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O Touro de Picasso
Simone de Pádua Thomaz
Relato de experiência
conjunto delas se tratava de um estudo feito por Picasso. Nesse primeiro momento, não
conversei com a turma sobre características das obras do artista, para que as alunas não
fossem influenciadas na realização da tarefa que lhes propus: ordenar as fichas
recebidas de modo que reproduzissem a ordem cronológica em que supunham que o
artista as teria criado.
Se fosse você, como realizaria a tarefa? Anote os números das figuras que
indicam a sequência em que você supõe que elas foram realizadas, da primeira até a
última. Depois disso, identifique o critério em que se baseou a sua escolha.
Nas diversas vezes em que trabalhei com a atividade, pude constatar que a
suposição mais comum utilizada pelas alunas na ordenação das figuras era a de que um
estudo deve ser realizado de modo a incorporar ao desenho cada vez mais detalhes e
semelhanças com o objeto representado. Esse raciocínio levou a maioria das pessoas a
concluir que a primeira figura produzida por Picasso foi a 4 e a última a 11.
Mas não foi esse o caminho percorrido por Picasso. Na obra desse artista, o
touro é uma metáfora, sem um significado fixo. Conforme o contexto, pode representar
o povo espanhol, o fascismo e a brutalidade ou a virilidade, um reflexo da autoimagem
do artista.
Na série de figuras do touro, Picasso disseca a imagem do animal. Cada imagem
representa uma fase sucessiva de um processo que teve por objetivo encontrar o
“espírito da besta”, caminhando em marcha a ré, do acabado para o esboço.
A ordem cronológica de produção das figuras foi 11, 5, 10, 7, 3, 6, 2, 8, 9, 1, 4.
A primeira imagem, a de número 11, é espontânea e serve de base para os
desenvolvimentos futuros. No decorrer do estudo, Picasso cresce a forma do touro,
tornando-o mais expressivo e místico, demarca seus músculos e esqueleto, como um
açougueiro que destrincha o animal para remover-lhe a carne, passa a abstrair a
estrutura do touro, simplificando e delineando os principais componentes de sua
anatomia, remove e simplifica mais as linhas de construção, até reduzir o touro a um
desenho de linhas básicas e formas que caracterizam as forças fundamentais e a relação
entre formas, num contorno simples, o mais conciso possível para expressar a
essênciado animal.
Mas o que foi possível explorar com as alunas, a partir da atividade de ordenar
cronologicamente as figuras do touro, comparar esta ordenação com aquela que
Educação Estética – Prof. Sérgio Murilo – FaE/UEMG
Expliquei a elas que não os haviam enxergado porque eles contrariavam as explicações
de senso comum que tinham sobre os raios. Ao longo do ano, as alunas, e também
meus alunos do Ensino Médio, tinham oportunidade de observar raios durante chuvas e
constatar a existência dos raios invertidos e me relatavam o fato.
Outro aspecto que procurei explorar com as alunas a partir a atividade foi o fato
de que nenhuma das representações do touro feita por Picasso, e nem a melhor das
representações realistas do animal, é capaz de abarcar todas as suas características.
Assim, qualquer representação implica escolhas e essas escolhas têm um significado,
em uma determinada área do conhecimento, em uma determinada cultura.
Ressaltei ainda que um mesmo objeto pode ter muitos significados, para
diferentes sujeitos, povos, culturas, nações. Para evidenciar o fato, apresentei às alunas a
comédia de ação sul-africano-botsuano-estadunidense, de 1980, “Os Deuses Devem
Estar Loucos” (The gods must be crazy), onde o escritor e diretor Jamie Uys aborda
temas antropológicos e sociais, expostos ao longo de atos que se entrelaçam.1
A história começa quando, ao sobrevoar um território localizado ao sul do
Deserto do Kalahari, o piloto joga fora, pela janela do avião, uma garrafa de Coca-Cola.
Ao deparar-se com o objeto, uma tribo de bosquímanos o interpreta como um presente
dos deuses, com muitos usos, que deveriam ser descobertos. A disputa pelo objeto
sagrado entre as pessoas da tribo gera conflitos e leva os bosquímanos a considerarem a
garrafa como um objeto maldito, que deve ser jogado fora do planeta. Xi, um dos
habitantes da aldeia, se oferece para realizar a tarefa. Em sua viagem, ele se encontra,
pela primeira vez, com pessoas da civilização ocidental e esse encontro proporciona a
abordagem de reflexões críticas sobre nossa civilização, a partir do ponto de vista de Xi.
Depois de conversar com a turma sobre diversos aspectos relevantes do filme,
além daquele já apontado, retomei sequência cronológica de criação do touro por
Picasso.
1
Nos endereços https://www.youtube.com/watch?v=zpDui0WAabQ e
https://www.youtube.com/watch?v=fAPdu8cPNUM (Acessos em: 20 abr. 2021) é possível assistir a
algumas das melhores cenas desse filme.
Educação Estética – Prof. Sérgio Murilo – FaE/UEMG
dentro do mesmo espaço e, assim, sugerir sua forma tridimensional. Ao fazer isso, eles
também enfatizaram o aspecto bidimensional, em vez de usar os recursos para abarcar a
profundidade, como priorizado anteriormente por artistas no Renascimento, que para
representar o espaço tridimensional se valiam da linha do horizonte, do ponto de vista,
do ponto de fuga e das linhas de fuga.
Bibliografia
1. OSTROWER, Fayga: A sensibilidade do intelecto. Rio de Janeiro, Elsevier, 1998.
2. OLIVER, Sacks: Ver ou não ver. In: OLIVER. Sacks. Um antropólogo em Marte.
Sete histórias paradoxais. Trad. Bernardo Carvalho. São Paulo, Companhia do
Bolso, 2006.
3. PIAGET, Jean:O desenvolvimento do raciocínio na criança. Rio de Janeiro,
Record, 1977.
4. OS DEUSES DEVEM ESTAR LOUCOS (The Gods Must Be Crazy). Direção de
Jamie Uys. África do Sul,1980. (109 min.).
5. À PRIMEIRA VISTA (At First Sight). Direção de Irwin Winkler. EUA, 1999. (129
min).
6. Equipe Editorial: Artref c2009: El Toro de Picasso: do acadêmico ao abstrato.
Disponível em https://arteref.com/arte/as-etapas-de-el-toro-de-picasso-do-
academico-ao-abstrato/. Acesso em 26 abr. 2021.