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FACULDADE DE COMUNICAÇÃO
FILHOS DO CÁRCERE
INOCENTES CUMPREM PENA COM OS PAIS NAS PENITENCIÁRIAS
Salvador
2006
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FILHOS DO CÁRCERE
INOCENTES CUMPREM PENA COM OS PAIS NAS PENITENCIÁRIAS
Salvador
2006
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(Nelson Mandela)
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AGRADECIMENTOS
SUMÁRIO
UM OUTRO MUNDO
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Do outro lado da estrada, nada é belo. Pelo menos para os olhos acostumados
com outras paisagens e que vê, pela primeira vez e de tão perto, no quadro a sua frente
uma pintura mal feita, mal acabada, mas real. Uma pintura de casas sobre casas. Difícil
precisar onde cada uma começa e termina. No horizonte, apenas um mar de muros e
paredes vermelhas. Pequenas casas residenciais e comerciais sem reboco e sem pintura.
Blocos vermelhos expostos. Esgotos expostos. Em um canto e outro, poças d’água
acumulada pela chuva. Sintomas da pobreza...
ZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIM...
Atenção! As sirenes gritam. Estão apressadas, aflitas, agudas. Olhem para trás!
Coração acelera. Olhos acompanham o grande furgão cinza passar apressado, rasgando
a estrada. Podese enxergar, na imediata passagem, que carregam homens fardados em
marrom denso e ocre, óculos escuros, negras armas apontadas para o chão. Impõem
medo. Intimidam. Como se de qualquer lugar e a qualquer momento pudesse surgir a
ameaça. Como se bandido fosse qualquer um dos transeuntes. É preciso que estejam
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atentos, protegendo o que carregam ali dentro. Proteger? Proteger o quê de quem? Ou
quem do quê?
Aaaaaaaaaaaaaah...
ZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIM...
Do lado de fora, não dá para ver nada além dos portões abrirem e fecharem
rapidamente, após a passagem do carro cinza. Nem mesmo as pessoas que estão ao lado
dos grandes portões, a maioria com semblantes angustiosos e olhares submissos,
carregadas de sacolas plásticas e esperando a autorização para entrar, podem ver na
passagem do furgãoarmado mais que os intimidadores homens fardados.
Mas nem tudo é só cinza, nem tudo naquele bairro é tão espantador quanto o seu
nome: Mata Escura. O céu, por exemplo, hoje acordou azul por ali também. Poucas são
as nuvens no céu. O sol da manhã que ainda se inicia aquece suavemente os rostos dos
caminhantes. Seguindo na beira da estrada, entre o asfalto e o barro, na continuidade
dos muros de blocos cinza, repletos de limo e de lodo, surge um portão branco. Branco
como a paz. Branco como a pureza dos que são acolhidos ali, e que estão tão próximos
daquilo que a sociedade considera o lixo social. Mas ao contrário do que muitos podem
pensar, as criaturas abrigadas por trás daquele portãozinho branco, ainda não se
deixaram sujar por dentro.
Ainda na varanda, um quadro com letrinhas azuis avisa: Quem vier, de onde
vier, venha em paz.
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Difícil não perceber rapidamente que de dentro da casa ecoam vozes infantis
sobressalentes a três vozes adultas femininas. Na porta de entrada, uma portão branco
gradeado, porém aberto, dá acesso a uma sala ampla repleta de sofazinhos, mesinhas e
cadeiras infantis. Nela, há poucos móveis, todos brancos embutidos em cada um dos
quatro cantos. É possível notar também, na parede diante da porta de entrada, um
quadro de aproximadamente sessenta centímetros de altura por quarenta de largura com
uma imagem de Jesus Cristo abraçado por crianças. Ao redor do desenho bíblico,
pequenos pôsteres com fotos individuais de várias crianças, geralmente sorridentes,
emolduradas com desenhos de flores. Não é possível, contudo, permanecer por muito
tempo atento aos detalhes do local, quando onze crianças estão na sala num engraçado
alvoroço. Umas falam, outras gritam, outras riem, outras balbuciam. Demonstram a
radiante alegria de serem crianças.
Eles não vão conosco – avisa a freira, convocando as outras crianças a seguiremna –
Já são quase nove horas e precisamos nos apressar...
meio, quatro crianças menores se ajeitam com uma “madrinha”, que carrega o afilhado,
um bebê de um ano e meio, no colo. A freira conduzirá o carro e, no carona, uma das
“tias” carrega uma menininha de sete meses.
Cada criança ganha da italiana uma caixinha de pastilhas sabor laranja, o que as
deixam ainda mais sorridentes. Apenas uma garotinha de aparentemente quatro anos
não se deixa contaminar pela alegria das outras crianças.
Então nada de ficar pedindo doces e sucos para a mamãe! Elas estão “trabalhando” e
não têm dinheiro para essas coisas, certo?
Ceeeeeeeerto.
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‘Vamos Construir’, música de Sandy & Junior
2
Por questão de segurança os nomes das crianças e de alguns personagens foram preservados e
substituídos.
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Quanta alegria surge no ambiente com a chegada das crianças... São pequenos
raios de luz invadindo um local onde o sol não costuma aparecer.
As circunstâncias da vida fazem com que elas percebam, desde cedo, que são
diferentes das demais crianças. Nesta “escola”, não são os pais que buscam os filhos.
São os filhos que vão de encontro aos pais...
Quando foi condenada a quatro anos e meio de prisão por tráfico internacional
de drogas, Dorothée descobriu, já na cadeia, que estava grávida de dois meses. Toda a
gestação foi na prisão. Após nascer, Jean só ficou seis meses com ela, na cela, período
da amamentação.
Ele se comporta bem na sua casa? – pergunta Dorothée, num fluente português,
praticamente sem sotaque, tentando livrarse de mais explicações e lembranças do
passado delinqüente que a colocou ali, atrás das grades e privada da convivência com o
único filho – Nos primeiros dias ele não estranhou você e sua família?
Vou sair daqui... O advogado vai entrar com um habeas corpus. Vou ganhar a
condicional, ficar aqui em Salvador por algum tempo e depois irei com meu filho para o
exterior, onde tenho família.
É o que Dorothée sonha. Assim como outras presidiárias, ela é consciente de que
pode não ser importante para a sociedade, que a rejeita e que a condenou à
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marginalidade muito antes dela ser condenada à detenção, mas certamente o é para seu
filho. Por isso, quando sair dali, o levará com ela, na ilusão de uma esperança que não
deixa morrer: a de que será feliz ao lado dele...
Trarei uma foto dele que mandei ampliar e fazer um pôster – prometeu a madrinha de
Jean.
Todas as famílias que apadrinham as crianças, por mais que no início das visitas,
nos primeiros finais de semana juntos, aleguem que não estão interessadas na adoção
definitiva, quase sempre acabam se apegando de tal forma à criança acolhida, que se
interessam em adotálas. Criam com elas um vínculo forte a tal ponto que quando as
mães saem do presídio e retomam a guarda das crianças, cessando a “adoção de final de
semana”, os padrinhos sofrem intensamente. Mas Irmã Adele não cansa de explicar... O
‘Nova Semente’ existe para criar laços e incentivar a manutenção deles; não é uma
instituição de abrigo que promova a adoção. A maioria das crianças que ficam no
Centro em regime de internato está ali porque têm pai e mãe presos, mãe presa e pai
desconhecido, ou não possuem alguém da família materna ou paterna que queira ou
tenha condições de responsabilizarse por elas. E, justamente por esta razão, algumas
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das presidiárias preferem deixar os filhos sob os cuidados da instituição. Elas temem
perder as crianças para uma família adotiva, que roubaria delas o direito de serem mães.
Irmã, o pai dele pergunta insistentemente pelo filho. Será que a senhora pode leválo
para visita no pavilhão cinco?
Irmã, estou com uma gripe forte, não posso ficar com ela hoje. Pode leválo.
Irmã,...
Irmã,...
As crianças mais crescidas, já estão à vontade, brincam com uma bola de futebol
no salão polivalente, de onde também se pode ver, em um cantinho, recolhida em
silêncio e afastada das demais presas e de seus respectivos filhos, uma mãe acalentando
no seu seio esquerdo sua filha de sete meses, Brigite*, há pouco tempo retirada do seu
convívio, quando esgotado o período estabelecido por lei para amamentação.
Às quinze horas voltará ao local para buscar as crianças. É importante que neste
tempo mães e filhos fiquem à vontade para conversarem, se tocarem, sentir um o cheiro
do outro, ouvir suas vozes, se reconhecerem. Não carecem supervisão; precisam de
privacidade. Se não é possível toda, pelo menos ofereçamos a elas um pouco mais de
privacidade, esclarece Irmã Adele, arrastandose em suas velhas sandálias Havaianas e
dirigindose para o carro, de mãos dadas com uma das crianças, Maria Clara, que mais
uma vez não pôde ficar com a mãe, pois ela alegou estar doente e seria melhor pra a
criança manterse afastada dela.
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Uma semana se passou desde a última visita. É visível nos olhinhos recém
despertos das crianças um pouco da saudade que carregarão por mais sete dias. Todas
necessitam de atenção. Crianças sempre precisam. Algumas requerem com um choro,
um dengo ou uma malcriação, aspirando um pouco de atenção. Outras, porém, isolam
se, com semblante jururu, enquanto manuseiam solitariamente um brinquedo. A
carência material das crianças do Nova Semente é grande, mas consegue ser suplantada
pela carência afetiva delas. Colo, carinho e atenção são o que elas mais carecem. Por
mais que tentem, Irmã Adele e suas duas assistentes, Conceição e Domingas, não
conseguiriam substituir o colo materno que tanto faz falta a cada uma das crianças. São
apenas três colos para tantas crianças... E nesta manhã a chuva parece aumentar a
carência dos pequenos. Hoje não há como correr pelo jardim, está tudo molhado, e por
isso elas permanecem na sala com os demais enquanto Conceição prepara, na cozinha,
algumas mamadeiras. A outra babá, foi levar as crianças mais velhas na crecheescola
do Nova Semente, localizada há aproximadamente quinze metros dali. Lá estudam
cento e dez crianças de três a seis anos, das quais oitenta são filhas de pais detentos e as
demais são crianças carentes que não possuem pais reclusos no sistema penitenciário,
mas que vivem na região da Mata Escura. Na casalar do Nova Semente, em regime
semelhante ao de internato, são abrigadas trinta e cinco crianças filhas de pais
presidiários, a mais velha com treze anos e a mais nova com nove meses.
No abrigo, as seis crianças que ainda não atingiram a idade escolar ficam na
ampla casa. Na sala principal, localizada em frente à cozinha onde Conceição, uma
jovem mulata magra de singulares olhos verdes escuros, prepara a primeira refeição dos
bebês, estão Jean, um ano e meio, e Brigite, sete meses, devidamente enlaçados em
cadeirinhas de comer. Em um gradeado cheio de brinquedos está o grande bebê loiro de
olhos azuis, que tem o nome e se assemelha a um anjinho saído de um comercial
infantil, Gabriel*, nove meses. Circulando livremente pela sala, apenas Rebeca*, uma
garotinha negra de dois anos com rococós coloridos no cabelo, e Alex*, um sedutor
menininho de três anos, que sorri com os lábios e com os olhos. Em um dos oito quartos
da casa, uma menina franzina, nove meses de vida, ainda encontrase no berço. Suele* é
a única que ainda dorme. A dorminhoca garotinha, cujo pai é expresidiário, vive no
Nova Semente por exceção consentida por Irmã Adele diante do desespero da mãe, uma
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doméstica que vive na Mata Escura e trabalha a quilômetros e quilômetros dali, que
com a prisão do marido se sentiu impossibilitada de criála. As crianças que têm o pai
preso, mas a mãe livre, geralmente ficam sob a responsabilidade das própria genitora.
Mas Rosa* insistiu pelo acolhimento da filha, que possui problema de desenvolvimento
motor, pois não poderia dar à criança os cuidados especiais de que necessita, uma vez
que trabalha duro durante todo o dia e já possui outros dois filhos, que estudam na
creche e residem com ela em um barraco, para sustentar. Rosa foi informada de que as
crianças que vivem no Nova Semente são atendidas por uma equipe formada por uma
psicóloga, uma médica pediatra, uma pedagoga, uma coordenadora, quatro professores
e quatro babás (ou, como chama Irmã Adele, educadoras). Também auxiliam o trabalho
da casalar e da crecheescola quatro merendeiras, duas faxineiras e quatro porteiros. A
maioria dos funcionários é paga pela Fundação Dom Avelar; poucos são voluntários.
Jean, tira a mão da boca, meu amor. Que carinha descarada deste menino. Olhe só,
Conceição, parece um homenzinho – derretese Domingas.
Não faz assim, meu amor, abre a boquinha... – pede suavemente Conceição, retirando
o pedaço de pão que enche a boca do menino.
No meio da sala, Rebeca está parada, torcendo as mãos e olhando para o chão,
como se tivesse feito algo de errado.
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Você fez cocô nas calças, Rebeca? Porque não pediu para ir ao sanitário? – questionou
Domingas, entendendo o comportamento da criança.
Sem se mover, Rebeca começa a franzir o rosto e duas lágrimas caem ao mesmo tempo
dos seus olhinhos. Aos poucos abre a boca num choro mudo e depois começa a soluçar
e a chorar alto. Sempre sem mover uma perna, nem erguer a cabeça.
A freira adentra a sala com estranhos visitantes, que causam a desconfiança das
crianças. São um grupo de quatro mulheres e um homem, todos jovens italianos, que
apadrinham de longe os meninos e meninas do Centro Nova Semente, e estão ali para
conhecer a instituição. Eles estão todos vestidos de maneira semelhante: bermudas e
blusas de algodão com as mangas curtas, meias cinzas e botas tipo coturno nos pés.
Amarrados no pescoço de cada um, lenços verdes e vermelhos ligeiramente torcidos e
presos por um pequeno broche até a altura do peito. Parecem pertencer a um grupo de
escoteiros.
Rebeca, que no meio da sala ainda chora sem parar, é carregada por outra
italiana, que não entende o porquê de tanto choro.
Hum.... se eu fosse você não faria isso – comenta Domingas com a entonação da voz
bem baixa, referindose à atitude da estrangeira e retirando um sorriso reprimido da
boca de Conceição, que mastiga um pedaço de pão.
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A visitante, sem ouvir nem tampouco entender o motivo dos risos contidos das
babás, senta no sofá, pondo no colo a menina que chora e chora...
Enquanto os italianos aguardam na sala, Irmã Adele vai até o quarto e troca o
hábito bege que costuma usar diariamente por um traje semelhante, porém cinza. Na
sala, ela convida os visitantes a acompanhála. Irão ao presídio masculino. Um lugar
que considera execrável... As crianças ficam. Os italianos estão interessados em
conhecer as condições do estabelecimento prisional masculino brasileiro. O rapaz que
acompanha o grupo fica na casa, brincando com Alex no jardim, enquanto as visitantes
italianas seguem com a freira.
Aqui essas crianças recebem alimentação, carinho, atenção, educação escolar e cristã.
Fazemos a nossa parte. Na maioria das vezes elas chegam aqui em condições
lamentáveis: doentes e desnutridas. Cuidamos delas, e nos entristece ver algumas saindo
daqui com futuro incerto ao lado da mãe e tendo que conviver em ambientes com
princípios completamente diferentes daqueles que elas aprenderam aqui.
suas mães vão buscálas. São geralmente pessoas muito pobres que residem em outros
bairros, mas que optam por deixar seus filhos na creche do Nova Semente pois ali
recebem tratamento diferenciado. É o caso de Gertrudes*, que preferiu deixar as duas
filhas sob os cuidados da creche de Irmã Adele por que lá elas estariam mais próximas a
crianças que vivem “a mesma realidade” das suas crianças e, desta forma, não sofreriam
constrangimentos caso citassem que o pai é presidiário. A sua filha mais nova, Kelly*,
seis anos, adora desenhar. Em uma das atividades da creche, no meio de diversos papéis
coloridos, a menina pega uma caneta hidrocor preta. Faz caprichadamente um rabisco
pra lá e outro pra cá e pronto! Irmã Adele, ao olhar aquele desenho que será enviado
para uma das entidades italianas que auxiliam o Nova Semente no final do ano,
anexado a um cartão de Natal, entristece. A menina desenhou quatro pessoas na frente
de um grande muro: seu pai, sua mãe, ela e a irmã mais velha, de nove anos. Nos
semblantes dela, da genitora e da irmã, no desenho, sorrisos; no do pai, entretanto, uma
boca virada para baixo. O desenho que fez do genitor o apresenta como um homem alto,
de grandes mãos e dedos, além de cabelos assanhados: uma figura quase monstruosa.
Mas ela orgulhase:
Adele explica:
ANJ O E BANDIDO
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Gabriel*, o lindo bebê loiro de radiantes olhos azuis, é a criança que chegou
mais nova no Centro Nova Semente. Tinha apenas um mês de vida quando, por
segurança, teve que ser retirado do convívio com a mãe, a então presidiária A.C. 3, que
preferiu entregar o menino aos cuidados de Irmã Adele, pois a sua vida e a do filho
corriam risco. Reincidente, A.C. foi presa em maio de 2005 por formação de quadrilha,
quando foi abordada pela Polícia Federal, juntamente com outros parceiros, em um
hotel da cidade de Cruz das Almas, enquanto se preparavam para mais um assalto. A
bela jovem branca, de lisos e longos cabelos castanhos acobreados, estudante do nível
médio, era parceira do bandido Mário César Jesus Pereira, o MC, e tinha apenas
dezenove anos quando foi recolhida para a Penitenciária Feminina, onde descobriu que
estava grávida, atribuindo a paternidade ao então presidiário MC.
Sob seu comando, o pavilhão cinco era um dos mais organizados do Complexo
Penitenciário do Estado. Paredes azuis com belas e coloridas pinturas com imagens
bíblicas e paisagens; alas de evangélicos e católicos separadas; uma ampla cela
transformada em igreja evangélica; aparência limpa; e presos aparentemente obedientes.
Tudo organizado pelo “xerife”. Em muitas celas e oficinas, molduras presas nas paredes
principais apresentavam uma foto de MC trajando paletó e gravata – diferente de sua
vestimenta comum: calça jeans, blusas no estilo rapper e um boné de couro preto com
as letras MC bordadas em amarelo –, que lembravam as fotos oficiais de governantes,
facilmente encontradas em gabinetes de instituições públicas. Respeitado pela maioria
3
O nome da expresidiária foi preservado por não ter conseguido ouvila.
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dos agentes penitenciários e pelo próprio diretor da PLB, André Augusto Barreto
Oliveira, o presidiário adquiria mais e mais poder na prisão. Sem querer se identificar,
alguns funcionários do presídio explicaram que a diretoria aceitava, ou pelo menos se
calava em relação ao comando de MC pois ele oferecia em troca a “paz” no pavilhão,
sem rebeliões e sem conflitos. Seu poder era tanto que, enquanto outros presos eram
obrigados a dormirem em celas superlotadas, muitas delas sem cama ou colchão, mas
com redes penduradas umas sobre as outras, MC tinha uma cela, ou melhor, um quarto
confortável só seu, com cama de casal, tapetes, televisão e guardaroupa.
A presidiária A.C., sua companheira, foi levada para o Hospital Geral do Estado,
para dar à luz ao seu filho, em novembro de 2005. Seu bebê nasceu grande e saudável,
branquinho, loiro e de olhos azuis. Na PLB, MC foi informado do nascimento e da
aparência da criança. Negro, ficou revoltado. Tinha certeza que, com aquelas
características físicas, o menino não seria seu filho, e sim fruto de uma traição de A.C.,
e por isso ameaçou matar a mãe e a criança. De volta à penitenciária com o bebê, a
presidiária foi informada da recusa de MC em assumir a criança, mas insistiu que o
filho era dele. Tanto que requereu ao Serviço Social da Penitenciária Feminina, dez dias
após o nascimento do filho, autorização para levar a criança para que o pai a
conhecesse, mas este se recusou. Ameaçada por outras presidiárias, que nos encontros
íntimos com seus parceiros presos no pavilhão cinco da PLB recebia ordem de MC de
matar a traidora e a criança, A.C. teve que ir para o “seguro”, uma cela isolada onde
geralmente ficam os presos ameaçados de morte ou de maucomportamento. Temendo
pela vida de seu filho, pediu para conversar com Irmã Adele. Faltavam apenas cinco
dias para o Natal, mas a mãe decidiu entregar seu bebê, de apenas um mês de vida, à
freira italiana, assinando, para isso, apenas uma declaração.
Governo da Bahia
Secretaria de Justiça e Direitos Humanos
Superintendência de Assuntos Penais – SAP
Conjunto Penal Feminino
Serviço Social
DECLARAÇÃO
A interna, emocionada e com medo, orientou à freira que não o trouxesse nos
dias de visita, como faz com as outras crianças, pois não queria que nenhuma outra
presa tivesse acesso a ele, e que também não confiasse o bebê a nenhuma família
madrinha, pois MC, como seqüestrador, poderia, através da sua quadrilha, localizála e
fazer mal à criança.
Mas Irmã Adele não se conformava em ver aquela criança retirada de tal forma
do contato com a mãe, ainda que por questão de segurança. Aquela situação ia contra os
princípios que defende desde que fundou o Nova Semente: estimular o contato, o amor,
a manutenção dos vínculos familiares, para que as crianças sintamse queridas,
amadas... Foi então que a freira italiana, entrando em contato com a diretora da
penitenciária, Silvana Selém, encontrou uma solução: os encontros entre a mãe e o filho
seriam mantidos, porém à noite e na sala da diretoria, para que as outras presas não
vissem. E era assim que, semanalmente, o bebê recebia o carinho materno.
uma babá. Primeiro, entrou sozinha no pavilhão cinco da PLB, onde foi recebida por
MC.
Estou com seu filho aí fora. Trouxe para que você o conheça. É uma criança tão
bonita...
Irmã, vou te dar uns doces e biscoitos para a senhora levar para suas criancinhas.
Non, non precisa – respondeu a italiana – Vocês aqui dentro necessitam mais destes
alimentos que as crianças lá da creche, que são bem alimentadas.
Não se preocupe, Irmã. Aqui no mercado temos de sobra, pode levar, explicou Mário
César, ordenando que um preso fosse até a mercearia pegar os pacotes de biscoito e
bombons.
no meio do pátio do pavilhão e ordenou aos internos que fizessem o que quisessem com
ela... Após receber os cuidados médicos, A.C. assinou um requerimento no Serviço
Social do Conjunto Penal Feminino para cancelar os encontros íntimos com Mário
César, “por motivos de desentendimentos”. Mas em apenas um mês tentou novamente
reconciliarse com o companheiro, e para ele escreveu, em 7 de fevereiro de 2006, numa
folha de caderno espiral de folhas amareladas, em português fraco e repleto de erros
ortográficos, uma carta de amor em que explicava que as “mentiras” que chegavam até
ele eram fruto da inveja de pessoas que fariam de tudo para separálos, e pedia para que
se reconciliassem. A carta, no entanto, não foi entregue ao presidiário, que acabara de
obter a liberdade condicional e sair da prisão, logo nos primeiros dias daquele mês.
Em março, A.C. pediu ao Serviço Social que a liberasse para encontro íntimo
com outro preso, Paulo Vitor Mascarenhas, da Unidade Especial Disciplinar, alegando
dois anos de amizade e cinco meses de namoro, e, na primeira semana de maio, com o
detento Moisés Silva, da PLB, que afirmou namorar há um ano e cinco meses. Mesmo
diante da notável mentira da presidiária, a visita íntima é um direito das presas, e o
Serviço Social não pode negar a elas o direito de exercitar a sexualidade.
Segundo estudo da OAB de São Paulo, que traçou, em 1998, o perfil das
mulheres encarceradas, a privação do exercício da sexualidade feminina gera alterações
no comportamento das presas e na sua opção sexual. Sem sexo, muitas delas optam pela
bissexualidade e outras pelo celibato, ambas opções não são fruto de sua vontade, mas,
sim, das suas circunstâncias. Na prisão, elas recebem menor número de visitas do que os
presos masculinos, fato que revela ainda o preconceito existente quanto aos direitos das
mulheres.
a criança. Um dia depois, A.C. devolveu a criança aos cuidados de Adele Pezone,
conforme prometera, e sumiu outra vez. Dois meses se passaram sem que a freira
italiana tivesse qualquer notícia da mãe da criança, quando no início da noite de uma
sextafeira apareceu A.C., com outro homem e em carro diferente, para pegar a criança.
Desta vez, Irmã Adele resistiu:
Eu cuido dele, Irmã, não se preocupe – acalmou A.C., levando a criança com ela e
prometendo que a traria de volta no domingo.
Ele está realmente gripado, chorando muito. É melhor que fique com a senhora –
justificou ao devolver o bebê para a freira, depois entrou no carro com o parceiro e
partiu.
Às dezoito horas e trinta minutos do último dia do mês de agosto, Irmã Adele
está no Centro Nova Semente, servindo a janta das crianças, quando o telefone toca. Do
outro lado da linha, uma amiga da freira diz ter lido em um site de últimas notícias que
um expresidiário de nome Mário César havia sido assassinado na Cidade Baixa.
No, no sei. Como posso saber? Não me disseram nada. Amanhã ligo para o presídio e
pergunto.
Não foi preciso ligar. Logo cedo a mãe de Gabriel avisou por telefone à freira
que o pai do menino havia sido assassinado por inimigos. Pediu a Adele que tivesse
ainda mais cuidado com a criança.
Eu também estou ameaçada, Irmã. E eles podem querer fazer algo de mal contra meu
filho como forma de vingança. Não permita que ninguém estranho se aproxime dele,
por favor, suplicou.
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Nos jornais do dia, a notícia do assassinato estava presente nas páginas policiais.
Salvador, Bahia
SextaFeira , 01/09/2006
1º Caderno
Exdetento executado dentro de táxi
E desde que foi assassinado, o expresidiário MC, que tinha o nome na lista de
presos ressocializados da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (SJDH), passou a ser
constantemente citado em denúncias de matérias jornalísticas a respeito da empresa que
montara na Penitenciária Lemos Brito e do poder paralelo que a comandava. As
denúncias resultaram no afastamento do diretor da PLB, André Oliveira.
A jovem A.C., por sua vez, não mais apareceu e nem deu notícias à Irmã Adele
sobre o seu paradeiro. Nem mesmo no aniversário de um ano do seu filho foi capaz de
dar um telefonema sequer. O primeiro aninho da criança foi comemorado na casa de um
italiano que, em visita ao Centro Nova Semente, acabou se “apaixonando” pelo bebê e
resolveu adotálo como afilhado. O pequeno Gabriel, cada vez mais bonito e esperto,
continua sob os cuidados de Irmã Adele, recebendo todo amor e carinho da freira
31
italiana e de suas ajudantes. Seu futuro, porém, é incerto. Impossível prever quando a
sua mãe vai voltar, se voltar, e levará o menino com ela. Irmã Adele prefere nem
imaginar isso...
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FESTA E AGONIA
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Hoje é dia de festa. No jardim do Centro Nova Semente foi instalado logo cedo
uma cama elástica azul. Quando dão conta do brinquedo, as crianças correm em direção
a ele.
Pulapula! Um pulapula!
e poucos anos, trajando uma calça jeans, blusa de algodão branca e um boné preto,
chegou querendo levar a criança o mais rápido possível. Estava em posse de um
documento em que a mãe da menina, a presidiária Luciene, declarava que cedia a
guarda da criança para ele, Wellington dos Santos, um exdetento com o qual manteve
relações. Irmã Adele demorou em reconhecêlo, mas há mais ou menos três anos foi
este mesmo homem que esteve na crecheescola, acompanhado de duas exdetentas,
para entregar um bebê desnutrido e apresentando problemas de pele para que ela
cuidasse: a menina Maria Clara.
– Já são onze horas e tenho passagem de avião marcada para as doze e meia para o Rio
de Janeiro. A menina vai comigo agora – explicou Wellington, em tom nervoso e
apressado, mostrando a declaração assinada pela mãe da menina – Há um táxi à nossa
espera, cadê ela? Quem é a Maria Clara?
O homem nem sequer reconhecia a criança no meio das outras. Nem tampouco
sabia que o motivo daquela festa era justamente o aniversário da menina. Irmã Adele o
informou, mas, meio conturbado no meio de tanta gente, ele disse sem nenhum tom de
sensibilidade e numa completa indiferença que não dava para esperar os parabéns.
– Eu não vou, eu não quero ir! – repetia Maria Clara entre soluços.
àquele homem, tentou sensibilizálo e pediu que ele esperasse os parabéns da criança.
Olhando insistentemente para o relógio e alegando que havia um táxi à sua espera, ele
quis recusar, mas, ao notar a quantidade de pessoas adultas presentes na festa, muitas
delas reconhecidamente pessoas “estudadas”, resolveu esperar do lado de fora da casa,
mas no jardim, em frente à guarita.
Aos poucos as crianças foram ficando mais calmas e logo se divertiam novamente com
a festa, as bolas de soprar, o bolo colorido, o pulapula, as fotos... Os adultos tentavam
disfarçar a tensão. Irmã Adele pensava. Martelava na sua cabeça aquela contradição:
avião e rodoviária? Há algo de errado. O coração não se tranqüiliza e diz que não deve
entregar a criança.
Irmã, a senhora não pode permitir que este homem saia daqui levando a menina. Não
sabemos a intenção dele – alertava uma jovem estudante de Direito, amiga dos
padrinhos de Clara.
Tenho um amigo delegado e vou tentar resolver isso! – informava outra convidada
apressandose em procurar na agenda do telefone celular o número de tal amigo.
Enquanto isso, por desespero, Irmã Adele sorria. Quando ela fica muito nervosa,
sem saber que atitude tomar, a freira sorri.
Non se preocupem! Imagina! Ele não levará a menina daqui só por causa daquele
papel – explicava Adele Pezone, sorrindo e tentando disfarçar a preocupação para os
convidados, ao mesmo tempo em que ela própria tentava se convencer das suas
palavras.
Mas senhor, já são quase doze horas. Seja onde quer que queira ir, este é um bairro
muito longe. Ainda precisaremos arrumar as malas da menina. Acredito que o senhor
tenha que remarcar a passagem, e depois de tudo resolvido o senhor poderá levar a
menina – sugeriu Irmã Adele, num tom suave e seguro, olhando nos olhos do
desconhecido, tentando ganhar sua confiança.
Sou o pai de Maria Clara e vim buscar ela. Já conversei com a mãe dela, que me
autorizou a ficar com a menina. Vamos viajar.
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Entendendo que não obteve êxito naquela primeira tentativa, o homem não se
demorou e seguiu seu caminho, mostrandose frustrado. Lúcia apressouse em informar
o fato à freira, que, acompanhada de uma das babás, pegou a criança na creche e dirigiu
se até o Complexo Penitenciário do Estado, onde as assistentes sociais da Penitenciária
Feminina, Simone e Lícia as aguardavam, já cientes do assunto. Pediu, então, que
chamassem a mãe da menina.
Permaneceu presa em Ilhéus, quando Wellington também foi preso por roubo
seguido de violência física contra a vítima. Os dois ficaram na mesma cadeia, até que
Luciene foi transferida para o Conjunto Penal Feminino, em Salvador, grávida de cinco
meses. Em seguida, após a sua condenação, Wellington veio transferido para a Colônia
Lafayete Coutinho, e os dois continuaram a manter contato, através de encontros
íntimos na penitenciária. Quando Maria Clara nasceu, Luciene declarou que a menina
era filha dele, mas depois afirmou que ele não era o pai da criança, e sim outro preso, e
que mentiu para que ele a registrasse.
A pequena Maria Clara, ainda quando tinha poucos meses de vida, foi levada por
uma mulher, que segundo Luciene seria madrinha da criança, para morar em Ilhéus.
Cerca de seis meses depois, a menina foi trazida de volta a mando da mãe, pois a
madrinha não havia “cumprido o negociado”, que, segundo Luciene, era trazer a menina
a cada dois meses para vêla. Clarinha foi, então, entregue ao Centro Nova Semente.
Na sala do setor de Serviço Social, onde Irmã Adele esperava a chegada da mãe
de Maria Clara para esclarecer o fato de um desconhecido ter ido até a creche para levar
a criança, Luciene chega com olhar de poucocaso e cabeça erguida. Demonstrandose
segura, permaneceu calada, até que a freira questionou:
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É verdade que você autorizou um homem de nome Wellington, que se diz pai da
criança, ir buscála na crecheescola e levála com ele?
Espantada com o descaso e com a simplicidade com que a detenta falava, a freira
questionou o porquê de tal atitude.
Ele vai levála para o Rio de Janeiro. Ficará com a menina até eu sair daqui. E então
ele mandará me buscar para ir morar com ele lá também – informou a presidiária.
Mas você sabe se ele tem condições mesmo de sustentar a criança lá? E como tem
certeza de que ele depois mandará te buscar? Soube que ele já tem relação com uma
garota de dezoito anos lá, conforme ele falou. E você mesma não já possui outro
companheiro aqui no presídio masculino? – indignavase a freira.
O senhor não acha que a menina ainda não o conhece bem, não lembra do senhor e
será difícil para ela adaptarse num lugar tão diferente, tão longe como o Rio de
Janeiro?... Não prefere esperar mais um pouco, se aproximar mais da criança, para
depois levála?
Dona Simone, até parece que a senhora não quer que eu fique com a criança –
respondeu o expresidiário em tom irônico e ameaçador.
Não! Imagina? Estou apenas tentando fazer uma ponte entre vocês dois... – explicou a
assistente social.
Mas diante de tanta insistência, não houve jeito. Ela elaborou a declaração com
os dados fornecidos por Wellington e deu para a presidiária assinar. Simone sentiase de
mãos atadas. O que fazer neste momento, se a creche não é sequer regularizada junto ao
Juizado da Infância e Juventude? Para evitar aquela situação, seria preciso ter a guarda
provisória da criança, mas, mesmo com sete anos de existência, a creche não está com
um funcionamento regular perante o Juizado, embora a Irmã Adele e o padre Filip
Cromheecke, coordenador da Pastoral Carcerária, juntamente com a diretora do
Conjunto Penal Feminino, Silvana Selém, tenham tentado resolver a condição diversas
vezes perante o Juizado, sem sucesso, como declararam. A retirada das crianças do
presídio, a sua institucionalização no Centro Nova Semente e até mesmo o
apadrinhamento das crianças por famílias voluntárias, tudo ainda acontece de maneira
informal...
Adele Pezone nunca imaginou passar por problema semelhante, foi a primeira
vez. E agora se via ali, tendo que enfrentar a insistência, as ameaças sutis, por parte
daquele homem que se dizia pai de Maria Clara. Quando esteve na penitenciária no dia
anterior, acreditava que era mais uma decisão frívola da mãe da criança, que vive
41
mudando de opinião sobre as coisas, e que tudo acabaria bem. Mas agora, depois da
desagradável surpresa durante a festa de aniversário de Clarinha, e enquanto se
deslocava de carro até o centro de Salvador, onde buscaria ajuda, ela lembrava dos
detalhes, dos gestos, das palavras do exdetento: “Irmã, eu não quero ser seu inimigo...”.
Nunca havia passado por uma situação parecida. Não sabia como agir, nem com quem
estava a razão. Será que realmente ele pode levála? Aquele documento que apresentou
é legítimo? E se ele, como suspeitou a professora, for usuário de drogas ou traficante? E
se ele quiser vender a menina? Ou prostituíla? Não, não seria justo, pensava...
Um problema muito grave, minha filha. Com esta criança. Um homem estrangeiro
[estranho] quer levála para o Rio de Janeiro. Ele é expresidiário e a registrou como
filha, mas nunca visitou a menina e agora quer ficar com ela. A detenta, mãe da menina,
deu este documento a ele, autorizandoo a levar a criança – explicava Adele, mostrando
a declaração emitida pelo Serviço Social da penitenciária...
Adele foi conduzida até uma sala de triagem, onde foi em poucos instantes atendida.
Desconfiando das outras pessoas que aguardavam o atendimento, a freira explicava
baixinho à Cecília, a funcionária do Ministério encarregada pela triagem, o que a levou
até ali. Muitas vezes, devido ao sotaque italiano, ela tinha que repetir algumas
42
Nesse mesmo tempo, a estudante amiga da freira italiana tentou, com calma,
obter mais detalhes sobre os fatos que fizeram com que a Irmã Adele e Sônia
procurassem ajuda no Ministério Público. Soube, então, que foi o Conselho Tutelar que
orientou a freira a procurar aquela instituição, e que o homem que se dizia pai da
criança e que queria levála tinha um comportamento contraditório e aparentava estar
sob efeito de drogas. A estudante buscou, então, orientação no setor responsável por
tratar dos casos relacionados a problemas com crianças e adolescentes naquela
instituição, o Centro de Apoio Operacional às Promotorias da Infância e Juventude.
Conversou com a coordenadora do departamento, a procuradora de Justiça Lícia de
Oliveira, que, entendendo a gravidade do problema, a encaminhou até a sala da
promotora de Justiça Ana Bernadete Andrade, que atua nos casos de crianças
vitimizadas, onde também já se encontrava Cecília, tentando explicar o caso contado
pela freira.
Ela não procurou ajuda no Conselho Tutelar do bairro onde está instalado o abrigo? –
questionou a promotora.
Sim, e a encaminharam para cá. Parece que o rapaz está pressionando a freira para
levar a menina, já que tem a autorização da mãe – explicou a estudante.
Mas este documento, esta declaração, não possui validade para que ele leve a criança.
É preciso entrar em contato com o Conselho Tutelar do bairro do Rio de Janeiro, onde o
suposto pai mora, para que seja avaliado se ele preenche os requisitos necessários para
ficar com a guarda da menina e se há as condições de moradia adequadas à criança. Não
é tão simples assim...
O problema é que ele a aguarda na creche. Não quer sair de lá sem a menina. E pelo
que me disseram, está muito nervoso, aparentando inclusive estar drogado...
Mais grave, ele não pode em hipótese alguma ficar com a criança! – alertou Ana
Bernadete.
43
Não é melhor a senhora mesma conversar com a freira sobre isso, ela está aí fora.
Irmã Adele foi então encaminhada pela funcionária até a sala da promotora de
Justiça da Infância e Juventude, que a aguardava. A freira e Sônia explicaram tudo que
tinha acontecido naquela manhã e clamavam por ajuda.
Não posso sair daqui sem um papel ou alguma coisa que o impeça de querer levar a
criança – disse Adele em tom de súplica.
Claro. Nós vamos mandar uma notificação para que a senhora entregue ao rapaz, onde
está bem explicado que ele precisa comparecer a uma audiência aqui no Ministério
Público na próxima segundafeira, quando ele conversará comigo. A senhora também
deverá estar presente – explicou a promotora, pausadamente, com muita paciência,
tentando tranqüilizar a freira.
Cadê a menina?! – questionou de forma aflita o rapaz, ao ver a Irmã chegar sem Maria
Clara.
Então se a senhora quer escândalo, terá escândalo!– ameaçou Wellington, que saiu
irritado do Centro Nova Semente.
44
Mesmo com a atitude agressiva do rapaz, Irmã Adele estava mais tranqüila e não
se intimidou. Pelo menos a menina estava segura...
***
Toda criança e adolescente que vive em um abrigo, por melhor que seja a
instituição, está com seu direito à convivência familiar e comunitária violado. Segundo
o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 19, “toda criança ou
adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e,
excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e
comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias
entorpecentes”. Ainda de acordo com o texto legal, o abrigamento de crianças em
instituição é uma medida de proteção, quando seus direitos forem ameaçados ou
violados por ação ou omissão da sociedade e do Estado, ou por falta, omissão ou abuso
dos pais ou responsável. É, porém, uma medida provisória e excepcional, tendose
sempre como objetivo último o retorno da criança ou do adolescente abrigado à sua
família de origem. A retirada da criança do abrigo, entretanto, não deve acontecer de
forma simples, como explicou a promotora de Justiça Ana Bernadete:
Para qualquer criança que está abrigada retornar para a família, antes é preciso que
haja todo um procedimento de saber se aquela família realmente tem condições de
acolhêla. Porque a criança abrigada está protegida. Como é que você vai tirála do
sistema de proteção para reintegrar para uma família quando não há elementos para
isso?
O Centro Nova Semente, mesmo com sete anos de existência, ainda funciona
muito informalmente, e por isso, ao enfrentar problemas como o de Maria Clara, Irmã
Adele, desnorteada, não sabe qual atitude tomar. Além da declaração elaborada pelo
Serviço Social da penitenciária e assinada pelas mães presidiárias, não há nada legal.
Segundo o artigo 93 do ECA, as entidades que mantêm programa de abrigo podem,
somente em caráter de urgência, abrigar crianças e adolescentes, devendo comunicar a
autoridade competente em até 48 horas. A comunicação do abrigamento deve ser feita à
1ª Vara da Infância e Juventude, ao Ministério Público e ao Conselho Tutelar. Segundo
Irmã Adele, nada disso é feito, a não ser quando é justamente um destes órgãos que
determina o abrigamento da criança, mas poucos são os casos como este.
Muitas vezes, diante do pedido de uma presidiária que deixou os filhos morando
sozinhos, na rua ou com algum familiar que não tem condições de cuidar das crianças, e
para que elas não sejam entregues a uma instituição que permita a adoção, é a própria
freira quem vai até o local indicado pela detenta, seja onde for, e pega as crianças para
colocar no abrigo, tarefa que deveria ser feita pelo Conselho Tutelar, mas diante da
inércia deste, é ela mesma quem o faz.
Non, non, ainda non vejo ele aqui – respondeu Adele com seu sotaque italiano.
46
Non.
Então o rapaz não veio, Irmã? Eu tinha quase certeza de que ele não viria. Pelo que a
senhora informou dele... Essas pessoas têm medo do Ministério Público. Mas não se
preocupe. Como está a menina? – questionou a promotora.
Tá com a madrinha, achamos melhor que ela ficasse por lá por um tempo.
Então deixe a menina com ela por enquanto, se a senhora acha melhor assim. Nós
entraremos em contato com a mãe da criança, através das assistentes sociais, para apurar
porque ela quis dar a menina a esse homem e para tomar as medidas necessárias. A
senhora pode voltar tranqüila. Ele, que era o interessado, não veio...
Adele agradeceu e voltou para o Centro Nova Semente. Soube depois, através da
assistente social da penitenciária, que Luciene estava aflita e se mostrando arrependida,
querendo notícias da criança, tinha até tomado remédios para manterse calma. Irmã
Adele não hesitou em provocar a presidiária que tanta aflição trouxe para ela na última
semana e mentiu:
Fale pra ela que a menina agora está no Juizado de Menores, e ela bem sabe que lá
colocam a criança para adoção. Mas foi ela quem escolheu, ela quem escolheu... Eu não
posso fazer nada! – falou sorrindo.
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MÃE APENADA
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Pele amarelada, estatura baixa e magra, olhos tão castanhos quanto os longos
cabelos lisoondulados que enrola pela metade e prende no alto da cabeça, aparência
que em muito se assemelha ao povo cigano, com traços finos mas marcantes,
Gilvaneide Correia, a “Gil”, trinta e cinco anos de idade, jamais pensou na possibilidade
de afastarse dos seus filhos. Sentiu na pele o que significa crescer sem pai e mãe por
perto e precisar da boa vontade dos outros. A mãe biológica morreu logo após seu
nascimento. O pai, um carpinteiro, casou novamente, e morreu quando Gil ainda
criança, por isso ela não guarda na memória recordações sobre ele. Vinda de uma prole
de dez filhos, frutos do primeiro e segundo casamento do seu genitor, ela passou a
enfrentar muitas dificuldades financeiras com a família. Viúva, a madrasta, dona Rute*,
trabalhava como costureira na cidade de Conde, no litoral norte baiano, a 190 km de
Salvador, e recebia ajuda de sua mãe e de vizinhos para criar os filhos dela e os do
marido. Quando completou treze anos de idade, Gil iniciou as atividades laborativas.
Auxiliava a madrasta confeccionando roupas para clientes, e, por isso, acabou
limitandose nos estudos.
Aos dezoito anos de idade, Gilvaneide saiu de casa para morar com o bicheiro
Pascoal, com quem se casou. A relação durou doze anos e tiveram quatro filhos: Juca*,
Jonas*, Antônio* e Damiano*. Deixou o marido porque, segundo relata, a relação era
muito conflituosa. O companheiro bebia em excesso e a espancava, mesmo quando ela
se encontrava gestante.
Tenho várias marcas no corpo porque ele me batia muito – explica Gilvaneide,
mostrando cicatrizes nos braços – Às vezes ele sumia, saía de casa na quintafeira,
passava sexta, sábado e domingo fora de casa e vinha chegar na segundafeira!
Ele tinha jogo do bicho, sinuca. Mas gastava o dinheiro todo com cachaça e mulher da
rua. E nada pra dar para as crianças comer. Tinha dias que o balde tava de farinha assim,
cheio de farinha... Porque lá a gente costumava botar farinha no balde. Aí eu olhava pro
balde e só tinha farinha pra dar pras crianças comer. E aquilo foi me revoltando,
revoltando, revoltando... E com as ameaças dele! Hunf... – suspira fundo.
Ele vinha me procurar e eu dizia “rapaz, a gente não dá mais certo. Viva a sua vida
que eu vivo a minha”. Já fazia dois anos que a gente tava separado. Foi aí que conheci
um cara, só que a gente ainda não tinha nada, era só conversar. Aí meu exmarido veio:
“Ah, porque to sabendo que você tava pensando em morar com fulano. Botar ele dentro
de casa”. Eu disse: “Olhe, desde quando eu não tenho mais nada a ver com você, eu
posso ficar com quem eu quiser. Minha vida tá livre”. Aí ele disse que eu não ia ficar
com ele nem com mais homem nenhum e veio com o cabo da vassoura e me deu duas
pauladas, foi o tempo que caí no chão. E quando ele veio de novo, eu puxei o cabo da
vassoura da mão dele mesmo e dei duas pauladas aqui – justifica Gilvaneide, mostrando
o lado direito do pescoço – Matei. Logo que vi que ele tava morto, eu fugi. Eu já tinha
dado várias queixas dele na polícia, das agressões e das ameaças, mas não deu em nada.
O erro foi eu fugir depois de matar ele. Era legítima defesa...
Gil fugiu para Pernambuco, onde ficou durante alguns meses, na casa de
parentes. Os filhos ficaram com a madrasta. Com saudades deles, ela voltou para a
cidade de Conde e foi presa quando desembarcava na rodoviária. Ficou dois anos na
cadeia de Esplanada, onde conheceu seu atual companheiro, Rosivaldo Limeira.
cinco meses. Pouco tempo depois Rosivaldo, condenado a trinta e sete anos de prisão
por latrocínio, foi transferido para Salvador e encontrase na Penitenciária Lemos Brito.
Quando ele veio para cá, nos reencontramos, nos correspondemos por carta, e aí de
quinze em quinze ele vinha me ver. Mesmo grávida, eu fazia todos os exames e tinha
encontro íntimo com ele, e agora casamos aqui. Todo domingo a gente se vê. Eu vou
pra lá e passo o dia com ele.
Ah, mas não foi pra cima de mim não. Queriam criar problema com uma menina que
tava comigo na cela, e quando eu vi que não dava, pedi pra sair de lá. Depois de três
meses na cela com essa outra presa, pegaram e passaram as grávidas para outra galeria,
até o bebê nascer.
Nunca, nunca, nunca – repete Gilvaneide, balançando a cabeça e olhando para baixo –
Algumas vezes quando eles ligaram, o pessoal aqui mandou me chamar. Mas eles não
têm condição nem pra isso, e o lugar que eles mora num tem telefone. Duas vezes eles
foram na casa de uma vizinha e ligou. A gente têm essa dor..., suspira a detenta,
curvando os ombros para baixo, com as mãos unidas e apertadas no meio das pernas,
enrugando a testa, e prendendose para não chorar. Eles tão sofrendo muito, eu sei...
pai foi assassinado; a mãe presa. À dona Rute coube, mais uma vez, a tarefa de tomar
conta das crianças, com a responsabilidade agora de evitar que aquela tragédia atingisse
de forma mais contundente as cabecinhas daqueles meninos.
Meus filhos tavam na casa de minha mãe [madrasta] quando tudo aconteceu. Ela
ficava com eles enquanto eu tava trabalhando. Quando terminava, eu pegava eles na
casa dela e ia pra casa. Mas foi tudo tão rápido... Agora eu quero sair daqui – explica
Gilvaneide, agoniada.
Sem a presença dos filhos e da família, a detenta, que nunca recebe visitas, além,
claro, da do filho mais novo que está no Nova Semente e é levado até ela
quinzenalmente, lamenta:
Sintome desprezada. Sem carinho de mãe, sem a presença dos meus irmãos, que não
podem vir me ver porque é longe. Uns moram com minha madrasta, outros em
Pernambuco... O dia que eu me sinto mais triste é dia de visita, porque eu não tenho
visita. Eu vejo a visita de todo mundo chegando, e pra mim não chega ninguém... Então
eu me sinto humilhada, realmente desprezada.
É essa a minha dor. E por isso chamo muito por Deus. Porque tem dia que é difícil
agüentar... A gente entra em depressão porque quem tem visita sai [para o pátio], quem
não tem fica trancado [na cela] o dia todo. Ai... Eu tenho tanta dor, tanto sofrimento...
Ai meu Deus, eu não agüento mais ver aquelas criancinhas todas chegando e abraçando
suas mães e eu só posso ver o meu filho que está aqui na creche, nunca os outros...
Minha tristeza toda é essa, de não poder ver minha mãe, ficar à vontade com ela,
abraçar...
Ave Maria! Seria horrível. É ele que me faz ser essa pessoa calma aqui dentro. Penso
muito nele. Às vezes falta paciência, a pessoa desespera, quer revoltar, se matar. Mas
antes de fazer qualquer coisa, penso duas vezes, e penso nele. Aí não me junto nem com
aquelas que querem se revoltar. Gosto de ter meu filho por perto, de pegar nele, sentir
ele...
Para ela, o Centro Nova Semente é uma benção. Quando nasceu, o bebê dormia
na cela com a mãe, na mesma cama que ela, e com outras duas detentas, que dormiam
em colchões no chão. Não era um local adequado, admite, mas a detenta afirma que
costumava organizar e deixar tudo sempre limpinho. O Serviço Social da penitenciária
ofereceu todo o enxoval da criança, doado por igrejas. Durante o período em que ficou
com o bebê, Gilvaneide dedicouse ao máximo ao seu filho, mas ficava insegura o
tempo todo.
Na época eu tinha medo de ter qualquer coisa aqui, a cadeia “virar” e ter ele ali no
meio da confusão... Você sabe como é cadeia, né? Dia tá bom, dia tá ruim... Um dia as
presas tão boas, no outro dia tão revoltando tudo de novo. É muito perigoso.
Para não expor crianças indefesas a este e outros tipos de risco, como a de
contaminação por doenças contagiosas como a pneumonia e tuberculose, a Lei de
Execuções Penais (Lei nº. 7.210 de 11 de julho de 1984) prevê a obrigatoriedade de
inclusão de berçário e de creche nos presídios femininos. Mas o Conjunto Penal
Feminino não atende tal requisito. O prédio foi projetado e construído em 1990, já para
ser uma penitenciária exclusivamente feminina, mas não incluiu a instalação de berçário
e/ou creche, desprezando, desta forma, a Lei instituída seis anos antes. A própria
assistente social do Conjunto Penal Feminino, Simone Lima, que trabalha na
penitenciária desde a sua inauguração, há dezesseis anos, não entende porque não
incluíram o berçário no projeto.
Como é que você constrói uma unidade feminina, já existe uma lei que regulamenta a
necessidade de berçário e creche, e você não atende essa lei? Acho que é por conta do
pensamento machista mesmo. Eles não vêem a condição da mulher e as necessidades
exclusivas dela. Então fizeram um presídio como um presídio qualquer. Se você
observar a estrutura é muito semelhante às unidades masculinas e poderiam ser
53
diferenciadas. Poderiam fazer uma outra estrutura para as celas, poderiam colocar
creche e berçário, porque tinha espaço. Mas hoje no espaço que pertencia à Feminina
hoje tem a Central Médica e o COP (Centro de Observação Penal). A princípio havia
espaço para instalar um berçário, mas dividiram a Feminina em três partes. Tínhamos
uma quadra para as internas jogarem, fazer exercícios físicos, mas não temos mais este
espaço porque agora é do COP. Estamos encolhendo... Não temos mais pra onde crescer
aqui. E hoje o número de mulheres presas está aumentando! As mulheres também estão
entrando pra criminalidade, até mesmo por influência do companheiro. Não tem mais
presas aqui porque não cabe! Nas comarcas onde não tem presídio, as cadeias públicas e
delegacias, que também estão lotadas, mandam elas pra gente. Lá, elas estão nas celas
com os homens, engravidam e vêm grávidas para aqui. Tratando as mulheres como se
fossem homens que o sistema penitenciário gera todo esse problema. E quando a presa
parir, onde o bebê tem que ficar? Na cela! – revoltase Simone.
A assistente social, uma jovem e simpática negra de sorriso largo, diante dos
problemas que nunca mudam e que só se avolumam, demonstra na face seriedade e
insatisfação, mas resiste, como um soldado que não foge à luta ainda que a batalha
esteja praticamente perdida, e continua a explicar:
Na impossibilidade de se ter um berçário, para que as mães ficassem num local mais
reservado com os filhos, nós utilizamos um espaço, uma galeria, onde colocamos estas
internas com os filhos. Então nós a arrumamos, colocamos azulejo, desenhos infantis,
mas mesmo assim, por conta da superlotação, as presas que são mães e seus filhos não
têm mais como permanecer isolados. Já existem outras internas vivendo também nesta
galeria. A gente tentou adaptar, mas nós não tivemos como manter a adaptação... A
criança, então, permanece na cela com a mãe e tentamos fazer o possível pra essa mãe
ficar sozinha com o filho durante o período da amamentação, para que não tenha
contato com outras internas. Porque as internas têm aquele sentimento materno e
querem o tempo todo ficar pegando a criança, mas muitas delas são soropositivas, têm
problemas graves de saúde, doenças infectocontagiosas.
Mas a penitenciária feminina, como explicou a assistente social Simone, não foi
projetada de acordo com as necessidades específicas das mulheres e de seus filhos; ela
surgiu apenas da necessidade de se separar as mulheres dos homens. O prédio do
Conjunto Penal Feminino foi construído com estrutura muito semelhante às unidades
masculinas, embora menor.
4
Dados da Superintendência de Assuntos Penais, da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos,
disponível no endereço eletrônico <http://www.sjdh.ba.gov.br/sap/populacao_carceraria.htm>. Acesso em
9 de novembro de 2006.
55
tempo. As internas até então conviviam no mesmo espaço dos homens, no Presídio
Salvador, sendo separados apenas por alas. No entanto, eles, homens e mulheres,
sempre se encontravam, não havia controle. Tanto que tinham contato íntimo constante
e as mulheres engravidavam dentro da prisão, tudo de maneira irregular e sem nenhum
tipo de prevenção a doenças. Hoje, para ter encontros íntimos, as internas devem fazer
uso de contraceptivo injetável, submeterse a realização de exames regulares a cada seis
meses, e são estimuladas a exigir dos companheiros que usem “camisinha”. Antes não
tinha nada disso. Não se tinha esta visão de que as mulheres também tinham que ter o
espaço delas. Até as crianças moravam naquele ambiente. Era uma situação terrível.
Além da Lei de Execuções Penais, nas Regras Mínimas para o Tratamento dos
Presos5, da Organização das Nações Unidas (ONU), as questões específicas da mãe
presidiária são tratadas mais especificamente na Regra 23, da seguinte maneira:
5
Resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas de 30 de agosto de 1955, da qual o Brasil é
signatário. Disponível no endereço eletrônico <http://dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>.
6
Fixadas através da Resolução nº 14 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
(CNPCP), de 11 de novembro de 1994. Em 10 de março de 1995 o CNPCP solicita aos Conselheiros
Penitenciários dos Estados e do Distrito Federal que implementem ações e medidas essenciais com vista à
efetiva aplicação das Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil, considerando que a atuação
do Poder Executivo e a assistência do Poder Judiciário, com apoio do Ministério Público, são
imprescindíveis para o êxito social do cumprimento da pena ou da medida de segurança, na dinâmica do
diálogo entre os seus destinatários e a comunidade.
56
presidiária, mas também seus filhos e familiares. Hoje, das 217 presas do Complexo,
202 são mães. A maioria delas tem em média três filhos.
E complementa:
Se a lei diz que num estabelecimento feminino tem que haver uma creche e um
berçário, ela está já dizendo “olha, você vai ficar limitado na sua liberdade, mas o
Estado tem a obrigação de criar as condições para que essa limitação atinja o mínimo
possível seus direitos fundamentais”. E se o Estado não cumpre esse papel, claro que os
danos decorrentes desta situação devem ser imputados a ele.
O apoio da Secretaria foi mínimo nestes últimos anos. Encaminho para eles todos os
anos, desde 2000, CDs com relatórios e fotos da estrutura da penitenciária, que vem se
deteriorando cada vez mais. Insisto que é preciso fazer uma reforma urgente aqui, pois
estamos tendo uma grande quantidade de infiltrações. Mas os problemas da mulher
presa parece, não ser prioridade para eles – indignase Silvana.
Estão todas misturadas! Se eu tenho aqui presas que cometeram simples furtos
convivendo com homicidas, por exemplo, como é que elas vão sair recuperadas daqui?
– protesta.
Eu estou querendo atendimento médico que é uma coisa muito mais emergencial e não
estou conseguindo! Berçário? (risos) Isso teoricamente fica lindo, mas o que eu quero
dizer é que tem presa aqui indo e voltando morrendo de dor e nem pode ser atendida
58
aqui na Central Médica, que fica no nosso prédio! Por que? Porque só tem homem lá! –
explica a diretora, batendo a mão sobre a mesa.
Não temos nem espaço para separar os regimes! Ta tudo misturado! O couro come lá
dentro e ninguém liga nãããããããão. Porque apito não resolve. Ficar pi, pi, pi... A gente
tem que entrar lá e ir separar pessoalmente. As próprias agentes que têm que fazer a
segurança são as primeiras a saírem de lá, a desmaiar, a pegar a bolsinha e se mandar! É
muito difícil trabalhar aqui. A Secretaria oferece uns cursinhos aí que não servem pra
nada. Até porque ela não tem condições de promover cursos porque não sabe os
problemas que temos aqui dentro, nunca vieram conhecer nosso diaadia. Estão sempre
distantes. São eles lá e a gente aqui. O nosso superintendente, por exemplo, não vem
aqui há anos. Às vezes não manda nem representante.
Você esqueceu que não tem mais superintendente, amor? – interrompe a assistente
social Simone – que entrou há pouco na sala da diretoria trazendo mais um documento
para Silvana assinar. Há vários deles em cima da mesa.
Ah, sei lá! Ter ou não ter é a mesma coisa. Semana passada saiu no papel que ele foi
exonerado, mas sei lá, de repente ele volta, nunca se sabe.
***
59
Hoje na penitenciária feminina vivem com as mães nas celas três bebês. Quatro
presidiárias estão grávidas. Edilane Ferreira da Silva, vinte anos, deu a luz à pequena
Marie* há duas semanas. A presidiária ainda é processada e aguarda julgamento. É
acusada de matar e esquartejar a própria mãe, Edna, junto com o marido. Mas se diz
inocente.
Foi ele quem discutiu com ela, deu uma paulada na cabeça e ela não resistiu. Eu só
assisti tudo. Vi ele cortar o corpo de minha mãe. Não fazia nada porque ele ameaçava
que ia me matar com um facão também e eu já estava grávida de algumas semanas.
Então ele me obrigou a ir com ele levar os sacos com os restos dela num terreno baldio.
No dia depois a polícia bateu lá em casa e perguntou pela minha mãe. Nós dois fomos
presos e ele mandou que eu assumisse tudo junto com ele. Fiquei com medo.
Eu fiquei com trauma de sangue e não consigo nem dormir direito – afirma a
presidiária, serenamente.
Edilane chegou na prisão com um mês de gravidez e gerou a criança ali dentro.
Diz que não teve problemas no período gestacional, pois teve prénatal na penitenciária.
Quando começou a sentir as dores do parto, foi atendida por um médico da Central
Médica e encaminhada dentro do camburão cinza da SJDH até o Hospital Roberto
Santos, no Cabula, onde pariu. Ficou no hospital dois dias e voltou em uma ambulância
para a penitenciária.
Não tinha nenhuma roupinha para a criança. Tudo foi doado pelo Serviço Social.
Da família, só uma tia a visitou quando a pequena Marie nasceu.
dormem com ela no quarto. Papéis ofício corderosa foram colados nas velhas paredes
da cela, que não recebe qualquer luz solar e, apesar de aparentemente lima, tem aquele
“cheiro de cadeia”.
Marie está com bolhinhas pelo corpo. A suspeita é que sejam brotoejas, mas a
menina ainda não foi atendida por médicos.
Aqui ela não pode ser atendida, tem que levar fora. Mas me disseram que eu tenho que
chamar alguém da família pra levar a neném. Só que eu não tenho ninguém pra fazer
isso, queixase. À família do meu exmarido eu não entrego! – explica Edilane.
A presa sabe que a penitenciária não é local para uma criança viver. Suspeita que
a doença da menina tenha sido justamente por causa do ambiente onde vive. Concorda
que o presídio deveria ser dotado de pelo menos uma estrutura de berçário.
Mas só que a mãe teria que ficar com o filho, né? Separado não dá. Toda hora ela tem
que mamar – explica.
Na hora de dar banho na criança, esquenta a água e banha a filha na cela mesmo.
Depois a arruma e coloca na cama novamente. Vez ou outra sai para o pátio com ela.
Deixa também que algumas presas de sua confiança carreguem a neném.
Diz que, se condenada, vai sofrer ao ter que entregar a criança quando findar o
período da amamentação. Mas não vai dar ela a ninguém.
A família do meu exmarido quer. Com eles ela não fica! Vou deixar ela na creche da
freira, lá ela vai estar bem “guardada”, explica.
A maioria das presas sempre mostrase resistente em entregar seus filhos quando
o período legal da amamentação chega ao fim, mas o Serviço Social providencia a
retirada da criança, observando junto à interna se ela prefere que a criança fique com
alguém da família ou se será preciso institucionalizála no Centro Nova Semente.
61
Foi um momento muito triste. Entrei em crise e em depressão até me acostumar aqui
sem ele... Até agora não me acostumei sem meu filho. Mas, fazer o quê? – explica
Gilvaneide.
No início ficou com medo de confiar seu bebê a uma creche onde ele estaria com
diversas crianças e sob cuidado de pessoas desconhecidas.
Eu não confiava. Via algumas mães reclamando que via o filho chegar com piolho.
“Ah, porque meu filho tá com a roupa amassada” e outra “meu filho tá arranhado”. E eu
ficava com medo. Mas depois fui observando que ele tava sempre limpinho, tinha
médico, e vi que não era aquilo. Muito pelo contrário. Se não tivesse essa creche, onde
ele estaria, se aqui no presídio não pode?
Uma creche no próprio presídio seria a solução para as presas que, como
Gilvaneide, tem filhos de até seis anos. Mas, no Brasil, apenas dez dos vinte e oito
estabelecimentos penais femininos possuem creches7. Geralmente a permanência da
criança junto com a mãe apenada é considerada como o melhor benefício trazido por
uma creche no sistema penitenciário. Para a criança porque o contato é decisivo para a
manutenção do vínculo maternoinfantil, o que lhe oportuniza o aleitamento materno
além dos seis meses previstos na lei, e o seu melhor desenvolvimento, tanto nutricional,
quanto físico e emocional. Já para a mãe apenada, a aproximação com o filho a faz
refletir sobre o cumprimento da pena, colaborando para um melhor comportamento na
prisão e diminuindo as chances de fuga, bem como incentiva sua ressocialização.
***
7
Os dados são resultado da pesquisa “Creche no sistema penitenciário: Um estudo sobre a
situação da primeira infância nas unidades prisionais femininas brasileiras” de Rosângela Santa Rita.
2002.
62
8
RIZZO, G. 2000 apud SANTA RITA, R.
63
Enquanto isso, Gilvaneide sonha com uma creche no próprio presídio, como
estabelece a Lei de Execuções Penais.
Acho que seria bem melhor, sabe? Deus sabe como sou agradecida por essa creche de
Irmã Adele; ela é realmente uma benção. Mas o que mais queria na vida era ver meu
filho toda hora, toda hora mesmo. Ave Maria! Eu conto as horas pra vêlo. Se pudesse,
ele não saía de perto de mim. Ai... Eu não agüento mais isso aqui.
Eu tenho vontade de sair daqui logo, sabe? É meus filhos... Tenho que sair daqui para
ficar com eles. Tem seis anos que não os vejo. Minha cadeia é toda aberta agora, sabe?
Mas ainda não pude sair porque não tive dinheiro. Se eu conseguir uma carta de
emprego, posso passar o dia na rua e dormir aqui.
Sim, a maioria das presas quer trabalhar. Mas só que o trabalho aqui não dura, sabe?
Às vezes é só três meses e ficamos depois sem trabalho. A gente trabalha três meses e
só nos paga por um mês – Gilvaneide silencia, olha para os lados, e sussurra: A gente
não pode falar isso aqui não porque senão eles ....................... – e gesticula com as mãos
fechadas, fazendo sinal de alguém trancando algo com chave – Eles bate a tranca!
Ela olha pra trás e calase. Não quer falar mais temendo ser punida
posteriormente.
Sem trabalho, o que resta à maioria das presidiárias é esperar. Elas acordam às
sete e trinta da manhã, tomam banho, esperam que a “cantina” (como chamam o local
por onde os funcionários distribuem as refeições) seja aberta para que possam pegar um
9
A remição da pena está prevista no artigo 126 da Lei de Execuções Penais para os condenados
que cumprem pena em regime fechado ou semiaberto. O tempo remido deve ser computado para
concessão de livramento condicional e indulto.
65
prato com apenas pão e um copo de cafécomleite. Algumas detentas chegam a pedir
para trabalhar de graça durante os períodos ociosos, varrendo as salas da administração,
só para não ficar sem fazer nada. Depois retornam para a cela, fazem a faxina que
tiverem que fazer, e ficam aguardando a hora de pegar o almoço. Às dezesseis horas
recebem as marmitas com a janta e às dezessete são trancadas nas celas.
Ficamos sem fazer nada. Eu pelo menos tenho meu crochê. Sem ter o que fazer é mais
fácil ir se revoltando. Porque o que faz mais a pessoa revoltar é que se você tem uma
coisa pra fazer, fica com a mente ocupada, e a mente desocupada só faz a pessoa pensar
besteira. Mistura também a emoção da mãe que não vê o filho há muito tempo, que não
vê os irmãos e a família, e tudo isso vai entrando na cabeça... E aí às vezes a gente vai
tentar falar com um agente e ele não quer atender, também a alimentação é péssima. É
preciso pedir muito a Deus, viu?
Temos cinco empresas que trabalham aqui dentro e pagam o que a lei prevê. Porque eu
só permito empresa que paga os 75% do salário mínimo. Algumas empresas chegam
querendo pagar por produção, alegando que as presas vão ganhar mais que os 75%, mas
é papo de empresário que está começando e que não tem condição de pagar muita gente.
Então quer dar apenas vinte, trinta ou quarenta reais por mês. Eu tirei daqui as fábricas
que estavam fazendo exploração da mãodeobra carcerária. Alguns presídios as
aceitam, só para o preso ter o que fazer, mas não é assim que as coisas se resolvem. As
empresas devem fornecer um diferencial, devem profissionalizálos, porque sabemos
que é difícil arranjar emprego lá fora, ainda mais quando se tem a “ficha suja”. Então
quero que as presas aqui aprendam a fazer artesanato, doces finos e outras coisas que
não as tornem dependentes do mercado formal, para que possam trabalhar em casa
mesmo.
Quando não consegue fazer uma faxina aqui ou acolá, Gilvaneide sente uma
saudade tão grande do seu filho, que não sabe o que fazer para que o tempo passe
rapidamente até o dia de vêlo novamente, pois apenas quando está com o menino que
66
ela se consola mais. Costuma agarrálo no colo e apertálo num abraço tão profundo que
parece desejar têlo novamente dentro do seu corpo, como na fase da gestação.
Ele me faz pensar num futuro melhor. Olhe, depois que tive ele aqui, eu já me
arrependi muito. Antes eu pensava até em suicídio, sabia? Mas tenho que pensar em
meus filhos, minha família, no futuro. Tenho que criar meu filho pequeno. Mas o que é
duro mesmo é ver meu filho chegar aqui e eu não ter uma merenda pra dar. Eu sei que
ele é bem alimentado na creche, mas a alegria da mãe é ter sempre uma merendinha pra
dar pro seu filho. Eu também sei que ele é educado lá pela Irmã. Mas a gente também
quer dar a nossa educação pra ele, né? Ele tem que ser educado por pai e mãe. Ele não
me chama de mãe, me chama de tia, e isso é uma dor muito grande pra mim, por isso
queria que ele tivesse mais perto.
A presidiária sonha em sair da prisão e conseguir ter seus filhos novamente por
perto, mas não gostaria que eles crescessem questionando o que ela fez para ter sido
presa. Por ela, passaria uma borracha sobre esta etapa de sua história de vida e apagava
tudo, sem deixar nenhum borrão, nenhuma mancha sequer.
Eu não gostaria que eles ficassem pensando porque que eu fui presa, no que eu fiz. Eu
gostaria que eles me visse com uma mãe deeeeeeles, uma mãe que um filho gostaria de
ter – fala Gilvaneide imprimindo um tom mais forte à voz e a apertando a blusa da
farda azul marinho no peito – Uma mãe que dá todo o amor e todo o carinho. Gostaria
que eles me tivessem como mãe e só isso.
Com semblante sonhador, olhando para o nada, Gil diz querer montar sua
casinha com o marido Rosivaldo e ter uma família completa. Repete que não pretende
voltar para o interior, que ficará aqui em Salvador mesmo, porque acredita que tem mais
chance de conseguir emprego. Subitamente, porém, a detenta muda a fisionomia,
enrijecendo a testa, como se despertasse do sonho e caísse em si, na realidade infernal
que a circunda, e como se pensasse nas poucas chances que terá fora da prisão
justamente pelo fato de ter sido presidiária. E termina queixandose também da pena do
marido, que é muito longa, trinta e sete anos, explicando que o caso dele é “mais
sério”...
67
Porque o caso dele foi assalto, sabe? Algum negócio com roubo de carros. Ele teve a
primeira cadeia dele antes, depois da primeira cadeia, ele saiu, mas quando faltava um
ano pra ele terminar de pagar, aí ele “quebrou” a condicional e redobrou tudo de novo.
Quando fogem da prisão e são recapturados, os presos que tinham qualquer tipo
de benefício, como a troca de regime para semiaberto ou liberdade condicional,
perdemno e são obrigados a cumprir a pena integral em regime mais grave, porque
demonstrou não ter condições de estar naquele regime menos rigoroso.
É que eu não gosto de falar da vida dele. O problema lá é dele, não meu.
A presa volta a citar o marido somente quando é questionada se o seu filho tem
algum contato com o pai.
Ele vai visitar o pai, claro. Mas lá ele não fica o dia todo como aqui. É só meia hora.
Eu até entendo, porque lá a cadeia pode “virar” a qualquer hora, é mais perigoso que
aqui. E a criança vai só até a portaria, aí vão chamar ele e ele se encontra com o filho
ali. Ele fala sempre pra mim “não vejo a hora da gente sair, para poder educar nossos
filhos, eles precisam de pai e mãe”. É triste, é difícil. Eu sempre fico preocupada. É
muito duro ser pai e mãe aqui dentro...
Quem tiver seus filhos lá fora, nunca queira sair de perto deles. Porque às vezes é
difícil lá fora, não tem dinheiro ou comida, mas sempre dá pra arrumar uma faxina,
alguma ajuda, lavar roupa. Qualquer coisa pra não cair no vício ou no crime. Não há
castigo pior que sair de perto do seu filho, gente! Mesmo que ganhe pouco dinheiro, vá
e compre uma farinha de trigo, um ovo, faça alguma coisa pra vender, ou pastel ou
68
sonho. Não caia na besteira de roubar ou de matar. Coloque até seu filho pra vender as
coisas. E se por acaso ver seu filho mexendo em alguma coisa errada, ensine a ele que
não pode, que deve devolver. Porque a criança repete o que a mãe faz. Às vezes ele nem
quer fazer, mas de tanto ver a mãe fazer errado, ele vai achar que é certo. Jamais a gente
tem que querer dar um passo errado. Tem que dar sempre um passo pra frente, que seja
uma coisa boa e que dê pra ele pensar: “minha mãe suou para ter isso, ela trabalhou, não
roubou.”. É isso que uma mãe tem que dar pro filho.
69
CRIANÇAS NA PRISÃO
70
Cinco horas da manhã. Naiara de Jesus, uma jovem estudante, negra, vinte e um
anos de idade, desce do ônibus que a trouxe do bairro do Engenho Velhos de Brotas no
ponto localizado em frente à entrada do Complexo Penitenciário, na Mata Escura. No
seus braços, traz a pequena Emily*, de um ano e três meses, filha da sua irmã Mislene,
de vinte e quatro anos, que está presa há pouco mais de dois meses, por assalto, e
aguarda julgamento. Apesar dos primeiros raios do sol despontarem timidamente no
céu, e da brisa da noite que ainda não se foi causar frio, cerca de vinte pessoas, a
maioria dela acompanhada de crianças de várias idades e tamanhos, aguardam o
momento dos portões se abrirem, mas terão que enfrentar ainda quatro horas de espera.
Como não há nenhuma proteção contra a chuva ou o sol, é preciso que tragam sobrinhas
e guardachuvas. No ponto de ônibus há uma pequena barraca azul de ferro que abre
logo cedo, e onde é possível comprar pacotes de pipoca doce, biscoitos, bombons e
cigarros. Também um rapaz instalase no local logo cedo com seu isopor cheio de água
mineral, suco e refrigerante para tentar ganhar um trocado com a venda dos produtos
para aquelas pessoas que estão na fila. A maioria delas, porém, aparenta ser bastante
pobre, e, para economizar, trazem lanchinhos de casa, principalmente as que estão
acompanhadas de crianças.
Nascimento para crianças menores de dez anos de idade, Cadastro de Pessoas Físicas
(CPF), certidão negativa de antecedentes criminais, comprovante de residência em
nome do visitante ou do interno e duas fotos tamanho três por quatro. Os visitantes
cadastrados recebem uma carteirinha, que é apresentada aos agentes penitenciários a
cada visita.
Vó, vai demorar ainda? – pergunta uma menininha de aparentemente oito anos de
idade, vestida com roupas azuis de crochê, abraçandose na barriga da avó, que se
encontra na fila, apoiada na parede.
Calma, bebê. Já vamos, viu? – consola a tia, que também é madrinha da criança.
Poucos minutos antes das nove horas, o portão de acesso dos visitantes se abre.
Por uma janela, os funcionários da penitenciária dão números a cada pessoa que passa
pela recepção mostrando o cartão de cadastro de visita. Naiara é a vigésima segunda
visitante. Assim como os demais, ela segue carregando sacolas plásticas com alimentos
até a entrada da penitenciária feminina, o primeiro prédio do complexo, localizado a
poucos metros dos portões de entrada.
72
Após estas etapas, é chegada a hora da parte mais humilhante para os visitantes:
a revista individual. Independentemente da idade ou do sexo, todos os visitantes são
revistados. Todos eles são obrigados a tirar todas as peças que vestem: calça, camisa,
saia, sapatos, vestido, cueca, sutiã, calcinha, fraldas... O desnudamento é feito em salas
separadas e por agentes femininos ou masculinos, dependendo do sexo da pessoa. Nem
mesmo as crianças e adolescentes são dispensados da revista vexatória, sendo despidos
73
pelos mesmos monitores dos adultos, não existindo para eles tratamento diferenciado.
Os meninos e meninas testemunham a revista do adulto que os acompanham.
Presenciam a nudez do pai, mãe, avó, tia, irmãos, ou responsável.
As mulheres, nuas, têm que se agachar e levantar com as pernas abertas, para
que a agente observe se traz algo de suspeito em sua vagina. Se menstruadas, até o
absorvente íntimo têm que tirar... Revistas como estas molestam a dignidade das
pessoas, especialmente as honestas. É o preço que pagam, a pena que cumprem, por ter
um parente encarcerado.
Não há condições de se fazer a revista apenas nas internas porque elas são muitas!
Claro que a revista é constrangedora para uma pessoa honesta, mas ela é inevitável. O
que estamos proibidos de fazer é a revista íntima, aquela em que se introduz um bico
depato na vagina das mulheres. E até por isso tem entrado muita droga no pátio, pois a
nossa revista é ridícula, muito rápida, e não consegue detectar. Na maioria das vezes a
droga é inserida de tal maneira que fica alojada no útero. Entra celular, carregador... É
um depósito!
Silvana justifica, ainda, que não confia no trabalho de grande parte dos agentes
penitenciários, que deixam passar objetos indevidos.
Soube de um agente que por trezentos reais deixou passar um celular, e ele vai
responder por isso. Se há omissão ou excesso, a culpa é do agente. Nós não temos
controle sobre isso. Não somos onipresentes nem onipotentes. Pior acontece aos
sábados, quando a administração não funciona. Os visitantes e agentes ficam mais à
vontade. E até mesmo as presas! Quando elas voltam do encontro íntimo na PLB aos
domingos, sei que elas voltam “recheadas”. Mas somos impedidos de fazer a revista
íntima nelas... Com isso perdemos muitas vezes todo um trabalho de desintoxicação de
dependentes...
Você em casa pede a um funcionário que faça determinada comida, e ela vem com
bastante sal. Você não pediu que colocasse sal em excesso, mas na prática acontece.
Assim acontece no ambiente carcerário – compara o promotor de Justiça.
75
Para se ter uma idéia, em 70% dos Estados não há planos de cargos e salários, não há
capacitação dos indivíduos que vão trabalhar com o cárcere, não há escolas
penitenciárias e não há profissionalização. O pior dado que eu tenho a este respeito é a
juvenização daqueles que vão cuidar da população carcerária. São jovens cuidando de
jovens num ambiente extremamente tenso que é o ambiente carcerário. Isso se reflete
em situações como esta, de revista, onde há abusos e onde não há preparo.
E enquanto a solução não chega – solução, aliás, é uma palavra que sempre soa
de forma inverossímil, quase cínica, quando se tem em vista o contexto do sistema
carcerário brasileiro –, os visitantes permanecem à mercê do sol e da chuva, esperando a
sua hora de entrar na penitenciária e submeterse à revista neste que é um dia especial,
dedicado às crianças, mas nem por isso é tão diferente quanto gostariam... Nem mesmo
as crianças estarão a salvo da revista hoje... A inocência delas é posta em xeque a todo o
momento e de toda forma. Nas próprias brincadeirinhas, em casa ou na rua, elas
denunciam as situações que vivem: imitam o procedimento da revista com irmãos,
primos, coleguinhas... Inevitavelmente, esses meninos e meninas, a maioria sem
76
condição financeira para arcar com um tratamento psicológico, ou até mesmo por falta
de instrução de seus familiares, carregarão para as suas vidas a marca permanente da
prisão.
***
Naiara agora está sentada sob o passeio que fica em frente ao estacionamento
aberto da penitenciária feminina. Ela sintetiza todas as etapas que têm que se submeter
até conseguir visitar a irmã e conceder a ela, mesmo que por poucos instantes, o direito
de exercitar a maternidade, em uma só palavra: “humilhação”. A mãe delas, uma
enfermeira de cinqüenta e poucos anos, nunca esteve em visita no presídio.
Seria muita humilhação pra ela, coitada! É muito triste, e ela já está tão mal em
enfrentar essa situação de ter a filha presa. Ave Maria se tivesse que vir aqui enfrentar
isso! – explica Naiara.
Até mesmo o outro filho da detenta Mislene, de seis anos de idade, foi impedido,
por decisão da família, de vir até a prisão:
Ele não sabe, dizemos que ela ta trabalhando, viajando. O menino é muito esperto. Se
vier aqui, vai contar aos coleguinhas onde esteve, o que ouviu e o que viu. Imagina na
hora da revista... Ele teria que me ver nua!
São aproximadamente dez horas quando Naiara ouve uma das agentes gritar:
Vinte e dois!
Um pouco próximo ao lugar onde estava a jovem que acaba de entrar, está uma
senhora de quarenta e nove anos, acompanhada de quatro netos: dois meninos, um de
dez e outro de cinco anos, e de duas meninas, a maior de oito anos a menor, de seis.
77
Dona Indiara traz as crianças para verem a mãe, sua nora, Sandra. A detenta está na
“Feminina” há nove meses.
Ela sempre foi muito trabalhadeira. Fazia faxina, lavava roupas, vendia Avon, mas o
dinheiro não dava para o sustento de quatro crianças. Ela é tão carinhosa com as
crianças... Sempre foi. Mas agora está sofrendo muito, muito mesmo. Sabe como é, né?
Foi a pobreza, a falta de emprego, o desespero mesmo que fez ela parar aqui.
Sandra estava com os quatro filhos quando a polícia invadiu a sua casa. Com ela,
foram encontradas cocaína e maconha embrulhadas para vender. As crianças ficaram
muito assustadas com os gritos e o choro da mãe sendo levadas pelos policiais.
Marina*, a de oito anos, chegou a se urinar, tamanho o pavor. Os policiais levariam as
crianças para o Juizado, mas diante dos apelos da mãe, a vizinhança disse que elas
tinham avó, que morava ali perto, e que iriam chamála para cuidar dos meninos e
meninas. Quando dona Indiara chegou na casa, as crianças estavam sozinhas, chorando
e, muito assustadas, tremiam. Ao reconhecer a avó, todos correram ao mesmo tempo
para abraçála. Nem sabiam explicar direito o que acontecia.
Mas o que ele veio fazer aqui? A senhora não disse outro dia que o [presídio] dos
homens não fica lá embaixo e que aqui é o das mulheres?
É, é. Mas esse daí veio pro médico. Tem um hospital aí dentro, você não já viu uns
médicos aí na entrada?
Ah...
Após a passagem do carro o garotinho e sua irmã, que estavam do outro lado do
estacionamento, correm para ficar perto da avó e dos outros irmãos. As crianças estão
visivelmente traumatizadas. Sem auxílio psicológico, certamente crescerão com medo
da polícia, ou terão ódio dela...
Não! Tá cedo! Chegamos tarde aqui, e se você beber agora vai ficar com sede lá
dentro, explica Indiara.
na “praça da prisão”, no meio das presas, perto das celas. Ainda que aparente ter sido
recentemente lavado (o chão ainda está molhado), tarefa desempenhada pelas próprias
detentas de forma ainda mais caprichada neste dia especial, não se sente o “cheiro de
limpeza”, que reconhecemos facilmente através do aroma de produtos como
detergentes, desinfetantes ou sabão. Ao contrário, predomina no local uma mistura de
odores de água sanitária, creolina, cigarro, urina, suor, mofo... Um pequeno canal corre
por todo o pátio, acumulando água suja, de cor cinza escura.
lanche, foram colocados em frente a uma espécie de quadra que fica no meio do pátio.
Como não há cadeiras, mas poucos bancos, a maioria das internas e dos visitantes
sentamse nas escadas que dão acesso às celas, hoje trancadas, ou no chão mesmo. Em
cima de duas pias de cimento localizadas ao lado da quadra reúnese um grupinho de
sete detentas, todas muito jovens, que conversam entre si e observam a movimentação
no pátio, rindo de duas internas que dançam agarradas perto dali.
Dórémifá fáfá
Dórédóré réré
Dósolfámi mimi
Dórémifá fáfá
82
Ele é um dos agentes mais antigos daqui – comenta uma agente penitenciária que
supervisiona as atividades do dia no pátio.
A cantigas dos palhaços Patati e Patatá que tocavam no som são substituídas por
antigas músicas da Xuxa. A maioria das presidiárias parece ter gostado da troca e
vibram com as músicas antigas da apresentadora infantil. Catam com mais empolgação,
sabem de có todas as letras das músicas, imitam as coreografias das Paquitas... Jovens,
as detentas de vinte a trinta anos parecem, neste momento, realizar uma viagem de
retorno à infância...
Batendo palma
E dando um grito
Hei!
Levanta a mão passando energia
Batendo palma
E dando um grito
Hei!
Levanta a mão passando energia
83
Eu quero ver
Levanta a mão
Vem balançando, balançando a multidão
Eu quero ver
Tindolelê
Nheco Nheco
Xique Xique
Balance...
Quatro internas dão as mãos, formando uma ciranda, e aos poucos outras vão
aderindo à brincadeira. Acabam se divertindo mais que as crianças, que as observam.
Difícil olhar para aquelas mulheres de alegres semblantes, muitas delas ainda com jeito
de menina, e não se questionar qual o motivo que as colocou ali. O que essas mulheres,
aparentemente inofensivas, que ao som de Xuxa comportamse como crianças no
recreio da escola, cometeram para serem obrigadas a viverem longe da sociedade e atrás
das grades? Ou o que fizeram com aquelas meninas que se transformaram nestas
“perigosas” mulheres? Escolha própria ou falta de oportunidade? Conhecendose as
histórias de vida de cada uma delas, talvez fosse possível identificar as respostas e
formas de prevenir que seus filhos, suas crianças, tracem o mesmo caminho delas. Mas
quem se interessa por isso? Quem se importa?
A detenta Elenilza, vinte oito anos, embora tenha cabelos negros surge no pátio
com ele partido ao meio e preso em dois, semelhante ao antigo penteado usado por
Xuxa, dançando e cantando:
Eu vivi esta fase da Xuxa quando era criança. Adorava imitar ela... Tá sendo muito
divertido! Agora quero pintar meu rosto igual ao do palhaço com a professora
Geraldina, licença, ta? E explica a detenta e sai de mãos dadas com outra interna até o
local onde a cabeleireira maquia as crianças e presidiárias com pasta d’água e batom
vermelho.
84
Mesmo com toda festa e alegria, impossível esquecer que estão todos dentro de
uma penitenciária. Os agentes penitenciários circulam de um lado para o outro, para
garantir a segurança, mas são indiferentes ao cheiro de maconha que parece vir de uma
das escadas. Sem entender direito o que significa aquele cheiro adocicado que chega até
os seus narizinhos, as crianças também brincam, indiferentes... Alguns parentes e
membros da igreja se entreolham num diálogo monossilábico:
É?
É...
Agora?
Ô!
Não demora muito e três presidiárias descem uma das escadas com olhos
vermelhos e na boca um chiclete e um riso sarcástico. Sequer se intimidam com a
presença dos agentes (e nem eles com elas) e andam num jeito “nãotônemaí” entre as
demais detentas, os visitantes e as crianças.
Olá irmãs! Quero que saibam que hoje é um dia muito feliz para nós. Estamos aqui
reunidos não só para brincar, dançar e comer bolo. É preciso ser feliz com Deus no
coração. Vamos aproveitar o dia! Quero chamar agora o nosso coral Rosa de Sharon.
Agora nós, adultas, vamos homenagear as nossas crianças, avisa Carmem, pedindo
para colocar uma faixa de um CD evangélico e puxa o cântico:
Entoarei louvores
Não cessarei meu canto
Não roubarei a carne
Mesmo na dor,
85
As presidiárias cantam com firmeza na voz, com a cabeça voltada para cima e
comprimindo os olhos. Algumas apertam com a mão direita a camisa abaixo do seio
esquerdo, como se quisessem arrancar algo do coração e se emocionam. Ivete está no
pátio observando o coral quando a filha mais velha Sofia*, de sete anos, que corre ao
encontro dela e a abraça, empurrando o rosto contra sua barriga.
O que foi, minha filha? – pergunta a jovem detenta, assustada, afastando a menina de
seu corpo. Percebe que a garota está chorando.
Quero que a senhora venha logo com a gente – fala a menina, bem baixinho, para a
mãe.
Ivete franze a testa e abraça a menina bem forte. As duas choram. No mesmo
instante, a interna que tomava conta de Yara*, que estava dormindo na cela, traz a
neném para Ivete, que limpa com as duas mãos os olhos lacrimejantes e pega sua
filhinha recémnascida no colo. Podese perceber mais três presidiárias pelo pátio,
abraçadas aos filhos, cantando e chorando.
Meio dia. Cerca de vinte presas já formam uma fila ao lado do portão gradeado
que dá acesso ao pátio Com vasilhas na mão, é hora de pegarem o almoço. Algumas
delas dividirão o alimento com seus visitantes, que nada puderam trazer. A realidade de
muitos deles é tão triste que sequer têm ao menos um prato de comida como aquele que
é servido para as presidiárias. Por pior que seja aquela comida, ali as presas têm a
certeza de que se alimentarão diariamente. Lá fora, muitas delas, inclusive ex
moradoras de rua, não teriam a mesma “sorte”, bem como seus familiares não têm...
86
REENCONTRO
87
Apesar de não ser mais católica, pois se casou com um obreiro da Igreja
Universal e “aceitou Jesus”, Gilvaneide ainda acredita em milagres. Hoje, por exemplo,
é um dia milagroso para ela, dia em que terá a sua primeira saída da prisão. Perdeu as
contas de quantas orações fez até então para que este “sonho” se realizasse. Mas agora é
real. A ansiedade é tanta, mas tanta, que nem consegue se controlar. As pernas tremem.
Arrumou na sacola algumas poucas peças de roupa, até porque não tem tantas,
geralmente usa as fardas amarelas ou azuis escuras fornecidas pela penitenciária.
Quando é avisada por um agente de que sua sogra a aguarda na recepção, a presidiária
abre um largo sorriso e o segue. Emocionada, dá um forte abraço na mãe do marido,
dona Alzira*, uma tímida senhora evangélica de sessenta e poucos anos. Gil recebe da
segurança um documento em que consta que ela está autorizada a deixar
temporariamente a prisão, devendo voltar em sete dias. A presidiária lê as
recomendações escritas no papel, inclusive o horário em que deve voltar, às dezesseis
horas do dia 17 de outubro, e o guarda com cuidado na sacola.
A tranca dos portões azuis marinho é aberta por uma agente penitenciária e, de
mãos dadas com a sogra, Gilvaneide sai. No primeiro momento a forte luz do sol da
tarde que se iniciava incomoda um pouco seus olhos, acostumados com o ambiente
sombrio da prisão. É verdade que Gil periodicamente costuma ultrapassar aqueles
portões, seja para ser conduzida a algum hospital ou, nos dias de visita íntima, para ir
até o presídio onde se encontra o marido, mas desta vez é diferente: ela não está
algemada, nem acompanhada por policiais e tampouco será conduzida pelo grande
furgão cinza da SJDH. As mãos suadas de tanto nervosismo estão livres. Acompanhada
da mãe do marido, Gilvaneide segue andando até a saída do Conjunto Penitenciário do
Estado. No momento em que ultrapassa a pé os grandes portões cinzas, aí sim a detenta
sente a liberdade. A sensação é tão forte que chega a doer. Gil chora. Parece um bebê
que acabou de nascer e de se deparar com o mundo. A diferença é que o recémnascido
chora por perder o aconchego do útero materno para enfrentar um ambiente
completamente novo, que o assusta; as lágrimas da presidiária, contudo, são porque,
mesmo espantada, é para esse mundo que ela gostaria de voltar, definitivamente.
Os mais de seis anos de prisão fizeram com que Gilvaneide se acostumasse com
paredes e grades limitando seu caminhar. Na prisão, sabe exatamente onde ficam as
celas, o pátio, a fábrica, as salas da administração... Tanto que se lhe vendassem os
olhos, ainda assim saberia se deslocar ali dentro, afinal não há tantos lugares para onde
ir. Agora, em liberdade, os poucos metros de estrada que separam a penitenciária do
Nova Semente eram suficientes para provocar na presidiária reações de espanto. Se a
89
sogra não estivesse com ela, não saberia sequer caminhar. Perplexa, ficaria estática, ou,
assustada, sairia correndo.
Como já havia avisado por telefone à Irmã Adele que passaria no abrigo para pegar o
filho, não foi nem preciso aguardar tanto no Centro Nova Semente. A freira,
acompanhada de uma das babás, trouxe Tiago até ela.
Oh, meu filho, quanta saudade! – falou Gil, abraçando bem forte o garotinho – Você
vai passar uns dias com a mamãe, vai?
Desaprendeu a falar, Tiago? Reponde direito à sua mãe – mandou Irmã Adele,
brincando com o menino, sacudindo seu cabelo – Vai ou não vai?
A presidiária, com o filho no colo, deu um beijo na face da freira e seguiu com a
sogra até o ponto de ônibus, onde esperaram o veículo que as conduziriam até Pirajá,
bairro onde fica a casa de dona Alzira. Embarcando no ônibus, as duas passaram pela
roleta e Gil quase cai com o menino quando o carro começou a se deslocar. Sentou
rapidamente numa cadeira próxima à janela e pôs o menino no colo enquanto aguardava
a sogra, que pagava as passagens. No trajeto, Gilvaneide ficava com os olhos perdidos,
sem saber ao certo se prestava atenção no filho ou se reparava pela janela as casas, os
carros, as pessoas... Aquela confusão de imagens que passavam tão rapidamente pelo
seu campo de visão, provocou náuseas e vertigens em Gil, que acabou ficando com uma
leve dordecabeça. Depois da “longa” viagem, que durou quase trinta minutos, é
chegada a hora de descer do ônibus. Com todo cuidado, a detenta salta do veículo com o
90
filho, acompanhando dona Alzira. Caminham por alguns metros, e chega até uma
singela casinha pequena, mal pintada e rebocada, no meio de outras tantas como ela.
Qual foi o espanto de Gil quando, entrando na casa, deparase com mais dois de
seus filhos, que correram até a porta ao ouvir a movimentação. Mãe e filhos não se viam
desde que Gilvaneide foi presa, há exatos seis anos e sete meses, mas ela reconheceu
imediatamente a carinha das suas crianças.
Mamãe, mamãe!
Meus filhos... – chorava a detenta, parando e agarrando cada um pelos braços para
poder olhálos por inteiro.
Ô meu Deus! Minha sogra, a senhora conseguiu! Obrigada, muito obrigada – repetia
Gilvaneide chorando abraçada aos filhos.
91
Dona Alzira estava emocionada, mas, tímida, escondeu o choro e foi até a
cozinha, onde estava sua filha Denise*, que cuidava dos meninos enquanto a mãe estava
fora.
Minha mãe, este é meu irmãozinho? – perguntou Antônio, apontando para Tiago.
Vem cá meu filho, estes são seus irmãos Antônio e Damiano, lembra que eu te falei
deles? Vem falar com eles!
Oi – respondeu.
Tiago.
Cadê o abraço? – incentivou Gilvaneide, agora mais calma, mas ainda muito
emocionada, assistindo o primeiro contato dos filhos.
Tiago se aproximou dos irmãos mais velhos. Damiano pegou o menino no colo,
o abraçando e Antônio os enlaçou. Um abraço triplo. Gilvaneide, que assistia a cena,
deixou cair duas lágrimas, mas logo as enxugou com as mãos e sorriu. Era um sonho.
Não, obrigada.
Dona Alzira pegou a nora pelo braço e foi apresentando a ela cada cantinho da
pequena casa: a cozinha, o banheiro, o quarto dela, o dos meninos (que era do seu filho
preso), a lavanderia e o quintalzinho, onde há, no fundo, o “puxadinho” onde a filha
Denise mora com o companheiro. Gil achava tudo lindo.
Olha, Gil, aqui a geladeira, o fogão, tem biscoito ali no armário, fique à vontade –
informou a dona da casa – Agora vou cortar uns temperos para fazer uma sopa.
93
Que nada, vá tomar banho, que você está suada, e fique um pouco com seus filhos,
vocês têm muito para conversar – retrucou dona Alzira, avisando: – Pode deixar que
amanhã a gente vai fazer um feijão.
Sem cogitar desobedecer a criança, Gil senta no sofá de dois lugares forrado
com uma capa azul. Tiago levanta e pede pra mãe desamarrar o tênis dele, pois quer
calçar a sandália de dedo, para ficar igual aos irmãos. A mãe do menino pega a mochila
dele e procura o calçado, achandoo enrolado dentro de um saco.
Meus filhos, mamãe vai tomar banho e depois dá banho em vocês, ta?
No quarto, olhavase num pequeno espelho, penteando seus longos cabelos. Pela
janela percebeu que o sol já estava mais fraco. Ficou preocupada. Meu Deus, pensou, é
cinco horas da tarde, é a hora da tranca... Gilvaneide jura que naquele momento chegou
a ouvir os apitos.
Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
“Meu Deus, eu não acredito que eu to presa”, insistiu no pensamento. Correu até
a sala, a porta estava fechada e a janela aberta. Os seus filhos estavam ali na sala. Ouviu
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risadas de meninos virem da rua. Ficou naquela confusão mental por alguns instantes e
parou: “eu não estou presa, estou na rua! Deve ser os meninos da vizinhança jogando
futebol”. Riu de si mesma. Talvez não fossem os meninos a apitar na rua, Gilvaneide,
após tantos anos, pode ter condicionado a mente à “hora do apito”, a hora de ser
trancada na cela.
Só se não fizerem muita bagunça, permitiu a mãe – imprimindo risos nos rostinhos das
crianças.
Antônio, no entanto, disse que tomaria banho sozinho. Gilvaneide não objetou.
Depois do banho, enquanto penteava Tiago, Gil viu um livro infantil.
De quem é?
no meio do ano letivo, as crianças ainda não se adaptaram aos colegas e sofreram alguns
maltratos por conta de alguns colegas. O mais novo mostrou para a mãe a mãozinha
com pequenas marcas.
Ô mãe, vou pedir muito a Deus, orar pela senhora, para sair logo de lá, ficar aqui com
a gente, porque não é muito bom sem a presença da senhora. A gente também sofre. A
gente vai para escola e os colegas batem na gente...
Calma, meu filho, mamãe vai conseguir a condicional, vai sair dali, tenha calma. Isso
vai passar. Mamãe vai voltar a tomar conta de você tudo de novo. Não fique assim.
Não filho, mainha não ta a fim de falar nisso agora – respondeu sem graça a
presidiária.
Ta bom, mainha.
Após jantar com a sogra e os filhos, Gilvaneide, cansada, avisou que iria dormir,
Arrumou as camas dos filhos e um colchão no chão. Os meninos vieram em seguida.
Foi bastante diferente dormir em um quarto com os filhos. Na penitenciária, não
costuma dormir direito. Com medo da cadeia “virar” a qualquer momento, deita e não
sabe se dorme ou se fica acordada. É muito risco dividir a cela com duas, três, quatro ou
até cinco presas. Mas na presença dos filhos, conseguiu dormir. Sentiase mais segura,
com amor, com carinho. Ali, não estava devendo nada pra Justiça. Dormiu
tranqüilamente.
96
No outro dia, após o cafédamanhã, dona Alzira chamou Gilvaneide para ir até
o mercado com ela. Compraria alguns produtos para que Gil fazer o feijão, conforme
tinha prometido. A detenta a princípio ficou receosa em pensar como as pessoas na rua
reagiriam à sua presença. No supermercado, aliviouse. Ninguém a tratava como presa,
mas como uma pessoa normal! Ficou feliz. De volta para a casa da sogra, estava
ansiosa. Como seria cozinhar novamente? Cortar os temperos foi fácil, difícil foi
enfrentar, pela primeira vez o fogão, depois de tanto tempo... Pegava a panela e
começava a tremer.
Oxente, Gil, porque você está assim, nervosa? – questionava dona Alzira.
Não sei, acho que é muita ansiedade, muito tempo sem vir pra beira do fogão, né?
Ao invés de mexer no botão do fogão, acabou ligando o botão do forno. Com tanto
nervosismo, acabou “salgando” o feijão, mas nos outros dias acabou acertando.
Além do mercado, Gil também foi levada pela sogra na igreja evangélica do
bairro e apresentada a algumas vizinhas, sempre acompanhada dos filhos. Sentiase uma
pessoa de verdade, que não deve nada para a Justiça. Tinha liberdade para dormir e
acordar, lavar e passar as roupas das crianças, conversar com as pessoas, abraçar os
filhos toda hora... Meu Deus, eu não acredito que eu estou fazendo tudo isso, pensava
constantemente e agradecia aos céus, entre uma lágrima e outra. Mas chegou o dia de
voltar e Gilvaneide deixou tudo arrumadinho desde cedo, não podia se atrasar.
Enquanto organizava na mochila de Tiago suas roupinhas, era abordada pelos dois
outros filhos.
Ô mainha, meu irmãozinho, não leve ele para creche de novo não. Deixa ele aqui com
a gente.
Gil sabe que, na creche, o filho menor tem todo o conforto, tem escola, médico...
Tudo que não pode dar às outras crianças. Além disso, seria muito trabalho e gasto para
97
a sogra cuidar daquele menino pequeno. Consolava os meninos afirmando que todas as
quartasfeiras, nos dias de visita à penitenciária, os três se reencontrariam.
Foi triste deixar as crianças, mas, para se consolar, pensava que ao menos teria
eles mais por perto e que poderia vêlos nas visitas. Alegravase. Até então quase nunca
tinha visita! Orientou a sogra a ir o mais rápido que ela pudesse na penitenciária para
fazer as carteirinhas dos meninos no Serviço Social.
Fiquem direitinho, obedeçam dona Alzira e estudem, ta? Na próxima semana vocês
vão me ver.
A presidiária ficou sensibilizada com o choro dos meninos, mas tinha que ir.
Queria chegar cedo, levar Tiago na creche e depois voltar para a prisão. Com a ajuda do
motorista de ônibus, não teve erro, desceu no ponto certo, deixou o menino e voltou
pela beira da estrada, ainda um pouco assustada com os carros passando tão rente perto
dela, pois não há passeio por ali. Foi a primeira presa a voltar para a penitenciária.
Chegou às treze horas, três horas antes do que estava marcado no papel. Recebeu os
elogios da segurança, foi revistada e voltou para cela.
***
Uma das internas que também havia recebido o benefício da saída na semana do
Dia das Crianças não voltou. Solange, trinta anos, tem quatro filhos, um deles, Matias*,
um menino de três anos de idade que nasceu na prisão e residia no Centro Nova
Semente. Como das outras duas vezes que teve saída da prisão, Solange pegou o
menino no abrigo e disse que o levaria com ela para ver a família em Euclides da
Cunha, onde os seus outros filhos residiriam com a avó. Realmente esteve lá, conforme
a sua mãe informou à Irmã Adele, mas pegou as crianças e sumiu.
98
Certo dia tinha que fazer uma faxina em uma “casa de família”. Como não podia
levar o bebê e a menina de seis anos, pediu à vizinha para ficar com as crianças. Quando
voltou para casa, a menina estava assustada e acabou denunciando que foi molestada
pelo marido da vizinha. Solange dirigiuse à casa da vítima e deferiu contra ele um
golpe de faca. Foi fatal. Ao saber do ocorrido, o próprio pai de sua filha a denunciou à
polícia. Na delegacia, foi encaminhada para Serrinha, onde se relacionou com um
detento e engravidou do quarto filho. Condenada e oito anos de reclusão em regime
fechado, foi transferida para a penitenciária feminina, em julho de 2002, grávida de seis
meses. Matias nasceu na véspera do Natal daquele ano. Em julho de 2006 foi
beneficiada com a mudança de regime de fechado para semiaberto. As duas filhas
estavam vivendo com o pai e depois passaram a viver com a avó materna. O pequeno
Manoel desde 2001 foi adotado por uma família de Euclides da Cunha.
conversar com a diretora, que tem uma foto do menino vestido de caipira em cima da
mesa, para saber o que fazer. Silvana Selém informou que a detenta já foi denunciada à
Polinter e ao juiz de execuções penais.
Não comunicamos ao Juizado de Menores que a fugitiva está com crianças porque,
como você sabe, não temos esta formalização com eles – explicou a diretora, que pediu
à Irmã Adele que mantivesse a calma.
A mãe tem o direito de pegar a criança. A criança não está custodiada, quem tem a
liberdade limitada é a mãe. Logo, se ela está liberada por alguns dias, ela tem total
liberdade de pegar o seu filho e leválo com ela. Agora isto é uma distorção porque se
ela tem a intenção de fugir, obviamente que ela não vai deixar a criança ali [na creche].
Ela vai levála. Só que você não pode utilizar a criança como elemento de retenção, para
que a presa possa voltar – comentou Gomes.
10
Artigo 91, parágrafo único.
11
As medidas de proteção, segundo o art. 98 do ECA, são aplicáveis sempre que os direitos das
crianças forem ameaçados ou violados, seja por ação ou omissão do Estado ou por falta, omissão ou
abuso dos pais. O artigo 101 estabelece o abrigamento como uma das medidas de proteção.
100
A mãe não pode chegar sem nenhuma autorização e levar a criança. É por isso que há
a necessidade da dirigente do abrigo comunicar à autoridade competente12 sobre o
abrigamento dessas crianças, conforme estabelece o ECA, até para desenvolvêlo de
uma forma mais segura. A mãe apenada não pode ir ao abrigo, simplesmente pegar o
filho e sair. Eu acredito que para que ela possa pegar o filho e leválo com ela é
necessário que a autoridade competente a autorize. Tem que haver um controle na saída
dessas crianças. A mãe tem o direito, mas deve cumprir o procedimento correto.
A freira italiana, no entanto, permitiu a saída da criança porque para ela seria um
direito da mãe permanecer com o filho. Pela informalidade do abrigamento e diante da
omissão do Juizado da Infância e Juventude quanto às necessidades do abrigo, há agora
uma criança do Centro Nova Semente em local desconhecido com a mãe fugitiva. É a
primeira vez que Irmã Adele enfrenta uma situação como esta, mas a única coisa que
lhe resta é tentar estabelecer contatos com a mãe da presidiária para ver se consegue
notícias da criança.
O juiz da Infância e Juventude não foi encontrado em tempo hábil para comentar
o assunto.
***
12
As autoridades competentes são o Juizado da Infância e Juventude, o Conselho Tutelar e o
Ministério Público.
101
Sabe o que eu fazia na hora em que aqui a gente é trancada? Era hora de dar banho nos
meus filhos, botar pra jantar, depois arrumava a caminha deles, ligava a televisão
pequena no quarto, a gente deitava tudo junto, tudo agarradinho, e ficava ali assistindo...
Assistir televisão lá era uma emoção. Um deitava de um lado, o outro do outro. E aí
todos brigavam por um pouquinho de colo, conta a presidiária, entre risos.
Dormir com os filhos foi um momento mágico. Gil não cansa de comparar:
É muito diferente. Com os filhos ali perto, me senti mais segura, com mais amor, com
mais carinho. E aqui numa cela não. A gente deita pra dormir, mas não sabe se dorme
direito, ou se não dorme e fico acordada. É muito risco ficar aqui... E a presença dos
meus filhos foi ótima, eu consegui dormir. Me senti assim, em liberdade, pude abraçar
meus filhos com vontade, o horário de dar banho neles, de vestir, de dar comida, fazer o
arrozinho deles... Consegui lavar as roupinhas deles, consegui passar... Mas daqui que
me acostumasse, foi três dias para eu fazer as coisas direito. Toda hora eu “meu Deus eu
nem acredito que to aqui fazendo isso, que to aqui lavando e estendendo no varal as
roupinhas dos meus filhos”. Era eu fazendo tudo e as lágrimas caindo...
Quando eu cheguei aqui, pensei, “meu Deus, ontem tava bom, hoje ta tudo horrível de
novo”. Tem que chamar muito por Deus, porque depois da hora da tranca, a gente não
pensa coisa boa, só vem coisa ruim na cabeça. A gente pensa em deitar, e depois não
acordar. Porque um momento ta tudo bem, em outro as presas podem “virar” e sobrar
pra gente que não tem nada a ver... Aí temos que ficar parada e não falar nada, porque
pra morrer é daqui pra li.
102
AO LADO DO PAI
103
Eu quero ser médica e fundar uma creche para ajudar as crianças, porque hoje em
dia as coisas tão difícieis e é bom ajudar as pessoas, sabe? Comprar um terreno e ir de
pouquinho em pouquinho fazendo. Eu quero educar, ensinar as crianças a serem
educadas. Muitas pessoas querem ajudar com interesse, mas não tem que ter isto, tem
que educar.
Faça o baculejo, prezada! – falava a menina sempre que via uma das agentes
penitenciárias, repetindo os termos utilizados pelas presas. “Baculejo” é o nome que as
presidiárias dão à revista e “prezada” é como chamam as agentes.
Levada para o Centro Nova Semente por uma das funcionárias do Serviço
Social da penitenciária, Milene estava com inflamação vaginal, verminose e bastante
abatida. Não era acostumada a almoçar e só queria se alimentar na hora em que ela
sentisse vontade. Nunca tinha ido à escola e faltava à menina hábitos sociais.
Costumava xingar muito e fazer gestos obscenos. A equipe educacional do Nova
Semente encontrou dificuldades em lidar com a garotinha, que não se deixava orientar.
Milene, não pode comer sem lavar as mãos... Milene, você vai quebrar! Milene, tire a
mão daí... Milene, volta aqui!!! Milene, pára de fazer este gesto, isso é feio! – repetiam
as educadoras.
A menina saía da sala em plena aula, mesmo com os alertas das professoras. Não
era educada a escutar. Na creche, estava pouco se lixando para as brincadeiras e
atividades infantis. Só gostava de cantar músicas inadequadas à sua idade, com palavras
de baixo calão, e de dançar sem nenhuma compostura. Para cada abordagem tinha uma
resposta na ponta da língua. Era ágil no pensamento e nas respostas. Tudo revelava uma
criança inteligente, mas pouco orientada. Se dependesse de sua vontade, voltaria a viver
com a mãe, como manifestava nas visitas. Proibida de permanecer na penitenciária,
local onde cresceu e viveu até então, voltava revoltada para o Nova Semente.
Há mais ou menos dois anos a mãe de Milene deixou a prisão. Não tinha para
onde ir, mas insistia em ficar com a filha. Preocupada, Irmã Adele resolveu comprar
uma pequena casinha no bairro e deu de presente à expresidiária, que logo arranjou um
companheiro e passou a viver com ele na casa. O seu novo marido costumava maltratar
e xingar a menina. A mãe de Milene a devolveu, menos de um ano depois, ao Centro
Nova Semente, e lá ela está até hoje. Se questionada, a menina diz que a decisão de
voltar foi dela.
Eu voltei porque cresci e fui educada aqui. Estava com saudades, falei pra minha mãe
que queria voltar e Irmã Adele deixou. Então eu fico durante a semana aqui e no
sábado e domingo fico com minha mãe. Lá eu fico com meu irmãozinho que nasceu e
ajudo ela. Também ligo o som e fico dançando, porque eu adoro dançar. Tenho até um
CD de Rebeldes13.
Brigada com o exmarido, a mãe de Milene não permite que a menina veja o pai,
que ainda está preso. Durante todo o período em que ficou com ela, Milene ficou sem
vêlo e queixavase de muitas saudades. Irmã Adele, considerando uma estupidez
afastar a menina do convívio do pai que a menina tanto ama, desobedeceu a vontade da
expresidiária e a levou à PLB, onde o pai da garota estava no “seguro”.
13
Grupo musical mexicano formado por adolescentes surgido a partir da telenovela juvenil
Rebeldes, exibida no Brasil pelo SBT.
105
Foi complicado e dramático, mas foi ótimo para os dois – explicou Adele.
No último dia dos pais Milene recebeu uma carta do pai, dizendo que a amava e
que queria que ela estudasse bem para passar de ano. A menina leu e guardou a carta
bem escondida no fundo do seu armário, que fica no quarto que ela divide com mais
sete crianças no abrigo. Cada uma delas tem seu próprio armário.
Minha mãe não pode ver, Irmã, senão ela briga comigo...
Aos estranhos, Milene não conta que tem o pai preso. E diz não se lembrar onde
viveu antes de chegar ao Nova Semente. Mentir sobre estas informações da sua vida, ou
simplesmente omitilas, é um mecanismo de defesa, pois sabe que assim se protege do
preconceito das pessoas.
A nossa vida não interessa a ninguém. Se eu falar na escola, os meninos vão ficar
mangando. Porque eu sou isso e aquilo e pe rê rê, pe rê rê. Nem as professoras sabem.
Os meninos são muito pertubados.
Milene diz que não sente vergonha do pai, que gosta de vêlo, e revela uma
maturidade admirável ao comentar sobre a prisão dele:
Eu fico triste quando vejo meu pai lá preso com tanto lugar bom e bonito para ele
ficar, porque hoje em dia as coisas está difícil, mas ele podia muito bem não estar ali.
Pelo menos ele poderia estar trabalhando, não ter aquela vida, ter a própria casa dele,
mesmo simplezinha. Porque tem muita pessoa lá [no presídio]. Ficar em casa é bem
melhor que estar num lugar horrível, né?
106
Os presidiários também têm direito a receber a visita dos filhos, mas é sempre
mais complexo, devido ao risco de rebeliões e à violência. Além disso, a quantidade de
homens em cada pavilhão torna difícil que o preso seja localizado; é preciso avisar com
antecedência sobre a visita, ou ter paciência para esperar.
As crianças do Centro Nova Semente que têm pais presos são levadas por Irmã
Adele poucas vezes por mês, uma de cada vez, e ficam apenas meia hora com os pais,
em uma sala de visita, sob olhar atento da freira e dos guardas. Há pouco tempo as mães
das crianças, que também são presas, podiam leválas ao encontro dos pais
semanalmente, passando o dia inteiro com eles nos estabelecimentos masculinos. Mas,
observando comportamentos estranhos nas crianças, as assistentes sociais conversaram
com as detentas e com Irmã Adele, e decidiram pôr fim ao encontro paimãefilho,
como explica Simone Lima:
Aconteciam casos em que as crianças presenciavam a relação sexual dos pais, pois não
tinha como separar... Elas ficavam nas celas, às vezes em celas com outros internos e
suas famílias, e viam o contato íntimo de outras pessoas também. As crianças de três,
quatro ou cinco anos chegavam comentando, narrando o que assistiam, mesmo que
inocentemente, através de brincadeiras e gestos. Agora a criança não vai junto com a
mãe para estes encontros. Irmã Adele leva em outra oportunidade. Infelizmente não
existe mais o encontro da família completa, mas porque assim é melhor para os
menores. Mas acontece no Dia das Crianças ou no Natal, se previamente organizado.
Brigite é uma das crianças do Nova Semente que têm pai e mãe presos. Cátia
Gonçalves, sua mãe, é uma bela mulata mineira, tem vinte e poucos anos, corpo
torneado, longos cabelos negros e cacheados e olhar expressivo. Possui uma certa
esperteza, um jeitinho astuto, e não gosta de conversas, dá respostas monossilábicas,
mas está sempre atenta a informações sobre sua neném.
Hoje estou com dordeouvido por causa de uma alergia ao esmalte, sabe? Outro dia a
gente fala, ta? – lorotou a presidiária, fazendo cara de dor, demonstrando, na verdade,
não querer conceder entrevista.
107
A jovem foi presa por latrocínio em Seabra, onde conheceu o paulista Glauciano
Mattos e engravidou de Brigite. Já possuía duas filhas, uma de cinco e outra de dois
anos, conforme consta no relatório do Serviço Social, mas não deu informações sobre o
paradeiro das crianças, que estariam com familiares. Condenada a vinte anos de
reclusão, Cátia chegou na Penitenciária Feminina, em junho de 2005, grávida de três
meses. Sua filha, que já aprende a dar os primeiros passinhos é muito apegada a ela.
Quando chega no presídio, levada por Irmã Adele, a menina se joga nos braços da mãe
e se alguém, quem quer que seja, até mesmo a freira, tentar tomála, ela finge que vai e
se vira, rindo, agarrandose na mãe.
Mas hoje também é dia de Brigite visitar o pai Glauciano, um rapaz branco, de
vinte e cinco anos, muito bonito, com cabelos lisos curtos, porte atlético, tatuagens
espalhadas pelos braços e pernas e bastante educado. Chega na sala de visitas após vinte
minutos da chegada de Irmã Adele com a criança, algemado e com os cabelos
molhados. Quando soube da visita da filha, deixou a fábrica de bolas de futebol, tomou
um banho rápido e foi conduzido pelos agentes penitenciários até à menina, que se
encontrava engatinhando pelo chão. Livre das algemas, pega a criança e a levanta,
dando um beijo na sua barriguinha.
É o papai, filha!
A minha filha não é linda? Parece comigo? – derretese o jovem paulista com a
menina no colo.
108
Brigite é sua primeira filha. Ele conta que foi recapturado justamente por causa
dela, pois quando soube que Cátia havia dado à luz, contaram a ele que a criança seria
entregue para adoção. Acabou ficando atordoado, “dando mole”. Levou um tiro no pé
esquerdo por um dos policiais que o prenderam e não tem um dos dedos. No colo do
pai, a menina se diverte agarrandoo pela corrente. O jovem ri. Do lado de fora da sala
onde acontece a visita, um guarda está parado, observando tudo.
Alisando as costas da criança, comenta:
Glauciano e Cátia estavam brigados, mas voltará a ter encontros íntimos. Ele
mostrase apaixonado pela presidiária.
Você a viu? Como ela está? É bonita, não é? Nunca gostei de ninguém, mas justo na
cadeia que vim me apaixonar – comenta Glauciando, rindo. Olha atentamente a filha em
silêncio por alguns segundos e continua: – Quando sair daqui, quero constituir uma
família com ela.
O detento sentese triste ao falar dos pais, que nunca o visitaram desde que foi
preso. Explica que a família enfrenta muitas dificuldades financeiras principalmente
após ele ter sido preso, e que não teve condições de vir de Seabra até Salvador.
Os trinta minutos que o jovem tem para ficar com sua filha se esgotam. Antes de
a entregar para Irmã Adele, dá um beijo no rosto da menina e comenta com a assistente
social da PLB, enquanto o guarda algema suas mãos, que o avise quando o promotor de
Justiça vier ao presídio, pois ele precisa assumir a paternidade da criança. Quer seu
nome na certidão de nascimento da filha.
109
TARDE NO J ARDIM
110
O sol da primavera que se finda está forte e quente nesta tarde desta segunda
feira, 20 de novembro de 2006. Não há nenhuma nuvenzinha sequer no céu azul claro.
Um vento fraco balança as palhas dos coqueiros espalhados pela grande área verde do
Centro Nova Semente. A casa está em silêncio. As crianças que estão ali ainda tiram um
cochilo pósalmoço. Jean, porém, está acordado e brinca na ampla sala arejada sobre os
olhares preguiçosos de Conceição e Domingas, que descansam ali, uma no sofá e outra
em uma poltrona tipo divã. Irmã Adele está no quarto repousando. Grande parte das
crianças ainda está na creche que fica ali perto, nas escolas públicas do bairro ou tomam
aulas de reforço. Algumas ainda não voltaram das casas de suas madrinhas, com quem
passaram o final de semana. Devem chegar até o final da tarde.
As irmãs Márcia* e Mariana*, três e cinco anos, também estão na casa. Desde o
Dia das Crianças estavam com a mãe, que acabara de ganhar a liberdade e deixar a
prisão, mas foram deixadas ainda hoje no Centro Nova Semente. A mãe das garotas
disse que por enquanto não tinha condições financeiras de ficar com as crianças.
Voltaria para pegálas quando conseguisse e se estabilizasse em um emprego. Lá no
abrigo as crianças estariam mais protegidas e não passariam fome.
Vou pegar a primeira leva de crianças na creche pra trazer pra cá – avisa a Conceição.
Milene, Janaína* e as irmãs Sinara* e Joana*, que possuem entre dez e treze
anos e são algumas das crianças mais velhas do Centro Nova Semente, acabam de
chegar da “banca”. Deixam os livros dentro da casa e saem para conversar na varanda.
A esta altura, os bebês Gabriel, Brigite e Suele já estão engatinhando pelo chão do
Centro, treinando os primeiros passinhos em pé, ainda desengonçados. Conceição
supervisiona.
Domingas chega com sete crianças, entre três de seis anos, todas com a farda
verde e branca da creche do Nova Semente, e volta para pegar as demais.
Irmã Adele surge na varanda com seu hábito bege e véu branco, além das velhas
havaianas azuis de sempre.
Irmã, Irmã...
A freira sorri e tenta responder todas as declarações das crianças. Mas é uma só
para tantos.
Aqui tá fazendo muito sol, vamos para lá para trás – chama Adele, com seu jeitão
italiano de falar.
14
Mateus, 19: 14.
112
As crianças se dirigem para a área verde que fica atrás da ampla casa. Antes de ir
até lá, a freira entra na sala e pega no armário duas caixas de pequenos wafferes
cobertos de chocolate e um pacote de pirulitos. No jardim, distribui os doces para elas.
Várias mãos se estendem em sua direção e os meninos e meninas saem em algazarra
quando recebem os pirulitos. Os demais, que vão chegando aos poucos no abrigo,
também correm até lá e pegam seus docinhos.
Non joguem papel no chão, ok? Lixo se joga no lixo – orienta a freira.
Como se diz?
Aqui está.
A freira, apesar de todos os problemas que teve que enfrentar no último mês,
sentese realizada em ver a alegria daquelas crianças. Quando foi convidada pela
Pastoral Carcerária para vir para o Brasil efetuar um trabalho com crianças filhas de
presos, Irmã Adele desconfiava dos desafios que a aguardavam neste país do terceiro
mundo. Cuidar de crianças em grave risco social e tentar conceder a elas um futuro
melhor, a motivava. Quando aqui chegou, por mais que tenha se preparado para a dura
realidade que teria que enfrentar, a freira chocouse com a situação de desnutrição e
carência de tudo, inclusive de civilidade, daquelas crianças que viviam na prisão. A
princípio, apenas pegava vez ou outra algumas crianças para passearem no ambiente
extramuros. Ainda não tinha a confiança das presas, que temiam que a freira fosse de
alguma instituição que visasse a adoção das crianças, mas aos poucos foi comprovando
que não tinha interesse nesta questão, e que não queria afastálas da família.
elas durmam nas celas –, mas sim para aquelas que estão na primeira infância e que
começam a apreender o mundo que as circundam.
Não pelo estigma de ser filho de detenta, ou pela herança genética que a torna
propensa ao crime, mas pelo desejo de recuperar as pequenas benesses que o Estado lhe
concedia dentro da prisão, mas que não lhe assegura lá fora – afirma Quintino.
Para a estudiosa, a creche seria, dessa forma, mais uma forma de fazer a
presidiária “agüentar a prisão” que propriamente um benefício para a sua
ressocialização, uma vez que para elas não há garantias de reinserção social.
Irmã Adele, firme no seu propósito e ciente dos riscos que estas crianças
poderiam ter se vivessem na penitenciária, conseguiu montar a instituição de abrigo que
sonhava fora da prisão, após a Pastoral Carcerária ter conseguido firmar um acordo com
a Penitenciária, obtendo autorização para construir a creche em um terreno adjacente ao
complexo penal, em uma área de bastante verde, separada das grandes instituições de
concreto onde os prisioneiros cumprem pena. Com os recursos que conseguiu, Adele
acompanhou cada etapa da construção da casalar do Centro Nova Semente.
***
15
“Creche na prisão feminina do Paraná – Humanização da pena ou intensificação do controle
social do Estado?” Curitiba . 2005.
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Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Track!
Track!
Track!
Perto de uma tela verde gradeada, que separa o espaço do Centro Nova Semente
da mata ao redor dele, três menininhas com as mãozinhas fechadas em frente a boca,
segurando um pequeno pedacinho de cipó, fingem que estão com um microfone e
cantam uma das músicas que preferem:
Infelizmente esta hora, apenas imaginando ter que enfrentar mais uma noite no
cárcere – e que sobrevivam a ela! – os pais e as mães daquelas crianças, ainda que dali,
ao mesmo tempo tão perto e tão longe dos filhos, não conseguiriam ouvir ou entender o
significado daquela canção... Mas as crianças com esperança cantam:
FIM
117
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
BRASIL, Congresso Nacional. Lei 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de Execução Penal.
Adolescente.
BRASIL, Regras Mínimas para o Tratamento dos Presos no Brasil. Brasília: Conselho
ELUF, Luiza Nagib. O contraponto entre a realidade e o ideal do sistema prisional. Disponível
GIRARDI JR., L. A reportagem como experiência etnográfica. São Paulo, 1995. Disponível em
LIMA, Alceu Amoroso. O jornalismo como gênero literário. Rio de Janeiro: AGIR, 1969
LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas o livro reportagem como extensão do jornalismo
novembro de 2006.
<http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/1884/5937/1/Capa+e+Sum%3Frio.pdf>. Acesso em 18
de novembro de 2006.
situação da primeira infância nas unidades prisionais femininas brasileiras. Brasília. 2002.
SODRÉ, Muniz; FERRARI, Maria Helena. Técnica de reportagem: notas sobre a narrativa
TALESE, Gay. Fama & Anonimato. São Paulo: Schwarcz Ltda, 2004.
WOLFE, Tom. Radiqual Chique e o Novo Jornalismo. São Paulo: Schwarcz Ltda, 2005.
120
TERMO DE APROVAÇÃO
FILHOS DO CÁRCERE:
INOCENTES CUMPREM PENA COM OS PAIS NAS PENITENCIÁRIAS
Carla Aragão
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Jornalista e coordenadora do Núcleo de Comunicação da CIPÓ – Comunicação
Interativa