Você está na página 1de 9

10/07/2017 Eliane Brum: “Mãe, onde dormem as pessoas marrons?

” | Opinião | EL PAÍS Brasil

OPINIÃO

COLUNA

“Mãe, onde dormem as pessoas marrons?”


A pergunta de criança denuncia a vida entre muros do condomínio chamado Brasil
ELIANE BRUM

22 JUN 2015 - 15:25 CEST

Uma amiga me conta, na volta de uma viagem a Paris com a família. “Só quando estava lá é que percebi que minha
filha estava, literalmente, andando na rua pela primeira vez”. A menina tem quatro anos. Classe média. Mora em
São Paulo, num condomínio fechado. Do condomínio, vai de carro para a escola privada. Da escola privada volta
para casa. No fim de semana, fica dentro do seu condomínio ou vai para outros condomínios, de casas ou prédios,
cercados por muros ou grades, com guaritas e porteiros. Ou vai a shoppings, onde chega pelo estacionamento, de
onde sai pelo estacionamento. Desloca-se apenas de carro, bem presa na cadeirinha, protegida atrás de janelas
fechadas, vidros escurecidos com insulfilm. De muro em muro, a criança passou os primeiros quatro anos de vida
sem pisar na rua, a não ser por breves e arriscados instantes. E apenas quando a rua não pôde ser evitada. E
apenas como percurso rápido, temeroso, entre um muro e outro.

A cidade é uma paisagem do outro lado do vidro, uma paisagem que ela espia mas não toca. O fora, o lado
exterior, é uma ameaça. O outro é aquele com quem ela não pode conviver, tanto que não deve nem enxergá-la.
Até mesmo contatos visuais devem ser evitados, encontros de olhares também são perigosos. Qualquer
permeabilidade entre o dentro e o fora, entre a rua e o muro, seja na casa, na escola, no shopping ou no carro, ela
já aprendeu a decodificar como intrusão. O outro é o intruso, aquele que, se entrar, vai tirar dela alguma coisa. Se
a tocar, vai contaminá-la. Se a enxergar, vai ameaçá-la.

A rua, o espaço público, é onde ela não pode estar. E por quê? Porque lá está o outro, o
OUTROS ARTIGOS DE
ELIANE BRUM diferente. E ela só pode estar segura entre seus iguais, no lado de dentro dos muros.
O morto que
denunciou o repórter
Minha amiga chocou-se, de repente desconhecida de si mesma. Tinha passado os primeiros
No Brasil, o melhor
quatro anos da vida da filha preocupada em descobrir qual era a casa mais protegida que
branco só consegue
ser um bom poderiam comprar juntando as economias dela e do marido, a casa dentro de muros, mas com
sinhozinho espaço de convivência, com um “playground” em que as crianças de dentro, as crianças

Humilhar e ignorar “certas”, se encontram. Em seguida, preocupada em escolher uma escola que garantiria mais
professor pode. habilidades competitivas quando a menina chegasse à vida adulta e que também fosse uma
Sufocar e ferir não
escola protegida, na qual a filha ficasse segura no lado de dentro. Não tinha sequer percebido
O que lembraremos que estava criando uma criança com horror a todos aqueles que estavam do lado de fora dos
antes de esquecer?
muros e com pavor de pisar na rua.
Os índios e o golpe
na Constituição
Outra mãe, esta de um menino, ficou sem respostas diante de duas perguntas sequencias do
Para Brasília, só com filho pequeno: “Por que ela é marrom?”, o menino perguntou, referindo-se à empregada. E,
passaporte
logo em seguida: “Onde dormem as pessoas marrons?”, já que as “pessoas marrons”
A mais maldita das deixavam os muros ao final do dia, tanto na casa dela quanto na casa dos amiguinhos, mas ele
heranças do PT
não sabia para onde iam. Outro condomínio?
 
A boçalidade do mal

Podem parecer acontecimentos banais para alguns, afinal, os tempos são assim. Podem
parecer histórias de terror, para outros, afinal, os tempos são assim. Para mim as crianças denunciam a
brutalidade do país que criamos para elas, fazendo as perguntas que os adultos preferem não fazer a si mesmos.
Não sabemos que pessoas serão estas que crescem entre muros e que aprendem a escanear o outro, o diferente,
como ameaça.

https://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/22/opinion/1434983312_399365.html?id_externo_rsoc=FB_BR_CM 1/9
10/07/2017 Eliane Brum: “Mãe, onde dormem as pessoas marrons?” | Opinião | EL PAÍS Brasil

Mais preocupados devemos ficar quando a resposta da Câmara dos Deputados à violência se encaminha para a
redução da maioridade penal, de 18 para 16 anos, nos crimes considerados mais graves. O que estão tentando
fazer, estes que manipulam o medo? Querem garantir que esses outros, adolescentes que não tiveram educação
nem saneamento nem saúde nem lazer nem acesso a nenhum de seus direitos garantidos pela Constituição,
esses outros que tiveram as leis que os protegem violadas desde o nascimento, crianças dessas “pessoas
marrons” que o menino não sabe para onde vão à noite nem quem cuida dos filhos delas, sejam encarcerados
mais cedo porque já decretaram que, para elas, não há solução.

Uma sociedade de muros sempre vai precisar forjar monstros do lado de fora para seguir
justificando seus privilégios e mantendo-os intactos

Para estes outros é apagada a responsabilidade do Estado de ajudá-los a construir um caminho alternativo e dar-
lhes acesso a direitos que sempre lhe foram negados. Sem as perguntas que as crianças poderiam fazer a adultos
que preferem anular os pontos de interrogação, os adolescentes que praticam crimes são esvaziados de história
para que a sociedade seja absolvida e, portanto, desresponsabilizada. Os deputados manipulam o medo de seus
eleitores para torná-los uma ameaça incontornável. Varre-se então das ruas aqueles que sujam a paisagem, para
que nem mesmo seja preciso enxergá-los do outro lado dos vidros, e os colocam em instituições muradas onde o
lado de dentro se assemelha a campos de concentração. Se alguém acha que excluir e punir mais e mais cedo é o
caminho para um país sem muros, precisa voltar a raciocinar. Não é preciso ser vidente para saber o que a
vingança provoca num indivíduo e num país quando passa a ocupar o lugar da justiça. E os que estão atrás de seus
tantos muros se vingam do quê, valeria a pena perguntar?

A História já nos mostrou o que acontece quando o Estado determina que um tipo de outro encarna a ameaça e
deve, portanto, ser separado e confinado. E depois, qual é o próximo passo ou qual é a solução final? Pena de
morte, extermínio? Cuidado. Em algum momento aqueles que se iludem que estão seguros por trás dos muros
que ergueram podem se tornar o outro a ser eliminado. Uma sociedade fundada em muros cada vez mais altos
sempre vai precisar de uma ameaça no lado de fora para culpar pelo seu mal-estar, para que as engrenagens
continuem funcionando, garantindo a desigualdade e enriquecendo os mesmos de sempre. Em vez de se
horrorizar com a violência do sistema de educação pública, que sequestra o presente e o futuro destas crianças
que têm cor, classe social e endereço, preocupam-se em desumanizá-las, apagando singularidades e trajetórias,
esvaziando-as de sentidos para torná-las monstruosas. Quando conseguirem encarcerar todos os filhos de pobres
que não puderam converter em mão de obra barata, talvez prendendo logo no nascimento, já que o aborto é
condenado pelos mesmos que defendem a redução da maioridade penal, há de se encontrar uma nova ameaça
para manter o sistema de privilégios intacto.

Uma sociedade de muros sempre vai precisar forjar monstros para seguir justificando a desumanização e o
sistema não oficial de castas. Aqueles que tentam se sentir seguros e criar seus filhos em segurança não estão
inseguros porque há um outro ameaçador do lado de fora. Essa é só a aparência que mantém tudo como está. O
que precisamos não é erguer muros cada vez mais altos, mas derrubá-los e nos misturarmos nas ruas da cidade.

No Condomínio Brasil, o síndico regula o sofrimento da vida para transformá-lo em


 
formas de insatisfação que ele possa administrar

O Brasil atual é uma realidade esgarçada. Entre as mais recentes tentativas de compreendê-lo destaco uma bem
interessante, proposta pelo psicanalista Christian Dunker. Está num livro que ele lançou há pouco, chamado Mal-
estar, sofrimento e sintoma – uma psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo). Mas poderia chamar-se
https://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/22/opinion/1434983312_399365.html?id_externo_rsoc=FB_BR_CM 2/9
10/07/2017 Eliane Brum: “Mãe, onde dormem as pessoas marrons?” | Opinião | EL PAÍS Brasil

“Condomínio Brasil”. Dunker pensa o país a partir da lógica do condomínio, que tem em Alphaville, construído nos
anos 70 nos arredores de São Paulo, sua expressão mais marcante. Vale a pena, como aponta o autor, lembrar o
filme de Jean-Luc Godard de mesmo nome. Alphaville, o do cineasta francês, se passa em outro planeta, onde
tudo é controlado por um computador central, o Alpha 60. Um agente secreto é enviado a Alphaville para destruir
o computador e eliminar seu criador. Em Alphaville não há singularidades. Amor, poesia ou emoção estão
proibidos. São vetadas as interrogações. É banido o “por quê?”. Só é permitido o modo explicativo: “porquê”.

Numa das cenas antológicas, como lembra o filósofo Vladimir Safatle na apresentação do livro, o agente é
interrogado pelo computador e responde a suas perguntas com citações de Jorge Luis Borges, Blaise Pascal e
Friedrich Nietzsche. A máquina, confusa, o libera. “Esta foi a maneira encontrada por Godard para mostrar o que
Alphaville havia deixado de fora de suas fronteiras: a indeterminação que vem junto à palavra poética, esse pavor
pascaliano diante do silêncio dos espaços infinitos”, escreve Safatle. “Ou seja, fora de Alphaville estava toda a
experiência possível.”

E este Condomínio Brasil? A hipótese formulada por Christian Dunker é de que “a vida em forma de condomínio”
insere o nosso mal-estar no que chama de capitalismo à brasileira. A lógica do condomínio transforma os
problemas em problemas de gestão, no qual o síndico adota o papel de regulador do sofrimento – e também do
gozo. Ou, nas palavras de Dunker, “aquele que deve gerir o sofrimento da vida (...) para transformá-lo em formas
palpáveis de insatisfação, que ele poderá administrar”. Ou, mais adiante: “Nosso déficit de felicidade nos leva ao
sentimento, mais ou menos invejoso, de que o vizinho raptou um fragmento do nosso gozo. O síndico representa
tanto a lei mal formulada quanto o gozo excessivo do vizinho”. A segregação, como diz Dunker, surge do fracasso
em articular a diferença e a divisão. É um livro ousado e complexo, que pensa sobre o caminho brasileiro de
“despolitização do sofrimento, medicalização do mal-estar e condominialização do sintoma”. Recomendo a
leitura. Aqui, me detenho apenas em algumas reflexões que o livro me provocou.

Primeiro, é preciso estabelecer as fronteiras. Os que estão do lado de dentro, com a ilusão de proteção, os que
estão do lado de fora tentando entrar porque há algo lá que eles não têm. Há ainda aqueles que entram e saem em
períodos determinados, pela porta lateral ou dos fundos, para desempenhar serviços e manter a ilusão da
paisagem intacta (grama aparada, árvores podadas, ruas e casas limpas etc). Estes outros, tolerados porque
necessários, mas uniformizados e indistintos para reforçar a única (des)identidade que importa: a da função, esta
estratégica, de maquiar a realidade, limpando a sujeira para que tudo pareça imutável. Garantindo assim a
manutenção do paraíso como paraíso que não decai nem se arruína. Ao final, autolimpando-se ao deixar os muros.
Vale a pena repetir a pergunta perturbadora do menino do início: “Mãe, onde dormem as pessoas marrons?”.

A repressão aos “rolezinhos” é uma amostra do que acontece quando os que estão fora
decidem entrar no condomínio que é o shopping

Há que se desempenhar essa função de “limpar e manter”, mas sendo o mais invisível possível. Entrando e saindo
numa cor só, para que invisível também se torne tudo aquilo que escapa ao controle. O que nos leva à próxima
pergunta: afinal, o que de fato se limpa e o que é preciso manter? É possível arrancar a erva daninha que avança
sobre a grama, anunciando que essa é uma guerra perdida. É possível tirar o mais rápido possível o lixo da vista,
antes que ele nos lembre de que cheiramos mal e destruímos muito. Mas não é possível barrar o envelhecimento,
 
a doença e a morte, nem a insatisfação, a ansiedade e a angústia, nem o gosto amargo na boca que só faz
aumentar porque o paraíso não era bem como o prometido e a felicidade soa cada vez mais nervosa. Tampouco é
possível negar a percepção crescente de que os vizinhos, os iguais, são menos cordiais, interessantes ou
suportáveis do que a publicidade garantiu. O que não se consegue deixar do lado de fora é também o mal-estar
que o levou para dentro. O custo de estar dentro é alto. Talvez mais alto do que a maioria perceba.

https://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/22/opinion/1434983312_399365.html?id_externo_rsoc=FB_BR_CM 3/9
10/07/2017 Eliane Brum: “Mãe, onde dormem as pessoas marrons?” | Opinião | EL PAÍS Brasil

O que acontece quando aquele que está fora decide entrar? Nesta altura, imagino que boa parte dos leitores
possa pensar em assalto. Não. Lembro aqui os “rolezinhos”, ocorridos entre o final de 2013 e os primeiros meses
de 2014. O momento em que jovens da periferia, a maioria deles negros, decidiram marcar pela internet passeios
coletivos nos shoppings e foram humilhados, reprimidos e criminalizados. Qual foi a lei que quebraram? Jovens
pretos e pobres não podem frequentar shoppings em grande número? É esta a lei não escrita? O fato é que seu
passeio, chamado então de “rolezinho”, foi decodificado pela clientela habitual dos shoppings e pelas forças de
segurança do Estado como “assalto”. Mas, de fato, o que se “assaltava” ali, na reivindicação de ocupar o lado de
dentro do condomínio que é o shopping, para se divertir com os amigos?

Em maio deste ano, chegou-se a um desfecho só possível num país regido pela lógica do condomínio: a
condenação de três jovens que organizaram pelas redes sociais um passeio no shopping. Foi feita então uma
“vaquinha” de solidariedade na internet para ajudá-los a pagar a multa de R$ 394 cada um. Para eles, que têm
empregos informais e recebem salário mínimo, o valor pode inviabilizar o sustento. Eles não entendiam pelo que
estavam sendo condenados. No sentido literal, mesmo. Não sabiam qual era o motivo da condenação alegado
pelo juiz, mas assinaram porque foi dito que era o melhor para eles. A justiça aparece aqui como um condomínio
em que um dos vários muros é a linguagem.

O condomínio, essa figura concreta, que tão bem conhecemos ou por estar dentro ou por estar fora, é também
uma alegoria para compreender todos os outros condomínios dessa vida de muros. A hipótese sugerida por
Christian Dunker nos ajuda a pensar sobre questões profundas da atual sociedade brasileira, expressada também
nos casos mais recentes de violência, como o já mencionado esforço de um grupo de deputados para aprovar a
redução da maioridade penal e encarcerar adolescentes mais cedo atrás de outros muros. Ou o apedrejamento da
menina de 11 anos vestida com as roupas da sua religião, o candomblé, por dois homens que gritavam: “Sai
demônio! Vão queimar no inferno, macumbeiros!”. A violência resultou num ferimento na cabeça, um desmaio e a
perda momentânea da memória da criança, sem contar as sequelas psicológicas.

Os religiosos que se indignaram contra a transexual no lugar de Cristo defenderam seus


muros, ao privatizar símbolo e sofrimento, tornando-os propriedades do seu condomínio

Entre os casos recentes de violência, podemos pensar ainda na indignação de religiosos contra a artista
transexual que encenou a crucificação de Cristo na parada LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,
Transexuais e Transgêneros) para denunciar a crucificação cotidiana vivida por todos eles. Ao se indignarem com
uma transexual no lugar de Cristo, os religiosos defenderam seus muros, na crença de que o símbolo e o
sofrimento são privatizáveis e privatizados e, assim convertidos, pertencem ao seu condomínio. Sem contar a
mulher que, enquanto era confundida com a “mãe” da criança, pôde permanecer no Clube Pinheiros, em São
Paulo, sem ser perturbada. Ao ser descoberta como “babá” da criança passou a ter problemas para entrar e
exigiram-lhe que usasse uniforme branco, para que não fosse confundida nem frequentasse espaços reservados
apenas para sócios. Os lugares e as fronteiras não podem ser borrados para que os privilégios atrás dos muros se
mantenham cimentados.

São condomínios murados que proliferam no Brasil, com cercas cada vez mais violentamente defendidas, porque
já não basta deixar o outro do lado de fora, é preciso agora eliminá-lo. É também de condomínios e de muros que
 
se trata quando, nas redes sociais da internet, torna-se impossível escutar o argumento do outro, porque o lado
de cá, seja ele qual for, tem o privilégio das certezas ou do bem e da justiça e da crítica. E também ali o outro tem
de ficar do lado de fora, porque já rotulado como ameaça ou desqualificado como direita ou esquerda,
dependendo de que lado se está, não teria nada a dizer que possa ser escutado. Então já não se escuta e nem se
reconhece a sua voz. Neste sentido, se nem todos moram em Alphaville, é bom olhar bem para dentro, porque
pode ter uma Alphaville morando onde menos se espera, com muros disfarçados de argumentos.

https://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/22/opinion/1434983312_399365.html?id_externo_rsoc=FB_BR_CM 4/9
10/07/2017 Eliane Brum: “Mãe, onde dormem as pessoas marrons?” | Opinião | EL PAÍS Brasil

O muro mais difícil de derrubar é aquele que protege o privilégio de não precisar pensar
nos privilégios

Também muitos dos que se anunciam como derrubadores de muros (e defensores da diversidade de gente e de
ideias) parecem, na prática, apenas fortalecer as defesas de suas cercas. Vão até onde os muros podem ser
derrubados sem afetar seus privilégios, que às vezes são apenas a ilusão tão cara e afagada de estarem sempre
certos e do lado certo. Mas há sempre o último muro, aquele que nos obriga a nos movermos, aquele que toca no
privilégio maior, “o de não precisar pensar nos nossos privilégios”, e este precisa ser mantido a qualquer custo.

O muro mais bem guardado, afinal, é o de nossa Alphaville interna. A que nos mantém limpinhos, ao lado das boas
causas, mas sem perder nada que nos é caro. “Peraí, perder também não!” Pronto. Chama o pedreiro para
construir mais dois metros de muro para deixar de fora quem nos lembra do incômodo de que, para deixar o outro
entrar, vai ser preciso perder alguma coisa.

São muitas as armadilhas muradas em um país tão barbaramente desigual. Volta e meia os mais atentos
percebem seu pé preso em alguma arapuca, justamente quando acreditavam rumar para a liberdade e para um
mundo mais justo. Agora mesmo os condomínios fechados do tipo Alphaville são vistos por muitos como algo da
ordem do ridículo. Mas também estes parecem renovar sua busca pelo paraíso perdido (e jamais achado). A moda
no Brasil, há algum tempo, é comprar pedaços de terra com mata nativa e fontes de água em algum lugar, como
nas regiões serranas ainda disponíveis do Sul e do Sudeste ou mesmo em pedaços “paradisíacos” da Amazônia.

Seria este anseio uma atualização do ideal de uma vida sem mal-estar, cercados por outro tipo de iguais, talvez
ainda mais iguais do que os outros? Vizinhos ecologicamente conscientes, equilibrados por meditação, yoga e a
prática saudável de esportes, que se locomovem em bicicletas e consomem orgânicos, com espaços e
propriedades privadas bem definidas. É altamente sedutor para quem pode escolher seus muros, mas não seria
esta uma renovação do condomínio, tanto de suas ilusões como de seu caráter de exclusão? Para quem é deixada
a luta pelo espaço público para todos, em cidades cimentadas onde falta tanto água quanto árvores quanto o
reconhecimento da humanidade do outro?

“Cidades Rebeldes” é o nome de um seminário promovido pela editora Boitempo e pelo SESC, na segunda
semana de junho, que reuniu alguns pensadores da maior relevância sobre o tema, tanto brasileiros, como o
próprio Christian Dunker, autor do livro citado anteriormente, quanto estrangeiros como o geógrafo marxista
David Harvey. Era também um encontro das esquerdas nesse momento tão desafiador, em que as ruas do país
foram tomadas por gritos de direita. Mas houve uma rebelião no debate que debatia a rebelião. O Movimento
Independente Mães de Maio divulgou um manifesto cortante com o seguinte título: “A rebelião não será
gourmetizada”. (Leia aqui. E sugiro ler também os comentários, para compreender o quadro maior).

O “Mães de Maio” tem na origem um grupo de mulheres, a maioria negras, pobres e periféricas, que perderam
seus filhos assassinados, suspeita-se que muitos deles executados pela polícia, nas ruas do estado de São Paulo
em maio de 2006. O grupo faz a denúncia cotidiana da violência praticada pelo Estado contra os mais pobres.
Costuma chamar Geraldo Alckmin de “governador genocida” e denuncia o que chama de “terrorismo de Estado”.
Também
  empresta o nome à Comissão da Verdade que investiga os crimes cometidos pelo Estado no período
democrático. Neste seminário, o movimento foi convidado de última hora para substituir um convidado de
primeira hora que precisou cancelar sua participação. Mas recusou o convite. No manifesto explica o porquê.

Entre as justificativas, o Mães de Maio denuncia uma ausência considerada por muitos uma obscenidade: a falta
do Movimento Passe Livre (MPL), que provocou as manifestações de 2013 no país, na grade dos debatedores.
Também negou a legitimidade de convidados como Luiz Inácio Lula da Silva, que cancelou sua participação antes
https://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/22/opinion/1434983312_399365.html?id_externo_rsoc=FB_BR_CM 5/9
10/07/2017 Eliane Brum: “Mãe, onde dormem as pessoas marrons?” | Opinião | EL PAÍS Brasil

do início do seminário, e o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad. Este último é considerado um repressor dos
protestos de 2013, contra o aumento da tarifa do transporte público, o que tornaria sua presença num seminário
sobre cidades rebeldes uma ofensa. Não me recordo de nenhum outro manifesto recente de movimentos sociais
tão contundente em sua crítica ao PT, definido como o “agonizante Partido dos Trabalhadores”, e a Lula,
chamado a certa altura de “este sujeito”.

No Brasil atual, para ter legitimidade não basta falar sobre o outro, é preciso falar com o
outro

Há muitas interpretações possíveis para a rebelião contra o seminário sobre a rebelião. Também há muitas
versões. Todas elas fascinantes e muito mais fundamentais para compreender o atual momento do que pode
parecer à primeira vista. Como estamos murados, porém, muitos dos sentidos possíveis foram apagados por
polarizações (sempre elas). Alguns desqualificaram o debate já antes do manifesto, por ter nele figuras do PT.
Logo, nada ali, nem todos os outros, inclusive críticos do PT, poderiam ser escutados. Outros desqualificaram o
Movimento Independente Mães de Maio. Outros ainda magoaram-se porque suas melhores intenções não foram
compreendidas e se viram num lugar muito incômodo, já que temos a tendência de acreditar que somos só
bacanas e estamos a salvo.

Com esse gesto, o Mães de Maio dificultou a recolocação do PT no contexto das ruas e das rebeliões e também na
identificação como “esquerda”, o que é muito forte. Dificultou a recolocação do PT não só como protagonista,
mas também como participante do movimento mais amplo das cidades rebeldes. Mostrou também que hoje não
basta incluir no debate um ou dois representantes das periferias e dos movimentos sociais, o que até pouco
tempo teria sido suficiente e garantiria um ambiente controlado. O que o Mães de Maio disse talvez de mais
importante é que, no Brasil atual, para ter legitimidade não é suficiente falar sobre, é preciso falar com. Para isso
também é necessário que todos – todos mesmo – compreendam que “com” significa “com” – e não “só nós”. Do
contrário a lógica dos muros permanece a mesma, ainda que se mude os personagens de lugar. Hoje, é urgente
estar de fato com o outro e se arriscar ao que isso significa. Arriscar-se, portanto, à rebelião.

------------

Dito isso, escolho terminar caminhando com Tim Tim. Neste vídeo viral, a grande transgressão do pequeno
rebelde é andar na rua e arriscar-se a encontros. Quanto tudo parece quase intransponível, quando me vejo
cercada de muros que me encurralam, os de fora, mas também os de dentro, eu lembro do passo de Tim Tim. E
encontro esperança nessa geração que está sendo educada no resgate do espaço público para todos, arriscando-
se às diferenças para combater a desigualdade. Arriscando-se à experiência. Às vezes a vida pede a delicadeza de
descobrir a rebelião também nos passos vacilantes, mas muito entusiasmados, de um guri com um redemoinho
na cabeça.

Caminhando com tim tim

https://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/22/opinion/1434983312_399365.html?id_externo_rsoc=FB_BR_CM 6/9
10/07/2017 Eliane Brum: “Mãe, onde dormem as pessoas marrons?” | Opinião | EL PAÍS Brasil

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que
Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email:
elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum

ARQUIVADO EM:

Opinião · Classes sociais · Luta classes · Maioridade Penal · Desigualdade social · Responsabilidade penal · Brasil · América Latina
· Racismo · Grupos sociais · Discriminação · Preconceitos · Justiça · Problemas sociais · Sociedade

CONTENIDO PATROCINADO

Y ADEMÁS...

El DJ de la boda de Messi revela


un gesto de Shakira al detallar
la fiesta
(TIKITAKAS)

© EDICIONES EL PAÍS, S.L.


Contato Venda de Conteúdos Publicidade Aviso legal Política cookies Mapa EL PAÍS no KIOSKOyMÁS Índice RSS

https://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/22/opinion/1434983312_399365.html?id_externo_rsoc=FB_BR_CM 7/9
10/07/2017 Eliane Brum: “Mãe, onde dormem as pessoas marrons?” | Opinião | EL PAÍS Brasil

https://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/22/opinion/1434983312_399365.html?id_externo_rsoc=FB_BR_CM 8/9
10/07/2017 Eliane Brum: “Mãe, onde dormem as pessoas marrons?” | Opinião | EL PAÍS Brasil

https://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/22/opinion/1434983312_399365.html?id_externo_rsoc=FB_BR_CM 9/9

Você também pode gostar