento como método de contenção do crime se tornaria, dessa
forma, um procedimento dispensável. Já não haveria a necessidade rudimentar de
segregação punitiva em espaços de confinamento, que mais fazem reproduzir e
64
Disponível em: http://www.antichips.com/cancer/albrecht-microchip-cancer-full-paper.pdf (Acesso
em 20 de agosto de 2017).
85
fortalecer o comportamento criminoso do que contê-lo ou transformá-lo. E a prisão
enquanto técnica de prevenção ou correção perderia finalmente sua razão de ser.
86
2.3. Diagramas sobrepostos
87
sua superlotação. Cada uma de suas portas trancadas guarda centenas ou dezenas de
indivíduos à espera perpétua de uma resposta, seja ela judicial, familiar ou médica.
Na entrada da APP II, ao lado direito da gaiola frontal, um computador Intel
Core i-5 e centenas de emissores portáteis a ele conectados via web, GPS e GPRS,
integram a configuração de um outro diagrama, como promessa da experiência penal
em liberdade.
88
Nas Alas de Progressão Penitenciária da Chácara Belém, o trajeto dos presos
rastreados por tornozeleiras é observado no software de controle instalado no
computador situado ao lado da gaiola de entrada. Quando retornam da jornada de
trabalho externo, os detentos em regime semiaberto permanecem nas unidades com
seus equipamentos de monitoração no corpo. Alguns deles apresentam feridas nos
calcanhares, causadas pelo atrito entre a pele e a cinta do aparelho. Outros relatam
queimaduras, ocasionadas pelo eventual aquecimento da pulseira quando carregada
na tomada. “Ela dá superaquecimento”, afirmam. Outros, ainda, não se incomodam.
Acostumaram-se ao equipamento. O Agente de Segurança Penitenciária responsável
pelas alas observa seus deslocamentos nos horários de trabalho pela tela do velho
Intel colocado sobre a escrivaninha de sua sala, mesmo espaço em que os aparelhos
são instalados nos presos. Os equipamentos sem uso são armazenados na estante do
fundo da sala, em meio ao emaranhado de cabos, carregadores e filtros de linha.
Na entrada do complexo, o acesso é controlado por uma sequência de portais
detectores de metal e esteiras de varredura Raio-X. As visitas, em sua imensa maioria
mulheres, aguardam de oito a doze horas nas madrugadas de sábado para serem
revistadas pela manhã em salas abafadas, equipadas com bodyscanners recém
adquiridos pela Secretaria de Administração Penitenciária (SAP-SP). Os aparelhos
foram instalados após anos de pressão dos movimentos sociais e organizações da
sociedade civil para a erradicação das chamadas revistas vexatórias, que submetem
familiares de presos à exposição invasiva de seus corpos. O equipamento evitaria o
contato físico entre funcionários e visitas e tornaria desnecessário o desnudamento das
pessoas revistadas. As reivindicações pela defesa da dignidade dos familiares de
presos e presas culminaram com a aprovação da Lei Estadual no 15.552 em agosto de
2014, que proíbe a revista íntima nas unidades prisionais do estado. Quatro anos
depois da aprovação da lei, pesquisas recentes apontam para a manutenção dos
procedimentos vexatórios de revista, paralela à utilização dos scanners corporais66.
A estranha sintonia entre a mecânica carcerária e os aparatos bioeletrônicos de
segurança e controle pode ser pouco inusitada quando se leva em consideração o
desenvolvimento progressivo de sistemas tecnológicos disponibilizados pela indústria
da punição, tal como sugerem as cenas de Faroki. Prisões guarnecidas de
instrumentos de alta tecnologia constituem objetos clássicos da literatura sociológica
66
ITTC. Revista Vexatória e Audiências de Custódia. Disponível em: http://ittc.org.br/revista-
vexatoria-audiencias-de-custodia/ (Acesso em 20 de janeiro de 2019).
89
prisional67. Todavia, as particularidades do acoplamento entre os blocos da geometria
penitenciária e os novos dispositivos de controle são consideráveis quando
concatenadas aos tradicionais maus tratos reservados a presos e seus familiares,
perenizados no sistema carcerário paulista, malgrado suas inovações (Salla, 2006;
Godoi, 2015; 2018).
Dentre os estados que compuseram o trabalho de campo realizado nesta
pesquisa, São Paulo foi o único que contratou equipamentos que teriam queimado a
perna de seus usuários. Desenvolvidos pela empresa Synergie, os aparelhos que
compõem a plataforma Phoenix ocasionaram queimaduras relatadas tanto na APP II
da Chácara Belém, quanto no Castelinho, CPP de Franco da Rocha. É também
exclusividade da SAP-SP a utilização de tornozeleiras no interior das unidades
prisionais, conforme assinalado pelo diretor do Departamento Penitenciário Nacional
em exercício no ano de 2016, que complementava a informação: “São Paulo é o
contra-exemplo de tudo”68.
A permanência das tornozeleiras dentro do cárcere é prática padronizada no
estado. Entre 2010 e 2019, todas as pessoas em regime semiaberto que trabalhavam
sob monitoramento no exterior das unidades, eram mantidas com os equipamentos
quando retornavam à prisão. Funcionários alegam a dificuldade e o esforço redobrado
necessários à retirada e instalação dos aparelhos a cada ocasião em que os presos e
presas saem para trabalhar. Segundo Rubens, agente prisional do Centro de
Progressão Penitenciária do Butantã, “seria impossível ficar colocando e tirando a
tornozeleira todos os dias em todo mundo”69. Os detentos permanecem rastreados
dentro e fora das unidades.
Não era essa a destinação dos sistemas de monitoramento aludida nas
propostas legislativas que advogavam a implementação da medida como técnica
substituta ao cárcere70. Tampouco seria esse o uso almejado pelos primeiros
idealizadores do mecanismo, ainda na década de 1960, quando prenunciavam a
obsolescência da prisão. Para o Dr. Ralph Schwitzgebel, pesquisador do Comitê
Científico de Experimentação Psicológica da Universidade de Harvard e um dos
principais elaboradores dos sistemas experimentais de controle eletrônico nos EUA,
da mesma forma que “a bola de aço e a corrente foram substituídas pelo pátio da
67
Ver: Christie, 1998; Wacquant, 2001; Chantraine, 2006; Bouagga, 2010.
68
Entrevista concedida na sede do DEPEN, em 29 de março de 2016.
69
Conversa informal realizada em 3 de junho de 2016.
70
Ver Introdução e Capítulo 4.
90
prisão, e o pátio da prisão começa a passar aos estabelecimentos semiabertos, algum
dia as prisões serão museus ou monumentos à desumanidade e à ineficácia do castigo
social” (Schwitzgebel, 1969, p. 598).
Passados cerca de cinquenta anos, sobre o pátio dianteiro do CPP do Butantã,
no vigésimo quilômetro da Rodovia Raposo Tavares, presas em regime semiaberto
circulam com suas tornozeleiras sob a voz de comando dos agentes penitenciários.
Nos momentos de revista, seus corpos alinhados contra as grades do corredor
carregam a prótese eletrônica idealizada pelo Dr. Schwitzgebel nas extremidades das
pernas. Thaiane relata:
71
Entrevista realizada em 31 de agosto de 2015.
72
Entrevista realizada em 14 de outubro de 2015.
91
aplicação da medida para fiscalização do regime semiaberto de execução penal não
haveria de apresentar impacto algum no sentido de conter o crescimento da população
carcerária. Mesmo que os equipamentos fossem devidamente retirados nos momentos
de retorno ao cárcere, nenhum outro objetivo existiria na supervisão eletrônica de
saídas temporárias e trabalho externo senão a intensificação do controle exercido
sobre aqueles que já detinham o direito de sair para trabalhar ou estar com seus
familiares em datas específicas (Japiassú & Macedo, 2008; Campello, 2013). Ainda
assim, quando o monitoramento eletrônico foi autorizado no país em junho de 2010
mediante a aprovação da Lei Federal 12.258, a SAP-SP decidiu disponibilizar a
medida exclusivamente para a supervisão de presos no semiaberto, adquirindo
equipamentos voltados a esta única finalidade. Desde então, os aparelhos colocados à
disposição dos juízes pelo Poder Executivo estadual são reservados à fiscalização do
regime semiaberto e ao reforço do controle nas ocasiões de saidinha e trabalho
externo.
Vale observar que o direito à saída temporária e ao trabalho externo é previsto
pela Lei de Execução Penal (Art. 122-126), caracterizando o regime semiaberto de
cumprimento de pena e constituindo elemento central do sistema progressivo, cuja
finalidade jurídica consiste em proporcionar ao apenado o seu retorno gradativo à
sociedade. Partindo-se de uma perspectiva penológica orientada por objetivos
reabilitadores – perspectiva esta que fundamentou os projetos de implementação do
monitoramento eletrônico no país –, o rastreamento de indivíduos nestas situações
estabelece mais uma barreira entre o apenado e a sociedade, ao estender a tutela do
Estado às ocasiões em que era concedida aos detentos alguma autonomia que
permitisse esse retorno.
De qualquer maneira, foi esta a função atribuída ao monitoramento eletrônico
no estado de São Paulo. Controlar o trabalho externo e as saídas temporárias no
regime semiaberto; tornar mais lento e tutelado o processo de progressão penal; fazer
do semiaberto um regime mais fechado.
A consequência lógica das formas de aplicação do monitoramento eletrônico
determinadas pela administração penitenciária de São Paulo é refletida pela evolução
da quantidade de pessoas monitoradas no estado, concomitante ao incremento da
população prisional. Em junho de 2009 – pouco mais de um ano antes da introdução
do controle eletrônico em São Paulo –, havia 154,5 mil pessoas encarceradas nas
prisões do estado, perfazendo uma taxa de 376,8 presos para cada 100 mil habitantes.
92
Em junho de 2014, esse total já ultrapassava os 219 mil, constituindo uma taxa de
497,4 por 100 mil habitantes. Hoje, o estado tem mais de 240 mil pessoas
encarceradas e a taxa de aprisionamento atingiu em 2016 o índice de 536,5 para cada
100 mil habitantes (Brasil, 2017b).
Gráfico 1
Evolução da quantidade de pessoas presas em São Paulo
(2015-2019)
300000
250000
200000
150000
100000
50000
0
2010
2012
2014
2016
73
Dados fornecidos pela Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, via Lei de
Acesso à Informação.
93
antigas instituições de encarceramento que conservam, contudo, sua centralidade
irrestrita.
Entretanto, a manutenção do crescimento da população aprisionada, paralela
ao desenvolvimento da política de monitoramento, não é exclusividade do estado de
São Paulo. A expansão da malha punitiva atrelada à instalação dos novos dispositivos
de controle eletrônico pode ser verificada de maneira geral em todo o Brasil. No ano
de 2009, a demografia carcerária brasileira compunha um total de 469.546 pessoas
presas. Em junho de 2016 – aproximando-se dos seis anos do início dos programas de
monitoramento no país –, a quantidade absoluta de indivíduos trancados nos presídios
brasileiros atingiu o recorde histórico de 726.712, alcançando a terceira maior
população prisional do planeta. Em termos relativos, se em junho de 2009 havia cerca
de 248 presos para cada 100 mil habitantes no Brasil, em junho de 2016 essa taxa
chegou a mais de 352/100 mil habitantes (Brasil, 2017b). No ano seguinte, o total de
pessoas monitoradas no país chegou a 51.515, sendo a grande maioria delas em fase
de execução penal (Brasil, 2017a).
O olhar quantitativo sobre os índices carcerários indica que a modalidade
eletrônica de execução penal e fiscalização de medida cautelar vem compondo em
todo o país o processo de ampliação do sistema punitivo. A potencialização das
capacidades de controle viabilizada pelo monitoramento remoto não pode ser
considerada, portanto, especificidade desta ou daquela administração estadual.
Todavia, em seus aspectos qualitativos, as tecnologias de controle eletrônico
articulam-se às estratégias penitenciárias locais, notadamente coercitivas no Brasil e
dotadas de truculências próprias no estado de São Paulo (Salla, 2006; Godoi, 2015;
2018). Os episódios de espancamento de indivíduos monitorados, decorrentes de
falhas nos equipamentos74; os isolamentos arbitrários de detentos sob rastreamento75 e
as feridas e queimaduras ocasionadas por tornozeleiras superaquecidas nos momentos
de recarga elétrica atualizam e redimensionam da maneira mais rudimentar aquilo que
Rafael Godoi (2015; 2018) identifica como tortura difusa e continuada, perpetrada
pela Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo e pelo comprometimento
de suas instituições carcerárias com a distribuição sistemática do sofrimento. As
diversas violências envolvendo tecnologias prisionais vêm compor o repertório de
atrocidades praticadas cotidianamente pelas autoridades penitenciárias paulistas,
74
Ver Capítulo 1.
75
Idem.
94
marcado pela inflição extra-regimental de castigos físicos e disciplinares (Salla, 2006;
Pastoral Carcerária, 2016).
Uma estreita cumplicidade é estabelecida, desse modo, entre o conjunto de
práticas penais reunidas em torno da violência física, do encarceramento em massa e
do monitoramento remoto. Distante do escopo elucubrado de substituição da prisão
pela supervisão eletrônica, verifica-se, ao contrário, uma sobreposição de técnicas
punitivas configurada pela complementaridade mútua entre o meio aberto e o
fechado, pela interdependência simbiótica entre o dentro e o fora, atravessada pela
reprodução da tortura subjacente ao cárcere. O par prisão-monitoramento passa agora
a caracterizar a trajetória penal de indivíduos em situação de progressão de regime.
Nesse percurso, a própria execução da pena sob controle eletrônico é
inevitavelmente condicionada à possibilidade de regressão ao regime fechado nos
casos de descumprimento das condições judiciais determinadas. Se a noção de “prisão
virtual” é muitas vezes evocada como imagem simbólica nas análises a respeito do
monitoramento de presos (Roberts, 2004; Maciel, 2014), a virtualidade do cárcere
reside mais em sua iminência do que em qualquer tipo de simbolismo. A prisão é
mantida como risco necessário, conservado no horizonte próximo do sujeito
monitorado. Não há dimensão simbólica ou metafórica.
95
2.4. Silício em Pedrinhas
76
Inovação Tecnológica. Disponível em:
https://www.inovacaotecnologica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=vida-mescla-silicio-carbono-pela-
primeira-vez&id=010160161129
96
de Controle77. Desdobrando registros anteriores, o filósofo mobiliza o trabalho de
Foucault para anunciar o estado terminal da idade das disciplinas78. Os métodos de
internação estariam sendo ultrapassados pela articulação de novas linhas de força. Era
só uma questão de tempo para que as ruínas do edifício asilar desse lugar às conexões
informacionais estabelecidas pelas máquinas de condução de circuitos.
Ainda que hiperbólico, o prognóstico deleuziano seria arguto o suficiente para
admitir a suspeita de que a enunciada substituição das sociedades disciplinares pelas
sociedades de controle implicaria, na realidade, em uma ilimitada imbricação de
dispositivos de poder e uma sobreposição progressiva de diagramas tecnopolíticos
sustentados por práticas simultâneas e concatenadas de confinamento e distribuição
regulatória de fluxos. Mais do que um processo de substituição dos modelos de
internação por mecanismos de controle a céu aberto e eliminação de uns pelos outros,
as novas técnicas de regulação que manifestavam sua emergência desde o século XIX
pressupunham a proliferação correlativa de tecnologias biopolíticas, orientadas por
estratégias multifacetadas de adestramento comportamental e administração das
circulações.
De qualquer maneira, algum tom de despedida aos mecanismos austeros de
confinamento punitivo parece evidente no Post Scriptum de Deleuze, assim como nas
últimas passagens de Vigiar e punir (Foucault, 1987, p. 253)79, o que mais tarde
77
Leandro Siqueira (2012) mapeia os esparsos registros de Deleuze a respeito das sociedades de
controle, observando os caminhos abertos deixados pelo autor em seus vestígios analíticos.
78
O Post Scritpum sobre as sociedades de controle sistematizava proposições inauguradas por Deleuze
em uma conferência apresentada em 8 de abril de 1986, durante seu curso sobre Michel Foucault,
ministrado na Universidade de Vincennes. Trata-se da ocasião em que o filósofo esboça pela primeira
vez a ideia de sociedade de controle, associando-a à noção de biopolítica. Diz Deleuze: “(...) não
poderíamos formar a partir dos textos de Foucault a hipótese seguinte, de três formações jurídicas e
não de duas? Em primeiro lugar, formação de soberania, que se termina com a Revolução francesa,
que corresponde a grandes traços de parte da Idade Média e da Idade Clássica, monarquia absoluta.
Em segundo lugar, formação disciplinar, o período posterior à Revolução, Napoleão e o século XIX. E
começando já nesse período, claro, aparição de uma terceira formação, fundada esta vez sobre uma
biopolítica das populações, que se esboça no século XIX e se instala no XX. Vejam onde quero chegar
com isso: conforme estas três formações, haveria três sujeitos de direito muito diferentes, três formas
jurídicas muito diferentes. Como chamar à terceira, se é que chegamos a aportá-la? Empregando o
termo do autor americano de quem eu lhes falava a propósito da literatura, Burroughs, digamos que é
uma formação ou um poder de controle. Teríamos, portanto: poder de soberania, poder de disciplina,
poder de controle” (Deleuze, 2014, p. 364).
79
No final do livro, Foucault sugere que a posição central ocupada pela prisão como técnica de punição
e administração da miséria perderia seu sentido nas sociedades ocidentais contemporâneas, diante das
demais tecnologias de poder que estariam assumindo esse papel: “No meio de todos esses dispositivos
de normalização que se densificam, a especificidade da prisão e seu papel de junção perdem parte de
sua razão de ser. Portanto, se há um desafio político global em torno da prisão, este não é saber se ela
será ou não corretiva; se os juízes, os psiquiatras ou os sociólogos exercerão nela mais poder que os
administradores ou guardas; no limite, ele tampouco está na alternativa ou algo diferente da prisão. O
problema atualmente está mais no grande avanço desses dispositivos de normalização e em toda a
97
levaria Loïc Wacquant a sublinhar a conjectura equivocada e dedicar sua Sociologia
da Punição à análise do encarceramento em massa alavancado pelo neoliberalismo
recente (2001; 2003; 2012). A emergência da penalidade neoliberal seria marcada em
primeiro plano pela explosão das populações carcerárias, concomitante à pulverização
de novos sistemas de controle e segurança, tal como se testemunha no Brasil ao longo
das últimas duas décadas.
Mas como em qualquer contexto situado, o sistema penal brasileiro é dotado
de suas próprias nuances, escapando, da maneira mais agônica, de qualquer
formulação universal pretendida não raras vezes pelo pensamento social e filosófico
francês.
98
No dia 7 de fevereiro de 2011, seis presos foram executados na Delegacia
Regional do município de Pinheiro, com três deles decapitados. Em inspeção
realizada na unidade pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a entidade constatava
a superlotação da delegacia, precariedade de suas instalações, comando de facções,
más condições de higiene, falta de iluminação, alimentação inadequada, servidores
desqualificados, péssimas condições de segurança, dentre outros problemas
elementares (CNJ, 2013). Um total de 97 presos eram mantidos em quatro celas com
capacidade para 40 (Pedrosa, 2014). A referida barbárie parecia inaugurada pelas
agências do Estado.
Em 9 de outubro de 2013, outra rebelião na Casa de Detenção de Pedrinhas
(CADET) deixou ao menos nove mortos e 30 feridos, além da destruição de
dependências da unidade. Na ocasião, o Grupo de Escolta e Operações Penitenciárias
(GEOP) afirmou ter descoberto um túnel que daria fuga a 60 presos. A resistência dos
detentos à revista na cela teria disparado o tumulto. Em dezembro do mesmo ano, o
CNJ documentou em relatório 25 mortes no Complexo de Pedrinhas. Ao todo, 62
execuções foram registradas nas prisões do Maranhão somente em 2013 (Idem).
A contabilização das mortes só não era tão sinistra quanto os métodos
empregados. Em um vídeo enviado ao CNJ, referente a uma das rebeliões ocorridas
no Centro de Detenção Provisória de Pedrinhas, um homem é exibido com a pele do
membro inferior dissecada, expondo seus músculos, tendões, vasos e ossos, antes de
ser executado. Fotografias do Complexo mostram corpos ensangüentados, troncos
separados de suas cabeças e um facão enterrado no crânio de um dos detentos (CNJ,
2013). Membros recortados, cabeças degoladas e corpos perfurados com facas e
chuços compuseram o cenário tétrico produzido em Pedrinhas nos primeiros anos da
década de 2010.
As imagens capturadas por telefones celulares eram prontamente divulgadas e
compartilhadas nas redes digitais que conferiam aos massacres um novo caráter
espetacular. Desta vez, o sensacionalismo da grande imprensa não seria necessário
para fazer da carnificina prisional uma performance midiática. Os próprios presos
encarregaram-se de produzir e circular as imagens de execução, esquartejamento e
decapitação: “Tem que ajeitar o foco pra pegar o bagulho”, dizia um dos internos
durante uma filmagem (apud. Costa, 2014). O corpo mutilado retornaria aos holofotes
do teatro punitivo, dotado agora de recursos cinematográficos. Estimulada pela
ausência de telefones públicos nas unidades prisionais, impedindo assim o contato de
99
presos e presas com seus familiares, a penetração de smartphones no interior das
prisões80 passava a ser instrumentalizada como forma de visibilização do morticínio
carcerário e de sua conversão em cena pública, replicada pelos canais de comunicação
tradicionais.
Os episódios transcorridos em Pedrinhas colocavam em evidência a
precariedade do sistema carcerário maranhense, marcado pela superlotação,
exiguidade de serviços básicos, contingentes particularmente elevados de presos
provisórios e seletividade racial patente. Já em 2008, a população prisional do estado
chegava a 5.258 pessoas presas para 1.716 vagas, conforme relatório produzido pela
CPI do Sistema Carcerário (Câmara dos Deputados, 2009). Inspeções e visitas feitas
por organizações como o CNJ, o Ministério Público e a Pastoral Carcerária
apontavam para a situação calamitosa das instalações penitenciárias no Maranhão
desde o ano de 2006 (Pedrosa, 2014). Em 2011, o percentual de presos sem
condenação era um dos mais altos do Brasil, constituindo 63% da população
carcerária maranhense. Enquanto marca transversal da demografia prisional, as
maiores taxas de encarceramento da população negra no país eram as do Maranhão,
conforme os dados divulgados em 2013 pelo Fórum Brasileiro de Segurança
Pública81.
À beira do colapso e diante das denúncias realizadas por organizações não
governamentais perante as Nações Unidas e a Organização dos Estados Americanos,
o Ministério da Justiça anunciou a elaboração de um plano emergencial para conter a
crise penitenciária no estado. Em janeiro de 2014, o então Ministro Eduardo Cardozo
– que no ano seguinte compararia os presídios brasileiros a “masmorras medievais” –
elencou 11 medidas que previam ações integradas entre o Executivo, Legislativo e
Judiciário. Dentre elas, constavam a realização de mutirões carcerários por defensores
80
É de se registrar a ausência de telefones públicos no sistema prisional brasileiro, privando-se os
presos e as presas de qualquer contato com seus círculos de afetividade, como bem ressaltado pela
advogada e ativista Raquel Lima, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania: “Celulares são
instrumentos de comunicação e, na prisão, consistem no único meio para que filhos peçam o auxílio de
suas mães quando estão doentes ou para que mães acompanhem o desempenho escolar de seus
filhos”. (ITTC. Disponível em: http://ittc.org.br/celular-na-cavidade-vaginal-para-entrada-em-presidio-
nao-e-crime-diz-juiza-ao-rejeitar-denuncia-oferecida-pelo-ministerio-publico/ - Acesso em 10 de
dezembro de 2018). Além disso, ao contrário do que a imprensa e as próprias autoridades costumam
propagar, a quantidade de celulares introduzidos nas unidades prisionais por meio de visitas e
familiares de presos em um estado como o de São Paulo, por exemplo, é ínfima (0,02%) (Cf. Rede
Justiça Criminal. Disponível em: https://redejusticacriminal.files.wordpress.com/2013/07/rede-boletim-
revista-vexatoria-2015-web.pdf - Acesso em 10 de dezembro de 2018).
81
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em:
http://www.forumseguranca.org.br/produtos/anuario-%20brasileiro-de-seguranca-publica/7a-edicao -
Acesso em 20 de janeiro de 2019)
100
públicos, a construção de novas unidades prisionais e o fomento à aplicação de
alternativas à prisão82. A punição em meio aberto era uma das respostas às urgências
instauradas pelo caos penitenciário.
No mesmo ano de 2014, o Poder Executivo nacional iniciou o financiamento
da política de monitoração eletrônica no Maranhão. A sequência de massacres
sediados em Pedrinhas constituiu-se como elemento deflagrador da instalação dos
serviços de monitoramento eletrônico no estado. A partir de então, seriam
inaugurados os investimentos estatais em torno da implementação de um dispositivo
gestado na crise e concebido para contê-la. Ao lado de Alagoas, Goiás e Espírito
Santo, o estado foi uma das primeiras unidades federativas fomentadas pelo
Departamento Penitenciário Nacional em sua campanha de estruturação do controle
eletrônico de presos no Brasil, que contou com um investimento total de R$ 60
milhões até o ano de 2017 (Brasil, 2017a, p. 56). Na ocasião, o DEPEN recomendava
que se concentrasse o direcionamento do dispositivo para a fiscalização do
cumprimento de medidas cautelares diversas da prisão, no âmbito da Lei Federal no
12.403/11 (Lei das Cautelares), com o propósito de reduzir os elevados números de
pessoas presas sem condenação. O escopo central era favorecer o
“desencarceramento e a inserção social do monitorado” (Brasil, 2015, p. 50).
A Lei das Cautelares fora aprovada em maio de 2011, disponibilizando à
magistratura um cardápio de medidas intermediárias passíveis de serem aplicadas no
decorrer do processo penal, em substituição à prisão provisória. Tais medidas são
elencadas no artigo 319 da Lei no 12.403/11: comparecimento periódico em juízo;
proibição de acesso ou frequência a determinados lugares; proibição de manter
contato com pessoa determinada; proibição de ausentar-se da comarca; recolhimento
domiciliar no período noturno ou nos dias de folga; suspensão do exercício de função
pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira; fiança e, por fim,
monitoração eletrônica (Art. 319, IX). A monitoração no âmbito das cautelares pode
ser aplicada de modo cumulativo a demais medidas (tais como proibição de acesso a
determinados lugares ou recolhimento domiciliar) ou de maneira isolada.
Na avaliação do DEPEN, o direcionamento exclusivo dos dispositivos de
monitoração para a fiscalização de cautelares, em detrimento à sua utilização na fase
de execução penal, atenderia aos propósitos de redução dos índices de
82
IPEA. Disponível em: http://ipea.gov.br/participacao/noticiasmidia/direitos-humanos/892-ministro-
anuncia-plano-emergencial-para-conter-crise-em-presidios (Acesso em 20 de janeiro de 2019).
101
encarceramento, uma vez que evitaria a manutenção de determinados réus em prisão
preventiva antes do trânsito em julgado. Se o monitoramento de indivíduos
condenados poderia representar um reforço do controle punitivo sobre aqueles que já
cumpririam suas penas em prisão domiciliar ou regime semiaberto, a monitoração em
caráter cautelar seria uma possível forma de se evitar o encarceramento ao longo do
período de instrução processual. Ao invés de aguardar o julgamento na prisão, os réus
poderiam ser mandados para casa sob supervisão eletrônica. De acordo com o órgão,
83
Dados da SEAP, obtidos a partir de pesquisa de campo realizada em 20 de outubro de 2016 na
Central de Monitoramento Eletrônico do Maranhão.
102
Gráfico 2
Evolução da quantidade de pessoas monitoradas no Maranhão
(2014-2017)
2500!
2000!
Total!
1500!
Medidas Cautelares
diversas da Prisão!
1000! Execução Penal!
Medida Protetiva!
500!
0!
2014! 2015! 2016! 2017!
Gráfico elaborado a partir dos dados produzidos pelo DEPEN e pela SEAP-MA
103
Gráfico 3
Evolução da quantidade de pessoas presas no Maranhão
(2012-2016)
10000!
9000!
8000!
7000!
6000!
4000!
Pessoas Presas sem
3000!
condenação!
2000!
1000!
0!
2012! 2014! 2016!
104
de progressão de regime, dotados do direito de sair para trabalhar ou visitar seus
familiares e amigos. Já no segundo caso, preponderante no contexto maranhense, o
próprio volume populacional submetido à tutela penal é ampliado pela implementação
do monitoramento, na medida em que um número crescente de pessoas passa a ser
supervisionado em regime aberto, simultaneamente à manutenção do crescimento da
população encarcerada nas unidades prisionais. As redes de controle se expandem na
medida da diversificação do catálogo de sanções disponível ao sistema de justiça. De
uma forma ou de outra, os aparatos de controle e punição são potencializados.
É importante ressaltar, contudo, que a contribuição da política de
monitoramento ao recrudescimento punitivo observado no Maranhão, em São Paulo
e, de modo geral, em todo o Brasil, acompanha as tendências verificadas
internacionalmente. Nos Estados Unidos, efeitos semelhantes são observados já no
início da década de 1990 por Palumbo, Clifford e Snyder Joy (1992), e mais
recentemente por Lilly e Nellis (2013). Na Europa Ocidental, a potencialização dos
sistemas penais promovida pelo rastreamento de presos é sinalizada por Kaluszynski e
Froment (2008), Paterson (2013) e Aebi, Delgrande e Marguet (2014). Salvo os casos
da Holanda e Dinamarca, não há indícios de países que tenham reduzido suas
populações prisionais com o auxílio da aplicação do monitoramento eletrônico. Nos
mais diversos contextos em que foi implementado, o dispositivo tem atuado como
método de extensão e reforço do poder punitivo, sobrepondo-se ao cárcere como
técnica penal suplementar. Nesse sentido, o controle eletrônico vincula-se a processos
político-penais que atravessam fronteiras.
Entretanto, as condições precárias do sistema prisional brasileiro e suas
conexões com a recente intensificação da ocorrência de mortes violentas concentradas
no Nordeste do país atribuem características próprias ao programa político
maranhense de monitoração eletrônica. Novamente, um conjunto de especificidades
há de ser considerado na análise dos processo de implementação do dispositivo nas
diversas conjunturas em que aporta, levando-se em conta as diferentes relações
estabelecidas entre seus aspectos políticos locais e globais, seus contextos políticos de
instalação e suas condições de emergência histórica.
Antes de serem compreendidos pelas autoridades penitenciárias como
expressão do esgotamento da estratégia punitiva em sua tarefa anunciada de
contenção da violência e do crime, os massacres eclodidos em Pedrinhas seriam
tomados como pretexto para novos empreendimentos voltados à expansão do parque
105
carcerário e ao aparelhamento punitivo do Estado (Teixeira, 2014). Um olhar sobre os
investimentos do governo maranhense nas áreas de segurança pública e justiça
criminal revela uma espiral crescente de gastos com o aparato de segurança e punição,
sem que isso tenha se traduzido na redução da criminalidade ou em garantias mínimas
de sobrevivência no sistema carcerário. Entre os anos de 2005 e 2013, as despesas
com o sistema penitenciário do estado foram de R$ 3,8 milhões a R$ 222,2 milhões,
em um crescimento de 5.750% (Teixeira, 2014).
Pedrinhas S.A. é como o sociólogo Wagner Cabral da Costa (2014) refere-se à
capitalização das políticas públicas de controle do crime no Maranhão, “cujo
orçamento tem destinado somas crescentes ao setor, sem qualquer vinculação com
resultados práticos” (p. 45). A construção de mais unidades prisionais, a terceirização
da gestão e serviços penitenciários e a instalação dos sistemas de monitoração
eletrônica constituem o conjunto de medidas adotadas pelo governo maranhense e
pelo Executivo nacional diante da situação carcerária escancarada por Pedrinhas.
Investigar o processo de implementação dos dispositivos de rastreamento no
Maranhão é detectar, portanto, a coexistência de práticas heterogêneas que fazem
convergir em um mesmo território a estrutura degradada e superlotada de suas antigas
penitenciárias agrícolas, a reposição sórdida e ostensiva dos corpos esquartejados no
interior do sistema prisional e a instalação técnica e modernizadora dos aparelhos de
supervisão telemática, cujos efeitos impulsionam a expansão irrefreada da maquinaria
punitiva. Observar o cenário social e político da introdução de sistemas de controle
eletrônico no estado é situar o cruzamento entre a implacável nacionalização dos
conflitos faccionais – estrelados agora por novos coletivos do crime, nativos das
regiões Norte e Nordeste (em especial, no Maranhão, pelo chamado Bonde dos 40)
(Pedrosa, 2014) – e a incorporação de mecanismos georreferenciados de localização
de criminosos, oriundos das grandes potências do capitalismo global e alimentados
pela indústria brasileira da punição. É considerar o encontro inoportuno entre os
limites programáticos da penalidade neoliberal – centrada no tratamento punitivo da
miséria e na absorção penal e penitenciária da população negra e da marginalidade
urbana – e o redimensionamento das mortes matadas, inauguradas pelas chacinas
rurais e hoje amplificadas pelos massacres carcerários (Teixeira, 2014). É verificar,
por fim, a reposição de técnicas de execução e exposição à morte, imbricadas à
promissora instalação de programas penais de alta tecnologia, constituindo um
insólito ponto de convergência entre o novo e o rudimentar, o atual e o retrógrado, o
106
imundo e o asséptico, em torno do qual haveria menos contradição do que
ambiguidade. Mais continuidade do que ruptura.
A clássica alegoria evocada por Chico de Oliveira (2003) da sociedade
brasileira à semelhança de um ornitorrinco – animal improvável no interior de uma
razão dualista que opõe precariedade e desenvolvimento como dois pólos estanques
na escala social evolutiva – há de ser revisitada nas análises sobre a atual
configuração política assumida pelo sistemas penais país afora – de São Paulo ao
Maranhão, passando pelo Rio de Janeiro e pelo Ceará. Espécie de mosaico vivo
composto pela combinação esdrúxula de desenvolvimento tecnológico e manutenção
de instituições arcaicas, o sistema penitenciário brasileiro aparece como expressão
icônica de um ornitorrinco punitivo: entidade que não é isto nem aquilo, reunindo em
um mesmo conjunto de agências penais a promessa humanitária da supervisão penal
tecnocientífica e a perpetuação dos massacres em prisões superlotadas.
Dessa maneira, a compreensão das diferentes configurações assumidas por
uma política penal específica exige que se considere, de um lado, as singularidades
próprias aos seus contextos de implementação e, de outro, o conjunto de elementos
heterogêneos que constituem a sua programática inicial. A análise das diferentes
camadas que compõem os dispositivos de monitoramento no Brasil requer uma
investigação genealógica que compreenda um breve deslocamento geopolítico, uma
vez que se trata de projetos que não foram inicialmente concebidos em solo brasileiro,
mas que nele inscreveram suas formas de pensar o poder de punir. Quais os processos
sociais, políticos e cognitivos que possibilitaram a emergência e consolidação do
monitoramento eletrônico enquanto técnica punitiva? Quais os discursos e
racionalidades que motivaram a sua concepção e conferiram sentido ao seu
desenvolvimento? O próximo capítulo persegue estes questionamentos, tomando
como fio condutor a investigação da elaboração e desenvolvimento dos primeiros
sistemas de monitoração eletrônica na superpotência penal estadunidense.
107
Capítulo 3
Linhas de emergência
108
3.1. Proveniências epistemológicas: psicotecnologia e criminologia ambiental
109
atividades e estados emocionais aos pesquisadores, que emitiam de volta mensagens
de reforço por meio de códigos sonoros. Desenvolvido como instrumento de
comunicação psicoterapêutica, o protótipo foi nomeado de Behavior Transmitter-
Reinforcer e testado em uma série de voluntários que incluíam estudantes, apenados
e pacientes psiquiátricos (Fox, 1987; Gable & Gable, 2005; Vitores, 2009).
Pouco tempo depois, elucubrava-se a possibilidade de modificação do sistema
para a captação dos signos físicos e neurológicos da pessoa monitorada, tais como
frequência cardíaca e respiratória, níveis alcoólicos no sangue e ondas cerebrais.
Robert Schwitzgebel aperfeiçoou o modelo inicial, facilitando seu manuseio e
incluindo um sensor de pulsação que captava ritmos cardíacos e demais informações
fisiológicas. Para além da movimentação, a ideia era acompanhar as condições
clínicas e psíquicas do indivíduo, registrando suas oscilações e intervindo sobre elas.
Conforme os pesquisadores,
110
produziria respostas cuja probabilidade pode ser predita. A conduta individual se
ajustaria à emissão de feedbacks positivos ou negativos, conforme tendências
verificáveis (Skinner, 2000, p. 72).
Todavia, ao contrário das leituras e interpretações recorrentes do clássico
Ciência e Comportamento Humano, que enfatizam a mecânica castigo-recompensa
como marca do pensamento de Skinner, o psicólogo acreditava que o conjunto das
ações humanas pode ser “mais eficientemente controlado pela modificação das
circunstâncias” (Idem, p. 209). As constrições físicas produzem, frequentemente,
disposições emocionais de contra-ataque. “O controlador não precisa ter o poder de
coagir ou restringir diretamente o comportamento, mas pode afetá-lo indiretamente
alterando o ambiente” (Idem, p. 345). Os estímulos aversivos contingentes ao castigo
tendem a gerar predisposições desorganizadoras, exigindo, posteriormente, outros
métodos de controle para remediá-las.
Inspirados pela teoria skinneriana, o grupo de pesquisadores de Harvard
coordenado pelos irmãos Schwitzgebel desenvolveu seu sistema de controle
articulando a psicologia comportamental com o que chamavam de psicotecnologia, ou
seja, “o estudo da interação entre a tecnologia elétrica, mecânica e química e a
experiência humana consciente” (Schwitzgebel, 1973, p. 11). Suas investigações se
desenvolviam em torno de um programa de pesquisas definido como “eletrônica
comportamental”, cujo escopo central consistia na aplicação da engenharia eletrônica
voltada à “compreensão, manutenção e modificação do comportamento humano”
(Schwitzgebel et. al., 1964, p. 233).
Concebida como ciência aplicada, a psicotecnologia do grupo de Harvard
perseguia o aprimoramento das técnicas de observação e intervenção psicológicas
mediante o uso de aparatos eletrônicos que permitissem a manutenção do paciente em
seus espaços habituais. Com o auxílio de sistemas de localização e comunicação à
distância, seria possível superar as limitações experimentais representadas pelos
métodos de internação e desenvolver mecanismos terapêuticos de controle em meio
aberto. O registro das atividades do indivíduo e o intercâmbio de sinais com a central
de controle forneceria condições adequadas à supervisão e transformação do
comportamento desviante. Mais do que a mera observação, a ideia era alterar a
conduta individual a partir da relação entre seres humanos e sistemas eletrônicos,
estabelecidos como unidade integrada (Idem).
111
Dentre as múltiplas funcionalidades de suas experiências – tais como o
tratamento de pacientes epilépticos, geriátricos ou portadores de transtornos mentais
(Schwitzgebel, 1973, p. 15) – os pesquisadores vislumbravam as perspectivas que elas
ofereceriam aos procedimentos de reabilitação de delinquentes:
112
método corretivo havia se espraiado pelos círculos jurídicos, políticos e
criminológicos estadunidenses ao longo da primeira metade do século XX,
fomentando os debates a respeito da necessidade de elaboração e estruturação das
chamadas penas alternativas (Cohen, 1985; Wacquant, 2001; Garland, 2008). O
crescimento dos índices de reincidência criminal evidenciava a ineficiência do cárcere
como técnica reformadora. As medidas penais aplicadas na comunidade adquiriam a
preferência dos especialistas e operadores de um sistema de justiça criminal
essencialmente orientado pelo ideal reabilitador (Garland, 1985; 2008).
Nesse contexto, os saberes psi gozavam de especial relevância no interior do
arcabouço científico que fundamentava teoricamente os sistemas penais norte-
americanos e europeus dos anos 1950 e 1960. Os problemas centrais que mobilizavam
a pesquisa criminológica hegemônica residiam na compreensão da personalidade
delinquente e nos aspectos patogênicos do criminoso individual. Da psicanálise
criminal de orientação freudiana, interessada nas motivações causais que levavam os
indivíduos a tornarem-se delinquentes – traumas de infância, conflitos do
inconsciente, causalidades subjacentes profundas – à psiquiatria forense, dedicada à
identificação das origens neurológicas da inadaptação social – psicopatia, transtornos
de personalidade anti-social, incapacidade de autodeterminação e entendimento –, a
razão criminológica reabilitadora sustentava-se em grande medida pelas ciências psi,
cuja atenção voltava-se às características do indivíduo, decifrado e tratado a partir da
diferenciação binária entre o normal e o patológico. O tratamento penal focava-se
sobretudo nas predisposições do infrator e na reforma de seu comportamento social,
psicológica ou neurologicamente desviado (Garland, 2008).
No âmbito das preocupações correcionais, o estudo e avaliação dos impactos
representados pelos diversos tipos de intervenção penal constituía um dos eixos
orientadores da pesquisa criminológica. Mecanismos e de auto-avaliação e reflexão
interna às instituições de controle do crime atraíam investimentos governamentais em
países como Estados Unidos e Inglaterra, com o objetivo de analisar os efeitos das
medidas penais sobre os criminosos e a redução de suas propensões ao crime
(Garland, 2008). Nesse sentido, as penas comunitárias tais como probation e parole84
84
O sistema de probation é utilizado pelo direito anglo-saxão e se aproxima da suspensão condicional
da pena, diferenciando-se desta pelo fato do indivíduo ter a própria sentença suspensa, sendo então
encaminhado à supervisão de agentes comunitários (probation officers). O regime de parole equivale,
no Brasil, ao livramento condicional, no qual o condenado que cumpre um determinado período de
113
apresentavam resultados aparentemente favoráveis à recuperação do delinquente,
quando comparadas ao encarceramento (Dodge, 1975).
Entretanto, a ausência de fiscalização contínua sobre os regimes em meio
aberto tornava questionável sua capacidade de controle e prevenção à reincidência,
exigindo métodos mais estritos de supervisão penal. Era necessário desenvolver
formas efetivas de substituição à prisão que garantissem um controle estrito,
individualizado e moderador exercido sobre o infrator (Cusson, 1997). As pesquisas
do grupo de Harvard perseguiam esse objetivo, ao desenvolverem os primeiros
mecanismos de monitoramento remoto de indivíduos tidos como delinquentes.
pena privativa de liberdade pode concluir sua sentença em meio aberto sob determinadas condições
(Bruno, 1967, pp. 171-179).
114
conduta humana e a tendência de sua ocorrência deve ser coibida mediante
intervenções situacionais. Mais do que a transformação individual do sujeito
delinquente, os teóricos ligados às novas linhas de pensamento criminológico
preocupavam-se com a prevenção espaço-temporal da ocorrência infracional. A
eficiência no combate à criminalidade dependeria de atuações ambientais que fariam
da ação delituosa um empreendimento arriscado (Jeffery, 1971; Brantingham &
Brantingham, 1981). O alvo principal de interesse científico se deslocaria do
indivíduo delinquente ao evento criminoso.
O próprio behaviorismo de Skinner já havia elaborado alguns dos elementos
basilares que seriam agora incorporados pela escola criminológica ambiental. A ideia
de que a conduta humana seria condicionada pelo ambiente externo constituía o
núcleo principal das teses comportamentalistas, voltadas à compreensão e ao
aperfeiçoamento das técnicas de controle. Alterações ambientais e intervenções
situacionais consistiam, para Skinner, os procedimentos mais adequados de
manipulação das condutas.
A nova razão criminológica absorveria tais premissas, direcionando-as à
elaboração de estratégias renovadas de controle do crime, a partir de um conjunto de
postulados e matrizes teóricas. Reunindo aspectos da psicologia comportamental, do
pensamento social urbano e da microeconomia, a criminologia ambiental, identificada
também como “criminologia situacional” ou “criminologia da vida cotidiana”,
fundamentava-se em três principais vetores teóricos: 1. Teoria das atividades de
rotina; 2. Teoria geométrica do crime e 3. Teoria da escolha racional (Brantingham
& Brantingham, 1981).
O primeiro vetor ressaltava a necessidade de organização das ações cotidianas
tanto de infratores quanto de vítimas, de maneira a evitar os riscos representados por
“situações criminogênicas”. A atenção prioritária dos especialistas residia na análise,
coordenação e predição das atividades individuais e coletivas, criando condições para
o gerenciamento dos fluxos populacionais no interior do espaço urbano a partir do
cruzamento das informações demográficas com os dados relativos à incidência
criminal. A análise recaía sobre a identificação dos espaços e tempos de circulação:
por onde passam as pessoas; quanto tempo permanecem nos ambientes de trabalho,
lazer e descanso; quais os ritmos de deslocamento, entrada e saída nos diversos locais
em que frequentam e qual a sua relação com a frequência de eventos criminosos nas
áreas observadas. Ritmo, tempo e frequência constituíam os conceitos principais sobre
115
os quais se baseava a pesquisa criminológica, cuja matriz teórica recuperava os
fundamentos da ecologia humana85 (Cohen & Felson, 1979).
O segundo vetor, designado como teoria geométrica do crime ou geometria
do crime, explicava os padrões da ocorrência criminal a partir do estudo dos aspectos
geográficos da atividade humana, conferindo atenção especial às oportunidades do
crime oferecidas pela estrutura espacial. Ancorados em uma certa geografia
comportamental, seus teóricos ressaltavam a influência do espaço urbano sobre as
escolhas individuais de potenciais vítimas e infratores. O problema central a ser
analisado relacionava-se ao fato de que os pontos nodais e trajetos de passagem
frequentados por criminosos poderiam se cruzar ou sobrepor com aqueles pelos quais
atravessam vítimas e cidadãos comuns. Um trajeto seguro seria, portanto, aquele que
evitasse a interseção com os nódulos ou distritos identificados como zonas de risco,
por concentrarem em seus limites altos índices de criminalidade (Brantingham &
Brantingham, 1981).
Por fim, a teoria da escolha racional admite que a ação criminosa é o
resultado de uma sequência de julgamentos individuais do infrator, baseados em seus
próprios cálculos de riscos e benefícios. Se o criminoso considera que os riscos do
crime são inferiores aos benefícios por ele oferecidos, a infração é tomada como uma
ação vantajosa. Nesse sentido, o potencial infrator atua como agente calculista de seus
atos, tendo por objetivo extrair do crime uma vantagem pessoal. Aqui, não se trata
apenas de prognósticos financeiros, mas de cálculos e julgamentos internos que
tomam a intervenção penal como um prejuízo ou um risco a ser evitado. A projeção
utilitária de vantagens e desvantagens orientaria o infrator em suas escolhas
individuais. Outrora tratado como elemento patológico a ser corrigido e tratado por
meio de técnicas reabilitadoras, o criminoso passava a ser visto como agente racional,
calculista de suas ações e empreendedor de sua própria conduta (Becker, 1974; Clarke
& Cornish, 1985).
O repertório teórico que constituía as novas correntes criminológicas
atravessou e atravessa os programas de monitoramento eletrônico nos diversos países
85
Desenvolvida a partir dos anos 1940, a ecologia humana considera a centralidade do espaço e do
tempo sobre as formas de agir de seres humanos. Seus teóricos se interessavam pelas formas de
sociabilidade estabelecidas no interior de uma comunidade, a partir de relações de competitividade e
cooperação. Tais relações seriam condicionadas pela transformação temporal do espaço comunitário. A
sobrevivência de indivíduos e populações no interior de uma comunidade em transformação dependeria
de suas capacidades de adaptação ao ambiente, sustentadas em grande medida pelas práticas de
cooperação entre os habitantes (Brantingham & Brantingham, 1981).
116
em que o dispositivo foi implementado (Kaluzinski & Froment, 2003; Gable, 2005;
Vitores, 2009; Cotter & Lint, 2009). A estruturação das atividades cotidianas de
indivíduos considerados infratores, com base em horários de circulação e
recolhimento; o planejamento geométrico de seus deslocamentos no interior de zonas
de inclusão e exclusão; e a compreensão de que a intervenção penal deve ser
estabelecida como um risco a ser inserido no cálculo individual que conduz o
criminoso, compõem os princípios orientadores das práticas de monitoração
eletrônica, centradas no gerenciamento dos fluxos de apenados no ambiente social.
As pesquisas dos irmãos Schwitzgebel situavam-se no intervalo temporal entre
a crença hegemônica na funcionalidade corretiva da pena e a emergência de uma nova
razão criminológica que daria o tom das políticas penais e de segurança pública na
passagem do século XX para o XXI. O avançar das décadas de 1980 e 1990 assistiria
a transformações significativas nas práticas e saberes penais tanto nos Estados Unidos
quanto na Europa, em direção a uma epistemologia institucional gerencialista e
neutralizadora de indivíduos e populações tidos como indesejados, em detrimento aos
velhos princípios correcionalistas (Feeley & Simon, 1992; Wacquant, 2001; 2003;
Garland, 2008). O escopo norteador dos programas penais passaria a oscilar entre a
gestão situacional do crime e a aniquilação das capacidades de ação do criminoso. E
os sistemas de rastreamento de presos seriam então alinhados a esse novo paradigma,
particularmente ligados às correntes situacionais.
Todavia, como veremos mais adiante, os atributos reabilitadores conferidos ao
controle eletrônico não serão abandonados pelos operadores e legisladores envolvidos
em sua implementação. Ao contrário, serão inseridos em um emaranhado heterogêneo
e multifacetado de formulações discursivas que conformaram um dispositivo
polivalente, capaz de adequar-se a contextos políticos variados e a epistemes
penológicas multiformes (Cotter & Lint, 2009).
De qualquer maneira, a análise das propriedades políticas e dos impactos do
controle eletrônico sobre as pessoas monitoradas exige o estudo das diferentes
racionalidades que constituem suas condições de emergência, seu desenvolvimento
não linear e suas atribuições difusas. A investigação das diversas linhas de enunciação
que costuram as práticas de monitoramento de presos permite com que se identifique,
de um lado, os esquemas táticos e cognitivos de controle do crime mobilizados em
torno de sua implementação e, de outro, a composição de forças sociais, políticas e
econômicas que possibilitaram a sua difusão inicial. Para além do saber científico, o
117
desenvolvimento do dispositivo seria alavancado por práticas discursivas variadas que
atravessavam a ficção científica popular e a racionalidade penal neoliberal.
118
3.2. Imaginário ficcional e penalidade neoliberal
86
Dentre as produções mencionadas por Kirby (2012), constam os filmes Eugenics at the Bar “U”
Ranch (1914), Snakeville’s Eugenic Marriage (1915), Heredity (1915), The Regeneration of Margaret
(1916), Their Mutual Child (1920).
119
piores pavores da sociedade a respeito da ciência como força social. Tal como
observa o sóciologo português Flávio Ferreira (2016), discutindo o trabalho de Kirby,
o caráter incerto dos rumos a serem tomados pela pesquisa biotecnológica torna difícil
a conclusão valorativa a respeito de seu conteúdo ético e moral. De todo modo,
alguma atenção espreita há de ser necessária “quando a ficção nos incomoda de tão
realista e a realidade parece-nos beirar o ficcional” (Ferreira, 2016, p. 115).
120
As primeiras versões do artefato eram compostas por um transmissor que
emitia sinais de rádio a cada 60 segundos e um receptor conectado a um computador e
a uma linha telefônica. O modelo já não incluía a possibilidade de intervenção direta e
intercomunicação bidirecional entre o portador do equipamento e a central de
controle, tal como se dava nos sistemas desenvolvidos pelos psicólogos de Harvard.
Basicamente, o mecanismo elaborado por Michael Goss consistia em um sistema de
detecção da proximidade do usuário em relação à central e sinalização de alarmes em
casos de violação das áreas delimitadas. Em abril de 1983, depois de experimentar o
equipamento em si mesmo durante três semanas, Jack Love determinou sua aplicação
em cinco indivíduos sob regime de probation em Albuquerque (Rodríguez-
Magariños, 2007; Burrel & Gable, 2008; Lilly & Nellis, 2013).
Anos depois, o próprio juiz manifestaria sua preocupação com os aspectos
invasivos do mecanismo, quando empresas japonesas lhe ofereceram a possibilidade
de acoplar ao equipamento um controle televisivo. Na ocasião, o magistrado afirmaria
que a “nova tecnologia estava facilitando a violação dos direitos básicos das
pessoas” (Love apud Rodríguez-Magariños, 2007, p. 61).
Já era tarde. A partir de sua experiência, os sistemas de monitoramento
iniciaram sua difusão pelos Estados Unidos. Alguns meses depois da iniciativa de
Love, um programa de rastreamento de apenados foi inaugurado em Palm Beach, na
Flórida, incluindo 415 pessoas entre 1984 e 1989 (Burrel & Gable, 2008). Ainda em
84, um projeto semelhante teve início no condado de Kenton, Kentucky, direcionado
ao controle de probationers87. No ano seguinte, 21 estados já adotavam o
monitoramento eletrônico no país (Lilly & Ball, 1992). Em 1998, a quantidade total
de pessoas monitoradas nos EUA ultrapassava 95.000, de acordo os dados
apresentados pelo National Law Enforcement and Corrections Technology Center
(1999). Pouco mais de uma década havia sido necessárias para que o desenvolvimento
do dispositivo atingisse essa marca.
Os anos de 1980 são tidos como marco inicial da propagação dos sistemas de
monitoramento eletrônico de presos e presas nos EUA. O equipamento desenvolvido
em Albuquerque é apontado pelos analistas como a versão inaugural dos mecanismos
atuais (Vitores & Domènech, 2007; Burrel & Gable, 2008; Lilly & Nellis, 2013). Jack
Love e Michael Goss são reconhecidos por terem estimulado a elaboração de um
87
Indivíduos submetido ao regime de probation, equiparado à suspensão condicional da pena, no
direito brasileiro.
121
modelo operacional do sistema e viabilizado sua primeira utilização prática. A
inspiração proveniente do universo ficcional converteu-se em realidade concreta
ensejada pelo empreendimento jurídico e comercial de seus inauguradores. A partir de
então, o controle eletrônico se disseminaria pelo sistema penal norte-americano e
seria exportado para a Europa ainda em 1988, quando a Inglaterra realizou seus
primeiros projetos-piloto (Mair & Nellis, 2013).
A genealogia do dispositivo é dotada, contudo, de um certo número de
descontinuidades. Seu desenvolvimento não obedece a uma mecânica histórica
unívoca e tampouco a uma destinação penológica prévia. As funções do mecanismo e
os elementos propulsores de seu progresso vinculam-se aos diferentes deslocamentos
histórico-políticos que marcaram o campo do controle do crime ao longo dos últimos
decênios do século XX. Suas condições de emergência seriam dadas por
transformações agudas que atravessariam o universo penal em parcelas significativas
do globo.
Vinte anos haviam se passado entre o início das pesquisas do grupo de Ralph e
Robert Schwitzgebel e a iniciativa de Love. O programa de experimentações
transcorrido em Massachussets não obtivera adesão das autoridades estaduais ou
federais estadunidenses. As poucas menções ao projeto apresentavam críticas aos
potenciais abusos tecnológicos que seu emprego acarretaria (Tribe, 1973). Seus
próprios protagonistas também haviam ponderado sobre as ameaças que os
equipamentos de controle eletrônico poderiam representar às liberdades coletivas e
individuais. “O abuso do equipamento telemétrico comportamental na prevenção do
crime levanta uma grande ameaça às liberdades civis essenciais do grande público”,
ressalvava o Dr. Ralph Schwitzgebel (1969, p. 611). Durante toda a década de 1970,
um relativo esquecimento fora reservado à ideia de se monitorar apenados com
rastreadores eletrônicos (Burrel & Gable, 2008).
Quais seriam então as razões para o sucesso dos programas de monitoramento
desenvolvidos nos anos 1980? Que motivos fariam com que um conjunto de
experiências cientificamente embasadas e psicologicamente fundamentadas não
obtivesse êxito enquanto programa político aplicado, e uma ideia impulsionada por
uma história em quadrinhos infanto-juvenil fosse ela sim o ponto disparador do
período de deflagração de um novo dispositivo de supervisão penal?
Quatro processos básicos e inter-relacionados podem ser apontados aqui como
fatores explicativos, reunidos em torno da chamada guinada punitiva (Wacquant,
122
2001; 2003; Garland, 2008) que reconduziu as estratégias de controle do crime nos
EUA durante as três últimas décadas do século XX: 1. a absorção massificada – e
racialmente seletiva – de volumosos contingentes populacionais pelos sistemas penal
e penitenciário a partir de meados dos anos 1970; 2. a intensificação da participação
do capital privado no sistema de justiça criminal estadunidense; 3. a compreensão de
que o combate à criminalidade exigia a modernização e a informatização dos recursos
destinados às agências penais e de segurança pública e 4. a consolidação de uma
racionalidade penológica essencialmente orientada por parâmetros econômico-
políticos de custo-eficiência.
O encadeamento entre estes quatro elementos constitui, de um lado, uma
espécie de berço sócio-histórico de uma nova tecnologia de controle punitivo e, de
outro, a composição parcial e localizada daquilo que se convencionou designar, entre
alguns autores, de penalidade neoliberal (Foucault, 2008; 2008b; Wacquant, 2001;
2003; Harcourt, 2008; 2009)88. O vultuoso incremento da quantidade de pessoas
submetidas a controles penais, particularmente concentrado na população negra; a
gestação e o desenvolvimento de uma ávida indústria do controle do crime; a
tecnicização dos instrumentos mobilizados pelas agências penais e securitárias e a
virada do pensamento criminológico hegemônico em direção a uma racionalidade de
tipo econômico e eficienticista perfazem alguns dos processos basilares que
constituem a face penal do governo neoliberal. Dessa forma, um breve olhar às
conexões estabelecidas entre estes pontos específicos permite com que se detectem os
principais vínculos passíveis de serem estabelecidos entre a emergência dos
dispositivos de monitoramento eletrônico e a formulação de um lastro político e
epistemológico no campo da penalidade, enquadrado no interior das análises sobre o
neoliberalismo.
O último quarto do século XX assistiu a uma explosão demográfica sem
precedentes no sistema carcerário estadunidense, alavancada pelas campanhas de
reafirmação da hierarquia etnorracial no país, tal como assinalado por Angela Davis
(2003) e Louïc Wacquant (2003). No decorrer dos anos 1960, a estratificação entre
negros e brancos havia sido abalada pela luta política dos movimentos negros pró-
88
Atenho-me, aqui, a alguns dos trabalhos que interessam mais diretamente a esta pesquisa, sem
pretender apresentar uma revisão extensiva da literatura dedicada à análise da penalidade neoliberal.
Tampouco empreendo a tentativa de sistematização e análise do neoliberalismo enquanto conceito
global, concentrando-me em sua face penal e nos autores que fornecem instrumentos analíticos para a
compreensão da emergência do monitoramento eletrônico.
123
direitos civis. A erupção dos guetos do Norte, que concentravam os descendentes de
escravos nas áreas pauperizadas das grandes metrópoles, e a erradicação do “sistema
de Jim Crow”, que estabelecia a segregação racial legal nos estados do Sul, teriam
como resposta a desproporcional reação estatal em direção à criminalização
sistemática e à penalização massiva da população negra ao longo das décadas
subsequentes (Davis, 2003; Wacquant, 2003). À sucessão legislativa que declarava
“guerra ao crime”89, associada à hiperatividade performativa das instituições de
segurança pública e à condenação agressiva dos crimes de rua, subjazia a atuação
racialmente dirigida das instituições penais e securitárias (Davis, 2003; Alexander,
2010). Cristalizadas na doutrina da lei e da ordem e nos programas de tolerância zero,
as medidas de recrudescimento penal e policial deflagradas nos EUA entre os anos
1970 e 1990 impeliram a disparada abrupta dos níveis de encarceramento (Wacquant;
2001; 2003).
De 1975 a 1985, a população prisional do país praticamente dobrou, saltando
de 380 mil para mais de 750 mil presos e presas. Destes, 45% eram negros, quando a
população negra perfazia 12% da demografia total estadunidense. Em 1995, a
quantidade de pessoas encarceradas nas prisões federais, estaduais e locais
ultrapassaria 1,5 milhão. No ano 2000, esse número já se aproximava dos 2 milhões,
levando 1 de cada 10 homens negros entre 20 e 29 anos ao cárcere, enquanto a taxa de
homens brancos presos desta mesma faixa etária era de 1 para 100. Em 25 anos, a
quantidade de indivíduos trancados nas instituições carcerárias da “terra da liberdade”
cresceu a mais de 400%, ao passo que a população total do país subiu a uma taxa de
30%90.
A impossibilidade física e pragmática de ampliação do parque carcerário na
velocidade exigida pela rápida produção de condenados impulsionava também a
expansão da população sob medidas penais comunitárias, já numericamente superior à
quantidade de indivíduos encarcerados. Simultaneamente ao dramático aumento do
público prisional, o número de pessoas em regimes de probation ou parole acumulava
contingentes ainda mais expressivos. Em 1981, mais de 1,5 milhão de pessoas
cumpriam pena em algum destes dois regimes. No ano de 1990, já eram mais de 3,1
89
Da qual os principais exemplos foram a lei anti-drogas, assinada em 1986 por Ronald Reagan,
elevando as sentenças mínimas para crimes relacionados ao tráfico e consumo de drogas, e a three-
strikes law, que em 1994 previa a prisão perpétua de reincidentes habituais.
90
Dados produzidos pelo Bureau of Justice Statistics. Disponíveis em:
https://www.bjs.gov/index.cfm?ty=tp&tid=1 (Acesso em 18 de março de 2019).
124
milhões. Em 2000, esse total ultrapassava os 4,5 milhões, perfazendo uma taxa de 1 a
cada 54 adultos residentes nos EUA, e 1 a cada 14 adultos negros91. Longe de ser
periférica, a massa populacional sob sanções em meio aberto representava a camada
mais espessa de um expansivo bloco demográfico sob a tutela punitiva estatal, cujo
alvo prioritário tinha raça definida.
Não obstante, a dúvida em relação à eficácia das medidas comunitárias como
técnicas de controle e prevenção à reincidência criminal provocaria mudanças no
caráter funcional das penas em meio aberto, tradicionalmente associadas ao ideal
reabilitador (Garland, 1985; 2008). A conclusão mântrica e relativamente consensual
de que “nada funciona” em matéria de correção do criminoso, difundida entre
criminólogos e administradores públicos a partir da década de 1970 (Martinson,
1974), conduziria os serviços de probation a finalidades de puro controle,
intensificando seus métodos de supervisão e condições de cumprimento penal
(Wacquant, 2003; Garland, 2008). Avaliações de conduta, exames toxicológicos,
contatos telefônicos periódicos e relatórios a respeito da execução penal ganhariam
ênfase dentre os procedimentos que caracterizavam o trabalho das agências de
probation (Idem; Idem). No âmbito de um novo paradigma das penas comunitárias, o
monitoramento eletrônico se inseria como técnica ideal, permitindo ao Estado um
acompanhamento estrito do itinerário de seus probationers e parolees (Kilgore,
2012).
Entretanto, o poder público já não será mais o único agente encarregado de
sua atribuição punitiva elementar. A produção massificada de condenados passaria a
exigir e ser ela mesma exigida pela estruturação de um vasto complexo industrial
penal (Lilly & Knepper, 1993), tanto no meio fechado quanto no aberto. E aqui se
passa ao segundo ponto, condicionante do sucesso do monitoramento eletrônico a
partir das décadas de 1980 e 1990 nos EUA: o florescimento do mercado do castigo e
a potencialização da função lucrativa do sistema penal (Paterson, 2013). De um lado,
o impulso punitivo promovido pelas autoridades públicas demandava a multiplicação
de agentes capacitados a lidar com o rápido influxo de sentenciados. A velocidade
corporativa e os baixos custos com os quais as empresas privadas eram capazes de
erguer estabelecimentos penitenciários e fornecer serviços de provisão e controle
seriam suficientes para que elas adquirissem a confiança do Estado (Christie, 1994;
91
Idem.
125
Garland, 2008; Mason, 2012). De outro lado, a formação de um amplo mercado da
punição estruturado pela iniciativa privada requisitava seus meios de manutenção e
crescimento, economicamente dependente da produção em larga escala de presos e
presas. A acumulação de condenados tornava-se fator necessário ao desenvolvimento
produtivo dos empreendimentos penais que tomavam seus criminosos como “mais-
valia humana”92 (Davis, 2003).
No ano de 1980 ainda não havia nenhuma prisão para adultos gerida por
agentes privados nos EUA. Dez anos depois, já eram 67 unidades, abrigando um total
de 7.000 presos e presas. Até 2009, esse número chegaria a 129.000, constituindo um
crescimento de 1600% em menos de duas décadas. Companhias como a Corrections
Corporations of America (CCA) e a GEO Group protagonizaram o desenvolvimento
do que veio a se tornar um dos mais lucrativos ramos da economia estadunidense,
tomando as políticas de encarceramento em massa como motor de seu crescimento.
Ao todo, cada uma destas empresas obtinha receitas próximas a 3 bilhões de dólares
no ano de 2010, conforme documentado em relatório publicado pela American Civil
Liberties Union (ACLU, 2011).
Correlacionada ao programa de construção de presídios privados, a elaboração
de novas técnicas de supervisão de apenados oferecia perspectivas promissoras ao
(re)emergente mercado da punição93. Ainda na primeira metade da década de 1980,
uma série de empresas e organizações comerciais passaram a desenvolver suas
próprias versões dos chamados ankle bracelets. O empresário Michael Goss, que ao
lado de Jack Love concebera os equipamentos testados em Albuquerque, abriu sua
companhia especializada no ramo, a National Incarceration Monitor and Control
Services. Tratava-se da primeira empresa dedicada ao desenvolvimento e
comercialização de tornozeleiras eletrônicas. Em 1987, 10 grupos comerciais já
forneciam equipamentos de monitoramento eletrônico nos EUA (Renzema, 1992).
Em 1996, já eram 20 empresas estadunidenses atuando no ramo (Gable & Gable,
92
A ideia de mais-valia humana é mobilizada aqui, a partir de sua utilização por Angela Davis (2003,
p. 91), como mão de obra excedente, reabsorvida pelo mercado da punição que transforma, não
necessariamente o trabalho, mas a própria mão de obra descartada pelo mercado em lucro econômico
extraído dos contratos estabelecidos com o Estado.
93
Os agenciamentos público-privados nas práticas penais não eram novidade na história estadunidense.
Até o fim do século XVIII, cadeias administradas por agentes privados eram contratadas pelo Estado
para manter indivíduos que aguardavam julgamento. A primeira prisão gerida pelo poder público fora
construída somente em 1790. A partir de então, o envolvimento do setor privado no ramo penal se
limitaria à prestação de serviços como alimentação, atendimento médico e transporte de presos. No
decorrer da década de 1980, contudo, empresas particulares retornaram ao cenário punitivo tornando-se
um importante ator do sistema penal dos EUA (Mason, 2012).
126
2005, p. 1). No avançar das décadas seguintes, a produção e comercialização de
mecanismos de controle eletrônico se tornaria um negócio internacionalmente
difundido (Paterson, 2013).
Para além do domínio penal, o criminólogo Craig Paterson sublinha a
importância da indústria da segurança privada sobre a ascensão do mercado de
sistemas e serviços de monitoramento remoto. Grandes companhias de segurança, tais
como a G4S e a Serco, obtiveram um papel relevante na implementação de políticas
de monitoração de presos tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, beneficiando-
se de seus vínculos formais ou informais com instituições governamentais (Idem).
Incitando imaginários tecnológicos, os empreendedores da área encorajavam políticos
e órgãos do governo a modernizarem suas práticas e estruturas de supervisão. Mais do
que as capacidades de reforma ou prevenção à reincidência criminal, a ênfase recaía
sobre as especificações técnicas e possibilidades quiméricas que seus produtos
ofereciam ao Estado (Lilly & Nellis, 2013).
Sendo assim, as campanhas pela informatização dos sistemas penal e
securitário que tiveram lugar nos anos 1980 e 1990 nos EUA – terceiro fator de
propulsão do monitoramento eletrônico – baseavam-se na interface estabelecida entre
os setores público e privado, alimentadas pela ideia de que a “guerra ao crime”
haveria de ser vencida através da tecnologia. Seria esta a arma principal por meio da
qual os entusiastas de programas como o tolerância zero erradicariam as incivilidades
urbanas – das mais insignificantes às mais expressivas, conforme as premissas
propagadas pela teoria das janelas quebradas94. O enfoque nas admiráveis
capacidades dos sistemas técnicos de punição e segurança consistia em uma poderosa
tática de lobby utilizada por representantes de empresas de eletrônicos (Idem).
O desenvolvimento dos equipamentos de monitoramento de presos se inseria,
portanto, em um conjunto de medidas tecnogerenciais que seriam adotadas pelas
instituições de polícia e de justiça (Froment, 2011; Paterson, 2013). Sistemas de
videomonitoramento, tecnologias de identificação biométrica, fichamentos genéticos,
94
Formulada no início dos anos 1980 por James Wilson e George Kelling (1982), a teoria das janelas
quebradas forneceu algumas das principais bases para o programa de tolerância zero, inaugurado pelo
prefeito da cidade de Nova Iorque, Rudolph Giuliani, e deflagrado pelos EUA a partir da década
seguinte. Grosso modo, Wilson e Kelling argumentavam que, se uma janela quebrada em um
determinado edifício não é rapidamente concertada, a tendência das pessoas que “costumam quebrar
janelas” é tomá-lo como abandonado e dar sequência à depredação. A metáfora era traduzida à questão
criminal, na qual os autores defendiam a necessidade de se coibir e reprimir toda e qualquer infração,
por mais ínfima que fosse, de modo a conferir aos bairros e comunidades um aspecto seguro que
constrangeria os criminosos e impediria que maiores infrações ocorressem.
127
mecanismos analíticos e informacionais sobre ocorrências criminais e projetos de
policiamento preditivo passariam a compor o arsenal estratégico direcionado ao
combate à criminalidade nas grandes metrópoles. Durante a década de 1980, sistemas
de CCTV instalados em espaços públicos se espalharam pelas cidades estadunidenses.
Em 1993, a DARPA (Defense Advanced Research Products Agency) iniciou seu
programa de reconhecimento facial, posteriormente disponibilizado às empresas de
segurança. Em 1998, o FBI inaugurou um banco de dados forense que armazenava os
perfis de DNA de centenas de milhares de condenados, amostras de sangue e saliva
coletadas pelas administrações penitenciárias em todo o país (Wacquant, 2001).
Mais do que meros instrumentos, os novos sistemas de controle do crime
ativavam com eles uma série de formulações teórico-discursivas baseadas na
securitização do ambiente urbano como parâmetro do aumento da “qualidade de vida”
(Wilson & Kelling, 1982). A ordem pública e a boa circulação nos bairros e
comunidades estariam condicionadas à capacidade das autoridades de reunir
informações de identificação geográfica sobre os índices e frequências de eventos
criminosos, tal como previam as correntes criminológicas ambientais (Andresen,
2009). O icônico CompStat, sistema de processamento informacional encomendado
pelo Departamento de Polícia de Nova Iorque e inaugurado em 1994, sintetizava
alguns dos preceitos fundamentais criminologia ambiental, na medida em que
permitia, mediante o uso de dados estatísticos sobre ocorrências criminais no espaço
urbano, a distribuição georreferenciada das atividades das patrulhas, baseadas nos
princípios táticos da intervenção situacional.
Nesse sentido, o quarto e último elemento compreendido aqui como agente
propulsor do monitoramento eletrônico refere-se à formulação léxica e política de
uma nova racionalidade penal orientada por propósitos gerenciais, conforme apontado
por Michel Foucault (2008a; 2008b) e uma série de autores baseados nas leituras a
respeito do que o filósofo chamou de governamentalidade neoliberal. As abordagens
criminológicas emergentes na década de 1970 e o intercâmbio de práticas e expertises
entre os setores público e privado levariam as agências de polícia e de justiça a adotar
um modelo administrativo espelhado na forma empresa e pautado por parâmetros de
custo-eficiência (Garland, 2008; Aviram, 2016). Atualizando as premissas do
utilitarismo liberal elaboradas por Jeremy Bentham e Cesare Beccaria – que
traduziam os fundamentos do livre mercado ao pensamento jurídico-penal – a
governamentalidade neoliberal perseguia a otimização das técnicas de controle,
128
concebendo as práticas punitivas e preventivas a partir de critérios econômicos
voltados à análise de riscos, contenção de custos e maximização da eficiência no
combate à criminalidade (Foucault, 2008a; 2008b; Harcourt, 2008). Para além ou
aquém da privatização stricto sensu da justiça criminal, os agenciamentos público-
privados na gestão e elaboração da pena vinham compor um processo específico de
governamentalização do sistema penal (Foucault, 1979).
Consagrada pelo economista Gary Becker (1974) e pelos expoentes da Escola
de Chicago, a racionalidade penal neoliberal empregava como método analítico uma
série de cálculos econômicos que contrapunham os custos do crime aos investimentos
necessários à intervenção penal, de maneira que os dispêndios ocasionados pelas
políticas punitivas não excedessem aqueles representados pela criminalidade. Os
instrumentos utilizados pelas agências de controle do crime seriam agora
fundamentados por uma razão aritmética que converteria a pena em mecanismo de
mercado, voltado à redução da oferta do crime a um determinado nível que faria de
sua demanda uma demanda negativa. À diferença do utilitarismo de Bentham e
Beccaria, o objetivo central dos neoliberais já não residia na conversão moral do
indivíduo criminoso, interpretada como lucro político extraído da pena reformadora,
mas em uma ação sobre o mercado do crime que tornaria o ato infracional um
empreendimento de risco (Foucault, 2009). Agente derrotado no jogo do mercado
formal regido pelas leis da livre iniciativa, o infrator se inseria no mercado do crime
como empreendedor individual que pagaria o preço da resposta penal como
consequência natural de suas próprias escolhas (Hamann, 2012).
Às leituras jurídicas e disciplinares sobre o crime e o criminoso sobrepunha-se
uma epistemologia penal voltada ao gerenciamento econômico-político da
criminalidade. O próprio infrator seria então tomado como um agente de mercado,
subjetivado como capital humano, empreendedor de si mesmo e indivíduo
responsável pelos riscos que corre. Se a governamentalidade neoliberal constituía-se a
partir de uma certa configuração de tecnologias de poder, sua efetividade estaria
condicionada à ativação de uma série de tecnologias de si, concebendo o criminoso a
partir da mesma chave de análise pela qual compreendia a política criminal (Foucault,
2008a; Lemke, 2012). E o ponto de contato entre uma escala de atuação à outra seria
dado pela racionalidade econômica. A razão de mercado constituiria o saber global e
fluido que estabelecia a conexão entre as estratégias de governo de si e dos outros;
entre as técnicas de poder e seus módulos correspondentes de subjetivação.
129
É nessa medida, portanto, que o controle eletrônico de indivíduos condenados
ou processados pelo sistema de justiça respondia às exigências colocadas pela
penalidade neoliberal. A elevação dos gastos públicos com o sistema prisional faria
com que a questão penitenciária fosse gradativamente percebida como uma questão
orçamentária. Pesquisas de impacto financeiro começavam a ser divulgadas,
enfatizando a carestia dos sistemas penitenciários. Era preciso desenvolver técnicas de
supervisão menos custosas do que a prisão e mais eficientes do que o as penas
comunitárias tradicionais. Às virtudes tecnológicas dos mecanismos de controle à
distância se somariam suas vantagens do ponto de vista econômico (Paterson, 2013).
No mesmo sentido, a transferência de tarefas de controle ao próprio sujeito penalizado
possibilitava o desencargo estatal dos custos representados pela provisão de serviços e
estrutura às instalações penitenciárias. O sujeito punido tornava-se mais um agente
imbuído da função compartilhada do exercício punitivo.
O conjunto de transformações que constituem a penalidade neoliberal
fornecem, portanto, algumas das condições básicas para a compreensão da
consolidação e desenvolvimento dos programas de monitoramento eletrônico nos
EUA. Outros processos históricos poderiam ser tomados como fio condutor de sua
gênese, uma vez que o surgimento de sistemas tecnológicos de rastreamento
georreferenciado remontam ao início do século XX, no âmbito da navegação militar.
Entretanto, o recorte histórico aqui proposto baseia-se em um interesse específico
pelas metamorfoses técnicas, políticas e discursivas das estratégias de punição,
cristalizadas no monitoramento de presos. É nas recentes transformações operadas
pelo poder de castigar que esta pesquisa encontra seu maior objeto de interesse.
Da mesma forma, cumpre destacar que o que se entende aqui por penalidade
neoliberal não se organiza como uma grade política e analítica estática, estabelecida
de modo inalterado no tempo e no espaço. Tampouco se compreende a penalidade
neoliberal à imagem de um sistema teórico e político hermético ou total, mas como
uma composição móvel de vetores flexíveis capaz de adaptar-se e modificar-se
conforme os diferentes cenários sociais e políticos, tal como os dispositivos de poder
por ela mobilizados (Lemke, 2018). Outros vetores a ela se acoplam, acrescentando,
justapondo ou contornando suas formações táticas. Outras linhas de força atravessam
a racionalidade penal neoliberal, desviando, redirecionando ou retroalimentando suas
práticas.
130
Entretanto, os quatro vetores destacados neste item são tomados aqui como
linhas consideravelmente estáveis, a partir das quais se mobiliza a noção analítica de
penalidade neoliberal e sua vinculação com emergência do monitoramento eletrônico.
A revisão da literatura sobre o tema fornece elementos suficientes para apontar a
relevância destes quatro fatores na genealogia do dispositivo, quais sejam: a
massificação dos contingentes populacionais submetidos a alguma forma de controle
punitivo; a participação crescente de agentes privados no sistema de justiça criminal;
a informatização do aparelhamento destinado às agências penais e de segurança
pública e a definição da racionalidade econômica como eixo orientador das políticas
de combate ao crime e controle do criminoso.
131
3.3. A guerra produtora do sistema penal: GPS
95
O sistema GPS é, todavia, sujeito a interferências e falhas de cobertura, geralmente provocadas por
bloqueios topográficos, edifícios e montanhas.
132
forças aliadas e minas terrestres plantadas pelo inimigo (Siqueira, 2012; Siqueira &
Campello, 2018).
Considerada a maior operação militar desde a Guerra do Vietnã, a invasão à
região do Golfo foi tida como laboratório de aperfeiçoamento de tecnologias de ponta
que seriam largamente empregadas na condução de conflitos internacionais dali em
diante (Idem; Idem). O uso de armamento inteligente era parte de um amplo processo
político de reconfiguração da guerra contemporânea que passava pelos esforços de
eliminação do embate frente-a-frente entre tropas militares. Em detrimento à troca de
baixas nos territórios de batalha, os novos “estados de violência” passariam a ser
caracterizados por seu enfoque em competências tecnocientíficas voltadas à
distribuição da morte calculada (Gros, 2009). E o GPS seria um dos principais meios
de sua efetivação. Terminada a intervenção no Golfo, o relatório final de avaliação da
campanha estadunidense emitido pelo Departamento de Defesa ressaltava a
importância da nova tecnologia de sensoriamento: “o GPS foi utilizado mais
extensivamente que o planejado e supriu as necessidades de navegação e localização.
Deve-se considerar a incorporação do GPS a todos os sistemas de armas e
plataformas” (DOD, 1992, p. 877).
Ao final da década de 1990, a rede de satélites passaria a ser utilizada para
monitorar indivíduos sob a tutela da justiça. Seu uso civil já era disponibilizado para o
rastreamento de automóveis, planejamentos de viagens e localização de telefones
móveis (Lilly & Nellis, 2013). Era só uma questão de tempo para que a tecnologia
fosse incorporada aos sistemas de monitoramento de presos. No ano de 1999, nove
estados americanos utilizavam o GPS para o controle de um público que variava de
“criminosos sexuais” em Chicago a jovens considerados infratores em Nova Jersey
(Fields, 1999). Em 2001, a Florida iniciou sua utilização, integrada a softwares de
identificação georreferenciada de ocorrências criminais, com a finalidade de reunir
informações estatísticas sobre crimes e compará-las aos dados referentes aos fluxos de
apenados (Lilly & Nellis, 2013). Ao longo dos anos seguintes, o sistema passaria a ser
utilizado no monitoramento de presos em todo o país.
O uso do GPS transformou as práticas de supervisão eletrônica ao propiciar às
autoridades penais o acompanhamento permanente dos deslocamentos do indivíduo
monitorado. Suas vantagens técnicas sobre os antigos mecanismos residiam em sua
capacidade de detecção de movimento. Enquanto os aparelhos baseados em
radiofrequência sinalizavam tão somente a presença ou ausência do indivíduo em um
133
espaço determinado (geralmente sua casa), os equipamentos dotados de transmissores
GPS capturavam sua movimentação em qualquer ambiente que fosse. Se antes a
localização de pessoas monitoradas só era constatada nos momentos de recolhimento
domiciliar, agora se poderia ter ciência de seu itinerário completo de maneira
contínua. A partir do GPS, não apenas a execução penal deixava de exigir um espaço
fixo, mas as próprias capacidades de supervisão se desterritorializavam.
Durante os anos de sua inauguração pelos sistemas de justiça, a incorporação
de um mecanismo de rastreamento ilimitado nos equipamentos de monitoração de
presos dividiu opiniões e posicionamentos no campo jurídico. Por um lado, celebrava-
se a perspectiva de retirar da prisão determinados criminosos que não representavam
um “real perigo” à sociedade, evitando-se os “efeitos criminógenos” do
encarceramento e as despesas elevadas por ele implicadas. “O sistema oferece ao juiz
uma opção para manter pessoas fora da prisão, distantes de todas as suas influências
negativas. É também um corte de gastos ao contribuinte”, anunciava o presidente da
Faculdade Judicial Nacional da Universidade de Nevada, Percy Luney. “O problema
do sistema antigo é que quando os infratores saem de casa, você já não tem ideia de
onde se encontram ou do que estão fazendo”, completava (Luney apud Fields, 1999,
p. 2). Por outro lado, advertia-se a respeito das possibilidades de expansão dos
controles penais, facilitada pela generalização do emprego do GPS. O Professor de
Direito da Universidade de Georgetown, Paul Rothstein, sublinhava as
transformações nas práticas de controle do crime relacionadas à utilização dos novos
mecanismos de rastreamento, ressalvando: “Pode-se terminar com a maior parte da
população submetida a alguma forma de vigilância por parte do Governo”
(Rothstein apud Fields, 1999, p. 2). As ameaças de recrudescimento das capacidades
de controle estatal pairavam sobre as discussões e análises críticas que se davam em
torno do monitoramento eletrônico e suas inovações.
Atentava-se, em particular, às virtualidades do dispositivo em impulsionar os
processos de net widening: fenômeno definido por Stanley Cohen (1985) e
compreendido pela ampliação e intensificação das redes de controle penal, efetivadas
pelo incremento da população carcerária, simultaneamente ao crescimento dos
contingentes populacionais submetidos a regimes em meio aberto; multiplicam-se os
volumes demográficos submetidos aos órgãos penais do Estado, cujas técnicas de
controle tornam-se progressivamente mais rígidas, ao passo que novas agências e
serviços, supostamente desenvolvidos para substituir as velhas instituições prisionais,
134
passam a estabelecer para com o cárcere uma relação de complementaridade e
controle suplementar.
De fato, o desenvolvimento da primeira geração de dispositivos de
monitoramento já havia sinalizado para a expansão da malha penal representada por
seu avanço. A difusão inicial do controle eletrônico nos EUA durante as últimas
décadas do século ocorrera em paralelo à dilatação do sistema prisional do país.
Nenhuma tendência de recuo ou contenção das taxas de encarceramento havia sido
verificada com a implementação do dispositivo. Ao contrário, seu desenvolvimento
reforçava a dimensão e densidade da rede punitiva do Estado que, ao lado de seus
parceiros privados, absorvia um número crescente de pessoas e tornava cada vez mais
estritas as condições de cumprimento penal, agora mediadas por mecanismos de
localização à distância (Kilgore, 2012). Tendo em vista o fortalecimento do poder
punitivo viabilizado pela utilização do GPS, Paul Rothstein observava o potencial dos
novos sistemas estarem em vias de “criar um monstro” (Rothstein apud Fields, 1999,
p. 2).
Hiperbólica ou não, sua ressalva tinha propósito. A 2a geração de sistemas de
supervisão eletrônica contribuiu significativamente para que a medida se difundisse
ainda mais. Estimulada por empresas como a Advanced Business Sciences e a
ProTech Monitoring, pioneiras no uso do GPS para controle de presos (Paterson,
2013), a disseminação do dispositivo fez com que a quantidade total de pessoas
monitoradas nos EUA ultrapassasse o seu dobro na virada do século, subindo de
42.000 em 1997 para 100.000 em 2006, conforme as informações divulgadas pelo
boletim especializado Journal of Offender Monitoring (2006). No mesmo ano de
2006, a quantidade de pessoas trancadas nas prisões do país atingia um total de 2,2
milhões, com sua taxa de crescimento chegando ao ápice histórico de quase 3% ao
ano. Concomitantemente, os índices de probation e parole permaneciam em plena
ascensão, ultrapassando, juntos, 5 milhões de pessoas em 200796. O acoplamento
entre a prisão e suas variadas formas de modulação a céu aberto mantinha inalteradas
as tendências de encarceramento, produzindo uma vasta legião de cativos, dentro e
fora dos muros.
Valendo-se, portanto, dos sistemas de comunicação via satélite, os
dispositivos de monitoramento ganhariam novos vetores de desenvolvimento. Às
96
Bureau of Justice Statistics. Disponível em: https://www.bjs.gov/content/pub/pdf/cpus10.pdf
(Acesso em 20 de março de 2019.
135
linhas de força que configuravam o ímpeto punitivo neoliberal somavam-se os
avanços da tecnologia militar. E os rumos tomados pelas novidades técnicas
apresentadas pelo sistema de justiça ficariam a cargo do cruzamento entre as
orientações políticas das autoridades penais do país, os interesses econômicos da
indústria do castigo e os anseios de maximização da eficiência tecnológica. Fórmula
iníqua que levou o monitoramento eletrônico a constituir-se como anexo virtual da
instituição carcerária, distanciando-se de seus enunciados propósitos de substituição à
prisão, tornando mais rígidos e onipresentes os controles estabelecidos além-muros e
redimensionando as capacidades de supervisão penal a horizontes ilimitados.
Global Preventive Security (Segurança Preventiva Global). É assim que Didier
Bigo97 mobiliza a sigla referente ao sistema de geolocalização desenvolvido pelas
forças armadas estadunidenses e utilizado pela justiça penal. O autor analisa a
transversalização das práticas de vigilância, atrelada aos processos contemporâneos
de interseccionalidade entre as estratégias de governo do crime e as técnicas de
administração da guerra. Para além do intercâmbio de tecnologias, a capilarização de
novos mecanismos de controle aparece como efeito e fator propulsor da simbiose
tática e cognitiva estabelecida entre as políticas de segurança interna e externa. Os
discursos e práticas vinculados às estratégias contemporâneas de securitização são
marcados por uma “desdiferenciação” entre os domínios militares, policiais e penais:
processo através do qual as forças armadas são convocadas a intervir em questões
internas, as polícias se engajam em conflitos transnacionais e os sistemas de justiça
criminal passam a dedicar-se ao controle e neutralização do infrator tomado como
inimigo íntimo98. Daí a relevância analítica, sublinhada por Bigo, de se articular a
pesquisa sociológica aos estudos internacionalistas99.
97
Disponível em: <https://www.opendemocracy.net/en/global-preventive-security-and-its-unbearable-
lightness/>. Acesso em 3 de dezembro de 2018.
98
Vide as concepções teórico-discursivas fundamentadas pelo chamado Direito Penal do Inimigo, no
qual o criminoso é juridicamente desprovido de sua condição de cidadão e tido como elemento a ser
aniquilado pela política penal (Jackobs & Meliá, 2009).
99
Movimento semelhante é operado por Stephen Graham (2006), que chama atenção para a
impossibilidade de se compreender a disseminação de tecnologias de vigilância e monitoramento do
espaço urbano sem que se considere a progressiva militarização das cidades como estratégia enfática de
gestão pública. Retomando as perspectivas de Paul Virilio e Mackenzie Wark, que posicionam a guerra
no centro da análise política, Graham discute as conexões entre os processos globais de urbanização e o
repertório técnico e discursivo mobilizado pelas forças armadas estadunidenses. O emprego de
tecnologias de geolocalização e de sistemas onipotentes de vigilância constitui um dos principais
aspectos do redirecionamento de estratégias militares ao controle de insurgências urbanas e à gestão
dos riscos representados pela criminalidade.
136
Deslocando o olhar para o espaço sideral, Leandro Siqueira (2015) investiga o
desenvolvimento de sistemas de sensoriamento remoto a partir de uma análise
genealógica das campanhas de ocupação da órbita terrestre, impulsionadas pela
corrida armamentista ao longo da segunda metade do século XX. Interessado na
rearticulação de exercícios de poder operada pelas atuais sociedades de controle
(Deleuze, 1992; 2014), Siqueira analisa a instalação de tecnologias de monitoramento
em escala planetária, baseadas no acúmulo técnico e científico obtido a partir dos
empreendimentos espaciais realizados durante a Guerra Fria.
Proveniente da pesquisa espacial e voltado à perfectibilidade da ofensiva
bélica ao inimigo externo, o GPS era agora dirigido a alvos internos, trazendo consigo
a reconfiguração diagramática das táticas de controle do crime, orientada pelos
objetivos militares de identificação, traçabilidade e perseguição à distância. Precisão e
mobilidade passavam a constituir atributos essenciais de um controle penal
desterritorializado e munido de tecnologias siderais. As qualidades ilimitadas dos
sistemas de 2a geração tornavam-se mais um atrativo do dispositivo, que já havia
iniciado sua deflagração pelo planeta, impulsionada pelas empresas interessadas na
abertura dos promissores mercados da Europa, América do Sul e Oceania.
Ainda no final dos anos 1980, após a implementação do monitoramento
eletrônico no Canadá (1987), a Inglaterra (1988) iniciou seus próprios programas de
rastreamento, combinados ao regime de probation. Na década seguinte, a Suécia
(1994), Austrália (1994), Holanda (1995), Espanha (1996), França (1997), Argentina
(1997) Bélgica (1998) e Nova Zelândia (1999) desenvolveram projetos-piloto que se
consolidariam ao longo dos anos 2000 (Kaluszynski & Froment, 2003; Leal, 2011;
Nellis, Beyens & Kaminski, 2013). Os diversos modelos de aplicação variavam
conforme as orientações políticas dos poderes executivos, legislativos e judiciários de
cada país. Os níveis de participação da iniciativa privada na administração e
operacionalização da medida também diferiam de acordo com os Estados nacionais.
A Inglaterra concedeu amplos poderes de atuação às empresas, que além de
fornecerem equipamentos, passavam a ser as principais responsáveis pela gestão das
centrais de monitoramento (Paterson, 2013). Nos casos da França, Holanda e Suécia,
os agentes privados desenvolviam os aparelhos, mas as centrais permaneceram sob
administração estatal (Lévy, 2013; Nellis, 2014).
A Argentina foi o primeiro país latino-americano a implementar o
monitoramento eletrônico, tornando-se, pouco tempo depois, um dos parceiros de
137
autoridades brasileiras que realizaram visitas técnicas ao país vizinho antes de
implementarem a medida. A empresa israelense Elmotech, uma das mais expressivas
do ramo, atuava na província de Buenos Aires fornecendo equipamentos e operando a
central de monitoramento que mais tarde seria utilizada em alguns dos projetos piloto
realizados no estado de Minas Gerais (Maciel, 2014).
Na década de 2000, o dispositivo se estendeu a outros países europeus, se
espalhou pela América Latina e chegou à Ásia, sendo adotado na Alemanha (2000),
Itália (2001), Portugal (2002), México (2003), Israel (2005), Dinamarca (2005), Chile
(2005), Colômbia (2005), Panamá (2005), República Dominicana (2005), Tailândia
(2007) Noruega (2008), Polônia (2009), Bulgária (2009) e Coréia do Sul (2009).
Em junho de 2010 – após três anos de experimentações que envolveram
projetos legislativos federais, iniciativas realizadas por empresas nacionais e
internacionais, testes efetuados por magistrados locais e autorizações
inconstitucionais ratificadas por governadores estaduais –, a medida foi legalmente
autorizada pela primeira vez no Brasil. Sua incorporação no ordenamento jurídico do
país fora orquestrada por um conjunto de forças heterogêneas e racionalidades
ecléticas que reuniam as diferentes matrizes discursivas procedentes dos Estados
Unidos e da Europa, organizadas, contudo, em torno das urgências colocadas pelo
sistema penal brasileiro. Sua introdução no país promoveria, de um lado, a instalação
de uma nova tecnologia de controle no interior do vasto aparelhamento punitivo
nacional e, de outro, a formulação de um dispositivo próprio que absorveria as
qualidades endêmicas do complexo penitenciário brasileiro.
138
Capítulo 4
Enunciados convergentes
139
4.1. O sistema penal produtor da guerra: PCC
140
parte-se da elaboração dos projetos de lei e dos debates legislativos que se
desenvolveram em torno da medida três anos antes de sua ratificação constitucional,
concretizada em 2010 mediante a aprovação da Lei Federal no 12.258/10.
O PL no 337/07 anunciava alguns dos argumentos elaborados pelos
legisladores durante a tramitação das propostas de implementação do dispositivo.
Conforme o relator, a pertinência da medida residia no colapso do sistema carcerário
brasileiro. Os quadros de superlotação e a debilidade dos mecanismos de gestão
penitenciária haviam conduzido ao estado de “selvageria” e “animalidade” que
tomava conta dos presídios do país. Se os excedentes populacionais inviabilizavam as
possibilidades mínimas de controle prisional, um processo eficiente de redução da
população carcerária e reintegração social de apenados constituía-se como condição
da capacidade do Estado em tornar exequível a administração do parque carcerário
nacional.
À parte a linguagem burlesca, a motivação não era banal. A entrada do século
XXI havia sido marcada pelo crescimento exponencial da quantidade de pessoas
trancadas nas unidades prisionais brasileiras. De um total de 90 mil indivíduos em
1990, a população carcerária absoluta saltou para quase 233 mil no ano 2000,
chegando a 422.373 em 2007. A taxa de aprisionamento subiu de 137,1 pessoas
presas para cada 100 mil habitantes no ano 2000, para 229,6/100.000 em 2007,
quando o número de indivíduos mantidos presos além da capacidade do sistema
aproximou-se de 173 mil100. A superlotação das prisões, a debilidade ou ausência de
assistência médica e jurídica aos detentos e as condições deletérias dos
estabelecimentos prisionais teriam como resultado lógico a irrupção de rebeliões no
interior das unidades.
Entretanto, o conjunto de violências produzido pelo dispositivo carcerário não
se ateve aos perímetros circunscritos pelos muros institucionais. O ano anterior à
intensificação da produção legislativa sobre o monitoramento eletrônico seria
lembrado na história do país por uma sequência de episódios concatenados que
evidenciariam os efeitos explosivos das políticas de encarceramento em massa, para
além dos limites do edifício prisional.
No dia 12 de maio de 2006, a notória série de ações coordenadas pelo
Primeiro Comando da Capital no estado de São Paulo alarmou as autoridades e a
100
Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen> Acesso em 20 de junho de
2018.
141
imprensa em todo o Brasil ao escancarar a capacidade destrutiva de uma organização
gestada no seio do sistema carcerário. Os chamados “ataques de maio” deflagraram
uma megarrebelião em 84 unidades prisionais e mais de 300 atentados a órgãos
públicos, delegacias, bases e viaturas policiais, postos do Corpo de Bombeiros, ônibus
e agências bancárias (Adorno & Salla, 2007; Dias, 2011; Biondi, 2014; Feltran,
2018). Tratava-se da maior onda de ataques armados cuja ordem partia de dentro das
prisões. A alegada “guerra ao sistema” havia sido deflagrada pelo PCC. As ações
resultaram na morte de 52 policiais e agentes penitenciários e a contraofensiva estatal
levou a pelo menos 221 homicídios praticados pelas polícias no decorrer da semana
seguinte101 (Feltran, 2018).
As razões imediatas dos ataques estariam relacionadas à transferência de
presos para unidades do interior do estado (Adorno & Salla, 2007). Nada obstante,
seus grupos protagonistas e agentes disparadores vinham se fortalecendo
politicamente há mais de uma década, nutridos pela fabricação em larga escala de
condenados e pelas péssimas condições de encarceramento, que exigiam dos internos
a formação de redes de gestão e organização própria como premissa de sobrevivência
(Biondi, 2014). Precariedade e superlotação compunham os ingredientes básicos que
fariam do aparato carcerário um mecanismo produtor e amplificador da violência. De
instrumento corretivo, preventivo ou meramente punitivo, a prisão se convertia em
uma espécie de bomba-relógio.
Os episódios de maio de 2006 mobilizaram os Poderes Executivo, Legislativo
e Judiciário, em campanhas que apontavam para direcionamentos político-penais
variados. De um lado, procurou-se ativar uma agenda voltada à “modernização” dos
sistemas penal e penitenciário, atendendo a convenções programáticas nacionais e
internacionais vinculadas à defesa dos direitos humanos. Orientado pelos Programas
Nacionais de Direitos Humanos I e II, o Governo Federal perseguiu ações
governamentais que objetivavam aumentar a oferta de vagas no sistema prisional e
reduzir a superlotação dos presídios (Adorno & Salla, 2007), além de fomentar a
incipiente política de alternativas penais por meio da criação, em março de 2007, da
Comissão Nacional de Apoio às Penas e Medidas Alternativas (CONAPA). De outro
lado, os atentados de 2006 reanimaram os debates cíclicos sobre a redução da
101
Entidades de defesa dos direitos humanos apontam para um total de 493 homicídios no estado de
São Paulo entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, dentre os quais constam 52 policiais assassinados,
221 mortos pela polícia e 220 homicídios não esclarecidos (Feltran, 2018, p. 256).
142
maioridade penal e a aprovação de medidas de endurecimento disciplinar sobre presos
e presas. Os “ataques do PCC” desencadearam a aprovação às pressas, pelo
Congresso Nacional e pela Presidência da República, das Leis Federais no 11.464/07 e
11.466/07, as quais autorizavam, respectivamente, a restrição dos direitos de
progressão penitenciária e liberdade provisória a indivíduos acusados de crimes
hediondos, e a tipificação como falta disciplinar grave do porte e uso de telefones
celulares e radiocomunicadores no interior das prisões (Idem).
Dentre as medidas projetadas, acenderam-se as discussões parlamentares sobre
o monitoramento eletrônico como modalidade de execução penal. Os acontecimentos
de 2006 conformariam um ambiente político e cognitivo próprio à demanda e
compreensão das necessidades de estruturação de novas técnicas punitivas extra-
cárcere.
Ao longo do primeiro semestre de 2007, os projetos voltados à aprovação do
rastreamento de presos ocupariam o Parlamento, mobilizando discursos oriundos das
mais diversas matrizes penológicas. Na Câmara, quinze dias após a apresentação do
PL de Ciro Pedrosa, o Deputado Carlos Manato (PDT-ES) exibiu em plenário o PL no
510/07, destacando as potencialidades de reinserção social, economia de recursos e
maior segurança viabilizada pela supervisão eletrônica. Segundo o Deputado, a
medida propiciaria “a ressocialização dos condenados, desonerando o Estado e
garantindo a tranquilidade que nosso povo precisa nesse momento de inegável
falência do sistema penitenciário brasileiro” (PL 510/07, p. 2-3).
Na semana seguinte, mais uma proposta entraria em discussão no Congresso.
Tratava-se do PL no 641/07, redigido pelo Deputado Edio Lopes (PMDB-RR) e
apresentado à Câmara no dia 12 de abril de 2007. Nele, enfatizava-se as necessidades
de potencialização das capacidades de controle penal por parte do Estado, além da
viabilidade técnica e mercadológica do controle telemático. Conforme a justificativa
do projeto,
143
impunidade. O presente projeto tem exatamente em mira solucionar
tal problema, uma vez que permite a fiscalização do condenado,
restringindo os locais onde poderá frequentar e permanecer, além de
servir como meio de exercer um controle mais eficaz sobre as
condições fixadas pelo Juízo na sentença condenatória (...). Podemos
afirmar que do ponto de vista de viabilidade tecnológica o presente
projeto é passível de execução plena, haja visto, que não só no
mercado internacional mas sobretudo no mercado nacional existem
empresas aptas para prontamente atender as necessidades impostas
pelo presente projeto” (PL 641/07, p. 4-7).
144
Motivações ressocializadoras articulavam-se a argumentos econômicos e
propósitos securitários no processo produtivo da legislação federal que autorizaria a
monitoração eletrônica de pessoas condenadas. A polivalência do dispositivo
atravessava os discursos apresentados à Câmara dos Deputados, cujo denominador
comum residia nas urgências suscitadas pela superlotação do sistema carcerário.
Todavia, os projetos que culminaram efetivamente com a aprovação legal da
monitoração eletrônica viriam de outra casa legislativa: o Senado Federal. De lá
provieram o PLS no 165/07 e o PLS no 175/07, apresentados em março de 2007 e
elaborados por parlamentares situados em posições supostamente opostas no espectro
político-institucional brasileiro, a saber, o Senador Aloízio Mercadante (PT-SP),
redator do PLS no 165/07, e o Senador Magno Malta (PR-ES), autor do PLS no
175/07.
Expoente da esquerda partidária, Aloízio Mercadante era um dos fundadores
do Partido dos Trabalhadores (PT) e sua trajetória política havia sido marcada por
atuações contra a ditadura civil-militar e papéis de relevo nos programas econômicos
do Governo Luís Inácio Lula da Silva. Magno Malta, por sua vez, pertencia ao Partido
da República (PR), sendo uma das principais lideranças da bancada evangélica no
Congresso, tradicionalmente vinculada à defesa de pautas conservadoras, tais como a
manutenção da proibição do aborto e a repressão resoluta ao narcotráfico, temas aos
quais o Senador se dedicou ao longo de sua carreira parlamentar. Apesar das
diferenças, as argumentações de ambos evidenciavam um alinhamento notável
durante a tramitação de seus respectivos projetos que visavam a aprovação do
rastreamento de presos.
Em sessão realizada no dia 25 de abril de 2007 na Comissão de Constituição e
Justiça do Senado (CCJ), Magno Malta reverberava uma antiga fórmula da vigilância
disciplinar, à qual atualizava mediante a utilização dos recursos informáticos agora
disponíveis: “(...) Um programa num computador põe uma pessoa dentro do Fórum,
uma só, na frente da tela do computador monitorando todos que estão com
monitoramento eletrônico. Uma só!” (Malta, 2007, p. 7), dizia o Senador,
reproduzindo o postulado estratégico formulado por Jeremy Bentham, que via na
economia e eficiência da política penal a medida e o princípio da correção do
delinquente (Bentham, 2008). Na mesma sessão da CCJ, Aloízio Mercadante
assinalava: “Nós estamos dando mais um passo em recuperar a disciplina, o controle
145
e ao mesmo tempo introduzir a perspectiva efetiva de recuperação dos presos
condenados pelo sistema jurídico brasileiro”. E complementava, afirmando a
importância de se criar medidas que impedissem que “organizações criminosas
contaminem e controlem o sistema prisional” (Mercadante, 2007, p. 5).
A reunião da CCJ dava início às discussões sobre as propostas de
implementação do monitoramento apresentadas ao Senado, tomando como objeto de
debate o PLS no 175/07, de Magno Malta. O texto original previa a aplicação do
rastreamento eletrônico nas ocasiões de condenação ao regime aberto e livramento
condicional. Ao final daquele dia, o PLS de Mercadante seria apensado ao de Magno
Malta, incorporando a possibilidade de monitoramento de saídas temporárias no
regime semiaberto. Dessa forma, a proposta aprovada pela Comissão previu a
autorização da monitoração eletrônica nos casos de cumprimento de pena em regime
aberto, livramento condicional e saída temporária no regime semiaberto.
O texto recebeu o parecer do Senador Demóstenes Torres, filiado ao Partido
Democratas (DEM-GO) e então presidente da CCJ. Em seu parecer, Demóstenes
destacava os aspectos modernizadores das novas tecnologias de rastreamento e
apoiava-se no fato da medida ser adotada em países tomados como referência em
matéria de política penal:
146
possibilidades técnicas dos dispositivos de monitoramento, adaptando as linhas de
argumentação que haviam circulado nos parlamentos europeus e estadunidenses,
baseadas em um pragmatismo tecnológico supostamente neutro do ponto de vista
político (Kaluszynski & Froment, 2003).
Do Senado, o PLS no 175/07 foi enviado à Câmara para apreciação e votação
dos deputados. Em sessão ordinária realizada em 14 de maio de 2008, o Deputado
Flavio Dino, membro do Partido Comunista do Brasil (PCdoB-MA), abria a discussão
na Câmara em favor da matéria:
Sr. Presidente, nobres pares, este projeto é daqueles que têm a aptidão
de unir a Casa, porque se trata de matéria já muito debatida, seja na
Câmara, seja no Senado Federal, relativa ao chamado rastreamento
ou monitoramento eletrônico de presos. (...) Os efeitos práticos do
projeto encontram-se em 3 planos fundamentais. O primeiro deles é
que nós teremos a possibilidade de, hoje, esses benefícios, que são
baseados apenas no princípio da confiança, serem acompanhados pelo
Estado, mediante esse monitoramento eletrônico. Hoje, portanto, nós
não temos nenhuma fiscalização, ou quase nenhuma fiscalização. Com
o projeto, teremos o acompanhamento no caso desses benefícios. (...)
Então, o segundo ponto positivo, Sr. Presidente, que gostaria de
destacar, é a possibilidade de estimularmos essas medidas alternativas
para que possamos contribuir para a diminuição da superpopulação
carcerária. O terceiro ponto positivo diz respeito aos impactos fiscais
da medida. Nós sabemos que cada vaga no sistema penitenciário
custará 3 vezes mais do que esse dispositivo eletrônico que não será
obrigatório, mas permitido ao juiz determiná-lo no exame de cada
caso concreto. Concluo dizendo aos ilustres Parlamentares que aqui
estão, Deputados e Deputadas, que este projeto é compatível com os
direitos humanos, viabiliza um regime mais favorável de execução da
pena, estimula medidas alternativas, ajuda a descomprimir o sistema
penitenciário e diminui os custos da administração pública com o
cumprimento da pena (Dino, 2008, p. 361).
147
públicos com o sistema penal. Modulando-se a tônica dos discursos, eram estes os
pontos fundamentais apresentados pelos parlamentares.
Desse modo, ao lado de Ciro Pedrosa, Carlos Manato, Edio Lopes e Beto
Mansur, o Deputado Flavio Dino assumiu um papel de relevância na aprovação da
medida pela Câmara. Da direita à esquerda, um relativo consenso se estabelecia no
Congresso Nacional sobre a pertinência e importância do dispositivo, fosse por suas
capacidades de controle, fosse por suas vantagens econômicas, fosse ainda por suas
qualidades humanitárias. Raras foram as vozes que apresentaram maiores
problematizações aos projetos de lei exibidos no Senado ou na Câmara sobre a
matéria. O único questionamento expressivo viria da Deputada Luciana Genro, então
integrante do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL-RS). Naquela mesma sessão de
maio de 2008, a Deputada apresentou seu contraponto:
148
a matéria retornou ao Senado, incluindo, além do monitoramento de pessoas em
regime aberto, livramento condicional e regime semiaberto, as hipóteses de
fiscalização de indivíduos submetidos a penas restritivas de direito e suspensão
condicional da pena.
Em 1 de abril de 2009, uma nova sessão se realizava na Comissão de
Constituição e Justiça do Senado para debater o tema. Desta vez, a discussão seria
breve. Parlamentares como Romeu Tuma, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB-SP)
e Serys Slhessarenko, do Partido dos Trabalhadores (PT-RS), apresentaram de
maneira sucinta suas manifestações de apoio ao projeto de lei. O Senado parecia
convencido de que a proposta era suficientemente sólida e sua autorização era não
apenas oportuna, mas urgente. Sem maiores alterações, Demóstenes Torres emitiu um
novo parecer e o projeto seguiu enfim para sanção presidencial.
No dia 15 de junho de 2010, a Lei Ordinária no 12.258/10 foi aprovada pelo
Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, com um conjunto de vetos que
excluíam as possibilidades de aplicação da monitoração eletrônica nos casos de
regime aberto, penas restritivas de direito, livramento condicional e suspensão
condicional da pena. Permaneceram, portanto, as previsões de controle eletrônico das
condições estabelecidas pelo juiz quando da determinação de prisão domiciliar ou
saída temporária no regime semiaberto (Art. 146-B). Os vetos seriam justificados da
seguinte forma pelo Ministério da Justiça:
149
possibilidade de rastrear indivíduos nas ocasiões de saída temporária no regime
semiaberto faria pouco ou nenhum sentido, uma vez que estabelecia um controle
adicional sobre pessoas que já se encontrariam em situação de progressão de regime.
De qualquer maneira, a produção legislativa que precedeu a autorização do
monitoramento eletrônico no âmbito federal conciliou um conjunto de atores e linhas
de argumentação tomados, a priori, como antagônicos ou contraditórios entre si. De
políticos vinculados à chamada bancada da bala – policiais, ex-policiais ou
parlamentares dedicados à defesa do armamento civil e ao endurecimento das
políticas penais e de segurança pública – a legisladores ligados a pautas humanitárias,
diversas foram as vozes que articularam o processo de formulação da lei que
aprovaria a monitoração de presos no país. A tradicional distinção política entre
direita e esquerda seria pouco operativa na identificação dos agentes encarregados da
produção legal que se realizou em torno da medida. Mais do que isso, desenvolveu-se
ao redor do tema um alinhamento transversal das práticas político-discursivas em
favor do monitoramento, equiparando posições variadas.
No plano dos enunciados, os debates parlamentares promoveram uma
convergência de argumentos heterodoxos que faziam coexistir pressupostos teóricos
ou ideológicos provenientes de diferentes escolas e princípios criminológicos. As
atividades legislativas dedicadas ao tema evidenciaram a versatilidade de uma
racionalidade penal pendular por excelência, que oscilava entre a demanda pelo
fortalecimento das formas de fiscalização do cumprimento de medidas em meio
aberto, de um lado, e a maior eficiência no processo de recuperação de presos, de
outro. Tais frentes discursivas se entrelaçaram umas às outras e constituíram o coro
eclético em favor da implementação do controle eletrônico de presos no país.
Atravessando o emaranhado discursivo que tecia a concepção legal da medida,
a premência do desenvolvimento de técnicas substitutas ao cárcere constituía-se como
elemento comum às justificativas que compunham as propostas apresentadas. A
frequência de rebeliões revelava a fragilidade da prisão e a necessidade de
reformulação do sistema penal, mediada pela implementação de um dispositivo que
favoreceria, a um só tempo, a efetiva ressocialização dos condenados e a economia de
recursos destinados ao sistema prisional. De uma certa maneira, o argumento fundado
na utilidade, eficiência e otimização das práticas penais, promovia o cruzamento entre
enunciados econômicos, securitários e reabilitadores que ancoravam a aprovação da
monitoração eletrônica. A reintegração social do criminoso era então traduzida em
150
termos de eficácia utilitária e percebida como urgência, deflagrada pela explosão
bélica e demográfica do sistema carcerário brasileiro, escancarada, por sua vez, pelo
fortalecimento do chamado crime organizado.
Não se pretende afirmar, com isso, que os ataques do PCC teriam,
isoladamente, motivado as autoridades legislativas federais a introduzirem no país os
dispositivos de monitoramento eletrônico. Somente uma análise reducionista e
simplificadora dos processos histórico-políticos poderia levar a uma conclusão a tal
ponto automática. Uma série de outros fatores relacionados à crença entusiasta na
tecnologia e aos interesses da indústria da punição em desenvolvimento devem ser
considerados e serão assinalados nos próximos movimentos deste capítulo.
Entretanto, as justificativas apresentadas nos projetos de lei e a sincronia cronológica
de suas elaborações com os episódios de 2006 protagonizados pelo PCC sinalizam a
relevância da sequência de rebeliões no processo de implementação legal da medida.
Tampouco seria fortuito o fato de que as primeiras propostas voltadas à
autorização do monitoramento eletrônico, elaboradas ainda no ano de 2001, também
haviam sido apresentadas pouco tempo depois da irrupção de levantes acionados pelo
PCC, quando a primeira megarrebelião coordenada pela facção paulista, em 28 de
fevereiro de 2001, mobilizou 29 unidades prisionais em 19 diferentes municípios do
estado de São Paulo (Biondi, 2011; Feltran, 2018). Foi a partir desse momento que se
produziram os PLs no 4.342/01 e 4.834/01, apresentados, respectivamente, em março
e junho de 2001.
Dessa forma, os cenários de calamidade notabilizados pelas rebeliões
prisionais e seus transbordamentos pelo território urbano constituíram fatores de
fundamental importância para a propulsão e intensificação das discussões sobre a
necessidade de reforma do sistema penal brasileiro, dentre as quais a monitoração
eletrônica seria uma das principais estratégias. As campanhas em favor do fomento a
penas alternativas ganhariam corpo a partir daí, conduzidas por entidades
governamentais e representações da sociedade civil organizada. Nessa direção se
desenvolveram, por exemplo, as diretrizes do Programa Nacional de Direitos
Humanos III, relativas à “modernização da política de execução penal”, elaboradas
151
pela Presidência da República com o apoio e participação de uma lista extensa de
Organizações Não Governamentais102 (Campello, 2013).
A reação política às fraturas do sistema carcerário seria concebida, portanto,
no interior dos contornos político-programáticos estabelecidos pelo próprio sistema
penal, reposicionando o projeto reformista como horizonte invariável das estratégias
de solução de conflitos, e apontando para o fato de que as revoltas prisionais e
manifestações de resistência seriam elas também importantes agentes produtores de
política pública.
102
Ver: Programa Nacional de Direitos III (Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/dados/pp/a_pdf/pndh3_programa_nacional_direitos_humanos_3.pdf - Acesso
em 10 de junho de 2019)
152
4.2. Guarabira
Estão no meio de lugar nenhum e não sabem nem em que região está
localizada a Colônia.
Do lado de fora, além da vastidão e dos espaços vazios, existe o
silêncio empurrando-os para o nada.
(Ana Paula Maia, Assim na terra como debaixo da terra)
153
com o jovem Percival Henriques, então estudante universitário. Isidro ministrava seu
curso na Faculdade de Direito da Universidade Estadual da Paraíba, quando o rapaz
sugeriu lhe apresentar o empresário João Pinheiro, dono de uma companhia de
rastreamento de cargas em Campina Grande, para que elaborassem um sistema de
monitoramento remoto de condenados.
Conforme seu relato,
154
acordo com Isidro, pelo “maior conforto aos reeducandos e atenção ao princípio da
dignidade humana” (Idem, p. 203).
No ano seguinte, a Insiel elaborou um segundo sistema, semelhante aos
mecanismos utilizados em países europeus, ao qual denominou de tornozeleira
domiciliar. O equipamento era especificamente voltado à supervisão de regime
domiciliar (ou monitoramento fixo), no qual o condenado ou acusado é obrigado a
permanecer em sua casa, podendo se ausentar mediante autorização judicial. Um raio
de até 400 metros de sua residência poderia ser mantido como margem de
flexibilidade. Na ocasião, o sistema foi testado em uma mulher que havia regredido
do regime aberto e passaria a cumprir pena em casa sob controle eletrônico (Idem).
A iniciativa do juiz consistia em desenvolver no Brasil um mecanismo
tecnopenal equivalente a dispositivos já difundidos em países do norte global, que
traziam consigo a expectativa de contenção dos níveis de encarceramento, mediante o
uso de tecnologias de localização remota. A primeira década do século assistia ao
transbordamento dos estabelecimentos prisionais em diversas partes do planeta, e a
possibilidade de efetuar um controle a céu aberto sobre indivíduos condenados pela
justiça criminal parecia imbuída de motivos autoexplicativos, particularmente no país
cuja população carcerária absoluta ocupava à época o quarto posto internacional.
Balão de ensaio das práticas de controle eletrônico de presos no Brasil, o
projeto implementado no improvável município de Guarabira ganhou visibilidade em
expressivos meios de comunicação do país104 e desdobrou-se em uma série de
intercâmbios entre os seus idealizadores e membros do Congresso Nacional. A
experiência era realizada no rescaldo das rebeliões articuladas pelo PCC em maio de
2006 e o Poder Legislativo empenhava-se na produção de respostas aos problemas
desencadeados pela superlotação do sistema prisional. Os debates a respeito do
monitoramento eletrônico estavam em curso no Parlamento, mediante a tramitação
dos PLs no 337/07, 641/07, 510/07 e 1.440/07, e dos PLSs no 165/07 e 175/07.
Bruno Isidro foi convidado a relatar sua experiência piloto à Câmara dos
Deputados, no âmbito da CPI do Sistema Carcerário, instalada em agosto de 2007
com o propósito de investigar as causas e apontar soluções para a recorrência de
104
TV Globo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=J0X7f1nWj0U (Último acesso em 7
de novembro de 2018); TV Paraíba, filial da Rede Globo. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=rGrSyC0IgbU (Último acesso em 7 de novembro de 2018);
ConJur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2007-jul-
13/presos_testam_tornozeleira_eletronica_paraiba (Último acesso em 7 de novembro de 2018).
155
rebeliões, óbitos não esclarecidos, torturas, abusos sexuais, corrupção de agentes
públicos, fortalecimento de “organizações criminosas”, elevação das taxas de
reincidência, altos custos de manutenção de presos, dentre outros componentes da
cena penitenciária brasileira (Câmara dos Deputados, 2009). Em sessão de audiência
pública sobre o uso de tecnologias voltadas ao sistema prisional, realizada em 23 de
abril de 2008 em meio à CPI, o magistrado expôs aos parlamentares os procedimentos
de seu projeto, manifestando seus anseios de que o Congresso não tardasse a aprovar
a legislação que autorizaria o controle eletrônico penal no Brasil: “Que venha a lei
federal, porque unifica o procedimento em um país como o nosso, um país
continental” (Idem, p. 66).
Isidro era um dos principais personagens que conduziam o processo de
implementação do monitoramento no país, circulando por fóruns legislativos e
judiciários em defesa da medida. Pioneiro e entusiasta de um “direito penal do
futuro”, o magistrado seguiu com sua campanha, sendo recebido também no Senado
Federal pelos então senadores Aloizio Mercadante e Demóstenes Torres, interessados
na descrição e resultados preliminares de seu projeto. Ambos eram responsáveis pelas
propostas que seguiam em tramitação no Senado. A partir da experiência paraibana,
iniciou-se a “corrida entre os principais estados da federação que disputavam para
ver qual seria o primeiro a lançar e executar o monitoramento eletrônico” (Isidro,
2009, p. 221).
Ainda no ano de 2007, o Departamento de Inteligência da Secretaria de
Administração Penitenciária do Estado de São Paulo (DIASP-SAP) realizou testes
com equipamentos de rastreamento georreferenciado, avaliados por especialistas em
informática, eletrônica e segurança. No ano seguinte, o então governador José Serra
sancionaria a Lei Estadual No 12.906/08, autorizando o controle eletrônico de pessoas
no estado de São Paulo. A lei paulista baseava-se em um projeto de lei elaborado pelo
Deputado Estadual Baleia Rossi e estabelecia a possibilidade do rastreamento de
indivíduos no regime semiaberto. A gestão e operação da medida ficaria sob a
responsabilidade da SAP (Campello, 2013; 2014).
Também em 2007, o governador de Minas Gerais, Aécio Neves, e o secretário
de Estado da Defesa Social, Mauricio Campos Junior, viajaram a Israel com o intuito
de conhecer de perto o sistema de rastreamento de presos utilizado no país e
estabelecer contato com a empresa Elmotech, uma das líderes mundiais do ramo. No
ano seguinte, representantes dos poderes Executivo e Judiciário e do Ministério
156
Público de Minas Gerais realizaram visita técnica à Argentina, primeiro país da
América do Sul a utilizar a monitoração eletrônica. Em abril de 2008, iniciou-se um
período experimental no estado no âmbito do “Projeto Piloto de Monitoramento
Eletrônico de Pessoas Condenadas”. Na ocasião, utilizou-se uma das Centrais de
Monitoramento instaladas na Argentina, além de uma central localizada em Belo
Horizonte (Maciel, 2014).
No estado de Alagoas, as experiências de monitoramento deram-se a partir de
agosto de 2008, quando a Intendência Geral do Sistema Penitenciário (IGESP)
realizou testes em três indivíduos submetidos ao regime semiaberto e um agente
penitenciário, monitorados 24 horas por dia via GPS. Na ocasião, a imprensa local
noticiou que a empresa Monitore Vigilância Eletrônica, com sede no Distrito Federal,
ofereceria os serviços de forma gratuita em um período de testes, para que o Estado
conhecesse, na prática, “as vantagens do serviço e a qualidade do equipamento”105.
O Intendente-Geral do Sistema Penitenciário de Alagoas, tenente-coronel Luiz
Bugarin, afirmava que o equipamento era uma “mudança de conceito, porque muda a
forma de controle dos reeducandos em regime semiaberto, mas de uma forma mais
humana”106. A IGESP celebrava, ainda, uma economia de mais de 50% com o uso do
mecanismo (Campello, 2013).
No mesmo mês, em Pernambuco, quatro presos do regime semiaberto da
Penitenciária Agroindustrial São João, na Ilha de Itamaracá, e cinco presas da Colônia
Penal Feminina do Recife, participaram do projeto-piloto implementado pela
Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos (SEDSDH). A experiência
durou 60 dias e contou com tecnologia desenvolvida em parceria pela empresa
estadunidense Security Alert e a pernambucana Tron Controles Elétricos (Idem).
Em novembro de 2008, o Rio Grande do Sul publicou a Lei 13.044/08,
autorizando a aplicação do monitoramento eletrônico, direcionado à fiscalização do
cumprimento de prisão domiciliar, proibição de frequentar determinados lugares,
livramento condicional, progressão para os regimes semi-aberto e aberto, autorização
para saída temporária do estabelecimento penal ou prestação de trabalho externo (Rio
Grande do Sul, 2008, Art. 1o). O projeto-piloto gaúcho utilizou quatro presos
voluntários submetidos ao regime semiaberto, que retornavam às suas residências nos
105
Alagoas 24 horas. AL testa monitoramento eletrônico de presos. Disponível em:
http://www.alagoas24horas.com.br/conteudo/index.asp?vEditoria=Pol%C3%83%C6%92%C3%82%C
2%ADcia&vCod=51634 (Acesso em 16 de julho de 2018).
106
Idem.
157
finais de semana, permanecendo obrigados a recolher-se à casa de albergado durante a
noite nos dias de semana (Oliveira & Azevedo, 2011).
O estado de Goiás inaugurou seus próprios testes com rastreamento remoto de
apenados em fevereiro de 2009. As experiências duraram 30 dias, durante os quais, de
início, 10 presos em regimes semiaberto e aberto receberam o equipamento, cuja
tecnologia também era importada de Israel (Conte, 2010). O monitoramento era feito
por servidores públicos, auxiliados por computadores instalados na Secretaria de
Segurança Pública e na Vara de Execuções Penais. Além disso, outros servidores
realizaram o acompanhamento externo para averiguação do cumprimento das
condições judiciais determinadas (Corrêa Jr., 2012).
No Rio de Janeiro, um projeto de lei a respeito do tema, de autoria da
Deputada Estadual Cidinha Campos (PDT-RJ), também tramitou na Assembléia
Legislativa e, no dia 3 de setembro de 2009, foi sancionada pelo governador Sérgio
Cabral (PMDB-RJ) a Lei Estadual No 5.530/09. O documento regulamentava o
monitoramento de pessoas que cumpriam pena nos regimes semiaberto e aberto. A lei
fluminense seria a última legislação estadual a autorizar a medida antes de sua
aprovação em âmbito nacional. Paralela às experiências efetuadas nos estados da
Paraíba, São Paulo, Minas Gerais, Alagoas, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Goiás,
a iniciativa integrava o conjunto de experiências de monitoramento que antecederam a
lei federal.
Sendo assim, não se pode estabelecer um ponto originário de surgimento ou
introdução dos dispositivos de controle eletrônico de presos e presas no Brasil, mas
sim uma série de experiências localizadas, conectadas a discursos de fortalecimento
do controle penal, otimização dos gastos públicos e humanização das penas. A
introdução da medida se deu no país, a partir de 2007, pela prática de magistrados e
secretarias estaduais, junto a empresas de segurança privada, telecomunicações,
tecnologia da informação ou segurança automotiva. Posteriormente, realizaram-se
implementações da medida formalizadas por legisladores estaduais e sancionadas
pelos respectivos poderes executivos.
Observe-se, contudo, que as leis aprovadas em âmbito estadual em São Paulo,
Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro entre 2008 e 2009 eram todas elas
inconstitucionais, uma vez que o Art. 22, I da Constituição Federal de 1988 determina
que “compete privativamente à União legislar sobre direito penal”. Isso significa
158
que, constitucionalmente, somente o legislador federal pode sancionar leis relativas à
execução penal.
O debate em torno da inconstitucionalidade das leis estaduais mobilizou
juristas e passou pela argumentação de governadores e deputados que se ancoraram
no Art. 24, I da Constituição Federal, o qual estabelece que assuntos penitenciários
podem ser legislados de maneira concorrente entre estados e a União. Dessa forma, o
Art. 24, I da CF concederia supostamente aos estados a possibilidade de instituir e
regulamentar o monitoramento eletrônico, se este fosse considerado matéria exclusiva
do Direito Penitenciário. A discussão confrontava os Artigos 22, I e 24, I, da CF,
levantando a dúvida sobre se a medida seria juridicamente caracterizada como
exclusiva de Direito Penitenciário, ou requereria alteração na Lei de Execuções
Penais, competente à União. Considerou-se, por fim, que o monitoramento de presos
não se restringe ao Direito Penitenciário, abrangendo questões relativas ao Direito
Penal, já que possui, conforme sublinhado por Pierpaolo Bottini, “natureza penal de
restrição da intimidade (...) tanto daquele que está no sistema prisional quanto
daquele situado fora dele, como, por exemplo, aqueles submetidos a penas restritivas
de direito ou a prisão domiciliar” (Bottini, 2008, p. 392).
Entretanto, a medida já era prática introduzida no país, fosse a título de testes,
fosse por meio das leis ratificadas inconstitucionalmente nas Assembléias Legislativas
estaduais. Em junho de 2010, a Lei Federal no 12.258/10 autorizaria o rastreamento de
presos e presas, sacramentando práticas que já haviam sido inauguradas, a despeito de
sua inconstitucionalidade. A Lei no 12.258/10 alterava a Lei de Execução Penal (Lei
Federal no 7.210/84) e estabelecia que caberia ao Judiciário a determinação da
monitoração eletrônica nos casos de cumprimento de pena em regime semiaberto ou
prisão domiciliar. No ano seguinte, a aprovação da Lei Federal no 12.403/11 alterou o
Código de Processo Penal (Decreto-Lei no 3.689/41), incluindo o monitoramento
dentre as medidas cautelares diversas da prisão (Art. 319, IX).
Com a aprovação da medida, o controle eletrônico seria então lançado e
anunciado como prática econômica, eficiente, modernizadora e favorável à
reintegração social de apenados. Eram estas as vantagens do dispositivo atribuídas
pelo juiz Bruno Isidro ao projeto por ele concebido:
159
necessidades dos atuais tempos, pois permite uma constante vigilância
de modo econômico e com possibilidade de não perder o convívio em
sociedade, o que facilita a ressocialização e consequentemente pode
vir a diminuir a reincidência no crime (Isidro, 2017, p. 355).
Na ocasião de sua experiência piloto, o objetivo ressocializador da
monitoração eletrônica contribuiu para sua aceitação tanto no Poder Legislativo
quanto em meio a entidades voltadas ao fomento e valorização de práticas penais
inovadoras e socialmente responsáveis. Durante os primeiros anos de consolidação da
política de monitoramento no país, Bruno Isidro seria premiado por sua iniciativa, que
estimulava o “engajamento da sociedade no combate à violência” (REF).
Mais recentemente, o juiz passou a promover em relatos e entrevistas a ideia
de que o uso de tornozeleiras haveria de ser suplantado agora pela utilização de
microchips subcutâneos implantados por via cirúrgica na camada intradérmica de
condenados ou suspeitos:
107
G1. Juiz que iniciou uso de tornozeleira eletrônica no país defende chips para monitorar presos.
Disponível em: https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/juiz-que-iniciou-uso-de-tornozeleira-
eletronica-no-pais-defende-chips-para-monitorar-presos.ghtml. Acesso em 25 de novembro de 2018.
160
4.3. O mercado do castigo
161
Progressão Penitenciária do estado de São Paulo e nas Casas de Albergado do Rio de
Janeiro.
Mas Kropotkin prosseguia: “Chaminés fumegantes, quatro delas enormes,
máquinas a vapor, uma ou duas turbinas e o monótono ruído de engrenagens em
funcionamento: isso é o que se vê e se ouve no momento” (Idem). Tratava-se da
descrição da Prisão Militar de Brest, situada na Bretanha, norte da França. Os
sistemas penal e econômico já se alimentavam mutuamente, fosse pela produção
industrial a partir da mão de obra prisional, fosse pela repressão e contenção das
sublevações operárias contra os regimes de exploração do trabalho fabril (Idem).
Algumas décadas depois de Kropotkin, Georg Rusche e Otto Kirchheimer
(2004) desdobrariam e aprofundariam as análises a respeito das correlações entre as
práticas punitivas e a estrutura sócio-econômica européia e estadunidense durante a
Era Moderna. Afastando-se das teorizações que viam o castigo como mera
consequência jurídica do crime, Rusche e Kirchheimer investigam a história da
punição no Ocidente, indagando quais os motivos que fazem com que determinadas
técnicas penais sejam adotadas ou rejeitadas em uma dada configuração social. Em
um mundo que oscilava entre a livre concorrência e o capitalismo monopolista, a
regulação do mercado de trabalho e a absorção de um crescente exército industrial de
reserva, gerado pelas transformações do sistema produtivo, passavam a depender de
instituições penais aptas a disciplinar o trabalhador desviado e a equacionar a balança
de oferta e demanda da força de trabalho (Idem). Estabelecia-se então a recíproca
cumplicidade entre a máquina carcerária e o aparato industrial.
Hoje, seria difícil fazer crer nos sistemas penais como instrumento econômico-
político de formação e adestramento de mão de obra obediente, tal como nos séculos
XVIII e XIX. No Brasil, apesar das atividades laborais remanescentes em certas
unidades prisionais – e dos enunciados retóricos que reafirmam o trabalho como
método de penitência –, a ausência de emprego e o excedente populacional do sistema
carcerário conjuram a viabilidade de se fazer da prisão um simulacro da oficina, da
empresa ou da fábrica. Uma série de atividades econômicas se articulam com e a
partir da prisão, mas que não podem ser resumidas à conformação de uma força
produtiva dócil e útil, à semelhança daquela encontrada por Rusche e Kirchheimer e
analisada posteriormente por Michel Foucault (1987). A delinquência fabricada pelo
cárcere escapou ao seu programa e capacidade de domínio.
162
Entretanto, a participação de agências e agentes econômicos se faz cada vez
mais presente nos projetos de reformulação das estratégias penais. Enquanto empresas
privadas se ocupam de atividades básicas do exercício punitivo (edificação de
estabelecimentos penitenciários, fornecimento de serviços de alimentação, equipes de
segurança prisional, funções administrativas, etc.), entidades estatais mobilizam não
apenas uma gramática econômico-empresarial como eixo orientador da política penal,
mas assumem funções práticas de negociação comercial e financeira dos programas
de gestão do crime, fazendo das esferas securitárias e penitenciárias um terreno
profícuo de reprodução do capital (Minhoto, 1997; 2002; Pastoral Carcerária, 2014;
Aviram, 2016). É este cruzamento mútuo entre os domínios penal e econômico que se
compreende aqui como um processo de governamentalização do sistema penal,
característico da governamentalidade neoliberal e de sua penalidade correspondente
(Foucault, 1979; 2008a). Autoridades públicas se passam por empresários e
empresários se passam por autoridades públicas no processo produtivo das práticas
punitivas. A própria lei penal passa a ser elaborada e instituída a partir desse
intercâmbio (Aviram, 2016).
O desenvolvimento e deflagração de tecnologias securitárias provoca
atualmente um novo impulso a esse processo, oferecendo à indústria de eletrônicos
um campo fértil de atuação. Se de um lado, a pulverização de aparatos eletrônicos
voltados ao ramo prisional converte presos e presas em “consumidores cativos da
indústria do controle do crime” (Christie, 1998), de outro, sua disponibilização ao
consumo estatal ativa e alimenta o imaginário fetichista de legisladores em torno dos
sistemas eletrônicos de segurança (Paterson, 2013). Tecnologia de ponta e otimização
de custos demonstram seus próprios poderes de fascinação.
Revisitando ainda Piotr Kropotkin, a economia de recursos viabilizada pela
produção de prisioneiros autômatos sob a intervenção de estímulos tecnológicos é
reposicionada no horizonte distópico dos atuais operadores de um mercado em
ascensão e nutrida por um complexo industrial florescente, cujo produto negociado é
a inflição do castigo. Todavia, a inventividade do mercado já não parece concentrar-
se na potencialização das capacidades produtivas do trabalho prisional, dedicando-se,
antes disso, aos procedimentos biotecnológicos de administração da superpopulação
carcerária, seja pela criação de métodos de supervisão penal a céu aberto, seja pelas
tentativas de aniquilação calculada das possibilidades de revolta no ambiente
prisional.
163
*
164
Segundo Saba, o equipamento era inequívoco: “Você trava e o nome da queda do ser
humano ao solo é ‘tampo de privada’, você enrijece e vai para o chão” (Idem, p. 19).
O armamento de eletrochoque atuava no sistema nervoso, paralisando seu alvo em
frações de segundos.
Na sequência de sua fala, Antônio Carlos Magalhães Soares, Diretor de
Relações Institucionais da Condor Tecnologias Não Letais, apresentou ao plenário
uma série de artefatos concebidos para contenção de distúrbios:
165
(...) A natureza dos conflitos mudou. Hoje, esses conflitos são travados
nas cidades. As guerras no passado eram travadas em locais
definidos, em campos de batalha. Hoje, o que se vê é que a guerra nas
cidades e essa situação exige novas doutrinas e tecnologias
compatíveis com essa realidade. Na segurança pública, a evolução do
crime expõe os agentes da lei a graves riscos, exigindo treinamento,
capacitação profissional e recursos materiais adequados para agirem
com eficácia e de forma humanitária, o que se consegue
primordialmente pelo emprego de tecnologias não letais. Existe uma
exigência mundial nessa questão humanitária, no trato com o
delinquente, com o criminoso, não só em ações de segurança pública
como na guerra também (Idem, p. 23).
166
Boa tarde. Parabenizo esta Casa pela iniciativa (...). Minha empresa
chama-se Spacecom, a empresa é voltada ao desenvolvimento de
produtos eletrônicos e também temos uma parceria com o Instituto
para o Desenvolvimento de Tecnologia – LACTEC, do Paraná. Bom, a
Spacecom é uma empresa 100% nacional, nós somos a única
fabricante no Brasil de equipamentos de monitoramento eletrônico de
preso (...). Nós denominamos nosso sistema de SAC-24, ou seja,
Sistema de Acompanhamento de Custódia 24 horas. Ele é um sistema
que visa a fazer a monitoração dos presos com a utilização de
tornozeleiras eletrônicas (Câmara dos Deputados, 2008, 52).
167
na minha cintura e uma tornozeleira no meu pé. A minha mulher está
sempre me monitorando. (Risos). (...) Nós resolvemos investir nessa
tecnologia nacional porque nós detemos a tecnologia e queremos
contribuir para esse problema aqui no Brasil” (Câmara dos
Deputados, 2008, p. 52-54).
108
ConJur. MJ vai investigar câmeras piratas em presídios. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2012-jan-13/ministerio-justica-investigar-cameras-piratas-presidios-
federais - Acesso em 23 de novembro de 2017).
168
A audiência na Câmara prosseguia. Após a apresentação de Bloomfield, era a
vez da concorrência. O empresário Hebert Saul de Souza, Diretor Técnico da
STOP/BR, exibiu aos deputados o mecanismo de rastreamento desenvolvido pela
companhia que representava:
(...) o produto que a gente tem pra apresentar, como diz o Dr. Sávio, é
um produto de monitoramento eletrônico para presos, utiliza somente
uma peça, a gente só está trabalhando com uma peça única. Se vocês
quiserem dar uma olhadinha (...). E a STOP/BR já é uma empresa que
já está situada no Brasil (...). A gente usa um software chamado de
Very Tracks, que já está rodando em uma versão em português. A
nossa sede é em Houston, no Texas; atuação em todo o território
brasileiro para a América do Sul. (...) Bom, tecnologia patenteada; a
implantação é muito simples, é um produto único, de um único device,
uma única peça (...) Não há o falso alarme da braçadeira que sumiu,
que acontece com alguns dispositivos de 2 peças. E é um
revolucionário software de GPS. (...) Aí a gente tem um breve
comentário sobre onde podem ser usados, não é? Condenados de
livramento condicional, infratores de regime semi-aberto, tal como já
foi até mencionado pelo Deputado. Pessoas que estão em julgamento
não deveriam estar fazendo a escola, o mestrado, o doutorado do
crime (...). Então, acho que esse lado social que todos nós já
comentamos, que é muito importante, é o fato principal a ser
evidenciado nisso (Câmara dos Deputados, 2008, pp. 68-71).
169
A esse respeito, a assertiva difundida de que os mecanismos de
monitoramento eletrônico permitiriam uma redução dos gastos representados pelo
sistema penal requer uma ou duas ressalvas. Em primeiro lugar, os dados referentes
aos custos dos sistemas de monitoramento são demasiado imprecisos, na medida em
que as pesquisas de avaliação de impacto econômico apresentam resultados
consideravelmente disparatados109, ao levar em consideração de maneira pouco
rigorosa ou uniforme os gastos necessários com profissionais (técnicos de
monitoramento, assistentes sociais, psicólogos, agentes penitenciários) e manutenção
das estruturas físicas (centrais de monitoramento, centrais de alternativas penais,
núcleos especializados), necessários à aplicação da medida. O cálculo restrito aos
preços dos equipamentos de monitoração é evidentemente falacioso (Lévy, 2016).
Ademais, tende-se a comparar os custos dos programas de controle eletrônico com a
média de gastos despendidos com o sistema prisional, ao passo que os primeiros
concentram-se, via de regra, na chamada “ponta leve” do sistema penal, ou seja,
indivíduos em fase de progressão de pena ou condenados a medidas penais em meio
aberto, ou ainda pessoas submetidas a medidas processuais diversas da prisão, que
requereriam estrutura menos custosa do que aquela direcionada às unidades
penitenciárias, ou prisões de segurança máxima, que elevam a média dos gastos
destinados ao setor penitenciário110. Nesse sentido, a comparação entre os custos do
monitoramento eletrônico e os gastos representados pela prisão segue o mesmo
raciocínio enganoso dos cálculos de custo de estabelecimentos prisionais privatizados
em relação às instituições estatais. Como bem observam Minhoto (1997), os modelos
privados reservam-se a presos considerados de “menor periculosidade”, que
mobilizam estrutura securitária menos rígida e, portanto, mais barata, tornando a
comparação inverossímil. A principal e derradeira observação relacionada à questão
econômica repousa sobre o fato de o monitoramento eletrônico não ser aplicado de
maneira substituta à prisão, constituindo, assim, um gasto suplementar. Investe-se na
estruturação da política de monitoração eletrônica, adicionalmente aos investimentos
na ampliação do parque carcerário.
109
Na Europa, as pesquisas de avaliação dos custos de programas de monitoramento apontam para uma
variação de 2,64 euros na Estônia a 100 euros na Noruega. Os cálculos utilizam bases diferentes,
dificultando uma avaliação fidedigna dos encargos econômicos da medida. Nos Estados Unidos, os
gastos oscilam entre 8,60 dólares e 23,66 dólares, sem que se leve em conta os custos com profissionais
envolvidos na aplicação do monitoramento (Lévy, 2016, pp. 5-7).
110
170
De todo modo, considerando a participação ativa do setor privado no processo
produtivo da lei que autoriza e regulamenta o rastreamento de condenados no Brasil,
deve-se ter em conta que o acoplamento aparentemente heterodoxo entre o discurso
correcionalista e o argumento econômico obedeceu em grande medida ao interesse
latente da indústria brasileira do controle do crime na ampliação de sua clientela. É
evidente que a preocupação manifestada pelos representantes da Spacecom e da
STOP/BR com a reintegração social dos condenados há de ser compreendida como
artifício publicitário, mais do que como compromisso a esta ou àquela escola
criminológica ou linha de interpretação das reais finalidades da pena.
Entretanto, tal composição discursiva demonstrava sua própria eficácia nos
procedimentos de construção legislativa, e a campanha pela implementação do
monitoramento eletrônico era marcada por uma transversalidade de interesses, de
enunciados e de atores, por meio da qual a preocupação fundada no cálculo de custo-
eficiência, vinculada às expectativas pela universalização do produto penal em
questão, manifestava-se de maneira indiferenciada tanto por empresários quanto por
deputados, senadores e juízes. Se o argumento social emergia nos discursos dos
fabricantes, conferindo ao agente privado função análoga à de legislador, o léxico
mercadológico não deixava de ser reproduzido tanto no Legislativo quanto no
Judiciário, convertendo as arenas jurídico-políticas em uma sorte de balcão de
negócios.
Essa “desdiferenciação funcional e radical” (Minhoto e Gonçalves, 2015)
entre os sistemas jurídico, político e econômico – alavancada pelo espraiamento
generalizado de práticas e racionalidades de governo espelhadas na forma empresa –
tem suas próprias consequências quando o bem de consumo sobre o qual se negocia é
a punição. Consequências estas que seriam menos relacionadas à deterioração das
dimensões ontológicas das esferas públicas ou privadas do que à fatídica influência
política de grupos corporativos na definição das pautas e agendas de política criminal,
desdobrada na expansão ilimitada do público consumidor da pena como condição de
lucratividade.
Sustentado, portanto, por uma economia penal cujo terreno de atuação já não
se limita à prisão – alimentando-se, antes, de sua crise permanente – o dispositivo de
monitoramento encontrou no sistema punitivo brasileiro um solo fecundo. Seus
agentes propulsores trafegavam entre os três poderes e o universo corporativo,
ordenando as condições políticas e semânticas de sua instalação. Dos debates
171
legislativos na Câmara e no Senado à sua autorização constitucional pela Presidência
da República, passando pela iniciativa de fabricantes nacionais e estrangeiros, além de
projetos-piloto conduzidos por magistrados e secretários de governo, a
implementação da medida articulou-se no país a partir das trocas e contatos
estabelecidos entre atores públicos e privados reunidos em torno das respostas que os
avanços tecnológicos ofereciam às instabilidades do sistema carcerário.
Em menos de uma década, os programas estaduais de monitoração se
estruturaram em praticamente todas as unidades federativas. O desenvolvimento da
política de monitoramento ao longo dos anos de 2010 levaria mais de 51,5 mil
pessoas a serem rastreadas pelo sistema penal brasileiro em 2017, sem que se
verifique qualquer indício de promoção dos alegados objetivos de desencarceramento
ou substituição da prisão pela punição em meio aberto. Ao largo de uma mudança de
paradigmas, a medida reposicionava a prisão como técnica central de administração
de conflitos e redimensionava as capacidades de controle por parte do Estado e de
seus parceiros privados.
Mas a consolidação do dispositivo na política penal e penitenciária brasileira
não se realizou sem que produzisse seus próprios impactos na vida cotidiana daqueles
aos quais ele se endereçava. Talvez seja essa a maior transformação implicada pela
aplicação da medida, a despeito da manutenção da prisão como forma punitiva basilar
e prioritária. A penalidade neoliberal fundadora dos programas de monitoramento
teria como efeito correlato a conformação de um novo sujeito penalizado reenviado à
sociedade e responsável pela pena que se inscreveu sobre seu corpo. Se do ponto de
vista político, a implementação inicial da monitoração eletrônica no Brasil apresenta
mais continuidades do que rupturas, ao manter inalterada a evolução dos níveis de
encarceramento, do ponto de vista subjetivo e microfísico, o dispositivo inaugura a
conformação de novas formas de individuação punitiva, proporcionando
deslocamentos fundamentais em relação ao sujeito confinado.
172
Capítulo 5
Tecnofísicas do controle
173
5.1. Sem controle
Juiz: Perfeito.
111
Diário do Nordeste. Seis pessoas são mortas em chacina em uma casa de praia no Porto das Dunas.
Disponível em: http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/seguranca/online/seis-pessoas-
sao-mortas-em-chacina-em-uma-casa-de-praia-no-porto-das-dunas-1.1765572 (Acesso em 10 de
dezembro de 2018).
112
Diário do Nordeste. Preso suspeito de ter executado vítimas da Chacina de Horizonte. Disponível
em: http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/seguranca/online/preso-suspeito-de-ter-
executado-vitimas-da-chacina-de-horizonte-1.1775739 (Acesso em 10 de dezembro de 2018).
174
Os episódios eram parte de uma sequência de chacinas desencadeada no estado após o
fim da consagrada parceria entre os dois maiores coletivos criminais do país.
Desde 2010, Fortaleza vinha se estabelecendo como ponto difusor estratégico
no escoamento de armas e drogas ilícitas rumo à Europa, África e Oriente Médio. A
importância da cidade no cenário geopolítico criminal residia na qualidade de sua
estrutura portuária e em sua proximidade com os mercados consumidores
transatlânticos (Sá & Aquino, 2018; Feltran, 2018). A cocaína proveniente do Peru e
da Colômbia cruzava os estados do Norte em rotas disputadas entre o PCC e a facção
amazonense Família do Norte (FDN), antes de chegar à capital cearense, que via
nascer em seus bairros pobres o grupo local Guardiões do Estado (GDE). Ao
aquecimento das atividades do tráfico somava-se a territorialização armada das
periferias da cidade, estabelecida por pequenas gangues a partir do final da década de
1990 (Sá & Aquino, 2018).
Em 2015, um acordo de paz entre as facções no Ceará promoveu uma redução
significativa dos índices de assassinato. O pacto teria sido determinado pelas
lideranças do PCC e do CV, incomodadas com o aumento estatístico das mortes
violentas, que chamava atenção da imprensa e prejudicava o andamento dos negócios.
Durante o primeiro semestre de 2016, os moradores das áreas marginalizadas da
cidade celebraram as sensíveis mudanças no cotidiano de suas ruas, em uma
pacificação alheia aos trabalhos das agências do Estado (Idem). Entretanto, com a
aliança rompida entre os comandos do eixo Rio-SP, a radicalização da violência se
instaurou no Ceará113. Os bairros pobres das zonas urbanas tornaram-se campo de
batalha recortado e disputado pelos grupos faccionais que se articulavam em partilhas
políticas de parcerias e rivalidades. A quebra dos acordos alavancou a escalada de
episódios sangrentos na capital litorânea, escancarando a centralidade do CV e do
PCC na gestão da guerra e da paz nas periferias de Fortaleza, assim como em demais
cidades da região114. A violência que explodia no Nordeste havia sido gestada nas
prisões do Sudeste. E o Ceará experimentou alguns de seus episódios mais brutais.
113
O conflito aberto entre o PCC e o CV havia sido disparado em meados de 2016. Os motivos
aparentes da cisão consistiam em disputas em torno do mercado atacadista de ilícitos na fronteira entre
o Mato Grosso do Sul e o Paraguai, além de alianças estabelecidas entre o comando carioca e grupos
inimigos do PCC em Santa Catarina, Rio Grande do Norte e Amazonas (Feltran, 2018; Manso & Dias,
2018).
114
Leonardo Sá e Jania de Aquino (2018) analisam a composição de fatores que levou à escalada de
violência no Ceará entre os anos de 2013 e 2018, sublinhando a importância da presença das facções
provenientes das prisões de São Paulo e do Rio de Janeiro nas chacinas de 2017, concatenada às
atividades territoriais de gangues e coletivos locais. Entretanto, considerando a simultaneidade da
175
Quando o Juiz da 3a Vara de Execuções Penais da Comarca de Fortaleza
procurava compreender os detalhes a respeito do funcionamento tecnológico de um
dispositivo que há não muito tempo vinha sendo implementado no país, o que ele
pretendia era apropriar-se de instrumentos que pudessem evitar a sua própria
participação na retroalimentação desse processo, na esperança redundante de que os
problemas criados pelo sistema penal haveriam de ser solucionados no interior do
próprio sistema penal.
176
a 297,8/100 mil115. Entre 2015 e 2017, o total de indivíduos monitorados no Ceará foi
de 296 a 2.881, conforme os dados publicados pelo DEPEN (Brasil, 2015; 2017a). A
experiência cearense não seria uma exceção no processo de expansão do sistema
penal, ao qual o monitoramento eletrônico era mais um elemento propulsor.
A distribuição dos equipamentos no estado procurava atender às
recomendações do Poder Executivo Nacional, privilegiando a aplicação da medida na
fase de instrução processual. Correspondendo às diretrizes estabelecidas pelo DEPEN,
cerca de 56% das determinações de monitoração eletrônica no Ceará eram realizadas
no âmbito de medidas cautelares diversas da prisão, tendo como objetivo a redução da
quantidade de presos provisórios (DEPEN, 2017). Ao lado dos estados de Goiás,
Minas Gerais, Pará, Paraíba e Sergipe, o Tribunal de Justiça do Ceará era um dos que
direcionava a aplicação do monitoramento majoritariamente ao controle do
cumprimento de medidas cautelares, com o propósito de conter o crescimento dos
índices de prisão preventiva (Idem).
Todavia, durante os anos iniciais da política de monitoração eletrônica no
estado, a quantidade de pessoas presas sem condenação permaneceu em ascensão.
Entre 2012 e 2017, o total de presos provisórios foi de 8.121 a 12.767, aproximando-
se da metade da população carcerária total. Ao mesmo tempo, em 2017, 1.607 pessoas
em medidas cautelares diversas da prisão eram agora submetidas ao controle
eletrônico, sendo a maioria delas com restrição domiciliar noturna e de final de
semana durante o período em que aguardavam julgamento. Sendo assim, o
direcionamento majoritário dos dispositivos de monitoramento para medidas
cautelares tampouco sinalizou a substituição do cárcere pela supervisão eletrônica em
meio aberto. Seu uso enquanto mecanismo preventivo vem também fortalecendo as
capacidades de controle do sistema de justiça sobre pessoas que sequer foram
condenadas, aplicado sob o preceito da segurança pública e da conveniência da
instrução criminal.
No caso do Ceará, o monitoramento de medidas cautelares acarreta ainda em
um aumento do tempo de pena nos casos de condenação posterior, já que o período
em que o réu permanece aguardando a sentença sob supervisão eletrônica não é
descontado quando da sentença condenatória. Conforme descrito pelo psicólogo da
Central de Alternativas Penais de Fortaleza,
115
Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen> Acesso em 10 de julho de
2019.
177
No final das contas, aquilo ali não vai contar nenhum ponto positivo
na vida dele, além de estar em liberdade no curso do processo. Não
vai contar na dosemetria da pena. Não vai ser abatido. Então ele ficou
dois anos sem sair de casa no final de semana e o que ele pode dizer é
que pelo menos ele tava em liberdade, mas se ele tivesse preso, seria
abatido da pena dele. Como ele não tá preso, não é feito isso. Então
na realidade, às vezes, a medida cautelar ela pode representar uma
ampliação da pena.
178
administrações penitenciárias das unidades de regime semiaberto selecionam os
presos aptos a trabalharem fora dos estabelecimentos prisionais, indicando aos juízes
de execução penal aqueles que deverão receber os equipamentos. Dessa forma, no
estado de São Paulo, quem define os casos passíveis de aplicação do monitoramento
eletrônico é o Poder Executivo, e não o Judiciário, uma vez que os equipamentos
contratados encontram-se disponíveis para utilização exclusiva das unidades do
semiaberto.
No Maranhão, os serviços foram inicialmente direcionados para a supervisão
de medidas cautelares. Entre 2014 e 2016, quase todos os equipamentos disponíveis
no estado eram utilizados no âmbito das cautelares. De 2016 em diante, contudo, a
medida passou a ser redirecionada para controle da execução penal. A partir de então,
verificou-se um aumento quantitativo do total de pessoas monitoradas pela justiça
maranhense, concomitante ao incremento da demografia carcerária, implicando no
incremento da quantidade de pessoas submetidas a alguma forma de controle penal no
estado.
No Rio, os dispositivos são utilizados sobretudo para a supervisão do
cumprimento de pena em prisão domiciliar. Ao todo, 4.008 equipamentos
encontravam-se em funcionamento no estado em 2019, dos quais 3.887 eram usados
por pessoas em regime domiciliar. Tampouco no Rio de Janeiro a aplicação da
medida promoveu algum indício de contenção do crescimento da população prisional.
Entre 2010 e 2017, o total de pessoas encarceradas no estado mais do que duplicou,
subindo de 24.399 a 52.691116. No contexto fluminense, verifica-se tanto a ampliação
do sistema penal, evidenciada pelo aumento do volume de pessoas sob a tutela da
justiça, quanto a intensificação das formas de controle sobre indivíduos em prisão
domiciliar.
Em todos os estados em que foi realizado trabalho de campo no
desenvolvimento dessa pesquisa, assim como em todo o Brasil de uma forma geral, a
implementação do monitoramento teve por efeito a potencialização das capacidades
de controle do sistema penal. Variando-se os pormenores referentes às formas de
aplicação e destinação dos equipamentos, os resultados políticos indicam o
fortalecimento qualitativo e quantitativo das capacidades das agências público-
privadas em exercer o poder de punir.
116
Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen> Acesso em 10 de julho de
2019.
179
Cumpre, portanto, estabelecer uma breve sistematização dos impactos
políticos do dispositivo de monitoramento eletrônico no país, a partir dos dados
produzidos em campo e da análise das informações quantitativas disponibilizadas
pelos órgãos executivos estaduais e nacional. Uma síntese dos resultados da política
de monitoração eletrônica, verificados ao longo de sua primeira década de
implementação, pode contribuir para a obtenção de uma visão geral de seus efeitos e
funcionalidades na política penal e penitenciária brasileira, quais sejam: 1) Dilatação
centrífuga do sistema penal; 2) Densificação centrípeta das malhas de controle; 3)
Administração securitária e biopolítica do sistema penitenciário e 4) Virtualização e
desterritorialização da violência carcerária. Estes quatro pontos específicos, aos
quais pode-se designar aqui de efeitos funcionais, compreendem, por um lado, os
principais impactos políticos da monitoração eletrônica de presos e presas no Brasil,
e, por outro, alguns dos elementos fundamentais que constituem os processos
contemporâneos pelos quais atravessa o sistema penal brasileiro.
O primeiro efeito refere-se ao movimento de dilatação do sistema penal
provocado pelo monitoramento eletrônico e pelas penas alternativas ao cárcere de
modo geral. Trata-se de um fenômeno clássico, observado em diversos países, desde a
formação da chamada onda punitiva que teve início na década de 1970 nos Estados
Unidos e se alastrou por grande parte das democracias ocidentais ao longo do final do
século XX e início do XXI (Cohen, 1985; Wacquant, 2003; Garland, 2008). Ao passo
em que se intensificam as atividades de absorção e captura de criminosos e suspeitos
realizadas pelas instituições de justiça e de segurança pública, verifica-se o
desenvolvimento expansivo dos programas dedicados à aplicação de penas
comunitárias, simultaneamente ao inchaço das prisões. A punição em liberdade
aparece como alternativa razoável frente aos obstáculos físicos estabelecidos pelo
confinamento e pela institucionalização carcerária. A força resultante consiste na
ampliação ilimitada dos sistemas penais.
Na medida em que a penalidade deixa de incidir somente sobre o preso,
passando a atuar também sobre o indivíduo livre, posto para circular em liberdade, ela
já não reconhece mais limites. A própria vida social passa a ser atravessada por sua
presença. Suas formas de controle se confundem com a existência livre e suas
técnicas de punição são reinterpretadas sob a forma de benefícios. Dito de outro
modo, ao passo em que as atividades dos sistemas penais já não se limitam à extração
e contenção da liberdade, mas passam a regular, ordenar, controlar e produzir mesmo
180
a liberdade, a justiça penal e seus mecanismos de poder deixam de admitir um
domínio que lhes seja exterior. Seus horizontes se abrem a potenciais ilimitados. O
sistema punitivo já não pode reconhecer, dessa forma, um campo de exterioridade. E
a intervenção penal que se pretendia mínima revela suas tendências de maximização.
Esta tem sido a primeira e mais visível implicação política sinalizada pela
implementação do monitoramento eletrônico no contexto brasileiro.
O segundo efeito funcional diz respeito a um processo inverso mas, ainda
assim, concomitante e correlacionado ao primeiro. Trata-se da densificação centrípeta
dos controle punitivos, acarretada pela supervisão eletrônica de presos e presas em
progressão de regime ou em medidas cautelares diversas da prisão. O movimento aqui
refere-se não à abertura expansiva, mas ao fechamento intensivo dos programas,
serviços e instituições responsáveis pela aplicação de medidas em meio aberto ou
semiaberto. Seus mecanismos são explicitados, por exemplo, pela aplicação do
monitoramento eletrônico no controle de pessoas submetidas ao regime semiaberto.
Note-se que o regime semiaberto é geralmente referido como semifechado,
tanto no estado de São Paulo quanto no Rio de Janeiro, já que são poucas as vagas
disponibilizadas para realização de trabalho externo e são raras as ocasiões em que a
grande maioria dos presos e presas em progressão de regime podem deixar o presídio.
No Castelinho, ao final de 2016, dos 3.552 detentos da unidade, pouco mais de 200
saíam para trabalhar117. No CPP do Butantã, todas as presas que participaram desta
pesquisa afirmavam que o período em que tinham cumprido pena no regime fechado
havia sido menos “duro” do que o tempo que cumpriam no semiaberto. Tendo
passado, em sua maioria, pela Penitenciária Feminina de Santana ou pela
Penitenciária Feminina da Capital, era unânime a percepção de que o CPP do Butantã
era “pior” do que as unidades de regime fechado, tanto pela relação com os
funcionários quanto pela falta de vagas para trabalhar fora da prisão118. No Rio,
117
Dados obtidos em 22 de setembro de 2016, a partir de interlocução com Agentes de Segurança
Penitenciária do CPP de Franco da Rocha.
118
A dificuldade de obtenção de vagas de emprego fora da cadeia foi também uma questão destacada
por Thaiane: “(...) você vai pro semiaberto e você tem a ilusão que você vai conviver com a rua. Isso é
mentira. Porque na hora que você chega num semiaberto, primeiro você tem que ter a primeira saída
(temporária) pra você ter o direito de entrar numa fila imensa pra conseguir ter um emprego. (...) O
preso, dentro do fechado, ele tem a noção de que seria uma coisa muito boa ir pro semiaberto. “Eu to
a um passo da rua, pelo menos a cada 3 meses eu vou pra rua...”. Quando eu cheguei lá no semiaberto
do Butantã, eu vi a dificuldade dos empregos, por que, primeiro, eu já era velha, segundo, não tinha
criança, menores, pra eu sustentar elas. Então eu fui ficando no fim das filas. Do fim das filas, eu
peguei e fiz cursos, fiz um curso de costura lá, que é onde eu consegui, com muito esforço, ir pra rua.
Foi terrível”. Entrevista realizada em 31 de agosto de 2015.
181
Sergio também se referia ao semiaberto como semifechado, alegando a dificuldade de
obter autorização para saídas temporárias.
Dessa maneira, a monitoração eletrônica aplicada às raras ocasiões de saída
vem tornando o semiaberto um regime ainda mais rígido. O dispositivo de
monitoramento atua aqui como técnica de intensificação dos controles penitenciários
e endurecimento das instituições semiabertas, reafirmando o confinamento como eixo
gravitacional em torno do qual orbitam as práticas punitivas. Em um certo paradoxo
contra-intuitivo, o que seriam instituições supostamente mais brandas, caracterizadas
pela dissolução contemporânea entre o aberto e o fechado – pela simbiose indefinida
entre o dentro e o fora (Cohen, 1985; Bigo, 2006) – na prática, são operadas e
constituídas como centros herméticos e altamente supervisionados, atravessados por
mecanismos redobrados de regulação e controle119.
O terceiro efeito funcional do monitoramento eletrônico refere-se à finalidade
administrativa assumida pelo dispositivo na política penitenciária brasileira. Se de um
lado, a medida é imbuída da função biopolítica de regulação e controle dos fluxos de
indivíduos e populações sob a égide da justiça penal, de outro, sua implementação é
lançada e apregoada como estratégia de gestão da crise do sistema carcerário. Sua
função tática e administrativa lhe é atribuída, portanto, desde o seu desenvolvimento
inicial. Seja como forma de redução dos gastos públicos direcionados ao sistema
penal, seja como técnica de prevenção securitária ao fortalecimento de grupos
criminosos provenientes do universo carcerário, é a crise permanente do sistema
penitenciário que faz nascerem as práticas de monitoramento a céu aberto,
direcionadas à condução dos fluxos de parcelas específicas da superpopulação
prisional.
Não é fortuito que os Poderes Executivos assumam as linhas de frente nos
procedimentos de operação e determinação do monitoramento eletrônico, em
119
Não se pretende aqui fornecer subsídios à argumentação que fundamenta as propostas de supressão
da progressão penal e do próprio regime semiaberto, movidas por razões populistas ou paixões
punitivas. Não se trata de reafirmar o isolamento como parâmetro referencial e horizonte programático
das estratégias de gestão de conflitos. Ao contrário, o que se busca detectar são as configurações
específicas assumidas pela política de monitoração eletrônica no contexto paulista, cujo objetivo
central reside na intensificação do controle punitivo a serviço da gestão prisional. Pretende-se,
portanto, demonstrar alguns dos efeitos silenciados dos programas de rastreamento de presos,
relacionados à retroalimentação do sistema carcerário e à miopia penológica que atravessa a crença na
solução de conflitos mediada pelo exercício reformulado do castigo. São as próprias campanhas em
defesa do fomento às chamadas “alternativas penais” que devem ser colocadas em questão por meio da
investigação pormenorizada de seus efeitos.
182
detrimento do Poder Judiciário. Não é à toa que as equipes técnicas da Célula de
Monitoramento Eletrônico do Ceará, enquanto operadores diretos dos sistemas de
rastreamento, adquirem protagonismo na condução dos processos de pessoas
monitoradas. Tampouco seria por mero descaso da magistratura – ainda que isso seja
mais um fator presente e relevante na configuração política do dispositivo – que a
Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo determine os casos
específicos em que cabe a aplicação da medida. Mais do que instituto jurídico
alternativo ao cárcere, o dispositivo assume o papel estratégico de gestão e controle
da população submetida ao sistema penal, particularmente de presos e presas em
situação de progressão de regime ou sob medidas cautelares diversas da prisão.
Conectada à sua função punitiva, uma finalidade eminentemente securitária e
administrativa é atribuída ao monitoramento eletrônico.
Por fim, o quarto e último efeito funcional do dispositivo relaciona-se aos
processos contemporâneos de virtualização e desterritorialização das práticas de
tortura e das dinâmicas de violência que caracterizam o sistema carcerário brasileiro.
As feridas e queimaduras produzidas por aparelhos de monitoração no estado de São
Paulo; as agressões e espancamentos desencadeadas por falhas nos equipamentos,
seguidos pelo isolamento disciplinar em celas de castigo; as ameaças e execuções de
indivíduos monitorados por grupos de milicianos no Rio de Janeiro e a marcação do
corpo faccionado que reconhece seus inimigos pela perna em que a pulseira é
instalada são alguns dos principais elementos produzidos pela pesquisa de campo,
relativos à dimensão virtual e desterritorial adquirida pela violência carcerária,
mediante a aplicação do monitoramento remoto. Cada um destes elementos –
relatados nos Capítulos 1 e 2 desta tese – sinaliza a passagem da experiência
carcerária de uma dimensão atual para uma dinâmica virtual.
A virtualização da prisão ocorre quando a realidade do cárcere se impõe sobre
os espaços e circunstâncias em que suas estruturas físicas institucionais não se fazem
presentes. Quando a presença dos controles penitenciários se descolam da prisão-
prédio para instalar-se no corpo do prisioneiro, o conjunto de regras, práticas e
violências características das relações de poder mobilizadas pelo aparato carcerário se
virtualizam. Através da monitoração eletrônica, a mecânica prisional extrapola seus
limites de concreto, sem perder com isso suas qualidades imanentes. Seus modos de
assujeitamento já não podem ser precisamente circunscritos.
183
Mas os processos de virtualização tendem sempre a se atualizar (Lévy, 1995).
E a atualização da prisão virtual será então mobilizada pela tendência e ameaça de
regressão ao regime fechado nos casos de violação ou falha dos equipamentos de
monitoração, trazendo com ela o risco permanente das agressões físicas que habitam
os espaços subterrâneos do arquipélago carcerário (Mallart, 2019). A virtualidade do
cárcere reside também em sua iminência; na presença do regime fechado enquanto
realidade iminente.
É assim que o monitoramento eletrônico tem adquirido no Brasil uma
configuração e aspecto singulares, estabelecidos por sua conexão com o conjunto de
práticas que qualificam a tecnologia prisional no país. A tortura subjacente ao cárcere
torna-se mais uma dimensão real e virtual dos dispositivos de controle a ele
conectados. Às técnicas seculares de castigo físico sobrepõem-se os sistemas de
detecção remota, constituindo um complexo multifacetado de práticas penais
heterogêneas e articuladas umas às outras. Novamente, o ornitorrinco de Chico de
Oliveira (2003) exibe seu aparente contrassenso nas particularidades do sistema penal
brasileiro: lá onde se realiza o encontro entre a programática punitiva neoliberal e a
reativação infinda dos paus-de-arara difusos pelo parque carcerário nacional.
É certo que seria necessário empreender uma investigação aprofundada sobre
as experiências de outros países, munida de certa carga de pesquisa de campo, para
detectar as possíveis violências atreladas à aplicação da monitoração eletrônica nos
contextos que não o brasileiro. Daí também a relevância das investigações de caráter
comparativo. Por hora, atemo-nos ao extenso trabalho que tem sido realizado pelos
colegas estrangeiros debruçados sobre o tema. Em nenhuma das pesquisas levantadas
e analisadas na revisão da literatura produzida a respeito do monitoramento eletrônico
ao redor do mundo é documentado algo próximo aos espancamentos, agressões ou
perseguições extra-legais decorrentes do uso da pulseira. O que não significa, é claro,
que não se passem coisas parecidas pelos sistemas penais mundo afora. Como se usa
dizer no jargão militante: “cadeia é cadeia”.
De todo modo, consolidando e sintetizando alguns dos impactos políticos dos
dispositivos de monitoramento identificados nesta pesquisa, os principais efeitos e
funcionalidades da medida referem-se à ampliação dos contingentes populacionais
submetidos à égide penal; à intensificação dos controles punitivos; à gestão securitária
das instituições penais e a virtualização da violência que se produz no cárcere e
184
reverbera para além dos muros. Cada um dos estados em que foi realizado trabalho de
campo apresenta ao menos um desses aspectos, quando não a sobreposição entre eles.
Dessa forma, o repertório técnico de abusos e discricionariedades a serviço do
sistema penal brasileiro parece ser ampliado e aprofundado a cada solução inovadora.
Se tomarmos o próprio sistema penal como uma tecnologia ou máquina, a filosofia
das técnicas elaborada por Jacques Ellul (1990; 2010) ajudaria a compreender o
fenômeno por meio do qual os mecanismos tecnológicos se desenvolvem em
progressão geométrica, e as soluções para os problemas criados por uma determinada
técnica são perseguidas por meio da invenção de uma nova técnica que acaba por
produzir novos problemas e assim sucessivamente, sobrepondo-se técnica sobre
técnica. Nesse processo ilimitado de acumulação tecnológica, os problemas
produzidos pelos sistemas técnicos – e, notadamente, pelos sistemas penais – podem
ser consideravelmente mais expressivos do que aqueles aos quais eles se propõem a
solucionar (Ellul, 2010).
Quando teme-se em demasia os controles exacerbados exercidos pelas novas
tecnologias, pode-se temer ainda os processos mediante os quais as novas tecnologias
tendem a fugir ao controle.
185
5.2. Nota final sobre o ciborgue aprisionado
Pelo robocop vê-se apenas os seus olhos. Pálidos e bem abertos. Por alguns
segundos, a boca aparece, acentuando a fala. Quando a cabeça some, tem-se uma
visão rápida e esparsa do ambiente interno escurecido. E um cheiro quente emerge do
concreto, atravessando o robocop. No canto esquerdo, um cano estreito que deve
servir de chuveiro e um vaso sanitário sem tampa compõem o banheiro integrado. Do
lado direito, dois beliches de concreto. Mas ele parece estar sozinho.
Os olhos retornam e sua voz acelera. Pede que se encaminhe à Secretaria seu
pedido de transferência para a Penitenciária de Presidente Venceslau. Diz que corre
risco de vida e que tem sido ameaçado a cada vez que tenta algum contato com a
diretoria da unidade. Há mais de seis meses ele é mantido lá dentro, sem acesso ao
pátio ou ao corredor. Mais de seis meses naquele espaço mudo.
Pela abertura da porta, nota-se suas costas, braços e pernas já dominados pela
evolução de irritações dérmicas causadas pela infestação de percevejos e pela
ausência de contato com o sol. A denúncia de que um telefone celular teria entrado na
unidade pelas mãos de um dos agentes o levou àquela cela, utilizada como castigo do
seguro120. A ala é destinada àqueles cujo contato com os presos do raio é considerado
arriscado. Um setor apartado do convívio regular para o resguardo da integridade
física dos detentos que o solicitam. Mas agora, seus próprios companheiros do seguro
o ameaçam, além dos funcionários da unidade. Relata que na semana anterior fora
agredido pela terceira vez e diz que “a cela ficou cheia de sangue”. Ele se afasta. No
pátio, alguns rezam em círculo.
Robocop. O nome foi dado pelos presos e se refere à pequena portinhola da
porta de aço, por onde se vê a parte interna da cela. Um retângulo horizontal aberto à
meia altura. O propósito é que se possa vigiar ou comunicar com o interior, sem a
necessidade de abrir a porta. É por ali também que se entrega a bóia121. Para quem
está dentro da cela, olhando em direção à portinhola nos momentos de verificação ou
120
A ala do seguro é um espaço institucional mantido fora dos pavilhões e reservado aos presos que
não são aceitos no convívio regular da cadeia, seja por terem cometido crimes não tolerados pela
maioria dos detentos, seja por terem alguma rivalidade com a facção hegemônica da unidade prisional.
Os castigos, por sua vez, são celas ou setores destinados à punição e isolamento de presos que tenham
cometido alguma falta disciplinar. Atualmente, tem sido cada vez mais comum a sobreposição
administrativa desses espaços, por meio de celas feitas de castigo do seguro ou seguro do seguro.
Fabio Mallat (2019) refere-se a esses espaços institucionais improvisados, que muitas vezes não
chegam a constar nos organogramas penitenciários, como subterrâneos da prisão.
121
Refeição diária servida aos presos.
186
chamada, vê-se apenas a boca ou os olhos do agente penitenciário. Daí a referência ao
policial mecanizado do cinema, cujo corpo maquínico conectado ao capacete deixa só
a boca à vista. O buraco retangular da porta metálica faz o contato entre o interior e o
exterior da cela, pela única fresta de parte humana visível. Vista de dentro, a porta é
tida como uma espécie de revestimento ao redor do corpo do agente que se dirige ao
lado de dentro. Carcaça de aço que protege o carcereiro do perigo encarnado pelo
prisioneiro. Armadura estática de proporção excessiva.
Entretanto, reinvertidos os ângulos, para quem olha de fora para dentro, o
corpo robótico emoldurado pela porta de aço é o corpo do preso, cuja cabeça se
encaixa na fresta tentando contato. É dele o corpo sorvido no interior do cubo de
metal e concreto implorando socorro. Insistindo pela transferência para algum outro
cubo. Recoberto e consumido pela máquina carcerária. Triturado ao fundo do
corredor do seguro do CDP I da Chácara Belém122.
187
Na entrada do século XXI, o sistema carcerário brasileiro aparece ainda como
imagem imponente de uma grande máquina transformadora de corpos. Não a máquina
disciplinar, operadora da metamorfose corretiva do sujeito desviado, embora tal
função não tenha sido de todo eliminada de seu programa. Tampouco a máquina
político-econômica, produtora de um corpo obediente e utilizável, apesar de tais
qualidades perpassarem alguns de seus efeitos. Mas uma máquina complexa que não
pode deixar de atuar sobre o corpo e nele inscrever suas marcas singulares. Uma
máquina envelhecida e infinitamente reinventada, que só pode funcionar na medida
em que dispõe dos corpos que lhe são encaminhados. Uma máquina orgânica de
proporções avantajadas que absorve centenas de milhares de corpos, fazendo de cada
um deles o meio e a condição de sua manutenção.
E o corpo fabricado por essa imensa máquina já não tem os mesmos contornos
daquele produzido pela anatomia política disciplinar. Já não lhe são atribuídas as
mesmas características. É provável que a tarefa de estabelecer seus atributos seja ela
mesma uma tarefa perdida, frente à multiplicidade morfológica assumida pelo corpo-
prisioneiro concebido no atual aparato carcerário brasileiro. Corpo amorfo, submetido
às mais variadas intervenções e penitências que caracterizam o funcionamento regular
das instituições prisionais do país. Corpo triado, distribuído pelos diversos espaços e
regimes de privação que constituem o sistema penitenciário. Corpo segregado,
apartado do universo social e afetivo ao qual ele só pode figurar como ameaça. Corpo
aglutinado, amontoado do lado de dentro junto a milhares de outros corpos com os
quais estabelece novos vínculos e afetos. Corpo sintonizado, conectado ao lado de
fora mediante os recursos comunicacionais que se fazem disponíveis. Corpo dopado,
medicalizado e anestesiado pela distribuição generalizada de psicofármacos na cadeia.
Corpo renunciado em benefício da alma pela proliferação de comunidades religiosas
no interior do cárcere. Corpo bélico, armado como pode diante do insuportável. Corpo
mutilado, soerguido como estandarte a cada novo massacre do qual ele é fatalmente o
alvo. De uma ou outra forma, o corpo disciplinado já não pode definir por completo a
produção biopolítica do sistema prisional brasileiro. Seria preciso uma infinita
sucessão de predicados para descrever a multiplicidade de corpos capturados e
transformados pela prisão.
Contudo, o desenvolvimento dos mecanismos de monitoramento remoto
inaugura atualmente uma nova relação entre a máquina penal e o corpo penalizado.
Sua concepção enquanto técnica de punição além-muros estabelece um conjunto de
188
novas interações entre o poder punitivo e o corpo que se pune. Se a sanção disciplinar
tomava o corpo penalizado como elemento coextensivo à máquina penal, o controle
eletrônico reposiciona esses elementos, fazendo da máquina punitiva um objeto
coextensivo ao corpo punido. O sistema que fazia do corpo um prolongamento da
máquina, agora faz da máquina uma extensão do corpo.
Uma tal inversão elementar, decorrente da urgência de superação dos
inconvenientes do cárcere, tem como um de seus principais resultados a constituição
de um novo sujeito penalizado. Novas formas de individuação são mobilizados por
esse deslocamento técnico que retira o corpo da máquina para fixar a máquina no
corpo. Novas interfaces biotecnológicas são estabelecidas diante das atuais
reconfigurações operadas pelo sistema penal. Mais precisamente, dois processos
simultâneos e interligados são desencadeados pela incorporação das técnicas, práticas
e racionalidades que constituem os dispositivos de monitoramento eletrônico: um
movimento de subjetivação e um processo imanente de dessubjetivação.
Retomando, portanto, o percurso traçado ao longo do capítulo inicial desta
tese, um dos principais procedimentos operadores desse movimento duplo de
subjetivação e dessubjetivação consiste na desterritorialização do controle punitivo,
viabilizada pela supervisão remota. A partir do momento em que a pena deixa de
reconhecer um limite institucional e territorial fixo, acoplando-se ao corpo em
deslocamento do indivíduo penalizado, a relação entre o sujeito punido e o objeto
punitivo é substancialmente alterada. A unidade subjetiva individual será tanto
produzida quanto desmantelada.
A expressão mais evidente dos mecanismos de produção subjetiva
desencadeados pelo monitoramento eletrônico é dada pela transferência das tarefas de
administração da pena ao próprio indivíduo monitorado, subjetivado como carcereiro
de si mesmo. Ao sujeito penalizado é imputada a incumbência de zelar pelo bom
funcionamento de seu aparelho de monitoração e conduzir a si próprio conforme o
conjunto de regras e condições judiciais determinadas. É de sua responsabilidade
única a recarga periódica da bateria do equipamento; o retorno ao cárcere ou ao
domicílio nos horários previstos; a permanência no interior de áreas de inclusão e a
ausência das áreas de exclusão estabelecidas. O imperativo neoliberal da
responsabilização individual constitui-se como um dos vetores centrais desse
processo, na medida em que ao sujeito punido é atribuída a atividade íntima e pessoal
de gerir a própria pena.
189
Nesse sentido são lançadas propostas que prevêem a aquisição e o pagamento
de tornozeleiras eletrônicas pelo próprio preso. Inspirados em experiências
estrangeiras, alguns projetos de lei tramitam atualmente no Congresso Nacional e nas
assembléias legislativas estaduais, sugerindo que os valores implicados pelo uso dos
equipamentos de monitoração sejam repassados aos presos monitorados123. A ideia é
desonerar o Estado e atribuir ao apenado a responsabilidade pela compra do aparelho
que supervisiona o cumprimento de sua pena. O indivíduo monitorado se tornaria
dessa maneira um novo parceiro privado encarregado da tarefa punitiva que se exerce
sobre ele mesmo.
Todavia, a produção do indivíduo prisioneiro de si é também mediada pelo
risco de regressão penal e pelo auto-isolamento acarretado pelo monitoramento
eletrônico. Foram estes os casos de Anderson, Deivid e Elton, que manifestavam
aversão ao convívio social durante o período de monitoração. “O benefício que eu
tenho de estar na rua nada mais é do que uma extensão da unidade. Só de vir aqui
falar com você, eu fico extremamente perturbado, com um monte de coisa na
cabeça”124, dizia Anderson. Tanto o medo do retorno ao cárcere quanto a vergonha de
ser identificado na rua como criminoso faziam com que Anderson optasse por seu
próprio recolhimento.
Perturbações semelhantes teriam levado Elton a construir um muro em torno
de sua casa, isolando-a completamente, de maneira a impedir que qualquer pessoa do
lado de fora constatasse a presença de um “bandido” no bairro. Elton ficara
particularmente preocupado em ser reconhecido e perseguido como um criminoso por
seus vizinhos, conforme o relato de sua esposa125. Era também a sensação
persecutória que o psicólogo da Central de Alternativas Penais de Fortaleza (CAP)
encontrava quando atendia pessoas submetidas à monitoração eletrônica e
diagnosticadas com esquizofrenia. “Pra um delírio persecutório surgir dali, você tá
com a gasolina e o fósforo”126. Segundo ele, não eram raros os casos de aplicação do
monitoramento em apenados com diagnósticos de transtorno mental.
Mas o conjunto de perseguições implicadas pelo uso do dispositivo não
constituem mero delírio. Como vimos, o corpo marcado pelo equipamento de
123
O PLS 310/2016, por exemplo, de autoria do Senador Paulo Bauer (PSDB-SC), já foi aprovado pela
CCJ do Senado. Nos estados do Rio Grande do Norte, Ceará, Amazonas e Rio de Janeiro, projetos
semelhantes tramitam nas assembléias legislativas.
124
Entrevista realizada em 11 de novembro de 2015.
125
Ver Capítulo 1.
126
Entrevista realizada em 4 de julho de 2017.
190
monitoração converte-se em alvo privilegiado da polícia e da milícia em determinados
contextos. Em São Paulo, são frequentes os relatos de presos e presas monitorados a
respeito de rondas e abordagens policiais atraídas pelo aparelho. No Rio, Sergio
mencionava os enquadros, esculachos e a possível execução de pessoas monitoradas
pelas mãos das milícias que dominam certas áreas. Nesses casos, a marca que
identifica o criminoso assinala também a vida em risco de morte. No Ceará, situações
semelhantes foram relatadas tanto pelo psicólogo da CAP, quanto pelo Juiz da Vara
de Execuções Penais, tendo este último recebido o pedido de um homem monitorado
para ser enviado de volta ao cárcere, com medo de ser assassinado por um de seus
inimigos127.
Seja pela transferência da responsabilidade punitiva ao indivíduo punido, seja
pelas tendências de isolamento e exclusão de si mesmo, ou seja ainda pela
perseguição de agentes públicos ou público-privados de segurança e extermínio, um
dos principais efeitos de subjetivação produzidos pelo dispositivo de monitoramento
refere-se à conversão do prisioneiro em seu próprio agente prisional. O sujeito que
penaliza e o objeto penalizado agora convergem em um mesmo elemento.
Entretanto, ainda aqui, o movimento de construção identitária do indivíduo
sob supervisão é sempre vulnerável aos desvios de função (Kasper, 2004) operados
pelas pessoas monitoradas. A marcação do corpo é também mobilizada como forma
de auto-afirmação de uma subjetividade própria, determinada (ou co-determinada)
pelo sujeito monitorado. Sergio costumava dizer: “eu faço da minha tornozeleira uma
bandeira”. Procurava deixar o aparelho sempre à mostra como recurso estratégico de
combate aos preconceitos que eventualmente sofria. “Eu ando de bermuda na
faculdade. Se eu quiser ir pra praia, eu vou à praia. Eu faço sempre questão de
ocupar esses espaços pra a gente poder debater alguns assuntos”128. Para ele, a
exposição do equipamento era uma espécie de militância.
No Butantã, Natasha e Thaiane contavam que colocavam enfeites e laços na
pulseira, buscando ornamentá-las e amenizar assim os seus aspectos estigmatizantes.
“(...) daí a gente decorava, eu coloquei uns laço de cabelo... Pra não ficar aquele
negócio tão feio, sabe?”129, dizia Natasha. Adesivos, elásticos de cabelo e coberturas
127
Idem.
128
Entrevista realizada em 17 de novembro de 2016.
129
Conversa informal realizada em 29 de abril de 2016.
191
de cores variadas eram utilizados como forma de re-apropriação do próprio corpo,
convertendo o aparato de controle em uma forma de adorno.
Também no estado de São Paulo, conforme descrito no Capítulo 1, o aparelho
de rastreamento era agenciado como meio de afirmação da indentidade faccional.
Natasha, Vladimir e Augusto relatavam que nos anos iniciais da implementação do
monitoramento em São Paulo, o PCC orientava seus irmãos e primos130 monitorados
a utilizarem a pulseira na perna direita, enquanto aqueles que eram ligados a grupos
rivais usavam na esquerda. O equipamento era ostentado como um sinal de
pertencimento ou simpatia ao Partido do Crime e demarcação de sua diferença em
relação aos coletivos de oposição.
Sendo assim, a produção da subjetividade individual e coletiva de pessoas
monitoradas não se estabelece como um movimento descendente, imposto e pré-
determinado pelo Estado. Não se trata de mera rotulação instituída de cima a baixo
sobre um sujeito neutralizado. Os processos de individuação e subjetivação
desencadeados pelo monitoramento referem-se, antes, a procedimentos agenciados e
compartilhados entre os diversos atores envolvidos na execução penal sob controle
eletrônico. A construção do sujeito monitorado é mediada por sua participação ativa
nos processos de incorporação e transformação do conjunto de técnicas, práticas e
discursos que constituem o dispositivo. Não se trata, portanto, da simples
internalização de regras ou normas pelo indivíduo, mas de um processo em via dupla
por meio do qual o repertório identitário do sujeito se entrecruza às formas de
condução de si mobilizadas pelo dispositivo.
Tampouco se pretende estabelecer aqui um conjunto de modelos ou modos
típicos de produção do sujeito monitorado. Não há um sujeito modelar ou ideal, mas
processos multilineares desencadeados por um dispositivo em particular que, além de
uma técnica penal, constitui-se como tecnologia de si. A configuração do indivíduo
monitorado seria então estabelecida através de linhas de subjetivação entrecruzadas –
dentre as quais esta pesquisa procurou identificar algumas de suas expressões –,
produzidas a partir dos investimentos que se fazem sobre o seu corpo. Módulos ou
linhas subjetivas que se estabelecem a partir da relação entre o corpo e a máquina, e
que serão também atravessadas pelas demais linhas identitárias relacionadas às
subjetividades sociais, raciais, sexuais, políticas, jurídicas, etc.
130
Irmãos é como são referidos os integrantes do PCC. Primos é a forma como os membros da facção
se referem aos seus amigos e parceiros que não pertencem ao coletivo.
192
O corpo feminino sob monitoramento traz com ele as especificidades e
implicações relacionadas ao que se espera de uma mulher na sociedade brasileira. O
corpo negro monitorado carrega a imagem biotecnológica do perigo redobrado,
criminalizado de antemão pelos sistemas de segurança e justiça. O corpo pobre
rastreado é aquele que passou pelo cárcere ou a ele tende a retornar, tendo muito
pouco a ver com o político ou o empresário do colarinho branco131.
Ainda: as resistências, linhas de fuga e estratégias de escape ou bloqueio aos
controles engendrados pelo monitoramento eletrônico são frequentemente acionadas e
elaboradas pelas pessoas monitoradas. Os recursos mais comuns consistem na
interrupção do envio de sinais de comunicação mediante o envolvimento do aparelho
em um papel alumínio, ou o simples e direto rompimento do lacre com o auxílio de
uma faca, alicate ou tesoura. De tempos em tempos, uma notícia é veiculada pela
imprensa anunciando o aparecimento de uma tornozeleira rompida em um terreno
abandonado ou num banheiro de rodoviária132.
Mas o engenho de alguns faz com que se encontrem meios de retirar o
aparelho sem a necessidade de rompê-lo, evitando assim o acionamento de alertas nas
centrais. As notícias mais originais a esse respeito referem-se, por exemplo, à ocasião
em que o rapaz teve a habilidade de remover o aparelho, mantê-lo em funcionamento
e, em seguida, fixá-lo em seu cachorro. O cão, que atendia pelo nome de Frederico,
131
Refiro-me aqui, em especial, ao uso do monitoramento eletrônico para o controle de prisões
domiciliares aplicadas sobre administradores públicos e privados acusados ou condenados por
corrupção ou lavagem de dinheiro, que tornou notória a aplicação da monitoração no Brasil. A esse
respeito, vale reproduzir as palavras de Sergio, analisando o controle eletrônico de políticos e
empresários: “Cara, recentemente a gente teve a prisão do Cabral, a prisão do Garotinho. Eu acho
que por muitas coisas o Cabral deveria ser responsabilizado. Mas monitoramento, prisão, essas
coisas, eu não vejo com bons olhos. Não consigo acreditar. Eu acredito que isso é uma retribuição de
violência do próprio Direito. O Direito se potencializa dessa maneira. Isso é uma marca. Muito
pesada. Aqui no Rio, acho que foi em Angra, tinha um rapaz com um tornozeleira envolvido num
esquema da Lava-jato, logo no início, que foi ridicularizado no restaurante, foi expulso de um
restaurante porque usava uma tornozeleira. Isso marca. Isso é um estigma, isso te (incompreensível)
muito ruim. Isso é uma presença constante do Estado no seu corpo. Isso fere a sua subjetividade.
Então assim, eu não vejo com bons olhos isso em ninguém. Eu não acredito”. (Entrevista realizada em
17 de novembro de 2016).
132
G1. Em MS, tornozeleira de preso é encontrada rompida em rodoviária. Disponível em:
http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/noticia/2011/10/em-ms-tornozeleira-de-preso-e-encontrada-
rompida-em-rodoviaria.html (Acesso em 20 de julho de 2019).
193
permaneceu algumas semanas com a coleira inusitada133. Ou, ainda, o famoso caso do
galo encontrado com uma tornozeleira eletrônica no pescoço134.
Artimanhas desse tipo só são possíveis pelo fato de que a prática de
rastreamento, tecnicamente falando, é efetuada sobre o aparelho e não sobre o
indivíduo. O intercâmbio de sinais de localização se realiza entre o equipamento
emissor e o servidor instalado na central. Se o indivíduo se retira desse agenciamento
– ou, se o equipamento é retirado do indivíduo – as atividades técnicas de supervisão
podem ser perfeitamente mantidas, uma vez que as conexões forem preservadas. E
esta possibilidade de fuga só se estabelece quando o elemento rastreado é menos uma
pessoa do que um equipamento. Essa via de escape é somente praticável na medida
em que a supervisão se realiza menos sobre um sujeito do que sobre um conjunto de
dados que podem se referir à sua posição ou à mera posição de um aparato que fora
astuciosamente retirado e deixado em um canto qualquer. Um conjunto de dados que
podem se referir não a um prisioneiro mas... a um galo!
É nesse sentido que o sujeito se desfaz. Quando o indivíduo é convertido em
dados, sua unidade subjetiva se fragmenta em meras informações digitalizadas que
podem se referir a ele ou a qualquer outra coisa. Seu posicionamento e conduta são
concebidos e analisados a partir de uma unidade incerta, tecnicamente construída e
substancialmente frágil. Um sujeito maquínico é também um elemento
dessubjetivado; um indivíduo transformado em corpo de dados, nas palavras de Marta
Kanashiro (2011), ou um sujeito convertido em corpo computável, nos termos de Josh
Berson (2015).
Daí a pertinência do uso e projeção de sistemas de detecção de dados
fisiológicos e fluxos orgânicos intra-individuais, tais como a presença ou ausência de
álcool no sangue ou o monitoramento das frequências cardíaca e respiratória do
usuário. O chamado RAM (Remote Alcohol Monitoring – Monitoramento Alcoólico
Remoto) tem sido uma opção nos Estados Unidos como forma de controle do
consumo alcoólico de apenados durante o cumprimento de determinadas sentenças
(Nellis, Beyens & Kaminski, 2013), tomando como objeto de supervisão remota não
133
G1. Preso que colocou tornozeleira eletrônica no cachorro tirou equipamento porque ‘incomodava
para dormir’, diz delegado. Disponível em: https://g1.globo.com/pr/oeste-
sudoeste/noticia/2018/08/31/preso-que-colocou-tornozeleira-eletronica-no-cachorro-tirou-
equipamento-porque-incomodava-para-dormir-diz-delegado.ghtml (Acesso em 20 de julho de 2019).
134
G1. Preso tirava tornozeleira e colocava em pescoço de galo no RS. Disponível em:
http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2014/08/preso-tirava-tornozeleira-eletronica-e-
colocava-em-pescoco-de-galo-no-rs.html (Acesso em 20 de julho de 2019).
194
somente a pessoa, mas as substâncias por ela ingeridas. Daí também a fabricação de
nano-rastreadores passíveis de serem implementados por via cirúrgica na camada
subcutânea do indivíduo monitorado, de maneira a tornar ainda mais integrados o
corpo biológico e o corpo tecnológico. É o que propõem alguns dos principais
idealizadores e propagadores da supervisão telemática no Brasil, prevendo um futuro
próximo em que a nanotecnologia penal se consubstancia ao corpo humano.
Donna Haraway (2009) aposta na interpenetração entre o corpo e a máquina
como forma de libertação das circunscrições identitárias que confinam subjetividades
em categorias totalizantes – “eu ocidental”, confinado em sua natureza humana, sua
classe, sua raça, seu gênero. A autora manifesta-se pelo híbrido como tática de
corrosão das matrizes subjetivas por meio das quais as relações de dominação se
reproduzem. O fim da cisão dualista entre o “natural” e o “artificial” abriria
possibilidades para uma emancipação política apoiada na fratura da unidade subjetiva
e sua correspondente reprodução de alteridades assimétricas.
Aqui, todavia, a fusão entre o técnico e o orgânico parece reposicionar
identidades, vinculadas ao ato criminoso e à condição de prisioneiro reenviado à
sociedade. Os processos imanentes de subjetivação e dessubjetivação desencadeados
pelo monitoramento remoto inauguram uma espécie particular de hibridismo, ao
promoverem o acoplamento entre a pena e o apenado e identificarem o preso à
própria prisão fixada em seu corpo.
Subjetivado como carcereiro de si ou dessubjetivado como biomáquina, o
corpo produzido pelo monitoramento eletrônico é o corpo-ciborgue, interface entre o
físico e o técnico, o orgânico e o mecânico, o humano e o não humano. Não o
ciborgue celebrado por Haraway, emancipado e liberado das cápsulas identitárias que
conformam o sujeito moderno, mas o ciborgue aprisionado nas linhas de subjetivação
que sobrepõem a estas cápsulas a marca da política penal. O ciborgue que transita
entre as unidades superlotadas de regime semiaberto e os espaços urbanos em que ele
é tido como um perigo. O ciborgue recolhido dentro de sua casa, ou o ciborgue que
milita em favor de sua aceitação pública. O ciborgue ameaçado pela abordagem
policial, ou o ciborgue atendido e acompanhado pelas equipes de psicólogos e
assistentes sociais. O ciborgue amedrontado pela perseguição miliciana, ou o ciborgue
faccionado na correria do comando. O ciborgue espancado na cela do castigo, ou
ainda o ciborgue apropriado de si e do corpo mecânico que lhe foi dado.
195
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