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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO

ALINE COSTA D’EÇA

FILHOS DO CÁRCERE
INOCENTES CUMPREM PENA COM OS PAIS NAS PENITENCIÁRIAS

Salvador
2006
1

ALINE COSTA D’EÇA

FILHOS DO CÁRCERE
INOCENTES CUMPREM PENA COM OS PAIS NAS PENITENCIÁRIAS

Projeto experimental de conclusão do curso de


graduação em Comunicação Social com habilitação
em Jornalismo, na Faculdade de Comunicação da
Universidade Federal da Bahia.

Orientador: Prof. Dr . Giovandro Marcus Fer r eir a

Salvador
2006
2

“Costuma­se dizer que ninguém conhece verdadeiramente


uma nação até que tenha estado dentro de suas prisões.
Uma nação não deve ser julgada pelo modo como
trata seus cidadãos mais elevados,
mas sim pelo modo como trata
seus cidadãos mais baixos”.

(Nelson Mandela)
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AGRADECIMENTOS

A Deus pelas oportunidades que me fizeram crescer, pelos pensamentos que me


inspiraram e pelo amor que me fortaleceu; ao meu pai, maior incentivador, de quem
aprendi a enfrentar a vida com determinação; à minha mãe, pelo carinho e confiança
mesmo quando minhas escolhas a assustaram; aos meus irmãos, companheiros de todas
as horas, meus melhores amigos; à minha família, meu alicerce, pelas lições de união,
amor e fé; aos amigos, colegas de faculdade e de trabalho que compreenderam minhas
faltas, acreditaram em mim e me estimularam a seguir em frente; aos professores, pelos
conhecimentos e experiência que adquiri nestes últimos anos, em especial a meu
orientador Giovandro Ferreira; e, por fim, a todos aqueles que me ajudaram a
concretizar, mesmo com tantas dificuldades, o presente trabalho, e que são objeto dele:
desde as crianças e membros do Centro Nova Semente aos funcionários e internas da
Penitenciária Feminina, especialmente à Irmã Adele e Simone Lima, pois sem elas este
trabalho não seria possível.
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SUMÁRIO

CAPÍTULO 1 UM OUTRO MUNDO 05


CAPÍTULO 2 NOSSA CASA E ESCOLINHA 16
CAPÍTULO 3 ANJ O E BANDIDO 23
CAPÍTULO 4 FESTA E AGONIA 32
CAPÍTULO 5 MÃE APENADA 47
CAPÍTULO 6 CRIANÇAS NA PRISÃO 69
CAPÍTULO 7 REENCONTRO 86
CAPÍTULO 8 AO LADO DO PAI 102
CAPÍTULO 9 TARDE NO J ARDIM 119
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UM OUTRO MUNDO
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Muros. Um extenso paredão cinza se impõe por metros e metros, escondendo o


verde de uma mata nativa. Verde, verde. Cinza, cinza, cinza, cinza. O cinza não esconde
só o verde. No meio do verde, após o verde, mais cinza de outros muros. Mas nem todos
conseguem ver. Nem todos querem ver. Do lado de fora, do lado do muro, não há
calçadas, apenas barro. Entre o muro e a estrada, apenas barro escorregadio e
desnivelado. Calçada? Para quê? As pessoas geralmente atravessam a rua, apertam o
passo, estão mais atentas, mais apressadas, não se preocupam com a falta de calçada.

­ Passeio, moça? Ninguém passeia, ninguém quer passear por aqui!

Do outro lado da estrada, nada é belo. Pelo menos para os olhos acostumados
com outras paisagens e que vê, pela primeira vez e de tão perto, no quadro a sua frente
uma pintura mal feita, mal acabada, mas real. Uma pintura de casas sobre casas. Difícil
precisar onde cada uma começa e termina. No horizonte, apenas um mar de muros e
paredes vermelhas. Pequenas casas residenciais e comerciais sem reboco e sem pintura.
Blocos vermelhos expostos. Esgotos expostos. Em um canto e outro, poças d’água
acumulada pela chuva. Sintomas da pobreza...

Na beira da estrada, a maioria das construções são pequenas oficinas de três ou


quatro metros quadrados. Oficinas de carro, oficinas de eletrodomésticos. Oficinas.
Como um dia alguém foi capaz de acreditar?, mas do outro lado da rua, do outro lado do
muro, após o verde e dentro daquelas grandes estruturas acizentadas, protegidas e
afastadas das outras edificações, deveriam existir oficinas de homens.

ZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIM...

Atenção! As sirenes gritam. Estão apressadas, aflitas, agudas. Olhem para trás!
Coração acelera. Olhos acompanham o grande furgão cinza passar apressado, rasgando
a estrada. Pode­se enxergar, na imediata passagem, que carregam homens fardados em
marrom denso e ocre, óculos escuros, negras armas apontadas para o chão. Impõem
medo. Intimidam. Como se de qualquer lugar e a qualquer momento pudesse surgir a
ameaça. Como se bandido fosse qualquer um dos transeuntes. É preciso que estejam
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atentos, protegendo o que carregam ali dentro. Proteger? Proteger o quê de quem? Ou
quem do quê?

­ Não, não nos sentimos protegidos, moça...

Passou... Suspiro aliviado. As pessoas voltam a percorrer seu caminho com


passos rápidos, embora menos aflitos. O que mais aquela grande caixa cinza, aquele
carro forte com soldados amedrontadores transportava? Todos ali sabem o quê,
ninguém sabe precisamente quem. Mas qualquer nome serve se quem é transportado
naquele carro, daquela maneira, é facilmente e prontamente identificado com um
adjetivo comum: bandido.

­ Quem vai ali, mãe?

­ Um bandido, filho, um bandido...

Inscritas em branco sobre o cinza pesado do grande furgão­armado, que passou


apressado fazendo a linha Punição/Justiça, pode­se perceber uma sigla de quatro

enormes letras maiúsculas: SJ DH Pouca gente sabe o que significa.

­ Sabe que eu sempre vi, mas nunca perguntei a ninguém?

­ Significa Secretaria de Justiça e Direitos Humanos.

­ Aaaaaaaaaaaaaah...

ZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIMZUIM...

Atenção! As sirenes gritam. Estão apressadas, aflitas, agudas. Olhem para


frente! Coração acelera. Elas se aproximam rapidamente. Lá vem, lá vem de novo, outro
furgão rasgando a estrada, só que agora no sentido contrário, sentido Justiça/Punição.
Os portões localizados entre os muros se abrem, deixando o furgão­armado, o veículo
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carregado de homens fardados entrar. Ali farão o descarregamento do “material”


transportado.

Do lado de fora, não dá para ver nada além dos portões abrirem e fecharem
rapidamente, após a passagem do carro cinza. Nem mesmo as pessoas que estão ao lado
dos grandes portões, a maioria com semblantes angustiosos e olhares submissos,
carregadas de sacolas plásticas e esperando a autorização para entrar, podem ver na
passagem do furgão­armado mais que os intimidadores homens fardados.

Mas nem tudo é só cinza, nem tudo naquele bairro é tão espantador quanto o seu
nome: Mata Escura. O céu, por exemplo, hoje acordou azul por ali também. Poucas são
as nuvens no céu. O sol da manhã que ainda se inicia aquece suavemente os rostos dos
caminhantes. Seguindo na beira da estrada, entre o asfalto e o barro, na continuidade
dos muros de blocos cinza, repletos de limo e de lodo, surge um portão branco. Branco
como a paz. Branco como a pureza dos que são acolhidos ali, e que estão tão próximos
daquilo que a sociedade considera o lixo social. Mas ao contrário do que muitos podem
pensar, as criaturas abrigadas por trás daquele portãozinho branco, ainda não se
deixaram sujar por dentro.

Para ultrapassar aqueles portões não é preciso esperar horas, identificar­se


exaustivamente, nem ser submetido a revistas vexatórias e humilhações de toda sorte.
Não é preciso baixar a cabeça e subjugar­se. Basta tocar uma campainha, dizer a um dos
jovens rapazes que ficam na guarita o seu nome e quem procura, e logo os portões se
abrem, mostrando um jardim ainda sem flores e com resquícios de que está se
constituindo. O próprio nome do lugar sugere algo que ainda está em construção:
Centro Nova Semente. Ao fundo, uma ampla casa pintada de branco, de amarelo claro e
azul­bebê, com aparência nova e traços de edificação moderna. Esquecidos na varanda
um velocípede colorido e o corpo de uma boneca sem a cabeça. É preciso ser atento
para não tropeçar em um dos brinquedos espalhados pelo chão.

Ainda na varanda, um quadro com letrinhas azuis avisa: Quem vier, de onde
vier, venha em paz.
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Difícil não perceber rapidamente que de dentro da casa ecoam vozes infantis
sobressalentes a três vozes adultas femininas. Na porta de entrada, uma portão branco
gradeado, porém aberto, dá acesso a uma sala ampla repleta de sofazinhos, mesinhas e
cadeiras infantis. Nela, há poucos móveis, todos brancos embutidos em cada um dos
quatro cantos. É possível notar também, na parede diante da porta de entrada, um
quadro de aproximadamente sessenta centímetros de altura por quarenta de largura com
uma imagem de Jesus Cristo abraçado por crianças. Ao redor do desenho bíblico,
pequenos pôsteres com fotos individuais de várias crianças, geralmente sorridentes,
emolduradas com desenhos de flores. Não é possível, contudo, permanecer por muito
tempo atento aos detalhes do local, quando onze crianças estão na sala num engraçado
alvoroço. Umas falam, outras gritam, outras riem, outras balbuciam. Demonstram a
radiante alegria de serem crianças.

Inúteis são as reiteradas tentativas de duas jovens mulheres e uma senhora de


cabelos grisalhos em manterem­nas organizadas em uma fila. Uma das vozes adultas
femininas avisa, em tom alto e doce, num sotaque português­italiano, que hoje é dia de
visita e que é preciso que todos se comportem bem. Irmã Adele Pezone, uma freira
italiana radicada na Bahia desde 1992, tem sessenta e sete anos, usa um hábito bege e
um véu branco escondendo os cabelos já acizentados. Seus olhos são azuis como as
velhas sandálias Havaianas que calçam seus pés. Ativa e atenciosa, ela entrega um belo
e grande bebê de pele alva, cabelos loiros e de atentos olhos azuis, aparentando oito ou
nove meses, a uma das babás, e faz um cafuné em outro bebê menorzinho que está em
um colchão no chão.

­ Eles não vão conosco – avisa a freira, convocando as outras crianças a seguirem­na –
Já são quase nove horas e precisamos nos apressar...

Fardadas, limpinhas, sorridentes, tagarelas, ativas, ansiosas, nove crianças de


diferentes idades e tamanhos tentam organizar­se numa fila e seguem em direção a um
dos carros que se encontra estacionado na garagem, logo após a varanda. Um pequeno
furgão cinza prateado com dois grandes bancos traseiros que comportam, cada um
deles, quatro pessoas adultas ou até cinco crianças. Na parte da frente do carro, há mais
dois bancos; um do motorista e outro do carona. Quatro crianças maiores, entre cinco e
sete anos, sentam no banco do fundo e já “vestem” o cinto de segurança. No banco do
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meio, quatro crianças menores se ajeitam com uma “madrinha”, que carrega o afilhado,
um bebê de um ano e meio, no colo. A freira conduzirá o carro e, no carona, uma das
“tias” carrega uma menininha de sete meses.

­ Todos acomodados? Portas fechadas? Cinto de segurança? Então vamos. Não


esqueçam de serem bonzinhos e comportados com a mamãe...

Cada criança ganha da italiana uma caixinha de pastilhas sabor laranja, o que as
deixam ainda mais sorridentes. Apenas uma garotinha de aparentemente quatro anos
não se deixa contaminar pela alegria das outras crianças.

­ Todo mundo lanchou em casa?

­ Siiiiiiiiiiiimmmmmm – respondem em coro as entusiasmadas crianças.

­ Então nada de ficar pedindo doces e sucos para a mamãe! Elas estão “trabalhando” e
não têm dinheiro para essas coisas, certo?

­ Ceeeeeeeerto.

– Irmã, podemos cantar? – pergunta uma vozinha feminina.

– Si, si. Io gostaria muito.

Em coro, as crianças maiores iniciam a canção, sendo acompanhadas pelas


menores. Algumas sequer sabem a letra, mas repetem a última palavra de cada estrofe:

Sei que ainda sou criança


Tenho muito que aprender
Mas quero ser criança quando eu crescer
Nosso mundo é um brinquedo
Com pecinhas para unir
Ele será todo seu, se você pensar assim

Vamos construir uma ponte em nós


Vamos construir, pra ligar seu coração ao meu
Com o amor que existe em nós!
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E você que é gente grande


Também pode aprender
Que amar é importante pro meu mundo e para o seu
Mas eu tenho a esperança
De você ser meu amigo
De voltar a ser criança, pra poder brincar comigo

Vamos construir uma ponte em nós


Vamos construir, pra ligar seu coração ao meu
Com o amor que existe em nós!

Tudo o que se sonha


Com amor se pode conseguir
Por que tudo é assim, é assim
E a gente vive muito mais feliz!1

Os portão branco abre­se, permitindo a saída do furgão­prateado, que percorre


cerca de duzentos metros paralelamente aos muros cinzas. Não se leva nem dois
minutos para chegar ao destino. Os grandes portões cinza são abertor por um homem
fardado em negro, concedendo passagem para o carro com as criancinhas cantantes. São
também por estes portões que entram e saem os grandes furgões­armados­cinza­
amedrontadores. Do lado de fora, as pessoas simples e cabisbaixas continuam na fila
com suas sacolas plásticas lotadas de alimentos e roupas, aguardando autorização para
entrar.

Nove em ponto. As crianças param de cantar quando o furgãozinho é


estacionado. É hora de descer do carro. Com ansiedade e alegria, os cintos de segurança
são retirados e todas saem do furgão, rapidamente. As crianças são preparadas para o
encontro desde cedo, por isso estão tão saltitantes. Com exceção de Maria Clara*2, que
permanece tímida, agarrada na mão da freira italiana. Todas juntinhas? É chegada a
hora de ver a mamãe. As portas estão abertas, mas com vigias. As crianças hoje têm
passagem livre. Correria, abraços, beijos. Os menininhos e menininhas parecem nem
notar o ambiente sombrio, úmido e de odor desagradável em que se encontram quando
as mães surgem diante dos seus olhinhos. Nada como um colo materno... O carinho da
mamãe... Principalmente quando se tem isso apenas quinzenalmente. As crianças...

1
‘Vamos Construir’, música de Sandy & Junior
2
Por questão de segurança os nomes das crianças e de alguns personagens foram preservados e
substituídos.
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Quanta alegria surge no ambiente com a chegada das crianças... São pequenos
raios de luz invadindo um local onde o sol não costuma aparecer.

As circunstâncias da vida fazem com que elas percebam, desde cedo, que são
diferentes das demais crianças. Nesta “escola”, não são os pais que buscam os filhos.
São os filhos que vão de encontro aos pais...

Em dias como este, no Conjunto Penal Feminino, localizado no Complexo Penitenciário


do Estado da Bahia, ultrapassam as grades apenas as detentas que são mães de uma
daquelas criaturinhas trazidas pela freira italiana. Só elas podem pegar o filho no colo e
brincar com ele, como meninas com suas bonecas na hora do recreio. Por algumas horas
elas se sentirão livres. Livres para dar mamadeira, suco, trocar a roupa, brincar e
aconchegar as crianças, mesmo as mais “grandinhas”, no colo. Algumas das detentas se
preparam para este momento como se preparassem para uma festa. Unhas pintadas,
perfume, roupa e cabelos arrumados. É essa impressão que querem deixar nas mentes
dos filhos. O encontro com as crianças se dá fora das celas, no salão polivalente, uma
ampla cela adjacente na penitenciária feminina, onde todas se reúnem com seus filhos,
sob supervisão de homens fardados de preto e de mulheres que se vestem, em alguns
casos, com roupas e sapatos extravagantes que nada combinam com a precariedade do
lugar em que trabalham e com os coletes pretos que usam, obrigatoriamente,

sobrepostos à roupa, onde se lê: SJ DH – AGENTE PENITENCIÁRIO .

Jean*, um bebê de um ano e meio “com cara e jeitinho de homem”, como


costumam dizer as sua babás, chega e permanece no local no colo da madrinha, uma
senhora de aparentemente cinqüenta anos, que cuida dele voluntariamente nos finais de
semana. Assim que sua mãe deixa as grades, o menino chora e atira­se para os braços
dela. Dorothée tem apenas vinte e dois anos, mas aparenta dezoito. É francesa, natural
de Cameronn, filha de um comerciante e de uma doméstica. Teve um relacionamento
com um negro angolano, “um bonito e alto jogador de futebol”, como conta, hoje
trabalhando na Itália, de quem ficou grávida. Foi presa no aeroporto de Salvador, em
2004, quando tentava deportar droga para a Espanha.
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Muito jovem e com jeitinho de menina sorridente, a mulata francesa possui


cabelos crespos alisados, presos num curto cabo­de­cavalo, unhas pintadas de vermelho,
olhar doce e voz delicada. Como agradecimento, ela oferece um abraço sincero à
madrinha de seu filho pela dedicação voluntária devotada a ele. É a primeira vez que se
vêem. Virgínia*, a madrinha, se emociona. Como uma garota tão jovem, tão bonita e
educada, mãe de uma criança igualmente linda e doce, pode estar num lugar desses?

Quando foi condenada a quatro anos e meio de prisão por tráfico internacional
de drogas, Dorothée descobriu, já na cadeia, que estava grávida de dois meses. Toda a
gestação foi na prisão. Após nascer, Jean só ficou seis meses com ela, na cela, período
da amamentação.

­ Ele se comporta bem na sua casa? – pergunta Dorothée, num fluente português,
praticamente sem sotaque, tentando livrar­se de mais explicações e lembranças do
passado delinqüente que a colocou ali, atrás das grades e privada da convivência com o
único filho – Nos primeiros dias ele não estranhou você e sua família?

­ Ele é um menino esperto e tranqüilo e que já está acostumado com todos –


tranqüilizou Virgínia – Meus filhos, de dezessete e dezenove anos, estão tão apegados
ao Jean, que me perguntam sempre quando ele vai ficar definitivamente lá em casa,
quando você vai me dar ele...

Um silêncio prolongado por um período inferior a um minuto se impõe sobre as


duas, que parecem reviver momentos particulares experimentados com aquela criança.
Meio sem jeito, não tirando os olhos do filho, que deixa algumas pastilhas caírem no
chão, Dorothée, em tom seguro e delicado, responde à madrinha que não pode e não
quer dar ele a ninguém.

­ Vou sair daqui... O advogado vai entrar com um habeas corpus. Vou ganhar a
condicional, ficar aqui em Salvador por algum tempo e depois irei com meu filho para o
exterior, onde tenho família.

É o que Dorothée sonha. Assim como outras presidiárias, ela é consciente de que
pode não ser importante para a sociedade, que a rejeita e que a condenou à
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marginalidade muito antes dela ser condenada à detenção, mas certamente o é para seu
filho. Por isso, quando sair dali, o levará com ela, na ilusão de uma esperança que não
deixa morrer: a de que será feliz ao lado dele...

As detentas estão, por lei, privadas do direito à liberdade; não do da


maternidade...

A resposta de Dorothée parecia martelar na cabeça de Virgínia. Não era bem o


que ela queria ouvir. Por instantes, quando soube que a mãe de Jean queria conhecê­la,
cogitou que seria a oportunidade de adotar o menino. Com um sorriso visivelmente
forçado e tentando segurar as lágrimas, ela estimulou a jovem presidiária a ter um bom
comportamento na prisão e, quando voltar a ter a guarda do menino, que ela dispense a
ele todos os cuidados de que precisa. Suas palavras não pareciam condizer com o seu
sentimento, mas sentia que era preciso estimular a detenta. Queria, na verdade, ficar
com o menino, pois já está por demais apegada a ele... “Mas nunca deixarei de ser
madrinha dele, não é?!”, cobrou da detenta em tom de brincadeira, obtendo o sorriso de
concordância de Dorothée, que, mais uma vez, mudando de assunto, comentou que os
parentes do interior estão cobrando dela fotos do menino, mas que ela não tem.

­ Trarei uma foto dele que mandei ampliar e fazer um pôster – prometeu a madrinha de
Jean.

Todas as famílias que apadrinham as crianças, por mais que no início das visitas,
nos primeiros finais de semana juntos, aleguem que não estão interessadas na adoção
definitiva, quase sempre acabam se apegando de tal forma à criança acolhida, que se
interessam em adotá­las. Criam com elas um vínculo forte a tal ponto que quando as
mães saem do presídio e retomam a guarda das crianças, cessando a “adoção de final de
semana”, os padrinhos sofrem intensamente. Mas Irmã Adele não cansa de explicar... O
‘Nova Semente’ existe para criar laços e incentivar a manutenção deles; não é uma
instituição de abrigo que promova a adoção. A maioria das crianças que ficam no
Centro em regime de internato está ali porque têm pai e mãe presos, mãe presa e pai
desconhecido, ou não possuem alguém da família materna ou paterna que queira ou
tenha condições de responsabilizar­se por elas. E, justamente por esta razão, algumas
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das presidiárias preferem deixar os filhos sob os cuidados da instituição. Elas temem
perder as crianças para uma família adotiva, que roubaria delas o direito de serem mães.

­ Irmã, o pai dele pergunta insistentemente pelo filho. Será que a senhora pode levá­lo
para visita no pavilhão cinco?

­ Irmã, estou com uma gripe forte, não posso ficar com ela hoje. Pode levá­lo.

­ Irmã, eu amo a senhora. Muito obrigada...

­ Irmã,...

­ Irmã,...

As crianças mais crescidas, já estão à vontade, brincam com uma bola de futebol
no salão polivalente, de onde também se pode ver, em um cantinho, recolhida em
silêncio e afastada das demais presas e de seus respectivos filhos, uma mãe acalentando
no seu seio esquerdo sua filha de sete meses, Brigite*, há pouco tempo retirada do seu
convívio, quando esgotado o período estabelecido por lei para amamentação.

­ Eles precisam ficar à vontade agora – explica a freira italiana, retirando­se


singelamente do local com as acompanhantes.

Às quinze horas voltará ao local para buscar as crianças. É importante que neste
tempo mães e filhos fiquem à vontade para conversarem, se tocarem, sentir um o cheiro
do outro, ouvir suas vozes, se reconhecerem. Não carecem supervisão; precisam de
privacidade. Se não é possível toda, pelo menos ofereçamos a elas um pouco mais de
privacidade, esclarece Irmã Adele, arrastando­se em suas velhas sandálias Havaianas e
dirigindo­se para o carro, de mãos dadas com uma das crianças, Maria Clara, que mais
uma vez não pôde ficar com a mãe, pois ela alegou estar doente e seria melhor pra a
criança manter­se afastada dela.
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NOSSA CASA E ESCOLINHA


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Uma semana se passou desde a última visita. É visível nos olhinhos recém
despertos das crianças um pouco da saudade que carregarão por mais sete dias. Todas
necessitam de atenção. Crianças sempre precisam. Algumas requerem com um choro,
um dengo ou uma malcriação, aspirando um pouco de atenção. Outras, porém, isolam­
se, com semblante jururu, enquanto manuseiam solitariamente um brinquedo. A
carência material das crianças do Nova Semente é grande, mas consegue ser suplantada
pela carência afetiva delas. Colo, carinho e atenção são o que elas mais carecem. Por
mais que tentem, Irmã Adele e suas duas assistentes, Conceição e Domingas, não
conseguiriam substituir o colo materno que tanto faz falta a cada uma das crianças. São
apenas três colos para tantas crianças... E nesta manhã a chuva parece aumentar a
carência dos pequenos. Hoje não há como correr pelo jardim, está tudo molhado, e por
isso elas permanecem na sala com os demais enquanto Conceição prepara, na cozinha,
algumas mamadeiras. A outra babá, foi levar as crianças mais velhas na creche­escola
do Nova Semente, localizada há aproximadamente quinze metros dali. Lá estudam
cento e dez crianças de três a seis anos, das quais oitenta são filhas de pais detentos e as
demais são crianças carentes que não possuem pais reclusos no sistema penitenciário,
mas que vivem na região da Mata Escura. Na casa­lar do Nova Semente, em regime
semelhante ao de internato, são abrigadas trinta e cinco crianças filhas de pais
presidiários, a mais velha com treze anos e a mais nova com nove meses.

No abrigo, as seis crianças que ainda não atingiram a idade escolar ficam na
ampla casa. Na sala principal, localizada em frente à cozinha onde Conceição, uma
jovem mulata magra de singulares olhos verdes escuros, prepara a primeira refeição dos
bebês, estão Jean, um ano e meio, e Brigite, sete meses, devidamente enlaçados em
cadeirinhas de comer. Em um gradeado cheio de brinquedos está o grande bebê loiro de
olhos azuis, que tem o nome e se assemelha a um anjinho saído de um comercial
infantil, Gabriel*, nove meses. Circulando livremente pela sala, apenas Rebeca*, uma
garotinha negra de dois anos com rococós coloridos no cabelo, e Alex*, um sedutor
menininho de três anos, que sorri com os lábios e com os olhos. Em um dos oito quartos
da casa, uma menina franzina, nove meses de vida, ainda encontra­se no berço. Suele* é
a única que ainda dorme. A dorminhoca garotinha, cujo pai é ex­presidiário, vive no
Nova Semente por exceção consentida por Irmã Adele diante do desespero da mãe, uma
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doméstica que vive na Mata Escura e trabalha a quilômetros e quilômetros dali, que
com a prisão do marido se sentiu impossibilitada de criá­la. As crianças que têm o pai
preso, mas a mãe livre, geralmente ficam sob a responsabilidade das própria genitora.
Mas Rosa* insistiu pelo acolhimento da filha, que possui problema de desenvolvimento
motor, pois não poderia dar à criança os cuidados especiais de que necessita, uma vez
que trabalha duro durante todo o dia e já possui outros dois filhos, que estudam na
creche e residem com ela em um barraco, para sustentar. Rosa foi informada de que as
crianças que vivem no Nova Semente são atendidas por uma equipe formada por uma
psicóloga, uma médica pediatra, uma pedagoga, uma coordenadora, quatro professores
e quatro babás (ou, como chama Irmã Adele, educadoras). Também auxiliam o trabalho
da casa­lar e da creche­escola quatro merendeiras, duas faxineiras e quatro porteiros. A
maioria dos funcionários é paga pela Fundação Dom Avelar; poucos são voluntários.

Domingas, a outra simpática e bem­humorada babá, também morena, porém


mais alta e forte que Conceição, chega na casa trazendo um saco com pães para o café
da manhã. As duas moram ali com as crianças e Irmã Adele, que esta noite dormiu na
sua casa particular.

­ Jean, tira a mão da boca, meu amor. Que carinha descarada deste menino. Olhe só,
Conceição, parece um homenzinho – derrete­se Domingas.

Ao mesmo tempo em que olham as crianças, as babás põem na mesa duas


xícaras, um prato de plástico amarelo com fatias de queijo e presunto, uma garrafa
térmica com café e sentam­se para comer. Do gradeado, Gabriel choraminga. Conceição
não resiste, levanta e carrega o menino, enchendo­o de beijos. Volta à mesa e coloca­o
sentado no seu colo. Sem perder tempo, o esperto bebê pega logo um pão inteiro na
cestinha que está à sua frente, quase derrubando o prato dos frios no chão, e enfia
metade dele na boca.

­ Não faz assim, meu amor, abre a boquinha... – pede suavemente Conceição, retirando
o pedaço de pão que enche a boca do menino.

No meio da sala, Rebeca está parada, torcendo as mãos e olhando para o chão,
como se tivesse feito algo de errado.
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­ Você fez cocô nas calças, Rebeca? Porque não pediu para ir ao sanitário? – questionou
Domingas, entendendo o comportamento da criança.

Sem se mover, Rebeca começa a franzir o rosto e duas lágrimas caem ao mesmo tempo
dos seus olhinhos. Aos poucos abre a boca num choro mudo e depois começa a soluçar
e a chorar alto. Sempre sem mover uma perna, nem erguer a cabeça.

­ Mã chegou! – grita Alex que espiava o jardim pelo portão gradeado.

A freira adentra a sala com estranhos visitantes, que causam a desconfiança das
crianças. São um grupo de quatro mulheres e um homem, todos jovens italianos, que
apadrinham de longe os meninos e meninas do Centro Nova Semente, e estão ali para
conhecer a instituição. Eles estão todos vestidos de maneira semelhante: bermudas e
blusas de algodão com as mangas curtas, meias cinzas e botas tipo coturno nos pés.
Amarrados no pescoço de cada um, lenços verdes e vermelhos ligeiramente torcidos e
presos por um pequeno broche até a altura do peito. Parecem pertencer a um grupo de
escoteiros.

Como ainda aprendem a falar e estão acostumadas a ouvir frases em português,


as crianças tentam decifrar, curiosas, o que aquelas pessoas diferentes falam naquela
linguagem estranha. Jean é o mais desconfiado. Espia com o canto dos olhos todos os
movimentos dos italianos, e não está muito receptivo a brincadeiras. Fica sério. Já Alex
derrete­se em risadas com as brincadeiras do único visitante do sexo masculino. O
encantamento parece recíproco. Brigite, por sua vez, sorri para uma das visitantes, mas,
ao ser retirada da cadeira pela jovem italiana, choraminga. Ninada, a menina logo
interrompe o choro.

Rebeca, que no meio da sala ainda chora sem parar, é carregada por outra
italiana, que não entende o porquê de tanto choro.

­ Hum.... se eu fosse você não faria isso – comenta Domingas com a entonação da voz
bem baixa, referindo­se à atitude da estrangeira e retirando um sorriso reprimido da
boca de Conceição, que mastiga um pedaço de pão.
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A visitante, sem ouvir nem tampouco entender o motivo dos risos contidos das
babás, senta no sofá, pondo no colo a menina que chora e chora...

­ Agora já era... A menina se lambuzou toda... – ri Domingas.

Enquanto os italianos aguardam na sala, Irmã Adele vai até o quarto e troca o
hábito bege que costuma usar diariamente por um traje semelhante, porém cinza. Na
sala, ela convida os visitantes a acompanhá­la. Irão ao presídio masculino. Um lugar
que considera execrável... As crianças ficam. Os italianos estão interessados em
conhecer as condições do estabelecimento prisional masculino brasileiro. O rapaz que
acompanha o grupo fica na casa, brincando com Alex no jardim, enquanto as visitantes
italianas seguem com a freira.

Domingas e Conceição voltam, então, para as suas atividades cotidianas. Hoje, a


primeira arrumará a casa e a outra dará banho nas crianças depois do lanche e as
colocará para dormir, começando por Rebeca, que precisa de uma boa ducha. Os bebês
Gabriel e Brigite são colocados nos seus berços de madeira, que ficam no quarto,
próximo à sala, onde está Suele, que ainda dorme. Jean e Alex dividem, no jardim, a
atenção do italiano, que se desdobra em dois com as crianças correndo pelo jardim até a
Irmã voltar, algumas horas depois, com as demais visitantes italianas.

Permanecem na casa­internato, diariamente, sob os cuidados das duas babás até


às dezesseis horas, quando termina o prazo das crianças de três a seis anos ficarem na
creche. Irmã Adele, enquanto isso, além das suas responsabilidades como religiosas, se
desdobra entre as tarefas de administração da casa e da creche­escola. É ela também
quem entra em contato com o serviço social da penitenciária, organiza a chegada e saída
das crianças, os encontros com os pais e as mães, cadastra as famílias madrinhas,
autorizando­as a ficarem com as crianças nos finais de semana e feriados, presta contas
com as instituições italianas que ajudam o Centro Nova Semente, compra as roupas das
crianças, determina como elas devem se vestir, orienta como devem se comportar, as
leva ao médico... Faz papel de mãe, de professora, de administradora, de motorista, de
evangelizadora... Gosta que as coisas sejam feitas do jeito que ela gosta, por isso,
mesmo tendo o auxílio de tantos funcionários, centraliza a execução de muitas tarefas.
21

Na casa há um escritório onde a freira mantém guardadas todas as pastas com


informações e documentos de cada uma das crianças, e neste local passa boa parte do
tempo. É muito preocupada com o futuro de cada um dos meninos e meninas, embora
saiba que o da maioria deles é impreciso, devido ao risco social a que estão expostos
pelo fato de possuírem pais presos ou ex­presos.

­ Aqui essas crianças recebem alimentação, carinho, atenção, educação escolar e cristã.
Fazemos a nossa parte. Na maioria das vezes elas chegam aqui em condições
lamentáveis: doentes e desnutridas. Cuidamos delas, e nos entristece ver algumas saindo
daqui com futuro incerto ao lado da mãe e tendo que conviver em ambientes com
princípios completamente diferentes daqueles que elas aprenderam aqui.

O trabalho do Centro Nova Semente começou em 1999, quando o juiz da Vara


de Execuções Penais proibiu a permanência, na Penitenciária Feminina, dos filhos das
mães presidiárias após o período legal da amamentação: seis meses. Na época, havia
crianças de até cinco anos de idade morando nas celas com as mães. Irmã Adele Pezone,
que integrava desde aquela época a Pastoral Carcerária da Arquidiocese de São
Salvador, providenciou a remoção e a acomodação das crianças num pequeno barraco
onde hoje, após muitas reformas, funciona a ampla creche­escola. A Pastoral Carcerária
já atuava há alguns anos no Complexo Penitenciário do Estado, prestando assistência
aos reclusos do sistema penal e levando as crianças que lá viviam para passar o fim­de­
semana fora da penitenciária.

O trabalho da Pastoral Carcerária e do Centro Nova Semente passou a ser


acompanhado e apoiado pela Fundação Dom Avelar Brandão Vilela e, em 2000, o
Governo do Estado doou à Fundação uma área de 9.274 m², adjacente ao Complexo
Penitenciário, onde foi construída a creche­internato com recursos que Irmã Adele
conseguiu junta a instituições italianas como a Associação de Voluntários do Serviço
Internacional (AVSI) e as fundações Cariplo, Aiutare i Bambini, Umano Progresso,
Provincia di Trento e Adonai. A nova sede do Centro Nova Semente foi inaugurada em
10 de março de 2005 pelo cardeal arcebispo Dom Geraldo Majella Agnelo.

Na creche­escola, as crianças que têm pai recluso na Penitenciária Lemos Brito


(PLB) ou no Presídio Salvador permanecem na creche durante todo o dia, e, à tarde,
22

suas mães vão buscá­las. São geralmente pessoas muito pobres que residem em outros
bairros, mas que optam por deixar seus filhos na creche do Nova Semente pois ali
recebem tratamento diferenciado. É o caso de Gertrudes*, que preferiu deixar as duas
filhas sob os cuidados da creche de Irmã Adele por que lá elas estariam mais próximas a
crianças que vivem “a mesma realidade” das suas crianças e, desta forma, não sofreriam
constrangimentos caso citassem que o pai é presidiário. A sua filha mais nova, Kelly*,
seis anos, adora desenhar. Em uma das atividades da creche, no meio de diversos papéis
coloridos, a menina pega uma caneta hidrocor preta. Faz caprichadamente um rabisco
pra lá e outro pra cá e pronto! Irmã Adele, ao olhar aquele desenho que será enviado
para uma das entidades italianas que auxiliam o Nova Semente no final do ano,
anexado a um cartão de Natal, entristece. A menina desenhou quatro pessoas na frente
de um grande muro: seu pai, sua mãe, ela e a irmã mais velha, de nove anos. Nos
semblantes dela, da genitora e da irmã, no desenho, sorrisos; no do pai, entretanto, uma
boca virada para baixo. O desenho que fez do genitor o apresenta como um homem alto,
de grandes mãos e dedos, além de cabelos assanhados: uma figura quase monstruosa.
Mas ela orgulha­se:

­ Esse é meu pai, tia.

Adele explica:

­ O pai desta menina é um presidiário rebelde e violento, avesso ao trabalho, e vive


sendo punido. A irmã mais velha de Kelly nega­se a ver o pai, já sofreu maus­tratos
dele. Mas esta menina ainda vai com a mãe ao presídio toda semana, sente vontade de
vê­lo. Mas acaba assistindo cenas de violência do pai contra sua mãe, por isso ela não
quer que ele volte para casa. Ela o ama, gosta de visitá­lo, mas não o quer por perto... A
menina, apesar de tão pequena, sabe o que é ter o pai dentro de casa...
23

ANJ O E BANDIDO
24

Gabriel*, o lindo bebê loiro de radiantes olhos azuis, é a criança que chegou
mais nova no Centro Nova Semente. Tinha apenas um mês de vida quando, por
segurança, teve que ser retirado do convívio com a mãe, a então presidiária A.C. 3, que
preferiu entregar o menino aos cuidados de Irmã Adele, pois a sua vida e a do filho
corriam risco. Reincidente, A.C. foi presa em maio de 2005 por formação de quadrilha,
quando foi abordada pela Polícia Federal, juntamente com outros parceiros, em um
hotel da cidade de Cruz das Almas, enquanto se preparavam para mais um assalto. A
bela jovem branca, de lisos e longos cabelos castanhos acobreados, estudante do nível
médio, era parceira do bandido Mário César Jesus Pereira, o MC, e tinha apenas
dezenove anos quando foi recolhida para a Penitenciária Feminina, onde descobriu que
estava grávida, atribuindo a paternidade ao então presidiário MC.

Mário César, um negro alto e magro de trinta e um anos de idade, bastante


comunicativo, que mantinha sempre boa aparência e vestimenta, tornou­se “xerife” no
pavilhão cinco da maior penitenciária do Estado, a Lemos Brito (PLB). Ali, montou
uma empresa que utilizava a mão­de­obra de outros presidiários para a produção de
artesanato – de bolsas a sofás –, criação de codornas e manutenção de um mercadinho
dentro do pavilhão. MC era suspeito de chefiar o tráfico de drogas dentro da prisão, de
controlar e negociar as visitas íntimas e de familiares dos presos, de definir as celas am
que cada preso moraria, de punir fisicamente os rebeldes e de organizar seqüestros em
Salvador, de dentro da prisão.

Sob seu comando, o pavilhão cinco era um dos mais organizados do Complexo
Penitenciário do Estado. Paredes azuis com belas e coloridas pinturas com imagens
bíblicas e paisagens; alas de evangélicos e católicos separadas; uma ampla cela
transformada em igreja evangélica; aparência limpa; e presos aparentemente obedientes.
Tudo organizado pelo “xerife”. Em muitas celas e oficinas, molduras presas nas paredes
principais apresentavam uma foto de MC trajando paletó e gravata – diferente de sua
vestimenta comum: calça jeans, blusas no estilo rapper e um boné de couro preto com
as letras MC bordadas em amarelo –, que lembravam as fotos oficiais de governantes,
facilmente encontradas em gabinetes de instituições públicas. Respeitado pela maioria

3
O nome da ex­presidiária foi preservado por não ter conseguido ouvi­la.
25

dos agentes penitenciários e pelo próprio diretor da PLB, André Augusto Barreto
Oliveira, o presidiário adquiria mais e mais poder na prisão. Sem querer se identificar,
alguns funcionários do presídio explicaram que a diretoria aceitava, ou pelo menos se
calava em relação ao comando de MC pois ele oferecia em troca a “paz” no pavilhão,
sem rebeliões e sem conflitos. Seu poder era tanto que, enquanto outros presos eram
obrigados a dormirem em celas superlotadas, muitas delas sem cama ou colchão, mas
com redes penduradas umas sobre as outras, MC tinha uma cela, ou melhor, um quarto
confortável só seu, com cama de casal, tapetes, televisão e guarda­roupa.

A presidiária A.C., sua companheira, foi levada para o Hospital Geral do Estado,
para dar à luz ao seu filho, em novembro de 2005. Seu bebê nasceu grande e saudável,
branquinho, loiro e de olhos azuis. Na PLB, MC foi informado do nascimento e da
aparência da criança. Negro, ficou revoltado. Tinha certeza que, com aquelas
características físicas, o menino não seria seu filho, e sim fruto de uma traição de A.C.,
e por isso ameaçou matar a mãe e a criança. De volta à penitenciária com o bebê, a
presidiária foi informada da recusa de MC em assumir a criança, mas insistiu que o
filho era dele. Tanto que requereu ao Serviço Social da Penitenciária Feminina, dez dias
após o nascimento do filho, autorização para levar a criança para que o pai a
conhecesse, mas este se recusou. Ameaçada por outras presidiárias, que nos encontros
íntimos com seus parceiros presos no pavilhão cinco da PLB recebia ordem de MC de
matar a traidora e a criança, A.C. teve que ir para o “seguro”, uma cela isolada onde
geralmente ficam os presos ameaçados de morte ou de mau­comportamento. Temendo
pela vida de seu filho, pediu para conversar com Irmã Adele. Faltavam apenas cinco
dias para o Natal, mas a mãe decidiu entregar seu bebê, de apenas um mês de vida, à
freira italiana, assinando, para isso, apenas uma declaração.

Governo da Bahia
Secretaria de Justiça e Direitos Humanos
Superintendência de Assuntos Penais – SAP
Conjunto Penal Feminino
Serviço Social

DECLARAÇÃO

Eu, A.C., atualmente interna da Penitenciária


Feminina, confio meu filho à Irmã Adele Pezone,
diretora do Centro Nova Semente, no período de
26

cumprimento da minha pena. Se eu morrer, autorizo a


Irmã a doar meu filho à família de sua confiança, que
possa dar um bom futuro ao menor.

Salvador, 19 de outubro de 2005.


A.C.

A interna, emocionada e com medo, orientou à freira que não o trouxesse nos
dias de visita, como faz com as outras crianças, pois não queria que nenhuma outra
presa tivesse acesso a ele, e que também não confiasse o bebê a nenhuma família
madrinha, pois MC, como seqüestrador, poderia, através da sua quadrilha, localizá­la e
fazer mal à criança.

Adele Pezone saiu da Penitenciária Feminina carregando o pequeno garoto em


um lindo berço de vime, comprado pela própria diretoria da penitenciária. Olhando
aquele lindo bebê que carregava nos braços, a freira italiana tomou uma decisão:
enquanto tivesse com ela, aquela criança não mais seria chamada por um nome sombrio,
“de bandido”, que a mãe deu para ele, mas sim por um nome tão suave quanto sua
feição, por um nome abençoado, um nome de um anjo: Gabriel*. Privado do
aleitamento materno, o garotinho teve que se acostumar com o leite artificial e a
mamadeira.

Mas Irmã Adele não se conformava em ver aquela criança retirada de tal forma
do contato com a mãe, ainda que por questão de segurança. Aquela situação ia contra os
princípios que defende desde que fundou o Nova Semente: estimular o contato, o amor,
a manutenção dos vínculos familiares, para que as crianças sintam­se queridas,
amadas... Foi então que a freira italiana, entrando em contato com a diretora da
penitenciária, Silvana Selém, encontrou uma solução: os encontros entre a mãe e o filho
seriam mantidos, porém à noite e na sala da diretoria, para que as outras presas não
vissem. E era assim que, semanalmente, o bebê recebia o carinho materno.

A freira italiana, porém, não se satisfez só em resolver apenas essa questão.


Diante da insistência da mãe em afirmar que a criança, mesmo tendo nascido tão
branquinha e com nenhuma aparência de Mário César, era sim filha dele, Adele
resolveu conversar com o presidiário, levando com ela no carro o pequeno Gabriel e
27

uma babá. Primeiro, entrou sozinha no pavilhão cinco da PLB, onde foi recebida por
MC.

­ Estou com seu filho aí fora. Trouxe para que você o conheça. É uma criança tão
bonita...

­ Irmã... – respondeu MC – passando a mão direita no ombro esquerdo da freira e


sorrindo, esse bebê de que a senhora fala não é meu filho... – Foi uma maluquice da
cabeça daquela mulher. Pode levá­lo de volta...

O presidiário não se comoveu com a proximidade da criança, que durante a


gravidez ele pensava ser seu filho, e orientou que a freira o levasse dali.

­ Irmã, vou te dar uns doces e biscoitos para a senhora levar para suas criancinhas.

­ Non, non precisa – respondeu a italiana – Vocês aqui dentro necessitam mais destes
alimentos que as crianças lá da creche, que são bem alimentadas.

­ Não se preocupe, Irmã. Aqui no mercado temos de sobra, pode levar, explicou Mário
César, ordenando que um preso fosse até a mercearia pegar os pacotes de biscoito e
bombons.

Adele agradeceu e saiu do presídio acompanhada dos agentes penitenciários, que


a ajudaram com os pacotes. Entrou no carro onde a aguardavam a babá e o bebê, e
voltou para o Nova Semente, decidida a não levar o bebê mais para ali. Uma única
tentativa foi feita e era o suficiente.

A.C., ao contrário da freira, era insistente e mesmo com a resistência de Mário


César, queria reencontrá­lo. Depois de tantos recados, o presidiário resolveu receber a
detenta nos últimos dias do ano de 2005, quando diversas internas desceram até a PLB
para passar o reveillon com seus respectivos companheiros. Mesmo alertada sobre o
perigo que enfrentaria, a teimosa jovem resolveu ir, sendo, então, autorizada pela
Penitenciária Feminina. No dia 2 de janeiro, primeiro dia útil após o feriado, a presa
voltou toda machucada e com hematomas. Contou que o companheiro a pôs semi­nua
28

no meio do pátio do pavilhão e ordenou aos internos que fizessem o que quisessem com
ela... Após receber os cuidados médicos, A.C. assinou um requerimento no Serviço
Social do Conjunto Penal Feminino para cancelar os encontros íntimos com Mário
César, “por motivos de desentendimentos”. Mas em apenas um mês tentou novamente
reconciliar­se com o companheiro, e para ele escreveu, em 7 de fevereiro de 2006, numa
folha de caderno espiral de folhas amareladas, em português fraco e repleto de erros
ortográficos, uma carta de amor em que explicava que as “mentiras” que chegavam até
ele eram fruto da inveja de pessoas que fariam de tudo para separá­los, e pedia para que
se reconciliassem. A carta, no entanto, não foi entregue ao presidiário, que acabara de
obter a liberdade condicional e sair da prisão, logo nos primeiros dias daquele mês.

Em março, A.C. pediu ao Serviço Social que a liberasse para encontro íntimo
com outro preso, Paulo Vitor Mascarenhas, da Unidade Especial Disciplinar, alegando
dois anos de amizade e cinco meses de namoro, e, na primeira semana de maio, com o
detento Moisés Silva, da PLB, que afirmou namorar há um ano e cinco meses. Mesmo
diante da notável mentira da presidiária, a visita íntima é um direito das presas, e o
Serviço Social não pode negar a elas o direito de exercitar a sexualidade.

Segundo estudo da OAB de São Paulo, que traçou, em 1998, o perfil das
mulheres encarceradas, a privação do exercício da sexualidade feminina gera alterações
no comportamento das presas e na sua opção sexual. Sem sexo, muitas delas optam pela
bissexualidade e outras pelo celibato, ambas opções não são fruto de sua vontade, mas,
sim, das suas circunstâncias. Na prisão, elas recebem menor número de visitas do que os
presos masculinos, fato que revela ainda o preconceito existente quanto aos direitos das
mulheres.

Em 19 de maio de 2006 a detenta conseguiu a liberdade condicional e deixou a


prisão, mas não comunicou da sua saída à Irmã Adele e nem apareceu no Centro Nova
Semente para pegar o seu filho. A freira italiana foi informada pelas assistentes sociais
de sua saída. Passados alguns meses, em um sábado pela manhã, A.C. apareceu de
carro, acompanhada por um homem, querendo ver a criança e levá­la apenas para
passear, pois, conforme explicou à Irmã Adele, era perigoso demais retomar a guarda do
menino. Sem saída, pois considera que as mães das crianças, mesmo sendo presidiárias
ou ex­presidiárias, têm todo o direito sobre seus filhos, a freira permitiu que ela levasse
29

a criança. Um dia depois, A.C. devolveu a criança aos cuidados de Adele Pezone,
conforme prometera, e sumiu outra vez. Dois meses se passaram sem que a freira
italiana tivesse qualquer notícia da mãe da criança, quando no início da noite de uma
sexta­feira apareceu A.C., com outro homem e em carro diferente, para pegar a criança.
Desta vez, Irmã Adele resistiu:

­ É melhor não levá­lo hoje. Já é noite e ele está muito resfriado.

­ Eu cuido dele, Irmã, não se preocupe – acalmou A.C., levando a criança com ela e
prometendo que a traria de volta no domingo.

Mas, passadas poucas horas, a mãe voltou com a criança.

­ Ele está realmente gripado, chorando muito. É melhor que fique com a senhora –
justificou ao devolver o bebê para a freira, depois entrou no carro com o parceiro e
partiu.

Às dezoito horas e trinta minutos do último dia do mês de agosto, Irmã Adele
está no Centro Nova Semente, servindo a janta das crianças, quando o telefone toca. Do
outro lado da linha, uma amiga da freira diz ter lido em um site de últimas notícias que
um ex­presidiário de nome Mário César havia sido assassinado na Cidade Baixa.

­ É o mesmo Mário César pai de Gabriel, Irmã? – perguntou.

­ No, no sei. Como posso saber? Não me disseram nada. Amanhã ligo para o presídio e
pergunto.

Não foi preciso ligar. Logo cedo a mãe de Gabriel avisou por telefone à freira
que o pai do menino havia sido assassinado por inimigos. Pediu a Adele que tivesse
ainda mais cuidado com a criança.

­ Eu também estou ameaçada, Irmã. E eles podem querer fazer algo de mal contra meu
filho como forma de vingança. Não permita que ninguém estranho se aproxime dele,
por favor, suplicou.
30

­ Não se preocupe, ponderou Irmã Adele, tentando consolar a jovem.

Nos jornais do dia, a notícia do assassinato estava presente nas páginas policiais.

Salvador, Bahia
Sexta­Feira , 01/09/2006
1º Caderno
Ex­detento executado dentro de táxi

O ex­presidiário Mário César de Jesus Pereira, o MC, 31 anos,


foi executado com dois tiros na cabeça quando o táxi que
ocupava parou em um semáforo, no Caminho de Areia, Cidade
Baixa, por volta das 15h30 de ontem.

Segundo o taxista Washington Luís dos Santos, dois homens em


uma moto pararam ao lado do carro e um deles abriu fogo
contra MC.

Agentes da 3ª DP investigam a hipótese do crime ter ligação


com a morte de Carla Rúbia da Silva, no início de agosto, cujo
companheiro seria comparsa de MC. A delegada Albertina
Machado informou que MC respondia a inquéritos por roubo e
estupro.

E desde que foi assassinado, o ex­presidiário MC, que tinha o nome na lista de
presos ressocializados da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (SJDH), passou a ser
constantemente citado em denúncias de matérias jornalísticas a respeito da empresa que
montara na Penitenciária Lemos Brito e do poder paralelo que a comandava. As
denúncias resultaram no afastamento do diretor da PLB, André Oliveira.

A jovem A.C., por sua vez, não mais apareceu e nem deu notícias à Irmã Adele
sobre o seu paradeiro. Nem mesmo no aniversário de um ano do seu filho foi capaz de
dar um telefonema sequer. O primeiro aninho da criança foi comemorado na casa de um
italiano que, em visita ao Centro Nova Semente, acabou se “apaixonando” pelo bebê e
resolveu adotá­lo como afilhado. O pequeno Gabriel, cada vez mais bonito e esperto,
continua sob os cuidados de Irmã Adele, recebendo todo amor e carinho da freira
31

italiana e de suas ajudantes. Seu futuro, porém, é incerto. Impossível prever quando a
sua mãe vai voltar, se voltar, e levará o menino com ela. Irmã Adele prefere nem
imaginar isso...
32

FESTA E AGONIA
33

Hoje é dia de festa. No jardim do Centro Nova Semente foi instalado logo cedo
uma cama elástica azul. Quando dão conta do brinquedo, as crianças correm em direção
a ele.

­ Pula­pula! Um pula­pula!

Quantos sorrisos... É verdade que, à primeira vista, as crianças menores não


entendem bem o que é aquilo, mas ao ver as mais espertas subirem naquele objeto
estranho e começarem a pular nele, logo querem imitar e disputar com as outras um
lugarzinho no brinquedo.

­ Calma, crianças! – as babás tentam organizar a bagunça, entre um sorriso e outro.

Mas por que em plena sexta­feira, 14 de setembro, sequer é feriado, e aquela


cama elástica instalada ali no meio do jardim? É que Maria Clara* completa quatro anos
de idade e os padrinhos resolveram organizar uma festa surpresa pra ela. Um dia feliz
para ser compartilhado com os amiguinhos do abrigo.

Há um ano o jovem casal Paulo* e Carine* cuidam voluntariamente de Clara nos


finais de semana. Alegre e esperta, a menina conquistou a família de cada um deles. Até
avós agora ela tem! E quase todos vieram para a sua festa. No bolo de aniversário, sobre
o glacê branco, a foto da menina acompanhada de desenhos de uma famosa gatinha
branca com laço vermelho na orelha esquerdo: a Hello Kitty. Apesar do personagem
infantil ter sido criado há mais de trinta anos no Japão, e de Maria Clara não saber
nadinha sobre ele, a Hello Kitty é o desenho favorito da menina. Vestida da cabeça aos
pés com roupas e sapatos que ela ganhou de presente da “família madrinha”, todas com
a estampa da gatinha japonesa, Clarinha é só felicidade.

Em razão da festa, nenhuma criança foi para creche hoje. Ao contrário, os


demais alunos e as professoras vieram para o Centro curtir a folia. Mas antes de todos
cantarem os parabéns, uma surpresa que a menina não esperava. Ninguém esperava. O
“pai” de Clarinha, um homem magro, alto, com jeito malandro, de aparentemente trinta
34

e poucos anos, trajando uma calça jeans, blusa de algodão branca e um boné preto,
chegou querendo levar a criança o mais rápido possível. Estava em posse de um
documento em que a mãe da menina, a presidiária Luciene, declarava que cedia a
guarda da criança para ele, Wellington dos Santos, um ex­detento com o qual manteve
relações. Irmã Adele demorou em reconhecê­lo, mas há mais ou menos três anos foi
este mesmo homem que esteve na creche­escola, acompanhado de duas ex­detentas,
para entregar um bebê desnutrido e apresentando problemas de pele para que ela
cuidasse: a menina Maria Clara.

– Já são onze horas e tenho passagem de avião marcada para as doze e meia para o Rio
de Janeiro. A menina vai comigo agora – explicou Wellington, em tom nervoso e
apressado, mostrando a declaração assinada pela mãe da menina – Há um táxi à nossa
espera, cadê ela? Quem é a Maria Clara?

O homem nem sequer reconhecia a criança no meio das outras. Nem tampouco
sabia que o motivo daquela festa era justamente o aniversário da menina. Irmã Adele o
informou, mas, meio conturbado no meio de tanta gente, ele disse sem nenhum tom de
sensibilidade e numa completa indiferença que não dava para esperar os parabéns.

– Estamos atrasados e precisamos ir logo pra rodoviária!, alegava insistentemente o


rapaz – balançando a cabeça em sinal negativo e batendo com o dedo indicador direito
no relógio preso em seu pulso esquerdo. Não percebia sequer que suas palavras o
contradiziam. Qual o verdadeiro local da partida: aeroporto ou rodoviária? Se é que
havia alguma verdade nas suas explicações...

Apavorada com a cena, a menina entrou em pânico e começou a chorar, sendo


consolada pelos pais adotivos, assustados diante daquela cena inacreditável.

– Eu não vou, eu não quero ir! – repetia Maria Clara entre soluços.

De um lado e de outro eram perceptíveis os sintomas de choro e de angústia que


apareciam nas faces dos adultos, principalmente nas babás e professoras da creche, e
nos rostinhos das crianças, que tentavam entender o que acontecia. A freira italiana,
intimamente aflita e consciente de que era por demais arriscado entregar a criança
35

àquele homem, tentou sensibilizá­lo e pediu que ele esperasse os parabéns da criança.
Olhando insistentemente para o relógio e alegando que havia um táxi à sua espera, ele
quis recusar, mas, ao notar a quantidade de pessoas adultas presentes na festa, muitas
delas reconhecidamente pessoas “estudadas”, resolveu esperar do lado de fora da casa,
mas no jardim, em frente à guarita.

Aos poucos as crianças foram ficando mais calmas e logo se divertiam novamente com
a festa, as bolas de soprar, o bolo colorido, o pula­pula, as fotos... Os adultos tentavam
disfarçar a tensão. Irmã Adele pensava. Martelava na sua cabeça aquela contradição:
avião e rodoviária? Há algo de errado. O coração não se tranqüiliza e diz que não deve
entregar a criança.

­ Irmã, a senhora não pode permitir que este homem saia daqui levando a menina. Não
sabemos a intenção dele – alertava uma jovem estudante de Direito, amiga dos
padrinhos de Clara.

­ Tenho um amigo delegado e vou tentar resolver isso! – informava outra convidada
apressando­se em procurar na agenda do telefone celular o número de tal amigo.

Enquanto isso, por desespero, Irmã Adele sorria. Quando ela fica muito nervosa,
sem saber que atitude tomar, a freira sorri.

­ Non se preocupem! Imagina! Ele não levará a menina daqui só por causa daquele
papel – explicava Adele Pezone, sorrindo e tentando disfarçar a preocupação para os
convidados, ao mesmo tempo em que ela própria tentava se convencer das suas
palavras.

Cantado os parabéns e enquanto as crianças se lambuzavam com o bolo e os


docinhos, a freira italiana foi tentar conversar com o intruso, que aguardava inquieto no
portão.

­ Já posso levar a menina?!


36

­ Mas senhor, já são quase doze horas. Seja onde quer que queira ir, este é um bairro
muito longe. Ainda precisaremos arrumar as malas da menina. Acredito que o senhor
tenha que remarcar a passagem, e depois de tudo resolvido o senhor poderá levar a
menina – sugeriu Irmã Adele, num tom suave e seguro, olhando nos olhos do
desconhecido, tentando ganhar sua confiança.

Nervoso, mas convencido após a insistência da freira e de alguns dos


convidados, o ex­presidiário se sentiu intimidado e resolveu pegar o táxi para tentar,
segundo ele, remarcar as tais passagens. Após sua partida, a freira, com apoio dos
padrinhos de Maria Clara, rapidamente pegou a menina e se dirigiu ao Conselho Tutelar
do bairro. Lá recebeu a informação de que apesar de Wellington não ser o pai natural da
criança, é o pai legal, pois a registrou como filha, e, tendo a autorização da mãe, poderia
perfeitamente levar a criança para viajar com ele. Inconformada, Irmã Adele explicou
que a menina estava sob responsabilidade do Centro Nova Semente desde que tinha um
ano e alguns meses e que aquele homem nunca foi visitá­la, sequer reconheceu a
menina. Alegando, então, que se tratava de um problema “institucional” e que, assim,
não cabia ao Conselho Tutelar resolver, a conselheira orientou que a freira procurasse o
Ministério Público.

A esta altura o medo consumia os pensamentos de Adele Pezone que, no banco


de trás do carro que a conduziria até a instituição indicada, não deixava de acarinhar a
criança, segurar insistentemente as suas mãozinhas, como se fosse responsável pela
proteção de uma jóia que não se pode confiar a qualquer pessoa. Aquele homem, Meu
Deus?! Um assaltante! Não, não pode levar esta criança!, refletia. Seu rosto alvo estava
vermelho, seus olhos azuis, por detrás dos óculos, aflitos. Todavia, mulher de fé, orava
em silêncio no veículo, ao mesmo tempo em que relembrava cena a cena tudo que
aconteceu até ali...

No dia anterior, aquele mesmo homem, cujo comportamento agora preocupava


por demais a freira italiana, esteve na creche­escola à procura da menina, sendo
atendido por uma das professoras, Lúcia*.

­ Sou o pai de Maria Clara e vim buscar ela. Já conversei com a mãe dela, que me
autorizou a ficar com a menina. Vamos viajar.
37

A professora, porém, desconfiada e percebendo no comportamento do estranho


que ele parecia ter feito uso de alguma substância narcótica, e que poderia fazer algo de
mal à criança, mesmo com medo, mentiu:

­ Maria Clara? Ela saiu mais cedo com Irmã Adele...

Entendendo que não obteve êxito naquela primeira tentativa, o homem não se
demorou e seguiu seu caminho, mostrando­se frustrado. Lúcia apressou­se em informar
o fato à freira, que, acompanhada de uma das babás, pegou a criança na creche e dirigiu­
se até o Complexo Penitenciário do Estado, onde as assistentes sociais da Penitenciária
Feminina, Simone e Lícia as aguardavam, já cientes do assunto. Pediu, então, que
chamassem a mãe da menina.

Luciene é uma detenta rebelde, de comportamento contraditório e, por vezes,


infantil. A aparência da presidiária revela, à primeira vista, uma pessoa indomesticável e
sem muita vaidade. Cabelos castanhos claros desgrenhados, unhas mal feitas, olheiras,
“uma loba” como costumam falar os funcionários... Morena clara, tipo “sarará”, ela
mantém sempre os ombros curvados para frente, comprometendo a sua baixa e tísica
estatura. Luciene tem trinta e cinco anos, é natural de Ilhéus, cidade costeira do sul
Bahia. Sua mãe faleceu quando ela tinha três anos de idade. O pai, um gerente de posto
de gasolina, contraiu novo matrimônio anos depois, gerando mais um filho. A
presidiária estudou até a quarta série do primeiro grau e abandonou os estudos porque
foi expulsa da escola. Sempre foi “brigona”. Aos treze anos iniciou relacionamento
amoroso com um companheiro mais velho. Conseguiu um emprego de auxiliar de
serviços gerais em um hotel somente aos vinte anos. Dois anos depois nasceu seu
primeiro filho, Robson*, que, hoje, aos treze anos de idade, mora com uma tia de
Luciene. Seu relacionamento com o pai do primogênito, que segundo ela era muito
ciumento, só durou mais dois anos, após o nascimento do menino. Casou­se anos depois
com um outro homem, com o qual teve outro filho: Vagner*, atualmente com oito anos
e residindo com o pai. Coincidentemente, bastaram também dois anos de convivência
para Luciene separar­se do novo marido e passar a viver com outro homem. Separou­se
pela terceira vez, algum tempo depois, porque “não tinha mais nenhum sentimento por
ele”, e decidiu morar novamente com o seu genitor.
38

Nesse ínterim, Luciene conheceu e manteve relações com Wellington, ainda


antes de ser presa. Foi sentenciada a quatorze anos de reclusão. Segundo ela, o crime
pelo qual cumpre pena há seis anos, um homicídio, aconteceu quando ela retornava de
uma festa com amigas:

­ Fui eu quem chamei a polícia quando ocorreu o assassinato e acabei me envolvendo


no crime (sic).

Permaneceu presa em Ilhéus, quando Wellington também foi preso por roubo
seguido de violência física contra a vítima. Os dois ficaram na mesma cadeia, até que
Luciene foi transferida para o Conjunto Penal Feminino, em Salvador, grávida de cinco
meses. Em seguida, após a sua condenação, Wellington veio transferido para a Colônia
Lafayete Coutinho, e os dois continuaram a manter contato, através de encontros
íntimos na penitenciária. Quando Maria Clara nasceu, Luciene declarou que a menina
era filha dele, mas depois afirmou que ele não era o pai da criança, e sim outro preso, e
que mentiu para que ele a registrasse.

Quando foi beneficiado com o livramento condicional há três anos, Wellington


resolveu morar no Rio de Janeiro e lá casou, mas continuou a manter contato com
Luciene através de ligações telefônicas, segundo afirmou verbalmente à assistente social
da penitenciária ao explicar que queria tirar a criança do abrigo e levar com ele “para
lhe dar uma família”.

A pequena Maria Clara, ainda quando tinha poucos meses de vida, foi levada por
uma mulher, que segundo Luciene seria madrinha da criança, para morar em Ilhéus.
Cerca de seis meses depois, a menina foi trazida de volta a mando da mãe, pois a
madrinha não havia “cumprido o negociado”, que, segundo Luciene, era trazer a menina
a cada dois meses para vê­la. Clarinha foi, então, entregue ao Centro Nova Semente.

Na sala do setor de Serviço Social, onde Irmã Adele esperava a chegada da mãe
de Maria Clara para esclarecer o fato de um desconhecido ter ido até a creche para levar
a criança, Luciene chega com olhar de pouco­caso e cabeça erguida. Demonstrando­se
segura, permaneceu calada, até que a freira questionou:
39

­ É verdade que você autorizou um homem de nome Wellington, que se diz pai da
criança, ir buscá­la na creche­escola e levá­la com ele?

­ Sim, pode deixar ele levar – respondeu Luciene.

Espantada com o descaso e com a simplicidade com que a detenta falava, a freira
questionou o porquê de tal atitude.

­ Ele vai levá­la para o Rio de Janeiro. Ficará com a menina até eu sair daqui. E então
ele mandará me buscar para ir morar com ele lá também – informou a presidiária.

­ Mas você sabe se ele tem condições mesmo de sustentar a criança lá? E como tem
certeza de que ele depois mandará te buscar? Soube que ele já tem relação com uma
garota de dezoito anos lá, conforme ele falou. E você mesma não já possui outro
companheiro aqui no presídio masculino? – indignava­se a freira.

Num completo desdém, a presidiária movimentou os ombros para cima e para


baixo, expressado que não se incomodava com aqueles questionamentos:

­ Irmã, se ele voltar, pode dar a menina pra ele.

Teimando em acreditar que aquela história passaria dali, já que a presidiária


havia oferecido a guarda da menina uma outra vez, mas sem sucesso, tendo ela mesma
demonstrado anteriormente que preferia que a menina ficasse no Centro Nova Semente,
Irmã Adele, após receber o apoio das assistentes sociais do presídio feminino, voltou
com a criança e a babá para casa. Já era quase noite e as outras crianças as aguardavam
para a última refeição, antes de dormir.

Na manhã seguinte, para ter segurança de que pegaria a menina de qualquer


jeito, Wellington se dirigiu à penitenciária feminina, onde foi atendido por Simone.
Insistiu para falar novamente com Luciene, pois era urgente. Quando a presidiária soube
da visita, rapidamente arrumou o cabelo, colocou outra roupa e foi conversar com ele.
Nem foi preciso insistir e aceitou em assinar um documento onde declarava dar a
40

guarda da filha ao ex­companheiro. Simone tentava convencer os dois a esperar mais


um tempo, para pensarem com calma sobre o assunto. Resistia em elaborar o
documento, não confiava nos dados fornecidos pelo suposto pai da criança e nem sabia
a sua real intenção de levar assim, tão subitamente, a criança para outro Estado. Tentou
argumentar...

­ O senhor não acha que a menina ainda não o conhece bem, não lembra do senhor e
será difícil para ela adaptar­se num lugar tão diferente, tão longe como o Rio de
Janeiro?... Não prefere esperar mais um pouco, se aproximar mais da criança, para
depois levá­la?

­ Dona Simone, até parece que a senhora não quer que eu fique com a criança –
respondeu o ex­presidiário em tom irônico e ameaçador.

­ Não! Imagina? Estou apenas tentando fazer uma ponte entre vocês dois... – explicou a
assistente social.

Mas diante de tanta insistência, não houve jeito. Ela elaborou a declaração com
os dados fornecidos por Wellington e deu para a presidiária assinar. Simone sentia­se de
mãos atadas. O que fazer neste momento, se a creche não é sequer regularizada junto ao
Juizado da Infância e Juventude? Para evitar aquela situação, seria preciso ter a guarda
provisória da criança, mas, mesmo com sete anos de existência, a creche não está com
um funcionamento regular perante o Juizado, embora a Irmã Adele e o padre Filip
Cromheecke, coordenador da Pastoral Carcerária, juntamente com a diretora do
Conjunto Penal Feminino, Silvana Selém, tenham tentado resolver a condição diversas
vezes perante o Juizado, sem sucesso, como declararam. A retirada das crianças do
presídio, a sua institucionalização no Centro Nova Semente e até mesmo o
apadrinhamento das crianças por famílias voluntárias, tudo ainda acontece de maneira
informal...

Adele Pezone nunca imaginou passar por problema semelhante, foi a primeira
vez. E agora se via ali, tendo que enfrentar a insistência, as ameaças sutis, por parte
daquele homem que se dizia pai de Maria Clara. Quando esteve na penitenciária no dia
anterior, acreditava que era mais uma decisão frívola da mãe da criança, que vive
41

mudando de opinião sobre as coisas, e que tudo acabaria bem. Mas agora, depois da
desagradável surpresa durante a festa de aniversário de Clarinha, e enquanto se
deslocava de carro até o centro de Salvador, onde buscaria ajuda, ela lembrava dos
detalhes, dos gestos, das palavras do ex­detento: “Irmã, eu não quero ser seu inimigo...”.
Nunca havia passado por uma situação parecida. Não sabia como agir, nem com quem
estava a razão. Será que realmente ele pode levá­la? Aquele documento que apresentou
é legítimo? E se ele, como suspeitou a professora, for usuário de drogas ou traficante? E
se ele quiser vender a menina? Ou prostituí­la? Não, não seria justo, pensava...

O automóvel parou diante de um grande prédio cor marfim, cuja fachada


apresenta traços de arquitetura colonial, onde funciona a sede principal do Ministério
Público do Estado da Bahia. A freira italiana, como se corresse contra o tempo, entrou
de forma aflita no prédio, puxando Clarinha em uma das mãos, sem saber direito para
onde deveria se dirigir, e acompanhada por Sônia*, a mãe de Paulo, o padrinho da
criança.

Em frente à porta do elevador, no hall de entrada do prédio, se encontrava uma


conhecida de Irmã Adele, uma estudante que havia estado algumas vezes em visita ao
Nova Semente, que reconheceu a freira e foi até ela perguntar o que a levava até ali.

­ Um problema muito grave, minha filha. Com esta criança. Um homem estrangeiro
[estranho] quer levá­la para o Rio de Janeiro. Ele é ex­presidiário e a registrou como
filha, mas nunca visitou a menina e agora quer ficar com ela. A detenta, mãe da menina,
deu este documento a ele, autorizando­o a levar a criança – explicava Adele, mostrando
a declaração emitida pelo Serviço Social da penitenciária...

­ Calma, Irmã, procuraremos orientação na área da Infância, explicou a estudante, que


trabalha na instituição.

Adele foi conduzida até uma sala de triagem, onde foi em poucos instantes atendida.
Desconfiando das outras pessoas que aguardavam o atendimento, a freira explicava
baixinho à Cecília, a funcionária do Ministério encarregada pela triagem, o que a levou
até ali. Muitas vezes, devido ao sotaque italiano, ela tinha que repetir algumas
42

explicações. Visivelmente confusa e demonstrando nunca ter deparado também com um


caso como aquele, Cecília foi buscar orientação em outro setor.

Nesse mesmo tempo, a estudante amiga da freira italiana tentou, com calma,
obter mais detalhes sobre os fatos que fizeram com que a Irmã Adele e Sônia
procurassem ajuda no Ministério Público. Soube, então, que foi o Conselho Tutelar que
orientou a freira a procurar aquela instituição, e que o homem que se dizia pai da
criança e que queria levá­la tinha um comportamento contraditório e aparentava estar
sob efeito de drogas. A estudante buscou, então, orientação no setor responsável por
tratar dos casos relacionados a problemas com crianças e adolescentes naquela
instituição, o Centro de Apoio Operacional às Promotorias da Infância e Juventude.
Conversou com a coordenadora do departamento, a procuradora de Justiça Lícia de
Oliveira, que, entendendo a gravidade do problema, a encaminhou até a sala da
promotora de Justiça Ana Bernadete Andrade, que atua nos casos de crianças
vitimizadas, onde também já se encontrava Cecília, tentando explicar o caso contado
pela freira.

­ Ela não procurou ajuda no Conselho Tutelar do bairro onde está instalado o abrigo? –
questionou a promotora.

­ Sim, e a encaminharam para cá. Parece que o rapaz está pressionando a freira para
levar a menina, já que tem a autorização da mãe – explicou a estudante.

­ Mas este documento, esta declaração, não possui validade para que ele leve a criança.
É preciso entrar em contato com o Conselho Tutelar do bairro do Rio de Janeiro, onde o
suposto pai mora, para que seja avaliado se ele preenche os requisitos necessários para
ficar com a guarda da menina e se há as condições de moradia adequadas à criança. Não
é tão simples assim...

­ O problema é que ele a aguarda na creche. Não quer sair de lá sem a menina. E pelo
que me disseram, está muito nervoso, aparentando inclusive estar drogado...

­ Mais grave, ele não pode em hipótese alguma ficar com a criança! – alertou Ana
Bernadete.
43

­ Não é melhor a senhora mesma conversar com a freira sobre isso, ela está aí fora.

­ Sim, sim, mande­a entrar.

Irmã Adele foi então encaminhada pela funcionária até a sala da promotora de
Justiça da Infância e Juventude, que a aguardava. A freira e Sônia explicaram tudo que
tinha acontecido naquela manhã e clamavam por ajuda.

­ Não posso sair daqui sem um papel ou alguma coisa que o impeça de querer levar a
criança – disse Adele em tom de súplica.

­ Claro. Nós vamos mandar uma notificação para que a senhora entregue ao rapaz, onde
está bem explicado que ele precisa comparecer a uma audiência aqui no Ministério
Público na próxima segunda­feira, quando ele conversará comigo. A senhora também
deverá estar presente – explicou a promotora, pausadamente, com muita paciência,
tentando tranqüilizar a freira.

Mais calma e com o envelope da notificação em mãos, a freira agradeceu, pediu


para Sônia, ficar com a criança por alguns dias, com a anuência da promotora, e seguiu
rumo ao Centro Nova Semente, onde Wellington a esperava.

­ Cadê a menina?! – questionou de forma aflita o rapaz, ao ver a Irmã chegar sem Maria
Clara.

­ Calma, a menina está com a madrinha. É aniversário dela e já haviam combinado de


levá­la a uma festinha. Eu aproveitei e fui conversar com a promotora de Justiça, para
que a menina fosse com você sem nenhum problema, mas ela orientou que antes é
preciso que o senhor vá lá na segunda­feira conversar com ela. Aqui é uma notificação,
teremos uma audiência com ela às quatorze e trinta da tarde – explicou pausadamente,
agora com mais segurança, a freira ao rapaz.

­ Então se a senhora quer escândalo, terá escândalo!– ameaçou Wellington, que saiu
irritado do Centro Nova Semente.
44

Mesmo com a atitude agressiva do rapaz, Irmã Adele estava mais tranqüila e não
se intimidou. Pelo menos a menina estava segura...

***

Toda criança e adolescente que vive em um abrigo, por melhor que seja a
instituição, está com seu direito à convivência familiar e comunitária violado. Segundo
o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 19, “toda criança ou
adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e,
excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e
comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias
entorpecentes”. Ainda de acordo com o texto legal, o abrigamento de crianças em
instituição é uma medida de proteção, quando seus direitos forem ameaçados ou
violados por ação ou omissão da sociedade e do Estado, ou por falta, omissão ou abuso
dos pais ou responsável. É, porém, uma medida provisória e excepcional, tendo­se
sempre como objetivo último o retorno da criança ou do adolescente abrigado à sua
família de origem. A retirada da criança do abrigo, entretanto, não deve acontecer de
forma simples, como explicou a promotora de Justiça Ana Bernadete:

­ Para qualquer criança que está abrigada retornar para a família, antes é preciso que
haja todo um procedimento de saber se aquela família realmente tem condições de
acolhê­la. Porque a criança abrigada está protegida. Como é que você vai tirá­la do
sistema de proteção para reintegrar para uma família quando não há elementos para
isso?

O processo de reinserção familiar de crianças institucionalizadas pode ser


viabilizado depois de cumpridas várias etapas, desde a investigação social e o estudo
psicossocial das famílias, até as tentativas de reinserção familiar por meio de ações que
estimulem o reatamento dos vínculos familiares. Cabe ao abrigo, através do serviço de
assistência social, e a entidades como o Ministério Público, por meio de programas
específicos, promover o retorno à família.
45

O Centro Nova Semente, mesmo com sete anos de existência, ainda funciona
muito informalmente, e por isso, ao enfrentar problemas como o de Maria Clara, Irmã
Adele, desnorteada, não sabe qual atitude tomar. Além da declaração elaborada pelo
Serviço Social da penitenciária e assinada pelas mães presidiárias, não há nada legal.
Segundo o artigo 93 do ECA, as entidades que mantêm programa de abrigo podem,
somente em caráter de urgência, abrigar crianças e adolescentes, devendo comunicar a
autoridade competente em até 48 horas. A comunicação do abrigamento deve ser feita à
1ª Vara da Infância e Juventude, ao Ministério Público e ao Conselho Tutelar. Segundo
Irmã Adele, nada disso é feito, a não ser quando é justamente um destes órgãos que
determina o abrigamento da criança, mas poucos são os casos como este.

Muitas vezes, diante do pedido de uma presidiária que deixou os filhos morando
sozinhos, na rua ou com algum familiar que não tem condições de cuidar das crianças, e
para que elas não sejam entregues a uma instituição que permita a adoção, é a própria
freira quem vai até o local indicado pela detenta, seja onde for, e pega as crianças para
colocar no abrigo, tarefa que deveria ser feita pelo Conselho Tutelar, mas diante da
inércia deste, é ela mesma quem o faz.

O abrigamento das crianças no Nova Semente é a única forma que as presas


encontram para tirar os filhos da miséria. Segundo relatório da Anistia Internacional, as
presas no Brasil são geralmente pobres e têm baixo nível de instrução. A maioria das
mulheres encarceradas no país tem responsabilidades de chefe de família, são
geralmente solteiras, a maioria com filhos e mais da metade era arrimo de família. Em
todos os Estados, as presas citam a separação dos filhos como a maior fonte individual
de ansiedade.

Chegada a segunda­feira, dia da audiência com Wellington, o suposto pai de


Maria Clara, às quatorze horas e quinze minutos, Irmã Adele chega novamente ao
Ministério Público estadual, e é encaminhada para a sala de triagem. Em doze minutos é
atendida por Cecília, que a reconheceu.

­ O rapaz ainda não chegou? – perguntou a funcionária.

­ Non, non, ainda non vejo ele aqui – respondeu Adele com seu sotaque italiano.
46

Às quinze horas, ainda nenhum sinal do rapaz. A freira esperava na sala de


triagem. Quinze e trinta...

­ Nada dele ainda? – questionou Cecília.

­ Non.

Dezesseis horas. Wellington não compareceu à audiência. Irmã Adele é então


encaminhada para conversar com a promotora de Justiça Ana Bernadete.

­ Então o rapaz não veio, Irmã? Eu tinha quase certeza de que ele não viria. Pelo que a
senhora informou dele... Essas pessoas têm medo do Ministério Público. Mas não se
preocupe. Como está a menina? – questionou a promotora.

­ Tá com a madrinha, achamos melhor que ela ficasse por lá por um tempo.

­ Então deixe a menina com ela por enquanto, se a senhora acha melhor assim. Nós
entraremos em contato com a mãe da criança, através das assistentes sociais, para apurar
porque ela quis dar a menina a esse homem e para tomar as medidas necessárias. A
senhora pode voltar tranqüila. Ele, que era o interessado, não veio...

Adele agradeceu e voltou para o Centro Nova Semente. Soube depois, através da
assistente social da penitenciária, que Luciene estava aflita e se mostrando arrependida,
querendo notícias da criança, tinha até tomado remédios para manter­se calma. Irmã
Adele não hesitou em provocar a presidiária que tanta aflição trouxe para ela na última
semana e mentiu:

­ Fale pra ela que a menina agora está no Juizado de Menores, e ela bem sabe que lá
colocam a criança para adoção. Mas foi ela quem escolheu, ela quem escolheu... Eu não
posso fazer nada! – falou sorrindo.
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MÃE APENADA
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Pele amarelada, estatura baixa e magra, olhos tão castanhos quanto os longos
cabelos liso­ondulados que enrola pela metade e prende no alto da cabeça, aparência
que em muito se assemelha ao povo cigano, com traços finos mas marcantes,
Gilvaneide Correia, a “Gil”, trinta e cinco anos de idade, jamais pensou na possibilidade
de afastar­se dos seus filhos. Sentiu na pele o que significa crescer sem pai e mãe por
perto e precisar da boa vontade dos outros. A mãe biológica morreu logo após seu
nascimento. O pai, um carpinteiro, casou novamente, e morreu quando Gil ainda
criança, por isso ela não guarda na memória recordações sobre ele. Vinda de uma prole
de dez filhos, frutos do primeiro e segundo casamento do seu genitor, ela passou a
enfrentar muitas dificuldades financeiras com a família. Viúva, a madrasta, dona Rute*,
trabalhava como costureira na cidade de Conde, no litoral norte baiano, a 190 km de
Salvador, e recebia ajuda de sua mãe e de vizinhos para criar os filhos dela e os do
marido. Quando completou treze anos de idade, Gil iniciou as atividades laborativas.
Auxiliava a madrasta confeccionando roupas para clientes, e, por isso, acabou
limitando­se nos estudos.

Aos dezoito anos de idade, Gilvaneide saiu de casa para morar com o bicheiro
Pascoal, com quem se casou. A relação durou doze anos e tiveram quatro filhos: Juca*,
Jonas*, Antônio* e Damiano*. Deixou o marido porque, segundo relata, a relação era
muito conflituosa. O companheiro bebia em excesso e a espancava, mesmo quando ela
se encontrava gestante.

­ Tenho várias marcas no corpo porque ele me batia muito – explica Gilvaneide,
mostrando cicatrizes nos braços – Às vezes ele sumia, saía de casa na quinta­feira,
passava sexta, sábado e domingo fora de casa e vinha chegar na segunda­feira!

Pensou em separar­se diversas vezes, mas o companheiro resistia ao desenlace e


a ameaçava. A relação ficou ainda mais conflituosa quando Pascoal passou a ter como
amante uma amiga de Gilvaneide. Ela descobriu o caso dos dois quando, voltando para
casa, flagrou­os transando na sua cama. Gil só não saiu de casa com os filhos porque
não tinha para onde ir, e acabou reconciliando­se com o marido mais tarde. Mas ele
continuou “aprontando”.
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­ Ele tinha jogo do bicho, sinuca. Mas gastava o dinheiro todo com cachaça e mulher da
rua. E nada pra dar para as crianças comer. Tinha dias que o balde tava de farinha assim,
cheio de farinha... Porque lá a gente costumava botar farinha no balde. Aí eu olhava pro
balde e só tinha farinha pra dar pras crianças comer. E aquilo foi me revoltando,
revoltando, revoltando... E com as ameaças dele! Hunf... – suspira fundo.

Após diversas tentativas frustradas de convivência, Gil separou­se, indo residir


em outra casa com as crianças. Constituiu nova relação afetiva algum tempo depois,
mas o ex­marido não aceitou e passou a persegui­la.

­ Ele vinha me procurar e eu dizia “rapaz, a gente não dá mais certo. Viva a sua vida
que eu vivo a minha”. Já fazia dois anos que a gente tava separado. Foi aí que conheci
um cara, só que a gente ainda não tinha nada, era só conversar. Aí meu ex­marido veio:
“Ah, porque to sabendo que você tava pensando em morar com fulano. Botar ele dentro
de casa”. Eu disse: “Olhe, desde quando eu não tenho mais nada a ver com você, eu
posso ficar com quem eu quiser. Minha vida tá livre”. Aí ele disse que eu não ia ficar
com ele nem com mais homem nenhum e veio com o cabo da vassoura e me deu duas
pauladas, foi o tempo que caí no chão. E quando ele veio de novo, eu puxei o cabo da
vassoura da mão dele mesmo e dei duas pauladas aqui – justifica Gilvaneide, mostrando
o lado direito do pescoço – Matei. Logo que vi que ele tava morto, eu fugi. Eu já tinha
dado várias queixas dele na polícia, das agressões e das ameaças, mas não deu em nada.
O erro foi eu fugir depois de matar ele. Era legítima defesa...

Gil fugiu para Pernambuco, onde ficou durante alguns meses, na casa de
parentes. Os filhos ficaram com a madrasta. Com saudades deles, ela voltou para a
cidade de Conde e foi presa quando desembarcava na rodoviária. Ficou dois anos na
cadeia de Esplanada, onde conheceu seu atual companheiro, Rosivaldo Limeira.

­ Eu gostei dele, ele gostou de mim, e passamos a transar na cadeia...

Condenada a dezessete anos e seis meses de reclusão, Gilvaneide deu entrada no


Conjunto Penal Feminino, em Salvador, no dia quatro de julho de 2002, grávida de
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cinco meses. Pouco tempo depois Rosivaldo, condenado a trinta e sete anos de prisão
por latrocínio, foi transferido para Salvador e encontra­se na Penitenciária Lemos Brito.

­ Quando ele veio para cá, nos reencontramos, nos correspondemos por carta, e aí de
quinze em quinze ele vinha me ver. Mesmo grávida, eu fazia todos os exames e tinha
encontro íntimo com ele, e agora casamos aqui. Todo domingo a gente se vê. Eu vou
pra lá e passo o dia com ele.

A gravidez da detenta foi tranqüila, acompanhada pelos médicos da


penitenciária. O dia­a­dia como grávida foi, segundo ela, “normal”. Diz ter enfrentado
apelas “um probleminha” com outras presas.

­ Ah, mas não foi pra cima de mim não. Queriam criar problema com uma menina que
tava comigo na cela, e quando eu vi que não dava, pedi pra sair de lá. Depois de três
meses na cela com essa outra presa, pegaram e passaram as grávidas para outra galeria,
até o bebê nascer.

Fruto do relacionamento de Gil e Rosivaldo no cárcere, Tiago*, hoje com três


anos, foi entregue aos cuidados de Irmã Adele aos nove meses e até hoje vive no Centro
Nova Semente. Dos outros filhos, a presidiária não tem notícias precisas. Sabe apenas
que eles residem com sua madrasta, dona Rute, hoje paralítica, e com sua irmã na zona
rural de Conde. Nunca recebeu visita dos garotos.

­ Nunca, nunca, nunca – repete Gilvaneide, balançando a cabeça e olhando para baixo –
Algumas vezes quando eles ligaram, o pessoal aqui mandou me chamar. Mas eles não
têm condição nem pra isso, e o lugar que eles mora num tem telefone. Duas vezes eles
foram na casa de uma vizinha e ligou. A gente têm essa dor..., suspira a detenta,
curvando os ombros para baixo, com as mãos unidas e apertadas no meio das pernas,
enrugando a testa, e prendendo­se para não chorar. Eles tão sofrendo muito, eu sei...

O destino de Juca, Jonas, Antônio e Damiano, que na época do drama familiar


tinham, respectivamente, treze, doze, sete e cinco anos de idade, de uma hora para outra
pareceu repetir o drama vivenciado por sua mãe na infância: estavam privados do
convívio de pai e mãe. Só que a história desta vez adquiriu contornos mais trágicos. O
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pai foi assassinado; a mãe presa. À dona Rute coube, mais uma vez, a tarefa de tomar
conta das crianças, com a responsabilidade agora de evitar que aquela tragédia atingisse
de forma mais contundente as cabecinhas daqueles meninos.

­ Meus filhos tavam na casa de minha mãe [madrasta] quando tudo aconteceu. Ela
ficava com eles enquanto eu tava trabalhando. Quando terminava, eu pegava eles na
casa dela e ia pra casa. Mas foi tudo tão rápido... Agora eu quero sair daqui – explica
Gilvaneide, agoniada.

Sem a presença dos filhos e da família, a detenta, que nunca recebe visitas, além,
claro, da do filho mais novo que está no Nova Semente e é levado até ela
quinzenalmente, lamenta:

­ Sinto­me desprezada. Sem carinho de mãe, sem a presença dos meus irmãos, que não
podem vir me ver porque é longe. Uns moram com minha madrasta, outros em
Pernambuco... O dia que eu me sinto mais triste é dia de visita, porque eu não tenho
visita. Eu vejo a visita de todo mundo chegando, e pra mim não chega ninguém... Então
eu me sinto humilhada, realmente desprezada.

E continua a lastimar, envergando os ombros e olhando para baixo:

­ É essa a minha dor. E por isso chamo muito por Deus. Porque tem dia que é difícil
agüentar... A gente entra em depressão porque quem tem visita sai [para o pátio], quem
não tem fica trancado [na cela] o dia todo. Ai... Eu tenho tanta dor, tanto sofrimento...
Ai meu Deus, eu não agüento mais ver aquelas criancinhas todas chegando e abraçando
suas mães e eu só posso ver o meu filho que está aqui na creche, nunca os outros...
Minha tristeza toda é essa, de não poder ver minha mãe, ficar à vontade com ela,
abraçar...

Gil mostra­se inconsolável. A privação do convívio com os filhos, a falta de


notícias deles é o que mais a incomoda. Não gosta nem de imaginar como seria
insuportável a prisão caso não tivesse pelo menos o filho Tiago por perto.
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­ Ave Maria! Seria horrível. É ele que me faz ser essa pessoa calma aqui dentro. Penso
muito nele. Às vezes falta paciência, a pessoa desespera, quer revoltar, se matar. Mas
antes de fazer qualquer coisa, penso duas vezes, e penso nele. Aí não me junto nem com
aquelas que querem se revoltar. Gosto de ter meu filho por perto, de pegar nele, sentir
ele...

Para ela, o Centro Nova Semente é uma benção. Quando nasceu, o bebê dormia
na cela com a mãe, na mesma cama que ela, e com outras duas detentas, que dormiam
em colchões no chão. Não era um local adequado, admite, mas a detenta afirma que
costumava organizar e deixar tudo sempre limpinho. O Serviço Social da penitenciária
ofereceu todo o enxoval da criança, doado por igrejas. Durante o período em que ficou
com o bebê, Gilvaneide dedicou­se ao máximo ao seu filho, mas ficava insegura o
tempo todo.

­ Na época eu tinha medo de ter qualquer coisa aqui, a cadeia “virar” e ter ele ali no
meio da confusão... Você sabe como é cadeia, né? Dia tá bom, dia tá ruim... Um dia as
presas tão boas, no outro dia tão revoltando tudo de novo. É muito perigoso.

Para não expor crianças indefesas a este e outros tipos de risco, como a de
contaminação por doenças contagiosas como a pneumonia e tuberculose, a Lei de
Execuções Penais (Lei nº. 7.210 de 11 de julho de 1984) prevê a obrigatoriedade de
inclusão de berçário e de creche nos presídios femininos. Mas o Conjunto Penal
Feminino não atende tal requisito. O prédio foi projetado e construído em 1990, já para
ser uma penitenciária exclusivamente feminina, mas não incluiu a instalação de berçário
e/ou creche, desprezando, desta forma, a Lei instituída seis anos antes. A própria
assistente social do Conjunto Penal Feminino, Simone Lima, que trabalha na
penitenciária desde a sua inauguração, há dezesseis anos, não entende porque não
incluíram o berçário no projeto.

­ Como é que você constrói uma unidade feminina, já existe uma lei que regulamenta a
necessidade de berçário e creche, e você não atende essa lei? Acho que é por conta do
pensamento machista mesmo. Eles não vêem a condição da mulher e as necessidades
exclusivas dela. Então fizeram um presídio como um presídio qualquer. Se você
observar a estrutura é muito semelhante às unidades masculinas e poderiam ser
53

diferenciadas. Poderiam fazer uma outra estrutura para as celas, poderiam colocar
creche e berçário, porque tinha espaço. Mas hoje no espaço que pertencia à Feminina
hoje tem a Central Médica e o COP (Centro de Observação Penal). A princípio havia
espaço para instalar um berçário, mas dividiram a Feminina em três partes. Tínhamos
uma quadra para as internas jogarem, fazer exercícios físicos, mas não temos mais este
espaço porque agora é do COP. Estamos encolhendo... Não temos mais pra onde crescer
aqui. E hoje o número de mulheres presas está aumentando! As mulheres também estão
entrando pra criminalidade, até mesmo por influência do companheiro. Não tem mais
presas aqui porque não cabe! Nas comarcas onde não tem presídio, as cadeias públicas e
delegacias, que também estão lotadas, mandam elas pra gente. Lá, elas estão nas celas
com os homens, engravidam e vêm grávidas para aqui. Tratando as mulheres como se
fossem homens que o sistema penitenciário gera todo esse problema. E quando a presa
parir, onde o bebê tem que ficar? Na cela! – revolta­se Simone.

A assistente social, uma jovem e simpática negra de sorriso largo, diante dos
problemas que nunca mudam e que só se avolumam, demonstra na face seriedade e
insatisfação, mas resiste, como um soldado que não foge à luta ainda que a batalha
esteja praticamente perdida, e continua a explicar:

­ Na impossibilidade de se ter um berçário, para que as mães ficassem num local mais
reservado com os filhos, nós utilizamos um espaço, uma galeria, onde colocamos estas
internas com os filhos. Então nós a arrumamos, colocamos azulejo, desenhos infantis,
mas mesmo assim, por conta da superlotação, as presas que são mães e seus filhos não
têm mais como permanecer isolados. Já existem outras internas vivendo também nesta
galeria. A gente tentou adaptar, mas nós não tivemos como manter a adaptação... A
criança, então, permanece na cela com a mãe e tentamos fazer o possível pra essa mãe
ficar sozinha com o filho durante o período da amamentação, para que não tenha
contato com outras internas. Porque as internas têm aquele sentimento materno e
querem o tempo todo ficar pegando a criança, mas muitas delas são soropositivas, têm
problemas graves de saúde, doenças infecto­contagiosas.

Os problemas enfrentados no encarceramento feminino, tanto na Bahia como em


outros Estados brasileiros, revelam que o sistema penitenciário é geralmente pensado
em relação aos homens. Fato que é geralmente justificado pela disparidade numérica
54

entre a criminalidade feminina e masculina. Somente em Salvador, no Complexo


Penitenciário, o número4 de homens presos em novembro era se 4.646, enquanto as
mulheres somavam 217, aproximadamente 4% da população carcerária. Mas são estes
números suficientes para justificar uma ação inferior das políticas penitenciárias em
relação às mulheres? Certamente os números não deveriam ser usados como
justificativa, ao contrário, eles fazem supor que às mulheres poderiam ser oferecidas
melhores condições de vida, compatíveis com as suas particularidades – pois, fazendo
uma analogia, é certamente mais fácil atender as necessidades de um filho que de vinte
e quatro –, mas não são. Ao mesmo tempo, a simples análise comparativa da taxa de
criminalidade feminina e masculina desconsidera os fatores sócio­estruturais
conseqüentes do encarceramento feminino, já que as mulheres geralmente são as
responsáveis pelo ambiente familiar, e o fato do aprisionamento promove muitas vezes
a quebra do núcleo familiar.

Ademais, quando privadas da liberdade, as mulheres enfrentam problemas


específicos, que se relacionam com sua própria condição biológica, tendo necessidades
diferenciadas das dos homens. Elas menstruam, engravidam, precisam de cuidados
específicos durante a gestação e ao parir, devem conciliar a maternidade com a condição
de presa, amamentar e cuidar de seus filhos... O próprio fato do nascimento e
permanência de crianças no interior da prisão, ainda que somente durante o período
legal da amamentação, acarreta em situações que vão além da condenação legal,
apresentando reflexos sociais na ultrapassagem da pena para os familiares.

Mas a penitenciária feminina, como explicou a assistente social Simone, não foi
projetada de acordo com as necessidades específicas das mulheres e de seus filhos; ela
surgiu apenas da necessidade de se separar as mulheres dos homens. O prédio do
Conjunto Penal Feminino foi construído com estrutura muito semelhante às unidades
masculinas, embora menor.

­ O sistema carcerário na Bahia existe há muitos e muitos anos; a penitenciária feminina


tem apenas dezesseis. A condição da mulher presa só veio ser pensada depois de muito

4
Dados da Superintendência de Assuntos Penais, da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos,
disponível no endereço eletrônico <http://www.sjdh.ba.gov.br/sap/populacao_carceraria.htm>. Acesso em
9 de novembro de 2006.
55

tempo. As internas até então conviviam no mesmo espaço dos homens, no Presídio
Salvador, sendo separados apenas por alas. No entanto, eles, homens e mulheres,
sempre se encontravam, não havia controle. Tanto que tinham contato íntimo constante
e as mulheres engravidavam dentro da prisão, tudo de maneira irregular e sem nenhum
tipo de prevenção a doenças. Hoje, para ter encontros íntimos, as internas devem fazer
uso de contraceptivo injetável, submeter­se a realização de exames regulares a cada seis
meses, e são estimuladas a exigir dos companheiros que usem “camisinha”. Antes não
tinha nada disso. Não se tinha esta visão de que as mulheres também tinham que ter o
espaço delas. Até as crianças moravam naquele ambiente. Era uma situação terrível.

Além da Lei de Execuções Penais, nas Regras Mínimas para o Tratamento dos
Presos5, da Organização das Nações Unidas (ONU), as questões específicas da mãe
presidiária são tratadas mais especificamente na Regra 23, da seguinte maneira:

1. Nos estabelecimentos para mulheres devem existir instalações


especiais para o tratamento das reclusas que estejam grávidas, das
que acabam de dar à luz e das convalescentes. Tanto quanto possível,
serão tomadas medidas para que o parto se verifique em um hospital
civil. Se a criança nascer no estabelecimento, não se deverá valer
constar este fato na sua certidão de nascimento.

2. Quando se permitir à mãe reclusa conservar o filho, deverão ser


tomadas providências para a organização de um alojamento infantil
(creche) com pessoal qualificado, onde ficarão as crianças quando
não estiverem sendo atendidas pelas mães. (ONU, 1955)

Exceto o fato das crianças nascerem em hospital civil, na Bahia a Penitenciária


Feminina transgride completamente tais Regras da ONU, bem como as Regras Mínimas
para o Tratamento do Preso no Brasil6, que estabelece em seu artigo 11 que “aos
menores de zero a seis anos, filhos de preso, será garantido o atendimento em creches e
em pré­escola”. Dando as costas para a lei, o Estado acaba penalizando não só a

5
Resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas de 30 de agosto de 1955, da qual o Brasil é
signatário. Disponível no endereço eletrônico <http://dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>.
6
Fixadas através da Resolução nº 14 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
(CNPCP), de 11 de novembro de 1994. Em 10 de março de 1995 o CNPCP solicita aos Conselheiros
Penitenciários dos Estados e do Distrito Federal que implementem ações e medidas essenciais com vista à
efetiva aplicação das Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil, considerando que a atuação
do Poder Executivo e a assistência do Poder Judiciário, com apoio do Ministério Público, são
imprescindíveis para o êxito social do cumprimento da pena ou da medida de segurança, na dinâmica do
diálogo entre os seus destinatários e a comunidade.
56

presidiária, mas também seus filhos e familiares. Hoje, das 217 presas do Complexo,
202 são mães. A maioria delas tem em média três filhos.

Segundo o promotor de Justiça da Bahia, Geder Luiz Rocha Gomes, membro


titular do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), o Estado
tem responsabilidade objetiva neste caso e deveria responder pelos danos causados.

­ Ora, se alguém está custodiado, portanto totalmente dependente do Estado, porque a


limitação da liberdade é total, e tem direitos inalienáveis, direitos que são
completamente absolutos, como o direito à maternidade e o direito ao acompanhamento
da criança, que estão sendo violados, obviamente o Estado tem responsabilidade
objetiva sobre isso e deve ser cobrado.

E complementa:

­ Se a lei diz que num estabelecimento feminino tem que haver uma creche e um
berçário, ela está já dizendo “olha, você vai ficar limitado na sua liberdade, mas o
Estado tem a obrigação de criar as condições para que essa limitação atinja o mínimo
possível seus direitos fundamentais”. E se o Estado não cumpre esse papel, claro que os
danos decorrentes desta situação devem ser imputados a ele.

Embora caiba ao Ministério Público a tarefa de fiscalizar as penitenciárias do


Estado para verificar possíveis infrações à Lei, os problemas detectados são tantos que,
como explica o promotor de Justiça de execuções penais José Renato Oliva de Mattos,
um dos responsáveis pelas fiscalizações mensais na penitenciária feminina, sem avistar
soluções, “muitas vezes é preciso optar pelo menos pior”.

­ Já tentamos junto à Secretaria de Justiça resolver de forma amigável este problema,


que é um problema de estrutura, e sempre nos é respondido que o caso será estudado.
Mas sabemos que falta espaço e verba para a instalação de um berçário. O Estado pode
ser acionado, é claro, mas em caso de não cumprimento a saída seria a interdição da
penitenciária feminina, e pelo aspecto social isso não é viável. No Brasil a lei é ótima,
mas as condições para se fazer cumpri­la são precárias – protestou, descrente, o
promotor de Justiça.
57

A falta de assistência da SJDH ao Conjunto Penal Feminino, de acordo com sua


diretora, Silvana Selém, representa mais uma forma de discriminação contra as
mulheres. Ela explica que o número de delinqüentes do sexo feminino vem crescendo
assustadoramente, e que não há mais como suprir a demanda da quantidade de presas
que chegam todos os meses das delegacias e cadeias do Estado. Acusa os dirigentes da
Secretaria de Justiça e da Superintendência de Assuntos Penais de não enxergarem tal
realidade e de tapar os olhos e ouvidos para as suas constantes reclamações.

­ O apoio da Secretaria foi mínimo nestes últimos anos. Encaminho para eles todos os
anos, desde 2000, CDs com relatórios e fotos da estrutura da penitenciária, que vem se
deteriorando cada vez mais. Insisto que é preciso fazer uma reforma urgente aqui, pois
estamos tendo uma grande quantidade de infiltrações. Mas os problemas da mulher
presa parece, não ser prioridade para eles – indigna­se Silvana.

O maior desgosto da diretora da penitenciária feminina, no entanto, é não ter


espaço para separar as presas por regime. Homicidas, traficantes, seqüestradoras, ladras,
sejam elas presas dos regimes fechado, semi­aberto e aberto, e até mesmo aquelas que
ainda não foram condenadas e aguardam manifestação da Justiça, ocupam o mesmo
espaço. Hoje 217 presas ocupam um espaço que foi projetado para no máximo 128
pessoas.

­ Estão todas misturadas! Se eu tenho aqui presas que cometeram simples furtos
convivendo com homicidas, por exemplo, como é que elas vão sair recuperadas daqui?
– protesta.

Quando questionada sobre a possibilidade de tirar as crianças das celas, do


convívio de tantas presidiárias, através da instalação de um berçário na penitenciária,
Silvana solta uma risada irônica, acompanhada da chefe de segurança Cláudia.

­ Eu estou querendo atendimento médico que é uma coisa muito mais emergencial e não
estou conseguindo! Berçário? (risos) Isso teoricamente fica lindo, mas o que eu quero
dizer é que tem presa aqui indo e voltando morrendo de dor e nem pode ser atendida
58

aqui na Central Médica, que fica no nosso prédio! Por que? Porque só tem homem lá! –
explica a diretora, batendo a mão sobre a mesa.

Silvana respira fundo e continua:

­ Não temos nem espaço para separar os regimes! Ta tudo misturado! O couro come lá
dentro e ninguém liga nãããããããão. Porque apito não resolve. Ficar pi, pi, pi... A gente
tem que entrar lá e ir separar pessoalmente. As próprias agentes que têm que fazer a
segurança são as primeiras a saírem de lá, a desmaiar, a pegar a bolsinha e se mandar! É
muito difícil trabalhar aqui. A Secretaria oferece uns cursinhos aí que não servem pra
nada. Até porque ela não tem condições de promover cursos porque não sabe os
problemas que temos aqui dentro, nunca vieram conhecer nosso dia­a­dia. Estão sempre
distantes. São eles lá e a gente aqui. O nosso superintendente, por exemplo, não vem
aqui há anos. Às vezes não manda nem representante.

­ Você esqueceu que não tem mais superintendente, amor? – interrompe a assistente
social Simone – que entrou há pouco na sala da diretoria trazendo mais um documento
para Silvana assinar. Há vários deles em cima da mesa.

­ Ah, sei lá! Ter ou não ter é a mesma coisa. Semana passada saiu no papel que ele foi
exonerado, mas sei lá, de repente ele volta, nunca se sabe.

Diversas foram as tentativas de se estabelecer contato com o secretário de


Justiça Sérgio Sanches Ferreira, através de sua assessoria de imprensa, para questionar o
porquê das infrações à Lei de Execuções Penais e sobre a falta de investimentos no
Conjunto Penal Feminino, mas a alegação de seus assessores era de que o Governo da
Bahia estava em fase de transição e o secretário estaria selecionando as entrevistas. O
superintendente de Assuntos Penais, Virdal Antônio Mattos de Senna, também foi
procurado, mas sua secretária afirmou que o mesmo não poderia dar entrevistas e que o
mais prudente seria, em seu lugar, entrevistar a diretora da Penitenciária Feminina (sic).
No início de novembro, o superintendente foi exonerado do cargo.

***
59

Hoje na penitenciária feminina vivem com as mães nas celas três bebês. Quatro
presidiárias estão grávidas. Edilane Ferreira da Silva, vinte anos, deu a luz à pequena
Marie* há duas semanas. A presidiária ainda é processada e aguarda julgamento. É
acusada de matar e esquartejar a própria mãe, Edna, junto com o marido. Mas se diz
inocente.

­ Foi ele quem discutiu com ela, deu uma paulada na cabeça e ela não resistiu. Eu só
assisti tudo. Vi ele cortar o corpo de minha mãe. Não fazia nada porque ele ameaçava
que ia me matar com um facão também e eu já estava grávida de algumas semanas.
Então ele me obrigou a ir com ele levar os sacos com os restos dela num terreno baldio.
No dia depois a polícia bateu lá em casa e perguntou pela minha mãe. Nós dois fomos
presos e ele mandou que eu assumisse tudo junto com ele. Fiquei com medo.

Carregando o belo neném de negros cabelos lisos e pele rosada no colo. Em


nenhum momento mostra­se emocionada. Só repete que não é culpada.

­ Eu fiquei com trauma de sangue e não consigo nem dormir direito – afirma a
presidiária, serenamente.

Edilane chegou na prisão com um mês de gravidez e gerou a criança ali dentro.
Diz que não teve problemas no período gestacional, pois teve pré­natal na penitenciária.
Quando começou a sentir as dores do parto, foi atendida por um médico da Central
Médica e encaminhada dentro do camburão cinza da SJDH até o Hospital Roberto
Santos, no Cabula, onde pariu. Ficou no hospital dois dias e voltou em uma ambulância
para a penitenciária.

Não tinha nenhuma roupinha para a criança. Tudo foi doado pelo Serviço Social.
Da família, só uma tia a visitou quando a pequena Marie nasceu.

­ Ela só veio trazer umas roupinhas. Não conversamos sobre o crime.

A menina dorme no colchão da cama de cimento que fica na abafada cela. O


chão é forrado com toalhas. Acima da cama há uma prateleira de madeira onde ficam as
mamadeiras e fraldas da criança, ao lado das roupas da mãe e das duas detentas que
60

dormem com ela no quarto. Papéis ofício cor­de­rosa foram colados nas velhas paredes
da cela, que não recebe qualquer luz solar e, apesar de aparentemente lima, tem aquele
“cheiro de cadeia”.

Marie está com bolhinhas pelo corpo. A suspeita é que sejam brotoejas, mas a
menina ainda não foi atendida por médicos.

­ Aqui ela não pode ser atendida, tem que levar fora. Mas me disseram que eu tenho que
chamar alguém da família pra levar a neném. Só que eu não tenho ninguém pra fazer
isso, queixa­se. À família do meu ex­marido eu não entrego! – explica Edilane.

A presa sabe que a penitenciária não é local para uma criança viver. Suspeita que
a doença da menina tenha sido justamente por causa do ambiente onde vive. Concorda
que o presídio deveria ser dotado de pelo menos uma estrutura de berçário.

­ Mas só que a mãe teria que ficar com o filho, né? Separado não dá. Toda hora ela tem
que mamar – explica.

Na hora de dar banho na criança, esquenta a água e banha a filha na cela mesmo.
Depois a arruma e coloca na cama novamente. Vez ou outra sai para o pátio com ela.
Deixa também que algumas presas de sua confiança carreguem a neném.

Diz que, se condenada, vai sofrer ao ter que entregar a criança quando findar o
período da amamentação. Mas não vai dar ela a ninguém.

­ A família do meu ex­marido quer. Com eles ela não fica! Vou deixar ela na creche da
freira, lá ela vai estar bem “guardada”, explica.

A maioria das presas sempre mostra­se resistente em entregar seus filhos quando
o período legal da amamentação chega ao fim, mas o Serviço Social providencia a
retirada da criança, observando junto à interna se ela prefere que a criança fique com
alguém da família ou se será preciso institucionalizá­la no Centro Nova Semente.
61

Tiago passou nove meses em companhia da mãe Gilvaneide na penitenciária.


Como a presidiária não tem família em Salvador, a criança foi entregue aos cuidados de
Irmã Adele.

­ Foi um momento muito triste. Entrei em crise e em depressão até me acostumar aqui
sem ele... Até agora não me acostumei sem meu filho. Mas, fazer o quê? – explica
Gilvaneide.

No início ficou com medo de confiar seu bebê a uma creche onde ele estaria com
diversas crianças e sob cuidado de pessoas desconhecidas.

­ Eu não confiava. Via algumas mães reclamando que via o filho chegar com piolho.
“Ah, porque meu filho tá com a roupa amassada” e outra “meu filho tá arranhado”. E eu
ficava com medo. Mas depois fui observando que ele tava sempre limpinho, tinha
médico, e vi que não era aquilo. Muito pelo contrário. Se não tivesse essa creche, onde
ele estaria, se aqui no presídio não pode?

Uma creche no próprio presídio seria a solução para as presas que, como
Gilvaneide, tem filhos de até seis anos. Mas, no Brasil, apenas dez dos vinte e oito
estabelecimentos penais femininos possuem creches7. Geralmente a permanência da
criança junto com a mãe apenada é considerada como o melhor benefício trazido por
uma creche no sistema penitenciário. Para a criança porque o contato é decisivo para a
manutenção do vínculo materno­infantil, o que lhe oportuniza o aleitamento materno
além dos seis meses previstos na lei, e o seu melhor desenvolvimento, tanto nutricional,
quanto físico e emocional. Já para a mãe apenada, a aproximação com o filho a faz
refletir sobre o cumprimento da pena, colaborando para um melhor comportamento na
prisão e diminuindo as chances de fuga, bem como incentiva sua ressocialização.

***

7
Os dados são resultado da pesquisa “Creche no sistema penitenciário: Um estudo sobre a
situação da primeira infância nas unidades prisionais femininas brasileiras” de Rosângela Santa Rita.
2002.
62

No sistema penitenciário, a creche cumpre um papel diferente daquelas que


estão situadas fora do contexto prisional: aproxima mães e filhos. O surgimento das
primeiras creches no mundo teve em vista a saída da mulher do ambiente familiar, onde
cuidava integralmente dos filhos, para o mercado de trabalho, exigência da sociedade
industrializada. Cumprindo jornada dupla de trabalho, com carga horária excessiva
(geralmente dezesseis horas), as trabalhadoras começaram a delegar a terceiros os
cuidados das crianças, como às gardeuses d’enfants8 – mulheres que não saíam para
trabalhar nas fábricas e que ofertavam seu trabalho para cuidar das crianças, cujos pais
estavam nas atividades extra­lares.

A primeira instituição denominada creche surgiu em Paris, no ano de 1844, com


a finalidade de servir de abrigo às crianças abandonadas. Posteriormente foram surgindo
instituições semelhantes, criadas exclusivamente por filantropia, em uma época marcada
por fortes influências do modelo patriarcal, no qual as crianças oriundas de mães
solteiras eram rejeitadas e colocadas para doação. As necessidades dos menores, como
um todo, não eram analisadas. A proteção à infância apresentava sempre um cunho
assistencialista, onde os objetivos das ações não eram pensados em favor do pleno
desenvolvimento da criança.

A necessidade de mudança de enfoque nas ações voltadas às crianças só veio a


ser cogitada no século vinte. Em 1919, surge na Inglaterra a primeira entidade
internacional cuja missão era proteger e cuidar das crianças vítimas da Primeira Guerra
Mundial. A entidade, chamada 'Save the Children ' (‘Salvem as Crianças’, em
português), foi fundada pela pacifista inglesa Eglantyne Jebb com a finalidade de
arrecadação de dinheiro para envio de alimento às famílias européias depauperadas pela
guerra. Quatro anos depois foi criado o primeiro Juizado de Menores, no Brasil. O
primeiro documento internacional sobre os direitos da criança, conhecido como "A
Declaração de Genebra”, elaborado e redigido por membros da 'Save the Children', foi
aprovado em 1924 e é considerado o documento que deu origem à “Convenção dos
Direitos da Criança” de 1989.

8
RIZZO, G. 2000 apud SANTA RITA, R.
63

Várias instituições e documentos fundamentando os direitos das crianças foram


surgindo ao mesmo tempo em quase todo mundo, aceitando a idéia de que a população
infantil é detentora de necessidades e sentimentos próprios. No Brasil, em 1988, a
Constituição Federal, principal marco no novo ordenamento legal no país, explicita
como um dos deveres do Poder Público o atendimento às crianças de zero a seis anos de
idade em creche e pré­escola. O Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em
13 de julho de 1990, considerado um documento exemplar de direitos humanos,
concebido a partir do debate de idéias e da participação de vários segmentos sociais
envolvidos com a causa da infância no Brasil, reforça o preceito constitucional em seu
capítulo IV, art. 54, IV. Mas apesar de representar uma grande conquista da sociedade
brasileira, o Estatuto ainda precisava ser implementado de forma integral. Com esta
finalidade, em 1992 foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (Conanda), que tem entre suas atribuições a formulação de políticas
públicas e a destinação de recursos destinados ao cumprimento do ECA.

Contudo, mesmo diante de tantos marcos legais e de tantas entidades de defesa


da infância, muitos dos direitos das crianças continuam a ser violados
indiscriminadamente, principalmente pelo Poder Público, que não assegura a elas o que
está legalmente estabelecido, e sequer são responsabilizados por essa violação. É o caso
do Governo da Bahia. Ele nunca foi acionado por qualquer órgão para fazer cumprir o
que estabelece a legislação no que concerne às crianças que nascem nos cárceres.

Enquanto isso, Gilvaneide sonha com uma creche no próprio presídio, como
estabelece a Lei de Execuções Penais.

­ Acho que seria bem melhor, sabe? Deus sabe como sou agradecida por essa creche de
Irmã Adele; ela é realmente uma benção. Mas o que mais queria na vida era ver meu
filho toda hora, toda hora mesmo. Ave Maria! Eu conto as horas pra vê­lo. Se pudesse,
ele não saía de perto de mim. Ai... Eu não agüento mais isso aqui.

A detenta pára de falar subitamente, colocando as duas mãos sobre os olhos e


abaixando a cabeça. Gilvaneide engole o choro, respira fundo e continua:
64

­ Eu tenho vontade de sair daqui logo, sabe? É meus filhos... Tenho que sair daqui para
ficar com eles. Tem seis anos que não os vejo. Minha cadeia é toda aberta agora, sabe?
Mas ainda não pude sair porque não tive dinheiro. Se eu conseguir uma carta de
emprego, posso passar o dia na rua e dormir aqui.

Gilvaneide, devido ao bom comportamento na prisão, ganhou o benefício da


troca de regime fechado para semi­aberto, podendo sair em períodos específicos e
depois voltar para prisão, ou trabalhar todos os dias fora da prisão e voltar à noite. Mas
a detenta não conseguiu nem uma coisa nem outra, pois lhe faltam dinheiro e alguém
que consiga um emprego para ela. Não há políticas suficientes do Estado no sentido de
oferecer trabalho às presidiárias. Uma das maiores queixas das internas é a falta de
emprego, porque além de oferecer­lhes renda, servindo de meio de sustento de suas
famílias, cada três dias de trabalho corresponde a um dia a menos na execução da pena9.

­ Sim, a maioria das presas quer trabalhar. Mas só que o trabalho aqui não dura, sabe?
Às vezes é só três meses e ficamos depois sem trabalho. A gente trabalha três meses e
só nos paga por um mês – Gilvaneide silencia, olha para os lados, e sussurra: A gente
não pode falar isso aqui não porque senão eles ....................... – e gesticula com as mãos
fechadas, fazendo sinal de alguém trancando algo com chave – Eles bate a tranca!

Questionada sobre se há mais algo de errado na prisão como o fato de terem a


mão­de­obra explorada indevidamente, a detenta explica:

­ Tem muita coisa errada...

Ela olha pra trás e cala­se. Não quer falar mais temendo ser punida
posteriormente.

Sem trabalho, o que resta à maioria das presidiárias é esperar. Elas acordam às
sete e trinta da manhã, tomam banho, esperam que a “cantina” (como chamam o local
por onde os funcionários distribuem as refeições) seja aberta para que possam pegar um

9
A remição da pena está prevista no artigo 126 da Lei de Execuções Penais para os condenados
que cumprem pena em regime fechado ou semi­aberto. O tempo remido deve ser computado para
concessão de livramento condicional e indulto.
65

prato com apenas pão e um copo de café­com­leite. Algumas detentas chegam a pedir
para trabalhar de graça durante os períodos ociosos, varrendo as salas da administração,
só para não ficar sem fazer nada. Depois retornam para a cela, fazem a faxina que
tiverem que fazer, e ficam aguardando a hora de pegar o almoço. Às dezesseis horas
recebem as marmitas com a janta e às dezessete são trancadas nas celas.

­ Ficamos sem fazer nada. Eu pelo menos tenho meu crochê. Sem ter o que fazer é mais
fácil ir se revoltando. Porque o que faz mais a pessoa revoltar é que se você tem uma
coisa pra fazer, fica com a mente ocupada, e a mente desocupada só faz a pessoa pensar
besteira. Mistura também a emoção da mãe que não vê o filho há muito tempo, que não
vê os irmãos e a família, e tudo isso vai entrando na cabeça... E aí às vezes a gente vai
tentar falar com um agente e ele não quer atender, também a alimentação é péssima. É
preciso pedir muito a Deus, viu?

A diretora da penitenciária feminina concorda que o trabalho é extremamente


importante e uma forma de ressocialização das internas, mas explica que é preciso
selecionar bem as empresas, de forma a evitar a exploração.

­ Temos cinco empresas que trabalham aqui dentro e pagam o que a lei prevê. Porque eu
só permito empresa que paga os 75% do salário mínimo. Algumas empresas chegam
querendo pagar por produção, alegando que as presas vão ganhar mais que os 75%, mas
é papo de empresário que está começando e que não tem condição de pagar muita gente.
Então quer dar apenas vinte, trinta ou quarenta reais por mês. Eu tirei daqui as fábricas
que estavam fazendo exploração da mão­de­obra carcerária. Alguns presídios as
aceitam, só para o preso ter o que fazer, mas não é assim que as coisas se resolvem. As
empresas devem fornecer um diferencial, devem profissionalizá­los, porque sabemos
que é difícil arranjar emprego lá fora, ainda mais quando se tem a “ficha suja”. Então
quero que as presas aqui aprendam a fazer artesanato, doces finos e outras coisas que
não as tornem dependentes do mercado formal, para que possam trabalhar em casa
mesmo.

Quando não consegue fazer uma faxina aqui ou acolá, Gilvaneide sente uma
saudade tão grande do seu filho, que não sabe o que fazer para que o tempo passe
rapidamente até o dia de vê­lo novamente, pois apenas quando está com o menino que
66

ela se consola mais. Costuma agarrá­lo no colo e apertá­lo num abraço tão profundo que
parece desejar tê­lo novamente dentro do seu corpo, como na fase da gestação.

­ Ele me faz pensar num futuro melhor. Olhe, depois que tive ele aqui, eu já me
arrependi muito. Antes eu pensava até em suicídio, sabia? Mas tenho que pensar em
meus filhos, minha família, no futuro. Tenho que criar meu filho pequeno. Mas o que é
duro mesmo é ver meu filho chegar aqui e eu não ter uma merenda pra dar. Eu sei que
ele é bem alimentado na creche, mas a alegria da mãe é ter sempre uma merendinha pra
dar pro seu filho. Eu também sei que ele é educado lá pela Irmã. Mas a gente também
quer dar a nossa educação pra ele, né? Ele tem que ser educado por pai e mãe. Ele não
me chama de mãe, me chama de tia, e isso é uma dor muito grande pra mim, por isso
queria que ele tivesse mais perto.

A presidiária sonha em sair da prisão e conseguir ter seus filhos novamente por
perto, mas não gostaria que eles crescessem questionando o que ela fez para ter sido
presa. Por ela, passaria uma borracha sobre esta etapa de sua história de vida e apagava
tudo, sem deixar nenhum borrão, nenhuma mancha sequer.

­ Eu não gostaria que eles ficassem pensando porque que eu fui presa, no que eu fiz. Eu
gostaria que eles me visse com uma mãe deeeeeeles, uma mãe que um filho gostaria de
ter – fala Gilvaneide imprimindo um tom mais forte à voz e a apertando a blusa da
farda azul marinho no peito – Uma mãe que dá todo o amor e todo o carinho. Gostaria
que eles me tivessem como mãe e só isso.

Com semblante sonhador, olhando para o nada, Gil diz querer montar sua
casinha com o marido Rosivaldo e ter uma família completa. Repete que não pretende
voltar para o interior, que ficará aqui em Salvador mesmo, porque acredita que tem mais
chance de conseguir emprego. Subitamente, porém, a detenta muda a fisionomia,
enrijecendo a testa, como se despertasse do sonho e caísse em si, na realidade infernal
que a circunda, e como se pensasse nas poucas chances que terá fora da prisão
justamente pelo fato de ter sido presidiária. E termina queixando­se também da pena do
marido, que é muito longa, trinta e sete anos, explicando que o caso dele é “mais
sério”...
67

­ Porque o caso dele foi assalto, sabe? Algum negócio com roubo de carros. Ele teve a
primeira cadeia dele antes, depois da primeira cadeia, ele saiu, mas quando faltava um
ano pra ele terminar de pagar, aí ele “quebrou” a condicional e redobrou tudo de novo.

Quando fogem da prisão e são recapturados, os presos que tinham qualquer tipo
de benefício, como a troca de regime para semi­aberto ou liberdade condicional,
perdem­no e são obrigados a cumprir a pena integral em regime mais grave, porque
demonstrou não ter condições de estar naquele regime menos rigoroso.

Gilvaneide tem receio de falar dos motivos da prisão do companheiro, fica


desconfortável, desconfiada e pára de falar, insistindo apenas em dizer que agora ele
tem bom comportamento e que se tornou obreiro da Igreja Universal.

­ É que eu não gosto de falar da vida dele. O problema lá é dele, não meu.

A presa volta a citar o marido somente quando é questionada se o seu filho tem
algum contato com o pai.

­ Ele vai visitar o pai, claro. Mas lá ele não fica o dia todo como aqui. É só meia hora.
Eu até entendo, porque lá a cadeia pode “virar” a qualquer hora, é mais perigoso que
aqui. E a criança vai só até a portaria, aí vão chamar ele e ele se encontra com o filho
ali. Ele fala sempre pra mim “não vejo a hora da gente sair, para poder educar nossos
filhos, eles precisam de pai e mãe”. É triste, é difícil. Eu sempre fico preocupada. É
muito duro ser pai e mãe aqui dentro...

Suspirando fundo, como se tentasse tirar do peito uma dor sufocada,


provavelmente por relembrar os filhos que estão longe dela, Gil mostra­se arrependida e
recomenda:

­ Quem tiver seus filhos lá fora, nunca queira sair de perto deles. Porque às vezes é
difícil lá fora, não tem dinheiro ou comida, mas sempre dá pra arrumar uma faxina,
alguma ajuda, lavar roupa. Qualquer coisa pra não cair no vício ou no crime. Não há
castigo pior que sair de perto do seu filho, gente! Mesmo que ganhe pouco dinheiro, vá
e compre uma farinha de trigo, um ovo, faça alguma coisa pra vender, ou pastel ou
68

sonho. Não caia na besteira de roubar ou de matar. Coloque até seu filho pra vender as
coisas. E se por acaso ver seu filho mexendo em alguma coisa errada, ensine a ele que
não pode, que deve devolver. Porque a criança repete o que a mãe faz. Às vezes ele nem
quer fazer, mas de tanto ver a mãe fazer errado, ele vai achar que é certo. Jamais a gente
tem que querer dar um passo errado. Tem que dar sempre um passo pra frente, que seja
uma coisa boa e que dê pra ele pensar: “minha mãe suou para ter isso, ela trabalhou, não
roubou.”. É isso que uma mãe tem que dar pro filho.
69

CRIANÇAS NA PRISÃO
70

Cinco horas da manhã. Naiara de Jesus, uma jovem estudante, negra, vinte e um
anos de idade, desce do ônibus que a trouxe do bairro do Engenho Velhos de Brotas no
ponto localizado em frente à entrada do Complexo Penitenciário, na Mata Escura. No
seus braços, traz a pequena Emily*, de um ano e três meses, filha da sua irmã Mislene,
de vinte e quatro anos, que está presa há pouco mais de dois meses, por assalto, e
aguarda julgamento. Apesar dos primeiros raios do sol despontarem timidamente no
céu, e da brisa da noite que ainda não se foi causar frio, cerca de vinte pessoas, a
maioria dela acompanhada de crianças de várias idades e tamanhos, aguardam o
momento dos portões se abrirem, mas terão que enfrentar ainda quatro horas de espera.
Como não há nenhuma proteção contra a chuva ou o sol, é preciso que tragam sobrinhas
e guarda­chuvas. No ponto de ônibus há uma pequena barraca azul de ferro que abre
logo cedo, e onde é possível comprar pacotes de pipoca doce, biscoitos, bombons e
cigarros. Também um rapaz instala­se no local logo cedo com seu isopor cheio de água
mineral, suco e refrigerante para tentar ganhar um trocado com a venda dos produtos
para aquelas pessoas que estão na fila. A maioria delas, porém, aparenta ser bastante
pobre, e, para economizar, trazem lanchinhos de casa, principalmente as que estão
acompanhadas de crianças.

As visitas ao Complexo Penitenciário do Estado acontecem às quartas e quintas­


feiras, sábados e domingos, a depender da unidade prisional. No Conjunto Penal
Feminino, as visitas acontecem sempre às quartas­feiras e sábados, das nove às quinze
horas. No Presídio Salvador, às quintas­feiras e domingos, das oito às quinze horas,
acontece a visitação no prédio principal, e, às quartas­feiras e sábados, em mesmo
horário, no prédio anexo. As visitações aos presos que estão na Penitenciária Lemos
Brito se fazem às sextas­feiras para as esposas e companheiras, e aos sábados e
domingos para os demais visitantes, sempre das oito e meia às dezesseis e meia. Quinta­
feira e domingo são os dias de visita para os detentos que se encontram no Centro de
Observação Penal, das oito e trinta às quinze horas, e na Central Médica Penitenciária,
das quatorze às dezesseis horas. Na Casa do Albergado e Egressos, as visitas acontecem
aos sábados e domingos, das treze às dezessete horas. Para ter direito a visitar os presos
e presas é necessário o prévio cadastramento, realizado em dias específicos em cada
unidade, sendo necessários documentos como a Carteira de Identidade, Certidão de
71

Nascimento para crianças menores de dez anos de idade, Cadastro de Pessoas Físicas
(CPF), certidão negativa de antecedentes criminais, comprovante de residência em
nome do visitante ou do interno e duas fotos tamanho três por quatro. Os visitantes
cadastrados recebem uma carteirinha, que é apresentada aos agentes penitenciários a
cada visita.

Nesta quarta­feira, 11 de outubro de 2006, a visita será especial na penitenciária


feminina. E por isso há tantas crianças do lado de fora, aguardando com os parentes a
hora de entrar. Como foram informadas de que foi organizada para este dia uma festa
em homenagem às crianças, a maioria delas foi vestida com a melhor roupa que possui.
Estão mais bonitas, alegres, cheirosas... A longa espera, porém, vai deixando algumas
impacientes. Difícil conter a ansiedade dos pequenos.

­ Vó, vai demorar ainda? – pergunta uma menininha de aparentemente oito anos de
idade, vestida com roupas azuis de crochê, abraçando­se na barriga da avó, que se
encontra na fila, apoiada na parede.

­ Um pouquinho só – responde a senhora de cabelos grisalhos amarrados em um coque,


olhando o relógio – Agora são oito horas, ainda falta uma hora.

Naiara está sentada no chão, sobre um pedaço de plástico, com a sobrinha no


colo. A menina está impaciente, já tomou uma mamadeira e cochilou durante algum
tempo, mas já está cansada de esperar.

­ Calma, bebê. Já vamos, viu? – consola a tia, que também é madrinha da criança.

Poucos minutos antes das nove horas, o portão de acesso dos visitantes se abre.
Por uma janela, os funcionários da penitenciária dão números a cada pessoa que passa
pela recepção mostrando o cartão de cadastro de visita. Naiara é a vigésima segunda
visitante. Assim como os demais, ela segue carregando sacolas plásticas com alimentos
até a entrada da penitenciária feminina, o primeiro prédio do complexo, localizado a
poucos metros dos portões de entrada.
72

Diante do portão que dá acesso ao Conjunto Penal Feminino e à Central Médica


Penitenciária – pois ficam no mesmo prédio – forma­se uma nova fila. O acesso é mais
controlado. As pessoas são chamadas uma a uma, de acordo com a ordem dos números
das fichas que receberam, e apresentam, logo no portão de entrada, a carteirinha de
visitante credenciado a uma agente penitenciária, sentada em uma cadeira de madeira e
apoiada sobre uma mesa escolar. Ela anota em um caderno o nome de cada visitante, se
está acompanhado por crianças e qual interna que vai visitar.

Depois, no balcão logo em frente, as pessoas entregam seus pertences – entre


bolsas, celulares e cintos – a uma das duas agentes responsáveis por esta tarefa, que
anexam a eles um pregador numerado, os guardam em um compartimento aberto com
diversas prateleiras de madeira, e dão a cada um dos proprietários dos objetos uma ficha
com o número correspondente ao do pregador. As sacolas plásticas trazidas por cada
visitante são, em seguida, revistadas, objeto a objeto, por outras duas agentes, que usam
luvas para manuseá­los. Geralmente são pacotes com tomates, batatas, cenouras, feijão,
macarrão, arroz, biscoitos, sucos artificiais, maçãs, bananas... Alguns levam marmitas
com comidas já prontas, que as agentes abrem, olham e sacodem, para verificar se não
há nada escondido sob elas.

Apesar de muitas daquelas pessoas serem visitantes há bastante tempo, algumas


já reconhecidas pelos funcionários, é preciso manter a minúcia na revista; aqui todos
são suspeitos. Cláudia, a chefe de segurança da penitenciária feminina, uma mulher de
aparentemente quarenta anos, cabelos claros curtos e olhos verdes, está sempre por
perto, circulando e observando o trabalho das funcionárias, fumando um cigarro após o
outro. Observa também o controle na entrada dos parentes das detentas, que, além de
alimentos, também trazem roupas, objetos de higiene – como sabonetes, papéis
higiênicos e absorventes – e cigarros.

Após estas etapas, é chegada a hora da parte mais humilhante para os visitantes:
a revista individual. Independentemente da idade ou do sexo, todos os visitantes são
revistados. Todos eles são obrigados a tirar todas as peças que vestem: calça, camisa,
saia, sapatos, vestido, cueca, sutiã, calcinha, fraldas... O desnudamento é feito em salas
separadas e por agentes femininos ou masculinos, dependendo do sexo da pessoa. Nem
mesmo as crianças e adolescentes são dispensados da revista vexatória, sendo despidos
73

pelos mesmos monitores dos adultos, não existindo para eles tratamento diferenciado.
Os meninos e meninas testemunham a revista do adulto que os acompanham.
Presenciam a nudez do pai, mãe, avó, tia, irmãos, ou responsável.

As mulheres, nuas, têm que se agachar e levantar com as pernas abertas, para
que a agente observe se traz algo de suspeito em sua vagina. Se menstruadas, até o
absorvente íntimo têm que tirar... Revistas como estas molestam a dignidade das
pessoas, especialmente as honestas. É o preço que pagam, a pena que cumprem, por ter
um parente encarcerado.

Os procedimentos da revista vexatória, que segundo relatos é a mesma nas


outras unidades do Complexo Penitenciário, só é segredo para quem não quer saber e
acontece de forma desvelada porque não há fiscais da lei e/ou porque há lacunas na
própria lei... A resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
(CNPCP), de 27 de março de 2000, que recomenda a adoção de procedimentos quanto à
revista nos visitantes, em seu artigo 5, estabelece que “a revista íntima só se efetuará em
caráter excepcional, ou seja, quando houver fundada suspeita de que o revistando é
portador de objeto ou substância proibidos em lei e/ou que venham a por em risco a
segurança do estabelecimento”. Neste caso, se a revista íntima (com necessidade de
nudez completa), no Complexo Penitenciário do Estado da Bahia, é efetuada em todos
os visitantes, sejam eles velhos ou crianças, mulheres ou homens, deduz­se que todos
são suspeitos e que podem pôr em risco a segurança... Mas em que está fundada a
suspeita? Obviamente no fato dos visitantes serem parentes ou amigos de criminosos, e
certamente porque a entrada de droga na penitenciária é constante, sendo creditado aos
visitantes a maior parte da culpa.

“A revista íntima deverá preservar a honra e a dignidade do revistando e efetuar­


se em local reservado”, diz o artigo 6 da resolução do CNPCP. Bonito no texto, difícil
na prática. Uma revista íntima feita por terceiros sob a justificativa da suspeita sempre
ofenderá a honra daqueles que têm a consciência de que a suspeita é infundada. No
artigo 7 da mesma resolução, uma proposta, talvez mais lógica, mas que quase nunca é
posta em prática: “a critério da Administração Penitenciária a revista íntima será feita,
sempre que possível, no preso visitado, logo após a visita, e não no visitante”.
74

A diretora do Conjunto Penal Feminino, Silvana Selém, considera a proposta


inviável:

­ Não há condições de se fazer a revista apenas nas internas porque elas são muitas!
Claro que a revista é constrangedora para uma pessoa honesta, mas ela é inevitável. O
que estamos proibidos de fazer é a revista íntima, aquela em que se introduz um bico­
de­pato na vagina das mulheres. E até por isso tem entrado muita droga no pátio, pois a
nossa revista é ridícula, muito rápida, e não consegue detectar. Na maioria das vezes a
droga é inserida de tal maneira que fica alojada no útero. Entra celular, carregador... É
um depósito!

Silvana justifica, ainda, que não confia no trabalho de grande parte dos agentes
penitenciários, que deixam passar objetos indevidos.

­ Soube de um agente que por trezentos reais deixou passar um celular, e ele vai
responder por isso. Se há omissão ou excesso, a culpa é do agente. Nós não temos
controle sobre isso. Não somos onipresentes nem onipotentes. Pior acontece aos
sábados, quando a administração não funciona. Os visitantes e agentes ficam mais à
vontade. E até mesmo as presas! Quando elas voltam do encontro íntimo na PLB aos
domingos, sei que elas voltam “recheadas”. Mas somos impedidos de fazer a revista
íntima nelas... Com isso perdemos muitas vezes todo um trabalho de desintoxicação de
dependentes...

Membro do CNPCP, Geder Gomes explica que o quadro caótico da mão­de­obra


carcerária faz com que na prática haja formas grosseiras de se tentar barrar a entrada de
armas e drogas nas penitenciárias. Desta forma, apesar do Conselho ter produzido a
resolução para tentar pelo menos diminuir os abusos, eles prevalecem.

­ Você em casa pede a um funcionário que faça determinada comida, e ela vem com
bastante sal. Você não pediu que colocasse sal em excesso, mas na prática acontece.
Assim acontece no ambiente carcerário – compara o promotor de Justiça.
75

De acordo com Gomes, essa situação de caos deve­se ao fato da falta de


profissionalização dos agentes e das próprias condições de trabalho; eles trabalham sob
constante risco e são mal remunerados.

­ Para se ter uma idéia, em 70% dos Estados não há planos de cargos e salários, não há
capacitação dos indivíduos que vão trabalhar com o cárcere, não há escolas
penitenciárias e não há profissionalização. O pior dado que eu tenho a este respeito é a
juvenização daqueles que vão cuidar da população carcerária. São jovens cuidando de
jovens num ambiente extremamente tenso que é o ambiente carcerário. Isso se reflete
em situações como esta, de revista, onde há abusos e onde não há preparo.

Assim, sem investimentos e políticas públicas voltadas para o sistema


penitenciário – que é sempre renegado a último plano pelo Governo, sob a aquiescência
da sociedade –, permanecem os excessos no controle do ingresso de cidadãos livres,
sejam de boa ou má índole, nos estabelecimentos penais. O uso de detectores de metais
e de cães farejadores para evitar a entrada de armas e tóxicos; a adoção de critério de
amostragem para realização da revista pessoal, respeitando­se a intimidade e a vontade
do visitante; e a presença da Defensoria Pública durantes as visitas nos presídios são
algumas das alternativas à submissão dos familiares dos presos e presas à revista
vexatória. Além destas, a formação de equipes de agentes penitenciários para atuarem
especificamente no atendimento das visitas, e a assistência às pessoas dispostas a
denunciar os abusos sofridos através do apoio de órgãos nacionais e internacionais de
Direitos Humanos, também não deveriam ser descartadas, porém tais medidas são
consideradas utopia.

E enquanto a solução não chega – solução, aliás, é uma palavra que sempre soa
de forma inverossímil, quase cínica, quando se tem em vista o contexto do sistema
carcerário brasileiro –, os visitantes permanecem à mercê do sol e da chuva, esperando a
sua hora de entrar na penitenciária e submeter­se à revista neste que é um dia especial,
dedicado às crianças, mas nem por isso é tão diferente quanto gostariam... Nem mesmo
as crianças estarão a salvo da revista hoje... A inocência delas é posta em xeque a todo o
momento e de toda forma. Nas próprias brincadeirinhas, em casa ou na rua, elas
denunciam as situações que vivem: imitam o procedimento da revista com irmãos,
primos, coleguinhas... Inevitavelmente, esses meninos e meninas, a maioria sem
76

condição financeira para arcar com um tratamento psicológico, ou até mesmo por falta
de instrução de seus familiares, carregarão para as suas vidas a marca permanente da
prisão.

***
Naiara agora está sentada sob o passeio que fica em frente ao estacionamento
aberto da penitenciária feminina. Ela sintetiza todas as etapas que têm que se submeter
até conseguir visitar a irmã e conceder a ela, mesmo que por poucos instantes, o direito
de exercitar a maternidade, em uma só palavra: “humilhação”. A mãe delas, uma
enfermeira de cinqüenta e poucos anos, nunca esteve em visita no presídio.

­ Seria muita humilhação pra ela, coitada! É muito triste, e ela já está tão mal em
enfrentar essa situação de ter a filha presa. Ave Maria se tivesse que vir aqui enfrentar
isso! – explica Naiara.

Até mesmo o outro filho da detenta Mislene, de seis anos de idade, foi impedido,
por decisão da família, de vir até a prisão:

­ Ele não sabe, dizemos que ela ta trabalhando, viajando. O menino é muito esperto. Se
vier aqui, vai contar aos coleguinhas onde esteve, o que ouviu e o que viu. Imagina na
hora da revista... Ele teria que me ver nua!

São aproximadamente dez horas quando Naiara ouve uma das agentes gritar:

­ Vinte e dois!

É o seu número. Levanta do passeio, passa as mãos no bumbum para limpar a


poeira na sua bermuda jeans, pega as sacolas em um braço e carrega a pequena Emily*
no outro. É a hora da revista e hoje será ainda pior: está menstruada.

Um pouco próximo ao lugar onde estava a jovem que acaba de entrar, está uma
senhora de quarenta e nove anos, acompanhada de quatro netos: dois meninos, um de
dez e outro de cinco anos, e de duas meninas, a maior de oito anos a menor, de seis.
77

Dona Indiara traz as crianças para verem a mãe, sua nora, Sandra. A detenta está na
“Feminina” há nove meses.

­ Ela sempre foi muito trabalhadeira. Fazia faxina, lavava roupas, vendia Avon, mas o
dinheiro não dava para o sustento de quatro crianças. Ela é tão carinhosa com as
crianças... Sempre foi. Mas agora está sofrendo muito, muito mesmo. Sabe como é, né?
Foi a pobreza, a falta de emprego, o desespero mesmo que fez ela parar aqui.

Sandra estava com os quatro filhos quando a polícia invadiu a sua casa. Com ela,
foram encontradas cocaína e maconha embrulhadas para vender. As crianças ficaram
muito assustadas com os gritos e o choro da mãe sendo levadas pelos policiais.
Marina*, a de oito anos, chegou a se urinar, tamanho o pavor. Os policiais levariam as
crianças para o Juizado, mas diante dos apelos da mãe, a vizinhança disse que elas
tinham avó, que morava ali perto, e que iriam chamá­la para cuidar dos meninos e
meninas. Quando dona Indiara chegou na casa, as crianças estavam sozinhas, chorando
e, muito assustadas, tremiam. Ao reconhecer a avó, todos correram ao mesmo tempo
para abraçá­la. Nem sabiam explicar direito o que acontecia.

­ Foi os polícia minha avó, foi os polícia...

Um furgão da SJDH chega ao estacionamento em frente ao portão onde os


visitantes das detentas aguardam. Dois policiais pulam do fundo do carro com armas
nas mãos. Rodolfo* e a irmã Marina*, que bricavam por ali por perto, se escondem
atrás de Indiara. As outras duas crianças, estavam do outro lado da rua e lá ficam,
paradas. Os policiais abrem o fundo do furgão, um deles salta do carro pedindo
passagem às pessoas que se acumulam em frente ao portão. Um detento, trajando farda
laranja, com os braços para trás e as mãos algemadas, desce do carro e entra no prédio.
É um dos detentos que ficam na Central Médica Penitenciária. O acesso dos bandidos é
o mesmo dos visitantes.

­ O que foi, minha avó?

­ Você não viu que foi um preso que os guardas trouxeram?


78

­ Mas o que ele veio fazer aqui? A senhora não disse outro dia que o [presídio] dos
homens não fica lá embaixo e que aqui é o das mulheres?

­ É, é. Mas esse daí veio pro médico. Tem um hospital aí dentro, você não já viu uns
médicos aí na entrada?

­ Ah...

Após a passagem do carro o garotinho e sua irmã, que estavam do outro lado do
estacionamento, correm para ficar perto da avó e dos outros irmãos. As crianças estão
visivelmente traumatizadas. Sem auxílio psicológico, certamente crescerão com medo
da polícia, ou terão ódio dela...

Passado o susto, Rodolfo, o questionador garoto de apenas cinco anos de idade,


pergunta a avó se já pode beber o refrigerante que está no isopor.

­ Não! Tá cedo! Chegamos tarde aqui, e se você beber agora vai ficar com sede lá
dentro, explica Indiara.

­ Mas na festa não vai ter refrigerante, minha avó?

­ Não sei, não sei... – responde a avó paterna, já um pouco impaciente.

A festa parece que vai começar. Descem de uma Kombi, no estacionamento,


uma senhora negra, um pouco gorda, trajando um vestido branco estampado de flores
rosas e carregando sacos de presente e uma criança “rechonchudinha” vestida de
palhaço. As crianças, que aguardam do lado de fora, arregalam os olhos, umas se
retraem, outras correm e puxam a roupa do “palhacinho”.

Como dona Indiara, devido à “trabalheira” de acordar, alimentar e vestir quatro


crianças, só chegou na Mata Escura às nove horas. Sua ficha é a número setenta e
quatro e há ainda cerca de quarenta pessoas na sua frente.
79

Geraldina Barbosa, a senhora gordinha de cerca de sessenta anos que trouxe


consigo diversos presentinhos para distribuir às crianças, acompanhada da neta Dinah,
de onze anos, que está vestida de palhaço, é membro de uma igreja batista e oferece
voluntariamente às presas, há seis anos, todas as segundas­feiras, curso de cabeleireira.
Ela e a neta têm passagem livre para o pátio onde ficam as presidiárias, e não são
submetidas à revista.

Em frente ao balcão da recepção da penitenciária feminina fica um portão de


grades azuis que dá acesso ao local onde ficam as detentas. Um robusto agente
penitenciário, moreno claro, trajado com boina, camisa, calça, e sapatos pretos, que as
detentas apelidaram de “Van Dame”, controla a entrada e saída dos visitantes, que
aguardam em fila, encostados na parede, a hora de serem liberados para entrar.

Ultrapassadas as grades, há um corredor. Do lado esquerdo, observa­se


funcionários vestidos de branco da cabeça aos pés, ao redor de panelas, preparando as
refeições das internas e dos demais servidores da penitenciária. Alguns seguem
empurrando carrinhos de duas rodas com enormes vasilhas plásticas sobrepostas umas
sobre as outras. Funcionam no local um refeitório com extensas mesas, onde almoçam
os funcionários da penitenciária, e uma cozinha. Logo à frente, entre duas áreas abertas
com mato baixo no lugar de cimento, existe uma passagem coberta que leva até o
segundo prédio, onde vivem as presas. No final do corredor localiza­se o segundo
portão grades azuis escuras. Atrás dele várias detentas se concentram curiosas para ver
quem chega, ou ansiosas à espera de um funcionário que possa atendê­la em algo que
necessita. A passagem é controlada por um segundo agente penitenciário, que fica
indiferente àquela bagunça promovida pelas internas e concentra­se nos visitantes que
chegam. Também no local, antes de ultrapassar as grades, há, do lado direito, um amplo
salão com portas e janelas gradeadas – onde, nos dias de visita das crianças do Centro
Nova Semente, as mães permanecem com seus filhos – e, do lado esquerdo, uma cela
improvisada como pequena fábrica de velas artesanais, lugar onde algumas presas
trabalham, e uma sala com duas pequenas janelas, através das quais são distribuídas as
refeições das detentas.

Passando pelo segundo portão de grades azuis, chega­se ao pátio. Um odor


desagradável, o tão comentado “cheiro de cadeia”, acentua­se de forma considerável ali
80

na “praça da prisão”, no meio das presas, perto das celas. Ainda que aparente ter sido
recentemente lavado (o chão ainda está molhado), tarefa desempenhada pelas próprias
detentas de forma ainda mais caprichada neste dia especial, não se sente o “cheiro de
limpeza”, que reconhecemos facilmente através do aroma de produtos como
detergentes, desinfetantes ou sabão. Ao contrário, predomina no local uma mistura de
odores de água sanitária, creolina, cigarro, urina, suor, mofo... Um pequeno canal corre
por todo o pátio, acumulando água suja, de cor cinza escura.

­ Não é esgoto – explica uma das agentes penitenciárias – É a água acumulada da


chuva...

As paredes possuem velhos desenhos, quase apagados, feitos no estilo grafite de


rua com jatos de tinta spray. Há pintada uma bandeira do Brasil, representações de
pessoas jogando futebol, vôlei e natação, os anéis olímpicos, dentre outros. Nelas,
contudo, prevalecem sobre as cores desbotadas o cinza do concreto de cimento e o
verde do limo e dos matinhos que nascem em um canto e outro, nas brechas do
concreto.

Indiferentes, ou já acostumadas com estes detalhes, muitas presas divertem­se


como crianças com as músicas infantis que começam a tocar bem alto no aparelho de
som instalado com a caixa de som no local. Majoritariamente negras, magras e jovens,
as detentas vestem­se com roupas em tons de azul, amarelo ou laranja. Por questão de
segurança, os visitantes que chegam na penitenciária com roupas nessas cores são
barrados, obrigados a voltar para casa e orientados de que precisam vestir trajes em
outras cores quando em visita ao presídio, para que não sejam confundidos com os
presos. Também não se entra no local com bermudas ou saias curtas. “É proibido o uso
de roupas transparentes”, alerta um aviso escrito em uma folha de cartolina branca na
entrada da penitenciária.

Algumas presas já estão no pátio com seus familiares e filhos, passeando de um


lado para o outro, apresentando­os a outras internas ou a agentes penitenciários que
estão de vigia no local, observando a circulação de todos. As crianças recebem
saquinhos rosas com pipocas doces, pés­de­moleque, bombons e salgadinhos. O som e
duas amplas mesas com toalhas coloridas, ainda sem nada sobre elas, mas onde ficará o
81

lanche, foram colocados em frente a uma espécie de quadra que fica no meio do pátio.
Como não há cadeiras, mas poucos bancos, a maioria das internas e dos visitantes
sentam­se nas escadas que dão acesso às celas, hoje trancadas, ou no chão mesmo. Em
cima de duas pias de cimento localizadas ao lado da quadra reúne­se um grupinho de
sete detentas, todas muito jovens, que conversam entre si e observam a movimentação
no pátio, rindo de duas internas que dançam agarradas perto dali.

Uma grande quantidade de presidiárias veste­se e comporta­se como homem.


Usam bonés, bermudas, camisas pólo ou regatas, tênis, tudo masculino. Andam com as
pernas abertas, com gingado de malandro, fumam segurando o cigarro na boca com os
dedos polegar e indicador, engrossam a voz e falam bem alto, coçam o rosto e os
genitais, lançam olhares de cobiça sobre outras mulheres, agarram outras internas pela
cintura e dançam as músicas infantis de forma promíscua, ignorando a presença de
crianças e desconhecidos no local, ou com a real intenção de polemizar. Difícil precisar
se tal conduta é inerente a elas, se já eram assim antes de serem presas, ou se passaram a
comportarem­se assim devido à carência de sexo e de parceiros homens. Difícil
precisar... mas a convivência contínua, que muitas vezes se prolongará por anos e anos,
certamente facilita este tipo de atitude.

­ O homossexualismo aqui é circunstancial – explica a assistente social Lícia – Quase


todas essas presas são mães, inclusive, e têm mais de três filhos a maioria, mas foram
deixadas pelos companheiros...

No centro da quadra improvisada, único espaço aberto no meio do pátio,


meninos jogam bola com parentes e algumas detentas. Mais recuadas estão meninas
menores brincando de roda com o palhacinho e uma senhora negra, funcionária da
administração da penitenciária, vestida com um terno vinho mesmo naquele calor.
Batem palmas, agacham­se e levantam­se brincando de “vivo ou morto”, e curtem o
som de um CD dos palhaços Patati e Patatá.

Dó­ré­mi­fá fá­fá
Dó­ré­dó­ré ré­ré
Dó­sol­fá­mi mi­mi
Dó­ré­mi­fá fá­fá
82

Senhor Gildo, um velho funcionário da penitenciária, empolgado com o som,


chega dançando, fazendo as vezes de palhaço e divertindo as internas e os funcionários.
Imita cachorro fazendo xixi no poste, dança de pernas abertas, pára e rebola. Não há
como não rir. Uma das internas se aproxima dele, e o puxa pelo braço, quer lhe
apresentar a família.

­ Ele é um dos agentes mais antigos daqui – comenta uma agente penitenciária que
supervisiona as atividades do dia no pátio.

A cantigas dos palhaços Patati e Patatá que tocavam no som são substituídas por
antigas músicas da Xuxa. A maioria das presidiárias parece ter gostado da troca e
vibram com as músicas antigas da apresentadora infantil. Catam com mais empolgação,
sabem de có todas as letras das músicas, imitam as coreografias das Paquitas... Jovens,
as detentas de vinte a trinta anos parecem, neste momento, realizar uma viagem de
retorno à infância...

Todo mundo tá feliz?


Tá feliz!
Todo mundo quer dançar?
Quer dançar!
Todo mundo pede bis
Todo mundo pede bis
Quando pára de tocar
Mais um! Mais um!

Todo mundo tá feliz?


Tá feliz!
Todo mundo quer dançar?
Quer dançar!
Todo mundo pede bis
Todo mundo pede bis
Quando pára de cantar

Batendo palma
E dando um grito
Hei!
Levanta a mão passando energia
Batendo palma
E dando um grito
Hei!
Levanta a mão passando energia
83

Eu quero ver
Levanta a mão
Vem balançando, balançando a multidão
Eu quero ver
Tindolelê
Nheco Nheco
Xique Xique
Balance...

Quatro internas dão as mãos, formando uma ciranda, e aos poucos outras vão
aderindo à brincadeira. Acabam se divertindo mais que as crianças, que as observam.
Difícil olhar para aquelas mulheres de alegres semblantes, muitas delas ainda com jeito
de menina, e não se questionar qual o motivo que as colocou ali. O que essas mulheres,
aparentemente inofensivas, que ao som de Xuxa comportam­se como crianças no
recreio da escola, cometeram para serem obrigadas a viverem longe da sociedade e atrás
das grades? Ou o que fizeram com aquelas meninas que se transformaram nestas
“perigosas” mulheres? Escolha própria ou falta de oportunidade? Conhecendo­se as
histórias de vida de cada uma delas, talvez fosse possível identificar as respostas e
formas de prevenir que seus filhos, suas crianças, tracem o mesmo caminho delas. Mas
quem se interessa por isso? Quem se importa?

A detenta Elenilza, vinte oito anos, embora tenha cabelos negros surge no pátio
com ele partido ao meio e preso em dois, semelhante ao antigo penteado usado por
Xuxa, dançando e cantando:

Tô de bem com a vida


Tô de bem com a vida
Tô de vento em popa
Tô de vento em popa
Tô feliz pra burro
Tô feliz pra burro
Tô assim com o mundo...

­ Eu vivi esta fase da Xuxa quando era criança. Adorava imitar ela... Tá sendo muito
divertido! Agora quero pintar meu rosto igual ao do palhaço com a professora
Geraldina, licença, ta? E explica a detenta e sai de mãos dadas com outra interna até o
local onde a cabeleireira maquia as crianças e presidiárias com pasta d’água e batom
vermelho.
84

Mesmo com toda festa e alegria, impossível esquecer que estão todos dentro de
uma penitenciária. Os agentes penitenciários circulam de um lado para o outro, para
garantir a segurança, mas são indiferentes ao cheiro de maconha que parece vir de uma
das escadas. Sem entender direito o que significa aquele cheiro adocicado que chega até
os seus narizinhos, as crianças também brincam, indiferentes... Alguns parentes e
membros da igreja se entreolham num diálogo monossilábico:

­É?
­ É...
­ Agora?
­ Ô!

Não demora muito e três presidiárias descem uma das escadas com olhos
vermelhos e na boca um chiclete e um riso sarcástico. Sequer se intimidam com a
presença dos agentes (e nem eles com elas) e andam num jeito “não­tô­nem­aí” entre as
demais detentas, os visitantes e as crianças.

Jussara, uma das evangélicas que estão no pátio organizando as festividades


pede para diminuir o som da música e pega o microfone:

­ Olá irmãs! Quero que saibam que hoje é um dia muito feliz para nós. Estamos aqui
reunidos não só para brincar, dançar e comer bolo. É preciso ser feliz com Deus no
coração. Vamos aproveitar o dia! Quero chamar agora o nosso coral Rosa de Sharon.

Dezoito presas se organizam em três fileiras de seis, e uma interna, Maria


Carmem, de aparentemente cinqüenta e cinco anos recebe o microfone das mãos de
Jussara.

­ Agora nós, adultas, vamos homenagear as nossas crianças, avisa Carmem, pedindo
para colocar uma faixa de um CD evangélico e puxa o cântico:

Entoarei louvores
Não cessarei meu canto
Não roubarei a carne
Mesmo na dor,
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Para meu Senhor eu canto


Eu não posso retroceder...

As presidiárias cantam com firmeza na voz, com a cabeça voltada para cima e
comprimindo os olhos. Algumas apertam com a mão direita a camisa abaixo do seio
esquerdo, como se quisessem arrancar algo do coração e se emocionam. Ivete está no
pátio observando o coral quando a filha mais velha Sofia*, de sete anos, que corre ao
encontro dela e a abraça, empurrando o rosto contra sua barriga.

­ O que foi, minha filha? – pergunta a jovem detenta, assustada, afastando a menina de
seu corpo. Percebe que a garota está chorando.

­ Quero que a senhora venha logo com a gente – fala a menina, bem baixinho, para a
mãe.

Ivete franze a testa e abraça a menina bem forte. As duas choram. No mesmo
instante, a interna que tomava conta de Yara*, que estava dormindo na cela, traz a
neném para Ivete, que limpa com as duas mãos os olhos lacrimejantes e pega sua
filhinha recém­nascida no colo. Pode­se perceber mais três presidiárias pelo pátio,
abraçadas aos filhos, cantando e chorando.

Otaviano*, um garoto de onze anos, negro, magro e comprido, corre da quadra


até o local onde está o coral improvisado de presidiárias, pede o microfone e puxa outra
música evangélica. Mais dois garotos, de idades semelhantes à de Otaviano se colocam
em fila para cantar.

Meio dia. Cerca de vinte presas já formam uma fila ao lado do portão gradeado
que dá acesso ao pátio Com vasilhas na mão, é hora de pegarem o almoço. Algumas
delas dividirão o alimento com seus visitantes, que nada puderam trazer. A realidade de
muitos deles é tão triste que sequer têm ao menos um prato de comida como aquele que
é servido para as presidiárias. Por pior que seja aquela comida, ali as presas têm a
certeza de que se alimentarão diariamente. Lá fora, muitas delas, inclusive ex­
moradoras de rua, não teriam a mesma “sorte”, bem como seus familiares não têm...
86

REENCONTRO
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11 de outubro de 2006, quarta­feira, véspera do feriado nacional em que se


comemora o dia da padroeira do Brasil: Nossa Senhora Aparecida. A santa é tida pelos
católicos como defensora dos pobres, protetora dos que sofrem, patrona dos oprimidos,
mensageira de um sentimento de libertação e esperança.

Sua história teve origem no Brasil Colônia, quando supostamente no dia 12 de


outubro de 1717, os pescadores Domingos Garcia, Felipe Pedroso e João Alves foram
incumbidos de conseguir peixes para um banquete ao governador de Minas Gerais e São
Paulo, Dom Pedro Miguel de Almeida, que passava pela Vila de Guaratinguetá. Caso
não conseguissem boa pesca, seriam punidos. No rio Paraíba do Sul, várias foram as
tentativas, sempre frustradas, de conseguir peixes. Temerosos, os pescadores lançaram
mais uma vez a rede no rio e acharam o corpo de uma imagem. Em outra tentativa
encontraram a cabeça. Depois lançaram a rede novamente, e dessa vez pescaram com
fartura. A partir desse momento a cena foi considerada por muitos como milagre.

Apesar de não ser mais católica, pois se casou com um obreiro da Igreja
Universal e “aceitou Jesus”, Gilvaneide ainda acredita em milagres. Hoje, por exemplo,
é um dia milagroso para ela, dia em que terá a sua primeira saída da prisão. Perdeu as
contas de quantas orações fez até então para que este “sonho” se realizasse. Mas agora é
real. A ansiedade é tanta, mas tanta, que nem consegue se controlar. As pernas tremem.
Arrumou na sacola algumas poucas peças de roupa, até porque não tem tantas,
geralmente usa as fardas amarelas ou azuis escuras fornecidas pela penitenciária.
Quando é avisada por um agente de que sua sogra a aguarda na recepção, a presidiária
abre um largo sorriso e o segue. Emocionada, dá um forte abraço na mãe do marido,
dona Alzira*, uma tímida senhora evangélica de sessenta e poucos anos. Gil recebe da
segurança um documento em que consta que ela está autorizada a deixar
temporariamente a prisão, devendo voltar em sete dias. A presidiária lê as
recomendações escritas no papel, inclusive o horário em que deve voltar, às dezesseis
horas do dia 17 de outubro, e o guarda com cuidado na sacola.

­ Pode ir – ordena uma das agentes.


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­ Obrigada – responde a detenta.

A tranca dos portões azuis marinho é aberta por uma agente penitenciária e, de
mãos dadas com a sogra, Gilvaneide sai. No primeiro momento a forte luz do sol da
tarde que se iniciava incomoda um pouco seus olhos, acostumados com o ambiente
sombrio da prisão. É verdade que Gil periodicamente costuma ultrapassar aqueles
portões, seja para ser conduzida a algum hospital ou, nos dias de visita íntima, para ir
até o presídio onde se encontra o marido, mas desta vez é diferente: ela não está
algemada, nem acompanhada por policiais e tampouco será conduzida pelo grande
furgão cinza da SJDH. As mãos suadas de tanto nervosismo estão livres. Acompanhada
da mãe do marido, Gilvaneide segue andando até a saída do Conjunto Penitenciário do
Estado. No momento em que ultrapassa a pé os grandes portões cinzas, aí sim a detenta
sente a liberdade. A sensação é tão forte que chega a doer. Gil chora. Parece um bebê
que acabou de nascer e de se deparar com o mundo. A diferença é que o recém­nascido
chora por perder o aconchego do útero materno para enfrentar um ambiente
completamente novo, que o assusta; as lágrimas da presidiária, contudo, são porque,
mesmo espantada, é para esse mundo que ela gostaria de voltar, definitivamente.

Caminhando com a sogra pela beira da estrada da Mata Escura em direção ao


Centro Nova Semente, Gilvaneide sente­se assustada com todos aqueles veículos
passando tão próximos a ela. Vez ou outra se esquiva, fecha os olhos e pára
subitamente.

­ O que foi, Gil? – pergunta dona Alzira.

­ Não sei, to meio ariada... – explica a detenta, mostrando­se confusa.

Os mais de seis anos de prisão fizeram com que Gilvaneide se acostumasse com
paredes e grades limitando seu caminhar. Na prisão, sabe exatamente onde ficam as
celas, o pátio, a fábrica, as salas da administração... Tanto que se lhe vendassem os
olhos, ainda assim saberia se deslocar ali dentro, afinal não há tantos lugares para onde
ir. Agora, em liberdade, os poucos metros de estrada que separam a penitenciária do
Nova Semente eram suficientes para provocar na presidiária reações de espanto. Se a
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sogra não estivesse com ela, não saberia sequer caminhar. Perplexa, ficaria estática, ou,
assustada, sairia correndo.

Como já havia avisado por telefone à Irmã Adele que passaria no abrigo para pegar o
filho, não foi nem preciso aguardar tanto no Centro Nova Semente. A freira,
acompanhada de uma das babás, trouxe Tiago até ela.

­ Oh, meu filho, quanta saudade! – falou Gil, abraçando bem forte o garotinho – Você
vai passar uns dias com a mamãe, vai?

Tímido, o menino balançou a cabeça em sinal afirmativo.

­ Desaprendeu a falar, Tiago? Reponde direito à sua mãe – mandou Irmã Adele,
brincando com o menino, sacudindo seu cabelo – Vai ou não vai?

­ Vou! – respondeu enfaticamente o garoto, arrancando sorrisos de todos.

Ao mesmo tempo em que se despedia da freira, agradecendo e pedindo que ela


não se preocupasse pois voltaria da casa da sogra e deixaria o menino novamente no
Nova Semente em alguns dias, Gilvaneide observava o amplo jardim e a grande casa
que abriga seu filho, cercada de verde e tão próxima ao Complexo Penitenciário, que,
com algum esforço, se pode enxergar dali, logo após as árvores.

A presidiária, com o filho no colo, deu um beijo na face da freira e seguiu com a
sogra até o ponto de ônibus, onde esperaram o veículo que as conduziriam até Pirajá,
bairro onde fica a casa de dona Alzira. Embarcando no ônibus, as duas passaram pela
roleta e Gil quase cai com o menino quando o carro começou a se deslocar. Sentou
rapidamente numa cadeira próxima à janela e pôs o menino no colo enquanto aguardava
a sogra, que pagava as passagens. No trajeto, Gilvaneide ficava com os olhos perdidos,
sem saber ao certo se prestava atenção no filho ou se reparava pela janela as casas, os
carros, as pessoas... Aquela confusão de imagens que passavam tão rapidamente pelo
seu campo de visão, provocou náuseas e vertigens em Gil, que acabou ficando com uma
leve dor­de­cabeça. Depois da “longa” viagem, que durou quase trinta minutos, é
chegada a hora de descer do ônibus. Com todo cuidado, a detenta salta do veículo com o
90

filho, acompanhando dona Alzira. Caminham por alguns metros, e chega até uma
singela casinha pequena, mal pintada e rebocada, no meio de outras tantas como ela.

­ É aqui que eu moro, Gil – explicou Alzira.

­ Que benção, minha sogra, ter uma casinha sua assim.

Qual foi o espanto de Gil quando, entrando na casa, depara­se com mais dois de
seus filhos, que correram até a porta ao ouvir a movimentação. Mãe e filhos não se viam
desde que Gilvaneide foi presa, há exatos seis anos e sete meses, mas ela reconheceu
imediatamente a carinha das suas crianças.

­ Antônio, Damiano... São vocês meus filhos?!

Chorando muito, as crianças correram para os braços de Gilvaneide, que se pôs


de joelhos, também muito emocionada, abraçando e beijando os meninos .

­ Mamãe, mamãe!

­ Meus filhos... – chorava a detenta, parando e agarrando cada um pelos braços para
poder olhá­los por inteiro.

Quando foi decidido que Gilvaneide sairia da prisão no feriado em que se


comemora o Dia das Crianças e passaria uma semana em sua casa, dona Alzira juntou
umas economias e com as informações que obteve com o filho preso foi até Conde
pegar as duas crianças, de dez e doze anos de idade, que estavam com a madrasta de
Gil, dona Rute, uma senhora paralítica e doente. Alzira já havia prometido a Gilvaneide
que traria os meninos, mas a detenta não cogitava que isso pudesse acontecer diante dos
poucos recursos financeiros da sogra.

­ Ô meu Deus! Minha sogra, a senhora conseguiu! Obrigada, muito obrigada – repetia
Gilvaneide chorando abraçada aos filhos.
91

Dona Alzira estava emocionada, mas, tímida, escondeu o choro e foi até a
cozinha, onde estava sua filha Denise*, que cuidava dos meninos enquanto a mãe estava
fora.

­ Minha mãe, este é meu irmãozinho? – perguntou Antônio, apontando para Tiago.

­ Ai – respondeu Gil enxugando as lágrimas – é ele sim.

Tiago, desconfiado, tentando entender melhor o que acontecia, observava os


irmãos, ainda desconhecidos.

­ Vem cá meu filho, estes são seus irmãos Antônio e Damiano, lembra que eu te falei
deles? Vem falar com eles!

O menino se aproximou dos irmãos timidamente.

­ Oi – respondeu.

­ Me fala seu nome – pediu Damiano.

­ Tiago.

­ Tiago, eu sou seu irmão Damiano e este é Antônio, ta?

O garotinho balançou a cabeça afirmativamente.

­ Cadê o abraço? – incentivou Gilvaneide, agora mais calma, mas ainda muito
emocionada, assistindo o primeiro contato dos filhos.

Tiago se aproximou dos irmãos mais velhos. Damiano pegou o menino no colo,
o abraçando e Antônio os enlaçou. Um abraço triplo. Gilvaneide, que assistia a cena,
deixou cair duas lágrimas, mas logo as enxugou com as mãos e sorriu. Era um sonho.

­ Mainha, meu irmãozinho é tão bonitinho – afirmou Damiano.


92

­ É sim, todos vocês são lindos – derreteu­se a mãe.

Rapidamente entrosados, os meninos seguiram Tiago, que queria mostra­lhes um


brinquedo que havia acabado de ganhar na creche. O menino tirou da mochila um
caminhãozinho de brinquedo cheio de vaquinhas, cavalos, porquinhos e diversas
miniaturas de animais. Apesar da diferença de idade, os três sentaram no meio da sala e
começaram a brincar de “fazendinha”.

Ali bem perto, Gilvaneide não interferia na brincadeira, ficava olhando,


olhando...

­ Gil, deixa os meninos aí e vem aqui – chamou dona Alzira.

Obedecendo a sogra, a presidiária vai até a cozinha, onde é apresentada à


cunhada Jussara. Agradece mais uma vez à dona Alzira pela realização daquele sonho.

­ Eu não te disse que ia fazer isso? – pergunta dona Alzira.

­ Sim, mas a senhora... Sem dinheiro... Eu nem tenho como ajudar.

­ Deixa disso, Gil. Você quer comer alguma coisa?

­ Não, obrigada.

­ Então vem conhecer a nossa casa.

Dona Alzira pegou a nora pelo braço e foi apresentando a ela cada cantinho da
pequena casa: a cozinha, o banheiro, o quarto dela, o dos meninos (que era do seu filho
preso), a lavanderia e o quintalzinho, onde há, no fundo, o “puxadinho” onde a filha
Denise mora com o companheiro. Gil achava tudo lindo.

­ Olha, Gil, aqui a geladeira, o fogão, tem biscoito ali no armário, fique à vontade –
informou a dona da casa – Agora vou cortar uns temperos para fazer uma sopa.
93

­ Vou te ajudar – se prontificou Gilvaneide.

­ Que nada, vá tomar banho, que você está suada, e fique um pouco com seus filhos,
vocês têm muito para conversar – retrucou dona Alzira, avisando: – Pode deixar que
amanhã a gente vai fazer um feijão.

Passando pela sala em direção ao quarto, Gilvaneide pára pra observar o


entretenimento dos filhos com os brinquedos. Fica em pé, bestificada, como se a
qualquer momento fossem beliscá­la e tirar daquele sonho. Mas sim, era verdade.

­ Mãe, senta aqui – sugere Antônio, apontando para o sofá.

Sem cogitar desobedecer a criança, Gil senta no sofá de dois lugares forrado
com uma capa azul. Tiago levanta e pede pra mãe desamarrar o tênis dele, pois quer
calçar a sandália de dedo, para ficar igual aos irmãos. A mãe do menino pega a mochila
dele e procura o calçado, achando­o enrolado dentro de um saco.

­ Meus filhos, mamãe vai tomar banho e depois dá banho em vocês, ta?

Os meninos responderam que sim e continuaram brincando. A detenta se dirigiu


até o banheiro e saiu de lá em menos de dez minutos.

No quarto, olhava­se num pequeno espelho, penteando seus longos cabelos. Pela
janela percebeu que o sol já estava mais fraco. Ficou preocupada. Meu Deus, pensou, é
cinco horas da tarde, é a hora da tranca... Gilvaneide jura que naquele momento chegou
a ouvir os apitos.

Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii

“Meu Deus, eu não acredito que eu to presa”, insistiu no pensamento. Correu até
a sala, a porta estava fechada e a janela aberta. Os seus filhos estavam ali na sala. Ouviu
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risadas de meninos virem da rua. Ficou naquela confusão mental por alguns instantes e
parou: “eu não estou presa, estou na rua! Deve ser os meninos da vizinhança jogando
futebol”. Riu de si mesma. Talvez não fossem os meninos a apitar na rua, Gilvaneide,
após tantos anos, pode ter condicionado a mente à “hora do apito”, a hora de ser
trancada na cela.

­ Não, Deus, eu to na rua, eu to em liberdade!, falou para si.

Gilvaneide, após conformar­se, porém um pouco ainda assustada, foi preparar as


roupinhas de seus filhos para o banho. Primeiro a de Tiago. Tirou da sacola e pôs em
cima da cama. Depois se dirigiu até uma pequena e velha cômoda de madeira escura e
abriu a gaveta onde dona Alzira disse estar as roupas dos filhos mais velhos. Olhando
aquelas vestes surradas e muitas vezes furadas, Gil chorou. Aquilo a “trancou” por
dentro, porque, costureira, se tivesse lá fora, não deixava que as roupas ficassem
daquele jeito.

Os três meninos entraram no quarto e a mãe disfarçou o choro, convidando­os


para tomarem banho.

­ Podemos tomar nós três, exclamou Damiano – entusiasmado.

­ Só se não fizerem muita bagunça, permitiu a mãe – imprimindo risos nos rostinhos das
crianças.

Antônio, no entanto, disse que tomaria banho sozinho. Gilvaneide não objetou.
Depois do banho, enquanto penteava Tiago, Gil viu um livro infantil.

­ De quem é?

­ É meu – respondeu Damiano.

Os meninos chegaram há uma semana da cidade de Conde e estão estudando


numa escola pública próxima à casa de dona Alzira. Foi ela quem conversou com a
diretora para ajudar na transferência das crianças. Como chegaram há pouco tempo e já
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no meio do ano letivo, as crianças ainda não se adaptaram aos colegas e sofreram alguns
mal­tratos por conta de alguns colegas. O mais novo mostrou para a mãe a mãozinha
com pequenas marcas.

­ Foi um menino que ficou furando minha mão com o lápis.

Gilvaneide entristeceu, mas não chorou na frente deles.

­ Ô mãe, vou pedir muito a Deus, orar pela senhora, para sair logo de lá, ficar aqui com
a gente, porque não é muito bom sem a presença da senhora. A gente também sofre. A
gente vai para escola e os colegas batem na gente...

Procurando forças em si para dar para os filhos, Gil respondeu:

­ Calma, meu filho, mamãe vai conseguir a condicional, vai sair dali, tenha calma. Isso
vai passar. Mamãe vai voltar a tomar conta de você tudo de novo. Não fique assim.

­ Mãe, porque a senhora ta presa? – perguntou Antônio.

­ Não filho, mainha não ta a fim de falar nisso agora – respondeu sem graça a
presidiária.

­ Ta bom, mainha.

Após jantar com a sogra e os filhos, Gilvaneide, cansada, avisou que iria dormir,
Arrumou as camas dos filhos e um colchão no chão. Os meninos vieram em seguida.
Foi bastante diferente dormir em um quarto com os filhos. Na penitenciária, não
costuma dormir direito. Com medo da cadeia “virar” a qualquer momento, deita e não
sabe se dorme ou se fica acordada. É muito risco dividir a cela com duas, três, quatro ou
até cinco presas. Mas na presença dos filhos, conseguiu dormir. Sentia­se mais segura,
com amor, com carinho. Ali, não estava devendo nada pra Justiça. Dormiu
tranqüilamente.
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No outro dia, após o café­da­manhã, dona Alzira chamou Gilvaneide para ir até
o mercado com ela. Compraria alguns produtos para que Gil fazer o feijão, conforme
tinha prometido. A detenta a princípio ficou receosa em pensar como as pessoas na rua
reagiriam à sua presença. No supermercado, aliviou­se. Ninguém a tratava como presa,
mas como uma pessoa normal! Ficou feliz. De volta para a casa da sogra, estava
ansiosa. Como seria cozinhar novamente? Cortar os temperos foi fácil, difícil foi
enfrentar, pela primeira vez o fogão, depois de tanto tempo... Pegava a panela e
começava a tremer.

­ Oxente, Gil, porque você está assim, nervosa? – questionava dona Alzira.

­ Não sei, acho que é muita ansiedade, muito tempo sem vir pra beira do fogão, né?

Ao invés de mexer no botão do fogão, acabou ligando o botão do forno. Com tanto
nervosismo, acabou “salgando” o feijão, mas nos outros dias acabou acertando.

Além do mercado, Gil também foi levada pela sogra na igreja evangélica do
bairro e apresentada a algumas vizinhas, sempre acompanhada dos filhos. Sentia­se uma
pessoa de verdade, que não deve nada para a Justiça. Tinha liberdade para dormir e
acordar, lavar e passar as roupas das crianças, conversar com as pessoas, abraçar os
filhos toda hora... Meu Deus, eu não acredito que eu estou fazendo tudo isso, pensava
constantemente e agradecia aos céus, entre uma lágrima e outra. Mas chegou o dia de
voltar e Gilvaneide deixou tudo arrumadinho desde cedo, não podia se atrasar.
Enquanto organizava na mochila de Tiago suas roupinhas, era abordada pelos dois
outros filhos.

­ Ô mainha, meu irmãozinho, não leve ele para creche de novo não. Deixa ele aqui com
a gente.

­ Meus amores, ele têm que ir.

Gil sabe que, na creche, o filho menor tem todo o conforto, tem escola, médico...
Tudo que não pode dar às outras crianças. Além disso, seria muito trabalho e gasto para
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a sogra cuidar daquele menino pequeno. Consolava os meninos afirmando que todas as
quartas­feiras, nos dias de visita à penitenciária, os três se reencontrariam.

Foi triste deixar as crianças, mas, para se consolar, pensava que ao menos teria
eles mais por perto e que poderia vê­los nas visitas. Alegrava­se. Até então quase nunca
tinha visita! Orientou a sogra a ir o mais rápido que ela pudesse na penitenciária para
fazer as carteirinhas dos meninos no Serviço Social.

­ A senhora tem que levar a sua identidade e os documentos dele, avisou.

Gilvaneide não precisou da companhia da sogra para voltar à penitenciária.


Dona Alzira, Antônio e Damiano levaram­na no ponto de ônibus. Antes de embarcar,
deu um longo abraço nos dois filhos, e subiu no automóvel com Tiago.

­ Fiquem direitinho, obedeçam dona Alzira e estudem, ta? Na próxima semana vocês
vão me ver.

A presidiária ficou sensibilizada com o choro dos meninos, mas tinha que ir.
Queria chegar cedo, levar Tiago na creche e depois voltar para a prisão. Com a ajuda do
motorista de ônibus, não teve erro, desceu no ponto certo, deixou o menino e voltou
pela beira da estrada, ainda um pouco assustada com os carros passando tão rente perto
dela, pois não há passeio por ali. Foi a primeira presa a voltar para a penitenciária.
Chegou às treze horas, três horas antes do que estava marcado no papel. Recebeu os
elogios da segurança, foi revistada e voltou para cela.

***

Uma das internas que também havia recebido o benefício da saída na semana do
Dia das Crianças não voltou. Solange, trinta anos, tem quatro filhos, um deles, Matias*,
um menino de três anos de idade que nasceu na prisão e residia no Centro Nova
Semente. Como das outras duas vezes que teve saída da prisão, Solange pegou o
menino no abrigo e disse que o levaria com ela para ver a família em Euclides da
Cunha, onde os seus outros filhos residiriam com a avó. Realmente esteve lá, conforme
a sua mãe informou à Irmã Adele, mas pegou as crianças e sumiu.
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Filha de uma trabalhadora rural e de um motorista, Solange assistiu a separação


dos pais aos dois anos de idade, e acabou ficando com o genitor, que se casou
novamente e teve mais cinco filhos. Como tinha relacionamento difícil com a madrasta,
saiu de casa aos onze anos de idade e foi viver com a mãe, com quem permaneceu por
um ano. Depois resolveu morar na casa de amigas. Conheceu um rapaz e passou a viver
com ele quando tinha dezessete anos. Nessa mesma época, o pai morreu. Aos dezoito,
conheceu outro homem e da relação de cinco anos teve duas meninas, hoje com doze e
onze anos de idade. Separou­se pois o marido era mulherengo. Ficou apenas com a filha
menor e virou doméstica. Teve um novo relacionamento, do qual nasceu Manoel* mas
não chegou a viver junto ao pai da criança.

Certo dia tinha que fazer uma faxina em uma “casa de família”. Como não podia
levar o bebê e a menina de seis anos, pediu à vizinha para ficar com as crianças. Quando
voltou para casa, a menina estava assustada e acabou denunciando que foi molestada
pelo marido da vizinha. Solange dirigiu­se à casa da vítima e deferiu contra ele um
golpe de faca. Foi fatal. Ao saber do ocorrido, o próprio pai de sua filha a denunciou à
polícia. Na delegacia, foi encaminhada para Serrinha, onde se relacionou com um
detento e engravidou do quarto filho. Condenada e oito anos de reclusão em regime
fechado, foi transferida para a penitenciária feminina, em julho de 2002, grávida de seis
meses. Matias nasceu na véspera do Natal daquele ano. Em julho de 2006 foi
beneficiada com a mudança de regime de fechado para semi­aberto. As duas filhas
estavam vivendo com o pai e depois passaram a viver com a avó materna. O pequeno
Manoel desde 2001 foi adotado por uma família de Euclides da Cunha.

A detenta de um pouco mais de um metro e meio de altura, branca de olhos


verdes e cabelos cacheados na altura do pescoço, que costuma usar presos, tem uma
tatuagem de uma rosa no braço direito. Tinha bom comportamento na prisão, e por isso
ganhou o benefício. Como está foragida, se recapturada, terá que cumprir os quatro anos
de prisão que lhe restam em regime fechado.

O sumiço da presidiária com a criança causou aflição à Irmã Adele. O menino


vivia no Nova Semente desde que tinha sete meses. É uma criança muito esperta,
“menino danado” como dizem as babás. A freira foi até a penitenciária feminina
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conversar com a diretora, que tem uma foto do menino vestido de caipira em cima da
mesa, para saber o que fazer. Silvana Selém informou que a detenta já foi denunciada à
Polinter e ao juiz de execuções penais.

­ Não comunicamos ao Juizado de Menores que a fugitiva está com crianças porque,
como você sabe, não temos esta formalização com eles – explicou a diretora, que pediu
à Irmã Adele que mantivesse a calma.

De acordo com o promotor de Justiça de execuções penais José Renato de


Mattos todos os presos do regime semi­aberto e aberto que já cumpriram um sexto da
pena têm direito a até cinco saídas temporárias por ano. No regime aberto, e só nele, as
presas que tem filhos menores de dezoito anos têm direito à prisão domiciliar, como
informou. Mas este não é o caso de Solange, que tinha cumpria a pena em regime semi­
aberto. Quanto ao seu direito de ficar ou não com seus filhos durante as saídas
temporárias da prisão e até viajar com eles, tanto José Renato como Geder Gomes
foram unânimes em afirmar que as presidiárias o tem.

­ A mãe tem o direito de pegar a criança. A criança não está custodiada, quem tem a
liberdade limitada é a mãe. Logo, se ela está liberada por alguns dias, ela tem total
liberdade de pegar o seu filho e levá­lo com ela. Agora isto é uma distorção porque se
ela tem a intenção de fugir, obviamente que ela não vai deixar a criança ali [na creche].
Ela vai levá­la. Só que você não pode utilizar a criança como elemento de retenção, para
que a presa possa voltar – comentou Gomes.

A promotora de Justiça da Infância e Juventude Ana Bernadete, no entanto,


considerando que os dirigentes de entidades de abrigo são equiparados pelo ECA ao
guardião para todos os efeitos de direito10, ainda que tenham a obrigação de estimular a
preservação dos vínculos familiares, uma vez que o abrigo é uma medida de proteção11,
explica que a criança não deveria ser entregue tão informalmente pelo Centro Nova
Semente à mãe presidiária. Ana Bernadete esclarece:

10
Artigo 91, parágrafo único.
11
As medidas de proteção, segundo o art. 98 do ECA, são aplicáveis sempre que os direitos das
crianças forem ameaçados ou violados, seja por ação ou omissão do Estado ou por falta, omissão ou
abuso dos pais. O artigo 101 estabelece o abrigamento como uma das medidas de proteção.
100

­ A mãe não pode chegar sem nenhuma autorização e levar a criança. É por isso que há
a necessidade da dirigente do abrigo comunicar à autoridade competente12 sobre o
abrigamento dessas crianças, conforme estabelece o ECA, até para desenvolvê­lo de
uma forma mais segura. A mãe apenada não pode ir ao abrigo, simplesmente pegar o
filho e sair. Eu acredito que para que ela possa pegar o filho e levá­lo com ela é
necessário que a autoridade competente a autorize. Tem que haver um controle na saída
dessas crianças. A mãe tem o direito, mas deve cumprir o procedimento correto.

A freira italiana, no entanto, permitiu a saída da criança porque para ela seria um
direito da mãe permanecer com o filho. Pela informalidade do abrigamento e diante da
omissão do Juizado da Infância e Juventude quanto às necessidades do abrigo, há agora
uma criança do Centro Nova Semente em local desconhecido com a mãe fugitiva. É a
primeira vez que Irmã Adele enfrenta uma situação como esta, mas a única coisa que
lhe resta é tentar estabelecer contatos com a mãe da presidiária para ver se consegue
notícias da criança.

O juiz da Infância e Juventude não foi encontrado em tempo hábil para comentar
o assunto.

***

Os primeiros contatos da presidiária Gilvaneide com seus filhos deixaram nela


um misto de sentimentos de alegria e de dor. Alegria pois sonhou demais em ter os
filhos mais perto, uma vez que não os via há anos. E de dor porque se sentia culpada
pela carência afetiva e financeira de seus meninos, e por não poder ficar com eles. Seus
filhos mais velhos, de dezenove e dezoito anos, ficaram em Conde com o avô paterno.
Segundo a detenta eles não quiseram vir porque estavam trabalhando e por que não têm
dinheiro. Mas é difícil acreditar que, residindo com a família do pai assassinado, os
jovens não tenham reservas em relação à mãe e por isso nunca tenham a visitado.

Após a saída e o reencontro com os filhos, a presidiária mostrava­se mais


disposta e feliz na penitenciária. Comentava com as assistentes sociais e alguns

12
As autoridades competentes são o Juizado da Infância e Juventude, o Conselho Tutelar e o
Ministério Público.
101

funcionários sobre a sua felicidade e como foram as experiências fora da prisão.


Comparava os momentos vividos com os da rotina do presídio.

­ Sabe o que eu fazia na hora em que aqui a gente é trancada? Era hora de dar banho nos
meus filhos, botar pra jantar, depois arrumava a caminha deles, ligava a televisão
pequena no quarto, a gente deitava tudo junto, tudo agarradinho, e ficava ali assistindo...
Assistir televisão lá era uma emoção. Um deitava de um lado, o outro do outro. E aí
todos brigavam por um pouquinho de colo, conta a presidiária, entre risos.

Dormir com os filhos foi um momento mágico. Gil não cansa de comparar:

­ É muito diferente. Com os filhos ali perto, me senti mais segura, com mais amor, com
mais carinho. E aqui numa cela não. A gente deita pra dormir, mas não sabe se dorme
direito, ou se não dorme e fico acordada. É muito risco ficar aqui... E a presença dos
meus filhos foi ótima, eu consegui dormir. Me senti assim, em liberdade, pude abraçar
meus filhos com vontade, o horário de dar banho neles, de vestir, de dar comida, fazer o
arrozinho deles... Consegui lavar as roupinhas deles, consegui passar... Mas daqui que
me acostumasse, foi três dias para eu fazer as coisas direito. Toda hora eu “meu Deus eu
nem acredito que to aqui fazendo isso, que to aqui lavando e estendendo no varal as
roupinhas dos meus filhos”. Era eu fazendo tudo e as lágrimas caindo...

O semblante de saudades muda quando fala da volta à prisão:

­ Quando eu cheguei aqui, pensei, “meu Deus, ontem tava bom, hoje ta tudo horrível de
novo”. Tem que chamar muito por Deus, porque depois da hora da tranca, a gente não
pensa coisa boa, só vem coisa ruim na cabeça. A gente pensa em deitar, e depois não
acordar. Porque um momento ta tudo bem, em outro as presas podem “virar” e sobrar
pra gente que não tem nada a ver... Aí temos que ficar parada e não falar nada, porque
pra morrer é daqui pra li.
102

AO LADO DO PAI
103

O comportamento, o jeito articulado de falar e a inteligência de Milene* não


condizem com sua idade: nove anos. Para a pergunta infantil “o que você quer ser
quando crescer?”, ela responde:

­ Eu quero ser médica e fundar uma creche para ajudar as crianças, porque hoje em
dia as coisas tão difícieis e é bom ajudar as pessoas, sabe? Comprar um terreno e ir de
pouquinho em pouquinho fazendo. Eu quero educar, ensinar as crianças a serem
educadas. Muitas pessoas querem ajudar com interesse, mas não tem que ter isto, tem
que educar.

A menina nasceu e morou na penitenciária até os quatro anos e cinco meses de


idade. Filha de pai e mãe presidiários, quando bebê chegou a ficar sob a guarda de uma
tia, mas por pouco tempo, e voltou a morar com a mãe na prisão. Acabou absorvendo o
comportamento das detentas.

­ Faça o baculejo, prezada! – falava a menina sempre que via uma das agentes
penitenciárias, repetindo os termos utilizados pelas presas. “Baculejo” é o nome que as
presidiárias dão à revista e “prezada” é como chamam as agentes.

Levada para o Centro Nova Semente por uma das funcionárias do Serviço
Social da penitenciária, Milene estava com inflamação vaginal, verminose e bastante
abatida. Não era acostumada a almoçar e só queria se alimentar na hora em que ela
sentisse vontade. Nunca tinha ido à escola e faltava à menina hábitos sociais.
Costumava xingar muito e fazer gestos obscenos. A equipe educacional do Nova
Semente encontrou dificuldades em lidar com a garotinha, que não se deixava orientar.

­ Milene, não pode comer sem lavar as mãos... Milene, você vai quebrar! Milene, tire a
mão daí... Milene, volta aqui!!! Milene, pára de fazer este gesto, isso é feio! – repetiam
as educadoras.

­ Vá tomá no #*`! – xingava.


104

A menina saía da sala em plena aula, mesmo com os alertas das professoras. Não
era educada a escutar. Na creche, estava pouco se lixando para as brincadeiras e
atividades infantis. Só gostava de cantar músicas inadequadas à sua idade, com palavras
de baixo calão, e de dançar sem nenhuma compostura. Para cada abordagem tinha uma
resposta na ponta da língua. Era ágil no pensamento e nas respostas. Tudo revelava uma
criança inteligente, mas pouco orientada. Se dependesse de sua vontade, voltaria a viver
com a mãe, como manifestava nas visitas. Proibida de permanecer na penitenciária,
local onde cresceu e viveu até então, voltava revoltada para o Nova Semente.

Com o tempo, foi adquirindo melhores hábitos, um bom rendimento escolar e


passou a se comportar como uma verdadeira criança, precoce ainda em algumas
atitudes, mas apenas uma criança.

Há mais ou menos dois anos a mãe de Milene deixou a prisão. Não tinha para
onde ir, mas insistia em ficar com a filha. Preocupada, Irmã Adele resolveu comprar
uma pequena casinha no bairro e deu de presente à ex­presidiária, que logo arranjou um
companheiro e passou a viver com ele na casa. O seu novo marido costumava maltratar
e xingar a menina. A mãe de Milene a devolveu, menos de um ano depois, ao Centro
Nova Semente, e lá ela está até hoje. Se questionada, a menina diz que a decisão de
voltar foi dela.

­ Eu voltei porque cresci e fui educada aqui. Estava com saudades, falei pra minha mãe
que queria voltar e Irmã Adele deixou. Então eu fico durante a semana aqui e no
sábado e domingo fico com minha mãe. Lá eu fico com meu irmãozinho que nasceu e
ajudo ela. Também ligo o som e fico dançando, porque eu adoro dançar. Tenho até um
CD de Rebeldes13.

Brigada com o ex­marido, a mãe de Milene não permite que a menina veja o pai,
que ainda está preso. Durante todo o período em que ficou com ela, Milene ficou sem
vê­lo e queixava­se de muitas saudades. Irmã Adele, considerando uma estupidez
afastar a menina do convívio do pai que a menina tanto ama, desobedeceu a vontade da
ex­presidiária e a levou à PLB, onde o pai da garota estava no “seguro”.

13
Grupo musical mexicano formado por adolescentes surgido a partir da telenovela juvenil
Rebeldes, exibida no Brasil pelo SBT.
105

Atordoado e arredio, sem saber onde os agentes o levavam, Silva tomou um


choque ao ver a filha. Emocionado, mas envergonhado das condições em que se
encontrava, abatido e sujo, o pai de Milene gritou com os agentes para que o levassem
dali. Milene chorou. Silva, sensibilizado, acabou chorando muito, agarrado à menina.

­ Foi complicado e dramático, mas foi ótimo para os dois – explicou Adele.

No último dia dos pais Milene recebeu uma carta do pai, dizendo que a amava e
que queria que ela estudasse bem para passar de ano. A menina leu e guardou a carta
bem escondida no fundo do seu armário, que fica no quarto que ela divide com mais
sete crianças no abrigo. Cada uma delas tem seu próprio armário.

­ Minha mãe não pode ver, Irmã, senão ela briga comigo...

Aos estranhos, Milene não conta que tem o pai preso. E diz não se lembrar onde
viveu antes de chegar ao Nova Semente. Mentir sobre estas informações da sua vida, ou
simplesmente omiti­las, é um mecanismo de defesa, pois sabe que assim se protege do
preconceito das pessoas.

­ A nossa vida não interessa a ninguém. Se eu falar na escola, os meninos vão ficar
mangando. Porque eu sou isso e aquilo e pe rê rê, pe rê rê. Nem as professoras sabem.
Os meninos são muito pertubados.

Milene diz que não sente vergonha do pai, que gosta de vê­lo, e revela uma
maturidade admirável ao comentar sobre a prisão dele:

­ Eu fico triste quando vejo meu pai lá preso com tanto lugar bom e bonito para ele
ficar, porque hoje em dia as coisas está difícil, mas ele podia muito bem não estar ali.
Pelo menos ele poderia estar trabalhando, não ter aquela vida, ter a própria casa dele,
mesmo simplezinha. Porque tem muita pessoa lá [no presídio]. Ficar em casa é bem
melhor que estar num lugar horrível, né?
106

Os presidiários também têm direito a receber a visita dos filhos, mas é sempre
mais complexo, devido ao risco de rebeliões e à violência. Além disso, a quantidade de
homens em cada pavilhão torna difícil que o preso seja localizado; é preciso avisar com
antecedência sobre a visita, ou ter paciência para esperar.

As crianças do Centro Nova Semente que têm pais presos são levadas por Irmã
Adele poucas vezes por mês, uma de cada vez, e ficam apenas meia hora com os pais,
em uma sala de visita, sob olhar atento da freira e dos guardas. Há pouco tempo as mães
das crianças, que também são presas, podiam levá­las ao encontro dos pais
semanalmente, passando o dia inteiro com eles nos estabelecimentos masculinos. Mas,
observando comportamentos estranhos nas crianças, as assistentes sociais conversaram
com as detentas e com Irmã Adele, e decidiram pôr fim ao encontro pai­mãe­filho,
como explica Simone Lima:

­ Aconteciam casos em que as crianças presenciavam a relação sexual dos pais, pois não
tinha como separar... Elas ficavam nas celas, às vezes em celas com outros internos e
suas famílias, e viam o contato íntimo de outras pessoas também. As crianças de três,
quatro ou cinco anos chegavam comentando, narrando o que assistiam, mesmo que
inocentemente, através de brincadeiras e gestos. Agora a criança não vai junto com a
mãe para estes encontros. Irmã Adele leva em outra oportunidade. Infelizmente não
existe mais o encontro da família completa, mas porque assim é melhor para os
menores. Mas acontece no Dia das Crianças ou no Natal, se previamente organizado.

Brigite é uma das crianças do Nova Semente que têm pai e mãe presos. Cátia
Gonçalves, sua mãe, é uma bela mulata mineira, tem vinte e poucos anos, corpo
torneado, longos cabelos negros e cacheados e olhar expressivo. Possui uma certa
esperteza, um jeitinho astuto, e não gosta de conversas, dá respostas monossilábicas,
mas está sempre atenta a informações sobre sua neném.

­ Hoje estou com dor­de­ouvido por causa de uma alergia ao esmalte, sabe? Outro dia a
gente fala, ta? – lorotou a presidiária, fazendo cara de dor, demonstrando, na verdade,
não querer conceder entrevista.
107

A jovem foi presa por latrocínio em Seabra, onde conheceu o paulista Glauciano
Mattos e engravidou de Brigite. Já possuía duas filhas, uma de cinco e outra de dois
anos, conforme consta no relatório do Serviço Social, mas não deu informações sobre o
paradeiro das crianças, que estariam com familiares. Condenada a vinte anos de
reclusão, Cátia chegou na Penitenciária Feminina, em junho de 2005, grávida de três
meses. Sua filha, que já aprende a dar os primeiros passinhos é muito apegada a ela.
Quando chega no presídio, levada por Irmã Adele, a menina se joga nos braços da mãe
e se alguém, quem quer que seja, até mesmo a freira, tentar tomá­la, ela finge que vai e
se vira, rindo, agarrando­se na mãe.

­ Este é o vínculo familiar que estimulamos e achamos o mais importante – orgulha­se


Adele Pezone, explicando o quanto é importante que a criança visite regularmente a
mãe ou o pai preso para que não os estranhe e seja mantido o vínculo familiar – Se a
mãe for solta e quiser levar a menina, não haverá um choque tão grande ao sair da
creche, pois o amor pela mãe já está nela – complementa.

Mas hoje também é dia de Brigite visitar o pai Glauciano, um rapaz branco, de
vinte e cinco anos, muito bonito, com cabelos lisos curtos, porte atlético, tatuagens
espalhadas pelos braços e pernas e bastante educado. Chega na sala de visitas após vinte
minutos da chegada de Irmã Adele com a criança, algemado e com os cabelos
molhados. Quando soube da visita da filha, deixou a fábrica de bolas de futebol, tomou
um banho rápido e foi conduzido pelos agentes penitenciários até à menina, que se
encontrava engatinhando pelo chão. Livre das algemas, pega a criança e a levanta,
dando um beijo na sua barriguinha.

­ É o papai, filha!

Aparentando ser um jovem de classe média baixa, o detento fugiu da cadeia, em


Seabra, mas retornou a ela pouco tempo depois, sendo condenado a vinte e cinco anos
de prisão por motivo que não quis revelar.

­ A minha filha não é linda? Parece comigo? – derrete­se o jovem paulista com a
menina no colo.
108

Brigite é sua primeira filha. Ele conta que foi recapturado justamente por causa
dela, pois quando soube que Cátia havia dado à luz, contaram a ele que a criança seria
entregue para adoção. Acabou ficando atordoado, “dando mole”. Levou um tiro no pé
esquerdo por um dos policiais que o prenderam e não tem um dos dedos. No colo do
pai, a menina se diverte agarrando­o pela corrente. O jovem ri. Do lado de fora da sala
onde acontece a visita, um guarda está parado, observando tudo.
Alisando as costas da criança, comenta:

­ É cabeluda igual à mãe.

Glauciano e Cátia estavam brigados, mas voltará a ter encontros íntimos. Ele
mostra­se apaixonado pela presidiária.

­ Você a viu? Como ela está? É bonita, não é? Nunca gostei de ninguém, mas justo na
cadeia que vim me apaixonar – comenta Glauciando, rindo. Olha atentamente a filha em
silêncio por alguns segundos e continua: – Quando sair daqui, quero constituir uma
família com ela.

O detento sente­se triste ao falar dos pais, que nunca o visitaram desde que foi
preso. Explica que a família enfrenta muitas dificuldades financeiras principalmente
após ele ter sido preso, e que não teve condições de vir de Seabra até Salvador.

­ Como estou trabalhando na fábrica de bolas, juntei um dinheirinho e no próximo mês


eles vêm me ver e conhecer a neta.

Os trinta minutos que o jovem tem para ficar com sua filha se esgotam. Antes de
a entregar para Irmã Adele, dá um beijo no rosto da menina e comenta com a assistente
social da PLB, enquanto o guarda algema suas mãos, que o avise quando o promotor de
Justiça vier ao presídio, pois ele precisa assumir a paternidade da criança. Quer seu
nome na certidão de nascimento da filha.
109

TARDE NO J ARDIM
110

O sol da primavera que se finda está forte e quente nesta tarde desta segunda­
feira, 20 de novembro de 2006. Não há nenhuma nuvenzinha sequer no céu azul claro.
Um vento fraco balança as palhas dos coqueiros espalhados pela grande área verde do
Centro Nova Semente. A casa está em silêncio. As crianças que estão ali ainda tiram um
cochilo pós­almoço. Jean, porém, está acordado e brinca na ampla sala arejada sobre os
olhares preguiçosos de Conceição e Domingas, que descansam ali, uma no sofá e outra
em uma poltrona tipo divã. Irmã Adele está no quarto repousando. Grande parte das
crianças ainda está na creche que fica ali perto, nas escolas públicas do bairro ou tomam
aulas de reforço. Algumas ainda não voltaram das casas de suas madrinhas, com quem
passaram o final de semana. Devem chegar até o final da tarde.

Do quarto dos bebês, ouve­se de repente um choro. É Gabriel que acaba de


acordar. Com seu choro dengoso, também desperta as garotinhas Brigite e Suele.
Quando vê Conceição entrar no quarto cessam­se as lágrimas do garoto. Pelo odorzinho
que percebe no quarto, a babá­educadora logo deduz que alguém está com cocô na
fralda. Olha um por um. Suele e Brigite, ainda com a “cara amassada” de sono, riem.
Foi Gabriel. A babá tira o bebê do berço, pega uma fralda e vai até outro quarto, onde
troca as vestes do menininho. Quando o coloca no berço de tela cheio de brinquedos
que está no meio da sala, Gabriel dá um faniquito, quer ficar no colo da babá. Sem
pestanejar, e derretida por aquele bebezinho “de gênio forte”, como costuma qualificá­
lo, com aqueles olhinhos azuis cheios de lágrimas, Conceição carrega a criança.

­ Pronto molequezinho gostoso da tia!

As irmãs Márcia* e Mariana*, três e cinco anos, também estão na casa. Desde o
Dia das Crianças estavam com a mãe, que acabara de ganhar a liberdade e deixar a
prisão, mas foram deixadas ainda hoje no Centro Nova Semente. A mãe das garotas
disse que por enquanto não tinha condições financeiras de ficar com as crianças.
Voltaria para pegá­las quando conseguisse e se estabilizasse em um emprego. Lá no
abrigo as crianças estariam mais protegidas e não passariam fome.

Dezesseis horas. Domingas levanta.


111

­ Vou pegar a primeira leva de crianças na creche pra trazer pra cá – avisa a Conceição.

Milene, Janaína* e as irmãs Sinara* e Joana*, que possuem entre dez e treze
anos e são algumas das crianças mais velhas do Centro Nova Semente, acabam de
chegar da “banca”. Deixam os livros dentro da casa e saem para conversar na varanda.
A esta altura, os bebês Gabriel, Brigite e Suele já estão engatinhando pelo chão do
Centro, treinando os primeiros passinhos em pé, ainda desengonçados. Conceição
supervisiona.

Domingas chega com sete crianças, entre três de seis anos, todas com a farda
verde e branca da creche do Nova Semente, e volta para pegar as demais.

Irmã Adele surge na varanda com seu hábito bege e véu branco, além das velhas
havaianas azuis de sempre.

­ Irmã, Irmã...

As criancinhas correm em sua direção e a rodeiam. Como Jesus na cena do


quadro que ela mais gosta, instalado na parede principal da sala do abrigo: “Deixai vir a
mim as criancinhas”14. Todas querem falar com a freira ao mesmo tempo.

­ Irmã, esse fim de semana minha madrinha me levou para praia.

­ Irmã, a professora me deu dez na prova!

­ Mã, quelo docinho.

A freira sorri e tenta responder todas as declarações das crianças. Mas é uma só
para tantos.

­ Aqui tá fazendo muito sol, vamos para lá para trás – chama Adele, com seu jeitão
italiano de falar.

14
Mateus, 19: 14.
112

As crianças se dirigem para a área verde que fica atrás da ampla casa. Antes de ir
até lá, a freira entra na sala e pega no armário duas caixas de pequenos wafferes
cobertos de chocolate e um pacote de pirulitos. No jardim, distribui os doces para elas.
Várias mãos se estendem em sua direção e os meninos e meninas saem em algazarra
quando recebem os pirulitos. Os demais, que vão chegando aos poucos no abrigo,
também correm até lá e pegam seus docinhos.

­ Non joguem papel no chão, ok? Lixo se joga no lixo – orienta a freira.

As crianças chupam os pirulitos e quando acabam voltam correndo para pegar


mais. São um, dois, três, quatro.

­ Como conseguem chupar tanto bombom, ora? – diverte­se a freira.

Adele Pezone senta­se num banco de madeira e fica observando a movimentação


de todas. As mais velhas usam as mais novas para tentar ganhar mais pirulitos, mas a
freira está atenta.

­ Mande ela vir com as próprias pernas e pedir, capitche?

­ Irmã, me dá mais um – pede um dos meninos.

­ Como se diz?

­ Por favor, Irmã.

­ Aqui está.

­ Irmã, também quero mais um pirulito.

­ Mas você não acabou de pegar um?

­ Oxe, Irmã? Fui eu não.


113

A freira, apesar de todos os problemas que teve que enfrentar no último mês,
sente­se realizada em ver a alegria daquelas crianças. Quando foi convidada pela
Pastoral Carcerária para vir para o Brasil efetuar um trabalho com crianças filhas de
presos, Irmã Adele desconfiava dos desafios que a aguardavam neste país do terceiro
mundo. Cuidar de crianças em grave risco social e tentar conceder a elas um futuro
melhor, a motivava. Quando aqui chegou, por mais que tenha se preparado para a dura
realidade que teria que enfrentar, a freira chocou­se com a situação de desnutrição e
carência de tudo, inclusive de civilidade, daquelas crianças que viviam na prisão. A
princípio, apenas pegava vez ou outra algumas crianças para passearem no ambiente
extra­muros. Ainda não tinha a confiança das presas, que temiam que a freira fosse de
alguma instituição que visasse a adoção das crianças, mas aos poucos foi comprovando
que não tinha interesse nesta questão, e que não queria afastá­las da família.

Em 1999, quando foi proibida a permanência daqueles “filhos do cárcere” na


penitenciária, teve que agir rapidamente e acomodá­los na casinha simples recém­
adquirida ali no bairro. O local não era adequado, mas tinha que levar as crianças. As
mães resistiram muito, se revoltaram muito, sofreram muito... Para as que não tinham
com quem deixar os filhos, a única opção foi confiá­los à freira, que por anos tentou
conseguir ajuda nacional e internacional para fornecer um ambiente mais adequado para
as crianças. Instituições italianas aderiram à causa. Alguns membros da Pastoral e da
Penitenciária sugeriram que a creche fosse instalada dentro do presídio, mas Adele
resistiu à idéia. Não queria crianças encarceradas, que carregassem para sempre o
estigma de ter nascido na prisão; queria fornecer a elas novos horizontes de vida.

­ Crianças precisam viver vida de crianças! – enfatizava.

Embora esteja prevista na Lei de Execuções Penais a instalação de creches nas


penitenciárias femininas, alguns sociólogos e psicólogos rejeitam a idéia, afirmando
que, apesar de ser um direito assegurado às mães presas, a simbologia e o contato
permanente com a prisão pode provocar nas crianças um sentimento de acolhimento que
as façam associar o cárcere a um lar. Para as crianças em fase de amamentação, talvez
não tanto – e por isso reconhecem a importância de um berçário, de forma a evitar que
114

elas durmam nas celas –, mas sim para aquelas que estão na primeira infância e que
começam a apreender o mundo que as circundam.

Segundo a socióloga Silmara Quintino15, que estudou a presença de uma creche


na Penitenciária Feminina do Paraná, quando a presa deixa o presídio e deve recomeçar
a vida do zero, e com possibilidades ainda mais reduzidas de se colocar no mercado de
trabalho e criar seus filhos, sentirá, junto com a criança, os efeitos do encarceramento.
Não terão dinheiro para pagar as contas e em muitos casos até para alimentar­se.
Sentindo saudades dos “benefícios” da prisão, as crianças que nasceram e viveram no
presídio poderão, quando jovens ou adultas, “voltar” para lá, como que fazendo um
“caminho natural”, aquele mesmo que foi feito pela mãe: o do crime.

­ Não pelo estigma de ser filho de detenta, ou pela herança genética que a torna
propensa ao crime, mas pelo desejo de recuperar as pequenas benesses que o Estado lhe
concedia dentro da prisão, mas que não lhe assegura lá fora – afirma Quintino.

Para a estudiosa, a creche seria, dessa forma, mais uma forma de fazer a
presidiária “agüentar a prisão” que propriamente um benefício para a sua
ressocialização, uma vez que para elas não há garantias de reinserção social.

Irmã Adele, firme no seu propósito e ciente dos riscos que estas crianças
poderiam ter se vivessem na penitenciária, conseguiu montar a instituição de abrigo que
sonhava fora da prisão, após a Pastoral Carcerária ter conseguido firmar um acordo com
a Penitenciária, obtendo autorização para construir a creche em um terreno adjacente ao
complexo penal, em uma área de bastante verde, separada das grandes instituições de
concreto onde os prisioneiros cumprem pena. Com os recursos que conseguiu, Adele
acompanhou cada etapa da construção da casa­lar do Centro Nova Semente.

***

Quinze minutos para as dezessete horas. Na penitenciária feminina do complexo


prisional baiano, as mães das crianças do Centro Nova Semente agora ouvem os apitos:

15
“Creche na prisão feminina do Paraná – Humanização da pena ou intensificação do controle
social do Estado?” Curitiba . 2005.
115

Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii

Elas dirigem­se para as celas. Ao mesmo tempo, no amplo jardim do Nova


Semente, naquela tarde quente e azul, seus filhos correm até o banco onde está Irmã
Adele para pegar mais um pirulito, e saem correndo, abraçando­se, inventando
brincadeiras, fazendo descobertas...

­ Irmã, isso aqui é um coco que tá nascendo, é?

Dezessete horas em ponto.

Track!
Track!
Track!

Ouve­se na penitenciária os cadeados baterem nos portões gradeados de cada


uma das obscuras e úmidas celas, onde estão de três a cinco presas, que só sairão de lá
depois de passadas quatorze horas e trinta minutos. Agora com o sol mais fraco, no
jardim do Nova Semente, que nesta primavera ficou mais bonito, com mais plantas e
flores que foram semeadas e se desenvolveram ali, as crianças gritam, riem e divertem­
se, livres, correndo de um lado a outro.

Perto de uma tela verde gradeada, que separa o espaço do Centro Nova Semente
da mata ao redor dele, três menininhas com as mãozinhas fechadas em frente a boca,
segurando um pequeno pedacinho de cipó, fingem que estão com um microfone e
cantam uma das músicas que preferem:

...E você que é gente grande


Também pode aprender
Que amar é importante pro meu mundo e para o seu
Mas eu tenho a esperança
De você ser meu amigo
De voltar a ser criança, pra poder brincar comigo
116

Vamos construir uma ponte em nós


Vamos construir, pra ligar seu coração ao meu
Com o amor que existe em nós!

Infelizmente esta hora, apenas imaginando ter que enfrentar mais uma noite no
cárcere – e que sobrevivam a ela! – os pais e as mães daquelas crianças, ainda que dali,
ao mesmo tempo tão perto e tão longe dos filhos, não conseguiriam ouvir ou entender o
significado daquela canção... Mas as crianças com esperança cantam:

Vamos construir uma ponte em nós


pra ligar seu coração ao meu,
com o amor que existem em nós!

FIM
117

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120

D'Eça, Aline Costa.


Filhos do Cárcere: Inocentes cumprem pena com os pais nas penitenciárias/
Aline Costa D'Eça – Salvador: A. C. D'Eça, 2006.
120p.

Orientador: Professor Doutor Giovandro Marcus Ferreira.


Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação (Comunicação Social com
Habilitação em Jornalismo) – Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da
Bahia, 2006.

1. Um outro mundo. 2. Nossa casa e escolinha. 3. Anjo e bandido. 4. Festa e


agonia. 5. Mãe apenada. 6. Crianças na prisão. 7. Reencontro. 8. Ao lado do pai. 9.
Tarde no jardim.
121

TERMO DE APROVAÇÃO

ALINE COSTA D'EÇA

FILHOS DO CÁRCERE:
INOCENTES CUMPREM PENA COM OS PAIS NAS PENITENCIÁRIAS

Trabalho de Conclusão de Curso aprovado como requisito para obtenção do grau de


Bacharel em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo, Faculdade de
Comunicação, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora:

Giovandro Marcus Ferreira


______________________________________________________________
Doutor em Ciências da Informação Medias ­ Université de Paris II Panthéon Assas

Simone Terezinha Bortolieiro


______________________________________________________________
Doutora em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo

Carla Aragão
______________________________________________________________
Jornalista e coordenadora do Núcleo de Comunicação da CIPÓ – Comunicação
Interativa

Salvador, 13 de dezembro de 2006.

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