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Educação Estética – Prof.

Sérgio Murilo – FaE/UEMG

O Touro de Picasso
Simone de Pádua Thomaz
Relato de experiência

A experiência que apresento nesse relato aconteceu em um curso de capacitação


para o magistério, na disciplina “Didática para o Ensino de Ciências”, que ministrei
durante 3 anos na Escola Balão Vermelho, em Belo Horizonte.
Meu planejamento previa a abordagem do significado e uso de modelos nas
Ciências Naturais. A aula e as reflexões descritas a seguir pretenderam iniciar, com as
alunas, a abordagem dos significados de uma representação, tendo como referência a
ideia de observável segundo o construtivismo piagetiano, aqui entendido como condição
para a ativação de um esquema de assimilação (PIAGET, 1977).
Para iniciar a aula com uma problematização, elaborei 11 fichas, a partir de
cópias de litografias de Picasso, da obra El Toro, – criadas no período de dezembro de
1945 a janeiro de 1946, conforme a figura a seguir:

As figuras foram numeradas e embaralhadas propositalmente, de modo que


estivessem identificadas e que não correspondessem à ordem cronológica de sua
produção pelo artista. Cada ficha era um quadrado de 10 cm de lado, possibilitando que
os detalhes das figuras pudessem ser observados.
As alunas foram organizadas em grupos de 4 e a cada um deles foi entregue um
conjunto de fichas composto pelas 11 imagens. Então foram informadas de que o
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conjunto delas se tratava de um estudo feito por Picasso. Nesse primeiro momento, não
conversei com a turma sobre características das obras do artista, para que as alunas não
fossem influenciadas na realização da tarefa que lhes propus: ordenar as fichas
recebidas de modo que reproduzissem a ordem cronológica em que supunham que o
artista as teria criado.

Se fosse você, como realizaria a tarefa? Anote os números das figuras que
indicam a sequência em que você supõe que elas foram realizadas, da primeira até a
última. Depois disso, identifique o critério em que se baseou a sua escolha.

Nas diversas vezes em que trabalhei com a atividade, pude constatar que a
suposição mais comum utilizada pelas alunas na ordenação das figuras era a de que um
estudo deve ser realizado de modo a incorporar ao desenho cada vez mais detalhes e
semelhanças com o objeto representado. Esse raciocínio levou a maioria das pessoas a
concluir que a primeira figura produzida por Picasso foi a 4 e a última a 11.
Mas não foi esse o caminho percorrido por Picasso. Na obra desse artista, o
touro é uma metáfora, sem um significado fixo. Conforme o contexto, pode representar
o povo espanhol, o fascismo e a brutalidade ou a virilidade, um reflexo da autoimagem
do artista.
Na série de figuras do touro, Picasso disseca a imagem do animal. Cada imagem
representa uma fase sucessiva de um processo que teve por objetivo encontrar o
“espírito da besta”, caminhando em marcha a ré, do acabado para o esboço.
A ordem cronológica de produção das figuras foi 11, 5, 10, 7, 3, 6, 2, 8, 9, 1, 4.
A primeira imagem, a de número 11, é espontânea e serve de base para os
desenvolvimentos futuros. No decorrer do estudo, Picasso cresce a forma do touro,
tornando-o mais expressivo e místico, demarca seus músculos e esqueleto, como um
açougueiro que destrincha o animal para remover-lhe a carne, passa a abstrair a
estrutura do touro, simplificando e delineando os principais componentes de sua
anatomia, remove e simplifica mais as linhas de construção, até reduzir o touro a um
desenho de linhas básicas e formas que caracterizam as forças fundamentais e a relação
entre formas, num contorno simples, o mais conciso possível para expressar a
essênciado animal.
Mas o que foi possível explorar com as alunas, a partir da atividade de ordenar
cronologicamente as figuras do touro, comparar esta ordenação com aquela que
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corresponde à sequência em que foram criadas e identificar os pressupostos por trás de


cada uma delas?
Em primeiro lugar, a experiência permitiu às alunas identificar que muitas de
nossas ações se baseiam em suposições, ainda que, quando ocorrem, elas não sejam
conscientes. De forma mais abrangente, permitiu que percebessem que os
conhecimentos que temos interferem no modo como agimos ou como interpretamos
fatos ou fenômenos.
Comentei com as alunas que essa interferência de conhecimentos prévios nas
nossas ações e no modo como percebemos os fatos ocorre de forma tão profunda que
poderíamos dizer, por exemplo, que quando a caravela de Cabral apontou no horizonte,
provavelmente os indígenas que aqui viviam não puderam enxergá-la, porque não
tinham ideias ou concepções, baseadas em constatações anteriores, que possibilitassem
alguma inferência sobre o que seria aquela visão, não tinham um esquema de
assimilação para aquele tipo de observável, produto de uma outra cultura De forma
simplificada, porque não tinham a menor ideia do que poderia ser uma caravela – era
algo muito novo e diferente do universo conhecido.
As alunas concordaram com meus comentários, justificando que eles lhes
pareciam óbvios, já que os indígenas ainda não conheciam a cultura dos colonizadores,
não dominavam a escrita, possuíam tecnologias rudimentares e cosmologia baseada no
mito, numa visão que percebi basear-se na hierarquização de culturas. A partir disso,
problematizei os argumentos que deram afirmando que não eram suficientes para
explicar o fato, incentivando-as a buscar novas justificativas.
Para ajudá-las nessa busca, me vali de experiências vivenciada com meus alunos
do Ensino Médio, por exemplo quando ensinava sobre formação de raios, e perguntei às
cursistas: quantas de vocês já viram um raio que sai do chão e sobe em direção a uma
nuvem?
Por constatações anteriores, eu esperava que a maioria das alunas respondesse
que nunca viu esse tipo de raio, porque ele não acontece assim, e que justificasse essa
resposta baseando-se em uma ideia que concebe o raio como algo que vem do céu em
direção ao chão, assim como a chuva. E minha previsão foi sempre confirmada!
Do mesmo modo que fazia com meus alunos do Ensino Médio, informei às
alunas que existem raios que sobem, chamados invertidos. Eles são menos frequentes
que os raios que acontecem do céu para a terra e ocorrem principalmente em cidades
com edifícios ou torre altos e que, com certeza, as alunas já os teriam observado.
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Expliquei a elas que não os haviam enxergado porque eles contrariavam as explicações
de senso comum que tinham sobre os raios. Ao longo do ano, as alunas, e também
meus alunos do Ensino Médio, tinham oportunidade de observar raios durante chuvas e
constatar a existência dos raios invertidos e me relatavam o fato.
Outro aspecto que procurei explorar com as alunas a partir a atividade foi o fato
de que nenhuma das representações do touro feita por Picasso, e nem a melhor das
representações realistas do animal, é capaz de abarcar todas as suas características.
Assim, qualquer representação implica escolhas e essas escolhas têm um significado,
em uma determinada área do conhecimento, em uma determinada cultura.
Ressaltei ainda que um mesmo objeto pode ter muitos significados, para
diferentes sujeitos, povos, culturas, nações. Para evidenciar o fato, apresentei às alunas a
comédia de ação sul-africano-botsuano-estadunidense, de 1980, “Os Deuses Devem
Estar Loucos” (The gods must be crazy), onde o escritor e diretor Jamie Uys aborda
temas antropológicos e sociais, expostos ao longo de atos que se entrelaçam.1
A história começa quando, ao sobrevoar um território localizado ao sul do
Deserto do Kalahari, o piloto joga fora, pela janela do avião, uma garrafa de Coca-Cola.
Ao deparar-se com o objeto, uma tribo de bosquímanos o interpreta como um presente
dos deuses, com muitos usos, que deveriam ser descobertos. A disputa pelo objeto
sagrado entre as pessoas da tribo gera conflitos e leva os bosquímanos a considerarem a
garrafa como um objeto maldito, que deve ser jogado fora do planeta. Xi, um dos
habitantes da aldeia, se oferece para realizar a tarefa. Em sua viagem, ele se encontra,
pela primeira vez, com pessoas da civilização ocidental e esse encontro proporciona a
abordagem de reflexões críticas sobre nossa civilização, a partir do ponto de vista de Xi.
Depois de conversar com a turma sobre diversos aspectos relevantes do filme,
além daquele já apontado, retomei sequência cronológica de criação do touro por
Picasso.

1
Nos endereços https://www.youtube.com/watch?v=zpDui0WAabQ e
https://www.youtube.com/watch?v=fAPdu8cPNUM (Acessos em: 20 abr. 2021) é possível assistir a
algumas das melhores cenas desse filme.
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OSTROYER, 1998. p.118-119.

Evidenciei novamente o fato de o artista ter caminhado em busca do traço que


traduzisse a “essência” do animal. De certo modo ele o simplificou, porém, carregando-
o de significado, o que requer interpretação. Transpondo essa ideia para a prática da
sala de aula, ponderei que muitas vezes, nós, professores, acreditamos estarmos
facilitando o aprendizado quando simplificamos a abordagem de um tema ou um
conceito. Mas a simplificação é uma abstração, na qual faltam muitas informações, e ao
fazê-la estamos imprimindo ao objeto de ensino um caráter único, que pode não fazer o
menor sentido para os estudantes, contrariando nossas intenções e tornando-o
ininteligível.
Ainda em relação à atividade de ordenamento das imagens, pude explorar uma
outra ideia, que deve ser considerada quando se ensina sobre modelos, mapas,
esquemas. É que, sem a compreensão do significado de uma representação, é comum as
pessoas confundirem o objeto com a sua representação. Expliquei às alunas que, no
drama romântico estadunidense “À Primeira Vista” (At First Sight ), de 1999, dirigido
por Irwin Winkler, com roteiro baseado em uma história real, descrita no livro "To See
and Not to See", do neurologista Oliver Sacks, há uma cena que evidencia de forma
contundente essa confusão.
Nesse filme, que se vale da ciência e também da delicadeza na abordagem da
diferença entre enxergar e ver, o protagonista da história é Virgil, um jovem que ficou
cego acidentalmente na infância, representado por Val Kilmer. Amy, representada por
Mira Sorvino, se apaixona por ele e o convence a submeter-se a um tratamento
experimental. Virgil é operado com sucesso e consegue ver, mas enfrenta grandes
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desafios para aprender a enxergar, porque não consegue atribuir significado


convencional a muitas das imagens que vê.
Após a cirurgia, Virgil não consegue, por exemplo, aprender a identificar
profundidades. Ele não consegue saber o que está mais perto e o que está mais longe,
porque isso se aprende, quando ainda criança, ao se associar as imagens vistas com as
distâncias experimentadas para alcançar os objetos. As linhas de fuga, que parecem
óbvias até mesmo em uma foto, nunca fizeram o menor sentido para ele. Diante da foto
de uma maçã e perguntado pelo médico sobre o que ele vê, Virgil responde sempre que
se trata de uma maçã. Ele não conseguia distinguir a maçã de sua foto, o objeto de sua
representação.
Diante dessas considerações feitas a partir da atividade realizada com El Toro,
ressaltei a necessidade de o professor procurar criar condições para que os alunos
desenvolvam habilidades relacionadas à interpretação de representações, porque elas
não são tão óbvias quanto pode parecer para quem as conhece.
Enfim, pude levá-las a refletir que, na ciência, um modelo nunca dá conta de
descrever, de forma completa, um fenômeno ou um objeto. Modelos em escala do
Sistema Solar, por exemplo, podem representar tamanhos e distâncias, mas não
representam, ao mesmo tempo, densidade, massa, número de luas, temperatura ou a
constituição da atmosfera dos planetas. Por isso, ao trabalhar com modelos, mapas e
esquemas, é fundamental que os professores considerem a interpretação de
representações em seus planejamentos e no uso de materiais didáticos, por exemplo, as
escalas, as cores e seus significados, os planos de corte etc.
Por último, mas não menos importante, conversei com as alunas a respeito do
cubismo e da obra do pintor, escultor, gravurista, ceramista e cenógrafo espanhol Pablo
Picasso, um dos mais influentes artistas do século XX. Em resumo, expliquei que
Picasso é chamado “pai” do Cubismo, porque, por volta de 1907–1908, juntamente com
Georges Braque, foi fundador dessa abordagem revolucionária para representar a
realidade. Ele inovou a arte na época, usando elementos geométricos e colagens. Um de
seus quadros, La Guernica, é tido como uma das maiores obras de protesto social já
criadas.
Sobre o cubismo, informei que esse estilo artístico abriu possibilidades quase
infinitas para o tratamento da realidade visual na arte e foi o ponto de partida para
muitos estilos abstratos posteriores. Ao quebrar objetos e figuras em áreas distintas - ou
planos - os cubistas pretendiam mostrar diferentes pontos de vista ao mesmo tempo e
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dentro do mesmo espaço e, assim, sugerir sua forma tridimensional. Ao fazer isso, eles
também enfatizaram o aspecto bidimensional, em vez de usar os recursos para abarcar a
profundidade, como priorizado anteriormente por artistas no Renascimento, que para
representar o espaço tridimensional se valiam da linha do horizonte, do ponto de vista,
do ponto de fuga e das linhas de fuga.

Bibliografia
1. OSTROWER, Fayga: A sensibilidade do intelecto. Rio de Janeiro, Elsevier, 1998.
2. OLIVER, Sacks: Ver ou não ver. In: OLIVER. Sacks. Um antropólogo em Marte.
Sete histórias paradoxais. Trad. Bernardo Carvalho. São Paulo, Companhia do
Bolso, 2006.
3. PIAGET, Jean:O desenvolvimento do raciocínio na criança. Rio de Janeiro,
Record, 1977.
4. OS DEUSES DEVEM ESTAR LOUCOS (The Gods Must Be Crazy). Direção de
Jamie Uys. África do Sul,1980. (109 min.).
5. À PRIMEIRA VISTA (At First Sight). Direção de Irwin Winkler. EUA, 1999. (129
min).
6. Equipe Editorial: Artref c2009: El Toro de Picasso: do acadêmico ao abstrato.
Disponível em https://arteref.com/arte/as-etapas-de-el-toro-de-picasso-do-
academico-ao-abstrato/. Acesso em 26 abr. 2021.

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